284 88 10MB
Portuguese Pages 362 Year 1977
ER N ST
C A S S IR E R
AN TR O PO LO G IA FIL O S O F IC A ENSAIO
SÔBRE
O
HOMEM
INTRO D U ÇÃO A U M A F ILO S O F IA D A C U LTU R A H U M A N A
T r ad u ç ão
do
DK. V IC E N T E F E L IX D E Q U E IR O Z
A
EDITÔRA MESTRE JOU São
P aulo
PREFÁCIO
O prim eiro im pulso para escrever êste livro m e veio de m eus amigos ingleses e norte-am ericanos, que repetida e urgentem ente m e pediram que publicasse um a tradução inglesa da m inha F m as
S im
b ó l ic a s
.
il o s o f ia
das
F
or
1 Confesso que teria gostado m uito
de corresponder a seus desejos; mas, após as prim ei ras tentativas, nas
atuais
o livro
em
verifiqu ei
que
seria
im praticável
circunstâncias,
injustificável
sua inteireza.
Q uanto
e,
reproduzir
ao leitor, a
lei
tura de u m estudo em três volu m es, sôbre assunto di fícil e abstrato, se tornaria n u m esfôrço excessivo para. sua atenção. M a s , m esm o para o autor, seria pouco praticável ou aconselhável a publicação de um traba lho planejado e escrito há mais de vin te e cinco anos. D esd e então o autor continuou seus estudos sôbre o assunto. A p re n d e u muitos fatos n ovos e viu -se diante de n o vos problem as e até os antigos são vistos p or êle de u m ângulo diferente e se lhe apresentam com n ova luz. P o r tôdas estas razoes, decidi recom eçar e escre v e r u m livro inteiram ente n ôvo,
Êste livro teria de
ser m enos extenso que o prim eiro. “ U m livro grande” , disse Lessing, " é u m grande mal” . via m inha F
il o s o f ia
das
F
orm as
Enquanto escre
S im
b ó l ic a s
, de tal
maneira m e deixei a bsorver pelo assunto qu e esqueci ou desprezei essa m áxim a estilística.
H o je m e sinto
m u ito mais inclinado a endossar as palavras de L e s sing. E m v e z de apresentar u m relato porm enorizado de fatos e um a longa discussão de teorias, procurei,. 1.
3 volumes, Berlim, Bruno Cassirer, 1923-29.
JO
E rn s t
Cassirer
neste livro, con cen trar-m e e m alguns pontos que me pareciam de especial importância filosófica, expressan do m eu s pensam entos tão b r e v e e sucintamente quan to possível. De
qualquer
m odo,
o livro
precisou
tratar de
assuntos que, à prim eira vista, podem parecer m uito divergentes.
U m livro qu e se ocupa de questões psi
cológicas, ontológicas e epistemológicas e con tém ca pítulos sôbre M ito e Religião, L in gu a gem e A r te , C iên cia e História, está sujeito à objeção de que trata de u m mixtum compositum das coisas mais díspares e he terogêneas.
Espero que, depois de ler estas páginas,
o leitor considere infundada a objeção.
U m de meus
propósitos principais foi con ven cê-lo de qu e todos os assuntos •assunto.
aqui tratados são, São
em
resum o,
estradas diferentes qu e
um
único
conduzem
ao
m esm o centro — cabendo a um a filosofia da cultura d escobri-lo e determ iná-lo, conform e “penso. Q u an to ao estilo do livro, foi naturalm ente uma séria dificuldade o fato de precisar escrever n u m idio m a que não é o m eu próprio.
E dificilmente teria su
perado este obstáculo sem a ajuda de m eu amigo Ja m es P etteg rove, do State Teachers College de N o v a Jérsei, qu e reviu o manuscrito d ando-m e bons conse lhos sôbre tôdas as questões lingüísticas e estilísticas. Mas
d e v o -lh e
ta m bém
muitas
valiosas
observações
pertinentes ao tema do livro. N ão tencionei escrever u m livro “ popular” sôbre u m assunto que, em m uitos sentidos, resiste a qual qu er vulgarização.
P o r outro lado, êste livro não se
destina som ente a filósofos e eruditos.
O s problem as
fundamentais da cultura humana possuem u m interes se hum ano geral e d everia m ser postos ao alcance do grande público. Tentei, portanto, evitar têrm os e de talhes técnicos, expressando m eus pensam entos com a m aior clareza possível.
D e v o , porém , a dvertir meus
■críticos de que tudo quanto aqui apresento foi mais
A n tro p o lo g ia
Filosófica
11
u m a explicação e um a ilustração do que propriam ente u m a demonstração de m inha teoria.
Para u m a dis-
cussão e um a análise mais minuciosas dos problem as e m questão, rogo-lhes consultar a descrição p o rm en o rizada em minha F i l o s o f i a
das
F
orm as
S im
b ó l ic a s
.
Sinceram ente nâo pretendo im por ao espírito de m eus leitores u m a teoria acabada, expressa em estilo dogm ático; antes desejei colocá-los na posição de fa zer u m julgam ento próprio.
É eviden te que não foi
possível apresentar-lhes o cabedal todo de provas em píricas sôbre as quais repousa m inha tese principal. P e lo m enos m e esforcei, oferecendo amplas e detalha das citações de obras de valor reconhecido m odelar sô b re os vários assuntos,
O qu e o leitor encontrará
não é, de maneira alguma, u m a bibliografia com pleta
— só os títulos de um a bibliografia nestas condições teriam excedido o espaço que. m e foi concedido.
Con
ten tei-m e em citar os autores dos quais m e sinto mais d eved o r e em escolher exem plos que m e pareceram possuir típica significação e soberano interêsse filo sófico. Dedicando êste trabalho a Charles W. H en d el, de sejo expressar m eu s sentimentos de profunda gratidão a u m h om em que, com zêlo infatigável, m e a ju dou a prepará-lo. F oi ele o prim eiro co m q u em falei sôbre o seu plano geral.
N ã o fôra seu profundo interêsse pelo
assunto do livro e sua grande amizade pelo autor, di ficilm ente eu teria tido a coragem de p u blicá -lo .
Leu
o manuscrito diversas vêzes e sem pre m e foi possível acatar-lhe as sugestões críticas, que se revelaram uti líssimas e valiosíssimas. A dedicatória tem , contudo, não só u m significa do
pessoal,
mas
tam bém
"s im b ó lic o ".
Ao
dedicar
êste livro ao Presidente do Departam ento de Filosofia e ao D iretor dos Estudos Graduados da U niversidade de
Y ale, desejo
expressar ao próprio Departam ento
12
E rn st
m eu s agradecim entos cordiais.
Cassirer
Quando, há três anos,
cheguei à Universidade de Y a le , foi agradável surpre sa encontrar um a estreita cooperação, que se estendia
o u m vasto campo. C on stituiu-se para m im n u m pra zer especial e n u m grande privilégio trabalhar com m eu s colegas mais m oços, em 'seminários conjuntos,, sôbre vários temas.
F o i esta, na verdade, u m a nova
experiência e m minha longa existência acadêmica, in teressantíssima e m uito estimulante. rei grata recordação
desses
S em p re guarda coletivos —-
seminários
u m sôbre a filosofia ãa história , outro sôbre a filoso fia âa ciência, u m terceiro sôbre a teoria do conheci m ento, dirigidos por Charles H en del e Haj o H olborn,, F. S. C . N o rth ro p e H e n ry M argenau, M o n r o e Beardsl eyf Fred eric Fitch e Charles Stevenson, D e v o considerar êste livro , em grande parte, co m o conseqüência de m eu trabalho na Graduate School da U niversidade de Ya le e preva leço-m e desta oportu nidade para expressar m eus agradecimentos ao seu D iretor, Edgar S. Furniss, pela hospitalidade que m e ofereceu nestes últimos três anos. D e v o tam bém aos m eus alunos u m a palavra cordial de agradecimento,. Discuti co m êles
quase
todos os problem as
contidos
neste livro e confio em qu e encontrarão m uitos traços.
do nosso trabalho com u m nas páginas qu e se seguem. C o n fesso -m e grato ao Fluid Research Fund da U niversidade de Ya le por u m a subvenção de pesquisa. que m e a ju dou a preparar êste livro. E
Universidade de Ya le
rnst
C
a s s ir e r
PR IM E IR A P A K T E
QUE
É O HOMEM?
I A CRISE NO CONHECIMENTO DO HOMEM SÔBRE SÏ MESMO
1
p
ser universalmente admitido que a meta maiselevada da indagação filosófica é o conhecimento de si próprio. Em todos os conflitos travados entre as diferentes escolas filosóficas, êste objetivo permane ceu invariável e inabalado: revelou-se o ponto de A rquimedes, o centro fixo e imutável, de todo pensa mento. Nem mesmo os mais céticos pensadores nega ram a possibilidade e a necessidade do conhecimento1 próprio. Desconfiavam de todos os princípios gerais relativos à natureza das coisas, mas esta desconfiança pretendia apenas despertar um nôvo e mais seguro método de investigação. Na história da filosofia, o ceticismo tem sido, muito amiúde, simplesmente a contrapartida_de um resoluto hum anism o. Pela negação e pela destruição da certeza objetiva do mundo exter no, espera o cético fazer com que todos os pensamen tos do homem voltem a convergir para seu própria ser. O conhecimento de si mesmo — declara êle — é a primeira precondição d.a auto-realização. Precisa mos tentar romper a cadeia que nos traz atados ao mundo exterior para podermos gozar nossa verdadeira liberdade. “ La plus grande chose du monde c’est de sçavoir être à soy” , escreve Montaigne. ARECE
E rnst
Cassirer
Entretanto, nem mesmo o modo de focalizar o problema — o método da introspecção — é seguro contra as dúvidas céticas. A filosofia moderna co meçou com o princípio de que a prova do nosso ser é inconquistável e inexpugnável, Mas os progressos do conhecimento psicológico não confirmaram êsse prin cípio cartesiano. A tendência geral do pensamento, hoje em dia, volta a dirigir-se para o pólo oposto. Poucos psicólogos modernos seriam capazes de admi tir ou recomendar um simples método de introspecção. Dizèm-nos em geral que tal método é muito precário."'' Estão convencidos de que o único enfoque possível da psicologia científica é uma atitude behaviorista rigo rosamente objetiva. Mas um behaviorista coerente e radical não atinge sua finalidade. Pode acautelar-nos contra possíveis erros metodológicos, mas não resol ve todos os problemas da psicologia humana. Pode mos criticar o ponto de vista puramente introspectivo ou desconfiar dêle, mas não podemos suprimi-lo nem éliminá-lo. Sem a introspecção, sem a percepção ime diata de sentimentos, emoções, percepções, pensamen tos, não poderíamos sequer definir o campo da psi cologia humana, í Não obstante, é forçoso admitir que, seguindo apenas êste caminho, nunca poderemos che gar a uma ampla visão da natureza do homem. A in trospecção só nos revela o pequeno setor da vida hu mana acessível à nossa experiência individual. Nunca poderá cobrir todo o campo dos fenômenos naturais. Ainda que nos fôsse possível coligir e combinar todos os dados, teríamos uma imagem muito pobre e frag mentária — um simples torso — da natureza humana. Aristóteles declara que todo o conhecimento hu mano se origina de uma tendência básica da natureza humana, que se manifesta nas ações e reações mais elementares do homem. Toda a extensão da vida dos sentidos é determinada por essa tendência e dela está impregnada.
A n trop olog ia
Filosófica
17
Todos os homens, por natureza, desejam satoer. Um a prova disto é o prazer que encontramos em nossos sentidos; pois, mesmo independentemente da sua utilidade, êIes” são amados p o r si prdprios; e, acima de todos os outros, o sentido da vista: não só p ara ver nossas ações, mas tamtoém, quando nada 'fazemos, gostamos de ver a tudo o mais. A razão é que êste sentido, principal entre todos, nos faz conhecer e traz à luz muitas diferenças entre as coisas. 1
Esta passagem é altamente característica da con cepção aristotélica do conhecimento em contraposição à concepção platônica. Um panegírico filosófico da vida sensorial do homem seria impossível na obra de Platão, que jamais compararia o desejo do conheci mento com o prazer que encontramos em nossos sen tidos. Em Platão, a vida dos sentidos e a do intelecto estão separadas por vasto e intransponível abismo. O conhecimento e a verdade pertencem a uma ordem transcendental -— ao domínio das idéias puras e eter nas. O próprio Aristóteles está convencido de que o co nhecimento científico não é possível apenas através do ato da percepção. Mas fala como um biologista quando nega a separação platônica entre o mundo ideal e ti mundo empírico. Procura explicar o mundo ideal, o inundo do conhecimento, em têrinos de vida. Em ammos os domínios, de acôrdo com Aristóteles, encon tramos a mesma continuidade ininterrupta. Tanto na natureza quanto no conhecimento humano, as formas mais elevadas evolvem-se das formas inferiores? A percepção dos sentidos, a memória, a experiência, a imaginação e a razão estão tôdas ligadas por um elo comum; são apenas estádios diferentes e diferentes ex pressões da mesma atividade fundamental, que atin ge sua mais alta perfeição no homem mas que, de certo modo, é partilhada pelos animais e por tôdas as formas de vida orgânica. 1, Aristóteles, Metafísica, Livro A. 1 980a 21. Tradução inglesa de W . D. Ross, The W orks of A rh totle (Oxford, Clarendon Press, 1024), Vol. V III.
IS
E rn st
Cassirer
Se adotássemos êste ponto de vista biológico, te ríamos de esperar que as primeiras etapas do conheci mento humano concernissem exclusivamente ao mun do externo. No tocante a tôdas as suas necessidades imediatas e interesses práticos, o homem depende do seu meio físico. Não pode viver sem se adaptar cons tantemente às condições do mundo circundante. Os passos iniciais para a sua vida jntelectual e cultural podem ser descritos como atos que envolvem uma es pécie de ajustamento mental ao meio imediato. Mas, à proporção que progride a cultura humana, não tar damos em tropeçar com uma tendência oposta da vi da humana. Desde o despontar da consciência huma na, encontramos uma visão introvertida da vida, que acompanha e complementa a extrovertida. Quanto mais longp seguirmos o desenvolvimento da cultura humana, a partir dêsses primórdios, tanto mais se evidenciará a visão introvertida. A. curiosidade natural do homem principia, lentamente, a mudar de direção.' Podemos estudar êste paulatino desenvolvimento em quase tôdas as formas de sua vida cultural. Nas pri meiras explicações mitológicas do universo encontra mos sempre uma antropologia primitiva ao lado de uma cosmologia primitiva. O problema da origem do: mundo está inextricàvelmente entrelaçado com o da origem do homemt A religião não destrói estas primei ras explicações mitológicas. Pelo contrário, preserva a cosmologia e a antropologia mitológicas dando-lhes hova forma e nova profundidade. A partir dêsse mo?mento, já não se concebe o conhecimento de si mesmo como um interêsse meramente teórico. Não é simples mente um tema de curiosidade ou especulação; passa a ser proclamado a obrigação fundamental do homem. Os grandes pensadores religiosos foram os primeiros a inculcar essa exigência moral. Em tôdas as formas superiores da vida religiosa, a máxima “ Conhece-te a ti mesmo” é considerada como um imperativo categó-
A ntropologia Filosófica
19
rico, lei religiosa e moral básica. Neste imperativo sentimos, por assim dizer, uma súbita inversão do primeiro instinto natural de conhecer — percebemos^ uma transposição de todos os valores. Na história de( tôdas as religiões do mundo —- judaísmo, budismo, confucionísmo e cristianismo — podemos observar os passos individuais dêste desenvolvimento. O mesmo princípio vale para a evolução geral do pensamento filosófico* Em suas primeiras fases, a fi losofia grega parece exclusivamente interessada pelo universo físico. A cosmologia predomina claramente sôbre todos os outros ramos da investigação filosófica. Não obstante, o que caracteriza a profundidade e a amplitude do espírito grego é o fato de quase todo pensador grego representar, ao mesmo tempo, um nôvo íipo geral de pensamento, Além da filosofia física da Escola de Mileto, os pitagóricos descobriram uma filosofia matemática, enquanto os pensadores eleáticqs são os primeiros a conceber o ideal de uma filo sofia lógica. Heráclito encontra-se nas fronteiras en tre o pensamento cosmológico e o antropológico. Em bora ainda fale como filósofo natural e pertença aos ‘^antigos fisiologistas” , está convencido de que é im possível penetrar o segredo da natureza sem haver es tudado o segrêdo do homem, j Precisamos satisfazer à exigência da introspecção se quisermos aprender a, realidade e compreender-lhe o significado. Por isso foi possível a Heráclito caracterizar tôda sua filosofia lem duas palavras: aSiçiioaurjv ^ «n o v ( “ Procurei por mim mesmo” ) . 1 Mas embora fôsse, em certo sentido, inerente à primitiva filosofia grega, esta nova tendên cia do pensamento só atingiu plena maturidade na época de Sócrates. Assim, o problema do homem é o marco divisório entre o pensamento socrático e pré1. Fragmento 101, em Diels, Die Fragm ente der Vorsokratiker, editacto por W. Kr&ntz (5.» edição, Berlim, 1934), I, 173.
20
E rn s t
Cassirer
-socrático. Sócrates jamais ataca nem critica as teorias dos seus predecessores. Não tenciona introduzir uma nova doutrina filosófica. Nêle, porém, todos os anti gos problemas são vistos dentro de uma nova luz, por se referirem a um nôvo centro intelectual. Os proble mas gregos da filosofia natural e da metafísica são repentinamente eclipsados por uma nova questão, que parece, daí por diante, absorver todo o interêsse teó rico do homem. Em Sócrates já não encontramos uma teoria independente da natureza nem uma teoria ló gica independente; muito menos uma teoria ética, coe rente e sistemática —^ 10 sentido de se ter desenvol vido em sistemas éticos posteriores. Só resta uma per gunta: Que é o homem? Sócrates mantém e defende sempre o ideal de unia verdade objetiva, absoluta, universal. Mas o único universo que conhece, e ao qual se referem tôdas suas indagações, é o universo do homem.) Sua filosofia ■— se alguma possuir — é estritamente antropológica Num dos diálogos de Platão, descreve-se Sócrates conversando com seu discípulo Fedro. Passeiam e, em breve, chegam a um ponto fora das portas de Atenas. Sócrates se extasia com a beleza do lugar. Delicia-se com a paisagem, que não cessa de elogiar. Porém Fedro o interrom pe. Admira-se de que Sócrates proceda como um es trangeiro acompanhado de um guia, que lhe mostra os sítios mais aprazíveis. “ Nunca cruzais a frontei ra?” pergunta êle. Sócrates responde simbolicamen te: “ É verdade, meu bom amigo, e espero que me desculparás quando ouvires o motivo, isto é, que sou um amante do conhecimento e os homens que habi tam na cidade são meus mestres, e não as árvores, nem o campo” , 1 Entretanto, quando estudamos os diálogos socráti cos de Platão, em parte alguma encontramos uma so1.
Platão, Fedro 230A (tradução de Jowett).
A n tropolog ia
Filosófica
21
lução direta para o nôvo problema. Sócrates nos dá uma análise detalhada e meticulosa das qualidades in dividuais e virtudes humanas, Procura determinar e definir a natureza destas qualidades: bondade, justiça, temperança, coragem e assim por diante, sem nunca se arriscar a definir o homem. Como explicar esta aparente deficiência? Teria Sócrates adotado delibe radamente um abordo indireto —■que lhe permitisse apenas arranhar a superfície do problema sem jamais lhe penetrar as profundezas e o verdadeiro âmago? Neste ponto, mais do que em qualquer outro, devería mos desconfiar da ironia socrática. É precisamente a resposta negativa de Sócrates que projeta nova e ines perada Iüz sôbre a questão e nos proporciona uma v i são positiva de sua concepção do homem. /Não pode mos descobrir a natureza do homem da mesma ma neira pela qual podemos desvendar a natureza das coisas físicas? Estas podem ser descritas em termos d e , suas propriedades objetivas, mas o homem só pode ser descrito e definido em têrmos de sua consciência, fato que origina um problema inteiramente nôvo, in solúvel por nossos métodos usuais de investigação. Aqui se revelaram ineficazes e inadequadas a obser vação empírica e a análise lógica no sentido em que êstes têrmos foram empregados na filosofia pré-socrática; pois só convivendo com sêres humanos é que teremos a visão do caráter do homem. Para compreendê-lo, precisamos efetivamente defrontá-lo face a face. Por isto, o traço distintivo da filosofia socrá tica não é um nôvo conteúdo objetivo, mas nova ma nifestação e função do pensamento. Até então con cebida como monólogo intelectual, a filosoíia trans forma-se em diálogo. Só por meio do pensamento dia- * logal ou dialético podemos abordar o conhecimento da natureza humana. Antes disto teria sido possível ima ginar a verdade como coisa já estabelecida, que pode ria ser entendida por um esforço do pensador indivi-
22
E rn s t
Cassirer
dual e prontamente revelada a outros. Mas Sócrates já não endossava êste ponto de vista. É tão impossí vel — diz Platão na R ep ú blica — implantar a verda de na alma de um homem quanto dar a visão a um cego de nascença. Por sua natureza, a verdade é filha do pensamento dialético. Só pode ser obtida,- por con seguinte, pela constante cooperação dos assuntos em mútua interrogação e resposta. Não tem, portanto, nenhuma semelhança com um objeto empírico, pre cisando ser compreendida como resultado de um ato social. Temos aqui a resposta, nova e indireta, à per gunta “ Que é o homem?” . Dizem que é a criatura que está em contínua procura de si mesmo — e que, em todos os momentos de sua existência, precisa es crutar as condições da mesma. Neste exame, nesta atitude crítica em relação à vida humana, está o ver dadeiro valor da vida humana. “ Uma vida que não é examinada” , diz Sócrates, na Apologia, “ não vale a pena ser vivida” . 1 Sintetizamos seu pensamento di zendo que êle define o homem como o ser que, a uma pergunta racional, pode dar uma resposta racional. Neste círculo estão compreendidos tanto seu conheci mento quanto sua moral. É por esta faculdade funda mental, por esta faculdade de dar uma resposta a si mesmo e aos outros, que o homem se torna um ser “ responsável” , um indivíduo moral.
2 Em certo sentido, essa primeira resposta sempre permaneceu a resposta clássica. O problema socrático e o método socrático jamais poderão ser esquecidos ou suprimidos. P or intermédio do pensamento platônico deixou sua marca 2 em todo o desenvolvimento futuro 1. Platão, Apologia 37E (tradução de Jowett). 2. Nas páginas seguintes não tentarei apresentar um apanhado do desenvolvimento histórico da filosofia antropológica. Escolherei tão-
A ntropologia
Filosófica
23
da civilização. Não existe, talvez, meio mais seguro nem mais rápido de nos convencermos da profunda unidade e da perfeita continuidade do pensamento fi losófico antigo do que o confronto dêsses primeiros estádios da filosofia grega com um dos últimos e mais nobres produtos da cultura greco-romana, o livro Para Si M esm o, escrito pelo Imperador Marco Aurélio Antonino. À primeira vista, a comparação pode pare cer arbitrária, pois Marco Aurélio não era um pensa dor original, nem seguia um método rigorosamente lógico. Êle mesmo dá graças aos deuses porque, quan do veio a interessar-se por filosofia, não se converteu em escritor filosófico nem em soluciona dor de silogis mos. 1 Mas Sócrates e Marco Aurélio têm em comum a convicção de que, para descobrirmos a verdadeira natureza ou essência do homem precisamos, antes de tudo, separar do seu ser tôdas as características ex ternas e incidentais. N ã o digais que seja de homem nenhuma dessas coisas que lhe pertencem como homem. Não podem ser afirm adas de homem; a natureza do homem não as garante; elas não consumações daquela natureza. Conseqüentemente, nem o p o r que vive o homem está colocado nessas coisas, nem o
não um são fim que
-sòmente uns poucos estádios típicos, a fim de ilustrar a linha geral de pensamento. A história da filosofia do homem ainda é um deside rato. Ao passo que a história da metafísica, da filosofia natural, do pensamento ético e científico foi estudada em todos os seus porme nores, ainda estamos no princípio. Durante o líltimo século, a impor tância dêste problema foi sentida cada vez mais intensamente. Wilhelm Diltíwy concentrou todos os esforços em sua solução. Mas, embora rica e sugestiva, a obra de Dilthey permaneceu incompleta. Um de seus discípulos, Bernhardt Groethuysen, apresentou excelente descri ção do desenvolvimento geral da filosofia antropológica. Infelizmente, porém, sua descrição termina antes da passagem derradeira e decisiva — a de nossa era moderna. Veja B. Groethuysen, “Philosophische An thropologie”, H anã buch dar Philosophie (Munique e Berlim, 1931), III, 1-207. Ver também seu artigo "Para uma Filosofia Antropológica", Filosofia e História, Ensaios apresentados a E rn st Cassirer (Oxford, Clarendon Press, 1936), pp. 77-89. 1. Marcus Aurelius Antoninus, A d se ípsum (z iç eau-cov). Livro I, par. 8. N a maioria dos trechos seguintes cito a versão inglesa de C. R. Haines, The Com m unings with H im self of M arcus Aurelius A ntoninus (Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1916), Loeb Classical Library.
E rn st
C a ssirer
conduz à perfeição do fim, a saber, o Bem. Além disso, se algumas dessas coisas pertencessem a um homem, não lhe ca beria desprezá-las nem se opor a e la s,... mas sendo tudo como é, quanto mais puder libertar-se,... dessas e de outras coisas com equanimidade, tanto m elhor será o hom em .1
Tudo o que acontece ao homem, vindo de fora, é irrito e nulo. Sua essência não depende de circunstân cias externas; depende exclusivamente do valor que êle dá a si mesmo. Riquezas, posição, distinção social e até a saúde ou os dotes intelectuais — tudo isso se torna indiferente (aSiaçopov ), Só tem importância a tendência, a_ atitude interior dà a l m a He êsse princípio interior não pode ser perturbado. “ O que não pode tornar o próprio homem pior do que antes também não pode piorar-lhe a vida, nem prejudicá-la, quer venha de fora quer de dentro” . 2 A exigência da interrogação de si mesmo aparece* portanto, não só no ^estoicismo .mas, também, na con cepção de Sócrates, como privilégio do homem e sua obrigação fundamental. 3 Mas esta obrigação é agora compreendida num sentido mais amplo; seus antece dentes não são apenas morais senão também univer sais e metafísicos, “ Nunca deixes de fazer a ti mesmo esta pergunta e a te reperguntares assim: Que relação; tenho eu com esta parte de mim que denominam a .Razão governante r^f^ovty.o^ ) ?” 4 Quem vive em harmonia com seu próprio eu, o seu daem on, vive em harmonia com o universo; pois tanto a ordem univer sal quanto a ordem pessoal não são mais do que ex pressões e manifestações diferentes de um princípio' fundamental comum. O homem demonstra seu po der inerente de crítica, de julgamento e de discerni mento ao conceber que, nessa correlação, o Eu, e não> o Universo, representa o papel principal. Depois que* 1.
M ar cus Aurelius, op. cií.r Livro V, par. 15. lãem , Livro IV, par. 8. 3. lãem , Livro III, par. 6. í . lãem , Livro V, par. 11. 2.
A ntropologia
Filosófica
25
o Eu conquista sua forma interior, essa forma perma nece inalterável e imperturbável. “ Depois de forma da, a esfera continua redonda e autêntica” . 1 Esta. por assim dizer, é a última palavra da filosofia grega —- uma palavra que, mais uma vez, encerra e explica o espírito em que foi originalmente concebida. Êsse espírito foi um espírito de julgamento, de discernimento crítico entre o Ser e o Não-Ser, entre a verda de e a ilusão, entre o bem e o mal. A vida em si mes ma é mutável e flutuante, mas o verdadeiro valor da vida deve ser buscado numa ordem eterna, que não admite mudança. Não está no mundo de nossos sen tidos, e_é só pelo poder de nosso juízo que podemos compreender essa ordem, O juízo é o poder central’ do homem, a fonte comum da verdade e da moral. Pois é a única coisa em que o homem depende intei ramente de si mesmo; é livre, autônomo, auto-sufi ciente. 2 “N ão te aflijas”, diz M arco Aurélio, não sejas muito ansioso, m as sê teu próprio amo e olha p ara a vida como um homem, como ser humano, como cidadão, como criatura mortal. ( . . . ) As coi sas não tocam a alma, porque são externas e permanecem imó veis, mas a nossa perturbação vem apenas daquele juízo que form am os em nós mesmos. ,Tôdas estas coisas, que vês, m udam imediatamente, e já não serão; e tem sempre em mente o nú m ero das mudanças que já presenciaste. O Universo — mutação,, a v id a — afirmação, s
O maior mérito desta concepção estóica do homem reside no fato de que ela dá ao homem, ao mesmo tempo, um profundo seiitimento de sua harmonia com 1.
Idçm , Livro V III, par. 41.
2. Cfr. idem, Livro V, par. 14: 'O Aoy°C k « 1 'ri S-OY1* 7) t£Xvví Suvcttteiç eiaiv £