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Português Pages 205 Year 2008
ARISTÓTELES ETHICA
NICOMACHEA
TRATADO
DA VIRTUDE
I 13 ...111 8 MORAL
Marco Zingano Tradução, notas e comentários
Obras Comentadas
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A coleção Obras Comentadas publica traduções comentadas de obras de filosofia. A série sobre seções temáticas das obras de Aristóteles é organizada e produzida por professores e pesquisadores universitários de reconhecido trabalho na área e são discutidas previamente pelo grupo de pesquisa sobre filosofia aristotélica, dirigido por professores da USP e UNICAMP; a versão final e o comentário, porém, são de inteira responsabilidade do autor. A série de estudos aristotélicos visa colocar à disposição do leitor traduções em língua portuguesa, com comentário acadêmico de natureza filosófica e filológica, no intuito de promover a cultura clássica e, especialmente, a reflexão sobre a filosofia de Aristóteles.
ISBN 978-85-88023-98-7
111111111111111111111111111111
9 788588 023987
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INTRODUçAO
I. TRATADO
DA VIRTUDE MORAL
Entre as obras de Aristóteles que a tradição nos legou, encontramos quatro tratados: (i) Ethica Nicomachea, (ii) Ethica Eudemia, (iii) Magna Moralia e (iv)De
virtutibus et vitiis. Este último, um curto tratado que ocupa as páginas 1249a26 - 1251b37 da edição Bekker, é seguramente apócrifo e pode ser deixado de lado. A Magna Moralia, que, pelo nome, parece ser a maior, é, no entanto, menor do que as duas outras Éticas; na verdade, seu nome deriva do fato de estar dividida em dois longos livros, o primeiro com 34 capítulos, ocupando 17 páginas Bekker, o segundo com 17 capítulos repartidos em 15 páginas Bekker (os livros da EN giram em torno de 8 - 10 páginas Bekker). Há ainda controvérsia sobre a autenticidade ou não desta obra; a opinião mais freqüente é que se trata de um curso de ética proferido pelo jovem Aristóteles, cuja transcrição, contudo, provavelmente foi feita após sua morte (o que explicaria alguns detalhes do grego, mais próximo do demótico do que do clássico ateniense). Convém salientar que, conceitualmente, a MM mostra mais proximidade com a EE do que com a EN; neste sentido, seu uso e destino estão ligados ao modo como considerarmos a relação entre a EN e a EE. Por longo tempo, a EE foi considerada uma obra de Eudemo de Rodes, aluno de Aristóteles e pretendente à sua sucessão no Liceu; a edição de Susemihl ainda se intitula Eudemi Rhodii Ethica. Muito provavelmente Eudemo esteve envolvido na edição da Metafísica (a seu sobrinho Pasicles, aliás, é geralmente atribuída a edição do livro a) e talvez também tenha-se envolvido na edição deste tratado, mas, atualmente, a opinião dos intérpretes é que se trata de um escrito genuíno de Aristóteles. Na verdade, atualmente o ponto controverso é justamente explicar por que temos dois tratados de ética escritos por Aristóteles no Corpus aristotelicum (o que é um caso único). A situação torna-se ainda mais complexa quando se leva em conta o fato que três livros são comuns às duas Éticas (EE IV - V - VI
= EN
V - VI - VII). Por muito Introdução
I 9
tempo, prevaleceu a tese segundo a qual estes livros comuns eram originários da EN; tendo ocorrido o desaparecimento dos livros IV, V e VI da EE por algum extraordinário infortúnio, eles teriam sido substituídos pelos livros correspondentes da EN. Com base sobretudo nos trabalhos de Anthony Kenny, porém, a opinião corrente é bem diferente. Pensa-se hoje que os livros comuns pertenceram originariamente à EE e dali foram transpostos, eventualmente com algumas adaptações, à EN. Mais adiante, fornecerei alguns detalhes sobre como concebo a relação entre estes dois tratados; de qualquer modo, é ganho da literatura do séc. XX a inequívoca ascensão da EE às obras autênticas de Aristóteles. Enfim, a EN é a obra ética mais conhecida de Aristóteles e, também, a mais comentada, e isto desde a Antigüidade. O título da obra não é claro nem aparece como tal nos catálogos mais antigos das obras de Aristóteles. Pode-se entender por Nicomachea tanto que o livro foi dedicado (pelo próprio Aristóteles) a (com mais probabilidade) seu filho ou a (com menos probabilidade) seu pai, ou mesmo que ele tenha sido editado por seu filho. O mesmo vale para a EE: por Eudemia se indica ou bem que o tratado foi dedicado ao amigo Eudemo de Chipre (menos provavelmente) ou ao discípulo Eudemo de Rhodes (mais provavelmente), ou que foi editado por este último. Já que não é mais possível obter clareza neste assunto, pois a única coisa inconteste é que se precisava de dois títulos diferentes para distinguir as obras, sem que possamos saber o que eles dizem exatamente. Nestas circunstâncias, é conveniente usar o título latino, Ethica Nicomachea, ou, na versão aportuguesada,
Ética Nicomaquéia, sem lhe atribuir maior importância do que a capacidade de distinguir uma obra da outra', A EN tem uma estrutura bastante clara, a despeito de certos problemas de edição. Os livros antigos não continham divisão em capítulos; no esquema a seguir, divido-os segundo os capítulos da edição Bekker, adotados também por Susemihl (Bywater os dá no corpo do texto em números arábicos), que remontam pelo menos à versão latina de Grosseteste (circa 1260)ii: I
1 - 3 : Objeto e método do estudo 4 : Crítica da doutrina platônica do bem 5 - 12 : Definição de felicidadee sua confirmação nas opiniões antigas
IO
I Ethica Nicomachea I 13 - UI8
II
13 : Virtudes morais e intelectuais 1 - 9 : Definição de virtude moral; a noção de mediedade
III
1 - 8 : Estudo do ato voluntário e da escolha deliberada 9 - 12 : A coragem 13 - 15 : A temperança
IV
1 - 3 : A generosidade 4 - 6 : A magnificência 7 - 9 : A magnanimidade 10 : A virtude relativa à ambição e ao desapego 11 : A tolerância 12 : A polidez 13 : A veracidade 14: A cortesia na diversão
15: O pudor V 1 - 15 : A justiça VI 1 - 13 : Estudo da virtude intelectual no campo prático: a prudência VII 1 - 11 : Estudo da acrasia, intemperança e bestialidade 12 - 15: Primeiro tratado do prazer VIII 1 - 16 : Estudo da amizade (I) IX 1 - 12 : Estudo da amizade (I1) X
1 - 5 : Segundo tratado do prazer 6 - 9 : Felicidade: contemplação e vida política 10 : Ética e política
Este quadro temático é sensivelmente similar ao que encontramos na EE: nesta última obra, são tratados os temas, no livro I, da felicidade e bem supremo, com um capítulo sobre a doutrina platônica do bem (I 8); no livro I1, é obtida a definição de virtude moral e é feito o estudo da noção de mediedade, bem como das condições do ato voluntário e da escolha deliberada; no livro III, as virtudes morais são analisadas uma a uma; após os livros comuns (EN V, VI e VII), a EE dedica o livro VII ao estudo da amizade e se vê concluída, no livro VIII, com um estudo sobre as relações entre virtude e saber (VIII 1), sobre a boa sorte (VIII 2) e sobre o estatuto da contemplação (VIII 3). Há, evidentemente, certas diferenças no tratamento dos temas, mas, basicamente, Introdução
I
II
vemos repetido o mesmo esquema. Também a estrutura geral da Magna Moralia reproduz, ainda que menos claramente, este esquema geral, que pode ser resumido do seguinte modo: (i) a definição da felicidade, (ii) o estudo da virtude moral em geral; (iii) o exame das virtudes uma a uma, especialmente da justiça; (iv) o exame da virtude intelectual que opera na parte prática, isto é, o estudo da prudência; (v) o exame do fracasso moral presente na acrasia; (vi) a análise do fenômeno humano da amizade, cimento de nossas relações pessoais; (vii) um estudo sobre o prazer e, finalmente, (viii)a retomada da noção de felicidade e a determinação do papel da contemplação para a vida feliz. Isto não é, obviamente, fruto de coincidência. De fato, pode-se mostrar que este esquema desdobra uma análise conceitual segundo uma ordem bastante precisa. A ética aristotélica inicia com o estabelecimento da noção de felicidade; ela é, neste sentido, tipicamente uma ética eudemonista. A felicidade é definida como uma certa atividade da alma segundo peifeita virtude
(cf. I 61098a16-17). Esta
definição requer, assim, o estudo do que é uma virtude peifeita, o que nos leva a examinar a natureza da virtude moral. A virtude moral, por sua vez, consiste em uma mediedade relativa a nós e é definida como uma disposição de escolher por deliberação (I1 6). Para se compreender propriamente esta definição, é necessário entender o que é a escolha deliberada; para isso, é preciso determinar previamente em que consiste um ato voluntário (o que é feito, respectivamente, em III 4-6 e 1-3). Ao se estudar o que é a escolha deliberada, vê-se que é a determinação que a razão impõe no domínio prático sob a forma de uma boa deliberação; é necessário, por conseguinte, estudar a natureza da prudência, que é justamente a boa deliberação a título de virtude intelectual da parte prática (o que é realizado no livro VI). Feito este passo, deve-se então examinar qual é a relação entre prudência e saber, isto é, entre vida ativa e vida contemplativa (o que é feito em X 6-9). Este é o núcleo argumentativo da ética aristotélica; na EN, ele corresponde aos livros I 1-12 (felicidade), I 13 - III 8 (virtude moral; ato voluntário e escolha deliberada), VI (tratado da prudência) e X 6-9 (vida contemplativa e vida política). Tal núcleo argumentativo é recheado, por sua vez, de temas diretamente ligados à ética. Em primeiro lugar, haja vista a natureza mesma da matéria prática e suas condições de acribia, convém um estudo caso a caso das virtudes, o que é feito ao longo de III 9 - V. Depois, o fracasso moral é analisado sob a forma da acrasia, bem como em um caso I2
I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
mais inquietante, o da intemperança, no livro VII; em contraste, o cimento de nossas relações pessoais e íntimas é investigado nos livros VIII e IX, dedicados à noção de amizade. Enfim, a virtude moral é expressamente concebida como conectada ao prazer e à dor e pode mesmo ser vista, em geral, como a boa medida de nossas emoções. Por conseguinte, o exame da natureza do prazer é um tema próprio à ética; na EN, encontramos dois tratados a ele dedicados, um no final do livro VII, o outro no início do livro X. Isto nos permite identificar, por trás do fato físico de sua divisão em rolos, que correspondem aos atuais livros, certas unidades temáticas, a saber: I
A felicidade e os modos de vida (I 1 - 12; X 6 - 9),
o que engloba conceitualmente duas outras unidades: II
A virtude moral (I 13 - III 8)
III
A virtude intelectual do domínio prático (VI).
Por sua vez, este núcleo argumentativo é recheado com o estofo das seguintes unidades temáticas: IV
As virtudes particulares (In 9 - V)
V
o fracasso moral
VI
A amizade (VIII - IX)
VII
O prazer (VII 12 - 15; Xl - 5).
(VII 1 - 11)
O presente estudo tem por tema a natureza da virtude moral, o que corresponde à unidade Ir. Seu início ocorre no fim do primeiro livro, quando, em I 13, Aristóteles distingue, à base da oposição entre parte racional e parte não-racional da alma, entre virtude moral e virtude intelectual, passando, nas páginas seguintes, a estudar a natureza da virtude moral. Tal estudo leva à análise da escolha deliberada, que aparece já embutida na definição da virtude moral, sem, contudo, ter sido previamente examinada; este último estudo se conclui em III 8, que é uma recapitulação de toda esta unidade temática (e não somente dos primeiros capítulos do terceiro livro). Há, assim, no próprio texto de Aristóteles marcas relativas à unidade deste tópico, o que nos assegura poder tratá-lo separadamente", A última unidade que apresentei, a saber, a unidade VII sobre o prazer, põe-nos já diante da vexa ta quaestio sobre a unidade agora da EN como um Introdução
I Ij
todo, para além da correlação entre suas partes. Com efeito, temos, na
EN,
dois tratados sobre o prazer. No primeiro, que se encontra na parte final do livro (comum)
VII, o prazer é visto como uma atividade não entravada; no
segundo, que se encontra nos capítulos iniciais do livro X, o prazer não é uma certa atividade, mas antes um coroamento
da atividade, algo que se acrescenta
à atividade, sem se identificar a ela ou a um tipo dela. Pode-se tentar mostrar que as duas perspectivas
não são incompatíveis
e que, mesmo, o tipo de abor-
dagem levado a cabo em cada tratado explicaria a adoção de uma perspectiva diferente. No entanto, é forçoso reconhecer que, pelo menos à primeira vista, as teses sustentadas
não são as mesmas e a mera presença de dois tratados
sobre o prazer é um indício de que há problemas
concernentes
livro, já pelo fato de um tratado
a existência do outro", Tal
não mencionar
à unidade do
questão envolve inevitavelmente o problema espinhoso de determinar e a proximidade
conceitual dos livros comuns, já que o primeiro
a origem tratado do
prazer faz parte de um livro comum. Não há como discorrer sobre este tema aqui a não ser de modo sucinto, mas talvez não seja mesmo preciso tratá-lo exaustivamente,
pois a unidade em análise aqui, a unidade II sobre a natureza
da virtude moral, não está diretamente
envolvida com estes problemas.
No
entanto, como ela está indiretamente envolvida, convém fazer algumas observações, ainda que muito gerais.
É certamente mais do que uma curiosidade observar que, em VI 13, Aristóteles lança mão de uma divisão da virtude moral em virtude natural e virtude
própria que não encontra nenhum
apoio explícito no tratado
da virtude moral nem em outros livros da Por outro lado, há uma passagem da
nicomaquéio
EN, à exceção dos livros comuns.
EE que se vincula diretamente
a esta
EN I 13 - III 8. No que constitui o tratamento eudêmio das virtudes particulares, ao tratar em EE III 7 de certas disposições que são divisão ausente em
louváveis sem serem virtudes, pois são antes afecções, Aristóteles "porque são naturais, elas contribuem
escreve que,
às virtudes naturais, pois toda virtude,
como será dito adiante, ocorre de certo modo natural e de um outro modo, acompanhado alusão a
de prudência"
(1234a27-30)v.
Esta passagem
faz claramente
EN VI (EE V) 13 1144bl-17, onde Aristóteles de fato distingue en-
tre virtude natural, a que ou bem temos ao nascer ou bem adquirimos hábito, e virtude própria, a "que não se produz sem prudência"
I4 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
por
(1144b17). O
tratado nicomaquéio da virtude moral também contém uma remissão ao que será examinado no livro EN VI, mas esta remissão somente nos diz que, a respeito do agir segundo a reta razão, "será discorrido mais adiante, sobre isso, sobre o que é a reta razão e como se relaciona com as outras virtudes" (I1 2 1103b32-34), sem se comprometer com uma distinção entre virtude natural e virtude própria. Há ainda outras duas passagens dos livros comuns nas quais aparece o tema da virtude natural. A primeira delas é EN VII (EE VI) 9 1151a18-19,em que é dito que é a virtude moral "natural ou habitual" que nos fornece uma opinião correta sobre o princípio da ação. O ou aqui deve ser entendido menos no sentido de uma disjunção propriamente dita e mais no sentido de uma explicitação: a virtude natural, isto é, a virtude adquirida pelo hábito. Neste mesmo livro comum, um pouco mais adiante, já no primeiro tratado do prazer, é dito que a opinião segundo a qual o prazer não é um bem se apóia em parte no fato que certos prazeres provêm de ações de uma natureza perversa, seja de nascença, como no caso dos animais, seja por efeito do hábito, como os prazeres dos homens viciosos (VII 15 1154a31-34). Embora não haja expressamente nesta última passagem o termo vício natural (que seria o contrário da virtude natural) e ainda que esteja referida como uma opinião em que se baseia uma posição recusada por Aristóteles, a lição pode mesmo assim ser adaptada ao aristotelismo dos livros comuns: vícios adquiridos pelos hábitos são vícios naturais. Assim, ao que tudo indica, a ética eudêmia parece consistentemente falar de uma virtude ou vício naturais, vocabulário que, no entanto, está ausente do texto nicomaquéio, excetuando-se os livros comuns, que, contudo, parecem pertencer originalmente à EE, já por esta proximidade terminológica quanto à divisão das virtudes em naturais e próprias. Convém embrenhar-se um pouco mais neste espinhoso problema, pois ele tem conseqüências no modo como haveremos de interpretar a noção de ato voluntário. Há indícios a meu ver concordantes para a atribuição da redação da EE a um período anterior à da EN do ponto de vista conceitual. Em ambas as Éticas, Aristóteles examina criticamente a doutrina platônica do bem, substancialmente com os mesmos argumentos, embora o tom agastado da versão eudêmia apareça bem atenuado na redação nicomaquéia. Um destes argumentos consiste em um apelo à doutrina da dispersão categorial do ser, a qual é igualmente afirmada do bem, de modo que, como conclusão, temos que Introdução I
I5
não é possível um bem único para tudo, como pretendia Platão, pois a refração categorial impede tal universalidade. O argumento
ocorre em
EN I 4 1096a23-
EE I 8 1217b25-35, com mínimas e irrelevantes variações de termos, exceto na conclusão. Com efeito, a EN conclui limitadamente que, por conta da 29 e em
dispersão categorial do bem, similar à do ser, "não é possível um bem comum, universal e único" (1096a28); na
EE, porém, lemos que, além de não haver nem
um bem único nem um ser único a propósito de todas as categorias, "também não existe uma ciência única nem do ser nem do bem" (1217b34-35). O que é
EE é que ela é incompatível com o projeto aristotélico de uma ciência universal do ser, exposto no livro r da Mesurpreendente
nesta conclusão exclusiva da
tafísica, com base na idéia de relação focal, pois, graças a esta noção de unidade não genérica, é possível uma ciência única do ser artigo extremamente
(cf. r 21003b12-15).
Em um
fecundo para os estudos aristotélicos, Owen mostrou que
ou bem isto pode ser usado como um sinal da inautenticidade
da
EE, ou bem,
como sustentou, que a EE foi escrita em um momento intelectual no qual Aristóteles ainda não tinha aplicado a noção de relação focal ao ser (e eventualmente tampouco ao bem, se é que ele a aplicará ao bem:
cf. EN
I 4 1096b26-29)"i. Já na
EN, Aristóteles mantém o mesmo argumento contra as pretensões platônicas de um bem único, mas corrige agora a tese excessiva que por isso tampouco
é
possível uma ciência única do ser ou do bem. O próprio Owen mostrou que, na
EE, Aristóteles já dispunha da noção de
relação focal, mas a tinha então aplicado limitadamente
aos diferentes tipos
de amizade, sem a expandir a outros casos, como o ser. O tema da amizade
EE é um escrito conceitualmente anteEE Aristóteles unifica os três tipos de amizade com
funciona como mais um indício que a rior à EN. Com efeito, na
base em uma relação focal: a amizade segundo a virtude é a amizade primeira, em relação à qual os outros dois tipos são ditos também amizades, a amizade segundo o prazer e a amizade segundo a utilidade. pode sustentar
que não há uma única amizade, mas três tipos de amizade, e
que eles não se reduzem e a amizade virtude,
Deste modo, Aristóteles
a um dentre eles, mas a amizade segundo o prazer
segundo a utilidade
gravitam em torno da amizade
segundo a
à qual fazem inevitavelmente referência. A despeito dos ganhos desta
análise não redutivista dos tipos de amizade, há obviamente
uma dificuldade,
e grande, nesta tese. Não parece claro em que sentido a amizade segundo o
I6 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
prazer e a amizade segundo a utilidade têm uma dependência focal de sentido em relação à amizade segundo a virtude; ao contrário, pode-se perfeitamente bem conceber as relações de amizade segundo o prazer ou segundo a utilidade independentemente da amizade segundo a virtude: são elas relações conscientes e recíprocas de benevolência prática ligadas, respectivamente, ao que é prazeroso e ao que é útil, sem haver aqui nenhuma referência à noção de virtude. Assim, não surpreende ver que, na EN, Aristóteles examina os três tipos de amizade em função da noção de semelhança, ao que tudo indica abandonando o projeto eudêmio de unificá-los por meio da noção de relação focal: a amizade segundo o prazer e a amizade segundo a utilidade assemelham-se, em suas propriedades, à amizade segundo a virtude. Relações de semelhança são simétricas e, deste ponto de vista, não é possível atribuir nenhuma prioridade: a amizade segundo o prazer se assemelha à amizade segundo a virtude nem menos nem mais do que a amizade segundo a virtude se assemelha à amizade segundo o prazer. No entanto, Aristóteles introduz, na EN, uma relação de prioridade entre os tipos de amizade mediante um outro mecanismo. Com efeito, ele argumenta, ao longo dos livros VIII e IX, que o objeto de amizade virtuoso é necessariamente prazeroso e útil, ao passo que o objeto de amizade segundo o prazer ou o objeto segundo a utilidade, embora possam acidentalmente envolver a utilidade e o prazer, respectivamente, e mesmo a virtude, não o fazem, porém, necessariamente. Mediante a noção de imbricação entre os objetos de amizade, Aristóteles reintroduz nos tipos de amizade unificados por semelhança uma relação de prioridade que, de outro modo, não mais poderia obter. Se isto estiver correto, então vemos que também aqui, a respeito da amizade, o argumento nicomaquéio é filosófica e conceitualmente superior ao eudêmio - e é, por conseguinte, tanto quanto se pode julgar sobre isso no incerto domínio humano, provavelmente posterior ao eudêrnio'". Estes não são os únicos indícios, mas já são suficientes para estabelecer a plausibilidade de se pensar a EN como proveniente de uma revisão, pelo menos parcial, da EE (o que explicaria igualmente o fato extraordinário de se terem dois tratados, ou três, sobre o mesmo tema, com estrutura muito similar). Isto é importante sobretudo no tocante à discussão sobre a natureza voluntária ou involuntária dos atos humanos, pois há algumas diferenças significativas entre o tratamento dado a este ponto na EE e na EN. No grego antigo, os Introdução
I I7
termos
ÉKOWLOV
e àKOWlOV têm um uso mais vasto, ou impreciso, do que o
nosso uso atual. Com efeito, em parte eles dizem respeito à agência humana, delimitando aquilo de que o agente é propriamente responsável e aquilo de que pode ser desresponsabilizado, mas em parte indicam também se o agente fez algo de bom grado ou a contragosto, respectivamente. Ambas as noções nem sempre coincidem: posso fazer por mim próprio algo a contragosto, bem como realizar algo involuntariamente, que teria feito conscientemente, porém, de bom grado. É provavelmente por causa do cruzamento destes dois usos que Aristóteles introduz, no exame da ignorância das circunstâncias, uma consideração sobre o fato de o agente arrepender-se ou não do que fez: se se arrepende, diz Aristóteles, o ato é involuntário; se não demonstra arrependimento, embora não seja voluntário, o ato não é propriamente involuntário: ele é antes não-voluntário. O arrependimento, contudo, parece ser não uma condição do caráter involuntário ou não-voluntário do ato, mas um critério para nosso reconhecimento do caráter moral do agente envolvido em atos nos quais há ignorância das circunstâncias. Apesar desta confusão entre condição de ser e critério de reconhecimento, Aristóteles demonstra muita clareza ao determinar o núcleo de significação destes termos. Segundo a EN, um ato é voluntário se satisfizer conjuntamente as seguintes duas condições: (i) o princípio está no agente
1\
(ii) o agente co-
nhece as circunstâncias nas quais a ação ocorre. A negação de (a (~a
V
1\
b) sendo
-b), o ato será involuntário quando ocorrer (pelo menos) que o prin-
cípio não está no agente ou que o agente ignora as circunstâncias nas quais a ação ocorre. Este é o núcleo destas noções; a partir dele, Aristóteles examina casos controversos, como as ações ditas mistas. Ainda, Aristóteles insiste que a ignorância em questão não é qualquer ignorância, mas somente a ignorância das circunstâncias, e isto é um esclarecimento filosófico importante. Com efeito, Platão sustentou ao longo de toda a sua carreira filosófica que ninguém é perverso voluntariamente (Prot. 345d; Gorg. 50ge; Leges V 731c). Tal tese controversa está fundada no fato de o agente perverso ignorar o que é o verdadeiro bem, o que causaria o caráter involuntário de seu ato por conta de uma noção muito ampla de ignorância, que Aristóteles agora corrige: este tipo de ignorância não causa o caráter involuntário do ato; ao contrário, ela engendra a natureza perversa do agente. Além disso, convém salientar que, do modo
I8 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
como Aristóteles o apresenta, o caráter voluntário é mais abrangente do que a escolha deliberada: toda escolha deliberada é voluntária, mas nem todo ato voluntário ocorre por escolha deliberada. Isso permite a Aristóteles atribuir a crianças e animais atos voluntários, embora os primeiros ainda não possuam razão deliberativa e os últimos jamais virão a possuí-la. No tratamento que a EE dá a estas noções, Aristóteles igualmente quer estabelecer o ponto segundo o qual toda escolha deliberada é voluntária, mas nem todo ato voluntário ocorre por escolha deliberada (I1 10 1226b32-36). No entanto, na EE o voluntário é estreitamente conectado ao pensamento: em II 9 1225b1, o voluntário é definido como o que é conforme ao pensamento. Neste sentido, ele é fortemente aproximado do que está ao nosso alcance fazer ou não fazer
(cf. II 9 1225b8-9), pois poder fazer ou não fazer algo está
diretamente vinculado à capacidade humana de pensar e refletir'". Estar ao nosso alcance fazer ou não fazer algo equivale a poder agir diferentemente; deste modo, voluntário e agir diferentemente são intimamente conectados. Obviamente, poder pensar e refletir não implica que sempre se pense ou se reflita ao agir; pode sempre haver atos que não sejam feitos por reflexão ou deliberação, como os atos súbitos, que não deixam de ser, porém, voluntários. No entanto, a estreita conexão entre voluntário, pensamento, estar ao nosso alcance e poder agir diferentemente tem como conseqüência que crianças, que ainda não têm a faculdade de pensar, ou animais, que nunca a terão, devem ser excluídos do campo da ação propriamente dita, o que é feito em EE n 8 1224a28-30. Em contraste com isso, a EN expressamente atribui atos voluntários a crianças e animais (In 4 1111b8-9). Pode-se sustentar que o procedimento eudêmio de conectar estreitamente ato voluntário, pensamento e poder agir diferentemente é um ganho filosófico; afinal, como o voluntário se liga diretamente à responsabilidade moral, teríamos de avaliar moralmente crianças e, surpreendentemente, também animais, caso agissem voluntariamente. No entanto, embora voluntário e responsabilidade moral estejam obviamente conectados, eles o podem estar de modo parcial: os atos de que somos responsabilizados são todos voluntários, mas pode haver atos voluntários que estejam fora da alçada da censura ou elogio morais, caso não haja perspectiva de uso racional e reflexão. Por esta razão, por vezes repreendemos, por vezes não repreendemos crianças, em função da capacidade ou conveniência Introdução
I I9
de aprendizagem em que se encontram. Ademais, retirar dos animais toda natureza voluntária é excessivo.Parece, assim, mais conveniente dissociar as noções de voluntário e de agir diferentemente, como ocorre na EN, e insistir que, para o voluntário, trata-se sobretudo do fato de o princípio da ação estar no agente, sem que se determine já de que modo atua tal princípio (de modo simples, como nos animais e, ainda, nas crianças, ou complexo, como no caso dos homens adultos, quando envolvepensamento e reflexão). Examinando-se as condições adultas do ato voluntário, vê-se que o que é voluntário em um adulto está em seu poder fazer ou não fazer, mas isso não é condição do caráter voluntário do ato como tal; pelo menos, animais e crianças não satisfazem tal condição. Novamente, vemos que o exame da EN, neste caso sobre o voluntário, é filosoficamente mais seguro do que o apresentado na EE e pode ser mesmo visto como o resultado de uma revisão do que tinha sido apresentado previamente na EE. Uma última observação. Embora haja claramente a divisão em um núcleo argumentativo, do qual o tratado da virtude é uma parte (em minha nomenclatura, a parte I1), e em unidades temáticas que forram como estofo a arquitetura do livro, como é o caso do exame das virtudes particulares (em minha nomenclatura, parte IV), as questões conceituais não se domesticam tão facilmente, como era de se esperar em um tratado de filosofia. A parte IV inicia com a declaração que, "retomando a investigação, determinemos a respeito de cada virtude quais são, a que concernem e como procedem; simultaneamente ficará claro quantas são" (III 91115a4-5). Espera-se que esta parte especifique, exemplifique e caracterize em detalhes o que tinha sido obtido na parte Il. De fato, é isto o que ocorre em geral, pois a parte IV depende conceitualmente da parte II. No entanto, um detalhe não deve passar despercebido. No tratado da virtude moral, Aristóteles introduz a noção de belo, TO KaÀÓv, e isso em diferentes passagens. No entanto, é somente no exame das virtudes particulares, a começar pela coragem, que a noção de agir com vistas ao belo, TOV KaÀov ÉVEKa,
ganha consistência. Em um ato de coragem, expomos a vida ao
perigo, e não é raro morrer por causa disto. A noção antiga de bem, TO àyaeóv, estava fortemente conectada ao que nos é benéfico e vantajoso (assim aparece freqüentemente no Sócrates de Platão, por exemplo), o que dificilmente se concilia, ou pelo menos não facilmente, com o ato de pôr em risco a vida, que 20
I
Ethica Nicomachea I 13 - III 8
intuitivamente figura como o maior de todos os bens humanos. Aristóteles recorre então à noção de belo, não porque quer introduzir elementos estéticos ou algo similar, como enfatizar a harmonia, a simetria e a elegância no ato bom, mas porque necessita de uma noção moral de bem que esteja claramente desvinculada do que é proveitoso ou benéfico para o agente. Oferecer a vida certamente não é algo bom ao agente neste último sentido, mas, em certas circunstâncias, é o que nos resta a fazer, é o que é belo ao agente fazer. A noção de belo moral terá uma história conturbada na reflexão moral; um de seus primeiros avatares é precisamente o conceito estóico de honestum. De qualquer modo, Aristóteles precisa de um termo que designe o dever que se impõe a nós, ainda que contrário aos nossos interesses, muitos dos quais legítimos, como o direito à vida. No tratado da virtude moral (parte I1), a noção de belo moral é por certo mencionada, e não poucas vezes, mas ela nunca é tratada ex professo. Na parte IV, a encontraremos novamente, desta vez em sua expressão própria, TOV KaÀov ÉVEKa;
embora tampouco seja objeto de uma análise expressa, ela,
contudo, já é claramente operacional, pois o exame detalhado das virtudes não pode dispensar o apelo a tal noção. Isto é inevitável em um tratado como este; à diferença da literatura, nenhum autor comanda tão imperiosamente na filosofia o destino de seus conceitos como o escritor domina o de suas personagens. Neste caso preciso, a falta convém ser assinalada. Com efeito, a ética aristotélica é tipicamente um eudemonismo, como já foi assinalado. Isto pode dar a impressão que é uma ética do bem-estar na qual a noção de dever só encontra lugar na medida em que estiver governada por um fim que seja constitutivo, aos olhos do agente, de sua felicidade; se o agente quiser A e reconhecer B como meio adequado para obter A, então deve perseguir B, mas deve persegui-lo somente na medida em que for meio para obter o fim que busca realizar, e este fim está diretamente ligado às suas aspirações de bem-estar. Aristóteles por certo não se cansa de afirmar que o bem que procuramos é o bem em escala humana, e isto é a felicidade. Porém, por felicidade entende o agir bem; é feliz quem age bem. E não raras vezes agir bem implica buscar o que é moralmente belo à custa do que nos é vantajoso ou benéfico. Em um sentido relevante, o agente deve fazer algo porque reconhece as razões que qualificam tal ação como o que convém fazer, quaisquer que sejam os fins que esteja a perseguir. Tal consideração retira Introdução
I
2I
o dever do império imediato dos desejos e fins; o eudemonismo com efeito, não é uma ética do bem-estar
aristotélico,
dos indivíduos, mas uma reflexão
filosófica sobre o que é isto, bem agir, em uma escala propriamente concomitantemente
humana,
separada dos outros animais e do divino, e bem agir acar-
reta por vezes o abandono dos interesses e desejos próprios. Não surpreende assim que agir com vistas ao belo apareça operando,
e decisivamente,
detalhado
é que a noção de belo, em-
das virtudes morais; o que surpreende
bora seja mencionada
no exame
na parte I1, não seja aí objeto de estudo expresso, pois
ela guarda o segredo da dimensão altruísta do ato moral. Por falta de análise expressa, justamente,
ela passou à tradição unicamente sob a forma operacional
em que se encontra na parte IV, desacompanhada sobre a dimensão altruísta que ela claramente
2. QUESTÕES
o tratado
de uma reflexão explícita
introduz
no gesto moral.
DE FILOSOFIA MORAL
nicomaquéio
da virtude moral diz respeito a problemas centrais
na ética que giram em torno da responsabilidade
moral e da liberdade da ação.
Para tanto, ele constitui todo um arcabouço conceitual mediante o qual estas questões serão equacionadas;
dele fazem parte noções como mediedade,
dis-
posição, voluntário, escolha, deliberação. Seria por demais pretensioso querer tratá-las
nesta introdução.
Limitar-me-ei
vinculados a três noções-chaves:
mediedade,
aqui a explorar alguns elementos escolha deliberada,
disposição.
(i) A doutrina da virtude como mediedade já foi considerada como a regra de ouro da moral, mas hoje, sobretudo após o ataque kantiano a esta noção, pa:rece dever ser para sempre abandonada.
Kant reclamou de um erro categorial:
a virtude como meio termo entre dois vícios, um excesso e uma falta, tornava quantitativo
o que era, porém, qualitativamente
distinto. O que caracterizaria
o preceito moral é ser o que há de correto por ser feito e não o fato de estar em um ponto mediano, como se alguém, vindo de uma falta em direção ao excesso contrário (ou inversamente),
em certo momento passaria inevitavelmente pelo
meio termo. Além disso, a mediedade foi cedo assimilada a uma doutrina da moderação: bem agir seria nem fazer muito nem muito pouco. Em outros termos: a doutrina da mediedade foi logo assimilada a uma teoria da mediocridade. Não é assim de surpreender
22
I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
que tal doutrina tenha caído em óbvio desfavor.
Não é o caso de tentar defender aqui a doutrina da mediedade destes ataques; uma leitura atenta do tratado obviariajá um bom número deles. Gostaria tão-somente de salientar alguns de seus traços para poder compreender o que interessa filosoficamente, a Aristóteles, em tal doutrina. É bem verdade que a idéia de um termo médio ou de uma justa medida entre dois extremos não era uma idéia nova; ao contrário, noções de moderação, mediedade e similares são moeda corrente na Antigüidade. Basta citar o famoso preceito délfico, µT]OEV ayav, nada em excesso, que o próprio Platão menciona em três ocasiões (Filebo 45e; Carmides 165a; Menexeno 247e). Aristóteles poderia, assim, estar simplesmente exprimindo a linguagem corrente em sua época, ainda que a um preço filosófico caro demais para a posteridade. Não é sem interesse observar, contudo, que Aristóteles aposta pesadamente na pertinência de tal doutrina para a análise moraL Com efeito, embora seja extremamente cioso de não fazer interferir teses de outras disciplinas na análise moral (cuidado que é particularmente evidente em I 13, quando faz um apelo não comprometido a uma noção geral e mesmo vaga de alma, o que responde ao seu zelo de evitar teses muito específicas provenientes de outras disciplinas), Aristóteles sanciona a noção de mediedade com o seu mais forte jargão metafísico: a mediedade é a qüididade da virtude. As expressões que Aristóteles usa, TO TL ~v E'LVaL e ~ OVaL a (lI 6 1107a6-7), não deixam dúvida sobre o seu interesse em pôr em evidência a importância que atribui à caracterização da virtude a título de mediedade. Como explicar tanto zelo? Um provável motivo estaria no fato de, ao apelar à noção de mediedade, Aristóteles põe em relevo uma noção cujo primeiro sentido concerne ao de contínuo divisível.Ora, na ação, o que parece corresponder a um contínuo divisível,que pode ser expresso em quantidades, é a emoção; procedendo deste modo, Aristóteles estaria acentuando o papel das emoções no agir moral. Ao fazer isso, ele estaria pondo em relevo os elementos não cognitivos junto aos quais deve operar a razão em matéria prática, já que a emoção se opõe ou contrasta com a razão. Em reação ao intelectualismo socrático, que, ainda que temperado por Platão, fazia do elemento racional o elemento proeminente na ação, Aristóteles parece assim preocupado em salientar a presença e a função dos elementos emocionais e não cognitivos na ação moral. Um mecanismo para tanto consistiria justamente em ver o ato virtuoso como, de um lado, um extremo, e, simultaneamente, de outro lado, como um ponto médio entre extremos (como é expressamente dito em II 6). Introdução I 23
É um extremo na medida em que o imperativo moral ordena fazer aquilo e unicamente aquilo que convém fazer, distinguindo-se definitivamente de toda outra ação possível. Porém, é também um meio termo, pois regula deste modo a quantidade de emoção que inevitavelmente está envolvida em toda ação. Um outro tema nos levará a um resultado semelhante. No tratado da prudência (livro VI), Aristóteles propõe substituir a expressão KaTà
TOV
opeov
ÀÓYov, secundum rationem, aparentemente consensual para designar o bem agir,
por uma outra, o agir µETà ÀÓyov, cum ratione. Assimilou-se freqüentemente esta substituição à distinção entre agir conforme o dever e agir por dever: Aristóteles estaria aqui exigindo condições mais restritivas à ação moral, à qual não bastaria a conformidade exterior ao dever, mas requereria também o elemento interno de acatamento subjetivo e respeito ao que ordena o imperativo moral. No entanto, esta assimilação parece anacrônica. Repondo-se o texto em seu contexto histórico, vê-se que Aristóteles parece antes querer dar adeus ao intelectualismo socrático excessivo, que eliminava inteiramente o elemento emocional, bem como à versão atenuada platônica, que atribuía ainda, a seus olhos, demasiada proeminência à razão na determinação da ação, propondo, em seu lugar, uma doutrina na qual a razão (prática) só pode aplicarse às ações se houver previamente um hábito moral concernente às emoções. O µETá de µETà ÀÓyov tem assim o sentido de algo que, posteriormente, acrescenta-se ao sentimento; em um sentido forte, as emoções têm de estar previamente educadas moralmente para que a razão possa acompanhá-las e lhes dar a reta direção. Como Aristóteles escreve em EN X 1179a23-26, quem não tiver as emoções previamente educadas moralmente não compreenderá o sentido moral de um conselho ou ordem, assim como uma semente não prospera em um terreno não preparado. Aqui está uma inovação importante de Aristóteles em relação à filosofia ateniense clássica: a razão prática requer algo previamente burilado para poder atuar. É neste sentido que o imperativo moral será para Aristóteles sempre um ajuste, com vistas ao meio termo, das emoções já presentes, um contínuo no interior do qual a razão vai operar as necessárias divisões, mas que precisa pressupor como já dado de modo adequado, sem o que ficaria inane e inativa. Um segundo motivo, diretamente vinculado a este primeiro, é a natureza imprecisa que inevitavelmente ronda a determinação moral. A virtude moral é
24 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
uma mediedade, diz Aristóteles, na medida em que é estocástica do meio termo (II 5 1106b15-16;27-28). Este termo, oToxuaTlK1Í, desapareceu do vocabulário ético moderno, mas Aristóteles o considera como o mais apto para descrever a natureza do meio termo da virtude moral. A comparação básica é com um arqueiro, que mira o alvo, mas que não pode ter certeza do êxito de seu tiro. A razão, ao intervir no mundo das emoções, não as subtrai de uma certa imprecisão. O homem que delibera bem é o prudente; o prudente, mediante seu cálculo e razão, é aToxuaTlKós
do melhor para o homem (VI 8 141b13-14).
Ele mira o bem como o arqueiro mira o alvo: ambos evolvem em uma região imprecisa, de contornos rapidamente alteráveis. O mundo moral é, assim, permanentemente opaco, um mundo no qual jamais se fará plena luz. Perdoamos a quem erra por pouco, bem como elogiamos quem quase acerta: tal é a matéria prática humana. Este tema está diretamente ligado à tese aristotélica do particularismo na ética, com suas condições de acribia muito próprias, que se conecta, então, com a própria doutrina da mediedade, que fornece uma base conceitual para se pensar as variações Ínfimas para mais e para menos de um ato moral. Ele representa a mais extraordinária redução das pretensões da racionalidade dentro dos limites da própria razão. (ii) Uma segunda noção-chave que gostaria de examinar sucintamente é a de escolha deliberada. A virtude moral é uma disposição de escolher por deliberação; a escolha deliberada encontra-se, assim, no centro da noção de virtude moral. A razão prática exprime-se por excelência em seu uso deliberativo; em função da deliberação, Aristóteles recusa a estrutura demonstrativa à razão prática, colocando em seu lugar o ato de pesar razões rivais, no qual é dada preferência por razões, sem, porém, que se proceda por demonstrações. No entanto, como, para Aristóteles, nós só deliberamos sobre os meios, nunca sobre os fins, isso pareceu, à consciência moral moderna, restringir inaceitavelmente a operação racional em matéria prática, pois a tornaria puramente instrumental. Ora, do ponto de vista moral, o que sobretudo interessa é a determinação dos fins; a exata correlação dos meios caracterizaria a ação em sua eficácia, não em sua moralidade. Não foram poucos os comentadores que procuraram atenuar este aspecto da doutrina aristotélica, seja observando, como fez Ross", que o próprio Aristóteles falava de uma deliberação de fins fora dos capítulos nos quais a examina ex professo a noção de escolha deliberada, seja buscando Introdução
I 25
no texto mesmo em que a analisa indícios de que a deliberação
também a fins, como procurou fazer especialmente
Gauthier".
diz respeito
Por diferentes
razões, ambas as tentativas não obtêm êxito. Duas outras estratégias parecem, porém, mais promissoras.
A primeira consiste em salientar que o termo para
meio, em grego, é, literalmente, a nossa noção instrumental
o que conduz ao fim, e isto inclui mais do que
moderna
de meio, pois engloba, por exemplo, o
modo como agimos. A segunda estratégia, na esteira de Tomás de Aquino, é de maior fôlego e consiste em assinalar que nada é por si mesmo fim ou meio. Embora só possamos deliberar sobre os meios em uma dada deliberação, nada impede que aquilo que era fim nesta deliberação se torne meio para um fim superior que a envolve e que, a este novo título, torne-se objeto de deliberação. Deste modo, podemos deliberar sobre tudo, não como fim, mas como meio de um fim que lhe é superior, exceto sobre o fim último, a felicidade, mas, como o bem supremo não é um fim ao lado dos outros, e sim o modo ordenado de todos os fins (ou, em outros termos, um fim formalmente fato podemos deliberar sobre tudo o que conta materialmente Ambas as estratégias
tornam
consciência moral moderna,
considerado),
de
como fim.
palatável o que parecia por demais rude à
mas temo que elas não consigam apreender
um
elemento a meu ver decisivo na perspectiva aristotélica. A noção de pôr um fim não é muito clara; Aristóteles entende por isso representar-se a~o como um fim, o que é obviamente
uma atividade mental. No entanto, não parece ser aqui, no
ato de se representar na ação humana.
um fim, que Aristóteles
pretende assegurar a liberdade
Com efeito, um fim pode ser imposto a mim com base em
uma severa educação ou, mesmo, pode dar-se a mim em função de minha natureza;
qualquer
que seja o modo como o fim é dado, contudo, o fato de
eu adotar os meios para obtê-lo por meio de minha deliberação faz com que, em um sentido relevante, a ação seja minha, ainda que o fim não possa ser dito meu no mesmo sentido. A consciência moderna fundamentalmente responsabilidade
pensa a relação moral
a partir do ato de pôr os fins; a ética aristotélica
radica a
do sujeito não na adoção dos fins, mas antes na escolha dos
meios. Como sou eu quem dou preferência por razão a tal meio em detrimento de tais outros e como o último meio na análise é o primeiro na ação, aquilo que eu faço é, em um sentido relevante, minha ação, mesmo que eu não possa ser autor no mesmo sentido de meus fins. No entanto, como os fins se dão
26 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
a mim em função de minha natureza e como a natureza prática se amolda em função dos atos que pratico em uma ou outra direção, embora não seja exigido no início que eu dê a mim mesmo os fins, ocorre que, ao determinar minhas ações pelos meios, determino minhas disposições, as quais, por sua vez, constituem minha natureza, à qual se conformam os fins que persigo. Dar a si mesmo os fins não é a condição inicial da liberdade do agente, mas é o ponto a que ele chega, se o agente determinar por razão os meios para realizar seus fins. (iii) Finalmente, um último ponto requer análise, mais uma vez de modo sucinto: a noção de disposição. A virtude moral é, como vimos, uma disposição
de escolher por deliberação. A base de atribuição de responsabilidade moral ao agente parece residir no fato de dar preferência por deliberação a certos meios em detrimento de outros, de tal modo que aquilo que o agente pode fazer, ele pode deixar de fazer. Em outros termos, em função da deliberação sobre os meios que conduzem a ação, aquilo a que o agente pode dizer sim, a isto ele pode dizer não. A razão é uma faculdade de contrários: se ele pode aceitar isso,
de pode também o recusar, assim como o médico que cura o paciente pode igualmente o envenenar. Graças à razão, o agente pode agir diferentemente. Contudo, ao agir nas mais das vezes assim e não no sentido contrário, o agente adquire por hábito uma disposição em um sentido, à exclusão do sentido contrário. Como relembra Aristóteles no livro comum sobre a justiça, embora a ciência seja a mesma para os contrários, a disposição não está aberta aos contrários, assim como da saúde só se seguem atos com vistas à saúde e não ao seu contrário (EN V 11129a13-16). O problema pode, então, ser formulado: para me considerar livre, tenho de poder agir diferentemente; ora, quando adquiro minhas disposições morais, tornando-me um agente moral maduro,
das já não estão abertas aos contrários; como posso então ainda ser livre, se já não posso agir diíerenrementer E, sejá não sou livre, em que sentido ainda seria responsável por minhas ações? O problema do determinismo do caráter foi objeto de controvérsia já na Antigüidade, especialmente com Alexandre de Afrodísia. Ao reagir contra a tese
estóica do determinismo, Alexandre recorreu fundamentalmente ao texto
aristotélico. No entanto, ao proceder assim, ele não deixou de produzir certas alterações. Para Alexandre, embora um agente, a partir do momento em que Introdução
I 27
adquire uma disposição prática, já não possa agir diferentemente, é sempre verdade que ele é causa da aquisição de seu caráter, pois a disposição não nos é dada naturalmente, mas é obtida através da repetição de atos em um certo sentido à exclusão de seu oposto (de fato XXVII - XXIX, particularmente 199,24-29). Esta idéia de transferência da responsabilidade (sou responsável hoje pelo que faço, embora não possa mais agir diferentemente, porque fui responsável pela aquisição da disposição, obtida à base de atos que, naquela época, estavam ao meu alcance de ser diferentes) tem estirpe aristotélica, pois Aristóteles justificou a duplicação de pena para os embriagados aleg'a:ndoque, embora não pudessem agir diferentemente quando bêbedos, podiam ter evitado ficar embriagados (III 71113b30-34). A solução em Aristóteles é limitada aos casos em que há, de modo momentâneo ou definitivo, a perda do uso da razão; Alexandre, porém, estende-a a todos os outros casos de disposição moral, generalizando seu padrão de argumentação. É deste modo, então, que Alexandre encontra uma solução ao problema do sábio, que de outro modo seria livre somente na medida em que pudesse agir diferentemente, isto é, somente na medida em que praticasse um mal: a partir do momento em que é sábio, ele não pode mais fazer senão o bem, mas ele é causa para si mesmo da aquisição de seu caráter moral e, nesta medida, ele é causa do que faz, mesmo que não possa mais agir diferentemente. A solução é simétrica para o perverso: o homem vicioso não pode senão agir viciosamente, mas ele é igualmente causa para si mesmo da aquisição do caráter moral perverso e, nesta medida, ele é responsável pelo que faz. A solução de Alexandre é tão atraente quanto problemática. O homem goza de liberdade, no sentido de poder fazer isto e seu contrário, unicamente quando ainda não está desenvolvido do ponto de vista prático, isto é, quando ainda não adquiriu uma disposição. O homem é, assim, livre quando é adolescente ou imaturo, quando ainda não se tornou o que é - solução talvez elegante, mas certamente paradoxal. Alexandre procurou atenuar esta conseqüência pondo em relevo a função deliberativa, que atuaria plenamente já nas ações que dão origem ao nosso caráter, de modo que teríamos delas um controle total e, conseqüentemente, um controle parcial das disposições, a título de agentes racionais que decidem soberanamente sobre os atos particulares que fazem e que geram, então, as disposições. Alexandre escreve, com efeito, que
28 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
as disposições morais nascem da repetição de atos realizados "por uma escolha
deliberada" (Prob. Étic. XXIX 160,27). Esta condição, porém, vai além do que exige Aristóteles, para quem a disposição nasce da repetição de atos voluntários - e nada mais. Na verdade, Alexandre retoma a versão eudêmia do voluntário, na qual o elemento reflexivo tem papel proeminente no exame do voluntário, contra a versão nicomaquéia, que se limita a ressaltar o fato de o princípio estar em nós, sem tentar caracterizar o modo de atuação desse princípio (que é tipicamente reflexivo no caso dos adultos). Ora, a insistência por parte de Aristóteles sobre a importância da educação das crianças, para as quais a razão
ainda não está disponível, enquanto o caráter está em plena formação, dá pouca esperança a esta solução, pelo menos no que toca à EN. Alexandre alega, então,
\
alternativamente, que o sábio pode agir diferentemente, como sábio, na medida em que as ações que realiza possuem sempre um certo grau de oscilação no que respeita às circunstâncias particulares em que se produzem, de sorte que desviar ligeiramente a seu respeito não destruirá o resultado esperado da ação
(de fato XXIX 200, 1-2); ademais, o sábio pode justamente por vezes não realizar o que se espera dele tão somente para evidenciar sua liberdade na ação,
por exemplo no caso em que alguém fizesse uma predição a propósito do que realizaria necessariamente (200, 2-7). No primeiro caso, contudo, a liberdade se exerceria em elementos sem relevância moral, ou com mínima, o que torna esta
solução pouco atraente. O segundo caso de desvio é ainda menos atraente,
pois a liberdade do sábio seria então evidenciada por uma certa bizarria em seu comportamento. No entanto, Alexandre insiste neste último ponto; com deito, como a situação é simétrica em relação ao homem não sábio, o homem comum também evidenciaria a liberdade em certos atos bizarros, que vão de encontro ao esperado, somente que desta vez sua causa não estaria no intento de contrariar uma profecia, mas consistiria em um "não-ser" (TO µ~ õv) no interior da escolha deliberada, de sorte que por vezes agiríamos diferentemente
por causa de uma fraqueza ou falta, sem o que sempre seríamos movidos do mesmo modo nas mesmas situações (Mantissa XXII 171, 16-20). Esta questão a respeito da fixidez da disposição em relação a um só dos contrários, o que destruiria a abertura aos contrários amparada na opera-
pc da razão a respeito dos meios pelos quais realizo meus fins, manteve-se Da
modernidade. Insistindo sobre o fato que, ao adquirir uma disposição, o Introdução
I 29
homem (então moralmente maduro) já não pode agir diferentemente, P.-L. Donini considerou recentemente que isso é um forte indício" do caráter substancialmente determinista da ética e da psicologia de Aristóteles?'. Em um tom similar, David Furley escreveu que "parece que temos uma distinção entre dois períodos da vida de um homem na teoria de Aristóteles - antes e depois da formação de seu carárer?", Antes da formação de seu caráter, o homem é senhor de seus atos, podendo agir em um sentido ou outro; quando está formado, porém, não lhe éíÚais possível agir no sentido contrário. A solução que Furley sugere a este aparente paradoxo consiste em sustentar que, do ponto de vista moral, para Aristóteles, um ato é voluntário se procede de uma disposição que é voluntária, isto é, se procede de uma disposição cujo início foi voluntário, quando ainda estava aberta aos contrários. As disposições diferem em fixidez (Aristóteles distingue, com efeito, entre ÉÇl S, uma disposição fixa, e ~)Lá8Eal';', um estado provisório) e a responsabilidade moral do homem residiria no fato que suas disposições, de onde partem suas (agora de modo rígido) ações, são disposições criadas pelo próprio agente, na medida em que foram geradas pela repetição de atos em uma ou outra direção. Esta solução já tinha sido vislumbrada por Alexandre: o homem é sempre livre porque, a despeito de sua disposição o determinar agora a agir assim e não de outro modo, ele foi causa para si próprio da aquisição da disposição, que, por transitividade, torna-o causa e, conseqüentemente, responsável por seus atos atuais. O problema torna-se a própria resposta: segundo Furley, o que é significativo é que Aristóteles "não busca um critério do que é voluntário ou involuntário em se um homem pode ou não agir de outro modo agora"xiii. Haveria assim, em Aristóteles, segundo estes intérpretes, a busca de uma ética da liberdade, mas o resultado seria uma psicologia determinista. É preciso, porém, evitar uma dramatização excessiva.A despeito da natureza fixa da disposição como marca do caráter do agente, toda ação, na medida em que nela se delibera sobre os meios, está aberta à consideração dos contrários. Pode ser psicologicamente custoso a um agente mudar seus hábitos, mas não lhe é impossível. Toda ação está aberta em sua realização, se o agente for capaz de pesar as razões que concernem aos meios para realizar o fim buscado, por mais disposicionalmente determinado que esteja o agente. Aristóteles, com efeito, assinalará, em II 1- 2, que a ação não somente tem precedência sobre a disposição (é a partir dos atos repetidos em uma certa direção que adquirimos jO
I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
as disposições correspondentes), como também prevalece sobre a disposição: por maior que seja o hábito de um agente, ele sempre pode, em relação a cada ação particularmente, agir diferentemente (desde que não tenha estiolado a razão, seja momentaneamente, como no caso de embriaguez, seja definitivamente, por um hábito bestial adquirido: nestes casos, a transferência de responsabilidade dos atos que geraram a disposição aos que agora dela se seguem ainda assim garante a imputabilidade moral). Aristóteles consistentemente sustenta uma ética da liberdade, fundada na possibilidade de dizer sim ou não em função da deliberação sobre os meios para realizar nossos fins, o que pode retroagir sobre os fins, mas não necessita que os fins sejam postos pelo próprio agente para que ele possa declarar, de modo moralmente relevante, que esta ação é sua. Toda ação se constitui no cruzamento do sim e do não; o agente, porém, pouco a pouco, mas inevitavelmente, constitui sua natureza, adquire suas disposições, cuja fixidez permite uma estimativa razoável sobre o que fará. Esta fixidez é um dado altamente relevante para se pensar sua vida do ponto de vista de seu modo de agir, mas, por maior que seja, não exclui que o agente possa agir diferentemente do modo como sempre agiu. Psicologia fixista do caráter e ontologia do agir indeterminado convivem graças a uma ordem precisa de precedência e prevalência entre ação e disposição. As teses da precedência e da prevalência da ação sobre a disposição nos permitem concluir estas notas fazendo uma referência à recuperação contemporânea da ética da virtude em um diapasão aristotélico, que se intitula neo-aristotéuca. É freqüente encontrar a distinção entre ética centrada no ato e ética centrada no agente para opor, respectivamente, as éticas deontológica e utilitarista à ética da virtude; enquanto as primeiras se preocupariam centralmente com a avaliação dos atos (tendo, por conseguinte, como noções primeiras as de dever e obrigação), a última teria por foco a noção de agente bom (e tomaria como questões primeiras as de saber que tipo de pessoa o agente é ou que tipo de vida se deve buscar). Etiquetas são sempre contestáveis; o que importa aqui é a idéia que uma ética da virtude se distingue das outras éticas fundamentalmente pelo fato que, nela, o conceito de virtude é fundante, o que acarreta que a avaliação da ação deriva da avaliação do caráter do agentexiv• T al~ uma ética contemporânea que pretenda se demarcar simultaneamente do utilitarismo e da deontologia necessite pôr a virtude ou o caráter nesta posição dominante; para Aristóteles, porém, embora o caráter do agente, segundo suas Introdução
I jI
diferentes virtudes ou vícios, seja um elemento crucial na análise moral (como o atesta o simples fato do presente tratado da virtude moral), a sua relevância para a avaliação de uma ação provém fundamentalmente do fato que a ação é compreendida de um modo tal que inviabiliza um procedimento fundado em regras previamente estipuladas, o que favorece fortemente a busca por um agente moralmente bom quando devemos descobrir qual é a coisa certa para ser feita. Não se trata de dizer que um ato moralmente bom é (no sentido de: está fundado em) o que é feito por um agente moralmente bom. O ato é moralmente bom porque responde a propriedades que o caracterizam como um meio termo em certas circunstâncias, apartado do excesso e da falta, que constituem ambos o vício. O agente se torna moralmente bom por ter agido com freqüência de modo correto. Como, porém, não se pode apelar a códigos para conhecer o que deve ser feito aqui e agora, o homem virtuoso passa a ocupar um lugar privilegiado para o reconhecimento do que deve ser feito, dado que unicamente ele nos serve de critério para a ação. As virtudes têm assim um lugar relevante na doutrina moral, mas têm este lugar em função de uma certa teoria da ação. Ser bom é agir bem; o objetivo moral não é adquirir disposições (pois alguém poderia passar sonolento o resto da vida após as ter adquiridas), mas praticar atos moralmente bons (com base em nossas disposições mais facilmente fazemos aquelas coisas pelas quais adquirimos as disposições). Ocorre, contudo, que o reconhecimento do que é, em dadas circunstâncias, uma boa ação depende crucialmente da capacidade que possui o agente virtuoso de ver, em tais circunstâncias, o que deve ser feito. As virtudes são, portanto, centrais, mas derivadas; resultam das ações, gerando com mais facilidade o tipo de ação de onde provieram, mas não têm precedência sobre elas. Além disso, o mundo moral é perpassado por tal obscuridade que é somente com base nas virtudes do prudente que podemos reconhecer o que deve ser feito. A ética aristotélica é, deste modo, uma ética da virtude, mas não é uma ética na qual a virtude é primária ou fundante do agir bem. Segue-se também, de modo importante, que a ética aristotélica é uma ética que desafia o princípio da codificabilidade generalizada dos princípios práticos. Uma ética contemporânea da virtude pode ser compatível com algoritmos morais; a ética aristotélica, porém, é radicalmente avessa a uma expressão aritmética do dever e é em função desta aversão que ela se apresenta como uma ética da virtude.
32 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
3.
PRINCÍPIOS
DA PRESENTE TRADUÇÃO
Para esta tradução grego de Aristóteles,
comentada,
utilizei-me
de diferentes edições do texto
bem como consultei com freqüência
os comentadores
gregos antigos, que nos fornecem não raras vezes lições valiosas, especialmente Aspásio. Dei preferência ao texto de Susemihl-
Apelt (1912), que é a edição
em grego mais recente, mas consultei constantemente mente a de Bywater (OCT extremamente
outras edições, principal-
1894) e a de Bekker (1831), cujo trabalho é ainda
valioso. Sem poder recorrer a nenhum
manuscrito,
limitei-me
a ponderar sobre as variantes oferecidas pelos respectivos aparatos críticos. No comentário,
sempre anoto escolhas de variantes ou preferências
que tenham
relevância para a tradução
de editores
do texto. Informo também
ao longo
da tradução a paginação da edição Bekker, que funciona hoje como referência universal para a localização de passagens. Nas notas, refiro-me sucintamente a autores e editores, cujos dados bibliográficos
podem ser facilmente recupe-
rados no final deste volume.
* A presente tradução comentada
*
de Ethica Nicomachea I 13 - III 8 circulou
por muito tempo sob forma de rascunho. apoio do CNPq,
*
Para sua realização, contei com o
que me concedeu uma bolsa de pesquisador.
pude contar também
com o Projeto Temático
Desde 2002,
da Fapesp sobre a filosofia de
Aristóteles, para o qual, aliás, apresentei uma versão desta tradução.
Em se-
tembro de 2006, ela foi apresentada
em um colóquio na USP, cópias tendo
sido distribuídas
neste mesmo mês veio a lume a edição
comentada
aos participantes;
de C. C. W. Taylor de EN II - IV para a Clarendon Aristotle Series.
Procurei tirar proveito de seus comentários dezembro
em uma última revisão, feita em
do mesmo ano, e que é agora a base desta edição.
O resultado é, assim, publicado cerca de dez anos após seu início. Incorporei ao texto muitas sugestões de colegas e alunos. É-me quase impossível agradecer a todos os que me auxiliaram
nesta tarefa sempre provisória de traduzir
um
texto clássico; a lista seria enorme e ainda conteria lacunas. Meus alunos de Introdução
I 33
pós-graduação sofreram por um decênio minhas hesitações e dúvidas. Lucas Angioni, Roberto Bolzani e Fátima Évora têm-me auxiliado constantemente para que o trabalho de tradução não fique tão insatisfatório. Carlo Natali e Pierre Destrée fizeram-me valiosas sugestões para a versão final. Não poderia deixar de mencionar o apoio de Balthazar Barbosa Filho, cuja cultura filosófica só era rivalizada por sua generosidade; muito deste livro, ou mesmo tudo dependeu do convívio que mantivemos por anos, interrompido tragicamente por seu súbito falecimento um pouco antes de este manuscrito ser enviado ao editor. Não preciso lembrar que os defeitos ainda existentes no presente trabalho devem ser atribuídos exclusivamente a mim. Por fim, confesso que não poucas vezes pensei em abandoná-lo por inteiro, mas dois sorrisos sempre iluminaram a noite em que perpetuamente me encontro.
34 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
NOTAS
, Há uma discussão instrutiva sobre o problema dos títulos dos tratados de ética em Vianney Oécarie, Éthique à Eudeme, Vrin 1984, pp. 17-31. á Uma apresentação e discussão da estrutura das duas Éticas, bem como da MM encontra-se na introdução da tradução italiana de Carlo Natali da EN (Etica Nicomachea, Laterza 1999) . .. Na mais recente tradução francesa da EN, Richard Bodéüs igualmente trata I 13 como fazendo parte de uma segunda unidade, que ele chama de "la vertu", Na sua opinião, porém, esta segunda unidade se conclui no fim do livro H; os capítulos IH 1 - 8 constituiriam, para ele, uma terceira parte, denominada "le consentement, la décision et la responsabilité", É interessante observar que, paralelamente, Bodéüs desloca a frase 1114b26-30, que, nos manuscritos, dá início ao que convencionamos marcar como IH 8, para o início de IH 9, o começo de uma quarta parte, intitulada por ele "les vertus morales particuliêres", que vai, por sua vez, até o final do livro IV. No nosso entender, o texto dos manuscritos deve ser preservado, pois recapitula, com razão, toda uma unidade temática, a saber, a que se estende de I 13 a IH 8, que tem por tema a natureza da virtude moral e que responde diretamente aos termos envolvidos na definição de felicidade. ,. Como observou Jonathan Barnes, em um tom, porém, excessivo: "rhat our EN is not a unity is beyond controversy - the existence of two treatments of pleasure is enough to prove the factoThe only questions concern who invented our text, and when, and from what materiaIs, and for what motives" (Roman Aristotle, p. 59, in Pbilosophia Togata H - Plato and Aristotle in Rome, ed. J. Barnes e M. Griffin, Oxford 1997, pp. 1-69) . • A frase ÉKáoTT] il"WS àpET~ KUL como se deve ou não s,
a3S capazes de abster-nos deles. Igualmente com a coragem: habituados a desprezar ll04bl
as coisas temíveis e a suportá-las, tornamo-nos corajosos: tornados corajosos,
JIIr
Não o fazem
acrescentam. Portanto,
pzicar o melhor referenl
seremos os mais capazes de suportar as coisas temíveis.
Também se nos tom.
Deve-se tomar como indício das disposições o prazer ou dor que sobrevém
-..:Ja pelo seguinte. Com
bS às nossas obras: é temperante quem se abstém dos prazeres corporais e se ale-
Ido. o proveitoso e o agra
gra disso mesmo, ao passo que quem se apoquenta com isso é intemperante;
_,
quem suporta as coisas temíveis e se alegra, ou pelo menos não se aflige, é co-
.dos eles, mas sobretudo
rajoso, ao passo que quem se aflige é covarde. Com efeito, a virtude moral diz
c a:nmpanha a tudo o qu
blO respeito a prazeres e dores - por causa do prazer cometemos atos vis,por causa
44 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
-, o homem bom é c
ÍP' e, similarmente,
da dor nos abstemos das ações belas. É por isso que, como diz Platão, deve-se
Dl a
ser educado de certo modo já desde novo, para que se alegre e se aflija com o
saúde; os bem
In se passa também
que se deve: esta é a educação correta. Ademais, se as virtudes dizem respeito
a:me e foge de tudo
a ações e emoções e se prazer e dor acompanham
•mas tudo enfrenta,
também
r c não se abstém de
também as punições que se dão por meio deles: algumas punições produzem
., os homens rúsri-
cura, as que produzem
~em,então,são
disso, como foi dito antes, toda disposição da alma tem sua natureza
l
mediedade.
IoentOS
E não
e as corrup-
toda emoção e toda ação,
por isso a virtude dirá respeito a prazeres e dores. São indicadores
cura ocorrem
naturalmente
lação àquelas coisas pelas quais a alma naturalmente
pelos contrários.
Além com re-
torna-se melhor ou pior e
a respeito delas; pelos prazeres e dores os homens tornam-se
e evitar aqueles que não se devem, ou quando não se devem, ou como não se
•vigor: ele surge do
devem ou de tantos outros tais modos quantos forem delimitados
bomem
ção. É por isso que também definem as virtudes como certas impassibilidades
pela defini-
nudes: do abster-se
e quietudes. Não o fazem bem, contudo, porque falam sem outra qualificação,
lDttS. somos os mais
e não como se deve ou não se deve e quando se deve e todas as outras cláusulas que
biruados a desprezar
se acrescentam.
•uxnados
praticar o melhor referente a prazeres e dores; o vício, o contrário.
corajosos,
Também
Portanto,
se nos tornaria
evidente que concernem
a estas mesmas coisas
ainda pelo seguinte. Como são três os objetos de busca e três os de fuga - o
ES corporais
belo, o prôveiroso e o agradável - e três os contrários - o feio, o danoso e o pe-
iDo é intemperante;
noso -, o homem bom é correto e o homem perverso é incorreto a respeito de
• não se aflige, é co-
rodos eles, mas sobretudo a respeito do prazer, pois este é comum aos animais
•a virtude moral diz
e acompanha
DI aros
vis, por causa
manifestamente
b2S
a hipótese é que tal tipo de virtude é de natureza a
udor que sobrevém e se ale-
b20
torpes, ao buscar
ooisas, pois também
de vigor é o
blS
a tudo o que cai na rubrica busca, pois o belo e o proveitoso são prazerosos.
Ademais, desde a infância somos todos criados
b30
b3S llOSal
Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 45
com ele: por isso nos é difícil desvencilhar desta afecção entranhada na vida.
ode. Além disso, não é
Também medimos as ações,uns mais, outros menos, pelo prazer e pela dor. Por
pois os objetos produzic
aS isto, pois, é necessário que a inteira disciplina seja a seu respeito, pois não é de
portanto, que estejam e
pouca importância no tocante às ações alegrar-se ou afligir-se bem ou mal. Ade-
pelas virtudes são pratíc
mais, é mais difícil combater o prazer do que o impulso, como diz Heráclito;
em wn certo estado, ma
é a respeito do que é mais difícil que sempre surgem arte e virtude, pois o bem
csaào: primeiramente, (
alO é nestas condições melhor. De sorte que, também por isso, a inteira disciplina
açio, e escolhe por delil
diz respeito a prazeres e dores, seja tocante à virtude seja tocante à política, pois
portando-se de modo fin
quem se porta bem com relação a isso será um homem bom; quem se porta mal
.ztts,
será mau. Fique assente, pois, que a virtude diz respeito a prazeres e dores, que
porém, ao possuir as vim
tem crescimento e corrupção - sem ocorrer do mesmo modo - pelas coisas de
ú> pouco, mas tudo pod
onde surge e que é ativa a respeito das coisas de onde surgiu.
mnet1te atos justos e tem
al5
estas condições nãe
Assim, os atos são dit
II3
&ria o justo ou o temper ~
os realiza também
t
dim corretamente que oj Pode-se questionar em que sentido afirmamos que, para tornar-se justos, os agentes devem praticar ações justas e, para tornar-se temperantes, devem praticar ações temperantes, pois, se praticam ações justas e temperantes, são a20 já justos e temperantes, assim como, se fizessem atos de gramática e música,já seriam gramáticos e músicos. Ou bem isso não ocorre nem mesmo nas artes: Com efeito, é possível fazer algo de cunho gramatical tanto por acaso como instruído por outra pessoa. É, pois, um gramático quando faz algo de cunho a25 gramatical e de modo gramatical, e isto é fazer segundo a gramática que está
46 I Ethica Nicomachea I 13 - /lI 8
paDcar atos temperantes ... -se bom. A maioria,
P'
ai filosofar e assim tom
p ouvem atentamente
c
Assim como estes não ter mupouco aqueles terão
.hada na vida.
nele. Além disso, não é nem mesmo similar no tocante às artes e às virtudes,
pela dor. Por
pois os objetos produzidos pelas artes têm neles próprios o bom estado: basta,
~ pois não é de
portanto, que estejam em um certo estado, ao passo que os que são gerados
emou mal. Ade-
pelas virtudes são praticados com justiça ou com temperança não quando estão
D diz
Heráclito;
em um certo estado, mas quando o agente também age estando em um certo
lide. pois o bem
estado: primeiramente, quando sabe; em seguida, quando escolhe por delibe-
.ma disciplina
ração, e escolhe por deliberação pelas coisas mesmas; em terceiro, quando age
Ie à política, pois
portando-se de modo firme e inalterável. Relativamente ao possuir as outras, as
an se porta mal
artes, estas condições não são enumeradas, exceto o próprio saber; com relação,
e dores, que
porém, ao possuir as virtudes, o saber pouco ou nada conta; as outras condições,
- pdas coisas de
não pouco, mas tudo podem, as quais justamente resultam do praticar freqüen-
IIr'C
CR$
llOSbl
temente atos justos e temperantes. Assim, os atos são ditos justos e temperantes quando são tais quais os que
bS
faria o justo ou o temperante: é justo e temperante não quem os realiza, mas quem os realiza também tal como osjustos e temperantes os realizam. É, então, dito corretamente que o justo nasce do praticar atos justos e o temperante, do lJI'Dar-sejustos,
praticar atos temperantes; do não os fazer ninguém sequer se avizinha de tor-
eranres, devem
nar-se bom. A maioria, porém, não os realiza, mas, refugiando-se no discurso,
mperantes, são
crê filosofar e assim tornar-se virtuoso, agindo de modo similar aos doentes
e música,já
que ouvem atentamente os médicos, mas nada fazem do que lhes é prescrito.
esmo nas artes?
Assim como estes não terão o corpo em bom estado tratando-se deste modo,
ÍIiCl
a30
[101' acaso como
blO
blS
tampouco aqueles terão a alma em bom estado filosofando deste modo.
: a1go de cunho ú:ica que está
/ Ethica Nicomachea I 13 - III 8
I 47
__
II4
que nos dispomos
CIIIpIZCS de ser afetados, A seguir, deve-se investigar o que é a virtude. Dado, pois, que os estados que b20
se geram na alma são três: emoções, capacidades, disposições, a virtude será um
I
8mDeza
dotados de cap
8mDeza
(falamos a resp
deles. Entendo por emoções apetite, cólera, medo, arrojo, inveja, alegria, amizade, ódio, anelo, emulação, piedade, em geral tudo a que se segue prazer ou dor;
9E a virtude é quanto ac
por capacidades, os estados em função dos quais dizemos que somos afetados b25
pelas emoções: por exemplo, aqueles em função dos quais somos capazes de encolerizar-nos, afligir-nos ou apiedar-nos; por disposições, aqueles em função dos quais nos portamos
bem ou mal com relação às emoções: por exemplo,
com relação ao encolerizar-se, se nos encolerizamos
forte ou fracamente, por-
Porém, deve-se não se:
bem, e de modo semelhante com relação às
tipo de disposição é. Deve
outras emoções. Então, nem as virtudes nem os vícios são emoções, porque não
ado e desempenha bem a
das emoções, mas nos dizemos
a rirtude do olho torna b
em função das virtudes e dos vícios, e porque nem elogiamos nem censuramos
alho que vemos bem. Sir
em função das emoções (pois o homem que teme não é elogiado nem o que se
o
encoleriza, tampouco
é censurado o que se encoleriza sem outra qualificação,
assim é a respeito de tudo
mas o que se encoleriza de um certo modo), mas elogiamos ou censuramos
i qual ele se torna um ho
em função das virtudes e dos vícios. Além disso, encolerizamo-nos
de si próprio.
tamo-nos mal; se moderadamente,
b30
l106al
nos dizemos virtuosos ou viciosos em função
independentemente
e tememos
de uma escolha deliberada, ao passo que as virtudes são
certas escolhas deliberadas ou não são sem escolha deliberada. Acrescente-se a aS
estas considerações que dizemos que somos afetados em função
48 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
das emoções,
fiz correr bem, portar
Já dissemo
estudarmos de que tipo é Em todo contínuo conforme à própria
e cois
porém não dizemos que somos afetados em função das virtudes e dos vícios, mas que nos dispomos de um certo modo. Por estes motivos, tampouco são capacidades:nem nos dizemos bons nem maus pelo faro de sermos simplesmente capazes de ser afetados, nem elogiamos nem censuramos. Ademais, somos por
pc os estados que .a Yirtude será um
"a1egria, amizade, ~ prazer ou dor; lIe
natureza dotados de capacidades, mas não nos tornamos bons ou maus por natureza (falamos a respeito disso anteriormente). Se, então, as virtudes não
alO
são nem emoções nem capacidades, resta que são disposições. Foi dito, pois, o que a virtude é quanto ao gênero.
somos afetados
lDOlOS
capazes de
Ifldes em função
II5
Des: por exemplo,
fracamente, por-
Porém, deve-se não somente dizer que é uma disposição, mas também que
e com relação às
tipo de disposição é. Deve-se frisar, então, que toda virtude aprimora o bom es-
oções. porque não
tado e desempenha bem a função daquilo mesmo de que é virtude. Por exemplo,
mas nos dizemos
a virtude do olho torna bons o olho e sua função, pois é mediante a virtude do
Inem
censuramos
olho que vemos bem. Similarmente, a virtude do cavalo torna bom o cavalo e
iado nem o que se
o faz correr bem, portar bem o cavaleiro e resistir bem aos inimigos. Logo, se
qualificação,
assim é a respeito de tudo, a virtude do homem também será a disposição graças
• ou censuramos
à qual ele se torna um homem bom e graças à qual desempenha bem a função
e tememos
de si próprio. Já dissemos como isto se dá, mas ficará ainda evidente quando
l
lIIIr.l
lD-IlOS lIe
as virtudes são
la. Acrescente-se a ~
das emoções,
alS
a20
a2S
estudarmos de que tipo é a natureza da virtude. Em todo contínuo e divisível é possível tomar mais, menos e igual, e isso conforme à própria coisa ou relativo a nós; o igual é um meio termo entre
Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 49
excesso e falta. Entendo a30
a3S
l106bl
cada um dos extremos,
por meio termo da coisa o que dista igualmente que justamente
de
é um único e mesmo para todos os
ás ações. A virtude diz
I
bIta é censurada, ao pa!
casos; por meio termo relativo a nós, o que não excede nem falta, mas isso não
bwado
é único nem o mesmo para todos os casos. Por exemplo, se dez é muito e dois é
an ter em mira o meio
pouco, toma-se o seis como meio termo da coisa, pois ultrapassa e é ultrapassado
pcnence ao ilimitado, co
pertencem à virt
t
O meio
o acertar dá-se de um ú
termo relativo a nós não deve ser concebido assim: com efeito, se a alguém comer
o desviar do alvo, é dih
uem castigos e pur
bçodos ou por ignorâ passo que recompensa
Visto que o fim é, então, objeto do querer e que as coisas que conduzem
arr:s e reprimem os pru
ao fim são objeto de deliberação e de escolha deliberada, as ações que concer-
9Ie náo estão em nossc
b5 nem a elas são por escolha deliberada e voluntárias. As atividades das virtudes
persuadido a não ficar
envolvem estas coisas. Assim, por certo virtude está em nosso poder, bem
caisa deste tipo, pois n;
como o vício. Com efeito, naquelas coisas em que o agir está em nosso poder,
(Im mesmo de ignorar,
igualmente está o não agir, e naquelas nas quais o não está em nosso poder,
armplo, as penas são
também está o sim, de sorte que, se está em nosso poder agir, quando é belo,
ar:ava nele, pois era sen
blO também o não agir estará em nosso poder, quando é desonroso, e se o não
Também atribuem per
agir, quando é belo, está em nosso poder, também estará em nosso poder agir,
Cf'< devem conhecer e (
quando é desonroso. Se está em nosso poder fazer as coisas belas e as deson-
DOS
rosas, e similarmente o não fazer, e se é isto sermos bons e sermos maus, está
anva em seu poder; c(
70 I Ethica Nicomachea I 13 - 1II 8
casos em que paree
em nosso poder, por conseguinte, sermos equitáveis e sermos maus.
O dito que "ninguém é miserável voluntariamente nem afortunado invo-
bIS
hmtariamente" parece ser, de um lado, falso, mas, de outro, verdadeiro, pois ninguém é afortunado involuntariamente, mas a maldade é voluntária. Ou
bem se deve pôr em dúvida o que foi dito agora e se deve dizer que o homem não é
princípio nem gerador de suas ações, assim como é de seus filhos i Se,
porém, isto é evidente e se não temos como recorrer a outros princípios além
b20
dos que estão em nós, estão em nosso poder e são voluntárias aquelas coisas
cujos princípios estão em nós. Em favor destas teses parece haver testemunho nos atos privados de todos e nos dos próprios legisladores; com efeito, eles atribuem castigos e punições aos que cometem vilanias que não tenham agido forçados ou por ignorância da qual eles próprios não foram responsáveis, ao
b2S
passo que recompensam os que praticam atos belos, de modo que exortam estes e reprimem os primeiros. Contudo, ninguém exorta a fazer aquelas coisas que não estão em nosso poder nem são voluntárias, porque de nada serve ficar
persuadido a não ficar quente, não ter dor, não ter fome ou qualquer outra coisa deste tipo, pois não menos as sentiremos. Também atribuem penas pelo
bto mesmo de ignorar, quando parece que se é responsável pela ignorância; por
b30
exemplo, as penas são dobradas para os embriagados. Com efeito, o ptincípio estavanele, pois era senhor do não se embriagar, o que foi a causa da ignorância. Também atribuem penas aos que ignoram alguma prescrição presente nas leis
que devem conhecer e que não são difíceis de se estar a par, assim como nos ou-
1114al
nos casos em que parecem ignorar por causa de negligência, porque o não ignorar escava em seu poder; com efeito, eram senhores do inteirar-se do assunto.
Ethica Nicomachea I 13 - 1II 8 I
7I
Talvez, porém, a pessoa seja de natureza tal que não se inteira. Porém, eles
.5 próprios são responsáveis do tomarem-se assim. vivendo descuradamente, como de serem injustos e intemperantes,
bem
uns por praticarem o mal. outros por
se livrarem às bebidas e coisas deste tipo; com efeito, as atividades concernentes a cada coisa os tornam para qualquer alO
do tipo respectivo. Isto fica claro nos que treinam
uma competição
ou prática, pois passam a vida a exercitar-se.
O ignorar que as disposições provêm do exercitar-se nos atos particulares
é
marca de alguém totalmente insensível; mais ainda, é irracional que o homem que comete uma injustiça não pretenda
ser injusto ou que o homem que cai
na intemperança não pretenda ser inrernperanre,
se alguém pratica as ações
pelas quais se tomará injusto, não ignorando, ele é voiuntariamenre
injusto.
Todavia, isto não significa que, sendo injusto, cessará de o ser quando quiser e aIS
ficará justo; tampouco
o doente cessa de estar doente e fica são quando quer.
Contudo, se assim ocorre que leva uma vida de modo acrático e não obedece
aos médicos, adoecerá voluntariamente. Por um lado, era-lhe, em um momento, possível de não adoecer; tendo dissipado a saúde, já não lhe é possível, assim como não é mais possível àquele que lançou uma pedra recuperá-Ia; no entanto, estava em seu poder o lançar, pois o princípio estava nele. Similarmente, a20
era
possível ao injusto e ao intemperante não se tornarem tais no início. e por isso o são voluntariamente. Porém, aos que se tornaram injustos ou inremperantes, já não lhes é possível não o serem. Não somente os vícios da alma são voluntários,
mas, para algumas pes-
soas, são também voluntários os do corpo. os quais censuramos; com efeito, ninguém censura os que são feios por natureza, a2S
exercício e por negligência.
72 I Ethica Nicomachea I 13 - J/l 8
Similarmente
mas os que o são por làlta de
quanto
à fraqueza
e
à mutilação:
com efeito, ninguém quererá reprovar quem é cego por natureza, por uma
doença ou por uma batida, mas terá antes piedade; todo mundo, porém, recriminará quem o é por alcoolismo ou por outra intemperança. Assim, dos vícios concernentes ao corpo, os que estão em nosso poder são reprovados,
mas não os que não estão em nosso poder. Se é assim, igualmente acerca
a30
dos outros vícios, os que são reprovados estão em nosso poder.
Se alguém objetasse que todos tendemos ao bem aparente, porém não somos senhores do modo como aparece, mas tal qual cada um é, tal fim lhe aparece;
1114bl
se, então, cada um é de certo modo causa para si mesmo da disposição, será ele causa de certo modo também do modo como aparecei se não o é, ninguém é
causa para si mesmo do agir mal, mas
faz estas coisas por ignorância do fim,
:lCteditando que através delas obterá o melhor para si. A tendência do fim não
bS
é auto-escolhida, mas o homem deve nascer como que possuindo um olho pelo qualjulgará bem e pelo qual escolherá o bem segundo a verdade, e é bem nascido aquele a quem isto é naturalmente bom, pois é o que há de maior e de mais belo, e que não é possível receber ou aprender de um outro, mas, tal como nasceu,
blO
assim o terá, e a boa estirpe verdadeira e perfeita é ter isto bem e belamente por natureza. Se, então, estas coisas forem verdadeiras, em que a virtude será mais
roIuntária do que o vício! A ambos, pois, de mesmo modo, ao homem bom e ao mau, o fim aparece e se estabelece naturalmente ou de qualquer modo,
bIS
mas o que quer que façam, referem o resto a este fim. Então, ou bem um fim qualquer aparece a cada um não por natureza, mas depende em algum sentido dele, ou bem o fim é natural; mas, pelo fato de o homem virtuoso fazer o que resta voluntariamente, a virtude é voluntária, e não menos voluntário será o
b20
Ethica Nicomachea I 13 - III 8
I 73
vício. Com efeito, está presente do mesmo modo no homem mau o agir por si próprio nas ações, ainda que não no fim. Se, portanto, como foi dito, as virtudes são voluntárias, somos também
causas coadjuvantes em certo sentido das disposições e, pelo fato de sermos de certa qualidade, pomos o fim que lhe corresponde. Os vícios também são b2S voluntários, pois são similares.
III8
Discutimos em geral e em grandes linhas a respeito das virtudes o gênero, que são mediedades, que são disposições por si mesmas de praticar aqueles atos pelos quais se engendram, que estão em nosso poder e são voluntárias e b30
que são como a reta razão ordena. Porém, as ações e as disposições não são
voluntárias do mesmo modo; com efeito, de um lado, somos senhores de nossas ações do início ao fim, desde que conhecedores das circunstâncias; de outro, 11lSal
somos senhores do início das disposições, mas o acréscimo caso a caso não é distinguível, assim como ocorre nas doenças. Porque, porém, estava em nosso poder nos servir assim ou não assim, por esta razão são voluntárias.
74 I Ethica Nicomachea I 13 - 1Il 8
COMENTÁRIOS
113 Este capítulo, embora faça parte do livro I, constitui, na verdade, o início de uma nova investigação, que terminará em III 8. Nos capítulos precedentes (I 1 - 12), Aristóteles introduziu a noção de eudaimonia, tendo-a definido em geral como atividade da alma segundo virtude perfeita
(cf. I 6 1098a16-18 e
111101a14-16; a primeira passagem acrescenta a condição da vida completa e a segunda introduz, além da vida completa, o acompanhamento de bens exteriores). Não é ainda claro o que exatamente significa virtude peifeita, a não ser que envolve, em um sentido relevante, o uso da razão; tampouco é claro se esta razão é prática, teórica ou uma combinação de ambas. Nesta segunda unidade temática, que começa em I 13, Aristóteles examinará a noção de virtude moral; em II 6 ele obterá sua definição (a virtude moral é uma disposição ligada à escolha deliberada) e, no livro IlI, até o fim desta unidade (llI 8), ele estudará então o que está em torno da noção de escolha deliberada. Feito isso, ele analisará, de III 9 ao livro V, as virtudes separadamente, iniciando com a coragem e dando especial ênfase à justiça, tratada em um livro à parte (livro V). No livro VI, Aristóteles examina a virtude intelectual que opera no mundo prático, i.e. a prudência. O livro VI tem assim uma íntima conexão com I 13 - III 8, pois, enquanto nestes é definida a natureza da virtude moral, naquele é investigada a virtude intelectual que atua no domínio prático; como a virtude moral é aquela na qual pode operar a razão (prática), que, ao operar efetivamente, aperfeiçoa a virtude moral, o estudo da prudência completa a investigação sobre a natureza da virtude moral ao discorrer sobre a virtude intelectual que torna a virtude moral uma virtude perfeita. Aqui, em 113, está o início desta investigação: neste capítulo, distingue-se a virtude moral da virtude intelectual para então tomar aquela como objeto de estudo, a partir de II 1 até III 8, o que será completado, no livro VI, pelo estudo da
Comentários
I 75
virtude intelectual que atua no campo prático, após o exame separado de cada virtude moral.
l102a5-6 certa atividade da alma segundo perfeita virtude. A definição de felicidade foi apresentada em I 6 1098a16-17, com o adendo
ETL 8' EV ~l fazer D com vistas à saúde e valorizar a saúde com vistas à felicidadé' (ad loc.)". No fundo, Kb e LbNbOb coincidem, o texto moderno sendo resultado de um zelo excessivo: a condição (b) apresenta a deliberação sobre os meios com vistas àquelas mesmas coisas que foram postas como objeto de saber em (a). Qualquer que seja o texto, porém, rrpompoúµEvOS'
tem
o sentido claramente ativo do agente que escolhe por deliberação D com vistas
II6
I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
a obter um fim F, sem introduzir (pace Gauthier) uma deliberação sobre fins. Mais ainda, se, como proponho, as condições (a,b,c) não estão aqui como cavalo-de-Tróia para o livro III, de modo que (a) seja o conhecimento técnico, (b) rrpOaLpOÚµEVOS' OL' amá não pode ser usada (como freqüentemente se tenta fazer) para corrigir a alegada limitação insuportável da deliberação aos meios (buscando concebê-la como também dos fins), mas, inversamente, deve ser entendida como uma primeira formulação, útil aos propósitos presentes, cuja tese propriamente deve ser buscada somente lá no livro III. Aqui, tudo de que Aristóteles precisa é afirmar que o agente moral deve deliberar e que esta deliberação deve estar ligada àqueles mesmos fins sob os quais a perspectiva moral está sendo analisada (o que exclui, portanto, que delibere ao agir, mas sua deliberação diga respeito a outros tópicos que aqueles envolvidos na avaliação moral da ação).
l105a33-34 quando age portando-se de modo firme e inalterável. Esta é a terceira condição, a condição (c). Aristóteles associa freqüentemente à noção de disposição não somente a firmeza, mas igualmente a dificuldade para ser mudada, ambas claramente sublinhadas aqui. Como escreve Grant, "nenhum ponto é mais enfatizado nas Éticas do que a estabilidade das EÇElS' morais uma vez formadas" (ad loc.). Isso é verdade; as disposições são fixas, mas nem tudo o que fazemos sem hesitar provém de uma disposição. Talvez Aristóteles queira enfatizar somente que o agente não pode estar em um estado de hesitação, ora adotando a, ora adotando Na, sem por isso comprometer-se a já lhe atribuir uma disposição moral bem estabelecida. Convém observar que os tradutores freqüentemente introduzem o termo disposição; Rowe, por exemplo, que, normalmente, é muito cuidadoso, traduz por" from a firm and unchanging disposirion", quando, na verdade, não há o termo EÇlS' no texto grego.
1105bl Relativamente ao possuir as outras, as artes.
c.c.w. Taylor observou
corretamente que uma tradução literal produz um falso sentido ("relativamente ao possuir as outras artes"), visto que Aristóteles está a contrastar as virtudes com as artes. Para um uso similar, ele remete a Górgias 473c3.
1105b2-3 o saber pouco ou nada conta. Este é o texto da vulgata, que seguem Bekker e Susemihl: Bywater, por conta de sua preferência a Kb, segue este último manuscrito, que inverte a ordem: "nada ou pouco contá'. Pouca diferença, ou nenhuma, por certo, mas o primeiro membro é tintura retórica, artimanha
Comentários
I II7
de orador, que, se premido, concederá por certo a segunda opção. O problema maior desta passagem está no valor por ser atribuído a saber: em que sentido o saber pouco (ou, melhor, nada) conta na aquisição das virtudes? Parece ser no sentido de conhecimento teórico; mas, neste caso, se foi antes tomado no sentido de saber das circunstâncias,
então adquire aqui outro sentido, o de "uma teoria
da ação", como escreve Stewart, que observa: "Aristóteles usa EloÉvaL em dois sentidos no presente contexto, um dos quais ele afirma e o outro ele nega a necessidade para a moral" (I 185). Era já, como lembrou Natali, a explicação do comentário
anônimo,
uma demonstração"
que glosa este saber como "conhecer a causa e dar
(129, 24). O preço para pagar, nesta interpretação,
é o
divórcio dos sentidos de saber nestas poucas linhas. No entanto, se se tomar antes saber no sentido de saber técnico, isto explica porque TO EloÉVaL pouco ou nada conta para a virtude, o que permitirá
a ironia seguinte a respeito dos
que crêem ser suficiente. saber (teoricamente)
para agir (praticamente)
O ponto já foi discutido
bem.
nos diálogos socráticos de Platão, especialmente
Laques: neste diálogo sobre a coragem, a personagem saber (envolvido na ação moral) unicamente
no
Láques entende como
o saber técnico, o que faz com
que, apesar de sua admissão que bem agir é agir com base em um saber, ele diga que aquele que age bem sem saber (técnico) é mais corajoso do quem faz o mesmo com saber (técnico), em clara dissonância
com sua admissão. A correção
quanto ao tipo de saber (que é primeira ou privilegiadamente
saber moral) é
feita, na segunda parte deste diálogo, por Nícias, que sustenta uma posição de estirpe socrática (o que, contudo,
não o evita de cair em dificuldades
na
parte final do diálogo).
l105b3-4 as quais justamente resultam do praticar freqüentemente atos justos e temperantes. O pronome relativo (a1TEp, as quais justamente) remete às outras condições (rô 8' ana). Bywater sugeriu escrever EhTEP no lugar de a1TEp, no que foi seguido por Gauthier; praticar freqüentemente
neste caso, é a aquisição das virtudes que provém do atos justos e temperantes
(e Gauthier
temente: "pour cette raison même que cest l'accomplissement et tempérées
traduz coerendes choses justes
qui produit la possession des vertus"}. Não parece necessária a
correção, contudo. As outras condições são (b) e (c): a escolha deliberada e a inalterabilidade.
A escolha deliberada
está, como se vê em II 6, no centro da
virtude moral, que é adquirida pelo hábito; a disposição naturalmente
II8 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
resulta
de agir freqüentemente em uma direção. Ademais, a escolha deliberada supõe o caráter voluntário (portanto o conhecimento das circunstâncias). Broadie exclui (a) do escopo de ã1TEp, alegando que "é somente uma condição sine qua non para a ação contar como feita por virtude possuída" que não se desenvolve pela prática freqüente, mas ela toma (a) como conhecimento das circunstâncias; se, porém, (a) for entendido no sentido que propusemos, então é claro por que deve ser excluído: não é uma condição sine qua non para a ação contar como virtuosa, ao contrário do conhecimento das circunstâncias.
l105b18 filosofando deste modo. Quem são os que filosofam deste modo? Não somente, mas certamente também a tradição expressa nos diálogos socráticos de Platão, que supõem que o conhecimento da virtude é uma condição necessária e suficiente para ser virtuoso, sem precisar a exata natureza deste conhecimento porque ele é, em um sentido importante, indistintamente saber moral e técnico.
II4 Começa aqui o estudo propriamente dito da natureza da virtude. Neste capítulo, é apresentado o gênero da virtude: trata-se de uma disposição. O argumento procede por eliminação, mas o caráter exaustivo da lista apresentada não é defendido; recorre-se a práticas da língua e a intuições básicas para eliminar os maus candidatos, restando somente o terceiro e bom candidato, a disposição.
l105b19 deve-se investigar o que é a virtude. O capítulo inicia com a questão típica da busca de uma definição: o que é a virtude, Tl Eó~oS') e o arrojo (ElpáaoS' ). As emoções seguintes envolvem necessariamente a imaginação e contêm claramente elementos típicos do desejo racional que é a ~ouÀ~alS' (por exemplo, a amizade envolve ~oúÀT] KaL
a leitura de Aspásio, no que foi apoiado
por H. Richards
01 EVEKa
e lê KupLwTaTa
no entanto, adota
o' ELVaL OOKEl EV otS'
(no que é seguido por Gauthier
ROT),
e pela
nas quais se desenrola a ação são (i) o fim e
(como já ocorrera
(iib) o ato
na linha aI6), não podendo
ser usado, neste
contexto, para escolher uma dentre elas. Isto faz com que os candidatos preferencialmente Handlung
(i) o fim e
(iib)
o que é feito (Dirlmeier,
a passagem: "und die wesentlichen
literalmente
und ihre Zielserzung",
circunstâncias
o
O motivo do acréscimo é que EV OIS' ~ TTpâçLS' designa todas
que é realizado. as condições
Rackham,
de EV OLS' lÍ TTpâçLS' da linha a16: resulta disto que
que dispensa a atetizaçâo as condições principais
EV ols
deste modo, eliminando
que segue a mesma interpretação).
uma adição proposta
nas
são tomadas
no entanto,
sejam traduz
sind eben die Umstânde einer
sem considerar
que, deste modo, todas as
como as mais importantes).
No entanto, pode-se entender que KUpLwTaTa
é o superlativo adverbial, po-
dendo-se esperar não um plural, mas um singular: algo, ainda por ser nomeado, que parece ser sumamente importante. Neste caso, o KaL tem a função estrutural
de
dar ênfase, pondo o termo a que se ajunta em evidência. Como escreve Denniston (p. 317), neste caso "KaL is
o~.As
Iirtle more than a particle of emphasis, like
such, ir precedes, and emphasizes,
various parts of speech", como em
Rep. IV 445d4 ou Men. 95c2-3 (como observa Denniston, hardly seems appropriate
here',
P: 320). Nesta perspectiva, a frase, KUpLwTaTa
o' ELVQL oOKÊL EV OLS' ~ TTpâçLS' Kal nenhuma
Is6 I
correção, indicando
Ethica Nicomachea I 13 - III 8
"a connective sense
01 EVEKa,
pode ser interpretada
que, entre as circunstâncias,
sem
o fim parece ser
sumamente importante. Aspásio pressentiu isso, pois dedicou a maior parte de seu comentário a mostrar por que o fim é obviamente uma condição essencial entre aquelas cuja ignorância torna a ação isso involuntária (65, 15-28); ele escreveu mesmo que "o fim é a circunstância mais importante nas ações que ocorrem por ignorânciá', KUpuDTaTov ow EV TOLS OL' ayvOLaV TO OÚ EVEKa (65,28) e tentou reduzir todos os outros casos à ignorância do fim (65,21-22: "todos os outros como que se reduzem a ele"). Se for assim, encontramos aqui a passagem mais clara na qual Aristóteles sustenta a importância da intenção na ação (o fim pretendido), sem, porém, reduzir todo o valor moral a ela (ao contrário, como assinalará em III 4, a escolha deliberada é o que há de mais próprio ao valor moral de uma ação). Grant assinala que é bizarro dizer que alguém ignora o fim da ação, como se houvesse um fim independente que o agente ignoraria, mas o ponto é que o agente ignora o que está realmente obtendo, não o que pretende obter. Trata-se de um descompasso entre aquilo a que visa o agente e o resultado que de fato obtém (por exemplo, quando alguém mata uma pessoa, querendo, porém, salvá-la, ao fazê-la beber uma poção;
cf V
10 1135bI4-16).
11l1a21-23 Sendo involuntária a ação realizada por força e por ignorância, o involuntário parece ser aquilo cujo princípio reside no agente que conhece as circunstâncias particulares nas quais ocorre a ação. Aristóteles apresenta sua definição do voluntário e do involuntário: tomando p por princípio no agente e q por o agente conhece as circunstâncias da ação, o voluntário é p
A
q; o involuntário, ~p
V
~q. O
voluntário é a conjunção desses dois fatores, o involuntário ocorrendo se pelo menos um deles for negado, segundo a regra da di~unção. Este é um caso claro em que Aristóteles reconhece que atribuição (ou não) do caso depende do resultado da conjunção ou disjunção do valor de verdade de duas proposições. Para Aspásio, curiosamente, haveria uma assimetria, pois o involuntário seria equívoco (ou homônimo, no vocabulário aristotélico), já que depende de dois tipos distintos, o involuntário por ignorância e o involuntário que resulta do fato que o princípio está fora do agente, enquanto o voluntário seria unívoco (ou sinônimo, no vocabulário aristotélico),
oú ~ àpx~ EV airr0
ELOÓTL
Tà
Ka8' EKaaTa EV OlS ~ rrpâçLS constituindo uma definição única (65,33-66,3).
Aspásio é obviamente iludido pela estrutura gramatical superficial: enquanto para o involuntário parece haver duas condições, ~LÇlKal OL' ayvOLav, a força
Comentários
I I57
e a ignorância, o voluntário parece ter uma única, Tà Kae'
EKaaTa
circunstâncias
ou ~ àpXTJ EV airr(il EL8óTL
EV ols ~ TTpâ~LS', "o princípio no agente que conhece as
particulares
nas quais ocorre a ação". No entanto, no voluntário
há a conjunção de duas condições, cuja negação é a disjunção de seus opostos. De qualquer modo, se estivesse correto ao sustentar que o involuntário
é equí-
voco, então o seu oposto, o voluntário, também seria equívoco. Como Aspásio sustenta que o voluntário é unívoco, ele explica o "problema" da equivocidade do involuntário
pelo fato de Aristóteles
nição do involuntário,
mas meramente
não fornecer propriamente
uma defi-
uma exposição, EKeE(JLS', de seus casos
(assim como não se define um termo homônimo,
mas se listam seus diversos
casos; se tivesse, porém, fornecido uma definição, teria de ser unívoca, pois seu contrário, o voluntário, é definido univocamente:
59, 1-11).
EN, do involunEE e na MM, ele define
Por outro lado, convém salientar que Aristóteles partiu, na tário para então obter a definição do voluntário. Na
primeiro o voluntário, o que procura fazer através da noção-guia reflexão, KaTà OLávOLav, de certo modo baseando-se
de agir com
na legislação vigente, o
que não deixa de criar problemas, pois a escolha (deliberada) ou reflexão já está como que embutida
no próprio voluntário. Na
estar no agente é compreendida
EN, a condição de o princípio
por contraste com a de estar fora do agente,
que nos é mais clara e intuitiva, o que permite não introduzir já no voluntário a escolha, que será analisada em seqüência e que supõe o caráter voluntário do ato, mas não se confunde com ele. Examinar pelo contrário é um procedimento usual em Aristóteles, explicitar a homonímia
sobretudo
quando
o termo é homônimo;
assim, para
de justiça, em V 1, ele explora primeiro a homonímia
de iryustiça, que nos é menos obscura para apreender.
l111a25 por impulso ou por apetite. Trata-se dos desejos da parte não-racional; poder-se-ia supor, com efeito, que nos são involuntários, visto não provirem da parte racional. No entanto, ambos são meus desejos, no sentido relevante aqui de terem o princípio em mim como agente, e, por conseguinte, são voluntários.
ll11a26 nenhum outro animal poderá agir voluntariamente, tampouco poderão as crianças. Aristóteles volta a afirmar mais adiante, em 4 ll11bS-9, que animais e crianças agem voluntariamente.
No entanto, no sexto livro, Aristóteles exclui os
animais do campo da ação (VI 2 1139a20), assim como, na Ethica Eudemia, ele escreve que "não dizemos que a criança age nem o animal"
ISS I Ethica Nicomachea I 13 - /lI 8
(Il 7 1224a28~29;
cf. II
6 1222aI8~20: "somente o homem, entre os animais, é princípio de certo tipo de ações: de nenhum outro animal diríamos que agé'). Um meio de conciliar todas estas passagens consiste em assinalar que a passagem em
EE II 7 parece trazer
a resposta, pois, na linha seguinte, Aristóteles escreve que, para agir, é preciso já dispor de uma faculdade racional (lI 71224a30).
Assim, em um sentido estrito
(que requer o uso da razão), animais e crianças não agem (os primeiros por estarem desprovidos de razão, os últimos por ainda não disporem da razão); em um sentido largo, porém, que corresponde ao uso comum da língua, e ao qual Aristóteles faz menção aqui, animais e crianças agem voluntariamente. sauer comenta, neste sentido: "neque
Rarn-
enim vere TTpâÇLC; est quae a non conscio
fit. Esta é a posição adotada pelos comentadores. No entanto, esta posição forte, presente na EE e na MM, parece depender da atribuição de reflexão (portanto, de razão) já ao ato voluntário, o que já não é o caso na EN, que exige unicamente que o princípio da ação não esteja fora do aut a privare arbitrii libertate
agente (a passagem de VI 2 está novamente a indicar a origem eudemiana livros comuns). Na
dos
EN, Aristóteles adota uma posição moderada a respeito da
ação - a qual inclui como agentes as crianças e os animais, além dos homens adultos - que vem de par com a nova interpretação
do voluntário, a qual já não
inclui como condição a reflexão ou a escolha deliberada. Parece-me que antes de tentar conciliar, convém reconhecer que Aristóteles mudou de posição, e que a tese sustentada na
EN é bem mais satisfatória.
l111a29 havendo uma única causa? Pode-se traduzir também por "um único homem sendo causá', mas parece melhor, seguindo a paráfrase, entender que a causa é única, o que torna inaceitável a cesura entre atos belos voluntários e ignóbeis involuntários.
1111bl as emoções não-racionais. O termo TTá811 é omitido pela primeira mão de Kb, manuscrito
importante
para o estabelecimento
entender, então, que os erros não-racionais
do texto; deve-se
não são menos humanos do que os
erros cometidos por cálculo. As "aíecções" ou "emoções" aqui são propriamente, como observou Bumet, tipos de desejo.
1111bl-2 de sorte que também as ações por impulso e por apetite pertencem ao homem. Este é o texto da antiqua traductio e de Kb, com a correção sugerida por Susemihl TOV
àv8pWTTOU
e adotada por Bywater; a vulgata dá como texto aL
emo 81JµoV
KaL ETTL8uµLac;,
oE TTpáçELC;
"mas as ações do homem são por
Comentários
I IS9
impulso e por apetite", Bekker adotou a vulgata, o que implica que as ações humanas provêm do impulso e do apetite; na paráfrase lê-se, neste sentido, que "todas as ações humanas (rrâaaL ai àvepwmvaL rrpáçELS) se engendram a partir destas afecções, a saber, impulso e apetite" (45,3-5), o que seguramente é falso. Susemihl preferiu atetizar rrá911 da linha 1111bl e àrro 9uµ0l!
KUL
Em9uµ(as de l111b2, o que dá como texto: "de sorte que também as ações são do homem".
IH 4 Aristóteles examina neste capítulo a noção central de sua ética da preferência racional, a saber: a noção de escolha deliberada. Em 1112a1Oreencontramos o termo da linguagem comum para escolha, d(pEaLS, mas Aristóteles insiste que, do ponto de vista de sua ética, escolher é fundamentalmente escolher por razões, o que o levaa dar preferência ao termo rrpoalpeotç. Traduzi-lo por esco-
lha parece, assim, pouco, pois é possível escolher algo sem proceder por razões, assim como me parece insuficiente decisão, pois posso decidir-me irrefletidamente à ação; vali-me da expressão escolha deliberada para pôr em realce o ato de pesar de razões desta escolha, o ato de pesar razões sendo essencialmente deliberativo. Aristóteles principia aqui distinguindo a escolha deliberada dos três tipos de desejo (impulso, apetite e querer), bem como da opinião, para então localizar a escolha deliberada na reflexão vinculada à ação.
l111b5 mais própria à virtude. A virtude moral inclui a escolha deliberada como sua qualidade distintiva: ela é definida como um hábito de escolha deliberada, II 6 1106b36. O valor moral é mais propriamente apreendido não pelo que é feito, mas pela deliberação sobre como fazer; com efeito, um homem vicioso pode fazer algo que é, em si, virtuoso, mas que é feito por uma razão não virtuosa (querer vangloriar-se, escapar de uma pena etc.). Isto assegura ao domínio interno uma prerrogativa sobre o domínio externo quanto à análise do valor moral da ação. Alguém poderia objetar, no entanto, que não basta isso, pois a virtude moral é ainda mais propriamente o hábito de visar a um fim moral, quaisquer que sejam as habilidades para realizá-lo (seguramente úteis,
I60
I
Ethica Nicomachea I [3 - /lI 8
T !
: implica que as ações IC
)ê--se, neste sentido,
~El
porém não indispensáveis);
neste caso, embora a escolha deliberada
apta do que as ações para desvelar o caráter de uma pessoa, ela parece mesmo assim inferior ou subordinada
S") se engendram
seja mais
à intenção, que funcionaria
úl-
como o reduto
5). o que seguramente
timo do valor moral de uma ação. Pode-se mesmo reivindicar que, na intenção,
1h1 e àlTO 9uµou
trata-se da conformidade
KUl
cpe também as ações
(ou não) da máxima, segundo a qual agimos, à lei ou
princípio objetivo do agir, que, grosso modo, reclamaria do agente uma perspectiva universal ou pelo menos não egoísta na ação, na qual se esgotaria a base moral (ou imoral) da ação, o resto não sendo senão considerações realização e exeqüibilidade. ação reside propriamente
Kant pôde assim sustentar
criticou acerbamenre
l11.2a10 reencontramos mas Aristóteles insiste
ção. Talvez isto explique por que alguns comentadores
aalmente
lTPOUlpE