Encore (1972-1973)


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Jacques Lacan

(1972-1973)

Tradução comparada e comentada em notas e anexos Edição não comercial destinada exclusivamente aos membros da Escola

Jacques Lacan

(1972-1973)

T@íbhoteta jf reullíana

Escola Letra Freudiana Tradução comparada e comentada em notas e anexos Edição não comercial destinada exclusivamente aos membros da Escola

Edição não comercial destinada exclusivamente aos membros da Escola LetraFreudiana

Encare (1972-1973) Tradução: Analucia Teixeira Ribeiro Interlocução: Eduardo A. Vidal Revisão: Isabela Bueno do Prado Trabalho coletivo: Alone Oliveira Gomes DeaneFiuza Denise Coutinho Elaine StarostaFoguel JacintaFerraz Maria Angelina Andrade Maria Cândida Tavares Maria CristinaFerraz Coelho Maria Lucia Andrade Suzana Rocha Nascimento Syra Tahin Lopes Vera Lucia Maturino de Souza

2010 Escola LetraFreudiana Rua Barão de Jaguaripe, 231- Ipanema Rio de Janeiro- RJ- 22421-000 Tel.: (21) 2522-3877 www.escolaletrafreudiana.com.br

Sumário

Ao leitor Lição 1

7

Anexo II A compacidade

11 25 27

Lição 2

35

Lição 3 Anexo II- A lógica de Port-Royal

67 83 87

Lição 4

91

Lição 5

107

Lição 6

123

Lição 7 Anexo I- Sobre a meiose Anexo II- Sobre a saída de Jacques Lacan de Sainte Anne Anexo III- Sobre o Amor cortês Anexo I V - Teresa D'Ávila

139 157 159 161 165

Lição 8

167

Lição 9

183

Lição 10

197

Lição 11

223

Lição 12

239

Anexo I - J. Bentham -

Anexo I Saussure -

Anexo I - Respostas de Jacques Lacan a questões de J.-A. Miller em 22 de outubro de 1973

259

Lição 13

265

Ao leitor

O que se lê é da ordem da letra. O seminário de Lacan aconteceu na dimen­ são da palavra, ante uma audiência atenta, e o que aqui se dá a ler é o escrito que se decantou da palavra ouvida. No Encare, Lacan produz algumas frases nodais que provêm do real da experiência analítica. O que Lacan articula nos seus ditos tem como suporte a lógica da sexuação, que se escreve em maternas entre o modal e o nodal, assegurando a transmissão da psicanálise. No final deste seminário inicia-se uma nova escrita da psicanálise, aquela que com o nó borromeano dá suporte aos modos de gozo que tangenciam os corpos falantes. O acesso, hoje, à palavra de Lacan, é mediado por operações de ordens diversas. Em primeiro lugar, a transcrição dos seminários em francês, a partir de notas manuscritas, estenografia e gravações em fitas de áudio, o que supõe a intervenção de várias pessoas nesse trabalho inicial de passagem da oralidade à escrita. Em seguida, o eventual estabelecimento do texto e sua publicação em versão oficial. Além disso, para o leitor brasileiro que não tiver o domínio da língua francesa, nos diferentes níveis que o discurso de Lacan recobre, uma tradução torna-se um meio de acesso indispensável. E uma tradução que se proponha a esclarecer, pelo menos em parte, por meio de notas e anexos, as passagens mais enigmáticas ou mesmo intraduzíveis. Foi o que motivou este trabalho, que se definiu por dois polos: de um lado, levando em conta todas as dificuldades enfrentadas inicialmente por aqueles que, num primeiro tempo, se esforçaram para transcrever o que ouviram e/ ou acreditaram ouvir de Lacan, o que supõe variantes de entendimento ou de pontuação, no resultado proposto, variantes nem sempre esclarecedoras. Do outro lado, levando em conta, em particular, o leitor membro ou participante desta Escola, que desejava (mesmo sabendo que isso esbarra no impossível) um acesso mais amplo, não apenas ao escrito oficial do seminário, mas ao que mais se aproximasse da palavra de Lacan naquele tempo perdido para sempre, com suas hesitações, pausas, repetições e até atos falhos. Era o que nos ofereciam as versões não oficiais, não estabelecidas. Aceitando tal desafio, nos propusemos a essa tarefa, que exigiu uma leitura comparada de três versões do Encare, além da escuta das gravações do seminá­ rio, como detalhado a seguir: 7

Encare

-A Versão 1: que se diz uma "tentativa de passagem à escrita" deste semi­ nário, realizada por: VRMNAGRLSOFAFBYPMB (sem data). " As fontes utiliza­ das foram as notas de CC, DA, EP, a estenotipia para as quatro primeiras aulas, a versão Gabbay e gravações em fitas cassetes." Esta versão, que chamamos de Versão 1, acompanhada de várias notas e anexos, aqui traduzidos, continha igualmente as intervenções de François Récanati e de Jean-Claude Milner, apre­ sentadas nas Lições 2 e 10. Embora tais intervenções tenham sido publicadas posteriormente, pelos autores, traduzimos aqui as transcrições desta Versão, pelos mesmos motivos aludidos acima. - A Versão 2: versão datada de 1973/1985, trazendo na introdução a seguinte nota manuscrita, assinada por G. Taillandier: "Este seminário foi esta­ belecido na época (1972-73) por S.D. e por mim, diretamente, a partir das grava­ ções das aulas. Tendo em vista a qualidade das fitas magnéticas e a novidade, nessa tarefa, de duas pessoas, não é de admirar que haja erros eventuais de transcrição ( ... ). Existem atualmente três versões deste seminário: M. Chollet (CHO), GT/SD e J. L. Esta última versão está, porém, incompleta e completada por fragmentos de CHO. As fitas ainda existem." - A versão publicada: LACAN. J. Le séminaire, livre XX, Encare. Paris: Édi­ tions du Seuil, 1975. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. - As gravações, quase todas completas e audíveis do seminário Encare - dis­ poníveis no site do psicanalista Patrick Valas: www.valas.fr - foram preciosas, na revisão final, para algumas decisões que permitiram optar por uma das ver­ sões escritas, confirmar ou esclarecer passagens mais enigmáticas, além de rever a pontuação e a ênfase das frases, num retorno à fonte oral da palavra de Lacan. Sempre que julgamos oportuno, assinalamos, em nota, na tradução, as variantes entre as versões citadas, e a opção por uma delas foi, de modo geral, confirmada pelo documento em áudio. O trabalho se desenvolveu da seguinte forma: Ao longo de mais de três anos, uma primeira proposta de tradução de cada lição era levada ao grupo de trabalho que a discutia em seminário, sob a orientação de Eduardo Vidal. Esta discussão dava lugar a sugestões, transmitidas à tradutora, seja para modifica­ ção de algum termo, seja para inclusão de notas ou de anexos. Isso levou a uma interlocução que muito enriqueceu o trabalho, permitindo que as sugestões fos­ sem analisadas e discutidas, sempre que possível, na primeira revisão. Uma revisão final, unificando terminologia, notas e normas de impressão, contou

8

Ao leitor

com a leitura atenta de Isabela Bueno do Prado, responsável pelas publicações da Escola. Esperamos contribuir com este trabalho, que só pôde ser possível como tra­ balho de Escola, para a leitura deste seminário, que é sem dúvida fundamental na teorização lacaniana da psicanálise. Fica, contudo, a ressalva de que, longe de pôr um ponto-final na leitura e na tradução deste seminário, deixamos aqui uma abertura e um convite para que se relance esse encare.

9

Lição 1

21 de novembro de 1972 (O seminário é precedido por um longo silencio). Aconteceu-me não publicar A ética da psicanálise. Naquele tempo, isso era, de minha parte, urna forma de polidez: "você primeiro, por favor, eu lhe imploro, eu lhe 'irnpioro',I passe você primeiro!" Com o tempo, adquiri o hábito de perceber que, afinal de contas, eu podia dizer um pouco mais sobre aquilo. E depois, percebi que o que constituía o meu caminhar era algo da ordem do "eu não quero saber nada disso". E provavelmente o que faz também, com o passar do tempo, com que eu esteja aqui ainda (encare)/ e que vocês também estejam aqui - eu me admiro sempre disso - ainda (encare)! Há alguma coisa, de uns tempos para cá, que me favorece, é que há tam­ bém em vocês, na grande massa daqueles que estão aqui presentes, um mesmo - aparentemente um mesmo - " eu não quero saber nada disso". Só que, tudo se resume nisso, será o mesmo? O "eu não quero saber nada disso", de um certo saber que lhes é transmitido por migalhas, será realmente disso que se trata? Eu não creio. E é até mesmo porque vocês me supõem partir de outro lugar, nesse " eu não quero saber nada disso", que essa suposição os liga a mim. De modo que, se é verdade que eu diga que, em relação a vocês, 1

2

Em francês, jogo de palavras entre j'vaus-en-prie, fórmula habitual para 'por favor', literal­ mente: 'eu lhe imploro' e a fórmula que Lacan introduz, por homofonia: j'vous-en-pire (prie, v. prier =rogar, implorar/pire =pior, remetendo ao seu seminário do ano anterior: . .. ou pire). Caberia, em português, jogar com: eu lhe imploroj'impioro'. (N.T.) Optamos por não traduzir, neste seminário, o título Encare e, no corpo do texto, colocá-lo entre parênteses cada vez que uma tradução se fizer necessária, para facilitar o entendimento da frase. O advérbio encare pode ter vários significados em francês, alguns dos quais aparecem prioritariamente no discurso de Lacan: 1. Com o sentido do português 'ainda': marcando a persistência de uma ação ou de um momento dado. Ex: Il est encare jeune (Ele ainda é jovem). Numa frase negativa, indicando que o que deve ocorrer não ocorreu até aquele momento. Ex: Naus n'avans encare rien décidé (Ainda não decidimos nada), ou a expressão pas encare, indi­ cando a persistência de uma ausência: Elle n'avait pas encare vingt ans (Ela ainda não tinha 20 anos); 2. Com o sentido de 'de novo', 'mais um', 'um outro', 'uma vez mais', 'ainda mais' ... , marcando uma ideia de repetição ou de suplemento ou acréscimo. Ex: Vaus vaus êtes encare trompé (Você se enganou de novo); Encare un verre? (Mais um copo?); Encare! Encare! (Mais! De novo!). O último sentido aparece em Lacan mais evidentemente relacionado ao gozo. (N.T.) 11

Encare

eu só posso estar aqui na posição de analisante do meu " eu não quero saber nada disso", até que vocês alcancem o mesmo, ainda falta um bocado. E é bem isso, é bem isso que faz com que só quando o de vocês lhes parecer suficiente, vocês possam, se estiverem, inversamente} entre meus analisantes, vocês pos­ sam, normalmente, se desligar de sua análise. Não há, ao contrário do que se diz, nenhum impasse de minha posição de analista com o que faço aqui, com relação a vocês.4 No ano passado, intitulei o que eu pensava poder lhes dizer " ... ou pior" (... ou pire), depois isso "oupiora" (ça s'oupire, com s apóstrofo).5 Isso não tem nada a ver com 'eu' nem com 'tu': eu não te "oupioro", nem tu me "oupioras". Nosso caminho, o do discurso analítico, não progride senão por esse estreito limite, por esse fio de navalha que faz com que em outros lugares isso só possa " oupio­ rar" (s'oupirer). E esse discurso que me sustenta, e para recomeçá-lo este ano, vou inicialmente supor vocês na cama ... uma cama de pleno uso, para dois. Preciso aqui desculpar-me junto a alguém que, tendo procurado indagar sobre o meu discurso, um jurista, para situá-lo, pensei que podia dizer-lhe para fazê-lo perceber qual é seu fundamento, ou seja, que a linguagem não é o ser falante - que eu não me achava deslocado por ter de falar numa Faculdade de Direito, aquela onde é sensível, sensível pelo que se chama a existência dos códigos, do código civil, do código penal e de muitos outros, que a linguagem se mantém ali, fica à parte, e o ser falante - o que chamamos de 'os homens' - tem de lidar com ela, tal corno ela se constituiu ao longo do ternpo.6 Então, começar supondo vocês na cama... é claro que eu preciso me desculpar junto a ele! Mas nem por isso vou deixar de falar disso hoje, e se posso desculpar-me 3

4

5

6

12

Depois de falar de sua posição de analisante 'aqui e agora', Lacan estaria falando da posição inversa em que se encontravam alguns de seus ouvintes, a de serem seus analisantes. [Nota encontrada na Versão 1, como as demais notas sem identificação ao longo deste trabalho. As outras notas estarão identificadas como a seguir: (N.T.)] A expressão 'com relação a vocês' está suprimida na versão publicada (op. cit., p. 9) e logo depois foi introduzida uma separação: Parte 1. (N.T.) Lacan joga com as homofonias de ou pire (ou pior), com ça s'oupíre, fórmula criada por ele, que pode ser lida: "isso oupiora", ou, se tirarmos o apóstrofe, ça soupire (isso suspira), ou ainda s'assoupir (adormecer). (N.T.) A versão publicada (op. cit., p. 10) omite a parte final desta frase, que consta também da Versão 2: "tem de lidar com ela, tal como ela se constituiu ao longo do tempo", substituindo-a por: "é uma coisa bem diferente". (N.T.)

Lição 1

-

21 de novembro de 1972

é para lembrar a ele que, no fundo de todos os direitos, há aquilo de que vou falar, ou seja, o gozo. O Direito fala disso, o Direito não ignora nem mesmo este ponto de partida, esse bom Direito Costumeiro, no qual se funda o uso do con­ cubinato, o que quer dizer deitar juntos. Evidentemente, vou partir de outra coisa, daquilo que, no Direito, permanece velado, a saber, o que se faz com isso:7 faz-se amor.8 Mas isso é porque eu parto do limite, de um limite do qual efetivamente se deve partir para ter seriedade, o que eu já comentei: poder estabelecer a série9 do que se aproxima disso.10 O usufruto,11 essa é realmente uma noção de Direito e que reúne numa só palavra o que eu já lembrei no seminário sobre A ética da psicanálise, de que falava há pouco, a saber, a diferença que há do outil,12 do útil ao gozo. O útil serve para quê? É o que nunca ficou bem definido por causa de um respeito, de um respeito prodigioso que, graças à linguagem, o ser falante tem pelo meio. O usufruto quer dizer que se pode gozar de seus meios, mas que não se deve desperdiçá-los. Quando se recebeu uma herança, tem-se o usufruto

Convém assinalar aqui uma diferença entre o texto do seminário publicado (op. cit., p. 10), onde se lê: ce qu 'on y Jait, cuja tradução é 'o que se faz aí', remetendo ao lugar, à 'cama', men­ cionada por Lacan um pouco antes, e as Versões 1 e 2, que trazem ambas: ce qu 'on en Jait, cuja tradução pode ser 'fazer disso' ou 'fazer com isso', como traduzimos acima. (N.T.) 8

9

Em francês: s'étreindre, que tem o sentido mais amplo de 'abraçar-se, estreitar-se', mas aqui, num eufemismo muito habitual na língua francesa, evoca especificamente o ato sexual, o que não é o caso do verbo ' abraçar', em português. (N.T.) Em todas as lições, de 22 de fevereiro de 1967 a 14 de junho de 1967 do seminário A lógica do fantasma, Lacan utilizou uma série (no caso a série infinita dita de Fibonacci) para tentar dar, como ele vai fazer aqui, " ... a topologia do que acontece relativamente ao gozo" (lição de 30 de maio de 1967).

10 A

versão publicada (op. cit., p. 10) introduz aqui a seguinte frase, que não consta das duas outras versões: "Esclarecerei aqui, com uma palavra, a relação entre o direito e o gozo." (N.T.)

11

12

Em francês: usufrui!, sinônimo de jouissance (gozo), na linguagem jurídica, vem do latim usu­ fructus: "Direito que se confere a alguém para, por certo tempo, retirar de coisa alheia todos os frutos e utilidades que lhe são próprios, desde que não lhe altere a substância ou o destino." Dicionário Aurélio do séc. XXI, versão eletrônica. (N.T.) Pela proximidade da pronúncia, em francês, entre outil (ferramenta, instrumento) e utile (útil). O Dictionnaire étymologique de la Zangue française de O. Bloch e W. Von Wartburg, p. 452, comenta que no século XVI ou til se escrevia muitas vezes util, por cruzamento com o adjetivo utile. A versão publicada (op. cít., p. 10) suprime a forma ou til. 13

Encare

dela, pode-se desfrutar dela com a condição de não usá-la demais. É aí que está a essência do direito, que é repartir, distribuir, retribuir o que é do gozo. Mas o que é o gozo? É precisamente o que, por enquanto, se reduz para nós a uma instância negativa. O gozo é o que não serve para nada, só que isso não explica muita coisa. Aqui eu aponto a reserva que esse campo do direito implica: direito ao gozo. O direito não é o dever. Nada força ninguém a gozar, exceto o supereu. O supereu é o imperativo do gozo: Goze! É o mandamento que parte de onde? É bem aí que se encontra o ponto axial que o discurso analítico interroga.13 Foi exatamente nessa via que eu tentei mostrar, numa certa época, na época do "você primeiro", que deixei passar, que se a análise nos permite avançar numa certa questão, é porque não podemos nos limitar àquilo de onde eu parti, certamente, com todo o respeito, ou seja, da Ética de Aristóteles,l4 para mostrar qual deslizamento se fizera com o tempo. Deslizamento que não é progresso, deslizamento que é contorno, deslizamento que, de uma consideração, no sen­ tido próprio do termo, de uma consideração do ser, que era a de Aristóteles, levou ao tempo do utilitarismo de Bentham/5 ao tempo da Teoria das fícções,l6 ao tempo daquilo que, da linguagem demonstrou o valor de utensílio, o valor de uso. O que nos deixa enfim voltar a nos interrogar sobre o que se refere a esse ser, a esse 'Bem Supremo', colocado ali como objeto de contemplação, e de onde se tinha acreditado poder edificar uma ética. 13

As duas últimas frases estão suprimidas na versão publicada (op. cit., p. 10). A Versão 2 traz aqui: "E o mandamento de onde parte tudo, é bem aí que se encontra... " (N.T.)

14

ARISTOTE, É tique à Nicomaque. Paris: Vrin, 1990. ARISTÓTELES, " Ética a Nicômaco" . In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 45.

15

Lacan cita Bentham no dia 9

de maio de 1950, numa comunicação para a XJII• Conferência dos psicanalistas de língua francesa, retomada nos Escritos: "Introdução teórica às funções da psi­ canálise em criminologia" . In: LACAN, J., Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 127. Lacan também faz referência a Bentham duas vezes, durante seu seminário sobre A ética da psicanálise, nos dias 18 de novembro de 1959 e 11 de maio de 1960 (LACAN, J., L'éthique de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1986. LACAN.J. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edi­ tor, 1988). Cf. SOUBBOTNIK, M. A. "Le tissu de la fiction: approche de Bentham". In: Revue du Littoral n° 36. Paris : EPEL, out. 1992, p. 65, Cf. Anexo I.

16

BENTHAM, J. De l'ontologie et autres textes sur les fictions. Paris: Seui!, 1997. Texto em inglês estabelecido por Philip Schofield, tradução francesa e comentário de Jean-Pierre Cléro e Chris­ tian Lava!. BENTHAM, J. "Théorie des fictions". In: Revue Discours psychanalytique. Paris: Association Iacanienne internationale, mars 1966.

14

Lição 1 -21 de novembro de 1972

Deixo-os então nessa cama, com suas inspirações. Eu vou sair e, uma vez mais, escreverei sobre a porta, para que na saída, talvez vocês possam se dar conta dos sonhos a que se entregaram, nessa cama, a seguinte frase17: "o gozo do Outro, do Outro com . . . " - parece-me que repito isso há tanto tempo que já deve bastar que eu pare por aqui, já enchi tanto seus ouvidos com essa mai­ úscula que vem depois, que agora ela aparece por toda parte, essa maiúscula, diante do Outro, mais ou menos oportunamente, aliás, isso se imprime a torto e a direito - "o gozo do Outro, do corpo do outro que O (aqui também com maiúscula) que O simboliza, não é o signo do amor" .18 Eu escrevo isso e não escrevo depois: acabou, nem amém, nem assim seja.19 Ele não é o signo, mas é contudo a única resposta. O complicado é que a res­ posta, ela já está dada no nível do amor, e o gozo, por esse motivo, permanece uma questão, questão no fato de que a resposta que ele possa constituir não é necessária inicialmente. Não é como o amor. O amor, sim, faz sinal, e como eu tenho dito já há muito tempo, é sempre recíproco. Se eu propus isso muito devagar, dizendo que os sentimentos são sempre recíprocos, era para que ... ah! para que isso me retornasse: - E então? E então? E o amor? E o amor, ele é sempre recíproco? - Mas é claro! Mas é claro!20 Foi mesmo por isso que se inventou o inconsciente, para se perceber que o desejo do homem é o desejo do Outro, e que o amor é uma paixão que pode ser a ignorância desse desejo, mas não lhe tira todo o seu alcance. Quando se olha mais de perto, veem-se as devastações que ele causa. Então, certamente, isso explica que o gozo do corpo do outro, esse gozo, não seja uma resposta necessária. Isso vai até mais longe: também não é uma 17

18

Na versão publicada (ap. cit., p. 11), a longa frase que se segue foi resumida: "O gozo do Outro, do Outro com O maiúsculo, do corpo do Outro que o simboliza, não é o signo do amor". (N.T.) Não há nenhum testemunho de que esta frase tenha sido escrita, nem na porta nem no quadro. Nós a consideramos, todavia, como um escrito e a transcrevemos entre aspas. Lacan volta cons­ tantemente a esta frase, nesta aula bem como nas seguintes. Decidimos escrever regularmente gozo do Outro com 'O' maiúsculo, já que Lacan é muito explícito nesse ponto, e gozo do corpo do outro com ' o' minúsculo, porque se trata desta vez do outro que O simboliza, precisamente esse grande Outro. A versão publicada (op. cit., p. 11) introduz aqui uma separação: Parte 2.

19

Neste ponto da versão publicada (op. cit., p. 11), as frases 2, 3 e 4 do parágrafo foram suprimi­ das, resumindo-se a: "O amor, é certo, faz sinal, e é sempre recíproco". (N.T.)

20

Lacan pronunciou com insistência: Mais z 'oui, mais z'oui. 15

Encare

resposta suficiente, porque o amor, ele sim, demanda o amor, e não cessa de demandá-lo e de demandá-lo sempre mais (encare). Encare, este é o nome pró­ prio dessa falha de onde, no Outro, parte a demanda de amor. Então, de onde parte aquilo que é capaz, é certo, mas de modo não necessá­ rio, não suficiente, de responder pelo gozo, gozo do corpo, do corpo do outro? E exatamente daquilo que, no ano passado, inspirado de certo modo pela capela de Sainte-Anne, que me dava nos nervos, eu me deixei levar e chamei de (a)mur.21 O (a)mur é o que aparece em signos bizarros no corpo e que vem de mais além, de fora, daquele lugar que acreditamos poder vislumbrar no micros­ cópio, sob a forma do gérmen, sobre o qual eu lhes assinalo que não se pode dizer que ali esteja a vida, já que isso também traz a morte, a morte do corpo, que isso o reproduz, que isso o repete, que é daí que vem o en-corpsf encore.22 E falso dizer: separação do soma e do gérmen, já que por abrigar esse gér­ men, o corpo traz rastros (traces). Há rastros no (a)mur. O ser do corpo é sexu­ ado, certamente, mas isso é secundário, como se diz. E como a experiência o demonstra, não é desses rastros que depende o gozo do corpo, enquanto ele simboliza o Outro. E isso que mostra a mais simples consideração das coisas. De que se trata então no amor? Como propõe a psicanálise, com uma audá­ cia tanto mais incrível que toda a sua experiência vai contra, o que ela demons­ tra é o contrário, o amor é fazer Um. É verdade que não se fala de outra coisa há muito tempo, do Um: a fusão, o Eros seriam tensão em direção ao Um.23 Há Um (Y a d' l 'Un)/4 foi com isso que sustentei meu discurso do ano pas­ sado, e certamente não foi para confluir nessa confusão original.. . a do desejo 21

Em português seria '(a) muro' em lugar de 'amor'. (N.T) Na lição de 6 de janeiro de 1972, do seminário O saber do psicanalista, que ele dava na capela de Sainte-Anne, Lacan fala aos muros: " ...já que eu pensava falar no Anfiteatro Magnan e estou falando (n)a Capela. Que história! Vocês ouviram? Vocês ouviram? Eu falo À CAPELA! Esta é a resposta, eu falo à Capela, isto é, AOS MUROS!" Mais adiante, ele utiliza o neologismo (a)mur que nós retomamos: "O amor, o bem que a mãe quer a seu filho, o '(a)muro', basta pôr entre parênteses o a para enconh·ar o que nós tocamos com a mão todos os dias. E que mesmo entre mãe e filho, a relação que a mãe tem com a castração, isso conta um bocado!"

22

Homofonia em francês entre en-corps (em corpo) e encare (Cf. nota 2). (N.T.)

23

A versão publicada (op. cit., p. 12) traz aqui: "O amor, será fazer um? O Eros será tensão para o Um?" (N.T.)

24

"Há Um" é uma tradução aproximada do conceito "Y a d' l'Un" . Como em português não existe o partitivo, qualquer tentativa de tradução do partitivo francês por "de, do", é completamente forçada e sem sentido em português. É como se disséssemos "Há' do' vinho no copo". (N.T.)

16

Lição 1 - 21 de novembro de 1972

que não nos conduz senão à visada da falha onde se demonstra que o Um só tem a ver com a essência do significante. Se eu interroguei Frege/5 inicialmente, foi para tentar demonstrar a hiância que há desse Um a alguma coisa que tem a ver com o ser e, por detrás do ser/6 com o gozo. O amor... posso lhes dar, de todo modo, um pequeno exemplo, o exemplo de um periquito que estava enamorado de Picasso. Pois bem, isso se via pela maneira como ele beliscava a gola de sua camisa e as abas de seu casaco. Esse periquito estava realmente enamorado daquilo que é essencial ao homem, ou seja, sua vestimenta. Esse periquito era como Descartes, para quem os homens eram roupas en proménade,27 se vocês me permitirem, certamente, isso promete a mênade/8 isto é, quando são tiradas. Mas isso é apenas um mito, um mito 2 5

26

27

28

A primeira referência a Frege estaria na lição de 20 de março de 1957 do seminário A relação de objeto. Encontra-se essa referência a Frege novamente na lição de 28 de fevereiro de 1962, do seminário sobre A identificação (inédito), referência que se limita a uma só frase: "Assim vocês não terão dificuldade - vocês encontrarão isso na leitura de Frege, ainda que Frege não entre por essa via, por falta de uma teoria suficiente do significante - em encontrar no texto de Frege, que os melhores analistas matemáticos da função da unidade, nomeadamente Jevons e Schrtider, enfatizaram, da mesma maneira que eu, a função do traço unário". Os pri­ meiros desenvolvimentos importantes dados à leitura de Frege aparecem em janeiro de 1965, no seminário Problemas cruciais da psicanálise (inédito), onde Lacan diz explicitamente (20 de janeiro de 1965) reservá- los "à parte fechada deste curso, que terá o nome de seminário". Foi nas aulas fechadas de 27 de janeiro de 1965 e de 24 de fevereiro de 1965 que Yves Duroux e depois Jacques-Alain Miller centralizaram, respectivamente, suas intervenções em Frege. Nós nos referimos pela maiúscula do Um (Un) e a minúscula do ser (être) ao resumo de . . . ou pire. LACAN. J. Scilicet 5. Paris: Seuil, 1975 (escrito anteriormente em ''L'étourdit", segundo DOR, J. Bibliographie des travaux de Jacques Lacan. Paris: Inter Editions, 1983, p. 77) . Encontra-se Ê tre, com maiúscula, em LACAN, J., "L'étourdit". In: Scilicet 4. Paris: Seuil, 1973. Termo inventado por Lacan Guntando promenade =passeio e ménade =mênade, bacante (N.T.)) cuja referência se encontra em: DESCARTES, Méditations métaphysiques (Segunda meditação, parágrafo 14). Paris: Gallimard, 1953, p. 281: "...se por acaso eu olhasse de uma janela homens passando na rua, à vista dos quais eu não deixo de dizer que vejo homens, do mesmo modo que digo que vejo cera, e no entanto, que vejo eu dessa janela senão chapéus e casacos ... " Mênade (ou bacante): figura da mitologia grega, companheira de Dioniso, geralmente con­ sagrada aos mistérios desse deus. Ninfa campestre, ama de leite, depois acompanhante de Dioniso. Representavam-se as mênades formando seu séquito, descabeladas, nuas ou vestidas de véus transparentes que mal dissimulavam sua nudez, e dando gritos. Elas despedaçaram Orfeu em seus ritos sanguinários. Quanto às mulheres adeptas desse culto, elas usavam entor­ pecentes e entravam num êxtase sagrado, que fazia com que se tornassem a presa de Dioniso. Dictionnaire Larousse. Paris: Larousse, 1963, tomo 7, p. 247 e P. GRIMAL, P. Dictionnaire de la mythologie grecque. Vendôme: P. U.F., 1951, p. 288.

17

Encare

que vem convergir com a cama de há pouco. Gozar de um corpo, quando não há mais roupas, é algo que deixa intacta a questão do que faz o Um, isto é, a da identificação. O periquito se identificava a Picasso, vestido. O mesmo acontece com tudo o que se refere ao amor. Dito de outra forma, o hábito ama o monge, pois é por aí que eles formam apenas Um. Em outras palavras, o que há sob o hábito e que nós chamamos de corpo talvez não seja, nesse caso, senão aquele resto que eu chamo de objeto a. O que faz a imagem se sustentar é um resto. E o que a análise demonstra é que o amor, em sua essên­ cia, é narcísico, e o blá-blá-blá sobre o objetai é algo, justamente, cuja substância ela sabe denunciar no que é resto no desejo, isto é, sua causa, e o que o sustenta, por sua insatisfação ou mesmo por sua impossibilidade. A impotência do amor, embora ele seja recíproco, está ligada a essa igno­ rância de ser o desejo de ser Um. Isso nos leva à impossibilidade de estabelecer a relação deles/ dois.29 Deles quem? Dos dois sexos.30 Seguramente, como eu disse, o que aparece nesses corpos, sob essas formas enigmáticas que são os caracteres sexuais, que não passam de secundários, sem dúvida faz o ser sexuado. Mas o ser é o gozo do corpo como tal, isto é, 31 como a coloquem-no como vocês quiserem - como a sexuado. Pois o que é dito gozo sexual é dominado, é marcado pela impossibilidade de estabelecer como tal, em nenhum lugar do enunciável, esse único Um que nos interessa, o Um da relação: relação sexuaP2 E o que o discurso analítico demonstra que, justamente no que diz res­ peito a um desses seres como sexuado, o homem, enquanto provido do órgão dito fálico - eu disse dito' -, o sexo corporal, o sexo da mulher - eu disse da' mulher - justamente, não há, não existe 'a' mulher. A mulher é 'não-toda', o sexo da mulher não lhe diz nada, a não ser por intermédio do gozo do corpo. -

I

29

Em francês há homofonia entre d'eux (deles) e deux (dois). (N.T.)

30

Neste ponto, a versão publicada (op. cit., p. 12) introduz uma separação: Parte 3. (N.T.)

1

31 A versão publicada (op. cit., p. 13) suprime a parte que se segue, resumindo-a: "isto é, como assexuado". (N.T.)

32 Em francês: I' Un de la relation: rapport sexuel. Cabe aqui um comentário sobre os termos relation e rapport, que traduzimos ambos por 'relação' e que em muitos casos são termos equivalentes em francês. Ex: pode-se dizer 'relations sexuelles' ou 'rapports sexuels', referindo-se ao coito ou cópula. O termo 'rapport', em matemática é, contudo, específico para indicar "razão, fração, quociente de duas grandezas da mesma espécie" . É nesse sentido que, embora haja 'relações sexuais', não há ' rapport' entre os dois sexos. Cf. Dicionário Le Petit Robert. (N.T.) 18

Lição 1

-

21 de novembro de 1972

O que o discurso analítico demonstra, permitam-me dizê-lo dessa forma, é que o falo é a objeção de consciência feita por um dos dois seres sexuados ao serviço a ser prestado ao Outro.33 E não me falem dos caracteres sexuais secundários da mulher porque, até segunda ordem, são os da mãe que primam nela. Nada distingue a mulher como ser sexuado, senão, justamente, o sexo. Que tudo gire em torno do gozo fálico, é exatamente isso que a experiência analítica testemunha, e testemunha nisso, que a mulher se define por uma posição que apontei como 'não toda' no que se refere ao gozo fálico. Vou um pouco mais longe: o gozo fálico é o obstáculo pelo qual o homem não consegue, eu diria, gozar do corpo da mulher, precisamente porque aquilo de que ele goza é desse gozo, o do órgão.34 E é por isso que o supereu, tal como indiquei há pouco, com o 'Goze!', é correlato da castração, que é o signo de que se reveste a confissão de que o gozo do Outro, do corpo do outro,35 não se pro­ move senão pela infinitude, e vou dizer qual: a que é sustentada pelo paradoxo de Zênon, nem mais nem menos, ele mesmo.36 Aquiles e a tartaruga, esse é o esquema do gozar, de um lado do ser sexuado. Quando Aquiles deu aquele passo e transou com Briseida, tal como a tartaruga, ela também avançou um pouco, isso porque ela é 'não toda', 'não toda' dele. Falta um pouco. E foi preciso que Aquiles desse o segundo passo, como vocês sabem, e assim por diante. Foi dessa mesma forma que, em nossos dias, mas somente em nossos dias, chegou-se a definir o número, o verdadeiro, ou melhor dizendo, o reaP7 Por­ que o que Zênon não tinha visto é que a tartaruga também não está preservada dessa fatalidade de Aquiles, é que como o passo dela é cada vez menor, tam33

Parece-nos que aqui se poderia escrever 'outro', com minúscula, tendo em conta a apresenta­ ção um tanto fenomenológica que Lacan faz.

34

Vários ouvintes anotaram: orgasmo (pela proximidade de pronúncia entre organejorgasme). (N.T.)

35

Para a justificação de 'o' minúsculo em 'outro', cf. a nota 33, acima.

36

Aristóteles nos relata assim o segundo argumento de Zênon contra o movimento: "Ele con­ siste em dizer que o mais lento na corrida não pode ser alcançado pelo mais rápido, visto que o perseguidor deve atingir necessariamente o ponto de onde partiu o perseguido ... " (Physique, VI, ix, 23914).

37

Quanto aos números reais, cf. nota 48. 19

Encare

bém não chegará nunca ao limite. E é nisso que se define um número qualquer que ele seja, se ele é real. Um número tem um limite, e é nessa medida que ele é infinito. Aquiles, isso fica bem claro, só pode ultrapassar a tartaruga, ele não pode alcançá-la, ele só a alcança na infinitude. Fica assim dito o que se refere ao gozo, na medida em que ele é sexual. O gozo é marcado, de um lado, por esse buraco que não lhe assegura outra via senão a do gozo fálico. Será que do Outro38 lado, algo não poderia ser alcançado que nos dissesse como seria realizado aquilo que até aqui não passa de falha, de hiância no gozo? E aquilo que, coisa singular, pode ser sugerido por apreciações muito estranhas (étranges) . Étrange é uma palavra que pode ser decomposta em être ange, ser anjo; é exatamente algo contra o qual nos põe de sobreaviso a alter­ nativa de ser tão tolo quanto o periquito de há pouco. Contudo, olhemos mais de perto o que nos inspira a ideia de que, no gozo, no gozo dos corpos, o gozo sexual tenha esse privilégio de poder ser interrogado como sendo especificado, pelo menos, por um impasse. E nesse espaço, espaço do gozo, tomar algo de limitado, de fechado. É um lugar e falar disso é uma topologia.39 Aqui nos guia aquilo que - em algo que vocês verão publicado em destaque do meu discurso do ano passado - eu creio demonstrar: a estrita equivalência de topologia e estrutura.40 O que distingue o anonimato do que é chamado de gozo, ou seja, o que é ordenado pelo direito, uma geometria, justamente, a heterogeneidade do lugar, é que há um lugar do Outro. Desse lugar do Outro, de um sexo como Outro, como Outro absoluto, que nos permite propor o mais recente desenvolvimento dessa topologia, proporei aqui o termo compacidadeY Nada mais compacto do que uma falha, se estiver bem claro que, em algum lugar, está dado que a interseção de h1do o que aí se fecha sendo admitida como existente, num número finito de conjuntos, disso resulta, é uma hipótese, que a interseção existe num número infinito.42 Isso é

38

Para a justificação de maiúscula em Outro, cf. nota 50.

39

Se o termo 'topologia' indica um setor da matemática, a expressão 'uma topologia', aqui utilizada por Lacan, é comumente sinônimo de 'estrutura topológica'.

40

LACAN, J. "L' étourdit". In: Scilicet 4. Paris: Seuil, 1973.

41 Cf. Anexo 2 desta lição. 42

20

A versão publicada (op. cit., p. 14) traz uma versão diversa da frase acima: "Nada mais com­ pacto que uma falha, se estiver bem claro que, a interseção de tudo o que aí se fecha sendo

Lição 1 - 21 de novembro de 1972

a própria definição da compacidade.43 E essa interseção de que eu falo é a que propus, há pouco, como sendo aquilo que cobre, o que faz obstáculo à relação sexual suposta. Ou seja, o que me leva a enunciar que o avanço do discurso analítico está precisamente nisso: o que ele demonstra é que, como seu discurso só se sustenta pelo enunciado de que 'não há', de que é impossível estabelecer a relação sexuaL é por aí que ele determina também qual é realmente o estatuto de todos os outros discursos. Está aí nomeado o ponto que cobre a impossibilidade da relação sexual como tal. O gozo, enquanto sexual, é fálico, isto quer dizer que ele não se refere ao Outro como tal. Sigamos aí o complemento dessa hipótese de compacidade. Uma fórmula nos é dada pela topologia que qualifiquei de a mais recente, ou seja, de uma lógica construída precisamente sobre a interrogação do número e daquilo a que ele con­ duz, uma restauração44 de um lugar que não é o de um espaço homogêneo. O complemento dessa hipótese de compacidade é o seguinte: no mesmo espaço delimitado, fechado, suposto instituído, o equivalente do que eu disse, há pouco, da interseção passando do finito ao infinito45 é que supondo-se esse mesmo espaço delimitado, fechado, recoberto de conjuntos abertos, isto é, daquilo que se define como excluindo seu limite, do que se define como maior do que um ponto, menor do que um outro, mas em caso algum igual ao ponto de partida nem ao ponto de chegada, para lhes dar uma imagem rápida,46 o mesmo admitida como existente sobre um número infinito (sic) de conjuntos, disso resulta que a inter­ seção implica esse número infinito." (N.T.) 43

Com esta definição da compacidade em termos finitos, na qual a hipótese recai sobre uma família finita e a conclusão sobre uma família infinita, Lacan tenta dar uma topologia do gozo do lado fálico em termos bastante similares aos utilizados no seminário A lógica do fantasma, com a série de Fibonacci. Nos dois casos, a impossibilidade da relação sexual é a impossibi­ lidade de um ponto de obstáculo que o infinito não pode oferecer: aqui, sob a forma de uma conclusão que recai sobre o infinito e em A lógica do fantasma, com a série de Fibonacci, sob a forma da incomensurabilidade de "a" a 1 .

44 A versão publicada (op. cit. p. 14) traz aqui: "à l'instauration" ("à instauração d e u m lugar ..." ) . (N.T.) 45 A versão publicada (op. cit. p. 14) traz aqui: "s'étendant à l 'infini" ("estendendo-se ao infinito"). (N.T.) 46

Essa definição é não apenas uma maneira de "dar uma imagem rápida", mas as noções de "maior do que um ponto" e "menor do que um outro" não se sustentam sem se referir a uma reta orientada, o que não está indicado aqui. 21

Encare

espaço sendo, pois, suposto recoberto por espaços abertos, é equivalente dizer, isso se demonstra, que o conjunto desses espaços abertos se oferece sempre a um sub-recobrimento de espaços abertos, todos eles constituindo uma finitude, ou seja, que a sequência dos ditos elementos constitui uma sequência finita.47 Vocês podem notar que eu não disse que eles eram contáveis48 e, no entanto, é isso que o termo finito implica. Para serem contáveis, é preciso que se encontre aí uma ordem, e devemos marcar um tempo antes de supor que essa ordem seja encontrável. Mas o que quer dizer, em todo caso, a finitude demonstrável desses espaços abertos, capazes de recobrir esse espaço delimitado, fechado, no caso, do gozo sexual, o que o implica, em todo caso, é que os ditos espaços -e já que se trata do Outro lado, vamos colocá-los no feminino -podem ser tomados um por um, ou ainda, uma por uma.

Ora, é isso que se produz nesse espaço do gozo sexual que, por esse fato, revela-se compacto. Essas mulheres não-todas, da forma como se isolam em seu ser sexuado, o qual, portanto, não passa pelo corpo, mas pelo que resulta de uma exigência na palavra, de uma exigência lógica. E isso muito precisamente porque a lógica, a coerência inscrita no fato de que a linguagem ex-sista", de que ela esteja fora dos corpos que são agitados por ela, o Outro, o Outro com O maiúsculo, que agora se encarna, se podemos dizer, como ser sexuado, exige esse uma por uma" . 11

11

47

Lacan dá aqui uma definição da compacidade em termos de abertos que não é, stricto sensu, o complemento, ou complementar à primeira, em termos de fechados, mas que está muito exatamente contraposta a ela, cf. Anexo 2.

48 Lacan utiliza aqui o termo contável, onde mais comumente em matemática se usaria o termo enumerável. Não se deve entender aqui que não se possa contar ou enumerar os elementos de uma sequência finita. Os elementos de uma sequência finita são efetivamente contáveis ou enumeráveis, bem como os de uma sequência ir.finita, se ela for constituída de elementos discretos. O primeiro dos exemplos é a sequência finita e discreta constituída pelos números inteiros naturais N (-oo.. .-1.0,1,2,3 ...oo) que podem ser contados ou enumerados. Fala-se então de infinito enumerável. De um modo geral, qualifica-se de enumerável todo infinito em que se pode fazer cada um dos elementos corresponder a um número da sequência dos inteiros naturais (diz-se então que ele é equipotente a N). Mas o que não se pode contar ou enumerar são os elementos de um conjunto infinito e contínuo, tal como o dos números reais R, repre­ sentado por todos os pontos de um segmento de reta. Qualquer intervalo da reta numérica real R contém uma infinidade de pontos. Fala-se então de infinito não enumerável. Lacan não quer dizer, portanto, que os elementos de uma sequência finita não sejam contáveis ou enu­ meráveis. Ele salienta apenas indiretamente essa característica importante de uma sequência ser ou não enumerável conforme ela seja ou não equipotente a N (sequência infinita) ou a uma de suas partes (sequência finita). 22

Lição 1 - 21 de novembro de 19 72

E é bem aí que é estranho, que é fascinante, é o caso de dizê-lo - Outro fascinação, Outro fascínum49 - essa exigência do Um, corno já estranhamente o Parmênides podia nos fazer prever, é do Outro que ela sai: ali onde está o ser está a exigência da infinitude. Eu comentarei, voltarei a tratar do que se refere ao lugar do Outro. Mas desde já, para lhes dar urna imagem, e porque afinal de contas eu suponho que alguma coisa do que lhes proponho possa cansá-los, vou ilustrá-lo para vocês. Sabe-se muito bem o quanto os analistas se divertiram em torno desse Dom Juan, do qual fizeram tudo, inclusive, o que é o cúmulo, um homossexual! Será que ao centrá-lo no que acabo de lhes desenhar, nesse espaço do gozo sexual a ser recoberto, do Outro50 lado, por conjuntos abertos e terminando nessa finitude... eu marquei bem que não disse que era o número e, no entanto, é claro que isso ocorre, pois afinal podem ser contadas. O que é essencial no mito feminino de Dom Juan é exatamente isso, é que ele as tem urna por urna. E é isso que é o Outro sexo, o sexo masculino, no que se refere às mulheres. E exatamente nisso que a imagem de Dom Juan é capital, porque fica indicado que, afinal de contas, ele pode fazer urna lista delas e que, a partir dos nomes, pode-se contá-las. Se há mille e tre delas, é exatamente porque podem ser tornadas uma por uma, e aí está o essencial. Corno vocês podem ver, há aí algo bem diferente do Um da fusão univer­ sal. Se a mulher não fosse 'não toda', se em seu corpo ela não fosse 'não toda' corno ser sexuado, nada disso se sustentaria.51 O que isso quer dizer? Que eu pude52 lhes dar uma imagem dos fatos que são fatos de discurso - desse discurso que solicitamos que saia na análise, em nome 49

Fascinum é a palavra que designa o falo, na Roma antiga. Também quer dizer 'malefício', 'sor­ tilégio' . (N.T.)

50

Outro com O maiúsculo em "Outro lado", para marcar bem que é do lado do gozo do Outro, considerado como um espaço compacto, onde se desdobram recobrimentos abertos ao infinito dos quais se pode extrair, precisamente porque esse espaço é compacto, um sub-recobrimento finito (portanto, extrair "uma por uma" do infinito). O gozo do Outro lado é oposto aqui ao gozo fálico, ele também considerado um espaço compacto, mas onde se desdobra, desta vez, uma subfamília finita de espaços fechados, cuja interseção é não vazia, o que permite concluir, sempre porque o espaço é compacto, que todas as famílias - inclusive, pois, as famílias infini­ tas - têm elas próprias uma interseção não vazia (e, portanto, tirar uma conclusão sobre algo de infinito, onde a hipótese incide sobre o finito) .

51 A versão 52

publicada (op. cit., p. 16) introduz aqui uma separação: Parte 4.

Havia uma divergência no entendimento desta frase. A Versão 1 introduz aqui um subjuntivo 'que eu tenha podido', que dificultava a compreensão. (N.T.) 23

Encare

do quê? da falha de tudo o que se refere aos outros discursos - o aparecimento de algo onde o sujeito se manifesta em sua hiância, naquilo que causa seu desejo. Se não houvesse isso, eu não poderia fazer a articulação, a costura, a junção com algo que nos vem de outro lugar bem diferente: uma topologia da qual, porém, podemos dizer que ela não provém do mesmo lugar, mas de um outro discurso, de um discurso tão mais puro, tão mais manifesto no fato de que ele não é gênese senão de discurso. E que isso converge com uma experiência a tal ponto que isso nos permite articulá-la. Não haveria nisso algo de fato também para nos fazer voltar e justificar, ao mesmo tempo, aquilo que, no que eu pro­ ponho, se sustenta, se s'ouplre53 por não recorrer jamais a nenhuma substância, por não se referir jamais a nenhum ser, por estar em ruptura, por esse fato, com o que quer que se enuncie como filosofia? Será que isso não é justificado? Eu o sugiro - só mais tarde avançarei nessa questão - eu o sugiro, porque tudo o que se articulou sobre o ser, tudo o que o faz se recusar ao predicado e dizer, por exemplo, o homem é", sem dizer o quê, por aí nos é dada a indicação de que tudo o que é do ser está estreitamente ligado, precisamente, a essa secção do predicado e indica que nada em suma pode ser dito senão por esses desvios em impasse, por essas demonstrações de impossibilidade lógica, por onde nenhum predicado basta. E o que se refere ao ser, a um ser que se colocaria como absoluto nunca é senão a fratura, a quebra, a interrupção da fórmula ser sexuado", na medida em que o ser sexuado está implicado no gozo. 11

11

53

24

Cf. nota 5. (N.T.)

Anexo I

-

]. Bentham

Lição 1

21 de novembro de 1972

Jeremy Bentham nasceu em 1 748 numa periferia de Londres. Ele se tomou advogado em 1763, mas nunca exerceu e, além de seu interesse pelas ciências, pela química e a botânica, dedicou-se à redação de numerosas obras relativas às leis, na esperança de introduzir um rigor quanto à formulação, rigor ainda ausente da legislação inglesa. A Teoria das ficções obra publicada pela primeira vez em Londres, em 1932, é constituída por um conjunto de textos relativos à linguagem. Os parágrafos abaixo são tirados da Introdução da referida obra: O objetivo de Bentham, por suas observações linguísticas, foi compreender e mos­ trar em que as palavras, necessárias a todas as ciências, não são inocentes, e ele esperou, através de análises lógicas, chegar a fazer com que seu emprego, judi­ cioso e não ambíguo, seja possíveP São palavras como qualidades, quantidade, movimento, relação, liberdade etc .. Trata-se, portanto, de ficções enquanto representadas por palavras e não existindo senão através das palavras que as designam ou as representam. Nesse sentido, pode-se dizer que se trata de ficções, não ligadas à imaginação nem criadas por ela, mas criadas pela linguagem e somente pela linguagem?

1

2

BENTHAM, J. I11éorie desfictions. Paris: Association lacanienne internationale, Revue Discours psychanalytique, mars 1966, p. 23. Idem, p. 24. 25

Anexo II

-

A compacidade

Lição 1

21 de novembro de 1972 Resumo do texto redigido conforme as explicações de Jean-Michel Vappereau

A topologia é a parte da matemática que estuda a noção, a priori intuitiva, de continuidade e de limite. Pode ser dividida em topologia geral, topologia algébrica e topologia diferencial. A compacidade, à qual Lacan se refere nesta lição do seminário Encare, é uma noção de topologia geral que estuda principalmente, no prolongamento das noções de limite e continuidade, os espaços compactos e os espaços conexos. A compacidade pode ser definida de diversas maneiras, cuja equivalência pode ser demonstrada. Lacan se refere aqui à definição mais usual, que se for­ mula em termos de espaços abertos, bem como a uma definição em termos de espaços fechados, que ele apresenta como complementar da primeira. Intuitivamente, pode-se dizer que um espaço é aberto ou fechado conforme ele contenha ou não seus limites. Assim, na reta real R, o espaço fechado [ O, 1 ] compreende os pontos O e 1, enquanto o espaço aberto ] O, 1 [ não os compreende. Acrescentemos que, num espaço de referência dado, o complementar de um espaço aberto é um espaço fechado. No espaço E, o complementar do espaço A é �conjunto dos elementos de E que não pertencem a A. Uma de suas notações é A (não-A). Uma representação habitual de um conjunto e seu complementar é o diagrama de Carroll:

27

Encare

Um exemplo: na reta R, sobre o intervalo semiaberto ] 3, 8 ] o complemen­ tar do espaço aberto ] 3, 6 [ é o espaço fechado [ 6, 8 ] . I. Definição dita A : Em termos d e 'abertos', diz-se que um espaço topoló­ gico é compacto se de todos os recobrimentos abertos deste (inclusive, portanto, os recobrimentos infinitos), pode-se extrair um sub-recobrimento finito. Lacan dá essa definição por extenso: "o conjunto desses espaços abertos se oferece sempre a um sub-recobrimento de espaços abertos, todos eles consti­ tuindo uma finitude, ou seja, que a sequência dos ditos elementos constitui uma sequência finita."1 Deve-se entender recobrimento em seu sentido comum, por exemplo, como se diz que as telhas recobrem um telhado: se duas delas não se encaixarem corre­ tamente, o telhado não estará recoberto. Essas telhas dão a imagem de um reco­ brimento do plano R.2 No espaço euclidiano R3 o recobrimento poderá ser feito por esferas. Num espaço superior a 3, fala-se de recobrimento por hiperesferas. Nós nos situaremos simplesmente, como Lacan o faz implicitamente nessa lição/ no âmbito da topologia da reta numérica real R, assim chamada porque a cada ponto da reta corresponde um número real único. Sobre essa reta, o recobrimento do intervalo fechado [ O, 1 ] poderá ser feito, por exemplo, pelos intervalos seguintes: 1) Uma sequência infinita do tipo ] 1ln, 1 ], onde n é um número inteiro natural N, superior a 1 .

l 1 I 2, 1 l ; l 1 I 3, 1 l ; ] 1 I 4, 1 l ; . . . . .... ; ] 1 I n, 1 l 2) Um intervalo [ O, L: [ onde L: é um número compreendido entre O e 1. Mais brevemente, esse recobrimento pode ser escrito assim: G

=

{ ] 11n, 1 ] , [ O, L: [ : onde O < L: < 1 e n E: N, com n > 1}

e ter a seguinte imagem: 1 2

28

Cf. Lição 1, p. 22. (N.T.) Cf. Lição 1, p. 19, a passagem em que Lacan se refere ao exemplo de Zênon, Aquiles e a tarta­ ruga, que se situa sobre uma reta. (N.T.)

Lição 1

o

-

21 de novembro de 1972 - Anexo II

1 15 J r4

I 3

1 12

onde se vê que o recobrimento do espaço [ O, 1 ] é efetivo desde que 1/n < L:. O leitor atento terá notado que a definição da compacidade fala de recobrir um espaço fechado com espaços abertos. Ora, se o espaço a ser recoberto [ O, 1] se mostra como fechado, o que dizer dos espaços recobridores ] 1 f n, 1 ] e [ O, L: [ que são abertos de um lado e fechados do outro? É preciso aqui pedir a esse leitor que ponha de lado a representação intuitiva que ele tem dos abertos e fechados, que se apoia na escrita com colchetes ( [ ] ; ] [ ), para fazer um uso dos termos abertos e fechados conforme a definição de uma topologia (sinônimo de "uma estrutura topológica"). Dizíamos que o recobrimento do espaço [ O, 1 ] era feito pelo conjunto dos abertos notados: G

=

{ ] 1/n, 1 ] , [ O, L: [ : onde O < L: < 1 e n E N, com n > 1}

Esse recobrimento é infinito, já que a sequência ] 1/n, 1 ] é infinita. Quando n tende para o infinito, 1/n tende para O, sem jamais o alcançar e o recobrimento só é possível juntando a essa sequência infinita o espaço [ O, L: [. Desse recobrimento infinito G vê-se que se pode extrair um sub-recobri­ mento finito, desde que 1/n < .L:. Por menor que seja L: sempre haverá 1/n menor. Se, por exemplo, .L: = 1/10 000 poderemos extrair do recobrimento infinito G o sub-recobrimento finito G': G' = { ] 1/2, 1 ] , ......., ] 1/10 001, 1 ] I [ o, 1/10 000 [ } Acabamos, pois, de demonstrar que sobre o intervalo fechado [ O, 1 ] podía­ mos extrair um sub-recobrimento finito de um recobrimento infinito. Se puder­ mos proceder a essa extração a partir de qualquer recobrimento infinito, teremos

29

Encare

demonstrado que o intervalo [ O, 1 ] é 'compacto'. Demonstra-se, efetivamente, (teorema de Heine-Borel) que sobre qualquer intervalo fechado e limitado da topologia usual de R pode-se sempre extrair um sub-recobrimento finito de um recobrimento infinito. Todo intervalo fechado e limitado é, pois, 'compacto'. A fim de precisar melhor essa noção de compacidade, consideremos o exemplo contrário de um espaço não compacto: o espaço aberto ] O, 1 [. Cons­ tata-se que este pode muito bem ser objeto de um recobrimento infinito, pela sequência dos intervalos abertos ] 1/n, 1 [. Mas vê-se também que, desse reco­ brimento infinito, não se poderá jamais extrair sub-recobrimento finito. Todo o problema reside no fato de que todos os pontos L compreendidos entre O e 1 não podem ser recobertos de uma maneira finita. De fato, sempre se poderá, no pre­ sente caso, produzir um ponto L menor que o ponto 1/n, por não dispor, como anteriormente (caso do fechado [ O, 1 ]) do ponto O, limite da sequência 1/n. Como não se pode proceder à extração de um sub-recobrimento finito, a partir de um recobrimento infinito, pode-se, assim, concluir que o espaço aberto ] O, 1 [ não é compacto. Percebe-se, com este exemplo de um intervalo não compacto, como as noções de limite e de compacidade são muito próximas. Ir no sentido da com­ pactificação de um intervalo, no qual uma sequência converge para um ponto­ limite x que lhe é exterior, consiste em juntar a ele esse ponto-limite x. 11. Definição dita F: Pode-se também definir a compacidade em termos de

fechados. De 'toda' família de fechados (inclusive as famílias infinitas) de um espaço considerado X cuja interseção é vazia, pode-se extrair uma subfamília finita, cuja interseção é vazia. Esta definição é equivalente àquela em termos abertos, ela lhe é comple­ mentar. Retomemos o exemplo que usamos antes sobre o espaço [ O, 1 ] para ilustrar a noção de compacidade, mas daremos a ele uma formulação em termos de fechados. Temos então dois tipos de intervalos fechados, complementares dos intervalos abertos utilizados anteriormente. Os intervalos abertos eram: [ O, L [ e ] 1/ n, 1 ] Seus complementares serão:

30

Lição 1 - 2 1 de novembro de 1972 - Anexo II

[ 2:, 1 ] e [ O, 1/n ] O conjunto desses fechados pode ser notado: GF

=

{ [ O, 1/ n ], [ L, 1 ] onde O < L < 1 e n E: N }

e ser desenhado assim:

-

I - I - I -1 o

1 5

1 1-t

--

1 3

J

------

I- I-

I 2

Em termos de abertos, tratava-se de verificar que o espaço [ O, 1 ] estivesse bem recoberto pelo conjunto G dos espaços abertos. Em ternos de fechados, trata-se, ao contrário, de verificar que o conjunto GF dos espaços fechados não faz esse recobrimento, isto é, que a interseção de todos esses espaços é vazia. Nessa aula, Lacan começa dando uma definição em termos de fechados, que ele apresenta, um pouco depois, como complementar daquela em termos de abertos3 como a seguir: Nada mais compacto do que uma falha, se está bem claro que, em algum lugar, está dado que a interseção de tudo o que aí se fecha sendo admitida como exis­ tente, num número finito de conjuntos, disso resulta, é uma lúpótese, que a inter­ seção existe num número infinito. Isso é a própria definição da compacidade.4

Uma leitura atenta dessa definição um pouco obscura mostra que, embora se trate de uma definição em termos de fechados ( . . . a interseção de tudo o que aí se fecha"), não se trata da complementar da definição em termos de abertos. Trata-se de uma outra definição em termos de fechados. "

3

4

Cf. Lição 1: "O complemento dessa hipótese de compacidade é o seguinte: ... ", p. 21. (N.T.) Cf. Lição 1, p. 20. (N.T.) 31

Encare III. Definição dita F': Se a interseção de toda subfamília finita de uma famí­

lia de um espaço X é não vazia, então toda família (inclusive, portanto, as famí­ lías infinitas) é, ela mesma, não vazia. Nós chamamos de: A - a definição em termos de abertos F - a definição em termos de fechados F' - a definição em termos de fechados que acabamos de dar. Essas três definições equivalentes são articuladas umas às outras pelos seguintes laços lógicos: complementares contrapostas A < -------------------- > F F' A contraposição é um termo de lógica. Ex.: o enunciado contraposto de "se n é múltiplo de 6 então n é par" é o enunciado "se n é ímpar, então n não é múltiplo de 6" . Sustentamos que Lacan nos dá F' porque: - Falar da "interseção de tudo o que aí se fecha ... " evoca uma sequência que se acumula em um ponto para fazer interseção e que, portanto, implicitamente trata- se de uma interseção não vazia, o que corresponde à definição F', e é o oposto da definição F, onde se trata apenas de interseção vazia. - Por outro lado, a apresentação que Lacan faz, por duas vezes, da interse­ ção como passando do finito ao infinito é coerente com a definição F'. Na F, a hipótese (ou a premissa) é sobre um número infinito de fechados, e a conclusão sobre a extração de uma subfamília finita, enquanto em F', temos realmente essa passagem do finito ao infinito, a hipótese refere-se efetivamente a uma subfamília finita e a conclusão, a uma família infinita. Se Lacan dá F' como primeira definição da compacidade, é provavelmente pelo caráter sedutor que há em se tirar conclusões sobre o infinito a partir do finito. Parte-se, efetivamente, de um conjunto finito, que se pode então contor­ nar, para tirar daí conclusões sobre um conjunto infinito.

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Lição 1

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21 de novembro de 1972 - Anexo II

Entretanto, o ponto forte dessa lição do seminário articula-se em torno da possibilidade de poder extrair finito a partir do que se apresenta como infinito. O gozo do Outro lado, para retomar os termos de Lacan, isto é, o gozo que não está do lado fálico, é tomado como um espaço sobre o qual se desdobra uma sequência infinita, mas do qual se pode - porque esse espaço é limitado, fechado e, portanto, compacto - extrair algo de finito, um por um, ou melhor, já que se trata do gozo do Outro lado, uma por uma. Se esse espaço fosse aberto e, portanto, não compacto, não se poderia tirar um do infinito, e é o que acon­ tece do lado do ser, como diz Lacan: ali onde está o ser está a exigência da infinitu de." 5 Vale notar que a transcrição de J.-A. Miller torna ilegível essa questão da compacidade, ponto culminante dessa primeira aula, principalmente porque a oposição finito/infinito da definição em termos de fechados foi completamente suprimida. Uma primeira vez, está dito ali que "a interseção de tudo o que aí se fecha sendo admitida como existente sobre um número infinito (sic) de con­ juntos, disso resulta que a interseção implica esse número infinito (sic). Isso é a definição mesma da compacidade/F .6 Essa transcrição deve ser comparada com a que reproduzimos aqui (p. 29). Uma segunda vez, algumas linhas abaixo, no fim da mesma página, a versão publicada menciona a interseção se estendendo ao infinito"/ em lugar de " ... a interseção passando do finito ao infinito".8 Assim, o leitor não tem quase nenhuma chance de abordar corretamente uma questão que não se pode dizer que seja fácil. Aos que quiserem se aprofundar no assunto, aconselhamos um livro de topologia geral: Topologie, cours et problemes, Seymour Lipschutz, Série Schaum, Ed. Me Graw Hill. Aconselhamos também a obra a ser publicada de Jean-Mi­ chel Vappereau , sobre a topologia do sujeito (Ed. La Topologie en extension) . IF

IF . . •

5 6 7 8

Cf. Lição 1, p. 23. (N.T.) LACAN, J. Le séminai.xe, livre XX, Encare. Paris: Seuil, 1975, p. 14. Ibidem. Cf. Lição 1, p. 21. (N.T.) 33

Lição 2

12 de dezembro de 1972 Exposição de François Récanati sobre a lógica de Port-Roy aF

Introdução de J. Lacan

Lacan, ao que parece, em seu primeiro seminário deste ano, teria falado, tentem adivinhar: do amor, nada mais, nada menos! A notícia se espalhou. Ela me retornou, não de muito longe, é claro, de uma cidadezinha da Europa/ onde fora enviada a mensagem. Como foi em meu divã que ela me retornou, não posso crer que a pessoa que a relatou tivesse realmente acreditado nisso, pois ela bem sabe que o que eu digo do amor é, certamente, que não se pode falar dele. Parlez-moi d'amou r . isso são cançonetas. Falei da carta de amor, da declaração de amor, não é a mesma coisa que falar de amor. Enfim, penso que está claro, mesmo que vocês não o tenham formulado, que nesse primeiro seminário falei da tolice,3 daquela que condiciona o que dei como título, este ano, ao meu seminário, e que se diz Encare. Vejam que risco! Eu lhes digo isso unicamente para dizer-lhes o que constitui aqui o peso de minha presença: é que vocês gozam com isso. Minha presença sozinha, pelo menos eu ouso acreditar nisso, minha presença sozinha em meu discurso, minha pre­ sença sozinha é minha tolice. Eu deveria saber que tenho coisa melhor a fazer . .

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Esta intervenção de François Récanati, aqui traduzida a partir das versões que nos servem de base, foi publicada, com algumas modificações, com o título "Prédication et ordination" . In: Scilicet 5. Paris: Seuil, 1975, p. 61. Trata-se de Amsterdã. Em francês: bêtise, palavra que significa 'tolice', 'bobagem', 'asneira', 'besteira', com o sen­ tido de algo não muito inteligente, mas, às vezes, motivado por distração, desatenção. Daí as traduções possíveis para bête (adjetivo) e bêtement (advérbio). Nossa escolha aqui por 'tolice', 'tolo', 'tolamente' obedeceu a critérios de sentido e registro, fugindo do imediatismo da tra­ dução por 'besteira', que a nosso ver vulgariza o termo. Além disso, a palavra bête, como substantivo, não significa 'besta', mas 'animal', qualquer animal, com exceção do homem. Cf. Dicionário Le Nouveau Petit Robert. Paris: Le Robert, 1993. (N.T.) 35

Encare

do que estar aqui. É por isso mesmo que posso ter vontade, simplesmente, de que ela não lhes seja assegurada em toda e qualquer circunstância. Entretanto, é claro que não posso me colocar numa posição de recuo, de dizer ainda (encare) e que isso dure é uma tolice, já que eu mesmo colaboro com isso. Evidentemente, não posso me colocar senão no campo desse encare. E talvez, remontando de certo discurso, que é o discurso analítico, até o que faz o condicionamento desse discurso, ou seja, essa verdade - a única que possa ser incontestável pelo que ela não é - que não há relação sexual, isso não permite de modo algum julgar o que é ou não é tolice. E, no entanto, não pode ocorrer, tendo em vista a experiência, que a respeito do discurso analítico algo não seja interrogado, ou seja, se ele não se mantém essencialmente por ser sustentado por essa dimensão da tolice. E por que não se perguntar, afinal, qual é o estatuto dessa dimensão, contudo, bem presente? Pois, afinal, não foi preciso o discurso analítico - aí está a diferença - para que, como verdade, fosse anunciado que não há relação sexual. Não pensem que eu hesite em me comprometer. Não é de hoje que eu falo de São Paulo, eu já o fiz. Não é isso que me dá medo, nem mesmo de me com­ prometer com pessoas cuja posição e cuja descendência não são, propriamente falando, o que eu frequento. Contudo, que os homens de um lado, as mulheres do outro, isso tenha sido a consequência da mensagem, foi algo que, ao longo dos anos, teve algumas repercussões. Isso não impediu o mundo de se repro­ duzir à medida de vocês. A tolice resiste, em todo caso. Não é exatamente assim que se estabelece o discurso analítico, o que lhes formulei com o pequeno a e com o 5 que fica embaixo, e com o que isso inter­ 2 roga, do lado do sujeito. Para produzir o quê? É bem evidente que isso se instala na tolice, por que não? E que isso não tem essa distância, que eu também não tomei. Dizer que se isso continua é tolice, em nome de que eu o diria? Como sair da tolice? Não deixa de ser verdade que há alguma coisa, há um estatuto a ser dado, no que se refere a esse novo discurso. Com sua abordagem da tolice, alguma coisa se renova. Certamente, ele vai mais perto, pois nos outros, é exatamente disso que se foge. O discurso sempre visa a menor tolice, o que se chama de tolice sublime, pois sublime quer dizer isso: é o ponto mais elevado do que está embaixo.4 4 Sublime: adj. e subst. masc. empréstimo, por via erudita (por volta de 1400), do latim clássico sublimis: 'suspenso no ar', 'alto', 'elevado', e no sentido figurado 'elevado', 'grande', especial36

Lição 2 - 12 de dezembro de 1972

Onde está, no discurso analítico, o sublime da tolice? É por isso que estou, ao mesmo tempo, legitimado a deixar em repouso minha participação na tolice, na medida em que aqui ela nos engloba e a invocar quem poderá, sobre esse ponto, me trazer a réplica daquilo que, provavelmente, em outros campos . . . Mas não, é claro, já que se trata d e alguém que me escuta aqui, e que por isso está suficientemente introduzido ao discurso analítico. Como? Foi aqui, que já no final do ano passado, tive a felicidade de reco­ lher de uma boca que por acaso é a mesma,5 e é aqui que, desde o início do ano, peço que alguém me traga, aceitando correr o risco, a réplica daquilo que, num discurso nomeadamente o filosófico, resolve, obliqua, faz o seu caminho, abre-o com um certo estatuto em relação à menor tolice. Passo a palavra a François Récanati, que vocês já conhecem. François Récanati:

Agradeço ao D. Lacan, por me dar a palavra uma segunda vez, pois isso vai me introduzir diretamente no que vou dizer, no sentido de que não deixa de ter relação com a repetição. Mas, por outro lado, gostaria também de prevenir que essa repetição é uma repetição infinita, mas o que vou dizer também não será finito, no sentido de que não terei tempo de chegar ao fim do que preparei. Isso quer dizer que, de certa forma, é no fechamento do círculo que deveria tomar sentido o que, como preliminar, vai me trazer aqui. Então, por causa do tempo, e a menos que retome isso numa outra ocasião, vou ser obrigado a me ater aos preliminares, isto é, a não entrar ainda propriamente em cheio nessa tolice de que falou o Dr. Lacan. Vocês se lembram de que, na última vez, o que eu havia tentado lhes mos­ trar é que a repetição só se produz no terceiro tempo, que é o tempo do interpre­ tante. Isso quer dizer que a repetição é a repetição de uma operação, no sentido mente em retórica; no latim medieval o termo passa para o vocabulário dos alquimistas no sentido de 'elevado pelo calor à decantação de suas partes voláteis'. O adjetivo é formado de sub-, marcando o movimento de baixo para cima, e de limis ou limus, adj. 'oblíquo' falando do olho e do olhar, palavra sem etimologia clara. Dictionnaire historique de la languefrançaise. Paris: Le Robert, 1992, Tome 2, p. 2031. 5

Intervenção de François Récanati, anterior a esta, basicamente sobre a semiótica de Peirce, feita no dia 14 de junho de 1972, publicada com o título: "Intervention au séminaire du doe­ tem Lacan" . In: Scilicet 4. Paris: Seuil, Le champ freudien, 1973, p. 55 a 73. 37

Encare

de que, para que haja termo a ser repetido, é preciso haver uma operação que produza o termo. Ou seja, o que deve ser repetido, é preciso que seja inscrito e a própria inscrição desse objeto só pode ser feita ao cabo de algo da ordem de uma repetição. Existe aí algo que se assemelha a um círculo lógico, e que é, na verdade, um pouco diferente, é antes algo da ordem de uma espiral, no sentido de que o termo de chegada e o termo de partida, não se pode dizer que sejam a mesma coisa; o que é dado é que o termo de chegada é o mesmo que o termo de partida, mas o próprio termo de partida já não é mais o mesmo; ele se toma o mesmo, mas só a posteríorí. Há, pois, duas repetições a serem consideradas, dissimétricas, a primeira que é o processo pelo qual se dá esse objeto que deve se repetir, o que podemos chamar, de certa forma, de identificação do objeto, no sentido de que se trata do declínio de sua identidade. E vê-se muito bem o que isso quer dizer: quando se declina essa identidade do objeto, essa identidade declina imediatamente. E a tautologia inicial ' a é a' da qual Wittgenstein diz que é um forçamento despro­ vido de sentido é, propriamente, o que institui o sentido, pois algo ocorre ali dentro, ou seja, no ' a é a', a se apresenta inicialmente como o suporte indiferen­ ciado inteiramente potencial de tudo o que pode lhe acontecer como determi­ nação. Mas a partir do momento em que lhe é dada uma determinação efetiva, e que se trata de existencia e não de qualquer uma de todas as suas determi­ nações possíveis, então ocorre precisamente uma espécie de transmissão de poder: o que devia ter a função de suporte, no caso esse a indeterminado, esse a potencial é, de certa forma, marcado pelo fato de que subitamente há ser que se intercala entre ele e ele mesmo, o que quer dizer que ele mesmo se repete e se repete sob a forma de um predicado. Ou seja, há uma espécie de diminuição e essa diminuição é simbolizada por isso: que no ' a é a ', o a que tinha a função de suporte subitamente se vê ele mesmo sustentado por algo da ordem do ser que o sustenta, que o ultrapassa, que o engloba, e ele mesmo, nessa relação, não é senão o que predica a predicação, na medida em que a predicação é o que o ser sustenta.6 Vou voltar a este ponto . . . Jacques Lacan: - Aliás, todos sabem que ' guerra é guerra' não é uma tauto­ logia, como também não o é: 'dinheiro é dinheiro' ! 6

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Em lugar de c'est ce 'que' supporte l'être, o que foi traduzido acima, a Versão 2 traz c'est ce 'qui' supporte l'être, o que daria um sentido inteiramente oposto: 'É o que sustenta o ser'. (N.T.)

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François Récanati: - Exatamente. Vou voltar a este ponto, porque é este o nervo de toda a questão, e eu gostaria de falar - é isso que eu temo não ter tempo de fazer - da lógica de Port-RoyaF porque é justamente uma teoria da substância, e foi dito da última vez que aqui não nos referimos a nenhuma substância. Mas falarei disso daqui a pouco. E preciso que se saiba, simples­ mente, que a repetição efetivamente, a primeira, repete a indeterminação inicial desse objeto que se dá como potencial, mas que repetindo essa indeterminação, a indeterminação se acha subitamente determinada de certo modo. Isso quer dizer que se pode perfeitamente estabelecer que a repetição do vazio ou a repe­ tição do impossível, enfim, que esse tipo de repetição de algo que não é dado e que, portanto, é preciso produzir no tempo em que se gostaria de repeti-lo, pode-se perfeitamente estabelecer que é o impossível, e é o que quase todo o mundo diz, mas basta que seja impossível, para que haja aí algo de assegurado e que essa segurança permita, justamente, uma repetição, aliás, uma segunda repetição. Em vez de me estender sobre isso, cito esta frase de Kierkegaard: "A única coisa que se repete é a impossibilidade da repetição." Isso mostra bem do que se trata e faz a junção com o que eu disse no ano passado da tríade que sustenta toda repetição, a tríade: objeto representamen interpretante.8 Isso quer dizer que entre o objeto e o representamen, muda-se de espaço, ou pelo menos há algo como um buraco que faz justamente o objeto e o representamen inabordáveis nessa relação. Mas esse buraco, na medida em que ele insiste, permite fundar uma verdadeira repetição no sentido de que, na vez seguinte, algo vai encarnar esse buraco que será o interpretante e que poderá, de certa forma, repetir de dois modos o que ocorria entre o objeto e o representamen: de um lado, inscrevê-lo, dizendo: "havia buraco" e permitindo que essa impossibilidade ou esse buraco se repita. Mas, por outro lado, ele vai não apenas significá-lo, mas repeti-lo, por­ que entre a impossibilidade inicial que passava entre o objeto e o representamen e seu significante, que é o interpretante, há a mesma relação impossível que havia -

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A lógica de Port-Royal foi publicada pela primeira vez em Paris, sem nome de autor, em 1662. Ela está descrita na obra: ARNAULD, A. e NICOLE, P. La Logique ou l'art de penser. Paris: Galli­ mard (coleção TEL, n° 211), 1992. Cf. Charles S. Peirce (1839-1914): o signo, segundo Peirce, é composto de três partes: o repre­ sentamen (uma representação), o objeto e o interpretante. Ex: a imagem (representamen) de uma placa "PARE" (objeto) provoca a mudança no comportamento do motorista (interpretante), que aciona o freio do veículo. (N.T.) 39

Encare

justamente entre o objeto e o representamen. Isso quer dizer que será preciso um segundo interpretante para se encarregar da repetição dessa impossibilidade. No interpretante há algo como a efetuação de uma impossibilidade, até então potencial, e a impossibilidade inscrita pelo interpretante é, digamos, o primeiro termo dessa existencia de que o zero potencial era portador, no sen­ tido de que, de algum modo, o todo conduz ao 'existe'. E também voltarei a tratar deste ponto. O que é importante é que a impossibilidade da relação objetoj representa­ men se dá como tal para o interpretante. O interpretante diz: "Isso, é impossí­ vel", mas na medida em que ela se dá para o interpretante como tal, a partir do momento em que o próprio interpretante se dá para outro interpretante, é aí que essa impossibilidade é verdadeiramente um termo, termo fundador de uma série. Ou seja, isso permite ao novo interpretante assegurar algo de sólido, como se essa solidez fosse o interpretante primeiro que a tivesse fundado, a partir de algo originariamente fluido. O que escapava na relação objeto/ representamen vem se aprisionar no inter­ pretante. Mas vemos bem, e eu já havia dito que o que se aprisiona no interpre­ tante e o que escapava na relação objeto/ representamen não eram exatamente a mesma coisa, pois, precisamente, o que escapava na relação objetojrepresenta­ men continua a escapar na relação entre essa relação e o interpretante. Ou seja, de todo modo, há a mesma distância, a mesma inadequação. E é exatamente a impossibilidade da repetição, sobre a qual vou agora insistir um pouco, que pro­ duz o que ocorre e que se pode constatar, isto é, a repetição da impossibilidade. O que institui a defasagem - essa defasagem de onde nasce a repetição - é a impossibilidade de alguma coisa ser esse algo e, ao mesmo tempo, inscrevê-lo. Isso quer dizer que a existência de alguma coisa só se inscreve para outra coisa e, consequentemente, só se inscreve quando é outra coisa que é dada. E se é que se trata de existência pontual, a existência de alguma coisa só se inscreve justamente no momento em que ela declina, pois é de uma outra existência que se trata. Essa disjunção é mais ou menos o que ocorre entre o ser e o ser predicado, e espero ter tempo de chegar à lógica de Port-Royal, que era teoricamente o núcleo de minha exposição, mas não tenho certeza. Vocês se lembram que, na última vez, Lacan caracterizou o ser como sendo secção de predicado. E é propriamente disso que se trata. E vou logo lhes dar

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Lição 2 - 12 de dezembro de 1972

algumas reflexões, nem que seja apenas sobre esta fórmula: 'secção de predi­ cado' que faz sentir imediatamente a recorrência em que se constrói o que jus­ tamente é suposto sustentar todo predicado, ou seja, o ser. O que sustenta os predicados antes da predicação, se dá após os predicados. E, de certo modo, se há secção de predicado para encontrar o ser, isso quer dizer que o que sustenta os predicados é o que não está nos predicados. E justamente o que está ausente dos predicados, o que está ausente na predicação. E, pois, a ausência de ser, de certa maneira, que traz os predicados, o que implica também, e de modo um pouco indireto, que os próprios predicados só são predicados dessa ausência. Que o predicado possa ser cortado, é como se já houvesse, de certa forma, uma partição elementar, como se fosse dada uma linha pontilhada, uma fron­ teira e bastasse recortar, como em certas embalagens. Jacques Lacan: - Articule bem a noção de secção de predicado, pois foi o que você juntou ao que eu deixei e eu justamente quase tropecei nisso. François Récanati: - A secção de predicado é, propriamente, o núcleo de minha exposição. Pode-se imaginar isso como uma vibração, ou seja, é a partir de uma espécie de halo que vou tentar circunscrever esse núcleo que vai apare­ cer em todos os exemplos que darei. Secção de predicado é, pois, como se isso pudesse ser cortado. Não insisto nisso, a não ser que é evidente que não é por ter cortado o corte que se vá encon­ trar o insecável e que a fronteira, uma vez que se entalhou ali, ela insista, tanto mais que ela se manifesta como buraco. Digamos que a secção, para tomar os sentidos que vêm, é também fazer dois do que era um, e se assinalo esse sentido, que não é o habitual aqui, é por­ que é o que Groddeck dá a um de seus conceitos, que se chama justamente a "sexão", ou seja, de certo modo, isso tem a ver com o sexo. E, para Groddeck, é 1 1 m nessa alteridade. E o fato de que um e outro, existência e alteridade sejam dissociáveis a esse ponto implica os desvios que vão se seguir, notadamente o destino do desejo do homem. Se examinarmos agora as relações verticais entre as fórmulas, e retomando essas marcas que eu disse, zero e Um, o Um do existe x tal que não phi de x (:::J x . x) permite, por sua necessidade, que o para todo x phi de x (Vx . x) se constitua como possível, digamos a título de zero. Não acontece absolutamente a mesma coisa do outro lado, apesar da sime­ tria aparente, pois, do ouh·o lado, é do "não existe x tal que não phí de x" (:3x . x) que se origina "não todo x phi de x" (Vx . x). Ora aqui, é antes o "não existe x tal que não phi de x" (3x . x) que desempenha o papel do indeterminado, isto é, do zero, antes de sua constituição pelo Um, ou seja, de uma espécie de não zero, de não exatamente zero. E desse ponto de vista, é o "não todo x phí de x" (Vx . x) que desempenharia, no condicional, o papel do Um, isto é, a possibilidade, a abertura de algo como uma suplementaridade, de um Um a mais possível. Mas, é claro, esse pseudo Um a mais se afunda imediatamente na indeterminação do "não existe x tal que não phi de x" (3x . x), que não é sustentado por nenhuma existência, que nenhum suporte, nenhum dizer-que­ não vem sustentar. Enquanto nenhum x vier negar phi de x para A mulher, o Um a mais do qual o 'não todo' se sente portador permanece fantasmático. Nenhuma pro­ dução é possível a partir do "não existe x tal que não phi de x" (3x . x), mas apenas uma circulação do indeterminado inicial. Entre os dois termos, "não existe x tal que não phi de x" (3x . x) e "não todo x phí de x" (\fx . x), há o indecidível. O indecidível em questão se cris­ taliza do seguinte modo: a mulher não se aproxima do Um, ela não é o Um, o que não implica que ela seja o Outro. Numa palavra, ela está numa relação indecidível com o Outro barrado (A), ela não é nem o Um nem o Outro, com duas maiúsculas. O 'não toda' é sustentado pelo 'não Um' . Já que "não existe x tal que não phi de x" (3x . x), isso não quer dizer outra coisa senão 'não Um' . E o todo homem, o \ix . x, que é sustentado justamente pelo Um, pela existência desse Um, do "existe x tal que não phi de x" (::Jx . x), o todo homem se serve de A mulher enquanto 'não toda' para ter precisamente relação com o Um, ou melhor, relação com o Outro, segundo um procedimento inteiramente particular.

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Já que o Um é banido de seu todo no tempo que o constitui, ele considera os dois corno antinômicos, repetindo urna negação, ao passo que essa negação recai sobre o que eu chamarei de um complexo, ou seja, o complexo da existên­ cia e da alteridade, e sempre ela se vê deslocada com relação ao enfoque do Vx. Através do 'não toda' de A mulher, ele crê encontrar o Outro, quando de modo algum se podem identificar as duas negações do Um. Pois, de um lado, é a existência necessária do Um que funda, que delimita o espaço de Vx, enquanto do outro lado, é a inexistência, é a negação da existência do Um que sustenta o indecidível da relação de .A mulher com o Outro barrado (A). É aqui que se situa a relação imaginária do homem com a mulher. O homem, corno Vx, está na luta constituinte com a alteridade da existência do Um. Vimos que os dois são indissociáveis. Repetindo o desligamento consti­ tutivo do "existe x tal que não phi de x" (3x .