Espectadores do Sagrado: literatura apocalíptica, apócrifos do Novo Testamento e experiência visionária 9788523011581

"O objetivo, desde a primeira conversa informal com o prof. Vicente, era organizar uma coletânea com assuntos e art

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Espectadores do Sagrado: literatura apocalíptica, apócrifos do Novo Testamento e experiência visionária
 9788523011581

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Julio Cesar Dias Chaves Vicente Dobroruka (Org.)

ISBN 978-85-230-1158-1

9 788523 011581

Eliade já dizia em sua clássica obra, O Sagrado e o Profano, que o “sagrado” aparece na experiência humana como um ponto fundamental de orientação, permitindo ainda o acesso à realidade ontológica a partir da qual se origina e à qual o homo religious aspira. Espectadores do Sagrado é uma obra que traduz com exemplos tirados da Antiguidade essa aspiração do homo religious pelo sagrado. As contribuições contidas neste volume tratam dessa busca pelo sagrado por meio de análises que visam desde as interpretações do livro de Daniel feitas por Josefo e 4 Esdras até as sete idades do mundo de Agostinho, passando ainda pelas experiências visionárias de Paulo, pelo Evangelho de Mateus, pelo recentemente descoberto Evangelho de Judas e pela literatura apócrifa copta. Seja por meio da Bíblia, seja por meio da literatura gnóstica, o homo religious da Antiguidade era seguramente um espectador do Sagrado.

Espectadores do Sagrado

Julio Cesar Dias Chaves nasceu em 1981 em Brasília, onde se graduou em História pela UnB. É ainda mestre e doutorando em Ciências das Religiões pela Université Laval, em Québec, e professor de História do Antigo Oriente na UPIS. Especialista em cristianismo antigo, interessa-se pelo estudo da literatura apocalíptica, do gnosticismo e dos códices de Nag Hammadi e suas relações com a literatura copta na Antiguidade tardia. Entre 2008 e 2009, foi professor de Patrologia na Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília, e desde 2010 é Auxiliar de Pesquisas e Ensino na Université Laval. Julio Cesar Dias Chaves faz ainda parte do Groupe de recherche sur Le christianisme ancien et l'antiquité tardive – GRECAT e do Seminário Permanente Bibliothèque copte de Nag Hammadi, colaborando na elaboração de edições críticas e traduções francesas de textos apócrifos coptas.

Julio Cesar Dias Chaves Vicente Dobroruka (Org.)

Vicente Dobroruka nasceu no Rio de Janeiro em 1969 e cursou graduação e mestrado em História na PUC-Rio. É doutor em Teologia pela Universidade de Oxford (pela qual é também mestre em Estudos Orientais), estudando os processos visionários dos apocalipses judaicos e persas. É professor de História Antiga na Universidade de Brasília desde 1997. Após 2010 Vicente Dobroruka tornou-se membro vitalício de Clare Hall (Cambridge, onde foi professor visitante) e do Ancient India and Iran Trust, na mesma cidade. É membro do projeto internacional de estudos da literatura judaica do Segundo Templo da Universidade de Michigan 4Enoch (http://www.enochseminar.org) e coordena o Projeto de Estudos JudaicoHelenísticos - PEJ (www.pej-unb.org). Nos últimos anos tem se dedicado ao estudo da literatura apocalíptica em persa médio.

Espectadores do Sagrado Literatura apocalíptica, apócrifos do Novo Testamento e experiência visionária

Fundação Universidade de Brasília Reitor Vice-Reitora

Diretora Conselho Editorial

Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo

Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres. Ana Valéria Machado Mendonça Eduardo Tadeu Vieira Emir José Suaiden Fernando Jorge Rodrigues Neves Francisco Claudio Sampaio de Menezes Marcus Mota Peter Bakuzis Sylvia Ficher Wilson Trajano Filho Wivian Weller

Equipe editorial Gerente de produção editorial Diagramação e capa Ilustração capa Preparação de originais e revisão

Percio Sávio Romualdo da Silva Eduardo Silva de Medeiros Andrea F. Bresolin Chaves Regina Marques e João Filho

Copyright © 2015 by Editora Universidade de Brasília

Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília SCS, quadra 2, bloco C, nº 78, edifício OK, 2º andar, CEP 70302-907, Brasília, DF Telefone: (61) 3035-4200 Fax: (61) 3035-4230 Site: www.editora.unb.br E mail: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília E77c

Espectadores do sagrado : literatura apocalíptica, apócrifos do Novo Testamento e experiência visionária / Julio Cesar Dias _ Chaves e Vicente Dobroruka, organizadores. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 2015. 365 p. ; 22 cm. 364 ISBN 978-85-230-1158- 1 1. Judaísmo helenístico. 2. Literatura apocalíptica. 3. Sincretismo religioso na Antiguidade. 4. Apócrifos. I. Chaves, Julio Cesar Dias. II. Dobroruka, Vicente Carlos Rodrigues Álvares. CDU 225

Impresso no Brasil

Para Andrea e Shelley ̓ λπὶς καὶ κίνδυνος ἐν ἀνθρώποισιν Ε ὁμοῖοι. Teógnis, Elegia 1.637

Agradecimentos Entre a compilação deste volume e sua publicação, decorreu um prazo considerável. Realizar uma seção de agradecimento nessas condições envolve, portanto, não apenas agradecer a quem efetivamente colaborou na ocasião da própria compilação mas também a algumas pessoas que foram muito importantes em períodos subseqüentes. Achamos importante ainda separar os agradecimentos pelos dois organizadores – embora permaneçam aqui nosso “muito obrigado” e nossas apologias a todos os participantes do volume, por sua paciência para conosco. Vicente Dobroruka: devo agradecer aos muitos colegas daqui e do estrangeiro, mas em especial aos colegas de meu projeto sucessor do PEJ, o MPS – Middle Persian Studies, dedicado essencialmente ao estudo da literatura apocalíptica persa: são eles Ayub Naser, Carlo G. Cereti, Carmen Lícia Palazzo, Domenico Agostini, Touraj Daryaee e Zeke Kassock. Entre os muitos e bons colegas estrangeiros, devo destacar alguns que pela proximidade e troca de idéias sempre serão referências em minha trajetória: refiro-me especialmente a Chris Rowland, Martin Goodman, Alison Salvesen, Paul Joyce (Oxford); Almut Hintze, Jim Aitken, Tony Street, Bob Ackerman e John Hinnells (Cambridge); James H. Charlesworth (Princeton), Steve Mason (Groniguem, Holanda), Zuleika Rodgers (Dublin), John J. Collins (Yale), Florian Schwarz e Chiara Barbati (OAW, Viena). Julio Cesar Dias Chaves foi meu aluno e em pouco tempo tornou-se meu mestre: espero dividir a organização e autoria de outros livros com ele no futuro. No grupo de pesquisa “4Enoch”, o apoio de seu organizador Gabriele Boccaccini (Michigan) foi inestimável, bem como o de colegas presentes daquele grupo de pesquisa e também na seção de literatura apocalíptica da Society for Biblical Literature

(SBL): Lorenzo diTommaso, Grant Mackaskill, Matthias Henze, Michael Stone, Loren Stuckenbruck, Jim Davila, Robert A. Kraft, Florentina Badalonava-Geller, Lester Grabbe, Jason Zurawski, Isaac Oliver, Andrei Orlov, Basil Lourié, Emmanoela Grypeou e Alexander Kulik, Eibert Tigchelaar, KU Leuven. Entre meus colegas no Brasil devo lembrar, como sempre, do apoio e amizade de Paulo Nogueira (UMESP) e de alguns colegas na UnB que tornaram este trabalho melhor pelo lustro de seu convívio e amizade: Agnaldo C. Portugal, Teresa N. Marques, Maria Eurydice de Barros Ribeiro, Celso S. Fonseca bem como os amigos Virgílio Caixeta Arraes e Estêvão de Rezende Martins. Devo lembrar que sem Mariana Magalhães nenhum texto faria sentido na vida simbólica; mais uma vez te agradeço por me ajudar a compreender a semiótica da vida do espírito, há mais de uma década. Por fim, mas não menos importante, agradeço a presença carinhosa de Stela Valadares, que viu o livro nascer depois de tanto tempo. Por todos os motivos ela merece um agradecimento muito especial. Julio Cesar Dias Chaves: a tarefa de agradecer sempre me parece árdua, pois recebi e recebo ajuda de tantas pessoas em tantos momentos que sempre receio esquecer-me de alguém. É como se São Paulo me dissesse o mesmo que disse aos cristãos de Corinto há quase dois mil anos: “Que é que possuis que não tenhas recebido (2Cor 4:7)?” Se eu não tivesse recebido tanta ajuda de tantas pessoas, o presente livro jamais teria sido publicado. Do ponto de vista pessoal, gostaria, portanto, de agradecer a todos meus familiares, a começar pela minha esposa, Andrea, e meus filhos – Teresa, Otavio e Julia – que, por serem tão pequenos sequer sabem direito o que faço, mas que sempre foram fonte de alegria para mim. Eu não poderia deixar de agradecer a meu pai e meu irmão, e também à minha mãe (in memoriam) já há tantos

anos falecida; minha tia Lenimar, que desde então, tem sido quase uma segunda mãe para mim, e minha querida avó, Valdete. Um agradecimento especial também à minha madrasta, Gilda, que depois do falecimento de minha mãe, soube cuidar tão bem de meu pai. Enfim, a todos os meus familiares e amigos. Do ponto de vista profissional, eu não poderia deixar de agradecer a todos os colegas do PEJ, que ao longo de todos esses anos contribuíram para o meu desenvolvimento acadêmico; de maneira especial ao amigo Victor Passuello, que além de tudo contribuiu com um artigo para o presente volume. Esse desenvolvimento jamais seria completo sem os anos que passei no Canadá, ao lado de renomados especialistas que têm importância fundamental na minha vida acadêmica. Dentre eles, eu não poderia deixar de mencionar meu orientador, Louis Painchaud – que também contribuiu com um artigo para esse volume – meu coorientador, Paul-Hubert Poirier, e meu professor de copta, Wolf-Peter Funk. Dentre os amigos que fiz no ambiente acadêmico, não posso esquecer-me de agradecer a Steve Jonhston e Eric Crégheur – com quem tantas vezes divertidamente discuti meus temas de estudo – e a Alin Suciu, outro que contribuiu com um artigo para esse volume. Obviamente, devo ainda agradecer aos demais colegas que se deram ao trabalho de escrever um artigo para esta coletânea. E por fim, gostaria de agradecer ao professor Vicente Dobroruka, o grande responsável por tudo isso (mesmo que ele negue); afinal, sem ele, eu jamais teria me interessado pelo estudo da Bíblia e do cristianismo antigo. Em 2001, quando fui aluno do Vicente, eu jamais poderia imaginar que estaria ao lado dele, cerca de 15 anos depois, lançando um livro como coorganizador. Posso dizer que hoje, ele é mais que um mestre ou colega, mas um amigo, com quem é sempre prazeroso discutir automobilismo e história militar.

Lista de abreviaturas As abreviaturas de livros bíblicos seguem, salvo se indicado o contrário, os parâmetros adotados pela Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1986. 1En Primeiro Livro de Enoch 2Br Segundo Livro de Baruch AJ Antiguidades Judaicas ApEl Apocalipse de Elias ARA Almeida Revista e Atualizada BG Berolinensis Gnosticus (Codex de Berlim) BJ Guerra dos Judeus (Bellum Judaicum) CD A Cidade de Deus (De Ciuitate Dei) CSCO Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium GCM Sobre o Gênesis contra os maniqueus (De Genesi aduersus manichaeos) NH Nag Hammadi NTG Novo Testamento Grego NVI (Bíblia) Nova Versão Internacional OG Old Greek PCAT A instrução dos catecúmenos ou Sobre as pessoas que devem ser catequizadas (De catechizandis rudibus) PG Migne, Patrologia Grega PL Migne, Patrologia Latina PGM Greek Magic Papyri RASC estados de consciência religiosamente alterados RISC Religiously Interpreted State of Consciousness (estado de consciência religiosamente interpretado) TEB Tradução Econômica Bíblica UBE Unbekannte Berliner Evangelium

Sinais editoriais dos textos coptas A legenda que se segue foi preparada com o intuito de facilitar a compreensão do leitor no que diz respeito aos textos coptas traduzidos para o português: [...] a utilização de colchetes indica que há no texto copta uma lacuna, fruto da decomposição de uma parte do manuscrito ou do desaparecimento da tinta ou de uma rasura. A quantidade de pontos indica, via de regra, a quantidade aproximada de caracteres coptas que poderiam caber na lacuna; quando a lacuna é muito extensa, os pontos são substituídos por uma frase que diz o tamanho aproximado da lacuna, e que, obviamente, não faz parte do texto copta. Em alguns casos existe a possibilidade de preenchimento de lacunas; portanto, quando alguma letra, palavra ou frase encontra-se dentro de colchetes na tradução em português, significa que uma lacuna foi restaurada pelo editor do texto copta e o tradutor português assim o traduziu. < > este símbolo indica que há no manuscrito copta um erro cometido pelo escriba que foi corrigido pelo editor do texto copta e que o tradutor português traduziu de acordo com a correção. ( ) a utilização de parêntesis indica que o tradutor português está inserindo algo no texto traduzido para facilitar a compreensão do leitor. A utilização de pronomes pessoais do caso reto em copta é muito comum, o que, muitas vezes, pode dificultar o entendimento de um trecho em específico que está fora do contexto geral do texto. Os parêntesis também indicam, ao fim da citação de uma tradução portuguesa do texto copta, a referência do trecho no manuscrito copta.

Sumário

Introdução.........................................................................17 Julio Cesar Dias Chaves Prefácio: o tempo, a eternidade e a razão..................................23 Estevão C. de Rezende Martins Flávio Josefo, Daniel e a Providência Divina nas Antiguidades Judaicas............................................................27 Victor Passuello Nas asas da águia: a exegese visionária dos impérios mundiais de Daniel no Quarto livro de Esdras.........................53 Vicente Dobroruka Apocalíptica e interações culturais no mundo romano-helenístico: o caso do apóstolo Paulo...............79 Monica Selvatici Paulo apóstolo nos estudos de religião: a importância de sua experiência visionária apocalíptica...........101 Jonas Machado Identidades fluidas: controvérsias sobre mistura e separação em Mateus.................................................................151 Elisa Rodrigues

Os evangelhos gnósticos..............................................................193 Louis Painchaud O Evangelho do Salvador (P. Berol. 22220) no seu contexto: Jesus e os apóstolos na literatura copta........................................221 Alin Suciu Judas, herói ou traidor: o Evangelho de Judas do Codex Tchacos...259 Julio Cesar Dias Chaves A importância da teoria das sete idades do mundo no pensamento de Santo Agostinho sobre o sentido da história: os casos das obras Sobre as pessoas que devem ser catequizadas e Cidade de Deus..........293 Fabrício Santos Barbacena Bibliografia.............................................................................313 Índice onomástico........................................................................349

Introdução Julio Cesar Dias Chaves

Há 14 anos, era fundado pelo professor Vicente Dobroruka, com a participação de alguns alunos de graduação do Departamento de História da Universidade de Brasília, o Projeto de Estudos Judaico-Helenísticos – PEJ, uma espécie de grupo de pesquisa que se dedicaria ao estudo do judaísmo helenístico e religiosidades correlatas, como o cristianismo primitivo. Desde 2001, o PEJ tem participado de diversos eventos e seminários acadêmicos, nos quais seus membros apresentam comunicações científicas ou até mesmo palestras e conferências; o PEJ contribuiu igualmente com o ingresso de diversos de seus membros, incluso o autor da presente introdução, em programas de pós-graduação em numerosas universidades de renome no Brasil e no mundo. A massiva participação em eventos acadêmicos naturalmente fez com que surgissem contatos entre o PEJ e demais grupos de pesquisa de religiões do mundo helenístico, notadamente o grupo Oracula, da Universidade Metodista de São Paulo. O não menos producente contato com professores de universidades estrangeiras,1 em especial o professor Louis Painchaud, da Outros pesquisadores de renome podem ser citados, como os professores Martin Goodman (Universidade de Oxford), Steve Mason (York University, Toronto) e Almut Hintze (Universidade de Cambridge e School of Oriental and African Studies SOAS - da Universidade de Londres).

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Espectadores do sagrado

Faculdade de Teologia e Ciências das Religiões da Universidade Laval, Québec, Canadá, que participa deste livro com um artigo, propiciou um intercâmbio acadêmico que tem sido extremamente relevante para o desenvolvimento das pesquisas das religiões do mundo helenístico no Brasil. Tendo em vista, portanto, tamanha produção acadêmica, que tem congregado estudantes de diversos estados e universidades brasileiras e estrangeiras, bem como contado com a participação de estudiosos renomados, mais uma vez não só no Brasil, mas também no mundo, surgiu a ideia do presente livro. No ano de 2006, numa conversa informal com o professor Vicente Dobroruka, o autor desta introdução, tendo percebido a quantidade considerável de membros do PEJ que já haviam ingressado, ou até mesmo concluído, cursos de pós-graduação em instituições acadêmicas de peso, sugeriu a organização de uma coletânea que abarcasse os principais temas de estudo do PEJ desde a sua fundação. Ao se considerar os contatos do PEJ nesses cerca de quinze anos de existência, concluiu-se que seria mais do que justo e necessário poder contar com a participação de alguns membros dos citados grupos de pesquisa e professores de outras instituições. A ideia da coletânea pareceu inicialmente audaz, mas nem por isso impossível de ser realizada. O objetivo, desde a primeira conversa informal com o prof. Vicente, era organizar uma coletânea com assuntos e artigos de vanguarda, contribuições verdadeiramente inéditas para o estudo das religiões do mundo helenístico não só no âmbito acadêmico brasileiro, mas também mundial. Esta coletânea é, portanto, uma contribuição avançada para a pesquisa; os artigos não são meras compilações ou florilégios de assuntos já tratados por outros comentadores, mas artigos inéditos com assuntos que estão sendo discutidos nos principais ambientes acadêmicos do mundo. Exemplos claros disso são as duas contribuições de autores internacionais presentes neste 18

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livro, ambos da Universidade Laval, Québec; Alin Suciu, doutor pela citada universidade, hoje pesquisador na Universidade de Göttingen tem realizado uma pesquisa minuciosa em relação ao chamado Evangelho do Salvador, pesquisa que tem chegado a resultados inéditos, que contradizem os tradicionais estudos do texto. A contribuição de Suciu para esta coletânea é a primeira amostra de seus resultados a ser publicada, o que demonstra a importância que o Brasil está assumindo no cenário internacional de estudos das religiões helenísticas. De igual importância é a contribuição do professor Painchaud, que buscou em seu artigo fazer um apanhado e análise dos chamados “evangelhos gnósticos”. Longe de ser uma compilação do que já foi dito por outros autores, Painchaud, um dos maiores especialistas em gnosticismo no mundo, adota uma postura revisionista e crítica que procura explicar detalhadamente o quão problemática do ponto de vista literário a categoria “evangelho gnóstico” pode ser. O autor da presente introdução também contribui com um artigo inédito sobre um assunto que recentemente movimentou diversos estudiosos do cristianismo primitivo e até mesmo a imprensa, o Evangelho de Judas. Por ser brasileiro que faz um doutorado na Universidade Laval, o autor tem tido a oportunidade de manter contatos acadêmicos com diversos especialistas, o que lhe permitiu redigir o artigo em questão, tornando acessível ao público lusófono toda a polêmica em torno do famoso Evangelho de Judas. Hoje professor da Universidade Estadual de Goiás, Victor Passuello doutorou-se em 2004, na Universidade de Reading. Passuelo foi um dos primeiros membros do PEJ e contribui nesta coletânea com um excelente artigo sobre as Antiguidades judaicas de Josefo e o livro de Daniel. Outro membro do PEJ, o mestre em História pela Universidade de Brasília Fabrício Santos Barbacena (ex-orientando do professor Dobroruka), 19

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ajuda a aumentar o número de páginas da coletânea dedicadas ao cristianismo primitivo com uma contribuição sobre a teoria das sete idades do mundo de Santo Agostinho. Completando o conjunto de membros do PEJ, o professor Vicente Dobroruka, coorganizador da coletânea e um dos grandes especialistas brasileiros em literatura apocalíptica, contribui com um artigo sobre o tema das visões dos quatro impérios mundiais no livro de Daniel e sua exegese no texto conhecido como 4Ezra, um apocalipse judaico do fim do séc. I e início do séc. II. Completando o livro, têm-se os não menos importantes estudiosos brasileiros de outras instituições. Conta-se com a participação de dois membros do grupo Oracula da Universidade Metodista de São Paulo; Jonas Machado e Elisa Rodrigues, ambos doutores pela instituição em questão. Como o grupo Oracula tem se dedicado com mais afinco ao estudo do cristianismo primitivo, ambas as contribuições discorrem sobre questões relativas ao Novo Testamento. Jonas Machado fala da importância da experiência visionária de Paulo para os estudos de religião, enquanto Elisa Rodrigues tece comentários em relação às controvérsias sobre mistura e separação no Evangelho de Mateus. Monica Selvatici, professora da Universidade Estadual de Londrina, completa o seleto grupo de autores da presente coletânea com mais uma importante contribuição sobre literatura apocalíptica, na qual discorre sobre interações culturais no mundo romano-helenístico, ocupando-se especialmente do caso de Paulo. Seria ainda apropriado por fim, agradecer a participação do professor da Universidade de Brasília e consultor do PEJ, Estevão de Rezende Martins, que aceitou o convite para participar da presente coletânea, redigindo o prefácio. A participação do professor Estevão de Rezende Martins, que sempre demonstrou profissionalismo e competência acadêmica, muito honrou os 20

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organizadores e participantes desta coletânea, e dá o toque final de excelência neste livro que, como dito anteriormente, tem como objetivo reforçar e divulgar os estudos de acadêmicos brasileiros ou daqueles que têm ligações com a academia nacional relativos ao estudo das religiões no mundo helenístico.2

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Cabe ainda enfatizar que os pontos de vista expressos nos diferentes artigos do presente volume são de inteira e exclusiva responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião dos organizadores.

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Prefácio: o tempo, a eternidade e a razão Quem busca encontrar o cotidiano do tempo histórico deve contemplar as rugas do rosto de um homem, ou então as cicatrizes nas quais se delineiam as marcas de um destino já vivido. (R. Koselleck)1

Homens e mulheres de todos as épocas se veem confrontados com uma carência existencial elementar: como haver-se com o passar do tempo? Como domesticar o tempo que não volta mais? Como produzir o tempo que virá? Cada momento concreto da vida social fornece a moldura cultural dentro de cujos parâmetros se elabora a transformação da experiência empírica da vida de todos os dias em experiência refletida da consciência histórica. Há, por conseguinte, uma interação constante entre o meio da sociedade e da cultura e a sua expressão ponderada no pensamento e no agir históricos de todos e de cada um. Dessa interação há incontáveis testemunhos. Seus registros são postos nos traços da ação humana – escritos, objetos, construções: marcas que o fazer e o pensar dos homens inscrevem na memória do tempo. Essas marcas, à medida que a distância 1

Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto / PUC-Rio, 2006. P.13 [orig. alemão 1979].

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cronológica aumenta, tornam-se, simultaneamente, fonte de informação e enigma a ser decifrado. Pensar a memória e dela lançar mão, no tempo presente, fazem da razão uma produtora de transcendência temporal. A concretude finita do tempo vivido é transposta para uma construção intelectual de longo prazo, não raro tão longo que introduz um certo tipo de eternidade, no antes e no depois do tempo vivido. Transcender os grilhões de sua finitude, pela análise reflexiva, ultrapassa – ao menos teoricamente – a limitação da imanência. O salto reflexivo ocorre tanto espontânea quanto metodicamente. Ele é espontâneo pois todo e qualquer um constrói para si uma representação da tríade passado-presente-futuro como forma de ancorar em determinado conjunto de referências sua própria presença no tempo. Esse salto pode ser também metódico, sempre que se produzir uma forma de representação interpretativa do tempo de modo sistemático, como na historiografia, por exemplo. Nos primórdios da sistematização reflexiva do tempo vivido na tradição do Mediterrâneo, inúmeros textos foram produzidos sob a inspiração da incipiente vivência do cristianismo. No cadinho mediterrâneo se entrecruzaram tradições multisseculares, como a romana, a judaica, a helênica. Este livro aborda uma seleção de textos marcantes da fase de afirmação da identidade cristã. As análises oferecidas trazem para o público brasileiro uma contribuição de monta para decifrar não poucos enigmas da domesticação do tempo escatológico dos primeiros séculos de nossa era. O tempo que se quer decifrar nesses escritos é tanto o tempo das origens quanto o tempo dos fins – o tempo do ontem e o tempo do amanhã. As pesquisas levadas a cabo pelos autores das contribuições reunidas neste volume têm a vantagem de oferecer ao leitor, dentre outros recursos, uma apresentação atenta dos conteúdos referidos, uma análise linguística apurada, uma re-presentação afinada com as questões postas hoje. 24

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A mobilidade das origens e dos fins, para além de sua dimensão absoluta, fica clara na exposição dos autores. O caráter absoluto do tempo ainda buscado com sofreguidão hoje em dia por não poucos era certamente, na época em que os textos analisados foram produzidos, entre os sécs. II a.C. e IV d.C., um lugar comum na ansiedade dos homens e um lugar incomum a ser encontrado além da imanência. Apocalíptica é o nome tradicionalmente utilizado para designar um estilo literário judaico, inaugurado pelo livro de Daniel, em que o fim dos tempos e, por conseguinte, sua realização plena, se alcança pela irrupção do reino de Deus. A sucessão dos reinos dos homens e sua inserção no tempo imanente e contingente da condição humana são definitivamente superadas e subsumidas na glória divina, onde o tempo se consome. A eternidade se substituiria ao tempo e a razão se reincorporaria ao absoluto. Visões exuberantes do amanhã são propostas como contraste com o obscuro do hoje e o cambiante do ontem. O tempo transcendido do futuro sem fim é representado como a superação e a realização plena do tempo efêmero. O processo histórico sai de sua horizontalidade contingente e é transposto para uma espécie de verticalidade absoluta. A experiência vivida no quotidiano dos homens, em seus saberes médico, naturalista, astronômico, político, religioso, é utilizada em recursos estilísticos proféticos, em que a reflexão sobre a vivência e a especulação sobre o devir corrigido de vez se entremeiam para formar um misto de diagnóstico da história e de teoria do paraíso. Os autores do presente volume combinam com eficiência a qualidade analítica com o denso teor informativo para o público interessado, que dispõe de relativamente poucas oportunidades de lograr acesso a esse tipo de fonte. A obra contribui assim, de forma marcante, para um exercício raro de apocatástase a partir das visões consignadas em textos fundamentais para o 25

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entendimento de um traço profundo das tradições de que somos oriundos, uma longa e persistente contraposição da vida quotidiana com as representações do fim da história ou da plenitude da história. A apocalíptica e a escatologia não são a única maneira de lidar com essas representações, mas certamente são uma realidade que se espalhou por vastas regiões do mundo à volta do Mediterrâneo e se expandiu para além das fronteiras desse mundo para as de um mundo sem fronteiras, com o de hoje. Uma leitura instigante, inquietante, provocadora – enfim, uma boa leitura para os que estão atentos ao agir dos homens no tempo. Brasília, agosto de 2009. Estevão C. de Rezende Martins Universidade de Brasília

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Flávio Josefo, Daniel e a Providência Divina nas Antiguidades Judaicas Victor Passuello

Qualquer discussão acadêmica sobre a recepção do livro de Daniel nas Antiguidades judaicas deve sempre levar em consideração os motivos que levaram o historiador judeu Flávio Josefo a omitir certos capítulos do livro de Daniel. Os capítulos do livro de Daniel que Flávio Josefo omitiu nas Antiguidades são, dentro de um ponto de vista teológico, os mais importantes, pois neles encontram-se as famosas visões apocalípticas concernentes ao fim da história.1 Dessa forma o objetivo principal deste ensaio consiste em discutir as razões políticas e religiosas que levaram o historiador judeu Flávio Josefo a omitir a mensagem apocalíptica contida no livro de Daniel. 1

O conceito de história apocalíptica pode ser definido de muitas maneiras. Não existe um consenso sobre esse termo. Porém pode-se dizer que esse termo está ligado a uma clara revelação sobre o fim dos tempos (i.e. eschaton). Dentro dessa perspectiva, o final dos tempos para os autores apocalípticos era uma realidade. Deve-se notar, no entanto, que muitos textos antigos apresentam uma concepção escatológica da história sem necessariamente serem apocalípticos, pois em muitos desses textos a revelação sobre o final dos tempos não é precisa. O texto de Flávio Josefo, por exemplo, apresenta uma mensagem escatológica que não possui uma clara mensagem apocalíptica, pois a mensagem apocalíptica não foi reveladada.

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O argumento desenvolvido neste ensaio defende a tese de que nas obras de Josefo não existe uma rígida oposição ética e moral entre os líderes judeus e os reis gentios. Nas obras de Josefo, tanto os reis gentios como os heróis bíblicos são julgados dentro das mesmas concepções morais e políticas. Para Josefo, uma grande parte da mensagem religiosa e a sabedoria do profeta Daniel, transmitida por meio de sua interpretação de sonhos e profecias concernentes ao futuro da história, podia ser compreendida pelos reis gentios. Esse fato, porém, não anula a devoção religiosa e moral que Flávio Josefo tinha para com as leis e tradições judaicas.2 No livro de Daniel, a sabedoria e o teor das mensagens escatológicas transmitidas pelo visionário Daniel não necessariamente podiam ser entendidas e interpretadas pelos reis gentios em virtude de suas atitudes éticas e morais. Para o autor de Daniel o comportamento ético e moral dos reis gentios para com os judeus não era adequado. O mesmo não se pode dizer dos sábios judeus descritos em Daniel. Dessa forma as palavras e atitudes dos reis gentios não poderiam ter nenhum efeito positivo dentro do longo plano escatológico da história estabelecido dentro do livro de Daniel (Dn 11:17; 25; 28).3 Claramente a virtude da sabedoria demonstrada pelos reis gentios no livro de Daniel tinha certo limite. O mesmo não ocorre nas Antiguidades judaicas de Josefo. Levando em conta todos os fatores apresentados anteriormente, será demonstrado neste ensaio como Josefo interpretou e adaptou a mensagem religiosa e apocalíptica do livro de Daniel nas Antiguidades judaicas. Somente depois do desenvolvimento dessas questões será possível entender a função 2

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Flávio Josefo, por exemplo, durante toda a sua vida sempre seguiu o código religioso e ético imposto pelas leis judaicas (i.e. pela Torah). Sua identidade judaica dentro de suas obras não pode ser contestada. John Goldingay. “Daniel in the context of Old Testament theology”. In: John J. Collins e Peter W. Flint (Ed.). The Book of Daniel: Composition and Reception. Leiden: Brill, 2002. Vol.2. p. 650-654.

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do livro de Daniel nas Antiguidades judaicas de Flávio Josefo e a sua posição em relação ao império romano. O livro de Daniel na época do historiador Flávio Josefo já tinha se estabelecido como uma importante obra dentro das comunidades judaicas. No primeiro século depois de Cristo, época de composição das Antiguidades judaicas de Flávio Josefo,4 o livro de Daniel já tinha uma enorme aceitação dentro das comunidades judaicas. Existiam ao menos duas versões diferentes do livro de Daniel: uma versão baseada no texto massorético do livro de Daniel, composta em hebraico e aramaico, e outra versão baseda no texto grego. A versão mais antiga composta em grego é conhecida como OG (i.e. Old Greek) e a versão mais recente é conhecida como a de Teodocião. Acredita-se que essas duas versões sejam derivadas de uma Vorlage (i.e. tradução) mais antiga que supostamente estaria perto do manuscrito original da Bíblia grega conhecida como a versão dos Setenta (LXX).5 Dessa forma é possível concluir que Flávio Josefo teria à sua disposição as versões grega e massorética do livro de Daniel. Porém, essa hipótese não pode ser testada exaustivamente somente dentro de um ponto de vista literário porque o grego composto por Josefo nas Antiguidades apresenta uma profunda influência do grego ático usado pelos historiadores gregos durante o primeiro século depois de Cristo.6 O texto grego apresentado por Josefo apresenta grandes mudanças em relação às versões gregas do livro de Daniel. Nessas versões o hebraísmo no texto grego pode ser observado frequentemente. O mesmo não ocorre no texto grego das obras de Josefo.

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A partir de agora as Antiguidades judaicas de Flávio Josefo serão abreviadas pelas letras AJ. Para maiores detalhes sobre as versões do texto de Daniel consulte os comentários de John J. Collins. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel. Minneapolis: Fortress Press, 1993. Para mais detalhes, cf. os comentários de Louis H. Feldman. Josephus’s Interpretation of the Bible. Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, 1999.

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O livro de Daniel foi lido e consumido na época de Josefo dentro de duas perspectivas. A primeira perspectiva, e mais difundida, ocorreu dentro de uma interpretação religiosa e apologética, pois a mensagem apologética contida em Daniel exerceu uma profunda influência tanto nos textos judaicos como nos textos das comunidades cristãs do Novo Testamento. A segunda perspectiva, menos conhecida, mas também importante, está relacionada à recepção do livro de Daniel como um texto histórico. O livro de Daniel também apresenta uma reflexão histórica e religiosa sobre os eventos históricos que provocaram a invasão e destruição de Jerusalém pelo rei selêucida Antíoco Epífanes em 169-167 a.C.7 O livro 11 de Daniel, por exemplo, apresenta uma elaborada revisão histórica sobre os eventos que antecederam a invasão e o saque de Jerusalém por Antíoco Epífanes. Essa revisão contida no capítulo 11 de Daniel serviu como base histórica e teológica para o autor de 1Mc. A partir do capítulo 11 de Daniel, o autor do texto de 1Mc construiu o seu relato sobre a invasão e destruição de Jerusalém por Antíoco Epífanes. O livro de 1Mc provavelmente foi composto na última década do segundo século antes de Cristo.8 O texto de primeiro Macabeus é uma crônica histórica e religiosa que conta os feitos da dinastia dos Macabeus contra os reis selêucidas e lágidas. Os capítulos sete e doze do livro de Daniel foram provavelmente utilizados pelo autor do primeiro livro de Macabeus. Porém assim como Josefo esse autor também omitiu a mensagem apocalíptica que pode ser encontrada nos capítulos 7 e 12 de Daniel. Ele decidiu preservar somente o conteúdo histórico desses capítulos.

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Para um estudo aprofundado sobre a função e o sentido da história dentro do livro de Daniel, veja o livro de Paul Niskanen. The Human and the Divine in History. Herodotus and the Book of Daniel. London: T & T Clark International, 2006. Jonathan A. Goldstein. Maccabees. Garden City, New York: Doubleday, 1979. p. 63.

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Entretanto, mesmo assim, existem certas semelhanças religiosas entre o livro de Daniel e o livro de primeiro Macabeus. Essas semelhanças estão baseadas no caráter profético e determinístico que os dois autores compartilhavam em relação aos reis helenísticos. Nos dois livros, pode-se perceber que esses reis são julgados negativamente, independentemente dos seus atos históricos (1Mc 1:5-10). Em 1Mc Antíoco Epífanes é caracterizado como um agente divino que irá punir os judeus helenizados. Esses judeus helenizados dentro de 1Maccabeus são reconhecidos como os partidários de Antíoco Epífanes que promoveram a entrada de costumes gregos dentro de Jerusalém.9 Por ser um agente divino que destruiu Jerusalém, Antíoco Epífanes também vai sofrer uma punição divina. Porém, essa punição divina não ocorre dentro de um contexto apocalíptico, mas dentro de um contexto histórico e profético. No livro de Daniel, Antíoco Epífanes também é caracterizado de uma maneira semelhante, pois tanto ele como os seus descendentes (i.e. os reis helenísticos) são personificados como monstros bestiais que aparecerão no final dos tempos para desafiar o reino de Deus.10 Dentro dessa perspectiva, os atos humanos dos reis helenísticos não são importantes, pois o julgamento divino, seja pela concepção deuterônomica da história usada pelo autor de 1Mc ou pela concepção escatológica do livro de Daniel, já estava determinado.11 Essa comparação entre o livro de 1Mc e o livro de Daniel é importante para o argumento desenvolvido neste ensaio porque o historiador judeu Flávio Josefo desenvolveu uma diferente interpretação profética sobre a história. Para Josefo a intervenção 9 10 11

1 Mc 1:11-15. Dn 7. Deve-se notar que os autores de Daniel e 1Mc usaram a mesma linguagem simbólica para descrever os reis helenísticos (1Mc 1:10).

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da divina providência na história não é totalmente incondicional, pois os atos humanos também tinham certa influência dentro de sua interpretação profética da história. Os reis gentios nas Antiguidades não foram julgados pela divina providência coletivamente, mas individualmente. Josefo, dessa forma, utilizou uma específica concepção moral, histórica e religiosa para julgar os atos dos reis gentios. A atuação de providência divina na história dependia dos atos e decisões tomadas pelos agentes históricos.12 Além do texto de 1Mc também existem outros textos que foram influenciados pela visões proféticas e escatológicas do texto de Daniel. Esses textos são conhecidos como os apocalipses judaicos de 4Ezra e 2Br. Ambos os textos, assim como as Antiguidades de Josefo, foram publicados no primeiro século d.C. depois da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C.. A influência do livro de Daniel, dentro do judaísmo do Segundo Templo, também pode ser notada nos textos encontrados nas cavernas de Qumran (i.e. os Manuscritos do Mar Morto). Dentro dos textos do Novo Testamento essa influência pode ser vista no texto de Mc (13:26; 14:62) e no Ap (13:1). Nesta pequena revisão sobre a recepção do livro de Daniel no século 1 d.C., pode-se perceber que o texto de Daniel teve um grande consumo entre as comunidades judaicas. O texto de Daniel era lido nesse período principalmente pelo seu conteúdo apologético. Porém, pode-se perceber que o texto de Daniel também fora usado dentro da tradição historiográfica judaica, como no caso de 1Mc e de Flávio Josefo. O livro de Daniel apresenta muitas especificidades a serem discutidas de uma vez só. Cada capítulo do livro de Daniel tem a sua própria particularidade teológica e histórica. Nos capítulos 12

O conceito de aliança divina desenvolvido nos textos canônicos judaicos não é transmitido por Josefo. Desse modo pode-se dizer que Josefo desenvolveu uma diferente interpretação teológica sobre a história.

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2 e 7, por exemplo, pode-se encontrar a famosa sequência dos impérios mundiais, enquanto no capítulo 3 temos o famoso relato sobre a fornalha de fogo. Os companheiros de Daniel foram jogados dentro dessa fornalha porque não seguiram o culto idolátrico imposto arbitrariamente pelo rei Nabucodonosor. Alguns capítulos do livro de Daniel, como os capítulos de 2 a 6, foram baseados em tradições orais e escritas que já circulavam dentro da sociedade judaica anteriormente à composição final do livro de Daniel, ocorrida entre 167 e 164 a.C. Mesmo assim é possível identificar uma continuidade temática e teológica entre os diferentes capítulos do livro de Daniel. Uma dessas continuidades estruturais e teológicas que unem os diferentes capítulos de Daniel está relacionada com a oposição entre o reino de Deus e o reinado dos reis gentios. Essa oposição pode ser vista tanto nos relatos de corte descritos nos capítulos iniciais de Daniel (Dn 2-6) como nos últimos capítulos (Dn 7-12) que descrevem as famosas visões escatológicas concernentes ao fim da história e ao julgamento dos reinos terrestres. Dessa forma pode-se dizer que não existe, dentro do livro de Daniel, uma rígida oposição entre a mensagem teológica produzida nos relatos de corte e nas visões escatológicas. A oposição entre as duas metades do livro de Daniel existe, porém deve-se atentar para o fato de que o autor e compilador do livro de Daniel era um escritor criativo, pois foi capaz de conferir uma certa unidade estrutural ao texto de Daniel. A oposição e o contraste entre o reino de Deus e o reinado dos reis gentios ocorreram tanto dentro do suposto contexto social dos relatos de corte como dentro do contexto simbólico e mítico das visões apocalípticas. A continuidade temática e teológica dessa oposição entre o reino de Deus e o reinado dos reis gentios no texto de Daniel está condicionada ao caráter e à natureza da mensagem religiosa e ética desenvolvida ao longo do mesmo. Para o autor de Daniel, o 33

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contraste entre ambos os reinos descritos nos primeiros capítulos ocorreu (cap. 1-6) dentro de uma plataforma pacifista e espiritual. Não existe dentro do livro de Daniel uma concreta oposição política ou militar entre os judeus e os gentios. O contraste que existe entre ambos os reinos e os seus representantes está condicionada ao debate da teodiceia, (i.e. a justiça de Deus). Esse debate, no entanto, não é favorável aos reis gentios, pois são eles que, continuadamente dentro da história, não aprendem a respeitar os desígnios divinos. Esse contínuo desrespeito que os reis gentios mostram em relação ao Deus de Israel dentro da história pode ser visto e compreendido tanto dentro dos relatos de corte como dentro do contexto simbólico das visões apocalípticas, pois em ambos os contextos os atos dos reis gentios são julgados dentro de uma mesma perspectiva determinística e ética. As blasfêmias cometidas pelos reis gentios ao longo do livro de Daniel têm sempre a mesma natureza (i.e. idolatria, orgulho pessoal e uso abusivo do poder). Em quase todos os capítulos do livro de Daniel existe um conflito religioso e ético entre os reis gentios e o reino de Deus, causado em parte pela arrogância e intolerância dos reis gentios e em parte pela mensagem apocalíptica produzida pelo autor de Daniel. Para o autor do livro de Daniel, os reis gentios não mais controlam os seus destinos, pois o fim da história é iminente. Esse argumento pode ser demonstrado, por exemplo, no capítulo 11 do livro de Daniel. Em Dn 11:27, pode-se perceber, dentro de uma interpretação exegética da história, que o autor de Daniel provavelmente está se referindo às diferentes negociações diplomáticas de paz que ocorreram entre Ptolomeu Filometor e Antíoco Epífanes após a conclusão da primeira parte da quinta guerra da Celessíria: “Numa só mesa os dois reis falarão mentiras, porém essas negociações não irão prosperar porque o fim já está determinado”. 34

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Pode-se observar que nessa passagem os dois reis, assim como os seus antepassados são julgados coletivamente e profeticamente. Os dois reis são simbolicamente representados pelos reis vindo do Norte (Antíoco Epífanes) e do Sul (Ptolomeu Filometor), (Dn 11:25-26). Tanto as suas decisões individuais como um possível acordo de paz estabelecido por ambos os reis não são levados em consideração pelo autor do livro de Daniel, pois o fim da história já estava determinado. Os eventos históricos narrados no capítulo 11 têm uma veracidade histórica, porém os atos individuais dos reis gentios são julgados dentro de uma concepção determinística e escatológica. Deve-se notar também que os eventos simbólicos e escatológicos ocorridos nos primeiros capítulos (1-6) do livro de Daniel não são totalmente revelados e desenvolvidos como nos últimos capítulos de Daniel (7-12), pois em geral o julgamento final torna-se visível somente a partir do capítulo 7 de Daniel. É nesse capítulo que o autor de Daniel descreveu a primeira batalha espiritual e escatológica que aconteceu entre os reinos terrestres, representados pelas bestas apocalípticas, e o representante de Deus (Dn 7:9) (i.e. o “Filho do Homem”). Deve-se notar que o termo “Filho do Homem” dentro do capítulo sete de Daniel provavelmente era um anjo escolhido por Iahweh (i.e. o “Ancião dos Dias”) para realizar o julgamento final dos reinos terrestres e da história (Dn 7:22). Porém deve-se notar também que a superioridade do poder divino do reino de Deus e a arrogância dos reis gentios podem ser percebidas também dentro do suposto contexto histórico e social dos relatos de corte narrados na primeira metade do livro de Daniel (Dn 1-6). Sem dúvida nenhuma os reis gentios nos primeiros capítulos de Daniel são descritos de uma maneira favorável. O rei Nabucodonosor nos capítulos 3 e 4, por exemplo, reconhece o poder divino do Deus de Israel. A relação entre os reis gentios 35

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e os judeus é pacífica porque esses reis são capazes de respeitar e venerar a religião dos judeus. Davies em seu comentário sobre o livro de Daniel diz que de uma maneira geral os relatos de corte não existem contradições entre o reinado dos reis gentios e o reino de Deus, pois todos os reis gentios no livro de Daniel são apontados por Deus. Os reis gentios (i.e. Nabucodonosor e Dario, o Medo) descritos nos relatos de corte não são caracterizados da mesma forma que os reis helenísticos (Antíoco Epífanes). Mas mesmo assim pode-se dizer que a descrição dos reis gentios nos relatos de corte não são totalmente positivas, pois esses, de uma maneira geral, são céticos em relação aos desígnios divinos proferidos nas visões simbólicas e proféticas descritas pelo sábio Daniel. Esse tipo de comportamento pode ser visto nas seguintes passagens do capítulo quatro de Daniel (Dn 4:24-27): Dessa maneira, Vossa majestade, talvez o meu conselho o ajude a expiar os seus pecados e as suas iniquidades através de sua bondade para com os necessitados. E assim talvez a sua prosperidade continue. Tudo isso aconteceu ao rei Nabucodonosor. Doze meses depois, quando Nabucodonosor estava caminhando no terraço do seu palácio, ele fez a seguinte reflexão: Aqui está a Babilônia que eu construí para abrigar o meu poder soberano, e para servir a glória de minha majestade.

Nessas passagens pode-se perceber que o rei Nabucodonosor não seguiu os conselhos proferidos por Daniel. Mesmo depois da longa interpretação por parte do sábio Daniel sobre a visão da árvore mundial (Dn 4:16-23). Nesse sonho o rei Nabucodonosor viu uma grande árvore que se estendia até o firmamento. Essa árvore mundial representava o poder real de Nabucodonosor e também a sua arrogância. O símbolo dessa arrogância está representado 36

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pela extensão da árvore mundial. A extensão da árvore mundial simboliza a soberba de Nabucodonosor para com o reino de Deus (Dn 4:17-18). Consequentemente essa árvore fora cortada por um guardião divino (Dn 4:20). A mensagem profética e moral dessa visão é clara. Por causa de sua soberba, o rei Nabucodonosor irá sofrer uma punição divina. Somente depois de sete anos vivendo dentro de um estado zooantropomórfico ele irá perceber que o altíssimo é soberano. Depois disso Nabucodonosor recuperará o seu reinado. É importante notar, porém, que a mensagem moral explicada em Dn 4:24-27 não segue a mensagem deuterônomica de pecado, punição e perdão porque o autor de Daniel não necessariamente garantiu que a prosperidade de Nabucodonosor iria continuar.13 Essa dúvida transmitida pelo autor de Daniel mostra que o julgamento final está próximo, pois os reis gentios não são capazes de interpretar corretamente o conteúdo ético e moral das visões proféticas interpretadas pelo sábio Daniel. Afinal de contas, somente os pios e sábios judeus como Daniel e os seus companheiros são capazes de entender e interpretar corretamente a mensagem apocalíptica e ética contida nos sonhos e nas visões simbólicas reveladas por Deus. No final do capítulo quarto, o autor de Daniel diz que Nabucodonosor arrependeu-se de sua soberba, pois ele mesmo reconheceu a soberania de Deus (Dn 4:31-34). Porém pode-se notar que o arrependimento de Nabucodonosor não veio de uma forma adequada, ao menos dentro do ponto de vista ético do autor de Daniel, pois ele não acatou e não entendeu os primeiros conselhos proferidos por Daniel (Dn 4:24-27). Dessa forma ele precisou de uma nova lição moral (Dn 4:28-30).

Dn 4:27, “E assim talvez a sua prosperidade continue”.

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Mesmo o fictício rei medo Dario, descrito pelo autor de Daniel como um rei piedoso, foi capaz de praticar uma decisão arbitrária para com os judeus. Dario em Dn 6:8, influenciado pelos seus conselheiros, decidiu assinar um decreto no qual todos os habitantes do seu reino não poderiam cultuar ou rezar para nenhum deus ou homem por trinta dias com a exceção de sua pessoa. Depois desse fato, Daniel foi condenado à cova dos leões, pois, como judeu, ele não podia seguir esse decreto. O autor de Daniel no livro seis, em geral, não condena o rei Dario porque os diretos responsáveis pela publicação do decreto foram os seus conselheiros. O rei Dario quando soube do seu erro não pôde voltar atrás, pois pela lei dos Medos e dos Persas qualquer decreto real era irrevogável (Dn 6:13). Mas mesmo assim Dario atuou como um rei piedoso porque retirou-se para o seu palácio e durante a noite inteira e ficou em abstenção e acordado esperando um milagre que salvasse Daniel da cova dos leões (Dn 6:19). O decreto de Dario no livro de Dn 6:8 é muito incomum porque esse não era um procedimento comum dentro de um império multicultural como o império medo ou persa. Boccaccini afirma que o judaísmo do livro de Daniel com certeza contesta as pretensões idolátricas dos reis gentios. Mas para ele essas pretensões idolátricas não contestam, em sua essência, a autoridade dos reis gentios, pois essa autoridade é dada por Deus (178). No entanto pode-se afirmar aqui que a crítica idolátrica contida no livro de Daniel contesta o comportamento ético dos reis gentios porque esses, continuadamente dentro da cronologia histórica estabelecida dentro do texto de Daniel, não exibem uma tolerância religiosa adequada. Existe também dentro do livro de Daniel uma crítica moral e ética ao poder dos reis gentios expressa por meio dos cultos de realeza. A prática desses cultos levaram os reis gentios a desafiar não somente o reino de Deus, mas também qualquer outra divindade. No decreto assinado por Dario, por 38

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exemplo, Dario desrespeitou não somente o Deus dos judeus, mas também todos os outros deuses do seu reino (Dn 6:8). Assim, nos relatos de corte (1-6) pode-se notar que o convívio entre judeus e os reis gentios é possível, pois no final de cada capítulo, depois dos milagres divinos, os reis gentios são capazes de reconhecer a superioridade espiritual do Deus de Israel. Esse fato de uma maneira geral mostra que o imediatismo da mensagem apocalíptica foi postergado. Porém, pode-se perceber também que esse convívio não estava estabelecido dentro de uma base satisfatória para o autor de Daniel devido aos constantes atos de intolerância religiosa e soberba praticados pelos reis gentios. Definitivamente, para o compilador do livro de Daniel, a situação social e política dos judeus dentro dos relatos de corte não era satisfatória devido às constantes perseguições que os judeus sofreram por parte dos reis gentios sem uma aparente justa causa. Portanto, pode-se concluir aqui que todos os reis gentios no livro de Daniel praticaram atos de soberba que desafiavam qualquer autoridade divina. Esses atos de soberba por parte dos reis gentios explicam em parte porque a situação entre judeus e gentios dentro do contexto histórico e social dos relatos de corte, apesar de pacífica, era transitória. Josefo escreveu as suas Antiguidades judaicas em Roma durante o reinado do imperador romano Domiciano (AJ 20.267). Os objetivos morais e políticos de Josefo estão estabelecidos, de uma forma geral, na introdução das Antiguidades. Na terceira parte de sua introdução Josefo menciona o importante fato de que as Antiguidades tinham sido confecionadas e publicadas para satisfazer a curiosidade dos seus leitores gregos (AJ 1.9). Esse fato para Josefo era importante porque confirmava que o diálogo entre judeus e gentios era possível e desejado. Para reforçar esse diálogo e o seu ponto de vista, Josefo cita a importante 39

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legenda histórica sobre a história da tradução da Bíblia grega durante a época helenística.14 Essa tradução tinha sido requisitada pelo segundo rei da dinastia lágida (Ptolomeu Filadelfo), (AJ 1.10). A tradução dos textos sagrados judaicos para a língua grega mostrou, para Josefo, que tanto os líderes gentios como os líderes judeus estavam interessados em promover um diálogo entre culturas (AJ 1.11). A história da tradução da Bíblia grega mostrava para Josefo que Ptolomeu Filadelfo era um rei virtuoso e amante das artes. Josefo também afirma que a tradução dos textos sagrados somente fora possível porque os judeus tinham o tradicional costume de revelar a grande sabedoria e sapiência que existia dentro dos textos sagrados judaicos (AJ 1.12).

Esses comentários iniciais de Josefo revelam duas perspectivas que influenciaram a reescritura do texto de Daniel dentro das Antiguidades. A primeira perspectiva está relacionada à escrita da história apologética. Josefo compôs as Antiguidades para mostrar que os judeus tinham estabelecido um cordial e contínuo diálogo com os reis gentios. Com isso Josefo pretendia responder a acusação dos intelectuais gregos e romanos sobre o comportamento beligerante dos judeus em relação aos grandes governantes gentios, afinal de contas o templo de Jersualém fora continuadamente invadido e saqueado pelos reis helenísticos e generais romanos.15 Essa relação conflituosa entre judeus e gentios, durante a época de Josefo, fora provocada e acirrada em grande parte pela destruição Não sabemos ao certo a data específica da primeira versão escrita da Septuaginta (LXX). Porém pode-se especular que essa versão fora produzida pela comunidade grega de Alexandria durante o séc.III a.C, provavelmente durante o reinado de Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C.). Inicialmente foram publicados somente os livros da Torah. Eventualmente, os outros livros do cânone judaico foram publicados depois da tradução da Torah, tanto em Alexandria como em Jerusalém. A história dessa tradução está documentada no documento helenístico-judaico chamado Carta de Aristeias. 15 Essa acusação pode ser vista nas Histórias de Tácito 5.8-9. 14

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de Jerusalém pelos imperadores romanos Vespasiano e Tito em 66 d.C. Portanto, pode-se perceber que Josefo publicou suas obras dentro de um contexto apologético contemporâneo. Josefo, dessa maneira, reescreveu os textos proféticos, como o texto de Daniel, para mostrar que o diálogo entre judeus e gentios era possível. Porém essa não é a única perspectiva que influenciou a recepção do livro de Daniel nas Antiguidades de Josefo. Josefo realmente acreditava que o diálogo entre judeus e gentios era possível tendo em vista que ele foi capaz de julgar tanto os líderes judeus como os líderes gentios com os mesmos parâmetros morais e éticos. Josefo era um historiador cuidadoso e sofisticado, apesar de alguns lapsos.16 Josefo não reescreveu a história dos judeus em língua grega somente para ganhar credibilidade dentro do mundo greco-romano. Dessa forma, pode-se afirmar que Josefo não alterou o texto de Daniel somente para agradar o seu público greco-romano. Josefo tinha a sua própria visão política e religiosa sobre o texto de Daniel, que estava de acordo com a sua visão de mundo. Essa visão de mundo era diferente daquela apresentada pelo autor de Daniel e relativamente independente do contexto apologético apresentado nas Antiguidades. As Antiguidades judaicas de Josefo constituem uma obra muito extensa. Cobrem toda a história dos judeus dentro de uma perspectiva cronológica e uma continuada narrativa da história dos judeus. Para se ter uma ideia da extensão dessa obra, basta manusear os vintes livros da versão bilíngue do texto de Josefo publicado pela editora americana Loeb. O livro de Daniel aparece no livro 10 das Antiguidades, entre 184-281. 16

Esses lapsos são demonstrados por Shaye J. D. Cohen. Josephus in Galilee and Rome. Leiden: Brill, 2002. Entretanto deve-se notar que Cohen exagerou em seus comentários sobre a inconsistência de Josefo. Cohen, por exemplo, não procura entender os motivos que levaram Josefo a omitir algumas passagens da Carta de Aristeias em sua paráfrase nas Antiguidades (idem, p.34-35).

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Aparentemente Josefo seguiu a sequência dos capítulos imposta pela versão massorética do texto de Daniel. Josefo, por exemplo, não citou as adições deuterocanônicas que existem no texto grego de Daniel. A grande diferença estrutural entre o livro de Daniel e o texto de Josefo está relacionada com uma série de omissões e adições que Josefo incorporou na sua paráfrase do livro de Daniel. Essas omissões e adições podem ser justificadas por vários motivos. Porém devido à falta de espaço e a multiplicidade de questões que essa discussão pode acarretar a reescritura do livro de Daniel nas Antiguidades irá limitar-se à discussão do capítulo 2 de Daniel.17 Esse capítulo foi muito importante tanto para Josefo como para o autor do livro de Daniel. Dentro desse capítulo encontra-se a famosa sequência escatológica e apocalíptica sobre a sucessão dos impérios mundiais. Os impérios mundiais e o eventual reino de Deus são representados graficamente dentro desse capítulo pelo simbolismo de uma colossal estátua composta de metais e argila e por uma pedra que foi jogada sem ajuda humana (Dn 7:31-36). Cada parte dessa estátua é representada por diferentes reis. De acordo com a interpretação do sábio Daniel, a cabeça de ouro representa o rei babilônico Nabucodonosor; os peitos e braços de prata representam o fictício rei medo; a barriga e as costelas de bronze representam o rei persa Dario; as pernas e as coxas de ferro representam o rei Alexandre, o Grande; e, por fim, os pés de ferro e argila representam os diadochi, successores de Alexandre. Depois dessa interpretação, o sábio Daniel anunciou ao rei Nabucodonosor que a pedra jogada sem mão alguma representava 17

Para maiores detalhes, cf. Steve Mason. “Josephus, Daniel and the Flavian house” in: Fausto Parente e Joseph Sievers (Ed.). Josephus and the History of the Greco-Roman Period. Essays in Memory of Morton Smith. Leiden: Brill, 1994 e Feldman, Josephus’s Interpretation of the Bible.

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o reino de Deus, que esmagaria a estátua colossal (Dn 7:43-45). Eventualmente o reino de Deus representado pela pedra iria crescer e virar uma montanha. Essa montanha representa o reino de Deus e sua dominação mundial. Antes de analisar a interpretação de Josefo sobre a mesma profecia, devemos observar como essa visão simbólica descrita pelo sábio Daniel pode ser interpretada tipologicamente. A interpretação do sonho do rei Nabucodonosor por parte do visionário Daniel pode ser interpretada como um sonho mântico e misterioso, pois antes da interpretação do visionário Daniel nenhum sábio babilônico ou caldeu soube interpretar o sonho que Nabucodonosor teve (Dn 2:11). De acordo com o autor de Daniel, somente o visionário Daniel soube interpretar esse sonho. O sábio Daniel só foi capaz de interpretar esse misterioso sonho porque era um fiel seguidor da religião e das tradições judaicas (Dn 1:17-21). Deve-se observar aqui que tanto a sabedoria mântica de Daniel como a sua fidelidade para com as tradições sagradas judaicas são discutidas em detalhes no capítulo introdutório de Daniel. Vendo que os sábios caldeus não foram capazes de interpretar esse sonho, Nabucodonosor decidiu, arbitrariamente, mandar decapitar todos os sábios caldeus e judeus que viviam dentro da sua corte. O visionário judeu Daniel, no entanto, não podia admitir essa situação. Tendo em vista essa terrível situação, Daniel rezou para Deus pedindo sabedoria e poder para interpretar o sonho que Nabucodonosor teve (Dn 2:21-24). O successo de Daniel bem como a sua sabedoria demonstrada pela sua interpretação do sonho de Nabucodonosor mostra que Daniel era tanto um profeta mântico abençoado por Deus quanto um sábio. A virtude de Daniel é demostrada tanto por suas virtudes sapienciais quanto por suas virtudes religiosas. Nabucodonosor, por outro lado, é descrito como um rei arrogante, porque mandou matar arbritariamente os sábios caldeus. 43

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A arrogância de Nabucodonosor é explicada por intermédio de dois fatos fundamentais. O primeiro fato está relacionado com a conduta ética de Nabucodonosor. O autor de Daniel condena essa conduta porque ele mandou matar os sábios caldeus sem justa causa, pois o sonho que ele teve não podia ser interpretado por qualquer sábio de carne e osso, somente as divindades celestiais seriam capazes de interpretá-lo (Dn 2:11). O segundo motivo está relacionado com a sua desmedida religiosa, pois sendo um sonho que estava fora do alcance humano, ele não poderia forçar a sua interpretação. Esse argumento poder ser comprovado em Dn 2:10. Nessa passagem os sábios caldeus afirmam que nenhum poderoso governante jamais tinha exigido esse tipo de interpretação por parte de qualquer mago, astrólogo ou caldeu. Essa pequena análise tipológica e teológica do capítulo 2 de Daniel mostrou que o autor de Daniel combinou dentro desse capítulo duas diferentes perspectivas teológicas. A primeira perspectiva que podemos observar está relacionada com a mensagem escatológica da história. O fim dos impérios terrenos no capítulo 2 de Daniel está próximo, porém o julgamento final desses impérios não iria ocorrer durante a época de Nabucodonosor. A segunda perspectiva está relacionada ao problema do julgamento divino e a oposição entre os reis gentios e o reino de Deus (i.e. teodiceia). A oposição entre o comportamento ético de Nabucodonosor e o comportamento ético do visionário Daniel sintetiza o problema da teodiceia transmitido ao longo do livro de Daniel. Dessa forma, pode-se notar que o autor de Daniel julgou negativamente o rei Nabucodonosor por causa de sua conduta ética e religiosa para com os judeus e os sábios caldeus. Assim, pode-se concluir que o sonho da estátua interpretado pelo sábio Daniel não tinha somente uma mensagem política de reconciliação entre os judeus e os reis gentios, por causa da supressão do imediatismo escatológico. 44

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Esse sonho, assim como a sabedoria mântica expressa pelo visionário Daniel, mostra que o autor de Daniel também criticou o comportamento ético de Nabucodonosor. Para o autor de Daniel, a palavra sabedoria também representava um poder espiritual que estava em oposição ao poder político dos reis gentios (Dn 2:23).18 Dentro dessa perspectiva, a teodiceia narrada pelo autor de Daniel nos capítulos 1 a 6 complementava a teodiceia que tinha sido revelada nas visões apocalípticas narradas nos capítulos 7-12. As diferentes conotações escatológicas que podem existir entre essas duas metades do livro de Daniel não alteram a perspectiva holística sobre a vindicação divina (i.e. teodiceia) que corre ao longo do livro de Daniel. Nas Antiguidades judaicas, a mesma oposição teológica entre o poder político dos reis gentios e o poder espiritual do reino de Deus não pode ser comprovada. Para Josefo a mensagem apocalíptica contida no livro de Daniel não podia ser totalmente revelada, pois ele não acreditava que o julgamento divino estava próximo. Para Josefo a sucessão dos impérios mundiais revelada no capítulo 2 de Daniel não tinha a mesma mensagem teológica. Esse é o principal motivo pelo qual ele não revelou o significado da pedra que foi jogada sem ajuda humana (AJ 10.210). Muitos autores afirmam que Josefo não citou o significado da pedra porque essa revelação podia ofender a sua audiência gentílica, pois, de acordo com a sua interpretação da sequência dos impérios mundiais contida no livro de Daniel, o último império terreno dentro dessa sequência seria o império romano. Josefo assim não queria ofender a sua audiência romana. Portanto, para esses autores, a omissão de Josefo em relação ao significado da pedra Veja os comentários de Daniel Smith-Christopher. Prayers and dreams: power and Diaspora identities in the social setting of the Daniel tales. In: Collins e Flint, The Book of Daniel, p. 286-287.

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divina ocorreu porque ele escreveu as Antiguidades dentro de um contexto apologético. Dentro dessa perspectiva, a reconciliação entre gentios e judeus era possível e desejada. Esse ponto de vista, apesar de estar correto, não explica totalmente porque Josefo omitiu o significado da pedra divina. Esse argumento não leva em consideração a importância histórica, profética e política do livro de Daniel para Josefo. Em nossa opinião, os dois autores que deram as melhores explicações sobre os motivos que levaram Josefo a omitir a mensagem apocalíptica contida no segundo livro de Daniel foram os historiadores Mason e Rajak. Mason afirma que Josefo omitiu a mensagem escatológica contida no capítulo dois de Daniel porque o historiador judeu interpretou a sequência dos impérios como uma reflexão política e filosófica sobre a instabilidade dos assuntos humanos. A potencial revolução espiritual e nacionalista que estava contida nesse sonho não tinha muita importância para Josefo. Mason afirma que Josefo mencionou o significado da pedra divina para o rei Nabucodonosor – sem, no entanto, revelar o seu significado – porque ele queria deixar a impressão de que as Escrituras judaicas continham todos os tipos de mistérios que ele como historiador não podia discutir dentro do contexto histórico que estava sendo apresentado. Mason também afirma que a reflexão política e filosófica que existe na interpretação de Josefo sobre a sequência dos impérios mundiais em Dn. 2 reflete o mesmo contexto da mensagem política proferida por Políbio no tocante à destruição de Cartago pelos romanos. Políbio afirma que o general romano Cipião – o Africano – depois da destruição de Cartago, disse que Roma, assim como Cartago, um dia iria ser destruída por outro império (História 38.22). As afirmações de Mason confirmam a ideia aqui desenvolvida de que a sabedoria mântica proferida pelo sábio Daniel para Josefo tinha apenas uma conotação política, pois Josefo não acreditava que o fim de Roma estava se aproximando. 46

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Esse argumento de Mason pode ser confirmado em algumas passagens das Antiguidades. Josefo diz que a sabedoria de Daniel tinha primordialmente um caráter político, pois o sonho de Nabucodonosor apresentava apenas um caráter político relativo à sucessão dos impérios (AJ 10.205). Tessa Rajak também confirma essa ideia porque, em sua opinião, a profecia proferida por Josefo na sua interpretação do capítulo 2 de Daniel enquadra-se dentro de uma categoria de profecias políticas. O único horizonte visível dentro dessas profecias seriam as predições políticas relativas à sucessão dos impérios. Na opinião de Josefo, Nabucodonosor era um rei que devia ser aplaudido porque foi capaz de praticar atos de tolerância religiosa. Para Josefo, a potencial mensagem escatológica que existia no livro de Daniel não estava ligada ao comportamento ético e moral dos reis gentios. O rei Nabucodonosor, ainda na opinião de Josefo, também cometeu atos de intolerância religiosa, porém esses atos não foram julgados em um contexto apocalíptico (AJ 10.241). Josefo ainda acreditava na interpretação deuterônomica da história. De acordo com essa interpretação teológica da história desenvolvida na Bíblia judaica, os indivíduos poderiam ser perdoados pela divina providência dentro da história humana. Para o autor de Daniel, esse modelo já estava esgotado, pois os reis gentios não eram mais considerados agentes divinos escolhidos por Deus. Eles agora eram representados pelo autor de Daniel como os rivais de Deus. Dessa maneira, os reis gentios deviam admitir que o Deus de Daniel era soberano. “Nabucodonosor respondeu a Daniel: verdadeiramente, o vosso Deus é Deus dos Deuses, e o senhor dos Reis” (Dn 2:47).19 Porém deve-se notar que Josefo não negou completamente a mensagem escatológica contida no livro de Daniel. Josefo, como Niskanen, The Human and the Divine in History, p. 57.

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um judeu seguidor das tradições judaicas não queria ofender a sua audiência judaica, principalmente porque ele, assim como os outros judeus, tinha o livro de Daniel em alta consideração. Em AJ 10.267 ele diz que Daniel era um dos maiores profetas dentro da tradição judaica. Daniel, de acordo com Josefo foi capaz de profetizar tanto o futuro como o tempo exato das profecias que estavam por vir. O respeito e admiração de Josefo por Daniel para muitos estudiosos continua servindo como uma importante evidência de que Josefo, apesar de sua omissão sobre o siginificado da pedra divina, compartilhava com Daniel a mesma visão negativa sobre os impérios mundiais. De acordo com a interpretação exegética e teológica feita por Spilsbury, Josefo compartilhava com os textos judaicos o mesmo sentimento negativo e crítico em relação aos impérios mundiais.20 Spilsbury diz que Josefo dividiu o oráculo messiânico de Balaão em duas categorias: profecias que já foram cumpridas e profecias que estavam por vir. Para Spilsbury, as profecias escatológicas proferidas pelo profeta gentio Balaão em Nm 24:17-19; 24 foram reinterpretadas messianicamente por Josefo. Porém Spilsbury afirma que Josefo não publicou essas profecias narradas ipsis litteris no livro bíblico de Números, pois ele não queria ofender o seu público gentio. A interpretação cifrada de Josefo em relação ao oráculo messiânico de Números 24 pode ser vista em AJ 4.127-128. Nessa passagem, Josefo diz que Balaão arguiu com o rei de Moab, Balac, que os israelitas não poderiam ser vencidos ou totalmente derrotados porque, uma vez vencidos, eles iriam reaparecer novamente “para o desespero daqueles que os derrotaram” (AJ 4.128). Dessa maneira, Spilsbury diz que essa reinterpretação de Josefo sobre a 20

O artigo de Spilsbury pode ser acessador pelo seguinte endereço: . Acesso em: 10 set. 2007.

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profecia de Balaão pode ser lida como uma chave teológica que complementa sua interpretação escatológica sobre o significado da pedra jogada sem mão alguma descrita no livro de Daniel. Para Spilsbury, Josefo tinha elaborado discretamente um sentimento escatológico que deixava claro que o império romano, o último império dentro da sequência dos impérios elaborada por Josefo, seria destruído pelos judeus. Spilsbury também postula que a reinterpretação de Josefo sobre os oráculos de Balaão era messiânica porque Josefo tinha uma atitude ambivalente para com a Dispersão judaica. Dessa forma, para Spilsbury, nem mesmo o apreço que Josefo tinha para com o Judaísmo da Diáspora o impediu de elaborar uma crítica messiânica em relação aos impérios mundiais. Deve-se notar aqui que a mensagem messiânica entre os judeus da Diáspora apresentava uma diferente conotação em relação ao sentimento messiânico expressado na terra de Israel. Para os judeus da Diáspora, uma relação harmoniosa com os líderes dos impérios mundiais não era uma opção, mas sim uma necessidade mais urgente. Sem o constante apoio desses líderes, a manutenção do específico status quo das comunidades judaicas espalhadas ao longo da costa do Mediterrâneo (i.e. Alexandria, Antioquia e Roma) era praticamente impossível.21 Porém deve-se notar que o argumento de Spilsbury apresenta algumas contradições. Primeiramente, o seu argumento é altamente especulativo porque dentro das obras de Josefo a mensagem apocalíptica da história não é desenvolvida ou revelada. Para Josefo, Deve-se notar aqui que o sentimento messiânico também estava presente entre os judeus da Diáspora. Porém esse messianismo apresenta diferentes características, pois o sentimento nacionalista ligado ao messianismo davídico tinha que ser articulado com alguns valores do mundo grego. Dessa forma pode-se dizer que os judeus da Diáspora tinham que negociar suas identidades com o mundo helenizado que os rodeava. Esse tipo de negociação não tinha a mesma força dentro de Israel. Porém, a influência da civilização grega dentro da Palestina não pode ser menosprezada, como bem disse Martin Hengel no seu livro sobre a helenização da cultura judaica depois da morte de Cristo (cf. The ‘Hellenization’ of Judaea in the First Century after Christ. London: Wipf & Stock Publishers, 2003).

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sem dúvida nenhuma, existe uma mensagem apocalíptica tanto dentro do livro de Daniel como dentro da profecia de Números 24. Porém, para Josefo, a destruição do império romano estava por vir. Em sua opinião o império romano não iria ser destruído ou substituído, tendo em vista que os imperadores Vespasiano e Tito foram capazes de assegurar a estabilidade social e política dentro do império Romano durante o primeiro século depois de Cristo. Para Josefo a ascensão e queda dos impérios terrenos também dependia dos atos humanos. Esse argumento pode ser visto em AJ 10:278-281. Nessas passagens Josefo critica os epicuristas, porque eles não acreditam na interferência da providência divina nos assuntos humanos. Para Josefo tanto Deus como a providência divina eram capazes de interferir nos assuntos humanos. Porém, essa interferência não dependia totalmente dos desígnios divinos, como sugere Spilsbury no tocante à intepretação de Josefo sobre o livro de Daniel. A interferência da divina providência para Josefo agia de acordo com o comportamento ético e moral dos personagens históricos dentro do curso da história e não de forma indepedente. Para Josefo existia uma relação entre profecia e história, pois para ele ambos os gêneros literários estavam preocupados com uma verdade histórica. Na sua interpretação exégetica das profecias proferidas por Daniel, Josefo deixa bem claro que a mensagem política dos sonhos de Daniel não era totalmente desfavorável à memória dos governantes imperiais, pois esses governantes eram capazes de entendê-la: “Enquanto os outros profetas previram desastres e por esses motivos não ganharam os favorecimentos dos reis [...] Daniel era um profeta de boas novas e, por meio de seus favoráveis vaticínios, conquistou o respeito de todos” (AJ 10: 268). Essa passagem não tem somente um caráter apologético, pois para Josefo o diálogo cordial entre os líderes e sábios judeus e os governantes gentios também podia acontecer dentro de sua época. Apesar da destruição de Jerusalém pelo imperador 50

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Romano Tito em 66 d.C., Josefo ainda acreditava nesse diálogo, tendo em vista que tanto Tito como Vespasiano, imediatamente depois da destruição de Jerusalém, foram capazes de respeitar os status quo das comunidades judaicas que residiam em Antioquia e Alexandria, apesar da forte oposição das comunidades gregas que também residiam nessas cidades (AJ 12.121-123; BJ 7.110). Assim podemos concluir este artigo dizendo que Flávio Josefo realmente acreditava no diálogo cordial entre os líderes judeus e os governantes gentios. A sua visão de mundo não contém somente uma visão apologética da história, mas também uma sincera opinião política e religiosa sobre a continuidade das tradições judaicas e o diálogo cordial entre os líderes judeus e os governantes imperiais, mesmo depois da destruição de Jerusalém em 66-70 d.C. Para Josefo, a difícil, mas próspera, situação dos judeus na Diáspora, o comportamento de Vespasiano e Tito para com eles, e a continuidade das tradições judaicas dentro dessas comunidades eram uma prova concreta de que os judeus de sua época estavam começando um novo Exílio e não inaugurando uma época de expectativa messiânica.

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Nas asas da águia: a exegese visionária dos impérios mundiais de Daniel no Quarto livro de Esdras1 Vicente Dobroruka

Já se disse, com razão, que toda a literatura bíblica intertestamentária, seja judaica ou cristã, é um comentário desenvolvido a partir de textos anteriores.2 A natureza desse comentário varia desde a reescritura esclarecedora de livros fundadores (caso de Jubileus com relação ao Gn, ou de 1En com o episódio dos gigantes em Gn 5) até comentários como os pesharim de Qumran, dos quais o de Habacuc e o de Naum são os mais conhecidos (nesses casos trata-se de atualizar o conteúdo do texto profético e fazer o público consumidor entender a Uma versão preliminar deste capítulo foi apresentada, sob o título de “4Ezra e os 4 impérios mundiais daniélicos: algumas considerações” no II Seminário Interno do Projeto de Estudos Judaico-Helenísticos – PEJ –, em 21 de novembro de 2007, na Universidade de Brasília. O autor é professor associado de História Antiga na UnB, mestre em Estudos Orientais e doutor em Teologia pela Universidade de Oxford, e gostaria de agradecer a Fabrício Santos Barbacena pela ajuda com as discussões linguísticas nas diferentes versões de 4Ezra. 2 Óbvio como o comentário possa parecer atualmente, remeto o leitor de língua portuguesa a duas obras de referência sobre o assunto: Julio Trebolle Barrera. A Bìblia judaica e a Bíblia cristã. Petrópolis: Vozes, 1996 e Gonzalo Aranda Pérez et alii. Literatura judaica intertestamentária. São Paulo: Ave-Maria, 1996. 1

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atualidade da mensagem veiculada – em outros termos, resignificá-la). Desnecessário dizer que o Novo Testamento posiciona-se do mesmo modo, quer visto em perspectiva cristã, quer na judaica; e o judaísmo rabínico faria o mesmo ao longo de todo o desenvolvimento exegético que culminaria nos Talmudes. Em suma, toda religião fundada num texto sagrado supõe necessariamente a reinterpretação contínua deste, e algo como um “Antigo Testamento” ou “Bíblia hebraica” que circulasse de modo autônomo e sem comentários substantivos nunca existiu.3 A reinterpretação é um imperativo, quer pelo fato de muitas circunstâncias descritas nos textos terem se alterado por transformação social (caso de muitas das prescrições do Dt, por exemplo) quer pela necessidade de readequação de uma mensagem ou exortação a um novo contexto (pesharim, midrashim, boa parte da apocalíptica). O texto de que me ocuparei neste capítulo não é exceção; o chamado Quarto livro de Esdras é, sob certos ângulos e em certas passagens, uma reatualização de Daniel, cujo conteúdo soteriológico teria de adaptar-se às novas condições impostas pela dominação romana, distintas do contexto helenístico em que o texto daniélico foi compilado ou mesmo escrito (que Dn não constitui uma unidade em termos de composição é fato bem sabido, embora restem divergências quanto à natureza das clivagens autorais e, portanto, de datação). Isso fica evidente quando se compara o uso de R(wmai/oi na versão grega dos LXX para a recensão de Teodocião,4 no séc. II d.C., em que o termo volta a ser lido como Κίτιοι; a escassez de manuscritos da LXX

Trebolle Barrera, op.cit. p. 26. Teodocião pode ter feito uma revisão do texto da LXX ou trabalhado a partir de manuscritos hebraicos independentes; foi considerado importante o bastante para compor uma das colunas da Hexapla de Orígenes. O texto de Dn que nos era utilizado pela maior parte dos cristãos primitivos compunha-se daquele editado por Teodocião, cuja tradução é por vezes excessivamente literal.

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com relação a Dn (o Codex Chisianus5 e o Papiro 967 são, para todos os efeitos, as testemunhas da leitura “original” do termo tal como deveria constar na LXX – a Vulgata mantém Romani). Na patrística, a interpretação da última monarquia secular de Dn 2 e 7 é, frequentemente, como Roma, e não mais os reinos helenísticos ou o império de Alexandre. Embora os primeiros seis capítulos de Dn componham-se de “historietas” que podem ser lidas de modo independente, e que não estejam interligadas necessariamente (daí as teses das ordens variáveis em que Dn pode ter sido originalmente “arrumado” – 7, 8, 5, 6),6 do modo como o livro chegou até nós e já era consumido na Antigidade (aqui o testemunho de Josefo e dos Manuscritos do Mar Morto é eloquente) ele estrutura-se em torno dos capítulos 2 e 7, que são aqueles propriamente apocalípticos. Dentro da definição mais comumente aceita, define-se “apocalipse” como [...] um gênero de literatura revelatória com uma estrutura narrativa, na qual a revelação é mediada por um ser do outro mundo a um receptor humano, revelando uma realidade transcendente que é simultaneamente temporal, na medida em que busca salvação escatológica, e também espacial, na medida em que envolve outro mundo.7

4Ezra é um texto apocalíptico de origem judaica e preservação cristã,8 que deve ter sido escrito após 70 d.C. (pela importância Manuscrito do séc.IX d.C. John J. Collins. Daniel: a Commentary on the Book of Daniel. Minneapolis: Fortress Press, 1993, p. 4-5; daí a importância do Papiro 967, que obedece a essa sequência. 7 John J. Collins (Ed.). Semeia 14. Apocalypse: The Morphology of a Genre. Missoula: Scholars Press, 1979. 8 Com exceção dos capítulos 1-2 e 15-16, interpolações cristãs. Utilizei como ponto de partida para 4Ezra a edição de Michael E. Stone. Fourth Ezra. A Commentary on the Book of Fourth Ezra (Hermeneia – A Critical and Historical Commentary on The Bible). Minneapolis: Fortress Press, 1990. Para a edição latina, utilizei o texto da Vulgata (Robert Weber (Ed.). Biblia Sacra. Iuxta Vulgatam Versionem. 5

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que seu autor atribui à queda do Templo), mas antes do final do séc. II d.C. (quando encontramos a primeira citação inequívoca dele, em Clemente de Alexandria).9 O texto de 4Ezra está estruturado em torno de sete visões, das quais a quarta (a mulher chorando) e 4Ezra 12:51 são as mais importantes para a discussão que travamos aqui; a mulher que chora vincula-se ao contexto da quinta visão (a águia), embora na verdade introduza a sexta – pois após 12:51 o visionário dorme sete dias e depois tem a visão. O aspecto a ser discutido neste capítulo é a forma pela qual as duas visões de Dn (2 e 7) são reformuladas em 4Ezra de modo a adequarem-se às novas circunstãncias do convívio com Roma – em outras palavras, trata-se de discutir duas coisas: 1. A adaptação de um tema meta-histórico comum aos dois livros, qual seja o do complexo mítico que reúne as idades do mundo e as monarquias universais (em Dn 2, acrescidas dos metais em ordem de decadência; em Dn 7, dos diversos animais que simbolizam impérios – este último aspecto repete-se funcionalmente em 4Ezra, embora com outros personagens); 2. O grau de minúcia com que a “nova” visão (i.e. a visão reatualizada em 4Ezra a partir do texto daniélico) é esmiuçada para o visionário. Uma variante singular na morfologia do mito, que constitui um tema secundário que não será tratado neste capítulo, é o do “homem do mar” que, ao contrário do que se verifica habitualmente Stuttgart: Württembergische Bibelanstalt, 1969); para a versão siríaca, servi-me do texto da versão peshitta (The Peshitta Institute of the University of Leiden (Ed.). The Old Testament in Syriac according to the Peshitta Version. Edited on Behalf of the International Organization for the Study of the Old Testament. Sample Edition: Song of Songs – Tobit – 4 Ezra. Leiden: Brill, 1966). 9 Stromateis, 3.16.

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nos mitos, é uma figura redentora, e não um inimigo da criação (o mar está normalmente associado ao caos primordial e às forças destrutivas; assim é que em Dn 7 é do mar que saem as bestas, em Jn é por meio de uma criatura marinha que o profeta relutante é punido, nos Sl 29:3; 10 e 93 é lá que Iahweh derrota Leviatã e Raab, as forças do caos).10 Assim definido o conjunto de dois problemas correlatos, mas distintos, principiemos pelo estudo do primeiro, o da forma que o tema metahistórico possuía originalmente em Dn e como ele se transforma em 4Ezra. Antes de iniciarmos a análise, é preciso deixar claro que, em minha opinião, não se pode decompor 4Ezra em unidades autônomas, compiladas tardiamente, quer em função de características linguísticas quer por incongruências teológicas. Não sabemos quase nada sobre as condições de produção e menos ainda das condições de consumo dos apocalipses, e exigir esse tipo de coerência é, sob o meu ponto de vista, tarefa ingrata e que levará a um beco sem saída (ou a tantas saídas quantas a erudição, a imaginação ou o simples número de estudiosos envolvidos permitir).11 Que esse material tenha sido composto em etapas ou mesmo que tenha proveniência heterogênea (os dois primeiros e os dois últimos capítulos são, como se viu, interpolações cristãs) não vêm ao caso para o tema deste capítulo. De todo modo, o que temos compõe-se da narrativa de uma experiência descrita pseudonimamente por um ou mais visionários em nome de

Norman Cohn. Cosmos, Chaos and the World to Come: The Ancient Roots of Apocalyptic Faith. New Haven / London: Yale University Press, 1993, p. 133. 11 Daniel Merkur. “The visionary practices of Jewish apocalypticists”. In: L. Bryce Boyer e Simon Grolnik (Ed.). The Psychoanalytic Study of Society. Hillsdale: Analytic Press, 1989. p.120-123; a variedade de testemunhos sobre o Além é marca registrada dos apocalipses e de seus testemunhos proféticos anteriores – por exemplo, Amós, Zacarias e Jeremias. 10

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Esdras; se essa narrativa não possui o rigor teológico de um texto de – digamos – Fílon, é porque nunca pretendeu sê-lo.12 Como o objeto deste estudo é a releitura de um aspecto pontual da teologia daniélica no decorrer da experiência descrita em 4Ezra, principiarei pela descrição das duas passagens-chave em Dn para nosso trabalho, detendo-me apenas no essencial quanto à sua análise. Em Dn 2:36-43, o rei Nabucodonosor tem um sonho e exige dos magos da corte não apenas a interpretação, como que lhe digam qual foi o próprio sonho: Tiveste, ó rei, uma visão. Era uma estátua. [...] A cabeça da estátua era de ouro fino; de prata eram seu peito e os braços; o ventre e as coxas eram de bronze; as pernas eram de ferro; e os pés, parte de ferro e parte de argila. [A estátua é destruída e suas partes pulverizadas por uma pedra] Tal foi o sonho [...] Tu, ó rei dos reis, a quem o Deus do céu concedeu o reino, o poder, a força e a honra [...], és tu que és a cabeça de ouro. Depois de ti se levantará outro reino, inferior ao teu, e depois ainda um terceiro reino, de bronze, que dominará a terra inteira. Haverá ainda um quarto reino, forte como o ferro, como o ferro que reduz tudo a pó e tudo esmaga [...] Os pés que viste, parte de argila de oleiro e parte de ferro, designam um reino que será dividido: haverá nele parte da solidez do ferro [...] O fato de teres visto ferro misturado à argila de oleiro indica que eles se misturarão por casamentos, mas não se fundirão um com o outro, da mesma forma que o ferro não se funde com a argila [Seguem-se considerações sobre o último reino, o reino messiânico representado pela pedra].13 Michael Stone. “On reading an apocalypse”. In: John J. Collins e James H. Charlesworth (Ed.). Mysteries and Revelations. Apocalyptic Studies since the Uppsala Colloquium. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991, p. 72. 13 Uma das ideias metodologicamente mais absurdas nesse campo de estudos é a de preencher a lacuna do Bahman Yašt (BY – um texto que pode ter constituído um 12

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Em Dn 7:1-8 a descrição é bem mais detalhada, e embora as funções dos personagens se mantenham, são outros: No primeiro ano de Baltazar, rei de Babilônia, Daniel, estando em seu leito, teve um sonho, e visões lhe assomaram à cabeça. Ele redigiu o sonho por escrito. Eis o começo da narrativa: Tomou a palavra Daniel, dizendo: Eu estava contemplando a minha visão noturna, quando vi os quatro ventos do céu que agitavam o grande mar. E quatro animais monstruosos subiam do mar, um diferente do outro. O primeiro era semelhante a um leão com asas de águia. Enquanto eu o contemplava, suas asas lhe foram arrancadas e ele foi erguido da terra e posto de pé sobre suas patas como um ser humano, e um coração humano lhe foi dado. Apareceu um segundo animal, completamente diferente, semelhante a um urso,14 erguido de um lado e com três costelas na boca, entre os dentes. E a este diziam: ‘Levanta-te, devora muita carne!’ Depois disso, continuando eu a olhar, vi ainda outro animal, semelhante a um leopardo, que trazia sobre o flanco quatro asas de ave; tinha também quatro cabeças e foi-lhe dado o poder. A seguir, ao contemplar apocalipse persa, mas que chegou até nós em manuscritos tardios e que compõe-se apenas de comentários a um original perdido) referente ao que está misturado ao ferro (não se sabe) com base no texto de Dn, que apesar de completo, fornece uma interpretação completa e acabada do problema e o relaciona aos casamentos entre Lágidas e Selêucidas. Nada permite concluir que fosse essa a intenção do autor do BY, quer pelos manuscritos serem muito tardios e remeterem a contextos que hoje nos escapam, quer por ter existido um (hipotético) BY avéstico, anterior às confusões dinásticas do período helenístico. Cf. Philippe Gignoux. “Sur l’inexistence d’un Bahman Yasht avestique” in: Journal of Asian and African Studies 32, 1986. 14 O tema dos 4 reinos encontra novos desenvolvimentos na literatura rabínica (Lev. Rabbah 13:5 afirma que os 4 reinos foram antecipados em Gn 2:10 – os 4 rios –; em Gn 15:12 – a escravidão –, e Lv 11:4-8 – camelo = Babilônia, fuinha = Média, coelho = Grécia, porco = Roma). Tudo isso implicaria uma nova razão para o descrédito de Roma como última monarquia, a cristianização do Império. Cf. Collins. Daniel: a Commentary on the Book of Daniel, p. 72.

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essas visões noturnas, eu vi um quarto animal, terrível, espantoso, e extremamente forte: com enormes dentes de ferro, comia, calcava, triturava e calcava aos pés o que restava. Muito diferente dos que o haviam precedido, tinha este dez chifres. Enquanto eu considerava esses chifres, notei que surgia entre eles ainda outro chifre, pequeno, diante do qual foram arrancados três dos primeiros chifres pela raiz. E nesse chifre havia olhos como olhos humanos, e uma boca que proferia palavras arrogantes.15

O papel dos três primeiros animais é, evidentemente, secundário na sequência, embora de modo mais ostensivo do que o das últimas partes da estátua em Dn 2; aqui, como em 4Ezra 12, a identificação dos personagens históricos aos quais o apocalíptico 15

Deve-se notar aqui a possível origem semítica para o enredo do “mau rei”, presente em uma especificidade de Dn 7 é a aplicação de um padrão mítico para um contexto histórico, agravado pelo caráter estereotipado da descrição de Antíoco Epífanes em Dn 7, como um dos ímpios especialmente perversos. Ela pode estar ligada à caracterização dele em fontes gregas e egípcias, mas também à lenda persa do Kay Kâûs (cf. Hildegard Lewy. “The Babylonian background of the Kay Kâûs legend”. In: Archiv orientální 17, 1949. p. 28-109). A lenda foi registrada pelo historiador persa Hakīm Abol-Ghāsem Ferdowsī Tūsī, autor do épico nacional persa Shāhnāmeh (em geral conhecido simplesmente como Firdausī) no séc. X d.C. Entre suas características estava um interesse obsessivo nos astros, que o levaram a fazer uma viagem aos céus; ele também rebelou-se contra a religião no Iraque; realizou uma expedição militar contra a Arábia; sentou-se num trono dourado e tentou ascender aos céus; construiu uma torre enorme que alguns ainda enxergavam nas vizinhanças da Babilônia. Ele também foi atingido por uma demência temporária, mas completa. O traço leva à Nabônides, mas também à demência de Nabucodonosor em Dn 4. 4QOrNab deixa fora de dúvida de que as tradições sobre ele formavam ao menos parte das tradições localizadas em Dn. A tradição do rei rebelde remonta, portanto, a Nabônides, e este deve ter sido usado ao menos como modelo parcial em Dn 4 – nesse capítulo o autor refere-se a um padrão já existente de reis rebeldes (cf. Is 14; Ez 28; 31 etc.). Verificamos também passagens relativas ao tema do “rei rebelde” em Dn 8:10; 8:23b; 251; 11:36; 8:25 e 11:45b. Cf. Helge S. Kvanvig. “Dan 7 in a Mesopotamian context”. In: Roots of Apocalyptic: The Mesopotamian Background of the Enoch Figure and of the Son of Man. Neukirchen-Vluyn: Neukirchen Verlag, 1988, p. 460-468.

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(autor ou compilador do trecho) pretende aludir é problemática, e muitos palpites infelizes já surgiram sobre o assunto.16 De modo quase esquemático, a figura redentora que se segue às bestas em Dn 7 é também seguida de outra em 4Ezra 13:1 ss.; desse modo temos outro par, a visão do “Filho do Homem” em Dn 7:9 ss. e 4Ezra 13. Principiando pelo primeiro, vejamos os paralelos possíveis entre as duas seções e também a sua diferença principal, qual seja a proveniência da figura messiânica. Em Dn 7, portanto, temos: Eu continuava contemplando, quando foram preparados alguns tronos e um Ancião sentou-se. Suas vestes eram brancas como a neve; e os cabelos de sua cabeça, alvos como a lã.17 Seu trono eram chamas de fogo com rodas de fogo ardente. Um rio de fogo corria, irrompendo diante dele.18 [...] O tribunal tomou assento e os livros foram abertos.19

Para uma discussão das posições correntes no mundo acadêmico até meados do séc. XX, cf. Harold H. Rowley. Darius the Mede and the Four World Empires in the Book of Daniel. Cardiff: University of Wales Press Board, 1959. 17 Não necessariamente um traço positivo: no ApEl é algo que está associado ao Anticristo (ApEl 3:15.). 18 Evocando de um lado 1En 52 com as montanhas de metal que se derretem como cera e também se encontram associadas aos metais e principalmente, ao Juízo Final na tradição persa – por exemplo, Bundahišn 12. 19 É de se notar que Esdras apresenta-se como “escriba” e é cercado de outros cinco escribas que realiza a performance final do apocalipse, após a ingestão do líquido na taça (4Ezra 14:19 ss.). 16

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Em 4Ezra 11-13 temos um midrash de Dn 7, nos seguintes termos: Na segunda noite [Esdras recebe a ordem de permanecer no campo onde havia ingerido as flores que lhe proporcionaram a quarta visão, ponto de virada na experiência visionária do livro e associada à ingestão das flores] tive um sonho, e vede, surgiu do mar uma águia que tinha doze asas com penas e três cabeças. E olhei, e vede, ela espalhava suas asas sobre toda a Terra,20 e todos os ventos do céu juntavam-se sobre ela.21 E olhei, e de suas asas cresciam asas em [pares] opostos; mas elas tornaram asinhas pequenas, insignificantes. Mas suas cabeças descansavam; a cabeça do meio era maior do que as demais, mas descansava com elas. Eu olhei, e vede, a águia voava com suas asas, para reinar sobre toda a Terra e todos os que nela viviam. E vi como todas as coisas sob o céu lhe estavam sujeitas, e ninguém a contestava, nenhuma das criaturas da Terra. E olhei, e vede, a águia levantou-se sobre suas garras, e urrou para suas asas, dizendo: ‘Não olhem todas ao mesmo tempo; que cada uma durma em seu lugar, e olhe [cada uma] em sua vez; mas que as cabeças sejam deixadas para o final’. E olhei, e vede, a voz não vinha de sua cabeça, mas do meio de seu corpo.22 E contei as asas em [pares opostos], e vede, eram oito delas [...]

“Et vidi, et ecce expandebat alas suas in omnem terram”. Aqui a imagem é comum no AT é pode ser encontrada em diversas passagens – a título de exemplo, Ex 19:4; Dt 32:11; Jn 48:40; 49:22; Ez 17:3; 7; Pr 23:5. 21 Em Dn 7 os quatro ventos agitam o mar, não as bestas, nem mesmo a última – que é, em 4Ezra, a águia. 22 Imagem apavorante a princípio, mas que faz sentido no conjunto da visão: não seria lógico a cabeça referir-se a si mesma em terceira pessoa, tanto mais que a águia tinha três delas. 20

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Até a terceira asa (4Ezra 11:18), o comentário é detalhado; daí para a frente, o autor não mais discute em minúcia o que ocorrerá a cada uma, mas informa laconicamente que algumas governaram, outras não, mas que todas desapareceram. E sobraram apenas as cabeças da águia e seis asas pequenas. Dessas, duas separaram-se e colocaram-se sob o abrigo da cabeça direita da águia; depois esta acorda, alia-se às outras duas cabeças e devora as asinhas sob seu abrigo, que aparentemente conspiravam contra si. Depois (11:33 ss.), [...] a cabeça do meio também desapareceu subitamente, como havia ocorrido com as asas. Mas as duas cabeças permaneceram, e também governaram a terra e seus habitantes. E olhei, e vede, a cabeça da direita devorou a da esquerda.23 Então ouvi uma voz dizendo-me, ‘Olhe diante de ti e considere o que estás vendo’. E olhei, e vede, uma criatura como um leão surgiu da floresta, rugindo; e ouvi como ele falava com voz humana com a águia, dizendo, ‘Ouça o que vou te dizer. O Altíssimo te diz, ‘Não és a quarta besta sobrevivente entre as quatro que fiz com que governassem meu mundo, para que o final dos tempos viesse através dela? Tu, a quarta que veio, conquistastes todas as bestas que vieram antes; e controlastes o mundo com tamanho terror, e toda a Terra com opressão odiosa; e até aqui vivestes na Terra em meio ao deboche. E julgastes a Terra, mas não de modo justo;24 pois afligistes os pacíficos e maltratastes os humildes, odiastes os que diziam a verdade, e amaste Possível referência ao assassinato de Tito por Domiciano, jamais confirmado, mas justificável pelo caráter despótico do reinado deste último. Cf. Suetônio. Vida de Domiciano 2, em que se afirma que Domiciano sempre cobiçara o trono e que havia sido traído num testamento falso, que estipularia a divisão deste último com Tito. 24 “Et iudicasti terram non cum veritate”; o siríaco sem variantes para o versículo. 23

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os mentirosos [...] Assim, a tua insolência chegou ao Altíssimo, e teu orgulho ao Todo-Poderoso. E o Altíssimo olhou para seu tempo, e vede, eles terminaram, e suas eras se completaram! [...]’ Enquanto o leão estava dizendo essas palavras à águia, olhei, e vede, a cabeça que sobrara desapareceu. E as duas asas que haviam se bandeado para ela levantaram-se para reinarem, e seu reino foi breve e tumultuado. Olhei, e vede, todo o corpo da águia foi queimado, e a Terra estava aterrorizada ao extremo.

Aqui cabe a discussão – até o momento, inconclusiva no mundo acadêmico – sobre a natureza das cabeças e asas da águia. Essa é uma questão que possui poucos denominadores comuns: pelo menos desde o final do séc. XIX, os estudiosos concordam que, pela datação do texto posterior à destruição do Templo em 70 d.C., a águia deve representar Roma e qualquer estudo sobre a natureza das partes da águia deve centrar-se em suas cabeças. Há três hipóteses sérias sobre a natureza das partes: 1. As três cabeças seriam Pompeu, Sula e César, o que imporia uma datação ao livro remetendo ao final do séc. I a.C.; a objeção mais óbvia a essa interpretação é o fato de o autor escrever após a destruição do Templo em 70 d.C. (a invasão e saque por Pompeu em 63 a.C. não seriam suficientes para justificar o lamento do visionário pela destruição de Sião);25 25

Stone, Fourth Ezra, p. 363-364; trata-se da tese proposta por Richard Laurence. Primi Ezrae Libri Versio Aethiopica. Oxford: Oxford University Press, 1820; Friedrich Lücke. Versuch einer vollständigen Einleitung in die Offenbarung des Johannes und in die apokalyptische Literatur überhaupt. Bonn: Weber, 1852; Jacob C. van der Vlis. Disputatio Critica de Ezrae Libro Apocrypho Vulgo Quarto Dicto. Amsterdam: Müller,

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2. No outro extremo da datação, o texto seria de 218 d.C., e as três cabeças seriam nesse caso Septímio Severo, Geta e Caracala;26 mas o fato de Clemente de Alexandria já citar 4Ezra antes da data proposta invalida qualquer argumento subsequente (cf. nota 8); além disso 12:18; 21 afirmam que, após o governo das duas primeiras asas, haverá um intervalo de confusão política e social, o que não se aplica nem a Tito nem a Nerva; 3. A terceira posição, mais sensata e predominante entre os estudiosos, identifica as três cabeças como Vespasiano, Tito e Domiciano, mas, como a segunda asa tem de ser Augusto, temos aqui um novo problema – o número total de asas, 18 ou 20, excede o número completo de imperadores e usurpadores conhecidos para o período.27 Dentro desse quadro teórico não há divergência quanto aos 12 imperadores representados pelas asas, mas as asinhas não foram identificadas com segurança; talvez se trate

1839; Adolf Hilgenfeld. Die jüdische Apokalyptik in ihrer geschichtlichen Entwickelung. Jenna: Mauke, 1857.; e Pierre Geoltrain. “Quatrième Livre d’Esdras” in: André Dupont-Sommer e Marc Philonenko (Ed.). La Bible: écrits intertestamentaires. Paris: Gallimard, 1987. Schürer já mostrou a inconsistência da tese pela obviedade da procedência de 4Ezra de período subsequente à destruição do Templo. Cabe ainda lembrar aqui o longo discurso de Agripa em Josefo (BJ 2.357 ss.), exortando os judeus à moderação e recordando que o momento da independência política havia passado de fato com a invasão de Pompeu, mas que a insistência no assunto é que levaria à destruição completa dos judeus em nome de uma causa duvidosa, expondo o Templo a riscos inaceitáveis (BJ 2.397 ss.). 26 Trata-se da datação proposta por Alfred von Gutschmidt. “Die Apokalypse des Esra und ihre spätern Bearbeitungen” in: Zeitschrift für Wissenschaftliche Theologie 3, 1860 e por Arthur-Marie Le Hir. “Du IVe livre d’Esdras” in: Études bibliques par M. l’abbé Le Hir. Paris: Albanel, 1869; mais recentemente, por Philips Barry. “The Apocalypse of Ezra” in: Journal of Biblical Literature 32, 1913 e Daniel Völter. “Die Geschichte vom Adler und vom Menschensohn im 4.Esra nebst Bemerkungen über die Menschensohn-Stellen in 1. Henoch” in: Norsk Teologisk Tidsskrift 8, 1919; cf. Stone, Fourth Ezra, p. 364. 27 Stone, Fourth Ezra, p.364-365.

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de líderes não romanos ou de generais e usurpadores de períodos subsequentes.28

Com restrições, a última teoria é a mais aceita pela scholarship contemporânea e, de fato, a que faz mais sentido no conjunto do texto. Mas há algo que todos os autores deixaram escapar como possibilidade: se 4Ezra deve ser entendido como uma unidade completa, que fazia sentido tanto ao seu autor quanto à sua audiência,29 segue-se que a experiência visionária forma também um todo, que principia com a teimosia do visionário nas três primeiras visões, altera-se radicalmente com a quarta e, daí até o final do livro, o autor pseudônimo passa a defender a posição que inicialmente era do anjo Uriel (sem, no entanto, compreendê-la; o que acontece é um processo de conversão, não de convencimento.30 Do ponto de vista de explicação para a teodiceia, 2Br é muito mais sofisticado, embora, no que diz respeito às experiências descritas, muito mais enfadonho também; isso deve ser levado em conta quando se argumenta que 2Br constituiria uma espécie de “resposta” às questões não respondidas pela teologia de 4Ezra. Mas se 4Ezra não se apresenta como um tratado teológico, é porque nunca pretendeu sê-lo). Isso significa que boa parte das representações zoomórficas de 4Ezra podem não ter qualquer explicação ou equivalência históricas, mas apenas constituírem o epílogo confuso de um Para essas suposições, cf. August F. von Gförer. “Das Jahrhundert des Heils” in: Geschichte des Urchristentums. Stuttgart: Schweitzerbart, 1838. Vol.1; Karl G. Wieseler. “Das vierte Buch Esra nach Inhalt und Alter untersucht”. In: Theologische Studien und Kritiken 43, 1870; Richard Kabisch. Das vierte Buch Esra auf seine Quellen untersucht. Göttingen: Vandehoeck & Ruprecht, 1889 e William O. E. Oesterley. 2 Esdras (The Ezra Apocalypse). London: Methuen, 1933. 29 Stone, “On reading an apocalypse”, p. 66. 30 Idem, p. 73 ss. e, do mesmo autor, “Apocalyptic – vision or hallucination?”. In: Selected Studies in Pseudepigrapha and Apocrypha with Special Reference to the Armenian Tradition. Leiden / New York / Kobenhavn / Köln: Brill, 1991 e “A reconsideration of apocalyptic visions”. In: Harvard Theological Review 96 (2), 2003, p. 169. 28

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episódio extático, vivido em primeira mão ou simplesmente repetido (nesse caso, existe ainda a possibilidade dos absurdos cronológicos da visão serem fruto da ignorância de redatores sucessivos, que mantiveram a unidade essencial do relato da experiência visionária mas perderam, aos poucos, o significado original do texto, aumentando ou diminuindo o número e alterando as características ou comportamento das asas). É de se notar ainda que a visão torna-se cada vez mais confusa na medida em que se caminha para seu final, o que já levou alguns estudiosos a suporem que o visionário sabia de coisas relativas aos anos turbulentos da sucessão neroniana que hoje se perderam.31 Sou de opinião que é a própria visão que vai chegando ao final de modo confuso, tanto mais porque a visão da águia relaciona-se com o ponto de virada do livro, a quarta visão (a da mulher que se transforma na Jerusalém celeste). Ora, a quarta visão é propiciada, de modo bizarro entre todas as formas de preparação visionária dos apocalipses, pela ingestão das flores no campo (4Ezra 9:24-25). Que tenha ou não havido a ingestão de flores ou alucinógenos de fato pelo visionário é outra questão;32 que a quarta e quinta visões ligam-se uma como sequência da outra e que a quinta desfaz-se em meio à confusão crescente quanto ao que o visionário enxerga

O argumento me parece completamente especulativo e incongruente com o caráter simbólico das visões apocalípticas como um todo; acrescente-se a isso o fato de os apocalipses não se notabilizarem pelo entendimento minucioso da história, nem servirem-se de abordagens historiográficas (afinal, não se trata de obras de história, mas quando muito de textos sagrados que se servem de um tipo peculiar de entendimento do sentido da história para explicar suas teodiceias). 32 Cf. Vicente Dobroruka. “Chemically-induced visions in the Fourth Book of Ezra in light of comparative Persian material” in: Jewish Studies Quarterly. Vol.13.1. Princeton: Mohr Siebeck, 2006. Nesse artigo busquei aprofundar a discussão iniciada por Anders Hultgård. “Ecstasy and vision” in: Nils Holm (ed.). Religious Ecstasy. Based on Papers read at the Symposium on Religious Ecstasy held at Åbo, Finland, on the 26th-28th of August 1981. Stockholm: Almqvist and Wiksell, 1982. 31

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antes de acordar em pânico, está fora de questão, pois consta do próprio texto. Deve-se ponderar ainda se para o visionário uma explicação meticulosa relativa às asas da águia, suas cabeças e equivalentes no mundo real teria a mesma importância que para nós. É visível, ao longo de todo o episódio, que a águia como unidade completa interessa muito mais ao visionário do que suas partes constituintes (do mesmo modo que em Dn 7 a besta que realmente interessa ao autor é a última, as demais aparecendo, a meu ver, como complementos necessários que façam o episódio coadunar-se de modo mais adequado ao capítulo 2). O visionário detém-se nas partes da águia, mas o simples fato de poder identificá-la, “midrashicamente”, com um animal bem divulgado (ainda que estranho ao ponto de não ter nome em Daniel) e de significado simbólico tão intenso como a quarta besta de Dn 7 já mostra sua importância como muito maior, tomada em seu todo, do que o último animal de Dn. Apenas como curiosidade – talvez mais do que isso, mas em minha opinião apenas uma especulação digna de nota –, devemos lembrar que há um paralelo não intencional entre as últimas bestas em Dn e em 4Ezra: do mesmo modo que para o autor de Dn o último animal a sair da água não se parece com nada conhecido por estar fora do alcance do conhecimento geográfico do autor (e por isso mesmo talvez se trate de um rinoceronte indiano, conhecido indiretamente por uma versão do Romance de Alexandre que teria vulgarizado a sua figura),33 a águia de 33

A possível influência do Romance de Alexandre do Pseudo-Calístenes sobre o autor de Daniel – através de uma passagem semelhante na Vida de Apolônio de Tyana de Filostrato – implica na identificação da “quarta besta” com um rinoceronte. “Então apareceu uma besta muito diferente, maior do que um elefante, armada na testa com três chifres, [um animal] que os indianos costumavam chamar odontotyrannos, (cuja cor é escura, semelhante à de um cavalo). Depois de ter bebido água, olhou para o nosso acampamento e atacou-nos de surpresa, e não recuou nem diante de grandes

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4Ezra encontraria um paralelo na Vida de Apolônio de Tyana de Filostrato (cf. nota anterior – de modo paradoxal, Filostrato seria tanto fonte indireta para o quarto animal de Dn como reflexo da situação política em Roma e, portanto, representativo dos recursos simbólicos utilizados para explicar ou antecipar os desenvolvimentos políticos em Roma). Trata-se da passagem em 5.13, com a referência às três cabeças, em contexto diferente do visionário de 4Ezra mas significando igualmente a confusão relativa à sucessão neroniana: Apolônio disse: ‘Ide, Damis, e veja se a criança é realmente como afirmam’. Pois aquela coisa estava exposta ao público para que os milagreiros exercitassem seus dons sobre ela. Quando Damis confirmou que era uma criatura de três cabeças e do sexo masculino, Apolônio reuniu seus companheiros e disse: ‘Isso significa três imperadores dos romanos [...] e nenhum deles terá um domínio completo, mas dois deles deverão morrer depois de tomarem a própria Roma, e o terceiro depois de tê-lo feito nos países em torno de Roma: e eles deverão embaralhar suas máscaras mais rapidamente do que se fossem atores trágicos fazendo o papel do tirano’. E a verdade dessa afirmação foi quase que imediatemente revelada; pois Galba morreu na própria Roma, assim que usurpou a coroa; e Vitélio morreu mal após ter sonhado com ela; e Otão morreu entre os gauleses do Ocidente e nem sequer recebeu um funeral público, mas permanece labaredas de fogo” (cf. Wilhelm Kroll. Historia Alexandri Magni. Berlim: Weidmann, 1926; a versão armênia foi editada por Albert M. Wolohjan. The Romance of Alexander the Great by Pseudo-Callisthenes. Nova York: Columbia University Press, 1969. Outras versões da passagem encontram-se na edição do Josippon pelo próprio Flusser ( Jerusalém: Bialik, 1980 - em hebraico) e na edição de Adolf Ausfeld. Der griechische Alexanderroman. Leipzig: /s.ed./, 1907. Cit. por David Flusser. “The fourth empire – an Indian rhinoceros?” in: Judaism and the Origins of Christianity. Jerusalem: Magnes Press, 1988, p. 348.

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enterrado como qualquer indivíduo privado. E esse episódio do Destino encerrou-se dentro de apenas um ano.34

Sugiro, portanto, que há muito de overreading nos estudos sobre a natureza das asas e cabeças das asas da águia de 4Ezra. Do mesmo modo que falta ao texto a coerência de um tratado teológico, falta-lhe também uma explicação meticulosa acerca do que cada parte da águia representava. A imaginação apocalíptica não estava limitada por esse tipo de preocupação, seja o episódio autenticamente visionário, narrativa em segunda mão ou simples repetição de clichês aceitos pela audiência do texto. A observação de Stone – seguindo os passos de Russell e Collins –, o qual afirma que o interesse do visionário pela precisão factual das partes constituintes da águia é um indicador da datação do texto, esbarra numa objeção séria, embora a ideia não seja de todo inviável. Na passagem citada (4Ezra 11-13), o visionário pede a Deus que “me mostre quando pretendes executar [os sinais do fim dos tempos].”35 O ponto em que o visionário teria vivido seria precisamente aquele em que a datação deixa de ser factualmente inteligível.36 Aqui, como noutras passagens da Guerra dos judeus, Josefo deve ter tido acesso a uma fonte excepcionalmente detalhada quanto à turbulenta sucessão neroniana. 35 “Nonne tu es, quae superasti de quattuor animalibus quae feceram regnare saeculi mei , et ut per eos veniret finis temporum meorum? Et quartus veniens devicit omnia animalia quae transierunt, et potentatum tenens saeculum cum tremore multo et omnem orbem cum labore pessimo, et inhabitabant tot temporibus orbem terrarum cum dolo”. 36 Stone, Fourth Ezra, p. 363. Aqui temos notável – embora evidentemente não intencional – semelhança entre a crítica moderna e as ideias do filósofo Porfírio de Tiro (233-305 d.C.). As ideias de Porfírio encontram-se em Adversus Christianos, produzidos em algum momento entre os reinados de Décio e de Diocleciano (“Porfírio escreveu seu décimo segundo livro contra a profecia de Daniel, negando que tenha sido composto pela pessoa a que é atribuído no título, mas sim por alguém que viveu na Judeia no tempo de Antíoco, de sobrenome Epífanes. Além disso, ele afirmou que ‘Daniel’ não predisse o futuro, mas relatou o passado”). Cf. Robert Berchman. Porphyry Against the Christians. Leiden / Boston: Brill, 2005; Maurice Casey. “Porphyry and the origin of the book of Daniel” in: Journal of Theological Studies, 27 (1), 1976 e Gleason L. Archer Jr. Jerome’s Commentary on Daniel. Grand Rapids: Baker, 1958. 34

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Mas a argumentação esbarra em dois problemas sérios: 1. Teria de haver uma prova irrefutável quanto à datação de todas as passagens anteriores referentes aos constituintes da águia; Supondo que a proposição “1” esteja correta, ou seja, pelo menos viável, então, 2. Teríamos de dar conta de dois subproblemas: 2.1 O volume de asas maior do que o de imperadores possíveis até o reinado de Domiciano (ele mesmo apenas uma hipótese, ainda que a mais razoável, para a datação do período em que o visionário viveu), e a incompatibilidade de se entender as asas aos pares, como demonstrou Box a partir de 4Ezra 11:24-28;37 2.2 A ideia de que por conta de determinada passagem (digamos, a do abrigo das duas asinhas sob a cabeça direita) teríamos o terminus ante quem do texto invalidaria a tese anterior, mantida pela maior parte dos estudiosos dos apocalipses históricos – a de que o autor estaria preocupado em entender qual o seu lugar exato no plano divino da história, e nos conduziria a um argumento circular: como o visionário tem essa aspiração, após certa passagem as indicações são nebulosas, o que por sua vez “provaria” que ele viveu antes delas. Não me parece boa lógica para entender em minúcia o que cada trecho da águia significa. Se a datação não for critério suficiente, a própria imagem deve sê-lo. De resto, como veremos a seguir na explicação da visão fornecida a Esdras em detalhe pelo próprio Deus, o midrash faz 37

Box, p. 265.

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com que a águia complemente a visão de Dn 7 e nisso se esgota o que podemos saber com precisão absoluta sobre a data de 4Ezra – o conhecimento, a essa altura bastante óbvio, de que ele tem de ser posterior a Dn. Em minha opinião, essa explicação, por si mesma, é muito mais importante no quadro geral do apocalipse do que a datação pretensamente almejada pelo visionário por meio das partes da águia em 4Ezra. Ele [Deus] me disse, ‘Esta é a interpretação desta visão que tiveste: A águia que vistes saindo do mar é o quarto reino que apareceu numa visão ao teu irmão Daniel. Mas [isto] não lhe foi explicado como agora explico a ti. Vede, estão chegando os dias em que surgirá um reino na Terra, e ele será mais aterrorizante do que todos os reinos que o precederam.38 E doze reis nele reinarão, um após o outro. Mas o segundo deverá reinar por mais tempo do que qualquer outro dos doze.39 Essa é a interpretação das doze asas que viste. Quanto [ao fato] de teres ouvido uma voz que vinha não da cabeça da águia, mas do meio de Talvez a referência a um reino excepcionalmente maligno seja uma forma velada de falar do reinado de Domiciano (nesse caso, a lenda do assassinato de seu irmão Tito por ele mesmo tornar-se-ia mais palatável e menos absurda no conjunto do apocalipse). 39 Aqui parece que pisamos terreno firme: não faz sentido uma referência a Tibério, e o apocalíptico, sensatamente, parece inicar a contagem com Julio César o qual, evidentemente, não era imperador, mas estabeleceu as bases definitivas para o principado de Augusto e sucessores e governou um território administrativamente unificado de extensão bem próxima à de seus limites máximos e, portanto, imperiais (exceção feita, obviamente, ao Egito – tomado por Augusto em 31 a.C. – e aos territórios anexados de forma mais ou menos provisória por Trajano, mais de 100 anos depois). A sequência de doze imperadores harmoniza-se também com a classificação de Suetônio em sua obra, e excluiria usurpadores como Piso, Mimphidius ou Vindex, o que se explica tanto pelo caráter efêmero de sua atuação como pelo fato de não terem eles deixado nenhum legado, mesmo que destrutivo, digno de nota. Esse é outro argumento contra a ideia de que o visionário de 4Ezra “sabia mais do que nós” (Stone, Fourth Ezra p.365); seria de se esperar o mesmo de um autor erudito como Suetônio, o que, no entanto, não ocorre. 38

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seu corpo, esta é a interpretação: no meio do tempo [haec est interpretatio, quoniam post tempus regni illius nascentur contentiones non modicae]40 desse reino grandes lutas surgirão, e ele correrá o risco de cair; não obstante, ele não cairá, mas recuperará sua força anterior. Quanto [ao fato] de teres visto oito sub-asas [et quoniam vidisti subalares octo coherentes alis eius]41 ligadas às asas, esta é a interpretação: oito reis surgirão nele [exsurgent enim in ipso octo reges],42 cujos tempos serão curtos e seus anos [de reinado] breves; dois deles morrerão quando o meio dos tempos estiver próximo; quatro serão guardados para o final dos tempos e dois permanecerão até o final.

A passagem desafia toda a compreensão e implica a mesma confusão, a meu ver, implícita em Dn 2 e 7, quanto à duração dos reinos. Em Dn 2, embora uma sequência cronológica seja explicitada, a pedra que não é acionada por mãos humanas destrói todos os quatro reinos ao mesmo tempo (como, se eles sucedem-se e por essa razão não podem coexistir no tempo?); do mesmo modo a confusão persiste com as bestas em Dn 7. Buscar explicações de desenvolvimento histórico nessas passagens, ou simplesmente tentar entender como o visionário em questão se via no contexto de seu próprio tempo me parece uma empresa fadada ao fracasso antes mesmo de começar. Sustento a tese de que, se os eventos descritos simbolicamente podem ser utilizados como marcas para Nas versões siríaca e armênia, “no meio” ou “entre” (‫ – )ܬܢܝܒ‬o que sugere que, nessas versões, o conhecimento dos eventos posteriores à época do visionário fosse mais preciso. Uma outra possibilidade, até aqui não levantada por qualquer investigador, é a de que o “centro” da águia esteja associado ao seu coração, e, portanto, ao que os apocalípticos entendiam como a sede do pensamento ou do caráter – exemplos paralelos podem ser encontrados em Test12Jud 13:2; Test12Rub 3:6; ApAbr 23:30, Jb 1:15; 12:20; 1En 91:4. Cf. David S. Russell. The Method and Message of Jewish Apocalyptic. Philadelphia: The Westminster Press, 1964, p.142-143. 41 Na versão siríaca, simplesmente “asas pequenas” ou “asinhas” (‫)ܐܦܓ ܐܪܘܥܙ‬. 42 Isto é, no Império? 40

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a data-limite da composição do texto, aqueles que não se encaixam no mesmo esquema devem ser imputados ao que se chamou, acertadamente, de “imaginação apocalíptica” – i.e., não servem para efeito de datação factual, a não ser pela negativa que expressam: após o último evento identificável, perdemos o fio da meada, e com isso devemos nos conformar. Em todo caso, uma explicação coerente para a listagem nos daria a sequência César – Augusto (27 a.C. – 14 d.C.) – Tibério (14-37) – Gaius (37-41) – Cláudio (41-54) – Nero (54-68) – Galba (68-69) – Otão (69) – Vitélio (69) – Vespasiano (69-79) – Tito (79-81) – Domiciano (81-96). Com relação ao repouso das cabeças, Deus prossegue o midrash ao visionário após 12:22: Quanto [ao fato] de teres visto três cabeças em repouso, esta é a interpretação: nos últimos tempos, o Altíssimo fará erguerem-se três reis,43 e eles renovarão muitas coisas, e governarão a Terra de modo mais opressivo do que todos os que os antecederam; por isso são denominados de cabeças da águia. Pois eles irão resumir a sua maldade e realizar seus últimos atos. A cabeça grande significa um rei que morrerá no leito, mas em agonia.44 Quanto aos dois que permanecerem, dois serão devorados pela espada. Mas a espada de um devorará a do outro;45 mas ele também perecerá pela espada ao final dos dias [....]

Na versão latina, três “reinos” (In novissimis eius suscitabit Altissimus tria regna [...]); “reis” na siríaca (‫ )ܢܝܟܠܡ‬etiópica, armênia e árabe. 44 Se a referência a Vespasiano estiver correta, há aqui um semiparalelo com Suetônio: Vespasiano efetivamente morreu em agonia, mas não em seu leito. Sofrendo de disenteria, fez questão de permanecer em pé, como deve morrer um imperador (cf. Suetônio. Vida de Vespasiano 24 – alvo repente usque ad defectionem soluta, imperatorem ait stantem mori oportere; dumque consurgit ac nititur, inter manus sublevantium extinctus est). 45 Nova possível referência ao assassinato de Tito por Domiciano – Unius enim gladius comedet qui cum eo, sed tamen et hic gladio in novissimis cadet. 43

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Aqui chegamos ao final das seções de 4Ezra que nos interessam neste estudo. Seguem-se considerações sobre o leão (identificado como o Messias; 4Ezra 12:31 ss.) que já nos levariam muito longe da intenção inicial do texto. Como conclusão geral, temos o fato autoevidente que, do ponto de vista da sequência de impérios mundiais, a última besta, que aparece como um animal bizarro ao ponto da impossibilidade de ser descrito em Dn 7, é substituída por outro, bem conhecido do público leitor de 4Ezra e frequente na Bíblia hebraica, a águia. Essa substituição tem ainda o efeito de servir-se de um símbolo utilizado assumidamente pela potência que se pretende representar, ou seja, Roma, e o uso comum desse símbolo tem em Josefo um testemunho precioso – pela atualização que ele mesmo faz do texto bíblico e ao mesmo tempo, pelo indisfarçável embaraço que as interpretações correntes da quarta besta deviam causar a ele e, por extensão, aos seus protetores romanos (AJ 10.278-281): [...] o Universo é dirigido por um Ser imortal [...] Parece-me portanto que, em vista do que Daniel profetizou, que eles [os “epicuristas”, que negavam o papel da ação divina no curso dos assuntos humanos – na literatura rabínica, em geral aparecem como sinônimo para “descrentes”; para uma discussão mais profunda da posição de Josefo, cf. CA 2.180] estão muito longe da verdade ao declararem que Deus não se importa com os assuntos humanos. Pois se assim fosse, ou seja, se o mundo funcionasse de acordo com algum mecanismo automático, não teríamos visto todas essas coisas ocorrerem de acordo com a sua profecia. Bem, escrevi sobre essas coisas do modo como achei melhor segundo minha leitura (ἐγὼ μὲν περὶ τούτων ὡς εῦρον καὶ ἀνέγνων οὕτως ἔγραψα); mas, se alguém quiser pensar de modo diferente sobre isso [i.e. sobre o que 75

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Daniel teria a dizer sobre a última monarquia], não objeto a que ele sustente opinião distinta.

Embora o tradutor desse trecho não veja nada de ofensivo em Josefo considerar Roma como a quarta monarquia (na verdade, Josefo refere-se explicitamente a Antíoco Epífanes em AJ 10.276), discordo abertamente dessa opinião, com base no próprio Josefo, em AJ 10.210, quando ele evita cuidadosamente referir-se à pedra que destruirá a última monarquia e remete o leitor ao próprio texto daniélico (que, em última análise, estaria claro o suficiente para um judeu e ao mesmo tempo obscuro o suficiente para um pagão). E Daniel também revelou ao rei o significado da pedra [que destrói a estátua em Dn 2:44-45], mas eu não considerei adequado relatar isso (ἀλλ ̓ ἐμοὶ μὲν οὐκ ἔδοξε τοῦτο ἱστορεῖν), pois espera-se que eu fale do passado cumprido e não sobre o que irá ocorrer [...]

Além disso, tanto quanto na contagem dos chifres da quarta besta de Dn 7, o número de asas em 4Ezra 13 mostra-se não como um enigma, em minha opinião, mas como uma parte de um episódio visionário que começa com razoável precisão factual e vai se diluindo em valores e imagens meramente simbólicos, quase aleatórios. Isso ocorre pela própria natureza da experiência visionária, e não em função de datações absurdas pretendidas por esta ou aquela indicações entre as asas da águia. Tal abordagem, ainda que menos instigante – já que não propõe nada de especialmente novo em termos da datação, nem mesmo muda as possibilidades de datação até aqui propostas – parece-me, no entanto, mais conforme a imaginação apocalíptica, que não se encontrava limitada pelas mesmas preocupações factuais que seus intérpretes modernos. 76

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O encadeamento das visões 4 e 5 com base no mesmo processo indutório – a ingestão das flores – aponta para a mesma direção, ou seja, para um êxtase visionário cuja clareza e intensidade vão diminuindo à medida que nos aproximamos do final do efeito do estimulante utilizado, ou alegadamente utilizado. Nada disso implica a descrição de uma experiência em primeira mão, como espero ter deixado claro ao longo da análise, muito menos uma unidade composicional. No entanto, sugere fortemente que o arranjo das visões 4 e 5 obedece a um relato de experiência extática cuja intensidade diminui à medida que se chega ao final dos êxtases, e que essa diminuição é acompanhada de uma diluição no entendimento ou na explicitação do conteúdo da visão propriamente dita.

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Apocalíptica e interações culturais no mundo romano-helenístico: o caso do apóstolo Paulo Monica Selvatici

Até meados do séc. XX, era forte na expressiva escola de Tübingen, representante primeira da teologia protestante alemã, uma longa tradição que apresentava o Cristianismo como uma ruptura em relação ao judaísmo. Particularmente nas décadas de 1950 e 1960, o movimento cristão foi considerado, conforme consenso dos especialistas em Novo Testamento de tal centro de estudos, uma religião helenística sincrética com suas cristologia e soteriologia fortemente influenciadas pelas religiões de mistério e por um gnosticismo pré-cristão. O maior expoente desse pensamento foi o teólogo Rudolf Bultmann, cujos trabalhos exerceram tamanha influência que, já em 1966, sublinhava-se, segundo Martin Hengel,1 o fato de “que o trabalho teológico de Bultmann e aquele de seus pupilos permanece ainda no centro das discussões”. Martin Hengel. “Judaism and Hellenism revisited”. In: John J. Collins e Gregory E. Sterling. Hellenism in the Land of Israel. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2001, p. 8.

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A figura de Paulo de Tarso foi, por muito tempo, analisada de acordo com o viés da “ruptura em relação ao judaísmo”: os trabalhos de exegese da teologia paulina mostravam Paulo como o helenizador do pensamento cristão, pensamento este que seria ainda muito arraigado a uma concepção apocalíptica e dualista própria do judaísmo palestino. Nesse sentido, Paulo teria reinterpretado a Torah e os profetas segundo a complexidade do mundo greco-latino. Por trás de tal argumento, reside a forte tese de que a abertura para os gentios que Paulo promove na fé cristã seja resultado do processo de ampla helenização da tradição judaica, estando, nesse caso, tal abertura diretamente relacionada à condição de Paulo de judeu helenizado quanto à origem e à formação.2 Ainda assim, será que podemos nos referir a Paulo como o “agente helenizador” do Cristianismo? Paulo se apresenta como um típico judeu helenizado, oriundo da Diáspora? O autor dos Atos dos Apóstolos3 atribui a origem do apóstolo Paulo à cidade de Tarso, capital da província romana da Cilícia, que se localizava a nordeste do mar Mediterrâneo. Dados na epístola paulina aos Gálatas parecem indicar que essa informação lucana esteja correta. O historiador e geógrafo grego Estrabão caracteriza Tarso de forma elogiosa e um tanto quanto exagerada:

Alguns autores que partilham da tese de que Paulo foi o helenizador do cristianismo são William D. Davies. “Paul and Jewish Christianity according to Cardinal Daniélou: a suggestion”. In: Judéo-Christianisme. Recherches de Science Religieuse. Paris: Beauchesne, 1972; Nobert Hugédé. Paul et la Grèce. Paris: Belles Lettres, 1982 e, mais recentemente, Jerome Murphy-O’Connor. Paulo. Biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000. 3 Atribui-se, usualmente, a autoria de Atos a Lucas, o médico e discípulo de Paulo que o teria acompanhado em suas segunda e terceira viagens missionárias. No entanto, essa questão não é certa porque tal atribuição foi obra do bispo Irineu de Lyon no final do séc.II, com base em suas suposições sobre quem teria redigido essa obra e o terceiro evangelho. Por questões didáticas, no entanto, eu me referirei ao autor de Atos como Lucas. 2

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Os habitantes de Tarso dedicam-se tão avidamente não só à filosofia, mas também a todo o conjunto da educação em geral, que já ultrapassaram Atenas, Alexandria e qualquer outro lugar que possa ser citado onde haja escolas e palestras de filósofos... [Ela] tem todos os tipos de escolas das artes retóricas (tradução de Murphy-O’Connor, p. 49).

No entanto, mesmo sendo oriundo dessa metrópole cultural, Paulo não parece ter buscado uma integração maior com o ambiente filosófico mais amplo da cidade. A linguagem utilizada por ele não aponta para uma formação em artes retóricas de sua parte. Hengel4 destaca ainda a ignorância de Paulo acerca da literatura grega clássica e a ausência de referências à poesia grega em suas epístolas. O único verso que o missionário cita, em 1Co 15:33, da obra Thais do poeta cômico Menandro (“as más companhias corrompem os bons costumes”), já havia se tornado um ditado popular destacado de seu contexto literário.5 De igual maneira, por muito tempo se acreditou que Paulo fosse um iniciado nas filosofias pagãs e nas religiões de mistério helenísticas. Afinal, a cidade de Tarso era conhecida pela forte presença da filosofia estoica no século I d. C. Entretanto, os poucos resíduos de um pensamento estoico que é, aliás, o único pensamento filosófico característico daquele tempo que se mostra visível nas epístolas paulinas, são o trecho de Rm 2:12-16 e, em linhas mais gerais, o conteúdo de Fp.

Martin Hengel. The Pre-Christian Paul. London: SCM Press, 1991, p. 3. Werner Jaeger. Cristianismo primitivo e paideia grega. Lisboa: Edições 70, 1991, p. 25, n. 28 recorda que Clemente de Alexandria foi o primeiro autor a prestar atenção às citações literárias da poesia grega presentes no Novo Testamento. Segundo ele, além da referida citação em 1 Cor 15:33, pode-se identificar outra na Tt 1:12, e aquela em At 17:28, no discurso que Lucas põe na boca de Paulo no Areópago em Atenas.

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Felizmente, Paulo é bem loquaz no que diz respeito à questão de sua antiga observância da lei judaica. Em Fl 3:5c, ele afirma que no passado fora “quanto à Lei, fariseu”. Os fariseus, em hebraico perushim, que significa “separatistas”, ou “intérpretes” (em grego, farisaioi) compunham um dentre os diversos grupos judaicos existente na Palestina no séc. I d. C. A primeira definição remete à ideia de que eles se mantinham afastados da profanação ritual; já a segunda, ao fato de que eles interpretavam o texto escrito da Torah, o que se desenvolveu, após a destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos, e se constituiu na tradição rabínica.6 Os fariseus objetivavam a santificação ritual da vida diária no território de Israel. Além das leis de pureza, o farisaísmo demonstrou interesse por outros assuntos legais como os festivais, a adoração, as questões criminais e também a caridade e a ética.7 E, por intermédio das fontes rabínicas posteriores ao período em questão, sabemos que os fariseus eram obrigados a obedecer tanto à Torah escrita como à sua interpretação oral.8 Nas epístolas de Paulo, pode-se enxergar uma influência do midrash,9 realizado pelos estudiosos fariseus, que corresponde à exegese rabínica. Como esse método tinha por função conciliar contradições no interior da Torah, além de trazer uma mensagem do texto bíblico mais próxima às pessoas do povo, é possível perceber o quanto Paulo se utilizou dela de forma a encaixar as suas novas crenças, em primeiro lugar no quadro das Escrituras e, posteriormente, numa linha de pensamento com a qual suas comunidades gentílicas pudessem se identificar. Assim, em 1 Cor 10:1-13, ele Alan Unterman. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 100. Hengel, The Pre-Christian Paul, p. 30-31. 8 Murphy-O’Connor, op.cit. p. 71. 9 Trata-se de um “método homilético de interpretação bíblica no qual o texto é explicado diferentemente de seu significado literal” (cf. Unterman, op.cit. p. 174). Também significa as várias coleções de comentários bíblicos que foram compilados e antes compunham a Torah oral. 6 7

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elabora uma tipologia do Êxodo na qual a rocha de Nm 20:810 que mata a sede do povo de Israel no deserto simboliza, no seu entender, o próprio Cristo antes de sua vinda sobre a Terra e, por isso, a água que dela jorra é uma bebida espiritual (10:3-4). Já em Gl 3 e Rm 4, o missionário discorre sobre a justificação de Abraão pela fé: “foi assim que Abraão creu em Deus e isto lhe foi levado em conta de justiça. Sabei, portanto, que os que são pela fé são filhos de Abraão”, afirma ele em Gl 3:6-7. Em Gl 4, ele interpreta os cristãos como os filhos de Sara e os que seguem a Lei como os filhos de Agar. E, sobretudo em Rm 9-11, ele desenvolve seu argumento acerca da promessa feita a Abraão de modo a justificar seus discípulos gentios dentro das comunidades cristãs apenas e tão somente por meio da fé no Cristo ressuscitado. Ao se atentar para o método de interpretação da Lei que Paulo frequentemente utiliza em suas epístolas, percebe-se o quanto da formação farisaica ele retém em sua vida cristã. Assim, no entender do já velho e experiente cristão, Cristo sendo o “filho de Deus” sempre esteve presente nas Escrituras. Encontrá-lo nelas é apenas uma questão de prestar um pouco mais de atenção e de fazer a interpretação necessária por meio dos midrashim, dos quais ele tem vasto conhecimento. Se inserirmos o farisaísmo no contexto judaico do séc. I d. C. que, sabemos, era permeado por fortes expectativas escatológicas, encontramos mais indícios sobre ele dentro do quadro de uma escatologia apocalíptica.11 Os apocalípticos acreditavam que Em Nm 20:8, Iahweh fala a Moisés: “Toma a vara e reúne a comunidade, tu e teu irmão Aarão. Em seguida, e sob os olhos deles, dize a este rochedo que dê as suas águas. Farás, pois, jorrar água deste rochedo, e darás de beber à comunidade e aos seus animais”. 11 Por escatologia apocalíptica, entendemos “uma perspectiva religiosa, uma maneira de encarar o plano divino em relação às realidades mundanas [terrestres]. Essa perspectiva ou cosmovisão pode ser adotada por vários grupos sociais, em vários graus, em vários momentos. Nessa perspectiva, o plano salvífico de Deus é concebido como resgate da atual ordem para uma nova ordem da realidade, transformada [...]. A escatologia apocalíptica não trata somente da expectativa futura (a época vindoura), 10

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existia uma estreita relação entre o mundo terreno e o celeste. Nesse sentido, eles praticavam viagens extáticas ao céu de modo a conhecer os mistérios divinos e a poder compreender a realidade terrena.12 Embora a corrente apocalíptica não fosse exatamente popular, as visões e experiências de êxtase características dessa vertente integravam a rica e diversa paisagem judaica da Palestina, e eram também partilhadas pelos fariseus. Uma possível ligação de Paulo com a tradição farisaica apocalíptica visionária é levantada em função da passagem 1 Cor 14:18, em que o missionário afirma ter experimentado o “falar em línguas” (êxtase no qual, acreditava-se, a pessoa falava a “língua dos anjos”) mais do que todos os outros integrantes da comunidade coríntia. Além disso, a famosa passagem 2 Cor 12:1-7 sugere que ele tenha sido um praticante do misticismo merkabah (em hebraico, o “trono de Deus”). A visão que Paulo descreve é característica dessa corrente mística, pela qual o iniciado fazia uma viagem em estado de êxtase e visualizava o trono de Deus: em tal trecho, o missionário se refere a uma abundância de visões e revelações que teve e também a uma ascensão sua (em forma de arrebatamento) até o “terceiro céu”, onde ele ouviu palavras “que não é lícito ao homem repetir” (12:4). A hipótese de que Paulo conhecesse tais viagens extáticas torna-se mais plausível na medida em que ele afirma não ter certeza sobre ter feito tal ascensão dentro de seu corpo ou fora dele (12:2-3). Compreendida no contexto da prática mística, sua própria conversão corresponderia, assim, à mais forte

mas da interpretação do passado e da atual situação (a época presente é a ordem ou o domínio do mal)” (Hanson traduzido e citado em Martinus De Boer. “A influência da apocalíptica judaica e cristã sobre as origens cristãs: gênero, cosmovisão e movimento social”. In: Paulo A. S. Nogueira (ed.). Estudos de Religião 19: Apocalíptica e as Origens Cristãs. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001, p. 12-13. 12 Luigi Schiavo. “Com Satanás ao redor da Terra. As tentações de Jesus (Lc 4:1-13) como relato de experiência visionária de viagem” in: Nogueira, op.cit., p. 107.

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dessas experiências. De acordo com Davies,13 “a julgar por isso, o farisaísmo do qual Paulo veio não era árido ou legalístico, mas aberto ao êxtase visionário”. Além disso, como bem observa Hall,14 em seu estudo sobre a argumentação de Paulo na epístola aos gálatas, o apóstolo missionário emprega em seu discurso todos os elementos da retórica apocalíptica da tradição judaica de forma a exortar os leitores de suas comunidades cristãs na região da Galácia. Atos dos Apóstolos corrobora a informação da epístola aos Filipenses sobre a adesão de Paulo ao farisaísmo em 26:5-7, mas acrescenta que ele recebera essa formação na cidade de Jerusalém e, ainda mais, na escola do mestre Gamaliel I, por intermédio de uma suposta declaração autobiográfica do apóstolo em Jerusalém, em 22:3: “Eu sou judeu. Nasci em Tarso, da Cilícia, mas criei-me nesta cidade, educado aos pés de Gamaliel na observância exata da Lei de nossos pais, cheio de zelo por Deus [...]”. Não há maiores razões para se desacreditar a informação de Lucas sobre a formação farisaica de Paulo em Jerusalém.15 Hengel,16 argumentando sempre em favor do relato lucano, levanta a questão de que é desconhecida a existência de escolas farisaicas na Diáspora.17 Realmente, as comunidades judaicas da “dispersão”, restritas pelo meio gentílico que as rodeava, não ofereceriam as necessárias condições para a fiel observância da Torah, já que os gentios eram impuros “como um corpo morto”, na concepção dos judeus. Ao contrário, a terra de Israel, e mais especificamente o seu William D. Davies. “Paul: from the Jewish point of view”. In: William Horbury et alii. The Cambridge History of Judaism, 3: The Early Roman Period. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 686. 14 Robert G. Hall. “Arguing like an Apocalypse: Galatians and an ancient topos outside the Greco-Roman rhetorical Tradition”. In: New Testament Studies 42/3, 1996, p. 452. 15 Já a informação sobre Paulo ter estudado na escola de Gamaliel é de comprovação mais difícil. 16 Hengel The Pre-Christian Paul, p. 33. 17 Murphy-O’Connor, op.cit. p.73, também não acredita que tenham existido escolas farisaicas fora da Palestina. Para ele, só havia fariseus na cidade de Jerusalém. 13

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centro, Jerusalém, era por natureza o espaço da santidade ritual onde as leis de pureza poderiam ser seguidas sem impedimentos de qualquer espécie. De acordo com Stemberger, “a santidade da Terra de Israel é expressa pelo fato de que uma série de mandamentos da Torah está associada diretamente com a terra”.18 De fato, em Jerusalém havia diversas escolas farisaicas.19 Uma evidência indireta, e por isso muito valiosa, de que o centro do movimento farisaico se localizava no Eretz Israel é a passagem de Mt 23:15, na qual Jesus repreende os escribas e fariseus que percorrem ‘o mar e a terra’ em busca de novos convertidos à fé judaica. A passagem denota a perspectiva palestina, sendo os fariseus obrigados a sair do território judaico de modo a conseguir conversos (os prosélitos). Além disso, é sabido que o elo entre os judeus residentes no estrangeiro e a cidade de Jerusalém se fortalecera desde o início da reconstrução do Templo judaico no século anterior, fomentando a prática das peregrinações à cidade. Tudo isso contribuiria para o envio de Paulo por sua família (ou por sua própria iniciativa) para o centro espiritual da religião judaica para um correto aprendizado dentro dos preceitos da Lei. Murphy-O’Connor tem opinião ligeiramente diferente, ao afirmar que “é fácil imaginar o jovem entusiasmado com uma educação grega, vindo de uma família romanizada, desejoso de descobrir por si mesmo o berço de sua religião”.20 Embora ambos os autores afirmem que Paulo tenha completado sua formação em Jerusalém, não são sutis as diferenças entre o argumento de Cit. por Hengel, The Pre-Christian Paul, p. 32. Há especulações de que a presença farisaica era forte também na Galileia em razão das passagens do Evangelho de Marcos 10:2 e, principalmente 12:13, em que se lê: “Enviaram-lhe, então, alguns dos fariseus e dos herodianos para enredá-lo [ Jesus] com alguma palavra”. Como os “herodianos” deviam se tratar de funcionários da administração da tetrarquia sob governo de Herodes Antipas (a Galileia), a passagem constitui um indício forte da existência de fariseus nessa região. Para o caso da Diáspora, no entanto, não existe evidência alguma de sua presença fora da Palestina. 20 Murphy-O’Connor, op. cit. p. 67. 18

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Hengel e aquele de Murphy-O’Connor. Enquanto o primeiro destaca as fortes raízes da família de Paulo no judaísmo palestino, o segundo coloca a ênfase nos aspectos “ocidentais” do missionário (a formação grega na Diáspora e a “romanidade” conferida pelo status da cidadania), caracterizando seu movimento em direção a Jerusalém como uma questão apenas de “curiosidade” em conhecer as suas raízes judaicas.21 Assim, este autor desconsidera At 23:6, em que Lucas caracteriza Paulo como “filho de fariseus”, como simples “ornamento retórico sem valor histórico”. E, quando levantada a questão da afirmação do próprio Paulo, em Gl 1:14, de que fora um judeu zeloso segundo as tradições dos pais – “E como progredia no judaísmo mais do que muitos compatriotas da minha idade, distinguindo-me no zelo pelas tradições dos meus pais” (tōn patrikōn mou paradóseōn), ele argumenta que essa expressão se tratava de um recurso retórico dos fariseus para exaltar o seu estudo da Torah.22 Ainda assim, Paulo utiliza o pronome mou (meus), personalizando o genitivo tōn patrikōn e denotando, assim, o significado de que as tradições pertenciam aos pais dele. De qualquer forma,tantas evidências atestando a relação próxima que Paulo manteve, desde o seu nascimento, com o farisaísmo e com a Palestina tornam o caráter “nitidamente helênico” da personalidade de Paulo defendido por Murphy-O’Connor um tanto quanto exagerado. Nesse sentido, a sequência de Atos continua sendo a alternativa mais plausível, principalmente quando a comparamos à passagem de Fl 3:6, em que Paulo continua a apresentação de sua identidade anterior à conversão: “quanto ao zelo, perseguidor da Esta interpretação “ocidentalizante” do professor de Novo Testamento da École Biblique et Archéologique Française de Jerusalém é uma prévia para o desenvolvimento de seu argumento que entende Paulo desde o início de sua missão apostólica como o apóstolo enviado aos gentios. 22 Murphy-O’Connor exemplifica a utilização desta expressão pelos fariseus por intermédio das passagens de Josefo (que era fariseu): “Os fariseus impuseram ao povo muitas leis da tradição dos pais, não escritas na lei de Moisés” (AJ 13.297) e “Orgulhavamse da interpretação exata da lei dos pais” (AJ 17.41, grifos do autor). 21

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Igreja, [katà zēlos diōkōn tēn ekklēsían]; quanto à justiça que há na Lei ‘de meu povo’, irrepreensível [katà dikaiosúnēn tēn en nómō genómenos ámemptos]”.

Em suma, Paulo estudara em Jerusalém e se aprimorara na observância e interpretação dos detalhes da lei judaica segundo a vertente farisaica. Assim, havia progredido mais que seus pares “na justiça que há na Lei”, tornando-se “irrepreensível”. Observem como os dois trechos estão intimamente ligados: a perseguição à igreja cristã promovida por Paulo depende diretamente de seu seguimento irrepreensível da lei judaica.23 Isso quer dizer que certas práticas do grupo cristão, e não somente as suas assertivas cristológicas, desde muito cedo fugiram à regra ditada pela lei de Moisés. O fariseu partira, então, de Jerusalém para perseguir os judeus, segundo ele, desviantes da Lei. Paulo era um judeu originário da Cilícia que, ao contrário de desenvolver uma identidade judaica em termos dos aspectos comuns entre o seu judaísmo e a atmosfera do pensamento filosófico helenístico que o cercava, optou por construir a sua identidade judaica baseada na ênfase às características particulares dos judeus: ele abandonou a sua cidade natal e foi estudar em Jerusalém e se tornar fariseu. Como os estudos de etnicidade recentes têm averiguado, um meio favorável contribui para a maior integração dos membros de um grupo étnico a esse meio e, em contrapartida, um meio desfavorável, hostil, provoca nos membros do grupo étnico em questão a reação da autopreservação por meio do reforço da identidade étnica. A trajetória inicial da figura de Paulo, dentro do universo judaico, é aqui tomada de maneira a levantar a hipótese de que os judeus da província romana

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Hengel, The Pré-Christian Paul, p. 65, também compreende a perseguição de Paulo aos cristãos como fruto de seu zelo criterioso pelo seguimento da Lei.

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da Cilícia vivessem num contexto social desfavorável, caracterizado pela hostilidade por parte dos gentios que os cercavam. A questão do separatismo judaico suscitada pela crença dos judeus na eleição, única e exclusivamente, de seu povo por Iahweh obrigara Roma a formular uma política específica para o caso desse grupo dentro de seu território. A decisão foi a adoção, na segunda metade do séc. I a. C., da tolerância reforçada por medidas de proteção aos judeus contra a hostilidade gentílica, consequente a tal separatismo. A tolerância romana para com os judeus se traduziu na permissão da reprodução das práticas religiosas judaicas mais importantes e na declaração da santidade de suas escrituras.24 Mais importante ainda foi a isenção dos judeus em relação à obrigatoriedade do recrutamento militar e em relação ao culto aos deuses das cidades onde residiam. Todavia, a concessão de tais privilégios e de proteção especial aos judeus por parte de Roma, ao invés de reprimir o sentimento antijudaico geral, só fez aumentá-lo. Não há trabalhos específicos sobre os judeus da província da Cilícia. Ainda assim, essa província estava localizada no quadro maior da Ásia Menor. A Ásia Menor, como um todo, era um território dominado pelos cultos aos deuses protetores das diferentes cidades. Os judeus, como observado anteriormente, estavam isentos de tais cultos, algo que irritava bastante os gentios. Trebilco,25 em seu estudo sobre as comunidades judaicas da Ásia Menor, aponta que os privilégios que os judeus pediram e receberam de Roma permitiram a eles “manter a sua ‘judaicidade’ em face à hostilidade local”. Trebilco observa, num panorama geral Mary E. Smallwood. “The Diaspora in the Roman Period before CE 70”. In: William Horbury et alii. The Cambridge History of Judaism, 3: The Early Roman Period. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p.168-191. 25 Paul Trebilco. Jewish Communities in Asia Minor. Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 34. 24

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da identidade judaica manifestada pelos judeus da Ásia Menor, uma série de características que reforçam essa identidade em termos das suas particularidades propriamente judaicas. Assim, ele lista: tais judeus estavam comprometidos “com a sinagoga, com o imposto do Templo, com o Templo e o seu culto, com o culto ao sábado, com as leis de comida, enfim, com a vivência de acordo com as suas próprias tradições”.26 Diante do panorama analisado por Trebilco, a trajetória inicial de Paulo dentro do judaísmo – com o seu abandono da terra natal e a escolha por seguir o estudo do farisaísmo em Jerusalém – parece corroborar o contexto de um compromisso muito forte dos judeus da Ásia Menor para com as crenças, instituições e práticas de seu povo e, sobretudo, para com a terra santa. Em vista de a trajetória inicial de Paulo no judaísmo se encaixar perfeitamente nesse contexto, poderíamos “dar asas” à hipótese e perguntar: será que, entre as razões que teriam levado Paulo a escolher a cidade de Jerusalém como novo lar, a tradição farisaica como modo de vida e um zelo enorme pela Lei que o fez mesmo perseguir cristãos que abdicavam dessa Lei em nome de seu novo culto, estaria a hostilidade sempre presente dos gentios na cidade de Tarso? Essa pergunta, embora pertinente diante das evidências analisadas, deve ficar sem resposta porque não existem maiores informações sobre a vida pré-cristã de Paulo. Lucas narra o episódio da conversão de Paulo três vezes (em At 9:3-19a; 22:3-16; 26:4-18), e embora haja incongruências em aspectos menores entre os três relatos,27 essa repetição deixa 26 27

Id. ibid. No primeiro relato, os companheiros de Paulo ouvem a voz e aparentemente não veem a luz porque não ficam cegos. Já no segundo relato, os companheiros de Paulo veem a luz, mas não ouvem a voz; e no terceiro, todos caem por terra em consequência da forte luz. Além disso, no último relato, Cristo fala mais do que nos dois primeiros. Ele diz a Paulo “é duro para ti recalcitrar contra o aguilhão” (At 26:15), além de afirmar a ele que o motivo de sua aparição é enviá-lo às nações gentias para convertê-las das trevas à luz.

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impressa uma imagem na mente daqueles que leem o livro difícil de dissociar dos esparsos e sucintos comentários que o próprio Paulo faz a respeito de sua experiência. É certo que Lucas elabora e enriquece o texto, porém ele trabalha uma tradição que remonta obviamente ao que o próprio apóstolo contara às suas comunidades. Nas epístolas que conhecemos, entretanto, não encontramos as detalhadas descrições que Paulo pode ter feito de sua experiência a seus irmãos de fé (talvez pela dificuldade que ele tenha em traduzi-la em palavras). As pequenas menções ao momento da conversão estão em 1 Cor 9:1 e 15:8 e em Gl 1:15. Alguns autores acreditam que Paulo se refere à conversão ainda em outras passagens (como Gl 1:12; Fl 3:5 ss; e mesmo 1 Cor 1:17; 2 Cor 4:6 e 12:22), porém não se encontram indícios do evento em questão em tais trechos. Em 1 Cor 9:1, Paulo é sucinto e elabora a frase em forma de pergunta, “acaso não vi Jesus, nosso Senhor?” Já em 15:8, ele fornece mais informações, ao dizer que Cristo, “por último, apareceu também a mim, como a um abortivo” [éschaton dè pántōn hōspereì tō ektrōmati ōfthē kamoí]. Paulo se compara a um aborto quando viu o Cristo, ou melhor, quando Cristo apareceu a ele. Essa comparação é denotada pela construção de aoristo passivo na frase, onde tanto kamoí (por mim) quanto o dativo tō ektrōmati (o aborto) são agentes da passiva. A metáfora do aborto também é utilizada em Gl 1:15-16a, em que ele afirma: “quando aquele [o Deus] que me separou do ventre de minha mãe e me chamou por causa de sua graça, julgou ser bom revelar seu filho em mim”28 [Hóte dè eudókēsen [ho Theòs] ho aforísas me ek koilías mētrós mou kaì kalésas dià tēs cháritos auto apokalúpsai tòn huiòn auto en emoí].

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Tradução minha. Mary E. Smallwood. “The Diaspora in the Roman Period before CE 70” in: William Horbury et alii. The Cambridge History of Judaism, 3: The Early Roman Period. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 168-191.

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A Bíblia de Jerusalém comenta que a comparação ao aborto é uma “alusão ao caráter anormal, violento, ‘cirúrgico’ da vocação de Paulo”.29 Esse aspecto de uma aparição considerada traumática é evidente na medida em que observamos a mudança radical que Paulo confere a sua trajetória, partindo da perseguição à igreja cristã para juntar-se “de corpo e alma” a ela. Já a expressão “do ventre de minha mãe”, Paulo retira de um contexto que conhece bem, o das Escrituras. Ele busca as palavras dos profetas Isaías e Jeremias em Is 49:1-6 (“desde o ventre de minha mãe, repetiu para si o meu nome [...] destinei-te a seres luz das nações”) e Jr 1:5 (“Antes mesmo de te formar no ventre materno, antes de saíres do teu ventre [...]; eu te consagrei; eu te constituí profeta para as nações”).30 A nosso ver, no momento em que a carta é redigida, a compreensão de Paulo acerca de sua conversão é a de que ela fora obra de um plano de Deus elaborado muito antes, na realidade, desde sempre. Muito já foi discutido sobre o termo “conversão” e sobre como ele não se aplica ao que acontece com Paulo em sua visão do Cristo ressuscitado. De fato, para os judeus do período do Segundo Templo, a conversão era aquela de um gentio a sua religião. Assim, ela correspondia ao resgate desses pagãos de sua vida de imoralidade e idolatria para uma vida de virtude e temor a Deus. Esse conceito não se aplica a Paulo. Nem tampouco é correta a ideia de que Paulo se converteu de uma religião para outra. Os cristãos no séc. I, anteriores a Paulo, se enxergavam como judeus, e ele próprio nunca se entendeu como pertencente a outra religião. Segal31 pensa exatamente dessa forma, porém prefere sustentar a ideia de que Paulo é um converso na medida em que a sua visão do Cristo Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 2168, nota j. Murphy-O’Connor, op.cit. p.93. 31 Alan F. Segal. Paul the Convert. The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee. New Haven/London: Yale University Press, 1990, p. 284. 29

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ressuscitado o faz “reavaliar o seu judaísmo, assim criando uma nova compreensão da missão de Jesus”,32 a ponto de tornar-se um apóstata.33 O autor entende a conversão do fariseu perseguidor da igreja como uma visão extática, típica das correntes místicas e apocalípticas que permeavam o universo judaico do séc. I d. C. Boyarin, ao contrário, não acredita que Paulo seja um apóstata, mas na realidade “um judeu radical” engajado em um projeto teológico dentro do próprio judaísmo de crítica e redefinição do povo de Deus. Assim, para ele não há conversão, embora haja mudança. Já para Hengel e Schwemer, a mudança radical de atitude de Paulo, enquanto um homem que zelava pelo rigoroso seguimento da lei mosaica para sua pregação de Jesus como o Messias para judeus e gentios, só pode ser explicada por meio do fenômeno sobrenatural da aparição de Jesus. Barbaglio e Davies, por sua vez, atentam corretamente para o fato de que Paulo depende da literatura escatológico-apocalíptica judaica, característica do fim do período do Segundo Templo. Esta era caracterizada principalmente pela esperança na ressurreição final e pela concepção dualista de dois mundos. De acordo com tal literatura, o advento do Messias marcaria o fim do tempo mundano e o julgamento final onde os justos ganhariam o “reino de Deus” e os ímpios pereceriam. Num olhar mais próximo e atento às ideias que Paulo veicula em suas cartas, o que se mostra evidente, a meu ver (a despeito das especulações dos teólogos sobre a natureza da experiência e sobre a veracidade da aparição), é a forte consciência – derivada da cosmovisão hebraico-judaica da qual o apóstolo obviamente partilha sendo um judeu fariseu – da interferência de Deus na Idem, p. 71. Murphy-O’Connor concorda com ele – op.cit., p. 85, n.2. John M. G. Barclay (Paul among Diaspora Jews: anomaly or apostate? In: Journal for the Study of the New Testament 60, 1995, p.118) também acredita na ideia de que Paulo foi interpretado pelos judeus como um apóstata.

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história humana. A conversão de Paulo ao movimento do “Caminho” é necessariamente a crença que nele brota, após o evento que ele se nega a descrever com detalhes, de Jesus como o Messias, o Cristo ressuscitado, ou seja, a realização das profecias de Israel. A imagem que Paulo nos oferece em suas epístolas (Gl 1:13-14; Fl 3:5-6; 1 Cor 15:9), em concordância com o relato de At (9:1-2) é a de que seu zelo na observância da lei o fizera perseguir muitos judeus cristianizados no período que antecedeu o seu “contato” com o Cristo ressuscitado. Entretanto, esse judeu de formação farisaica, ao enxergar na figura de Jesus o Messias, promoveu uma progressiva desvinculação do movimento cristão em relação a suas raízes judaicas (de respeito aos preceitos da lei mosaica). Ao professar a fé cristã aos não judeus, ele rompe com sua tradição farisaica e acaba por romper outro elo, ainda maior: aquele que mantém suas comunidades cristãs dentro do universo judaico. O componente inovador que Paulo traz ao movimento cristão, entretanto, não é sua missão para os gentios; na realidade, é a bandeira que o missionário levanta em favor da salvação dos homens por meio da fé no Senhor Jesus Cristo e em oposição aos trabalhos da lei judaica. A negação da circuncisão e das leis dietéticas judaicas distancia as comunidades paulinas não só do culto judaico, mas também das comunidades judaico-cristãs dentro da Palestina, que não viviam a realidade de ter uma grande parcela de seus membros composta por não judeus. Collins34 afirma que a rejeição veemente de Paulo da circuncisão deriva-se simplesmente do “fato de que ele pregou uma nova criação na qual não havia nem judeu nem grego, circuncisão ou incircuncisão”, conforme exposto na epístola aos gálatas. De forma diversa, acredito que os motivos para esse repúdio foram outros, tendo em vista a trajetória missionária de 34

John J. Collins. “A symbol of otherness: circumcision and salvation in the First Century”. In: Seers, Sibyls and Sages in Hellenistic-Roman Judaism. Leiden/New York: Brill, 1997, p. 234.

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Paulo descrita por At, as evidências deixadas por ele em suas epístolas e o contexto histórico dentro qual ele desenvolveu sua trajetória missionária: as províncias romanas de fala grega a nordeste do mar Mediterrâneo. Retornemos, então, àquele questionamento, já muitas vezes levantado na historiografia: a trajetória missionária de Paulo, peculiar como ela se caracterizou, tem raízes em sua vida anterior? Isto é, as decisões que ele tomou ao longo de sua vida cristã se explicam por meio de uma influência do “judaísmo helenístico” do qual ele fazia parte? De forma a chegarmos a uma conclusão, analisemos Paulo em comparação com outro representante do chamado “judaísmo helenístico” do séc. I d.C.: Fílon de Alexandria. Tanto Paulo quanto Fílon falavam o grego e eram oriundos de importantes cidades helenizadas do Mediterrâneo oriental: Tarso e Alexandria. Além disso, ambos declararam que a circuncisão era um elemento sem importância. Paulo afirmava que para adentrar a comunidade dos cristãos bastava a fé em Jesus como o Messias, o Cristo ressuscitado, e que a circuncisão verdadeira deveria ser aquela “do coração, segundo o espírito” (metáfora que ele utiliza em Romanos 2:29 para relacionar a tradição de seus ancestrais ao pensamento cristão que ele desenvolve). Já Fílon, num contexto diverso, acerca dos prosélitos (gentios convertidos ao judaísmo, conversão que se fazia através da circuncisão e talvez do batismo ritual) afirma, em Perguntas e Respostas sobre Êxodo II, 2, que “o que faz um prosélito não é a circuncisão, já que os israelitas não foram circuncidados até que eles começassem a vagar no deserto; o que interessa de fato é voltar-se para Deus para se chegar à salvação.”35 Realmente, a semelhança do pensamento de ambos, guardados os contextos específicos das declarações é grande. Entretanto, Tradução de Martin Goodman. “Jewish proselytizing in the First Century”. In: Judith Lieu et al. The Jews among Pagans and Christians In the Roman Empire. London e New York: Routledge, 1992, p. 63.

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Goodman36 ressalta o fato de que Fílon é extremamente claro (por exemplo, em De Migratione Abrahami 89-93) ao afirmar que não acredita que todos os judeus homens não devam ser circuncidados. Ele quer dizer que acredita que todos (judeus ou não judeus) têm que fazer ou acreditar em algo específico de modo a serem judeus e piedosos. Paulo, similarmente, tem um pré-requisito para aqueles que adentram suas ekklesiai gentílicas, nomeadamente, a fé no Cristo. De acordo com Goodman, ambos sistemas são “universalistas”, pois ambos adotam critérios para a entrada na comunidade, que é potencialmente universalista; a diferença reside nos seus diferentes critérios de entrada. Segundo coloca Barclay,37 “a tendência em se criar paralelos em pensamento [de ambos os autores] tem sido exagerada” na medida em que Paulo não faz uma leitura das escrituras judaicas tal como faz Fílon, ou seja, utilizando a alegoria como meio para interpretar a história de Israel. E nem Fílon prega a integração social defendida por Paulo para suas comunidades. Muito ao contrário, Fílon está profundamente comprometido com sua comunidade judaica em Alexandria e é um grande defensor das escrituras judaicas, acusando outros judeus de terem interpretado alegoricamente demais os preceitos da Lei (como a circuncisão) a ponto de não mais segui-los. Como se pode observar, os paralelos entre o pensamento de ambos judeus residentes na Diáspora param na questão da reprodução das leis rituais. Fílon as disfarça num primeiro momento, porém as afirma na prática. Paulo, ao contrário, as nega. Quando constatamos que os aspectos fundamentais do parentesco e da reprodução das práticas religiosas ancestrais eram o que mantinha a identidade judaica para a maioria dos judeus no Mediterrâneo, percebemos o quanto Paulo foi um judeu diferente dos demais. Ele leva ao extremo a sua pregação da integração 36 37

Comunicação pessoal em e-mail datado de julho de 2001. Barclay, “Paul among Diaspora Jews: anomaly or apostate?”, p. 91.

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social entre judeus e gentios nos aspectos materiais (em relação à negação da circuncisão, das leis sobre comida, etc); mas, por outro lado, não revela alto nível de aculturação em termos educacionais, nem procura acomodar a tradição judaica ao sistema de valores presente no meio cultural helênico. Paulo não relê a tradição de seus pais através de “olhos helenísticos”, como fazem os judeus alegorizadores criticados por Fílon. Muito ao contrário, ele mantém sua visão de mundo balizada pelas categorias judaicas escriturais, sustentando a noção de que o mundo não judaico, tal como ele é, corresponde ao lugar das trevas, do vício e da idolatria e que suas comunidades cristãs são, em sentido inverso, o verdadeiro lugar da salvação. Dessa forma, “muitas foram as tentativas sem sucesso de leitura da antropologia tão idiossincrática de Paulo como produto da helenização”, nas palavras de Barclay.38 O universalismo cultural de Paulo se mostra um universalismo de caráter negativo na medida em que ele não submete as tradições judaicas às categorias morais e teológicas do meio helênico, mas todas as culturas contemporâneas – judaica ou gentílica – com uma crítica que evidencia sua comum escravidão em relação ao pecado. Nesse sentido, o pensamento de Paulo “não representa uma fusão cultural com os valores helenísticos,39 mas uma total reavaliação tanto da tradição judaica quanto da helenística a partir de um novo ponto, criado por sua cristologia”,40 resultado de sua crença em Jesus como o Messias de Israel e das nações. O comportamento e a teologia elaborados pelo Paulo cristão só encontram explicação em sua vida pregressa, ou seja, em sua condição de judeu oriundo da Diáspora helênica em um único Idem, p. 108. Se os autores posteriores contribuíram para essa fusão e, mais tarde, tudo foi atribuído à figura de Paulo, isso é outra história. 40 Barclay, “Paul among Diaspora Jews: anomaly or apostate?”, p. 109. 38 39

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aspecto. Esse aspecto, amplamente partilhado entre os judeus do período do Segundo Templo, era aquele que revelava seu caráter universalizante: sabemos que Paulo pregou a muitos prosélitos e tementes a Deus (gentios simpatizantes do culto judaico) nas sinagogas por onde passou. Os tementes a Deus, embora gentios não convertidos à fé judaica como os prosélitos, haviam voltado seus olhos para o Deus único e verdadeiro, sendo, portanto, aos olhos dos judeus contemporâneos, pessoas melhores que haviam galgado alguns degraus em direção à salvação. Assim, também aos olhos de Paulo, os tementes a Deus que aceitavam a Boa Nova por ele pregada eram dignos do “reino de Deus” que se instauraria quando da segunda vinda do Cristo sobre a Terra. No entanto, Paulo ultrapassa essa noção partilhada pelos judeus do séc. I d.C. ao afirmar que “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo” em Gl 3:28 e ao repudiar com veemência o preceito da circuncisão para os seus discípulos gentios e as leis de comida e defender a total integração entre judeus e gentios no interior de suas comunidades. Não há, por isso, razão para procurar as raízes da trajetória paulina em seu passado como judeu, ao mesmo tempo, helenista e fariseu, ou, de forma genérica, na interação entre o judaísmo e a cultura helênica, processo que ele teria vivenciado em sua juventude e segundo o qual ele teria conformado sua pregação cristã posterior. Os autores que seguem essa linha de análise acreditam que o judaísmo helenístico seja o pano de fundo para o cristianismo primitivo, sendo a literatura judaica helenística abordada de maneira a se encontrar as raízes do pensamento cristão do séc. I. Por isso, muito naturalmente se levanta o pensamento de Fílon (um judeu que revela alto nível de aculturação helênica) como precursor do pensamento de Paulo. Entretanto, já vimos até onde esse paralelo é passível de ser estabelecido e a partir de onde ele não funciona mais. 98

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Onde se deve procurar a explicação para a ação missionária tão destacada e para o pensamento teológico tão diferenciado que Paulo desenvolve em sua trajetória cristã? De modo a responder a essa pergunta, alguns pontos principais devem ser estabelecidos: é sabido que Paulo pregou a judeus nas sinagogas e que em muitos lugares sua mensagem foi a tal ponto repudiada pelos judeus que a consequência foi, em cinco vezes, a punição de Paulo pelo açoite (cf. 2 Cor 11:24). Sabemos também que Paulo converteu vários tementes a Deus; quanto a verdadeiros gentios, não se tem muita informação. Sabe-se, por fim, que Paulo tomou para si o evangelho dos incircuncisos, num gesto de desistência em relação à evangelização dos judeus. E, através de suas epístolas, vê-se aparecer uma teologia em que fica marcada a rejeição dos principais preceitos da lei judaica. Como compreender as atitudes de Paulo? É preciso, para isso, atentar para as categorias de pensamento judaicas das quais Paulo partilhava e, mais do que nunca, se faz necessário retornar ao momento de sua conversão. Pelo fenômeno da conversão, Paulo passou a enxergar toda a sua trajetória como um caminho pontilhado por revelações de Deus. Essa postura remete a suas categorias da cosmovisão hebraico-judaica (pela qual Deus se faz presente na história dos homens por intermédio de sinais), mas, sobretudo, para o momento de sua conversão, que ele compreendeu, de forma apocalíptica, ser a maior revelação de Deus (por intermédio do Cristo) a sua pessoa. Passando a história a ser definitivamente interpretada como uma perene manifestação dos sinais divinos, Paulo obedece às circunstâncias que a vida impõe a sua pregação, seguindo aquilo que ele entende ser o “plano de Deus”. Em função de seu contato com o Cristo, Paulo passa a crer na ressurreição de Jesus e nas implicações escatológicas que dela se depreendem: o reino de Deus está próximo. A sua vivência 99

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na comunidade de Antioquia o ensina a proclamar de forma sistemática a “boa nova” do Cristo ressuscitado. A partir daí, a pregação de Paulo se volta apenas para os gentios quando os judeus nas cidades da Diáspora por onde ele passa rejeitam a Boa Nova por ele aclamada. Deve ser assim compreendida a afirmação do missionário em Rm 10:2: “Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, [os judeus] não se sujeitaram à justiça de Deus. Porque a finalidade da Lei é Cristo para a justificação de todo o que crê”. Num segundo momento, quando a circuncisão dos gentios (que nunca havia sido uma imposição) passa a ser levantada pelos cristãos judaizantes, Paulo a nega veementemente. Ele percebe que ela é um obstáculo para a adesão de um número maior de pessoas à fé no Cristo. De igual maneira, quando as leis de comida são impostas por Tiago, o apóstolo não pode aceitá-las e ver a comunidade de irmãos se cindir em duas partes. E, por fim, a interpretação da Lei deve ser feita conforme os desígnios que Deus revela a ele no curso de sua vida: o fim está próximo e é da vontade de Deus que os gentios adentrem a comunidade dos eleitos antes que os judeus. Estes últimos só se voltarão para o verdadeiro caminho que Deus reservou aos homens uma vez enciumados. Gonzáles-Ruiz sintetiza numa frase aquilo que é, ao mesmo tempo, o sentido subjacente e a explicação para a trajetória paulina: “Paulo foi sempre um discípulo fiel da História, através da qual ia descobrindo, cada dia com maior nitidez, a face de Deus manifestada em Cristo”.41

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José M. González-Ruiz. O Evangelho de Paulo. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 5.

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P aulo apóstolo nos estudos de religião: a importância de sua experiência visionária apocalíptica

Jonas Machado1

Um dos personagens mais importantes para o estudo das origens do cristianismo é Paulo, o fariseu apóstata2 e apóstolo póstumo3 de Jesus de Nazaré. Sua importância, entre outras coisas, está em que ele deixou um legado literário inigualável de um só Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, mestre em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (FTBSP) e professor de Exegese e Hermenêutica da Literatura do Cristianismo Primitivo na FTBSP. 2 Assim ele é descrito no subtítulo do livro do destacado professor judeu Alan F. Segal. Paul The Convert: The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee. New Haven / London: Yale University Press, 1990. Segal faz parte de uma nova onda de estudos judaicos sobre Paulo que, ao contrário do passado no qual este apóstolo era visto como traidor, reclama o direito de reivindicar Paulo como pertencente à vasta tradição judaica, mesmo que tenha ele sido um radical ou mesmo herege (Daniel R. Langton. “The myth of the ‘traditional view of Paul’ and the role of the apostle in modern Jewish-Christian polemics”. In: Journal for the Study of the New Testament 28 (1), 2005, p.69-104; Daniel R. Langton. “Modern Jewish identity and the apostle Paul: Pauline studies as an intra-Jewish ideological battleground”. In: Journal for the Study of the New Testament 28 (2), 2005, p. 217-258). 3 Ele afirma que seu apostolado é oriundo de uma revelação do Jesus ressuscitado (1 Cor 15:8; Gl 1:15-16). Não há qualquer evidência de que Paulo tenha conhecido pessoalmente ou mesmo visto Jesus de Nazaré. É bem famosa a interpretação de que 2 Co 5:16 seria uma declaração paulina de desinteresse pelo Jesus histórico, mas tal 1

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autor conhecido e aceito como produção autêntica do primeiro séc. EC.4 Isto é, estamos diante de textos que foram escritos enquanto a fé cristã dava seus primeiros passos. Sua relevância também está em que tal produção literária se tornou canônica e de grande influência no mundo cristão ocidental posterior, mesmo que não saibamos com certeza o quanto foi influente nos primeiros anos da religião cristã. Vale dizer também que a grandeza paulina não pode ser considerada dele propriamente, mas, a rigor, das leituras de suas crenças expressas em suas cartas que foram feitas no decorrer da história. Dentre elas se destacam a de Agostinho de Hipona e a Protestante.5 Nesse sentido, falar de Paulo é falar da “graça” e da “justificação pela fé” como elementos tidos como centrais em sua teologia, concepções estas ligadas a Agostinho, aos reformadores Martinho Lutero e João Calvino e à controvérsia histórica entre católicos e protestantes. Embora ainda vigorosa em abordagens recentes, tal centralidade desses temas vem sendo questionada nos últimos anos. A proposta alternativa de ver como centro o misticismo paulino do “estar em Cristo” em tom mais helênico (Deissmann)6 ou em termos de escatologia judaica (Schweitzer) é assunto que está sendo revisto e vem sendo pintado com novas cores – notoriamente o grande interesse em entender melhor sua experiência religiosa em exegese é questionável ( James D. G. Dunn. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003 (Biblioteca de Estudos Bíblicos, p. 225). 4 De modo geral, há concordância em que Romanos, 1 e 2 Cor, Gálatas, Filipenses, 1 Ts e Filemon são cartas autênticas de Paulo. A erudição está dividida sobre o caso de Efésios, Colossenses e 2 Ts. Há também um consenso da maioria de que as chamadas cartas pastorais (1 e 2 Tm e Tito) são pseudônimas. Assim, nesse conjunto conhecido como corpus paulinum há um grande legado reconhecidamente autêntico, além do restante que se considera pelo menos testemunho de discípulos. Há uma discussão útil e recente em Jerome Murphy-O’Connor. Paulo: biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000, p. 117 ss. 5 Há um sumário útil em Herman Ridderbos. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 11-40. 6 Adolf Deissman. Paul: a Study in Social and Religious History. New York: Harper & Row Publishers, 1957.

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contraste com a tendência tradicional de buscar um “centro” em termos de teologia paulina. Neste capítulo pretendemos falar de Paulo de uma perspectiva que não é de todo inédita, mas que vem ganhando espaço nas pesquisas sobre a religião desse apóstolo e destoando das abordagens tradicionais. Queremos falar do Paulo apocalíptico, místico e visionário e demonstrar como esses aspectos caracterizaram sua vida e experiência religiosa. Mas não sem antes discorrer um pouco sobre sua relação com as origens do cristianismo. Paulo e as origens do cristianismo Falar das origens é invocar algo geralmente oculto e, ao mesmo tempo, importante. Oculto porque, no caso do cristianismo, as informações são escassas. Importante porque os inícios geralmente contêm a lei que rege o futuro.7 Paulo foi o segundo personagem principal das origens do cristianismo. Do ponto de vista literário, o primeiro. Deixou um legado inigualável. Suas epístolas tidas como autênticas constituem a produção literária mais extensa aceita pela grande maioria como de um só autor, representando assim, fontes de primeira mão ligadas às origens das comunidades cristãs. Nesse sentido, é perdoável o exagero de Rowland, que afirma não ser possível dizer muito do cristianismo antigo fora de Paulo.8 Mas não só do emergente cristianismo. Na verdade o assunto está inserido no campo do judaísmo e suas várias vertentes. Alan Segal afirma que o Novo Testamento, mesmo tendencioso, é uma das mais esplêndidas fontes para o estudo do judaísmo do



­­­­­­­­­­­­Ernst Käsemann. “Os inícios da teologia cristã” in: Apocalipsismo, 1983, p. 231. Christopher C. Rowland. Christian Origins: The Setting and Character of the Most Important Messianic Sect of Judaism. Wiltshire: Cromwell Press, 2002, p.195.

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primeiro século.9 Para ele, Paulo, o fariseu que adotou uma nova, apocalíptica, mística e herética forma de judaísmo entre seus compatriotas, é o principal testemunho sobre questões que afetavam a vida religiosa de judeus do primeiro século.10 Apesar de sua inegável grandeza literária, não há certeza de tal grandeza de Paulo como indivíduo religioso em seu tempo. Segundo Segal,11 a surpreendente independência dos evangelhos (geralmente considerados um pouco mais tardios) em relação a Paulo é evidência de que ele não era tão influente quanto se tornou posteriormente. Para Stendahl, apesar de Paulo ser citado pelos primeiros pais cristãos, as evidências são de que representou muito pouco para o pensamento da igreja nos primeiros trezentos e cinquenta anos.12 Especialmente a justificação pela fé, conceito tão importante no Ocidente a partir de Agostinho e depois na Reforma, ficou esquecida. No entanto, essas considerações de Stendahl dão a impressão de que, na verdade, a grandeza paulina da perspectiva principalmente protestante da justificação pela fé é que não era tão conhecida. Agostinho de Hipona foi, de fato, apenas um marco na história da igreja, que lançou luz sobre o tema, posteriormente retomado na Reforma Protestante. O procedimento típico de um discípulo que cita o que o mestre disse em vida não caracteriza Paulo. Não há evidências de que ele tenha falado com Jesus de Nazaré, o tenha conhecido pessoalmente ou mesmo que o tenha visto. Daí, a relação de Paulo apóstolo com Jesus tem sido motivo de grande debate.

Alan F. Segal. The Other Judaisms of Late Antiquity. Atlanta: Scholars Press, 1987, p. xvi-xvii (Brown Judaic Studies 127). 10 Cf. Segal. Paul The Convert, p. xii exvi. 11 Alan F. Segal. Life After Death: A History of the Afterlife in the Religions of the West. New York: Doubledy, 2004, p. 400. 12 Krister Stendahl. Paul among Jews and Gentiles. Philadelphia: Fortress Press, 1986, p. 83. 9

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Com um ponto de vista mais conservador, Wenham concluiu que havia uma continuidade temática entre Jesus e Paulo, ainda que este tivesse uma interpretação própria da tradição de Jesus no contexto das igrejas que fundou ou com as quais se relacionou.13 Wright, por sua vez, em meio aos alertas, em tom conservador, para que não se considere apressadamente um antagonismo entre Jesus e Paulo, observou: “Ambos, em outras palavras, respiravam o ar da escatologia judaica”.14 Segundo Woodruff, o mínimo que se deve admitir é que de Jesus a Paulo certamente há algo novo. Isto é, há elementos em Paulo que não são encontradiços nos testemunhos dos evangelhos a respeito de Jesus. Mas como escreveu o professor Woodruff, isto é o mínimo.15 É bem conhecida a crítica dura de Nietzsche de que falar de cristianismo é um mal entendido porque só houve um cristão e ele morreu na cruz. Para ele, Paulo foi um dysangelist (disangelista), dono de uma arrogância rabínica que corrompeu os ensinos de Jesus.16 Essa crítica radical, influente até hoje, como no trabalho de Silva, serve para ilustrar que não é possível se contentar com o Paulo da história da Igreja, como o da Reforma Protestante, por exemplo. Além do fato de que certos temas teológicos já estão historicamente

David Wenham. Paul Follower of Jesus or Founder of Christianity? Grand Rapids / Cambridge: Eerdmans, 1995, p. 408-410. 14 Nicholas T. Wright. What Saint Paul Really Said: Was Paul of Tarsus the Real Founder of Christianity? Grand Rapids / Cincinnati: Eerdmans / Forward Movement Publications, 1997, p. 179. 15 Archibald M. Woodruff. “A Igreja Pré-Paulina”. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana 22, 1995, p. 73. 16 Friedrich Nietzsche. “The first Christian (1880)” e “The Jewish dysangelist (1888)”. In: Wayne A. Meeks (ed.). The Writings of St. Paul. New York: W. W. Norton & Company. INC, 1972, p. 291 e 294 (A Norton Critical Edition).

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vinculados a esse personagem como supostamente centrais, ele é sempre visto como um grande herói do lado da verdade.17 O pesquisador judeu Daniel Boyarin é um crítico recente dessa tendência. Ele procura demonstrar como a obra paulina tem sido interpretada para sustentar ataques contra a religião judaica. É o caso particular, segundo ele, da leitura luterana reformada de Paulo.18 Também é necessário considerar,conforme Margaret MacDonald, que a produção exegética geralmente tem o pressuposto cristão canônico que põe Paulo no centro.19 Isto é, a exegese pressupõe que a “verdade” está do lado de Paulo,20 em contraste com as crenças de seus interlocutores, o que, de partida, dificulta o entendimento do universo religioso mais amplo que envolveu as comunidades paulinas. Por outro lado, Segal é um estudioso judeu que, embora em desacordo com Paulo, acredita na autenticidade da experiência paulina de conversão em termos de misticismo judaico.21 Para ele, Paulo e o Novo Testamento (e, portanto, as origens do

Rodrigo da Silva. “Cristianismo e corrupção paulina segundo a interpretação de Friedrich Nietzsche”. Revista de Iniciação Científica da FFC 4 (3), 2004, p. 85. 18 Daniel Boyarin. A Radical Jew: Paul and the Politics of Identity. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1994, p.41 ss. 19 Margaret Y. MacDonald. “The shifting centre: ideology and the interpretation of 1 Corinthians”. In: Edward Adams e David G. Horrell (Ed.). Christianity at Corinth: the Quest for the Pauline Church. Louisville / London: Westminster John Knox Press, 2004, p. 279-281. 20 Num importante trabalho, Seyoon Kim (The Origin of Paul’s Gospel. Grand Rapids: Eerdmans, 1982. p. 2) defensor de que a origem do evangelho paulino está na revelação de Jesus Cristo a ele na estrada de Damasco, afirma: “Estamos convencidos de que quando tivermos respondido a questão [da origem do evangelho paulino] depois de ouvir cuidadosamente o próprio testemunho de Paulo, seremos capazes de entender muito melhor a verdade teológica que Paulo expõe em suas cartas – que certamente é a preocupação de Barth e deveria ser a preocupação de todo exegeta sincero da Escritura”. A questão aqui é que, influenciado por Karl Barth, Kim relaciona a sinceridade do exegeta e o correto entendimento com descobrir a “verdade teológica” que Paulo expõe. Mas é preciso reconhecer que a sinceridade do exegeta e a precisão de seu trabalho não dependem de este concordar com Paulo. 21 Segal, Paul The Convert, p.xiii-xvi. 17

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cristianismo) estão ligados ao que chama de “um conflito familiar intensamente agravado”. Assim, Paulo é uma fonte singular para o estudo das origens do cristianismo, mas os importantes dados fornecidos por ele precisam ser garimpados para se distinguir entre o uso que fez de ensinos judaicos e cristãos e suas inovações.22 Outro ponto a considerar é que o Paulo da história da Igreja tende a ser mais “estático” que “extático”. Isto é, sua teologia geralmente foi abordada como sendo algo sistematizado e acabado. Segundo Stendahl, mais uma vez isto se deve à abordagem de Agostinho de Hipona, que aplicou o pensamento de Paulo sobre a lei e a justificação como solução para o dilema humano de modo mais geral e atemporal.23 Como observou Achtemeier, o problema básico para alguém achar uma teologia de Paulo é que não vai encontrar um compêndio fruto de reflexão teológica. Pelo contrário, suas cartas buscam solução de problemas variados oriundos de diversas complexidades que estavam ocorrendo nas igrejas. São considerações de como o seu evangelho interage com o mundo de seus leitores e como estes devem se comportar frente a isso.24 Em boa medida, essa é a razão porque a busca por uma teologia de Paulo enfrentou diversos problemas a ponto de Dunn afirmar que essa é uma experiência frustrada. Embora ele se refira apenas a uma década de estudos específicos, essa constatação, ao que parece, abrange um campo maior.25 Cf. também Segal, Life After Death, p. 399-400. Stendahl. Paul among Jews and Gentiles, p. 85. 24 Paul J. Achtemeier. “Finding the way to Paul’s theology. A response to J. Christiaan Beker and J. Paul Sampley” in: Jouette M. Bassler (ed.). Pauline Theology. Volume I: Thessalonians, Philippians, Galatians, Philemon. Minneapolis: Fortress Press, 1994, p. 25. 25 James D. G. Dunn. “In quest of Paul’s theology: retrospect and prospect”. In: Elizabeth E. Johnson e David. M. Hay (Ed.). Pauline Theology. Volume IV Looking Back, Pressing on. Atlanta: Scholars Press, 1997, p. 95. 22 23

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Além do mais, se por um lado é um exagero considerar caótico o pensamento de Paulo, por outro lado, desenvolvimentos e transformações em seus conceitos religiosos podem ser percebidos em suas cartas.26 Além disso, em certo sentido, essas cartas já são um segundo momento, porque não representam a pregação inicial na ocasião da fundação das igrejas, mas a segunda fase de orientação das comunidades já estabelecidas. Elas representam orientação para pessoas que já se tornaram cristãs e não uma abordagem de indivíduos que ainda não aderiram à fé.27 Aparentemente, a tendência à consideração de uma teologia paulina doutrinário-sistemática pronta tem relações com a concepção de um cristianismo primitivo católico e unificado, o que hoje está praticamente descartado pelas pesquisas como realidade histórica. Como disse Rowland: “Entender o cristianismo primitivo é, antes de tudo, entender o judaísmo do primeiro século em toda a sua complexidade”.28 Cf. Udo Schnelle. A Evolução do Pensamento Paulino. São Paulo: Loyola, 1999. (Coleção Bíblica Loyola 27). P. 9-12 e 109-110. Por outro lado, Juan Luis Segundo, em A História Perdida e Recuperada de Jesus de Nazaré – dos Sinóticos a Paulo. São Paulo: Paulus, 1997, p. 370-373, considerou que a ressurreição em 1º Tessalonicenses 4,13-18 tem caráter mais primitivo que o desenvolvimento em 1 Cor 15. Markus Cromhout. “The Dead in Christ: recovering Paul’s understanding of the afterlife” in: Harvard Theological Studies 60 (1/2), 2004, p.83-84 e 87-100), por sua vez, apresentou o que chama de “necrologia de Paulo”. Ele usa a expressão para descrever um desenvolvimento das crenças de Paulo sobre o assunto. Desenvolvimento que ocorreu a partir das circunstâncias em que viveu e de sua rica herança judaica. Para esse autor, Paulo não tem uma escatologia fixa do estado dos mortos como produto de uma teologia sistemática preconcebida ou como resultado de especulação quanto ao além túmulo. Passagens como 1 Ts 4:13-18, 1 Cor 15, 2 Cor 5:1-10, abordadas por Cromhout, ilustram bem as diferenças. Enquanto 1 Cor 15 e 1 Ts 4:13-18 falam da ressurreição, esta última passagem como consolo para os que perderam entes queridos, 2 Cor 5:1-10 fala estranhamente de “estar no corpo” e “deixar o corpo”. Cf. Rudolf Bultmann. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004, p. 258; nessa última passagem Paulo se aproxima muito do dualismo gnóstico-helenista. 27 Mauro Pesce. As duas fases da pregação de Paulo. São Paulo: Loyola, 1996 (Coleção Bíblica Loyola 20), p. 9. 28 Rowland, Christian Origins, p. xiii. 26

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Outro elemento a ser considerado é a conotação canônica de Escritura divinamente inspirada e verdade universal que, por natureza, tem característica estática. Esse pressuposto tradicional da pesquisa paulina naturalmente busca uma “verdade” estanque. Com essas considerações, a relação de Paulo com as origens do cristianismo deve ser vista de modo pontual. Ele foi um importante contribuinte para os desenvolvimentos do cristianismo posterior, mas, a priori, não foi seu principal protagonista ou mesmo o fundador de uma nova religião. No dizer de Rowland,29 se por um lado Paulo é o responsável pela maior parte do cânon epistolar do Novo Testamento, por outro lado é provável que ele não era a voz dominante na teologia do cristianismo primitivo. Apocalíptica e misticismo paulinos Paulo era judeu.30 Estava inserido na diversidade judaica de seu tempo.31 Esta diversidade judaica precisa considerar, por exemplo, a confluência de tradições diferentes tais como a Idem, p. 190. Como mostram os artigos de Denise K. Buell e Caroline J. Hodge. “The politics of interpretation: the rhetoric of race and ethnicity in Paul” in: Journal of Biblical Literature 123 (2), 2004, p. 235-251; e Charles H. Cosgrove. “Did Paul value ethnicity?”. In: Catholic Biblical Quarterly 68 (2), 2006, p. 268-290, por exemplo, a reivindicação da identidade judaica de Paulo está em vigoroso debate recentemente. 31 A separação entre judaísmo palestino, judaísmo helenista e samaritanismo tem sido reconhecida ultimamente como uma ilusão moderna. Cf. Wayne A. Meeks. “Moses as God and King” in: Jacob Neusner (ed.). Religions In Antiquity: Essays in Memory of Erwin Ramsdell Goodenough. Eugene: Wipf & Stock Publishers, 2004, p. 354-371. A opinião largamente aceita no início do séc. XX d.C. de que havia um judaísmo normativo ortodoxo centrado em Jerusalém tem sido agora moderada pela aceitação de que o judaísmo do séc. I d.C. não era nem uniformemente normativo, nem caoticamente diverso ( James H. Charlesworth. “Introduction for the General Reader” in: The Old Testament Pseudepigrapha. Vol.2. New York / London / Toronto / Sydney / Auckland: Doubleday, 1985, p. xxix). 29 30

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profecia, a apocalíptica e a sabedoria.32 Elas são diferentes, mas não necessariamente incompatíveis. Entrelaçam-se e também se transformam mutuamente. Pela própria natureza deste trabalho, interessa a relação de Paulo com a apocalíptica, o que vem sendo cada vez mais reconhecido pelos pesquisadores,33 mas sem perder de vista as intersecções com outras tradições. Para certo autor, a questão contestada com virulência, se Paulo pensava e ensinava de maneira apocalíptica, só pode ser respondida com um sim claro. Perguntar como foi a relação de Paulo com a apocalíptica pode soar estranho porque tradicionalmente esse apóstolo está ligado a reflexões teológicas sistemáticas e racionais. Tal acontece, segundo Carriker, por influência dos reformadores e grandes teólogos posteriores como Karl Barth. Porém, esse quadro não tem apenas os reformadores como figurantes.34 É preciso também incluir influentes figuras cristãs do passado, como Agostinho de Hipona. Todavia, Carriker, citado anteriormente, lembra que Paulo está cultural e historicamente muito mais próximo do visionário João do Apocalipse que dos referidos teólogos posteriores. Estava familiarizado com o ensino apocalíptico de seu tempo.35 Portanto, não é surpresa que Paulo tenha concepções religiosas próximas do visionário de Patmos. A essa altura, vale destacar as possíveis relações de Paulo com a apocalíptica em termos mais gerais. Trata-se de observar Ben Witherington. The Paul Quest: The Renewed Search for the Jew of Tarsus. Downers Grove / Leicester: InterVarsity Press, 1998, p. 142-143. 33 Nicholas T. Wright. “Putting Paul together again: toward a synthesis of Pauline theology (1 and 2 Thessalonians, Philippians, and Philemon)” in: Jouette M. Bassler (ed.). Pauline Theology. Vol. I: Thessalonians, Philippians, Galatians, Philemon. Minneapolis: Fortress Press, 1994, p. 197. 34 Timóteo Carriker. “A apocalíptica judaica e o evangelho de Paulo”. In: Vox Scripturae 6 (2), 1996, p. 175. 35 Archibald T. Robertson. Épocas na Vida de Paulo. Rio de Janeiro: JUERP, 1982, p. 71-72. 32

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como os elementos que caracterizam a apocalíptica aparecem na literatura paulina. Em primeiro lugar, então, é preciso pontuar as principais características da apocalíptica que têm sido destacadas pelos estudiosos do assunto. Como apresenta Russell,36 classicamente a apocalíptica inclui várias obras judaicas e cristãs.37 Abrange um período que vai, mais ou menos, do terceiro século a. C. até o segundo século d.C. Mas existem problemas para uma definição exata do que seria literatura apocalíptica e quanto ao sentido exato dos termos: “apocalíptica”, “apocalipse”, “apocalipsismo” e “escatologia apocalíptica”.38 Não cabe aqui discutir amplamente as questões envolvidas neste assunto. Basta dizer que essa literatura geralmente envolve uma estrutura narrativa que descreve o modo da revelação celestial. Frequentemente inclui uma jornada ao mundo além que ocorre por mediação angelical. Mas isso não é tudo. Além da conceituação do parágrafo anterior, John Collins39 apresentou uma tabela, que é um resumo do famoso Semeia 14 sobre apocalíptica editado por ele em 1979. Para melhor visualização do leitor, segue esta tabela com enumeração das obras apocalípticas e os temas relacionados:

David S. Russell. Desvelamento Divino. São Paulo: Paulus, 1997, p. 19-59 (Nova Coleção Bíblica). 37 Classificação semelhante também aparece em autores como Henry H. Rowley. A Importância da Literatura Apocalíptica. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 54-156, e Christopher C. Rowland. The Open Heaven: A Study of Apocalyptic in Judaism and Early Christianity. New York: Crossroad, 1982, p. 14-22. 38 John J. Collins. The Apocalyptic Imagination. An Introduction to the Jewish Matrix of Christianity. New York: Crossroad, 1989, p. 1-32. 39 Idem, p. 6. 36

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1 – Apocalipse de Sofonias 2 – Testamento de Abraão 3 – 3 Baruch 4 – Testamento de Levi 2-5 5 – 2 Enoch 6 – Similitudes (1 Enoch) 7 – Livro astronômico (1 Enoch) 8 – 1 Enoch 1-36 9 – Apocalipse de Abraão 10 – 2 Baruch 11 – 4 Ezra 12 – Jubileus 13 – Apocalipse das semanas (1 Enoch) 14 – Apocalipse dos animais (1 Enoch) 15 – Daniel 1

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Revisão do passado

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Transformação cósmica

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Essa tabela de Collins não inclui o Apocalipse de João, no qual estão presentes quase todos os elementos relacionados. Por ela é possível visualizar os vários temas que perpassam as obras tidas como pertencentes ao gênero “apocalipse”, mesmo que não conste explicitamente todos eles em cada caso. Falta na tabela o elemento da revelação dos mistérios divinos, que se faz presente em vários casos, como abordado neste estudo. Quanto aos termos envolvidos, as definições clássicas de Hanson e Collins foram retomadas e desenvolvidas por de Boer, que acompanha as seguintes definições: Apocalíptica seria uma perspectiva religiosa ou uma forma de ver os planos divinos em relação com realidades mundanas ou terrenas. Apocalipsismo seria o universo simbólico, em que está inserido o movimento apocalíptico. Este procura construir uma nova ordem no lugar da presente ordem da sociedade dominante. Apocalipse seria um gênero literário.40 Para o estudo do caso paulino é preciso considerar, com Adela Collins, os dois tipos de temas apocalípticos que aparecem na literatura bíblica.41 Um tipo é intrínseco ao próprio gênero literário chamado “apocalipse”. Tal obra geralmente inclui elementos típicos como narrativas de recepção de revelação por sonhos, visões, viagens celestiais, normalmente amalgamados com o sentido de cumprimento da história, nova criação e ressurreição. O outro tipo é menos ligado ao gênero literário. Inclui obras em que, embora não possam ser classificadas exatamente como apocalipses, constam temas que são afins com os encontrados no gênero “apocalipse”. Martinus de Boer. “A influência da apocalíptica judaica nas origens do cristianismo: gênero, cosmovisão e movimento social”. In: Estudos de Religião 19, 2000, p. 11-24. 41 Adela Y. Collins. “Apocalyptic Themes in Biblical Literature”. In: Interpretation 53 (2), 1999, p. 117. 40

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Paulo está ligado a esta última situação. Não cabe aqui, portanto, adentrar o extenso debate sobre as questões que envolvem as obras apocalípticas,42 mas apenas abordar as relações temáticas paulinas com tais obras e seus conceitos. A combinação de elementos das obras tipicamente apocalípticas também caracteriza uma espécie de escatologia apocalíptica fora dos apocalipses, que identifica afinidades entre alusões apocalípticas e o cenário apocalíptico das referidas obras. Paulo está inserido nesse campo,43 embora, até onde se sabe, não tenha escrito um apocalipse. Vários temas que constam na tabela anterior são encontrados em Paulo: perseguição (2 Cor 4:8 ss etc.); transtornos escatológicos, julgamento e destruição dos ímpios, do mundo (1 Ts 5:1-10) e dos anjos maus (1 Cor 6:3?); transformação cósmica e ressurreição (Rm 8:18-23; 1 Cor 15 etc.). Consta ainda o tema da revelação dos mistérios divinos (Gl 1:11ss; 1 Cor 2:6 ss), que não aparece na tabela. A questão é também de cosmovisão apocalíptica, o modo de ver o mundo que caracteriza os apocalipses, mas que não está confinado a eles. Conforme Collins, a cosmovisão apocalíptica não está presa a uma única forma literária, mas está, por exemplo, presente em obras que pressupõem uma revelação apocalíptica, o que seria o caso de Paulo.44 Mas Paulo deve ter sido um apocalipsista até mesmo quando era fariseu, antes de se tornar seguidor de Jesus. Beker45 vê evidências disso em seus próprios relatos de sua carreira farisaica anterior em Gl 1 e Fl 3.46 Como fariseu, era integrante dos que se Para Johan C. Beker ( Paul The Apostle: The Triumph of God in Life and Thought. Philadelphia: Fortress Press, 1980, p. 136), a apocalíptica envolve três ideias básicas: 1) Dualismo histórico; 2) Expectativa cósmica universal; 3) Fim do mundo iminente. 43 Collins, The Apocalyptic Imagination, p. 9 44 John J. Collins. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls. London / New York: Routledge, 1997, p. 8. 45 Beker, Paul the Apostle, p. 143-144. 46 Adolf Deissmann. Paul: a Study in Social and Religious History. New York: Harper & Row Publishers, 1957, p. 152, já havia dito algo parecido em relação ao misticismo 42

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consideravam separados, os sucessores do remanescente fiel dos tempos dos profetas. Nesse sentido, ele provavelmente já tinha uma cosmovisão apocalíptica antes de sua experiência damascena. Portanto, o aspecto apocalíptico não representa, pelo menos de todo, uma descontinuidade entre o Saulo fariseu e o Paulo servo de Jesus Cristo. Meeks, ao tratar da relação de Paulo com a apocalíptica do ponto de vista sociológico, propositadamente fala da escatologia, da apocalíptica e do misticismo como sendo conceitos semelhantes. O pressuposto é que tais conceitos são, de algum modo, intercambiáveis.47 Portanto, também é preciso ressaltar as relações entre apocalíptica, escatologia e misticismo. Esses conceitos não são exatamente a mesma coisa. Entretanto, no presente estudo eles são considerados entrelaçados na medida em que estão ligados a experiências religiosas semelhantes. Assim, um aspecto que deve ser considerado é que a distinção/similaridade entre apocalíptica e mística judaica diz respeito a gêneros literários diferentes facilmente distinguíveis, mas que relatam experiências religiosas semelhantes. Nesse caso, “misticismo apocalíptico”48 reúne gêneros literários distintos que paulino. Para ele, enquanto fariseu, Paulo era um místico acionário que se tornou um místico reacionário a partir de sua experiência na estrada de Damasco. 47 Wayne A. Meeks. Os primeiros cristãos urbanos: o mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 251. 48 “Misticismo” é geralmente definido como experiência religiosa interior que acompanha fenômenos de visões, transes e estados de êxtase e que, em alguns casos, denota uma unio mística, isto é, uma unificação com o divino (Helmer Ringgren. “Mysticism” in: David N. Freedman (ed.). The Anchor Bible Dictionary. Vol. 4. K-N. New York: Doubleday, 1992, p. 945). Mas o termo aqui tem conotações ligadas ao estudo do misticismo judaico em obras mais recentes (Gershom Scholem. As grandes correntes da mística judaica. São Paulo: Perspectiva, 1972). Nesse sentido, Paulo era tanto um místico como um apocalíptico, porque o misticismo judaico do primeiro século era apocalíptico (Segal, Paul The Convert, p. 34). As definições desse tipo são úteis para fins de clareza, ainda que seja necessário lembrar, com Meeks, Os primeiros

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relatam ou pressupõem experiências e práticas religiosas similares, como viagens celestiais e visões extáticas. Deissmann ficou conhecido no começo do séc. X pela sua abordagem de Paulo como místico.49 Para ele, a partir das frequentes implicações nos textos paulinos de “Cristo em Paulo” e “Paulo em Cristo/espírito”, a religião paulina era cristocêntrica mais que cristológica num sentido mais profundo e realista. As 164 ocorrências da fórmula “em Cristo” ou “no Senhor” no corpus paulinum levaram Deissmann a afirmar que essa era a expressão do cristianismo do apóstolo. Quanto à cristologia de Paulo, diz Deissmann, é mais acurado falar de “cristoforia” ou mesmo “cristolatria”, que dizem respeito às experiências de revelação de Cristo que Paulo teve. Não se trata de reflexão sobre Cristo, mas de experiência com ele – uma experiência de intimidade espiritual. Mas qual a natureza desse misticismo? Deissmann reage à unio mística e ao neoplatonismo do misticismo de deificação e prefere falar de communio mística em relação a Paulo. Ele não foi deificado, ou transformado em espírito, ou se tornou o próprio Cristo. Deissmann menciona o êxtase para falar do caos extático coríntio. Para ele o êxtase de Paulo é subordinado ao ethos. A abordagem deissmanniana associa elementos judaicos e helenistas. Mais famoso, entretanto, é o contemporâneo de Deissmann, Albert Schweitzer e seu misticismo paulino, a quem Meeks, na página citada anteriormente, atribuiu o renovado interesse pela relação de Paulo com a apocalíptica. À semelhança de Deissmann, Schweitzer afirma que o “estar-em-Cristo” é o principal enigma do ensino paulino. Mas, para ele, o misticismo paulino é marcado pela escatologia judaica, isto é, cristãos, p. 261, que o uso delas cria certa abstração, até porque os religiosos antigos não as usaram para definir suas próprias crenças. 49 Deissmann, Paul: a Study in Social and Religious History, p. 135-157.

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está firmado nas crenças escatológicas dos judeus e dos primeiros cristãos de seu tempo.50 Diferente dos que viam um Paulo mais sincrético, Schweitzer acreditava que esse apóstolo não helenizou o cristianismo, ainda que seu misticismo escatológico do estar-em-Cristo possa ter preparado o caminho para tal. Por isso, diz Schweitzer, Paulo não foi influente na segunda geração cristã já helenizada porque ela não sabia o que fazer com seu ensino. Embora com a tendência de rejeitar o chamado misticismo em relação a Paulo, Dibelius destaca que a pouca validade dada ao misticismo paulino entre teólogos de seu tempo tem motivos explícitos.51 O caso é que o termo “misticismo” é normalmente ligado à unio mística, um conceito que, segundo ele e os referidos teólogos, não pode ser encontrado em Paulo.52 Entretanto, Dibelius admitiu que, embora a piedade de Paulo não tenha sido mística, mas profética, ele teve experiências pessoais em áreas que estão estreitamente relacionadas ao misticismo. Dibelius se refere às visões e êxtases. O assunto no âmbito mais amplo da escatologia e apocalíptica ficou ainda mais fomentado pelo debate entre Bultmann e Käsemann em meados do séc. XX. Para Bultmann, Paulo começou a demitificar o mundo apocalíptico em termos de uma escatologia presente.53 Paulo, diz Bultmann,54 deve ser considerado a partir do judaísmo e cristianismo helenistas, numa teologia antropológica ou Albert Schweitzer. O misticismo de Paulo o Apóstolo. São Paulo: Novo Século, 2003, p. 7-63. 51 Martin Dibelius. “Mystic and prophet” in: Wayne A. Meeks (ed.). The Writings of St. Paul. New York: W. W. Norton & Company. INC, 1972, p. 395-396, 398, 405 ss. 52 Dibelius exemplifica dizendo que Paulo declarou que Cristo vive nele (Gl 2:20) e que ele pode todas as coisas em Cristo (Fl 4:13), mas nunca disse: eu sou Cristo e Cristo sou eu. 53 Rudolf Bultmann. Jesus Cristo e mitologia. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 26-27. 54 Bultmann, Teologia do Novo Testamento, p. 242 ss. 50

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antropologia teológica.55 Isto é, Paulo nunca fala de Deus per se, mas sempre e somente em seu significado para o ser humano. Daí sua abordagem clássica da teologia paulina com ênfase em conceitos antropológicos. Käsemann acompanhou seu mestre Bultmann em boa parte do caminho, mas divergiu dele ao afirmar que os grandes temas paulinos, como o da justiça de Deus, deriva do apocalipsismo. Para ele, a antropologia paulina é também cosmologia.56 A reação de Bultmann foi afirmar que é na “escatologia presêntica”, como denomina, que está o peso maior para Paulo e que até teria deixado de lado, em segundo plano, o que Bultmann chama de “escatologia futúrica”.57 A divergência principal é que, enquanto para Käsemann Paulo basicamente interagiu com o apocalipsismo de seus dias, para Bultmann ele o teria reinterpretado radicalmente em termos antropológicos existenciais. O debate entre Bultmann e Käsemann pode ter se perdido em minúcias, como alega Meeks,58 mas ilustra a importância que tem sido dada a esses temas nas últimas décadas. Bem mais recente, entretanto, o estudo do misticismo paulino ganhou novo impulso a partir da abordagem de Gershom Scholem e o misticismo da merkavah.59 Até então, falar de misticismo em É famosa sua declaração de que “a teologia paulina é simultaneamente antropologia” (idem, p.246). 56 Käsemann, Inícios da teologia cristã, p. 252; do mesmo autor, Perspectivas paulinas. São Paulo: Teológica, 2003, p.11 ss. 57 Rudolf Bultmann. “Seria o apocalipsismo a matriz da teologia cristã? Um posicionamento frente a Ernst Käsemann” in: Apocalipsismo, 1983, p. 255 ss. 58 Meeks, Os primeiros cristãos urbanos, p. 252. 59 Scholem identificou um misticismo entre judeus que percorreu séculos, com raízes em tradições ligadas a Ez 1, o que ficou conhecido como misticismo da merkavah (pronuncia-se “mercavá”). Os pontos de partida são 1941, que foi o ano da publicação original do livro de Scholem, Major Trends in Jewish Mysticism (aqui utilizada a versão portuguesa de 1972 supracitada) e 1947, ano da descoberta dos manuscritos qumrânicos que comprovaram através dos Cânticos do Sacrifício do Sábado que o misticismo da merkavah já era praticado nos tempos apostólicos ( John Ashton. The 55

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Paulo era algo que ficava mais ou menos suspenso no ar. O que significa misticismo nesse caso? Em outras palavras, se não existe misticismo como tal, mas somente misticismo de um sistema religioso,60 a que sistema religioso pertenceria o misticismo do apóstolo Paulo? Schweitzer criticou a exposição do misticismo paulino feita por Deissmann porque parecia estar ancorada nas águas inseguras da experiência subjetiva damascena, visto que o próprio Paulo quase não se refere a ela.61 Na verdade, Paulo não se refere a qualquer experiência damascena específica. O máximo que ele mesmo diz é que ao receber a revelação divina não foi a Jerusalém buscar confirmação Religion of Paul the Apostle. New Haven / London: Yale University Press, 2000, p. 243). Esses estudos vêm ganhando ímpeto principalmente a partir das duas últimas décadas do séc.XX. Merkavah ou “misticismo da merkavah” se refere a uma literatura judaica que gira em torno da merkavah, palavra hebraica que significa “carruagem”, aludindo a uma experiência visionária da glória de Deus numa espécie de “trono-carruagem”. Essa palavra deriva de 1 Cr 28:18 que fala da “carruagem do querubim” que suportava a Arca da Aliança no Santo dos Santos e foi bem cedo ligada às visões de Ezequiel conforme Eclo 49:8 e 4Q385 fr.4 (Christopher Morray-Jones. “The Temple within: the embodied divine and its worship in the Dead Sea Scrolls and other early Jewish and Christian sources”. In: Society of Biblical Literature Seminar Papers 1 (37), 1998, p. 400-409). Está geralmente ligada a um tipo de misticismo que tem na visão de Ez 1 uma fonte primária (Scholem, Grandes correntes, p. 41) como seu texto mais importante (Alan F. Segal. The Other Judaisms of Late Antiquity. Atlanta: Scholars Press, 1987, p. 25), mas que recebeu desenvolvimento na literatura mística judaica posterior, de modo especial na apocalíptica. Embora a palavra merkavah não apareça no texto de Ezequiel, dele se desenvolveu o conceito no misticismo judaico que vai até os tempos da Kabala. George A. Cooke. A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Ezekiel. Edinburgh: T & T Clark, 1985, p. 22-23; Joseph Dan. The Ancient Jewish Mysticism. Tel-Aviv: Mod Books, 1993, p. 7-24 apresentam uma introdução resumida desse tipo de literatura. 60 Scholem, Grandes correntes, p. 6-8, embora fale desse fenômeno genericamente como “experiência fundamental do eu íntimo que entra em contato imediato com Deus ou com a Realidade metafísica”, afirma que se trata de um estágio bem definido no desenvolvimento histórico da religião e que aparece sob condições bem definidas. Para ele, não há misticismo como tal, mas apenas misticismo de um sistema religioso particular. 61 Schweitzer, O misticismo de Paulo, p. 57-58.

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dos então já apóstolos de Cristo, mas foi para a Arábia e “voltei”, diz ele, para Damasco (Gl 1:15-17).62 Porém, o misticismo paulino proposto por Schweitzer ficou um tanto indefinido e, associado à escatologia, acabou sendo apenas mais uma abordagem teológica de um misticismo intelectual.63 Todavia, o misticismo da merkavah de ascensão visionária paradigmática tem semelhanças com os vestígios encontradiços nos documentos neotestamentários, inclusive em Paulo. Kim, em tese doutoral publicada inicialmente em 1980, estabeleceu uma ligação do capítulo chave do misticismo da merkavah, Ezequiel 1, com a experiência damascena de Paulo. Para ele, esta é a chave do evangelho paulino. Viu também vestígios dessa experiência visionária inicial paulina em textos como 2 Cor 3:12, e outros.64 Nesse caso, os textos paulinos com linguagem mística seriam projeções da singular experiência visionária de conversão. Contudo, como o próprio Kim está ciente, a principal objeção contra sua tese é que, nos textos conhecidos de autoria do próprio Paulo, se ele menciona a experiência na estrada de Damasco, o faz poucas vezes e de modo muito breve.65 Bornkamm acredita que a rara referência do próprio Paulo à experiência damascena é sinal de que tal não era central em sua vida e pensamento.66

Tradicionalmente essa passagem é entendida como uma referência ao que At 9:1 ss. narra. Entretanto, isso tem sido questionado, como será visto na abordagem de Gl 1 adiante. De qualquer forma, a referência à “experiência damascena” de Paulo precisa levar em conta que, em última análise, depende de um relato de segunda mão em At. 63 Ashton, The Religion of Paul, p. 143-144. 64 Kim, Paul’s Gospel, p.1-2, 78, 233 ss. 65 Idem, p. 3. 66 Günther Bornkamm. Pablo de Tarso. Salamanca: Sigueme, 1991, p. 48. 62

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Entretanto, Kim pode ter razão em parte de outro modo. A questão não seria que a experiência visionária de Damasco foi a base do ministério paulino, mas sim que foi apenas a primeira das muitas experiências desse tipo vividas pelo apóstolo. Essa é a conclusão de Segal, Morray-Jones e Scott.67 Consequentemente, a tradição da merkavah fornece uma estrutura plausível para o estudo da religião paulina e pode possibilitar um caminho viável para responder melhor à pergunta sobre a experiência paulina com o sagrado e não tanto a reflexão sobre ele. Esse segundo questionamento sobre a reflexão a respeito do sagrado, mais racional e intelectual, é que tem caracterizado as pesquisas sobre esse apóstolo. Portanto, ao perguntar pelo misticismo paulino nesses termos, facilmente se passa para a questão intrinsecamente ligada sobre quais teriam sido as características da experiência religiosa de Paulo de Tarso, categoria à qual pertencem naturalmente os êxtases visionários apocalípticos. Paulo, o visionário Existem testemunhos na correspondência paulina que dão indícios de um contexto mais amplo visionário revelacional de sua experiência religiosa. Nesse contexto estaria inserida sua concepção de transformação no sentido místico apocalíptico (2 Cor 3:7-18).68

Segal, Paul The Convert, p.37; Christopher Morray-Jones. “Paul’s heavenly ascent and its significance” in: Harvard Theological Review 86.3. Boston: Harvard University Press, 1993, p.1 ss; James M. Scott. 2 Corinthians. Peabody / London: Hendrickson Publishers / Paternoster Press, 1998, p. 237. 68 Foi principalmente esse conceito de transformação que desenvolvi em minha tese de doutorado ( Jonas Machado. Transformação mística na religião do apóstolo Paulo. A recepção do Moisés glorificado em 2 Coríntios na perspectiva da experiência religiosa. São Bernardo do Campo, UMESP, 2007, p. 63 ss). 67

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Sem dúvida, o locus mais significativo para sua experiência visionária é 2 Cor 12. A visão propriamente dita é narrada nos quatro primeiros versículos, mas o contexto seguinte imediato também fornece alguns dados importantes. Por essa razão, tal porção literária recebe a seguir um destaque especial. Significativas também são sua apresentação do espírito como agente revelacional em 1 Cor 2 e ainda seu próprio testemunho de conversão em Gl 1. 2 Cor 12: 1 É necessário orgulhar-se, não convém na verdade, mas irei para as visões e revelações do Senhor. 2 Conheço um homem em Cristo que, há quatorze anos, se em corpo não sei, se fora do corpo não sei, Deus sabe, foi arrebatado o tal até o terceiro céu. 3 E conheço o tal homem, se em corpo, se fora do corpo, não sei, Deus sabe, 4 que foi arrebatado para o paraíso e ouviu palavras indizíveis as quais não é permitido a um homem falar. 5 Pelo tal me orgulharei, mas por mim mesmo não me orgulharei senão nas fraquezas. 6 Pois se quiser me orgulhar não serei insensato, pois falarei a verdade; mas eu me abstenho, que ninguém pense de mim além do modo como me vê ou ouve de mim 7 e pela grandeza das revelações. Porquanto para que não me exaltasse, foi dado a mim um espinho na carne, um anjo de Satanás, para que me batesse, para que não me exaltasse. 8 por causa disto três vezes clamei ao Senhor para que afastasse de mim. 9 E me disse, é suficiente para ti a minha graça, pois o poder é aperfeiçoado em fraqueza. Muito alegremente, portanto, mais me orgulho nas minhas fraquezas, para que habite sobre mim o poder do Cristo. 122

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10 Porquanto agrado-me em fraquezas, em insultos, em pressões, em perseguições e angústias por Cristo; pois quando sou fraco, então forte sou.69

Uma das grandes questões envolvendo essa passagem é até que ponto ela reflete uma experiência paradigmática paulina. São conhecidas as opiniões tradicionais de que tal experiência deve ser colocada como apêndice da carreira paulina. Bultmann considerou a passagem como algo raro na vida de Paulo e negou que a experiência mística teria sido um paradigma paulino.70 Essa opinião típica é justificada, por exemplo, pela argumentação de Furnish71 de que o plural “visões e revelações” sem artigo definido no grego original refere-se a um tópico geral e não a várias experiências paulinas.72 Mas essa conclusão de Furnish corre sério risco de artificialidade. O caso é que a ausência de artigo definido por si só frequentemente diz muito pouco e depende bastante do contexto.73 Uma opinião diferente e um pouco independente é a de Smith.74 Segundo ele, Paulo não estaria falando de si mesmo e sim de uma experiência visionária do próprio Jesus. A razão para isso é principalmente o emprego da terceira pessoa que distingue o referido viajante celestial de Paulo. Para Smith, a afirmação “pelo tal me orgulharei, mas por mim mesmo não me orgulharei” (v.5) exclui Paulo. Além disso, diz Smith, Paulo afirma gloriar-se em Jesus.75 Nesse caso, então, o visionário da narrativa seria Jesus, em quem Paulo se orgulha. Mas, a expressão “conheço um homem em Cristo” (v.2) é surpreendente, como admite Smith. O termo preposicionado “em As traduções dos textos paulinos são minhas a partir do NTG. Bultmann, Teologia do Novo Testamento, p. 409. 71 Victor P. Furnish. II Corinthians. New York: Doubleday, 1984, p. 524 e 543. 72 Scott, op.cit, p. 458 concluiu de modo tipicamente tradicional dizendo que Paulo não considerava importantes experiências privadas desse tipo. 73 Robertson, A Grammar of the Greek New Testament, p. 790 ss. 74 Morton Smith. The Cult of Yahweh. Leiden / New York/ Köln: Brill, 1996, vol. 2, p. 64-67. 75 Smith cita Rm 15:17 ss; 1 Cor 1:29-31;2 Cor 10:17; 12:5; Gl 6:14. 69 70

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Cristo” não combina com a hipótese de ser Jesus o visionário. De fato, essa é uma objeção praticamente insuperável para tal teoria. Além disso, o espinho na carne de Paulo como a consequência da grandeza das revelações (v.7) faz melhor sentido se Paulo for considerado o receptor de tais revelações na ascensão. Nesse caso, não é sem razão que a opinião quase unânime, pelo menos desde Irineu, é a de que Paulo está falando de si mesmo.76 Foi Scholem quem, nos últimos anos e de modo influente, colocou Paulo como personagem típico do misticismo judaico. Ele cita justamente essa passagem paulina como evidência de que o apóstolo estava incluído nas tradições místicas do judaísmo, ainda que como seguidor de Jesus de Nazaré.77 A partir daí autores como Segal, Morray-Jones e Rowland têm insistido que é necessário considerar o elemento visionário como central na experiência religiosa paulina e não como fator marginal.78 Como já esboçado em outro lugar79 e aqui desenvolvido de modo mais sistemático, a passagem dá sinais de que a experiência visionária era típica da religião de Paulo apóstolo. Esses sinais, embora com certa interdependência, podem ser distinguidos da seguinte forma. “Visões e revelações” como múltiplas experiências No misticismo da merkavah, a ascensão aos céus ocorre várias vezes durante a vida do místico.80 As “visões e revelações”, no plural, associadas a outros vestígios na passagem dão indicações de uma Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 3 ss. Scholem, As grandes correntes, p. 53. 78 Segal, Paul The Convert, p. 34 ss; Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 1 ss; Christopher C. Rowland. Paul and the Apocalypse of Jesus Christ. (Palestra não publicada apresentada no 2º Seminário de Apocaliptica intitulado “Apocalíptica, Misticismo e Inícios do Cristianismo” realizado na UMESP em abril de 2001), p.1 ss. 79 Jonas Machado. “Paulo, o visionário: visões e revelações extáticas como paradigmas da religião paulina”. In: Paulo Augusto de S. Nogueira (org.). Religião de visionários: apocalíptica e misticismo no cristianismo primitivo. São Paulo: Loyola, 2005, p. 171-187. 80 Scott, 2 Corinthians, p. 237. 76 77

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experiência visionária típica da merkavah. E dão também sinais de que isso era um paradigma da carreira religiosa paulina. Se esse era um quadro típico nos tempos de Paulo, então a passagem muito provavelmente é indicação de que o apóstolo fez parte dele. A evidência dada pelo próprio Paulo em outros lugares (Gl 1:12; 2:2) e o testemunho de segunda mão de Atos (16:9; 18:9; 22:17-18; 23:11; 27:23) é de que não ocorreu apenas uma experiência do gênero. Ainda que pesem os problemas relativos ao relato secundário e tendencioso de Atos sobre Paulo, é notório que sua conversão é narrada em termos de experiência visionária típica três vezes (At 9:22 e 26). Nos dois últimos casos, o autor de Atos apresenta Paulo se defendendo perante os israelitas e perante Agripa a partir de seu êxtase visionário. Isto pode representar uma tradição em que Paulo era visto como típico visionário. Campo semântico apocalíptico Rowland observou que há evidências suficientes de uma linguagem tradicional da apocalíptica judaica.81 Os termos “visões”, “revelações”, “ser arrebatado”, “terceiro céu”, “paraíso”, são típicos e revelam um campo semântico apocalíptico. Portanto, esse relato visionário, ainda que breve, mostra o quanto Paulo deve ao modo apocalíptico de pensar e como pontos chave de sua vida e carreira são iluminados por essa estrutura de pensamento.82 A concepção de que ele “foi arrebatado até o terceiro céu para o paraíso”, independente das nuanças possíveis de sentido,83 é uma expressão típica de experiência visionária. Conforme Scholem, Paulo é dependente aqui de uma estrita tradição judaica sobre o paraíso.84 Rowland, Paul, p. 3. Rowland, The Open Heaven, p. 386. 83 As possíveis relações entre a quantidade dos céus (três/sete) e o paraíso foram apresentadas em Machado, Paulo, o visionário, p. 181-185. 84 Scholem, As grandes correntes, p. 53. 81 82

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O termo “paraíso” foi usado na LXX para o jardim do Éden em Gn 2:8-10 e Ez 28:13. Embora existam outras ocorrências com sentido de “jardim” sem maiores conotações técnicas,85 começou a ser usado no sentido escatológico de paraíso celestial.86 Segundo Morray-Jones, esse testemunho paulino está inserido em uma tradição que chegou até os hekhalot, herdada da apocalíptica do período do Segundo Templo.87 O emprego da terceira pessoa Essa narrativa em terceira pessoa, estranha para o leitor atual, era bastante comum no judaísmo, notadamente no âmbito visionário. Era frequente como referência pessoal no rabinismo. Scott observou que o “filho do homem” de Jesus em terceira pessoa é comum nos evangelhos, uma expressão geralmente associada a contexto apocalíptico.88 A terceira pessoa pode ainda estar relacionada à tradição do misticismo judaico quando o visionário reluta em falar de seu êxtase para evitar conotação de orgulho pessoal, o que esse contexto paulino faz lembrar. Na Bíblia hebraica, a relação da soberba com viagens celestiais aparece em Is 14:11-15 e Ez 28:13-15 – textos lidos pelos pais da igreja como referência à queda de Satanás e que falam da soberba de reis num âmbito de ascensão celestial.89 Conforme Morray-Jones, advertências contra autoexaltação são comuns na literatura mística judaica.90 Ele cita um exemplo de

Ct 4:13; Ecl 2:5; Ne 2:8. Test12Lv 18:10-11; Lc 23:43; Ap 2:7. Cf. Machado, Paulo, o visionário, p. 182-183. 87 Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p.1 ss. 88 Scott, 2 Corinthians, p. 223. 89 Machado, Paulo, o visionário, p. 173-174. 90 Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 3. 85 86

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Ma-ageh merkabah,91 seção 24, em que o Rabi Ismael diz que um anjo o recomenda não se orgulhar após ter recebido uma revelação. Esse tema do orgulho ligado à ascensão celestial também aparece em lugares distantes. Eliade fala de uma lenda xamânica caribenha na qual o acesso direto às realidades celestiais foi proibido devido ao orgulho e rebeldia dos primeiros xamãs.92 Ao mesmo tempo é um assunto importante no contexto da carta paulina em sua relação com os coríntios e, possivelmente, com adversários. Pode ser ainda que Segal tenha razão ao ver na narrativa a possibilidade de comportamento paulino típico da pseudonímia, comum na literatura apocalíptica do período, um procedimento provavelmente ligado à proibição de discutir publicamente fenômenos místicos.93 Dada a restrição, os protagonistas compartilhavam suas experiências escondendo-se nas narrativas atrás de outros nomes, especialmente os mais famosos, para dar crédito ao relato. Visões e fraqueza, diversidade e oposição A relação entre visões celestiais e fraqueza, adversidades e oposição também tem longa tradição. A fraqueza humana diante da glória de Deus fica patente, visto que envolve extremo perigo e risco de morte (Ex 19:1213.21.23; 20:18; 33:20). A experiência de fraqueza, perigo de morte, estupor e temor, que também engloba o tema da oposição e adversidade é comum em textos visionários.94 Ao ter a ascensão e visão, o profeta extático se vê perecendo, caindo por terra. Em alguns casos, como nos Esta é a transliteração de Morray-Jones. Mircea Eliade. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 152-153. 93 Segal, Paul the Convert, p. 58-59. 94 Is 6, Ez 1, 1 En 14, 2 En 21, 4Ezra 7, Ap 1:17 (Machado, Paulo, o visionário, p. 175-177). 91 92

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textos fundantes de Isaías e Ezequiel e no Apocalipse de João, o visionário enfrenta adversidade e perseguição. Palavras indizíveis A expressão no versículo 4 “palavras indizíveis” não se refere a palavras impossíveis de serem ditas, como indicam algumas versões.95 Eram coisas que não podiam ser pronunciadas abertamente. Este parece ser o sentido para o que vem na sequência do versículo: “as quais não é permitido a um homem falar”. No mundo judaico, Jeremias cita Hagigah 2.1 e chama isso de “tradição esotérica”, na qual os segredos divinos eram temas de conversas privadas entre mestre e discípulo. Lembra o enigma das parábolas (Mc 4:11 e paralelos) em que só aos iniciados é permitido conhecer os mistérios do reino de Deus.96 Essas palavras podem indicar uma proibição divina típica na mística judaica e na restrição geral na apocalíptica em descrever certos aspectos da jornada celestial.97 Pode ser que nesse texto paulino a proibição seja temporária.98 De qualquer forma, para o momento o importante não era o Neste caso, “palavras inexprimíveis” (Bíblia Tradução Ecumênica. Vários Tradutores. São Paulo: Loyola, 1994) ou “inefáveis” (Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição Revista e Atualizada no Brasil. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993 e Bíblia de Jerusalém) não é a melhor tradução. A NVI (Bíblia Sagrada Nova Versão Internacional. Tradução da Sociedade Bíblica Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2000) também traz “indizíveis”. 96 Jörg Jeremias. Jerusalém no Tempo de Jesus: Pesquisas de História Econômico-Social no Período Neotestamentário. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 323. 97 Cf. Scott, 2 Corinthians, p.223. Em Dn 12:4 o visionário recebe ordem de guardar segredo no momento até que chegue o tempo certo de revelá-lo. Em Ap 10:4 João é proibido de escrever as palavras dos “sete trovões” e em 14:3 só os cento e quarenta e quatro mil aprendem o novo cântico. No Testamento de Levi 8:19 há algo semelhante, embora não em tom de proibição. Ali o visionário guarda segredo no seu coração e não conta a nenhum dos homens na terra. Em certos casos, a ordem ou decisão de guardar segredo concorre com o paradoxo de deixá-lo registrado no livro. 98 Rowland, The Open Heaven, p. 383.

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sentido das palavras ouvidas no paraíso, mas o fato da ascensão até lá e de tê-las ouvido. É possível que aqui exista alguma relação com a glossolalia ou língua dos anjos (1 Cor 13:1) que Paulo relaciona com o louvor dirigido a Deus (1 Cor 14:15-16).99 É provável que exista alguma relação com a intercessão do espírito “com gemidos inexprimíveis” de Rm 8:26.100 Em tradições preservadas posteriormente, há uma passagem em Hekhalot Zutarti101 em que o Rabi Akiba, numa ascensão celestial, ouve palavras. Ele apresenta um resumo do que ouviu, que inclui elementos teúrgicos semelhantes aos papiros mágicos,102 e uma exortação, atribuída a Moisés, de que o importante não é o sentido racional das palavras ouvidas, mas o louvor.103 O caso é que os mistérios mais profundos de Deus não podem ser descritos por palavras, mas apenas parcialmente conhecidos pela adoração mística.104 Espinho na carne como anjo de Satanás Há tentativas de interpretar esse tal espinho na carne de Paulo como doença, adversários humanos ou oponentes angélicos.105 Segundo Murphy-O’Connor, a maioria dos estudiosos considera que Paulo tinha uma doença física ou um problema psíquico.106 Em At 2:11, em que o falar em línguas é falar em idioma conhecido, este fenômeno é descrito como falar das grandezas de Deus. Talvez uma versão lucana missionária do falar em línguas, mas que foi influenciada pela tradição da glossolalia paulina. 100 Ernst Käsemann. Commentary on Romans. Grand Rapids: Eerdmans, 1980, p. 240. 101 Peter Schäfer. Synopse zur Hekhalot-Literatur. In Zusammenarbeit mit Margarete Schlüter und Hans Georg Von Mutius. Tübingen: Mohr, 1981, p.146-149 § 348-352. 102 Scholem, As grandes correntes, p. 75-79. 103 “Moisés disse a eles, a estes e aqueles, não batei com palavras de assim é dito: abençoada a glória de JaHVeH desde o lugar dele” – tradução minha a partir do hebraico in: Schäfer, Synopse zur Hekhalot-Literatur. 104 Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 8. 105 Furnish, II Corinthians, p. 547 ss. 106 Murphy-O’Connor, Paulo: biografia crítica, p. 325. 99

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Mas as evidências contextuais do misticismo judaico apontam para uma interpretação mais literal. A tradição de opositores angelicais, além de testemunhos bíblicos ( Jó 1:6-12; 2:1-8; Zc 3:1), tem paralelos notáveis no misticismo judaico.107 Mesmo que Paulo tenha uma versão própria do anjo opositor como espinho na carne para não se orgulhar, a figura desse anjo na ascensão é típica do misticismo da merkavah. Esses tópicos aqui apresentados em conjunto parecem ser de grande peso para a conclusão de que Paulo estava inserido no misticismo judaico numa versão dos primeiros seguidores de Jesus. Até porque essa era uma tradição de grande valor com ensinamentos que constituíam grandes sistemas teológicos de conteúdo estimado como inspiração divina108 e não especulações periféricas como se costuma concluir. Além disso, se for correta a argumentação de Rowland de que a revelação de mistérios divinos por visões em ascensão celeste é a principal característica da apocalíptica, então Paulo está nesse núcleo.109 Esse texto paulino aproxima-se desse centro apocalíptico, embora ele mesmo nunca tenha escrito um apocalipse. 1 Coríntios 2 A possessão por espírito divino é uma das características principais do êxtase e viagens ao além em praticamente todas as religiões.110 Ao mesmo tempo, numa abordagem dessa passagem da primeira Carta aos Coríntios, Belleville constatou que a O Rabi Akiba fala que em sua ascensão saíram “anjos da destruição para me destruir”. Essa narrativa está em Schäfer, Synopse zur Hekhalot-Literatur p. 248 § 673. Algo semelhante também é narrado em outros lugares (idem, p. 92-93 § 213-215; p. 96-99 § 224-228; p. 114-117 § 258-259; p. 146 § 346; p. 172-173 § 407-410). Cf. também Morray-Jones, “Paul’s heavenly ascent”, p. 8 e Scott, op.cit. p. 228. 108 Jeremias, op.cit. p. 324. 109 Rowland, The Open Heaven, p. 70-72. 110 Ioan M. Lewis. Êxtase religioso. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 14-17 e 52-58. 107

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centralidade do tema do espírito como agente revelacional tem sido largamente negligenciada pelos estudiosos de Paulo.111 Nessa passagem, o apóstolo contrasta ação do espírito com a sabedoria humana. Ele afirma que a pregação do seu evangelho foi acompanhada de demonstração do poder do espírito (v.4). A sabedoria de Deus, diz Paulo, é revelada de modo sobrenatural: (1 Cor 2: 10-13). 10 a nós, porém, revelou Deus através do espírito; pois o espírito sonda todas as coisas, até as profundezas de Deus. 11 pois quem dos homens sabe as coisas do homem senão o espírito do homem que está nele? Assim também as coisas de Deus ninguém conhece senão o espírito de Deus. 12 Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o espírito que vem de Deus, para que conheçamos as coisas que foram agraciadas a nós por Deus. 13 As coisas que também falamos, não com palavras ensinadas de sabedoria humana, mas com [palavras] ensinadas do espírito, com os espirituais julgando as coisas espirituais.

Grindheim nota que essa passagem, central para as crenças de Paulo sobre a relação do espírito com a revelação recebida por ele, faz uma ligação entre “espírito”, “revelação de mistérios” e “sabedoria”.112 Um vínculo que também aparece na sabedoria judaica (Sb 6:22-24; 7:21-22; Eclo 4:18) e notavelmente em Dn (2:19-30; 4:6). Grindheim acredita haver uma ligação maior com Daniel, visto que os segredos foram revelados ao profeta porque o espírito Linda L. Belleville. “Paul’s polemic and theology of the spirit in Second Corinthians”. In: Catholic Biblical Quarterly 58 (2), 1996, p. 281. 112 Sigurd Grindheim. “Wisdom for the perfect: Paul’s challenge to the Corinthians’ church (1 Corinthians 2:6-16)”. In: Journal of Biblical Literature, 121 (4), 2002, p. 691-697. 111

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divino estava nele e não por sabedoria superior. Esse autor resiste a associar esta passagem a uma experiência específica por falta de referências claras. De toda maneira, se não é possível identificar uma experiência específica, a relação com outros testemunhos de campo semântico semelhante sugere um contexto de experiências visionárias. A proximidade do tema como aparece em Daniel e nessa passagem é marcante. Ao que parece, trata-se de tradições semelhantes que foram se desenvolvendo na apocalíptica e misticismo judaicos, nas quais Paulo está inserido. Gálatas 1 A importância dessa passagem está em que ela é um testemunho do próprio Paulo sobre as origens do seu evangelho. Diante da necessidade de defender seu apostolado perante os Gálatas, o apóstolo apela para a autoridade da revelação recebida: (Gl 1:15-16). 15 mas quando bem quis Deus, o que me separou desde o ventre de minha mãe e chamou através da graça dele, 16 revelar o seu filho em mim, para que eu o estivesse anunciando entre as nações, imediatamente não consultei carne e sangue

A ênfase está em que Paulo quer provar que seu evangelho não é de segunda mão. Mas o questionamento é óbvio: se ele nunca esteve com Jesus e não foi testemunha da ressurreição como os outros apóstolos, de onde tirou seu evangelho? Sua resposta é que recebeu uma revelação. A chave está na frase “revelar seu filho em mim”. O termo grego usado por Paulo para “revelar” é típico da apocalíptica, de onde foi cunhado o próprio termo “apocalíptica”. 132

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Embora Paulo use esse vocábulo com certa elasticidade,113 é exatamente nas indicações do que teria constituído a natureza dessa revelação para o próprio apóstolo que se encontram as relações mais próximas com o misticismo e apocalíptica.114 Ainda que a última expressão grega da frase-chave anteriormente citada possa ser traduzida por “para mim” ou algo semelhante, a tradução literal “em mim”, que dá conotações de interioridade, parece a mais natural e adequada. Esta é a opção da maioria das versões em português. A interpretação mística subjetiva poderia ser justificada somente pela tradução literal da expressão.115 Mas além desse fator, o contexto paulino de ser habitado pelo Cristo / Espírito (Gl 2:20; 4:6) também dá sinais de uma experiência principalmente visionária, talvez com conotação auditiva, de natureza místico-apocalíptica.116 Du Toit,117 embora admitindo que Paulo teve experiências extáticas, acredita que nas expressões típicas paulinas que envolvem a preposição grega traduzida geralmente por “em” a ênfase não é o êxtase. Para ele, as expressões “em Cristo”, “no espírito” e semelhantes descrevem a experiência diária da presença de Deus pela habitação de Cristo e do espírito. Esta, segundo Du Toit, é a marca do misticismo paulino. Mas esse misticismo paulino de Du Toit, à semelhança dos conceitos convencionais, deixa a experiência religiosa esvaziada de Em Rm 1:17 e 3:21, tema central da carta ( Jonas Machado. Na pedra, no pergaminho, e no coração: um estudo de Romanos 2,15 e o acesso dos gentios à Lei de Deus. São Bernardo do Campo: UMESP, 2002. p. 33-34. Dissertação de mestrado), trata-se da revelação do evangelho em tempo presente, somadas aquelas ocorrências em que o destaque está em revelação de mistérios divinos, notavelmente na correspondência coríntia (1 Cor 2:10; 14:6; 26:30; 2 Cor 12:1-7; Fl 3:15). Mas também há uma revelação de Jesus Cristo esperada no futuro (1 Cor 1:7). 114 Machado, Paulo, o visionário, p. 199-200. 115 Martinus de Boer. “Paulo, teólogo do apocalipse”. In: Estudos de Religião 19, 2000, p. 145. 116 Ashton, The Religion of Paul, p. 230. 117 Andreas B. du Toit. “‘In Christ’, ‘In Spirit’ and related prepositional phrases: their relevance for a discussion on Pauline mysticism”. In: Neotestamentica 34 (2), 2000, p. 287 ss. 113

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conteúdo e não dá atenção suficiente à linguagem que denota uma experiência mais efetiva do espírito. Por outro lado, Goodenough e Kraabel insistiram num sentido subjetivo antagônico aos relatos do livro de At.118 Para eles, ao que parece, a expressão “em mim” de Paulo não corresponde a uma experiência mais externa até envolvendo outras pessoas como pressupõe o autor de Atos. Contudo, é possível que essas narrativas atribuídas a Lucas sejam uma versão da tradição visionária originada no testemunho do próprio Paulo. Paulo e experiência religiosa Mesmo que não existam dados suficientes para avaliar a natureza rica e complexa da experiência mística de Paulo, é possível afirmar que ele tinha em alta conta as visões e revelações como fator dinâmico e sinal de seu apostolado.119 Essa constatação aproxima Paulo dos apocalipses. Não somente uma aproximação de temas literários, mas de experiências religiosas semelhantes. A questão é que os autores desses textos, e também Paulo, não apenas produzem literatura. O que escrevem verte de sua experiência de fé, pois, frequentemente dão relatos de sua vivência como crentes, independentemente de como o observador ou pesquisador encara a questão da veracidade ou não de tal coisa. Beker, ao falar da apocalíptica como centro coerente do evangelho de Paulo, enfatiza que sua sistematização não pode levar a entender o fenômeno de modo puramente abstrato e especulativo. A apocalíptica, diz ele, foi concebida em âmbito Erwin R. Goodenough e Alf T. Kraabel. “Paul and the Helenization of Christianity”. In: Jacob Neusner (ed.). Religions in Antiquity. Essays in Memory of Erwin Ramsdell Goodenough. Eugene: Wipf & Stock Publishers, 2004, p. 26-27 (Studies in The History of Religions – Supplements to Numen XIV ). 119 Richard N. Longenecker. Paul, Apostle of Liberty: The Origin and Nature of Paul’s Christianity. Grand Rapids: Baker Book House, 1977, p. 243. 118

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profundamente existencial, na qual o apocalipsista tinha plena consciência da discrepância entre o que era a realidade e o que deveria ser, conhecia a trágica tensão entre a confiança na Torah e sua aparente futilidade diante da realidade vivida.120 Um marco importante no estudo de Paulo e sua experiência religiosa é o livro de Gunkel a respeito do ensino paulino sobre o espírito santo,121 levando em conta a perspectiva popular nos tempos apostólicos, publicado originalmente no final do século XIX. O interesse de Gunkel não é a doutrina sobre o espírito ou a descrição de fenômenos pneumáticos individuais.122 Ele quer investigar o que é tipicamente pneumático na experiência religiosa popular no primeiro século, na qual estão inseridos os autores do Novo Testamento e Paulo.

Em contraste com a postura da igreja organizada que geralmente pensa na revelação como algo estático no passado, Gunkel lembra que os fenômenos do misticismo e ocultismo sempre estiveram presentes em praticamente todos os povos e religiões. A comparação com eles, para Gunkel, deve ser instrumento de iluminação para o fenômeno cristão, uma vez que as fontes neotestamentárias são muito escassas e difíceis de interpretar. Apesar dessa afirmação, ele acabou limitando seu trabalho basicamente ao eixo judaico-cristão. Johan C. Beker. Paul The Apostle: The Triumph of God in Life and Thought. Philadelphia: Fortress Press, 1980, p. 135-136. 121 Embora Paulo tenha sido rotulado de “teólogo do espírito” – um título que põe ênfase no que seria uma teologia do espírito santo, as crenças de Paulo em relação ao “espírito” estão mais no âmbito da experiência no contexto místico apocalíptico ( Jonas Machado. “Paulo e o Espírito Santo no contexto das tendências recentes nas pesquisas” in: Fórum de Ciências Bíblicas, vol. 1. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006, p. 37-57). 122 Hermann Gunkel. The Influence of the Holy Spirit. The Popular View of the Apostolic Age and the Teaching of the Apostle Paul. Philadelphia: Fortress Press, 1979, p. 2-14. 120

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A tendência da igreja organizada, notoriamente a protestante, diz ele, no máximo considera fenômenos pneumáticos como questões do passado no cânon estabelecido ou geralmente os relega à periferia como heresias fanáticas. Em contraste, as grandes épocas religiosas e as grandes figuras da religião foram pneumáticas. Gunkel acreditava que tais fenômenos devem ser levados a sério no sentido de que não podem ser considerados apenas como superstições ou invenções literárias. Mesmo que esses elementos naturalmente sejam típicos deste âmbito, nada disto existiria se eventos reais de natureza psicológica não estivessem por trás. Paulo é escolhido por Gunkel porque ele oferece fontes importantes, visto que, para o apóstolo, como também para os demais cristãos primitivos, o fenômeno do espírito é o principal conceito de suas crenças. Mas, acrescenta Gunkel, para eles a questão não era dogmática. Nos documentos neotestamentários não há formulação doutrinária a respeito do espírito. Há testemunho de experiência religiosa decorrente do “efeito” 123 do espírito. É notória a afirmação de Gunkel de que a teologia paulina não decorre de sua leitura, mas de sua experiência.124 Talvez fosse mais preciso dizer que sua experiência forneceu o impulso inicial para a reformulação de suas crenças como apóstolo de Jesus Cristo, o que deu o norte para sua nova leitura da Bíblia hebraica e das tradições judaicas. O provocante e relevante livro de Gunkel antecipou uma pesquisa importante tendo em vista os fenômenos pneumáticos que passaram a caracterizar o mundo cristão e até predominar a partir do início do séc. XX. Ashton, The Religion of Paul, p. 31, considera insatisfatória a tradução inglesa influence (“influência”) no título do livro para o original alemão wirkungen que, segundo ele, seria melhor traduzido com o sentido de impact (“impacto”) ou, no plural, effects (“efeitos”). 124 Gunkel, The Influence of the Holy Spirit, p. 99-100. 123

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Apesar das conclusões hoje questionáveis,125 seu estudo também é notório pela ênfase na experiência religiosa de Paulo como típica do mundo desse apóstolo e não nos dogmas decorrentes da abordagem tradicional. Embora não tenha dado soluções, Gunkel abriu o caminho para pesquisas subsequentes.126 Schweitzer registra que o trabalho de Gunkel cobriu um aspecto até então negligenciado desde Baur, mas não anota nenhum desenvolvimento dessas pesquisas depois dele.127 O próprio trabalho posterior de Schweitzer e também o de Deissmann (ambos já citados) sobre o misticismo de Paulo não reconhecem Gunkel como precursor, apesar de destoarem da abordagem tradicional e teoricamente estarem mais próximos dele. Stendahl acabou mexendo com a questão da experiência religiosa paulina em seu famoso artigo sobre Paulo e o que ele chama de “Consciência Introspectiva do Ocidente”, mas o fez por outro viés.128 Para ele, a típica interpretação luterana do evangelho paulino como resposta a uma consciência pesada pelo pecado de não conseguir cumprir a lei na íntegra não pode ser encontrada em Paulo, mas na piedade agostiniana. Ele acredita que a experiência religiosa de Paulo não é a de alguém que teve a consciência aliviada pelo perdão por não ser capaz de cumprir toda a lei de Moisés. Stendahl sustenta ainda que a impossibilidade de cumprir a lei é parte de um argumento teológico e escriturístico paulino sobre a relação de judeus e gentios. Seria apenas uma maneira de justificar a colocação desses em pé de igualdade com aqueles. Idem, p. 127, concluiu que o ensino de Paulo sobre o espírito teve maior influência posterior que seu conceito de justificação e evoca o Evangelho de João como testemunha de tal influência. Mas é altamente questionável que o quarto evangelho seja dependente de Paulo (Bultmann, Teologia do Novo Testamento, p. 433-438). 126 Ashton, The Religion of Paul, p. 31. 127 Albert Schweitzer. Paul and his Interpreters. London: Adam & Charles Black, 1948. 128 Stendahl, Paul, p. 78-96. 125

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Embora nas entrelinhas do artigo seja possível concluir que o autor considera que isso é resultado do evangelho que Paulo recebeu, ele não desenvolveu a questão sobre como o apóstolo teria chegado a essa conclusão. Esse trabalho de Stendahl está numa linha interpretativa paulina de questionamento das interpretações tradicionais que desemboca na influente obra de Sanders sobre Paulo e o judaísmo palestino. Em seu livro mais importante, Sanders utilizou o que chamou de pattern of religion (padrão de religião) como conceito para interpretar a religião do judaísmo palestino e Paulo. Ele tenta definir o que quer dizer com a expressão: Um padrão de religião, enquanto não é o mesmo que teologia sistemática e enquanto não tem relação com muitas questões especulativas da teologia, certamente tem relação com pensamento, com o entendimento que está por trás do comportamento religioso, não apenas com questões externas desse comportamento. Assim, a partir da prática cultual é possível inferir que o culto de uma dada religião era percebido por seus adeptos como tendo certa função em sua vida religiosa. É a percepção de seus adeptos quanto à significância do culto que é importante, tanto quanto o fato de que o culto era observado.129

O que ficou destacado por Sanders em itálico enfatiza o aspecto central de sua abordagem. Ele quer contrastar seu método de análise da religião judaica e paulina com a teologia sistemática Edward P. Sanders. Paul and Palestinian Judaism: a Comparison of Patterns of Religion. Philadelphia: Fortress Press, 1987, p. 18 (os trechos em itálico representam destaques no original que estavam igualmente em itálico).

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tradicional. Enquanto esta tende a ser minuciosa e elaborada, Sanders acredita que existiam alguns conceitos religiosos padrão que determinavam a percepção dos fiéis quanto à função da religião em suas vidas. Parece que ele quer afirmar que as grandes questões religiosas estavam mais relacionadas a elementos visíveis e perceptíveis em âmbito popular e não tanto a elaborações teológico-sistemáticas minuciosas típicas dos especialistas. Ele quer desviar a atenção voltada para a elaboração teológica das escrivaninhas dos teólogos e passar para o que é percebido pelos próprios adeptos da religião em termos de prática de vida religiosa e de culto. Ao fazer assim, Sanders tangencia a questão da experiência. Entretanto, enfatiza, em itálico, o pensamento, entendimento e percepção dos praticantes. Desse modo, o assunto ainda é o aspecto intelectual da religião. Na conclusão, Sanders reconhece a importância da experiência por trás do pensamento religioso, mas considera um campo muito opaco para ser pesquisado e se contenta com a análise da religião em termos de pensamento.130 A questão, entretanto, é que a experiência religiosa, mesmo que difícil de pesquisar, não é apenas mais um elemento, mas um aspecto determinante para a compreensão do fenômeno religioso paulino. Nesse ponto entra a pesquisa de Luke Timothy Johnson, que observou a importância da experiência religiosa evidenciada a partir dos próprios registros neotestamentários. Enquanto há uma religião do altar, diz Johnson, que está mais ligada a conceitos teológicos concernentes à doutrina, moralidade, autoridade e conduta correta, ao mesmo tempo há uma religião de fundos. Esta última diz respeito muito mais à experiência Idem, p. 549.

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em termos de transformação e poder em várias formas.131 Nesse âmbito a questão não é se um determinado santo realmente existiu ou não, mas se a prece feita a ele cura de males. Aquela seria uma religião do discurso formal; esta, do poder informal. Johnson afirma que alguns ambientes cristãos conseguem manter esses dois mundos em certa tensão criativa, o que tem faltado às pesquisas acadêmicas. Estas reúnem volumes dedicados à teologia cristã e desenvolvimento institucional, mas deixam para trás a experiência religiosa. A razão disso, segundo Johnson, é que as pesquisas têm sido produzidas por estudiosos desse ambiente clerical formal que privilegiam textos reputados como legítimos e certas metodologias pressupostas. Também porque o mundo dos santos com suas aparições, relíquias, peregrinações, êxtases, curas, é reputado como religião popular não autêntica. Mas, diz Johnson, o Novo Testamento é repleto de linguagem experiencial, uma linguagem que não tem o propósito primário de estabelecer proposições sobre a realidade. Ela expressa a experiência religiosa das pessoas. Este tipo de linguagem é abundante em Paulo, referindo-se a ele mesmo e a seus leitores. Fala de um poder sobrenatural, que vem de fora e que é experimentado por eles. Esse poder se manifesta em maravilhas e sinais, incluindo cura, exorcismo, dons do espírito e linguagem de experiência extática. É poder transcendente. Exemplo disto é a linguagem do “espírito” ou “espírito santo” presente no Novo Testamento, especialmente em Paulo. O “espírito” é poder ativo.132 Vem de fora.133 Habita neles e os

Luke T. Johnson. Religious Experience in Earliest Christianity. Minneapolis: Fortress Press, 1998, p. 1 ss. 132 Rm 1:4; 8:26; 15:13.19; 1 Cor 2:4; 5:3-4; 12:11; 2 Cor 4:13; Gl 3:1-5; 1Ts 1:5. 133 Rm 8:15; 1 Cor 2:12-14; 2Co 5:5. 131

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move.134 Transforma-os e dá vida.135 É derramado sobre eles.136 É bebido por eles e os enche.137 Portanto, “espírito santo” é uma expressão linguística da experiência de poder. Para Johnson, o método histórico-crítico tem visto a história do cristianismo primitivo como a história de ideias teológicas ou instituições sociais porque a linguagem da experiência religiosa parece por demais subjetiva e imprecisa para a reconstrução histórica. Uma única exceção foi a “escola da história das religiões” (Religionsgeschichtliche Schule) que floreceu em Göttingen no final do séc. XIX e início do séc. XX, associada a nomes como Wrede, Bousset e Gunkel. Essa escola teve o grande mérito de reconhecer que o Novo Testamento não era primeiramente uma compilação de proposições teológicas, mas a expressão de convicção e experiência religiosa.Teve, por outro lado, o demérito de abusar das comparações, tirando amplas conclusões de pequenos detalhes linguísticos e exagerando a ênfase no gnosticismo e mistérios greco-romanos. Consciente dos problemas intrínsecos à pesquisa da experiência religiosa, Johnson (1998, p. 39 e ss) oferece uma abordagem a partir de certa metodologia específica que chama de phenomenological approach (abordagem fenomenológica). Esse autor reconhece a limitação de qualquer metodologia. Pretende, entretanto, se contrapor à tendência da cultura ocidental pós-séc. XVII d. C. de reduzir a experiência religiosa da antiguidade a elementos puramente sociopolíticos ou aprisioná-la a projetos filosóficos recentes. Por isso, ele define seu método como uma aproximação que deseja levar a sério a interação entre percepção religiosa e realidade. Isso sem fazer previamente julgamento de valor sobre a Rm 8:9.11.14; 1 Cor 3:16; 6:19; Gl 5:16.18. Rm 8:2.10-11; 12:2; 1 Cor 15:45; 2 Cor 3:6.18; Gl 5:25; 6:8. 136 Rm 5:5. 137 1 Cor 12:13; Ef 5:18. 134 135

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possibilidade de existência extramental138 ou a não existência dos estados de consciência implicados. Johnson,139 então, propõe trabalhar com rituais de iniciação, a glossolalia140 e refeições rituais, por serem elementos mais acessíveis para o estudo da experiência religiosa. Quer associar os resultados de pesquisas sociocientíficas recentes a respeito de religião com informações disponíveis sobre paralelos religiosos na antiguidade, mas focalizar os fenômenos religiosos específicos do passado. O trabalho desse autor é útil por querer valorizar a experiência religiosa como tal, como testemunhada por aqueles que a tiveram. Entretanto, embora escrita há poucos anos, a obra não dá espaço à apocalíptica, êxtase visionário ou a autores que estão desenvolvendo pesquisas nesse campo. A comparação com paralelos religiosos foi radicalizada, pelo menos do ponto de vista tradicional, por Smith, para quem os paralelos relativos ao batismo paulino como ritual de iniciação, que envolve morte, ressurreição e recepção do espírito para uma nova vida (Rm 6:3-11) são familiares ao mundo mágico antigo.141 A glossolalia e a busca por “espíritos”142 também caracterizam o universo da magia. Essa invocação de espíritos para a profecia, diz Smith, pode ter sido a prática mágica mais comum no mundo antigo. Não fica muito claro o que Luke T. Johnson (Religious Experience in Earliest Christianity. Minneapolis: Fortress Press, 1998, p. 44) quer dizer com “extramental”. Provavelmente o reconhecimento de que podem existir elementos do fenômeno religioso não acessíveis ao método científico, mas que nem por isso devem ser considerados não autênticos ou, a priori, como distúrbios psicológicos. 139 Johnson, Religious Experience, p. 67 e ss. 140 Stendahl, Paul among Jews and Gentiles, p. 109-124, também reconheceu o valor da glossolalia como experiência mística cristã, mas não desenvolveu o tema. 141 Smith, The Cult of Yahweh, p. 95-102. 142 Ele se refere à estranha expressão paulina “sois zelosos de espíritos” (tradução literal do original grego) em 1 Cor 14:12, geralmente parafraseada nas traduções com o sentido de buscar dons espirituais ou algo parecido (TEB, ARA, NVI, BJ). A estranheza da frase parece ter sido o motivo das variantes textuais posteriores em poucos manuscritos e algumas versões antigas anotados no NTG que trazem “de espirituais” que deixa subentendido “dons espirituais”. 138

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Outro elemento semelhante é a refeição ritual. Segundo Smith, à semelhança do encontrado em 1 Cor 11:23 ss, era comum em rituais mágicos contar histórias relativas aos efeitos dos elementos envolvidos no ritual, no caso o corpo e o sangue, e exortar sobre os perigos de participar sem a preparação adequada. É notável que Smith tenha usado os mesmos elementos empregados posteriormente por Johnson para associar Paulo a ritos mágicos antigos, mas esse em momento algum cita aquele. Smith também contribuiu destacando os vestígios de que a ascensão celestial em tempo presente, nesta vida, era algo comum não só no mundo judaico-cristão. Além de constar nas tradições mais antigas testemunhadas na Bíblia hebraica, era uma crença variada e extensa em todo o ambiente pré-cristão do mundo greco-romano.143 Segundo Smith, Jesus e seus seguidores estavam mergulhados num mar religioso caracterizado pela ascensão celestial. Portanto, vale ressaltar, esse oceano era bem mais amplo que as fronteiras judaicas. Envolvia o mundo antigo mais amplo, ainda que com manifestações próprias em cada lugar. É um engano imaginar que o misticismo dos judeus era único e particular, diferente de tudo que existia. Uma liturgia de Mitra é um exemplo de texto mágico que envolve ascensão e os temas do espírito, morte e ressurreição: Sê gracioso comigo, ó Providência e Psiquê, visto que escrevo estes mistérios registrados [não] para lucro, mas para instrução; e por apenas um filho único eu peço imortalidade, Ó iniciante deste nosso poder (todavia, isto é necessário por ti, Ó irmã, para tomar / os sucos de ervas e especiarias, que serão [feitos conhecidos] para ti no fim do meu santo tratado), que o grande deus Hélios Mithras ordenou para ser revelado a mim por seu arcanjo, assim Idem, p. 47-67.

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que eu sozinho subir para o céu como um inquiridor / e contemplar o universo.

Esta é a invocação do encanto: Primeira origem de minha origem […] primeiro início do meu início, […] espírito de espírito, o primeiro do espírito / em mim, […], depois da necessidade presente que me pressiona excessivamente, eu posso contemplar o imortal / começo com o espírito imortal, […], com a água imortal, […]; para que eu possa nascer de novo em pensamento, […] e o espírito sagrado pode soprar em mim, […]; pois hoje eu estou a ponto de contemplar, com olhos imortais – Eu, nascido mortal de ventre mortal, mas transformado por um tremendo poder e uma mão direita incorruptível / e com espírito imortal, […] PGM IV. 475-520144

Essa citação é importante para exemplificar como um texto sincrético dos papiros mágicos está próximo dos temas típicos do misticismo judaico. Apesar das diferenças, esse papiro menciona os mistérios145 divinos associados à ascensão aos céus e o anseio do praticante por transformação e imortalidade num ritual religioso mágico. Mas de volta ao artigo de Smith, este conclui que tal não é apenas produção de textos e sim evidência de práticas religiosas de ascensão aos céus. Portanto, não se trata apenas de criatividade Hans D Betz. The Greek Magical Papyri in Translation. Including the Demonic Spells. Chicago: The University of Chicago Press, 1986, p. 48. 145 Hans D Betz (“Magic and mystery in the Greek Magical Papyri” in: Christopher Faraone e Dirk Obbink. Magika Hiera: Ancient Greek Magic and Religion. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 249-253) observa que nos papiros mágicos não há distinção entre magia e mistério. Ao mesmo tempo mostra o quanto o tema do “mistério” expandiu no período helenista, incluindo a literatura cristã, notoriamente Paulo e sua escola. 144

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literária. Essa é uma conclusão que tem sido levada a sério mais recentemente pelos pesquisadores, embora o próprio Smith as relacione com alucinações.146 A já citada recente publicação de John Ashton se enquadra na tentativa de uma pesquisa religiosa sobre Paulo que ultrapasse os portões do mundo judaico-cristão e considere o mundo religioso mais amplo. A obra de Ashton aborda a religião de Paulo da perspectiva da comparação.147 Apoiado especialmente no livro de Lewis, que traz como título em português “êxtase religioso”, procura demonstrar a semelhança da carreira de Paulo com a de um típico xamã. Destaca como aspectos de sua vida e ministério podem ser iluminados sob o foco de sua experiência religiosa.148 Ashton, de fato, faz uma separação entre teologia e religião de Paulo. A teologia, conforme ele, é posterior à experiência religiosa paulina e formulada a partir desta.149 Portanto, o texto escrito é posterior, formado a partir do vivido e experimentado. É a experiência que dá forma final ao que foi escrito. Essa experiência, sustenta Ashton, resulta na leitura e deformação de outros textos lidos, no caso de Paulo, especialmente as tradições literárias da Bíblia hebraica. Tal ocorre uma vez que, por outro lado, experiência religiosa e teologia convivem juntas na mesma pessoa e não podem ser totalmente separadas.

A conclusão de que são alucinações também é bastante questionável juntamente com a teoria de fraude literária. Como disse Segal (“A construção do ‘eu’ transcendente em Terceiro Enoch”. In: Oracula: Revista Eletrônica do Grupo Oracula de Pesquisas em Apocalíptica Judaica e Cristã 4, 2006, p.10. www.oracula.com.br), “todos estes documentos em contexto não judaico são igualmente fraudes literárias ou doenças mentais alucinatórias? Parece estranho que tantas pessoas tivessem estado enganadas ou enlouquecido em formas tão elaboradas e peculiares, se não existiam estruturas sociais de credibilidade disponíveis para fazer esta viagem parecer possível”. 147 Ashton, The Religion of Paul, p. 6 ss. 148 Lewis, Êxtase religioso. 149 Ashton, The Religion of Paul, p. 5 ss. 146

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Fica implícita no trabalho deste autor a possibilidade de ligar os estudos apocalípticos relativos a Paulo com as pesquisas no campo da experiência religiosa. É possível tomar o aspecto central da apocalíptica das visões e revelações celestiais, que foram um padrão de experiência religiosa judaica do período paulino, como modelo para aplicação. Mas, ao mesmo tempo, a abordagem do tema buscando comparação com o xamanismo sugere superar os limites do eixo judaísmo-cristianismo que tem caracterizado os estudos até agora. O pesquisador judeu Segal publicou um livro que trata da experiência religiosa de Paulo da perspectiva do êxtase no âmbito da apocalíptica judaica.150 Suas conclusões apareceram posteriormente num capítulo de uma obra recente sobre a história das crenças na vida após a morte nas religiões do Ocidente.151 Sua ênfase, como o título do primeiro livro indica, é a conversão de Paulo. Mas, diferente de Kim, Segal acredita que a ascensão celestial e revelação não caracterizaram apenas sua conversão, mas toda sua carreira religiosa. Para Segal, Paulo está inserido nos moldes do misticismo da merkavah, e antecipa a terminologia técnica da transformação dos fiéis em anjos, presente no misticismo judaico posterior. Esse, de acordo com Segal, é o padrão da experiência religiosa do apóstolo.152 O autor afirma que, para entender o conceito de conversão em Paulo, este deve ser visto como um apocalíptico-místico antigo adepto da transformação divina. Sustenta que algo está perdido na pesquisa sobre o mundo antigo se a transformação e a ascensão celestial não forem levadas a sério como experiência religiosa, visto Segal, Paul The Convert, p. 34 ss. Alan F. Segal. Life After Death: A History of the Afterlife in the Religions of the West. New York: Doubleday, 2004, p. 399 ss. 152 Segal, Paul The Convert, p. 3 ss. 150 151

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que a linguagem paulina da ascensão e transformação é típica de seus dias. Mas Paulo é o primeiro dos místicos judeus a falar de transformação e o faz ainda de modo não desenvolvido. Não sabe dizer a natureza exata de tal experiência de ascensão e transformação (2 Cor 12, 2-3). Portanto, esse apóstolo deve ser incluído no âmbito mais primitivo dos pseudepígrafos que não distinguem ascensão corporal de espiritual. A experiência de ascensão é classificada por Segal153 como Religiously altered states of consciousness – RASC (“estados de consciência religiosamente alterados”), uma definição que procura evitar os conceitos pejorativos de alucinação e loucura, enquanto reconhece o fenômeno dentro de processos mentais legítimos mediados pelo contexto social.154 Segal155 dedica um capítulo para falar das consequências de tal experiência para a nova exegese que Paulo faz das tradições judaicas e de seu passado farisaico. As conclusões de Paulo, salienta Segal, não vêm das Escrituras propriamente, mas de sua experiência de conversão. O método não é novo, uma vez que Paulo já julgava antes sua experiência como fariseu à luz das Escrituras. As conclusões é que são novas, a partir de seu êxtase visionário damasceno. Entretanto, as novas conclusões não são apenas resultado instantâneo de sua revelação de Jesus Cristo em Damasco, mas também oriundas de um processo mediado posteriormente pela comunidade cristã que o acolheu.156 Idem, p.52 ss; Segal, Life After Death, p. 411. Uma outra sigla usada por Segal, “A construção do ‘eu’”, p. 13, mais recentemente é RISC – Religiously Interpreted State of Consciousness (“estado de consciência religiosamente interpretado”). Mas a definição envolve uma condição religiosa bem mais ampla que o êxtase, incluindo qualquer estado mental religioso como o experimentado em vários rituais e cerimônias sem quaisquer alterações maiores da consciência. 155 Segal, Paul The Convert, p. 117-149. 156 Segal, Life After Death, p. 410. 153 154

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Essa conclusão de Segal denota a importância de se considerar a experiência religiosa como fator determinante na pesquisa do fenômeno religioso paulino, inclusive para a melhor compreensão de sua exegese de textos bíblicos tão frequentes em suas cartas. A pesquisa de Segal também é importante para destacar o misticismo nos moldes referidos como padrão de experiência religiosa plausível, a partir do qual se justifica cientificamente um estudo sobre a religião paulina. Conclusão Não há dúvida de que o estudo das fontes paulinas é fundamental para que entendamos as origens do cristianismo, ainda que represente, a seu modo, apenas um viés da rica experiência religiosa dos primeiros cristãos. Não é possível sabermos com certeza em que proporção ele influenciou a primeira geração. Se ele não foi tão influente, o fato é que vem dele uma quantidade significativa de material disponível para a pesquisa das origens cristãs. Continuam jorrando os estudos paulinos no campo da exegese tradicional e da teologia, como demonstram as publicações. Mas cada vez mais esses estudos incluem o tema da apocalíptica em sua abordagem. A pesquisa na instância da experiência religiosa sempre encontrou resistência devido principalmente ao problema metodológico da dificuldade de abordagem da subjetividade. Contudo, o avanço dos estudos em determinar que existiam certos padrões de experiência religiosa e prática cultual oferece um caminho aberto para novos campos a serem desbravados. A pesquisa ora apresentada, a nosso ver, demonstra que existem campos inexplorados, ou pelo menos não explorados devidamente, que oferecem material riquíssimo para um melhor 148

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entendimento da religião desse fariseu que se tornou apóstolo de Jesus Cristo. Ainda que, por razão de força histórico-eclesiástica, sua teologia tenha sido explorada minuciosamente nos últimos séculos, o quadro religioso no qual estava envolvido permanece misterioso em vários aspectos. Mas o âmbito apocalíptico visionário que, no campo da experiência religiosa, está próximo do misticismo da merkavah fornece um “quadro de plausibilidade”,157 um pattern, que ajuda a trazer à luz pelo menos alguns aspectos deste mistério, pois os textos paulinos deixaram evidências de que esse apóstolo estava integrado nesse ambiente. Assim é possível afirmar que Paulo estava inserido num mundo religioso com contornos apocalípticos e místicos de natureza tipicamente visionária de revelação dos mistérios divinos. Das várias pesquisas em torno do indivíduo religioso Paulo, uma que tem se firmado é a que vê evidências em seus escritos de uma inserção no mundo apocalíptico, que também foi típico de Jesus e seus seguidores. Paulo não escreveu um apocalipse, mas tinha uma cosmovisão apocalíptica perceptível em vários temas típicos presentes em suas cartas. Dá indícios de ter sido um visionário semelhante ao místico da merkavah, como demonstra a linguagem que usou para falar de sua experiência. Dessa constatação decorre que o misticismo da merkavah é uma estrutura plausível para o estudo da religião paulina porque representa o mundo de suas crenças e práticas religiosas. Em suma, esse é um quadro que, enquanto põe em cheque algumas conclusões no campo dos estudos tradicionais da teologia paulina, também oferece material para enriquecer esses mesmos estudos, visto que evidencia que tais padrões eram centrais na Devo essa expressão ao professor Paulo Augusto de S. Nogueira. Experiência religiosa e crítica social no cristianismo primitivo. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 10.

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vida e carreira desse homem que deixou legado literário religioso tão marcante. Mais do que isso, a pesquisa das origens do cristianismo também tende a ser enriquecida com uma compreensão maior de um fenômeno religioso marcante na época, que esteve no âmago dos inícios da fé cristã e que incluiu o caso paulino, que tanto influenciou e tem influenciado o mundo.

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Identidades fluidas: controvérsias sobre mistura e separação em Mateus Elisa Rodrigues1

Reconhecemos à primeira vista um religioso muçulmano: mesmo quando tem um garfo e uma faca (o que é raro), ele fará o impossível para servir-se apenas de usar a mão direita. Ele jamais deve tocar o alimento com a esquerda e certas partes do corpo com a direita. Para saber por que ele não faz determinado gesto e faz outro, não bastam nem fisiologia nem psicologia da dissimetria motora do homem, é preciso conhecer as tradições que impõem isso. (Marcel Mauss)

Sobre o evangelho de Mateus Neste ensaio, tratamos o evangelho de Mateus como narrativa prescritiva que indica orientações para o comportamento social e religioso dos cristãos reunidos em torno do documento, na região de Antioquia da Síria por volta do ano 80-90 EC. Tais orientações foram tomadas da Torah e reinterpretadas por Jesus de Nazaré, reconhecido como fundador do movimento cristão do I século. Bacharel em Teologia, mestre e doutora em Ciências da Religião (UMESP). Professora no curso de Ciências da Religião do Centro Universitário Claretiano. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Oracula.

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Analisaremos como as orientações de Jesus visavam a estabelecer limites para a constituição da identidade cristã, em especial, dos leitores implícitos do evangelho de Mateus. Propomos que a narrativa mítica reproduzia internamente os conflitos macroestruturais entre a comunidade cristã de Antioquia, a ordem imperial romana e seus aliados, os partidos fariseus, escribas e saduceus. Identidade e etnicidade no evangelho de Mateus No evangelho de Mateus, narrativa mítica proveniente do sistema religioso judaico e dependente da Bíblia Hebraica, podemos identificar certa estrutura discursiva que pretende ser normativa. O evangelho apresenta aos seus ouvintes-leitores, noções de certo e errado, bom e mau, apreciável e abominável, puro e impuro. Na medida em que se materializa na religiosidade dos cristãos reunidos em torno do documento, essa dualidade coopera para a classificação dos comportamentos do grupo. Portanto, a identidade do grupo se define pela antítese, pela oposição, pelo que é contrário. Se, de um lado, “o outro” é sempre relacionado ao errado, ao mau, ao abominável e ao impuro, do outro lado, as noções de certo, bom, apreciável e puro são atribuídas aos que fazem parte da unidade social que se comporta segundo as memórias e as histórias judaicas, evocadas pelo evangelho de Mateus. Com Lévi-Strauss, entendemos que o ato de pensar, mitológica ou cientificamente, tende a ordenar a realidade a partir de quadros que se supõem coerentes, de acordo com as categorias do pensamento que se desenvolvem de formas diferentes em períodos históricos, espaços físicos, condições sociais e culturais determinadas, etc. Assim, a ordem se verifica num processo contínuo e renovado de classificação.2 Claude Lévi-Strauss. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989, p. 15-49.

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Nessa perspectiva, o evangelho de Mateus teve origem no esforço de um grupo de cristãos em Antioquia (por volta dos decênios 80-90 da EC), ávidos pela construção de noções que favorecessem a unidade do grupo, dos laços de solidariedade e do sentimento de pertença. Isso era necessário porque nesse período o movimento cristão havia se ampliado e conquistado a adesão de pessoas de outras origens diferentes das judaicas. No desenvolvimento desse processo, a autoria do evangelho optou consciente, às vezes, inconscientemente, por imagens, memórias e histórias do passado de Israel que contribuiriam para a fundação e delimitação de fronteiras etnoculturais e religiosas que conferissem identidade ao grupo. Sem querer traçar relações imediatas aqui e fazer uso indébito de categorias modernas, podemos dizer que a situação de diversidade cultural da comunidade cristã em Antioquia era favorecida pelo fluxo de informações e de experiências que aquela região helenizada proporcionava. Sabemos que a pergunta pela etnicidade da autoria é bastante complexa. Essa questão, em especial, não tem obtido muita atenção porque “as linhas culturais entre judeus e gentios no mundo antigo não eram rígidas”.3 Certas diferenças entre os vários grupos étnicos reunidos sob o império só poderiam ser reconhecidas mediante a observação de certas práticas, costumes, crenças e marcadores culturais. Mesmo as línguas semitas teriam caído em desuso em muitas regiões. Jaeger informa que na Palestina a língua grega era usada e entendida nas atividades de comércio e negócios em geral, principalmente entre as elites judaicas.4 Os judeus falavam em grego, mas talvez só pudessem ser efetivamente reconhecidos por nuances nos trajes, pela submissão aos rituais judaicos, pela observância do sábado, pela circuncisão, pelos hábitos alimentares, Warren Carter. Matthew. Storyteller, Interpreter, Evangelist. Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2004, p. 17. 4 Werner Jaeger. Cristianismo Primitivo e Paideia Grega. Lisboa: Edições 70, p. 18. 3

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pelos costumes e expressões típicas. A dificuldade de se definir a etnicidade do autor mateano e se o que o constituía era judaico ou gentílico reflete a complexidade cultural do Mediterrâneo no I século. O helenismo estava espalhado por todo o mundo antigo. Em nenhum lugar, mesmo entre os judeus de comunidades da Palestina e na Diáspora, haveria possibilidade de se isolar dessa influência. Por essa razão, não se define apenas por meio da análise linguística a origem da autoria mateana. Warren Carter propôs que o autor de Mateus seria um judeu educado em três línguas. Ele teria escrito com competente grego, mas teria de modo igualmente competente, o domínio do aramaico e do hebraico. O autor estaria familiarizado com as tradições, as práticas judaicas e as instituições: Davi, Moisés, o Templo, Jerusalém [4:5; 5:34-35; 27:53], o Sabbath [24:20], o contraste com a sinagoga (cf. 6:1-18 e outros).5 Sabe-se que as Escrituras judaicas traduzidas para o grego (LXX) foram muito usadas nas sinagogas da Diáspora, também em função da influência helenística sobre Jerusalém, onde se falava o grego. Mas, ainda assim, não se pode afirmar a etnicidade judaica ou gentílica de Mateus somente a partir de certas ênfases particulares. Alguns escritores entenderam que havia polarização de gentios em Mateus e isso indicava a identidade gentílica da autoria. Essa leitura se baseou na interpretação segundo a qual Israel teria sido rejeitado por Deus e os gentios foram feitos objeto do favor divino. Mateus 23, segundo essa interpretação, evidenciaria tal relação por meio da aspereza de Deus em relação As evidências mostram que o evangelho teria sido escrito em grego e não em hebraico, conforme alguns comentaristas propuseram. A declaração quanto à redação de Mateus em hebraico, provavelmente, foi baseada nas declarações do período antigo. Cf. Charles C. Torrey. Our Translated Gospels. New York / London: Harper, 1936; Basil C. Butler. The Originality of St. Matthew. Cambridge: Cambridge University Press, 1951; William F. Albright e Christopher S. Mann. Matthew. New York: Doubleday, 1971.

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aos líderes religiosos. Mateus 21:43-45, que afirma que o reino de Deus seria tomado de Israel e dado a outro povo que produzisse mais frutos, foi interpretado no mesmo sentido. Para esses autores, a autoria de Mateus teria “visão internacional”. Outro argumento geralmente usado em favor da autoria gentílica é o nascimento virginal de Jesus (1:18-25), que não teria paralelo na literatura judaica.6 Entretanto, as evidências na redação mateana e as características judaicas da história (a genealogia, a forma do anúncio, a simbologia de pureza no batismo e no deserto, as alusões e citações da Lei, os simbolismos judaicos e a lembrança implícita de Moisés) apontam para um escritor judeu, ciente do avanço da exegese de Jesus rumo aos não judeus e preocupado com a matriz judaica do movimento. Ao contrário da moldura narrativa de Marcos e de Lucas, a história contada pelo evangelho de Mateus privilegia a tradição e a religião judaica, e isso o evangelho faz tendo em mente os judeus ligados à tradição ancestral e os judeus imersos na ordem romana, muito próximos até mesmo dos gentios que se convertiam a Jesus. Ao que parece, o primeiro grupo figurava como principal atenção da autoria e isso pode ser explicado pela necessidade de comprovação de que a audiência mateana não consistia numa seita ou nova religião. Mas de forma também notória, a redação mateana não prescinde dos ouvintes helenizados, tanto judeus quanto gentios. Com cautela, entendemos que se o grupo de ouvintes-leitores de Mateus contava com massiva participação de judeus e de judeus convertidos aos ensinos de Jesus, a análise do discurso mateano, rico em expressões e alusões típicas da religião e cultura judaica, parece apontar para uma autoria cuja etnicidade fosse primordialmente semita.

Kenneth W. Clark. The Gentile Bias and Other Essays. Leiden: Brill, 1990, p.165-172; William D. Davies e Dale Allison Jr. A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel according to Saint Matthew. Edinburgh: T & T Clark, 1988-1997, vol.1, p. 21-24.

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Isso significa que a conversão aos ensinos de Jesus de Nazaré não denotava a negação do judaísmo. No mesmo grupo, ainda, judeus helenizados teriam atendido positivamente à mensagem do reino, mas em função da imersão na cultura do império, já não atendiam satisfatoriamente aos preceitos da Lei. Uma terceira participação seria a de estrangeiros. Uma presença que não contentava a maioria judaica da audiência e, em especial, teria despertado as críticas de partidos políticos e grupos judaicos que reclamavam para si a verdadeira interpretação da Lei e os acusava de não fiéis à tradição. O caleidoscópio de Mateus. Imagens, memórias e histórias judaicas Com frequência, cores, imagens, lugares e histórias são invocadas na construção de narrativas e de outras “novas” histórias. Isto faz parte da intertextualidade oral que se reproduz na intertextualidade da escrita. Trata-se das reminiscências do passado que fornecem o lugar e as condições para a constituição do presente, como um fundo ordenado (ou não) de ideias e lembranças. Assim ocorre com a redação mateana. As memórias ancestrais, os mitos fundantes, as tradições e os códigos culturais circulavam como estratos sobrepostos que contribuíram para a redação de Mateus, explícita ou implicitamente. Nisso se traduz a importância de se reconhecer nas narrativas mateanas não apenas as tradições sobre Jesus, mas as concepções da religião e da cultura judaica que dizem respeito a Israel e, em especial, ao grupo de Mateus: quem são, quais suas expectativas, como se entendem e como entendem “os de fora”, que os rodeiam. A narrativa da mulher Cananeia (15:21-28) indica o valor que Mateus atribuiu à matriz judaica. Se comparada à versão marcana, o texto de Mateus apresenta características que enfatizavam a 156

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missão para Israel e a relutância em relação aos gentios: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (v.24). Isso se verifica também na designação “mulher cananeia” (γυνὴ Χαναναία) empregada na redação mateana (v.21), que usualmente os israelitas utilizavam para imprimir sentido pejorativo aos que provinham da região de Tiro e Sidom. Na redação de Mc 7:26, ao contrário, a expressão usada foi “grega, uma sírio-fenícia” (γυνὴ ἦν Ἑλληνίς Συροφοινίκισσα). Mateus também teria sutilmente omitido a referência marcana em que Jesus teria dito “Deixa que primeiro os filhos se saciem porque não é bom tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos” (Mc 7:27). O verbo “deixa” (ἄφες), no imperativo aoristo, designa convicção. Nas palavras de Mateus, somente mediante a insistência da mulher é que Jesus teria dito: “Não fica bem tirar o pão da boca dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos” (Mt 15:26). Portanto, não haveria a sequência missão para israelitas e depois para gentios. O foco mateano seria a missão exclusiva para Israel. Outro indício que atesta a maneira judaica de Mateus pensar e escrever, nesse mesmo verso, é o uso da palavra kynariois (κυναρίοις) de kynarion (κυνάριον) que significa “cachorrinho”. Esse termo ocorre apenas nos ditos de Jesus registrados em Mc 7:27 e em Mt 16:26, e em sentido figurado. Não podemos afirmar que Jesus tenha adotado o hábito judaico de denominar pessoas de diferente fé de kyōn (κύων), isto é, cachorro (Mt 7:6). Mas, nessas palavras atribuidas a Jesus, aqueles que não eram de origem judaica foram comparados aos cachorros da casa. Semelhantemente, num texto exclusivo de Mateus, lê-se: “Não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas aos porcos, para que não as pisem e, voltando-se contra nós, vos estraçalhem”. A escolha do termo kynarion pode indicar que Jesus tinha em mente cachorrinhos que seriam tolerados pela casa (Israel). 157

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Portanto, essa metáfora reconheceria a exigência divina entre judeus e gentios e aceitaria o privilégio histórico de Israel. Mc 7:27 interpretou tal dito segundo o entendimento de que a descendência da casa seria primeiramente satisfeita (πρώτον). A resposta da mulher gentia (Mt 15:27, Mc 7:28) mostrou que em obediência à vontade de Deus, ela reconhecia a prerrogativa de Israel, todavia, seu apelo à prontidão de Jesus em ajudá-la, a despeito das fronteiras étnicas e culturais, e a demonstração de sua fé no senhorio messiânico de Jesus, mereceu o reconhecimento de Cristo: “Diante disso, Jesus lhe disse: Mulher, grande é a tua fé! Seja como queres! E a partir daquele momento sua filha ficou curada”.7 Para a audiência de Mateus, a acusação de afastamento da Lei e da tradição judaica deve ter gerado alguma esquizofrenia. Seguia-se a Lei conforme a orientação de Jesus, um judeu autêntico, como não eram completamente judeus? A diversidade de línguas poderia ser um indício da não pertença judaica, pois muitos membros do grupo de Mateus não falavam a língua hebraica, o que é bastante problemático visto que a língua se liga a própria vida, das pessoas e dos povos. Por outro lado, o grupo de Mateus não era de procedência romana e não se conformava totalmente às práticas e costumes de Roma. De pronto, Mateus se colocava contrariamente a dois grupos: de um lado, Roma e, do outro, lideranças religiosas judaicas (fariseus, escribas e saduceus), contrárias à exegese mateana e à comunidade de Antioquia. Em razão dessas controvérsias, a audiência mateana necessitava forjar certo discurso que a um só tempo (1) estabelecesse a legitimidade de sua matriz judaica e interpretação da Torah, (2) instruísse os judeus de fala grega quanto às origens de sua tradição e (3) fundasse uma nova história de Israel calcada no evento Jesus, que abarcasse judeus e gentios. Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich (Ed.). Theological Dictionary of the New Testament. Michigan: Eerdmans, 1972-1989. Ref. 2965.

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Em função dessas razões, a narrativa de Mateus a respeito de Jesus e de suas tradições alçava o posto de “novo mito”. A expectativa de Mateus era que com sua narrativa, os judeus, os judeus helenizados e os estrangeiros convertidos aos ensinos de Jesus pudessem elaborar uma fé em comum que fosse constitutiva para esse grupo social em formação, que, aos olhos dos partidos fariseus, saduceus e escribas, era ambíguo e sem lugar dentro da comunidade judaica, portanto, uma ameaça à sua ordem. A frase inicial do evangelho de Mateus “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Βίβλος γενέσεωζ Ἰησοῦ Χριστοῦ υἱοῦ Δαυὶδ υἱοῦ Αβραάμ-1:1) é indicativa do intento de propor um “novo mito”. Essa frase teria a precisa função de trazer à lembrança dos membros judeus de sua audiência os trechos de Gn 2:4 e 5:1, cercados por um conjunto de imagens relacionadas à mitologia judaica, especialmente: 1) a criação do mundo e da humanidade, 2) as memórias sobre os resultados da fé dos patriarcas, 3) o julgamento futuro de Deus sobre a humanidade 4) e a disposição divina em restabelecer ordem na sua criação.8 Em Gn 12:1, Iahweh declarou seu propósito a Abraão: ele seria pai de muitas nações e por meio dele todas as nações seriam abençoadas. O evangelho de Mateus faz relação entre Jesus e histórias de antepassados judeus, ao evocar a genealogia e a antiga história do patriarca Abraão, pai de todas as nações. Cf. Karl-Josef Kuschel. Abraham: Sign of Hope for Jews, Christians and Muslims. New York: Continuum, 1995, p. 3-68. Se de fato houver relação entre essa tradição e o evangelho de Mateus, Carter não estaria incorreto quando sugeriu que a comunidade de Mateus teria como tônica a vontade missionária de evangelizar gentios (3:7-10; 8:5-13). Nesse sentido, Jesus seria o agente por meio do qual se realizaria não a conversão individual dos gentios, mas a benção para todas as nações do mundo Cf. Warren Carter. “Matthew and the Gentiles: Individual Conversion and/or Systemic Transformation?” In: Journal for the Study of the New Testament 26 (3), 2004, p. 263. A esse respeito, Saldarini sugeriu que textos como o do centurião (8:5-13) e o da mulher cananeia (15:21-28) são insuficientes para argumentar que tais narrativas periféricas poderiam demonstrar que o evangelho mateano se direcionava à missão entre gentios ou ao grupo gentílico. O autor argumenta que o caso da fé do centurião em contraste com a falta de fé de Israel é semelhante ao julgamento das cidades da Galileia (11:20-24) e aos ditos sobre Nínive e a rainha do sul (12:38-42). Tratava-se de um topos da literatura judaica que funcionava como artifício retórico e que,

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O início do evangelho, portanto, retoma a lembrança da história da criação de Deus e de seu propósito soberano para o mundo e a humanidade, colocando o grupo de Mateus dentro de uma perspectiva classificatória. Desde a frase inicial, o evangelho reivindica laços de parentesco com a linhagem de Abraão. Assim, aqueles que tiverem fé em Cristo, filho de Davi, filho de Abraão, estariam aptos à herança do reino, o que necessariamente implicava obedecer à Lei. Em uma ocasião em que Abraão foi citado explicitamente pelo evangelho mateano (22:23-33), também a situação era de confronto entre um partido judaico – os saduceus – e Jesus. Todavia, a polêmica gerada se relacionava ao tema da ressurreição. Nesse episódio, os saduceus perguntaram a Jesus com quem uma viúva concedida em casamento aos irmãos de uma família, um a um, em decorrência do falecimento de todos os maridos se casaria na ressurreição. Jesus respondeu: “Estais enganados, desconhecendo as Escrituras e o poder de Deus. Com efeito, na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas são todos como os anjos no céu. Quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus vos declarou: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó? Ora, ele não é Deus de mortos, mas sim de vivos” (vv. 29-33). Nessa emblemática citação de Ex 3:6, a autoria indica: 1) largo conhecimento das Escrituras e da sua autoridade e 2) consciência do debate sobre a ressurreição (tema controvertido entre saduceus e fariseus: os primeiros a negavam, em oposição ao segundo grupo). Além de requerer a legitimidade das Escrituras e imputá-la ao seu igualmente, se identifica aos julgamentos proféticos contra Israel, típicos da Bíblia Hebraica. Portanto, não podem ser considerados como condenação de Israel em favor da missão entre gentios. Cf. Anthony J. Saldarini. Matthew’s Christian-Jewish Community. Chicago: University Chicago Press, 1994, p. 69. A perspectiva do Jesus mateano era de restauração escatológica para Israel, incluindo judeus e gentios íntegros. De acordo com 13:24-30, os herdeiros e filhos do reino seriam judeus e gentios, ambos, se fossem considerados corretos. Tanto um grupo como o outro se quisessem entrar no reino deveriam se tornar puros. A perspectiva mateana nesses textos é especificamente moral e não ética. Cf. Saldarini, op.cit. p. 76.

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discurso, Jesus declarou a convicção de que a descendência ancestral – Abraão, Isaac e Jacó – estava viva (ζώντων). A redação mateana apresenta, portanto, muitos casos de uso do Pentateuco. Tal emprego, entretanto, difere do uso da fonte Marcos porque Mateus narra uma nova história. A autoria mateana construiu a narrativa com apurada seleção de subtextos, mas a escolha de tais estratos não se ateve aos textos referências, isto é, não se preocupou com os sentidos tradicionalmente atribuídos a tais trechos. Mt 1:1 Cormpreende Biblos gênesis de modo diferente em relação ao Gn 2:4 e 5:1. Nesse caso, os subtextos funcionaram apenas como sinais de afinidade entre as estruturas.9 Isso também se verifica nos cinco grandes discursos do evangelho de Mateus que parecem aludir ao Pentateuco. Em 5:1-2 e particularmente em 7:28-29, Mateus retoma a experiência de Moisés sobre o Monte Sinai. As frequentes reminiscências de Moisés permeiam o evangelho de Mateus e formam a cristologia do Emanuel (1:22-23 e 28:20).10 O evangelho de Mateus, apesar de fundado e engajado no mundo imperial romano, destacava três temas: (1) as tradições de Jesus, (2) a relação de Mateus com outros evangelhos e fontes (Marcos, em especial), e (3) a relação de Mateus com o império romano. O último ponto representa, em especial, um dos recursos utilizados pela autoria de Mateus para revestir de autoridade sua interpretação da Lei e afirmar o status judaico de seu grupo. Tratava-se de uma formulação discursiva dualista que instituía Roma como par de oposição para sua audiência.

Ulrich Luz. “Intertexts in the Gospel of Matthew”. In: Harvard Theological Review 97 (2), 2004, p. 129. 10 Dale C. Allison. The New Moses. A Matthean Typology. Minneapolis: Fortress, 1993: “Eu não assumo, entretanto, que as várias alusões a Moisés formem uma cristologia coerente de Jesus como ‘novo Moisés’”. 9

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O “outro” é Roma A situação das comunidades cristãs em relação ao império romano caracterizava-se pela dominação desde 63 a. C. O domínio romano acentuou a interferência na cultura e nas formas de viver judaicas. Nas cidades romanas, entre grupos estrangeiros compostos por comerciantes, artesãos, mercadores, escravos, exilados políticos, soldados, assalariados, residentes, residentes não cidadãos, emigrantes e outros, havia grupos que mantinham alguma identidade decorrente principalmente de valores culturais e crenças. Dentre os tais, destacavam-se colonos romanos e judeus que “normalmente se achavam organizados como comunidade distinta, governada por suas leis e instituições próprias”, o que, às vezes, valia-lhes igualdade como cidadãos.11 Embora o ambiente urbano não fosse totalmente favorável, tendo em vista as divisões de “classes”, havia judeus que se beneficiavam do sistema romano e que, eventualmente, poderiam até mesmo ocupar cargos políticos concedidos pelo império ou mesmo conquistar a civitas romana.12 No campo, a situação não era favorável, visto que crescentemente os recursos e propriedades produtivas se concentravam nas mãos de proprietários que residiam nas redondezas (vilas) ou nos centros urbanos. Os pequenos proprietários tornaram-se poucos e muitos deles foram reduzidos à condição de administradores, servos ou escravos. Outros se deslocaram para as cidades. Entre campo e cidade, segundo MacMullen,

Wayne A. Meeks. Os primeiros cristãos urbanos. O mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 28. 12 Tibério Julio Alexandre, judeu e sobrinho de Fílon, tornou-se procurador da Palestina e prefeito do Egito e o pai de Paulo, por serviços prestados à administração romana, conquistou a cidadania romana (At 22:28). Cf. Meeks, op.cit. p. 29 e p. 65-66. 11

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estabelecia-se uma relação tensiva e hostil,13 caracterizada pelo que denominou “conservadorismo”.14 Não obstante essa interpretação, Crossan e Horsley analisaram documentação arqueológica e propuseram, inversamente a McMullen, que as regiões campesinas não se isolavam ou hostilizavam os centros urbanos com ostensividade. Exemplo dessa assertiva seria Nazaré, uma aldeia judaica não tão importante quanto Jafa, mas certamente vitimada pelas pressões administrativas do império, quer por intermédio de Herodes ou por meio de Antipas.15 Com datação entre os sécs. II e IV d.C., existem referências não cristãs, como inscrições feitas em mármore encontradas em Cesareia e uma lista de localidades onde os sacerdotes se fixaram por ocasião da primeira guerra romano-judaica (em 70 d.C.), que se referem à 18ª ordem religiosa instalada em Nazaré. Embora os vestígios das primeiras ocupações sejam escassos, as tumbas e as câmaras com cavidades escavadas nas laterais configuram certo padrão judaico existente há cerca de 200 a. C. Desse modo, em plena era romana, Nazaré era uma aldeia judaica e agrícola não alheia ao império, visto que se situava a quatro ou cinco quilômetros de Séforis,16 “cidade da paz”.17 Ramsay Macmullen. Roman Social Relations. New Haven / Londres: Yale University Press, 1974, p. 15. 14 Idem, p. 27. 15 Richard A. Horsley. Arqueologia, História e Sociedade na Galileia. O Contexto Social de Jesus e dos Rabis. São Paulo: Paulus, 2000, p. 103. 16 Outras evidências, como grutas artificiais dentro da aldeia antiga, cisternas de água, prensas de azeitona, tonéis de óleo, mós e silos para grãos indicam a agricultura como atividade principal dos aldeãos. Cf. John D. Crossan. O Jesus histórico. A vida de um camponês judeu do Mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p.50-5; Horsley, Arqueologia, p. 101. 17 Cidade refundada por Herodes Antipas com elites judaicas nativas que ele preservou. No período da revolta contra Roma, a cidade criou moedas nas quais havia numa face um corno mitológico (cornucópia), um símbolo numismático judaico de fertilidade, de abundância, de agricultura. Do outro lado da moeda havia uma inscrição com o nome do Imperador Cláudio, porém, sem imagem, sinal de respeito à tradição religiosa judaica. A inscrição na moeda era cautelosa e dizia “Abaixo de Vespasiano, 13

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Sabemos que, desde a presença grega, transformações significativas haviam ocorrido, mas a romanização do território contribuiu para o processo de urbanização e a consequente mudança na configuração social da Palestina. Os romanos impunham cargas tributárias (executadas pelos publicanos) sobre os agricultores, que aos poucos perdiam suas propriedades. Essa circunstância era agravada pelo sistema de endividamento elaborado pela oligarquia religiosa, cujo não pagamento resultava no confisco das terras para o Templo ou para colonos romanos. À medida que o império romano avançava com semblante de vitória e com a promessa de paz, instaurava fertilidade para si e exportava violência com o nome de ordem.18 O poder absoluto que Roma exercia sobre as etnias e culturas conquistadas tornava o império autoritário e hierárquico.19 O império desenvolveu uma relação clientelar com as elites econômicas e políticas locais, que lhes garantia privilégios e alguma estabilidade. Dentre essas elites estavam os partidos de fariseus, escribas e saduceus. As alianças e o patrocínio favoreciam as relações do império com estrangeiros e o estabelecimento da dependência entre classes superiores das cidades orientais e o próprio império.20 O princeps oferecia proteção e honras aos aristocratas locais, que lhe demonstravam lealdade como sinal de reciprocidade. Os favorecimentos, portanto, limitavam-se às aristocracias urbanas e principalmente aos mais ricos. Dentro dessa estrutura histórica, estabelecia-se uma conjuntura: de um lado, um império dominador e, de outro, um povo dominado. A situação era agravada pelo fato de que lideranças religiosas (aristocracias locais) foram favorecidas pela em Eirenopolis – Neronias – Séforis”. A expressão grega Eirenopolis, “cidade da paz”, gravada na moeda indicava que a cidade se recusava a rebelar-se contra Roma. Cf. John D. Crossan e Jonathan L. Reed. Excavanting Jesus. Beneath the Stones, Behind the Texts. New York: Harper Collins, 2002, p. 163. 18 Crossan, O Jesus histórico, p. 77. 19 Idem, p. 78. 20 Glen W. Bowersock. Augustus and the Greek World. Oxford: Clarendon Press, 1965, p. 29.

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relação clientelar com o império, motivo pelo qual necessitavam zelar pela ordem, pela preservação da religião e pela autoridade exclusiva que lhes fora atribuída. Certamente, nesse âmbito, as lideranças cristãs e outros grupos que emergiram a partir da segunda metade do séc. I configuravam certa ameaça à estrutura social acordada entre o império e as tais elites. Nesse embate,Mateus encontrou a conjuntura ideal para a evocação de uma construção mítica imemorial e típica do Mediterrâneo Antigo, que se lê em Mt 13:38: “O campo é o mundo. A boa semente são os filhos do Reino. O joio são os filhos do Maligno”. Na oposição filhos do reino (υἱοὶ τῆς βασιλείας) versus filhos do maligno (υἱοὶ τοῦ πονηροῦ) se estabelece o “outro”, alteridade a partir da qual a audiência de Mateus se unifica. Para indivíduos que participam do mesmo sistema religioso, a imagem mítica de um “outro”, no caso, de um outro que é inimigo, possibilita o reconhecimento deque constituem uma unidade, um grupo social que se reconhece pelas mesmas crenças, pelos mesmos valores, pelos mesmos costumes, pelas mesmas regras a seguir e pelos mesmos valores pelos quais devem lutar e resistir. Nesse caso, a narrativa de origem mateana representa o mito fundante que confere ordem à experiência social, que estabelece a história dessa unidade e que reúne as memórias que dão sentido ao grupo. Se Jesus havia resistido ao tentador no deserto, analogamente, os cristãos mateanos tinham que resistir ao tentador representado na figura de Roma e seus aliados. O logia de Jesus apresentado em Mt 13:38 explicita e legitima a construção mítica da realidade, da qual partilhava a audiência do evangelho: “a boa semente” judaica em oposição aos “filhos do maligno”, os pagãos estrangeiros. A antítese pressupõe separação e diferença entre o grupo de Mateus e os que não pertenciam a esse grupo. Assim, o que definia a identidade era a pertença à tradição e seus preceitos religiosos pautados na Lei, como: o cumprimento 165

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dos rituais de pureza, a observância do sábado, a circuncisão, o modo de vestir, os hábitos alimentares, mas principalmente o seguimento dos ensinos de Jesus, seja para o judeu de origem ou para o judeu “convertido”. Tais preceitos mateanos configuravam as marcas da herança do reino, daqueles considerados povo de Iahweh. Mistura e separação na construção identitária de Mateus Embora a redação mateana tenha admitido o caráter misto de sua audiência, excluía gradativamente o que não se acomodava às noções de pureza herdadas da tradição religiosa judaica. Como observamos, a autoria tomou como paradigmas de sua proclamação admonitória a história de Israel, suas memórias e leis norteadoras, o que fez tecendo intertextualmente evocações míticas, Pentateuco, palavras dos profetas e lembranças de lugares, crenças e costumes judaicos. O que é interessante notar, entretanto, é que, mesmo estabelecendo marcadores de diferença entre o eu e o outro, tais categorias eram inseparáveis. A construção da noção de identidade implicitamente requer a alteridade e não a exclui completamente. O próprio crescimento da comunidade impunha internamente o debate sobre a identidade do grupo. As críticas feitas pelos adversários de Mateus se avolumavam justamente em função da adesão de estrangeiros ao grupo. Se de um lado, a comunidade de Antioquia não poderia ser de tradição judaica em função das controvérsias e das acusações de desrespeito aos preceitos da Lei relacionados aos rituais de pureza, ao Sabbath, à alimentação e a outros costumes, por outro lado, a audiência mateana declarava fé numa única divindade, portanto, não poderia ser de tradição grega ou romana. Embora respeitasse os ditames de Roma, não se submetia completamente ao padrão helênico, pois guardava a 166

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Torah interpretada por Jesus, diferentemente dos partidos judaicos a quem acusavam de elites cooptadas e hipócritas. Esse caráter ambíguo da comunidade de Mateus e a inadequação explicitada no conflito de interpretações entre a autoria mateana e as lideranças religiosas judaicas é que favoreceu a redação autônoma e criativa desse evangelho. A audiência mateana constituía o público principal da redação (e isso se verifica no trato de temas teológicos e religiosos) e se destinava às controvérsias com lideranças judaicas que interpelavam a comunidade, nos planos: 1) das leis mosaicas e rituais de pureza (com fariseus e saduceus) e 2) dos ensinamentos e tradições judaicas (com escribas). A religião entendida como esquema classificatório é um sistema continuamente renovado. Nesse sentido, mesmo que judeus apegados à tradição, à Lei mosaica e às histórias dos patriarcas intentassem manter uma tradição “pura”, despida de misturas e completamente “separada” de influências estrangeiras, o processo histórico possibilitou, por meio das situações de impérios, a conjuntura de trocas simbólicas efetivas entre judeus e as civilizações dominadoras às quais foram submetidos. De pronto, percebemos que a ideia de uma tradição judaica pura não se sustenta. Trata-se, antes, de um construto, de uma tradição idealizada. Na mesma perspectiva se insere a obra literária de Mateus. A tradição que a autoria forja numa tentativa de propor um elemento articulador de identidade para seu grupo é uma tradição inventada, nos termos que Hobsbawm esclareceu: Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, 167

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automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.21

No limite, a busca pela identidade se refere a uma busca por lugar, pelo enquadramento dentro de um esquema classificatório. Mas, na medida em que a autoria forjou seu evangelho admitindo a “mistura” (amenizada pelo requisito da obediência à Lei) com estrangeirismos culturais e convertidos ao cristianismo, a controvérsia se acirrou porque, sendo a exegese de Jesus o paradigma de aproximação da Lei, a autoria admitiu para si uma identidade ambígua, inadequada e não classificável. Do ponto de vista dos partidos judaicos, o grupo de Mateus era completamente anômalo, “fora de lugar”, visto que não atendia corretamente às prescrições da Lei, segundo o que consideravam verdadeira tradição. Interessante notar, entretanto, que as anomalias são produzidas no interior dos esquemas de classificações. Nessa perspectiva, os rituais exprimem a capacidade de renovar o mundo simbolicamente. Quando algo é considerado contaminado, impuro, sujo ou confuso, o julgamento é promovido a partir de uma disposição sistemática de ideias, que nesse caso é a narrativa mítica mateana. Portanto, algo considerado fora de lugar não ocorre como um acontecimento isolado.22 A “confusão” e a “ambiguidade” são diagnosticadas segundo um determinado esquema de classificações. No esquema traçado pela Torah: a “santidade requer[ia] que os indivíduos se conform[assem] à classe à qual pertenc[iam]. E a santidade requer[ia] que diferentes classes de coisas não se confund[issem]”.23 Eric Hobsbawm e Terence Ranger (Org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 9. 22 Mary Douglas. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 57. 23 Idem, p. 70. 21

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Na medida em que Mateus admite presença não judaica entre os seus, entra em conflito com a ideia hebraica de sagrado expressa na Torah proveniente da palavra q¹dôsh, cuja raiz tem como significados “santo”, “separado” e “à parte”. Ser “separado”, nesse contexto, implica ser completamente “íntegro”, isto é, a parte de qualquer contaminação. Portanto, a Torah e em especial o livro de Levítico se dedicava à perfeição física “requerida das coisas apresentadas no templo e das pessoas que dele se aproximavam”,24 e que se materializava nas relações sociais cotidianas por meio das interdições sexuais, regras dietéticas e demais proibições. Como dito, entretanto, os marcadores de diferença necessários à criação de limites e fronteiras etno-culturais, entre o eu e o outro, produzem a anomalia que vem a ser um estado transitório, uma posição intermediária entre o puro e o impuro. Quando Mateus registrou a presença de não judeus no seio da comunidade em Antioquia, ele admitiu o outro e, nesses termos, propôs espécie de renovação do esquema classificador da Torah. Podemos dizer, então, que a audiência mateana não apenas reproduziu em sua narrativa mítica, em microescala, os conflitos históricos e sociais aos quais os judeus estavam à mercê, como também a lógica classificatória a qual intentava adequar-se. A “tradição inventada” criativamente por Mateus visava à continuidade com o passado histórico e, em razão disso, como recurso, empregou a repetição de imagens, de símbolos e de memórias da história de Israel. Se para os judeus ligados à tradição idealizada, a inversão no padrão de integridade e de pureza da Torah proposta por Mateus era novidade, para a audiência de Mateus essa era apenas uma forma de reler a Torah e forjar sua própria identidade. O conjunto imagético e simbólico herdado da história de Israel serviu à formação do discurso de Mateus tornando-se técnica retórica 24

Idem, p. 67.

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e persuasiva, responsável pela conversão dos judeus helenizados e dos não judeus. Tratava-se de um novo significado de pureza, caracterizado pela interiorização da Lei: a pureza no coração sinalizava, portanto, a busca pela recolocação dos ouvintes de Mateus dentro de um esquema ordenador que não se pautava apenas pela integridade do corpo, mas na integridade do coração. Uma noção de integridade radicalmente diferenciada do modelo judaico de perfeição. Algo que nos faz lembrar do eunuco de Mateus 19:12, uma espécie “monstruosa” de ser, cuja habilidade era transitar entre os gêneros e tomar para si propriedades masculinas e femininas. Somente muitos séculos após a redação de Mateus, sob a direção de bispos aristocráticos, é que o eunuco foi transformado em símbolo de superioridade e de ascese masculina, um significado que contribuiu para reforçar o paradigma binário e heterossexual.25 Mas no tempo da audiência de Mateus, o eunuco representava uma formação confusa e não classificada segundo os parâmetros heterossexuais binários: “um eunuco era nem homem nem mulher, mas alguma coisa composta, híbrida e monstruosa, estranha à natureza humana”.26 Híbridos e opostos à tradição idealizada dos partidos fariseus, escribas e saduceus também eram todos aqueles que compunham o grupo de Mateus: não completamente de origem judaica, cujos laços de parentesco não foram estabelecidos por relações consanguíneas, mas, sobretudo, por relações culturais. Mateus era de formação judaica. Provavelmente, entendia que havia mudanças ao seu redor, mas ansiava pela conciliação e continuidade de seu passado judaico. Isso indica que as noções que serviram fundamentalmente à articulação interna de seu discurso James D. Hester. “Eunuchs and the postgender Jesus: Matthew 19.12 and transgressive sexualities”. In: Journal for the Study of the New Testament 28 (1), 2005, p. 14-15. 26 Cf. Luciano de Samósata, O eunuco. 25

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eram típicas do judaísmo e do Mediterrâneo Antigo. Tratava-se das noções características da hierarquia sacerdotal, do patriarcado, dos valores de honra e vergonha, dos conflitos entre dominadores e dominados. Quadro que não pode ser interpretado à luz de categorias modernas sem as devidas precauções. Seguindo a perspectiva hermenêutica de gênero, Elenira Cunha sustentou que há material no evangelho de Mateus para assegurar um “discipulado de iguais”. Jesus teria advogado a causa das mulheres discutindo o direito masculino do divórcio e do adultério (19:1-12; 5:27-32). A volta à criação não mais concederia prerrogativa aos homens. Cunha destacou que Jesus assegurou, pela sua exegese da Lei, que todo motivo e acusação contra a mulher se transformaram em motivo e acusação contra o próprio homem diante de Deus. Apesar do desconforto dessa proposta, a resposta final e definitiva de Jesus foi dada em Mt 19:10 quando, por meio da “metáfora eunuco”, ele teria encerrado o debate afirmando que somente poderiam aceitar sua causa aqueles que abraçassem a causa do Reino dos Céus como iguais.27 27

Elenira A. Cunha. Por causa do Reino dos Céus. Uma leitura de gênero de Mateus 19,1-12 e 5:27-32. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2003. A autora usou termos foucaultianos como “feixe de relações de poder” e sustentou que a sedução era “forma extrema e limitada de obtenção de poder que não gera conquista coletiva do espaço social” (p. 11-13). Contudo, consideramos que essa frase de efeito relega à margem o quadro sociocultural do Mediterrâneo Antigo, do qual nem mesmo Jesus estaria completamente “liberto”. Os testemunhos literários do Antigo Testamento, da pseudoepigrafia e do material neotestamentário sobre sedução feminina, se por um lado servem ao aprofundamento do “preconceito sexual contra as mulheres”, se interpretados como recomendações aos leitores modernos, de outro não podem ser retirados de seu âmbito histórico e cultural. Tampouco as perícopes de Mateus, se lidas à luz das tradições circulantes no período, podem ser interpretadas como perícopes de um discurso inclusivo, vocabulário também muito significativo para os leitores modernos e não para audiência judaico-cristã do séc. I. De folclore popular até Verdade, o discurso sobre a mulher sedutora que conduzia ao pecado foi uma fala produzida e reproduzida no interior da sociedade, a fim de regulamentar as próprias relações sociais. Por isso, é improvável que a mutilação fosse “imagem psicológica” que teria a função de (a) nivelar as diferenças entre os sexos e (b) suprimir a possibilidade masculina de relação sexual com mulheres, uma metáfora do homem que se converteu às relações de igualdade propostas pelo primitivo movimento cristão, compreendido como

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Diferentemente de Cunha, consideramos que a expectativa da autoria mateana foi, de início, predominantemente judaica, uma expectativa identificada em outros textos do I século e vinculada aos judaísmos do período. Como visto, essa noção de separação estava presente de modo mais radical entre os membros da seita de Qumran. Em 4Q397 Frag. 5 e 6, verifica-se: [...] E sobre as fornicações que se praticam em meio ao povo: eles são membros da congregação de perfeita santidade,] como está escrito: “Santo é [Israel”.] [E sobre o animal pu]ro, está escrito que não emparelhará [duas espécies; e sobre a veste, está escrito que não misturará] materiais; e que não [semeará o seu campo] [ou as vinhas com duas] espécies porque são [santos. Porém os filhos de Aarão são os mais santos dos santos].

Os autores da carta recomendavam a santidade e a separação para os membros da congregação no que diz respeito à união sexual entre pessoas, espécies animais e vestimentas sagradas (dos sacerdotes) com roupas comuns. A recomendação para que não se misturem duas espécies de animais e vestes sagradas com profanas servia como ilustração para que os membros da seita qumrânica não se misturassem com pessoas de outras procedências. Não podemos dizer de Mateus que foi autor igualitário, dado ao coletivismo ou revolucionário. Ele transgrediu o esquema classificatório da Torah, mas ao fundar sua narrativa mítica propôs discipulado de iguais. Essa metáfora, exclusiva da comunidade de Mateus, tornou-se uma metáfora do cristianismo não mais para significar a igualdade, mas para sustentar a renúncia sexual permanente do movimento ascético, que se desenvolve muito rapidamente a partir do final do séc. I (p. 12-13) – como se o sexo pudesse ser pensado somente a partir da genitália e a castração implicasse na completa inibição sexual masculina. A exegese que a autora fez de 5:28 indicou que Jesus falou apenas de desejo sexual (geral) e acusou ferozmente os homens; uma interpretação unilateral.

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outro esquema ordenador, cujo paradigma agora era a exegese que Jesus fazia da Torah. Mateus foi produzido pela autoria, assim como a autoria foi produzida pelo seu tempo, marcado por identidades fluidas em busca de marcadores etnoculturais. Mistura e separação, portanto, eram processos contínuos que se renovavam nas próprias relações sociais estabelecidas entre os judeus e os estrangeiros sob o domínio da ordem imperial romana. A leitura do evangelho de Mateus explicita suas profundas raízes judaicas e seus valores típicos do período Antigo do Mediterrâneo, das quais nunca prescindiu. Sua crise era indicar a continuidade entre o passado judaico e os ensinos de Jesus, que requeriam uma apropriação da Torah capaz de imprimir significado ao judaísmo dos tempos helenizados. Todavia, esse exercício exegético ocorreu em meio a intenso debate e controvérsias travadas com grupos judaicos arredios à interpretação da autoria-audiência de Mateus. Fariseus, escribas e saduceus: elites locais e adversárias de Mateus A dependência explícita do material mateano em relação à Torah, embora dotada de intenção exclusiva e de fidelidade às mais antigas tradições, não se coadunava com a interpretação tradicional promovida pelas lideranças judaicas reconhecidas, que reclamavam proeminência na exegese da Lei. Ao nível literário e de modo livre, Mateus tomou para si e ressignificou a história de Israel, a Lei e as práticas de pureza judaicas. Ao nível histórico, a deformação da tradição teria iniciado com Jesus de Nazaré e sua interpretação da Lei. Exegese essa que gerou conflitos com saduceus, escribas e fariseus: lideranças judaicas autenticadas pelo Império, que serviam às autoridades romanas e constituíam as elites locais na Galileia, Jerusalém e outras cidades e vilarejos próximos. 173

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Podemos definir tais elites judaicas da seguinte maneira: 1) Fariseus: tipo de seita do judaísmo que formava um grupo poderoso e de liderança religiosa. Esse grupo também se caracterizava pelo poderio político e potencial intelectual, embora fosse um movimento leigo que concorria com os sacerdotes. 2) Saduceus: geralmente compreendidos como “fronteiriços”, isto é, espécie de classe governante, com chefes de sacerdotes e “altos” funcionários, de famílias ricas de Jerusalém. 3) Escribas: grupo profissional de classe média. Entretanto, essas classificações em função de sua característica sintética não contemplam a complexidade peculiar de cada grupo e os enquadram de forma insatisfatória em categorias como seita, escola, classe alta, liderança leiga e outras. Segundo Saldarini, a “identidade social dos fariseus e dos saduceus é mais amplamente baseada em fatores e interesses políticos, econômicos e sociais, com os quais suas crenças religiosas estão inextricavelmente unidas”.28 Fariseus, escribas e saduceus, pensadores e líderes, constituíam parte da sociedade judaica e de movimentos sociais desde 200 a. C. a 100 d. C. Os líderes judaicos eram o sumo sacerdote e o chefe dos sacerdotes, os anciãos e os notáveis, chefes de famílias e personalidades proeminentes em âmbito local e nacional. Estes líderes eram assistidos por “servidores de famílias” que abrangiam “burocratas, soldados e funcionários associados aos asmoneus, aos herodianos e aos romanos, bem como os funcionários do Templo e oficiais ligados aos chefes dos sacerdotes.” Entre os tais “servidores das famílias” é que se identificam os escribas e os fariseus. Os saduceus formavam um grupo que pertencia à classe governante.29 Anthony J. Saldarini. Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense. Uma abordagem sociológica. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 15-16. 29 Idem, p. 16. 28

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Alguns estudos sobre lideranças judaicas se dividem quanto à apreciação dos grupos principalmente em relação à procedência e engajamento sociopolítico. Talvez porque os estudos sobre fariseus, escribas e saduceus disponham de poucas fontes claras, materiais e vestígios confiáveis. Sabe-se que o estudo de tais grupos deve considerar que materiais como os do Novo Testamento são enviesados por descrições preconceituosas e obscuras. Uma opção de fonte seria os escritos rabínicos, ainda que estes últimos sejam datados de séculos posteriores e não tenham intenção histórica. Esta opção argumenta que os rabinos dos sécs. II e III d. C. eram derivados dos fariseus. Todavia, segundo Cohen, essa hipótese é improvável pela própria escassez de documentos, pois os autores tanaíticos não se identificavam como fariseus e a literatura rabínica quanto ao gênero, à datação e às tradições colecionadas (coleções midráshicas, Talmude, Mishnah e outras) diferiam grandemente das informações disponíveis.30 Outro estudioso, Neusner, publicou pesquisa acerca dos fariseus com ampla elucidação quanto aos temas legais de interesse desse grupo. Todavia, caracterizou-os como apolíticos, não considerando a participação da religião nos âmbitos sociais e políticos do mundo antigo.31 Por sua vez Rivkin estudou os fariseus a partir de Josefo e fez amplo uso de fontes rabínicas para lançar luz sobre esse grupo. Basicamente, o autor sugeriu que os fariseus tinham sido sábios que controlavam o judaísmo, a despeito das autoridades locais.32 Apesar de tais abordagens serem respeitadas pelo fino trato das fontes, elas têm sido revisadas e até criticadas em alguns pontos. Em especial no que diz respeito à aproximação do grupo das fontes rabínicas e à despolitização dos fariseus e Shaye J. D. Cohen. “The significance of Yavneh: Pharisees, Rabbis, and the end of Jewish sectarianism”. In: Hebrew Union College Annual 55, 1984, p. 36-41. 31 Jacob Neusner. The Rabbinic Traditions about the Pharisees before 70. Leiden: Brill, 1971. 32 Cf. Ellis Rivkin. A Hidden Revolution. The Pharisees Search for the Kingdom Within. Nashille: Abingdon, 1978. 30

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grupos similares. A pesquisa mais recente tem se voltado para a relação política desses grupos com o contexto político imperial. Na Antiguidade, a religião se encontrava “incrustada” na estrutura política e social da comunidade. Ela não era fruto da escolha pessoal de um indivíduo (opção própria da modernidade). Porém, a participação em outros cultos e religiões era aceita desde que práticas e crenças da religião “oficial” permanecessem verificáveis cultural e socialmente. Grupos como saduceus e fariseus não se movimentavam à parte da sociedade, pois detinham funções cúlticas e religiosas que lhes facultava exercer poder na sociedade política na forma de pequenos centros ou microestruturas. Saduceus, escribas e fariseus se dedicavam ao controle da sociedade judaica, em decorrência do status de que gozavam relativamente independente de Roma. Tais grupos possuíam certa autonomia política para gerir a sociedade mediante a formulação de cânones, escolas de interpretação de textos sagrados e organizações educacionais que visavam reunir as tradições de outros grupos, clãs e famílias locais à tradição mais ampla da sociedade. Essa produção e manutenção de conhecimento, portanto, era ordenadora e servia tanto ao propósito romano de domínio e controle, quanto ao foco das lideranças judaicas que era manter uma unidade (questionável) de Israel. Nesse sentido, ser “judeu era fazer parte da sociedade judaica, o que incluía cultura, comportamento, culto, identidade com o povo e com a terra, etc. Aqueles que discordavam das autoridades do Templo, como a comunidade de Qumran, achavam-se ainda dentro das fronteiras sociais do judaísmo e com uma influência que deve ser considerada”.33 Por conseguinte, esses grupos poderiam ser entendidos como partidos políticos, microorganismos de poder que pretendiam manter a unidade religiosa e cultural de Israel, 33

Cf. Saldarini, Fariseus, p. 17-18.

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favorecidos como elites judaicas pelo império romano e que, portanto, representavam o “braço” do Estado romano na tentativa de impor ordem às regiões judaicas conquistadas pelo império. Como dito, no período romano os judeus na Palestina viviam em uma sociedade agrária e faziam parte de um império parcialmente comercializado. Havia sob o domínio do império muitas sociedades organizadas, métodos eficientes de cultivo da terra, provável excedente, classe dominante organizada e centralizada. Havia hierarquia rígida e desigualdade acentuada. As sociedades agrárias tinham como característica a presença de duas grandes classes: uma classe de camponeses que produziam e sustentavam o funcionamento da sociedade e uma pequena elite que vivia à custa dos agricultores e os protegia das agressões externas. Consequentemente, a elite sobrevivia na medida em que subtraia excedente dos camponeses por meio dos impostos e das taxações. Segundo esse esquema de análise, os camponeses deveriam ter suas colheitas taxadas entre 30 a 70%.34 Considerando a categórica classe social a partir das relações sociais e econômicas que lhe subjazem, a divisão da sociedade em camadas, nas sociedades antigas, passava por três processos relacionados à distribuição de recursos, à formação de subpopulações e à classificação dessas. Dentre os recursos anunciados destacavam-se “riqueza material”, “poder” e “privilégio” como marcas distintivas entre as classes e que caracterizavam as sociedades agrárias.35 As classes governantes não se dedicavam ao trabalho agrícola, visto que o trabalho manual não era considerado nobre ou privilégio. Para gerir o império e o bom funcionamento das Cf. Gehard Lenski. Power and Privilege. A THeory of Social Stratification. New York: McGraw, 1966, p. 117-118, 142-176. 35 Cf. Jonathan Turner. The Structure of Sociological Theory. Homewood: Dorsey Press, 1978, p. 59-63. 34

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sociedades reunidas, a classe governante dispunha de criados ou servidores que atendiam segundo papéis militares, políticos, administrativos, sacerdotais e judiciais nas cidades. Eles poderiam ser soldados, educadores, funcionários religiosos, artistas ou artesãos. Entre tais servidores encontravam-se os fariseus e os escribas, que dessa forma não correspondiam a governantes, classe “média” ou camponeses. Antes, podem ser entendidos como grupo residual e dependente da classe governante. Os fariseus enquadram-se perfeitamente bem na classe dos servidores como grupo religioso e como uma força política que interagia com a classe governante, influenciava muitas vezes a sociedade e às vezes obtinha poder. Os escribas, como burocratas, educadores e oficiais maiores e menores, também se encaixam na classe dos servidores. Os saduceus eram, conforme Josefo, membros da classe governante e da classe sacerdotal, assim como o eram alguns fariseus e escribas.36

Assim, nenhum desses grupos pertencia ao povo simples e iletrado, à classe dos camponeses ou outra classe inferior. Conforme essa divisão, o Império de Roma poderia ser classificado segundo nove grupos. As primeiras cinco classes ligadas ao nível superior eram formadas pelo soberano, classe governante, servidores, comerciantes e grupo sacerdotal. As quatro classes restantes e inferiores eram formadas pelos camponeses, artesãos, impuros e dispensáveis.37 É importante notar que tais designações, entretanto, não circunscrevem a dinâmica das relações políticas, econômicas e sociais das sociedades antigas e, em especial, nem mesmo das sociedades sob o domínio romano. Tampouco explicitam a complexidade característica da sociedade 36 37

Cf. Saldarini, Fariseus, p. 54. Idem, p. 53-54.

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judaica em Roma. Trata-se tão somente de categorias analíticas que oferecem modelos para a compreensão do movimento da história naquele período. Para Saldarini, os fariseus se inseriam na classe dos servidores, visto que desempenhavam funções religiosas, políticas e educacionais: Dada a influência junto ao povo e a ânsia por influência e poder no governo judeu, não poderiam ser pobres camponeses ou artesãos urbanos que dedicavam todo o seu tempo a produzir o bastante apenas para a subsistência. É provável que os fariseus fizessem parte da classe dirigente como servidores de alguma forma dependentes dos ricos e poderosos que controlavam a maior parte do excedente da sociedade.38

No entanto, a compreensão de fariseus, escribas e saduceus necessita de esclarecimento também quanto à rede de relações sociais na qual estavam imersos. Como visto, as relações no mundo antigo estavam vinculadas a valores e códigos tais como parentesco, amizade, patronagem, normas de comportamento, prestígio e honra. Essas relações definiam, ao mesmo tempo, o lugar dos indivíduos dentro da sociedade e suas próprias noções de identidade. Portanto, tais códigos normativos não prescritos, mas operantes na dinâmica das relações sociais, configuravam os parâmetros que nomeavam, classificavam e ordenavam a sociedade. Entre judeus, esses códigos eram acrescidos, ainda, pela lógica do Pentateuco, que embora não escrito na forma de documento disponível, operava como legislador na sociedade judaica. Fariseus e escribas, nesse sentido, eram importantes “guardiões” de tal código e da tradição que subjazia a esse sistema interpretativo.

38

Idem, p. 56.

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Saldarini considerou a imagem de escribas, fariseus e saduceus à luz da documentação dos evangelhos e reconheceu como prioritário o relato marcano. Tendo em vista a interdependência dos evangelhos, analisou esses partidos conforme o conjunto Marcos e Mateus. Neste último, admitiu que a imagem desses grupos seria menos distinta e atribuiu essa característica ao fato de que Mateus seria uma revisão de Marcos com interesses literários e teológicos próprios. Em todo caso, fariseus, escribas e saduceus eram reconhecidos como partidos aliados de outros grupos de lideranças judaicas palestinenses, como os chefes dos sacerdotes, os anciãos e os herodianos.39 Em Marcos, os fariseus e os escribas eram os opositores de Jesus na Galileia; os chefes dos sacerdotes, escribas e anciões eram adversários de Jesus em Jerusalém e os saduceus apareceram apenas uma vez. Saldarini sugeriu que a audiência de Marcos era de origem gentia e não familiarizada com o judaísmo. Os fariseus apareceram apenas cinco vezes em Marcos e em circunstâncias de conflito com Jesus (cf. 2:18; 2:24; 3:2; 8:11, 15; 10:2). Escribas e fariseus foram mencionados juntos em duas ocasiões de conflito com ele (cf. 2:16; 7:1, 15). Os fariseus foram ligados ao herodianos em duas ocasiões de assuntos políticos (cf. 3:6; 12:13). Sobre os escribas destacam-se sete citações exclusivas (cf. 1:22; 3:22; 9:11 e 14; 12:28, 32; 12:35 e 28) e cinco citações em que apareceram ligados aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos (cf. 8:31; 11:27; 14:43; 14:53; 15:1).40 Nesse evangelho, os fariseus apareceram predominantemente na Galileia. Eles se aliaram aos herodianos (3:6) e escribas (2:16) contra Jesus. Esse argumento, entretanto, não exclui a possibilidade de fariseus terem atuado em Jerusalém, conforme relata Josefo. Os escribas foram descritos na Galileia e em Jerusalém. 39 40

Idem, p. 158. Idem, p. 159-160.

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Apareceram como grupo instruído e atuante em grandes centros. Do modo como foram descritos nas narrativas de Marcos, aparentemente, eram reconhecidos como autoridades pelo povo e seus ensinos tinham grande repercussão na Galileia. Em várias situações, o ensino de Jesus foi contrastado ao dos escribas (1:22). As informações dão conta de que eram ativos e circulavam entre Galileia e Jerusalém (Cf. 2:6; 3:22; 7:1, 5; 2:16; 9:14). As discussões entre fariseus, escribas e Jesus se davam em torno dos temas jejum (2:18), observância do sábado (2:24 e 3:2), divórcio (10:2), purificação das mãos (7:1), comensalidade (2:16) e autoridade de Jesus (8:11). Fariseus e herodianos teceram aliança política explicitamente contrária a Jesus (3:6) e o colocaram à prova (12:13), expressando sua característica política e intenção de controle legal e social sobre “as práticas e opiniões sociais da comunidade”.41 Tratava-se, portanto, de um embate político e intelectual que disputava a autoridade e o poder de influência sobre os comportamentos e as mentalidades dos judeus-cristãos. Jacob Neusner sugeriu que tais controvérsias eram características do século I a.C. e que a ênfase que recaía sobre as questões de pureza interna e externa refletia a importância que atribuíam ao tema da pureza. Por conseguinte, era discussão contemplada pelo programa que teriam elaborado para o judaísmo desse período. Neusner não considerou os fariseus como grupo político, mas como espécie de seita religiosa.42 Para Neyrey, no evangelho de Marcos os fariseus correspondiam a certo grupo que defendia uma comunidade pautada pelas tradições relacionadas à pureza, visão essa que teria sido relativizada por Jesus nas controvérsias quanto

Idem, p. 160-162. Cf. Jacob Neusner. From Politics to Piety. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1973.

41 42

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à observância do sábado, ablução e alimentação.43 Para Saldarini, os fariseus “lutavam pelo controle da comunidade”. Eles eram autoridades reconhecidas na região da Galileia que ocupavam posições de destaque e concentravam influência e poder. Jesus, ao contrário, não disporia dessa caracterização de poder e privilégio, tendo em vista sua provável descendência comum, o que não o impediu de adquirir destaque fora de Nazaré, situação retratada pelo provérbio de Marcos (6:4): “Jesus foi excluído da sociedade de sua própria cidade, mas continuou a obter novo status, honra e influência em outras cidades da Galileia, mediante seu próprio trabalho e aqueles de seus seguidores”. Isso teria provocado as discussões com fariseus e escribas.44 As polêmicas entre Jesus e escribas no evangelho de Marcos, em geral, recaíam sobre o tema do ensino. Mc 2:26 e 7:1, 5 colocaram em questão duas controversas práticas de Jesus: ele comia com cobradores de impostos e pecadores e seus discípulos não se purificavam antes das refeições. Essas polêmicas ressaltavam, sobretudo, o problema da comensalidade e da pureza ritual, temas de interesse primordial dos fariseus. Mas na narrativa de 1:22-28, quando Jesus ensinou na sinagoga, foi dito a seu respeito que ensinava com autoridade. Isso o colocava no mesmo nível de mestre comumente atribuído aos escribas, autoridades conhecidas pelo povo. Seguindo adiante, em 8:11 e 9:12-13, a respeito da vinda de Elias ensinada pelos escribas, Jesus afirmou que tal promessa havia se realizado. Em 12:36-37, Marcos complementou o ensino com a advertência quanto à necessidade de vigiar atentamente sobre a vinda do Messias. Apesar de os ensinos de Jesus destoarem quanto ao conteúdo dos ensinos escribas, a narrativa pressupunha Nesse estudo, Neyrey empregou a análise de Mary Douglas a fim de explicitar como as regras de pureza servem à regulação do comportamento social, bem como o estabelecimento de limites para as sociedades. Cf. Jerome Neyrey. “The idea of purity in Mark’s Gospel”. In: Semeia 35, 1986, p. 91-128. 44 Cf. Saldarini, Fariseus, p. 164. 43

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a interpretação escriba como “normativa” e, desse modo, tornava-se o ponto inicial do debate.45 O destaque marcano quanto ao embate entre escribas e Jesus recaiu sobre sua autoridade e poder para ensinar, o que configurava a principal preocupação dos escribas (Mc 2:6; 9:14; 12:18). Mas o embate mais claro foi registrado em 12:38-40, quando Jesus os criticou pela pretensão de distinção social e econômica e por serem pretensiosos na oração. Por causa desse abuso de poder, eles seriam condenados. A narrativa marcana opôs Jesus, os destituídos do poder e rejeitados de um lado e, do outro, os escribas, que assumiam o posto de chefes de comunidades e aliados aos chefes de sacerdotes e anciãos. Esses grupos constituíam os “adversários” de Jesus (Mc 8:31; 10:33). Sobre os saduceus sabe-se efetivamente pouco, visto que os evangelhos parecem pressupor o conhecimento das audiências a respeito desse grupo. A principal controvérsia entre Jesus e eles esteve relacionada à ressurreição, quando se colocou ao lado de escribas e fariseus pela defesa da ressurreição e agradou o escriba que acompanhava o debate (12:28). Assim, no evangelho de Marcos, a classe e o status social dos grupos judaicos, fariseus e escribas estavam diretamente vinculados à disputa pela autoridade e poder para controlar as comunidades. A questão circundava primordialmente o temor quanto à desordem que um líder-mestre não autorizado, Jesus, poderia facultar com a influência sobre as classes inferiores. Nesse ponto, escribas e fariseus mantinham interesses em comum. Os dois grupos conflitavam com Jesus a respeito dos ensinamentos e da interpretação da tradição: “os fariseus falam do sábado e das leis alimentares, enquanto os escribas discutem acerca da autoridade docente”.46 A rivalidade se explica em função da busca pelo poder, Idem, p. 164-165. Idem, p. 168.

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pelo prestígio e pelo controle, âmbitos que os colocavam em franca oposição a Jesus. No evangelho de Mateus, as aparições de grupos judaicos excederam as de Marcos. Fariseus e saduceus aparecem em Mt 7:7; 16: 1, 6, 11, 12, escribas e fariseus em 5:20; 12:38; 15:1; 23:2, 13, 15, 23, 25, 27, 29, os chefes dos sacerdotes e escribas em 2:11; 20:18; 21:15, os chefes de sacerdotes, escribas e anciãos em 16:21, somente os escribas em 7:29; 8:19; 9:3; 13:52; 17:10 e os saduceus em 3:17. A redação mateana privilegiou o aspecto teológico e dramático dos conflitos entre Jesus e tais grupos. Isso, em decorrência de seus propósitos particulares. Nesse sentido, três abordagens se destacam: 1) a visão de que Mateus reflete o conflito entre lideranças judaicas pós-70 e a comunidade mateana, 2) a redação de Mateus provém do conflito resultante da ruptura entre comunidade mateana e lideranças judaicas apegadas às tradições antigas e 3) a redação mateana destacou os conflitos entre Jesus e as lideranças judaicas como instrumento retórico e teológico a fim de identificar a comunidade cristã com Jesus e justificar sua contraposição ao judaísmo.47 Assim como em Marcos, em Mateus os escribas eram notórios pela prática de ensinar (Mt 7:29; 17:10). A polêmica se fundava na questão sobre quem teria direito de interpretar a tradição judaica, prática que, segundo os escribas, requeria preparo e para a qual, Jesus não teria autoridade (9:3). O atrito, portanto, focava a questão docente e a autoridade diante das pessoas simples. Para alguns comentaristas, em duas ocorrências Mateus sinalizou positivamente a respeito dos escribas (8:19 e 13:52) situações nas quais eles teriam reconhecido sinceramente que Jesus era alguém instruído e apto ao ensino. Decorre dessa compreensão que, em 47

Idem, p. 171.

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Mateus, os escribas configuravam certo grupo de mestres legítimos na sociedade judaica e cristã. Em geral, nas citações mateanas os escribas apareceram acompanhados de outros grupos judaicos, frequentemente, chefes dos sacerdotes e fariseus. Em algumas passagens foram caracterizados como “membros letrados da comunidade” ou porta-vozes do judaísmo, todavia, com perfil político atenuado. Mateus identificou os líderes judaicos com chefes dos sacerdotes, anciãos e fariseus e, por vezes, substituiu os escribas, segundo a fonte Marcos, pelos anciãos (21:23; 26:3, 47; 27:1, 3, 12, 20; 21:23; 26;3).48 Embora reconheçamos que os escribas fossem autoridades judaicas legítimas, parece-nos que a redação mateana não relegou completa classificação positiva a esse grupo. Em Mt 8:19-20, verificamos que o escriba foi relacionado à imagem de raposa. Nesse caso, a ilustre personagem foi comparada ao animal astuto das antigas lendas campesinas, conforme o uso lucano (13:20), em que Jesus associou pejorativamente Pilatos à perspicaz raposa. Na passagem mateana, com exceção do primeiro candidato a discípulo de Jesus claramente identificado como escriba, os outros dois candidatos a discípulo não foram determinados. Essa lembrança, embora ressalte a presença escriba, não parece totalmente positiva. No v. 19 consta: “veio a ele um escriba e disselhe: Mestre, seguirei-te onde quer que fores” (καὶ προσελθὼν εἶς γραμματεὺς εἶπεν αὐτῷ Διδάσκαλε ἀκολουθήσω σοι ὅπου ἐὰν ἀπέρχῃ). O escriba (εἷς γραμματεὺς) chamou Jesus de “mestre” (Διδάσκαλε). Mas nesse contexto o título pode indicar tanto o reconhecimento quanto à instrução de Jesus ou, ainda, uma forma de provocação. A presença do “homem das letras” no meio da multidão pode não ser completamente estranha, visto que os partidos acompanhavam Jesus em seu trajeto ministerial e, em 48

Idem, p. 172-173.

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especial, os escribas transitavam entre as diversas camadas sociais em função de suas atribuições docentes. Mesmo assim caberia a pergunta: por que um escriba demonstraria o desejo de seguir Jesus? Por que reconhecia autoridade nos seus ensinos ou em razão de querer identificar algum lapso na pregação do nazareno? O que verificamos na sequência é que a resposta dada por Jesus na forma de dito de sabedoria não aparenta receptividade à manifestação do escriba. Ademais, a presença do escriba não poderia ser considerada positiva em Mateus, tendo em vista as ligações desse partido com os chefes dos sacerdotes e anciões, grupos distintamente reconhecidos pelas propriedades, favores e benesses obtidas de Roma. Os escribas eram funcionários religiosos letrados que compunham a classe dos servidores e, juntamente com sacerdotes e anciãos, buscavam debelar o movimento de Jesus, identificado como perturbador da ordem. Dessa forma, escribas desempenhavam “papel político subsidiário”, pois dispunham da autoridade de ensinar e formar para exercer controle sobre as castas inferiores. Eram necessários aos sacerdotes, aos anciãos e a Roma, diferentemente dos fariseus. A caracterização dos escribas como oponentes de Jesus foi mais claramente descrita em Mt 16:21 e 20:18. Já na crucificação, em 27:41, Mateus os apresenta ridicularizando Jesus juntamente com os sacerdotes e anciãos. Para Saldarini,a redação mateana não distinguiu os escribas como grupo politicamente forte e contrário a Jesus. Antes, era um grupo instruído e consultado pelos que estavam no poder. Em função dessa participação, teriam alguma autoridade e controle na comunidade. Todavia, não seriam uma força articulada com o intuito de conduzir Jesus à morte.49 Saldarini, portanto, entendeu que o embate com escribas não era tão árduo quanto em relação aos outros partidos. O embate com os fariseus poderia ser considerado mais ácido, 49

Idem, p. 174-175.

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principalmente quando os conflitos envolviam a comensalidade e os rituais de pureza (Mt 9:11). A ocorrência em que se pode verificar maior tensão entre Jesus e tais grupos foi registrada em 23:2-3, quando “escribas e fariseus” foram denominados hipócritas. Nessa passagem, o autor atacou especificamente a incapacidade desses partidos de interpretarem e viverem adequadamente o judaísmo. Eles foram usados como ilustração para indicar líderes arrogantes e vazios, em contraste com o que deveria ser a liderança submissa a Iahweh: exemplo de humildade (23:8-12). No evangelho de Mateus, fariseus e saduceus foram apresentados como grupos conhecidos do judaísmo do século I. Ambos resguardavam diferenças quanto aos ensinos e suas prioridades. Os escribas, também opositores de Jesus, comporiam o grupo dos adversários por meio das alianças que contraíram com os primeiros, mas não de confronto direto. Apesar de não concordarmos com a posição que considera haver certa aceitação da autoria mateana em relação aos escribas, consideramos aceitável o argumento que enfatiza o interesse mateano em destacar o ofício de escriba, visto que esse evangelho pretendia a posição de autoridade para interpretação da Lei. Juntamente com os fariseus, em Mateus os escribas foram representados como adversários fortes dos cristãos, principalmente no que concerne aos temas de pureza, de ensinos quanto ao sábado e de influência sobre as comunidades judaicas na Galileia. Ao contrário desses dois últimos, os saduceus foram pouco mencionados. Mateus os situou em Jerusalém, ao lado dos fariseus. Todos esses grupos, entretanto, eram diferentes entre si. Mas as diferenças não podem ser completamente identificáveis a partir da redação mateana. Não se pode afirmar se as informações mateanas se ampararam em conhecimento histórico confiável ou se decorreram exclusivamente do trato literário e de exigências teológicas. Todavia, a oposição de fariseus, escribas e saduceus a 187

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Jesus e seu movimento não pode ser negada, visto que ambos os lados buscavam “defender a sociedade judaica das diversas pressões políticas e sociais não judaicas que a rodeavam”.50 Escribas, fariseus e saduceus se opunham a Mateus e seu grupo no nível histórico (das tradições sobre Jesus de Nazaré) e literário (da construção literária da narrativa), primordialmente, em função da defesa do que julgavam ser a correta interpretação da Lei e observância da tradição religiosa. Outro motivo igualmente relevante diz respeito à manutenção e ao controle das comunidades judaicas da Galileia e cercanias. Os movimentos cristãos, especialmente o mateano, representavam forças contraditórias ao controle exercido pelas lideranças judaicas. Se no plano religioso isso se identificava nas polêmicas quanto à autoridade e legitimidade, no plano político, igualmente, a diferença na exegese era temível. Caso o fortalecimento dos ensinos cristãos se verificasse, além do poder das lideranças de Jerusalém se encontrar na possibilidade de ser questionado, os privilégios, os favores e as benesses dirigidos às elites judaicas poderiam ser perdidos. Além disso, o quadro de relações sociais que conferia sentido aos judeus antigos e que era pautado pela hierarquia e pela patrilinagem se desconfiguraria. Ante a hipótese desse cenário, a provável projeção desses grupos era de desordem, descontrole, perda de sentidos e desmantelamento das tradições religiosas judaicas. Esses grupos eram, juntamente com Roma, os principais adversários de Mateus e de sua proposta de “recontar” a história de Israel à luz de Jesus e “re-interpretar” a Lei considerando outros grupos que não apenas os judeus. Portanto, a comunidade, a autoria mateana, sua interpretação da Lei e de Jesus encontravam-se cercadas por pelo menos três frentes de debatedores: 1) de um lado, os adversários internos do judaísmo, os escribas, fariseus, 50

Idem, p. 185.

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saduceus, chefes dos sacerdotes e anciãos; 2) de outro lado, Roma e suas autoridades pagãs e, finalmente, 3) os ingressantes no movimento cristão (judeus, judeus helenizados, estrangeiros). Aos primeiros, a redação necessitava comprovar seu compromisso com as memórias ancestrais, as tradições religiosas e os costumes judaicos. Essa comprovação era necessária a fim de legitimar seu status judaico e fortalecer a identidade sóciocultural do grupo em oposição à Roma, império pagão que avançava sobre a cultura e tradição judaicas. Aos terceiros, Mateus precisava (1) estabelecer a importância da Lei, conforme a expectativa da audiência judaica; (2) rememorar a tradição e restabelecer elos de sentido, de acordo com a adesão de judeus helenizados e (3) para os estrangeiros, a redação visava a apresentar a “boa notícia”, laboriosamente, combinando os elementos da tradição judaica aos sentidos religiosos e práticas estrangeiras. Isso significa que a fonte Mateus conjuga tremendo esforço e habilidade literária para contar a história de Jesus, reforçar a tradição judaica do cristianismo e, ao mesmo tempo, arregimentar os ingressantes no cristianismo conforme o quadro de referências religiosas e culturais do judaísmo antigo. Alusões e referências se somavam a esse fundo de intertextos, a nova “teia de sentidos” (religiosos, políticos, sociais e culturais) que se impunha com o domínio imperial proporcionada pela abertura à helenização. Notas de (in)conclusão Neste ensaio, buscamos evidenciar que a redação mateana, embora tenha admitido o caráter misto de sua audiência, excluía gradativamente o que não se acomoda às noções de pureza herdadas da tradição religiosa judaica. Propomos que o evangelho de Mateus provavelmente teve lugar na região da Antioquia da Síria ou região próxima, espaço 189

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geográfico que favoreceu efetivas trocas políticas e culturais entre judeus e outras etnias dominadas pelo império romano, e a multiplicidade do grupo de Mateus – constituído de judeus, judeus helenizados e gentios –, que trazia consigo diferentes expectativas acerca da salvação e do Reino dos Céus. A autoria, portanto, procurou nos interstícios da redação responder positivamente às questões dos judeus que se aproximavam dos ensinos de Jesus, mas também dos judeus helenizados que aderiam ao movimento do nazareno e dos estrangeiros que demonstravam simpatia pela fé e princípios cristãos. Isso implica que,no nível literário,Mateus empregou recursos retóricos amplamente difundidos pela cultura helênica como forma de causar identificação com esse grupo que se aproximava dos ensinos de Jesus. Paralelamente ao crescimento da comunidade, também as críticas feitas pelos adversários do grupo de Mateus se evidenciavam justamente em função da adesão de estrangeiros a ela. Dentre as controvérsias promulgadas, acusavam a comunidade cristã de Antioquia de desrespeitar importantes preceitos da Lei relacionados aos rituais de pureza, ao Sabbath, à alimentação e a outros costumes. Por conseguinte, ela não poderia ser de tradição judaica. Por outro lado, a audiência mateana declarava fé numa única divindade, portanto, não poderia ser de tradição grega ou romana. Embora respeitasse os ditames de Roma, não se submetia completamente ao padrão helênico, pois guardava a Torah interpretada por Jesus. Essa inadequação explicitada principalmente no conflito de interpretações da autoria mateana com as lideranças religiosas judaicas, que se autodenominavam guardiãs da Lei, favoreceu a redação autônoma e criativa desse evangelho. Assim, se de um lado a audiência mateana constituía o público principal da redação (e isso se verifica no trato de temas teológicos e religiosos), do outro, a redação também se destinava ao embate com lideranças judaicas que interpelavam a comunidade. 190

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De posse dos mitos de origem judaicos identificados no Gênesis, das prescrições do Deuteronômio e do Levítico, das profecias de Isaías, Jeremias, de outros profetas e das fontes neotestamentárias – a “Fonte dos ditos” e o evangelho de Marcos –, a autoria mateana apropriou-se desse material e o deformou, conquanto a nova forma dessas tradições se justificasse nos interesses peculiares da autoria e audiência. O evangelho pretendia ser narrativa de origem do novo povo de Iahweh. O novo mito teria como incumbência responder aos adversários fariseus, escribas e saduceus de um lado e, de outro, estabelecer fronteiras delineadoras da identidade dessa comunidade em oposição à Roma, sua cultura e sistema político. O evangelho de Mateus visava a impor classificações de religiosidade, de conduta e de relações sociais que norteassem as ações do grupo mateano. Isso foi feito por meio da revitalização de memórias ancestrais, adaptações culturais e transformação literária. Metodologicamente, poderíamos entender que se o conteúdo do evangelho é predominantemente judaico, sobre a forma de apresentação dessa fonte não poderíamos dizer o mesmo. A redação, ao mesmo tempo em que emprega fórmulas semitas e recorre à tradição religiosa judaica, dispõe ao longo da escrita ditos de Jesus em narrativas biográficas ao modo grego, além de evocar temas de interesse não apenas das audiências judaicas, mas provavelmente também de outras etnias. O evangelho de Mateus representa, portanto, uma rica construção literária que assimila elementos externos (dimensões históricas e sociais) e internos (psicológicos,religiosos e linguísticos) à estrutura do texto, algumas vezes de forma consciente e, outras vezes, de maneira inconsciente. Entretanto, laboriosamente arquitetadas. A incorporação de expectativas do grupo, do meio social, da cultura, das técnicas retóricas e de outros intertextos que perpassam a redação mateana revelam que o perfil psicológico 191

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da autoria não poderia ser constituído predominantemente de influências judaicas ou inserções helênicas apenas. Mas, pelo que apuramos na redação, nas evidências materiais e nas interpretações históricas a que recorremos, o evangelho de Mateus é uma narrativa que reclama para si caráter fundante e normativo. Assim, pretende ser história de fundação das origens cristãs e documento ordenador com orientações para a conduta religiosa e social dos cristãos reunidos em torno desse evangelho.

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Os evangelhos gnósticos Louis Painchaud1

Falar de evangelhos gnósticos pode se tornar uma tarefa um tanto ambígua, visto que geralmente os textos assim chamados não são evangelhos ou então possuem apenas o título de evangelho. No entanto, os chamados “evangelhos gnósticos” já foram bastante estudados e seus conteúdos suscitaram grande interesse do público em geral. O livro de Elaine Pagels, The Gnostic Gospels (1979) fez um sucesso espetacular nos Estados Unidos e foi traduzido para diversas línguas, inclusive o português.2 Num exemplo mais popular e acessível, o Evangelho de Tomé foi tema da revista Paris Match em 1975, e mais recentemente, ele inspirou um filme dirigido por Ruppert Wainwright, Stigmata (Metro-Goldwyn-Mayer, 1999). Tal filme é um thriller cuja intriga baseia-se na descoberta de um novo evangelho que revelaria o autêntico ensinamento de Jesus, ensinamento esse que o Vaticano quereria esconder dos fiéis a fim de conservar sua autoridade sobre eles. Esse evangelho seria o Evangelho de Tomé Este artigo foi originalmente escrito em francês e traduzido para o português por Julio Cesar Dias Chaves. O autor é professor de teologia e ciências das religiões na Université Laval, Canadá e coordenador do seminário permanente Bibliothèque copte de Nag Hammadi. 2 Elaine Pagels. Os evangelhos gnósticos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. 1

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descoberto em Nag Hammadi em 1945. Segundo o filme, ele teria sido escrito em aramaico, a língua de Jesus, e estaria guardado no Vaticano. Ainda sobre o Evangelho de Tomé, pode-se destacar seu extraordinário sucesso na internet, tendo em vista o grande número de páginas dedicadas a ele, e claro, o fato de ele ter sido qualificado algumas vezes como o “quinto evangelho”.3 Mais recentemente, a intriga do best-seller de Dan Brown, O código da Vinci (2003), gira em torno das relações entre Jesus e Maria Madalena, relações essas que teriam gerado descendência e dado origem à dinastia merovíngia, tendo se perpetuado até os dias de hoje, conservando o segredo de sua procedência sagrada; um segredo que causaria, segundo o romance, a ruína da Igreja Católica. Não haveria nada de novo nesse enredo se não encontrássemos no coração do livro uma citação do Evangelho de Filipe, outro texto descoberto em Nag Hammadi. A citação em questão sugeriria, aos olhos de Dan Brown e de seus leitores modernos, que Jesus e Maria Madalena teriam sido cônjuges ou amantes. O último a entrar na lista, o Evangelho de Judas, cujo conteúdo tornou-se público em 2006, também suscitou um grande interesse do público em razão do blefe mediático do qual ele foi alvo.4 Se eu evoco o estardalhaço feito pela mídia em relação aos “evangelhos gnósticos” é porque a escolha dos termos que são utilizados para designar tais textos não é feita por acaso, pois, no imaginário popular, um evangelho traz informações sobre a vida e os ensinamentos de Jesus. O fato de se designar certos textos como “evangelhos”, adicionando qualitativos como “secreto”,5 Stephen Patterson et alii (Ed.). The Fifth Gospel. The Gospel of Thomas Comes of Age. Harrisburg: Trinity Press International, 1998. 4 Rodolphe Kasser et alii. The Gospel of Judas. Washington: National Geographic, 2006. Sobre os erros de tradução e de interpretação cometidos pelos editores, ver Louis Painchaud. “À propos de la (re)découverte de l’Évangile de Judas”. In: Laval théologique et philosophique 62 (3), p. 553-568. Ver ainda o artigo sobre o Evangelho de Judas que integra este volume. 5 Cf. p.ex. já em 1958, o título do livro de Jean Doresse. Les livres secrets des gnostiques d’Égypte (Paris: Plon; em português, Os livros secretos dos gnósticos do Egito). 3

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“perdido”6 ou “gnóstico”, cria instantaneamente expectativas nos leitores, orientando a leitura de tais textos. Não é a toa que tais qualitativos são essencialmente utilizados em publicações destinadas ao público em geral. Antes, porém, de falar dos evangelhos gnósticos propriamente ditos, é importante compreender a evolução da palavra evangelho. A palavra “evangelho”, sabe-se bem, vem do grego eu-aggelion, que significa “boa nova”. Entre os primeiros cristãos, a palavra euaggelion era utilizada por Paulo para anunciar a “boa nova da salvação”, antes mesmo de se começar a utilizá-la como título para designar certo tipo de escrito, mesmo levando em conta que alguns desses escritos já pudessem existir. Assim, diz Paulo no início da Epístola aos romanos: Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, escolhido para o evangelho de Deus, que ele já tinha prometido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, e que diz respeito a seu Filho [...] (Rm 1:1-3).7

Ainda nos evangelhos canônicos, a palavra “evangelho” e o verbo correspondente são utilizados com o mesmo sentido da utilização de Paulo, designando o anúncio da salvação trazida ao mundo por Jesus Cristo. É este o sentido que se deve dar, por exemplo, às primeiras palavras de Mc: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1:1). Por conseguinte, seria melhor traduzir o trecho em questão da seguinte forma: “Princípio da boa nova de Jesus Cristo, Filho de Deus”. Essa utilização é tipicamente paulina e se perpetuou nas comunidades que se diziam ligadas a Paulo ou que foram Herbert Krosney. The Lost Gospel. The Quest for the Gospel of Judas Iscariot. Washington: National Geographic, 2006. 7 Todos os textos bíblicos deste artigo são traduções da Bíblia de Jerusalém. 6

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influenciadas por seus ensinamentos. Já nas comunidades joaninas, nem a palavra evangelho nem o verbo correspondente parecem ter tido a mesma significação, visto que eles não são encontrados na literatura joanina, fora duas ocorrências no Apocalipse (10:7-14:6). Na sua Carta aos Filadélfios, escrita por volta de 110, Inácio de Antioquia coloca na boca de seus adversários a seguinte frase: “Se eu não encontro nos arquivos (tois archeiois), não creio no evangelho (tou euaggeliou)”.8 Nesse contexto, nada indica que para Inácio, a palavra evangelho seja uma referência a um texto escrito. Trata-se na verdade, da “boa nova” da salvação, como o indica claramente a sequência de sua carta: O evangelho, porém, tem algo mais especial: a vinda do Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo, sua paixão e ressurreição. De fato, os amados profetas o haviam anunciado, mas o evangelho é a consumação da incorruptibilidade.9

Na mesma época, Papias de Hierápolis na Ásia Menor, citado por Eusébio de Cesareia (História Eclesiástica 3.39), designa como logia, em português, palavras, escritos que circulavam no seu tempo, em relação aos quais ele preferia, no entanto, a tradição oral. Por volta de 150, em Roma, Justino mártir foi testemunha da emergência da palavra “evangelho” como título que designa um tipo de escrito: “Foi isso que os Apóstolos nas memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram que assim

Inácio de Antioquia, Carta aos Filadélfios 8.2 In: Roque Frangiotti et alii (Ed.). Padres apostólicos (Coleção Patrística 1). São Paulo: Paulus, 1995, p. 112. 9 Idem, 9. 2. 8

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foi mandado a eles, quando Jesus, tomando o pão e dando graças disse [...]”.10 Enfim, em 180, Irineu de Lyon usa o termo “evangelho quadriforme” (Contra as heresias 3.11) para designar os quatro evangelhos que atualmente se encontram no Novo Testamento, e é num contexto polêmico que ele expõe as razões pelas quais não pode haver mais de quatro evangelhos. De Inácio a Irineu pode-se, portanto, traçar uma trajetória: no início do século, a palavra ainda designava a transmissão oral da “boa nova” da salvação, como no caso das epístolas paulinas, meio século antes. Quarenta anos mais tarde em Roma, os textos lidos nas assembleias rituais dos cristãos já eram chamados de “evangelhos”, o que atesta, por um lado, a emergência de tais textos chamados de evangelhos e, por outro, o status de Escritura sagrada que lhes é conferido. O mesmo status é conferido à Lei e aos Profetas, às Escrituras judaicas que se tornariam para os cristãos o Antigo Testamento. O número de textos chamados de evangelhos prolifera trinta anos mais tarde, o que leva Irineu a limitá-los a quatro, os quatro evangelhos que formam o Novo Testamento (Contra as heresias, 3.11). A palavra evangelho pode ainda englobar novas escrituras cristãs, como as epístolas, em oposição às escrituras judaicas. Assim sendo, Irineu distingue as “escrituras proféticas” (as Escrituras judaicas que, segundo os cristãos, anunciariam a vinda do Cristo) das “escrituras evangélicas” (Contra as heresias 2.27), prelúdio do que viria a ser a distinção até hoje utilizada, o Antigo e o Novo Testamento.

Apologia 1.66.3 (Tradução de Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. Justino de Roma. Apologias I e II e Diálogo com Trifão. Coleção patrística. v. 3. São Paulo: Paulus, 1995). Justino ainda diz que essas “memórias” eram lidas pelos cristãos nas assembleias (Diálogo com Trifão. 10.2 e 100.1), indicando assim seu uso litúrgico ou ritual e ao mesmo tempo atestando sua elevação ao grau de “Escritura Sagrada” ou de textos sagrados análogos aos textos das escrituras judaicas.

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Portanto, no fim do século II, existia um número considerável de textos designados como evangelhos, que Irineu limita, no entanto, a quatro. É extremamente difícil determinar o número total de evangelhos que foram redigidos durante os primeiros séculos do cristianismo, pois, para chegar a tal número, seria necessário chegar antes a um consenso sobre a definição do gênero literário “evangelho” e em seguida contar os textos que correspondem a essa definição. Deve-se ainda levar em conta que muitos desses textos podem ter se perdido para sempre. Não há, no entanto, um consenso em relação a tal definição.11 Por outro lado, deve-se considerar que certos textos pertencem manifestamente a um mesmo gênero literário; é o caso, por exemplo, do Evangelho de Maria (Códex de Berlim 1) e do Diálogo do Salvador (NH VI, 5); no entanto, apesar de pertencerem manifestamente ao mesmo gênero literário, os textos citados possuem qualitativos diferentes em seus títulos. O primeiro possui o título de “evangelho”, enquanto o segundo possui o título de “diálogo”. Inversamente, certos escritos pertencem a gêneros literários bem diferentes; é o caso, por exemplo, do Evangelho de Tomé, uma compilação de palavras de Jesus, e do Evangelho de Filipe, texto cujo gênero literário, uma espécie de florilégio, é difícil de ser definido, mas que certamente não pode ser identificado com o gênero literário evangélico. Mesmo assim, tais textos possuem o título de evangelho em seus respectivos manuscritos. Atualmente, conhece-se mais de trinta escritos cristãos cujos textos sobreviveram totalmente ou em parte – às vezes se trata apenas de alguns fragmentos – e que são designados como evangelhos.12 Pode-se distinguir, antes de tudo, os quatro Não é possível tratar da questão do gênero literário, extremamente complexa, pormenorizadamente dentro dos limites deste capítulo. 12 Charles W. Hedrick. “The 34 Gospels. Diversity and division among the earliest Christians”. In: Bible Review 18, 2002, p. 20-26. 11

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evangelhos ditos canônicos, Marcos, Mateus, Lucas e João. Em seguida, certo número de evangelhos apócrifos, dentre os quais se pode mencionar o Protoevangelho de Tiago, ou Natividade de Maria, o Evangelho da infância do pseudo Mateus, aos quais se deve os relatos relativos à infância de Maria, e o Evangelho de Pedro (fragmentário); há ainda os fragmentos do papiro Egerton, dois textos fragmentários de Oxyryncos (papiro Oxyrrhynchus 840 e 1224) e o papiro de Berlim 22220. Outros evangelhos são conhecidos apenas por meio de citações de outros autores antigos: o Evangelho dos ebionitas (mencionado por Irineu e citado por Epifânio), o Evangelho dos hebreus (mencionado por Hegésipo e citado por Clemente de Alexandria) e o Evangelho dos nazarenos (citado por Orígenes); há ainda o chamado Evangelho secreto de Marcos, supostamente citado numa carta atribuída a Clemente de Alexandria.13 Uma versão copta de um Evangelho de Judas, título que até então era conhecido somente por meio de Irineu de Lyon (Contra as heresias, I, 31), foi descoberta recentemente. Há ainda outros evangelhos, uma dúzia aproximadamente, que são apenas mencionados por autores antigos. A todos esses escritos citados, deve-se ainda acrescentar documentos hipotéticos cuja existência é postulada e cujo texto é reconstruído pelos estudiosos modernos e que teria servido como fonte dos evangelhos canônicos; em particular, a famosa fonte “Q”,14 uma suposta coletânea de palavras de Jesus, análoga em sua forma ao Evangelho de Tomé, e que teria sido Há evidências suficientes para se crer que o evangelho secreto descoberto na biblioteca do monastério de Mar Saba no deserto da Judeia foi forjado. Sobre o assunto cf. Alain Martin. “À propos de la lettre attribuée à Clément d’Alexandrie sur l’évangile secret de Marc”. In: L’Évangile selon Thomas et les textes de Nag Hammadi, traditions et convergences. Actes du colloque tenu à Québec les 29, 30 et 31 mai 2003. (Bibliothèque copte de Nag Hammadi, section Études, 8). Québec / Louvain / Paris: Presses de l’Université Laval / Peeters, 2003, p. 277-300. 14 “Q”, a primeira letra da palavra alemã Quelle, que significa “fonte”. Essa coleção hipotética foi assim batizada porque ela teria servido de “fonte” para a redação de Mateus e Lucas. 13

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utilizada como fonte de Mateus e Lucas. Outros textos poderiam figurar nessa lista, apesar de não terem sido transmitidos com o título de evangelho; é o caso dos Atos de Pilatos ou a História de José, o carpinteiro, ou ainda as Questões de Bartolomeu; são inúmeros os exemplos desse tipo. Por outro lado, certos textos designados pelos estudiosos modernos como evangelhos podem nunca ter sido concebidos como tal, seja no momento de sua composição, ou no decorrer de sua transmissão. Parece ser o caso notadamente do papiro de Berlim 22220, publicado por Hedrick e Medrick em 1999,15 ao qual foi dado o nome de Gospel of the Savior pelos autores em questão; já os alemães preferiram chamá-lo de Unbekanntes Berliner Evangelien.16 Esse manuscrito fragmentário, conservado num estado lamentável, cujo título do texto não foi preservado, poderia conter na verdade uma homilia copta tardia e não um evangelho primitivo.17 Assim sendo, percebe-se o quão complicado é determinar rigorosamente o número de evangelhos conhecidos. Seja qual for o número, ele está acima de trinta. Os evangelhos gnósticos É igualmente difícil determinar quais dentre esses pouco mais de trinta escritos ditos evangelhos são “gnósticos”. Em meio aos diversos textos pertencentes a coleções gnósticas que sobreviveram até hoje, quatro apresentam o título de evangelho no manuscrito. São eles o Evangelho de Maria, pertencente ao Códex de Berlim, o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Filipe, ambos integrantes do Codex II de Nag Hammadi, e o Evangelho de Judas, pertencente Charles W. Hedrick e Paul Mirecki. The Gospel of the Savior: A New Ancient Gospel. Santa Rosa: Polebridge Press, 1999. 16 Hans-Martin Schenke. “Das sogenannte ‘Unbekannte Berliner Evangelium’ (UBE)” in: Zeitschrift für Antikes Christentum 2, 1998, p. 199-213; Titus Nagel. “Das ‛Unbekannte Berliner Evangelium’ und das Johannesevangelium”. In: Zeitschrift für Neutestamentliche Wissenschaft 93, 2002, p. 251-267. 17 Cf. a contribuição de Alin Suciu neste volume. 15

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ao Codex Tchacos. Outros dois textos gnósticos cujos manuscritos não apresentam o título de “evangelho” são geralmente designados como evangelhos. Um deles é o Livro sagrado do Grande Espírito invisível, texto que foi conservado por meio de duas cópias contidas na Biblioteca de Nag Hammadi, uma no Codex III e outra no Codex IV; o cólofon desse texto (NH III, 69, 6) apresenta ainda as palavras “evangelho egípcio”. Portanto, a designação do texto em questão como Evangelho dos egípcios repousa num erro de leitura de seu cólofon. O outro texto gnóstico geralmente designado como evangelho faz parte do Codex I de Nag Hammadi18 e não apresenta título no manuscrito, mas é chamado de Evangelho da verdade pelos estudiosos modernos devido às suas primeiras palavras: “O evangelho da verdade é alegria...” (NH I 16, 31). Se considerarmos que um evangelho é um texto que deve, no mínimo, reportar palavras de Jesus ou eventos nos quais ele seja o personagem principal, estejam esses eventos situados antes ou depois de sua paixão, somente o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Maria e o Evangelho de Judas podem ser considerados evangelhos; o primeiro na condição de coleção de palavras de Jesus, e os outros dois na condição de diálogos entre Jesus e seus discípulos. Os outros três textos, por vezes considerados como “evangelhos gnósticos”, não entram nessa categoria. O Livro sagrado do Grande Espírito invisível é na verdade um texto mítico e litúrgico que trata principalmente do mundo celeste, comportando diversos hinos; o Evangelho da verdade poderia ser considerado como sendo uma espécie de homilia meditativa que discorre sobre a revelação da salvação.19 Quanto o Evangelho de Filipe, trata-se de um florilégio em que apenas algumas passagens referem-se a Jesus; não se pode Há ainda fragmentos de outra versão deste texto no Codex XII da Biblioteca de Nag Hammadi. 19 Pode-se dizer, portanto, que o uso da palavra “evangelho” no início do texto atesta a utilização da palavra em questão como anúncio da salvação, e não como referência a um escrito ou gênero literário. 18

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em hipótese alguma, portanto, considerar o texto em questão como sendo um evangelho. Contrariamente, entre os textos de Nag Hammadi existem diversos escritos que, sem possuir o título de evangelho nos manuscritos, poderiam ser considerados evangelhos na medida em que reportam diálogos entre Jesus e seus discípulos. Tais textos, por vezes designados como diálogos de revelação e nos quais se quis ver um gênero literário particular,20 são os seguintes: o Livro de Tomé (NH II, 7), a Sabedoria de Jesus Cristo (NH III, 4; BG 2), o Diálogo do Salvador (NH III, 5), o Apócrifo de João (NH II, 1; III, 1; IV, 1; BG 2); poder-se-ia ainda acrescentar o Primeiro e o Segundo Apocalipses de Tiago (NH V, 3 e 4), o Apocalipse de Pedro (NH VII, 3), a Epístola apócrifa de Tiago (NH I, 2) e a Carta de Pedro a Filipe (NH VIII, 2). Todos esses documentos, que não apresentam o título de “evangelho” no manuscrito, são na verdade diálogos entre Jesus e seus discípulos que acontecem, na maioria dos casos, após a ressurreição. Esses diálogos de revelação, semelhantemente aos evangelhos da infância, procuram completar os indícios que são fornecidos pelos evangelhos canônicos expondo, em sua maioria, ensinamentos que teriam sido transmitidos por Jesus aos seus discípulos durante as aparições que se seguiram a sua morte ou que teriam sido pronunciados ao longo de sua vida, mas que não teriam sido reportados pelos evangelhos canônicos. A ideia de complementar assim os evangelhos pode parecer incongruente hoje em dia, visto que o conteúdo dos evangelhos canônicos é tido como sagrado. No entanto, tendo em vista o contexto do século II, uma época na qual as tradições orais eram transmitidas ao mesmo tempo em que 20

Kurt Rudolph. “Der gnostische ‘Dialog’ als literarisches Genus”. In: Probleme der koptischen Literatur. P. Nagel: Halle, 1968, p. 85-107; Pheme Perkins. The Gnostic Dialogue: The Early Church and the Crisis of Gnosticism. New York / Ramsey / Toronto: Paulist, 1980; Gerd Theissen e Annette Merz. “Gnostic Dialogue Gospels”. The Historical Jesus: A Comprehensive Guide. Minneapolis: Fortress Press, 1998, p. 42-43.

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as escritas e que a lista de evangelhos canônicos ainda não estava definida, a ideia parece mais natural, mesmo porque o autor do Evangelho de João terminou sua obra enfatizando que “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem. Amém ( Jo 21:25)”. Eis então a lista dos “evangelhos gnósticos”, incluindo os diálogos de revelação:21 O Evangelho de Tomé (NH II, 2); O Evangelho de Maria (BG 1); O Evangelho de Judas (Codex Tchacos 3); O Livro de Tomé (NH II, 7); A Sabedoria de Jesus Cristo (NH III, 4; BG 3); O Apócrifo de João (NH II, 1; III, 1; IV, 1; BG 2) O Primeiro apocalipse de Tiago (NH V, 3; Codex Tchacos 2); O Segundo apocalipse de Tiago (NH V, 4); O Apocalipse de Pedro (NH VII, 3); A Epístola apócrifa de Tiago (NH I, 2); A Carta de Pedro a Filipe (NH VIII, 2; Codex Tchacos 1). A esses “evangelhos” pode-se acrescentar, em razão do título, mas tendo em mente as ressalvas expressas anteriormente, os seguintes textos:

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Em 2007 foi publicada uma tradução integral em português dos textos de Nag Hammadi e do Códex de Berlim ( James M. Robinson. A Biblioteca de Nag Hammadi. A tradução completa das escrituras gnósticas. São Paulo: Madras, 2007). Trata-se, no entanto, de uma tradução feita a partir da tradução inglesa dos textos de Nag Hammadi editada por James M. Robinson, na década de 70 ( James M. Robinson. The Nag Hammadi Library in English. Leiden: Brill, 1978). A tradução em português, portanto, é, no mínimo, de qualidade duvidosa, pois não foi feita a partir do copta, mas do inglês, baseando-se numa edição de mais de trinta anos, que não leva em conta as evoluções recentes da coptologia.

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O Evangelho da verdade (NH I, 2 e XII, 2); O Evangelho de Filipe (NH II, 3); O Livro sagrado do Grande Espírito invisível (NH III, 2 et IV, 2), geralmente designado como Evangelho dos egípcios. Pode-se dizer, portanto, que somente três textos gnósticos que possuem o título de evangelho no manuscrito merecem tal nome: o Evangelho de Tomé, uma coleção de palavras atribuídas a Jesus e dois diálogos de revelação, o Evangelho de Maria e o Evangelho de Judas. Limitar-nos-emos neste artigo a discutir brevemente o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Maria, visto que outro artigo neste mesmo volume discorrerá sobre o Evangelho de Judas. O Evangelho de Filipe também será brevemente discutido devido a sua notoriedade. O Evangelho de Tomé O Evangelho de Tomé é uma coleção de 114 logia, ou “palavras” atribuídas a Jesus. Ele chegou até nós integralmente por meio de uma versão copta contida no Codex II de Nag Hammadi. Fragmentos gregos que podem ser datados do séc. II também foram descobertos em Oxyrrhynchus no fim do séc. XIX (papiros Oxyrrhynchus 1, 654 e 655).22 O texto em questão é atribuído, no primeiro logion, a Dídimo (dydumos, palavra que significa “gêmeo” em grego) Judas Tomé (o gêmeo em aramaico), ou seja, Judas o gêmeo de Jesus. Esse texto foi o primeiro e mais estudado texto de Nag Hammadi; seria impossível catalogar aqui todas as edições

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Joseph A. Fitzmeyer. “The Oxyrhynchus Logoi of Jesus and the Coptic Gospel According to Thomas”. Essays on the Semitic Background of the New Testament. Missoula: Society of Biblical Literature / Scholar’s Press: 1974, p. 355-433; Marvin Meyer e Stephen Patterson. “The Greek fragments of Thomas”. In: Robert J. Miller (ed.). The Complete Gospels: Annotated Scholars Version. San Francisco: HarperSanFrancisco, 1994, p. 323-329.

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e traduções das quais ele foi objeto.23 Nota-se, no entanto, que os trabalhos a ele relacionados dedicaram-se principalmente, e desde o início, ao estudo de sua relação com o Novo Testamento e a transmissão das palavras de Jesus.24 Esse Tomé é o apóstolo mencionado diversas vezes nos evangelhos canônicos. Sua figura ficou particularmente conhecida nos ambientes siríacos em torno da cidade de Edésia.25 A tradição atribui-lhe a evangelização da Índia e ainda hoje se pode encontrar no sul desse país uma antiga Igreja cristã cuja língua é o siríaco e cujos fiéis são chamados por vezes de “cristãos de São Tomé”. Uma importante tradição literária de tom fortemente encrático desenvolveu-se em torno da figura do apóstolo Tomé, tradição essa que conta ainda com o Livro de Tomé (NH II, 7)26 e os Atos de Tomé.27 Existem diversas traduções portuguesas desse evangelho, mas até onde se pôde apurar, nenhuma feita diretamente a partir do texto copta: Raymond Kuntzmann e Jean-Daniel Dubois. Nag Hammadi. O Evangelho de Tomé. São Paulo, Edições Paulinas, 1990; Marvin Meyer. O Evangelho de Tomé. As sentenças de Jesus –Interpretação de Harold Bloom. Uma edição crítica bilíngue do Evangelho de Tomé. Rio de Janeiro: Imago, 1993; Jean-Yves Leloup. O Evangelho de Tomé. Petrópolis: Vozes, 1998; e Jean-Yves Leloup. Palavras de fonte. Comentários sobre trechos dos evangelhos de Maria e Tomé. Petrópolis: Vozes, 2000. A qualidade das traduções originais varia. A tradução de Kuntzmann e Dubois, por exemplo, é boa; o mesmo não pode ser dito em relação à tradução de Leloup. Pode-se encontrar informações em relação às principais edições e traduções, assim como à história da pesquisa em Stephen Patterson e James M. Robinson. The Fifth Gospel: The Gospel of Thomas Comes of Age. Harrisburg: Trinity Press International, 1998. 24 Cf. p.ex. Gérard Garitte. “Le premier volume de l’édition photographique des manuscrits gnostiques coptes et l’‘Évangile de Thomas’”. In: Le Muséon 70, 1957, p. 59-73; Gérard Garitte e Lucien Cerfaux. “Les paraboles du royaume dans l’‘Évangile de Thomas’”. In: Le Muséon 70, 1957, p. 307-327; Georges Quispel. “The Gospel of Thomas and the New Testament”. In: Vigiliae Christianae 11, 1957, p. 189-207; Johannes Leipoldt. “Ein neues Evangelium? Das koptische Thomasevangelium übersetzt und besprochen”. In: Theologische Literaturzeitung 83, 1958, p. 481-496. 25 Albertus F. J. Klijn. Edessa. Die Stadt des Apostels Thomas. Neukirchen: Vluyn, 1965. 26 Raymond Kuntzmann. Le livre de Thomas (NH II,7). (Bibliothèque copte de Nag Hammadi, section Textes, 16). Québec: Presses de l’Université Laval, 1986. 27 Cf. Paul-Hubert Poirier. “Évangile de Thomas, Actes de Thomas, Livre de Thomas. Une tradition et ses transformations”. In : Apocrypha 7, 1996, p. 9-26 e Paul-Hubert Poirier e Yves Tissot. “Actes de Thomas”. In  : François Bovon e Pierre Geoltrain. 23

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O Evangelho de Tomé comporta numerosas passagens paralelas aos evangelhos canônicos. Apresentando-se como as palavras veladas (a maior parte das traduções traduziu o termo como “escondidas” ou “secretas”) de Jesus o vivente, ele chama a atenção do grande público. Muitos creem consequentemente, que acharão um ensinamento de Jesus que seria mais autêntico que os transmitidos pelos evangelhos canônicos. Na verdade, a pesquisa tende a demonstrar que as palavras atribuídas a Jesus por esse evangelho não são nem mais nem menos autênticas que as transmitidas pelos evangelhos canônicos e que elas possuem traços de uma longa história redacional.28 Esse texto, que apresenta o título de Evangelho de Tomé no manuscrito, não comporta nenhum relato sobre a vida ou morte de Jesus. Sua forma literária, uma coleção de palavras atribuídas a Jesus está, na verdade, mais próxima da fonte hipotética, a chamada fonte “Q”, que teria sido utilizada por Mateus e Lucas para a redação de seus respectivos evangelhos. Esse parentesco formal não significa, no entanto, que o Evangelho de Tomé deva ser identificado com a citada fonte primitiva. A questão da relação com os evangelhos canônicos provoca consequências importantes no plano histórico e teológico. Trata-se Écrits apocryphes chrétiens (éd. Bibliothèque de la Pleiade) Paris, Gallimard, 1997, p. 1321-1470. 28 Cf. Jean-Marie Sevrin e Craig L. Blomberg. “Tradition and redaction in the parables of the Gospel of Thomas”. In: David Wenham. The Jesus Tradition Outside the Gospels. Sheffield: JSOT Press, 1984, p. 177-205; Jean-Marie Sevrin. “La rédaction des paraboles dans l’Évangile de Thomas”. In  : Marguerite Rassart-Debergh e Julien Ries (éds.). Actes du IVe Congrès Copte: Louvain-la-Neuve, 5-10 septembre 1988; II: De la linguistique au gnosticisme. Louvain-la-Neuve  : Institut Orientaliste, 1992, p.343-354; Jean-Daniel Kaestli. “L’Évangile de Thomas. Que peuvent nous apprendre les ‘Paroles cachées de Jésus’?”. In: Jean-Daniel Kaestli e Daniel Marguerat (ed.). Le mystère apocryphe. Introduction à une littérature méconnue. Genebra: Labor et Fides, 1995, p. 47-66; Jean-Marie Sevrin. “Thomas, Q et le Jésus de l’histoire”. In: Andreas Lindemann (ed.). The Saying Source Q and the Historical Jesus. Louvain: Éditions Peeters, 2001, p. 461-476.

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de saber se certas palavras de Jesus poderiam ser encontradas no Evangelho de Tomé numa forma mais próxima de suas origens do que nos sinópticos. Assim sendo, as palavras reportadas no Evangelho de Tomé seriam um testemunho mais próximo do ensinamento autêntico de Jesus. A resposta dessa questão não é simples e, sobretudo, não se pode tomar parte de nenhum dos lados se levarmos em conta o texto do Evangelho de Tomé em sua totalidade. Em alguns casos, foi demonstrado que certos logia que apresentam paralelos nos sinópticos dependem destes, enquanto que outros logia são independentes e poderiam testemunhar um estado mais antigo da transmissão das palavras de Jesus. Deve-se, portanto, examinar caso por caso, analisando cada palavra separadamente. Quanto às características particulares desse texto, além do fato de ele se apresentar formalmente como uma coleção de palavras de Jesus e não como um relato contínuo, ele anuncia seu conteúdo como “escondido” ou “velado” e convida o leitor a procurar a interpretação: “Aquele que achar a interpretação dessas palavras não provará a morte” (log. 1). O leitor é, portanto, chamado a percorrer uma espécie de caminho de iniciação que o levará à iluminação e à imortalidade (logion 2). Dentre os temas correntes presentes no texto, encontra-se o do labor, do esforço que se deve fazer para se chegar ao “Reino”. Por outro lado, certos logia dizem respeito à origem celeste da alma, à pobreza ou à deficiência que caracteriza o mundo, à necessidade da ascese para dele se liberar e ainda tratam de temas que evocam o gnosticismo, mas que não lhe são exclusivos. Tais temas nunca são desenvolvidos e explicitados, mas apresentados alusivamente, de maneira “velada”, a fim de solicitar um esforço de interpretação por parte do leitor, o que acaba conferindo ao texto uma grande riqueza, pois seu conteúdo pode ser interpretado de diversos modos. Essa é sem dúvida uma 207

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das características que fizeram com que esse texto fosse tão popular na cultura contemporânea; cada leitor pode individualmente achar a interpretação que lhe convém. Outro fator de popularidade em favor do Evangelho de Tomé diz respeito ao fato de ele não dar importância nem à crucificação nem à morte de Jesus, eventos que constituem a base da fé cristã tal qual veiculada pela tradição das grandes Igrejas. O nosso texto apresenta Jesus como uma espécie de mestre de sabedoria cujos ensinamentos dirigem-se ao indivíduo, o que combina bastante com certas sensibilidades religiosas do mundo ocidental contemporâneo. Mesmo comportando elementos narrativos mínimos, não se preocupando em relatar nada sobre a infância, a vida pública e a paixão, morte e ressurreição de Jesus, o Evangelho de Tomé pode ser considerado um evangelho, visto que transmite uma coleção de palavras de Jesus. Quanto ao fato de ser gnóstico, a questão é complexa.29 O texto é uma compilação na qual certos elementos podem remontar a um estado primitivo de transmissão das palavras que lhe são atribuídas,30 enquanto outras dependem dos evangelhos canônicos. Tais elementos não são, em geral, gnósticos. Todavia, a compilação e disposição dos logia, ou ao menos sua disposição no decurso da transmissão do texto, poderiam ser obra de um ambiente gnóstico. A insistência sobre a busca ou pesquisa, por exemplo, encontrada Kendrick Grobel. “How Gnostic is the Gospel of Thomas”. In: New Testament Studies 8, 1961/1962. p. 367-373; Antti Marjanen. “Is Thomas a Gnostic Gospel”. In: Risto Uro. Thomas at the Crossroad: Essays on the Gospel of Thomas. Édimbourg: T & T Clark, 1998, p. 107-139. 30 Charles W. Hedrick. “An anecdotal argument for the independence of the Gospel of Thomas from the Synoptic Gospels”. In: Hans-Gebhard Bethge et alii (Ed.). For the Children, Perfect Instruction. Studies in Honor of Hans-Martin Schenke on the Occasion of the «Berliner Arbeitskreis für koptisch-gnostische Schriften» Thirtieth Year. Leiden / Boston: Brill, 2002, p. 113-126.

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desde as primeiras linhas do documento, é precisamente um traço que Irineu reprova naqueles que ele qualifica de “gnósticos”.31 Há uma tendência em considerar o Evangelho de Tomé como uma testemunha mais confiável que os evangelhos canônicos no tocante ao ensinamento autêntico de Jesus, mesma tendência que o considera mais próximo da famosa fonte Q.32 Dois fragmentos gregos desse texto, provenientes de Oxyrynchus, são conhecidos e foram datados paleograficamente do início do séc. III, o que determina um terminus ad quem para a datação da composição original do texto grego. Como um dos dois fragmentos, o papiro Rylands 463, corresponde ao fim do texto e contém a palavra euaggelion, pode-se concluir que o título de evangelho foi-lhe atribuído cedo no decurso de sua transmissão, se é que não lhe foi dado já na composição original.33 Todavia, tudo indica que o Evangelho de Tomé é na verdade uma compilação tardia, provavelmente realizada num ambiente siríaco e colocada sob o apadrinhamento do apóstolo da Síria, Tomé.34 Não se deve esquecer ainda que este gênero de compilação não se limitou, sem dúvida, à Síria. Portanto, Klaus Koschorke. “‘Suchen und Finden’ in der Auseinandersetzung zwischen gnostischem und kirchlichem Christentum”. In: Wort und Dienst 14, 1977, p. 51-65. 32 Helmut Koester. “The Synoptic Saying Source and the Gospel of Thomas” in: John S. Kloppenborg (ed.). The Shape of Q: Signal Essays on the Sayings Gospel. Minneapolis: Fortress Press, 1994, p. 35-50. 33 O papiro Rylands é um fragmento que mede 8,9 x 9,9 cm aproximadamente, inscrito frente-verso, o que indica que ele pertencia a um códex. Ele provém de Oxyrynchus e deve ser datado do início do século III a.C., consequentemente, deve-se datar a composição original do texto por volta do fim do século II ou início do século III. O fragmento grego contido no papiro Rylands 463 corresponde às passagens 17:5-21 e 18:5-19:5 do texto copta do Evangelho de Tomé, o que corresponde ao fim do texto e atesta que o título atribuído ao texto na versão copta já se encontrava na versão grega. Já o papiro de Oxyrhynchus 3525 corresponde a passagem 9:5-10:14. 34 Jacques É. Ménard. “Le milieu syriaque de l’Évangile selon Thomas et de l’Évangile selon Philippe” in : Revue des sciences religieuses 42, 1968. p.261-266; Albertus F. J. Klijn. “Christianity on Edessa and the Gospel of Thomas: On Barbara Ehlers, Kann das Thomasevangelium aus Edessa stamen” in: Novum Testamentum 14, 1972, p. 70-77. 31

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é plausível que um tipo semelhante de coleção de palavras de Jesus tenha circulado no Egito; traços de tal coleção subsistiriam notadamente em Clemente de Alexandria e na Interpretação da Gnose (NH XI 9, 27-38).35 O Evangelho de Maria São três as testemunhas conhecidas do Evangelho de Maria. A versão copta contida no manuscrito de Berlim 8502 (Berolinensis Gnostius = BG) e dois fragmentos provenientes de Oxyrynchus: o papiro Rylands 463 e o papiro de Oxyrynchus 3525. As escrituras de ambos os fragmentos foram datadas paleograficamente do início do século III, o que fornece um terminus ad quem para a datação da composição original do texto grego. Um dos fragmentos, o papiro Rylands 463, corresponde ao fim do texto e contém a palavra euaggelion, o que indica, portanto, que o título de evangelho foi desde muito cedo atribuído ao nosso texto no decurso de sua transmissão, se é que não o foi desde a composição original. O manuscrito copta do BG está incompleto: ele termina na p. 19, linha 6, e as páginas 1-6 e 11-14 não foram conservadas, ou seja, temos 10 páginas conservadas de um total de 18. Nada permite colocar em dúvida a autenticidade do manuscrito. Todavia, a atribuição de sua autoria a Maria – trata-se de Maria Madalena – é fruto da pseudonímia e se justifica pela importância central concedida à personagem no texto. A primeira edição completa do texto, com uma tradução alemã e comentários, foi publicada em 1955 por Till,36 que havia retomado os trabalhos de Schimidt, falecido. Há ainda uma edição Sobre o assunto ver o comentário de Thomassen em Wolf. Peter Funk, Louis Painchaud e Einar Thomassen. L’Interprétation de la gnose (Bibliothèque copte de Nag Hammadi, section Textes, 34). Québec / Louvain-Paris : PUL / Peeters, 2010. 36 Walter C. Till. Die gnostischen Schriften des koptischen Papyrus Berolinensis 8502. Berlin: Akademie-Verlag, 1955. 35

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e tradução em inglês feita por Parrott em 1979,37 e uma edição francesa feita por Anne Pasquier em 1986,38 e outras edições e traduções alemãs, inglesas39 e em diversas outras línguas modernas. Todavia, numerosas traduções destinadas ao público em geral, suscitadas pela popularidade da figura de Maria Madalena, não são confiáveis e se distanciam consideravelmente do texto copta.40 Do ponto de vista literário, o Evangelho de Maria é um diálogo de revelação entre Jesus e seus discípulos que ilustra bem o gênero literário definido por Kurt Rudolph evocado anteriormente. As lacunas importantes do texto não permitem que se faça um plano de leitura. Pode-se supor que ele possuía uma introdução narrativa seguida de um diálogo entre Jesus e seus discípulos, que termina com a partida daquele (8:12-9:5), seguido de uma revelação de Maria (9:12-17:9), que por sua vez é precedida de uma introdução narrativa (9:5-12) e seguida de uma conclusão (17:9-19:2). O escrito provavelmente integra uma fonte escrita anterior que contém um relato da ascensão da alma em direção às esferas planetárias (15:1-17:7). Ele comporta ainda citações implícitas e alusões ao Novo Testamento. Seria pertinente perguntar se o texto em questão passou por transformações no decurso de sua transmissão. Anne Pasquier supõe que o relato da ascensão da alma comportaria inicialmente quatro graus, mas que ele teria sido reelaborado à luz de um sistema de sete níveis.41 Douglas M. Parrott (ed.). Nag Hammadi Codex III, 3-4 and V, 1 with Papyrus Berolinensis 8502, 3 and Oxyrhynchus Papyrus 1081. Eugnostos and The Sophia of Jesus Christ. Leiden: Brill, 1991. 38 Anne Pasquier. L’Évangile selon Marie (BG 1). (Bibliothèque copte de Nag Hammadi, section Textes, 10). Québec: Presses de l’Université Laval, 1983. 39 Karen L King. The Gospel of Mary of Magdala. Jesus and the First Woman Apostle. Santa Rosa – CA: Polebridge, 2003. 40 É o caso notadamente da tradução de Jean-Yves Leloup. L’Évangile de Marie: Myriam de Magdala. Paris: Albin Michel, 2000. 41 Pasquier, L’Évangile selon Marie, p. 79-83. 37

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A doutrina apresentada na revelação do Salvador exprime um ponto de vista antinomista, ou seja, oposto à Lei, o que se aproximaria de Rm 7. Sua antropologia distingue no homem a alma (psychê), o intelecto (noûs) e o espírito (pneuma). A concepção que o relato deixa subentendida sobre a ascensão da alma é característica da cosmologia e da soteriologia gnósticas tais quais descritas por Jonas: o mundo é uma prisão constituída de esferas concêntricas pelas quais a alma deve passar, escapando graças ao conhecimento que ela possui sobre sua origem celeste.42 Tal doutrina é, além disso, platônica. A mensagem central do texto não diz respeito, no entanto, ao destino da alma após a morte. O escrito, na forma em que chegou até nós, apresenta-se como uma espécie de legitimação da autoridade de Maria Madalena na condição de intermediária e intérprete da revelação do Salvador. Os outros discípulos são descritos como incrédulos e ignorantes, enquanto que a verdade e o conhecimento não pertencem senão a Maria Madalena, a eleita do Salvador. Resta apenas uma porção do escrito consagrada à ascensão da alma através das esferas planetárias no seu retorno à pátria celeste, porção na qual se ilustra a crença gnóstica segundo a qual se deve possuir certos conhecimentos, respostas, fórmulas ou senhas para se poder retornar ao mundo celeste. O Evangelho de Maria suscita bastante interesse na cultura ocidental contemporânea em razão da importância que ele atribui à figura de Maria Madalena, uma mulher, como discípula predileta do Cristo. Assim sendo, o Evangelho de Maria é um dos escritos cristãos antigos que atestam a importância dada a Maria Madalena por certos ambientes. Tal ideia pode ainda ser encontrada em

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Hans Jonas. The Gnostic Religion: The Message of the Alien God and the Beginings of Christianity. Boston: Beacon Press, 1958.

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diversos outros escritos gnósticos, entre eles o Evangelho de Filipe do Codex II de Nag Hammadi.43 O Evangelho de Filipe O Evangelho de Filipe chegou até nós de forma integral por meio de uma versão copta que integra o Códex II de Nag Hammadi. O título que lhe foi atribuído encontra-se escrito no fim do manuscrito. Espremido entre o fim do texto e o início do escrito seguinte, ele não apresenta traços de ornamentação como os do Apócrifo de João e os do Evangelho de Tomé, documentos precedentes no manuscrito do Códex II. Mesmo se os escribas de Nag Hammadi parecem ter, em geral, respeitado a disposição dos títulos dos exemplares que eles utilizaram para executar suas cópias,44 não seria impossível que no caso específico do Evangelho de Filipe o título tenha sido fabricado e adicionado pelo escriba; talvez em virtude da única menção de um apóstolo no texto, Filipe em 73:8 e da proximidade do Evangelho de Tomé. Todavia, contrariamente ao que se passa no Evangelho de Tomé, o Evangelho de Filipe não dá nenhuma indicação que leve a crer que o apóstolo em questão seja o redator, escriba ou compilador. Mas vejamos quem é esse apóstolo. Um apóstolo Filipe é mencionado em algumas listas nos evangelhos sinópticos e nos Atos dos Apóstolos ocupando um lugar mais importante no Evangelho de João (1:43-51; 6:1-15; 12:20-36; 14:8‑9). Outro Filipe, dito evangelista, é um dos sete diáconos e pai de quatro filhas virgens Atti Marjanen. The Woman Jesus Loved. Mary Magdalene in the Nag Hammadi Library and Related Documents. Leiden: Brill, 1996; R. Burnet. Marie-Madeleine. De la pécheresse repentie à l’épouse de Jésus. Paris: Éditions du Cerf, 2004. 44 Paul-Hubert Poirier. “Titres et sous-titres, incipit et desinit dans les codices coptes de Nag Hammadi et de Berlin. Description et éléments d’analyse”. In: Jean C. Fredouille et alii (Ed.). Titres et articulations du texte dans les oeuvres antiques. Actes du Colloque International de Chantilly 13-15 décembre 1994. Paris: Institut d’études augustiniennes, 1997, p. 339-383.

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e profeta (At 6:5; 8:5-40; 21:8-9). Os Atos de Filipe45 fazem dessa figura uma apóstolo asceta que prega a castidade e a continência e que combate os demônios. É essa figura que sem dúvida adquiriu certa popularidade em alguns circulos gnósticos. Filipe aparece de fato, em certos textos gnósticos como, por exemplo, a Pistis Sophia e ainda, é claro, a Carta de Pedro a Filipe (NH VIII, 2), na qual ele não possui nenhum papel importante a não ser o de destinatário da carta. Epifânio menciona um Evangelho de Filipe que teria sido utilizado por certos gnósticos do Egito no séc. IV (Panarion 26:13).46 Todavia, a passagem por ele citada não corresponde a nenhuma passagem do Evangelho de Filipe de Nag Hammadi. Trata-se muito provavelmente, portanto, de dois textos diferentes que possuem o mesmo título, o que não é, de modo algum, impossível: pensemos nos dois Apocalipses de Tiago que se encontram lado a lado no Códex V de Nag Hammadi. Autores posteriores mencionam a utilização de um Evangelho de Filipe pelos maniqueístas.47 O gênero literário do escrito não corresponde nem de perto à definição que os estudiosos modernos dão aos evangelhos, mesmo porque não se trata de um relato da vida de Jesus e nem mesmo de uma coleção de palavras que lhe são atribuídas. Em geral, tem se considerado o Evangelho de Filipe, desde os primeiros trabalhos sobre o texto até a edição mais recente, de Schenke,48 como uma espécie de antologia ou florilégio que se Frédéric Amsler. Acta Philippi. Commentarius. Turnhout: Brepols, 1999; François Bovon et alii. Acta Philippi. Textus. Turnhout: Brepols, 1999; Frédéric Amsler. “Actes de Philippe”. In: François Bovon e Pierre Geoltrain (ed.). Les écrits apocryphes chrétiens. Paris: Gallimard, 1997, p. 1179-1320. 46 Bovon e Geoltrain, op.cit. p. 482-485. 47 Timóteo de Constantinopla (Timóteo), De receptione haereticorum; PG 86, 1, 21 C; Leôncio de Bizâncio (Pseudo-Leôncio), De sectis III,2; PG 86, 1, 1213 C. 48 Hans-Martin Schenke é o autor da primeira tradução desse texto em língua moderna, e também da mais recente edição: “Das Evangelium nach Philippus: Ein 45

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assemelha, no plano literário, aos Extratos de Teodoto de Clemente de Alexandria. Reunindo enunciados de tamanho variável e interligados de maneira muitas vezes desarticulada por meio de palavras repetidas ou temas comuns e próximos, essa coleção possui um aspecto um pouco incoerente, que vem, no entanto, desmentir a recorrência de certos termos e temas que suscitam no leitor certo sentimento de coesão. Os aspectos de coerência e incoêrencia levantam um problema teórico e metodológico importante, i.e., se o conteúdo do escrito é homogêneo ou não. Se o texto é uma compilação de extratos de diversas proveniências, seria de se esperar que ocorressem contradições estilísticas ou doutrinais? Ou o nosso texto seria uma obra homogênea escrita pela pluma de um único autor ou extraída de uma única obra, em relação à qual se poderia esperar uma unidade estilística e doutrinal? Diversas teorias foram elaboradas para explicar esse aspecto ao mesmo tempo coerente e incoerente do texto. Assim sendo, Isenberg propõe que o texto tenha sido formado de trechos tirados de uma única obra que seria uma espécie de catequese sacramental gnóstica. Consequentemente, Isenberg distingue o que é trabalho do autor dessa catequese hipotética e o que é trabalho do extrator-compilador, que teria intervido somente na seleção e organização dos extratos em questão.49 Turner sugere que o texto foi formado por uma coleção de extratos tirados de múltiplas fontes, às quais o compilador poderia ter adicionado Evangelium der Valentinianer aus dem Funde von Nag Hammadi” in: Theologische Literaturzeitung 84, 1959, p. 1-26 e Das Philippus-Evangelium (Nag-Hammadi-Codex II, 3): Neu herausgegeben, übersetzt und erklärt. Berlin: Akademie Verlag, 1997. 49 Wesley W. Isenberg e Bruce Layton. “Tractate 3: The Gospel According to Philip”. In: Bruce Layton. Nag Hammadi Codex II, 2-7 together with XIII,2*, Brit. Lib. Or. 4926 (1), and P. Oxy. 1, 654, 655. Volume One: Gospel According to Thomas, Gospel According to Philip, Hypostasis of the Archons, and Indexes. Leiden: Brill, 1989, p. 134.

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alguns comentários. Segundo ela, tratar-se-ia de uma bricolagem (a tinker’s collections of odds and ends).50 Segundo a mesma autora, seriam notas que serviriam como lembretes. Em relação aos florilégios de Aulo Gélio ou de Plínio, o Velho, que ela compara a raposas, o Evangelho de Filipe seria um simples porco-espinho!51 De minha parte, sem negar o caráter de compilação da obra, eu creio que o aspecto incoerente de seu conteúdo é um artifício literário utilizado de forma deliberada pelo autor. Na verdade, essa particularidade da obra parece ir ao encontro de seu caráter alusivo, tendo uma função precisa, exigir do leitor um trabalho de interpretação que leve à descoberta de seu sentido secreto. Assim sendo, é aos Stromateis de Clemente de Alexandria que nosso texto deve ser comparado, e não aos Extratos de Teodoto. Na verdade, os Stromateis compõem um texto no qual Clemente pratica uma escritura velada, destinada à não compreensão por parte daqueles que não são dignos. Um texto como o Evangelho de Filipe, devido a sua própria escritura, teria uma função iniciadora, ou seja, levar a alma à iluminação progressivamente. Portanto, não se trataria de um reservatório de citações mal escolhidas, mas ao contrário, uma obra finamente construída, que visa levar o leitor a atravessar por si só o “véu” da escritura, atingindo assim a verdade. Nesse sentido, a passagem relativa à ruptura do véu do Templo (84:20-34) seria uma metáfora de leitura que se aplicaria ao próprio texto, indicando que os “mistérios da verdade são revelados em figuras e imagens” e que é necessário que o véu seja rompido para atingi-los. O Evangelho de Filipe, portanto, teria sido composto com base em uma tradição pedagógica de alerta espiritual que o texto Martha L. Turner. The Gospel according to Philip: The Sources and Coherence of an Early Christian Collection. Leiden: Brill, 1996, p. 259. 51 Turner, Gospel according to Philip, p. 261. 50

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utiliza para se esconder, como um véu que deve ser removido ou atravessado para se chegar à verdade iluminadora.52 Assim sendo, o programa de Clemente de Alexandria no momento da composição de seus Stromateis poderia muito bem se aplicar ao Evangelho de Filipe: Há assuntos aos quais meu livro também fará alusão; ele insistirá sobre alguns, enquanto somente mencionará outros. Ele esforçar-se-á em dizer, ainda que escape ao alcance de alguns; em anunciar, mesmo mantendo segredo; por mostrar, embora permaneça calado (1:1).53

Aliás, o mesmo autor explica as razões que o levam a praticar tal tipo de escritura velada: Tudo o que se deixa entrever através de um véu mostra a verdade não apenas maior, mas também mais augusta, como as frutas que brilham sobre a água, as formas sob os véus que lhes associam a beleza de outros reflexos. Pois o brilho da luz é feito para a crítica, de modo que se compreenda até as coisas mais claras de uma única maneira. Mas é possível tirar muitas relações de sentido, como nós tiramos, daquelas coisas que foram ditas de modo velado. Assim sendo, o homem inexperiente e

Louis Painchaud. “La composition de l’Évangile selon Philippe (NH II,3): une analyse rhétorique” in: Society of Biblical Literature Seminar Papers. Missoula: Sdcholars Press, 1996, p. 35-66; cf. também Louis Painchaud. “L’Évangile selon Philippe” in: Jean-Pierre Mahé e Paul-Hubert Poirier. Écrits gnostiques. Paris: Gallimard, 2007. 53 Tradução de Fabrício S. Barbacena, a partir do texto grego em Clément d’Alexandrie. Les Stromates (introd. de Claude Mondésert; traduction et notes de Marcel Caster. Sources Chrétiennes 30). Paris: Éditions du Cerf, 1951. 52

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ignorante se engana, enquanto o gnóstico compreende (Stromateis 5.56-57.1).54

Fica evidente, portanto, que as funções da escritura velada são múltiplas, havendo muito a se dizer sobre o assunto no trecho em questão. No entanto, retenhamos que a escritura velada dos Stromateis se opõe a dos Extratos de Teodoto, nos quais Clemente procura criticar a doutrina de Teodoto, explicando-a claramente. A técnica da escritura velada não deixa de lembrar o início do Evangelho de Tomé, que se apresenta como as palavras “escondidas” de Jesus. Portanto, poderia haver entre esses dois textos uma analogia literária mais intensa do que se pode perceber num primeiro momento. A importância do conteúdo sacramental do texto permite acreditar que ele seria uma espécie de escrito iniciador proposto aos catecúmenos na véspera do batismo, visando uma espécie de iluminação. Em outras palavras, ao ler o texto, o recém-batizado, ou aquele que logo o seria, torna-se apto a reconhecer os mistérios, escondidos atrás do véu, que lhe foram ensinados, sendo assim, agente de sua própria “iluminação”, sendo capaz de compreender o que é dito somente em segredo. Trata-se, portanto, de um escrito de natureza esotérica, ou seja, destinado somente a iniciados; um escrito que pratica uma espécie de pedagogia da alma, destinada unicamente a um número seleto de pessoas: “A verdade é semeada em todos os lugares que existem desde o início. E há muitos que a veem semeada, mas poucos aqueles que a veem colhida” (Evangelho de Filipe 55:19-23).  Em relação à doutrina, os pesquisadores são unânimes, considerando o Evangelho de Filipe como sendo um texto valentiniano. É possível encontrar elementos que pertencem certamente à doutrina 54

Tradução de Fabrício S. Barbacena feita a partir do texto grego em Alain Le Boulluec. Clément d’Alexandrie. Les Stromates. Stromates V. Tome I, Introduction, Texte critique et Index. Paris: Éditions du Cerf, 1981.

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de Valentino ou de seus discípulos. Todavia, como o enfatiza Schenke, o texto é ornamentado com theologoumena, ou, em outras palavras, elementos de doutrina gnóstica com um sabor valentiniano.55 Levando em conta a importância dada pelo texto ao tema da câmara nupcial, tipicamente valentiniano, E. Thomassen não hesita em atribuir ao Evangelho de Filipe uma proveniência valentiniana, mesmo se seu caráter de florilégio não exclui a possibilidade de que certos elementos provenham de fontes não valentinianas.56 Devido ao caráter fragmentário e caótico do texto, é difícil fazer um resumo sistemático de seu conteúdo. Seriam temas principais, no entanto, a impossibilidade de atingir a verdade com as palavras (53:23-54; 31), a distinção entre dois tipos de seres (hebreus e não hebreus, escravos e filhos, homens livres e escravos, mulheres impuras e virgens), a diferença entre o que está escondido e o que é manifesto, mas, sobretudo, os “mistérios da câmara nupcial” (69:1-4), que parecem permear todo o ritual de iniciação cristã, batismo, unção e eucaristia. O Evangelho de Filipe é um texto extremamente importante, já que nos revela um pouco sobre os sacramentos gnósticos, assunto relativamente pouco conhecido.57 De fato, o conhecimento do Hans-Martin Schenke et alii. Nag Hammadi Deutsch, 1. Band: NHC I,1-V,1. Eingeleitet und übersetzt von Mitgliedern des Berliner Arbeitskreises für Koptisch-Gnostische Schriften. Berlin / New York: Walter de Gruyter, 2001, p. 189. 56 Einar Thomassen. “Notes pour la délimitation d’un corpus valentinien à Nag Hammadi”. In: Louis Painchaud e Anne Pasquier (ed.). Les textes de Nag Hammadi et le problème de leur classification: Actes du colloque tenu à Québec du 15 au 19 septembre 1993. Québec / Louvain / Paris, 1995, p. 249. Ver também Einar Thomassen. “How Valentinian is the Gospel of Philip?”. In: John D. Turner e Anne McGuire (Ed.). The Nag Hammadi Library after Fifty Years: Proceeding of the 1995 Society of Biblical Literature Commemoration. Leiden: Brill, 1997, p. 251-279 ; Einar Thomassen. The Spiritual Seed. The Church of the “Valentinians”. Leiden: Brill, 2006, p. 341-349. 57 Cf. em particular Robert M. Grant. “The mystery of marriage in the Gospel of Philip”. In: Vigiliae Christianae 15, 1961, p.129-140; W. J. Stroud. “Ritual in the Chenoboskion Gospel of Philip”. In: Iliff Review 28, 1971, p. 29-35; Jean-Marie Sevrin. Pratique et doctrine des sacrements dans l’Évangile selon Philippe. Dissertation présentée pour l’obtention du grade de Docteur en théologie. Louvain: Université 55

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ritual era reservado aos iniciados e seu conteúdo não era nem colocado por escrito, nem comunicado aos não iniciados. Textos de tal natureza são, portanto, muito raros e extremamente preciosos. * Como concluir? Por um lado, lembrando que os evangelhos ditos gnósticos não são evangelhos no sentido habitual e, por outro, que o Evangelho de Tomé é importante para o estudo da transmissão das palavras de Jesus, mas que não representa o que poderia ser chamado de “evangelho gnóstico”, mas sim um discurso de revelação, como dito anteriormente. Esses textos, o Evangelho de Maria, o Evangelho de Judas, e o Evangelho de Tomé, são testemunhas importantes da diversidade do cristianismo no século II e pertencem ao tesouro espiritual da humanidade, mas eles não são, de modo algum, testemunhas privilegiadas da vida e dos ensinamentos de Jesus. O Evangelho de Tomé é o único que poderia portar traços de uma transmissão de certos ditos atribuídos a Jesus independentes dos evangelhos canônicos.

Catholique de Louvain, 1972; Jean-Marie Sevrin. “Pratique et doctrines des sacrements dans l’Évangile selon Philippe”. In: Revue théologique de Louvain 4, 1973, p. 134-135; Jean-Marie Sevrin. “Les Noces Spirituelles dans l’Évangile selon Philippe”. In: Le Muséon 87, 1974, p. 143-193; Edward T. Rewolinski. The Use of Sacramental Language in the Gospel of Philip (Cairensis Gnosticus II, 3). PhD thesis. Harvard University, 1978; James J. Buckley. “A Cult-Mystery in The Gospel of Philip”. In: Journal of Biblical Literature 99, 1980, p. 569-581; Elaine Pagels. “The ‘mystery of marriage’ in the Gospel of Philip revisited”. In: Birger A. Pearson (ed.). The Future of Early Christianity: Essays in Honor of Helmut Koester. Minneapolis: Fortress Press, 1991, p. 442-454; James J. Buckley e Deirdre J. Good. “Sacramental language and verbs of generating, creating, and begetting in the Gospel of Philip”. In: Journal of Early Christian Studies 5, 1997, p. 1-19; Elaine Pagels. “Ritual in the Gospel of Philip”. In: John D. Turner e Anne McGuire, op.cit.. p. 280-291; e por fim, Einar Thomassen. The Spiritual Seed. The Church of the “Valentinians”. Leiden: Brill, 2006, p. 333-414.

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O Evangelho do Salvador (P. Berol. 22220) no seu contexto: Jesus e os apóstolos na literatura copta1

Alin Suciu

O P. Berolinensis 22220 é um escrito cristão descoberto recentemente sobre o qual a atenção dos estudiosos tem se focado. Em 1996, Charles W. Hedrick apresentou uma breve comunicação anunciando a publicação iminente de um novo evangelho cristão que havia permanecido desaparecido por muito tempo em meio aos arquivos do Museu Egípcio em Berlim.2 Juntamente com Paul Mirecki, Hedrick restaurou os diferentes fragmentos do que parecia ser um codex, publicando alguns anos depois a primeira edição crítica.3 Como o título original do texto não sobreviveu no manuscrito, os editores decidiram chamá-lo Este artigo foi originalmente escrito em inglês e traduzido para o português por Julio Cesar Dias Chaves. O autor é pesquisador associado na Universidade de Hamburgo, Alemanha. 2 Charles W. Hedrick. “A preliminary report on Coptic Codex P. Berol. Inv. 22220”. In: Stephen Emmel et alii, Ägypten und Nubien in spätantiker und christlicher Zeit. Akten des 6. Internationalen Koptologenkongresses, Münster, 20-26. Juli 1996. Vol. 2: Schrifttum, Sprache und Gedankenwelt (Sprachen und Kulturen des Christlichen Orients). Wiesbaden: Reichert, 1999, p. 127-130. 3 Charles W. Hedrick e Paul Mirecki. The Gospel of the Savior: A New Ancient Gospel. Santa Rosa: Polebridge, 1999. 1

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convencionalmente de Evangelho do Salvador e esse nome tem persistido principalmente entre os estudiosos de língua inglesa,4 mas também entre os estudiosos brasileiros. O texto está escrito em copta saídico em folhas de pergaminho e disposto em duas colunas. Preservado em condições físicas extremamente ruins, o texto em questão apresenta um diálogo entre Jesus, chamado de ‘Soter’ (ⲥⲱⲧⲏⲣ) praticamente o texto inteiro,5 e os apóstolos. O diálogo é provavelmente intercalado por alguns episódios narrativos, mas isso é difícil de ser comprovado devido às numerosas lacunas que o texto apresenta, o que impossibilita uma leitura fluente. O Evangelho do Salvador contém seções substanciais de citações exatas ou parafraseadas de várias passagens do Novo Testamento, e termina com um hino de Jesus endereçado à cruz.6 O hino, um belo exemplo de poesia, apresenta uma peculiar característica: cada declaração de Cristo é seguida de um imprecatório “Amém”. Na introdução da editio princeps do texto, Hedrick afirmou que “uma data posterior ao séc.VII parece pouco provável”7 para a datação do manuscrito. Depois de analisar as evidências textuais, ambos os editores postularam que um original grego anterior à Seguindo uma sugestão de Hans-Martin Schenke (“Das sogenannte ‘Unbekannte Berliner Evangelium’ (UBE)”. In: Zeitschrift für antikes Christentum 2, 1998, p. 199-213), os estudiosos alemães preferiram identificar o texto em questão desde a sua descoberta como “Unbekanntes Berliner Evangelium” e pode-se encontrar essa designação mesmo hoje em publicações alemãs. 5 Com duas exceções, em 107.5 e 12, quando ele é chamado de ⲡϫⲟⲉⲓⲥ. Em 97.32-33, André fala chamando-o muito provavelmente de ⲡϫⲟⲉⲓⲥ. 6 A seção em que se encontra o hino está extremamente mal conservada. No entanto, devido às porções preservadas do trecho em questão, fica óbvio que o Salvador fala com a cruz diversas vezes, usando a fórmula “Oh Cruz!”, o que lembra uma interessante passagem dos Atos de André, na qual o apóstolo fala com a cruz antes de seu martírio, usando de maneira semelhante a fórmula ὤ σταυρε. Sobre o assunto, ver a sinopse das diversas versões armênias e gregas do “discurso à Cruz” em Jean-Marc Prieur. Acta Andreae. Textus et indices (Corpus christianorum. Series apocryphorum 6). Turnhout: Brepols, 1989, p. 738-745. 7 Hedrick e Mirecki, op.cit., p. 15. 4

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segunda metade do séc. II seria a fonte dessa tradução copta.8 Na opinião dos editores, essa datação primitiva enfatizaria a grande importância do texto e representaria nesse sentido um produto do cristianismo proto-ortodoxo: Tal conclusão sugere que o evangelho do Salvador foi composto num tempo no qual as tradições orais cristãs ainda eram tão influentes quanto as tradições escritas nos textos evangélicos. Portanto, a data mais tardia para a composição do Evangelho do Salvador que se encaixa nessas condições é a segunda metade do século II, antes que os evangelhos canônicos consolidassem sua influência na igreja e quando a tradição oral continuava sendo um competidor viável dos textos escritos.9

Se os editores estivessem corretos, a descoberta do Evangelho do Salvador poderia ser extremamente importante, pois o texto viria de um período anterior ao estabelecimento dos quatro evangelhos como canônicos pela Igreja proto-ortodoxa. Imediatamente após o anúncio da descoberta, estudiosos do cristianismo primitivo e o público em geral presumiram quase que comumente que se tratava de um texto primitivo. No entanto, tal suposição não foi feita com cuidado.10 O título arbitrário de Evangelho do Salvador atraiu rapidamente a atenção da mídia, que apresentou o novo “evangelho” como uma descoberta sensacional. Idem, p. 2. Stephen Emmel, no entanto, observa que é quase impossível ter certeza da datação tanto da composição do texto quanto do manuscrito sobrevivente que está em Berlim. Cf. Stephen Emmel. “The Recently Published Gospel of the Savior (‘Unbekanntes Berliner Evangelium’): righting the order of pages and events”. In: Harvard Theological Review 95, 2002, p. 46-47. 9 Hedrick e Mirecki, op.cit. p. 23. 10 O público foi informado via Reuters, que anunciou no dia 13 de março de 1997 que o texto “provavelmente pertencia a um dos chamados grupos gnósticos do século I ou II”. Tais palavras foram na verdade proferidas por William Brasear, o curador da coleção de papiros de Berlim. 8

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Numa reportagem, Mirecki, um dos primeiros editores do texto, declarou que Esse evangelho perdido apresenta-nos mais de uma evidência de que as origens do cristianismo primitivo foram muito mais diversas do que historiadores medievais nos contaram [...] Histórias da ortodoxia primitiva denegriram e então baniram da memória política a existência dessas pessoas pacíficas e seus textos sagrados, e este texto é um desses.11

A última aparição do Evangelho do Salvador na mídia aconteceu em abril de 2006. Na ocasião, os estudiosos que apresentaram o Evangelho de Judas para o público mencionaram-no como evidência da diversidade doutrinal que dominou os primeiros séculos de história do cristianismo. Levando em conta somente a intelligentsia, muitos estudiosos poderiam ser enumerados dentre os que defenderam que o Evangelho do Salvador um dia inspirou algumas comunidades cristãs primitivas: exceto aqueles cujas teorias são discutidas aqui, pode-se citar King,12 DeConick13 e Disponível em: . 12 A professora de Harvard não diz nada de específico sobre a data do texto, mas ela o vê como um testemunho venerável, uma das “evidência[s] de estágios primitivos da tradição de Jesus”. Cf. Karen King. What is Gnosticism? Cambridge / London: Harvard University Press, 2003, p. 163 e nota 10 da p.151. Numa contribuição para o livro de Sarah I. Johnston (Religions of the Ancient World: a Guide Cambridge / London: Harvard University Press, 2004, p. 654), King mais uma vez coloca o Evangelho do Salvador entre os escritos antigos que “demonstram uma enorme variedade de perspectivas teológicas e doutrinais [...] fornecendo uma luz notável à hibridez cultural do pluralismo urbano antigo”. A tendência a estabelecer uma datação primitiva para o texto em questão com o objetivo de aumentar sua importância fica obvia, mesmo porque Karen King sugere o séc. IV como data do manuscrito, não levando em conta o fato de Hedrick ter estabelecido, a partir de evidências paleográficas, que ele não pode ter sido fabricado antes do séc.VII. 13 Seu comentário é, antes de tudo, entusiástico. Falando de seu primeiro contato com o Evangelho do Salvador, ela confessa o choque que sentiu e o descreve como 11

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Ehrman.14 Pearson sugere que o texto seja da primeira metade do séc. III.15 Além do mais, a hipótese de que o P. Berol. 22220 basear-se-ia num original grego perdido foi muitas vezes tida como certa. No entanto, tal hipótese não se verifica e na verdade nunca contou com uma pesquisa profunda, sendo simplesmente aceita sem muitos questionamentos.16 Uma hipótese mais sensata em relação aos fragmentos de Berlim foi proposta pelo coptologista alemão Peter Nagel, que desmentiu filologicamente a hipótese proposta por Hedrick em sua editio princeps, argumentando que o chamado “evangelho” é na verdade uma composição copta genuína que deveria ser datada por volta do séc. V.17 Por mais interessante que essa hipótese possa “um esplêndido exemplo de texto cristão primitivo que exibe elementos associados a tradições místicas judaicas de ascensão”. Ver seu livro Voices of the Mystics: Early Christian Discourse in the Gospel of John and Thomas and Other Ancient Christian Literature ( Journal for the Study of the New Testament. Supplement Series 157). Sheffield: Sheffield Academic Press, 2001, p. 137. Em relação à origem do Evangelho do Salvador, DeConick enxerga-o como um “texto siríaco do início do séc. II que estaria envolvido no debate contínuo entre os cristãos que se identificavam com os visionários místicos siríacos e os cristãos que apoiavam a perspectiva da fé mística joanina”.(idem, p. 151). 14 Bart D. Ehrman. Lost Scriptures: Books That Did Not Make It Into the New Testament. New York: Oxford University Press, 2003, p. 52-53. Cf. ainda suas observações sobre o texto em questão em Lost Christianities: The Battles for Scripture and the Faiths We Never Knew. New York: Oxford University Press, 2003, p. 50-51. 15 Birger A. Pearson. Gnosticism and Christianity in Roman and Coptic Egypt (Studies in Antiquity & Christianity). London / New York: T & T Clark, 2004, p. 58. 16 É o caso de Thomas J. Kraus e Tobias Nicklas. Das Petrusevangelium und die Petrusapokalypse. Die griechischen Fragmente mit deutscher und englischer Übersetzung (Die Griechischen Christlichen Schriftsteller 11. Neutestamentliche Apokryphen 1). Berlin / New York: Walter de Gruyter, 2004. P. 6 e Hans Förster. Transitus Mariae. Beiträge zur koptischen Überlieferung Mit einer Edition von P. Vindob. K 7589, Cambridge Add 1876 8 und Paris BN Copte 12917 ff. 28 und 29 (Die Griechischen Christlichen Schriftsteller 14. Neutestamentliche Apokryphen 2). Berlin / New York: Walter de Gruyter, 2006, p. 8. 17 Peter Nagel. “‘Gespräche Jesu mit seinen Jüngern von der Auferstehung’ – zur Herkunft und Datierung des ‘Unbekannten Berliner Evangeliums’”. In: Zeitschrift für Neutestamentliche Wissenschaft 94, 2003, p. 215-257. A possível origem copta do nosso documento foi sugerida por alto a Charles Hedrick por Wolf-Peter Funk e Tito Orlandi, mas sem nenhuma argumentação sistemática. Cf. Hedrick e Mireck,

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parecer, ela passou quase que despercebida pelo aglomerado de opiniões contrárias que tendiam a alimentar a fome por mais relatos primitivos das palavras de Jesus. Após a publicação da editio princeps, Stephen Emmel e Charles Hedrick protagonizaram uma polêmica nas páginas da Harvard Theological Review.18 Cada um dos estudiosos em questão tinha uma opinião diferente em relação ao arranjo das páginas sobreviventes do codex e suas respectivas conclusões tinham um impacto direto na sucessão das sequências de diálogos do Evangelho do Salvador. Não há espaço aqui para os detalhes codicológicos da polêmica entre dois dos mais talentosos estudiosos do ramo de restauração de manuscritos antigos. Basta dizer, porém, que Emmel considera que Hedrick, o primeiro a colar os fragmentos, confundiu sistematicamente “a identificação dos lados H (pelo – em inglês hair) e F (carne – em inglês flesh) do pergaminho”.19 Recentemente, Plisch reexaminou as evidências do manuscrito, elogiando a ordem proposta por Emmel.20 De fato, a colação das páginas proposta por Emmel torna mais lógico e fácil de seguir o desenrolar dos eventos do que a colação proposta na editio princeps. Como a colação do manuscrito sugerida por Emmel é mais coerente, este artigo segue a paginação por ele proposta. A contribuição de Emmel não se limita, no entanto, à reordenação das páginas do manuscrito. O coptologista de Münster propõe no mesmo artigo uma série de emendas valiosas para o texto, baseadas num exame autóptico dos fragmentos em Berlim. Um ano mais tarde, o próprio Emmel conseguiria op.cit. p. 19, nota 24. A esse respeito, Hedrick afirma que “essa foi a primeira, porém incerta, avaliação de Mirecki em relação aos fragmentos em 1991” (idem). 18 Cf. Stephen Emmel. “The Recently Published Gospel of the Savior”; Charles W. Hedrick. “Caveats to a ‘righted order’ of the Gospel of the Savior”. In: Harvard Theological Review 96, 2003, p. 229-238. 19 Emmel, op.cit. p. 6. Ver ainda os argumentos codicológicos nas páginas 61-64. 20 Uwe-Karsten Plisch. “Zu einigen Einleitungsfragen des Unbekannten Berliner Evangeliums (UBE)”. In: Zeitschrift für antikes Christentum 9, 2005, p. 64-84.

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reeditar o Evangelho do Salvador,21 continuando e desenvolvendo o trabalho dos primeiros editores. Em relação à história literária do nosso documento, Emmel ainda pôde esclarecer alguns pontos. Se Hedrick e Mireck haviam se limitado a enumerar alguns paralelos insuficientes e não comprovados entre Evangelho do Salvador e outros escritos do cristianismo primitivo, Emmel constatou citações exatas presentes em outros dois documentos coptas. Primeiramente, ele tentou argumentar que o pergaminho de Berlim é na verdade nada mais do que outro testemunho dos chamados Fragmentos Coptas de Strasburgo, conhecidos desde o início do séc. XX.22 Assim, estudando os paralelos entre os dois testemunhos, ele afirma que “esse texto descoberto recentemente (i.e., o Evangelho do Salvador) é, na verdade, um testemunho secundário do texto que tem sido conhecido por um século como ‘Fragmentos do evangelho copta de Strasburgo’”. 23 Stephen Emmel. “Preliminary reedition and translation of the Gospel of the Savior: new light on the Strasbourg Coptic Gospel and the Stauros-Text from Nubia”. In: Apocrypha 14, 2003, p. 9-53. 22 Cf. Stephen Emmel. “Unbekanntes Berliner Evangelium=The Strasbourg Coptic Gospel: Prolegomena to a new edition of the Strasbourg Fragments”. In: Hans-Gebhard Bethge et alii (Ed.). For the Children, Perfect Instruction. Studies in Honor of Hans-Martin Schenke on the Ocassion of the Berliner Arbeitkreis für koptisch-gnostische Schriften’s Thirtieth Year (Nag Hammadi and Manichaean Studies, 54) Leiden: Brill, 2002, p. 353-374. Sobre os fragmentos coptas de Strasburgo, cf. em especial Adolf Jacoby. Ein neues Evangelienfragment: mit vier Tafeln in Lichtdruck. Strasbourg: Karl J. Trubner, 1900, p. 6-12; Wilhelm Spiegelberg e Adolf Jacoby. “Zu dem Strassburger Evangelien-fragment. Eine Antikritik” in: Sphinx 4, 1901, p. 171-193; Wilhelm Schneemelcher. “The Strasbourg Coptic Papyrus” In: Wilhelm Schneemelcher. New Testament Apocrypha. Vol.1: Gospels and Related Writings. Cambridge: Westminster / John Knox Press, 1991, p. 103-105; Daniel Bertrand. “Papyrus Strasbourg copte 5-6”. In: François Bovon e Pierre Geoltrain. Écrits apocryphes chréthiens. v. 1 (Bibliothèque de la Pléiade) Paris: Galimard, 1997, p. 425-428. 23 Emmel, “Preliminary reedition” p.13. Cf. ainda, Idem 15: “the parchment manuscript in Berlin and the papyrus manuscript in Strasbourg are two copies of one and the same ancient work”. 21

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Emmel ainda identifica de forma brilhante outro escrito copta que se assemelha ao P. Berol. 22220.24 O documento em questão já era há muito tempo conhecido em uma versão núbia publicada em 1913 por Griffith, que o chamou de “Stauros-Text”.25 O texto núbio pode ser dividido em duas partes: uma revelação de Jesus aos apóstolos no Monte das Oliveiras e um hino à Cruz. Esse hino possui um paralelo parcial num sermão atribuído a João Crisóstomo por Migne, PG 50.26 Ainda em relação a textos que podem estar ligados ao Evangelho do Salvador, pode-se citar um pequeno livro copta descoberto em 1965 em Qasr el-Wizz, próximo à fronteira com o Sudão, numa missão arqueológica do Instituto Oriental da Divinity School de Chicago. O mais interessante em relação a essa versão copta, obviamente a versão original sobre a qual se baseia o texto núbio, é que ela abrange a revelação de Jesus no Monte das Oliveiras, mas não apresenta o hino pseudocrisóstomo, substituindo-o por uma versão abreviada do hino à Cruz cantado por Jesus no Evangelho

Emmel, “Preliminary reedition”, e mais recentemente “Ein altes Evangelium der Apostel taucht in Fragmenten aus Ägypten und Nubien auf ”. In: Zeitschrift für antikes Christentum 9, 2005, p. 85-99. 25 Francis L. Griffith. The Nubian Texts of the Christian Period (Abhandlungen der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften Jg. 1913. Phil-hist. Classe 8) Berlin: Reimer, 1913, p. 41-53; cf. ainda o artigo do mesmo autor “Some Old Nubian Christian Texts”. In: Journal of Theological Studies 10, 1909, p. 545-551, esp. 545f. O texto foi cuidadosamente reeditado por Gerald M. Browne, “Griffith’s Stauros-Text”. In: Studia Papyrologica 22, 1983, p. 75-119. 26 A homilia do pseudocrisóstomo era conhecida como In venerabilem crucem sermo e foi traduzida para o siríaco, árabe e eslavônico. Sobre a versão grega, ver PG 50, p. 815-820; sobre a Núbia, Gerald M. Browne. Chrysostomus Nubianus: An Old Nubian Version of Ps.-Chrysostom, In venerabilem crucem sermo (Papyrologica castroctaviana 10) Roma / Barcelona: Papyrologica castroctaviana, 1984. Sobre a siríaca, Gerald M. Browne. “Ps.-Chrysostom, In venerabilem crucem sermo: The Syriac Version”. In: Le Muséon 99, 1986, p. 39-59; Idem, “Ps.-Chrysostom, In venerabilem crucem sermo: The Greek Vorlage of the Syriac Version” in: Le Muséon 103, 1990, p. 125-138. 24

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do Salvador.27 Infelizmente, Emmel não pode utilizar em seus estudos o texto copta de Qasr el-Wizz completo, visto que o acesso a ele foi bloqueado. Hubai, um coptologista húngaro, assumiu a tarefa de publicar o trabalho.28 E agora, o texto está disponível por completo numa edição húngara.29 A única crítica que poderia ser feita ao trabalho de Emmel sobre o Evangelho do Salvador diz respeito ao fato de ele ter sido capaz de identificar dois outros documentos coptas próximos ao texto em questão sem nunca ter questionado a ideia inicialmente proposta de que se tratava de uma tradução de um original grego. Em relação à data das folhas do pergaminho de Berlim e sua relevância para o estudo do cristianismo primitivo, Emmel também defende o caráter primitivo do texto, presumindo que ele “é um testemunho precioso de velhas tradições cristãs que ficaram de fora do cânon”.30 A seguir, será feita uma breve análise de algumas passagens do escrito, propondo uma série de hipóteses que podem ser úteis no entendimento desse quase desconhecido texto. Infelizmente, até agora, como já mencionado, o estudo desse novo evangelho à luz da produção literária do Egito copta foi posto de lado. Os estudiosos procuraram um Vorlage grego que poderia encaixar-se melhor em suas expectativas no tocante à ideia da composição primitiva do texto (séc. II d.C. como terminus ante George R. Hughes traduziu o manuscrito em 1966, mas seu trabalho não foi publicado. Gostaria de agradecer a Dra. Janet Johnson do Instituto Oriental da Universidade de Chicago por ter gentilmente oferecido-me uma cópia dessa tradução. 28 Hubai publicou um relatório preliminar sobre o trabalho; ver seu artigo em “Unbekannte koptische Apocryphe aus Nubien (Vorläufiger Bericht)”. In: Hedvig Gyory (ed.). Mélanges offerts à Edith Varga. Budapest: Bulletin du Musée Hongrois des Beaux-Arts, 2001, p. 309-323. 29 Péter Hubai. A Megváltó a keresztről. Kopt apokrifek Núbiából (A Kasr el-Wizz kódex) (Cahiers patristiques. Textes coptes) Budapest: Szent István társulat, 2006. O trabalho de Hubai já tinha sido muito criticado por Attila Jakab num review a ser publicado proximamente em Apocrypha. 30 Emmel, “The recently published”, p. 51. 27

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quem). No entanto, uma leitura cuidadosa nos demonstra que certas fontes coptas merecem mais atenção do que lhes têm sido dada até então. É claro que, se a hipótese que argumenta em favor da redação original em copta do Evangelho do Salvador estiver correta, a teoria da datação primitiva não se sustentaria, o que diminuiria, de certo modo, a importância do documento. Entretanto, um exame do texto nesse contexto, o copta, enfatizaria outros aspectos do cristianismo primitivo, mesmo em se tratando de uma época posterior ao séc. II. O estilo literário, o modo como o Novo Testamento é utilizado, assim como certos temas e expressões do texto, constituem argumentos que, se analisados em conjunto, indicam a proveniência tardia e copta do P. Berol. 22220. O tratamento de Lc 14, 15, 22 e 30 Os fragmentos remanecentes do Evangelho do Salvador começam com um diálogo entre Jesus e seus discípulos. A cena na qual o discurso ocorre não parece ser tão óbvia a princípio, mas alguns aspectos indicam que se trata da Última Ceia. O texto começa na página 97 do códex e continua, apresentando algumas lacunas, até a página 100, onde a cena muda; os personagens agora encontram-se na montanha (ⲡⲧⲟⲟⲩ),muito provavelmente o Monte das Oliveiras. As palavras do Salvador se baseiam basicamente nos evangelhos canônicos, mas o nosso autor também utilizou passagens de outras fontes cristãs difíceis de serem indentificadas, fazendo uso de palavras comuns a várias passagens para obter um texto mais fluente. Assim sendo, a primeira sentença que pode ser lida sem dificuldade está na pág. 97, 15-18: “bendito aquele que comerá comigo no Reino dos Céus” (ⲛⲁⲓ̈ⲁⲧϥ ⲙ̅ⲡⲉⲧⲛⲁⲟⲩⲱⲙ ⲛ̣ⲙ̅ⲙⲁⲓ̈ ϩⲛ̅ⲧⲙⲛ̅ⲧⲉⲣⲟ ⲛ̣̅ⲙ̅ⲡⲏⲩⲉ).31 31

Texto copta em Emmel, Preliminary Reedition p. 47.

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O autor visa uma mistura de Lc 14, 1532 com 22, 30,33 passagens nas quais se descobre que os apóstolos terão um papel ativo no Juízo Final: ἵνα ἔσθητε και. πίνητε ἐπὶ. τῆς τραπέζης μου ἐν τῇ βασιλειᾳ μου, και καθήσεσθε ἐπὶ. θρόνων τὰς δώδεκα φυλας κρίνοντες τοῦ Ισραήλ (a fim de que comais e bebais à minha mesa em meu Reino, e vos senteis em tronos para julgar as doze tribos de Israel). É importante notar que, com base na narrativa neotestamentária de Lc, pode-se supor que os fragmetos remanecentes do Evangelho do Salvador começam no momento da Última Ceia. Em seguida, analisar-se-á parte da literatura composta em copta com o intuito de encontrar o mesmo tipo de citação de Lc 22:30. Os resultados são surpreendentes. Em um fragmento copta publicado por Forbes Robinson,34 encontra-se um parágrafo semelhante ao de Lc. O ambiente é o Monte das Oliveiras, local onde mais tarde ocorrerá a revelação do Evangelho do Salvador. Além do mais, a passagem em questão faz parte de um grande parágrafo que utiliza diversas palavras dos evangelhos canônicos: Não vos disse eu novamente, meu Reino não é desse mundo ( Jn 18:36)? Não tenhais a alegria do reino desse mundo em vossos corações, oh, meus irmãos e apóstolos; pois ele é temporal. Fiz eu uma aliança convosco, oh, meus membros sagrados (ⲱ ⲛⲁⲙⲉⲗⲟⲥ ⲉⲧⲟⲩⲁⲁⲃ) e meus irmãos, O paralelo entre os dois macarismos fica óbvio com a leitura da versão copta da passagem: ⲛⲁⲓ̈ⲁⲧϥ̅ ⲙ̅ⲡⲉⲧⲛⲁⲟⲩⲱⲙ ⲛ̅ⲟⲩⲟⲉⲓ̈ⲕ ϩⲛ̅ⲧⲙⲛ̅ⲧⲉⲣⲟ ⲙ̅ⲡⲛⲟⲩⲧⲉ. 33 Cf. ainda Mt 26:29. 34 Forbes Robinson. Coptic Apocryphal Gospels. Translations Together with the Texts of Some of Them (Text and Studies vol. IV, no. 2) Cambridge: Cambridge University Press, 1896, p. 176-79. Para o texto copta, cf. Ignazio Guidi, Rendiconti della R. Accademia dei Lincei 3, 1887, p. 381-84; e Eugène Revillout. Les Apocryphes coptes, I: Les Évangiles des douze apôtres et de Saint Barthélemy. In: René Graffin e François Nau. Patrologia Orientalis, vol. 2/2. Paris: Firmin-Didot, 1904, p. 151-155 (Texto copta e tradução francesa). 32

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para que comais à mesa do reino desse mundo (Lc 22:30)? Mas meu Reino permanece para sempre no Céu e na terra (Mt 6:10; Lc 11:2).

Essa passagem, como o restante do texto, apresenta uma série de similaridades com o Evangelho do Salvador. Primeiramente, percebe-se a mesma técnica literária utilizada em Lc 22:30, passagem que não é, por assim dizer, citada literalmente, mas parafraseada. Enquanto Lc diz explicitamente que os apóstolos comerão e beberão com Cristo e ἐπὶ τῆς τραπέζης μου ἐν τῇ βασιλειᾳ μου (“à minha mesa em meu Reino”), o autor do texto copta faz com que o Salvador pergunte retoricamente aos seus discípulos se “Fiz eu uma aliança convosco [...] para que comais à mesa do reino desse mundo”. Como se trata de uma referência a Lc 22:30, fica óbvio que o banquete escatológico se dará no paraíso e não nesse mundo. Por outro lado, é igualmente importante notar que o fragmento mencionado anteriormente contém uma expressão tipicamente copta ⲱ ⲛⲁⲙⲉⲗⲟⲥ ⲉⲧⲟⲩⲁⲁⲃ (“Oh, meus membros sagrados”); expressão que aparece ao menos três vezes no Evangelho do Salvador35 para designar os apóstolos e que é utilizada em outros textos analisados neste estudo. No mesmo volume de textos coptas, Robinson publicou com o nome de “Fragmento III” quatro folios escritos em saídico.36 Como veremos, esse fragmento representa outro testemunho extravagante de uma citação de Lc 22, 30. Uma vez mais, trata-se de um diálogo entre Jesus e os apóstolos ocorrido pouco antes da crucificação; a contribuição e imaginação do autor copta-cristão também aparecem dessa vez. Torna-se óbvio que o material de Lc se torna a base de uma homilia copta: 35 36

Gospel of the Savior 100.3-4; 107.50-51; fr. 9H. Robinson, Coptic Apocryphal Gospels, p.168-71; Guidi, op.cit. p. 373-76. Cf. ainda Revillout, Apocryphes coptes, p. 132-149.

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Oh, meus irmãos, o Senhor sempre amou seus apóstolos, e prometeu-os Seu Reino, e que eles comeriam e beberiam com Ele à mesa do Seu Reino: enquanto ainda estava na terra, comendo com eles à mesa da terra, vós O vistes relembrando-os da mesa no seu Reino.37

Ambos os fragmentos publicados por Robinson fazem parte de um círculo de literatura copta ligado à questão da assunção de Maria. As similaridades entre o Evangelho do Salvador e a prolífica literatura Mariana não acabam por aí, apesar de nunca terem sido percebidas pelos estudiosos modernos. Stephan Shoemaker editou recentemente a versão completa de uma homilia sobre a Dormitio Mariae, pseudepigraficamente atribuída a Evódius de Roma.38 O manuscrito provém do mosteiro de São Miguel no oásis do Fayum e encontra-se conservado na Piermont Morgan Library. A ideia do banquete celeste de Lc reaparece de forma igualmente interessante devido à originalidade. Jesus anuncia a sua mãe que ela logo morrerá e passará pelo conhecido transitus, dirigindo-se a ela com as seguintes palavras: “Levanta-te, venha ao meu lado, porque meu tempo aproxima-se então, quando comerei meu pão e beberei o vinho cheiroso no jardim, no meu Paraíso santo”.39 Outra ocorrência na literatura copta poderia ser adicionada a esse pequeno dossiê: num sermão copta atribuído a Atanásio de Alexandria, preservado na coleção de Pierpont Morgan, o autor desenvolve uma homilia baseada em Lc 22:30, dizendo: Idem, p. 168. Stephen Shoemaker. “The Sahidic Coptic homily on the Dormition attributed to Evodius of Rome. An edition from Morgan MSS 596 & 598 with translation”. In: Analecta Bollandiana 117, 1999, p. 241-83. 39 Idem, p. 271-73. Parágrafo 16 do texto copta. 37 38

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Pois ele ( Jesus) persuadiu seus apóstolos santos a sofrer com a humanidade quando lhes disse: ‘Eis que devo estabelecer minha aliança convosco para que possais comer e beber comigo à minha mesa no meu Reino, e sentareis sobre vossos doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel.’40

Outro fragmento da mesma homilia, antes não identificado, foi reconhecido em meio aos fragmentos saídicos do mosteiro de São Macário. A folha única foi publicada por Khs-Burmester.41 Ele não foi, porém, capaz de identificar a correspondência com o testemunho da coleção Pierpont Morgan. Uma pequena comparação demonstra que ambos os documentos são testemunhos diferentes de uma mesma obra: Pseudo-Athanasius, In Lazarum

Homilia de Scetis

ⲉϥⲡⲓ̈ⲑⲉ ⲅⲁⲣ ⲛ̅ⲛⲉϥⲁⲡⲟⲥⲧⲟⲗⲟⲥ ⲉⲧⲟⲩⲁⲁⲃ ⲉⲧⲣⲉⲩϣⲡ̅ϩⲓⲥⲉ ⲙⲛ̅ⲧⲙⲛ̅ⲧⲣⲱⲙⲉ ⲛ̅ⲧⲁϥϫⲟⲟⲥ ⲛⲁⲩ ϫⲉ ⲉⲓⲥϩⲏⲏⲧⲉ ϯⲛⲁⲥⲙⲓⲛⲉ ⲛ̅ⲧⲁⲇⲓⲁⲑⲏⲕⲉ ⲛⲙ̅ⲙⲏⲧⲛ̅ ϫⲉⲕⲁⲥ ⲉⲧⲉⲧⲛ̅ⲛⲁⲟⲩⲱⲙ ⲛ̅ⲧⲉⲧⲛ̅ⲥⲱ ⲛⲙ̅ⲙⲁⲓ̈ ϩⲓϫⲛ̅ⲧⲉⲧⲣⲁⲡⲉⲍⲁ ⲛ̅ⲧⲁⲙⲛ̅ⲧⲉⲣⲟ· ⲁⲩⲱ ⲛ̅ⲧⲉⲧⲛ̅ϩⲙⲟⲟⲥ ϩⲓϫⲙ̅ⲡⲉⲧⲛ̅ⲙⲛ̅ⲧⲥⲛⲟⲟⲩⲥ ⲛⲑⲣⲟⲛⲟⲥ ⲛ̅ⲧⲉⲧⲛ̅ⲕⲣⲓⲛⲉ ⲛ̅ⲧⲙⲛ̅ⲥⲛⲟⲟⲩⲥ ⲉⲙⲫⲩⲗⲏ ⲙ̅ⲡⲓⲥⲣⲁⲏⲗ

ⲉϥⲡⲓ̈ⲑⲉ ⲅⲁⲣ ⲛ̅ⲛⲉϥⲙⲁⲑⲏⲧⲏⲥ ⲉⲧⲟⲩⲁⲁⲃ ⲉⲧⲣⲉⲩϣⲉⲡϩⲓⲥⲉ ⲙⲛ̅ⲡⲅⲏⲛⲟⲥ ⲛ̅ⲛ̅ⲣⲱⲙⲉ· ϣⲁϥϫⲟⲟⲥ ϫⲉ ⲉⲓⲥϩⲏⲏⲧⲉ ϯⲛⲁⲥⲙⲓⲛⲉ ⲛⲙ̅ⲙⲏⲧⲛ̅ ⲛⲟⲩⲇⲓⲁ̅ⲑⲏⲕⲉ ⲕⲁⲧⲁ ⲑⲉ ⲛ̅ⲧⲁⲡⲁⲉⲓⲱⲧ ⲥⲙⲓⲛⲉ ⲙ̅ⲙⲟⲥ ⲛⲙ̅ⲙⲁⲓ̈· ϫⲉ ⲧⲉⲧⲛⲁⲟⲩⲱⲙ ⲛ̅ⲧⲉⲧⲛ̅ⲥⲱ ⲛⲙ̅ⲁⲓ̈ ϩⲓϫⲛ̅ⲧⲣⲁⲡⲉⲍⲁ ϩⲛ̅ⲧⲁⲙⲛ̅ⲧⲉⲣⲟ· ⲁⲩⲱ ⲛ̅ⲧⲉⲧⲛ̅ϩⲙⲟⲟⲥ ϩⲓⲙⲛⲧⲥⲛⲟⲟⲩⲥ ⲛ̅ⲑⲣⲟⲛⲟⲥ ⲛ̅̅[ⲧⲉⲧⲛ̅ⲕⲣⲓⲛⲉ] coetera desiderantur

O texto foi editado em Joseph B. Bernardin, “The Resurrection of Lazarus”. In: American Journal of Semitic Languages and Literatures 57, 1940, p. 262-290. A homilia pseudoatanasiana faz parte do M595, copiado em 855 A.D. No Catalogue of Coptic Literary Manuscripts in the British Library Acquired Since the Year 1906 (London: British Library, 1987), de Bentley Layton, o autor registra como número 79 outra folha que contém uma rescenção diferente da “cópia completa do texto da Morgan Library”. 41 Oswald H. E. Burmester. “Fragment of a Homily in Sa‘îdic from Scetis”. In: Bulletin de la Société d’archéologie copte 18. 1965-66, p. 47-51.

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O tema do banquete celeste permanence o mesmo e, levando em conta as demais ocorrências do tema em questão, é possível afirmar que um grupo específico de escritos coptas prestou muita atenção à passagem de Lc. Tentou-se argumentar, portanto, que as diferentes variações do tema no corpus literário copta aqui demonstradas dependem do Novo Testamento, e ainda, que a maneira original na qual o tema é expresso é própria aos textos coptas. Como o Evangelho do Salvador baseia-se largamente em citações livres do Novo Testamento, como a de Lc 22:30, Hedrick e Mericki convenceram-se de que o material do texto preservaria tradições antigas (orais?) que poderiam ser datadas em um período anterior ao do estabelecimento do cânon. No entanto, o autor do presente artigo gostaria de questionar tal preposição. Na minha opinião, nosso texto obedece às regras da atitude hermenêutica de outros textos coptas, o que poderia indicar uma origem diferente da sugerida por Hecrick e Merick. Esse aspecto será discutido mais tarde. O tratamento de Mt 5:13-15 A segunda sentença totalmente preservada encontra-se logo a seguir da que acabou de ser analisada. O Salvador diz aos apóstolos: “Vós sois o sal da terra, e vós sois a luz que ilumina o mundo”. Não há como discordar que essa sentença lembra Mt 5, 13-15:42 ̔Υμεῖς ἐστε τὸ ἄλλας τῆς γῆς· ἐὰν δὲ τὸ ἅλλας μωρανθῇ, ἐν τίνι ἁλιοσθήσεται; εἰς οὐδὲν ἰσχύει ἔτι εἰ μὴ βληθὲν ἔξω καταπατεῖσθαι ὑπὸ τῶν ἀνθρώπων. Ὑμεῖς ἐστε τὸ φῶς τοῦ κόσμου. Οὐ δύναται πόλις κρυβῆναι ἐπάνω ὄπους κειμέν· οὐδε καίουσιν λύχνον καὶ τιθέασιν αὐτὸν ὑπὸ τὸν μόδιον ἀλλ ̓ἐπὶ τὴν λυχνίαν, καὶ λάμπει πᾶσιν τοῖς ἐν τῇ οἰκία. 42

Em relação a Mt 5:13, Mc 9:49-50 e Lc 14:34-55, cf. William S. Wood. “The Salt of the Earth”. In: Journal of Theological Studies 25, 1924, p. 167-172.

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Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa.

As diferenças são, mais uma vez, significantes: em Mt, cada indicação é seguida de uma glosa na qual Cristo expande a ideia do “sal da terra” e da “luz do mundo”. O autor do Evangelho do Salvador opta por simplificar os três elementos de Mt, incluindo ainda uma construção pouco usual, ⲛⲧⲱⲧⲛ ⲡⲉ ⲧⲗⲁⲙⲡⲁⲥ ⲉⲧⲡⲣ̅ⲟⲩⲟⲉⲓⲛ ⲉⲡⲕⲟⲥⲙⲟⲥ, em vez da expressão canônica τὸ φῶς τοῦ κόσμου. Assim sendo, Mirecki comenta que “a forma do dizer no Evangelho do Salvador pode ser mais original”.43 No entanto, deve-se notar que o fato de um paralelo ser diferente e mais simples em um texto, não significa necessariamente que ele seja mais antigo. Como demonstrado anteriormente, certos textos coptas têm por característica o hábito de usar o Novo Testamento de uma forma original, e não resta dúvida em relação à proveniência tardia desses textos. Posto isso, posso revelar que discordo de Mericki nesse ponto e que o Evangelho do Salvador nada mais é do que um texto copta tardio, e não um testemunho de uma época na qual o cânon ainda não estava estabelecido. Alguns exemplos similares de textos coptas se fazem necessários para basear tal afirmação. A comparação desses textos com o Evangelho do Salvador proverá uma imagem da família literária a qual ele pertence. Já foi dito que, como no caso do exemplo de Lc 22:10 mencionado anteriormente, as homilias coptas usam frequentemente citações livres do Novo Testamento. O texto de Mt apresenta a palavra 43

Hedrick e Mirecki, op.cit. p. 90.

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λύχνος, traduzida como “candeia”, no versículo 15; na glosa de Cristo, os discípulos são comparados à “luz do mundo”. Pode-se sugerir, portanto, que não se trata da conservação de uma antiga tradição por parte do Evangelho do Salvador, mas de uma citação livre do autor copta, que provavelmente o fez sem ter o texto copta a sua frente.44 Essa hipótese pode ser reforçada pelo fato de o texto copta usar a palavra ⲗⲁⲙⲡⲁⲥ, um sinônimo do termo grego, em vez de usar o próprio λύχνος; as versões sahídica e boárica de Mt, por exemplo, usam sempre o termo ⲗⲩⲭⲛⲟⲥ, nunca ⲗⲁⲙⲡⲁⲥ. Além disso, outro texto sem dúvida composto em copta, contém uma paráfrase análoga ao material de Mt. Trata-se do “evangelho” publicado por Françoise Morard com o título de Homélie sur la vie de Jésus et son amour pour les apôtres,45 também conhecido como Evangelho dos Doze Apóstolos.46 Os estudiosos estão cada vez mais convencidos de que esse texto nunca existiu na forma em que é apresentado nas edições modernas, um conjunto de incontáveis fragmentos de diversos textos coptas diferentes.47 No entanto, seu estudo pode ajudar num melhor entendimento do contexto egípcio específico do Evangelho do Salvador. Um dos fragmentos caracteriza os apóstolos da seguinte maneira: ⲛⲧⲱⲧⲛ ⲡⲉ ⲡⲉϩⲙⲟⲩ ⲉϥⲛⲁϫⲱⲕⲣ ⲙⲡⲕⲟⲥⲙⲟⲥ ⲧⲏⲣϥ48 (“Vós sois o sal que temperará o mundo inteiro”). Pode-se igualmente supor que a corrupção escrituraria é voluntária, com o intuito de oferecer ao leitor a impressão de que ele lida com um texto antigo; ver nota anterior. 45 Françoise Morard. “Homélie sur la vie de Jésus et son amour pour les apôtres”. In: Pierre Geoltrain  e Jean-Daniel Kaestli (Ed.). Écrits apocryphes chrétiens. Paris: Gallimard, 2005, vol. 2, p. 101-134. 46 O Evangelho dos Doze Apóstolos representa na verdade um amálgama de diferentes fragmentos sem conexão direta. Eles foram reunidos pela primeira vez por Charles E. Revillout, que os achou como membra disjecta em múltiplos códices coptas. Cf. “L’Évangile des XII Apôtres récemment découvert” in: Revue Biblique 1, 1904, p. 167-187 e 321-355. Revillout disse ter achado o “quinto evangelho”! 47 Enzo Lucchesi. “Un évangile apocryphe imaginaire” in: Orientalia Lovaniensia Periodica 28, 1997, p. 167-178. 48 Françoise Morard. Homélie sur la vie de Jésus, p. 113; o texto copta foi tirado de Lucchesi. Un évangile apocryphe imaginaire, p. 171. 44

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Trata-se de outra variação de Mt 5:13-15 e seria menos absurdo supor que os autores cristãos coptas que expandiram as revelações do Novo Testamento em forma de homilia não estavam tão interessados em oferecer citações exatas do que supor que existam nesses textos tradições arcaicas, invisíveis e intangíveis, que escaparam da estandardização canônica. O tratamento de Gn 49:11 e Ap 7:14 O discurso do Salvador na Última Ceia continua com uma sentença que, à primeira vista, não parece depender de escritos canônicos. Na reconstrução de Emmel, tal sentença aparece assim: “Não dormi nem repousai [até vestirdes em vós mesmos] a veste do Reino (ⲙ̅ⲡⲉⲛⲇⲩⲙⲁ ⲛⲧⲙ̅ⲛⲧⲉⲣⲟ) que eu comprei com o sangue das uvas!”(97.23-30). É interessante notar que os paralelos bíblicos que formam esse dizer do Salvador tenham sido percebidos somente em parte. Na verdade, a citação remete quase que totalmente às Escrituras, demonstrando a familiaridade do autor com a Bíblia e questionando o “cânon livre” postulado pelos exegetas precedentes. A expressão “não dormi nem repousai”, por exemplo, é usada duas vezes no Velho Testamento, no Sl 131:449 e em Pr 6:4,50 enquanto “sangue das uvas” é encontrado em Dt 32:14 e Gn 49:11. O background neotestamentário da declaração de Jesus será discutido em breve. De acordo com DeConick, a sentença inteira de Jesus é uma interpretação esotérica do ritual eucarístico que concede aos

Para o texto copta (saídico), cf. Ernest A. W. Budge. The Earliest Known Coptic Psalter. London: Kegan Paul, 1898, p. 139. 50 Cf. William H. Worrell. The Proverbs of Solomon in Sahidic Coptic according to the Chicago Manuscript (The University of Chicago Oriental Institute Publications 12). Chicago: University of Chicago Press, 1931, p. 17. 49

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participantes a capacidade de receber “seus corpos espirituais, o que lhes permitiria ascender aos céus como Jesus”.51 O significado da passagem em questão é difícil de ser precisado, e mesmo que a referência à Eucaristia seja clara, existe a possibilidade que haja ainda uma preocupação com o rito do batismo.52 De fato, esse fragmento do Evangelho do Salvador reúne Gn 49:11 (lavará as suas vestes no vinho e a sua capa, em sangue de uvas)53 e Ap 7:14 – um fragmento das escrituras que transforma em uma espécie de contradição poética a citação de Gn, dizendo que “eles lavaram suas vestes e tornaram-nas brancas no sangue do Cordeiro”.54 No livro da Ressurreição de Cristo de Bartolomeu, o Apóstolo, o apóstolo Tomé é apresentado narrando a maneira como ele converteu a multidão à fé cristã, declarando que “muitos acharam-se sujos pelo pecado, (mas) eu os tornei brancos no sangue de Jesus Cristo”.55 Nesse caso, não há dúvida que existe uma referência ao batismo. Uma homilia sobre o arcanjo Miguel atribuída a Basílio, o Grande, não trata de vestes celestiais, mas utiliza a expressão “santuários que Cristo comprou com seu sangue” (ⲛⲧⲟⲡⲟⲥ ⲛⲧⲁⲡⲉⲭ̅ⲣ̅ⲥ̅ ϣⲟⲡⲟⲩ ϩⲓⲧⲙⲡⲉϥⲥⲛⲟϥ).56 Por outro lado, não resta dúvida que referências a “vestes de luz” e expressões similares abundam nas literaturas judaica e cristã, DeConick, Voices of the Mystics, p. 139-140. Sobre a importância das “vestes” no contexto do ritual batismal no cristianismo primitivo, ver o importante estudo de Jonathan Z. Smith. “The Garments of Shame”. In: History of Religions 5, 1966, p. 213-238. 53 Πλυνεῖ ἐν ο̈ινῳ τὴν στολὴν αὐτοῦ καὶ ἐν αἱ̔ματι σταφυλῆϛ τὴν περιβολὴν αὐτοῦ; Gn 49:11. 54 Καί ἔπλυναν τὰϛ στολάϛ αὐτῶν καὶ ἐλευκαναν αὐτὰϛ ἐν τῷ αἵματι τοῦ άρνιον. Cf. a sugestão similar feita por Plisch. Zu einigen Einleitungsfragen, p. 74-75. 55 Ernest A. W. Budge. Coptic Apocrypha in the Dialect of Upper Egypt (Coptic Texts vol. III). London: British Museum, 1913. p.1-48 (texto copta). Folio 20 do manuscrito. 56 Leo Depuydt. Homiletica from the Pierpont Morgan Library. Seven Coptic Homilies Attributed to Basil the Great, John Chrysostom, and Euodius of Rome. Louvain: Peeters, 1991, 2 vols. I:11 (texto copta), II:12 (tradução inglesa). 51 52

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parecendo derivar afinal de um protótipo apocalíptico no qual o visionário recebe inter alia vestes sacerdotais para se tornar digno da cerimônia celeste. No entanto, os escritos coptas parecem fazer parte de uma trajetória diferente dessa disseminada ideia religiosa. Eles mencionam com certa frequência personagens especiais, em geral os apóstolos ou a Virgem, que usarão as vestes no céu. Num fragmento saídico sobre a vida e morte de Maria, Jesus desce do céu carregado por uma carruagem cercada por querubins e anjos, para levar ao paraíso a alma de sua mãe. O texto narra que nesse momento preciso “quando a Virgem O viu, sua alma pulou nos braços de seu Filho, e Ele cobriu-a com as vestes celestes (ϩⲛⲛⲉⲛⲧⲏⲙⲁ ⲛⲛⲉⲡⲟⲩⲣⲁⲛⲓⲟⲛ)”.57 Em outro relato, preservado dessa vez em boarídico, os próprios apóstolos dizem, usando a primeira pessoa do plural, que o Salvador os disse que a veste celestial de Maria já havia sido profetizada pelo salmista: “Nosso Salvador respondeu e disse-nos: Oh, meus membros gloriosos (ⲱ ⲛⲁⲙⲉⲗⲟⲥ ⲉⲧⲧⲁⲓⲏⲟⲩⲧ), que eu escolhi em meio a todo o mundo, este é o dia em que a profecia de Meu pai Davi foi cumprida: ‘A rainha permaneceu a sua direita com vestes trabalhadas em ouro, resvestidas e adornadas de diversas maneiras’” (Sl 44,10 LXX).58 Codex Borg. CXX. Texto copta e tradução em inglês em Robinson, Coptic Apocryphal Gospels, p.24-41. O trecho em questão está na p.41. 58 MS Vat. LXII 5. Tradução inglesa em Robinson. Coptic Apocryphal Gospels, p. 53; Texto copta em Paul A. de Lagarde. Aegyptiaca. Asnabrück: Otto Zeller Verlag, 1972, p. 48. Trata-se de um manuscrito do século X que provém do monastério de São Macário em Wadi’n Natrûn (presentemente, ele se encontra na Biblioteca do Vaticano). Há um paralelo do mesmo Salmo num hino de louvor dedicado à Virgem, feito para ser lido durante uma das festas de Maria celebradas pela Igreja copta. O texto integra a Biblioteca Pierpont Morgan: cf. Karl-Heinz Kuhn e William J. Tait, Thirteen Coptic Acrostic Hymns from Manuscript M574 of the Pierpont Morgan Library (Griffith Institute Publications) Oxford: Griffith Institute/Ashmolean Museum, 1996, p. 17. O Salmo em questão parece ser famoso entre os livros litúrgicos coptas, pois aparece novamente num Psalmodia boarídico (MS Vat. XXIII), publicado por Adolphe Hebbelynck. “Un fragment de Psalmodie du manuscrit Vatican copte 23, en dialecte Bohairique”. In : Le Muséon 44, 1931. P.159 (texto copta), p. 165 (tradução para o francês). 57

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No mesmo texto, é Deus quem manda dos céus “vestes puras” (ϩⲃⲱⲥ ⲛⲕⲁⲑⲁⲣⲟⲥ) destinadas a vestir o corpo morto de Maria.59 Posteriormente, no mesmo texto, Jesus envolve o corpo da Virgem em ⲛⲓϩⲃⲱⲥ ⲛⲉⲡⲟⲩⲣⲁⲛⲓⲟⲙ (vestes celestes) e ordena que os discípulos carreguem-na, ϫⲉ ⲛⲑⲱⲧⲉⲛ ⲛⲉ ⲛⲁⲥⲛⲏⲟⲩ ⲟⲩⲟϩ ⲛⲁⲙⲉⲗⲟⲥ ⲉⲑⲟⲩⲁⲃ (“já que sois meus irmãos e membros santos”).60 Num outro testemunho boarídico, lê-se sobre as “vestes celestes” (ⲛϩⲁⲛϩⲃⲱⲥ ⲛⲉⲡⲟⲩⲣⲁⲛⲓⲟⲛ) que estão estendidas no altar (ⲡⲓⲑⲩⲥⲓⲁⲥⲧⲉⲣⲓⲟⲛ), vestes que “Meu bom Pai e o Espírito Santo enviaram-me para a honra do corpo da minha amada mãe.”61 No mesmo círculo Dormitio, as vestes celestes são trazidas à terra pelo próprio Jesus: “Eu vestirei teu corpo e tua alma com as vestes celestes que eu trouxe do Paraíso comigo.”62 Na versão de pseudo Evódius, publicada por Shoemaker e mencionada anteriormente, o Salvador reúne seus discípulos “para trazer-me essas vestes de linho que eu trouxe do céu e que meu Pai enviou a vós para que sepulteis minha amada mãe com elas, pois é impossível que qualquer veste deste mundo sirva em seu corpo.” 63 Na mesma coleção de apócrifos coptas, Robinson editou ainda um fragmento saídico cuja data remonta ao século X e que pertence a Biblioteca Bodleian, em Oxford.64 Nessa versão, a qualidade celestial das vestes torna-as intocáveis por mãos humanas, pois “Estas são as vestes da luz celeste” (ⲛⲉⲛⲧⲏⲙⲁ ⲛⲉ ⲛⲧⲉⲡⲟⲩⲟⲉⲓⲛ ⲛⲉⲡⲟⲩⲣⲁⲛⲓⲟⲛ), mas Jesus dotou seus apóstolos com o poder para tocá-las, já que eles são seus membros gloriosos” (ⲛⲁⲙⲉⲗⲟⲥ ⲉⲧⲧⲁⲓⲏⲩ). Num manuscrito boárico da Biblioteca do Robinson, Coptic Apocryphal Gospels, p.56; Lagarde, Aegyptiaca, p. 51. Robinson, p. 61; Lagarde, Aegyptiaca, p. 57. 61 Texto copta em Robinson, op.cit. p. 108. 62 Idem, p. 66. Fragmento saídico, Napoli, Brg. CCLXXIII. 63 Shoemaker, The Sahidic Coptic Homily, p. 274; cf. também p. 282. 64 Robinson, op. cit. p. 70-87. 59 60

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Vaticano (MS LXI 5), datado pelo cólofon no ano de 678 dos mártires,65 os apóstolos têm uma visão aterrorizante, após a qual eles dizem “nós caímos de medo e ficamos como homens mortos”. Mas o Salvador silencia-os com a saudação “Salve, meus irmãos e membros” (ⲭⲉⲣⲉ ⲛⲁⲥ̅ⲛⲏⲟⲩ ⲙ̅ⲙⲉⲗⲟⲥ). Os discípulos então elevam seus olhos para ver a Virgem que está ⲉⲥⲥⲟⲩⲗⲱⲗ Ϧⲉⲛ ⲧⲉϥⲥⲧⲟⲗⲏ ⲛⲛⲟⲩϯ (“envolta em sua (i.e. de Jesus) túnica divina”).66 No Livro da Ressurreição de Cristo de Bartolomeu, o Apóstolo, encontra-se a descrição de uma cena que lembra a visão apostólica precedente ligada à tradição copta da Dormitio Mariae. Cristo mostra-se aos apóstolos e Maria, “montada sobre a carruagem do Pai do universo”. Ele confia à Virgem a tarefa de anunciar a boa nova do Evangelho de João: “ [Eu irei] para [junto do meu Pai], que é vosso Pai, e para junto do meu Deus e Senhor, que é vosso Senhor”, uma frase que aparece do mesmo modo, ligeiramente modificada, no Evangelho do Salvador. No paraíso, Jesus vai “Sacudir a minha veste espiritual e ocupar o assento na mão direita de meu Pai”.67 O fato de alguns habitantes do paraíso estarem vestidos é revelado logo em seguida, quando Bartolomeu atinge as regiões superiores, tendo como guia o arcanjo Miguel. Chegando ao “tabernáculo do Pai” (̅̅[ⲡ]ⲉⲥⲕⲏⲛⲏ ⲙ̅ⲡⲉⲓⲱⲧ), situado no sétimo céu, ele pôde ver os doze tronos com “doze vestes” (ⲥⲛⲟⲟⲩⲥ ⲛⲥⲧⲟⲗⲏ ⲟⲩⲱⲃϣ̅) sobre eles. Obviamente, as vestes esperam pelos discípulos de Jesus. O tema dos doze tronos apostólicos aparece em outro escrito apócrifo copta, o Mistério de São João, o Apóstolo, e a Santa Virgem. No texto em questão, o Salvador pede ao Querubim que carregue o apóstolo João para o céu para mostrar-lhe os mistérios lá Idem, p. 91-127 (texto copta e tradução inglesa). Idem, p. 120-121. 67 Budge, Coptic Apocrypha, vol. 3, 13, 190. 65 66

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escondidos. João nota então, a presença de doze homens sentados em doze tronos, o anjo explica que eles são “os doze governantes dos mundos da luz” – uma reminiscência dos doze apóstolos sentados nos tronos do paraíso para julgar as tribos de Israel (Mt 19:28 e Lc 22:30). No sétimo céu, o visionário vê as hierarquias angélicas, cada anjo tem escrito em sua veste o nome de Miguel. O nome do arcanjo serve como proteção contra feitiços, e o querubim não hesita em informar João que “A nenhum anjo é permitido vir a terra a não ser que o nome de Miguel esteja escrito em suas vestes, do contrário, o Demônio desviaria-lhes do caminho”.68 Levado em consideração todos esses textos, pode-se notar como o tema das vestes celestes trazidas por Jesus era entendido no contexto da literatura copta: a Virgem, os apóstolos e os anjos são vistos como seres que se vestem com as vestes celestiais. A referência no Evangelho do Salvador insere-se nessa rica tradição, não havendo necessidade, a princípio, de procur­á-la nas fontes gregas. As versões gregas sobre a assunção de Maria quase nunca apresentam referências às vestes celestes com as quais ela seria enterrada. No entanto, aparentemente, as vestes celestes são proeminentes nas homilias do pseudo Evódius, estando presentes ainda na literatura do pseudo Cirilo e nas narrativas de Teodósio, compostas também em copta.69 O “Monte das Oliveiras” e a viagem celeste dos apóstolos em alguns textos coptas A passagem 110.28 apresenta um contexto diferente, no qual Jesus sentado “na montanha” conversa com os discípulos. Muito provavelmente, o local em questão é o Monte das Oliveiras, o Idem, 64, 246. Tal hipótese foi confirmada por Shoemaker, um estudioso da literatura mariana. Ele sugeriu gentilmente, por meio de correspondência pessoal, que o tema das vestes celestes parece ser mais enfatizado na tradição copta, especialmente nas homilias do pseudo Evódius.

68 69

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local predileto para diálogos de revelação no corpus apócrifo copta. E claro, um dos evangelistas do Novo Testamento declarou que Jesus costumava sentar e conversar com os apóstolos nesse lugar em especial (Lc 22:39). No entanto, tal cena tornou-se o local de revelação por excelência em períodos tardios, e algumas fontes coptas, inclusive, localizam no monte em questão outros episódios, como a transfiguração e outro evento que segundo Lc acontece em Betânia. Essa junção espacial entre o Monte das Oliveiras e o local da ascensão de Cristo parece estar presente no Evangelho do Salvador. Reunidos por Jesus no Monte (das Oliveiras), os apóstolos avistam-no subindo aos céus. Fascinantemente, Jesus passa pelo processo de transfiguração juntamente com os discípulos, que, num testemunho fantástico, confessam que “nós também nos tornamos corpos espirituais (ⲁⲛⲟ[ⲛ] ϩⲱⲱⲛ ⲁⲛⲣ̅ⲑⲏ ⲛ̅ⲛⲓⲥⲱⲙⲁ ⲙ̅ⲡ̅ⲛ̅ⲁ̅)” (100.33-35) e “para nós, apóstolos, esse mundo tornou-se como a escuridão. Nós nos tornamos como aqueles em meio os aeons [de glória]” (101.2-8). Segundo April DeConick, a visão dos apóstolos possui um status mítico.70 No entanto, seria possível imaginar que a transfiguração dos apóstolos e sua capacidade visionária são um topos literário que teria como função a legitimação do cristianismo apostólico. O que não pode ser contestado é que os céus se abrem “um após o outro” na frente de seus olhos; em seguida, os apóstolos viajam do primeiro até o sétimo céu, onde se encontra o tabernáculo do Pai. Graças a Stephen Emmel,71 sabe-se que a passagem em questão possui um paralelo num fragmento do Livro da Ressurreição de Cristo; a passagem no Evangelho do Salvador diz que:

70 71

Cf. DeConick, Voices of the Mystics. Emmel, Recently Published, p. 52.

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Nós (os apóstolos) [vimos] os céus, e eles abriram-se um após o outro. Os guardiões dos portões estavam alarmados. Os anjos estavam com medo e [fugiram] para todos os lados, eles seriam todos destruídos. Nós vimos nosso Salvador penetrando todos os céus, [seus] pés estavam [fixados firmemente no] [monte conosco, sua cabeça penetrando o sétimo] céu (100.40-?)

Podemos comparar esse fragmento com a visão equivalente dos apóstolos no Livro da Ressurreição de Cristo: Quando o Salvador levou-nos ao Monte [das Oliveiras], o Salvador falou-nos [numa língua] que nós não entendíamos [...] E [subitamente] os sete céus [abriram-se] [...] nosso corpos [...] e nós olhamos e vimos nosso Salvador. Seu corpo ia em direção aos céus, e seus pés estavam fixos firmemente no monte conosco. Ele estendeu sua mão direita e nos selou, os doze. E nós também subimos com Ele às alturas, até o tabernáculo do Deus Pai, no sétimo céu.72

Como pode ser notado, o Livro da Ressurreição de Cristo mistura os episódios do Novo Testamento; a ascensão acontece no Monte das Oliveiras e não em Betânia, e os apóstolos têm um papel ativo no processo. A ideia dos apóstolos visitarem os céus pode ser relevante para a nossa pesquisa. Usualmente, nos escritos apócrifos o arrebatamento aos céus é concedido a um personagem que descobre os mistérios divinos e que, ao retornar, os transmite aos crentes de sua comunidade religiosa. O objetivo da visão é, basicamente, estabelecer ou reforçar uma série de crenças. No entanto, no

72

Texto copta em Budge, Coptic Apocrypha, p. 202.

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Evangelho do Salvador o fim da ascensão parece ser a confirmação da fé apostólica. Ao menos outro texto copta apresenta uma viagem semelhante dos apóstolos aos céus. O texto, publicado há muito tempo por Winstedt, foi escrito num pergaminho e descoberto no Monastério Branco, estando hoje preservado na Biblioteca Nacional de Paris. Desde sua publicação completa, feita por Budge, de uma cópia do mesmo texto, ficou óbvio que ele faz parte de um Ecomium sobre São João Batista atribuído a João Crisóstomo.73 O local onde ocorre o diálogo de revelação é novamente o Monte das Oliveiras, onde os apóstolos “reuniram-se” e, acompanhados do Salvador, viajaram aos céus escondidos numa nuvem: O Salvador ordenou e uma nuvem de luz desceu: e o Salvador subiu nela primeiro. Posteriormente ele ordenou que nós, os apóstolos, subíssemos na nuvem também, e nos levou primeiramente ao primeiro e segundo céus. Então, ele ascendeu através do segundo, e depois através do terceiro, e não nos deixou entrar ainda, mas nos levou até o quarto e depois até o quinto; depois até o sexto e depois até o sétimo, e não nos deixou entrar ainda. Posteriormente ele deixou-nos ver todos eles. Novamente ele trouxe-nos para baixo e nos levou ao terceiro céu: e nós nos maravilhamos com sua beleza.74

Jesus revela-lhes então, diversos mistérios celestiais, mas o que mais chama a atenção é a utilização da primeira pessoa do plural em expressões como “nós, os apóstolos”. Deve-se lembrar que o Eric O. Winstedt. “A Coptic fragment attributed to James the brother of Lord”. In: Journal of Theological Studies 8, 1907, p. 240-248. O texto foi publicado por inteiro posteriormente por Budge, de acordo com um manuscrito da Biblioteca Britânica. Cf. Budge, Coptic Apocrypha, p. 128-145 (texto copta), p. 335-351 (tradução inglesa). 74 Winstedt, A Coptic Fragment, p. 246; Budge, Coptic Apocrypha, p. 137-138. 73

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mesmo topos literário aparece no Evangelho do Salvador, no qual os apóstolos ascendem aos céus juntos a Jesus. No Evangelho do Salvador, o objetivo expressado por meio da narrativa visionária torna-se claro na sequência do texto, visto que os apóstolos afirmam que estavam “vestidos com a apostolicidade” (101.11-12). Esse detalhe importante será discutido posteriormente. Emmel está correto em prestar atenção ao fato de os fragmentos sobreviventes do chamado “evangelho copta de Strasburgo” constituírem uma descrição paralela à encontrada no nosso texto. O autor do Evangelho de Strasburgo atribui aos apóstolos as seguintes palavras: “Nosso olhos penetraram todos os lugares, nós contemplamos a glória de Sua divindade e toda a glória de nosso senhorio. Ele revestiu-nos com o poder da nossa apostolicidade ”.75 Essa característica peculiar dos papiros coptas de Strasburgo partilhada pelo Evangelho do Salvador foi decisiva na elaboração do postulado de Hans-Martin Schenke, segundo o qual ambos os escritos têm em comum o mesmo “Wir-stil”.76 À luz da tradição apócrifa grega, Schenke, e posteriormente Emmel, estão corretos. Até onde se sabe, a literatura apócrifa grega quase nunca narra as experiências dos apóstolos na primeira pessoa do plural. Mas no caso dos escritos coptas, as coisas tornam-se diferentes, como já explicado anteriormente. Muitos desses escritos alegam ser “diários” dos apóstolos que teriam permanecido escondidos até serem descobertos

ⲁⲛⲉⲛⲃⲁⲗ ϫⲱⲧⲉ ϩⲙⲙⲁ ⲛⲓⲙ· ⲁⲛⲉⲓⲱⲣϩ ⲙⲡⲉⲟⲟⲩ ⲛⲧⲉϥⲙⲛⲧⲛⲟⲩⲧⲉ ⲙⲛⲡⲉⲟⲟⲩ ⲧⲏⲣϥ [ⲛⲧⲉⲛⲙⲛ]ⲧϫⲟⲉⲓⲥ· ⲁ̅ϥϯ ϩⲓⲱⲱⲛ ⲛⲧϭⲟⲙ ⲛⲧⲉⲛ[ⲙⲛⲧϫⲟⲉⲓⲥ] (lacuna). O texto copta (e sua reconstituição) foi tirado de Revillout, Apocryphes Coptes, p. 161. Os fragmentos 5 e 6 foram publicados pelo mesmo Revillout (p. 160-61) como fragmentos do seu hipotético Evangelho dos Doze. A primeira edição é de Adolf Jacob. Ein neues Evangelienfragment. 76 “Estilo nós”, ou seja, o autor utiliza na narrativa a primeira pessoa do plural. Hans-Martin Schenke, “Das sogenannte ‘Unbekannte Berliner Evangelium’ (UBE)”. O estudioso alemão publicou uma tradução anotada do manuscrito de Berlim. 75

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por algum herói de gerações posteriores, e então tornados públicos. Trataremos dessa interessante questão em seguida. Os “diários” dos apóstolos – uma ficção literária copta Orlandi foi o primeiro a prestar atenção a esse gênero literário, peculiar às homilias coptas, nas quais é possível achar referências a supostos escritos apostólicos que conteriam revelações suplementares do Salvador.77 Segundo Joost Hagen, um jovem estudioso holandês, deve-se a designação de “diários dos apóstolos”78 aos textos em questão. Esse modelo literário constitui um relato atribuído aos próprios apóstolos em relação às palavras de Jesus. Como no caso do Evangelho do Salvador, as sequências narrativas desses textos não seguem a ordem usual dos escritos canônicos, apresentando paráfrases abundantes do Novo Testamento. Não há como ter certeza se as citações aproximadas do Novo Testamento são frutos do relativo desconhecimento das palavras exatas das Escrituras, ou frutos de uma tentativa de passar a impressão de que se trata de um relato arcaico dos ensinamentos orais de Jesus.79 De todo modo, a dependência desses textos

Tito Orlandi. “Gli apocrifi copti”. In: Augustinianum 23, 1983, p. 57-71. Joost L. Hagen. “The Diaries of the Apostles: ‘Manuscript Find’ and ‘Manuscript Fiction’ in Coptic homilies and other literary texts”. In: Mat Immerzeel e Jacques van der Vliet (Ed.). Coptic Studies on the Threshold of a New Millennium. Proceedings of the Seventh International Congress of Coptic Studies, Leiden, 27 August – 2 September 2000 (Orientalia Lovaniensia Analecta 133). Leuven/ Paris,/Dudley: Peeters, 2004, p. 349-367. 79 Sabe-se, no entanto, que monges coptas tinham um conhecimento excelente da Bíblia, devido a sua recitação constante, hábito importantíssimo na vida monástica oriental. Ver A. Veilleux. La liturgie dans le cénobitisme pachômien au quatrième siècle (Studia anselmiana 57) Roma: Libreria Herder, 1968, p. 262-275. Um dos conselhos de Pacômio aos membros da Koinonia consistia em “recite in every hour the words of God”. Cf. Louis T. Lefort. Oeuvres de S. Pachôme et de ses disciples (2 vols.: CSCO 159 & 160. Scriptores coptici 23 & 24); Louvain: Imprimerie orientaliste L. Durbecq, 1956. I: 5 (texto copta), II: 5. 77 78

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em relação ao cânon pode ser percebida nas entrelinhas e sua proveniência tardia está acima de qualquer suspeita. Os supostos relatos apostólicos podem ser achados na biblioteca de Alexandria, mas também em outras localidades. É o que se alega, por exemplo, numa narrativa do pseudo Evódius sobre a assunção de Maria. Evódius, o suposto sucessor de Pedro no episcopado romano, teria descoberto certos escritos apostólicos sobre Maria e os entregado aos membros da Igreja. A referência ao cristianismo apostólico, representado por Evódius como sucessor dos apóstolos, é obvia. Portanto, por meio dessa suposta descoberta sensacional, os crisãos coptas teriam acesso direto a uma série de ensinamentos de Cristo que não são relatados no Novo Testamento. Numa versão boaridica do adormecimento de Maria, atribuído a Teodósio de Alexandria, preservado na Biblioteca do Vaticano (Vat. LXI 5), pode-se ler no folio 14 do manuscrito a seguinte nota: “Ocupemo-nos do tema (ⲡⲣⲟⲕⲩⲙⲉⲛⲟⲛ) que nos é apresentado nesse grande festival; que é espalhado por nós (ⲉⲧⲫⲟⲣϣ ⲛⲁⲛ ⲉⲃⲟⲗ) hoje; que possamos trazer em meio a nós ela que é digna de toda honra: começando com a economia (ⲟⲓⲕⲟⲛⲟⲙⲓⲁ) de Cristo em relação a essa santa Virgem e sua assunção: mesmo que eu tenha achado detalhes (ⲓⲥⲧⲟⲣⲓⲕⲱⲛ) em antigos relatos em Jerusalém, que chegaram a mim na Biblioteca do Santo Marcos de Alexandria”.80 Fica claramente atestado que Teodósio é somente um mediador que transcreve um documento pretensamente autêntico escrito pelos apóstolos. O manuscrito contém temas clássicos em relação ao transitus Mariae, e os narradores são os apóstolos. O escrito relata, dentre outras coisas, uma série de visões dos apóstolos. A página ⲕⲍ contém uma estória sobre uma experiência visionária narrada na primeira pessoa do plural: Robinson, Coptic Apocryphal Gospels, p. xxv-xxvi.

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Quando ela (Maria) terminou essa oração, nós também dissemos amém. E eis que houve trovões e relâmpagos e o lugar inteiro tremeu desde suas fundações. E então apareceu em meio a nós o senhor Jesus, conduzindo uma carruagem de luz e Moisés estava atrás dele, e todo o resto dos profetas, Davi, o rei, e os reis justos. E o lugar todo tornou-se luminoso como fogo. E como não pudemos aguentar o medo, caímos de medo e ficamos como homens mortos. Mas ele, o senhor Jesus, chamou com sua voz gentil, “salve, minha virgem mãe, salve, meus santos apóstolos”! (ⲛⲁⲁⲡⲟⲥⲧⲟⲗⲟⲥ ⲉⲑⲟⲩⲁⲃ)[...]81

O mesmo mito sobre os relatos dos apóstolos aparece na História de José, o carpinteiro,82 um texto tardio cuja data varia entre os séculos VI e VIII. No texto, “Nosso Salvador contou toda sua vida no Monte das Oliveiras” e eles anotaram suas palavras. Os “Diários dos apóstolos” teriam sido guardados em ϯⲃⲓⲃⲗⲓⲟⲑⲏⲕⲏ Ϧⲉⲛ ⲓⲉⲣⲟⲩⲥⲁⲗⲏⲙ (na biblioteca de Jerusalém) e o texto é introduzido pelo seguinte fragmento: Eis que aconteceu um dia que nosso bom Salvador, sentado no Monte das Oliveiras com seus discípulos reunidos com ele, falou-lhes dizendo: ‘Oh, meus irmãos amados e vós, filhos do meu bom Pai, aqueles que Ele escolheu em meio a todo o mundo’.

O Salvador então, os envia “para pregar o Evangelho no mundo inteiro” (ϩⲓⲛⲁ ⲛⲧⲉⲧⲉⲛϩⲓⲱⲓϣ ⲙⲙⲟϥ Ϧⲉⲛ ⲛⲓⲕⲟⲥⲙⲟⲥ ⲧⲏⲣϥ), dizendo Idem, p. 102-103. Deve-se notar que a tradução de Robinson omitiu 15 páginas do começo da homilia e três ao final. Uma tradução francesa completa com o texto boaridico encontra-se em Marius Chaîne. “Sermon de Théodose Patriarche d’Alexandrie sur la Dormition et l’Assomption de la Vierge” in: Revue de l’Orient Chrétien 29, 1933-34, p. 272-314. 82 Texto copta boaridico em Lagarde, Aegyptiaca, p.1. 81

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que eles receberam um status especial: “Eu vos visto com o poder do alto, e vos preencho com o Santo Espírito”. Em outras palavras, após a revelação de Jesus, os apóstolos são investidos do poder divino, da mesma maneira que os mesmos apóstolos são investidos do poder apostólico nos fragmentos coptas de Strasburgo e no Evangelho do Salvador. No escrito copta Encomium sobre as quatro criaturas incorpóreas que chegou até nós sob a autoria de João Crisóstomo, o conhecido doutor da Igreja relata sua viagem à Terra Santa onde descobre um livro que teria sido escrito pelos apóstolos: Mas prestemos atenção à tarefa que se coloca a nossa frente. Aconteceu-me que, depois de deixar Atenas e antes de ingressar na vida monástica, ou seja, a vida de filosofia, meu coração levou-me a ir a Jerusalém, o santuário dos santos, para rezar no santuário dos santos e venerar a sepultura do Salvador. Eu também fui às margens do Jordão, onde nosso Salvador foi batizado. Eu retornei à casa de Maria mãe de João [...] onde os apóstolos estavam reunidos. Eu passei quatro meses por lá para tornar-me digno da ressurreição do nosso Salvador Jesus Cristo por meio do estudo das antigas e santas constituições. Um tomo escrito parou em minhas mãos, no qual os apóstolos escreveram o seguinte (ⲁⲩⲧⲱⲙⲁⲣⲓⲟⲛ ⲉⲓ ⲉⲧⲟⲟⲧ ⲉϥⲥⲏϩ ⲉⲁⲛⲁⲡⲟⲥⲧⲟⲗⲟⲥ ⲥⲁϩϥ ⲛⲧⲉⲓϩⲏ).

O que se segue é uma revelação de Jesus aos apóstolos narrada, mais uma vez, na primeira pessoa do plural: “Aconteceu que um dia nós, os apóstolos (ⲁⲛⲟⲛ ⲡⲉⲛⲁⲡⲟⲥⲧⲟⲗⲟⲥ), estávamos reunidos no Monte das Oliveiras […]”. O Salvador aparece e, como no P. Berolinensis 22220, chama os apóstolos de “Oh, meus membros sagrados (ⲱ ⲛⲁⲙⲉⲗⲟⲥ ⲉⲧⲟⲩⲁⲁⲃ), aqueles que eu escolhi em meio ao mundo inteiro”. Desnecessário dizer que, mesmo que 251

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as declarações de Jesus no Quatro criaturas incorpóreas pareçam ser apócrifas, o texto é uma homilia que deveria ser lida no dia 8 de Hathor,83 quando a Igreja copta celebrava a festa dedicada às criaturas em questão.84 Tivemos a oportunidade de ver que o quadro narrativo dos “diários” coptas situa-se quase sempre no Monte das Oliveiras, o mesmo que seria supostamente o local da ascensão dos apóstolos aos céus no Evangelho do Salvador. No Encomium sobre Abbaton, o Anjo da morte,85 falsamente atribuído a Timóteo, arcebispo de Alexandria, os autores dizem que [...] o arcebispo, desejando saber sobre esse temível e terrível ser, a quem Deus fez...quando ele foi a Jerusalém venerar a cruz de Nosso Salvador, e sua sepultura, no sétimo dia do mês Thoth, procurou em meio aos livros que se encontravam na biblioteca de Jerusalém, e que foram feitos por nossos santos pais, os apóstolos, e lá depositados por eles, até que ele descobrisse [o relato da] criação de Abbaton.

Novamente, o texto é uma homilia do dia 13 de Hathor, quando a Igreja copta celebrava Abbaton. Cristo, chamado no escrito em questão de “Salvador” e “Senhor” (ver o Evangelho do Salvador), fala com os apóstolos, reunidos ao seu redor. Ele lhes diz: “[...] Oh, vós a quem eu escolhi em meio ao mundo todo, eu não vos esconderei nada, mas eu vos instruirei sobre como meu Pai o estabeleceu (i.e. Abbaton) […] Pois eu e meu Pai Hathor era um mês do calendário copta (N.T.). De acordo com Nau, Le ménologes des évangéliaires coptes-arabes (Patrologia orientalis 47); Paris: Graffin, 1913, p. 174. 85 ⲟⲩⲉⲅⲕⲱⲙⲓⲟⲛ ⲉⲁϥⲧⲁⲩⲟⲟϥ ⲛ̅ϭⲓ ⲡⲉⲛⲡⲉⲧⲟⲩⲁⲁⲃ ⲛⲉⲓⲱⲧ ⲉⲧⲧⲁⲓⲏⲩ ⲕⲁⲧⲁ ⲥⲙⲟⲧ ⲛⲓⲙ ⲁⲡⲁ ϯⲙⲟⲑⲉⲟⲥ ⲡⲁⲣⲭⲏⲉⲡⲓϭⲟⲡⲟⲥ ⲛ̅ⲣⲁⲕⲟⲧⲉ· ⲛⲧⲁϥⲧⲁⲩⲟⲟϥ ⲇⲉ ⲉⲧⲃⲉ ⲡⲧⲁϩⲟ ⲉⲣⲁⲧϥ̅ ⲛ̅ⲁⲃⲃⲁⲧⲱⲛ ⲡⲁⲅⲅⲉⲗⲟⲥ ⲙ̅ⲡⲙⲟⲩ. 83 84

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somos um (ⲁⲛⲟⲕ ⲙⲛⲡⲁⲉⲓⲱⲧ ⲁⲛⲟⲛ ⲟⲩⲁ)…86 E agora, oh, meus membros sagrados (ⲱ ⲛⲁⲙⲉⲗⲟⲥ ⲉⲧⲟⲩⲁⲁⲃ), que eu escolhi em meio ao mundo todo, eu não vos esconderei nada”.87

Após esse diálogo, o Salvador envia-os a pregar o evangelho por todo o mundo – um tema corrente nesse tipo de literatura – o que está diretamente ligado à ideia da autoridade apóstolica. No Evangelho do Salvador as palavras de Jesus são as seguintes: “Eu estou sendo enviado; eu, por minha vez quero enviá-los” (ⲥⲉϫⲟⲟⲩ [ⲙ̅]ⲙⲟⲓ̈ ⲁⲛⲟⲕ ϩⲱϯ [ⲟ]ⲩⲟϣ ⲉϫⲉⲩ ⲧⲏⲩⲧⲛ). No já mencionado texto Stauros, traduzido pela primeira vez por Griffith a partir de uma antiga versão núbia,88 os apóstolos afirmam que: Meus amados, aconteceu que um dia nosso Salvador estava sentado no Monte das Oliveiras, quatro dias antes de ser arrebatado aos céus, enquanto seus apóstolos estavam reunidos com ele, e falou-lhes sobre os mistérios que estão no céu e na terra e sobre a maneira segundo a qual nós julgaremos os vivos e os mortos e sobre a ressurreição dos mortos.89

Tendo em vista os textos coptas analisados anteriormente nesse artigo, fica fácil adivinhar qual é o tema seguinte: Jesus envia seus apóstolos dizendo “Oh, meus membros sagrados, ide em Jo 10:30; cf. também o Evangelho do Salvador 98.60-62: anok mn+pai:wt anon oua n+ouwt. Tanto o encomium de Timóteo seguem antes P. Berol. 22220, logo a versão copta do Novo testamento do que o original grego. Se Jo em copta usa o possessivo ⲡⲁ- para o Pai, o texto grego simplesmente exibe ὁ πατὴρ. 87 Ernest A. W. Budge. Coptic Texts in the Dialect of Upper Egypt. vol. 4: Coptic Martyrdoms etc. London: British Museum, 1914, p. 231 (Coptic text), p. 480 (tradução inglesa). 88 Griffith. The Nubian Texts of the Christian Period. 89 Texto copta em Hubai. A Megváltó a keresztről, 24, 26. Para a versão núbia antiga, cf. Browne, “Griffith’s Stauros-text”. In: Studia Papyrologica 22, 1983, p. 75-119, aqui p. 82-83. 86

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frente e pregai o evangelho por todo o mundo”. Os exemplos multiplicam-se, mas creio que os textos analisados até aqui fornecem evidências suficientes para uma conclusão em relação ao contexto no qual o Evangelho do Salvador foi composto. É possível ainda afirmar que os autores coptas combinaram diversos episódios de Lc. Em Lc 22, 39, depois da Última Ceia, lê-se: “E, saindo, foi, como costumava, para o Monte das Oliveiras; e também os seus discípulos o seguiram”. Então, eles recitam uma oração e Jesus implora ao Pai, “Pai, se queres, afasta de mim este cálice; todavia não se faça a minha vontade, mas a tua” (cf. Mt 26:36; Mc 14:36 e Jo 18:11). A mesma oração ecoa e é amplificada no Evangelho do Salvador. Os autores coptas tentavam dizer algo a mais sobre o que aconteceu no Monte das Oliveiras, visto que eles pareciam estar convencidos de que a sequência de Lc 24:36-49, passagem na qual Jesus aparece aos apóstolos e permanece entre eles (25:36), parece ter igualmente ocorrido no próprio monte em questão. Lc é muito enigmático nesse ponto, dizendo que “Então abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras”. Há razões para acreditar que os textos coptas até aqui discutidos, inclusive o Evangelho do Salvador, são versões de estórias “não acabadas” do Novo Testamento, supostamente escritas pelos apóstolos e descobertas posteriormente pelos seus sucessores. Torna-se ainda mais óbvio que Lc provê a base para esses “livros apóstolicos”, revelando o significado da “Boa Nova”, visto que Jesus afirma claramente que “em seu nome (de Jesus) se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém”. Para que isso aconteça, diz-nos o evangelista: “E eis que sobre vós envio a promessa de meu Pai; ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder”. Como demonstrado anteriormente, na História de José, o carpinteiro, encontra-se a seguinte paráfrase de Lc: “Deveis pregá-lo (o Evangelho) no mundo inteiro, e 254

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revestir-vos com o poder do alto e encher-vos do Espírito Santo, para que possais pregar a todas as nações dizendo-lhes: ‘Arrependei-vos!’”. É nesse mesmo contexto que se deve entender as expressões paralelas do Evangelho do Salvador e do Evangelho Copta de Strasburgo, de acordo com os quais os discípulos receberam sua apostolicidade após a visão. A frase “e eis que sobre vós envio a promessa de meu Pai; ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder” ou o fato de Jesus dizer que “Deveis [...] revestir-vos com o poder do alto e encher-vos do Espírito Santo” na História de José, o carpinteiro, provêm um tema-chave para o entendimento da expressão “nós nos revestimos com o poder de nossa apostolicidade”. Trata-se de nada mais do que uma simples exegese do Novo Testamento. As homilias coptas e a metáfora da veste do Rei Por que será que as homilias coptas parecem tantas vezes ser apócrifos? Uma evindência interessante é dada pelo autor da homilia Sobre a Paixão e a Ressurreição, que mais uma vez se apresenta como escrita por Evódius de Roma.90 Ele explica porque escolheu inserir divagações “apócrifas” no seu sermão. A passagem em questão merece ser citada inteiramente: Mas alguém íntegro em meio a esses irmãos certamente me dirá: ‘Acrescentaste às palavras do Santo Evangelho’. Mas eu, por outro lado, eu tentarei persuadi-lo com um exemplo. A lã púrpura da veste do rei, antes que suas misturas, que são tingidas, sejam aplicadas, pode ser útil sendo fabricada como roupa e sendo desgastada. Mas quando ela é trabalhada e tingida com a mistura de cores, torna-se A homilia faz parte da Biblioteca de Pierpont Morgan M595. O texto copta e a tradução inglesa encontram-se em Depuydt, Homiletica, I: 79-106, II: 83-114.

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excelsamente brilhante e torna-se roupa radiante, para que o rei a vista. Assim sendo, os santos Evangelhos, quando aquele que será ordenado pastor age de acordo com suas palavras e as revela, tornam-se excelsamente iluminados e grandiosos no coração daqueles que escutam. De fato, o rei não achará culpa se dobras lindamente feitas forem adicionadas a suas vestes, mas ele elogiará aqueles que as adicionaram excelsamente, para que todos possam louvar a veste por causa das dobras que nela estão. Então, o Senhor Jesus não achará culpa se nós adicionarmos alguns embelezamentos a seus santos Evangelhos, mas ele nos elogiará [...] ele abençoará aqueles que darão fruto por meio deles. Pois há muitas coisas que os santos Evangelhos deixaram de lado. Os costumes da Igreja estabeleceram-lhes. Não fomos informados do dia em que Ele nasceu, o hábito determina que essas duas festas católicas sejam celebradas. De maneira justa, o bem amado de Cristo, João, disse no santo Evangelho: ‘Há muitos outros sinais que Jesus fez perante seus discípulos. Esses (sinais) não estão escritos nesse livro. Essas (coisas)’, disse ele ‘quando forem escritas, o mundo não será capaz de conter os livros que serão escritos’.91

Esse fragmento confirma a suposição de certos autores modernos, de acordo com a qual os textos que são tidos como “apócrifos coptas” são na verdade um grande conjunto de homilias que visavam legitimar certas festas celebradas durante o ano litúrgico. Paulino Bellet, por exemplo, afirma que La homilía copta tiene, en general, un carácter compósito; junto al desarrollo del tema que es motivo de la exposición parenética, incluye otras varias narraciones sin conexión con la material 91

Idem, I: 90-91, II: 95-96.

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de la homilía, y ama la inclusión de tradiciones inspiradas en los apócrifos, cuando no en antiguas leyendas populares […] la homilética copta acostumbra tratar su texto con máximas libertad y añadir narraciones de fantasía del gusto de los oyentes.92

Se a hipótese aqui apresentada estiver correta, poder-se-ia saber muito mais sobre o contexto histórico-ideológico do Evangelho do Salvador. Todos esses escritos tentam convencer seus leitores que o “Wir-stil” é um relato autêntico dos apóstolos, fazendo referência a certos “diários apócrifos dos apóstolos”, um estilo que certamente não se desenvolveu no Egito antes dos séculos V e VI. Nesse sentido, a referência do Evangelho do Salvador a “nós, os apóstolos” poderia ser a prova de que ele é outro “diário dos apóstolos”. Ao atribuir esses textos aos apóstolos, o autor atribui às respectivas revelações do próprio texto, antiguidade e autenticidade. Este segmento da literatura copta é construído em grande medida com “testemunhos” apostólicos; os discípulos ouvem as palavras de Jesus e as registram para o futuro. O tema em questão pode variar de temas relativos à vida de seus pais terrenos à diferentes aspectos do cristianismo copta, como por exemplo, o culto da Cruz.

Paulino Bellet. “Testemonios coptos de la aparición de Cristo resucitado a la Virgen”. In: Estudios bíblicos 13, 1954, p. 199-205, aqui 202. Cf. também os interessantes comentários sobre as homilias coptas em David Brakke. “The Egyptian afterlife of Origenism: conflicts over embodiment in Coptic sermons”. In: Orientalia Christiana Periodica 66, 2000, p. 277-293. Infelizmente, os estudos de Caspar D. Müller, que deveriam ser a primeira análise sistemática da homilética copta, são desapontadores. Cf. o seu livro Die alte Koptische Predigt. Berlin: Darmstadt, 1954; “Einige Bemerkungen zur ‘ars praedicandi’ der alten koptischen Kirche”. In: Le Muséon 67, 1954, p. 231-270; “Koptische Redekunst und griechische Rhetorik”. In: Le Muséon 69, 1956, p. 53-72; “Charakteristika koptischer Exegese an ausgewählten Beispielen”. In: Georg Schöllgen e Clemens Scholten (Ed.). Stimuli. Exegese und ihre Hermeneutik in Antike und Christentum: Festschrift für Ernst Dassmann ( Jahrbuch für Antike und Christentum 23). Münster: Aschendorff, 1996, p. 200-209.

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O estilo literário (diálogo entre Jesus e os apóstolos pouco antes da crucificação); o uso do Novo Testamento (por meio de paráfrases e mistura de temas); sujeitos específicos, como a festa escatológica, as “vestes do céu” e outros que não chegaram a ser discutidos aqui (como a Descensus ad Inferos e o culto da Cruz); a ideia dos apóstolos ascenderem juntos aos céus; certos temas e expressões como “Oh, meus membros sagrados”, Soter e “Reino dos Céus” – todos estes elementos presentes no Evangelho do Salvador e nos diversos textos coptas aqui discutidos podem nos mostrar algo sobre o ambiente copta do nosso texto. Datar precisamente o texto seria arriscado nas condições atuais da pesquisa, mas uma data anterior ao século V é pouco provável. A tarefa dos estudiosos parece difícil de fato, visto que esses textos nunca tiveram uma forma fixa, são diversos fragmentos que fizeram parte de vários corpos apócrifos diferentes, o que poderia mais uma vez indicar o uso de tais textos como homilias. Ao mesmo tempo, eles diferem consideravelmente das composições apócrifas gregas. Como Frank Hallock escreveu há muito tempo, “os gregos não tinham gosto por maravilhas superabundantes e milagres, como os que são achados em meio aos coptas nesse tipo de escrito”.93 Um entendimento profundo da complicada interação entre os textos mencionados no presente estudo continua sendo um desafio para pesquisas futuras.

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Frank H. Hallock. “Coptic Apocrypha”. In: Journal of Biblical Literature 52, 1933. p.163-174, aqui 165.

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Judas, herói ou traidor: o Evangelho de Judas do Codex Tchacos1 Julio Cesar Dias Chaves

Em abril de 2006, pouco antes das festividades da Páscoa, uma série de reportagens bombásticas sobre um “Evangelho de Judas” foi publicada e divulgada nos diversos meios de comunicação em todo o mundo. O motivo de tanta especulação e interesse midiático foi o anúncio, feito pela National Geographic Society, da publicação de um recém descoberto manuscrito de um novo Evangelho, cujo nome seria “Evangelho de Judas”. A existência de tal Evangelho já era conhecida pelos estudiosos desde 2004,2 mas foi o anúncio da National Geographic, feito em uma Gostaria de fazer um agradecimento a todos os participantes do Seminário Bibliothèque copte de Nag Hammadi, da Faculdade de teologia e ciências das religiões da Université Laval, pela discussão do Evangelho de Judas, bem como as diversas proposições feitas em relação ao preenchimento de lacunas, estabelecimento e correção de trechos do texto copta, e ainda, no tocante à interpretação do texto em si. Um agradecimento especial deve ser feito aos professores Wolf-Peter Funk e Louis Painchaud: ao primeiro, por seu primoroso trabalho filológico em relação ao texto em questão, e ao segundo por sua minuciosa pesquisa sobre a figura de Judas Iscariotes e seus artigos sobre a interpretação do Evangelho de Judas, pesquisa esta cujos resultados este artigo utiliza em larga medida. O autor é doutorando em Ciências da Religião pela Université Laval – Québec (Canadá). 2 Este assunto será discutido a seguir, ao se falar da cronologia da descoberta e publicação.

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conferência com a imprensa, que popularizou a existência do texto. Dias depois do anúncio, no Domingo de Ramos de 2006, o canal de televisão da National Geographic mostrava um documentário, com características de superprodução cinematográfica, no qual o novo Evangelho era apresentado. Tal documentário, que apresentava uma mistura de fatos reais e pura ficção, divulgava uma interpretação impressionante do texto em questão, interpretação essa que, segundo o próprio documentário, representaria uma revolução nos estudos do cristianismo primitivo. O documentário deu mais combustível aos relatórios midiáticos. Existia de fato um Evangelho de Judas, um texto que apresentava uma interpretação diferente da figura de Judas e da sua relação com Jesus. Diferentemente do Judas apresentado pelos Evangelhos canônicos e conhecido de todos, o Judas apresentado no Evangelho de Judas seria o modelo de discípulo de Cristo, seu amigo próximo, a quem teria sido delegada a tarefa de libertar a parte espiritual do Salvador do envelope carnal que o retinha. Reiniciava-se a busca pela reabilitação do personagem de Judas Iscariotes, tendência que começou a tomar forma em exegeses modernas da Bíblia e até mesmo na ficção literária e cinematográfica do século XX. Sempre visto como o maior traidor de todos os tempos, ou ainda, o estereótipo do judeu, Judas era sinônimo de mal e deslealdade. Nos meses que se seguiram ao anúncio e publicação do Evangelho de Judas, a imprensa continuou a divulgar a ideia do “novo Judas”. Houve ainda, uma avalanche de livros sobre o assunto, alguns feitos por especialistas, outros por oportunistas em busca de dinheiro e sucesso.3 É impressionante o número de livros publicados sobre Judas, sua relação com Jesus, e o novo Evangelho, nas semanas que se seguiram à publicação do Evangelho de Judas. Não haveria espaço neste artigo para um inventário completo de tais obras. Estudiosos renomados como James Robinson (The Secrets of Judas: the Story of the Misunderstood Disciple and his Lost Gospel. New York / San Francisco: Harper, 2006), por exemplo, publicaram livros falando do novo texto. Outros escritores menos sérios,

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O fato é que todo o alarde em torno do texto em questão se baseou numa interpretação um tanto quanto equivocada de seu conteúdo. Longe de ser uma figura exemplar ou discípulo preferido de Cristo, o Judas do Evangelho de Judas é apresentado como o responsável por um ato ímpio: o sacrifício de Jesus. Este artigo propõe-se a apresentar esta nova interpretação do Evangelho de Judas, diferente da consagrada pela mídia e por muitos livros publicados sobre o assunto. Esta interpretação diferente, no entanto, baseia-se no próprio texto do Evangelho de Judas e no contexto cultural do cristianismo primitivo que o produziu, e não na vontade de criar polêmicas e vender livros. Algo, porém, deve ser enfatizado: o texto do Evangelho de Judas em si é conhecido há pouco tempo; até o fim da redação do presente artigo, por cerca de três ou quatro anos por parte dos especialistas contratados pela National Geographic, e de dois anos por parte dos demais estudiosos. Portanto, a pesquisa do texto é recente e seus resultados são igualmente novos, ou seja, muito pode mudar em relação ao que se diz presentemente, tanto no tocante a este artigo, quanto no tocante às interpretações “polêmicas”. Desde a publicação do texto na Páscoa de 2006, o mundo acadêmico dividiu-se em duas partes, a primeira formada por aqueles que acreditam, ou dizem acreditar, que o Judas do Evangelho de Judas é um herói e que o texto em questão apresentaria uma imagem alternativa do personagem; a segunda é formada pelos estudiosos que estão absolutamente convencidos de que o texto em questão não apresenta uma imagem “positiva” de Judas. Assim sendo, é objetivo deste artigo igualmente, atualizar o leitor lusófono sobre os últimos acontecimentos relativos ao estudo desse texto. preocupados mais em criar polêmica, também aproveitaram o sucesso do novo texto. Houve ainda a reedição de diversos livros que falavam de Judas bem anteriores à publicação do Evangelho de Judas, como por exemplo, a obra de Hans Klauck. Judas, un disciple de Jésus: exégèse et répercussions historiques. Paris: Éditions du Cerf 2006, publicado originalmente em 1987 (Judas – ein Jünger des Herrn. Freiburg: Herder).

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Para tal, deve-se começar por uma breve descrição cronológica da descoberta do manuscrito e da publicação.4 O Evangelho de Judas é parte integrante de um códex copta de papiros, batizado pela National Geographic de Codex Tchacos, encontrado provavelmente na região central do Egito, ao que tudo indica, no final da década de 70. No mesmo códex encontram-se ao menos outros três textos,5 dois deles já conhecidos da Biblioteca copta de Nag Hammadi, o Primeiro Apocalipse de Tiago6 e a Carta de Pedro a Felipe, e o outro inédito, o Livro de Alógenes. A descoberta do Codex Tchacos deve ser interpretada, até certo ponto, no contexto geral de descoberta de manuscritos antigos no Egito. Desde o século XIX, o Egito tem sido o palco de inúmeras descobertas arqueológicas de textos antigos, muitos deles ligados de alguma forma ao cristianismo primitivo.7 O clima seco do Egito é propício para a conservação de papiros e pergaminhos. Alguns manuscritos e códices antigos descobertos no Egito caíram Rodolphe Kasser fornece, na medida do possível, uma ótima descrição cronológica da história da descoberta e da publicação do Codex Tchacos na edição de 2006 e na edição crítica (cf. Rodolphe Kasser et alii. The Gospel of Judas. Together with the Letter of Peter to Philip, James and a Book of Allogenes from Codex Tchacos. Critical Edition. Washington: National Geographic, 2007). As descrições de Kasser, no entanto, são algumas vezes afetadas pelo excesso de dramaticidade e por críticas desnecessárias a outros estudiosos. 5 Ao analisar alguns fragmentos do Codex Tchacos, Jean-Pierre Mahé levantou a possibilidade da existência de um quinto texto, um texto hermético. Isso seria possível, pois boa parte do códex, extremamente mal conservado do ponto de vista material, perdeu-se. A possibilidade da existência de um texto hermético no Codex Tchacos foi apresentada por Mahé no seminário permanente Bibliothèque Copte de Nag Hammadi, na Université Laval, em setembro de 2006. Sobre os textos herméticos no sul do Egito, cf. Jean-Pierre Mahè. Hermès en Haute-Égypte tome I. Les textes de Nag Hammadi et leurs parallèles grecs et latins. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 1978; e pelo mesmo autor, Hermès en Haute-Égypte tome II. Le Fragment du Discours parfait et les Définitions hermétiques arméniennes. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 1982. 6 Trata-se de uma nova versão do (Primeiro) Apocalipse de Tiago, no entanto, no manuscrito do Codex Tchacos, o título deste texto é diferente, apenas “Tiago” (ⲓ̈ⲁⲕⲱⲃⲟⲥ). 7 Cf. Julio C. Dias Chaves. “A biblioteca copta de Nag Hammadi: uma história da pesquisa” in: Oracula 2, 2006, p. 1-19. 4

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no mercado negro de antiguidades e foram contrabandeados e comercializados por antiquários, chegando inclusive a sair do país.8 Esse parece ser o caso do Codex Tchacos. A história do Codex Tchacos é descrita por Kasser na publicação da National Geographic9 de maneira quase poética, e mesmo épica, gêneros que se encaixaram muito bem no ambiente de dramaticidade visado por seus editores, enfatizando assim o caráter “secreto” e “subversivo” do Evangelho de Judas. Segundo Kasser, o códex passou por diversas aventuras, mal-entendidos, mutilações; e não poderia ser diferente, ainda segundo Kasser, afinal, trata-se de um texto com características de “panfleto de contestação”, cujo personagem principal e herói foi amaldiçoado por gerações a fio; o texto foi “vítima típica da concupiscência, ambição, estupidez e inércia intelectual humana”.10 Kasser fixa o dia 24 de julho de 2001 como marco na história do Codex Tchacos. É a partir dessa data que seu trajeto torna-se claro, sendo possível estabelecer a reconstituição de todos seus “passos”.11 Houve antes disso, porém, uma série de acontecimentos, como sua descoberta e a já citada tentativa de comercialização. Kasser frisa, portanto, que muitas das informações sobre o códex anteriores a essa data, como a própria descoberta, por exemplo, são fruto de informações no mínimo duvidosas e especulativas.12 O exemplo mais conhecido diz respeito aos códices de Nag Hammadi (cf. James Robinson. “From the cliff to Cairo”. In: Bernard Barc. Colloque International sur les textes de Nag Hammadi. Québec / Louvain: Les Presses de l’Université Laval / Peeters, 1981, p. 21-58). Para se ter uma ideia de acontecimentos semelhantes em relação a outros corpos literários coptas, ver do mesmo autor “The Pachomian Monastic Library at the Chester Beatty Library and the Bibliothèque Bodmer”. In: Occasional papers of the Institute for Antiquity and Christianity 19. Claremont: The Institute for Antiquity and Christianity, The Claremont Graduate School, 1990. 9 Rodolphe Kasser et alii. The Gospel of Judas. Washington: National Geographic, 2006. 10 Ibid. 11 Ibid. 12 As informações apresentadas sobre a história do Codex Tchacos são tiradas de Kasser et alii, op.cit., e da edição crítica do mesmo texto. 8

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Aparentemente, o códex foi descoberto por volta de 1978, nas proximidades de Minieh, médio Egito. Após a descoberta, ele passou às mãos do antiquário Hanna que, convencido de sua importância, comparável a dos códices da Nag Hammadi, tentou durante muito tempo vendê-lo, mas em vão. O preço pedido por Hanna era deveras alto, três milhões de dólares, e acabou desencorajando os possíveis compradores. Um episódio em específico ficou conhecido nos meios acadêmicos. Hanna enviou três fotos do manuscrito a Ludwig Koenen, do departamento de estudos clássicos da Universidade de Michigan, no final do ano de 1982. Com a ajuda de Gerald Browne e Scott K. Brown, foi feita, a partir das fotos, a transcrição da página 19 do códex, na qual se encontra parte do (Primeiro Apocalipse de) Tiago. Em 1983, Koenen contactou James Robinson, o reputado acadêmico e coptologista estadunidense, que por sua vez, ao receber a notícia sobre o novo códex, entrou em contato com Stephen Emmel para que este, que se encontrava na Europa, fosse a Gênova analisar o manuscrito. A tentativa de Emmel de comprar o manuscrito falhou, devido ao já citado preço excessivo pedido por Hanna. Mas tendo um contato visual e físico com o códex, Emmel, pode perceber, em parte, qual era seu conteúdo. Tratava-se de um códex copta, aparentemente saídico com traços de dialetos médio-egípcios. Emmel reconheceu dois textos já conhecidos de Nag Hammadi, o Primeiro Apocalipse de Tiago e a Carta de Pedro a Felipe, e pôde igualmente ver no fim de uma das páginas do códex o título “Evangelho de Judas”. Ele achou que o Judas em questão era Tomé, também chamado de Judas Dídimo Tomé em alguns textos coptas, como por exemplo, o Evangelho de Tomé.13 No dia 2 de maio de 1984, Hanna alugou um cofre num banco no estado estadunidense de Nova York para guardar o 13

Kasser et alii, edição crítica.

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códex e por lá ele ficou por quase dezesseis anos, até o dia 3 de abril de 2000, quando Hanna conseguiu vendê-lo a Freda Tchacos Nussberger. É obvio que Hanna percebeu, no decurso desses 17 anos, que o preço pedido pelo códex era alto demais. Outras tentativas de vendas a antiquários e pesquisadores dos EUA falharam. Ainda em abril de 2000, Freda Nussberger levou o códex à Biblioteca Beinecke, na Universidade de Yale, onde durante alguns meses ele foi examinado por especialistas como Bentley Layton, que pôde identificar que o terceiro tratado do códex era um “Evangelho de Judas Iscariotes”. Mas em agosto do mesmo ano, a Universidade de Yale pronunciou-se oficialmente, dizendo que não compraria o manuscrito. Foi então que ocorreu um episódio lastimável para a conservação do códex; em setembro de 2000, Freda Nussberger vendeu-o para um antiquário, Bruce Ferrini, que aparentemente congelou-o, o que fragilizou consideravelmente as fibras do papiro e escureceu várias páginas, tornando a leitura deveras complicada. Ferrini não conseguiu pagar Nussberger integralmente e então devolveu o códex, garantindo que, junto com ele, dava também a Nussberger todas as fotos e transcrições que havia feito. No entanto, segundo Kasser, aparentemente Ferrini ficou com alguns fragmentos e fotos do códex. Ele chegou inclusive a disponibilizar algumas fotos ao estudioso do cristianismo antigo Charles Hedrick. No dia 19 de fevereiro de 2001, o códex finalmente viajou para a Suíça. Ele foi adquirido pela fundação Mecenas, por intermédio do advogado de Nussberger. A fundação Mecenas então tomou as providencias necessárias para a restauração do códex, engajando no processo, o professor Rodolphe Kasser. Em 2004, Kasser obteve a ajuda do professor Gregor Wurst e, no mesmo ano, em julho, na ocasião do VIII Congresso da Associação Internacional 265

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de Estudos Coptas, em Paris, Kasser anunciou a aquisição do códex por parte da fundação Mecenas, tornando público ainda que o códex em questão era composto de quatro textos – descobrir-se-ia posteriormente, no entanto, que havia aparentemente um quinto, como citado anteriormente.14 Foi a partir do anúncio de Kasser que o códex passou a ser chamado de códex Mecenas, nome que foi substituído na edição da National Geographic, que passou a chamá-lo de Codex Tchacos, uma pretensa homenagem a Freda Tchacos Nussberger. Foi na ocasião do anúncio no VIII Congresso da Associação de Estudos Coptas que, segundo o próprio Kasser,15 Robinson tomou a palavra e advertiu que algumas fotos do códex já estavam circulando entre alguns estudiosos há cerca de vinte anos.16 Ainda segundo Kasser, em dezembro de 2004, Charles Hedrick, outro conhecido pesquisador no campo dos estudos coptas, enviou-lhe a transcrição e tradução dos fragmentos inferiores das páginas 40 e 54 à 62 do códex. Hedrick teria feito a transcrição a partir de fotos que ele teria recebido; o estudioso não revelou sua fonte, mas Kasser sugeriu que as fotos tenham sido tiradas em setembro de 2001 por Bruce Ferrini, acrescentando que a ação causou ainda mais danos ao manuscrito.17 Mas algo não se encaixa nessa última parte da cronologia de Kasser. Robinson disse que as fotos estavam circulando há cerca de vinte anos, e Ferrini esteve com o códex em 2001. Portanto, ou Kasser ou Robinson estão enganados, ou as fotos citadas por Robinson não são as mesmas utilizadas por Hedrick. A última opção é a mais plausível: as fotos às quais Robinson se referia foram provavelmente as tiradas em 1982 por Koenen.18 Cf. nota 4, supra. Kasser et alii, p. 73. 16 Idem, p. 73-74. 17 Idem, p. 74. 18 Kasser não citou o episódio das fotos tiradas por Koenen em 1982 na edição de 2006, mas ele foi provavelmente advertido sobre o assunto e adicionou na edição crítica um 14 15

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Voltando ao anúncio no VIII Congresso da Associação Internacional de Estudos Coptas, deve-se lembrar que, na ocasião, Kasser anunciou a publicação do códex para 2005. O ano de 2005 passou sem que o códex fosse de fato publicado. E foi aí que entrou em cena a National Geographic, que provavelmente comprou os direitos de publicação exclusivos, pagando uma quantia desconhecida, mas certamente considerável à fundação Mecenas. Próximo à Páscoa de 2006, período no qual as revistas de grande circulação no mundo ocidental gostam de lançar reportagens e dossiês sobre Jesus e seu tempo, aproveitando-se da suscetibilidade do público que se interessa por tal tipo de assunto, a National Geographic anunciou a publicação do Evangelho de Judas. Não do Codex Tchacos inteiro, mas somente do Evangelho de Judas. Um documentário com características de superprodução cinematográfica foi anunciado, juntamente com a edição da revista e um livro com uma tradução em inglês19 e comentários de pesquisadores como os próprios Kasser e Wurst, mas também de outros estudiosos conhecidos nos EUA por seus livros de vulgarização sobre o cristianismo primitivo e gnosticismo, tais quais Marvin Meyer e Bart Ehrman. Além do mais, a National Geographic disponibilizou o texto copta do Evangelho de Judas editado por Kasser, Meyer e Wurst no seu site.

relato sobre o acontecido. Robinson fala por alto das fotos na introdução à edição em fac-símile dos códices de Nag Hammadi (cf. James Robinson. The Facsimile Edition of the Nag Hammadi Codices. Introduction. Leiden: Brill, 1984). 19 O livro acabou sendo publicado em diversas outras línguas. A versão francesa, por exemplo, contou com uma tradução francesa do Evangelho de Judas feita diretamente do texto copta por Rodolphe Kasser et al ( L’Évangile de Judas. Paris: Flamarion, 2006.). Já a edição em português é uma simples tradução da edição em inglês, inclusive a tradução do Evangelho de Judas não foi feita diretamente do texto copta, mas sim a partir da tradução inglesa de Meyer et al. (cf. O Evangelho de Judas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006).

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No livro em questão, Kasser prometeu ainda a publicação da editio princeps de todos os textos do Codex Tchacos ainda para 2006, o que acabou não ocorrendo. Os textos coptas da Carta de Pedro a Filipe, do (Primeiro apocalipse de) Tiago e do Livro de Alógenes foram disponibilizados por Wurst a alguns estudiosos depois da publicação do livro de 2006. Os estudiosos puderam então, começar a trabalhar com os textos do Codex Tchacos, principalmente o Evangelho de Judas. Mas a inexistência de uma edição crítica dificultava muito os trabalhos. Até que no meio do ano de 2007, a edição crítica foi finalmente publicada com o título de The Gospel of Judas: Together with the Letter of Peter to Phillip, James, and a Book of Allogenes from Codex Tchacos. Critical Edition.20 Logo após a publicação da edição de 2006, iniciou-se entre os estudiosos uma grande polêmica devida à interpretação do texto divulgada pela National Geographic e apoiada, em grande medida pelos editores do texto, Kasser, Meyer e Wurst, mas também por outros estudiosos conhecidos do grande público, como o já citado Ehrman e ainda Elaine Pagels, pesquisadores que chegaram inclusive a aparecer no documentário citado no início deste artigo. Após a publicação de 2006 e do texto copta do Evangelho de Judas, os estudiosos contratados pela fundação Mecenas e National Geographic, que tinham trabalhado até então isolados e em segredo, puderam contar com a colaboração de outros pesquisadores.21 E parece ter sido exatamente essa 20 21

Kasser et al., edição crítica. Deve-se destacar a contribuição dos pesquisadores e professores, como Louis Painchaud, Paul-Hubert Poirier, Anne Pasquier e Michel Roberge, mas também estudantes de mestrado e doutorado da Université Laval, Québec, Canadá, que discutiram o texto copta do Evangelho de Judas durante várias reuniões semanais no decurso do ano de 2006, sob a direção do professor Wolf-Peter Funk. Pesquisadores de outras universidades, como Birger Pearson, Einar Thomassen, John Turner e April DeConick, por exemplo, também ajudaram propondo interpretações diferentes para a percepção do personagem de Judas. Birger Pearson, inclusive, publicou um excelente artigo sobre o assunto (cf. Birger Pearson. “Judas Iscariot and the Gospel of Judas”. Occasional Papers number 51. The Institute for Antiquity and Christianity – Claremont Graduate University, 2007.

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colaboração que fez com que a edição de trechos do texto copta fosse revista e reeditada, causando, consequentemente, modificações na tradução do Evangelho de Judas. Algumas dessas modificações dizem respeito exatamente à questão da percepção da figura de Judas no texto, questão de que este artigo em breve tratará. Antes, porém, cabe uma breve apresentação do texto. O Evangelho de Judas é, até certo ponto, um texto de difícil interpretação. O estado de conservação do manuscrito é péssimo,22 e as inúmeras lacunas, aliadas a prováveis problemas de tradução do grego para o copta,23 dificultam o bom entendimento do texto. Esses problemas de entendimento atrapalharam, em grande medida, a interpretação do texto. As análises preliminares do manuscrito do Evangelho de Judas indicam uma data entre o final do século IV e início do século V. A data de composição original do texto grego24 foi fixada na segunda metade do século II, em virtude da citação de um “Evangelho de Judas” em Contra as heresias I, 31, 1 de Irineu de Lyon.25 Ambas as datas, porém, são especulativas por dois motivos: 1) o texto é conhecido há pouco tempo e está começando a ser estudado, logo ainda há muito a ser debatido; 2) em relação ao manuscrito em específico, a paleografia copta é uma ciência As inúmeras “aventuras” (termo empregado por Funk) do Codex Tchacos, descritas brevemente na seção anterior, fizeram com que ele se partisse ao meio, além, é claro, das deteriorações próprias sofridas por um manuscrito de cerca de 1500 anos. Segundo Kasser, cerca de 15% do texto perdeu-se (cf. Kasser et al., p. 75). 23 O Evangelho de Judas, como os demais textos do Codex Tchacos e outros textos coptas, como os da Biblioteca de Nag Hammadi, por exemplo, foram compostos originalmente em grego e traduzidos para o copta no decorrer do século IV. Em geral, os textos gregos perderam-se, restando somente as traduções coptas (cf. Chaves, “A biblioteca copta de Nag Hammadi”). 24 Ver nota anterior. 25 Irineu compôs sua obra por volta de 180. Se o bispo de Lyon fala de fato do Evangelho de Judas do Codex Tchacos, ter-se-ia um terminus ad quem em 180 para a composição do original grego. 22

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recente, que ainda tem muito a desenvolver. Não pode haver, portanto, certeza em relação à datação do manuscrito. Além do mais, a identificação automática do Evangelho de Judas do Codex Tchacos com o “Evangelho de Judas” citado por Irineu de Lyon é problemática e a continuação da discussão no presente artigo demonstrará o motivo. A interpretação divulgada pela National Geographic diz que o Evangelho de Judas apresenta um Judas diferente, fornecendo uma nova explanação para a traição de Jesus. Vejamos o que diz o livro: Um Evangelho contado a partir da perspectiva de Judas Iscariotes, o grande traidor da história. E longe de ser um vilão, o Judas que emerge de suas páginas é um herói. Nesta interpretação radical, Jesus pede a Judas para traí-lo. Em contraste com os Evangelhos do Novo Testamento, Judas é apresentado como modelo para todos que desejam ser discípulos de Jesus. Ele é o único apóstolo que verdadeiramente entende Jesus.26

Ver-se-á com o desenvolver da discussão do texto que essa interpretação não é totalmente correta. Primeiramente, deve-se dizer que em momento algum no texto, pelo menos no que sobrou dele, Jesus pede a Judas que o traia. Outros questionamentos que vão de encontro ao postulado anteriormente aparecerão no decorrer da discussão. Antes, porém, deve-se analisar o contexto evocado pelo texto em seu início. Traduzido pelo autor a partir da edição de 2006 da National Geographic. O texto inglês diz o seguinte: “a gospel told from the perspective of Judas Iscariot, history’s ultimate traitor. And far from being a villain, the Judas that emerges in its pages is a hero. In this radical interpretation, Jesus asks Judas to betray him. In contrast to the New testament Gospels, Judas Iscariot is presented as a role model for all those who whish to be disciples of Jesus. He is the one apostle who truly understands Jesus”.

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O texto começa com o seguinte enunciado: “O relato secreto da revelação na qual Jesus falou com Judas Iscariotes durante os oito dias precedendo os três dias antes que ele celebrasse a páscoa (Evangelho de Judas 33:1-6)”27. Logo em seguida, o autor utiliza expressões para evocar o contexto dos Evangelhos canônicos (33:6-18), o que, até certo ponto, pode ser interpretado como uma maneira retórica de chamar a atenção do leitor. O fato de o autor evocar a tradição dos Evangelhos canônicos é expressivo, pois, ao fazê-lo, ele evoca também a figura de Judas retratada nesses textos, ou seja, ele acaba recordando, mesmo que somente por insinuação, que Judas é o traidor de Jesus.28 Apesar de toda a controvérsia em relação à interpretação da figura de Judas, o assunto principal do texto não diz respeito ao apóstolo em si. O escrito apresenta uma cosmologia setiana 29 que contém muitas semelhanças com alguns textos de Nag Hammadi, como o Livro sagrado do grande Espírito Invisível (NH 30 III, 2 e IV, 2) e o Apocalipse de Adão (NH V, 5), por exemplo. Outro aspecto central do texto diz respeito ao fato de ele se pronunciar contra a interpretação sacrificial da Eucaristia e contra o martírio. Este segundo aspecto será discutido posteriormente. Diversos aspectos do Evangelho de Judas poderiam ser discutidos em detalhe, portanto. Mas, como enunciado anteriormente, o elemento que será debatido minuciosamente neste artigo é a questão que diz respeito à compreensão do personagem de Judas, e Todos os trechos do Evangelho de Judas apresentados, a não ser quando indicado, foram traduzidos para o português diretamente do copta pelo autor deste artigo. 28 A evocação do contexto dos Evangelhos canônicos pode ainda ser um indício de que o texto foi composto em uma época em que os textos que viriam a compor oficialmente o Novo Testamento já possuiam certo status de Escritura. 29 Sobre o setianismo, cf. Hans-Martin Schenke. “Das sethianische System nach Nag-Hammadi-Handschriften”. In: Peter Nagel. Berliner Byzantinische Arbeinten. Berlim: Akademie, 1974, p. 165-173. 30 NH é a abreviação utilizada para se referir aos textos da Biblioteca de Nag Hammadi. 27

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que de certa forma foi o centro de grande parte das discussões até o momento presente: seria o Judas do Evangelho de Judas um herói ou um traidor? Pode-se considerar que o Evangelho de Judas é um texto que pertenceria a uma tradição que se convencionou chamar modernamente de “gnosticismo”.31 Como dito anteriormente, a teogonia e sistema mítico presentes no texto permite classificá-lo como escrito setiano.32 No entanto, até a conclusão da redação deste artigo, nenhum estudioso se propôs a comparar a figura de Judas Isacriotes apresentada no Evangelho de Judas com o único texto gnóstico conhecido que fala do personagem em questão. Trata-se do texto conhecido como o Conceito do nosso grande poder.33 Judas não é citado literalmente no texto, mas um trecho nos fala da traição de Jesus: Os arcontes despertaram sua fúria contra Ele ( Jesus). Eles quiseram entregá-lo àquele que reina sobre o Hades. Eis que um daqueles que O seguia, eles [os arcontes] conheceram-no34. Um fogo tomou conta35 de sua alma e ele traiu-O (NH VI, 4 p. 41, 15-22).36

Sobre o gnosticismo como construção moderna, cf. Michael A. Williams. Rethinking Gnosticism. An Argumento for Dismantling a Dubious Category. Princeton: Princeton University Press, 1996 e Karen L. King. What is Gnosticism. Cambridge: Havard University Press, 2003. 32 Schenke, “Das sethianische System”. 33 Um agradecimento especial ao professor Louis Painchaud por ter chamado a minha atenção em relação a esse aspecto. 34 Ou ainda, “reconheceram”. 35 Ou “apoderou-se”. 36 Tradução do autor do presente artigo, feita a partir do texto copta estabelecido em Frederik Wisse e Francis Williams. “The concept of our great power” in: Douglas Parrott (ed.). Nag Hammadi Codices V, 2-5 and VI with Papyrus Berolinensis 8502, 1 and 4. Leiden: Brill, 1979. 31

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O nome de Jesus não é citado literalmente, mas o contexto permite ter certeza de que se trata do Salvador.37 O trecho também não cita o nome de Judas Iscariotes, mas uma série de elementos permite que se identifique o traidor como sendo Judas. Primeiramente, o texto diz que o traidor foi um daqueles que seguia Jesus, ou seja, um dos apóstolos, e os Evangelhos canônicos sempre enfatizavam o fato de Judas Iscariotes ser um dos doze.38 Além do mais, a palavra utilizada para descrever a traição é a versão copta do verbo παραδιδ̀όναι, que é utilizado quase sempre na literatura canônica e apócrifa quando o assunto é Judas e a traição.39 Não se pode, de modo algum, ambicionar que o trecho em questão apresente uma imagem heróica ou positiva de Judas. O trecho começa falando dos arcontes, ou seja, os poderes maléficos do mundo material, os ajudantes do criador, o deus das Escrituras, um ser inferior ao Deus supremo e verdadeiro, o Pai de Jesus. Deve-se lembrar que na literatura gnóstica, os arcontes são sempre retratados como no mínimo ignorantes e, em geral, seres maléficos que tentam impedir a salvação dos escolhidos, barrando sua ascensão ao pleroma, morada do Deus verdadeiro, bom e supremo.40 O trecho continua, dizendo que os arcontes despertaram sua fúria contra Jesus, ou seja, contra o Salvador, aquele que veio anunciar a gnose, a salvação aos escolhidos. Os arcontes então, desejaram entregar-lhe àquele que reina no Hades, ou seja, Wisse e Williams, op.cit. Julio C. Dias Chaves. “A figura de Judas Iscariotes na Antiguidade: do Novo Testamento ao Evangelho de Judas”. Comunicação apresentada no VIII Seminário de Estudos de Apocalíptica”, UMESP. 2007. 39 Ver, por exemplo, Jo 6, 71 e 12, 4. 40 Considera-se geralmente que a característica essencial do “gnosticismo” é a diferenciação e oposição entre o Deus supremo e o criador; sendo o criador o deus das Escrituras, e o Deus supremo, o Pai ou engendrador de Jesus (cf. Hans Jonas. The Gnostic Religion. The Message of the Alien God and the Beginnings of Christianity. Boston: Beacon Press, 1958). 37 38

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desejaram matar Jesus; e o meio que eles encontraram para fazê-lo foi a possessão de Judas. Enquanto em Lucas, João e um bom número de apócrifos,41 Judas é possuído pelo Demônio, no Conceito do nosso Grande Poder, são os arcontes, os poderes maléficos do mundo material, que se apoderam de Judas para fazer com que ele traia o Senhor. Judas é, portanto, um instrumento para a realização do projeto dos arcontes. Assim sendo, não se pode considerar que nesse texto gnóstico em específico, que de certa forma representa 50% da literatura gnóstica conhecida sobre o tema, Judas seja um herói; muito pelo contrário, ele é o meio usado pelos arcontes para matar Jesus. É incrível constatar que com toda a discussão em torno do Evangelho de Judas e do “novo Judas”, ou “Judas gnóstico”, o hipotético amigo fiel e discípulo predileto de Jesus, não se tenha dado atenção ao Conceito do nosso Grande Poder, o único outro texto de fato gnóstico que fala do personagem em questão. Não se deve analisar, portanto, a significação de Judas no Evangelho de Judas de maneira isolada. Deve-se sim analisá-la levando-se em conta os demais textos cristãos primitivos, inclusive gnósticos, como o Conceito do nosso Grande Poder; textos que ajudam a delinear o contexto cultural que produziu o Evangelho de Judas. Assim sendo, não é absurdo pensar que viesse à mente de um cristão qualquer dos sécs. II ou III que se deparasse com o Evangelho de Judas a imagem do traidor já delineada pelos textos canônicos e diversos apócrifos, como o próprio Conceito do nosso Grande Poder. No entanto, para entender o papel específico de Judas no Evangelho de Judas, deve-se primeiramente dizer que o tema do “sacrifício” ocupa um lugar de destaque no texto. Em um dos trechos que trata da questão, Jesus diz a Judas: 41

Dias Chaves, “A figura de Judas Iscariotes na Antiguidade”.

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Em verdade eu te digo, Judas, aqueles que oferecem sacrifícios a Sakla[s] [4 linhas faltando] todas as coisas maléficas. Quanto a ti, tu vais superá-los a todos, pois o homem que me reveste, tu vais sacrificá-lo (56, 11-20).

Saklas é o nome dado ao criador, o deus das Escrituras. Não se pode esquecer o caráter gnóstico do nosso texto, o que nesse caso específico quer dizer que Saklas não é o Deus supremo, o Pai de Jesus, mas apenas uma divindade inferior, o criador do mundo material.42 Aparentemente, a primeira parte do trecho associa os sacrifícios oferecidos a Saklas a “todas as coisas maléficas”. O contexto geral do texto permite supor que o sacrifício em questão é a Eucaristia. Na verdade, o Evangelho de Judas opõe-se à interpretação sacrificial da Eucaristia, adotada pelo cristianismo proto-ortodoxo e que se perpetua até hoje no catolicismo. Para o Evangelho de Judas, a oração de ação de graças sobre o pão pronunciada pelos apóstolos (33, 26-34, 2) é na verdade uma oferenda a Saklas, não ao Deus supremo, seu pai. A segunda parte do trecho afirma que Judas vai superar a todos, pois vai sacrificar o homem que reveste Jesus.43 Ora, a frase anterior afirma que o sacrifício é algo maléfico. Assim sendo, Judas vai superar a todos em maledicência, pois vai realizar o pior Outros textos gnósticos chamam o criador de Saklas, ver, por exemplo, o Apocalipse de Adão (NH V 74, 3.7). Ver ainda o Livro sagrado do grande Espírito Invisível (NH III 56, 22-59, 9), Protenoia Trimorfe (NH XIII 39, 13-40, 29) e Hipóstase dos arcontes (NH II 95, 7). 43 A ideia de superar é expressa pelo verbo copta ⲣ ϩⲟⲩⲟ ⲉ – que em si não possui nenhuma conotação positiva ou negativa, devendo, portanto, ser interpretado de acordo com o contexto, que no caso fala de sacrifício. Judas superará a todos porque sacrificará (ⲕⲛⲁⲣ ⲑⲩⲥⲓⲁⲥⲉ) Jesus. No Evangelho de Judas, o vocabulário sacrificial (ⲑⲩⲥⲓⲁ, ⲑⲩⲥⲓⲁⲥⲉ, ⲑⲩⲥⲓⲁⲥⲧⲉⲣⲓⲟⲛ) sempre é empregado de modo pejorativo, o que mais uma vez demonstra que Judas vai superar a todos em maldade. Cf. Louis Painchaud. “À propos de la (re)découverte de l’Évangile de Judas”. In: Laval théologique et philosophique 62, 3. 2006. P.553-568. 42

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sacrifício de todos os tempos, o do próprio filho de Deus. Portanto, esse primeiro trecho analisado já demonstra que a figura de Judas no Evangelho de Judas propagada pela National Geographic44 não corresponde exatamente à realidade do texto, e nem à interpretação corrente da figura de Judas no cristianismo primitivo. O tema da interpretação sacrificial da Eucaristia no Evangelho de Judas está ligado ainda à questão do martírio. O Evangelho de Judas parece tomar parte num debate intrarreligioso cristão do século II sobre o martírio. Além de condenar a interpretação sacrificial da Eucaristia, ele condena também o martírio. Os apóstolos têm um sonho no qual veem sacerdotes que apresentam oferendas num altar,um rebanho para ser abatido e, logo após, homens que sacrificam seus próprios filhos e esposas e outros que se deitam com homens, que estão envolvidos em chacinas e ainda outros que comentem diversos pecados (37, 21-39-3). Todos os pecados citados, infanticídio, chacinas, falta de castidade e outros tantos, são elementos presentes em diversas polêmicas intrarreligiosas entre grupos cristãos antigos,45 elementos utilizados como acusações mútuas que visavam desacreditar a facção rival. Ao citar esses elementos ao lado da oferenda de crianças e mulheres em sacrifícios, o autor do Evangelho de Judas coloca o martírio no mesmo patamar dessas iniquidades, ou seja, o texto em questão condena a oferenda em sacrifício de crianças e mulheres. Condena, portanto, o martírio. A interpretação que Jesus dá ao sonho é elucidativa: Jesus disse-lhes: ‘Sois vós [os apóstolos] que apresentais as oferendas sobre o altar que vós vistes. Aquele é o deus que vós adorais [Saklas] e os doze homens que vós vistes sois vós “Judas é instruído por Jesus a ajudá-lo a sacrificar o corpo carnal (material) que o reveste e carrega o ser espiritual de Jesus. A morte de Jesus, com a assistência de Judas, é vista como a liberação do ser espiritual de Jesus”. 45 Cf. Louis Painchaud. “Identidade cristã e pureza ritual no Apocalipse de João de Patmos: o emprego da palavra koinon em Apocalipse 21, 27”. In: Estudos de religião XX, 31, 2006, p. 58-73. 44

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mesmos! E o rebanho que é trazido são as oferendas que vós vistes, que é a multitude que vós enganais (39, 18-28). ‘Cessai de sacrificar [estes animais] que [vós] [trouxestes]!’ (41, 1-3).

A interpretação de Jesus é clara: o “sacrifício do altar” – ou seja, a Eucaristia – é uma oferenda ao “deus que vós adorais”, ou seja, Saklas, o criador, já denominado como o deus dos apóstolos no início, na ação de graças sobre o pão (33, 27-34, 3; 34, 10). Os doze homens no altar são, evidentemente, os apóstolos, aqueles que oferecem o sacrifício no altar. Então o texto afirma que há uma multidão que é apresentada como oferenda e enganada. Segundo a interpretação sacrificial da Eucaristia, o próprio Jesus é apresentado como oferenda, e sua morte e sacrifício são a salvação. Os diversos martírios dos cristãos dos primeiros séculos, portanto, seriam sacrifícios apresentados a Deus, como o do próprio Jesus. Mas é também a essa interpretação que se opõe o Evangelho de Judas, quando este coloca na boca de Jesus as seguintes palavras: “Cessai de sacrificar [estes animais] que [vós] [trouxestes]! (41, 1-3)”, um mandato imperativo para que se parem com os martírios, pois os animais, os membros do rebanho, são exatamente os fiéis que, segundo o Evangelho de Judas, são enganados pelo cristianismo que prega a interpretação sacrificial da Eucaristia.46 Outro texto dos primórdios do cristianismo, também conservado em copta e que faz parte da Biblioteca de Nag Hammadi, adere à polêmica contra o martírio; trata-se do escrito conhecido como Testemunho verdadeiro (NH IX, 3). O texto diz que Vale lembrar, no entanto, que tal posição, contrária ao martírio, vai de encontro ao pregado e sustentato pelo cristianismo ortodoxo ao longo de sua história. A maioria dos autores cristãos, pelo menos aqueles cujas obras foram conservadas até hoje, via o martírio como algo positivo, o que demonstra que a posição defendida pelo Evangelho de Judas era relativamente marginal e peculiar.

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[Eles] não [sa]bem que se [destru]irão a si [próprios]. Se De[us] quisesse um sacrifício humano, ele estaria cheio de uma vã glória (32, 18-22). Eis o pensamento que eles colocam no fundo de seus corações: ‘se nos entregarmos à morte pelo Nome, nós seremos salvos’. Todavia, não é assim que ocorrerá na realidade [...] e eles não possuem o Verbo que faz vi[ver] (34, 2-6. 24-25).

Vê-se, portanto, que o Evangelho de Judas não era o único texto antigo a bradar contra o martírio dos cristãos, apesar de o número de textos que defendessem tal ideia ter sido provavelmente restrito. De qualquer maneira, percebe-se mais uma vez que para o Evangelho de Judas e outros textos cristãos antigos, como o Testemunho verdadeiro, os sacrifícios humanos não agradavam ao verdadeiro Deus, mas somente ao deus das escrituras. Assim sendo, tem-se mais uma vez um panorama que demonstra que a atitude de Judas, entregar Jesus à morte, não pode, em hipótese alguma, ser encarada como um ato heróico. Judas é culpado pelo maior sacrifício humano já visto, o do próprio Cristo. Mas o que teria levado Judas a entregar Jesus à morte? A resposta dos Evangelhos canônicos é conhecida: segundo Mateus, a avareza (Mt 26:14-16), mas segundo Lucas e João, foi o demônio que possuiu Judas fazendo-o trair o Senhor (Lc 22:1-6; Jo 13:21-30).47 Mas a resposta do Evangelho de Judas é diferente: a culpa pela traição de Judas é do acaso astrológico. Ao pedir ao Senhor que o aceite em meio aos membros da geração santa (45:11-12), Judas é informado que foi enganado 47

O tema da possessão de Judas pelo Diabo, já presente em Lc e Jo, vai se transformar num verdadeiro topos literário do cristianismo primitivo, aparecendo, por exemplo, em diversos apócrifos como o Livro da Ressurreição do apóstolo Bartolomeu, Atos de Tomé e Atos de Pedro. Epifânio, no Panarion 38.4-5 descreve Judas, assimilado a Satã, como pai dos judeus.

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por sua estrela: “Tua estrela enganou-te, ó Judas” (45:13-14).48 O fato de Judas ser o traidor é fruto de um acaso astrológico, sua estrela é exatamente a décima terceira, que, como será discutido em breve, opera um papel fundamental na cosmologia setiana. Antes da discussão da estrela de Judas propriamente dita, deve-se observar outra utilização do número treze no Evangelho de Judas: Judas disse: ‘Mestre, do mesmo modo que os escutaste a todos, escuta-me também, pois eu tive uma grande visão’. Tendo escutado [isso], Jesus riu e lhe disse: ‘Por que te esforças, oh décimo terceiro demônio (ⲡⲙ̅ⲉϩⲙⲛ̅ⲧⲓ̅ ⲅ ⲇⲁⲓⲙⲟⲛ)? Mas fale também, suportar-te-ei’ (44:15-33).

Na edição de 2006 da National Geographic, o trecho em questão foi traduzido da seguinte maneira: Judas said, ‘Master, as you have listened to all of them, now listen to me. For I have seen a great vision’. When Jesus heard this, he laughed and said to him, ‘ You thirteenth spirit, why do you try so hard? But speak up, and I shall bear with you’ (44:15-33; tradução de Meyer et alii).

Para justificar a tradução de daimon por “espírito”, Meyer et al. evocam o daimon de Sócrates, dizendo: Judas is thirteenth because he is the disciple excluded from the circle of the twelve, and he is a demon (or daemon) because his true nature is spiritual. Compare tales of Socrates and his daimōn or daimonion, in Plato, Symposium 202e-203a.49

Este trecho será discutido mais à frente em mais detalhes. Kasser et al., op.cit. p. 31, nota 74.

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No entanto, não parece ser esse o significado da palavra grega daimon no Evangelho de Judas; no contexto geral do cristianismo primitivo, a palavra em questão sempre possui um significado pejorativo, servindo para designar o demônio ou seus ajudantes e poderes maléficos.50 Além do mais, como discutido anteriormente, a figura de Judas passou a ser associada ao demônio logo nos primórdios do cristianismo. São muitos os textos que afirmam que ele foi possuído por Satã e então traiu o Senhor.51 Portanto, cabe fazer a pergunta: para um cristão dos primeiros séculos que se deparasse com o Evangelho de Judas, a palavra daimon associada a Judas evocaria Satã, sempre citado na literatura cristã, ou evocaria o “espírito” de Sócrates? A resposta parece clara. A tentativa de associar o daimon do Evangelho de Judas ao “espírito” de Sócrates para justificar a pretensa heroicidade de Judas não é convincente. Judas é claramente associado aos poderes maléficos no Evangelho de Judas. Outro trecho indica que Judas não fará parte da geração santa. Após ter um sonho, Judas indaga Jesus sobre seu significado, aprendendo que se trata de uma visão da geração santa, representada no sonho por uma casa. A resposta de Jesus é clara; após o pedido de Judas, que quer entrar na casa junto com os demais que lá estão, o Senhor diz que Judas foi enganado por sua estrela e que nenhuma descendência humana pode fazer parte da geração em questão: (É Judas quem fala) ‘Mestre, aceita-me também no interior (juntamente) com estes homens’. Jesus respondeu e disse: ‘Tua estrela enganou-te, ó Judas. Nenhuma descendência

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Georg W. H. Lampe. A Patristic Greek Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1961. Cf. Dias Chaves, “A figura de Judas Iscariotes na Antiguidade”.

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humana merece entrar nesta casa que tu viste. Pois este lugar é reservado aos santos’ (45:11-19).

Seria surpreendente que o modelo de discípulo de Cristo, imagem de Judas pretendida pela interpretação da National Geographic, não fosse digno de fazer parte da geração santa, mas é isso que o Jesus do Evangelho de Judas diz sobre Judas, que ele não fará parte da geração santa. Mais um sinal de que o Judas do Evangelho de Judas não é necessariamente um herói ou discípulo modelo de Cristo. No trecho em questão, Jesus ainda afirma que Judas foi enganado por sua estrela, tendo sido vítima do acaso astrológico. Tal afirmação indica que Judas é um ser que pertence ao mundo inferior, alguém que está submetido à influência das estrelas. Painchaud chama a atenção para a importância da palavra “estrela” e suas variáveis no texto. Sobre as estrelas diz-se que elas cumprem todas as coisas (40:17; 54:17), que elas estão associadas ao erro (45, 13; 46, 1-2; 55, 16-17) e à realeza (37, 5) e, ainda, que cada apóstolo possui sua própria estrela (42, 8), inclusive Judas.52 Ora, como citado anteriormente, a estrela de Judas é a décima terceira, o que se evidencia pelo fato dele ser chamado décimo terceiro demônio, mas ainda pelo fato de ele ser substituído no círculo dos doze apóstolos, tornando-se o décimo terceiro (46, 14-47, 4). No sistema mítico setiano, o mundo inferior contém treze esferas (aeons); no Livro sagrado do grande Espírito Invisível (NH III 63, 18; 64, 4; NH IV 75, 6.18) e em Zostrianos (4, 25-27) os treze aeons constituem o universo da deficiência. O décimo terceiro aeon é ocupado pelo arconte mor, Saklas, aquele que criou e governa o mundo material. No Apocalipse de Adão, o décimo terceiro reino é o reino dos cristãos psíquicos, aqueles que conhecem parcialmente Painchaud, A propos de la (re) découverte de L’ Evangile de Judas, 564. Evangile de Judas, p. 559-560. Sobre os apóstolos e o zodíaco cf. Jean Daniélou. “Les douze apôtres et le zodiaque”. In: Vigiliae Christianae 13, 1959.

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a verdade, em oposição aos cristãos pneumáticos (espirituais), ou, poder-se-ia dizer, “gnósticos”, que estariam fora dos 13 reinos, fazendo parte da “geração sem rei”, a geração superior à décima terceira.53 Portanto, o fato de Judas ser identificado com o décimo terceiro coloca-o abaixo da geração sem rei, ou seja, a geração santa. Ele estará acima de todas as outras gerações materiais, mas não chegará a fazer parte da geração santa. Deve-se ainda destacar o fato de que, como dito anteriormente, o décimo terceiro aeon constitui a geração de Saklas, o criador e governador do mundo material. O fato de Judas ser o décimo terceiro o identifica então, com o arconte mor, Saklas, ideia confirmada por Jesus em 46:18-23: “Jesus respondeu e disse: ‘Tu te tornarás o décimo terceiro e tu serás amaldiçoado pelas outras gerações e tu vais governá-las”. A identificação de Judas com Saklas, a divindade inferior, é mais uma evidência que demonstra que o personagem em questão não é exatamente o discípulo modelo de Cristo. A afirmação de Jesus no trecho supracitado é, na verdade, a resposta a um questionamento de Judas. Ao saber que não fará parte da geração santa, o apóstolo pergunta então qual a vantagem que terá em trair o Senhor: “Tendo escutado isso, Judas disse-lhe: ‘Que vantagem eu recebi por ter-me separado desta geração?’ (46:14-16)”. A resposta de Jesus (46:18-23), portanto, além de decretar que Judas será o décimo terceiro, estabelece uma espécie de prêmio de consolação: Judas trairá o Senhor e não fará parte da geração santa, mas ao menos será o governador das outras gerações. As gerações que o amaldiçoarão são precisamente as outras doze gerações, representadas, obviamente, pelos doze apóstolos e pela Grande Igreja, a Igreja da linhagem apostólica. Segundo o Evangelho de 53

Apocalipse de Adão (NH V 82, 19 e seguintes). Cf. Françoise Morard. L’Apocalypse d’Adam. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 1985. Trata-se de outro texto gnóstico, possivelmente setiano.

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Judas, a Grande Igreja que amaldiçoa Judas como traidor, será governada por ele próprio. Judas é o arconte do mundo material dominado pelo cristianismo apostólico. O trecho em questão, no entanto, é um daqueles que se encontra no centro da polêmica sobre a significação de Judas no Evangelho de Judas. O trecho completo diz o seguinte: Tendo escutado isso, Judas disse-lhe: ‘Que vantagem eu recebi por ter-me separado desta geração?’ Jesus respondeu e disse: ‘Tu te tornarás o décimo terceiro e tu serás amaldiçoado pelas outras gerações e tu vais governá-las’.

A tradução da National Geographic diz o seguinte: “What is the advantage that I have received? For You have set me apart for that (Holy) Generation (46, 16-18; tradução de Meyer et alii)”. Há uma diferença entre a tradução da Mayer & Cia e a sugerida por este artigo. A diferença de tradução é fruto de um problema do texto copta, muito provavelmente corrompido. De qualquer maneira, o significado de ⲡⲱⲣϫ ⲉ- é precisamente “separar de” e não “separar para”.54 A tradução proposta por Meyer et alii na edição de 2006 está, portanto, equivocada. É interessante notar que na edição crítica, apesar de a tradução apresentada na edição de 2006 do trecho em questão ter sido conservada, há uma nota que explica que existe a possibilidade de se traduzir “from that generation” ao invés de “for that generation”.55 Mais interessante ainda é o fato de a tradução francesa de Kasser, na mesma edição crítica, traduzir o trecho corretamente, sem ao menos considerar a possibilidade de que Judas foi separado “para a geração” santa e não “da geração” santa.56 Cf. Walter E. Crum. A Coptic Dictionary. Oxford: Claredon Press, 1939. P.271a. Kasser et al., op.cit. p. 211. 56 “Quel est l’avantage que j’ai reçu, (dans le fait) que tu m’aies séparé de cette (présente) génération-là?” (cf. Kasser et al., op.cit. p. 245). 54 55

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O texto continua com a resposta de Jesus a pergunta de Judas: Jesus respondeu e disse: ‘Tu te tornarás o décimo terceiro e tu serás amaldiçoado pelas outras gerações e tu vais governá-las. Nos últimos dias elas te e tu não irás para o alto rumo à Geração Santa’ (46:17-47:4).

A última parte do trecho foi traduzida da seguinte maneira por Meyer et alii na edição de 2006: “In the last days they will curse your ascent to the holy [generation]”(46:24; tradução de Meyer et al.). Como é de se supor, devido novamente à diferença entre a tradução proposta pelo presente artigo e a de Meyer et alii, o trecho em questão também é problemático do ponto de vista linguístico. Há provavelmente uma outra corrupção. De qualquer modo, fica claro que um verbo na 2ª pessoa singular masculina do futuro negativo (ⲛⲉⲕ- 46, 25) precede a frase “para o alto rumo à geração santa”.57 A tradução correta é, portanto, a proposta por este artigo, o que pode ainda ser facilmente evidenciado pelo fato de a edição crítica do Codex Tchacos não ter mantido a primeira tradução, publicada na edição de 2006. Lê-se, portanto, na edição crítica que “in the last days they to you, and (that?) you will not ascend on high to the holy [generation] (46:24-47:1).”58 Judas, portanto, não fará parte da geração santa, algo que não condiz com a pretensa posição de “discípulo modelo” de Cristo. O fim do texto reserva um outro trecho potencialmente polêmico em que se lê: ( Jesus): ‘Eleve teus olhos e veja a nuvem e a luz que vem dela e as estrelas que a cercam. E a estrela que é ascendente é a sua estrela’. Então Judas elevou os olhos, ele viu a nuvem Para mais detalhes, cf. Painchaud, “À propos de la (re)découverte de l’Évangile de Judas”.

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Kasser et al., op.cit. p. 211-213.

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e a luz e ele entrou nela. Aqueles que permaneciam no chão escutaram uma voz vinda da nuvem que dizia: [faltam oito linhas] (57:16-26).

A leitura rápida do trecho deixa a impressão de que Judas entrou na nuvem luminosa e subiu em direção aos céus;59 o texto apresenta três verbos seguidos (elevou, viu e entrou), sendo que o sujeito dos dois últimos é a terceira pessoa do pronome pessoal do caso reto masculino (representado pela letra copta ϥ). Seria de se eperar, portanto, que o pronome em questão substituísse “Judas”, o sujeito do primeiro verbo. Assim sendo, teria sido efetivamente Judas quem entrou na nuvem luminosa e subiu em direção aos céus. No entanto, a análise do conjunto do Codex Tchacos, onde se pode encontrar diversos exemplos desse tipo de construção sintáxica, apresenta outra possibilidade, segundo a qual Jesus entraria na nuvem.60 O Codex Tchacos apresenta diversas sequências de três verbos no pretérito perfeito em que há apenas um substantivo próprio como sujeito seguido de outros dois sujeitos pronominais. Em alguns desses casos, os sujeitos pronominais não se referem ao substantivo próprio que serve como sujeito do primeiro verbo. É o caso da passagem do (Primeiro apocalipse de) Tiago que conta que Tiago estava num monte rezando antes da segunda aparição de Jesus; lê-se no trecho que “Jesus apareceu-lhe e ele parou de rezar, ele beijou-o” (17:20-22). O contexto, segundo o qual era Tiago quem rezava, deixa claro que não foi Jesus quem parou de rezar e deu um beijo, mas sim Tiago. O mesmo tipo de construção é usado A nuvem é o meio de ascensão aos céus em outros textos setianos, como Zostrianos (NH VIII, 2, 23.31). No Evangelho de Judas, há ainda a nuvem da qual sairá o autoengrendrado (47:5-20) e a nuvem da qual sairão quatro anjos para ajudar o autoengendrado (47:21-24). 60 Essa sugestão foi dada por Arai e Robinson. Para uma explicação detalhada ver Painchaud, “A propos de la (re) découverte de L’ Evangile de Judas, 564”. Evangile de Judas. 59

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no trecho em questão do Evangelho de Judas e, se considarada essa possibilidade, é Jesus quem entra na nuvem, e não Judas. Infelizmente, a sequência do trecho, que poderia acabar com todas as dúvidas em relação à identidade do passageiro da nuvem, perdeu-se nas lacunas. Um último ponto deve ser analisado em relação à interpretação do texto e à significação do personagem de Judas. Painchaud chama a atenção em um de seus artigos sobre a possível identificação do apóstolo Judas com o patriarca Judá do Gênesis.61 Em português, os personagens em questão têm nomes diferentes, Judas e Judá, mas tal fato se deve a uma escolha de tradução, pois, na verdade, ambos possuem o mesmo nome na LXX: Ιούδᾳς. Portanto, não seria absurdo imaginar que, para um cristão qualquer da antiguidade, habituado com o texto da LXX, pudesse haver uma espécie de identificação entre os dois personagens. Infelizmente, a pesquisa sobre o Novo Testamento e o cristianismo primitivo nunca deu atenção suficiente a esse fato. Um dos trechos do Evangelho de Judas discutidos nesse artigo torna ainda mais plausível tal identificação. Como vimos, Judas pergunta a Jesus qual seria a vantagem que ele receberia por ter-se separado dessa geração (46:16-18). No Gênesis, quando os filhos de Jacó tramam a morte de José, Judá faz uma afirmação semelhante: “Então disse Judá a seus irmãos: ‘De que nos aproveita matar nosso irmão e cobrir seu sangue?” (Gn 37:26). À luz desse semiparalelo textual entre Evangelho de Judas e o Gênesis, parece verossímil acreditar numa identificação entre os personagens em questão. Painchaud, com a ajuda dos estudantes de doutorado da Université Laval, Serge Cazelais e Alin Suciu, tem se dedicado à pesquisa dessa identificação, que supera o 61

Painchaud. “À propos de la (re)découverte de l’Évangile de Judas”.

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citado semiparalelo entre o Gênesis e o Evangelho de Judas. Judá é o patriarca do povo judeu por excelência e Judas é muitas vezes tido por autores cristãos como o pai dos judeus.62 Além do mais, ambos são descritos como avaros, luxuriosos e iníquos em muitos escritos antigos: Judas pela literatura cristã, Judá pela literatura pseudo-epígrafa judaica.63 A análise de todos esses trechos, portanto, leva a uma única conclusão possível: o Judas do Evangelho de Judas não pode, em hipótese alguma, ser considerado um herói, o modelo do perfeito “gnóstico”, ou ainda, o discípulo predileto do Cristo. É verdade que Judas é o único capaz de permanecer na presença do Senhor (35:7-9), e ele conhece ainda a origem de Jesus (35:17-20), que lhe revela mistérios que permanecem escondidos dos demais apóstolos (35:23-25). No entanto, todos esses fatores parecem apenas basear a posição que o texto indica que Judas ocupará, a de arconte-mor, o governador das gerações materiais, fruto da criação de Saklas. Ele consegue permanecer na presença de Jesus, mas não consegue olhar diretamente nos seus olhos (35:12-14). Jesus revela-lhe mistérios sobre o Reino, mas diz-lhe também que o faz não porque ele chegará ao Reino em questão, mas para que ele se lamente muito por não poder fazer parte dele (35:25-27).64 Como Epifânio na passagem do Panarion supracitada. A descrição demoníaca e avara de Judas no Novo Testamento se expande por diversos apócrifos, enquanto a descrição de Judá é feita nesses termos no Testamento dos 12 Patriarcas. 64 A tradução em inglês do trecho em questão publicada em 2006 pela National Geographic dizia: I shall tell you the mysteries of the Kingdom. It is possible for you to reach it, but you will grieve a great deal (35, 24-27). A tradução na edição crítica, no entanto, foi modificada para: I shall tell you the mysteries of the kingdom, not so that you go there, but you will grieve a great deal. A primeira tradução proposta é fruto de uma reconstituição equivocada dos traços de letras restantes no início da linha 26. Elas tinham sido restauradas como ⲟⲩⲛ ⳓⲟⲙ, quando na verdade a restauração mais plausível seria ⲟⲩⲛ ϩⲓⲛⲁ. A nova restauração, portanto, foi adotada na edição crítica (Kasser et al., op.cit. p. 189) e confirma, mais uma vez, que Judas não fará parte da geração santa. 62 63

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Após a análise demonstrada anteriormente, é inevitável que venha à mente uma pergunta: Por que então o texto foi interpretado pelos estudiosos da National Geographic de uma maneira tão equivocada? Os motivos são diversos. Primeiramente, deve-se citar um trecho da obra de Irineu de Lyon, um dos primeiros heresiólogos conhecidos. Irineu fala da existência de um “Evangelho de Judas”: Dizem que Judas, o traidor, sabia exatamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres. E apresentam, à confirmação, um escrito produzido por eles, que intitulam Evangelho de Judas (Irineu de Lyon. Contra as heresias 1.31).

Fica claro que o bispo de Lyon não conhecia o texto que ele diz existir. Irineu é sempre muito detalhista nas descrições e refutações das heresias que apresenta. Se ele não falou nada a respeito do conteúdo do texto em questão é porque não o conhecia, apenas sabia ou tinha ouvido falar de sua existência. Outro heresiólogo, Epifânio de Salamina, que escreveu sua principal obra, Panárion, num período posterior a Irineu, século IV, fala de um suposto “Evangelho de Judas”.65 Epifânio, muito provavelmente, não conhecia tal Evangelho. Ele apenas apropria-se do relato de Irineu, falando igualmente da existência de uma seita de “caininitas” que louvariam, dentre outros, Caim e que considerariam ainda que Judas seria um sábio, atribuindo-lhe um Evangelho. As descrições das heresias feitas por Epifânio não podem ser consideradas inteiramente

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Panárion, 3.38: 1.1; 5.

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exatas, pois o autor utiliza-se de diversas fontes secundárias, como o próprio Irineu.66 Pode-se dizer,portanto,que o personagem de Judas foi interpretado, em grande medida, à luz do Judas dos supostos “Evangelhos de Judas” mencionados por Irineu e Epifânio. Os heresiólogos, mesmo sem conhecimento aparente do suposto texto, supuseram que se trataria de um escrito que apresenta Judas como um herói, o detentor do conhecimento que permite a salvação. Como os estudiosos engajados pela National Geographic consideraram automaticamente que o texto do Codex Tchacos era de fato o “Evangelho de Judas” mencionado por Irineu e Epifânio, houve uma espécie de predisposição, ou porque não dizer preconceito, em considerar que o Judas do Evangelho de Judas era um herói. Portanto, antes mesmo da leitura do texto, o papel de Judas já estava, em grande medida, definido pela interpretação de Irineu e Epifânio. Deve-se dizer, no entanto, que os “Evangelhos de Judas” citados por Irineu e Epifânio não devem ser necessariamente identificados com o Evangelho de Judas do Codex Tchacos. O fato de Irineu e Epifânio não citarem textualmente o escrito e não falarem nada de exato sobre seu conteúdo já seria suficiente para duvidar de tal identificação. Além do mais, a antiguidade fornece diversos exemplos de textos diferentes que circulavam com o mesmo título. O exemplo mais próximo encontrase no códex V de Nag Hammadi, em que dois textos completamente diferentes, compilados um após o outro no códex em questão, possuem exatamente o mesmo título, Apocalipse de Tiago.67 Além do mais, o autor, no início de sua obra, o Panárion (1.1) evoca os versículos 8 e 9 do capítulo 6 do Cântico dos Cânticos para justificar o número de heresias apresentadas por ele. Assim como o esposo do Cântico dos Cânticos tem oitenta concubinas mas uma só esposa, o Cristo teria oitenta heresias, mas uma só Igreja. O número de heresias proposto é considerável e há motivos para se crer que Epifânio tenha inventado algumas delas. 67 Os estudiosos chamam os textos em questão de Primeiro Apocalipse de Tiago e Segundo Apocalipse de Tiago, de acordo com a ordem que eles aparecem no manuscrito, mas tal 66

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Outro motivo que pode ter influenciado tal interpretação diz respeito ao que se espera do personagem principal, ou aquele a quem o texto é atribuído. Não existem muitos apócrifos antigos cujo personagem principal é um vilão. Aliás, pode-se arriscar a dizer que se um texto com tais características existiu, ele não sobreviveu até os dias de hoje. Claro, a exceção apareceu: o Evangelho de Judas. Assim sendo, não se podia esperar outra coisa de um texto cujo título é Evangelho de Judas. Poder-se-ia argumentar ainda que o fato de o título no manuscrito ser Evangelho de Judas e não Evangelho segundo Judas68 significaria que se trata da Boa Nova à respeito de Judas e não da Boa Nova segundo Judas. Dois elementos, no entanto, se opõem a essa teoria. Primeiramente, não se pode saber ao certo se o título no manuscrito copta corresponde ao título do texto original. O texto do Codex Tchacos é uma tradução ou versão copta que pode estar deveras distante do original, tanto em termos temporais quanto em termos de conteúdo. Alguns estudiosos fizeram algumas reflexões sobre a transmissão dos textos de Nag Hammadi,69 que grosso modo podem se aplicar ao Codex Tchacos. A falta de pureza dialetal do códex poderia indicar uma complexa cadeia de transmissão de seus textos, e não se pode saber ao certo até que ponto os títulos originais foram conservados no decorrer de tal processo. Ao menos um texto do Codex Tchacos, o (Primeiro apocalipse de) Tiago indica que os títulos dos textos podem ter mudado consideravelmente no contexto copta, visto que a versão do códex V de Nag Hammadi do texto em questão possui um título nomenclatura é arbitrária e serve apenas para diferenciar os textos, visto que ambos possuem exatamente o mesmo título no manuscrito. 68 Em copta ⲡⲉⲩⲁⲛⲅ̣ⲅ̣ⲉⲗⲓⲟⲛ ⲛ̅ⲓ̣̈ⲟⲩⲇⲁⲥ, e no segundo caso, algo como ⲕⲁⲧⲁ ⲓ̈ⲟⲩⲇⲁⲥ ⲡⲉⲩⲁⲅⲅⲉⲗⲓⲟⲛ. 69 Ver em especial Wolf-Peter Funk. “The Linguistic Aspect of Classifying the Nag Hammadi Codices”. In: Louis Painchaud e Anne Pasquier. Les textes de Nag Hammadi et le problème de leur classification. Québec / Louvain / Paris: Les Presses de l’Université Laval, Peeters, 1995 e Stephen Emmel. “Religious Tradition, Textual Transmission, and the Nag Hammadi Codices”. In: John D. Turner e Anne McGuire. The Nag Hammadi Library after Fifty Years. Leiden / New York: Brill, 1997.

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diferente.70 Além do mais, outros textos coptas apresentam tal variação do título, que no caso do Evangelho de Judas é meramente hipotética, sem necessariamente mudar o significado. O Apócrifo de João, por exemplo, possui várias versões e dois tipos de títulos: Apócrifo de João71 e Apócrifo segundo João.72 Os próprios Apocalipses de Tiago não apresentam a palavra grega kata nos títulos, o que não significa de modo algum, que se trata de uma revelação a respeito de Tiago, em vez de uma revelação feita a Tiago ou uma revelação de Tiago. Ainda no tocante à interpretação proposta pelos estudiosos engajados pela National Geographic, não se pode esquecer de citar que o personagem de Judas Iscariotes tem, nas últimas décadas, passado por um processo de reabilitação. Foi principalmente após a Segunda Grande Guerra e o terror do holocausto que obras de ficção e até exegetas procuraram traçar um novo perfil daquele que, além de ser identificado como estereótipo do judeu, sempre foi considerado na cultura ocidental o maior traidor da história. Um incompreendido, o bode expiatório ou, de um ponto de vista teológico, o realizador do ato sem o qual não haveria Paixão e Redenção: essas são algumas das representações contemporâneas de Judas. Assim sendo, um texto que apresenta um Judas amigo e discípulo predileto de Jesus, ou um Judas que só entregou o Senhor para poder colaborar com a Redenção encaixar-se-ia bem nesse contexto de reabilitação do personagem em questão.73 Julio C. Dias Chaves. “L’emploi du mot apocalypse et l’unité du Codex V de Nag Hammadi”. Comunicação apresentada no “Colloque étudiant – L’antiquité dans tous ses états”. Québec: Université Laval, 30 de março de 2007. 71 NH Codex III e BG 8502. 72 NH Codex II. 73 Em meio às diversas obras de ficção e exegeses modernas que buscam reabilitar Judas, destaca-se uma canção de Raul Seixas chamada Judas, do álbum Mata Virgem, composta por ele mesmo e por Paulo Coelho. Ela foi lançada em 1978, o provável ano da descoberta do Codex Tchacos. É óbvio que tanto Raul Seixas quanto Paulo Coelho não sabiam da descoberta e nem da existência do Codex Tchacos, mas a coincidência não deixa de ser interessante, mesmo porque a canção passa exatamente a ideia de Judas que 70

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E por último, deve-se frisar o fato de os estudiosos contratados pela National Geographic terem sido obrigados a trabalhar em segredo, não podendo manter qualquer tipo de comunicação sobre o texto com colegas e outros especialistas que poderiam ajudar na reconstituição, tradução e interpretação do texto. Além do mais, devido ao apelo midiático que uma publicação desse tipo pode causar na época da Páscoa, o trabalho teve de ser feito às pressas, para estar concluído, ou pelo menos “publicável”, até a época da festa em questão. Portanto, o trabalho em segredo e a pressa também podem ter contribuído com a interpretação equivocada do texto. Como mencionado anteriormente, a edição crítica do Codex Tchacos, lançada em 2007, foi preparada levando em conta a opinião e a ajuda de outros estudiosos, o que acabou por mudar a reconstituição de passagens do texto copta e consequentemente a tradução de tais trechos. No entanto, alguns estudiosos, como o próprio M. Meyer, mesmo após todas as discussões e argumentos de diversos estudiosos, a maioria deles exposto no presente artigo, continuam a defender a ideia de uma leitura do Evangelho de Judas que apresenta um Judas herói. A vulgarização desse tipo de conhecimento dito “científico” chama a atenção do grande público e pode-se dizer, inclusive, que muito provavelmente, a interpretação vinculada pela National Geographic já está “canonizada” no imaginário do grande público, a ponto de se taxar a interpretação “revisionista” de falsa e encorajada pelo Vaticano que estaria tentando esconder a verdade sobre Judas.74 Tem-se a impressão que muitas vezes o trabalho científico sério e bem fundado não convence o grande público simplesmente porque vai de encontro ao que é polêmico e fantástico.

se tentou passar na interpretação do Evangelho de Judas feita pela National Geographic, a de um Judas herói, ou nas palavras da própria canção, “amigo fiel de Jesus”.

Disponível em: . Acesso em: 4 abr. 2008.

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A importância da teoria das sete idades do mundo no pensamento de Santo Agostinho sobre o sentido da história: os casos das obras Sobre as pessoas que devem ser catequizadas e Cidade de Deus1 Fabrício Santos Barbacena

Introdução Santo Agostinho (354-430)2 escreveu diversas obras ao longo de sua vida, dentre as quais tem lugar de destaque a Cidade de 1

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Historiador pela Universidade de Brasília (UnB) e mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição; pesquisador do Projeto de Estudos Judaico-Helenísticos – PEJ. Foram utilizadas as seguintes edições das obras de Agostinho: A Cidade de Deus (Contra os pagãos). Petrópolis / São Paulo: Vozes / Federação Agostiniana Brasileira, 2001; A instrução dos Catecúmenos – teoria e prática da catequese. Petrópolis: Vozes, 1984 e Del Génesis contra los maniqueos. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1957. Para os textos latinos das obras anteriormente citadas e das outras, consultou-se a edição digital que contém a obra de Jacques-Paul Migne (Patrologia Latina database. Haeley-Chadwick, 1993-1996). Serão usadas neste trabalho as seguintes siglas para simplificar a citação de obras de Agostinho referidas com mais frequência: CD (“A Cidade de Deus”); PCAT (“A instrução dos catecúmenos”, também chamada aqui de “Sobre as pessoas que devem ser catequizadas” – De catechizandis rudibus) e GCM (“Sobre o Gênesis contra os maniqueus”). Por outro lado, nas traduções aqui oferecidas, as chaves – {} – aparecerão para indicar trechos que são comentários ao texto principal que

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Deus, composta em 22 livros. Nessa obra, gerações de leitores encontraram um compêndio da interpretação agostiniana sobre o sentido da história, na qual os eventos da História da Salvação, desde os tempos de Adão até o Juízo Final, são interpretados a partir do referencial das “duas cidades”, a de Deus, cujos cidadãos “são todos os homens santificados no passado, no presente e no futuro e todos os espíritos santificados – mesmo os que, nas regiões excelsas dos Céus, obedecem a Deus com pia devoção {ou seja, refere-se aos anjos bons}”,3 e a cidade terrena, a “cidade e aliança dos iníquos”,4 que cultiva “o amor próprio, até o desprezo de Deus”,5 composta pelos homens pecadores e pelos demônios. Com efeito, a importância da obra citada para a formação da consciência histórica ocidental, especialmente durante o Medievo, é inegável,6 e tal dado deve ser levado em consideração quando se propuser a análise dessa obra.



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está sendo citado. Quanto às traduções citadas no decorrer do texto, utilizou-se, sem modificações, aquelas presentes na obra A intrução dos catecúmenos, no que se refere aos trechos do PCAT. Para a CD e o GCM, foram feitas traduções livres auxiliadas, em grande parte, pelas traduções correspondentes já citadas de cada uma dessas obras. Nos demais escritos de Agostinho, a tradução é livre e foi feita a partir da edição de Migne dos padres latinos (a qual é abreviada aqui como PL – Patrologia Latina). Cabe também lembrar que o presente trabalho reúne, com acréscimos, as reflexões apresentadas nas comunicações “A importância da teoria das sete idades do mundo na prática catequética de Santo Agostinho” (II Semana de Teologia da Faculdade Evangélica de Brasília, 16/07/2007) e “A exposição da teoria das sete idades do mundo na Cidade de Deus, de Santo Agostinho: origem, desenvolvimento e fim das duas Cidades dentro do ‘quadro temporal’ das sete eras” (VII Congresso da SBEC - “Ócio e trabalho no mundo antigo”. Araraquara: UNESP, 3-6 de setembro 2007. PCAT 20.36 (PL 40, 336): Cujus { pronome relativo que se refere aqui a Jerusalém, representação da cidade de Deus} cives sunt omnes sanctificati homines qui fuerunt, et qui sunt, et qui futuri sunt; et omnes sanctificati spiritus, etiam quicumque in excelsis coelorum partibus pia devotione obtemperant Deo, nec imitantur impiam diaboli superbiam et angelorum ejus. PCAT 21.37 (PL 40, 337): ...civitatem societatemque iniquorum.... CD 14.28 (PL 41, 436): ...terrenam scilicet amor sui usque ad contemptum Dei... Como exemplos de autores que argumentam nessa direção, cf. Johannes Van Oort. Jerusalem and Babylon. A study into Augustine’s City of God and the sources of his doctrine of the two cities. Leiden: E. J. Brill, 1991. P.4; Gerard O’Daly. Augustine’s City of God – A reader’s guide. Oxford: Clarendon Press, 1999. P.V; Karl Löwith. O sentido da história. Lisboa:

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Mas a teoria das duas cidades não foi a única a estruturar a interpretação de Agostinho sobre a história, e nem mesmo foi a primeira. Em 388, cerca de dois anos após a sua conversão definitiva para o catolicismo7 (ocorrida em meados de agosto de 386), ele começou a escrever a obra Sobre o Gênesis contra os maniqueus, na qual se encontra a que pode ser considerada sua primeira “teologia da história”, ou seja, sua primeira explicação religiosa sistemática do sentido do processo histórico. Lá, depois de fazer comentários ao relato da Criação, contido em Gn 1, ele compara cada um dos dias da semana criadora a uma idade ou era da história.8 Afinal, Agostinho argumentava que o descanso de Deus no sábado queria significar não que Deus estivesse cansado pelo trabalho que realizara,9 mas sim se apresentava como uma metáfora para a recompensa do descanso final que receberemos nele, se fizermos boas obras,10 numa sétima era de visão beatífica Edições 70, 1990, p.161-173 e Paul Archambault. “The ages of man and the ages of the world – a study of two traditions”. In: Revue des Études Augustiniennes 12, 1966, p. 205-206, dentre outros. 7 Para dois relatos extremamente bem-informados acerca da conversão de Agostinho e sua vida anterior a esta data, cf. Peter Brown. Santo Agostinho – Uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005 e Serge Lancel. St Augustine. London: SCM Press, 2002. O livro de John J. O’Meara. The Young Augustine – The Growth of St. Augustine’s Mind up to his Conversion. London / New York / Toronto: Longmans Green and Co, 1954, mostra-se como outro estudo muito esclarecedor sobre os anos pré-conversão da vida de Agostinho. 8 Cf. GCM 1.23-24 (PL 34, 190-193). 9 Essa era uma das muitas acusações feitas pelos maniqueus ao relato do Gênesis sobre a origem do mundo (GCM 1.22.33 – PL 34, 189): “{os maniqueus} dizem, pois: ‘que necessidade tinha Deus de descansar? Por acaso ele tinha se cansado e fatigado por causa dos trabalhos realizados nos seis dias?’” (Dicunt enim: Quid opus erat ut Deus requiesceret? an forte operibus sex dierum fatigatus et lassatus erat?). 10 GCM 1.22.34 (PL 34, 190): “Mas também foi dito que Deus descansou de todas as suas obras, as quais ele fez muito boas, porque nele descansaremos de todas as nossas obras, se fizermos boas obras. Porque também as nossas próprias boas obras devem ser atribuídas a ele, que é quem chama, ordena, mostra o caminho da verdade, convida para que queiramos e confere as forças para cumprir aquilo que nos manda” (Sed et Deus requievisse dictus est ab omnibus operibus suis, quae fecit bona valde, quia in illo requiescemus ab omnibus operibus nostris, si opera bona fecerimus: quia et ipsa bona

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de Cristo. Tal era, sua opinião à época, “não terá tarde”,11 ou seja, será eterna, e virá depois de passadas seis eras históricas aqui neste mundo.12 Como ele sintetizou na mesma obra: Com efeito, vejo, por todo o texto das Escrituras divinas, certas seis idades {sex quasdam aetates} cheias de trabalhos e fadigas {operosas}, que são como que definidas por seus limites fixos, de tal modo que numa sétima espera-se o descanso; e que as mesmas seis idades têm semelhança com estes seis dias {refere-se aqui aos seis dias do relato da Criação do Gênesis}, nos quais foram feitas aquelas coisas que a Escritura relembra que Deus fez.13

opera nostra illi tribuenda sunt qui vocat, qui praecipit, qui viam veritatis ostendit, qui ut et velimus invitat, et vires implendi ea quae imperat, subministrat). 11 GCM 1.23.41 (PL 34, 193): ...vesperam non habet... 12 Contudo, durante o curto período de adesão de Agostinho a ideias de ordem milenarista (c.390-c398), o esquema sofreu uma variação importante, com a sétima idade representando a instauração do reino terreno de Cristo com os justos sobre a terra, por um lado, e o acréscimo da ideia do “oitavo dia”, que designava a eternidade, por outro. Portanto, na fase milenarista de Agostinho, a beatitude no céu é considerada uma etapa distinta do “sétimo dia” do reino messiânico, uma ideia bem diferente da apresentada em GCM 1.23.41, obra em que o sétimo dia é tido como eterno e, por conseguinte, representa um testemunho anterior ao início de sua fase milenarista. Para maiores informações sobre o tema da variação quiliasta do esquema das sete idades agostiniano, cf., em especial, os sermões 259 e 260C (Mai 94) de Agostinho, os dois documentos em que ele desenvolve com maior profundidade as suas opiniões sobre sua crença temporária no milênio e sobre a história em perspectiva milenarista. 13 GCM 1.23.35 (PL 34, 190): “Video enim per totum textum divinarum Scripturarum sex quasdam aetates operosas, certis quasi limitibus suis esse distinctas, ut in septima speretur requies; et easdem sex aetates habere similitudinem istorum sex dierum, in quibus ea facta sunt quae Deum fecisse Scriptura commemorat”. Sobre a divisão da história em sete idades, presente em Santo Agostinho, cf., em especial, a obra de Auguste Luneau. L’Histoire du salut chez les Pères de l’Église – La doctrine des âges du monde. Paris: Beauchesne, 1964.

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Na obra Contra Fausto, escrita entre 397 e 398,14 Agostinho resume os marcos que fazem a divisão entre cada idade. Depois de lembrar que “em seis dias, no Gênesis, Deus terminou toda a sua obra, e no sétimo descansou” e defender que “as obras de Deus {na semana da Criação} representam o gênero humano neste mundo, pela sucessão dos tempos, {transcorridos} em seis idades”, ele faz os seguintes esclarecimentos: a primeira {idade} vai de Adão até Noé; a segunda, de Noé até Abraão; a terceira, de Abraão até Davi; a quarta, de Davi até a migração para a Babilônia; a quinta, daqui até a humilde vinda do nosso Senhor Jesus Cristo; a sexta, que agora se desenvolve, até que o Altíssimo venha para o Juízo. A sétima, com efeito, está compreendida no descanso dos santos, não nesta vida, mas na outra, onde aquele rico vê o pobre descansando, enquanto ele mesmo é torturado no inferno;15 onde não há tarde, porque ali não há nada de imperfeito.16

Para aqueles que desejam conhecer melhor as aproximações que Agostinho realiza entre os seres criados em cada um dos dias Segundo Brown, op.cit. p.226; Lancel, op.cit. p.534 e Gerald Bonner. “Augustine and Millenarianism”. In: Rowan Williams (ed.). The Making of Orthodoxy - Essays in honour of Henry Chadwick. Cambrigde et al.: Cambrigde University Press, 2002. P.240. J. Kevin Koyle. “Contra Faustum Manichaeum”. In: Allan D. Fitzgerald (ed.). Augustine through the Ages – an Encyclopedia. Michigan / Cambrigde – U.K.: William B. Ferdmans / Grand Rapids, 1999, p. 356, fala que essa obra “possivelmente data de 398 a 400”. 15 Parábola do rico e de Lázaro – cf. Lc 16:19-31. 16 Contra Fausto 12.8 (PL 42, 257): Sex diebus in Genesi consummavit Deus omnia opera sua, et septimo requievit. Sex aetatibus humanum genus hoc saeculo per successiones temporum, Dei opera insigniunt: quarum prima est ab Adam usque ad Noe; secunda, a Noe usque ad Abraham; tertia, ab Abraham usque ad David; quarta, a David usque ad transmigrationem in Babyloniam; quinta, inde usque ad humilem adventum Domini nostri Jesu Christi; sexta, quae nunc agitur, donec Excelsus veniat ad judicium; septima vero intelligitur in requie sanctorum, non in hac vita, sed in alia, ubi vidit requiescentem pauperem dives ille, cum apud inferos torqueretur; ubi non fit vespera, quia nullus ibi rerum defectus est. 14

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da semana e eventos da História da Salvação, a leitura do capítulo 23 do GCM pode ser muito esclarecedora.17 A partir desse momento, será desenvolvido o tema do papel que a teoria das sete idades do mundo possuia no pensamento de Agostinho sobre o sentido do processo histórico, por meio da análise de duas obras escritas por ele: o livro Sobre as pessoas que devem ser catequizadas (De catequizandis rudibus), de 399-400,18 e o Sobre a cidade de Deus, de cerca de 413-426.19 Pelo estudo tanto da função desempenhada pelo esquema septenário nas práticas catequéticas de Agostinho, quanto pelo modo como as sete idades são apresentadas aos leitores da CD, é possível notar a grande importância que o bispo de Hipona conferia a essa doutrina, a qual se mostra um aspecto do pensamento agostiniano sobre a história por vezes negligenciado em alguns dos trabalhos acadêmicos produzidos acerca da sua teologia da história. As práticas catequéticas de Agostinho e a doutrina das sete idades A redação do livro Sobre as pessoas que devem ser catequizadas foi motivada por uma consulta de um diácono da cidade de Cartago, chamado Deográcias. Ele havia escrito a Agostinho e pedido alguns conselhos para que suas catequeses direcionadas aos Alguns exemplos rápidos poderiam ser dados aqui, como a divisão das águas do segundo dia e a Arca de Noé na segunda era, como que dividindo as águas abaixo e acima dela (GCM 1.23.36); a separação da terra a partir das águas, no terceiro dia, e a separação de Abraão, como terra sedenta de Deus, do meio do mar da idolatria dos gentios, para a formação do seu povo eleito, na terceira era (1.23.37); a criação do sol, rei dos astros, no quarto, e o reino de Davi, ápice da monarquia judaica, na quarta era (1.23.38), dentre outros. 18 Conforme cronologia de Lancel, op.cit. p.534, e Brown, op.cit. p. 226, a mesma data fornecida por Luneau, op.cit. p. 290. Para uma argumentação pormenorizada em favor da datação desta obra como sendo por volta de 399, cf. L. J. van der Lof. “The Date of the De Catechizandis Rudibus”. In: Vigiliae Christianae 16 (3-4), 1962, p. 198-204. 19 Segundo Brown, op.cit. p. 352 e Lancel, op.cit. p. 532. Alguns autores defendem que a CD teria sido iniciada já em 412 e outros que Agostinho a teria terminado só em 427. 17

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rudes20 pudessem ser mais atrativas aos ouvintes e mais eficazes. Agostinho resolve atender à solicitação do diácono, pois, segundo ele, “na medida em que desejo ver distribuída a riqueza do Senhor, sabendo que companheiros meus no trabalho da Igreja enfrentam diiculdades ao distribuí-la, devo fazer tudo o que esteja ao meu alcance para que possam fazer mais fácil e livremente aquilo que diligente e ardorosamente desejam”.21 Ele resolve, então, compor a citada obra, a qual lança muitas luzes também sobre a sua própria concepção acerca do sentido da história. Para Agostinho, a catequese dirigida ao rudis deve apresentar, como parte principal, a narração da história da salvação, que é iniciada só depois de se verificar a retidão das intenções da pessoa que se apresenta para receber instruções sobre a fé, bem como de se exortá-la brevemente a pôr sua confiança apenas em Deus e na vida futura. Tal narrativa deve seguir as leis gerais de ir ao essencial;22 fazer ver a unidade de desígnio de Deus; desvelar seu objetivo, e sobre ela devem-se basear as exortações finais para uma vivência digna, por parte do ouvinte, dos mistérios cristãos anteriormente narrados.23 Depois de dar alguns conselhos de como deixar a pregação menos enfadonha e mais interessante para os ouvintes, Agostinho, de maneira muito didática, apresenta ao diácono dois Os rudis eram as pessoas ainda não cristãs, mas que procuravam a Igreja, interessadas em receber as primeiras instruções sobre a fé para, quem sabe, no futuro se tornarem catecúmenos. 21 PCAT 1.2 (PL 40, 311): Quanto enim cupio latius erogari pecuniam dominicam, tanto magis me oportet, si quam dispensatores conservos meos difficultatem in erogando sentire cognosco, agere quantum in me est, ut facile atque expedite possint, quod impigre ac studiose volunt. 22 Para Agostinho, a narrativa deve ser completa, ou seja, abarcar todo o decurso da história humana e o relato da criação dos seres anteriores ao homem, começando com “no princípio Deus criou...” até os tempos atuais da Igreja. Mas não pode ser demasiadamente pormenorizada e precisa buscar restringir-se aos “feitos mais admiráveis” (mirabiliora) dentre as ações admiráveis de Deus. Cf. PCAT, 3.5 (PL 40, 313). 23 Sobre a exortação, ver as considerações teóricas de Agostinho em PCAT 7.11 (PL 40, 317-318). 20

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modelos de catequese, um mais extenso, para ocasiões em que se dispuser de maior tempo para a catequese, e outro bem mais curto. Nos dois modelos de catequese, Agostinho aplica os princípios expostos na parte teórica da obra, de tal modo que eles devem ter iluminado bastante Deográcias em suas práticas pastorais. Além disso, a catequese maior, que é a primeira apresentada no livro, traz diversas luzes para os estudiosos da teologia da história agostiniana e, em especial, mostra a importância do esquema das sete idades do mundo nas catequeses “rudimentares” (ou seja, dirigidas aos rudes) de Agostinho. Pois, logo no início da parte narrativa propriamente dita, o bispo de Hipona, ao falar que “Deus trabalhou seis dias e no sétimo descansou”, imediatamente observa: Na verdade não trabalhou para descansar, pois “disse, e tudo se fez; mandou, e tudo foi criado” {Sl 32:9; 148:5}: trabalhou para significar que, depois das idades deste mundo, na sétima idade, tal como no sétimo dia, há de descansar nos seus santos.24

E assim ele continua, por algumas linhas, a desenvolver argumentos da relação da sétima era com o descanso de Deus, alegoria do nosso futuro descanso Nele, que nada mais são do que resumos de temas já tratados no Sobre o Gênesis contra os maniqueus de modo um pouco mais detalhado. Em seguida, ele prossegue a narrativa da história da salvação, desde o pecado original, passando pela promessa de salvação com Cristo e por vários dos eventos narrados no Antigo Testamento, e fala por diversas vezes das duas cidades em que se dividem 24

PCAT 17.28 (PL 40, 332): De qua requie significat Scriptura, et non tacet, quod ab initio mundi ex quo fecit Deus coelum et terram et omnia quae in eis sunt, sex diebus operatus est, et septimo die requievit . Poterat enim omnipotens et uno momento temporis omnia facere. Non autem laboraverat, ut requiesceret, quando, Dixit, et facta sunt; mandavit, et creata sunt: sed ut significaret, quia post sex aetates mundi hujus, septima aetate tanquam septimo die requieturus est in sanctis suis.

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homens e anjos.25 Quando termina de tratar dos assuntos relativos ao cativeiro da Babilônia, afirma: Decorreram {até então} cinco idades do mundo. Estende-se a primeira da origem do gênero humano, isto é, de Adão, que foi o primeiro homem, até Noé, que construiu a arca do dilúvio. A segunda, até Abraão, [...]. Esses sucessos decisivos das duas primeiras idades sobressaem nos antigos Livros. Os das outras três são relatados também no Evangelho, quando se relembra a origem carnal do Senhor Jesus Cristo {Cf. Mt 1:1-17}. A terceira estende-se {de Abraão} até o rei Davi; a quarta, de Davi até o cativeiro pelo qual o povo de Deus emigrou para a Babilônia; a quinta, da migração até o advento do Senhor nosso Jesus Cristo. É nesse advento que começa a sexta idade.26

É interessante notar que, na citação do capítulo 17.28, Agostinho fala somente em “idades deste mundo”, sem mencionar, naquele momento, que são seis eras históricas (embora chegue a falar de uma sétima era, pela necessidade de correlacioná-la, naquele momento, com o descanso do sétimo dia). Assim, em sua exposição, ele mostra-se bem didático, pois espera para falar de “seis idades” em uma hora mais oportuna, depois de ter feito o seu hipotético ouvinte – que talvez não conhecesse os fatos de maior destaque da História da Salvação – tomar contato com comentários sobre todos os “pontos de articulação” das primeiras 25 26

Cf. PCAT, de 17.28 até o final do cap.21. PCAT 22.39 (PL 40, 338): Peractis ergo quinque aetatibus saeculi, quarum prima est ab initio generis humani, id est, ab Adam, qui primus homo factus est, usque ad Noe, qui fecit arcam in diluvio ; inde secunda est usque ad Abraham {...}. Isti enim articuli duarum aetatum eminent in veteribus Libris: reliquarum autem trium in Evangelio etiam declarantur, cum carnalis origo Domini Jesu Christi commemoratur. Nam tertia est ab Abraham usque ad David regem: quarta a David usque ad illam captivitatem qua populus Dei in Babyloniam transmigravit: quinta ab illa transmigratione usque ad adventum Domini nostri Jesu Christi; ex cujus adventu sexta aetas agitur.

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cinco eras históricas – Adão, Noé, Abraão, Davi e o cativeiro da Babilônia – e sobre seu valor profético quanto ao Salvador vindouro e ao povo da cidade celestial. Diante dessas considerações, é impressionante observar que os feitos da história da salvação que aparecem na catequese maior do PCAT são, praticamente todos, relacionados com os “pontos de articulação” entre as sete idades do mundo (Adão, Noé, Abraão, Davi, exílio da Babilônia, primeira vinda de Cristo, Parusia, ressurreição dos mortos e juízo final). A única exceção significativa a essa regra é Moisés, que, no esquema septenário, não aparece como um divisor entre idades (embora seja um importante personagem da terceira idade), mas que é fundamental para outra divisão do processo histórico presente em Agostinho, a divisão quadripartite, de inspiração paulina (antes da Lei, sob a Lei, sob a graça e na glória), o que seria suficiente para entender a sua presença na catequese maior. Desse modo, se os trechos em que se fala especificamente sobre a divisão em idades podem ser considerados pouco extensos, deve-se lembrar que o próprio esquema septenário e os eventos que servem de divisores para as sete idades do mundo são a base para a exposição dos feitos da história da salvação da catequese maior e, portanto, o esquema das sete eras permeia praticamente toda a narrativa ao rudis da história sagrada no modelo maior de catequese. E se as sete idades não são referidas expressamente no segundo exemplo de catequese, o menor, não é que esse tema não seja considerado assim tão relevante por Agostinho. Pelo contrário, o que acontece é que o segundo modelo foi pensado para ocasiões em que se dispõe de pouquíssimo tempo para expor os mistérios da fé, de tal modo que nem se chega a falar de Davi e do Exílio, por exemplo. Dessa forma, se não houver tempo para se tratar de todos os marcos divisores das idades, fica difícil de falar das idades propriamente ditas, em especial nesse contexto, quando o discurso é pensado 302

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para ouvintes que dispõem ainda de pouco ou quase nenhum conhecimento da fé católica.27 Além disso, deve-se considerar o fato de que o esquema septenário do processo histórico é tido por Agostinho como uma doutrina de grande relevância, de tal modo que, se uma pessoa que deseja conhecer melhor a fé cristã dispuser de mais tempo para ouvir a primeira instrução catequética, não somente os eventos que dividem as idades devem ser relatados, mas também se deve falar sobre o próprio fato de que a história está dividida em sete idades. Assim, pode-se pensar que Agostinho tinha um grande apreço por essa doutrina, na medida em que ele achava que as pessoas deveriam conhecê-la, se possível, já no primeiro contato mais profundo com a fé cristã. Mas a referência à teoria septenária da história não era feita só nesse momento inicial da caminhada cristã. Em sermões ao povo, Agostinho apresentava, quando ele achava necessário e o texto bíblico permitia, a ideia de que cada dia da Criação está relacionado a uma idade da história.28 Além disso, mesmo diante de pessoas que não compartilhavam da mesma fé que ele, Outra omissão de conceitos muito importantes da teologia da história agostiniana que ocorre nesse modelo de catequese menor é o referente aos temas da cidade de Deus e da cidade dos homens. Com efeito, em momento algum elas são nomeadas ou se fala sobre elas explicitamente ali, ainda que Agostinho toque em assuntos relacionados, como a mistura de bons e de maus na Igreja, até que venha o juízo final (cf. PCAT 27.54). Tal temática já está presente desde a primeira reflexão de Agotinho sobre os dois grandes grupos em que se divide o gênero humano, no Sobre a verdadeira religião 27.50, e é repetida em várias outras oportunidades, como, por exemplo, em CD 1.35. 28 Cf. p.ex., Comentários aos Salmos 92.1 (PL 37, 1181-1182), em que Agostinho faz uma síntese bem esclarecedora dos principais temas relacionados às sete idades do mundo, e Sermão 125.4 (PL 38, 691-692), passagem na qual são desenvolvidas algumas ideias acerca da comparação entre dias da criação e sete idades. Por outro lado, em Tratado sobre o Evangelho de João 9.6 (PL 35, 1461), além de falar com algum detalhe desse tema, ele chega a afirmar que a divisão do tempo em seis idades históricas, seguidas de uma sétima, já foi exposta várias vezes – saepe – a seus ouvintes, e que eles a conheciam. Eis aqui o texto: “A partir daí {do momento inicial da Criação, a que se refere o texto, citado no sermão, de Gn 1:1} até este tempo em que agora vivemos, há 27

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Agostinho utilizava a teoria das sete idades do mundo como recurso apologético, depois de apresentar rapidamente sua divisão e argumentar em favor de sua validade.29 E, na sua principal obra sobre a história, a Cidade de Deus, a referência às sete idades do mundo também está presente, ainda que parte do público a quem a obra foi dirigida fosse de origem pagã. O tópico seguinte tratará sobre essa obra e o modo como a divisão septenária agostiniana da história é nela trabalhada. Sete idades do mundo na Cidade de Deus A exemplo do que acontece com o tema das duas cidades, a teoria das sete idades possui uma grande permanência no pensamento de santo Agostinho e está presente em vários dos seus escritos, inclusive na obra Cidade de Deus, composta nas duas décadas finais de sua vida. Contudo, ao contrário de ser nela um assunto recorrente, Agostinho fala das sete idades apenas ocasionalmente ao longo dos seus vinte e dois livros, e deve-se esperar até o livro dez para que ele faça alguma menção, bastante vaga, à divisão do tempo em idades, que só começarão a ser enumeradas no final do livro dezesseis, e mesmo assim ainda não por completo nesse trecho. Devido a essa pouca recorrência de passagens que tratem especificamente sobre as sete idades na mais importante obra de Agostinho sobre a história, alguns autores defenderam a posição seis idades, como muitas vezes ouvistes e conheceis”. (Inde usque ad hoc tempus quod nunc agimus, sexta aetas est, ut saepe audistis et nostis). 29 Cf. a apresentação das sete idades do mundo em Contra Fausto 12.8 (supra, p. 3-4), passagem na qual Agostinho utiliza-as para defender a validade da narrativa do Gênesis sobre a Criação. Além disso, ver também Contra Adimanto 7.2 (PL 42, 137), em que Agostinho usa as idades do mundo para interpretar alegoricamente a passagem de Ex 20:5 (“Eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus zeloso que vingo a iniquidade dos pais nos filhos, nos netos e nos bisnetos daqueles que me odeiam”), que Adimanto argumentava ser contrária à concepção de Deus-bondade presente no Novo Testamento.

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de que o esquema septenário seria aqui pouco relevante e teria perdido, no fim da vida de Agostinho, a importância que tinha tido na sua juventude, nos anos após sua conversão, para a interpretação do sentido do processo histórico proposta por ele. Dentre tais autores, encontra-se Gerard O’Daly, o qual, na sua obra “Augustine’s City of God” (livro de referência sobre o assunto), escreveu que o esquema das sete idades “não é completa ou extensivamente empregado”30 na Cidade de Deus. Com efeito, O’Daly defende que as idades nunca se tornaram “uma característica estruturadora dos livros históricos da obra {ou seja, os livros 15 a 18}, embora as figuras de destaque do esquema das idades – Adão, Noé, Abraão, Davi – sejam, claro, centrais para esses livros”.31 Para reforçar ainda mais sua opinião, ele afirma que “o livro 17 tratará o período de Davi à Encarnação de Cristo como uma fase”,32 ou seja, a divisão dessas duas idades é ali totalmente ignorada. Diante de todos os argumentos citados, propõe-se uma reanálise dos principais trechos em que as idades do mundo são comentadas na CD, pois se julga que haja elementos para se afirmar a existência de problemas na interpretação das fontes, por parte do professor O’Daly, quanto a esse tema. Com efeito, a brevidade e número restrito dos trechos que abordam direta e especificamente a doutrina agostiniana das idades do mundo é um dado claro, mas não se configura como prova suficiente para se afirmar a pouca relevância e secundariedade destas no pensamento das últimas décadas de Agostinho sobre a história. Pelo contrário, os mesmos

Gerard O’Daly. Augustine’s City of God – A reader’s guide. Oxford: Clarendon Press, 1999, p. 173. 31 Idem, p. 174. 32 Ibidem. 30

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trechos podem e devem ser interpretados em direção exatamente oposta, como se mostrará a seguir. A primeira citação a ser analisada é a do início do cap. 14 do livro 10 da CD, que afirma o seguinte: Pois, como {acontece com a educação} de um único homem, assim também a correta educação do gênero humano, representado pelo povo de Deus, avança, com certas aproximações, através de certas divisões do tempo, como que {de divisões} de idades, de tal modo que {a humanidade} se eleve das realidades temporais às eternas, que devem ser conquistadas, e das realidades visíveis às invisíveis.33

Essa passagem é muito importante porque retoma uma temática bastante cara ao pensamento de Agostinho sobre a história: a comparação do saeculum, do decurso da história humana, com a vida de um único indivíduo, que se desenvolve, através de diversas etapas ou “idades”, desde a sua primeira infância até a sua velhice. Agostinho, aqui, retoma uma ideia por ele defendida há muitos anos, desde obras como sobre o Gênesis contra os maniqueus,34 o Sobre a verdadeira religião35 e a pergunta 58 das obra Sobre 83 diversas questões.36 E, ao equiparar novamente o processo histórico com a vida de um “imenso indivíduo”, ele reintroduz, ao mesmo tempo, ainda que de maneira não explícita, por ora, a temática das sete idades. Com efeito, a mesma palavra, “aetas, aetatis”, é utilizada para identificar tanto as seis fases do desenvolvimento fisiológico de uma pessoa (primeira infância, PL 41, 292: Sicut autem unius hominis, ita humani generis, quod ad Dei populum pertinet, recta eruditio per quosdam articulos temporum tanquam aetatum profecit accessibus, ut a temporalibus ad aeterna capienda et a visibilibus ad invisibilia surgeretur. 34 Cf 1.23.35 (PL 34, 190) e 1.24.42 (PL 34, 193). 35 Cf. 27.50 (PL 34, 144). 36 Cf. 58.2 (PL 40, 42-43). 33

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infância, adolescência, maturidade física, declínio rumo à velhice e, por fim, velhice propriamente dita)37 quanto as seis eras históricas, cada uma delas comparada com a sua respectiva idade biológica. Portanto, ao afirmar, no livro 10 da Cidade de Deus, que toda a história pode ser comparada com a vida de um único indivíduo, a qual se desenrola ao longo das fases biológicas anteriormente citadas, Agostinho está fazendo nada mais, nada menos, do que defender, mais uma vez, que todo o decurso da história humana é, de modo semelhante, dividida em idades, e por elas é perpassado em todos os seus momentos. O que foi dito fica ainda mais nítido quando se analisa o final do capítulo 43 do livro 16, um dos dois principais trechos que abordam a doutrina agostiniana das sete idades do mundo na Cidade de Deus.38 Enquanto narrava o governo de Davi e como ele era figura profética do Cristo que haveria de vir, Agostinho compara o seu reinado com a iuventus, à era de maturidade e apogeu do reino judaico (símbolo da Cidade de Deus), da mesma forma que a terceira idade, de Abraão até Davi, fora a sua adolescentia e os dois períodos anteriores, de Adão até Noé e de Noé até Abraão, sua infantia e pueritia, respectivamente. Logo em seguida, depois de fazer esse resumo das três primeiras idades e de correlacioná-las com suas respectivas idades fisiológicas, Agostinho escreve: “É por isso que, nesse desenvolvimento {procursu} da cidade de Deus, como o livro anterior {o 15º} {tratou} de uma só idade, {a qual é}, ela mesma, a primeira, assim também este livro tratou de duas idades, a segunda e a terceira”.39

Os termos latinos usados por Agostinho, desde o GCM, são: 1) infantia, 2) pueritia, 3) adolescentia, 4) iuventus, 5) declinio ab iuventute usque ad senectudem e 6) senectus. Anos mais tarde, em Sobre 83 diversas questões 58.2, Agostinho deu o nome de gravitas à quinta idade fisiológica. 38 O outro é o capítulo 30 do livro 22, que será comentado mais adiante. 39 CD 16.43.3 (PL 41, 523): Quamobrem in isto procursu civitatis Dei, sicut superior unam eamdemque primam, ita duas aetates secundam et tertiam liber iste contineat.... 37

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Por essa citação, percebe-se um dado extremamente importante: o fato de que Agostinho tem, ao escrever a cidade de Deus, a explícita intenção de que os eventos contidos nos livros que tratam do procursus (palavra utilizada por ele em 16.43.3), ou seja, do desenvolvimento da cidade de Deus ao longo da história, sejam entendidos dentro do quadro temporal das sete idades do mundo. Como ele mesmo afirma, o livro 15, que narra os acontecimentos de Adão até Noé, deve ser compreendido como o livro que aborda a “primeira infância” da história humana, assim como o livro 16 se ocupa das duas idades seguintes, sua “infância” e sua “adolescência”. E, com efeito, apesar de fazer nesse trecho só menção à quarta idade e não falar aqui nem da quinta ou da sexta, pode-se com propriedade inferir que ele pensava que as últimas três idades históricas (a maturidade, o declínio rumo à velhice e a velhice propriamente dita, ou seja, o período da história que vai de Davi ao fim dos tempos, passando pelo cativeiro da Babilônia e a primeira vinda de Cristo) teriam seus eventos desenvolvidos no livro 17 e na parte final do livro 18, pois não seria lógico que, depois de defender o enquadramento dos eventos da história sagrada, de Adão até Davi, no esquema interpretativo das sete idades, ele não estivesse disposto a estender a mesma opinião para as três idades restantes. Essa argumentação ganha mais força ainda se se pensar que ele cita novamente, nesse trecho, o prólogo do evangelho de Mateus, que é um texto recorrentemente usado por ele para fundamentar a divisão da quarta à sexta era, isto é, de Davi até a vinda de Cristo, como uma realidade revelada pela própria Escritura e não apenas uma especulação teológica pessoal sobre a história. Portanto, ainda que Agostinho não tenha voltado a tratar de aetates ou articuli temporum ao longo dos livros 17 e 18, a perspectiva das idades do mundo ainda continua a perpassar também os eventos do procursus das duas cidades narrados nesses dois últimos livros. A crítica que O’Daly faz de que a doutrina agostiniana 308

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das sete idades do mundo nunca chegou a ser “uma característica estruturadora dos livros históricos da obra” mostra-se infundada, pois em CD 16.43 aparece, de modo claro, o desejo de Agostinho de que o desenvolvimento das duas cidades seja entendido como acontecendo dentro do quadro temporal interpretativo das seis idades históricas. E, por outro lado, argumentar que as idades não são citadas expressamente de novo nos livros 17 e 18 não se apresenta como uma objeção ao exposto, pelos motivos anteriormente referidos. Além disso, há outro momento importantíssimo em que o tema das sete idades é tratado: no capítulo 30 do livro 22 da obra, que representa os parágrafos conclusivos de toda a Cidade de Deus. Lá, as eras surgem, muito naturalmente, como derivação de discussões acerca do descanso dos justos no Paraíso. E diz-se aqui muito naturalmente porque essa não tinha sido a primeira vez, nos escritos de Agostinho, em que reflexões sobre o último dia da semana da Criação, quando Deus descansou das obras que havia realizado, fizeram com que ele refletisse sobre a era de descanso sabático dos justos no Céu, bem como sobre as seis fases, anteriores a esse repouso, em que, segundo sua opinião, desenvolve-se a história mundial.40 Eis, então, o trecho sobre as idades que se encontra no fim da Cidade de Deus, o qual aparece depois da reafirmação de que o descanso de Deus no sábado representa o nosso descanso eterno nele, se realizarmos boas obras: Este descanso sabático {dos santos} aparecerá ainda mais claramente se for contado aquele número de idades como {se fossem} dias, segundo aquelas divisões do tempo {artículos temporis}, as quais parecem estar expressas nas Escrituras, porque um sétimo dia é encontrado; de modo Outros exemplos claros desse padrão argumentativo, que são GCM 1.23, Contra Fausto 12.8 e PCAT 17.28, já foram citados neste artigo.

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que a primeira idade, como o primeiro dia, é a partir de Adão até o dilúvio;41 a segunda daqui até Abraão, não iguais quanto ao tempo, mas pelo número de gerações. Com efeito, consta-se que elas têm dez {gerações} cada. Daqui já, como delimita o evangelista Mateus, três idades seguem-se até a vinda do Cristo, as quais se desenvolvem em quatorze gerações cada: de Abraão até Davi, uma; outra, deste ponto até a migração para a Babilônia; e a terceira, deste ponto até o nascimento na carne de Cristo. Desse modo acontecem todas as cinco. A sexta agora se desenvolve, ela que não deve ser medida por nenhum número de gerações, por causa daquilo que foi dito: ‘Não é dado a vós saber os tempos que o Pai colocou em seu poder’ {At 1:7}. Depois desta {idade}, como no sétimo dia, Deus descansará, fazendo descansar em si mesmo o próprio sétimo dia, que seremos nós mesmos.42

Pela leitura do trecho anteriormente referido e sua comparação com outras obras do autor que abordam a temática das idades do mundo, percebe-se que a estrutura essencial da doutrina Há certa intercambialidade, em alguns trechos escritos por Agostinho sobre as idades, entre Noé, personagem mais comumente citado como início da segunda idade, e o dilúvio, que é apresentado, no GCM 1.23.35, como a “tarde” do primeiro dia. Cf. Questões sobre o Heptateuco 7.49 (PL 34, 820-821) para a identificação posterior, feita por Agostinho, entre Noé e o dilúvio como início da segunda idade (“A segunda {idade} {vai} do dilúvio, isto é, de Noé, até Abraão” – “secunda {idade} a diluvio, id est, a Noe usque ad Abraham”). 42 CD 22.30.5 (PL 41, 804): Ipse etiam numerus aetatum, veluti dierum, si secundum eos articulos temporis computetur, qui in Scripturis videntur expressi, iste sabbatismus evidentius apparebit, quoniam septimus invenitur: ut prima aetas tanquam dies primus sit ab Adam usque ad diluvium, secunda inde usque ad Abraham, non aequalitate temporum, sed numero generationum: denas quippe habere reperiuntur. Hinc jam, sicut Matthaeus evangelista determinat, tres aetates usque ad Christi subsequuntur adventum, quae singulae denis et quaternis generationibus explicantur: ab Abraham usque ad David una, altera inde usque ad transmigrationem in Babyloniam, tertia inde usque ad Christi carnalem nativitatem. Fiunt itaque omnes quinque. Sexta nunc agitur, nullo generationum numero metienda, propter id quod dictum est, Non est vestrum scire tempora, quae Pater posuit in sua potestate. Post hanc tanquam in die septimo requiescet Deus, cum eumdem septimum diem, quod nos erimus, in se ipso Deo faciet requiescere. 41

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agostiniana das sete eras, as quais são comparadas com os dias da semana da Criação no Gênesis, encontram-se aqui presentes e são ainda sustentados por Agostinho, poucos anos antes do fim de sua vida. Desse modo, as idades são enumeradas por completo, pela primeira vez na Cidade de Deus, somente no seu fim, mas em um contexto bastante significativo. Com efeito, nos capítulos finais dessa obra, o pesquisador encontra não apenas trechos com diversas reflexões de Agostinho sobre o Paraíso e a natureza da beatitude dos santos junto a Deus (reflexões que muito esclarecem o modo como ele conceituava esses assuntos), mas se depara com bem mais que isso. As últimas páginas da Cidade de Deus apresentam-se como um relato de carater místico sobre a visão beatífica e a felicidade dos justos no Céu, provavelmente advindo de uma profunda experiência com o sagrado vivido por seu autor. E é nesse contexto de um quase “cântico espiritual” de Agostinho, transformado em capítulo conclusivo de sua “grande e trabalhosa obra”,43 que ele propõe por completo pela primeira vez, aos leitores da CD, sua explicação da história em sete idades, a qual não deixa de ter sido por ele pensada, nesse contexto, também como certo apelo moral, dirigido a seus interlocutores, para que também eles esforcem-se por entrar no repouso sabático do Céu por meio da prática de boas obras aqui na terra. Algumas outras reflexões poderiam ser apresentadas, mas as que já o foram parecem conferir embasamento suficiente para se reafirmar que a teoria agostiniana das sete idades do mundo tem, na Cidade de Deus, uma importante função de estruturação do processo histórico. Longe de terem sido esquecidas na sua grande obra sobre o sentido da história ou de terem recebido menos crédito no fim da vida de Agostinho do que ao longo das suas primeiras décadas pós-conversão, as sete idades são apresentadas 43

magnum opus et arduum (CD 1.Prefácio – PL 41, 13), epíteto dado pelo próprio Agostinho para a sua tarefa de compor a Cidade de Deus.

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e defendidas na CD em diferentes momentos, em especial no seu capítulo conclusivo. A exemplo do que foi visto na obra Sobre as pessoas que devem ser catequizadas, o esquema septenário das idades serve de importante quadro temporal a partir do qual Agostinho interpreta os eventos da história da salvação humana. Considerações finais Por todos esses dados, pode-se concluir que há elementos suficientes para se defender que a teoria das sete idades do mundo desempenhava um papel realmente importante no pensamento de Agostinho sobre a história, ainda que outros esquemas, como o das duas cidades, possam (e devam) ser considerados como possuindo uma maior centralidade no seu pensamento sobre o processo histórico, em especial nas últimas três décadas de sua atividade intelectual. Com efeito, acredita-se que estudos futuros mais aprofundados sobre a gênese e as características principais da teoria septenária têm grandes possibilidades de trazerem novas contribuições, bem como de abrir novas perspectivas para o estudo de vários aspectos do pensamento de Agostinho, em especial os assuntos relacionados ao modo como ele compreendeu, ao longo do tempo, a história humana vista como sequência de fatos inteligíveis a partir da perspectiva religiosa do cristianismo.

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Bibliografia Os títulos estão em ordem alfabética geral, por questões de praticidade. Como ao longo dos textos que compõem esta coletânea muitos textos se repetem, optou-se por elaborar uma bibliografia geral. Para as fontes específicas de cada capítulo, remete-se o leitor às notas pertinentes. Todas as referências bíblicas foram normalizadas, sempre que possível com a Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1986. Para as demais referências especializadas, foram utilizadas, para o texto bíblico em latim, Robert Weber (Ed.). Biblia Sacra. Iuxta Vulgatam Versionem. Stuttgart: Württembergische Bibelanstalt, 1969, e para o siríaco, a edição do Peshitta Institute of the University of Leiden (Ed.). The Old Testament in Syriac according to the Peshitta Version. Edited on Behalf of the International Organization for the Study of the Old Testament. Sample Edition: Song of Songs – Tobit – 4 Ezra. Leiden: Brill, 1966. As demais versões particulares estão indicadas, conforme pareceu adequado a cada autor, nas notas dos capítulos. Achtemeier, Paul J. Finding the way to Paul’s theology. A Response to J. Christiaan Beker and J. Paul Sampley. In: Bassler, Jouette M. (ed.). Pauline Theology. Volume I: Thessalonians, Philippians, Galatians, Philemon. Minneapolis: Fortress Press, 1994. Albright, William F. e Mann, Christopher S. Matthew. New York: Doubleday, 1971. Allison, Dale C. The New Moses: A Matthean Typology. Minneapolis: Fortress, 1993.

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Índice onomástico A Abbaton 252 Abraão 83, 112, 159, 160, 161, 297, 298, 301, 302, 305, 307, 310 Testamento de 112 Apocalipse de 112 Achtemeier, Paul J. 107 Adão 271, 275, 281, 282, 294, 297, 301, 302, 305, 307, 308, 310 Apocalipse de 271, 275, 281, 282 Agostinho, S. 20, 102, 104, 107, 110, 293-312 Alexandre, o Grande 42, 55, 68 Alexandria 40, 49, 51, 56, 65, 81, 95, 96, 199, 210, 215-217, 233, 249, 252 Alógenes, Livro de 262, 268 Ancião dos Dias 35 Antigo Testamento 54, 171, 197, 300 Antiguidades judaicas, livro (AJ) 19, 27-29, 39, 41, 45 Antíoco Epífanes 30, 31, 34-36, 60,70 76 Antioquia 49, 51, 100, 151-153, 158, 166, 169, 189, 190, 196 Apocalíptica, literatura 20, 111, 127 Apolônio de Tyana 68, 69 Apóstata 93, 101 apóstolos 80, 85, 120, 132, 196, 213, 221, 222, 228, 231-235, 237, 240-254, 257, 258, 273, 275-277, 281, 282, 287 Arábia 60, 120 arcontes 272-275 ascensão da alma 211, 212 Ashton, John 118, 120, 133, 136, 137, 145 Ásia Menor 89, 90, 196 Atanásio de Alexandria 233

Espectadores do sagrado

Atos dos Apóstolos 80, 85, 213 Augusto 65, 72, 74 B Babilônia 36, 59, 60, 297, 301, 302, 308, 310 Balaão 48, 49 Baltazar, rei da Babilônia 59 Barbaglio, Giuseppe 93 Barclay, John M. G. 93, 96, 97 Barth, Karl 106, 110 Bartolomeu 242 Livro da Ressurreição de Cristo de 239, 242, 278 Questões de 200 Baruch 112 Basílio, o Grande 239 batismo 95, 142, 155, 218, 219, 239 Beker, Johan C. 107, 114, 134, 135 Belleville, Linda L. 130, 131 Berolinensis 22220, papirus 199, 200, 221-258 Berolinensis Gnosticus – BG (Códex de Berlim) 210 bestas 35, 57, 61-63, 68, 73 Bíblia 29, 40, 47, 53-55, 75, 92, 126, 128, 136, 143, 145, 152, 160, 195, 238, 248, 260 Boa Nova 98, 100, 195-197, 242, 254, 290 Boer, Martinus de 84, 113, 133 Bornkamm, Günther 120 Boyarin, Daniel 93, 106 Brown, Dan 194 Bultmann, Rudolf 79, 108, 117, 118, 123, 137 C Calvino, João 102 Caracala 65 Carriker, Timóteo 110 Cartago 46, 298 350

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Carter, Warren 153, 154, 159 católico, catolicismo 102, 108, 194, 256, 275, 295, 303 César 64, 72, 74 Cidade de Deus 293-312 Cilícia 80, 85, 88, 89 Cipião, o Africano 46 Cláudio 74, 163 Clemente de Alexandria 56, 65, 81, 199, 210, 215-218 Codex Chisianus 55 Codex Tchacos 201, 203, 259, 262, 263, 266-270, 284, 285, 289-292 Código da Vinci, livro 194 Cohen, Shaye J. D. 41, 175 Collins, Adela Y. 113 Collins, John J. 28, 29, 45, 55, 58, 59, 70, 79, 94, 111, 113, 114, 164 Conceito do nosso grande poder 272, 274 Contra as heresias 197, 199, 269, 288 Contra Fausto 297, 304, 309 copta, língua 273-292 Coríntios 121, 127, 130 Crossan, John D 163, 164 Cruz 105, 222, 228, 252, 257, 258 Cunha, Elenira 171, 172 D da história 25-28, 30-35, 40, 41, 44, 47, 49-51, 67, 71, 100, 102, 105, 107, 113, 141, 155, 160, 169, 179, 262, 270, 291, 293296, 298-304, 306-308, 311, 312 daimon 279, 280 Damasco 106, 115, 120, 121, 147 Daniel 25, 27-52, 53-78, 112, 131, 132 Livro de 19, 20, 25, 27-36, 38, 39, 41, 42, 44-50 Dario 36, 38, 39, 42 Davi 154, 159, 160, 240, 250, 297, 298, 301, 302, 305, 307, 308, 310 Davies, William D. 80, 85, 93, 155 DeConick, April 225, 238, 239, 244, 268 Deissman, Adolf 102, 114, 116, 119, 137 351

Espectadores do sagrado

desenvolvimento histórico 73, 119 Deuteronômio 191 diáspora 45, 49, 51, 80, 85-87, 89, 91, 93, 96, 97, 100, 154 Dibelius, Martin 117 dinastia merovíngia 194 Domiciano 39, 63, 65, 71, 72, 74 Dunn, James D. G. 102, 107 E Egito 72, 162, 194, 210, 214, 229, 257, 262, 264 Ehrman, Bart D. 225, 267, 268 Emmel, Stephen 221, 223, 226-230, 238, 244, 247, 264, 290 Enoch 60, 112, 145 Similitudes de 112 Epifânio 199, 214, 278, 287-289 escatologia, escatológico 24, 26-28, 31-33, 35, 42, 44-49, 55, 83, 93, 99, 102, 105, 108, 111, 112, 114-118, 120, 126, 160, 232, 258 escola de Tübingen 79 escribas 61, 86, 152, 158, 159, 164, 167, 170, 173-176, 178, 179188, 191, 213 Escrituras 46, 82, 83, 89, 92, 96, 147, 154, 160, 195, 197, 203, 210, 238, 239, 248, 254, 273, 275, 278, 296, 309 Esdras, 53-77 Estrabão 80 Etnicidade 88, 152-155 Eucaristia 219, 239, 271, 275-277 Eusébio de Cesareia 196 Evangelho 19, 20, 80, 86, 99, 100, 104-107, 110, 120, 126, 131134, 137, 138, 151-155, 159-161, 165, 167, 168, 171, 173, 180-184, 187, 193-220, 221-258, 259-292, 301, 303, 308 gnóstico 19, 193-220, 272, 274, 275, 282 Evódius de Roma 233, 241, 243, 249, 255 Êxodo, Livro do 83, 95 Ezequiel 119, 120, 128

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F fariseus 82, 84, 85-87, 152, 158-160, 164, 167, 170, 173, 174-176, 178-188, 191 Ferrini, Bruce 265, 266 Filho do Homem 35, 61, 126 Filipe 202, 203, 214, 268 Atos de 213 Evangelho de 194, 198, 200, 201, 204, 213, 214, 216-219 Filipenses, Epístola aos 85, 102 Fílon 58, 95-98, 162 Filostrato 68, 69 fim da história 26, 27, 33-35 fim dos tempos 25, 27, 70, 308 fonte Q 209 Furnish, Victor P. 123, 129 G Gaius 74 Gálatas, Epístola aos 80, 85, 94, 102, 132 Galba 69, 74 Galileia 86, 159, 163, 173, 180-182, 187, 188 Gamaliel 85 Geta 65 gnosticismo 19, 79, 141, 207, 267, 272, 273 Gonzáles-Ruiz, José M. 100 Goodman, Martin 17, 95, 96 grego, língua 29, 42, 82, 95, 123, 132, 142, 153, 154, 195, 204, 237, 269 Griffith, Francis L. 228, 253 Grindheim, Sigurd 131 Gunkel, Hermann 135-137, 141 H Hades 272, 273 Hagen, Joost 248 Hallock, Frank 258 Hanson, Paul D. 84, 113 353

Espectadores do sagrado

Hedrick, Charles 198, 200, 208, 221-227, 235, 236, 265, 266 Hegésipo 199 helenismo 154 helenístico 17, 18, 20, 21, 31, 36, 40, 53-55, 59, 79, 88, 95, 97, 98, 293 Hengel, Martin 49, 79, 81, 82, 85-88, 93 heresias 136, 197, 199, 269, 288, 289 Herodes 86, 163 Herodianos 86, 174, 180, 181 História da Salvação 294, 298-302, 312 Historia Eclesiástica 196 Hobsbawm, Eric 167, 168 Horsley, Richard 163 I Iahweh 35, 37, 83, 89, 159, 166, 187, 191 idades do mundo 20, 56, 293, 294, 298, 300-305, 307, 312 idolatria 34, 92, 97, 298 Igreja proto-ortodoxa 223 Império romano 29, 45, 49, 50, 161, 162, 164, 177, 190 Inácio de Antioquia 196 Interpretação da Gnose 210 Irineu de Lyon 80, 124, 197-199, 209, 269, 270, 288, 289 Isaac 160, 161 Isaías 92, 128, 191 Iscariotes 259, 260, 265, 270, 271, 273, 274, 280, 291 Isenberg, Wesley W. 215 Israel 34, 35, 39, 49, 79, 82, 83, 85, 86, 94, 96, 97, 153-160, 166, 169, 172, 173, 176, 188, 231, 234, 243 J Jacó 160, 161, 286 Jaeger, Werner 81, 153 Jeremias 57, 92, 128, 130, 191 Jerusalém 30-32, 40, 41, 50, 51, 67, 69, 82, 85, 86-88, 90, 92, 109, 119, 128, 154, 173, 174, 180, 181, 187, 188, 195, 249-252, 254, 255, 294 Jesus 84, 86, 91, 93-95, 97-99, 101, 104-106, 114, 115, 117, 123, 124, 126, 128, 130, 132, 133, 136, 143, 147, 149, 151, 152, 354

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155-161, 163-168, 170-173, 180-191, 193-199, 201-211, 213, 214, 218, 220-222, 224, 226, 228, 230, 232-234, 237244, 246-248, 250-258, 260, 261, 267, 270-287, 291, 292, 297, 301 Cristo 94, 98, 106, 115, 117, 133, 136, 147, 149, 159, 195, 196, 202, 203, 239, 251, 297, 301 de Nazaré 101, 104, 108, 124, 151, 156, 173, 188 Sabedoria de 202, 203 João 110, 113, 128, 137, 199, 202-203, 213, 228, 242, 243, 246, 251, 256, 274, 276, 278, 291, 303 Apocalipse de 113, 128, 276 Apócrifo de 202, 203, 213, 291 Evangelho de 137, 203, 213, 242, 303 João Batista 246 João Crisóstomo 228, 246, 251 Johnson, Luke T. 139-143 Josefo, Flávio 27-29, 31, 32, 51 José, o carpinteiro 200, 250, 254, 255, 286 História de 200, 250, 254, 255 Jubileus, livro de 53, 112 Judá 286, 287 judaísmo 32, 38, 49, 54, 79, 80, 87, 88, 90, 93, 98, 103, 104, 108, 109, 117, 124, 126, 138, 146, 156, 171, 173-176, 180 , 181, 184, 185, 187-189, helenístico 17, 95, 98 Judas 259-292 Evangelho de 19, 194, 195, 199, 200, 201, 203, 204, 220, 224, 259-292 Judas Dídimo 264 juízo final 61, 231, 294, 302, 303 Justino Mártir 196 K Käsemann, Ernst 103, 117, 118, 129 Kasser, Rodolphe 194, 262-269, 279, 283, 284, 287 Kim, Seyoon 106, 120, 121, 146 King, Karen 211, 224, 272

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Espectadores do sagrado

L Layton, Bentley 215, 234, 265 Lei 82, 83, 85, 86, 88, 90, 96, 100, 133, 155, 156, 158, 160, 161, 165-171, 173, 187-190, 197, 212, 302 Levi, Testamento de 112, 128 Leviatã 57 Lévi-Strauss, Claude 152 Levítico 169, 191 Lewis, Ioan M. 130, 145 literário, gênero 113, 198, 201, 202, 211, 214, 248 literatura 20, 53, 55, 59, 75, 81, 93, 98, 101, 111, 113, 119, 126, 127, 134, 144, 155, 159, 175, 196, 221, 231, 233, 239, 243, 247, 253, 257, 273, 274, 280, 287 Livro Sagrado do Grande Espírito invisível (Evangelho dos egípcios) 201, 204, 271, 275, 281 Lucas 80, 81, 85, 87, 90, 91, 134, 155, 199, 200, 206, 274, 278 Lutero, Martinho 102 M Macabeus 30, 31 MacDonald, Margaret 106 Madalena, Maria 194, 210-212 Manuscritos do Mar Morto 32, 55 Marcos 155, 161, 180-185, 191, 199, 249 Evangelho de 86, 199 Maria 198, 199, 200, 201, 203-205, 210-212, 220, 233, 240-243, 249, 250, 251 adormecimento de 249 Evangelho da infância de 199 Virgem 240-243, 249, 250 Mason, Steve 17, 42, 46, 47 Mateus 151-192, 199, 200, 206, 278, 308, 310 Evangelho da infância do pseudo 199 Evangelho de 20, 151-155, 159, 161, 171, 173, 184, 187, 189, 191, 192, 308 Mauss, Marcel 151 Mecenas, fundação 265-268 356

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Medievo 294 Mediterrâneo 24, 26, 49, 80, 95, 96, 154, 163, 165, 171, 173 Meeks, Wayne 105, 109, 115-118, 162 membros sagrados 231, 232, 251, 253, 258 Menandro 81 merkavah 118-121, 124, 125, 130, 146, 149 Messias 75, 93-95, 97, 182 Meyer, Marvin 204, 205, 267, 268, 279, 283, 284, 292 Midrash, midráshico 54, 62, 68, 71, 74, 82, 83, 175 Miguel, arcanjo 239, 242, 243 Mirecki, Paul 200, 221-224, 226, 236 misticismo 84, 102, 106, 109, 114-121, 124, 126, 130, 132, 133, 135, 137, 143, 144, 146, 148, 149 Mitra, Liturgia de 143 Moisés 83, 87, 88, 121, 129, 137, 154, 155, 161, 250, 302 monarquia 55, 56, 59, 76, 258 Monte das Oliveiras 228, 230, 231, 243-246, 250, 251-254 Morray-Jones, Christopher 119, 121, 124, 126, 127, 129, 130 Murphy O’Connor, Jerome 80-82, 85-87, 92, 93, 102, 129 N Nabucodonosor 33, 35-37, 42-47, 58, 60 Nagel, Peter 202, 225, 271 Nag Hammadi 193, 194, 199-205, 210, 211, 213-215, 219, 227, 259, 262-264, 267, 269, 271, 272, 277, 289-291 National Geographic Society 259 Nazaré 101, 104, 108, 124, 151, 156, 163, 173, 182, 186, 188 Nero 74 Nerva 65 Neusner, Jacob 109, 134, 175, 181 Nietzsche, Friedrich 105, 106 Noé 297, 298, 301, 302, 305, 307, 308, 310 noûs 212 Novo Testamento 20, 30, 32, 54, 79, 81, 87, 103, 106, 108, 109, 117, 123, 135, 137, 140, 141, 175, 197, 205, 211, 222, 230, 235, 236, 238, 244, 245, 248, 249, 253-255, 258, 270, 271, 273, 286, 287, 304 357

Espectadores do sagrado

O O’Daly, Gerard 294, 305, 308 oráculo 48, 49 Orígenes 54, 199 Otão 69, 74 Oxford 17, 53, 64, 144, 164, 255, 240, 241, 280, 283, 294, 305 Oxyrrynchus 199, 204, 209, 210, 211 P Pagels, Elaine 193, 220, 268 Palestina 49, 82, 84-87, 94, 153, 154, 162, 164, 177 Panarion 214, 278, 287-289 Papias de Hierápolis 196 Paris 246, 266 Paris Match, revista 193 Parrott, Douglas M. 211, 272 Parusia 302 Páscoa 259, 261, 267, 271, 292 Pasquier, Anne 211, 219, 268, 290 Patmos 110, 276 patriarcas 159, 167, 287 Paulo 20, 79-150, 162, 195 apóstolo 101, 150 de Tarso 80, 121 Epístolas de 80-83, 85, 91, 94, 95, 99, 103, 109, 195, 197 Pearson, Birger A. 220, 225, 268 Pedro 249, 278 Apocalipse de 202, 203 Evangelho de 199 Carta de 202, 203, 214, 262 Pentateuco 161, 166, 179 Pilatos 185, 200 Plínio, o velho 216 Plisch, Uwe-Karsten 226, 239 pneuma 212 Políbio 46 Pompeu 64, 65 358

Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

profeta 28, 43, 48, 50, 57, 80, 92, 115, 127, 131, 166, 191, 195197, 214, 250 prosélitos 86, 95, 98 protestante, protestantismo 79, 102, 104, 105, 136 providência divina 27, 32, 50 pseudonímia 127, 210 psychê 212 Ptolomeu Filometor 34, 35, 40 Q quatro reinos 73 Qumran 32, 53, 118, 172, 176 R Raab 57, 134 Rajak, Tessa 46, 47 Reforma 104, 105 reino de Deus 25-31, 33-38, 42-45, 93, 98, 128, 155 ressurreição dos mortos 160, 253, 302 Rivkin, Ellis 175 Robinson, Forbes 231-233, 240, 241, 249, 250 Robinson, James 203, 205, 260, 263, 264, 266, 267 Roma 39, 46, 49, 55, 56, 59, 64, 69, 75, 76, 89, 158, 161-166, 176, 178, 179, 186, 188-191, 196, 197, 228, 233, 248, 255 Romanos, Epístola aos 95, 102, 133, 195 Rowland, Christopher 103, 108, 109, 111, 124, 125, 128, 130 Russell, David S. 70, 73, 111 Rylands 463, papiro 209, 210 S Sabbath 154, 166, 190 saduceus 152, 158-160, 164, 167, 170, 173-176, 178-180, 183, 184, 187-189, 191 Saklas 275-277, 281, 282, 287 Saldarini, Anthony J 159, 160, 174, 176, 178-180, 182, 186 Salvador, evangelho do 19, 221-258 Sanders, Edward P. 138, 139 359

Espectadores do sagrado

Scholem, Gershom 115, 118, 119, 124, 125, 129 Schwemer, Anna M. 93 Scott, James M. 121, 123, 124, 126, 128, 130, 264 Segal, Alan F. 92, 101, 103, 104, 106, 107, 115, 119, 121, 124, 127, 145-148 sentido da história 30, 67, 293, 294, 299, 311 Septímio Severo 65 sinagoga 90, 98, 99, 154, 182 Síria 151, 189, 209 Smith, Morton 42, 123, 142-145 Sobre diversas questões 306, 307 Sobre as pessoas que devem ser catequizadas 293, 298, 312 Sobre a verdadeira religião 303, 306 Sobre o Gênesis contra os maniqueus 293, 295, 300, 306 Sócrates 279, 280 Sofonias, Apocalipse de 112 Stauros-Text 227, 228, 253 Stendahl, Krister 104, 107, 137, 138, 142 Stigmata, filme 193 Strasburgo 227, 247, 251, 255 evangelho copta de 227, 247, 255 Fragmentos Coptas de 227, 251 Stromateis 56, 216-218 Sula 64 T Talmude 54, 175 Tchacos Nussberger, Freda 265, 266 Templo 32, 40, 56, 64, 65, 82, 86, 90, 92, 93, 98, 126, 154, 164, 169, 174, 176, 216 teodiceia 34, 45, 66, 67 Teodocião 29, 54 Teodósio de Alexandria 243, 249 Teodoto 218 Extratos de 215, 216, 218 teologia 58, 66, 79, 80, 97, 99, 102, 103, 107-109, 117, 118, 123, 135, 136, 138, 140, 145, 148, 149, 300 360

Julio Cesar Dias Chaves | Vicente Dobroruka (Org.)

da história 295, 298, 300, 303 Testemunho verdadeiro 277, 278 Tiago 100, 285, 291 Epístola apócrifa de 202, 203 Primeiro e Segundo Apocalipses de 203, 262, 264, 268, 285, 289, 290 Protoevangelho de 199 Tibério 72, 74, 162 Till, Walter C. 210 Timóteo de Alexandria 252 Tito 41, 50, 51, 63, 65, 72, 74, 102, 225, 248 Toit, Andreas B. du 133 tolerância religiosa 38, 47, 89 Tomé 204, 205, 209, 239, 264 Atos de 205, 278 Evangelho de 193, 194, 198-201, 203, 204-209, 213, 218, 220, 264 Livro de 202, 203, 205 Trebilco, Paul 89, 90 U Uriel 66 V Valentino, valentiniano 218-200 Vaticano 193, 194, 292 Biblioteca do 240, 241, 242, 249 Versão dos setenta (LXX) 29, 40, 54, 55, 126, 154, 240, 286 Vespasiano 41, 50, 51, 65, 74, 163 Vitélio 69, 74 Vorlage 29, 228, 229 Vulgata 55, 313 W Wainwright, Ruppert 193 Woodruff, Archibald M. 105 Wurst, Gregor 265, 267, 268 361

Espectadores do sagrado

X xamanismo 127, 146 Y Yale, Universidade de 265 Z Zostrianos 281, 285

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