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Portuguese Pages 247 [240] Year 2008
ECOS URBANOS A Cidade e suas Articulações Midiáticas
ECOS URBANOS A Cidade e suas Articulações Midiáticas
Organizadores Angela Prysthon e Paulo Cunha Bernadette Lyra Felipe Trotta Janice Caiafa José Afonso da Silva Junior Juremir Machado da Silva Mariana Baltar Renato Cordeiro Gomes Rita de Cássia Alves Oliveira Rose de Melo Rocha Silvia Helena Simões Borelli Simone Pereira de Sá Suely Fragoso
© Os autores, 2008
Capa: Letícia Lampert Projeto Gráfico: FOSFOROGRÁFICO/Clo Sbardelotto Editoração: Clo Sbardelotto Revisão: Editor: Luis Gomes Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960 E19
Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas / organizado por Angela Prysthon e Paulo Cunha. – Porto Alegre: Sulina, 2008. 237 p. ISBN: 978-85-205-0516-8 1. Espaços Urbanos – Comunicação. 2. Comunicação de Massas. 3. Ciências Sociais. 4. Comunicação – Cultura Brasileira. I. Prysthon, Angela. II. Cunha, Paulo. CDD: 301.14 CDU: 316.77 659.3
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA MERIDIONAL LTDA
Av. Osvaldo Aranha, 440 – conj. 101 CEP: 90035-190 – Porto Alegre – RS Tel.: (51) 3311-4082 Fax: (51) 3264-4194 [email protected] www.editorasulina.com.br
Janeiro / 2008 Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Dedicatória
SUMÁRIO
Apresentação .................................................................... 9 Prefácio ............................................................................ 13 CINEMA E CIDADES A metrópole cindida: o clichê do melodrama no interior das narrativas documentárias ............................................. 25 Mariana Baltar Entre clarões e trevas: a cidade noir no paracinema ............ 41 Bernadette Lyra A cidade nua: regimes de representação ............................. 56 Renato Cordeiro Gomes CIDADE COMO MÍDIA As mulheres, os homens e o metrô ..................................... 75 Janice Caiafa Cidades palimpsestas, cidades midiáticas: limiaridades e errâncias que produzem significação ............ 97 Rose de Melo Rocha Vida na metrópole: comunicação visual e intervenções juvenis em São Paulo .................................. 117 Silvia Helena Simões Borelli Rita de Cássia Alves Oliveira
CIDADES E TECNOLOGIA A cidade como rede tecnológica ........................................ 139 Juremir Machado da Silva Fluxos de notícias e cidades: redes digitais, urbanidade e o lugar do jornal .......................................... 143 José Afonso da Silva Junior Redes Urbanas e Redes Digitais: considerações sobre a governança eletrônica ........................................... 159 Suely Fragoso CIDADES E MÚSICA POPULAR Cidades e música: Sensibilidades culturais urbanas ........... 185 Angela Prysthon A Cidade Grande no imaginário do forró pé de serra atual .. 200 Felipe Trotta Som de preto, de proibidão e tchuchucas: o Rio de Janeiro nas pistas do funk carioca ....................... 218 Simone Pereira de Sá
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APRESENTAÇÃO
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PREFÁCIO
De nuevo será nuestra la ciudad pues toda felicidad es un retorno y es percibida como el eco de un bosque a quien prestan su voz muchas quebradas Walter Benjamin, Soneto 37.
A vida nas cidades implica numa constante sensação de deslocamento do homem dentro do mundo. A metrópole como categoria foi definindo ao longo dos séculos e, sobretudo a partir do século XX, uma sensibilidade que influencia e determina quase todas as outras esferas sociais. Em certa medida, a cidade é apreendida como uma entidade única, como um arquétipo geral. Um novo modelo de cidade começa a ser delineado a partir da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e seus processos paralelos – grandes influxos de população nos centros urbanos; novas formas de sociabilidade com o surgimento de parques, praças, cafés; todo um horizonte de possibilidades tecnológicas inéditas até então, entre outros. Diante desta enumeração de processos referentes à cidade, pode-se supor que cada vez aumenta mais a distância cultural entre o indivíduo que habita no campo e aquele que vive nos centros urbanos em crescimento acelerado. Tal crescimento implica em profundas mudanças nas formas de viver, conviver e sobretudo ver essa nova cidade. Primeiro, mudavam as estruturas econômicas da cidade que propiciaram o aumento de poder da burguesia industrial e mercantil, aparecia também uma nova conformação física para a mesma. As migrações contínuas do campo para a cidade fizeram com que o habitante urbano se “acostumasse” de certo modo com a aparição de “estranhos”. As novidades não seriam restritas aos indivíduos estranhos, mas aos objetos, lugares, hábitos estranhos que fariam do sujeito urbano capaz de olhar o mundo com “outros” olhos. 13
Entretanto, esse crescimento (e mudança) nas cidades a partir das Revoluções do século XVIII, especialmente Londres e Paris, foi um processo nada previsível e absolutamente assustador tanto para a nobreza e para a burguesia, como para a classe trabalhadora. Indubitavelmente, a diversidade da cidade e do repertório cosmopolita modernos não traz ocultas as suas raízes na ordem do Capitalismo Industrial (mesmo que as grandes metrópoles propriamente ditas não fossem distritos fabris), mas cabe lembrar que as classes dominantes tentaram controlar e refrear a expansão urbana das metrópoles, principalmente para evitar a instalação dos pobres. Inutilmente, como nota Raymond Williams (outro marco fundamental para essa leitura da cidade que visamos efetuar) sobre o crescimento de Londres e a impossibilidade de se excluir os segmentos mais “baixos” da sociedade deste processo: Além dos séqüitos de criados, milhares de outros migrantes chegavam à cidade, e o principal resultado das restrições foi uma onda prolongada de construção e adaptação de imóveis e dentro dos limites legais, gerando habitações superlotadas e perigosas: labirintos e becos para a população pobre. E isso era parte do mesmo processo que dava origem às mansões urbanas, às praças e aos jardins: aquilo que hoje é abstraído como a Londres “georgiana” (Williams, 1989, p.204).
O processo de formação das metrópoles modernas não está demarcado pelos limites de um projeto totalizador e homogêneo, muito embora ele abarque diversas “propostas” e planificações urbanísticas, arquitetônicas, sociais específicas. Ao mesmo tempo, todos os movimentos em direção ao crescimento urbano têm um fio condutor comum, um mecanismo propulsor que é a economia de mercado. De certo modo, o mercado e a cultura do consumo, como concebidos a partir do final do século XVIII e mais particularmente no século XIX, vão definir o que seria a sensibilidade cosmopolita (com todas as suas nuances). Na cidade moderna, todas as classes sociais vão ser essencialmente reguladas pelas leis do consumo, 14
compondo um complexo sistema de significação referente à experiência urbana e ao cosmopolitismo. Neste sistema, estão subentendidos todas as hierarquias sociais e econômicas, também estão compreendidos os mais diversos elementos que compõem esse universo (tecnologia, costumes, vestuário, rituais de sociabilidade, lazeres, dietas). Na malha das relações econômicas da cidade moderna, surge um elemento fundamental para a compreensão de urbanidade: a fetichização dos bens de consumo. As mercadorias se tornam fetiches, em especial aquelas que dizem respeito às aparências, à vida pública, àquilo que precisamente marca o espaço e o status do “urbanóide” moderno (vestuário, adornos, mobiliário...). O que significa também que quanto mais complexas e variadas as opções de consumo, mais intrincado o sistema de códigos e símbolos referentes às cidades. Justamente por sua natureza polissêmica, a cidade é o lugar por excelência, é o ponto de partida para a elaboração e definição desses códigos e símbolos. E neste jogo de aparências, valorações e novidades, a cidade, curiosamente, torna-se ela mesma fetiche. Principalmente para o sujeito exposto a um espectro mais amplo de possibilidades da metrópole (caso de um burguês “ousado” ou um quase “antiburguês”). Talvez esta seja uma das experiências mais essenciais para o cidadão moderno: ver a cidade como transcendência, como fonte de um poder quase mágico, que não emana de nenhum elemento em especial (nem do fascínio dos novos meios de comunicação ou transporte, nem do “luxo” cada vez mais acessível a um número maior de pessoas, nem das novidades e grandiosidades arquitetônicas), mas da metrópole na sua totalidade. Além de estar inserida e conformada a uma nova economia (onde estão presentes novas formas de consumo, o fetiche, a moda etc.), a urbanidade do século XIX é extremamente marcada pela relação com a tecnologia. A técnica é um dos instrumentos que o cidadão usa para olhar e conceber modernamente o mundo ao seu redor. O cidadão fascina-se pela Máquina, fetichizando-a (como com a cidade) e transformando-a em índice do progresso e imagem máxima do novo. Se a cidade moderna é o espaço onde atuam as paixões metropolitanas, os aparatos tecnológicos, as máquinas 15
estabelecem uma espécie de percepção temporal para os sujeitos modernos. Como se a velocidade dos novos meios de transporte ou dos motores das fábricas traduzisse o avanço e a rapidez da cultura dessa época. Símbolos de uma nova era, provas e portas de acesso ao progresso da humanidade, as máquinas também dão uma idéia de centralidade e controle assim como a metrópole. A tecnologia diminui distâncias e tempos, faz a diferença mais próxima, define e redefine, para o cidadão, novos cenários a cada instante. Para o sujeito cosmopolita especialmente ela é quase tão importante quanto a metrópole, pois ela representa grande parte do repertório que o distingue de um provinciano. Contudo, não apenas um cego otimismo e a confiança absoluta no progresso predominam nesta relação. Pelo contrário até, já que para a grande maioria dos pensadores europeus a partir da metade do século XIX, progresso e decadência caminham lado a lado e estes dois conceitos estão claramente vinculados à noção de técnica. A vivência urbana do final do século XIX e início do século XX é uma celebração da artificialidade, da novidade e da diversidade, onde estão quase apagados os traços de nostalgia (e quando este aparece é uma nostalgia cínica, anacrônica, falsa) e tradição. Ao proclamar a primazia do artificial, a urbanidade moderna privilegia determinados aspectos “supérfluos” do repertório da técnica e da metrópole modernas: o sujeito da modernidade, o cosmopolita da Belle Époque concebe um universo onde “frivolidades” como moda, aparições públicas, boas maneiras, gadgets domésticos, elementos ornamentais, rapidez de veículos, ocupam o centro de suas atenções. Esse sujeito se identifica aí com grande parte das aspirações burguesas, mas a sua predileção pela velocidade, pela diversidade, pela diferença o distancia deste. As cidades e a cultura metropolitana não deixaram, contudo, de crescer e fortalecer-se. Durante todo este período (a primeira metade do século XX), a cidade, a cultura urbana e o cosmopolitismo passam de dominantes culturais de época (da Belle Époque mais precisamente) a constantes culturais da modernidade. Há, de fato, certa continuidade entre a cidade moderna e a pós-moderna. Mas o mais relevante é como o pós-modernismo foi acentuando a centra16
lidade das cidades para o sujeito contemporâneo e simultaneamente acrescentando elementos para sua transformação e para a emergência de uma idéia de descentralização na sociedade. As metrópoles européias e norte-americanas enquanto os tradicionais “centros do universo” deixam de vigorar, pelo menos nos mesmos níveis que antes. Os “centros” das cidades, cada vez mais entregues ao abandono ou à transformação em museus urbanos (a gentrification, as “revitalizações dos centros antigos”, noções já estabelecidas na Europa e um pouco mais recentemente desenvolvidas em cidades coloniais em outros continentes, mas especialmente na América Latina (Lira, 1999, p.44-78) passam por um nítido processo de ressignificação. Os subúrbios de classe média e os condomínios e bairros da classe alta tornam-se os núcleos de uma nova urbanidade descentralizada, da qual os shopping centres seriam a expressão máxima. La ciudad no existe para el shopping, que ha sido construido para reemplazar a la ciudad.(...) Se nos informa que la ciudadanía se constituye en el mercado y, en consecuencia, los shopping pueden ser vistos como los monumentos de un nuevo civismo: ágora, templo y mercado como en los foros de la vieja Italia romana (Sarlo, 1994, p.17-18).
Não há dúvidas que os “shoppings” são também uma espécie de desenvolvimento da galeria e das passagens do século XIX. Nesse sentido, a cidade pós-moderna, de certo modo, também pode ser vista como a realização de parte dos prognósticos e desejos modernos de tecnologia, consumo, velocidade e simultaneidade. Os “shoppings” passam a mediar as imagens e os desejos pós-modernos do flâneur contemporâneo – se é que ele sobrevive às highways e aos grandes estacionamentos. Entretanto, isso vai ter que ser levado ao ponto da própria destruição da idéia de metrópole (os “shoppings” também servem como agentes secundários deste processo) pelo menos no nível do imaginário urbano e cosmopolita. Paul Virilio descreve assim a passagem à urbanidade pós-moderna: 17
Se a metrópole possui ainda uma localização, uma posição geográfica, essa não se confunde mais com a antiga ruptura cidade/campo, tampouco com a oposição centro/periferia. A localização e a axialidade do dispositivo urbano perderam há muito sua evidência. Não somente o subúrbio provocou a dissolução que conhecemos, mas também a oposição ‘intramuros’, ‘extramuros’ se dissipou ela própria, com a revolução dos transportes e o desenvolvimento dos meios de comunicação e de telecomunicação, daí esta nebulosa conurbação de franjas urbanas. (Virilio,1991, p.11)
Como aquelas oposições perdem sentido, não há nenhuma estranheza em se encontrar o campo na cidade e a cidade no campo, o rural no urbano e o urbano no rural, a periferia no centro e o centro na periferia. Nesse caso, as megacidades do terceiro-mundo como Cidade do México, São Paulo, Calcutá são world cities por excelência e encarnam uma espécie de pós-modernismo avant la lettre (Featherstone, 1995; Yúdice, 1993), já que bem antes de suas contrapartes européias e norte-americanas elas trazem o gérmen desse multiculturalismo urbano, dessa tensão forçosamente irresolúvel entre modernidade e barbárie, entre high tech e pobreza, entre o idílio turístico e a violência. Assim, a cidade pós-moderna enquanto núcleo urbano já não se configura como o fetiche mais recorrente para o sujeito urbano contemporâneo, já não é a instância principal do seu roteiro de vícios e virtudes, não é mais lugar do “choque” e a sua “aura” já foi perdida há muito tempo. Se determinados espaços podem ainda ser considerados como território por excelência do cosmopolitismo pós-moderno (lugares, situações que ligam o indivíduo ao consumo e a uma rede mundial de informações e produtos), já não existe um flâneur como o do século XIX e início do século XX, porque não existe mais a cidade onde flanar. As ruas e os bulevares onde o flâneur andava para “ser visto” tampouco existem. O espaço onde “ser visto” fragmentou-se em bares, restaurantes, lojas, “shoppings”, não do centro de uma metrópole em particular, mas do mundo inteiro. 18
Mais além, é mais relevante “ser visto” através da telas (de televisão, cinema, computador). As representações da cidade, e mais especificamente as que são mediadas pela tecnologia, têm rapidamente se convertido no fulcro da vida urbana. Virilio (op. Cit., p.11) continua sua “redefinição” da cidade: “A representação da cidade contemporânea, portanto, não é mais determinada pelo cerimonial da abertura de portas, o ritual das procissões, dos desfiles, a fileira das ruas, das avenidas, a arquitetura urbana deve, daqui por diante, compor-se com a abertura de um espaço-tempo tecnológico”. A comunicação e as representações midiáticas da cidade adquirem, portanto, um papel crucial no contemporâneo. Além da comunicação, há outro fator crucial na ressignificação das cidades na cultura contemporânea – que, naturalmente, é indissociável da mídia e dos processos comunicacionais: o mercado, que vai ser um regulador importante da nova cidade – afinal não tão diferente da modernidade, mas um mercado que “sonha” muito além do capitalismo industrial do século XIX e primeira metade do século XX. Um dos principais fatores diferenciais do mercado pós-moderno é justamente a sua condição de pertencente ao capitalismo tardio ou capitalismo pós-industrial, ou ainda, capitalismo “global”. Embora as Ciências Humanas e Sociais ainda não tenham abandonado categorias como nação e Estado, e mesmo pragmaticamente a economia e os padrões de mercado estejam totalmente vinculados às mesmas, é inegável a “mundialização” do capitalismo e das sociedades como um todo (a ocidental e capitalista em especial, mas todas as outras também em diferentes graus). Óbvia e inevitavelmente, a globalização da economia implica em profundas alterações na cultura mundial. Até porque a indústria cultural é parte constituinte do mercado, totalmente sujeita a suas regulações. Não apenas a divisão de trabalho vai se internacionalizar cada vez mais, como também a indústria cultural vê acontecer um processo semelhante em todas as suas instâncias. A cultura de massas, tal como se conhece hoje, desenvolveuse com feroz intensidade a partir do pós-guerra. Tecnologia e consumo passam a ser os vetores a partir do qual se desenvolve a 19
cultura em detrimento da divisão clássica entre cultura de elite, cultura de massas e cultura popular. Triunfa a lógica do capitalismo tardio em todas as esferas da sociedade, e ela não vai ser menos influente no campo da cultura. O homem pós-moderno acostumouse a seu status de “consumidor”, também tomando como naturais as asserções sobre o “homem unidimensional” dos anos 60 de Marcuse. As observações de Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural norte-americana no final dos anos 40 são constantemente reafirmadas pelos fatos sem provocar o mínimo de estranhamento, alarde ou preocupação. A indústria cultural passa a fazer parte de uma espécie de “ordem natural” do mundo pós-moderno. De certa forma, a pós-modernidade toma ao pé-da-letra e leva a extremos uma interpretação conservadora da modernidade: a racionalização teleológica, a tecnologia e a modernização passando por cima dos ideais iluministas. As formas culturais produzidas nesse esquema têm que adaptar-se ao declínio da arte tradicional e das hierarquias marcadas entre os diversos tipos de cultura. A estatística, a publicidade, as pesquisas de opinião tornam-se as estratégias mestras de um sistema, onde padronização, reificação e fetichização são dados inerentes. Rótulos e marcas substituem a “aura” e o ritual na obra de arte. (Às vezes até literalmente, como no caso da Pop Art.) Contudo, se a primeira impressão que o termo “globalização” provoca é a idéia de uma homogeneidade mundial, é sempre importante lembrar que um dos resultados desse processo, todavia, parece ser uma desterritorialização geral e uma reterritorialização permanente: da economia, da cultura, da política, e, claro, da cidade. Migrações em massa, fragmentação dos movimentos políticos, interpenetração do global e do local, “hibridação” por um lado e padronização cultural por outro, capitalismos e socialismos “mistos” são apenas algumas das características difundidas nas últimas décadas. Então, o acesso à diversidade que caracterizava a cidade moderna é imensamente multiplicado na cidade pós-moderna. Na contemporaneidade a diversidade urbana se pulveriza, não sendo um privilégio restrito apenas aos grandes centros mundiais. Se já era possível para Mário de Andrade sentir-se “vivedor simultâneo 20
de todas as terras do universo” (1972, p.265) nos anos 20 no Brasil, para o cidadão pós-moderno as facilidades das redes de informação, transporte e consumo no final do século tornam essa afirmação mais do que um clichê otimista ou um lugar comum de “periféricos abastados e deslumbrados”. As cidades e o cosmopolitismo pósmodernos são, pois, marcados tanto por essa permeabilidade entre expressões culturais (implicada na diversidade promulgada pelo capitalismo transnacional), estilos arquitetônicos e períodos históricos como pela evidente consolidação de um “estilo de vida” internacional (de certa maneira a paisagem urbana que domina o “Ocidente” seria uma extensão do American way of life, que agora pode ser encontrado em cada esquina desse mundo: “shoppings”, “multiplexes”, bancos 24 horas, lojas de conveniência...). Assim, as cidades pós-modernas (das megacidades às cidades menores, das cidades dos jornais sensacionalistas às cidades da Internet) configuram-se nesse horizonte de expansão do capitalismo e conseqüentemente dos mercados transnacionais como a possibilidade de poder usufruir dessa expansão do ponto-de-vista cultural. A partir dessas e de outras evidências da relevância do urbano na contemporaneidade, o Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco tem se empenhado em discutir e compreender como a cidade influencia e precipita nossos modos de comunicar, nossas tecnologias da informação e nossas negociações e agenciamentos sócio-culturais. Assim como no I Simpósio sobre Espaços Urbanos na Comunicação Contemporânea, o segundo simpósio, que deu origem a esta coletânea de ensaios, foi dividido em subtemas: 1. Cinema e cidade, sobre algumas formas pelas quais o cinema representa e reflete as cidades; 2. Cidade como mídia, que analisou certos elementos urbanos como parte de um código comunicativo; 3. Cidades e tecnologia, que investigou de que forma a expansão do campo midiático, numa reestruturação dos sistemas comunicacionais nos quais estão baseados os dispositivos de hipermídia, constrói e altera o próprio conceito de cidade e 4. Música e cidade, que abordou os processos sociais e comunicacionais que legitimam ou marginalizam certas manifestações musicais urbanas. Esses eixos temáticos, sem pre21
tender esgotar o debate sobre as articulações entre cidade e comunicação, buscaram dar conta das mais urgentes questões referentes à urbanidade midiática, sublinhando a evolução histórica do conceito de cidade a partir de sua relação com os processos comunicacionais. Ressaltamos a nossa apreciação e agradecimento aos pesquisadores que participaram deste projeto com suas brilhantes, atuais, relevantes e primorosas contribuições. Também gostaríamos de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), à Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco e à Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da UFPE pelo financiamento do simpósio e deste livro.
Referências ANDRADE, M. de. “A escrava que não é Isaura”, Obra imatura. São Paulo/ Brasília: Martins/INL/MEC, 1972, pp. 195-300. FEATHERSTONE, M.. Undoing Culture. Globalization, Postmodernism and Identity. London/ Thousand Oaks/ New Delhi: Sage, 1995. LIRA, J. T. C.. “O urbanismo e o seu outro. Raça, cultura e cidade no Brasil”, Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. Nº1, Porto Alegre, 1999, p. 44-78. SARLO, B. Escenas de la vida posmoderna. Intelectuales, arte y videocultura en la Argentina. Buenos Aires: Ariel, 1995. VIRILIO, P. “A cidade superexposta”, Espaços e Debates, 33, 1991, p.1017. WILLIAMS, W. O Campo e a cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. YÚDICE, G. “Postmodernism in the Periphery”, The South Atlantic Quarterly, 92:3 (Summer 1993), p.543-56.
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CINEMA E CIDADES
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A METRÓPOLE CINDIDA: O CLICHÊ DO MELODRAMA NO INTERIOR DAS NARRATIVAS DOCUMENTÁRIAS *
Mariana Baltar “cena fixa das vicissitudes do homem, carregada de sentimentos de gerações, de acontecimentos públicos, de tragédias privadas” Aldo Rossi, A Arquitetura da Cidade.
Introdução Os primeiros quatro minutos de Ônibus 174, filme dirigido por José Padilha em 2002, são impactantes, óbvios e estratégicos: a um só tempo apresentam, antecipam e sumarizam o restante do documentário. São a mais perfeita apresentação do seu argumento, cenário e personagens, seguindo, portanto, os ensinamentos da gramática das narrativas melodramáticas da história do cinema. Imagens aéreas, acompanhadas de uma música instrumental intrigante e incessante, voam pela baía da Guanabara e adentram a cidade do Rio de Janeiro. Aos poucos, vão se aproximando das ruas, localizando o cenário da ação. Diversas vozes, a princípio desconexas, recontam a experiência de morar nas ruas. A imagem
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Normalmente não faço isso, mas queria dedicar esse artigo a Antônio Bezerra Baltar, meu avô, engenheiro e urbanista. Ao preparar o presente texto, encontrei com prazer e saudade a tese escrita por ele em 1951, na qual traçava as diretrizes para o planejamento urbano de Recife, ressaltando a importância de um pensamento regional para a melhoria da qualidade de vida dos habitantes da cidade.
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se aproxima ainda mais das ruas, enquadrando os diferentes espaços de habitação, barracos na encosta do morro, a paisagem reconhecida do cartão postal e, em seguida, os ricos prédios e casas de luxo. Nesse momento, uma voz se sobressai às outras, começando a narrar, pausadamente, o que aconteceu naquele dia em que o ônibus foi seqüestrado na Rua Jardim Botânico. Corte seco para um cenário de paredes pretas (sem paisagem, sem ruas) e o dono da voz, um capitão da polícia, primeiro entrevistado do filme, prossegue em seu depoimento. As imagens aéreas fixam uma cidade partida. De um lado, a esfera marginal, protagonista do seqüestro, da violência; de outro, o cenário de riquezas habitado por uma classe socialmente favorecida. Duas cidades que se colocam lado a lado e que se interpenetram no acontecimento da violência narrada no filme. Uma polaridade simplificadora da experiência da vida urbana, mas de uma sim-plificação óbvia que será estrategicamente operante ao longo do discurso de Ônibus 174, sustentando seu argumento, melhor dizendo, “presentificando” seu argumento. Por isso mesmo, tal começo de filme – com tal construção de imagens da metrópole cindida – acaba por antecipar, simbolizar e intensificar a narrativa, catalisando um potencial de engajamento afetivo com o desenrolar da história. Estas imagens polarizadas da experiência da cidade, com seu estratégico poder de impacto, já foram colocadas em ação nos clássicos do melodrama, traçando um paralelo poderosamente simbólico entre as dualidades da trama e as dualidades do cenário onde se desenrola a trama. Elas estão em filmes como Santa entre os demônios (Salón México, Emilio Fernandez, 1948) em que o contraste social de dois Méxicos – um pautado pelo universo do cabaré e o outro pelos monumentos da história oficial do projeto modernizador do governo daquele período – é encenado pela trajetória da prostituta Mercerdes e sua irmã, a estudante Beatriz. A estrutura de simetria perpassa toda a narrativa, tomando a cidade como o palco, uma polaridade fundamental na narrativa que se expressa, por exemplo, nas diferenças de iluminação para cada uma das partes 26
enquadradas. Enquanto o México do universo “cabaretero” se mostra num intenso contraste de áreas bem demarcadas de preto e branco, o espaço da história oficial é percebido por uma cinza mais uniformizador cujo efeito é o de uma luz acética condizente com o projeto de modernização do discurso oficial, o qual o filme de Fernandez ao mesmo tempo apresenta e critica. A estrutura da cidade polarizada aparece também, com freqüência, na cinematografia nacional contemporânea. Em filmes como Um Céu de Estrelas (Tata Amaral, 1996), Orfeu (Cacá Diegues, 1999), O Invasor (Beto Brant, 2001) e Cidade de Deus (Fernando Meireles, 2002) tais imagens condensam em um espaço dicotômico a experiência múltipla da metrópole, fazendo com que a ação se desenrole nesse cenário dual, enquadrando, simetricamente, os espaços de inclusão e exclusão da vida urbana. É interessante ressaltar como tais imagens – das “cidades partidas” brasileiras – ficaram comuns à época, atravessando, como ressaltei, tanto o universo ficcional, quanto o documentário, comparecendo, nesse sentido, por exemplo, em O Rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000), em Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles e Kátia Lund, 1999) e Babilônia 2000 (Eduardo Coutinho, 2001). Recentemente, essa mesma imagem da metrópole cindida foi cristalizada nas aberturas de algumas novelas, mais notadamente Vidas Opostas, da Rede Record e Duas Caras, da Rede Globo, exibidas em 2006 e 2007, respectivamente. Estas imagens de uma metrópole cindida expõem como polaridade o que é uma experiência múltipla da vida urbana, porém, tal dualidade é estratégica e funcional para a economia narrativa do melodrama. Exercem, pelo poder da própria dualidade (da reiteração simbólica, “presentificada”, dessa polaridade), um importante papel na articulação do engajamento afetivo – elemento central no universo melodramático. E é sobre tal poder de engajamento que pretendo me debruçar a partir do caso do documentário Ônibus 174, traçando, para além das classificações mais segmentárias do gênero, uma abordagem dialógica entre o universo do documentário e a imaginação melodramática. 27
A Cidade como experiência, o urbano como modo de vida “O início do que pode ser considerado marcadamente moderno em nossa civilização é caracterizado pelo crescimento das grandes cidades”, escreveu o sociólogo Louis Wirth (1976, p.90), no ensaio publicado pela primeira vez em 1938. As implicações de tal argumento, afinadas com toda uma corrente das ciências sociais da época (que marcavam inclusive a consolidação de uma sociologia urbana), sugerem que a experiência da modernidade esta intimamente ligada à noção de vida urbana. Tal concepção de sociologia urbana amparava-se em certa noção de cidade presente também no campo do urbanismo. Por volta de 1935, próximo, portanto, ao ensaio de Wirth, os escritos de sociologia urbana, entre os quais o de N. Anderson e E. C. Lindeman, afirmam: “uma cidade é, entre outras coisas, um estado de espírito e uma forma de conduta” (Anderson e Lindeman, 1935, XXVIII). Antônio Bezerra Baltar, em sua tese do início dos anos 1950 dedicada a traçar as diretrizes para um plano urbanístico regional para o Recife, apontava, logo no primeiro capítulo, que a noção de urbano é tão antiga quanto a história dos agrupamentos humanos, contudo, a experiência urbana é um traço da modernidade. O engenheiro e urbanista pernambucano procurava delinear naquele momento a evolução do planejamento urbanístico, ressaltando como esta acompanhava o entendimento, associado ao campo do pensamento social, de que cabia ao urbanismo uma preocupação com o modo de vida de seus sujeitos. Assim, apontava Baltar (1999), a moderna teoria da arquitetura passava a entender a si mesma de maneira mais ampla, condensando suas funções de ciência, técnica e arte de modo não meramente acadêmico, mas socialmente preocupado: O urbanismo do século XIX, esse período fatal da história da arquitetura e da urbanização, contentouse com a procura da solução do problema do embelezamento. Ciência e arte tipicamente acadêmicas, a
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organização dos planos de cidade dentro desse espírito, que foi a tendência oficial de certa época já desse nosso século, não procurou fundamentos sólidos na observação e na análise dos verdadeiros problemas humanos dos quais o urbanismo e a arquitetura são apenas reflexos. (...) Foi depois de tomarem pé nos verdadeiros alicerces de sua disciplina – ciência, técnica e arte ao mesmo tempo – que os urbanistas descobriram que a cidade não pode ser planejada em abstrato, como um ser isolado (Baltar, 1999, p.18-19).
Fica claro, assim, como o próprio campo do urbanismo e da sociologia urbana afirma a multiplicidade da experiência da vida urbana, uma vez que considera a cidade como organismo atavicamente ligado às experiências e problemas da vida humana, portanto, intrinsecamente diverso e múltiplo. O campo da arquitetura e do urbanismo cada vez mais se preocupa com a relação da apropriação do espaço arquitetônico, seja do ponto de vista social, seja do ponto de vista simbólico e afetivo, partindo da percepção de que as soluções espaciais variam de acordo com as múltiplas necessidades geradas a partir das demandas e apropriações do espaço. “O espaço da arquitetura está intimamente relacionado à idéia de se experienciar o espaço, não apenas no que se refere à sua importância simbólica coletivamente partilhada mas, sobretudo, nas variações de sensações pessoais – donde sua subjetividade – que a apropriação particular desse espaço provoca”, escreve a arquiteta Lúcia Leitão (2004) em sua tese de doutorado, cujo foco é justamente operar uma aliança com a psicanálise para dar conta das implicações das diversas apropriações e experiência do espaço na relação com a subjetividade. Na tese, Lúcia Leitão vai se apoiar amplamente no trabalho de Aldo Rossi (1995) cuja pesquisa, datada de 1966, formulou a teoria dos fatos urbanos, segunda a qual, a cidade se organiza enquanto tal a partir da experiência compartilhada – pública e privada, histórica e cotidiana – da vida dos que a habitam, ou seja, “uma relação indissolúvel com o modo de ser e com o comportamento das pessoas” (Rossi, 1995, p.9). 29
Lúcia Leitão ressalta do pensamento de Rossi um aspecto que interessa particularmente aos propósitos desse artigo: “importa, pois, considerar neste texto a idéia de que a arquitetura que a cidade explicita tem como circunstância geradora o conjunto de acontecimentos sociais, políticos, psíquicos, etc., que constituem a vida coletiva de uma comunidade” (Leitão, 2004, p.87). Meu argumento é que, na contemporaneidade, não se pode excluir desse conjunto de acontecimentos traçados na tese da arquiteta a esfera midiática. A construção através das narrativas do imaginário midiático de uma experiência de cidade é, sem dúvida, um dos “etc.” mencionado por Lucia Leitão. E é afinal, disso que quero tratar, procurando refletir sobre os propósitos de uma moldura polarizante para a vida na grande cidade, moldura esta que se estabelece, com freqüência, nas narrativas audiovisuais brasileiras e que operam, o que poderíamos chamar de um reducionismo melodramático da vida urbana. Se a cidade é um espelho dos modos de subjetivação e das apropriações, sociais e coletivas da experiência humana – como, ao cabo, indica a tese de Lúcia Leitão, corroborando autores como Rossi – ela pressupõe um olhar narrativizante sobre tal experiência, como um impulso de simbolizar, fazer sentido para a própria vida urbana. E, cada vez mais, em tempos contemporâneos, tal olhar é atravessado pela moldura “mediada” das narrativas midiáticas, que conformam, ainda que não deterministicamente, a própria experiência de espaço urbano dos sujeitos. Assim, no âmbito mais específico desse trabalho, que implicações têm a persistência da representação da experiência da cidade como dicotômica, partida, polarizada, em narrativas cinematográficas, como Ônibus 174? Se a vida urbana é múltipla como o espelho das variadas apropriações subjetivas do espaço – e não mero cenário, com indica Leitão (2004) – a que serve a representação de um espaço dual como palco das ações da narrativa, e de uma narrativa documentária, ainda mais (em que pese sobre ela, a narrativa, as implicações de um discurso socialmente legitimado como proveniente da realidade)? O que se vê de maneira cabal em Ônibus 174, mas não apenas no documentário de José Padilha, é uma estratégica apro30
priação da dualidade para servir ao modelo melodramático, pois este, por sua vez, serve como instrumento para colocar em cena as questões prementes da contemporaneidade. É um reducionismo, da multiplicidade para um cenário polarizado (conforme, aliás, ensinou o melodrama tradicional), mas trata-se de um reduzir que acaba por espelhar a complexidade.
O Valor da imagem polarizada em Ônibus 174 O documentário Ônibus 174 partiu das diversas imagens do famoso, e “espetacularizado” seqüestro ao ônibus na zona sul do Rio de Janeiro – em que passageiros foram mantidos presos por mais de cinco horas culminando na a morte de uma refém e na execução, pelos policiais, do seqüestrador – para recuperar a trajetória do seqüestrador Sandro tangenciando, dessa maneira, questões relativas à violência e à exclusão social nas cidades brasileiras. Ao longo do filme, a cidade vai se construindo o cenário de tragédias cotidianas onde o personagem Sandro transita entre os papéis de bandido e de vítima. Para tanto, o filme vai se estruturando tomando de empréstimo as marcas estéticas do repertório do universo melodramático, compondo quase que uma adesão a tal repertório, do ponto de vista narrativo, a partir do momento em que faz uso das categorias que costuram uma lógica de engajamento afetivo para o filme e para o personagem a partir de uma interconexão entre as esferas públicas e privadas. Mesmo em se tratando de um documentário, Ônibus 174 não economiza na utilização da trilha sonora musical, na construção de pequenas circularidades internas para compor uma narrativa pautada na continuidade retórica de um argumento que se ampara na dicotomia visibilidade – invisibilidade para dar conta da trajetória de Sandro. Assim é que o filme coloca em cena certa adesão ao mundo do melodrama, o que é feito de maneira estratégica, como potência da narrativa em favor do seu argumento. É ela que, justamente, constrói para o filme um discurso de não condenação para o personagem Sandro, construindo-o exatamente como perso31
nagem passível de identificação e de mobilização de um sentimento de piedade. A imagem da cidade partida, uma metrópole cindida entre o mundo do visível – socialmente aceito, economicamente favorável – e o mundo do invisível – socialmente marginalizado, economicamente destroçado – é o cenário onde se desenrola a trama. Sandro transita entre esses mundos, ou melhor, fica parado, seqüestrado no ônibus que faz o trajeto entre os dois mundos. As imagens desses espaços, imagens aéreas, compostas de grandes planos, em que a polaridade está clara, simbólica e obviamente estampada, são reiteradamente utilizadas ao longo do filme. Funcionam, na verdade, como simbolizações exacerbadas1, tal qual na gramática do melodrama, em que sumarizam e condensam o dilema moral que atravessa a narrativa. Tais imagens afirmam uma polaridade para a experiência da violência na cidade, dualidade que marca Sandro como personagem, a despeito da multiplicidade possível da experiência na cidade, da vida de Sandro ou da abordagem do seqüestro. A polaridade é estratégica para o discurso fílmico, pois é ela que pode sustentar a idéia central do filme: o argumento de que Sandro (o personagem de Ônibus 174 – acontecimento e filme) é espelho de outros Sandros, invisíveis à sociedade e seus discursos e que, no entanto, só galgam a condição de visibilidade quando tomam de assalto a experiência da vida urbana. Segundo o argumento desenvolvido no filme, é justamente através da violência que a passagem para a visibilidade ocorre. Por isso, o par dicotômico é central ao documentário, pois espelha, moralmente, a partir de um Sandro a vida de tantos outros como ele. 1
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Vale lembrar as categorias que fazem “reconhecer” a presença dialógica da imaginação melodramática. São elas: a antecipação (como maneira de ativar um estado de suspensão e comoção), a simbolização exacerbada e a obviedade. As três, em conjunto e operadas reiteradas vezes, organizam no melodrama canônico o modo de excesso; ao passo que, no interior das narrativas contaminadas pela imaginação melodramática, mesmo aquelas que não se baseiam no excesso, estas categorias comparecem como instrumentos eficazes para a articulação do engajamento afetivo.
Por isso, a imagem da cidade cindida, onde dois mundos opostos e claramente reconhecidos pela geografia de seus símbolos se colocam lado a lado, será tão importante no filme. E tão largamente utilizada. Ela sustenta, marca visualmente, o argumento que atravessa Ônibus 174, a um só tempo reiterando o lugar do documentário e reafirmando a adesão, estratégica, à imaginação melodramática. Em artigo sobre a representação das cidades no cinema latino-americano recente, Ângela Prysthon (2006) desenvolve o argumento, amparado nas formulações de Roland Barthes (1986), que, muitas vezes, tais imagens exercem o papel de um pormenor supérfluo “no sentido em que Barthes descreve os enchimentos literários, as minuciosas descrições realistas. Teríamos nessa inclusão de detalhes urbanos sem nenhum sentido aparente dentro da trama, a tentativa de obter a representação pura e simples do real, nos termos barthesianos, o efeito do real” (Prysthon, 2006:258). Se retomarmos e ampliarmos tal leitura, poderíamos dizer que as imagens da cidade partida no documentário – o de Padilha e de outros – vai exercer ainda um outro papel: será, para além do real, um efeito de melodrama estratégico para a mobilização afetiva convocada pelo filme. Este efeito sustenta, como apontei, a dicotomia central do filme. A polaridade entre invisibilidade e visibilidade é reiterada constantemente; e todo um conjunto de críticas e análises do documentário apontam, com pertinência, tal questão. Para Esther Hamburger (2005), por exemplo, esse aspecto fundamental de Ônibus 174 o liga, sintomaticamente, a outro conjunto de produções contemporâneas do cinema brasileiro, preocupadas com o jogo de representações dos personagens sociais que habitam, digamos assim, este mundo polarizado entre a visibilidade e a invisibilidade. O que as críticas não mencionam mais detalhadamente é, no entanto, o papel que as estratégias melodramáticas exercem ao trabalharem com essa dicotomia. A polaridade em si, tal como articulada no filme, já é um primeiro traço de diálogo com a imaginação melodramática, pois ela remonta a uma instância moral que se instaura, incorporada em personagens e suas ações. O fato de que ela está obviamente colocada no filme, sobretudo através da imagem da cidade partida, é outro 33
dos mecanismos melodramáticos que se faz presente. À tal imagem, soma-se o comentário em voz off – tão caro ao repertório tradicional do documentário – que, a uma dado momento, fala: “Esse Sandro é um exemplo dos meninos invisíveis que eventualmente emergem e tomam a cena e nos confrontam com a sua violência, que é um grito desesperado, um grito impotente”. O dono da voz não é creditado, apenas vemos seu rosto por um breve momento – óculos, terno – mas o teor (conteúdo associado ao tom) de sua fala não deixa dúvidas de que se trata de um “especialista” que vai sumarizar a explicação de cunho social de Ônibus 174. As imagens que aparecem durante a longa fala mostram as ruas em que jovens marginalizados que disfarçam seu rosto com a camisa se opõem aos caros de luxo (uma versão da cidade partida do início do filme). Tais cenas se vinculam diretamente à imagem de Sandro no ônibus, mostrada seqüências antes, nas cenas do seqüestro captadas pela TV, quando o vemos ajeitar seu disfarce, cobrir seu rosto. Podemos dizer que Ônibus 174 constrói duas linhas narrativas que se interpenetram ao longo do documentário. Uma delas remonta às muitas imagens de arquivo do evento do seqüestro ao mesmo tempo em que procura, através das lembranças dos reféns sobreviventes, dos policiais envolvidos e de outros entrevistados, recontar o evento em si, sobretudo estabelecendo um contraponto entre o papel desempenhado por Sandro, o papel dos policiais e o papel da mídia. É através desses momentos que a imagem da cidade partida – cenas em que os contrastes sociais vão sendo claramente marcados através de quadros (tableau) invariavelmente compostos de planos médios e gerais – vai ser usada de modo recorrente para pontuar a narrativa. As cenas do momento do seqüestro, produzidas pela cobertura da televisão e pelas câmeras da instituição policial, serão usadas excessiva e particularmente como marcas da cidade partida, costurando uma retórica de continuidade entre o desenrolar do seqüestro e a própria trajetória de vida de Sandro (recontada pelos diversos depoimentos daqueles que conviveram com ele, construindo, dessa maneira, uma memória, afetiva e coletiva, do personagem. 34
Um trabalho de memória que conecta o Sandro da esfera privada e o Sandro da atuação pública.2) Tais imagens catalisam o poder de engajamento afetivo com a narrativa, ajudando a conformar, a partir daí, uma experiência da vida urbana consonante com o cenário polarizado representado no filme. Em um artigo que se dedica a pensar as implicações sensoriais e afetivas dos documentários políticos “radicais”, Jane Gaines (1999) vai estabelecer uma noção que nos parece pertinente em relação a Ônibus 174, no tocante ao poder das imagens de arquivo do seqüestro usadas no filme. A autora considera que as imagens das grandes mobilizações, do “evento” em si, exercem certo poder de engajamento afetivo – e na verdade um poder de mobilização – sobretudo quando inseridas naqueles documentários que se vinculam diretamente ao desejo de questionamento político. Para Gaines, esse poder pode ser descrito como “pathos of the fact”, algo que seria possível traduzir como “pathos do acontecimento”. Gaines desenvolve tal idéia a partir do uso que o filme The Nation Erupts (produzido pelo grupo ativista Not Channel Zero) faz das imagens do espancamento de Rodney King por policiais americanos em Los Angeles, em 1992. As imagens são colocadas no filme como catalisadoras dos movimentos de reação e revolta que provocaram, após o julgamento e absolvição dos policiais envolvidos, saques e depredações nas ruas na cidade, numa reação especialmente mobilizada pela comunidade negra. Novamente, quero chamar atenção para o que vem sendo desconsiderado em relação a muitos cineastas e videoastas que se empenham em, intencionalmente, produzir um incendiário e artístico documentário. O que é desconsiderado é o uso de elementos tanto na
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As implicações mais específicas da construção dessa memória para Sandro, bem como a relação dialógica dos processos de articulação desta com a imaginação melodramática, estão analisados com maiores detalhes em Baltar, 2007.
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imagem quanto no som os quais produzem um impacto visceral e que devem ressonar fortemente, em termos conotativos, para certas comunidades (Gaines, 1999, 98)3.
Para Gaines, esse impacto visceral se dá em função da combinação de um apelo à referencialidade, à força das imagens do acontecimento (the pathos of the fact) com elementos simbólicos destinados a “falar” diretamente à comunidade alvo. No caso de The Nation Erupts, é o uso das imagens feitas por um cinegrafista amador do espancamento de Rodney King, associado à inserção de uma trilha sonora pop vinculada à música afro-americana. Essa noção de pathos do acontecimento pode ser recuperada para pensar o papel emotivo que desempenha o uso, em Ônibus 174, das imagens do acontecimento do seqüestro. Sobretudo em como essas imagens são utilizadas num regime excessivo, tanto por serem muito usadas ao longo do filme, quanto por exercerem o mesmo papel dramático, sendo, portanto, organizadas num regime de reiteração. O papel que essas longas seqüências exercem não é apenas o de mostrar o acontecimento em longa duração, e, portanto, com todos os detalhes de seu espaço urbano, mas pontuar, numa espécie de crescendum, o desenvolvimento do personagem da invisibilidade para a visibilidade. Afirmar que Sandro se encontra no centro daquela cidade partida. As cenas do seqüestro pontuam o filme, organizando os períodos da vida de Sandro em pequenos quadros temáticos, os quais, quando recolocados lado a lado pela narrativa não linear do documentário, acabam por traçar uma noção de trajetória que vai do trauma da infância, da marginalização como menino de rua, de
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“Again, I want to call attention to what has been unacknowledged about the work of many film- and videomakers who have produced intentionally incendiary documentary art. What has been unacknowledged is the use of elements on either the image track or the sound track that make a visceral impact, that may have strong connotative resonance for particular communities”.
pequenos momentos de felicidade, os quais compõem a invisibilidade, até o evento do seqüestro, quando Sandro torna-se visível como problema social através de seu ato de violência. Para introduzir cada momento dessa trajetória, recupera-se a imagem aérea da cidade, com seus contrates apresentados como dualidades, concentrando tal imagem como o cenário para o drama da experiência na metrópole que se reflete no drama do personagem. Uma montagem intercalada entre as cenas do seqüestro e os depoimentos sobre a vida de Sandro acaba por acentuar o poder de pathos de acontecimento das imagens do seqüestro e estabelece entre tais imagens e os outros momentos do filme uma relação de continuidade, de corroboração, de obviedade que é estratégica para o envolvimento sentimental. Assim o é, uma vez que nos compele a um tipo de engajamento com Sandro como um personagem fadado a cumprir seu destino. A construção da memória de Sandro nos apresenta seu destino; as imagens de Sandro no seqüestro nos apresentam o cumprimento desta sina, desse destino. Uma das passagens em que esse mecanismo se faz marcante dá-se no início do filme, quando a voz off de um dos policiais encarregados da ação nos relembra seu primeiro contato com o seqüestrador: “até aquele momento eu não sabia, ninguém sabia que ele era o Sandro”. A trilha musical pontua um movimento de fusão da imagem do ônibus na Rua Jardim Botânico com imagens aéreas da cidade, nas quais ficam marcadas as distorções e contrastes sociais. Ainda sob a condução da música, ouvimos outra voz off, dessa vez a de Ivone Bezerra, a qual é possível identificar, pois se trata de uma figura conhecida pela sua atuação como voluntária junto a jovens de rua. Ivone nos apresenta Sandro, relembra seu passado de maneira pontual, anunciando a seqüência de pequenas tragédias sociais que marcam a vida dele as quais serão, uma a uma, narradas mais detalhadamente ao longo do filme. Através dela, ouviremos pela primeira vez a tragédia que marcou a infância de Sandro – fato que será narrado ainda por dois ou três outros depoimentos de entrevistados diferentes até que seja recontado em detalhes mais perto do final de Ônibus 174. 37
O depoimento de Ivone liga-se às primeiras imagens do seqüestro como uma espécie de resposta; por sua vez, esse mesmo depoimento introduz a cena seguinte (as imagens de outros tantos meninos de rua como Sandro e o depoimento daquela que foi uma de suas colegas nas ruas de Copacabana). Esta cena se dá com uma mesma estrutura de montagem que marcou a passagem da cena do seqüestro para o depoimento de Ivone, ou seja, a mesma trilha musical que costura, como espécie de linha de continuidade, a passagem de uma seqüência à outra. Esse tipo de estrutura se repete ao longo do filme, ligando as passagens de uma seqüência à outra, e, especialmente, das cenas do evento a outras cenas, numa mesma lógica, como se fizessem parte de uma mesma superfície, ainda que a narrativa, à primeira vista, não pareça ser linear. Tal aspecto acaba reiterando as metáforas da invisibilidade e da visibilidade, condensadas nas imagens da cidade polarizada, cindida, organizando o filme em torno da trajetória de Sandro, e, com isso, investindo-a de uma forte carga emocional. Ônibus 174 estabelece uma lógica de continuidade entre as imagens do seqüestro e todo o restante do filme, mais especialmente, entre essas imagens da metrópole cindida e os depoimentos que constroem a memória e, com isso, o próprio personagem de Sandro. As imagens do seqüestro são, ao cabo, a presentificação do passado do personagem. O momento em que seu passado, sua memória e seu destino convergem no presente do acontecimento no cenário da Rua Jardim Botânico4. Marcando, talvez, na retórica interna do filme, aquela rua como um fato urbano (nos termos de Aldo Rossi). Remarca também a experiência múltipla da cidade como a experiência polarizada daquele melodrama real, pois, se a cidade se realiza na idéia de cidade (parafraseando aqui mais uma vez Rossi e
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Essa idéia de que a trajetória de Sandro já estaria predestinada por sua condição socialmente marginalizada encontra-se também na análise de Esther Hamburger (2005), bem como em outras considerações sobre o filme realizadas, por exemplo, em palestras na 13ª Conferência Internacional Visible Evidence, em São Paulo, 2006, onde Ônibus 174 foi tema de 4 trabalhos.
sua teoria dos fatos urbanos), as representações dessa cidade são forças atuantes da construção da “consciência e memória que a cidade adquire de si mesma.” (Rossi, 1995, p.2).
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ENTRE CLARÕES E TREVAS: A CIDADE NOIR NO PARACINEMA
Bernadette Lyra A culpa não é da cidade, mamãe. Becky, a traidora. Sin City.
Cidade, cinema, HQ e noir Não é de agora que se estudam as relações entre cinema e cidade. Há muito, o binômio vem atraindo a atenção de estudiosos e críticos das mais variadas áreas do conhecimento. Isso se deve a muitas razões, sobretudo, ao fato de ser essa uma equação que junta os dois elementos mais importantes e expressivos do processo de hibridismo cultural e social que está na genealogia do conceito de modernidade. ...o cinema figura como parte da violenta reestruturação da percepção e da interação humana promovida pelos modos de produção e pelo intercâmbio industrial-capitalista; enfim pela tecnologia moderna, como os trens, a fotografia, a luz elétrica, o telégrafo e o telefone, e pela construção em larga escala de logradouros urbanos povoados por multidões anônimas e prostitutas, bem como por flâneurs, não tão anônimos assim. (Hansen, 2001, p.498).
Por outro lado, por suas características cinéticas que propiciam o voyeurismo e a mobilidade, as cidades são objetos mais que perfeitos para o universo cinematográfico. Desde o início do cinema, a cidade teve nele um lugar privilegiado, sobretudo, a metrópole, ou seja, o modelo de cidade expandida do final do século XIX. Mas, 41
esse elo comum de representações se esgota a cada nova modelação cinemática que confere as cidades funções diferenciadas, quer seja pelas vias do estilo pessoal do realizador, quer seja pelos contratos de movimentos e gêneros que ocupam a história do cinema. Quanto a estes últimos, um exemplo específico está no cinema noir, que muitos consideram um verdadeiro “movimento”, outros um “gênero”, mas que, enfim, é tributário de um verdadeiro “sentimento” do lado obscuro do mundo traduzido em materialidades expressivas. Segundo o Dicionário teórico e crítico de cinema, o termo noir se deve às produções ficcionais americanas da década de 1930, caracterizadas por sua violência e sua visão amarga, e, até mesmo desiludida, da sociedade liberal na era de depressão. Os críticos europeus, mais tarde, teriam dado a esses romances e filmes a denominação de noir, graças à Série noire, uma coleção de livros policiais lançada pela Gallimard, em 1945 (cf. Aumont e Marie, 2003, p.213). Esse tipo de literatura voltada para brochuras baratas, chamadas de pulp fictions1 e destinadas às grandes massas de leitores, de fato, influenciaram o novo meio de comunicação expressiva que estava surgindo, ao mesmo tempo em que se deixavam, por ele, influenciar. Assim, o cinema se apropriava de toda sorte de modelos literários triviais. Em contrapartida, as técnicas do cinema começavam a modificar o modo orgânico dessas narrativas. Temas policiais, histórias açucaradas românticas, enredos de horror e outros tantos que caiam no gostam do público comum passam a serem tratados com os lances técnicos com que se trabalhava a imagem em movimento. Esse fenômeno se observa, sobretudo, no desenvolvimento das histórias em quadrinhos que, sob a influência dos filmes, alteraram de maneira substancial os seus modos de diagramação, de 1
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As pulp fictions se constituíam como tipo de entretenimento voltado para o consumo massivo, sem grandes pretensões artísticas, ainda que obtivessem intenso reconhecimento e grande circulação. Abordavam histórias de ficção científica, medo, sobrenatural, intrigas policiais etc. Um exemplo é O Falcão Maltês, (1932) romance policial pulp de Dashiell Hammett que resultou no filme Relíquia Macabra (1941) de John Huston, no qual Humphrey Bogart se consagrou como o detetive Sam Spade. Relíquia Macabra ficou na história do cinema como sendo o primeiro filme noir.
roteirização, de composição de personagens e, sobretudo, de disposição gráfica. As trocas entre HQs e cinema vêm sendo feitas desde que este foi criado, havendo mesmo quem considere que filmes do chamado “primeiro cinema”, configurados em “quadros”, são tributários das bandas desenhadas e de sua capacidade de condensar episódios piadísticos em imagens, como é o caso de L’arroseur arrosé (1895) dos irmãos Lumiére, tida como a primeira “tradução” cinematográfica de quadrinhos, feita sobre uma tira publicada em 1889, por Christophe, um conhecido desenhista francês (cf. Lucena Jr, 2002). Pensando tais interações entre quadrinhos e cinema, observa-se que os intercâmbios aí observados se deram e continuam a se dar, prioritariamente, no espaço de constituição do noir, lugar em que predomina a imagem urbana dos heróis duros, sombrios e atormentados, glorificados pelo cinema e reaproveitado como modelo pelos desenhistas de bandas quadrinizadas. Já em 1931, Dick Tracy, de Chester Gould, rompe com a fórmula de personagens idealizados e dá início ao realismo de protagonistas de enredos policiais, sob a nítida influência dos filmes que, então, estavam sendo realizados. Daí à frente, nos quadrinhos de detetives, começam a surgir antiheróis, como Spirit, criado em 1940 por Will Eisner, e Steve Canyon, que Milton Caniff desenha pela primeira vez em 1947. Na mesma linhagem, está Batman, cujas peripécias nos subterrâneos e nas ruas noturnas de Gotham City são tão reconhecidamente aproveitadas em filmes e em séries de televisão2. Assim, não é difícil entender os motivos dessa simbiose representativa. As cidades, com sua ausência de limites físicos e emotivos, ou se deixam entrever como um foco de descontrole em que os submundos do crime, do vício e da miséria se instalam ao lado da propriedade e da moral burguesa como uma outra espécie de ordem; ou então se mostram como lugar de prazer, escapando a toda e qualquer previsão. 2
A origem de Batman remonta aos desenhos de Fred Foster, em 1932. Mais tarde, Batman reaparece no traço de Bob Kane, que, em parceria com o roteirista Bil Finger , dá contornos mais específicos ao “Cavalheiro das Trevas”.
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....há um conjunto de filmes que traz possibilidades mais amplas de combinação entre as diversas “modalidades”, podendo ora deixar sobressair a idéia da cidade como virtude, ora acentuar a espetacularização da violência. Justamente os filmes que apresentam um embate entre as duas visões e mostram a cidade como fatalidade (Prysthon, 2006, p.263-4).
Dessa ambivalência se alimenta o noir que constitui ou perpassa não apenas em filmes, mas também em HQs, e acaba por caracterizar esses meios, tanto em aspectos sociológicos, quanto em técnicas expressivas3. Nenhuma produção noir prescinde da representação da cidade. De fato, nada escapa às estetizações do urbano nesses espécimes carregados de cinismo, mistério e tormentos morais, recheados de vamps, louras, gangsteres, detetives e outros tipos envolvidos por uma narrativa em primeira pessoa e materializados pelo preto-e-branco. O campo e o espírito campestre com suas amenidades, aí, não têm vez, e, quando abordados, são como espaços de fuga ou refúgios escusos, usados mais para encobrir de que para sediar as noturnas abominações. Por vezes, as produções noir aderem ao realismo cru para exibir ambientes urbanos em claro-escuro e ângulos não convencionais, o que as aproxima do expressionismo alemão. No caso de filmes, por exemplo, as locações feitas em cidades “reais” mostram edifícios de paredes cinzentas, ruas sujas e becos sombrios. No entanto, existem cidades imaginárias, fantasticamente construídas, como a Los Angeles pós-futurista de Blade Ranner (1980), de Ridley Scott 4 ou a delirantemente sombria Gotham City, das versões cinematográficas de Batman.
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O cinema noir não fica restrito ao seu período clássico (década de 40 e meados da década de 50). Outros filmes, até mesmo em cores, continuam sendo feitos dentro do mesmo modelo e conservando as mesmas características daqueles pioneiros do gênero. Alguns críticos os nomeiam como neonoir. Segundo Luis Salvador Gnoato, a Los Angeles de Blade Runner “lembra um pouco as propostas do Archigram, tendo se transformado em gigantesca
Porém, em quaisquer desses casos, a cidade, a cada vez que é mostrada, assume diversificadas funções. Algumas se apresentam como cenários ideais, dão o tom e abrigam as histórias de detetives, prostitutas e bandidos que se esgueiram em seus becos repletos de violência, horror e medo; outras adquirem tanta importância que deixam de ser o ambiente que envolve a narrativa para se transformarem em protagonista dos filmes. Sem dúvida, este é o caso de Basin City, ou Sin City, a imaginária cidade que interessa particularmente ao presente trabalho 5.
O paracinema Sin City, obra em HQ de Frank Miller, tomou a forma de cinema em 2005, no filme dirigido por Robert Rodriguez, Frank Miller e Quentin Tarantino (este último como diretor convidado). Essa “cidade do pecado” tem dupla face: Sin City é o tema e a principal “estrela” desse filme noir, mas é também uma cidade paracinemática, a mais emblemática de todas da história do paracinema, uma vez que reproduz, inteiramente e com minúcias, os traços de sua representação homônima nas histórias em quadrinhos6. Antes de tudo, quero estabelecer o campo do paracinema, termo que emula a conhecida noção de paraliteratura, inclusive em
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megalópole com torres dispondo de alta tecnologia, que contrasta com outra cidade ao nível do chão, e sua disputa pela sobrevivência. A estética pop art de Blade Runner, antecipa o projeto não executado, de Rem Koolhaas, para o ZKM Center for Art Media Technology (1989), em Karlsrule, na Alemanha”. Blade Runner, a cidade pós-futurista. Trabalho apresentado no Ciclo Cinemacidade – PUCPR, maio 2004. Em uma das cenas, a palavra Basin que designa a cidade tem as primeiras letras borradas, resultando no aposto que dá título ao filme: sin. A trajetória de Basin City, em Frank Miller, é a de uma cidade que surgiu no rastro da corrida americana do ouro, mas foi abandonada depois, não antes que um poderoso senhor da família Roark resolvesse montar um bordel para atrair e fixar os homens ali. Muitos vieram, de fato, inclusive traficantes, golpistas e criminosos em geral se estabeleceram no local e instauraram práticas criminosas de todas as feições, o que valeu à cidade a alcunha de Sin City, “a cidade do pecado”.
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suas dificuldades de definição7. A meu ver, a noção de paracinema se dá na esfera de uma estética afetada pelas chamadas subculturas8. Dessa forma o universo do paracinema pode ser visto enquanto lugar de abrigo de certas produções capazes de provocar uma sensibilidade esteticamente determinada e que tem seu fundamento nas noções de bordas, margens, trash, e outras. Alguns estudiosos utilizam paracinema no contexto de obras artísticas de vanguarda ou de filmes chamados experimentais que usam elementos cinemáticos em sua composição, mas que diferem da estrutura de um filme industrial. Essa concepção, atualmente, cede espaço à outra que considera o paracinema no âmbito dos filmes de gênero ou de filmes cult 9. Para Jeffrey Sconce, a catalogação de paracinema não só inclui os filmes de horror artísticos, explotation, pornográficos e ficção científica como também uma série dos mais diversificados gêneros como: “badfilm, splatterpunk, mondo films, sword-and-sandal epics, Elvis flicks, government hygiene films, japanese monster movies, beach party musicals” (Sconce, 1995, p. 372). 7
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A noção de paraliteratura provoca inúmeros debates: alguns não a consideram procedente, pois estaria vinculada à noção da existência de um cânone legitimado de literatura, cujo conceito seria dado como evidente; outros defendem sua existência a partir de certos vetores identificatórios, entre os quais estão as narrativas que envolvem ação e sentimento. O conceito começa a fazer sentido quando é utilizado dentro da concepção de contraste com obras que as entidades legitimadoras consideram centrais à constituição da cultura literária. A noção de subculturas foi desenvolvida pelos pesquisadores do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, da Universidade de Birmingham, provocando contradições e debates; atualmente, se constitui em uma nova área de investigações multiculturalizadas, a qual tem por marco teórico os trabalhos e as idéias de sociólogos e filósofos da “pós-modernidade”, tais como Bourdieu, Butler, Baudrillard, Jameson, Maffesoli, entre outros. Estou aqui remetendo a certas produções fílmicas que se tornam emblemáticas enquanto modelo de um acúmulo de conhecimentos que difere daquele instituído pelo “belo letrismo” e pela erudição, sob a ótica do senso comum. Tais produções, por vezes, são consideradas cults por serem “cultuadas” não apenas pelo fato de ser diferentes das demais que circulam no mainstream, mas também porque são consideradas superiores por sujeitos que as constituem como um capital cultural, em suas diferenças.
De toda maneira, para em grego pode significar “ao longo de” , portanto, o termo paracinema conserva o caráter de um tipo de cinema que se faz paralelo a um “outro” cinema mais institucionalizado, mas que mantém com ele certa intimidade, em lugar de contrastes. Assim, a noção de paracinema pode ser considerada mais neutra e menos “ideológica” que aquela de cinema marginal, cinema de massa, cinema de consumo etc. Nela cabem os conceitos que servem para designar uma maneira particular de percepção diante de um tipo de produção específica, como, por exemplo, a que está fortemente ancorada na experiência trivial do lazer e nas mediações que transitam entre o “popular” e cultura midiática e massificada de agora, ou seja, o “cinema de bordas” (cf. Lyra e Santana, 2006). Tanto essa percepção “às bordas”, “às margens” “à periferia” etc., quanto a respectiva produção fílmica que lhe corresponde cabem na sensibilidade que envolve a noção de paracinema, voltada para uma estética não convencional e modelada sobre valores que beiram o modo de ser do camp10. A questão da estética, aqui, se faz pertinente, pois acredito que, para além das considerações sociológicas e culturais que podem ser aplicadas ao cinema, os estudos cinematográficos comportam toda uma vasta reflexão sobre a dimensão estética dos fenômenos que ocorrem no universo desse meio de comunicação, aí incluídos aqueles que são considerados periféricos pelas entidades legitimadoras e que são o objeto deste estudo. Nesse sentido, observa-se que algumas produções paracinematográficas quase sempre são excluídas da valoração do cânone institucional por serem justamente aquelas que obtêm sucesso de público. A aceitação massiva parece estar sempre se constituindo em motivo de desconfiança sobre a qualidade de um filme e provocando leituras bastante exigentes (quando não preconceituosas) sobre seus elementos expressivos.
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O camp é um “esteticismo” em que o trash, o kitsch e outras formas, consideradas de mau gosto ou não apreciáveis esteticamente, são encaradas com bom-humor e ausência de juízos de valor.
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Quanto a estes últimos, as produções por eles categorizadas também apresentam características bem específicas que, em sua estrutura e organização, pendem para ausência de novidade ou de originalidade e, em grande parte, para a manutenção de elementos já por muitas vezes vistos e repetidos, garantindo a confiança e a fidelidade dos espectadores comuns. Por sua vez, os conteúdos que compõem as narrativas são agrupados em núcleos temáticos definidos em que se movem personagens que contrastam entre si ou que se juntam em afinidades e cumplicidades. O estilo dos filmes, no paracinema em geral, tende para o excesso ou a precariedade, estando muito próximo, também, da trivialização de códigos sonoros e imagéticos. Assim, nos domínios do paracinema os estudos dos elementos cinematográficos, além das dinâmicas das formas expressivas e das experiências estéticas, são incluídos no mundo midiático e massivo do entretenimento, e vistos sob o prisma das pós-subculturas. Não raro, o paracinema é constituído por fenômenos cinematográficos considerados “lixo cultural”. O paracinema ainda se apropria de outras formas expressivas que são consideradas artefatos da “baixa” cultura e da cultura de massa, fagocitando-as e adaptando-as aos contratos da imagem em movimento, como, por exemplo, as histórias em quadrinhos. Muitos filmes assim se intercambiam, paracinematicamente, com as HQs, porém nenhum é tão completo e fiel aos princípios das bandas desenhadas quanto Sin City.
As trevas e os clarões A fruição de Sin City enquanto espetáculo de entretenimento não se estabelece sobre as modalidades institucionalizadas de apreciação. Por essa razão, muitas vezes, sem que se disfarce o tom de desprezo ou de condescendência, o filme de Rodriguez é considerado como um gibi filmado, um passatempo banal ou um rol de estereótipos gráficos traduzidos para as telas e destinados a um público menos “ilustrado”. No entanto, a alta circulação e a valoração de Sin City pode ser creditada àquela transformação cultural que 48
um tipo específico de público (notadamente, os mais jovens) efetua sobre certos produtos midiáticos massificados, deles retirando uma fruição específica que inclui saber de cor e repetir as falas e os movimentos dos personagens no filme, além de tratá-los com uma intimidade que beira a celebração11. Para além dessa experiência, Sin City pode ser observada como um objeto singular no universo do paracinema, uma vez que é a própria HQ feita em movimento cinematográfico, realizando uma simbiose perfeita entre os dois meios expressivos ao contrário de uma simples tradução ou transposição. O filme dispõe de um arsenal de estratégias idênticas àquelas dos quadrinhos, que inclui planos cortados, ângulos inusitados, iluminação bem marcada, além de procedimentos introduzidos com a finalidade de causar verossimilhança com a banda desenhada por Miller, tais como a inclusão de frames da própria HQ e a filmagem contra uma tela verde, inserindose depois cenários totalmente criados em computação gráfica. Os realizadores de Sin City não apenas utilizam a estética quebrada das HQs, mas também fazem uso de cortes rápidos para simular que os quadros são como folhas viradas, flutuando aos olhos dos espectadores12. É claro que nada disso seria possível sem a utilização do computador13. A esse respeito, torna-se pertinente a afirmação de Lev Manovich (2001) que explica de que modo a popularização da Internet, fez da mídia digital um filtro cultural,capaz de mediar todos os tipos de produção cultural e artística. 11
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No regime trivial de lazer, em geral, a fruição de um filme exige, por vezes, uma participação corporal expressiva. (ver Lyra,B & Santana, G. Cinema de bordas, 2006, p.9-15). Explica-se, dessa maneira, o fenômeno de culto cinematográfico, quando os espectadores decoram e repetem os diálogos e os gestos de certos filmes, os quais, não raro, são assistidos em seqüenciadas sessões. O efeito de “flutuação” sucessiva se deve ao uso cuidadoso dos desenhos de Frank Miller, na confecção do storyboard. Aqui se pode falar em “cinema expandido”, termo criado por Gene Youngblood, e usado nos anos 60/70 para designar um universo de experiências que se davam no âmbito do vídeo e da informática, bem como experiências híbridas englobando teatro, pintura e música e outros meios expressivos através do uso do computador .
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Dessa forma, Sin City é algo híbrido, um elemento “outro” que irrompe no panorama das HQs e do cinema, sem perder as características de ambos14. Sob esse aspecto interfaciado, Sin City coordena quatro histórias independentes de Frank Miller, conectandoas entre si: o filme abre com The Customer Is Always Right (O cliente tem sempre razão), logo após vêm os créditos de abertura. A seguir, entra-se na primeira parte de That Yellow Bastard (O assassino amarelo), continuada por Sin City, The Hard Goodbye (A cidade do pecado), passando para The Big Fat Kill (A grande matança), depois da qual retorna-se a That Yellow Bastard (O assassino amarelo) para a conclusão. O prólogo e o epílogo introduzem um elemento vindo “de fora” do universo das histórias que se desenrolam: um matador de aluguel que surge para “fazer o trabalho sujo” de eliminar mulheres, sob encomenda não se sabe de quem15. No prólogo, quem morre é uma sedutora mulher de vermelho, vítima de um assassinato sem motivo ou explicação, mas que vai se relacionar com o epílogo, quando a prostituta Becky; que traiu as companheiras da “Cidade Velha” e quer passar por “boa moça” para a sua mamãe, tem o encontro fatal com o assassino, trancada com ele dentro de um elevador. A traição de Becky, por certo, será a causa de sua morte, o que, por suposição, faz crer que a morte dama de vermelho, no início, teria idêntica característica. Entre essas duas “execuções”, desenrola-se um intrincado mundo de traições e vinganças, bem ao gosto do cinema noir. As histórias têm como ponto de cruzamento uma casa noturna bastante suspeita da “Cidade Velha”, o Kadie´s Club Pecos. É lá que Nancy Callahan, uma bela stripper, dança com seu laço, enlouquecendo os homens . Após os créditos, um outro pequeno prólogo introduz o personagem do policial Hartigan que dirige 14
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O filme Sin City foi processado por computador e gravado com câmeras digitais de alta definição. Nele, não foi usado nem um centímetro de celulóide. Na série em HQ, o salesman (matador de aluguel) tem todo o sentido como peça fundamental do assassinato da “dama de vermelho”.
desesperadamente por Basin City para tentar salvar Nancy, então uma criança, seqüestrada por Roark Júnior, o filho de um senador corrupto que deseja ter netos para perpetuar a linhagem e o poder. Porém, como Hartigan, a tiros, destruiu os órgãos sexuais do seqüestrador, este será o temível e asqueroso mutante o Homem Amarelo, mais tarde e muitas experiências médicas depois. O segundo prólogo serve para introduzir a cena em que todos os episódios se relacionam, no Kadie´s Club Pecos, pois quando Hartigan é posto em liberdade, após ser condenado pelo seqüestro que, na verdade, ele evitou, sua primeira preocupação é buscar Nancy, que, agora com dezenove anos, trabalha no bordel freqüentado pelos dois outros protagonistas dos demais episódios da trama: Marv e Dwight16. Antes do encontro dos três heróis (ou anti-heróis), porém, se inicia o relato de Marv, um ex-presidiário solitário e deformado que se envolve com Goldie, a prostituta loura assassinada por Kevin, uma estranha criatura que tem como hobby devorar carne humana. Por sua vez, o relato de Dwight, o fotógrafo que se envolve em confusões com uma gang na “Cidade Velha”, só aparece mais adiante, após a morte de Marv na cadeira elétrica, condenado por ter exterminado os assassinos de sua amada Goldie. Assim, a coerência temporal da narrativa não se mantém. A única referência ao tempo diegético é a longa e única noite que envolve as personagens à deriva pela sordidez da cidade. Tal intrincado uso do tempo (comum nas HQs) tem ressonância no uso da voz off, (outro recurso comum às histórias em quadrinhos) que se alterna na seqüência do encontro dos três principais narradores, sem explicação. Como se vê, não falta a Sin City nenhum dos elementos noir costumeiros, tanto de filmes quanto de HQs: mulheres sedutoras, assassinos brutais, homens desesperados, psicopatas perigosos, decadência moral, destruição física, amor, traição, vingança, corrupção, ética, drogas, sangue, sede de poder, sexo, erotismo,
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Essa construção narrativa cruzada pode ser considerada uma referência ao filme Pulp fiction (1994) de Quentin Tarantino que também aparece em Sin City como diretor convidado.
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lealdade, códigos de honra e, sobretudo, incessantes e violentos excessos. O conglomerado tormentoso da trama aparece embalado em elementos visuais que amplificam e transmutam os recursos dos filmes noir. Um dos mais relevantes é a técnica do preto e branco que, em Sin City, se apresenta pontuada por lampejos de cores: olhos azuis, carros verdes, sangue amarelo, objetos e borrões vermelhos, uma cabeleira loura e outros objetos e detalhes que, uma vez postos em relevo, “gritam” sobre o negro da cena e instalam um rápido momento de brilho como um relâmpago que fere as trevas da cidade noturna, não apenas conferindo um segundo grau de importância aos elementos por ele destacados, mas também aumentando, em conseqüência da rapidez do contraste, a escuridão que se torna mais densa. De alguma forma, Walter Benjamin expressa esse processo de intensificação de um lado “opaco” das cidades, quando fala da penetração do campo na constituição das metrópoles na vida moderna: Grandes cidades, cuja potência incomparavelmente tranqüilizadora e corroborante encerra o criador em uma paz de castelo fortificado e é capaz de tirar dele, juntamente com a visão do horizonte, também a consciência das forças elementares sempre vigilantes, mostram-se por toda parte vazadas pelo campo que penetra. Não pela paisagem, mas por aquilo que a livre natureza tem de mais amargo, pela terra arável, por estradas, pelo céu noturno quem nenhuma camada de vermelho esconde mais (Benjamin, 1987, p.25).
A imagem de Sin City se reflete na tela auxiliada pela pesada trilha sonora que inclui tiros, socos e rajadas de metralhadoras e imensamente ampliada por esses “clarões” coloridos que, ao mesmo tempo em que atuam como pontos de luz os quais distendem a tensão do conjunto de imagens, acrescentam a essa tensão um caráter ainda mais tenebroso e sombrio. Assim é que o asfalto das ruas permanentemente molhadas da Sin City reflete o brilho avermelhado dos 52
anúncios de fachadas e motéis; a cama em formato de coração, em que Goldie jaz assassinada, está coberta por lençóis vermelhos rebrilhantes que realçam a massa dos cabelos dourados, espalhados em torno da cabeça da moça; os faroletes vermelhos do automóvel que afunda nas águas do rio reluzem com o mesmo lampejo rubro e envidraçado que tem o frasco de remédios de Marv. Vermelho também é o vestido da mulher que é morta na sacada, sem explicações, bem como seu batom; vermelha é a rosa tatuada no rosto de uma das vítimas do antropófago; vermelho é o carro de Hartigan e o sangue vomitado de muitas bocas e respingado em muitos rostos. Enquanto que é amarelo o sangue do monstrengo que tortura garotas, amarelos são os faróis do carro que corta o breu da noite e amarelo é o olho redondo de plástico do mercenário Manute. Relâmpagos e clarões fazem uma mixagem de todas essas manchas e cores, acrescidas do verde, que aparece quase azulado no metal da capota de carros. Assustadoramente azuis, inocentes e grandes são os olhos de Becky. De certa maneira, o branco integra essa cartela colorida e tem a mesma função de intensificar o negrume, quando é contrastado com o preto, definindo silhuetas recortadas, sem nuances do cinza que atenua todos os elementos em preto e branco no filme. É o caso dos traços da chuva e dos flocos de neve, de um branco exageradamente faiscante, do suicídio de Hartigan na ponte e, sobretudo, da silenciosa seqüência em que Dwight afunda na fossa de piche e é salvo pela pequena prostituta-ninja Miho. Ao longo do filme, incessantemente, se acendem retalhos luminosos de janelas de prédios que pontilham a profunda escuridão. Essa luminosidade, em concentração ou em faixas, se destaca em especial a cada vez que a câmera rodopia, pondo em quadro um plongé da cidade sobre seu fundo negro. Toda essa preocupação com as formas, não só com as dos quadrinhos de Frank Miller, que repete sem tirar nem pôr, mas também com as do excesso que imprime aos recursos de filmes noir, torna Sin City duplamente tributária do universo teórico a que estou chamando de paracinema. Primeiro porque essa representação 53
cinematográfica de um determinado espaço urbano vem diretamente de uma HQ, segundo porque para a materialização da “cidade do pecado”, o filme faz uso de recursos de tal modo excessivos que acabam por configurar aderência à estética do trash17, desafiando as regras canônicas do “bom gosto” e da moderação. Ao apelar para os estereótipos da cultura massiva corrente e do senso comum, veiculados pelas mídias através de idéias, formas e personagens, o filme Sin City mais ainda estabelece laços e contratos com o universo do paracinema. Quando Dwight afunda lentamente nas sombras do poço de piche e a silhueta branca da ninja se destaca no negrume do breu, mergulha de cabeça e o arranca daquela tenebrosa bacia, os espectadores escutam sua voz em off, expressando um pensamento de alívio: “Pequena Miho, você é um anjo. Você é uma santa, você é Madre Teresa, você é Elvis. Você é Deus”.
Referências AUMONT, J. e MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003. BENJAMIN, W. Rua de mão única. (Obras escolhidas II). São Paulo: Brasiliense, 1987. HANSEN, M. B. “Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamin) sobre o cinema e a modernidade”. O cinema e a invenção da vida moderna. CHARNEY, L. e SCHWARTZ, VANESSA, R.(Orgs). São Paulo: Cosac&Naify, 2001, p.497-557. LUCENA, Jr. A. Arte da animação técnica através da história. São Paulo: Senac, 2002. LYRA, B. e SANTANA, G. Cinema de bordas. São Paulo: A Lápis, 2006. MANOVICH, L. The language of new media. Cambridge (MA): MIT Press, 2001. PRYSTHON, A. “Metrópoles latino-americanas no cinema contemporâneo”. Imagens da cidade espaços urbanos na comunicação e cultura contemporâneas. PRYSTHON, A. (Org.) Porto Alegre: Sulina, 2006, p.254-269.
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Robert Rodriguez adere ao sistema do trash de maneira deliberada, como se pode ver em outros filmes que realizou, inclusive o mais recente Grind House (2007), também em parceria com Quentin Tarantino.
As histórias de Sin City (HQ) 1. Sin City / The hard goodbye (A cidade do pecado). Publicado originalmente na revista Dark horse presents n. 51-62, de junho de 1991 a junho de 1992. 2. “The customer is always right” (“O cliente tem sempre razão”). Em The babe wore red and other stories (A dama de vermelho). Publicada originalmente em novembro de 1994. 3. The big fat kill (A grande matança). Publicado originalmente de novembro de 1994 a maio de 1995. 4. That yellow bastard (O assassino amarelo). Publicado originalmente de fevereiro a julho de 1996.
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A CIDADE NUA: REGIMES DE REPRESENTAÇÃO
Renato Cordeiro Gomes O filme A cidade nua (The Naked City), de Jules Dassin, de 1948, termina com a voz em off do narrador: “There are eight million stories in the Naked City; this has been one of them”. Esta fala final, discurso verbal, se mixa com a imagem de Nova York, a indicar que a cidade nua, a metáfora que nomeia uma realidade urbana moderna, é tecida de histórias: a narratividade incorporada à cidade, que o cinema capta e faz dela uma das maneiras de comunicar a realidade que constrói. A narrativa, assim, é fundamento e mediação, ao lado da imagem em movimento e dos procedimentos da linguagem cinematográfica (planos, cortes, montagem). Com ela a cidade nua se revela, e o artifício do cinema a veste com as histórias que seleciona, monta e transmite, com a intenção de torná-la legível, isto é, capaz de produzir sentidos, dimensionando o caráter de representação e apontando para a nova cultura e a nova estética que emergem da imensa desordem da cidade (como mostraram os artistas, os cineastas, os videomakers etc urbanos – da modernidade até suas derivas pós-modernas). E de tal modo que, ao olharmos as imagens da cidade nas artes, na cultura das mídias e nas ciências sociais dos últimos dois séculos, reconhecemos que nossa visão é colorida por essas imagens que foram se constituindo numa tradição (em continuidade e transmissibilidade): o objeto cidade é ele próprio formatado pelas ações e imaginações inscritas nessa tradição, mesmo com concepções distintas de cidade. Quanto mais vemos a cidade moderna em sua “permanente transitoriedade”, para usar a expressão de Karl Schorske (1987), a olhamos através de uma série de lentes (mediações). A idéia de “cidade nua” é ela própria uma ficção 56
composta de nossos desejos de visão imediata (Sharpe & Wallock, 1983, p.9), de representar a cidade legível, incluindo certa predisposição de conflito cultural que identifica o “nua” com violência, volatilidade, transitoriedade, fugacidade, ou mesmo falta de ordem ou controle (apesar da racionalidade moderna que pretende ordenar e controlar a realidade urbana, mas sempre há alguma coisa que escapa (ver Certeau, 1994, p.26). O título do filme de Dassin é representação imagística estreitamente ligada às metáforas visuais, que sob o signo da visibilidade traduzem-se no “dar a ver”, que autoriza operações de deciframento, portanto, de legibilidade. Tais aspectos podem ser observados em The Naked City, para o qual cabe como uma luva a concepção de Italo Calvino quando afirma ser a cidade “o símbolo complexo, capaz de exprimir a tensão entre racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas” (Calvino, 1990, p.85). Tensão que a narrativa fílmica realiza na Nova York do traçado geométrico, da racionalidade de uma ordem político-social de planejamento e controle, encarado na lei, e as milhões de histórias dos desejos, sonhos, violência e medos no cotidiano das existências humanas. O filme fala a cidade, ou onde ela fala com sua capacidade de fabulação que embaralha a tendência racionalizante, emblematizada em seu traçado geométrico. Drama policial, um filme noir, filmado em preto-e-branco, em estilo documental, com locações nas ruas de Nova York, baseado numa história de Malvin Wald, The Naked City centra-se na investigação policial que persegue o assassinato de uma jovem modelo; um veterano policial é encarregado do caso e conta com a ajuda de outros policiais e detetives. Produzido por Mark Hellinger, cuja voz é aproveitada como narrador, o estilo visual do filme, segundo Allain Silver e James Ursini, autores de The Noir Style (1999), foi inspirado pelo fotógrafo navaiorquino Weegee, que, em 1945, tinha publicado um livro de fotos de Nova York, justamente intitulado Naked City. Com tais credenciais que condicionam a elaboração do filme, sua estética e seu regime de representação, The Naked City teve suas locações na real Nova York, sem o uso de studios nas cenas de rua, captando a cidade, em torno de 1947, num pós-guerra de uma 57
era ainda florescente. Muitas das locações foram “roubadas”, tomadas nas ruas da cidade de uma van com janelas pintadas, e somente os atores principais sabiam que um filme estava sendo feito. As imagens da rua tomadas, em princípio, ao acaso, do cotidiano urbano, vão sendo articuladas no fio condutor da narrativa, a investigação detetivesca. O enredo repete, de certa forma, os motivos recorrentes da narrativa noir, fazendo, ao mesmo tempo, que a realidade citadina captada vá documentando, mas também ficcionalizando a própria cidade nua, preenchida pela história que está sendo narrada. O modo de filmar mimetiza a camera-eye que fixa aquilo que passa, o efêmero e o contingente da cidade moderna: o movimento da câmera fixa e móvel, ao mesmo tempo (de dentro de uma van em movimento), registra o descontínuo urbano, que são paisagens da mobilidade, descontínuo esse submetido à continuidade da narrativa cuja sintaxe é construída pela montagem. Estão lá, por exemplo, o entregador de leite com sua carroça, a menina pulando corda, crianças no balanço, pessoas lendo jornais no metrô e outros tentando ler por cima dos ombros do leitor sentado, um cego e seu cão, imigrantes italianos, irlandeses, judeus, poloneses (todos brancos; não há negros nem porto-riquenhos) etc (caberia aqui lembrar que, estranhamente, a película eclipsa os conflitos raciais, sociais, culturais; a polícia é limpa, ética, com procedimentos racionais e legais, controladores da ordem, que não pode ser perturbada pelo criminoso, um inimigo social). A cidade é registrada, repetimos, em seus fragmentos que revelam a multiplicidade e a simultaneidade da metrópole, à medida que a narrativa vai se desenvolvendo, ela própria bastante rotineira, explorando o enigma e o suspense característicos do relato policial, sobretudo o noir, enquanto gênero. É a voz do narrador que se cola ao olho-câmera que articula as seqüências narrativas. E revela uma cidade como máquina de narrar; uma cidade cujo emaranhado de existências humanas preenche o vazio. Não há falta de sentido, mesmo atomizado; tudo se conecta, para que as histórias possam existir, e o cinema se realizar enquanto arte narrativa. Narrar é produzir sentidos, procedimento alterado pelas novas tecnologias que condicionam a percepção. 58
No seminal ensaio, de 1903, “A metrópole e a vida mental”, Georg Simmel ressalta a cidade como o lugar da vida moderna em que a personalidade é obrigada a acomodar-se nos ajustamentos às forças externas, relacionadas às condições psicológicas que a metrópole cria. Contra o poder avassalador da vida metropolitana o citadino reage de modo racionalizado, para preservar a vida subjetiva, quase sempre desenvolvendo uma atitude blasé, de indiferença, frente à longa exposição aos estímulos contrastantes, múltiplos e mutáveis e em compressão concentrada que são impostos aos nervos. Em sua descrição de base psicossocial, o sociólogo alemão mostra que a intensificação dos estímulos nervosos deriva de mutações rápidas e ininterruptas, que constituem os fragmentos fortuitos, os instantâneos, a imagem fugaz da realidade social. Fala-se mesmo na nevrose da vida urbana. Fala-se nas transformações da modernidade que geraram um clima perceptivo de superestimulação, distração e sensação, caracterizado por Simmel, como “o rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada no alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas” (1987, p.12), passagem referencializada por Leo Charney (2004, p.317), ao destacar a relevância do “instante”, captado em meio “ao ambiente de sensações fugazes e distrações efêmeras, para as possibilidades de experiência sensorial em face do caráter efêmero da modernidade” (2004, p.317), a que vão se dedicar alguns filósofos e a que Charney associa a nova forma de experiência no cinema. O moderno como momentâneo e fragmentário será estudado por Walter Benjamin (1989, p.2006), por exemplo, a partir da análise da vida urbana, mais especificamente, de Paris, e da obra Baudelaire, que definiu o moderno como a tensão paradoxal entre o fugaz, o efêmero, e o eterno. Tais aspectos atam-se à captação e à vivência do “instante” relativo ao processo de metropolização que caracteriza a vida moderna. Aí, como sublinha Simmel, o indivíduo e o grupo realizamse em um ambiente social artificialmente produzido por eles mesmos (a cidade moderna) e onde são dominados pelo aspecto tecnológico da existência. A tecnologia condiciona os ritmos e os ritos da vida 59
moderna nos centros urbanos, bem como afeta a produção da cultura midiática. Assim, a presença instável do movimento, a paradoxal fixação do instante (o que não pode ser fixado), a possibilidade da experiência sensorial em face do caráter efêmero da modernidade (Charney, 2005, p.317), são traços que o filme de Jules Dassin experimenta em sua fatura e em sua estética, colocando em pauta o caráter narrativo do cinema que busca desde seus primórdios fixar o flagrante do cotidiano urbano. Neste sentido, aponta para um tópico incontornável da cultura das mídias que, ao conjugar cidade e narrativa, retoma certas matrizes imagéticas, míticas e literárias para representar a cidade moderna e suas derivas pós-modernas. Por tal viés, ao pôr em questão o estatuto da representação, tais recursos são acionados na tentativa de produzir sentidos e de permitir ler o fenômeno urbano que vai se tornando ilegível. É o tópico provavelmente inaugurado pelo famoso conto de Edgar Allan Poe, “O homem da multidão” (1840), tomado como uma matriz pela literatura e por produtos midiáticos. A quase redundância do binômio moderdidade-experiência urbana revela a relação de dupla implicação, fazendo da cidade o livro de registro da própria modernidade, ou, em outras palavras, o seu museu imaginário, como afirma Jean Dethier, ao retomar o conceito de André Malraux no magnífico catálogo da exposição La ville: art et architecture en Europe – 1870-1993, realizada no Centre Georges Pompidou, em Paris, em 1994. Dentre as imagens e representações mais recorrentes desse imaginário urbano, estreitamente ligado à invenção da cultura moderna das cidades, destaca-se, sem sombra de dúvida, a rua, que emergiu como o fenômeno mais expressivo dessa cultura. A rua torna-se emblemática como mediação para o acesso ao urbano. A sedução da cidade, desde a abertura dos tempos modernos, tinha a rua, como elemento privilegiado (imagem e tema recorrente retomado no filme The Naked City: a rua cheia de vida, lugar cheio de tempo, que ainda resistia à redução e trivialização do espaço público transformado em espaços de consumo e de turismo [Sennett, 1993], como revela o filme Lost in translation, de Sophia Coppola). 60
“O homem da multidão” é um dos textos basilares que, ao lado de tematizar a questão da legibilidade da cidade moderna, revela a visão atomizada da multidão, na mesma época comentada pelo jovem Engels (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra), e contribui, por sua vez, para semantizar a rua como símbolo fundamental da vida moderna, da transitoriedade permanente, e do efêmero característico do instante. A imagem da rua é calcada na cultura letrada (a legítima da época), que organizava a hierarquia de culturas e subculturas, mas já anunciava a cultura das mídias, ainda que na dependência daquela, que sobredetermina a configuração cultural da modernidade (hoje, são as mídias os mediadores para o acesso ao urbano). No conto de Poe, o tópico da ilegibilidade, anunciado na abertura do texto (“De certo livro alemão, disse-se, com propriedade, que es lässt sich nicht lesen – não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos”), será relacionado com o espetáculo da rua londrina que o narrador observa e tenta ler. Associando livros, homens, rua e cidade numa analogia que se projeta em mistérios não revelados, indecifráveis, Poe aponta para um regime de profundidade, pois há um sentido a se anunciar, sentido que precisa ser “descoberto”, pela remoção das camadas que o envolvem (o mesmo se dá em The Naked City). A esta concepção Poe associa o segredo de uma intimidade e o espaço público, a rua que funciona como um palco que oferece um espetáculo (de spetaculum, a festa pública) ao espectador, aquele que, colocando-se em um determinado lugar, vê o espetáculo e é capaz de voltar-se para o speculandus – com a acepção de especular, investigar, examinar, vigiar, observar (note-se-se a recorrência desses e de outros verbos do mesmo campo semântico no conto de Poe) [ver Chauí, 1988, p.36]. Assim, o espectador é aquele que busca esclarecer o obscuro ou o reprimido que afinal se revela (como o enigma da narrativa policial, gênero que o próprio Poe criou e que o cinema explora fartamente, a exemplo do filme noir). A afirmação inicial do conto tem caráter geral e apresenta a tese, que permite desencadear o entrecho que terá a rua como palco e seu cenário e como laboratório. Glosando palavras do texto, 61
poderíamos produzir fragmentos narrativos. Em Londres, o narrador, um homem que, depois de longa doença, calmo, mas inquisitivo, depois de superado o ennui, com o “intelecto eletrificado”, interessase por tudo e aventura-se no burburinho da rua da cidade grande. A convalescença leva-o para a rua, para o centro da cidade fervilhante, para o contato com a multidão. Ressurgido para a vida e desligado das correspondências naturais (em relação à natureza), deixa-se seduzir pelo turbilhão da metrópole que o leva à experimentação, ao ensaio, de ler, de decifrar o mistério do artificial de cena urbana. Instala-se, num primeiro momento, atrás da janela de um café e examina os fregueses à sua volta, os anúncios de jornal (a mídia impressa que registra o cotidiano e funciona como mediador para o acesso ao urbano), mas, acima de tudo, seu olhar se dirige à multidão que passa aos encontrões (a imagem do choque) diante de sua janela, a moldura que enquadra as cenas móveis da rua que são recortadas de uma totalidade inapreensível devido ao ponto de vista do observador. A janela, limite entre um dentro e um fora, faz o café funcionar como um camarote de teatro [o quarto do primo do conto de Hoffmann já anunciava essa imagem], indicando um lugar de não permenência, espécie de não-lugar – na acepção de Marc Augé – , de onde o observador se deixa dominar pela “emoção inédita”, provocada pelas “ondas de passantes” e absorve-se na contemplação da cena exterior da multidão que passa no palco da rua. Quando a noite avança, progride o interesse pela cena, e a iluminação artificial leva-o ao exame das faces individuais e dos grupos de passantes que desfilam com rapidez diante de sua janela. Observa, especula, examina, analisa, agrupa, classifica, hierarquiza, ordena o que contempla do espetáculo da rua. O narrador olha como quem constrói a cena com seu dinamismo (os deslocamentos espaciais pela rua e o olhar do narrador-personagem funcionam como se mimetizassem os movimentos de uma câmera e com enquadramentos que vão do plano geral aos closes). Os tipos humanos são, assim, classificados pelos aspectos exteriores que se dão a ver (roupas, gestos, fisionomia ... máscaras, enfim, que escondem significações, cujos pequenos índices percebidos permitem, apenas com uma olhadela, “ler a história de longos anos”). Nesta tarefa, revela conhecimento preciso 62
dos elementos que compõem o movimento repetitivo das marés – “o mar tumultuoso de cabeças humanas”. “Procura levar a cabo as novas experiências da cidade dentro da moldura das velhas transmitidas pela natureza” – afirma Walter Benjamin (1989, p.226). Daí a metáfora do mar, das ondas, cunhada na analogia com as forças da natureza, com a qual o narrador nomeia a multidão que ele tenta ler pela forma exterior que o olhar registra. O investimento nessa leitura encaminha-se para a uniformidade dos grupos que são classificados e, por oposição, marcam as diferenças (que também permitem classificar): uniformidade da indumentária, do comportamento, dos gestos. Segundo Benjamin, “o texto de Poe torna inteligível a verdadeira relação entre selvageria e disciplina. Seus transeuntes se comportam como se adaptados à automatização, só conseguissem se expressar de forma automática. Seu comportamento é uma reação a choques” (1986, p.126): “Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba” – sustenta o narrador. E acrescenta Benjamin: Em Poe, as pessoas se comportam como se só pudessem se exprimir reflexamente. Essa movimentação tem um efeito ainda mais desumano porque se fala apenas de seres humanos. Quando a multidão se congestiona, não é porque o trânsito de veículos a detenha – em parte alguma se menciona o trânsito – mas sim porque é bloqueada por outra multidão (Benjamin, 1986, p.50).
Num segundo momento, ocupado em examinar a turba, depara-se com o “semblante de absoluta idiossincrasia da expressão” de um velho decrépito que desperta a curiosidade de “analisar o significado que este homem sugerira”. Abandonando a posição de observador analítico da multidão, vai misturar-se a ela na perseguição “inútil”. De um ponto de vista fixo, desloca-se para a mobilidade do labirinto das ruas na perseguição desse homem, abrindo caminho na multidão. Atraído pela singularidade do estranho, tenta atingir o conhecimento da individualidade desse homem para além da classi63
ficação pautada na uniformidade. Pensa a princípio ser fácil decifrar com apenas uma olhadela “a história que ele traz escrita no peito”. Ao perseguir o velho que vagueia sem objetivo aparente, não compreende o sentido de seus percursos, a inconstância de suas ações e a indiferença desse estranho que jamais se dá conta do perseguidor. Não consegue afinal desvendar “o incógnito do ser humano”, uma “verdade” tida como um precedente críptico que o narrador tenta inutilmente decifrar. Com sua tendência racionalizante, especulativa, dedutiva, o narrador comporta como uma espécie de detetive que procura decifrar um enigma pela recolha de índices que o percurso (interpretativo, de leitura) dá a ver, a fim de demonstrar uma verdade escondida que afinal seria revelada, mas no conto de Poe essa operação de uma espécie de “máquina de raciocinar”, de estabelecer sentidos, é deceptiva, mas remete para um outro aspecto observado por Benjamin (1986, p.41-44), qual seja, a supressão dos vestígios do indivíduo na multidão, ou melhor, o desaparecimento de vestígios da vida privada na cidade grande que acompanha o desaparecimento do ser humano na massa (tópico este que está na origem da narrativa policial). O narrador, portanto, não consegue desvelar o precedente críptico do personagem; sua técnica de investigação não leva a proceder a uma reconstituição desse precedente, a história que esse “gênio do crime” supostamente trazia escrita no peito. Apenas lê a superfície que o olhar registra (aponta aqui para um outro regime de significação: aquele que nada esconde, pois se revela na superfície, que não se confunde com superficial). Apesar de sugerir esse outro regime, o conto de Poe não deixa de confirmar em seu fecho o tópico da ilegibilidade, isto é, fica alguma coisa escondida sem ser revelada. O indecifrável ligado à esfera da individualidade choca-se com o espetáculo, que é público, dado no espaço coletivo da rua, em que o narrador persegue o velho com uma compulsão similar à do perseguido, no desafio de lê-lo, explicá-lo logicamente, levado por sua imensa curiosidade. Mas é nessa perseguição que o próprio narrador se transforma em outro “homem da multidão”, outro enigma entre enigmas, outro signo ilegível da cidade. Reciprocamente estranhos em sua perseguição 64
circular, une-os em sua separação e alheamento, o fio secreto da solidão, marca do homem da multidão que “se recusa a estar só”, único traço possível de ser lido desse enigma: “multidão, solidão: termos iguais e conversíveis” – diz Baudelaire em “Les foules”, um dos Petits poèmes en prose, que, inspirado em Poe, constitui Le spleen de Paris. O homem da multidão reduplicado: ambos representam a realidade da própria cidade que não se deixa ler, mas que impõe uma leitura do ilegível (Gomes, 1994, p.63-75). Esse tópico da ilegibilidade da cidade, aqui dramatizado pela imagem da rua, associa-se à questão da representação e sua crise intensificada ao correr do século XX. Na tentativa de representar a cidade assolada por sintomas da crise das megalópoles contemporâneas, tais como a incerteza de muitos fragmentos simultâneos, a coexistência de múltiplas linguagens, a proliferação dos meios de comunicação com as novas tecnologias, o desenvolvimento de uma cultura da individualidade exacerbada, que atestam o enfraquecimento da idéia de cidades utópicas, é que há recorrência às matrizes imagéticas, míticas e literárias, justamente para oferecer ancoragem para construir uma legibilidade possível, por sua vez imbricada a outras questões éticas, sociais e políticas do mundo contemporâneo. Está neste caso o suporte bíblico de Babel, um mito arcaico, o caos urbano original, que freqüenta o imaginário urbano ocidental. É o que acontece nos filmes Babel (2006), do diretor mexicano González Iñárritu, e Lost in translation (2003), de Sophia Coppola. A disjunção, que é marca babélica, atrelada ao desenvolvimento das tecnologias, funciona como traço recorrente desses filmes, permitindo aí perceber, de modo explícito ou implícito, uma questão instigante: como representar a cidade que é Babel, no seu excesso, quando se rompem meios disponíveis para tal?. A indagação implica, no mesmo diapasão, um corolário: com que linguagem representá-la, enquanto acontecimento, enquanto desastre, enquanto catástrofe, que remete à destruição? Ou dito de outra forma, como fazê-la significar; ou seja, como interpretá-la para atribuir-lhe sentidos, estendendo o ângulo de visão em direção à modernidade como catástrofe e choque contínuo? Tal cadeia de associações 65
demonstra que as tentativas de representar esses fenômenos afetam a própria ordem da representação. Especular ainda hoje sobre Babel é o que faz o diretor mexicano Alejandro González Iñárritu em sua produção de 2006, na busca de respostas artísticas que a mídia cinematográfica permite equacionar para o violento mundo deste século XXI, efetivamente inaugurado pela catástrofe do World Trade Center, no 11 de setembro de 2001, tema que ele próprio abordou no seu curta do projeto 11’ 09’ 01’, realizado por Alain Brigad e Jacques Perrin, em 2002. Revisitar Babel é o que o cineasta mexicano, com roteiro dele e de outro mexicano, o escritor Guillermo Arriega [os dois se desentenderam justamente por causa da autoria de Babel, depois de uma parceria nos filmes anteriores: Amores brutos (Amores perros, 2001) e 21 gramas (2003) – fez em seu longa metragem sintomaticamente intitulado Babel, produção americana de 2006. Pode-se até levantar como hipótese que está respondendo à pergunta de Canclini, expandindo-a para além da cidade do México: “O que ocorre quando não se entende o que uma cidade está dizendo, quando esta se converte numa Babel, e a polifonia caótica de suas vozes, seu espaço desmembrado e as experiências disseminadas de seus habitantes diluem o sentido dos discursos globais?” (2006, p.78). Pode-se mesmo dizer que a película de 2006 seria uma Babel do século XXI, enquanto drama do mundo contemporâneo. No filme os conflitos não são neutralizados, mas, pelo contrário, potencializados, num mundo que se tornou uma imensa Babel, em que tudo se conecta, instantâneo. Filme sobre a globalização, choque de culturas, drama multicultural, histórias simultâneas, olhar diferente às barreiras culturais e de linguagem na era da globalização, dificuldades de comunicação foram algumas das expressões dos comentários que circulam pela Internet, lincadas de modo explícito ou implícito ao emblemático título, a menor síntese dos sentidos do filme, atualizando em diferença sentidos herdados de uma longa tradição que remete ao mito bíblico. O título ao mesmo tempo funciona enquanto marca de um produto simbólico e midiático, que ganha legitimidade pela assinatura do diretor (a produção anterior participa dessa instância de autorização) e pelos prêmios que 66
arrebatou pelo mundo, do Oscar, ao Globo de Ouro até o Festival de Cannes, além de muitas indicações a diversas categorias. Com locações em Ibaragi, Shinjuku e Tóquio no Japão; El Carrizo e Sonora no México; Tijuana na Baja Califórnia, também no México; Ouarzazate e Taguenzalt, no Marrocos, em uma vila bérbere aos pés dos Montes Atlas construídas nas encostas rochosas do vale do Rio Draa; e San Diego na Califórnia, nos EUA, a saga de Babel é filmada em cinco línguas, e daí ser sempre legendado, construindo uma intensa dimensão dramática no uso de liguagens diferentes: o caos babélico da dificuldade de comunicação, da necessodade de tradução, aliás sempre precária, insuficiente, a que se juntam outras instâncias da linguagem tais como a violência e sua retórica, os afetos (o choro de vários personagens como a babá mexicana, ou a adolescente japonesa, liga os mundos na narrativa fragmentada e simultânea do filme), a linguagem dos sinais, a das anotações, a retórica da política internacional, o hibridismo da linguagem da fronteira. Instâncias que passam a índices da linguagem na era da globalização, dimensionada dramaticamente em referência às barreiras culturais, a exigir tradução cultural, abrindo espaço de contestação discursiva que autoriza um relativismo histórico e cultural em que as tensões entre barbárie e civilização perdem seus valores etnocêntricos (Bhabha, 1998, p.310-315). Os conflitos que movem a narrativa de Babel são marcados, assim, pela incomunicação, pela intolerância, pela violência, pela disjunção (essa característica já inscrita no mito bíblico), que se ligam a questões do século XXI, tais como os deslocamentos, pelas diásporas e pelo turismo, o atravessamento das fronteiras territoriais e simbólicas, ao mesmo tempo que são respostas (é típica nesse sentido a história da babá mexicana de volta ao seu país com as duas crianças americanas). Se esses conflitos são abordados em dimensão social e política, como Gonzales Iñárritu declarou em várias entrevistas, trazem a marca cultural, que, na perspectiva babélica do mundo atual, exige tanto na instância diegética quanto na recepção dos espectadores uma tradução cultural., semelhante, ao que Walter Benjamin descreve como a “estrangeiridade das línguas” – aquele problema de representação inato à própria representação, como 67
adverte Bhabha (1998, p.311-312). A problemática da tradução é mesmo uma das questões articuladas no filme, como também será no babélico Lost in translation, de Sophia Coppola. (a respeito da trudução como impasse derivado de Babel, ver Derrida: Torres de Babel, 1998). Ao articular na própria narrativa diferentes espaços e tempos em simultaneidade, essa obsessão das vanguardas históricas, o filme de Iñárritu perde a dimensão do futuro, para atrelar-se ao presente: a narrativa está presa ao agora em que tudo está, ao mesmo tempo, conectado e disjuntivo. O que permite a encenação da diferença cultural, que os personagens não entendem em sua totalidade, impedindo a troca inerente à comunicação que se dá em ato, performatitamente. Cabe aqui a formulação de Bhabha que autoriza dizer-se que os personagens de Babel vivem em numa espécie de exílio: “A tradução é a natureza performativa da comunicação cultural. É antes a linguagem in actu (enunciação, posicionalidade). E o signo da tradução conta, ou “canta”, continuamente os diferentes tempos e espaços entre a autoridade cultural e suas políticas performativas” (Bhabha, 1998, p.313). São justamente as instâncias espaciais (detaque-se a imensa relevância da dimensão territorial da película) e temporais (destaque-se aqui a simultaneidade), que constroem o caos babélico da narrativa. Iñárritu, ao trabalhar o acaso (ver Henriques, 2005), acredita, na linha da teoria do caos, que um acontecimento, por mais prosaico e banal que pareça, sempre integra uma cadeia de causas e conseqüências que se desdobra de maneiras imprevisíveis – em dramas de natureza trágica. Tal tomada de posição indica um modo de narrar, gesto discursivo e imagético da enunciação para adequar-se à confusão babélica, dramatizada em cinco dias e em quatro núcleos, dois no Marrocos, outro na fronteira México/ EUA e outro no Japão. Numa síntese bastante redutora da complexidade narrativa, poderíamos dizer com Rodrigo Carreiro (2007): No país africano, acompanhamos dois garotos pastores de cabras e um casal de turistas americanos. Os
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meninos, brincando com o rifle que usam para afastar os chacais dos caprinos, atingem sem querer o ônibus onde viajam Richard (Pitt) e Susan (Cate Blanchett). Enquanto isso, nos Estados Unidos, os filhos do casal estão sob os cuidados de Amelia (Adriana Barraza), a babá chicana que precisa dar um jeito de ir ao casamento do filho, do outro lado da fronteira. Em paralelo, “Babel” também enfoca a vida, no Japão, de uma garota surda-muda (Rinko Kikuchi), sofrendo com a solidão a que a adolescência condena as pessoas, algo agravado pela condição médica e por uma tragédia do passado. Num primeiro momento, o filme não esclarece qual a ligação entre a história japonesa e os dramas que se desenrolam em dois desertos, o marroquino e o californiano, mas obviamente existe uma conexão, revelada na segunda metade da trama.
O acaso de um tiro de rifle que atinge a turista americana leva a conexões com as outras histórias paralelas, tendo justamente a arma (cuja origem está no Japão) como leit-motiv. E todas caminham para a tragédia graças à incapacidade de comunicação, seja a política, a verbal ou mesmo a relacionada à deficiência. Na verdade, o filme é sobre aquilo que divide homens, mulheres, nações, países, pais e filhos, no mundo do século XXI, essa Babel globalizada, não uma Babel feliz. Ainda a Babel da desmedida, ainda caos, confusão, desorientação dos sentidos, atomização da comunicação, traços já inscritos no mito bíblico, essa persistente saga do imaginário ocidental. Esse imaginário cada vez mais globalizado é acionado para vestir a cidade nua, suplementando-a de narrativas, a fim de torná-la legível, de fazê-la significar, num terreno de fragmentação, isolamento e guetificação, tanto dos espaços como das relações sociais que aí se manifestam. Quando Canclini pergunta se podemos narrar de novo a cidade, enfatiza que esse novo narrar “é saber que já não é possível a experiência da ordem que o flâneur (como no conto de Poe) esperava estabelecer ao passear pela metrópole do início do século XX” (Canclini, 1995, p.133). E se indaga se “em 69
nossas metrópoles dominadas pela desconexão, atomização e faltam de sentido podem existir histórias” (Canclini: 1995, p.133), ele mesmo encaminha a resposta ao descartar a possibilidade de uma narrativa centrada e totalizante (como a do filme de Jules Dassin), e propor a reinvenção fragmentária, ao mesmo tempo em que se busca estabelecer nexos e concatenações, para que as narrativas tornem a vida suportável e sejam um auxílio contra o terror, como assegura Wim Wenders, para quem “o cinema é uma cultura urbana; (....) o espelho adequado das cidades do século XX e dos homens que aí vivem. (....) A cidade teve de inventar o cinema para não morrer de tédio. O cinema se funda na cidade e reflete a cidade”, em que tudo parece em movimento, e em que a imagem deve estar a serviço da narrativa. “Somente a história dos personagens dá a cada imagem uma credibilidade, instaura uma moral” (Wenders,1994, p.181). A credibilidade e a moral juntam-se, deste modo, na imagem em movimento, que se incumbe de narrar uma das milhões de histórias que permite representar/significar a cidade nua, tornando-a, portanto, passível de legibilidade. Os personagens e seus dramas, com suas tramas, constroem a narrativa que concretiza a cidade nua: Nova York, Tóquio, Paris, Rio de Janeiro .... todas as cidades, a cidade, toda e qualquer: a narratividade incorporada à cidade é que tornam ambas possíveis.
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CIDADE COMO MÍDIA
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AS MULHERES, OS HOMENS E O METRÔ
Janice Caiafa
Viajar de metrô É um ambiente singular que nos acolhe quando alcançamos as instalações underground de um metropolitano. Mesmo nas estações superficiais ou elevadas, experimentamos a sensação de ocupar um espaço particular, com suas regras, dificuldades e atrativos. Como já indiquei em outros trabalhos (Caiafa, 2006b, 2007b), o espaço do metrô é marcado por regulações. Para que o metrô funcione, é preciso estipular regras que ao mesmo tempo permitem a circulação e a impedem. As placas de sinalização desempenham a função de ao memo tempo orientar e forçar a seguir uma direção. Elas podem também ser vistas como “mídias locativas”, como indica Lemos (2007) a partir de Karlis Kalnins, pelo fato de seu conteúdo informacional estar vinculado a um lugar. Há também as regulações mais restritivas, como as proibições explícitas – não viajar sem camisa, proibido “manifestar-se em altos brados”, etc. De fato, o aspecto restritivo da regulação está sempre presente em algum grau. A agência operadora de um metrô pode investir mais ou menos nesse aspecto restritivo ou repressivo. São diferentes estilos de operação que certamente vão produzir ressonâncias nas relações que as pessoas estabelecem entre si e com esse espaço regulado que elas ocupam para viajar de metrô. As situações de comunicação e a sociabilidade que vão se desenvolver nas viagens são sensíveis às interperlações desse ambiente regulado. O espaço do metrô é exigente – requer um posicionamento do corpo, uma atenção, demanda certos gestos e inviabiliza outros. Podem ser gestos simples, como pisar numa escada automática ou posicionar-se nos vagões de forma a não impedir a passagem dos 75
que vêm atrás. Essas exigências nos colocam decerto nos limites de certa etiqueta. É preciso polir-se um pouco para abordar esse ambiente complexo e exigente. O aspecto restritivo da etiqueta do metrô é uma figura do controle. Há um controle dos corpos no metrô. Por outro lado, essa aprendizagem do deslocamento coletivo num ambiente desafiador pode ser também um exercício criador (Caiafa, 2006b, Tecnologia e Sociabilidade). Temos que reposicionar o corpo, abandonar os gestos familiares e aprender a partilhar o espaço com esses estranhos que viajam conosco. A exposição à descontinuidade e heterogeneidade que encontramos no metrô e a relação com um ambiente em algum grau resistente às nossas respostas imediatas não são sem atrativos. Em muitas conversas e entrevistas com usuários no Rio de Janeiro, vários indicam uma fruição possível dos circuitos do metrô. É assim no espaço urbano em geral – quando ele é ocupável e público – e de modo especial nas viagens de metrô: aprendemos um ritmo coletivo. Em outro trabalho (Caiafa, 2007b), explorei o papel dos avisos sonoros no problema dos assentos preferenciais durante as viagens no metrô do Rio de Janeiro. Indiquei, apoiando-me no trabalho de campo, que eles constituem uma interferência excessiva no transcurso das viagens. As relações entre os passageiros são afetadas por esse sobreinvenstimento no comando que acaba por impedir que elas mesmas tomem a iniciativa, se preocupando com os outros e cedendo o lugar. O excesso de investimento na regulação pode impedir justamente o aproveitamento criador da convivência coletiva num meio heterogêneo – em suma, a fruição da viagem. A aventura do metrô (Caiafa, 2007a) parece se realizar justo quando o rigor da etiqueta dá espaço para a atividade das pessoas, para uma relação ativa e positiva com os circuitos do metrô e seus usuários. As medidas mais repressivas e violentas já não são sequer a etiqueta, mas sua reconstrução autoritária, podendo mesmo não servir, inclusive, para organizar ou regular os percursos no metrô. Os usuários do metrô do Rio de Janeiro enunciam muito bem em geral, de diferentes maneiras, esse problema da liberdade e 76
da restrição nas viagens. Tenho acompanhado o quotidiano do metrô e realizado muitas entrevistas, conversado informalmente com muita gente e aproveitado também minha experiência de usuária, observando assim várias ocasiões em que essa questão se coloca. Acredito que o problema da segregação por gênero, que apareceu com a implantação de vagões exclusivamente femininos, pode ser desdobrado nesse contexto, embora tenha outras facetas particulares, como veremos um pouco mais adiante.
O metrô do Rio de Janeiro Há metrôs magníficos no mundo, com amplos sistemas, uma miríade de linhas e direções. Nosso metrô no Rio de Janeiro é um sistema modesto com duas linhas. E, com isso apenas, produziu um lugar especial na cidade, é uma referência hoje para muitos. Não parece tão cheio de acontecimentos como, por exemplo, os ônibus da cidade1. Mas aprendi que se trata do tipo de acontecimento que vigora ali. Tudo se passa naquela polidez dos encontros entre estranhos num ambiente regular, clean e que, à sua maneira, acolhe a comunicação2. O metrô do Rio de Janeiro é também um metrô jovem. Foi inaugurado para operação comercial em 1979. O metrô de São Paulo, inaugurado em 1974, foi o primeiro do Brasil. Outras cidades no mundo desenvolvido construíram seus metropolitanos bem mais cedo. O metrô de Londres data de 1863, o de Boston – primeiro nos Estados Unidos – abriu em 1897, o de Nova York em 1904. Outros metrôs surgiram ainda nas primeiras décadas do século XX, como o de Moscou, inaugurado em 1935. 1
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Realizei um estudo etnográfico das viagens de ônibus no Rio de Janeiro em Jornadas Urbanas. A inspiração para a expressão “polidez” vem de Gabriel Tarde. Tarde observa que, nas grandes cidades, as pessoas se calam por polidez diante da exuberância do ambiente urbano (Tarde, 1992). Para um desenvolvimento desta questão no contexto das viagens de ônibus, ver Caiafa, “Comunicação e expressão nas viagens de ônibus”, em Aventura das Cidades. Para a questão dos encontros polidos no metrô, ver Caiafa, 2006b.
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Construído pela Companhia do Metropolitano, ligada à Secretaria de Estado dos Transportes, o metrô carioca foi inaugurado com 5 estações, estendendo-se da Estação Praça Onze à Estação Glória. Durante os anos 1980, foram abertas novas estações nos trechos sul e norte da linha 1. Em 1984 teve início a operação comercial da linha 2. Recentemente, foram inauguradas, ao longo da linha 1, as Estações Siqueira Campos (2003) e a Estação Cantagalo (2007), estando a Estação General Osório atualmente em construção. Hoje a linha 1 tem dezoito estações e a linha 2, quinze. De início era a própria Companhia do Metropolitano que operava o metrô carioca. Em abril de 1998 a operação foi entregue, em regime de concessão, à empresa Opportrans – consórcio das empresas Comestrans, Banco Opportunity e Valia –, encarregada da operação e da manutenção do sistema por 20 anos. A Companhia do Metropolitano foi extinta e criou-se a Rio Trilhos, que ficou encarregada da expansão do sistema metroviário. A Agetransp (Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro) é a agência reguladora encarregada da fiscalização do trabalho da concessionária. Uma característica do metrô do Rio de Janeiro, em contraste com o resto da cidade, é a limpeza das intalações. O ambiente é “clean”, como indiquei acima, no sentido de ser regular, retilíneo em alguma medida, e também por ser diretamente limpo. As pessoas não costumam jogar lixo no chão, como fazem em basicamente toda a cidade. Este é um fato apontado pelos usuários e fácil de se observar. Em artigo recente (Caiafa, “Tecnologia e Sociabilidade no metrô”), mostrei como poderíamos dizer que o espaço do metrô constitui uma heterotopia no contexto da cidade. Segundo define Foucault (2001), heterotopias – diferentemente das utopias – são espaços reais de uma sociedade que contestam seus espaços ordinários, denominados posicionamentos (emplacements). O metrô do Rio de Janeiro seria uma “heterotopia de compensação”, um contra-posicionamento em que um espaço perfeito e meticuloso é criado para compensar o caos que o cerca. 78
Em alguma medida, o que se realiza no metrô do Rio de Janeiro é uma contestação de atitudes muito consolidadas na cidade. O tipo de interpelação do metrô – a limpeza, as melhores condições de viagem se comparamos com os ônibus e os trens – parece levar a essas ações incomuns que envolvem disciplina mas também, antes de tudo, uma aprendizagem de convivência coletiva e solidariedade com o outro. É interessante observar como as pessoas podem mudar em contato com outros espaços – de fato fazendo, elas mesmas, com que se tornem outros. Voltaremos a esta questão. Em 23 de março de 2006 foi publicada em diário oficial a lei nº 4.733, que determina que sejam reservados vagões exclusivamente para mulheres nos sistemas ferroviário e metroviário do estado do Rio de Janeiro. A lei determina que a reserva deve ser feita em horário de pico matutino (6h a 9h) e vespertino (17h a 20h) em dias úteis. Impõe que, se as empresa responsáveis não cumprirem o disposto, se aplique uma multa de 150 UFIR/RJ e, após 30 dias de notificação, uma multa diária de 50 UFIR/RJ. A determinação não partiu dos administradores (de agências públicas ou empresas privadas) e especialistas em transporte do estado, e nem se apoiou em resultados de pesquisa sistemática nos trens ou no metrô. É de autoria de um deputado, Jorge Picciani. Os grupos feministas também não foram consultados e reagiram em seguida à medida. No dia 24 de abril de 2006, cada composição do metrô já partiu com um vagão exclusivo para mulheres, o segundo ou penúltimo do trem. No exterior do vagão, acima das portas, foi pintada uma tarja rosa bebê em que se escreveu que se tratava de um vagão reservado às mulheres nos horários estipulados. Posteriormente foi também pintada uma outra tarja no mesmo tom de rosa no chão da plataforma, no local em que o vagão abre as portas. Essa novidade não foi sem conseqüências para as relações das pessoas no metrô. Passou-se por vários momentos desde então, desde as primeiras repercussões. A regulação francamente restritiva alterou certamente a ocupação do espaço metropolitano e o quotidiano das viagens. Tenho acompanhado esses acontecimentos desde os primeiros dias até hoje através de entrevistas, conversas e da 79
observação direta e participação como usuária – afetada também pela nova configuração espacial e social das composições. Há muito o que relatar sobre o que tem sido dito e vivido em função dessa interferência nas viagens de metrô.
Vagões exclusivos para mulheres São poucos os metrôs que optaram por segregar os gêneros. Os casos mais conhecidos são os dos metrôs da cidade do México e de Tóquio. No México, os vagões exclusivos para mulheres existem desde os anos 1970. No Japão a medida foi implementada em 2005. Os outros casos são os do metrô do Cairo (Egito), de Teerã (Irã) e de Bombaim (Índia). Em São Paulo, foram implantados vagões preferenciais para mulheres nos trens metropolitanos em 1995. A medida não funcionou e os vagões foram desativados em 1997. Hoje, tanto o Metrô quanto a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) descartam a idéia de segregação. No segundo dia de aplicação da medida no metrô do Rio de Janeiro, cheguei à Estação Largo do Machado por volta das 7 horas da noite, horário de pico vespertino, e segui a direção Zona Norte. A plataforma estava repleta e o clima era confuso, mas não havia agentes por ali. É claro que seriam eles os encarregados de fazer cumprir a lei. Eis um excerto de meu diário de campo: Embarquei no vagão para mulheres. Entrou comigo um homem e notei que ele murmurava consigo “vagão feminino” (seria por espanto, reprovação ou apenas para se convencer de que era assim agora?). Entraram também, pela outra porta, um rapaz jovem com uma garota, talvez namorada. O trem partiu e, quando parou na Estação Catete, um agente pediu que os dois se retirassem. Lá se foram os três.
O vagão estava cheio. Os outros mistos muito mais, como aliás comentou uma moça com quem troquei algumas palavras. Estava muito, muito barulhento. Minha impressão era de que todas 80
as mulheres estavam conversando, nenhuma estava calada. O vagão explodia em vozes altas. Fui de pé diante dos bancos laranja e comecei a conversar com as mulheres em torno. As duas moças à minha direita, que iam de pé também, desconfiavam da medida. “É bom pra rir”, disse uma delas. O clima era de fato de riso no vagão. Esse “pra rir”, acho, indicava que achavam uma bobagem (elas me disseram que não aprovavam a iniciativa), mas também que servia para algum divertimento. De repente, no meio da multidão e da confusão, a porta se abre e um homem tenta entrar mas é impedido pelo agente que estava na plataforma bem no local da abertura da porta. Então as mulheres do vagão começaram uma vaia altíssima, longa e em meio a risos. Fecha-se a porta e o trem segue. Comecei a perguntar às companheiras (?) se achavam que havia assédio no metrô. Uma moça disse que era mais coisa do trem, e não do metrô. Uma senhora dentuça, sentada num dos bancos laranja disse que na linha 2, na hora de pico, havia, mas não soube contar nenhum episódio. A moça disse então que o trem vai muito, muito cheio, todos empurrando, mesmo na linha 1. As conversas continuavam em tom altíssimo. Saltei para fazer transferência na Estação Estácio. Na composição da linha 2 a multidão era muito mais cerrada e, me pareceu, as vozes ainda mais altas. Os jornais daquele dia haviam relatado o que eu percebi também: que muitas vezes as próprias mulheres saudavam os homens com vaias. Minha impressão naquele momento emocionante e confuso era de um clima bemhumorado, com uma ponta de rivalidade. Em qualquer caso, era claro que aquelas que assim reagiam queriam garantir alguma coisa que lhes pertencia, que lhes caíra no colo de repente, numa viagem de metrô. Nas semanas seguintes, pude observar que a novidade ia em alguma medida sendo assimilada. Alguns homens já não se dirigiam ao vagão feminino – tanto que, até hoje, é possível viajar num deles só com a presença de mulheres. Mas, por vezes, o vagão feminino pode parecer um vagão comum, com vários homens viajando. É possível também, portanto, ignorar a proibição. A fiscalização foi mais sistemática naqueles primeiros momentos. 81
Observei que ela foi se tornando ocasional. Hoje é mais raro ver agentes impedindo homens de entrar no vagão. A assimilação se deu portanto na direção de uma aplicação ocasional e assistemática da medida, mas sem que a imposição desaparecesse. Assinale-se que se deu também uma interferência no trabalho dos agentes e na relação entre eles e os usuários. Naqueles primeiros dias de implantação da lei, conversei com um deles que observou que não gostava de ter que entrar nesse tipo de relação com passageiros, embora aprovasse a medida. Certamente é uma ocasião de confronto que se estabelece. Houve um período entre a surpresa e a assimilação que considero importante para se entender o fenômeno da imposição dos vagões femininos no metrô carioca. Vi várias ocasiões em que grandes grupos de mulheres que viajavam no vagão hostilizaram insistentemente os homens que, desavisados ou não, entravam ali. Numa dessas ocasiões, vi mulheres ameaçando chamar “o guarda” e falando em invasão. Aquele clima inicial de brincadeira (uma forma veemente, que seja, de brincar) parece que desapareceu, cedendo lugar a um policiamento ostensivo. A adesão à separação dos sexos foi assumida por muitas mulheres de forma apaixonada e mesmo violenta. Não me parece que há lugar para esse tipo de atitude hoje, mas a tarja cor-de-rosa continua lá e, mesmo que não se mencione, os homens que entram se tornam, em alguma medida, invasores. Recentemente tive que ir até a estação Maracanã, na linha 2, à noite e em plena hora de pico. A massa humana que se comprimia na plataforma da Estação Estácio para a transferência era inacreditável. Não que não tivesse já viajado em hora de pico. Os usuários, nas conversas e nas entrevistas, por sua vez, não cessam de mencionar a superlotação nas duas linhas, por vezes assinalando que é mais na linha 2. Não há dúvida de que este é um problema do metrô do Rio de Janeiro. Ocorre que daquela vez foi especialmente duro. Muito haveria o que relatar sobre aquela ocasião em que procurei o vagão feminino no meio do caos da plataforma. – o que farei oportunamente, já que tenho uma descrição minuciosa em meu caderno de campo. Mas já posso assinalar que fui empurrada violentamente pela própria massa de mulheres desde as imediações 82
da porta até o outro extremo, onde a fica a porta do lado oposto. A viagem foi curta mas memorável. Só havia mulheres naquele dia, segundo pude divisar. É desesperador viajar num vagão em que quase não se pode respirar – foi o que senti no momento –, cheíssimo (mesmo que de mulheres).
Homens e mulheres no metrô As conversas continuaram até hoje, informalmente ou em entrevistas nas composições. Examinando esse material, observo que não foi possível obter sequer um relato concreto de assédio, mesmo da parte de quem aprova a segregação. Eventualmente um eco do que se ouviu dizer, e só isso. Muito freqüente nas falas de homens e mulheres, estejam ou não satisfeitos com a iniciativa, é que comecem afirmando que o assédio existe, que pode ser constrangedor e, em seguida, fica claro que estão falando dos ônibus ou dos trens. Uma usuária comenta que aprova os vagões exclusivos: – Olha, eu acho que é uma lei que realmente, quando você fala de leis no Brasil, você percebe que muitas delas não são cumpridas e eu acho que é uma coisa válida. Porque nós que somos mulheres, a gente passa às vezes por certos constrangimentos. Não sei se você já passou, mas comigo já aconteceu. – No metrô? – No metrô não, mas no ônibus sim. No metrô, não sei, mas eu acho que é uma coisa válida.
São muitos os casos dessa transferência impensada do que se passaria no trem ou no ônibus para o problema dos vagões exclusivos no metrô. Como este usuário, em conversa na linha 2, que diz que aprova porque acredita que existe abuso por parte dos homens. Mas, perguntado se observou isso no metrô, responde: Não, dentro do metrô não, mas na Supervia. É, no metrô eu ainda não... eu ainda não observei porque
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eu viajo pouco de metrô. Mas na Supervia sim, entendeu?
Comenta uma senhora, que aprova a medida: Porque os homem são sem-vergonha mesmo. Eu sei porque eu andei minha vida inteira de ônibus e sei como eles abusam no ônibus cheio pra passar a mão nas mulheres. Já criei muito caso por causa disso.
Pode ser também que digam diretamente que só têm conhecimento que haja assédio em ônibus e trem, e não no metrô. Como esta usuária: Eu acho que em determinados horários, ela, a motivação dela, acho que teve algum. Teve um lado assim correto, entendeu? Porque a gente sabe que as pessoas são... exageram às vezes em algumas situações, né? E eu acho que a preocupação dessa lei foi maior, eu acredito, com o trem do que com o metrô. Eu acho que o objetivo maior era no trem, eu nem posso falar do trem, que eu não ando de trem, mas eu acho que o objetivo maior era o trem. Eu acho que o objetivo maior era no trem e acabou sendo trazido pro metrô por, sei lá, por tabela, enfim.
Não se pode descartar que haja de fato assédio sexual por parte dos homens também no metrô – sobretudo, imagino, em situação de superlotação –, mas os dados etnográficos indicam com segurança que não se trata de fenômeno expressivo. Há aqueles que parecem aceitar a proibição simplesmente porque foi estabelecida. O que discutem é a desobediência a essa regra – falam, de fato, do problema mais geral de obedecer regras e não da necessidade da regra em discussão. Em conversas informais observei muito essa tendência, tendo sido mesmo por vezes impossível colocar o problema específico da implantação do vagão feminino no metrô. Como nesta conversa com uma usuária: 84
– E sobre os vagões femininos? O que você acha? – Não, eles não... eles não obedecem mesmo.
Afirma ainda esta outra usuária quando instada a comentar a medida: Não, porque tem um vagão das mulheres, que é esse aqui que eu tô. Muitos homens vêm na cara-de-pau e ficam aqui dentro, né? No horário que é proibido. Então, eu acho que os seguranças, às vezes, eles não dão muita importância a isso. Não sei se eles são treinados justamente para não fazer isso.
É interessante também observar que vários homens e várias mulheres são críticos em relação a essa nova regra. Narciso, que mora nas proximidades da Pavuna e usa muito o metrô, relata que é contra. Conta também como entrou desavisado no vagão feminino: – Eu mesmo acho que tem muita mulher que acha que é bobeira, tanto é que muita nem vai pra lá. Inclusive, eu não sabia. O primeiro dia eu entrei dentro do vagão. Aí quando eu olhei que só tem mulher, eu falei “cara...”. Aí uma moça falou “moço, esse carro aqui é de mulher”. Eu digo “aqui já tem isso também?” Que eu sabia que tinha no trem, no metrô eu não sabia. – E, Narciso, essas mulheres que você falou que acham que é bobeira, quem são? São conhecidas suas? Amigas? – Olha, eu conversando com elas, mulheres, no metrô, elas falaram “eu vou viajar no metrô só com mulher, eu prefiro viajar no meio de todo mundo, que eu não vejo por que essa diferença. Se a mulher quer igualdade com o homem, por que que ela se separa?”
Observa um usuário logo em seguida à implantação dos vagões exclusivos: Acho que tem uma lei na nossa constituição que homens e mulheres são iguais perante à lei. Isso aí é
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inconstitucional, eu sou contra. Não tem necessidade disso. De repente, tem necessidade de mais segurança.
Várias mulheres desaprovam francamente. Uma usuária, em entrevista na linha 1, comenta: Eu acho uma discriminação. Das próprias mulheres. Porque não tem que separar homem de mulher, eles têm que conviver respeitosamente. Acho que não tem nada a ver – comentou outra mulher. Isso não vai evitar que as coisas aconteçam e acho que uma parte depende da outra, não há necessidade disso, o homem e a mulher, mas que essa mistura, essa problemática toda não gera em função do vagão, de estar separado o homem da mulher e sim diante da educação mesmo de cada um.
Ainda outras mulheres observaram: Não sei, eu não...não vejo, assim, uma necessidade pra isso, certo? Em todo caso, cada um tem uma... Eu não sei o que que reclamaram, alguma coisa pra eles fazerem isso, né? Ah, é uma palhaçada, eu acho que não tem nada a ver ter vagão pra mulher. Cada um, tem que vir todo mundo meio amontoado, tumultuado junto. Tem tanta coisa pra se preocupar, vai se preocupar com vagão pra mulher? Isso eu acho uma palhaçada. A gente brigou tanto pela igualdade de direitos, agora um vagão só pra mulher?
Há aqueles que, por diversas razões, apreciam a iniciativa. O mais raro, contudo, é que essa apreciação esteja ligada à convicção de que existem atitudes por parte dos homens que precisam ser combatidas dessa forma. Ou seja, a justificativa para a aprovação não se apóia num vínculo claro entre a aprovação da medida e a sua necessidade. Nas muitas entrevistas, apenas duas mulheres se 86
referiram a um papel mais objetivo do vagão exclusivo. Uma delas, contudo, estava se referindo ao trem e não ao metrô: Eu acho válido, porque se você for pegar o trem, é uma esfregação danada, a mulher é totalmente abusada. Você tendo um vagão só pra mulheres é muito mais confortável.
A outra, por sua vez, falava de fato do problema de superlotação: Eu gostei. Porque é uma situação constrangedora que as mulheres passam às vezes. Os homens se esfregando na gente. Eu já peguei horário de rush muito forte e é constrangedor, assim, você tem que ficar encostado numa parede, não pode se mexer muito. Não gostava, não.
A pesquisa não esclareceu se a atitude dos homens que ela aponta era deliberada ou não. Mas – e é interessante atentar para isto – o que parece se dar é que pode haver uma indefinição do assédio em situação de proximidade excessiva obrigatória. Por isso o problema da superlotação se apresenta como mais fundamental que o do possível assédio. A superlotação permite que o homem que quer tocar nas mulheres se aproveite – é o melhor disfarce. E permite também, por vezes, suspeitas infundadas contra os homens que estão ali tão constrangidos quanto as mulheres. Todas as outras falas de aprovação da medida não tocam no problema do abuso dos homens no metrô. Transcrevo algumas abaixo. Olha, eu não sei bem, viu – comentou um usuário –, porque eu quase nunca ando nos piores horários do metrô, então eu nunca observei assim nada de muito grave, sabe, dessa história de bolinação feito eu vejo em ônibus, já cansei de ver isso em ônibus, da mulher gritar, reagir com bolsada e tudo. No metrô nunca vi
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isso não, mas talvez porque, como eu falei pra você, eu ando nuns horários mais tranqüilos. Mas eu não sei, acho que foi boa a idéia sim, né, de deixar um espaço separado pras mulheres. Eu acho legal – observou uma senhora, em entrevista na linha 2 – apesar de que os homens não respeitam muito, né? Eu acho bom, porque muita gente não tem educação, então é bom que as mulheres fiquem um pouco mais preservadas.
E, ainda, estas duas mulheres: Tá sendo muito bom, a gente tem a nossa privacidade na hora de ir pro trabalho. Eu acho que é mais aconchegante. Ah, é uma boa, né, claro, com certeza. Tudo o que é pra mulher é bom, né.
A dificuldade em estabelecer o nexo entre a imposição dos vagões exclusivos no metrô e o possível problema que esta viria solucionar é uma tendência forte. Em meio à variedade das falas, pode-se afirmar que o assédio dos homens não está visível. O problema que aparece – ora mais explicitamente, ora embutido em outras considerações – é o da superlotação, aliás mencionado em geral nas entrevistas e não só em relação ao vagão feminino. Parece que se está falando, na maioria das vezes e antes de tudo, nas condições gerais de viagem – que é uma preocupação que se deve esperar de usuários de transporte coletivo. É normal também a simpatia pela exclusividade se ela se torna um presente, um aconchego na situação agressiva de viajar esmagada por uma multidão. É esperável igualmente a tentativa de algumas mulheres de reter esse presente como uma conquista, alguma coisa que é para mulheres. O fato de a aprovação se dar na maior parte das vezes dessa forma oblíqua e a presença de críticas claras a essa separação sexual entre os usuários nos mostra novamente que o problema do assédio não é central no contexto do metrô do Rio de Janeiro. 88
Vemos portanto que não deve ter sido essa questão que motivou a iniciativa de implantar a segregação sexual nas composições. De toda forma, o que nos interessa mais é que, no contexto das viagens, essa segregação não vem em socorro de nenhum problema concreto – supondo-se que a segregação possa ser solução para algum problema. Sua implantação pode estar nos afastando dos verdadeiros problemas do metrô, de que, aliás, não cessam de falar os usuários. A imposição da segregação se apresenta portanto como um investimento desnecessário e excessivo no aspecto restritivo da operação do metrô. Como vimos, o metrô funciona por regulações e a ênfase em seu aspecto restritivo pode ser um obstáculo no tranporte coletivo. São os itinerários mais livres que facilitam o nosso deslocamento e nos permitem, inclusive, a fruição da própria regulação, na medida em que ela nos insere num ritmo coletivo. Mesmo que o assédio masculino fosse um problema do metrô, não é evidente que a segregação seria a maneira de encaminhálo. A segregação, se é duvidosa como solução em qualquer contexto, no transporte coletivo pode ser especialmente deletéria. Um dos aspectos mais criativos do transporte coletivo é justamente a fricção de diferenças, de discontinuidades que nos trazem a novidade. A diferença sexual é um componente desse confronto. A fricção de diferenças no meio heterogêneo do transporte coletivo se dá, decerto, com tensões – por exemplo, a tensão entre os sexos. O assédio dos homens pode estar, então, no horizonte das viagens, como em muitos outros lugares. Pode-se imaginar outras tensões, como a étnica, a etária e outras. Em todos esses possíveis casos, a atitude de separar as partes que se supõe em contenda é – talvez salvo em situações extremas – uma solução primária e sumária que não dá oportunidade às pessoas para agir, para que elas mesmas encaminhem essas questões. Eliminar simplesmente uma diferença é, além de roubar a ação das pessoas, impedi-las de fruir o lado positivo do confronto urbano, que é a experiência do estranho, o aproveitamento dessa tensões para abrir-se ao diferente e à novidade, para sair de si em alguma medida – o que é uma fruição tipicamente urbana. 89
O investimento na restrição que o vagão feminino acarretou no metrô do Rio de Janeiro, transformando seu quotidiano, nos leva a levantar todas essas questões.
A construção de uma ética O que faz com que as pessoas compreendam e respeitem o lugar e as necessidades do outro, pautando por aí as suas ações? Como é possível ter compaixão pelo outro no sentido de deixar-se afetar por sua singularidade e mover-se um pouco para atender suas necessidades? Como se realiza, por exemplo, uma ação como a de ceder lugar a quem precisa sentar-se no metrô?3 Ou, ainda, a atitude de respeitar o corpo do outro no grupo diverso de desconhecidos que se encontram num vagão? Para Francisco Varela, a ação ética se dá por um “saberfazer” (know-how). Ela não deriva, na maioria das vezes, de um juízo moral, mas de um confronto imediato com a situação que se apresenta. O comportamento ético envolve uma “imediaticidade de percepção-ação” (Varela, 1995, p.14). Os modos mais difundidos da ação ética não são resultado de uma reflexão despertada pela formulação de princípios corretos. Elas derivam de uma capacidade de confronto imediato com os acontecimentos. O nosso mundo vivido, escreve Varela (1995, p.19), está “ao alcance da mão”. Não precisamos refletir sobre ele, formar juízos a seu respeito. Agimos diretamente nele, em relação com ele. Aprendemos a agir no mundo no confronto concreto. As unidades próprias do conhecimento são “concretas, corporificadas, vividas” (idem, p.17). É o conhecimento como “enação” (enaction, efetivação). Aprender consiste em desenvolver ações incorporadas e a aprendizagem ética se realiza assim também. No mesmo golpe, este nosso mundo se produz com a nossa ação. Ele não está dado, mas emerge, de alguma forma, quando agimos nele. Varela diz que, a cada vez, a cada situação, emergem 3
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Para uma discussão do problema dos assentos preferenciais no metrô carioca, ver Caiafa, 2007b.
“micromundos”, assim como “microidentidades”. Porque também o eu que ali aprende e age não é dado, não é um bloco formado que atua no mundo. Não temos um sujeito pronto e um ambiente dado que vão se relacionar. Mudamos e nos tornamos outra e outra coisa ao participarmos desse ambiente que também se produz com a nossa ação. É o que Varela denomina “co-implicação”. Além desse conhecimento-ação no imediato, há certamente aquele conhecimento em que interferem a reflexão e a análise. O que Varela quer indicar é que a capacidade de confronto imediato é mais relevante e difundida na experiência humana e que é através de seu estudo que entenderemos o que é conhecer em geral e o que é o saber-fazer ético. A ética, portanto, se distingue nitidamente de uma moral que, por definição, depende de princípios e de regras. Estas afirmações – que promovem tão precisamente o deslocamento da imposição de uma moral para a contrução de uma ética4 – podem ajudar muito, acredito, a colocar a questão da relação das pessoas no espaço diverso das cidades. A ação ética assume um lugar central no contexto do contato com desconhecidos nos lugares públicos do meio urbano. A construção de uma ética tem ali características específicas. Trata-se de agir eticamente com estranhos num ambiente que se produz com a ação de todos, com a ocupação coletiva. O estudo sobre o metrô do Rio de Janeiro me tem levado a entender e a explorar a centralidade da ética na experiência urbana. Como vimos acima, no contexto das regulações de um metropolitano é fundamental distinguir o sobreinvestimento na restrição em contraste com a abertura que dá lugar à fruição do ritmo coletivo e da própria viagem. No metrô, a interferência excessiva do operador (que investe, portanto, no aspecto restritivo da regulação), impede que a modalidade mais difundida e central do comportamento ético se desenvolva. Em outras palavras, se constitui num obstáculo para a ação das pessoas, impedindo-as de, elas mesmas, confrontar-se 4
Podemos dizer que a moral é sempre imposta. Deleuze (1981) mostra como a forma da lei não nos faz conhecer nada, não nos traz conhecimento, só comanda:”a lei moral é um dever e pede obediência”.
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com os acontecimentos e tentar desenvolver ações éticas incorporadas, concretas. No caso dos vagões femininos no metrô carioca, temos a imposição de uma regra que veio de fora, que sequer se gerou a partir de alguma investigação das questões daquele transporte. A regra envolve uma proibição bem peremptória que interfere na circulação de um tipo de usuário, os homens, separando-os das mulheres e criando compartimentos segregados no metrô. A partir de um imaginado problema – de difícil constatação, como vimos –, se inviabilizou para homens e mulheres a possibilidade de experimentar a diferença sexual, lidar com suas tensões e tentar desenvolver comportamentos éticos em sua convivência. Com a imposição, as mulheres são de pronto vitimizadas5 – é assim que são impedidas de agir. E os homens são condenados –, em mais uma versão da crença de que “os homens são todos iguais”. Qualquer um e todos podem e devem provavelmente ser abusados e colocar em perigo as mulheres. Vimos como, na tentativa de identificação do suposto problema do assédio, o que apareceu foi, de fato, um outro problema, o da superlotação. É aí que a operação do metrô poderia agir. Seja injetando mais trens nas vias, seja diminuindo o intervalos entre eles – se for tecnicamente possível e, no caso do metrô do Rio de Janeiro, segundo aprendi com profissionais da Rio Trilhos, ainda é –, seja reorganizando a logística das integrações com outros meios de transporte que não cessam de carrear passageiros para o metrô. A questão seria, portanto, fornecer melhores condições de viagens. Tratar-se-ia, antes de tudo, de proporcionar e não de restringir. As medidas restritivas podem se fazer necessárias no transporte e no trânsito, mas elas não deveriam preceder as atitudes que propiciam um ambiente favorável ao deslocamento e à comunicação das 5
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A segregação no metrô foi criticada por várias mulheres ligadas a associações de mulheres e organizações não-governamentais. Por exemplo, Sonia Corrêa observa, nos Anais do VII Seminário Fazendo Gênero, que “o vagão reservado fixa ainda mais a percepção das mulheres como vítimas que devem ser protegidas de homens que não controlam sua sexualidade.”
pessoas6. Num ambiente assim propício, é mais provável que elas desenvolvam comportamentos éticos. Mas para isso é necessário não condená-las de antemão. Tudo se passa na co-implicação com o ambiente. A questão não é impor um ambiente restritivo para induzir um tipo de ação. Inclusive, nunca se pode ter certeza do que uma certa medida vai provocar. Vimos como a segregação no metrô carioca gerou, de fato, confronto entre as pessoas – sobretudo nos inícios da implementação da lei. Trata-se, ao contrário, de preparar um ambiente que favoreça ações éticas e criativas que vão, por sua vez, produzir o ambiente. Na co-implicação, emergem, a cada vez, agente e ambiente. O ambiente também é móvel, vai-se fazendo com os agentes. Como assinalei acima, no metrô carioca, em contraste com o que se passa basicamente em todo o resto da cidade, as pessoas não costumam jogar lixo no chão, numa atitude de preservação do espaço coletivo. O espaço limpo e preservado do metrô de alguma forma acaba provocando esse gesto extraordinário no contexto da cidade, mudando as pessoas. Ao mesmo tempo, são elas mesmas, com seu comportamento ético, que fazem emergir esse ambiente limpo, se construindo junto com ele. Muitos usuários observam que é mais difícil ceder o lugar quando o vagão está cheio (Caiafa, 2007b). As dificuldades levam as pessoas a se concentrarem em si mesmas e as tornam menos sensíveis às necessidades dos outros, ou seja, menos propensas ao comportamento ético. No metrô do Rio de Janeiro, não há nenhuma evidência de um problema grave de assédio sexual por parte dos homens que justifique a medida drástica e autoritária da segregação. Tudo indica que a tensão da diferença sexual – como outras tensões possíveis que a fricção de diferenças pode acarretar – poderia ser encaminhada pelas pessoas, se lhes fosse dada essa oportunidade. O que a segregação tem feito é, precisamente, subtrair às pessoas
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Ver Jornadas Urbanas para uma discussão do problema das penalidades no trânsito no contexto da ocupação coletiva do espaço urbano.
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essa oportunidade de desenvolver a capacidade de responder eticamente em confronto com a situação imediata. A idéia de um “treino ético”, que Varela avança, inspirado nas tradições da filosofia oriental, é muito adequada para colocarmos a questão da ética nas cidades e no caso da segregação sexual no metrô carioca. Há um treino, um cultivo da ética. Não se trata, nesse treino, de despertar um substrato ontológico, como ressalva Varela. São “inclinações” que, nessa relação com o mundo vivido, se desenvolvem. Essas inclinações não se inscrevem numa essência ou numa identidade, uma vez que o sujeito não é uma integralidade, mas se dá pela emergência de microidentidades ao perceber e agir no ambiente. A ação ética, não sendo um cálculo deliberado impulsionado pela regra, não é tampouco uma expressão espontânea. As inclinações vão se fazendo, vão atuando como disposições através do cultivo ético. No caso das relações entre homens e mulheres no metrô carioca, seria preciso dar oportunidade para o cultivo ético. A hipótese de que isso não funcionaria me parece – diante dos dados etnográficos – bastante remota: já encontramos evidências de um cultivo de ações éticas no metrô. Em qualquer caso, a questão não seria, aí tampouco, implementar uma medida restritiva ou punitiva. Como esta em curso que impõe, de fato, uma punição antecipada para os homens. Seria, creio, abrir espaço para as denúncias, com a constituição de uma ouvidoria para as mulheres, o desenvolvimento de campanhas para que elas se sintam livres para denunciar e para sensibilizar os homens para o problema e mesmo a criação de um esquema de segurança especial. Tratar-se-ia, portanto de continuar proporcionando e não restringindo ou obstando. Uma observação final sobre um outro desdobramento da segregação no metrô do Rio Janeiro, que não vou poder explorar aqui. A concessionária, que não determinou a medida, encontrou uma forma de encaixá-la para seu proveito. Já nos primeiros dias de implementação, uma funcionária declarou a expectativa da empresa de que o vagão exclusivo se tornasse um nicho de consumidoras a ser explorado pela publicidade. Logo em seguida, o interior do vagão cor-de-rosa, em algumas composições, foi decorado por anúncios 94
dirigidos ao público feminino, tendo sido mesmo todo pintado em alguns casos, do chão ao teto. Hoje não se observa mais isso, mas ainda se pode distinguir, vez por outra, esse direcionamento. “Você está preparada para o brilho de Seda?” – esta frase, que encontrei num anúncio nesse vagão, me pareceu emblemática dessa atitude da concessionária. Como é característico da gestão privada dos serviços públicos, os usuários do serviço são tratados como consumidores, como assinalei em outros tabalhos (Caiafa, 2006a e no prelo), e é preciso extrair lucro de sua presença. Se vários estão fazendo bom proveito da segregação, digamos em conclusão que os usuários não, mesmo que haja aproveitamentos pessoais ou locais dessa medida. A perda sempre será maior, porque o que se subtraiu das pessoas foi a oportunidade de desenvolver sua competência ética. Criou-se um novo tipo de desconforto – como mostram as situações de tensão em que mulheres vaiavam e expulsavam homens dos vagões, e mesmo as críticas à medida que tantos usuários são capazes de formular. A interferência restritiva tratou de obstruir a própria experiência da viagem e da convivência coletiva – que constitui, como vimos, uma dimensão fortemente criadora do transporte coletivo. Por outro lado, os efeitos de ações como essa não são tão controláveis e certamente as pessoas saberão e já estão sabendo atualizar a experiência da viagem malgrado a intrusão. No quotidiano do metrô, a imposição da segregação por gênero vai sendo retrabalhada, recebe novas versões que as pessoas mesmas inventam.
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–––––––––. Consumo e transporte coletivo. Revista ECO-PÓS, volume 9, n.2, agosto-dezembro de 2006. Rio de Janeiro: e-papers, 2006a. –––––––––. Solidão povoada: viagens silenciosas no metrô do Rio de Janeiro. Contemporanea, Revista de Comunicação e Cultura, vol. 4, nÚ 2, dezembro de 2006. www.contemporanea.poscom.ufba.br 2006b. –––––––––. Jornadas Urbanas: exclusão, trabalho e subjetividade nas viagens de ônibus na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002 DELEUZE, G. Spinoza: Philosophie Pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981. FISCHLER, S. Subways of the world. MBI, 2000. FOUCAULT, M. Des espaces autres. Dits et Écrits II, 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001. LEMOS, A. Mídia locativa e territórios informacionais. Trabalho apresentado no XVIÚ Encontro da Compós, junho de 2007. TARDE, G. A opinião e as Massas. São Paulo: Martins Fones, 1992. VARELA, F. J. Sobre a Competência Ética. Lisboa: Edições 70, 1995.
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CIDADES PALIPSESTAS, CIDADES MIDIÁTICAS: LIMIARIDADES E ERRÂNCIAS QUE PRODUZEM SIGNIFICÇÃO
Rose de Melo Rocha No campo indefinido da cultura, as tensões e as enfermidades sociais se manifestam. (...) Nas ruas amontoam-se homens preocupados que perderam o sentido da alegria e dos gastos. Duas preocupações maiores parecem motivar seus movimentos: enriquecer e emagrecer. Tropismos de barrigas flácidas. Michel de Certeau.
Este é um texto sobre a cidade. Um texto sobre as cidades. Cidades reais, particulares. E cidades como efeitos de sentido: imaginadas, representadas, ressignificadas, percebidas, esquecidas, saqueadas, erguidas. Modelos de urbanidade circulando em fluxos globais e se materializando em cenas locais. Imaginários urbanos mesclando o singular e as universalidades. Cidades que cada vez mais se estruturam em termos de processos comunicacionais. Imagens e imaginários, modos de viver nas cidades que se espelham e se espalham através de veículos, formas e conteúdos midiáticos. Simbiose profunda entre o lugar midiático e o espaço-tempo urbanos. Nunca talvez tenha sido tão estreita essa união que, curiosamente, cada vez torna-se mais e mais imperceptível. Se, no florescimento da modernidade, os grandes paradigmas de cidade – Paris, Londres, Nova York mais derradeiramente – fundavam linhagens metropolitanas nas quais o espetacular erigia-se desde a cena urbana com todo o esplendor e a monumental materialidade dos cenários, hoje, na dita (e desdita) pós-modernidade o ensaio já dispensa uma orquestra. 97
Nas cidades-mídia caminha-se do espetáculo para a introjeção dos artifícios. Estetização da cultura. Musealização do urbano. Mas também explosão em cascata de imagens-mundo, multiplicação das miradas, profusão de imaginários, contrabando irrefreável de afetos e sentidos. Nas sociedades contemporâneas, onde muito se vê e pouco se olha, o devaneio como método de olhar convive com a alucinação do próprio real. Imagens-esfinges, fábulas visuais convocam o vidente, capturando-o em um jogo de submersão visual que, por vezes, eclipsa a possibilidade de refletir sobre o vivido. O olhar é interpelado pela permissividade endoscópica que convida ao tudo devassar e ao rápido devastar. Só nos resta pensar o mundo através deste mesmo olhar. Redirecionando os fluxos; transitando indagativamente e de olhos bem abertos pelo olho do furacão. O que na modernidade era excrescência, agora se torna essência. O espaço urbano é atravessado, perfurado pelo tempo, pelos fluxos de pessoas e imagens, por sons e variados ruídos. Em tal contexto, a visão é compulsoriamente desvelada em sua potência de construção e em sua dinâmica de remontagem. A cenarização do mundo e a conversão do humano em imagem promovem uma aproximação impactante entre espaço vivido e espaço visto, entre presencialidade e mediação. Televiajantes que hoje somos experimentamos, diante do écran televisivo ou do cenário urbano, o movimento ininterrupto e intensivo de múltiplas partidas e chegadas. Mal a vimos já nos despedimos de uma imagem, embarcamos em outra e assim sucessivamente. Vivemos, literalmente, o limite do olhar, que nos conduz a um estado de suspense ininterrupto: imaginamos ver o real, e o que vemos é sua encenação; pensamos desfrutar de um teatro, quando, na verdade, o que se vê é real; em outros casos, gostaríamos que o real fosse uma encenação. Movimento ambíguo que, colocando em relevo, em mobilização incessante e fracionada a capacidade perceptiva, não possibilita que se saiba ao certo o que de fato nos aguarda e, menos ainda, o que será capaz de nos mobilizar. O olhar do viajante urbano concomitantemente mergulha e recua ante essa paisagem babélica. Nela, unem-se, em eterno conflito, o olhar limítrofe do flâneur e a sensibilidade vertiginosa do zapeador, 98
construindo uma habilidade de pular de flash em flash, de cena em cena, de registro em registro. E, incessantemente, encadeia trilhos de imagens descarriladas, farejando não apenas as pistas do que foi, mas, igualmente, tateando as imagens do vir a ser. A bricolagem se dá em movimento, em trânsito, em estado de descontinuidade e desordem. O veneno do deslocamento compulsório e da hiperprodutividade imagética torna-se um antídoto. Mediação entre o visível e o invisível, jogo de ocultar/ desocultar, de presença/ausência a imagem, desde a mais remota origem, coloca-se e nos coloca em estado limiar. Contemporaneamente, apressamo-nos por vezes em montar e esquecer nossos álbuns de rememorações. E, episodicamente, percebemos pousados sobre nossas imagens – de nós mesmos, dos outros, do mundo – decalques curiosos, semelhantes a mapas que se dissolveram no tempo, a cartografias em ruínas. Mas, segundo creio, ainda será possível, se esforço houver, escavarmos e vasculharmos os vestígios. Olhar para os despojos imagéticos. Para as marcas da subjetividade. Para as possibilidades de uma análise crítica. Possibilidades de redesignar nossas cidades. Pelo avesso. Pelo engano e pelo erro.
Do que nos falam as cidades-mídia? Identificamos dois recursos argumentativos decisivos para que possamos cumprir o objetivo central deste paper, voltado à análise de alguns aspectos que nos parecem fundamentais na relação entre cidades e mídia. De um lado, é defensável localizar o papel seminal que a experiência metropolitana desempenha na caracterização de uma sociedade midiática. Também seria inegável o reconhecimento de como as malhas e redes urbanas, e os fluxos que lhe são concernentes, fundaram-se irreversível e progressivamente em termos de processos comunicacionais, muitos deles de fundamento tecnológico ou de estruturação tecnológica ou informacionalmente mediada. Falar, nestes termos, em sociedade midiática equivale a localizar a centralidade e o espraiamento da lógica midiática na efetiva 99
estruturação das cidades, seja em termos de sua materialidade, seja em suas dimensões simbólicas. Ao menos um paradoxo deve ser destacado desta situação simbiótica. Ora, ele nos fala da ambivalência mesma que hoje parece ordenar a produção e o consumo midiatizado de cultura, entendendo-se esta midiatização tanto de um ponto de vista tecnológico quanto em termos de sua natureza comunicacional mais ampla. O paradoxo em questão nos é bastante familiar. De um lado, como interpreta Fredric Jameson (1996), para quem a lógica cultural é o próprio capitalismo tardio, a cultura contemporânea é uma vivência de intensidades. Intensidades visíveis, diga-se de passagem. Um dispositivo de televisibilidade e de televigilância parece devorar as superfícies e todas as intimidades. Responde-se aqui a um imperativo: para existir, peremptoriamente deve-se ser visível, excessivamente visível, repetidamente visibilizado. A intimação é recorrente: “apareça ou pereça!”1. Na outra ponta desta lógica ambivalente, o movimento assume outra forma. Peter Pal Pelbart (2000), em um belíssimo e perturbador livro sobre a subjetividade contemporânea, nos oferece uma pista. Segundo postula, Estado e mercado não mais se apresentam, em nossos dias, separados por fronteiras claras. Isto porque, em verdade, ambos são redesenhados pelo capital. Capital potente, vetor de um sistema capitalista que, ao procurar trazer “tudo para dentro”, ao entrar em um delírio inclusivista, termina por destruir toda a exterioridade. Enfim, o capitalismo se imaterializa. Hiper-exposição de um lado, internalização e imaterialização de outro. Não por acaso, se recorrermos à análise de Paul Virilio, perceberemos que nesta tensão se instaura uma ruptura decisiva, tanto para a estruturação de nossas cidades, quanto para o campo de possibilidades que elas nos abrem e para os outros mais que nos interditam. De um lado, a denominada devastação das superfícies, com a decorrente sujeição da vida urbana à temporalidade ou, sendo mais precisa, à aceleração, ao movimento compulsório. De outro, o
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Conforme expressão do psicanalista Jurandir Freire Costa.
decalcamento, extensamente analisado pelo teórico francês, de uma dinâmica imagética à cena urbana. Conforme Virilio (1993b e 1994), a imagem pública sobrepõe-se ao espaço público e ela mesma é também refém de um imperativo temporal. Tratar-se-ia não propriamente de uma imagem, mas sim de uma condição: a imagem é associada à sua possibilidade de duração. Em tal contexto, o propalado borramento das fronteiras entre público e privado, assume mais exatamente a característica de uma vivência limiar. Limiaridade que constitui tanto nossa existência mais íntima, quanto é palavra de ordem a regrar nosso modo de aparecimento público2. O urbano torna-se, ele próprio, um fato de imagem: uma duração pública, nos termos de Virilio. Não por acaso, o mesmo autor alerta-nos, em diversas de suas obras, para o fato de a crise urbana não ser estranha à crise política. Desde outra perspectiva, que obviamente não exclui as anteriores, pode-se analisar a cidade, ela própria, como mídia, como base, como suporte através do qual circulam inúmeras linguagens e se produzem sentidos, tanto hegemônicos quanto disruptivos. Localizamos nesta dimensão a profusa e intensa produção de ações simbólicas de ressignificação dos sentidos urbanos e igualmente as numerosas intervenções de apropriação do espaço e do tempo urbanos, dos graffitis aos coletivos juvenis, dos grupos artísticos aos movimentos culturais e micro-políticos que se utilizam das cidades como locais de encontro e referencial de atuação. Complementarmente a esta proposição, podemos aqui dialogar com alguns dos conceitos articulados por Roger Silverstone (2002), particularmente aqueles em que o autor defende sua concepção acerca da mediação. Segundo o britânico, a mídia deve ser percebida ela própria como um processo de mediação. Perceber, pois, a cidade como campo de significação e lugar efetivamente comunicacional torna-se relevante para sustentar a leitura proposta. Palimpsestos de imagens e imaginários, de materialidades e formações simbólicas, as cidades-mídia são igualmente processos de mediação.
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Ver, a esse respeito, Rocha (2005).
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Um labirinto para chamar de seu Dia e noite deixamos nossos sonhos de amor, nossas loucuras e ilusões diante da tevê enquanto acumulamos desleixo, gordura e remorsos. Efraim Reyes Medina.
Dirigindo mais especificamente nosso olhar para contextos de produção simbólica em realidades urbanas da América Latina, vamos agora trazer ao debate uma narrativa literária. Optamos, no espaço restrito deste trabalho, por um romance e um escritor muito peculiares. O autor, da nova safra de literatos colombianos, assume, claramente, uma relação de tensionamento constante com as tradições de escrita de seu país e, muito fortemente, com os choques entre uma herança identitária tradicional e um cenário urbano, social e político que poderia ser facilmente identificado como pós-moderno. Isto se explica em parte por seu país de origem, a Colômbia, e ganha uma gramatura intensa e explosiva nas cidades que serão, ao mesmo tempo, cenas fundantes e cenários retratados no romance, respectivamente Cartagena e Bogotá. Estas caóticas e fascinantes metrópoles revelam uma América Latina demarcada por fluxos globais, mas que ali parecem se confrontar, em situações de recomposição e decomposição. Mais do que cidades-cinema, delas se depreende aquilo que Pelbart (2000) define como sendo um processo de “videoclipicização do mundo”: O olho não como suporte de um ponto de vista, mas instrumento de mergulho molecular, ou de surfe, ou de sobrevôo. Que isso tenha sido reapropriado por Hollywood, ou que mais tarde tenha sido incorporado ao videoclipe e ao equivalente geral imagético, que apenas liquefaz os sólidos para acentuar o próprio virtuosismo do meio tecnológico, isso já faz parte dessa lógica em que o meio de entretenimento, agora fetichizado, vira a própria mercadoria. E assistimos a essa videoclipicização do globo, das posturas, das sensações, dos sonhos” (Pelbart, 2000, p.19).
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Ao iniciar seu provocativo e “videoclipicizado” romance Técnicas de masturbação entre Batman e Robin, o colombiano Efraim Medina Reyes (2004) deixa sugerir parte dos labirintos discursivos e dos peculiares caminhos que nos convidará a percorrer: Eu me chamo Sérgio Bocamole e moro no décimo nono andar de um prédio de apartamentos no centro de uma pequena, bonita e hedionda cidade. Levanto da cama à meia-noite porque me doem as costas, debruço-me na janela e vejo a distância a luz de numerosas janelas onde outros homens estão debruçados. Que razões terão? Eu estou com dor nas costas, outros poderão estar com insônia, mas acho que a razão mais importante para que haja homens debruçados nas janelas a essa hora é o sexo: depois que a gente ejacula os beijos são frios, e as palavras, inúteis. (...) Eu me pergunto se existe espaço suficiente numa janela para alguém que não quer pular (Reyes, 2004, p.13).
O modo como nosso atormentado autor estrutura sua narrativa é sintomático de um modo de perceber e de ser em boa parte das cidades latino-americanas. O que Reyes pretende retratar é não apenas uma cartografia de desencantos. Antes, encontramos nesta literatura uma cartografia de incertezas e de fluxos incessantes que, de modo visceral, torna-se constitutiva de uma vivência urbana à deriva. Capítulos entrecruzados, desconexões temporais, manuais mesclados a roteirizações fílmicas, poemas e frases esparsas encontradas em folhetos, discursos, banheiros e paredes. Não se pode localizar, na narrativa de Técnicas, qualquer recorrência estrutural que não seja a própria fragmentação. Não existem regularidades, não é possível ali localizar uma narratividade convencional. Temas e modos de falar ganham destaque, obliterando, a primeira vista, critérios que nos poderiam orientar em uma avaliação qualitativa deste romance. Em Medina, o que nos move é o ritmo, um sobressaltado ritmo de leitura, ofegante como encontros sexuais em bares obscuros da cidade. 103
E, sem aviso prévio, recebemos densidade existencial mesclada à sordidez dos mais execráveis e estereotipados argumentos cotidianos, recebemos fúria discursiva e placidez de acomodação. A literatura de Medina Reyes, e as cidades que retrata, acolhem com a mesma envergadura arrotos e dilemas pessoais, publicidade e poesia, sexo pelo sexo e amor pelo amor. Digerir as cidades de Reyes é tarefa indigesta. Somos todos banais, sem dúvida. Para sermos especiais, é o que ele sugere, apenas naufragando no labirinto de perdição e descaso que a nós, cidadãos comuns, as cidades nos relegam. Ser especial, incrível dilema, tantas vezes perseguido pelos personagens do livro. E, para o serem, deixam-se capturar pelas mais cruéis banalidades. A busca da diferença trafega em tensionamento espetacular com as estratégias de indiferenciação. E, a estes personagens, encontra-se aí o grande e irresoluto dilema existencial. Onde está minha subjetividade? Sendo mais um? Ou sendo um inapreensível? Objetivando uma reflexão específica sobre a cidade como espaço de enunciação, interessa-nos problematizar os diferentes sentidos atribuídos à relação de nomadismo capitaneada pelo protagonista desta ação ficcional. A escrita vertiginosa do autor, assumindo como princípio narrativo a contaminação – consentida e perseguida – por fluxos e textualidades urbanas, por histórias da microscopia cotidiana, por citações publicitárias e espectros midiáticos, resulta em um romance e em uma imagem de cidade palimpsestos. Tramas fragmentárias, conexões explosivas e fugazes, ambas convidam o leitor a mergulhar em um jogo espaço/temporal similar ao que autores contemporâneos associam a uma cultura da conectividade e da liquefação dos vínculos mais perenes. Como postulado por Zygmunt Bauman (2003), o estar sempre conectado é um dos modos mais eficientes de, hoje, evitarmos o encontro com o outro e a própria comunicação. Outros estudiosos contemporâneos, motivados pela experimentação de desencanto em relação a um projeto humanista, descrevem a época atual como marcada pela irradiação do que seria uma ruína ou devastação das superfícies. Do corpo ao espaço urbano, 104
do texto às relações pessoais, todos tenderiam a um processo de dessensibilização epidérmica, a uma dessubstancialização. Se existem evidências concretas deste processo de “afastamento do real”, daquilo que me é externo ou estranho, este movimento não exclui uma dinâmica diferenciada, mas complementar, representada pela “personalização” descrita por Gilles Lipovetsky (1983) ou, nos termos de Paul Virilio (1993a), pela “egocentragem corporal”. Na origem desta formulação, encontramos o redimensionamento mesmo da clássica dicotomia público/privado e, por extensão, interior/exterior. Corroborando matizes deste cenário, são sintomáticas e reveladoras as seguintes narrativas que ganham voz no personagem Bocamole, espécie de alter ego do escritor: Amor e sexo têm em comum o fato de serem causas individuais, qualquer tentativa de compartilhar essas sensações com algum outro está condenada ao fracasso e só despertará em nós ira e mágoa (Reyes, 2004, p.20).
Ou ainda, A mulher vive de seu corpo e nele. O corpo é seu refúgio, sua matéria-prima, seu bebê de ouro puro. Se uma mulher fica zangada com seu amante por qualquer motivo, sua resposta invariável é negar-lhe o acesso ao seu corpo. O corpo é a idéia que tem de si mesma, a forma de seu pensamento, o valor que se dá: o corpo é seu amo. Um homem não vive com uma mulher, e sim com o corpo dela; não deseja e relembra uma mulher, e sim o corpo dela. Um homem não abandona uma mulher, mas um corpo que perdeu sua fragrância. A mesma sorte tem um velho automóvel (Reyes, 2004, p.24-25).
A escritura existencial que assim ganha corpo engendra e dá visibilidade a subjetividades construídas sempre em estado de suspeição, sempre em limiaridades, sempre em lugares de desencontro e desencanto. Estrangeiros na própria cidade, os personagens de 105
Reyes só serão de fato sujeitos em situações de máximo tensionamento – a morte, o suicídio, o abandono, a traição, o abuso sexual, a loucura. Afirmando-se perante uma cidade que parece desmanchar no ar, constroem seu exílio particular, este no qual a ironia, mais ou menos sádica, mais ou menos masoquista, parece constituir a única possibilidade de enfrentar a submissão, o assujeitamento a dinâmicas urbanas fortemente excludentes e áridas. Não por acaso, a linguagem dos personagens agrega com regularidade violência simbólica, estigmatização e erotização, em uma intrigante afirmação de potência diante do “mundo externo”, uma demarcação de identidade – particular, individual – que pressupõe uma afirmação irreconciliável de diferença. Jean Baudrillard (1990, p.30) mencionou certa vez que o corpo passa por um processo de “exorcismo”: Essa estratégia de exorcismo do corpo pelos signos do sexo, de exorcismo do desejo pelo exagero de sua encenação, é bem mais eficaz que a antiga repressão feita de proibições. As ferramentas discursivas adotadas por Medina Reyes tomam também parte de uma estratégia análoga de exorcismo do que um dia se considerou cidade: é a obliteração da res publica na transparência de seus excessos. Jurandir Freire Costa, em artigo publicado na Folha de S. Paulo (22/09/96), estica ainda mais esta corda, detalhando os efeitos, o virulento papel do desinvestimento cultural na idéia do “próximo”. Uma das teses defendidas pelo autor é a de que o enfraquecimento do homem público não resultou, muito pelo contrário, em uma nobre qualificação de sua vida privada. Também nossa intimidade seria afetada pela indiferença, pelo medo, pela reserva, pela lógica do “tanto faz”: Na praça ou na casa vivemos (...) uma felicidade de meio expediente (...). Voltamos as costas ao mundo e construímos barricadas em torno do idealizado valor de nossa intimidade. Fizemos de nossas vidas claustros sem virtudes; encolhemos nossos sonhos para que
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coubessem em nossas ínfimas singularidades interiores; vasculhamos nossos corpos, sexos e sentimentos com a obsessão de quem vive um transe narcíseo (Freire Costa, 1996).
“Se é possível falar de crise hoje em dia, esta é, antes de mais nada, a crise das referências (éticas, estéticas), a incapacidade de avaliar os acontecimentos em um meio em que as aparências estão contra nós.” Esta é uma das proclamações de Paul Virilio (1993), ao discorrer sobre a planificação do tempo nas sociedades tecnológicas. Se nos remetermos a esta análise, o que se observa é uma sorte de colonização imperceptível da temporalidade, uma super-exposição do espaço urbano a protocolos de acesso telemáticos, com a transmutação da forma urbana na expressão da “programação de um ‘horário’” (Virilio, 1993a, p.7-21). No mesmo contexto do esquadrinhar de espacialidades e tensões, chegamos, pois, ao domínio do tempo, à fragmentação ou fracionamento territorial que se coaduna à constituição das ruas como zona de passagem, ao privilégio da circulação intensiva. Este deslocamento pressupõe a agilidade, a mobilização do corpo em uma atitude constante de vigilância e combate, explícita ou não. A administração do tempo – fardo e necessidade – ergue também seus muros invisíveis. Circulando de festa em festa, de bar em bar, de praça em praça, de rua em rua, de pensamento em pensamento, de subemprego a subemprego, de parceiro em parceiro, de amigo a amigo, de inimigo a inimigo, os personagens de Reyes são essencialmente comutáveis e, exatamente por isto, evitam qualquer nível de permuta mais densa com o outro. Presas de um estado compulsório de fluidez, demarcados por uma transitoriedade constitutiva – e, neste caso, é imperativo reconhecer como pano de fundo a situação política e econômica colombiana – os adolescentes e jovens adultos do romance circulam pela cidade sem verdadeiramente se colocar em estado de comunhão. Nada mais adequado, para situações como esta, do que os ensinamentos contidos em um folheto que uma das personagens recebe ao sair de um supermercado (ver Reyes, 2004, p.42): 107
MASTURB – ARTE S.A. A masturbação comum oferece muitas vantagens: É higiênica Não tem efeitos colateral É econômica Desenvolve a imaginação Não produz desaprovações nem complexos de culpa Não requer experiência Está sempre à mão É unidimensional Ritmo e movimento ao seu gosto Requer pouco espaço À prova de falhas Não precisa marcar com antecedência Se ajusta a qualquer medida Disponível 24 horas.
Os outros, embalados pelo encontro sexual, pela música ou pelo frenesi urbano, são como imagens que passam, atestando, como teorizado por Paul Virilio, uma estética da desaparição, tanto da materialidade urbana, quanto da socialidade convencional. A crise urbana que tão fortemente conforma os hábitos juvenis não é mesmo estranha a uma crise política mais ampla. Os encontros dão lugar a relacionamentos sem contato, vínculos que “só precisam ser frouxamente atados, para que possam ser outra vez desfeitos, sem grandes delongas, quando os cenários mudarem” (Bauman, 2003, p.7). O paradoxo é inevitável. A hiperconectividade acontece em cidades paradas no tempo, em largos focos inerciais nomeados, em alguns momentos da narrativa, de “a cidade imóvel” (Ver Reyes, 2004, p.76): – Que tipo de cidade você prefere? – Uma sem mar, uma grande, fria e perigosa – digo com ares de pistoleiro. – Como Bogotá? Essa mesma tarde comprei o bilhete. Cidade imóvelBogotá. Só de ida.
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Não se passa impunemente por cidades como as descritas por Reyes, estas nas quais bombas explodem, assassinatos ocorrem amiúde e, ainda, assim, segue-se vivendo. Também não se escreve impunemente sobre estes lugares. Se nas ruas domina a insegurança, a ameaça explícita que pode dar fim à vida, em algumas das socialidades juvenis retratadas no romance, a violência transformase em uma atordoante estratégia de convivialidade. De um lado, nota-se o endurecimento dos vínculos afetuais que pode por vezes ser percebida no modo agressivo e hostil com que amantes e amigos se relacionam e, de modo explícito, percebe-se uma militarização às avessas nas descrições feitas pela autor das combativas socialidades experimentadas por gangues urbanas. As gangues juvenis, os grupos de poetas e bêbados, os mais variados outsiders que trafegam por Bogotá e Cartagena constroem “territórios” apesar da cidade. Seus marcadores e seus lugares são essencialmente temporais: a noite, a festa, o bar, o efeito das drogas e da bebida, o êxtase das brigas, dos confrontos. Os encontros se dão temporalmente, em movimento: no metrô, nas casas noturnas, nos ônibus, nas redes de transporte virtuais, caminhando rapidamente em ruas ou pensamentos. Encontrando-se em methafora. A velocidade compulsória e a aceleração inercial ensinam a viver com intensidade absurda o aqui e agora, ocasionando por vezes uma ruptura abrupta com o passado, com o mundo das tradições e da memória, até mesmo a de curta duração. Neste “presente total” também o porvir perde consistência, como se já não mais se tivesse tempo para sonhá-lo e planejá-lo, como se já não fosse possível parar para construir projetos de longo prazo, tamanha a urgência de se dar conta das demandas e das frustrações do presente imediato. As cidades de Medina Reyes não permitem a errância, no sentido de barrarem a possibilidade de se circular livremente, de se perder por elas. Antes, são elas a “errarem” pelos personagens, vagando por seus corpos e mentes, inscrevendo-se de modo aleatório e tenso nos seus hábitos, no modo como caminham, escrevem, comem e fazem sexo. É ali, desde dentro, que este fora obscuro trava um combate sombrio, uma fantasmagoria de impossibilidades, uma recorrente suspensão das potências de agir. 109
Essa contemporaneidade urbana remete ao que Fredric Jameson (1996) um dia nomeou como sendo uma patologia da sensibilidade, caracterizada pelo aprisionamento esquizofrênico no aqui-agora, encapsulamento em um presente total que atualizaria, de modo um tanto indiscriminado, os restos do vivido e a pungência de uma imagerie arrebatadora e autonomizada. Utilizando-se da análise lacaniana o autor chega à seguinte definição: O presente repentinamente invade o sujeito com uma vivacidade indescritível, uma materialidade da percepção verdadeiramente esmagadora, que dramatiza, efetivamente, o poder do significante material (...) quando isolado. Esse presente do mundo, ou significante material, apresenta-se diante do sujeito com maior intensidade, traz uma misteriosa carga de afeto, aqui descrita nos termos negativos da ansiedade e da perda da realidade, mas que seria possível imaginar nos termos positivos da euforia, do ‘barato’, de uma intensidade alucinógena ou intoxicante (Jameson, 1996, p.54).
Explorando a interface textos ficcionais/textos urbanos, articulada no romance analisado, encontramos neste modo de ser presentificado uma demarcação substantiva. Trata-se do imperativo da visibilidade, tão profundamente midiático. Nas cidades de Medina Reyes, homens e mulheres fazem de sua vida uma obra publicitária: Gaby sempre fala de seus orgasmos, de seus mil homens, de sua vida desenfreada. Trabalha vendendo pasta dental numa loja de departamento e sonha em aparecer num comercial de tevê. (...) Enquanto espera ônibus para casa lê numa revista: O orgasmo de uma mulher depende de muitos fatores, às vezes até de um homem. (...) O homem que queira de verdade satisfazer uma mulher deve levar para a cama, além de seu estúpido e ineficaz pênis, um bom mapa e algum folheto técnico. Gaby sorri e pensa que Ana vai gostar daquela revista (Reyes, 2004, p.17).
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A própria imagem se cotidianiza, deslizando do campo da cultura para se tornar elemento natural constitutivo de nosso dia-adia. Com a “estetização da realidade”, o visual pode ser analisado como meio em si de sedução e interpelação e a mídia como esfera pública, ou melhor, como espaço público virtual de apresentação e encenação. Comentando a estruturação dos jornais como se fossem seriados, a um só tempo ficcionais e reais, Jameson vislumbra aí a manifestação de um novo domínio da realidade das imagens, relacionando-o a modificações profundas na esfera pública. Este campo híbrido, que se constrói nos interstícios da narrativa e da factualidade, tende à autonomização, uma semi-autonomização, como escreve Jameson: [ele] paira acima da realidade, com a seguinte diferença histórica fundamental: no período clássico, a realidade persistia, independentemente da “esfera cultural” sentimental e romântica, enquanto hoje parece ter perdido essa modalidade de existência em separado (Jameson, 1996, p.283).
As cidades decadentes e fervilhantes pelas quais circulam os personagens de Reyes são povoadas de figurações banais, de dinâmicas discursivas povoadas pela referencialidade midiática, preenchendo o leitor com uma overdose de narrativas captadas em movimento, de fantasias e desilusões talhadas pelo vazio experimentado em cada hábito cotidiano. São falas disparadas em flashes, sensações imperfeitas, inacabadas. Até mesmo o falastrão narrador que protagoniza o romance, sempre com um estoque de lugares-comuns capazes de retratar, destruir e explicar tudo e todos deixa transparecer, com boa dose de um niilismo passivo, seus não-ditos: a angústia pesada, a incapacidade de estabelecer vínculos, a ausência de projetos, a desilusão rancorosa consigo mesmo, com os outros e com o que lhe oferecem as cidades de seu país: A vida continua, mas isso não é tudo. O fato que continue a torna insuportável e lhe dá seu sentido único. Dance ou morra, é a chave do assunto e está nos
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comerciais. Vale a pena? Os comerciais são o monstro que nos cerca, nos alimenta, nos convence do despropósito. Beijar Silvana me mantém alguns segundos sobre o aro e depois tudo vem abaixo. A vida continua, é tudo. E é mesmo, o pior é isso. Por que a maldita Coca-Cola não é também a bebida mais saudável e nutritiva do mundo? Por que o espinafre não tem gosto de batata frita? No fundo a gente não sabe, não é? Sabe, sim. (...) A cama ou o túmulo são os únicos lugares que você sonha para quem ama, o resto é retórica (Reyes, 2004, p.97).
Localizando em Técnicas de Masturbação um diagnósticopastiche das cidades colombianas, não é de se estranhar a situação de orfandade paterna manifestada pelo protagonista do romance, portador de uma relação paradoxal e hostil com o pai ausente fisicamente e constantemente atualizado em seus lampejos memoriográficos. Esta crise filial, tão recorrente em relatos de jovens das periferias urbanas latinoamericanas, encontra em Reyes uma expressão paradigmática: Nos primeiros dias de ausência mamãe se trancava no quarto para praticar estranhos ritos de tabaco e alho. Sua voz saía pelas frestas chamando você, sua voz não deixava o inverno ir embora (...). Mamãe me ensinou que o amor é o bandido do filme (Reyes, 2004, p.57).
Recusando qualquer representação idealizada da própria América Latina, abordando com sarcasmo e descaso qualquer herança folclórica que a seu país pudesse ser associada, Bocamole faz desfilar diante de nossos olhos uma juventude sem passado e sem futuro, reféns de um cotidiano marginal e estagnado. Como animais rebeldes a caminho do matadouro, sentem-se presas de uma dinâmica societal que paralisa e vampiriza: Estou de visita na casa de mamãe. Ela vê tevê e eu leio o jornal. Na seção “Vida Moderna” encontro um arrepiante artigo que comenta os avanços da ciência
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avícola. O último avanço (tem várias fotografias) consiste em cortar as patas do frango e fixá-lo numa estrutura (longas fileiras de frangos vivos e imóveis). A estrutura tem trilhos de ida e volta: um leva o alimento que os frangos comem impávidos, o outro recolhe os excrementos levando-os até um depósito onde são convertidos novamente em alimento. O tempo da conversão está calculado: os frangos sempre terão fome. Ali ficam os frangos até estarem prontos para o consumo. Baixo o jornal e observo mamãe (imóvel, com o olhar fixo na tevê). Eu me pergunto quanto tempo será que ela está assim, e sinto pânico (Reyes, 2004, p.148).
Se há nestes jovens uma experiência propriamente histórica, ela se apresenta sempre aos moldes de despojos, despojos lançados à subjetividade juvenil, subjetividade que, por sua vez, constrói-se em fluxo, aos solavancos, com a constante ameaça da perda de continuidade. A juventude que circula na cidade, a juventude que se cristaliza em guetos identitários, em tribos e gangues, é também retratada como se fosse mais um despojo lançado, a sua própria sorte, no espaço e no tempo das cidades. Se o universo representado é de excesso e de ruína, a escrita, por sua vez, tampouco se apresenta como espaço de iluminação. Antes, ela é expurgo, é um quase vomitar, é um exercício de assombramento e obscuridade, crime perfeito cujo único sobrevivente é um self irremediavelmente estilhaçado. Trata-se, afinal, de uma busca desesperada do anonimato como valor, aventura contemporânea que remete Medina Reyes ao mesmo encantamento que, na modernidade, tinha feito da multidão um fascinante campo de errância e perdição: Escrevo para me livrar disso, para pôr o lixo para fora, para ser outro, alguém que fica oculto sob a avalanche das palavras. Não sou um vendedor ambulante que faz livros de temporada: prefiro ir para dentro de mim. As palavras são meu álibi, não meu destino. Ando no meio das pessoas, gosto de seu cheiro, escuto suas vozes, as
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músicas do rádio. Um cara pula uma poça d´água, é magnífico. Também sinto medo, evito as ruelas escuras. Um livro é uma coisa a mais na vida. Não escrevo para lamber a pomposa bunda de um reizinho, mas para conservar meu anonimato, para que ninguém jamais saiba quem sou (Reyes, 2004, p.149).
Bogotá e Cartagena, são estas as cidades que elegeram nosso autor. Mas poderiam ser São Paulo e Rio de Janeiro, Nova Iorque e Chicago, Madrid e Barcelona. As cidades retratadas por Reyes são marcadas por dinâmicas da velocidade e da exclusão, alimentando um imaginário urbano povoado por multidões que promovem a classificação e o enquadramento, que dissolvem e demarcam, parecendo, curiosamente, tolher o direito a ser apenas mais um, mais um qualquer, mais um invisível, mais um com idiossincrasias, banalidades e intimidades indevassáveis. A multidão da pós-modernidade, tal como desenhada por Reyes, é um espaço de visualidade, talvez o único possível para centenas de urbanóides. Ela transformou a excrescência em essência: não mais esconde o criminoso; ao contrário, transforma todos, em especial os diferentes, em criminosos potenciais. Não mais garante o anonimato: antes, visibiliza a indiferença como padrão de igualdade. Não promove a indiferenciação, mas agencia um estado maciço de alerta ininterrupto, de desconfiança permanente, de suspeição. Em casa ou na rua é preciso ser visível, é preciso que tudo se ilumine e se dê a ver. Não há privacidade possível: sempre haverá uma tela para onde se olhar ou pela qual se será olhado. E estas telas já estão introjetadas. Forjamo-nos para fora, para sermos vistos, para sermos passíveis de admiração. A este imperativo responde Medina Reyes, mostrando-nos o banal em borbotões, o obscuro, a falibilidade da fama e do sucesso, a sedução do fracasso. Nas “cidades-imóveis”, viver é um esporte de risco: Tinha pouco contato com aquela gente, na verdade ninguém me dirigia a palavra (...). (...) a onda de crimes continuava de vento em popa, na rua todos se olhavam com receio. Ao voltar do trabalho e da escola,
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as famílias se cumprimentavam: voltar vivo para casa tinha virado uma façanha (Reyes, 2004, p.80).
É Marianne, o grande e indecifrável amor de Sérgio Bocamole, a peça de resistência nesta trama. Personagem que se expõe sem jamais se revelar, termina assumindo como escolha o amor de um açougueiro, um fatiador de corpos mortos. Para isto, abandona o protagonista, colocando-lhe, como não opção, migrar para uma “cidade imóvel”. É ela, rua vazia e escura por quem o protagonista deixa-se naufragar. É ela o não-dito das mesmas cidades vazias e escuras, trazendo no corpo marcas roxas e nas roupas restos de sangue de um assassinato que nunca irá se criminalizar. Para conviver com ela é preciso aceitar que, sim, há um passado, mas, também, saber que este passado nunca será revelado: Enquanto faço a barba ouço Marianne falando ao telefone (...). Ainda não consegui saber quem diabos é Marianne. Quando entrou aquela madrugada no apartamento, molhada dos pés à cabeça, a segunda coisa que fez (...) foi colocar a fita da Fracasso Ltda. E com esse fundo me propôs um trato: nenhuma pergunta a respeito dela ou de sua vida. Nenhuma tentativa de conhecer ou de ligar para sua família. Zero Marianne para trás. Se não aceitasse o trato me arrancaria os olhos e iria embora em seguida. Eu deveria ter-me negado, mas não consegui. Na parte de cima do espelho do banheiro tem uma frase escrita com batom vermelho: Um golpe o afunda ou o salva, mas jamais o ilumin. (Reyes, 2004, p.57-58).
Marianne, metáfora do corpo urbano que fascina e martiriza Bocamole, representa ainda a ausência de definições previsíveis sobre os lugares habitados, sejam eles o corpo do ser amado, as cidades, nossas próprias lembranças. Como uma memória-despojo, remete-nos a um lugar-bolha que se pode olhar, mas sem se envolver. Marianne é o próprio palimpsesto, com camadas significantes que se vão colando e sobrepondo, sempre em estado potencial de 115
degradação. E é exatamente esta a mulher que será defendida pela mãe do protagonista, exatamente esta que ela o desafia a manter, a conservar. Separado fisicamente deste amor, que ficara em Cartagena, no discurso de Marianne encontraremos referências explícitas à posmodernidade que nos interessa destacar, narrativas que Bocamole encontrará, já em Bogotá, cidade pela qual circula em involuntária errância. Entre explosões literais e encontros eróticos, o autor nos apresenta alguns conteúdos das cartas de Marianne. Com um deles finalizo minha narrativa: Gostaria de escrever mas não tenho talento, odeio ver que se publica tanto lixo. Tenho uma idéia pósmodernista para fazer um livro, trata-se de usar velhos modelos com novo estilo, poderia começar assim: Uma manhã ao acordar Pepe Grillo se viu convertido num homem comum. Pode haver algo mais monstruoso que um homem comum? Um desses caras que vêm entregar a fatura de serviços (Reyes, 2004, p.83).
Referências BAUDRILLARD, J. As estratégias fatais. Lisboa: Estampa, 1990. BAUMAN, Z. Amor líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. FREIRE COSTA, J. “A devoração da esperança no próximo”. Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 1996. JAMESON, F. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 1996. LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Lisboa: Relógio D’Água, 1989. PELBART, P. P. A vertigem por um fio. Políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras/Fapesp, 2000. REYES, E. M. Técnicas de masturbação entre Batman e Robin. São Paulo, Planeta, 2004. ROCHA, R. L. “Você sabe para quem está olhando?”. In. BAITELLO, N. (org.). Os meios da incomunicação. São Paulo: Annablume, 2005. SILVERSTONE, R. Por que estudar a mídia? São Paulo: Loyola, 2002. VIRILIO, P. A inércia polar. Lisboa: Dom Quixote, 1993a. –––––––––. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993b. –––––––––. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
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VIDA NA METRÓPOLE: COMUNICAÇÃO VISUAL E INTERVENÇÕES JUVENIS EM SÃO PAULO
Silvia Helena Simões Borelli Rita de Cássia Alves Oliveira
Vida na metrópole: de que cidade se fala? Apresenta-se aqui como princípio norteador da reflexão uma, entre outras concepções de cidade, que não se atém apenas ao cenário urbano/metropolitano “físico” – ruas, avenidas, monumentos – mas a uma cidade plena, ocupada e modificada pelas intervenções humanas e constituída também por ordens imaginárias: ... a figura da cidade tem menos a ver com a alta regularidade dos modelos expertos do edificar que com o mosaico artesanal do habitar. E isto nos revela que a geografia das identidades remete tanto às figurações que demarcam as ruas e as praças como às fissuras que introduz a desordem das experiências e dos relatos [...] a pista das fissuras torna possível descobrir outra visão e outra dinâmica: a das flutuações e dos fluxos nos quais se gestam outras ordens (Martín-Barbero, 2004, p.277).
Intervenções desencadeadoras de ações intencionais que transformam homens e mulheres em personagens, sujeitos que se apropriam dos espaços públicos – com eles interagindo ora de forma harmônica e equilibrada, ora de maneira conflituosa e insidiosa, na tentativa de converter os espaços em “lugares meus” (Borelli e Rocha, 2005). A cidade pode ser como propõe Appadurai (2004), uma “etnopaisagem”: 117
...a paisagem de pessoas que constituem o mundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores [...] Não quero com isto dizer que não haja comunidades e redes de parentesco, amizade, trabalho e lazer, bem como de nascimento, residência e outras formas de filiação relativamente estáveis. Quero dizer que por toda a parte o tecido destas estabilidades é feito no tear dos movimentos humanos [...] No centro desses factos está a reprodução social, territorial e cultural da identidade de grupo em mudança [...] As paisagens da identidade de grupo – as etnopaisagens (Appadurai, 2004, p.51 e p.71).
A “paisagem” é sugerida como “sufixo” para captar a “forma fluida e irregular destes horizontes”. E com o objetivo de analisar os fluxos globais e as “disjunturas” por eles provocadas, Appadurai propõe, ainda, uma classificação em quatro outras dimensões: tecnopaisagens, financiopaisagens, mediapaisagens e ideopaisagens (Appadurai, 2004, p.50). Desta classificação podemos retirar, em síntese, os seguintes pressupostos: a configuração mundial e fluída da tecnologia e a disposição globalizada das finanças e do capital; a capacidade de “distribuir e disseminar” informações e as “imagens do mundo” criadas pelas diferentes mídias. (Appadurai, 2004, p.52-53). Trata-se, de certa forma, de uma cidade cindida em cenários, assim como, cindida está a sociedade da qual ela é parte constitutiva; sociedade transformada e distanciada da idéia clássica que pressupõe uma “cena única e nacional”, em que as comunidades se vinculavam “a um território, a uma língua e a certas tradições” (Sarlo, 2003, p.56-57). Uma cidade que hoje é parte de uma cultura globalizada e desterritorializada e distante dos padrões anteriores, em que ainda era possível conceber: Um ideal de cidade relativamente homogênea, não porque as classes sociais deviam mesclar-se invariavelmente em cada um dos pontos da trama urbana, mas porque esta devia oferecer uma distribuição eqüitativa de espaços e equipamentos: parques, es-
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colas, hospitais, bibliotecas [...] A cidade cresceu com este ideal homogêneo nunca realizado plenamente... (Sarlo, 2003, p.53).
Ainda assim, sujeitos e personagens vivem a e na cidade atribuindo a ela um complexo sentido de diversidade – multicultural, intercultural, transcultural: Não podemos nos contentar com a apologia da diferença [...] Numa época globalizadora – em que a cidade não se constitui apenas pelo que acontece em seu território, mas também pelo modo como migrantes e turistas, mensagens e bens procedentes de outros países a atravessam – construímos mais intensamente o próprio a partir do que imaginamos sobre os outros [...] num multiculturalismo democrático e inteligente (Canclini, 1995, p.90-91.)
Canclini desenvolve uma sugestiva reflexão sobre as mudanças nas formas de constituição das identidades de sujeitos que, anteriormente, incluíam-se e inseriam-se pela pertença a uma sociedade nacional, a uma etnia – e por que não, a uma cidade, a um bairro? – e ali partilhavam de uma mesma língua e de duradouros laços, tecidos por estruturas de sentimento (Williams, 1997); e indaga sobre as alternativas de enfrentamento desta nova paisagem transnacionalizada material e simbolicamente: As identidades dos sujeitos formam-se, agora, baseadas em processos interétnicos e internacionais, entre fluxos produzidos pelas tecnologias e pelas corporações multinacionais [...] Hoje imaginamos o que significa ser sujeitos não apenas de nossa cultura de origem, mas também de uma variedade de repertórios simbólicos e modelos de comportamento. Podemos cruzá-los e combiná-los (Canclini, 2004, p.161).
Assim como se alteram as sociedades e as subjetividades, as cidades se transfiguram. Nesta cidade disseminada vive-se a tensão 119
entre o modelo ilusório de autonomia dos bairros, dos lares e dos miniterritórios – onde ainda imperam algumas relações de vizinhança – e um novo modelo, das redes imateriais, dos laços difusos e dos rituais ligados à comunicação transnacional (Canclini, 1995, p.8889). Entre a cidade gregária e a cidade nômade, articulam-se, conflituosamente, tradição e ruptura, velocidade e ritmo lento, cultura local e cultura de mercado. Retomando os clássicos referenciais de Williams, pode-se conceber uma cidade miscigenada, ao mesmo tempo, por formas residuais e traços emergentes: O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas se encontra ativo no processo cultural; não só como elemento do passado, mas como um efetivo elemento do presente [...] Por emergente quero denotar, em princípio, novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de relações que se criam continuamente [...] nesse sentido, melhor emergente do que simplesmente novo (Williams, 1997, p.144, p.145-146).
A cidade pode ser também analisada por meio da trajetória proposta por Certeau (1994) em suas “caminhadas”: da cidade como “irrupção urbana”, “lugares paroxísticos”, “palco de concreto, de aço e de vidro”, “cidade panorama”, para uma cidade onde vivem “caminhantes e pedestres, praticantes ordinários” de “práticas estranhas ao espaço geométrico ou geográfico” (Certeau, 1994a, p.169-172). Uma cidade que resulta das articulações entre “espaço e lugar”: Existe espaço sempre que se leva em conta vetores de direção, quantidade de velocidade e a variável tempo [...] O espaço estaria para o lugar como a palavra quando falada, quando percebida na ambigüidade de uma efetuação [...] Diversamente do lugar, não tem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio” [...] o espaço é um lugar praticado. Assim, a rua geometri-
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camente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres (Certeau, 1994a, p.202)
E outros autores, entre eles Martín-Barbero (2004), retomam de Certeau uma “concepção ativa de espaço” e recolocam a importância e o sentido que se deve atribuir ao “lugar”: ...nossa ancoragem primordial: a corporeidade do cotidiano e a materialidade da ação [...] ainda atravessado pelas redes do global, o lugar continua sendo feito do tecido e da proximidade dos parentescos e vizinhanças [...] este é o local que introduz ruído nas redes, distorções no discurso global, mediante os quais emerge a palavra de outro, de muitos outros (Martín-Barbero, 2004, p.269-270).
Focando um pouco mais, Certeau salienta que os bairros e as ruas constituem-se também como significativos elementos da reflexão sobre a cidade e seus habitantes, em especial, como referência que reforça uma concepção ativa do espaço: O bairro aparece como o domínio no qual a relação espaço/tempo se apresenta como a mais favorável para um usuário que se desloca “a pé a partir de seu habitat” [...] O bairro evidencia-se como uma noção dinâmica, que exige uma aprendizagem progressiva, ampliada pela repetição do envolvimento do corpo do usuário no espaço público, até exercer ali uma apropriação (Certeau, 1994b, p.20).
Dos bairros e das ruas, pelos espaços e lugares desta cidade disseminada, circulam toda sorte de personagens que marcam a cidade deixando rastros; entre eles, aqui se destacam alguns coletivos juvenis que, com suas práticas e lógicas de usos e apropriações, negociam sentidos e permitem a reiteração das concepções de cidade múltipla até então apresentadas.
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Espaços e lugares Nas últimas décadas vivencia-se uma intensa valorização das culturas de rua. A prática do skate e outros esportes, a produção de graffitis1 e pixações2 e a emergência da cultura Hip Hop, com sua característica sonoridade e uso do corpo, marcam alguns dos momentos em que as culturas de rua ganham evidência e importância no contexto da cultura contemporânea. Os campos da moda, publicidade e comunicação visual voltam-se, cada vez mais, para estas práticas e aí encontram suas referências estéticas e conceituais para manterem-se atualizados na tentativa de antecipar tendências e linguagens que poderão se tornar corriqueiras, poucas semanas ou meses depois. Os jovens são responsáveis por boa parte dessas práticas culturais articuladas à vivência nas ruas das grandes cidades. Na virada do milênio, a vida na metrópole contemporânea está cada vez mais agitada e colorida. Os muros, paredes e postes da cidade enchem nossos olhos com mensagens gráficas dos graffitis, pixações e stickers3. As novas tecnologias digitais proporcionam uma relação mais autônoma e produtiva com os universos musicais e imagéticos; a facilidade de produção, distribuição e apropriações de sons e imagens transformam os jovens em prossumidores (Kerckhove, 1997), novos agentes sociais que aos poucos vão deixando de lado a postura passiva frente a produção industrial e massiva da cultura, para assumir o papel de produtores de estilos, linguagens e idéias. Nestes espaços de experimentação constante, a sensibilidade e o
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Optou-se aqui pela grafia internacional dessa palavra, graffiti. No Brasil costuma-se, vez ou outra, utilizar a grafia nacionalizada (grafite) que, no entanto, pode ser confundida com o material e a técnica de desenho também conhecidos como grafite. Nos dicionários de português encontramos a palavra pichação com ch; aqui, entretanto, optou-se pela grafia adotada pelos próprios jovens: pixação, com x. Street stickers, em inglês: adesivos de papel ou vinil, de produção caseira e individual que são espalhados pelas ruas como forma de manifestação artística anônima e sutil.
prazer estéticos característicos do Homo sapiens (Morin, 1975) encontram aí solo fértil para seu desenvolvimento. Estas práticas ganham importância na medida em que as culturas juvenis vão se destacando na esfera cultural, social, econômica e política. A juventude da virada do milênio desenvolve uma relação muito particular com a vida metropolitana: os jovens experimentam a cidade como homens da multidão; convivem com as aglomerações cotidianamente; resistem, como podem, à homogeneização e ao anonimato das “cidades disseminadas”; inserem-se no fluxo constante de pessoas, veículos, informações, imagens e têm uma relação particular com as ruas e com a cidade em sua totalidade. Nas cidades modernas há muitas maneiras de ser jovem: a metrópole apresentase como panorama sumamente variado e móbil, que abarca seus comportamentos, referências identitárias, linguagens e formas de sociabilidade (Margulis e Urresti, 1998, p.3). A excursão pelas ruas organiza o ciclo da vida e articula a percepção do espaço urbano e o tempo cotidiano dos jovens (Pampols, 1988). Estão em mobilidade constante: escolhem onde estar e aonde ir; invadem bairros e territórios sempre em busca de novidades, do desconhecido e do desafio. O campo da comunicação contemporânea desenvolve-se em estreita relação com estas culturas de rua. São elas que informam, oxigenam e pressionam a transformação constante do design, especialmente o gráfico, que vai buscar na vida das ruas sua fonte de inspiração e renovação de tipografia, texturas, cores, imagens, signos e linguagens.
Cultura de rua, jovens e produções gráficas Apesar da constituição do campo do design estar atrelado a industrialização e a expansão da organização industrial dos séculos XVIII e XIX, os novos cenários urbanos traziam a comunicação visual moderna estampada nos vários setores do mercado editorial e da publicidade emergentes (Cardoso, 2004). A Modernidade trouxe uma cultura imagética impulsionada pela reprodutibilidade técnica das imagens que alterou a paisagem urbana, o cotidiano e o sensorium destes homens metropolitanos (Benjamin, 1991). O imaginário 123
moderno passa, então, a ser mobiliado por imagens e produtos culturais derivados da cultura de massas; segue sendo a fonte de onde jorram as imagens e os significados que vão compor a produção das indústrias da cultura (Morin, 1987 e 1975). A forte articulação entre a constituição do campo do design e a vida cotidiana das ruas metropolitanas passa pelos novos ares modernos que chegam com os cartazes de rua, homens sanduíches, cartões de visita e o emergente mercado editorial (Hollis, 2000). Entre os grandes reclames afixados as paredes e os anúncios nos jornais ou nos bondes, a publicidade começa a se definir como expressão dos sonhos em comum e como arena predileta para a cristalização dos mesmos em uma nova linguagem inteligível por todos (Cardoso, 2004, p.81). As metrópoles foram invadidas pelos cartazes, que tem quase sempre um destino urbano e fazem parte da cultura mosaica da vida cotidiana nas cidades; em sua função de paisagem urbana, os cartazes provocam os choques visuais a que são expostos os transeuntes no mosaico de solicitações díspares nas vias públicas: nenhum plano urbanista contribuiu para a sua realização; eles fornecem, entretanto, a cor da cidade (Moles, 1987, p.220). A modernidade dos panoramas, galerias, exposições universais e da iluminação a gás nas ruas das metrópoles enfatizou o olhar a partir da articulação entre arte e técnica, cidade e multidão. As metrópoles ingressaram na era do espetáculo; os entretenimentos públicos multiplicavam-se em Londres e Paris aproveitando-se da grande concentração de espectadores dispostos a pagar para se divertir. A exuberância e imponência das exposições universais com seus cenários, edifícios e mundos fantásticos anunciavam que consumir com os olhos já era uma das principais características do regime do consumo como lazer e espetáculo. Benjamin percebeu, de maneira original e fecunda, a força e a vitalidade das culturas de rua; frente a uma emergente cultura de massa, permeada pelas questões econômicas e industriais, Benjamin em “Paris do segundo Império” destacou a obra do poeta Charles Baudelaire baseada na vida boêmia, na imprensa de bulevar propagada pelos incontáveis cafés e, principalmente, pela flanerie, que encontra sua plenitude com as galerias. Com as galerias – estes caminhos cobertos de vidro 124
e revestidos de mármore, através de blocos de casas, cujos proprietários se uniram para tais especulações (Benjamin, 1989, p.35) – desenvolveram-se a potência da cultura parisiense do século XIX. De ambos os lados dessas vias se estendem os mais elegantes estabelecimentos comerciais, de modo que uma de tais passagens é como uma cidade, um mundo em miniatura. Nesse mundo o flâneur está em casa (Benjamin, 1989, p.35). Benjamin via as galerias como um meio-termo entre a rua e o interior da casa, elas transformavam os bulevares em interiores. O flaneur, este tipo urbano que se apresenta como observador, analista ou detetive sente-se tão a vontade nas ruas quanto o burguês entre quatro paredes; os letreiros, muros, bancas de jornais e os terraços dos cafés são absolutamente estimulantes. Benjamin reconheceu o heroísmo no espetáculo da vida mundana e das milhares de existências desregradas que habitam os subterrâneos de uma cidade grande (Benjamin, 1989, p.77). Enquanto os burgueses se entregam ao sono em seus confortáveis aposentos, os poetas modernos que o encantaram encontram seu assunto heróico no lixo da sociedade e nas ruas (Benjamin, 1989, p.78). A cultura da Modernidade atrelase, assim, a vida nas ruas, ao cotidiano das metrópoles, ao movimento das multidões, as imagens da cidade, aos personagens que ali trafegam. Atrelado a esse cotidiano das ruas metropolitanas, o emergente campo da comunicação visual passa a desempenhar papel crucial na vida política dos países europeus, especialmente durante a segunda guerra mundial. Os muros ficavam cobertos de pôsteres, as ruas de folhetos e faixas, cartazes proliferavam em comícios e demonstrações (Hollis, 2000, p.109). Eram ilustrações depreciativas dos inimigos, imagens heróicas dos membros do partido, soldados, trabalhadores e camponeses; as imagens dos líderes políticos transformavam-se em ícones. Alguns pôsteres mantinham ainda viva a tradição da ilustração desenhada e pintada, mas o uso da fotografia começava a proporcionar inovações significativas, provando ser um meio bem mais eficiente de protesto contra as atrocidades da guerra do que as ilustrações caricaturadas da primeira guerra mundial (Hollis, 2000, p.110). Estes pôsteres falavam uma linguagem direta, davam seu recado rapidamente e sem dúvidas de interpretação. 125
A década de 1960 imprimiu novos ares à comunicação visual dos espaços públicos: as reações a guerra do Vietnã, os protestos estudantis, a revolução cubana, a música pop e o uso de drogas alucinógenas começaram a ser expressos por meio de linguagem gráfica. No final desta década os estudantes e os grupos de protesto passaram a dominar técnicas de impressão e a utilizar as ruas e seus muros para externar sua visão política. Seus pôsteres demonstravam toda a intensidade e ardor dos compromissos políticos e ideológicos. Durante a revolta estudantil de 1968, em Paris, os pôsteres eram produzidos no Atelier Populaire pelos estudantes da Escola de Belas Artes; a serigrafia era a principal técnica e os slogans inspiravamse nos gritos de guerra de enfrentamento com a polícia nas ruas; as mensagens eram inequívocas e a produção feita em regime de urgência e colaboração (Hollis, 2000). Underground passa a ser um termo de expressão da atitude de oposição ao establishment de muitos jovens de camadas médias que adotavam valores culturais e posições políticas alternativas aos padrões sociais convencionais. A cultura do faça-você-mesmo passa a produzir revistas e periódicos caracterizados pela má qualidade da impressão off-set em papel barato; as impressões de textos sobre imagens coloridas tinham como objetivo garantir que ninguém acima dos trinta os lesse; este estilo, cuja informalidade alimentava a idéia de que não era preciso ter nenhuma qualificação especial para produzir uma revista, espalhou-se rapidamente (Hollis, 2000, p.197). Nos anos 1970 o estilo punk nasce nas ruas de Londres levando às últimas conseqüências o do-it-yourself e interferindo definitivamente no vocabulário gráfico da comunicação visual subseqüente: ...os fanzines punks usavam imagens e letras arrancadas de jornais populares, textos escritos à mão e a máquina de escrever, imagens prontas, tudo colado junto para produzir um original que era reproduzido por meio de litografia ou fotocópia. O dadaísmo fora contra a arte; o punk era antidesign (Hollis, 2000, p.203).
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O movimento punk explodiu com sua música ágil e autêntica, em estreita sintonia com as experiências juvenis nas ruas. Punk, na língua inglesa, significa madeira podre, mas também pode significar algo sem valor ou pessoas desqualificadas. Punk: Inepto, podre, sujo e insano (Carmo, 2003, p.125). Seus trajes – cabelos estilo moicano, coturnos pesados, couro, correntes, alfinetes, tatuagens – passaram a ter o mesmo significado anárquico das letras das músicas. Inicialmente visto como efêmero e localizado, o movimento punk repercutiu mais que o suposto, deixando seus desdobramentos evidentes nas décadas subseqüentes. O lema não há futuro tornou-se palavra de ordem de toda uma geração; eram jovens que, insatisfeitos, buscavam a mudança por meio das críticas e furiosos ataques contra uma sociedade considerada estagnada, consumista e atolada na apatia. A partir dos anos 1980 observa-se o movimento Hip Hop tomar conta das ruas e do cotidiano juvenil; DJ’s começaram a atuar em festas nas ruas e praças, dando um novo sentido a estes espaços públicos, transformando-os em centros comunitários (Carmo, 2003, p.179). O termo Hip Hop engloba todas as manifestações de rua: dos rappers aos DJ’s, dos dançarinos de break aos graffiteiros. Não é só música, é uma cultura de rua (Carmo, 2003, p.176). Exímio exemplar das culturas marginais, o Hip Hop surge como uma voz vinda das periferias, repleta de indignação e desejos de conscientização das comunidades negras ou empobrecidas. A estética desse movimento cultural – músicas, imagens, danças, cores, símbolos, tipografias – reflete o cotidiano das ruas e suas linguagens, rituais e vestuários, a vida dos grupos de bairro, a selva urbana e suas contradições, o orgulho de ser negro e da periferia. A moda Hip Hop foi marcante desde o início: agasalhos esportivos, blusões coloridos e, depois, os jeans folgados, bonés, grossos colares dourados e tênis de grife, propositalmente desamarrados, passaram a ser a marca registrada dessa moda saída das ruas. O graffiti é a expressão gráfica do Hip Hop; as comunidades negras de Nova York começam a exibir uma profusão de rabiscos indicando/identificando caligrafias de indivíduos e gangues; aos poucos os contornos foram ficando mais largos e coloridos na 127
tentativa de diferenciação e exclusividade4. Aos poucos essa cultura de rua vai construindo um profícuo diálogo com as artes gráficas: identificados com essa arte juvenil, os rappers passaram a ilustrar capas de disco, folhetos de divulgação de festa, encartes de disco, videoclipes e jaquetas pintadas por graffiteiros (Carmo, 2003, 180); as linguagens gráficas do Hip Hop invadiram o campo da comunicação visual e do audiovisual. Assim, na segunda metade do século XX os jovens tornaramse protagonistas das culturas de rua e, com eles, suas experiências e vivências metropolitanas transformaram-se em estéticas que, se inicialmente caracterizavam-se pelo tom alternativo e de pequenos grupos, aos poucos vão sendo absorvidas e legitimadas pelo campo da comunicação visual.
Narrativas da cidade: configurando um protocolo metodológico As intervenções urbanas juvenis podem ser pensadas a partir do prisma das culturas de rua e suas implicações estéticas. Para isso, pode-se partir de uma concepção ampla de cultura que envolve as formas e práticas culturais que organizam a vida cotidiana (Williams, 1992; Martín-Barbero, 1997), a observação e análise da experiência, dos modos de vida e dos cenários urbanos, questionando a hierarquização e cisão entre diferentes formas culturais: cultura popular, erudita e de massa. Cultura é arena tanto do consentimento quanto da resistência; é enfrentamento entre modos de vida diversos baseados na existência de relações de poder no campo das práticas simbólicas (Gramsci, 1986). Isso quer dizer que é preciso observar as articulações históricas estruturais de produção de significados e
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O Hip Hop é apenas um dos elementos de constituição do graffiti contemporâneo, mas existem outros não abordados neste artigo. Um breve inventario das trajetórias do graffiti e da pixação já foi considerado em OLIVEIRA, R.C.A. “Lendo a metrópole comunicacional: culturas juvenis, estéticas e práticas políticas”. Revista Diálogos de la comunicacion, http:/ /www.dialogosfelafacs.net/75/articulos/pdf/ 75ritaalves.pdf
relações e desenvolver um olhar que pretenda recuperar a história para entender o presente. Estas culturas de rua adquirem, assim, status de produtos culturais como elementos da vida cotidiana. As imagens, sons, linguagens, os objetos e ambientes do dia-a-dia podem – e devem – ser encarados a partir do contexto cultural de sua produção/apropriação. Isso envolve a complexa teia de significados produzidos e compartilhados pelos grupos de pertencimento e os agentes e sujeitos envolvidos nestes sofisticados processos que articulam o campo da comunicação visual e a dimensão estética da vida diária de qualquer ser humano. Desde os primórdios da humanidade essa dimensão estética cotidiana envolve ricos universos simbólicos que retratam a história visual de uma sociedade, documentam situações, estilos de vida, atores sociais e rituais; ou seja, o design gráfico insere-se no rol das questões relativas à compreensão da cultura material de uma época ou de um povo. O design pode ser tomado como uma amostra de cultura, muito especial (Geertz, 1989) que surge como um registro visual, produto de uma experiência humana coletiva. As ações culturais juvenis provocam a emergência de novos códigos comunicativos que demandam o aprimoramento teórico e a construção de novos protocolos metodológicos de análise e interpretação. A investigação “Design, metrópole e culturas juvenis”5 tem enfrentado os impasses metodológicos colocados pela complexidade de uma cidade nas dimensões de São Paulo e pela diversidade das práticas e apropriações juvenis nesta metrópole coberta de graffitis e pixações por toda parte. O protocolo metodológico elaborado propõe que se parta da metrópole e da vida dos jovens na cidade para a compreensão das intervenções urbanas juvenis. E Canclini é acionado, mais uma vez, para reforçar a importância da construção
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Desenvolvida, em convênio com a PUCSP, no Centro Universitário Senac (SP) pelas pesquisadoras Rita de Cássia Alves Oliveira, Andréa Almeida de Souza e Silvia Helena Simões Borelli; participam também os bolsistas de Iniciação Cientifica Beatriz Serranoni, Adriano Grant, Rodrigo Bruno e Ivan Ordonha.
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de um protocolo metodológico que seja capaz de dar conta da interseção entre fatos e discursos: ...[que] as práticas múltiplas que transformam a cidade sejam levadas em conta: as práticas “reais”, dispersas, registradas pelas enquete ou trabalhos de campo, e os discursos que as reunificam ou segregam no imaginário urbano [...] relatos de informantes, crônicas periódicas e literárias, fotos, o que dizem o rádio, a televisão e a música que narram nossos passos urbanos [...] discursos literários, artísticos e de comunicação de massa, além de serem documentos do imaginário compensatório, servem para registrar os dramas da cidade, do que nela se perde e se transforma (Canclini, 1995, p.90 e p.96).
Desvendar como a cidade é imaginada por seus habitantes e perguntar-se sobre qual o sentido que eles atribuem à cidade em que vivem, demanda: ... indagar como os sujeitos representam para si mesmos os atos com os quais habitam essas estruturas e as suas experiências subjetivas. O sentido da cidade se constitui no que a cidade dá e no que não dá, no que os sujeitos podem fazer com sua vida em meio às determinações do habitat e o que imaginam sobre si e sobre os outros para suturar as falhas, as faltas, os desenganos com que as estruturas e interações urbanas respondem a suas necessidades e desejos (Canclini, 1995, p.91).
O ponto de partida desta prática de pesquisa encontra-se na investigação “Jovens urbanos: concepções de vida e morte, experimentação da violência e consumo cultural” 6 (Borelli, Rocha, 6
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Equipe de pesquisadores: Silvia Helena Simões Borelli, Rosamaria Luiza de Melo Rocha, Gislene Silva, Josimey Costa da Silva, Rita de Cássia Alves Oliveira e Rosana de Lima Soares.
Silva, Oliveira e Soares, 2003) desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entre 2001 e 2003. O objetivo principal desse trabalho foi captar as noções de vida e morte articuladas à experimentação da violência e à complexa rede de apropriações simbólicas. A concepção de uma juventude nômade, ao mesmo tempo universal e particular (Morin, 1987) mostrou-se fundamental para a compreensão das dinâmicas de apropriação territorial e sensorial, assim como para captar as aproximações entre universos sociais distintos da amostragem. Foram selecionados jovens entre 15 e 24 anos, moradores da cidade de São Paulo, em bairros de contraste e exclusão, das zonas sul (Jardim Ângela, Cidade Dutra, Capão Redondo) e oeste (Vila Madalena, Pinheiros, Perdizes e Lapa). Essa circunscrição do espaço de realização da pesquisa decorreu, por sua vez, de investigação anterior realizada também na PUCSP (Marciglia, Pavez e Oliveira, 2002); nesta última, foi fundamental como resultado a construção de uma cartografia da mortalidade juvenil do município de São Paulo que apresentava dois nítidos bolsões relativos a duas realidades socialmente díspares: a zona sul, região periférica, com altos índices de violência e mortalidade juvenil, poucas áreas de lazer e transporte público deficitário; e a zona oeste, área próxima ao centro da cidade, com uma juventude dotada de alto capital cultural, baixos índices de mortalidade juvenil, boa rede de transporte público e diferenciadas opções de lazer, inclusive públicos. No primeiro segmento, zona sul, a violência juvenil envolve as mortes anunciadas (Marciglia, Pavez e Oliveira, 2002), aquelas diretamente relacionadas às condições de vida do entorno e que podem, a qualquer momento, atingir os jovens. A zona oeste, a das mortes inesperadas, apresenta índices de mortalidade juvenil motivados principalmente por acidentes de trânsito, assaltos ou roubos de carros. Assim, as condições de vida juvenis transformaram-se no recorte territorial fundante da pesquisa. Parte-se, portanto, da cidade e seus contrastes do ponto de vista da infra-estrutura urbana, assim como da forma de ocupação e dos cotidianos juvenis, para se entender os códigos comunicacionais daí derivados. Deste ponto de partida é possível especificar a seleção das amostras territoriais baseadas, 131
ainda, em um repertório conceitual sobre a metrópole e suas formas de apropriação pelos coletivos juvenis. Pensar as metrópoles contemporâneas implica em considerar seus fluxos (Augé, 1994; Martins-Barbero, 1997). Os fluxos de pessoas, veículos e informações caracterizam a sociabilidade e a ocupação dos espaços públicos. Os jovens inserem-se nestes fluxos e têm uma relação particular com as ruas e com a cidade. Nas cidades modernas há muitas maneiras de ser jovem: a metrópole apresentase como panorama sumamente variado e móbil, que abarca seus comportamentos, referências identitárias, linguagens e formas de sociabilidade (Margulis e Urresti, 1998, p.3). A excursão pelas ruas organiza o ciclo da vida e articula a percepção do espaço urbano e do tempo cotidiano dos jovens (Feixa, 1998). Estão em mobilidade constante: escolhem onde estar e aonde ir; invadem bairros e territórios sempre em busca de novidades, do desconhecido e do desafio. As vias de fluxo são importantes, especialmente quando se fala em pixação. Dotadas de uma lógica publicitária, quanto melhor o local de sua aplicação mais resultados positivos trará para quem a produziu. Os melhores locais para a pixação são sempre as avenidas de intensa movimentação de ônibus, as linhas de trem e o centro da cidade. São nas vias de grande fluxo que as intervenções urbanas ganham a visibilidade e o reconhecimento desejados pelos jovens envolvidos com graffiti, pixação e a colagem de stickers e lambe-lambes. Os territórios de apropriação juvenil são também indispensáveis nas investigações sobre as intervenções urbanas. Nas últimas décadas do século XX, todas as grandes cidades passam a ter regiões inteiras ocupadas por jovens que as transformam em espaços de lazer e de vida noturna. Nesses bairros, ruas e esquinas de ocupação juvenil eles sentem que podem desfrutar de certa liberdade; são locais de encontro de amplos grupos de adolescentes e estudantes que marcam a recuperação festiva da rua como lugar de articulação das relações sociais; são lugares de interação imediata. As esquinas tornam-se espaços privados dos grupos juvenis: ali se encontram, apropriam-se do território, constroem sua identidade; deixam suas marcas, explicitam suas idéias, exercitam suas sensibilidades, ocupam a cidade. Os muros, tapumes, postes, placas de sinalizações 132
públicas e caixas de telefonia são, para os jovens, lugares onde os grupos inscrevem suas marcas e batizam o território; são parte importante de suas práticas territoriais. Ao se apropriarem simbolicamente dos espaços urbanos, esses jovens os transformam dando a eles novo status no cotidiano da metrópole: de lugares de passagem e pouco propícios às construções identitárias e às relações grupais, passam a ser territórios recheados de afetividades, memórias, relações e identidades (Augé, 1994). Existem ainda os lugares históricos da pixação e do graffiti; são espaços não exatamente de fluxo ou de permanência juvenil, mas que aos poucos, com o passar dos anos e com as práticas juvenis foram transformando-se em territórios reconhecidos e apropriados pelos jovens para as suas intervenções. Escadarias, becos e paredes de algumas fábricas transformam-se em suportes de intensos diálogos gráficos que atravessam os anos, resistindo às rápidas transformações da metrópole que marcam a efemeridade das intervenções. Baseada nestas categorias analíticas é possível realizar os registros fotográficos que comporão o banco de imagens que proporcionará o tempo necessário de análise deste objeto, sempre volátil e efêmero que cobre a superfície das metrópoles. A fotografia paralisa o tempo, congela o instante e eterniza a paisagem em constante transformação. A fotografia revela, segundo Benjamin (1985), o inconsciente ótico que permite a explicitação de elementos invisíveis ao olho humano. O resultado é um banco de dados histórico que permite a comparação no tempo e no espaço, aproximando épocas e cidades por meio das intervenções urbanas transformadas em registros fotográficos. Criam-se assim bases de dados imagéticos e categorias de análise que possam oferecer respostas as questões colocadas pela investigação. É possível decifrar o que dizem os jovens: quais seus imaginários, visões de mundo, condições de vida, pertencimentos e identidades? Também se pode identificar como eles dizem estas coisas numa abertura à análise formal das intervenções: quais as linguagens, as técnicas e as referências gráficas empregadas? Por fim, como ocupam a cidade? Quais os suportes utilizados? Como se dá a apropriação dos equipamentos urbanos e a invasão dos espaços públicos e privados? 133
Estas e outras perguntas transformam-se em novos pontos de partida para novas etapas de uma investigação que privilegia a articulação entre a cidade e as culturas juvenis; uma investigação que se apropria de uma noção de cidade múltipla, disseminada, disjuntiva, mas sempre plena de moradores, passageiros e transeuntes, capazes de transformá-la, por meio de apropriações e ações intencionais, em novos lugares, em lugares para si.
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CIDADES E TECNOLOGIA
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A CIDADE COMO REDE TECNOLÓGICA
Juremir Machado da Silva Toda cidade é uma rede. Em maior ou menos grau. Uma cidade razoavelmente constituída é feita de rede elétrica, rede de abastecimento de água, rede de esgotos, rede escolar, rede viária, rede de telefone, rede de mercados ou supermercados, etc. Sem contar rede política, rede social, rede cultural, rede de relacionamentos, etc. O termo cidade aparece necessariamente associado à rede e tecnologia. O problema de boa parte das cidades da rede de países pobres ainda é a deficiência de redes, não o excesso. No Brasil, mais de 50% da população ainda não têm rede de esgotos. As contradições, no entanto, proliferam e suscitam questionamentos. Em Alagoas, no povoado de Laje, município de Porto de Pedras, via-se recentemente mulheres tirando baldes de água do rio, onde crianças se banhavam e velhas lavavam roupas, diante de casas humildes coroadas com antenas parabólicas. A vida ali era quase um poema rústico: o rio de águas escuras faz uma curva junto à rodovia. Moderno, pré-moderno e tradicional se juntam num mesmo quadro de pobreza, dignidade e beleza. Homens descansam ou jogam dominó sob as árvores. Jovens cuidam das unhas nas portas das casas. Mães gritam com os filhos. Tudo se mistura, confunde e espreguiça. Logo ali, os coqueirais e o mar dão um jeito de paraíso ao que outros chamariam de rede deficiente. A cena, em certo sentido, é banal e, ao mesmo tempo, exótica. Banal para a cultura brasileira. Exótica para o turista estrangeiro ou mesmo, sob certos aspectos, para o brasileiro de outras regiões. No Brasil, até a pobreza tem sotaque regional. Visto por outro ângulo há ali uma rede fortíssima, social, tradicional, de convivência, de parentesco, de ajuda mútua, de comunicação interpessoal e solidariedade intensa. 139
Haveria nisso um paradoxo, uma espécie de lei? Quanto menos rede tecnológica mais rede social? Ou essa formulação resulta de um preconceito invertido, positivo, que consistiria em ver mais solidariedade e mais “estar-junto” onde há mais deficiência de rede institucional e tecnológica e mais imobilidade? O olhar que captou certa poesia na cena cotidiana do vilarejo à margem do rio da Laje pecaria por um etnocentrismo positivo, caso de possa falar assim? A surpresa com as antenas parabólicas viria de um choque “estético” e cultural, como se aqueles dispositivos tecnológicos estragassem o bucolismo do quadro? Ou, noutra perspectiva, mais explicitamente negativa, a surpresa viria de um aumento do exotismo pela presença de um elemento incongruente? Por que incongruente? Não raras vezes jornais brasileiros estamparam fotos de carretas de boi transportando antenas parabólicas como cristalização do paradoxo pós-moderno. O que se quer discutir com a descrição dessa cena comum? Mais do que estabelecer qualquer conclusão, certamente necessária, a intenção é produzir questões: o que é a cidade? Qual o papel da comunicação na cidade? O povoado citado configura a cidade num estado embrionário ou a cidade num estado decadente? O que define a cidade: uma determinada ocupação do espaço ou a aceleração do tempo? Não seriam as antenas do povoado uma marca da supremacia do tempo da comunicação, da rede, da tecnologia, sobre o espaço mais resistente à mudança?
Espaço e tempo Jorge Luís Borges, em “A penúltima versão da realidade” (1976, p.200) considera inadequada a oposição entre espaço e tempo. Numa frase dessas que caracterizam o seu estilo paradoxal e vertiginoso, ele especula sobre a possibilidade de que acumular espaço não seja o contrário de acumular tempo. Alguém poderá objetar que Borges era um escritor autodidata e que as suas observações não podem ser tomadas como discursos de autoridade. Neste caso, bem entendido, seria necessário admitir a validade dos discursos de autoridades e, mais do que tudo, embora seja um desdobramento lógico dessa postura, desprezar o argumento em si. No mais das 140
vezes, caso seja possível enunciar uma hipótese radical ou sem caráter científico, as citações aparecem para legitimar um argumento fraco com uma autoridade fraca e arrogante, o que imediatamente é tomado como sinal de cientificidade e de irrefutabilidade do referido argumento, pelo que a idéia de ciência é duas vezes pisoteada num mesmo procedimento de validação autoral simulado. Borges parece querer dizer simplesmente que tempo e distância são duas formas equivalentes de encurtar caminho. Se nalgum momento foi necessário andar muito para conquistar continentes, numa etapa mecânica da temporalidade, hoje se pode conquistar muito tempo com pouca movimentação. Citando Spencer, Borges fala da audição e do olfato como sentidos que prescindem do espaço. Esse dado faz pensar no vilarejo à beira do rio, onde sons e cheiros pareciam ter um tempo determinado ou, ao contrário, emanar de uma intemporalidade poética – outra maneira, como se pode facilmente perceber, de nomear o tempo do outro, um tempo que nos é desconhecido e que, portanto, só pode pertencer a outro espaço. Não seria a cidade justamente um tempo da comunicação, situado num espaço fora do nosso tempo imediato, feito de cheiros e sons que nos são estranhos e que por isso mesmo nos alertam para o nosso tempo e para o nosso espaço? Não é difícil imaginar que um espírito atento detecte contradições, imprecisões e defeitos de raciocínio em tudo aquilo que foi dito até agora, a começar pelo fato de se estar falando de cidade a partir de um povoado. Em seguida, valeria criticar a escolha da noção de rede tecnológica como metáfora de cidade aplicada a um vilarejo deficiente de certas redes, mas rico em outras. Sob pena de valorizar em demasia um elemento aleatório, pode-se arriscar que as antenas parabólicas do povoado simbolizam uma rede de comunicação que se concretiza sem elas como valor máximo daquela comunidade. As antenas diminuem o tempo ou o espaço? A resposta mais cômoda, e talvez correta, é: os dois. Uma resposta menos cuidadosa poderá, no entanto, ser mais prospectiva: e se as antenas diminuíssem o tempo para conversar conservar irredutível o espaço? Borges chega a especular sobre uma humanidade hipotética que só pudesse contar com a audição e o olfato. Segundo ele, a 141
história continuaria e a vida seria tão apaixonante e cheia de acontecimentos como a nossa. Mas essa humanidade estaria fora do espaço. Os sons e os cheiros, indica ele com seus autores preferidos, não têm esquinas. Sem dúvida, essa humanidade teria o seu tempo, faria o seu tempo, pertenceria a uma temporalidade e comunicaria pelas suas redes tecnológicas a sua experiência fantástica. Mas, aos poucos, caso seja possível discordar de Borges, esse tempo seria exclusivamente espaço. Uma cidade é um povoado cujo espaço resiste ao tempo e que, mesmo exposta às redes de comunicação mais imediatas, permanece fora do tempo presente como espaço possível de um tempo intemporal, ou seja, um tempo que nos precede, não necessariamente por ter vindo antes, mas por a ele termos vindo depois. As parabólicas do povoado alagoano mexem no tempo e até no ambiente, mas não no espaço como rede imediata. Talvez, evidentemente, seja apenas uma questão de tempo.
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FLUXOS DE NOTÍCIAS E CIDADES: REDES DIGITAIS, URBANIDADE E O LUGAR DO JORNAL
José Afonso da Silva Junior O jornal diário Um senhor toma o bonde depois de comprar o jornal e o por debaixo do braço. Meia hora mais tarde desce com o mesmo jornal debaixo do mesmo braço. Mas já não é o mesmo jornal, agora é um monte de folhas impressas que o senhor abandona em um banco da praça. Apenas fica só no banco, o monte de folhas impressas se converte outra vez em um jornal, até que um rapaz o vê, o lê e o deixa converter-se em um monte de folhas impressas. Apenas fica só no banco, o monte de folhas impressas se converte outra vez em um jornal, até que uma anciã o encontra, o lê e o deixa converter-se em um monte de folhas impressas. Logo o leva para sua casa e no caminho o usa para empacotar meio quilo de acelgas, que é para que servem os jornais depois destas excitantes metamorfoses. Manual de cronopios. Julio Cortazar.
Delimitação e apresentação Apesar de serem duas áreas de interesse estabilizado no campo da comunicação e da cultura, o jornalismo e as diferentes configurações da urbanidade permanecem com pouca intersecção entre si no que toca a análises ou estudos de como se vinculam. Esse descompasso, todavia, esconde as ricas possibilidades de compreensão das mútuas interferências. Em outras palavras, como o fenômeno da vida nas cidades alimenta o fluxo de notícias, ao passo que, na contrapartida, como a representação noticiosa ajuda a 143
formação de uma imagem social da cidade como território de transformações. Ao abordar o problema das relações simbióticas ou parasitárias (afinal, o jornalismo também é a separação do joio do trigo: para ficar com o joio, é claro!) entre as esferas temáticas do jornalismo e da cidade, a primeira constatação é que temos menos um cenário de rupturas do que uma continuidade histórica. A consolidação dos jornais como forma simbólica cognoscível desde o seu surgimento, passando por suas metamorfoses e desembocando nas intensas cadeias de fluxos digitais da contemporaneidade representa uma seqüência de eventos que encontra, e sempre encontrou, condições para o seu assentamento nas sociedades complexas urbanas.
A cidade e o jornal Mesmo compreendendo os processos atrelados correlatamente ao jornal na contemporaneidade como sendo um estado de coisas vinculado a modificações e a emergência de um jornalismo com características qualitativas e quantitativas bem detectáveis (as notícias adquiriram o caráter da onipresença – de quem faz e de quem lê ou assiste – da multimídia convergente, da instantaneidade e da interatividade – técnica e social – da diversidade de oferta e do consumo de informação em cenários pós-massivos (Lemos, 2007) esse horizonte não pode ser descolado dos fluxos permitidos pelas cidades. Nesse sentido podemos propor dois prismas: o primeiro relativo à esfera do jornalismo e como ele encontra na cidade todo um sistema de circulação da notícia; e outro prisma, como a cidade vê no jornalismo uma atividade que referencia suas dinâmicas. No primeiro caso temos o próprio espaço das cidades como delimitadores da ação do jornal em pelo menos quatro frentes mais sensíveis: a do alcance dos jornais, no sentido da direta dependência de redes tecnológicas, infra-estruturais e de relações sociais para construção do seu repertório de eventos; a do interesse do público, seja em perfil massificado ou diversificado e sua consoante capacidade de assimilar e consumir notícias; da oferta da informação noticiosa 144
passível de ser transformada em notícia, posto que a cidade se constitui num caldeirão dinâmico de fatos e, finalmente, do sistema de financiamento publicitário e dos subsistemas de ordem editorial, política e comercial a ele atrelado. No segundo caso, numa perspectiva histórica, podemos perceber que desde o surgimento da primeira imprensa de notícias de caráter mais regular, por volta do século XVII, a principal vinculação que se impõe para o jornalismo diante da complexidade das cidades é refletir os fluxos de notícias entre esferas que delimitam o funcionamento da cidade: o comércio, o poder político, o local de vida dos cidadãos (Lemos, 2001). Mais que isso, os jornais de então estabelecem vínculos de interdependência entre epicentros noticiosos, o que permite o reconhecimento e organização de centros urbanos de acordo com a realidade de outros centros (Sodré, 1998). Vide, por exemplo, ainda no século XIX, o surgimento das agências de notícias no contexto da modernidade, atuando, num certo sentido, no reforço da cadeia de interdependência entre esses centros urbanos, alargando e levando os limites simbólicos da cidade e sua área de influência para dimensões mais amplas que seus limites geográficos (Silva Jr., 2006). Ainda na encenação da modernidade do século XIX, podemos detectar um jornal que está situado em um momento de passagem. Há um choque na forma do jornal entre uma conformação doutrinária, partidarista e elitista, com as primeiras funções sociais da imprensa, como a imparcialidade, a objetividade e a credibilidade. Esse atrito positivo, diga-se de passagem, pode ser entendido atualmente como um vigoroso sinal do espírito do tempo daquela época, guiado por um racionalismo, pelo cientificismo, enfim, pela mudança da autoridade epistemológica da sociedade como um todo, e que, tinha na cidade seu principal caldeirão de efeversência. É nesse contexto também que a cidade surge como um território de assuntos para o jornalismo. Sendo progressivamente menos opinativos e doutrinários, os jornais encontram na factualidade cotidiana combustível para alimentar de modo regular as suas edições, ao passo que, apostando no estreitamento entre público leitor e proximidade dos eventos, conseguir-se-ia estabelecer uma 145
vinculação e sentimento de pertencimento tanto do jornal no que diz a uma comunidade ou sociedade específica; como do público, ao encontrar no jornal do dia os relatos vivenciados da dinâmica da cidade (Machado, 1998). O que temos, dado nesse quadro de interdependência, não é somente uma função-jornal social, mas um diálogo entre dinâmicas da urbanidade e do jornal que garante, ao lado de outros fatores, condições mais propícias para a circulação da notícia e proliferação do jornal como forma simbólica da atualidade, do tempo presente, da revelação pública dos eventos em edições periódicas e regulares (Franciscato, 2005). Ao aparecimento, senão inexorável, mas certamente inconfundível, de uma forma-jornal que está atada ao homem moderno como a oração matinal está ligada ao homem da idade média. Esses “outros fatores” ai situados podem ser compreendidos como funções mais gerais, que, contudo, operam conjuntamente na ativação de dispositivos para o assentamento dos jornais como forma simbólica cognoscível e socialmente aceita. São eles: – O estabelecimento de um território nacional, que delimita a área de responsabilidade de cobertura de um periódico, segundo padrões específicos dados, como: língua, ação de um estado institucional e de direito, ações políticas, econômicas e sociais, e claro, a ocorrência de identidade nacional-cultural. Este também é um delimitador do alcance do jornal, compreendido em um sentido duplo. Primeiro, na capacidade, de acordo com esse território físico, ser capaz de estabelecer um território simbólico, ou seja, de alcance dos conteúdos, das notícias. Segundo, de modo inversamente e diretamente proporcional a esta operação, a conseguir consolidar uma rede de apuração que é consoante ao seu alcance e raio de influência. – A existência de uma estrutura para distribuição (na época: estradas, ferrovias) desses periódicos, além do interesse do contato do cidadão dos centros mais distantes com as comunicações oficiais, as questões comerciais e de caráter político nacional. Nesse sentido, os jornais deparam-se com 146
as primeiras cadeias de fluxo orientadas pela regularidade, periodicidade e consumo das edições. Isto, a seu encargo, cria uma sincronização de duas configurações de tempo, o tempo das edições e o tempo dos eventos, ajustando-os e estabelecendo cadeias de interdependência. – O terceiro fator, nascido em certo sentido do desdobramento desses dois últimos, é que a ascensão burguesa e a expansão do capital comercial, ocorridos nessa época, permitiram também que se adquirissem meios tecnológicos. Isso foi, de forma central, responsável pelo povoamento de oficinas de arte gráfica e, posteriormente, jornais. De certo modo o jornal se profissionaliza, torna-se negócio, ao passo que demanda de modo imediato a existência de mão de obra para sua produção. Esse fenômeno, coloca a cidade como condição necessária, porém não suficiente, do sistema de produção de material editorial e jornalístico (Sodré, 1998, p.9). É esta mesma necessidade de produção que aloca na cidade as condições para a feitura do jornal: matérias primas, redes de distribuição e mão de obra. Esta última, ao observarmos o contexto do crescimento das cidades, vai se constituir também na ampliação do público leitor, através de fenômenos como os penny press. – Por fim, em meados do século XIX, a crescente revolução do maquinário industrial chega à imprensa. Colocando definitivamente os jornais em uma escala industrial de produção e distribuição. (ao menos até o surgimento das tecnologias digitais e de rede, em fins do século XX). Nesse sentido, de modo complementar, o parque industrial necessário ao jornal se sobrepõe aos outros três fatores, tanto por ser parte do mesmo fenômeno mais geral – a modernidade – como por ser uma condição necessária a formatação de uma forma simbólica de massa. Prosseguindo, a complexidade do quadro urbano e comunicacional que envolve a relação dos jornais com a cidade conforme estamos trabalhando nesse viés, vai contribuir não somente para a 147
consolidação de formas culturais como o jornal, tal como o conhecemos na contemporaneidade, mas também ativa os processos da própria constituição do profissional do jornal. Em breves termos, o que podemos compreender como jornalismo se constitui em uma dinâmica complexa nas sociedades contemporâneas. Essa articulação pode ser observada a partir de três patamares que se combinam, e têm seus cenários justapostos ao âmbito urbano. Em primeiro lugar, é um conjunto de técnicas, métodos, procedimentos e gramáticas profissionais, voltadas para a apuração, o tratamento e a circulação da notícia. Em segundo lugar, o jornalismo, também constitui-se em um fenômeno social arraigado no tecido das sociedades complexas (Guerra, 2002). Finalmente, o jornalismo é um amplo leque de formas culturais, baseadas em diferentes suportes. Nesse último aspecto, percebemos que as diferentes formatações do que se compreende como jornalismo está em permanente troca com o campo tecnológico vigente e também com a linhagem sucessiva dos hábitos de consumo de notícias no correr do tempo. Neste último aspecto, para se compreender o desenvolvimento de formatos para os quais os conteúdos são direcionados, deve-se observar a relação dos mesmos com as tecnologias disponíveis. No caso atual, permeados por um contexto globalizado de fluxos de notícias e informações em tempo real.
Fluxo de notícias como entendimento do jornal na cidade Considerando os cenários das tecnologias digitais e em redes, engendrados sobretudo no contexto social nos últimos quinze anos, o que temos, em um esforço de atualização da problemática dos fluxos de notícia em relação à cidade, e quem em primeiro lugar, a própria relação de pertencimento a uma realidade e/ ou território, está dada de maneira mais flexível, descontínua em relação aos espaços físicos urbanos ou nacionais (Castelles, 1989, 2001). Ora, dentro desse estado de coisas, do jornalismo agora digital, parecenos razoável colocar que em um marcado de alcance ampliado para a escala do global, força o posicionamento do jornalismo em uma noção de território significativamente mais ampla. 148
É interessante observar que, no caso do jornalismo on-line, as três características mencionadas no início desse texto, como delimitadores da ação jornalística (Alcance da distribuição, capacidade de prospecção noticiosa e interesse do público) se ampliam. Essa acepção do território para o campo de ação do jornalismo on-line é central na relação do jornalismo com a cidade. O território dentro da lógica da descentralização espaço-tempo das redes digitais, direciona-se mais para a identificação de espaços simbólicos constituídos de forma compartilhada por grupos, tribos urbanas, corporações, instituições e assim por diante. Certamente o papel e função do território clássico continua atuando e condicionando, devido justamente a aspectos de centralidade estratégica no trânsito de dados na rede mundial. Porém há aspectos de descontinuidade presentes no processo. Em tempo, compreendamos as descontinuidades quando estas são comparadas ao que podemos, de modo geral, delimitar como sendo o conjunto de práticas do jornal em modelos pré-digitais. A descontinuidade mais evidente no aspecto do território vinculado ao jornal é a reconfiguração do alcance de penetração dos conteúdos on-line, devido aos aspectos de migração da identificação de público leitor de um parâmetro orientado pelo suporte (o jornal impresso, como talvez o mais acabado exemplo do jornalismo da modernidade) para uma orientação ao conteúdo. Devido à multiplicidade de dispositivos colocados pela convergência digital à disposição dos fluxos de notícias, desimporta mais e mais a forma, o modelo material, e, por sua vez, ganha relevo, a velocidade, a flexibilidade a onipresença e a portabilidade do acesso, naquilo que Lemos (2007) identifica como mídias pós-massivas (tendo, por comparação à modernidade, o telefone celular como o protótipo dessa meta-máquina de fazer tudo no campo de trânsito de mensagens e notícias). Neste sentido, se há uma descontinuidade do território, isto também se dá em paralelo a uma potencialização dos fluxos através das redes de dados. Há uma ligeira alteração da idéia de distribuição, idéia ligada a fatores industriais, como etapa complementar do processo de produção. É a circulação livre, contínua e efêmera, que 149
ao invés de uma distribuição radial, centro-periferia, assente nos modelos centralizados de comunicação massificada, propõe um constante reprocessamento da notícia, dos seus fluxos e desdobramentos na formação de uma opinião pública. Recuperando o conceito de pós-massivo, há a interação do espaço urbano com uma gama de dispositivos, criando um terceiro território, baseado no fluxo de informações selecionado e controlado individualmente, adaptado tanto aos processos massivos, como a possibilidade individualizada de consolidar o fluxo informacional de modo a produzir, processar, tratar e circular informações em várias alternativas, formatos e modulações. A necessidade de maquinário específico para a produção de jornal, parece, para esse novo público conectado por dispositivos móveis, algo tão anacrônico como uma idéia de modelo de negócios para jornais baseados em estratégias puramente industriais. Se esses dispositivos móveis carregam em sua configuração as possibilidades ubíquas e instantâneas, trazem, à reboque, também a possibilidade de multiplicidade de acesso à outra multiplicidade: a da oferta. Se a possibilidade de hipóteses como a da cauda longa apontada por Chris Anderson (2006) atinge o âmbito das notícias, através de modelos mais flexíveis e múltiplos de dispor conteúdo, como os blogs, por exemplo, podemos vincular esse fenômeno mais amplo à um direto vínculo de notícias ou informações específicas à noção de comunidades descontínuas no espaço físico, mas vinculadas nas redes digitais por similitudes e identificações sociais. É um contexto conectado pelos interesses em comum, delimitado por convivências próprias entre os interagentes e suas rotinas de convivência. Esse cenário, conforme escrito acima e, sobretudo pela facilidade – se comparada aos veículos tradicionais – de se produzir, distribuir e alcançar novos mercados de leitores. Essa é uma das chaves pelas quais o jornalismo na sua relação com a cidade digital tem seu espaço reconfigurado. A mudança que ocorre é que, a função assumida com a instituição do estado moderno de estabelecer uma certa uniformidade de discurso em função do território do estado em questão, está posta de lado. Em suma, são as lacunas de mercado, designadas por elos de identificação social, étnica, política, cultural, 150
e que, graças à possibilidade de alcance dada pelas redes, delimitam a noção de reconfiguração do jornal dentro do fluxo de dados das cidades digitais necessariamente em escalas mais amplas, ágeis e particularizadas ao interesse do leitor. Nesse sentido, se o alcance dos jornais pode ser global, pode ser também problemático que o clichê do glocal possa ser atribuído de modo generalista aos sistemas que condicionam o jornalismo. O problema é que o conceito de glocal propõe uma simplificação de uma dinâmica mais complexa, procurando através de um conceito único dar conta de uma gama excessiva de fenômenos. Se a cidade pode ser entendida como o local de estabelecimento de redes diversas como transporte, eletricidade, comunicações, e de fluxos, é razoável que com a tecnologia digital uma camada a mais se justaponha a teia de redes múltiplas: a rede de dados. É nesse sentido, que há uma camada de dados que aciona os fluxos de notícia sobre a cidade contemporânea. Nas mídias digitais, as quais o jornalismo não é exceção, a capacidade de identificação e conexão de categorias de conteúdos (os gêneros da notícia), é diretamente proporcional ao crescimento das identificações sociais que ocorrem em espaços descontínuos, que podem ser orientados pela idéia de urbanidade, mas que não são exclusivamente físicos ou geográficos. A esta complexidade podem ser adicionadas o condicionamento de fatores diversos presentes no jogo editorial dos jornais no papel de circulação dos fluxos de notícia. Os jornais consolidados institucionalmente, ao passo que continuam a ter sua importância no agendamento mais geral da sociedade, tem seu papel contrabalanceado por fontes alternativas de informação, emergidas dos próprios usuários pós massivos. É esse papel que redireciona parcelas da produção de conteúdo na contemporaneidade, antecipando horizontes de circulação, redefinindo fluxos de circulação de notícias. A relação entre o território e o jornalismo continua existindo. Porém, o território se reconfigura, gerando na outra extremidade do problema, um reposicionamento que vai da produção, ao mapeamento de novos nichos de mercado, passando pelo alcance a novos perfis de usuários e ao estabelecimento de cadeias de dependência menos unilaterais entre os órgãos situados nos epicentros capilarizadores 151
das informações de caráter global, como por exemplo, as agências de notícias (Silva Jr., 2002, 2006). Ao concentrar esforços, capitais, recursos materiais e humanos para dar conta do agendamento hegemônico, os jornais de certo modo operam uma negligência positiva: deixar o horizonte dos assuntos e eventos relativos aos nichos a um público também de nicho, não alinhado exclusivamente com a agenda dos meios massivos. Não podemos falar em oposição frontal entre esses dois modelos. Um possível ponto central, agora, é a geração de conteúdos dentro de uma perspectiva mais ampla, que gere fluxos de interesse como no jornal impresso, sem dúvida, mas em escalas de interesse diversificado. Mesmo que, para isso, as táticas adotadas pelos jornais sejam justamente o reforço de aspectos locais, não há, graças ao modelo de redes, contradição em conciliar as duas esferas extremas da idéia de território. O ponto de ação aqui é justamente desenvolver modelos de agregação dos conteúdos locais dentro da demanda de interesse que possa haver pelos mesmos públicos na outra ponta do processo de consumo da informação. Não se trata de uma anulação através de processos de oposição do tipo local ou global. Até por que as dinâmicas dos espaços físicos não evaporaram nem se transformaram em abstrações de ficção, mito da pós-urbanidade, pós-cidade, etc. Ao invés dessa assertiva contraproducente sob o ponto de vista teórico, o espaço, para o jornalismo, não se anula com a ação de oposição, e sim de coexistência, entre o global e o local, se amplifica em camadas de redes múltiplas.
Os papéis do fluxo de noticias Nos contextos atuais de produção e circulação de notícias, o fluxo pode ser compreendido como o fenômeno necessário para a circulação entre quem emite/dispõe e quem recebe/acessa um conjunto de informações. É um concepção teórica que assimila, por exemplo, a lógica polimófica de consumo de informações em redes digitais em modelos todos-todos (Lévy, 1993; Palacios, 1996), ou em perspectivas mais atuais, em torno do que se rotula de comunicação pós-massiva (Lemos, 2007). Com a comodificação do fluxo entre jornais, enquanto fonte de notícias e o consumidor de infor152
mação originam-se uma rede de múltiplas vias. Por parte dos veículos jornalísticos [...] “leva à concentração dos recursos da empresa num número relativamente pequeno de agentes, cuja posição em certas organizações ou instituições particulares valoriza ao máximo a informação que recebem” (Traquina, 2004, p.190). Também há, por parte dos leitores e consumidores deste fluxo de informações, de modo não anulador da dinâmica massiva, eixos que estão constantemente propondo novos conteúdos, interpretando novos eventos, e criando bases mais amplas de fontes de notícias. A dinâmica presente entre o público leitor e sua crescente diversificação em tempos de redes digitais e o jornalismo apresenta uma complexa relação de vínculo e dependência no estabelecimento do recorte noticioso, que se apresenta muitas vezes como uma situação naturalizada, mas não é. Nas dinâmicas do jornalismo na web, criam-se fluxos paralelos que são sinérgicos aos processos e práticas do jornalismo. Fenômenos como, por exemplo, os blogs, foto-repórteres, os telefones móveis multimídia, são, de modo direto, necessários para a compreensão de um fluxo de notícias como fonte suplementar, combinado às alternativas estabelecidas. Os potenciais avanços em escala global que permitem, ao menos teoricamente, a expansão do horizonte de circulação e fluxos de conteúdos jornalísticos, fazem parte, por sua vez, de um percurso histórico. Isso não pode ser atribuído somente à internet, embora esta, todavia, tenha permitido um incremento quantitativo e qualitativo do fluxo de conteúdos. O que temos, de certo modo, é outro momento de passagem. A cidade informatizada, conectada pessoa-a-pessoa supera a concepção de indústria midiática e seus produtos clássicos. Essa superação, no estabelecimento de fluxos de notícias, ao nosso ver, se baseia em três pontos: – Os fluxos se estabelecem também como uma camada adicional de informação, estabelecendo nichos e demandas específicas de conteúdos, ampliando as cadeias de conteúdo. – Os fluxos apontam para uma justaposição híbrida das formas simbólicas, inserindo possibilidades inéditas até então de registro dos eventos e sua conseqüente circulação. 153
– Os fluxos propõem modelos diferenciados de articulação entre jornais classicamente dispostos e as maneiras como eles se integram à cadeia de circulação com os leitores, não mais unilateral, e sim cíclica. Acreditamos que para além dessa tripla perspectiva das implicações do conceito de fluxos, as intersecções com outras esferas presentes na dinâmica urbana podem ser indicadas, de modo mais geral, como os ajustes do perfil de acesso e disponibilidade com outras formas simbólicas de conteúdo (televisão, impressos, rádio, etc.), com a interação com aspectos infra-estruturais, (redes de dados, telecomunicações, etc.), com os desdobramentos de aspectos históricos (a consolidação social da forma-jornal no horizonte social) e obviamente, a configuração de novas formas simbólicas do fazer jornalístico (blogs, jornais na web, etc). Nesse sentido, o problema ganha dimensão quando percebemos que a complexidade tende a crescer à medida que estes e outros fatores tendem a tornarem-se progressivamente mais interdependentes e interpenetrados no papel de estabelecer fluxos informativos. É o fluxo de notícias, para o caso do jornalismo, que permite perceber o transito de conteúdos através dessa complexa teia estabelecida tanto como processo, produto ou sistema atrelados ao fenômeno da urbanidade digital. Nosso pressuposto é no sentido que a configuração complexa e atual do jornalismo assentado em sistemas tecnológicos digitais possui uma própria e necessária necessidade de articulação com a rede em si e as lógicas de circulação de notícias. Prosseguindo, no horizonte de troca entre esses sistemas atuam dinâmicas conciliadoras entre os fluxos de circulação de conteúdos jornalísticos e da própria realidade tecnológica, econômica e cultural, compreendidos como subsistemas presentes nas dinâmicas contemporâneas.
Em modo de conclusão O jornal é uma mídia das ruas, dos espaços urbanos. Agora é também um veículo inserido no fluxo de dados da cidade informacional. Pois a própria cidade se transforma em tal. Mantémse a ligação do jornal com seu aspecto urbano. Muda a urbanidade, 154
muda a forma como a urbanidade se apresenta ao jornal. Muda também as ativações das matérias-primas para criar, no jornal, o sentido de pertencimento e identificação com o meio, por onde lança as suas bases de existência e propagação na cultura digital. Se durante século XX observamos a consolidação das dinâmicas de transporte e telecomunicações com o jornalismo, existentes entre o jornal e os centros urbanos, podemos também ver a partir da década de 70 do século passado (Graham e Marvin, 1996), o cenário do aprofundamento dos problemas urbanos (transporte, inchaço habitacional, crise de recursos ambientais, limites da gestão pública em função dos problemas apresentados) e em paralelo, o surgimento da micro-informática. Progressivamente, com a ampliação dos processos envolvendo a criação de redes de transmissão de dados integrados as ferramentas de telecomunicação, emerge um campo de automação crescente de setores inteiros da sociedade. Principalmente nos centros urbanos, a apropriação das tecnologias disponíveis para melhoria da produtividade, redimensionamento das rotinas e ampliação das possibilidades de mercado, aplicou-se também para o jornalismo. Em outras palavras, se a cibercidade é a cidade de sempre, recoberta com uma camada de dados em fluxo, gerando novas dinâmicas; o webjornalismo obedece à mesma lógica. Ambos podem ser identificados em suas características, porém não são os mesmos. É da “nossa circunstância de cidade informacional” (Castells, 1989) que emerge o jornalismo digital. Mais que um processo de ruptura com cadeias produtivas de caráter industrial, esse relação auto-alimentada entre cidade e jornal aponta e reforça outra ligação: a do continuidade constante de práticas jornalísticas condicionadas tanto pelo avanço da tecnologia, como do desenvolvimento urbano. O que temos de maneira mais direta a concluir no contexto desse trabalho é que não podemos dissociar as relações da cidade e do jornalismo. Podemos estabelecer um traçado por onde percebamos as dinâmicas do jornal na cidade e da cidade no jornal, ou seja, as relações do espaço-território urbano como elemento importante na constituição do recorte de temas e da existência do jornal. Ao mesmo tempo, percebemos a consolidação de comparti155
lhamento de tarefas de órgãos jornalísticos como a participação de leitores e a circulação da informação em nichos de interesse em dilatar os limites de influência dos grandes centros urbanos, na geração de informação, em relação às estruturas urbanas periféricas, ampliando os circuitos de influência existentes. O que tentamos durante esse trabalho foi de certa forma advogar no sentido do que pode ser forjado, em um conceito de cidade-jornal. Ou seja, uma constante de relação entre o espaço da cidade e sua representação na cadeia de produção jornalística, bem como as influências da costura existente entre o jornal e o desenvolvimento dos centros urbanos e, como vimos, no auxílio na formação da idéia de pertencimento e de consciência pública. Nesse sentido, o que diferencia a prática contemporânea do jornalismo dentro do estado de coisas das cibercidades, é a coexistência de mais uma camada de dados à geografia. Muito se falou e especulou-se do fim da geografia com o advento das redes digitais. Se pensarmos mais detalhadamente, esse falso argumento esteve presente no surgimento das linhas férreas, redes elétricas, de telecomunicações e agora, as redes de dados. Para os profetas do pessimismo, basta algo surgir, para, na outra ponta, algo ter que emudecer. Como já advertia Balzac, os profetas são profetas mais pelo não dizem, do que por aquilo que disseram. Nada é mais infalível do que um profeta mudo. O desafio do jornalismo dentro do conceito de cidade-jornal é justamente atualizar-se a essa nova proposição espacial. Não se trata apenas de um espaço de circulação, mas sobretudo de construção simbólica do veículo. A chave do problema, é que a cidade torna-se um espaço fluido para a produção jornalística. A Reconfiguração do território da ação e alcance jornalístico, presente nessa dinâmica é, sobre tudo, dada pela capacidade e eficiência de determinado veículo se inserir mais ou menos adequadamente dentro da lógica de mercado e oferta de conteúdos, e não mais somente pelos aspectos geográficos e, menos ainda, pelo suporte que adota. Mesmo as críticas à crescente complexidade da cidade e a impossibilidade de se dar conta de modo satisfatório, desse fenômeno através de processos de mediação, não eliminam o entendimento do jornal como elo constitutivo dessa mesma complexidade: 156
O que é visível e real no mundo é apenas aquilo que foi transferido para o papel, ou que foi mais eternizado ainda num microfilme o fita magnética. Os mexericos essenciais da metrópole não são mais os mexericos da gente que se encontra face-a-face nas encruzilhadas, à mesa de jantar, no mercado; algumas dúzias de pessoas escrevem nos jornais, uma dúzia mais a transmitir pelo rádio e televisão, proporcionam a interpretação dos acontecimentos e movimentos cotidianos com despreocupada correção profissional. Assim, até as mais espontâneas atividades humanas passam a ter uma supervisão profissional e um controle centralizado (Mumford, 1998, p.589).
O que temos a relativizar é que o problema levantado por Mumford não é um limite exclusivo da imprensa, e sim do modelo urbano em crise no qual estamos inseridos. Trata-se de uma crítica construída em contextos em que, como hoje, não havia a pluralidade de acesso e produção da informação. O que temos, entre outras coisas, é a oferta de uma quantidade que pode condicionar a qualidade do que é produzido. Trata-se, sobretudo, de desenvolver políticas que possam oferecer cenários que não sejam o da inexorabilidade, ou de usos tecnologicamente deterministas. Justamente o oposto disto, trata-se de modelos que possam estar em formação e que sejam capazes de sincronizar o papel do jornal-cidade em tempos multicrônicos, isto é, que permitem a divisão do tempo de modo a se realizar várias tarefas simultaneamente. Como também de espaços multitópicos, isto é, capazes de estabelecer condições para se produzir, tratar e fazer circular fluxos de notícias onde os espaços continuam relevantes, mas se misturam e propõem novas articulações desse mesmo espaço dessubstanciado com a prática do jornalismo, a vivência da cidade como experiência e o caldo cada vez mais complexo existente entre a contemporaneidade, as pessoas e as notícias.
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REDES URBANAS E REDES DIGITAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A GOVERNANÇA ELETRÔNICA
Suely Fragoso
Introdução O século XX marcou a transformação do Brasil num país predominantemente urbano: entre 1940 e 2000, passou-se de 31,3% para 81,2% da população brasileira vivendo em cidades (IBGE, 2007). Ao mesmo tempo, a população total do país quadruplicou e, em todo o planeta, as dinâmicas sociais tornaram-se mais complexas e mais aceleradas. Com isso, aumentaram também a escala e a intensidade dos problemas urbanos. No cenário de uma economia informacional global, o futuro de cada cidade depende de sua capacidade de tornar-se competitiva em comparação a outros pólos urbanos, nacionais e internacionais (Castells, 1999, p.406-407), o que está além das capacidades orçamentárias de boa parte dos municípios brasileiros. Embora a situação seja mais aguda nas pequenas cidades (Wzorek, Ramos e Rezende, 2005), muitas metrópoles também se encontram encalacradas em um círculo vicioso de carência de serviços públicos essenciais, baixos níveis de escolaridade, altos índices de desemprego e orçamento municipal insuficiente. Esse quadro inviabiliza a atração de investimentos do capital privado, desenhando um círculo vicioso cuja superação tende a depender de indução externa, muitas vezes a fundo perdido – ou seja, é preciso contar com o apoio financeiro do Estado. O Estado encontra-se, no entanto, diante de sua própria crise – uma crise que extrapola a esfera das cidades e remonta ao esgotamento do modelo Keynesiano de crescimento capitalista nos 159
anos 19701. Ao longo dos anos 1980 e 1990, tanto o setor produtivo quando o poder público viram-se às voltas com processos de reestruturação caracterizados por um conjunto de medidas usualmente identificado com a globalização e o neo-liberalismo (em que pesem as muitas imprecisões na aplicação desses conceitos), que Frey (2001, p. 32) sintetiza em três frentes “(1) as políticas de austeridade implementadas pelos Estados-nação, envolvendo desregulamentação, estratégias de privatização e redução de serviços públicos, (2) a retração do Estado da esfera econômica, reduzindo as possibilidades de intervenção estatal, e (3) um aumento da dependência do setor público das decisões tomadas por agentes econômicos privados”. No final da primeira década dos anos 2000, é evidente que os resultados desse programa de ajuste estrutural estão muito aquém do esperado: Depois de um quarto de século sob a agenda da ‘Reforma do Estado’, de um modo geral os resultados deixam muito a desejar. Na América Latina e na África (...) continua precária a habilidade do Estado para prover os serviços públicos básicos e os bens coletivos dos quais dependem os cidadãos comuns. Em muitos casos, a capacidade de provisão de bens coletivos está se deteriorando (Evans, 2002).
Resta uma crise de governabilidade que parece vinculada ao esgotamento da própria noção de Estado Moderno, ou pelo menos à sua tradução em um modelo de administração pública cuja estrutura é rigidamente hierarquizada e cuja operação é baseada na diferenciação clara entre as atribuições políticas e as técnicas e na normatização. Nessa configuração, as tensões entre as esferas político-administrativa e técnico-profissional favorecem uma polarização interna que acaba por alijar definitivamente a sociedade civil dos processos decisórios.
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Para um desenvolvimento do raciocínio por trás desta afirmação, ver por exemplo Castells, 1999.
A artificialidade de uma concepção que define responsabilidades e atribuições independentes e hierarquizadas ao Estado, ao corpo técnico, à iniciativa privada e à sociedade civil ignora que o espaço urbano é resultado de uma dinâmica complexa e contínua, que envolve toda sorte de atores. Já que não se pode esperar que a cidade se ajuste à rigorosa divisão e estratificação dos diferentes agentes na criação e apropriação do espaço urbano, é preciso integrá-los em um novo arranjo, mais compatível com a realidade dos processos. Vêm nessa direção as propostas de aumento da participação dos cidadãos na formulação e implementação de políticas públicas, a chamada governança democrática2. O movimento em direção a formas participativas de gestão requer alguns deslocamentos importantes na forma de conceber as estruturas governamentais. Fundamentalmente, trata-se de abandonar a idéia de que o bom exercício do poder público depende de uma estruturação centralizada e rigidamente hierarquizada, para abraçar a proposta de um formato policêntrico e horizontalizado de organização. A convivência com as tecnologias digitais de comunicação tem sido um importante facilitador da aceitação dessa mudança, já que a internet tem na estrutura de rede sua característica mais proeminente – para o senso comum, trata-se inclusive de uma rede horizontal, igualitária e essencialmente democrática, na qual todos os nós têm a mesma importância3. Por causa disso, a convivência com a internet – em especial com a web, que é sua faceta mais conhecida4 – ajuda a aceitar a viabilidade de hierarquias 2
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Apesar de diferenciar governança – a capacidade operacional do governo – de governabilidade – dimensão política da legitimidade do governo, este texto adota a perspectiva de que ambas são esferas indissociáveis para a superação da crise do Estado (Ribeiro, 2005, 75). Essa concepção é equivocada e será problematizada mais adiante, o que não compromete o valor da popularização da noção de estrutura de rede, que é a questão em pauta a esta altura do texto. A indiferenciação entre internet e web é um erro comum. Internet é o nome da rede mundial de computadores que transmitem dados uns para os outros graças a um protocolo padrão (Internet Protocol, ou IP). A internet teve início em 1969 e dá suporte a uma série de aplicações, inclusive a World
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não verticais. Mais ainda, a experiência com uma rede na qual ‘todos podem publicar o que quiserem, a qualquer momento’5 e que, apesar disso, não descamba para a entropia, ajuda a compreender o tipo de equilíbrio possível nos sistemas dinâmicos e abre caminho para a percepção da existência dos chamados processos emergentes, em que a ordem é instituída ‘de baixo para cima’. Essa dinâmica é fundamental para a superação do receio de que o aumento do número de atores que influenciam os processos decisórios da gestão urbana implique o desmanche do Estado em favor de uma multiplicidade de organizações pouco preparadas e com interesses conflitantes entre si, o que conduziria ainda mais rapidamente ao caos urbano.
Ações em Redes Digitais Sem demérito do impulso que a popularização da internet representou para a generalização da compreensão das estruturas em rede e da resiliência das organizações horizontalizadas, é preciso destacar que existem muitas discrepâncias entre a realidade da rede digital de comunicação e as características que o senso comum lhe atribui. Nem todas as características da internet – e da web – favorecem o fomento da reestruturação da gestão pública no sentido do desenvolvimento da democracia participativa. Não se justifica, portanto, a confiança, demasiadamente comum, de que a prestação de serviços públicos e a disponibilização de informações online conduzirá naturalmente ao aprimoramento dos processos democráticos e ao incremento da participação da sociedade civil na gestão pública. Este texto se propõe a discutir como e até que ponto as redes digitais de comunicação podem ajudar no processo de reestruturação do Estado e apoiar o incremento da participação popu-
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Wide Web, ou simplesmente web, que foi criada em 1989 e é um conjunto de documentos interconectados por hiperlinks e identificados por endereços denominados Uniform Resource Locators, ou URLs. Também essa presunção será problematizada ao longo do texto.
lar nos processos de decisão. Para tanto, as estratégias típicas da utilização da internet para o fomento da democracia participativa foram organizadas conforme três patamares evolutivos: (a) prestação de serviços, (b) disponibilização de informação e (c) fomento da cidadania. Grosso modo, é possível associar esses níveis de ação às noções de governo eletrônico, democracia eletrônica e governança eletrônica, respectivamente6. Ao confrontar as necessidades de cada etapa com a configuração técnica, estrutural e aspectos contextuais da internet, espera-se perceber se e como as características da rede digital operam contra e a favor da implementação das soluções pretendidas.
2.1. Governo Eletrônico Aqui se denomina ‘governo eletrônico’ à prestação de serviços públicos online. Trata-se de um conjunto de estratégias que pretendem ampliar o acesso e tornar mais eficientes os serviços públicos e, ao mesmo tempo, reduzir os custos operacionais da máquina estatal. Em que pese o inegável mérito da intenção de disponibilizar serviços de melhor qualidade com menor custo, esse nível de ação não implica mudanças estruturais nos modos de governar: a menos que haja desdobramentos, é o mesmo governo, em versão online. Algumas características técnicas da internet são muito favoráveis ao governo eletrônico: antes de mais nada, trata-se de
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A adoção dessas expressões com esses significados específicos é propensa a causar polêmica. No conjunto, a literatura sugere uma progressão afinada com essas descrições, de modo que o ‘governo eletrônico’ é tipicamente o primeiro passo para a ‘democracia eletrônica’, e ambos são condições fundamentais – mas não suficientes – para viabilizar a ‘governança eletrônica’. Em geral, os autores preferem enfatizar as relações entre os três conceitos em detrimento de sua diferenciação (por exemplo Ruediger, 2003 e Wzorek, Ramos e Rezende, 2005). Mesmo enquanto estratégia didática, como é o caso neste texto, essas categorias devem ser pensadas em gradiente, já que é praticamente impossível diferenciar os limites de cada uma em relação às demais.
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um banco de dados infinitamente extensível, de acesso fácil e imediato e permanentemente disponível. O grande diferencial em relação às mídias anteriores é a combinação de acesso imediato e disponibilidade contínua. Separadamente, o acesso instantâneo (dito ‘em tempo real’) corresponde à transmissão ‘ao vivo’ que já era praticada no rádio e na TV. A diferença é que naqueles meios é o emissor quem determina quando a informação é disponibilizada (‘vai ao ar’), enquanto na web o material permanece sempre disponível, para ser acessado quando convenha7. É evidente que esse modo de distribuição só é possível graças à interatividade, ou seja, à existência de um canal de dupla mão entre o usuário e o sistema8. Outras características técnicas da internet são desfavoráveis à universalização do acesso a serviços públicos melhores e com menor custo, sobretudo a dependência da disponibilidade de uma infra-estrutura de telecomunicações cara, cuja capacidade modula a qualidade do acesso possível, restringe o alcance das ações de governo eletrônico. Mesmo o acesso básico à internet depende de investimentos cujo custo está longe de ser desprezível e que tendem a ser direcionados para as regiões mais ricas tanto quando depende do capital privado (Afonso, 2007) como quando advém do dinheiro público (Wzorek, Ramos e Rezende, 2005). Não surpreende, portanto, que os indicadores de acesso à internet sejam proporcionais à riqueza das regiões nas várias escalas de observação, como indicam os Gráficos 1, 2 e 3.
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Por isso se diz que a web é uma pull technology (literalmente, ‘tecnologia de puxar’), em oposição às mídias anteriores, que seriam push technologies (‘tecnologias que empurram’). Vale notar que várias aplicações online, por exemplo mensageiros instantâneos e email, funcionam no modo push. Nunca é demais repetir que o fato de que a web e outras tecnologias digitais permitem interatividade (interação com o sistema) não significa que os meios anteriores (como o jornal, o rádio ou a TV) não sejam interativos. Para aprofundamento, ver por exemplo Fragoso, 2001.
Gráfico 1: Porcentagem da população mundial com acesso à internet, por região (Internet Usage Statistics, 2007).
Gráfico 2: Porcentagem da população da América Latina com acesso à internet, por país (Internet Usage Statistics, 2007).
Gráfico 3: Porcentagem da população brasileira com acesso domiciliar à internet, por região (Comitê Gestor da Internet, 2006).
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As ações de inclusão digital brasileiras são particularmente numerosas e frequentemente bem sucedidas, de modo que a quantidade de brasileiros com acesso à internet aumenta consideravelmente quando se leva em conta a utilização de salas públicas. Em 2005, a UNESCO estimava que existiam cerca de 12 mil pontos de acesso público gratuito no país, dois anos depois o IBICT tinha registro de 17.607 mil PIDs (IBICT, 2008). No entanto, a distribuição desses pontos de acesso mais uma vez favorece as regiões mais ricas (Mapa 1), mesmo porque a aplicação de verbas públicas na instalação de pontos de acesso à internet não condiz com a realidade de diversas áreas do país, que mal dispõem de saneamento e eletricidade. Em 2007, 44% das cidades brasileiras não tinham acesso à internet por rede telefônica – são mais de 22 milhões de pessoas para as quais a internet só está disponível por satélite, com custos elevados e desempenho limitado. Tratam-se dos municípios mais pobres do país, que mais necessitam de alavancagem econômica e social (Afonso, 2007).
Mapa 1: Distribuição dos pontos de acesso gratuito à internet (ONID, 2008).
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Finalmente, a persistência do analfabetismo, que alcança 13,3% da população brasileira em todas as regiões (Gráfico 4) inviabiliza definitivamente a presunção de universalidade do acesso: nenhum serviço de governo eletrônico poderá ser utilizado pelas pessoas que não conseguem sequer ler a instrução ‘clique aqui’.
Gráfico 4: Porcentagem da população analfabeta com 15 anos ou mais, por região. IBGE, 2006.
Democracia Eletrônica Quase todas as iniciativas de prestação de serviços via internet envolvem a disponibilização de informações de utilidade pública, com tendência à ampliação da abrangência conforme o governo eletrônico se desenvolve. Aqui associadas à noção de democracia eletrônica, essas ações costumam ser saudadas por seu potencial para o empoderamento dos sujeitos sociais9 e implicariam uma alteração no controle das informações que o poder público mobiliza para as tomadas de decisão, com impacto transformador sobre as práticas políticas e as formas de gestão. 9
Essa interpretação, presente por exemplo em Frey, 2003; Ruediger, 2003 e Ribeiro, 2005, parte do pressuposto de que a informação é a chave para o exercício da cidadania. A abordagem é discutida por exemplo Michael Schudson, Click Here for Democracy, em Jenkins e Thorburn, 2004, 49-60.
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Nesse nível de ação, a qualidade do acesso aumenta muito de importância, de modo que as condições socioeconômicas têm um peso ainda maior do que para a prestação de serviços online. É muito diferente buscar de informação na web utilizando banda larga ou conexão discada, em local privado ou em sala pública. Especialmente nos locais públicos, onde costuma haver limite de tempo para a utilização e mecanismos de controle de conteúdo, certas áreas da rede simplesmente não estão disponíveis – o que contradiz diretamente a proposta de promover o acesso democrático à informação com vistas ao desenvolvimento da cidadania. O papel da alfabetidade também se intensifica quando se trata da democracia eletrônica: a alfabetidade técnica (saber lidar suficientemente bem com o computador e com a rede para encontrar o que procura) não basta, é preciso ser capaz de compreender a informação encontrada, relacioná-la com o que afirmam outras fontes, interpretar os dados e produzir inferências. Em 2007 apenas 28% dos brasileiros dispunham de alfabetidade suficiente para isso. Entre os demais, 40% conseguiam no máximo localizar uma informação em textos curtos e 25% só podiam fazê-lo quando se tratava de enunciados com uma só frase (por exemplo num anúncio ou chamadas de capas de revistas). Os demais 7% eram analfabetos (Instituto Paulo Montenegro, 2007, 9). Na melhor das hipóteses, o empoderamento em prol da cidadania através da democratização da informação via internet poderia alcançar aqueles 28% da população do país que correspondem à elite plenamente alfabetizada. No que diz respeito à internet e à web enquanto bancos de dados, vale para as ações de democracia eletrônica a mesma positividade que se verificava na escala do governo eletrônico. Tecnicamente, a disponibilidade, o acesso imediato e a imensa capacidade de armazenamento permitem realizar consultas amplas, aprofundadas, localizar informações de fontes diferentes, etc. Já a estrutura de rede, contra todas as apostas do senso comum, no mais das vezes opera contra as ações de democracia eletrônica. Isso porque, apesar de disseminada, é errada a idéia de que as redes digitais de comunicação são descentralizadas, horizontais e igualitárias. Embora o projeto inicial da internet visasse uma topologia 168
distribuída (Baran, 1977) com essas qualidades (Figura 1), tanto a internet quanto a web tornaram-se redes policêntricas10 e hierarquizadas (Nielsen, 1997; Barabási, 2002; Anderson, 2005).
Figura 1: No alto, tipos de redes: centralizada, descentralizada (policêntrica), distribuída. Embaixo à direita, mapa dos percursos de uma intranet (Lumeta, 2001, reproduzido de Klein, 2007); à esquerda, mapa das conexões internas do site do CNPq (produzido com Astra SiteManager em 19/12/2006)
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Tecnicamente, essa topologia de rede com muitos centros é chamada de descentralizada. Optou-se pela expressão policêntrica ou multicentrada para evitar o entendimento – equivocado, mas muito comum – de que uma rede descentralizada não tem centro(s).
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A estrutura policêntrica da internet é análoga à das cidades, sobretudo as maiores, que também têm muitos centros, cada qual com suas próprias características e seu nível de importância. A experiência com as áreas urbanas pode ajudar a entender, por conseguinte, o que esse desenho significa em termos da hierarquização e distribuição de informação e poder na web. Na cidade como na web, alguns locais (por exemplo, alguns websites ou alguns parques) são mais fáceis de acessar e mais visitados que outros. Do mesmo modo, algumas conexões (links ou vias públicas) são mais proeminentes e recebem mais tráfego que outras. Tanto na cidade quanto na web existem ainda lugares praticamente inacessíveis (pequenas praças periféricas, websites pouco conhecidos) aos quais só se chega perseguindo deliberadamente o endereço. É fácil perceber que, assim como nas cidades, a configuração web faz com que os diferentes lugares tenham diferentes importância, visibilidade e valor. É tentador atribuir esse efeito a forças externas à rede, que estariam distorcendo sua vocação inicial. No entanto, a Teoria Matemática das Redes indica que a configuração policêntrica da web e da internet é intrínseca a todas as redes dinâmicas (Barabási, 2002) de modo que, apesar de ter sido projetada para ser uma rede distribuída, era inevitável que a internet reverteria para uma estrutura multicentrada11. Retornando à analogia com a cidade, é adequado comparar a web com uma metrópole que cresceu muito rapidamente e de modo desordenado: entre 1999 e 2005, a estimativa do número de páginas indexáveis na web passou de 800 milhões (Lawrence e Giles, 1999, p.2) para mais de 11,5 bilhões (Gulli e Signorini, 2005, p.1). Além dessa exuberância quantitativa, o fato de que os websites são conectados por hiperlinks implica uma configuração espacial multidimensional (Fragoso, 2000) que dificulta bastante a apreensão de sua topologia. Quando não se dispõe do endereço que se procura, 11
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Para uma discussão dos condicionantes da topologia da internet, ver por exemplo Fragoso, 2006a.
como encontrar um site numa estrutura tão grande e estruturada de modo tão complexo? A solução evidente são os buscadores, que não por coincidência quase sempre ocupam os primeiros lugares nas listas de sites mais visitados em todo o mundo12. Essa proeminência dos sites de busca em relação aos demais tornam os buscadores verdadeiros “centros dos centros” e implica uma importante pressão de verticalização sobre a estrutura policêntrica da web. A situação compromete a confiança no potencial democratizante da disponibilização de informações através da web, em especial quando se leva em conta que os sistemas de busca mantêm suas estratégias de hierarquização dos resultados em segredo e que seus bancos de dados não cobrem toda a web (de modo que certas informações jamais poderão ser encontradas com o auxílio de buscadores) (Gulli e Signorini, 2005). Mais alarmante é a rápida redução do número de grupos empreendedores envolvidos com o negócio das buscas nos últimos anos: em 2008, apenas 3 grupos operam com bancos de dados próprios: Google, Yahoo! e Microsoft (Bruce Clay, Inc., 2007) e portanto têm em mãos todo o tráfego das buscas – praticamente todo o tráfego em geral – da web13. O fato de que o desenho que o negócio das buscas assumiu tende a tornar a web cada vez mais parecida com os meios de comunicação de massa, e portanto, na prática, cada vez menos horizontal e igualitária, não anula o impacto positivo do aumento expressivo do número de indivíduos capazes de desempenhar o papel de emissor em processos comunicacionais de grande escala nas redes digitais de comunicação. Mesmo que o desequilíbrio da visibilidade entre os websites estabeleça uma grande distância entre a possibilidade de expressar-se e a garantia de ser visto ou ouvido, o fato de que atores sociais anteriormente sem voz passaram a poder se manifestar implica
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Por exemplo, em fevereiro de 2008 três dos quatro sites mais visitados do mundo na classificação do Alexa eram buscadores: Yahoo!, LiveSearch e Google. O segundo lugar no ranking, entre Yahoo! e LiveSearch, era ocupado pelo YouTube (Alexa, 2008). Para discussão da questão dos buscadores e seus efeitos sobre o modo de distribuição da web, ver Fragoso, 2007.
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um rearranjo do controle da informação em direção ao pluralismo e é um fator positivo para a democracia eletrônica.
Governança Eletrônica Ações de governança eletrônica partem do pressuposto de que a gestão participativa requer o fortalecimento das organizações da sociedade civil, em especial das comunidades locais. Tratase de favorecer a criação de novas redes sociais e facilitar a adesão de novos membros às já existentes, bem como de intensificar os laços no interior de cada grupo e entre os vários grupos. Tudo isso operaria no sentido de aumentar o “capital social”14 das organizações civis, capacitando-as para influenciar a agenda governamental e os processos decisórios. A maior parte das características técnicas da internet é favorável às ações em prol da governança eletrônica (a exceção são as especificidades relativas à dificuldade de acesso). Particularmente positiva é a confluência, na internet, dos três modos de comunicação e distribuição de informação: um-muitos, um-um e muitos-muitos (Figura 2) – cuja correlação com as estruturas de rede (Figura 1) evidentemente não é coincidência. No atual estágio de desenvolvimento da web, grande parte dos sites são desenhados para o modo massivo (um-muitos) de distribuição. São produtos midiáticos de grande porte, cuja criação e manutenção depende de equipes especializadas e custos elevados (grandes portais, como Terra e UOL, e sites vinculados à mídia offline, como Globo e Abril, são exemplos típicos). Não é irrelevante, por outro lado, a quantidade de sites de criação coletiva que
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Muito brevemente, ‘capital social’ corresponde ao conjunto de recursos que emerge das interações no interior de um grupo social e que se traduzem ou podem ser convertidos em benefícios ou vantagens de diversas naturezas para todos e cada um dos membros do grupo. Para uma revisão do conceito de capital social em Putnam, ver por exemplo Frey, 2003. Para avançar a discussão incorporando a noção de capital social de outros autores, ver por exemplo Recuero, 2005.
Figura 2: Modalidades de distribuição de informação e aplicações típicas.
alcançam grande visibilidade (YouTube, Flickr e Blogger são exemplos muito conhecidos), sobretudo no paradigma da chamada Web 2.0 (O’Reilly, 2005) A distribuição no caso é muitos-muitos. Os sistemas de comunicação interpessoal (email, mensageiros instantâneos) são vocacionados para a comunicação um-um em ‘tempo real’, mas é frequente sua utilização no modelo muitosmuitos (por exemplo em listas de discussão ou conferências virtuais). Já os MUVEs, salas de bate-papo, fóruns e SNSs15 destinam-se primeiramente à comunicação muitos-muitos e não-simultânea (assíncrona), de modo que lançam mão do caráter pull da internet: o mundo virtual, as mensagens gravadas, os perfis, estão sempre disponíveis, esperando o acesso. É evidente que a disponibilidade de todos esses serviços e produtos com suas diferentes vocações favorece a divulgação de informações e a democratização da comunicação. Mesmo a configuração policêntrica da rede é um aporte 15
MUVEs (multi-user virtual environments) são ambientes online compartilhados, geralmente com interfaces que simulam espaços tridimensionais (por exemplo SecondLife ou World of Warcraft). SNSs (social network services) são serviços online baseados na construção de perfis pessoais com conexões explícitas para os perfis de outros usuários (por exemplo Orkut, Facebook, LinkedIn).
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positivo no âmbito do fomento à governança, pois se trata de favorecer a criação e o fortalecimento de múltiplos agrupamentos e colocá-los em contato, não de torná-los iguais ou equivalentes. Os registros da utilização da internet para a formação e fortalecimento de grupos sociais antecedem o advento da web e se estendem a um grande número de sistemas e aplicações16. Criados especialmente para esse fim, os SNSs estão entre os sites mais populares no mundo todo17. No Brasil, o grande foco é o Orkut, acessado por 9,3 milhões de pessoas em janeiro de 2007 (Coutinho, 2007). Nem todos os usuários do Orkut no Brasil utilizam acesso doméstico: o serviço é muito popular entre os frequentadores de locais públicos de acesso, tanto pago (Moraes, 2008) quanto gratuito (Spence, 2007). Indicadores como esses parecem particularmente positivos para as ações de governança quando se leva em conta um dos grandes diferenciais do Orkut, que é a existência de comunidades de interesse às quais, na maior parte das vezes, é possível vincular-se sem conhecer previamente os demais integrantes. Pelas definições-padrão do Orkut, essas comunidades incluem fóruns de discussão, cujos tópicos podem ser criados por qualquer membro e que, uma vez abertos, também aceitam a participação de todos. O potencial para a reunião de pessoas com interesses afins, para a intensificação dos laços e para a construção colaborativa dessa configuração é imenso – mas a apropriação que se verifica empiricamente no Orkut vai no sentido oposto. A associação a comunidades, por exemplo, muito frequentemente tem caráter de ‘etiqueta identitária’(Matuck e Meucci, 2005; Tomasini, 2007), ou seja, é apenas mais um elemento
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A literatura nesse sentido é vasta: ver por exemplo, Roszak (1988) e Rheingold (1993) reportam a formação e o fortalecimento de comunidades em BBSs; Reid (1991) e Recuero(2002) no IRC, Reid (1994) nos MUDs, Sá (2005) em listas de discussão, Sepé (2007) em games e fóruns, Recuero (2006) em blogs. Conforme o Alexa, em fevereiro de 2008 quatro entre os dez sites mais acessados no mundo eram SNSs: MySpace, Facebook, Hi5 e Orkut (Alexa, 2008).
na construção do perfil pessoal. Muitas comunidades não têm nenhum tópico em seus fóruns, outras têm apenas spams18 e jogos. Mesmo nas comunidades cujos fóruns contêm tópicos que abordam temas capazes de instigar o debate ou que convidam à construção coletiva de conhecimento, de um modo geral resultam em sequências de mensagens que não constituem propriamente uma conversação, mas apenas reiteração de idéias pré-existentes. A hostilidade com os discordantes é frequente e os contra-argumentos são raros – o mais comum é a repetição de uma mesma idéia, muitas vezes com as mesmas palavras (Tomasini, 2007), caracterizando estratégias de convencimento pelo cansaço ou pela força. As raízes desse comportamento podem ser associadas à história do Brasil, com suas repetidas e recentes ditaduras, que fomentaram o hábito do autoritarismo e reprimiram a prática argumentativa, bem como aos baixos níveis de escolaridade19, que incapacitam a maioria da população a formular argumentações complexas. Além disso, é perceptível a relação entre essa atitude dos brasileiros no Orkut e diversas características da cultura brasileira apontadas por Da Matta (1978, 1984, 1985), especialmente no que concerne à intolerância e dificuldade de diálogo20.
Condicionantes A atratividade das afirmações de que o acesso à internet conduzirá a uma vida social mais democrática, participativa e livre cai por terra diante da similaridade com os anúncios feitos nos primeiros tempos de outras tecnologias: 18
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Spams são mensagens não solicitadas, enviadas para um grande número de usuários, geralmente com apoio de programas ou scripts especiais. Embora as taxas de escolarização da população tenham crescido muito entre os censos de 1940 e 2000 (IBGE, 2007), em 2005, a escolaridade média dos brasileiros com 10 anos ou mais de idade era de 6,6 anos (IBGE, 2006). Para um aprofundamento da relação o comportamento dos brasileiros no Orkut e as considerações de Da Matta sobre a cultura brasileira ver Fragoso, 2006b.
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É tentador acreditar que a revolução da informação é, por natureza, profundamente democrática. Essa crença acompanhou também outras revoluções sociais e tecnológicas no passado – a introdução da imprensa, [a idéia de] o ensino público universalizado, o rádio, a televisão e até mesmo o surgimento do avião. Em meio ao entusiasmo da mídia com os primeiros vôos em 1903, jornalistas profetizaram uma era “em que os aviões conquistariam as distâncias, abolindo as fronteiras nacionais, e tornando todos os homens irmãos (...) garantindo igualdade, democracia, e paz perpétua” (OECD Public Management Service, 1999, p.4821).
O mesmo exagêro está presente nos alertas, igualmente simplistas, de que a internet destruirá os valores locais em prol de uma globalização homogeneizante ou que compromete a capacidade cognitiva dos usuários (que, sob pressão do imediatismo do meio, perdem a capacidade crítica e se põem a selecionar botões e links impensadamente). Não tão atraente, porém muito mais razoável, é a percepção de que “a tecnologia não determina a sociedade. Nem a sociedade escreve o curso da transformação tecnológica (...) Na verdade, o dilema do determinismo tecnológico é, provavelmente, um problema infundado, dado que a tecnologia é a sociedade e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas” (Castells, 1999, p.25). A história da internet está cheia de exemplos de induções do contexto cultural, do mesmo modo que a história recente testemunha pela interferência da internet (e outras tecnologias) sobre a configuração social. Nessa dupla mão de influências, diferentes grupos sociais, em momentos históricos distintos, concebem tecnologias diferentes e se apropriam delas de maneiras igualmente variadas. 21
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O documento da OECD remete a citação a Doug Saunders, Wired should stay out of the future, 1997 e a Rick Salutin, How about some straight talk on the Internet?, 1996.
O fato de que a sociedade não está à mercê das tecnologias não implica, entretanto, que as formas possíveis de apropriação independam das especificidades de cada dispositivo técnico. Este texto procurou apontar justamente que, mesmo quando se trata de uma tecnologia de comunicação flexível como a internet, certas apropriações são favorecidas e outras dificultadas. Outras ainda são tecnicamente impossíveis (não há como enviar matéria física pela internet, por exemplo). No que concerne a gestão pública, em especial a proposta de indução da reestruturação do Estado e fomento de formas participativas de gestão por meio das redes digitais, verificou-se que a maioria – embora não a totalidade – dos aspectos técnicos e estruturais da internet opera de modo favorável. Os principais fatores contrários são o alto custo da infra-estrutura tecnológica (que compromete a universalidade do acesso) e a configuração policêntrica da rede (que tende a hierarquizar os conteúdos, dando mais visibilidade às vozes já poderosas em detrimento dos demais grupos). Já os condicionantes de ordem cultural e política vão, em grande parte, no sentido contrário das ações de governança eletrônica. Ruediger (2003) sugere que, havendo vontade política por parte do Estado para deflagrar o processo, a pressão da sociedade civil por uma quantidade cada vez maior de serviços e informações online estabelecerá um círculo virtuoso em direção ao incremento da cidadania: ...as barreiras internas ao Estado poderiam ser tensionadas e, eventualmente, mitigadas, pela pressão da sociedade civil em um processo dialético de demanda crescente por serviços e informações advindas do Estado. Da mesma forma, os gestores poderiam buscar iniciativas que maximizassem essa possibilidade, por meio de mecanismos voltados ao provimento de meios de acesso, como também outros, vinculados à oferta de programas e políticas que digam respeito diretamente a questões de cidadania. Esse processo interessaria, sobretudo, aos que almejam a continuidade
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de reformas no campo do Estado. Evidentemente, esse ciclo virtuoso requer um ponto de partida que precisa ser politicamente construído (Ruediger, 2003, p.12771278).
A construção desse “ponto de partida” demanda a superação não apenas dos travamentos internos ao próprio Estado (que Ruediger constatou no âmbito corpo técnico-administrativo), mas também a apatia generalizada em relação aos assuntos políticos22. No caso brasileiro, fatores culturais ainda mais desfavoráveis estão em jogo: o hábito com o autoritarismo (que, embora superado em relação à estrutura formal de governo, permanece nas ações do cotidiano e no nível local); a tradição clientelista; a indisposição para construções coletivas de natureza inclusiva. Embora no Brasil as comunidades locais permaneçam ativas e muitas vezes desempenhem um papel importante no cenário social, elas tendem a ser baseadas em laços de amizade e familiares e com frequência se prestam a um modelo de dominação em que uma pequena e poderosa elite explora as vantagens das relações em rede, em seu próprio interesse e em detrimento dos que não pertencem ao grupo. Por outro lado, Frey identifica a presença, no Brasil, de “novas formas emergentes de vida social e de engajamento político, capazes não apenas de renovar os laços sociais das comunidades, mas também de promover novas formas de participação pública visando à transformação das condições sociais e políticas” (2003, p.170). O maior desfavor que se pode prestar para as iniciativas nesse sentido é continuar propagando a idéia de que a disponibilidade de serviços e informações governamentais online seja suficiente para promover modos participativos de gestão. O determinismo tecnológico não é apenas historicamente incorreto – ele é nocivo, pois a crença de que não há escapatória diante dos efeitos “inerentes” às tecnologias conduz à paralisia social. 22
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Esta última pode ser entendida como mais um sintoma da própria crise do Estado Moderno, de modo que se trata de uma manifestação do problema mais que de um entrave à sua solução.
Para que a internet possa servir ao fortalecimento das redes sociais locais e fomentar sua capacidade de atuar politicamente, é fundamental que se generalize a compreensão de que a reestruturação do Estado em direção à governança democrática pode ser apoiada pelas tecnologias digitais, mas dependerá sempre menos da tecnologia e mais dos condicionantes socioculturais, tanto na esfera do governo quando da sociedade civil – incluída aí a vontade política de ambas as partes.
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CIDADES E MÚSICA POPULAR
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CIDADES E MÚSICA: SENSIBILIDADES CULTURAIS URBANAS
Angela Prysthon Este artigo tem por objetivo discutir as complexas e profusas articulações entre música popular e a cidade. Quando pensamos nessas articulações, imediatamente são feitas associações mentais entre determinados gêneros e determinadas cidades: Nova Orleans e o jazz tradicional; Nova York e o hip hop; Chicago e o blues, Detroit e o som de Motown; Nashville e o country; Belém do Pará e o tecnobrega; o Rio de Janeiro e o samba; São Luís e o reggae, entre outras... Aqui vamos apresentar de modo necessariamente panorâmico a análise de três cenas distintas (no tempo e no espaço) ligadas às culturas pop e rock. São três épocas, três estilos e três cidades diferentes: Manchester, na Inglaterra, do final dos anos 70 aos anos 90; Seattle no início dos anos 90 e Recife dos anos 90 aos 2000. A idéia é identificar certas recorrências e diferenças entre as cenas para compreender como o engendramento de “sensibilidades culturais” e a configuração de cenas musicais modelam e redesenham não apenas as próprias cidades, mas o modo como os sujeitos apreendem e circulam nesses espaços. O conceito de “sensibilidade cultural” empregado aqui é tributário do trabalho de Celeste Olalquiaga sobre o pós-modernismo, no qual ela define sensibilidade “como uma predisposição coletiva para certas práticas culturais” (Olalquiaga, 1998, 16). E de fato há nos cenários observados aqui uma predisposição coletiva que construiu em torno da música um novo imaginário para as três cidades em questão. Evidentemente, este novo imaginário não foi constituído apenas pelos produtos da indústria musical (discos, CDs, shows e presença midiática), mas por uma gama de articulações 185
entre estes – que poderíamos classificar como “catalisadores” – e indivíduos, grupos e signos. É necessário compreender, portanto, como se desenhou essa gama de articulações nas três cenas a partir de uma noção diferente de cidade. Uma noção que deixa evidente a urgência de um constante deslocamento conceitual, vinculado ao marco teórico do pósmoderno. Pois, se na modernidade tínhamos, de certa maneira, algumas convicções em relação à natureza da cidade, seus componentes, suas articulações, a partir da pós-modernidade não apenas teremos que renegociar e retrabalhar todo esse elenco de noções, como também inserir uma série de novos paradigmas e termos. Claro que sem esquecer do flâneur, do cosmopolitismo, da modernidade – elementos constitutivos do urbano, entram em cena na cidade pós-moderna de maneira muito mais enfática que antes, a descentralização, os meios de comunicação de massa, as redes de informação, a diferença, os novos espaços urbanos. Pois, além de um território conceitual necessariamente mais fluido, tem-se em vista uma nova materialidade. As world cities, cidades do mundo em constante processo de mutação, não são necessariamente as maiores cidades, mas lugares onde a diversidade multiplica-se a cada instante, ora num movimento integrativo, ora na dissolução em partes isoladas. “World cities are the sites in which we find the juxtaposition of the rich and the poor, the new middle class professionals and the homeless, and a variety of other ethnic, class and traditional identifications, as people from the centre and periphery are brought together to face each other within the same spatial location”23 (Featherstone, 1995, p.118).
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“As cidades mundiais são sítios nos quais encontramos a justaposição de ricos e pobres, a nova classe média de profissionais liberais e os sem-teto, e uma variedade de outras identificações étnicas, de classe e tradicionais, como também pessoas do centro e da periferia que são colocadas dentro de uma mesma localização especial.”
Desse modo, a própria configuração urbana contemporânea vai sendo permeada pelo imaginário cultural e conceitual do pósmoderno. Featherstone também fala de um entrelaçamento entre as esferas cultural, social e econômica dessa cidade pós-moderna: “The postmodern city is therefore much more image and culturally self-conscious; it is both a centre of cultural consumption and general consumption, and the latter, as has been emphasized, cannot be detached from cultural signs and imagery, so that urban lifestyles, everyday life and leisure activities themselves in varying degrees are influenced by the postmodern simulational tendencies”24 (Featherstone, 1991, p.99).
As transformações do cenário urbano mundial são quiçá lentas, graduais, mas certamente são bastante concretas. A nossa principal hipótese aqui é que a música (e os processos sociais ligados a ela) vai ser essencial para o engendramento dessas transformações.
Manchester, so much to answer for Giacomo Bottà, falando sobre a influência efetiva da música popular sobre a cidade, enumera algumas maneiras concretas através das quais é exercida essa influência: “This is the result of a layering: popular music mediates places as textscapes, soundscapes and landscapes. Song lyrics referring to places make up a band’s textscape. The use of local music tradition, vernacular
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“A cidade pós-moderna é portanto muito mais auto-consciente imagética e culturalmente; é um centro de consumo tanto cultural como geral, e assim como este último não pode ser desvinculado dos signos e imaginários culturais, os estilos de vida urbanos, o cotidiano e as atividades de lazer estão todos em maior menor graus influenciados pelas tendências pósmoderna simulativas.”
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or typical city noises constitute a band’s soundscape. Finally, the landscape consists of all the visual elements (e.g. covers) referring to the same particular locality. Turning to the regeneration level, it seems important to note that music in itself is ethereal, but its production, circulation and fruition rely on material factors located in cities.” 25
Manchester é uma cidade do noroeste da Inglaterra, mais conhecida como o berço da Revolução Industrial e como uma das maiores cidades da Grã-Bretanha (a zona metropolitana de Manchester é a segunda maior aglomeração urbana do Reino Unido depois de Londres). Além das marcas da revolução industrial e da sua subseqüente decadência, o imaginário da cidade foi profundamente marcado pela Segunda Guerra, na qual Manchester teve grande parte do seu centro histórico destruído pelas bombas. A cidade também sofreu de modo particularmente intenso as reformas econômicas da era Thatcher: indústrias fechadas, altos índices de desemprego e o fechamento do porto em 1982. O que afetou, obviamente, as formas de produzir e consumir cultura na cidade. A partir do final da década de 1970 surge uma cena musical vibrante na esteira da subcultura punk em ascensão em toda a Inglaterra (subcultura, aliás, deflagrada a partir de um cenário de decadência pós-industrial extremamente semelhante ao contexto particular mancuniano). Podemos ver na trajetória dessa cena (que começa com o agrupamento de bandas em artistas a partir do impulso
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“Este é o resultado de uma superposição em camadas: a música popular media lugares como paisagens textuais, sonoras e visuais. As letras de músicas que se referem a lugares se configuram como as paisagens textuais. O uso da tradição musical local, vernacular ou ruídos tipicamente urbanos constituem as paisagens sonoras de uma banda. Finalmente as paisagens propriamente ditas consistem de todos os elementos visuais (por exemplo, as capas) que se referem à mesma localidade. Voltando para o nível da regeneração, parece importante notar que a música em si é etérea, mas sua produção, circulação e fruição dependem de fatores materiais localizados nas cidades.”
dos primeiros shows dos Sex Pistols na cidade em 1976 e de certo modo tem um fechamento simbólico a partir do final da era “Madchester” com o encerramento das atividades do clube Haçienda em 1997) um conjunto de exemplar de modos de articulação entre música e cidade. Vários grupos – em certa altura já classificados como pós-punk –, lugares e indivíduos podem ser mencionados como parte desse período histórico tão especial para a mitologia pop: Buzzcocks, The Fall, The Smiths e Morrissey, A certain ratio, Durutti Column, The Stone Roses, Joy Division e Ian Curtis, New Order, Happy Mondays, Factory Records (gravadora), Haçienda (clube noturno aberto em 1982), Tony Wilson (jornalista e empresário), Rob Gretton (empresário de bandas), Peter Saville (designer gráfico). Os fragmentos urbanos indubitavelmente permeiam a história musical da cidade. Por exemplo, nas letras de Morrissey, vocalista da banda extinta em 1986 The Smiths, as paisagens de Manchester são sempre presentes. Desde a alusão a trens, pontes, fontes, cemitérios e escolas, até crimes, filmes e livros que tematizam a cidade. Como na canção “Suffer Little Children” (1983) que alude aos assassinatos em série de crianças, perpetrados por Myra Hindley e Ian Brady nos anos 60 e na qual Morrissey vai mencionando os nomes das vítimas: Lesley-Anne, with your pretty white beads Oh John, you’ll never be a man And you’ll never see your home again Oh Manchester, so much to answer for 26
Outro exemplo direto da presença de Manchester no cancioneiro dos Smiths é “The Headmaster Ritual” (1984), na qual é descrita a rotina numa escola da cidade:
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“Lesley-Anne, com seu bonito colar de bolinhas brancas/ Oh, John, você nunca será um homem/ E você nunca verá sua casa novamente/Oh, Manchester, tanto para dar conta”.
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Belligerent ghouls Run Manchester schools Spineless swines Cemented minds27
Já “Reel around the fountain” evoca uma representação mediatizada de Manchester ao citar diretamente frases do filme “A Taste of Honey” (Tony Richardson, 1962), ambientado em Manchester e uma constante referência para o grupo, em capas, vídeos e letras: Reel around the fountain Slap me on the patio I’ll take it now Oh ... Fifteen minutes with you Well, I wouldn’t say no People said that you were virtually dead And they were so wrong 28
Entretanto, de todas as figuras individuais da cidade, a que talvez sintetize melhor esse período da história da música pop de Manchester seja Tony Wilson, o empresário e jornalista que impulsionou a “movida mancuniana”, desde os primeiros shows punk até a cristalização de Madchester (como Manchester começou a ser chamada a partir do final dos anos 80 e da configuração da cena acid e Techno na cidade). Em meados dos 70, Wilson era um repórter de TV local com o que ele chamava ‘excesso de orgulho cívico’ e grandes planos para a cultura do noroeste da Inglaterra (24 Hour Party People): ocupando o lugar central nestes planos estava a Factory Records, a gravadora que de certo modo estabeleceu novos parâmetros para o lançamento e a circulação do rock e da música 27
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“Zumbis beligerantes / Dirigem as escolas de Manchester / Suínos invertebrados / Mentes cimentadas”. “Carretel em volta da fonte / Estapeia-me no pátio / Tomarei agora / Oh.../ Quinze minutos com você / Eu não recusaria / As pessoas disseram que você estava virtualmente morto / Mas eles estavam tão errados.
pop no mundo. Nem todos os artistas e grupos importantes da cena mancuniana faziam parte da Factory, mas a relação da gravadora com a cidade foi tão intensa que deixou marcas muito fortes mesmo após a falência em 1992. O selo, lançado em 1978, empregava um sistema de catalogação inusitado no qual não apenas os lançamentos musicais, mas também os trabalhos gráficos, edifícios e outros objetos recebiam um número. Até o caixão no qual foi enterrado Wilson em agosto de 2007 recebeu um número de catálogo (FAC 501). O caso da Factory é importante para o argumento aqui especialmente porque sintetiza todas as possibilidades de relação entre música e cidade. Aliás, a Factory surge das entranhas de Manchester, é um projeto completamente desvinculável da cidade, em todos os seus aspectos (visuais, sonoros, líricos). Um dos exemplos mais notáveis dessa simbiose, especialmente relativa aos “soundscapes” urbanos são as gravações do grupo Joy Division, especialmente aquelas produzidas por Martin Hamnett, nas quais aparecem ruídos de trens, alarmes, maquinaria pesada, a acústica dos grandes armazéns, entre outros efeitos (Ott, 2003). Nas letras das canções de vários dos grupos da Factory, inclusive do Joy Division, também é possível vislumbrar algumas referências mais indiretas, especialmente a uma atmosfera lúgubre e sombria que remete a certa decadência pós-industrial. Assim como nas letras dos Happy Mondyas, evocativas da psicodelia e do ecstasy massivamente consumidos em Madchester. Mas talvez seja nos landscapes propriamente ditos que a conexão entre cidade e música feita pela Factory seja mais explícita ou bem sucedida: não somente o clube Haçienda se tornou uma espécie de símbolo cultural mor da cidade durante a sua existência, como no trabalho gráfico que marcou a gravadora (especialmente aquele empreendido pelo designer Peter Saville).
Smells like Teen Spirit O caso de Seattle difere do de Manchester pela ausência de referências tão explícitas. Não é possível fazer a mesma taxonomia de letras, capas e sons do grunge que tenham rastros tão plásticos 191
da cidade. Entretanto, é provável que o impacto da cena grunge em Seattle tenha sido ainda maior (até pensarmos nos termos da influência internacional que teve o movimento). O grunge é um estilo de rock alternativo surgido na segunda metade dos anos 80 no estado de Washington nos Estados Unidos, especialmente na área de Seattle. As influências do punk, do heavy metal e do hardcore aliadas a uma estética visual despojada, letras que versavam principalmente sobre a apatia e a angústia da chamada “geração X” (pessoas que estavam na casa dos vinte anos na década de 90) e uma rejeição do glamour e da performance estilizada que caracterizou o rock e o pop dos anos 80. Assim como em Manchester um selo em particular vai ter preponderância na cena: a gravadora Sub Pop, que concentrou grande parte das bandas de Seattle e catapultou os dois grandes nomes do grunge para o sucesso mundial através daqueles que que talvez sejam os dois álbuns mais “clássicos” da cena: Nirvana com Nevermind e Pearl Jam com Tem, ambos lançados no segundo semestre de 1991. Além do Nirvana e do Pearl Jam outras bandas chegaram ao estrelato (nem todas vinculadas ao Sub Pop) do mesmo modo ambíguo e indeciso – um misto de atração e repulsa em relação à indústria fonográfica e ao showbiz: Alice in Chains, Soundgarden, Mudhoney, Green River, Melvins, entre outras de menor expressão. Outro aspecto que chama a atenção é como, de um modo até mais intenso que Manchester – que tinha algo de misoginia –, a cena de Seattle é emblemática da predominância masculina nos seus grupos musicais e na própria configuração das redes sociais associadas a ela. Algo que pode ser vagamente relacionado ao boom da tecnologia na década de 90 com a chegada massiva de homens solteiros na região para trabalhar em empresas como Microsoft, por exemplo. A cena se configurou quase como uma catarse tanto para os jovens que faziam a música, como para aqueles que a consumiam. O mais relevante, contudo, da cena grunge em conexão com a cidade de Seattle é simultaneamente o modo como ela foi transformada pelos símbolos (ou poderíamos dizer anti-símbolos) associados à música (sobretudo a moda – as camisas de flanela, os 192
cabelos sujos e desgrenhados, os coturnos – e o comportamento anti-establishment dos músicos) e associada ao grunge aos olhos do mundo. Para além de sua fama como um concentrado de empresas tecnológicas (especialmente aquelas ligadas à informática), como o berço da Starbucks e dos cafés de designer, mas de certo modo associado a tudo isso, Seattle foi se tornando sinônimo do grunge. Começou-se a prestar atenção naquela isolada e fria cidade do noroeste americano a partir de uma cena que pouco tinha de hedonista e afirmativa. Mas a interessante contradição é que todo o que o movimento tinha de negação (rejeição do mainstream, do padrão, antiesteticismo, antiindústria) foi sendo capitalizado para a caracterização de Seattle como um dos pólos criativos mundiais de maior impacto e relevância na década de 1990. Curiosamente, o vigor do grunge só foi possível por causa do relativo isolamento cultural vivido pela cidade até então: According to those who were there, Seattle in the early 80s was a fairly isolated place culturally. Major bands often didn’t bother adding Seattle to their west coast American tours, and the live scene was awash with derivative bands doing their best to sound like someone else. It wasn’t an environment which seemed immediately conducive to an explosion of original musical vitality. Yet environment seems to be a key concept in explaining the 1985-95 decade (Howitt)29.
Ou seja, a cena surge exatamente de uma carência, aparece como resposta a um contexto francamente fechado e provinciano. A cidade se torna plataforma para a elaboração de estratégias de 29
“De acordo com aqueles que estiveram lá, Seattle era um lugar bem isolado culturalmente. As grandes bandas sequer incluíam Seattle nas turnês americanas da Costa Oeste, e a cena local estava repleta bandas derivativas que faziam o máximo para soar como outras. Não era um ambiente que anunciasse uma explosão de vitalidade musical original. Ainda assim, o ambiente parece ser um conceito-chave para explicar a década de 1985-1995.”
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superação deste contexto, ela é a malha através das quais as predisposições coletivas são articuladas.
A cidade não pára Em vários trabalhos sobre a cena Mangue foi apontada a ligação do movimento com a cidade, a cultura urbana e com a emergência de novas identidades sociais na periferia. Emergindo da “periferia da periferia”, da lama, o mangue bit (como foi chamado no início pelos grupos que o constituíam) ou mangue beat (como ficou conhecido através da mídia nacional) vai transformar a cidade do Recife. Assim como Manchester e Seattle, a perspectiva de transformação urbana através da música, da cultura, é o motor das sensibilidades culturais. Nos trabalhos das bandas manguebit (mesmo aquelas que rejeitam o rótulo, eventualmente) estão presentes tanto a rearticulação da tradição (através de ritmos populares de Pernambuco e alusões ao folclore da região), como a preocupação com as últimas tendências da cultura pop mundial. Recuperando o elo perdido (e certa independência vital e muitas vezes franca oposição) em relação ao tropicalismo, Chico Science & Nação Zumbi, por exemplo, em Da lama ao caos mistura ritmos brasileiros como o maracatu, a ciranda ou o côco com o samba, com música eletrônica, hip hop e rock. As letras do Nação Zumbi freqüentemente tentam essa equação entre o local (as especificidades de viver numa cidade particularmente subdesenvolvida de um país subdesenvolvido, as gírias e os mitos recifenses) e o universal (as relações com a tecnologia, as imagens metropolitanas). As canções mais conhecidas do grupo tematizam justamente o “inchaço” do Recife, a sujeira e, simultaneamente, a música de suas ruas. O diálogo entre as dualidades tradição/modernidade, centro/periferia, nacionalismo/cosmopolitismo vai ser explorado nos trabalhos seguintes, por exemplo, no segundo disco, inclusive quando vai ser indiretamente assumida certa herança do Tropicalismo com a participação especial de Gilberto Gil na faixa “Macô” e a regrava194
ção de “Maracatu Atômico” de Jorge Mautner. Em “Enquanto o mundo explode”, Science afirma: um curupira já tem seu tênis importado não conseguimos acompanhar o motor da história mas somos batizados pelo batuque e apreciamos agricultura celeste. (1996)
O outro grupo mais proeminente do mangue beat, o mundo livre s/a, embora ritmicamente mais convencional que o Nação Zumbi, reunindo algumas características do samba e do rock, procura explicitar a posição da periferia em relação ao mundo globalizado. Recife continua sendo referência importante como perspectiva periférica: O mangue reanima, abastece Injeta, recarrega as baterias Da Veneza esclerosada Mangue, manguedown Cidade complexo, caos portuário Mangue, Manguetown. (1994)
Outro dado importante na conjuntura do manguebit é, indubitavelmente, como o discurso da identidade e da tradição ultrapassou as barreiras da cultura das classes médias e letradas para influenciar a produção musical mais popular. Vemos, assim, a emergência de artistas realmente periféricos (periféricos dentro da própria periferia) fazendo uso do discurso da identidade nacional e de suas relações com formas globais de expressão. Mesmo podendo ser considerado mais culto que outros fenômenos mais populares (o hip-hop de São Paulo, o funk carioca, o pagode, por exemplo) por suas características ideológicas, discursivas e metalingüísticas, lança alguns dados importantes para o redimensionamento do papel do popular no contexto contemporâneo: se no início eram bandas urbanas lideradas por filhos da classe média (mesmo que em alguns grupos houvesse a presença de membros das classes mais baixas) a ganharem expressão nacional, nos últimos anos da década de 90 195
foram mercantilizados sob esse rótulo (às vezes até inadequadamente) artistas de origem indiscutivelmente “popular” e proletária, como Selma do Côco (uma senhora de idade “revelada” ao público num festival de rock em Recife em 1996), a cirandeira Lia de Itamaracá ou as bandas hardcore do subúrbio Alto José do Pinho, também de Recife, todos conquistando espaço na mídia, desde programas de auditório de grande audiência a documentários na MTV ou na TV Cultura. Contudo, é provável que a grande contribuição do Mangue seja realmente a interferência na cultura da cidade. Um dos aspectos mais relevantes da história do movimento é precisamente essa relação com o Recife, ou, melhor ainda, a maneira como seus produtos, manifestações, modos e modas foram construindo ao longo da década de 90 uma nova relação com a cidade, uma nova cultura urbana. Em várias “genealogias” do Mangue se aponta a influência do Recife (e quase sempre a influência da pobreza do Recife, da miséria do Recife, das mazelas do Recife) nas letras, nas músicas, no visual e na atitude dos músicos, onde talvez o ponto mais interessante seja a forma como todos esses elementos acabaram por transformar o imaginário urbano recifense, a maneira como o Mangue construiu uma política de diferença cultural para a cidade, o modo como, através dos mais variados fenômenos culturais, o Recife se viu repentinamente inserido num contexto pós-moderno. O Recife foi, pois, reinventado a partir do movimento Mangue, ou melhor, da “cena Mangue”, como preferem seus “fundadores”.
Convergências periféricas As três cenas são evidentemente distintas, são espacialmente muito distantes umas das outras, mesmo que temporalmente haja coincidências, contudo, chama a atenção como recorrência o modo a partir do qual as sensibilidades culturais aparecem como constitutivas do tecido urbano, como tais articulações (tanto a música propriamente dita, como todo o seu entorno, seus acessórios – moda, audiovisual, códigos de comportamento, etc.) se tornam as bases para a inserção (ou reinserção) dessas cidades num contexto glo196
balizado. Manchester, Seattle, Recife, em espaços-tempos distintos e cada uma de sua maneira particular, demonstram o funcionamento do que poderíamos chamar de cosmopolitismo pós-moderno ou cosmopolitismo periférico (Prysthon, 2002), processo sublinhado e condicionado por uma série de remapeamentos culturais implicados na globalização e numa reconfiguração pós-moderna do conceito de cidade. As sensibilidades culturais das três cenas apontam justamente para o momento de ruptura representado pelo pós-modernismo para a cultura das cidades. Elas são exemplos bastante concretos de como o pós-modernismo e a pós-modernidade têm relações, ou antes, podem ser conseqüências da política mundial contemporânea e de uma completamente nova configuração global de poder, “in which the old imperial maps have been lost” (na qual os velhos mapas imperiais se perderam) – como faz Robert Young (1990, p.117). Ou seja, poderíamos pensar no momento de ruptura do pósmoderno como o momento de autoconsciência cultural da periferia (e entendendo essas cidades “fora do eixo” – seja Manchester, Seattle ou Recife – como encarnações urbanas do conceito de periferia). O cosmopolitismo vai-se reconfigurando através do percurso de autodescoberta feito pelas margens. Uma autodescoberta que pode levar ao estabelecimento das primeiras políticas da diferença e para a afirmação de um novo conceito de urbano. O cosmopolita periférico tenta se colocar, produzir e se autodefinir a partir de uma instância ambígua (ser e estar na periferia, desejar estar na metrópole, no centro) e aponta justamente os elementos que fazem da periferia um modelo de modernidade alternativa (problemática, incompleta, contraditória). Ele trabalha nos interstícios de uma realidade e tradições locais e de uma cultura urbana internacional, aspiracional e moderna. Assim temos outro cosmopolitismo que indubitavelmente transforma a própria noção de cidade, de experiência urbana na contemporaneidade. As teorias pós-modernas e do pós-moderno, inevitavelmente, pois, lançam outras dimensões ao conceito de cosmopolitismo: a sua constante remissão ao crescente descentramento da vida urbana e da cultura pós-moderna, a evidente globalização em diversas 197
esferas da sociedade – entre elas economia e cultura , a insistência pelo relativismo cultural e o estabelecimento de um ciberespaço agora como realidade e não mais alucinação futurista são algumas das razões mais importantes para essa redefinição do cosmopolitismo. Basicamente, entretanto, a emergência dessa sociedade pós-industrial, ou “sociedade de informação”– com todas as suas nuances, entre elas a valorização do periférico, do exótico, do excêntrico (refletidos no multiculturalismo) – desesestabiliza a força centralizadora das metrópoles modernas. O cosmopolitismo pós-moderno e periférico vai ser diferente sobretudo porque ele não supõe necessariamente um ponto norteador (algo essencial no cosmopolitismo moderno, como fica claro acima com a Paris-mito dos modernos e os subseqüentes prolongamentos dessa Paris na periferia – São Paulo, Buenos Aires, etc.). Portanto, se o cosmopolitismo moderno é essencialmente centrípeto, a força centrífuga da pós-modernidade começa a relativizar a importância das grandes metrópoles mundiais em termos de disseminação das informações. O que antes era quase um sistema de oposições – campo/cidade; provinciano/cosmopolita; bárbarie/ civilização; caos/ordem –, torna-se uma rede de múltiplas interdependências, confluências e novos parâmetros. E é justamente a cidade que se torna o território intersticial onde se encadeiam, intercalamse e se confrontam tais oposições. Ao invés de ser apenas mais um elemento do binarismo oposicional, a cidade passa a ser ela própria um processo dialético dos embates pós-modernos. O que não significa, obviamente, que deixem de existir os grandes centros de onde emanam as tendências culturais. Mas como Manchester, Seattle e Recife mostraram nas três últimas décadas, há uma clara propensão para que essas tendências apareçam de muitos outros lugares, difundam-se e dissolvam-se de forma muito mais rápida. A gradual superação desses esquemas oposicionais e a crescente descentralização cultural da contemporaneidade vão, assim, modificando profundamente a própria estrutura tanto da teorização sobre a cidade, como as nossas próprias experiências.
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Referências BOTTÀ, G. “Pop Music, Cultural Sensibilities and Places: Manchester 1976 -1997” in FORNÄS, J. (ed). The ESF-LiU Conference Cities and Media: Cultural Perspectives on Urban Identities in a Mediatized World, Vadstena, Suécia, 25–29 de outubro de 2006, 121-126. http://www.ep.liu.se/ (acessado em 03 de março de 2008) FEATHERSTONE, M. Consumer Culture and Postmodernism. London/ Thousand Oaks/New Delhi: Sage, 1991. ____________. Undoing Culture. Globalization, Postmodernism and Identity. London/ Thousand Oaks/ New Delhi: Sage, 1995. HOWITT, B. “Popular Culture- Grunge” in Society and Culture Association. http://www.ptc.nsw.edu.au/scansw/grunge.html (acessado em 03 de março de 2008) KING, E. (ed). Designed by Peter Saville. Nova York: Princeton Architectural Press, 2003. OLALQUIAGA, C. Megalópolis. Sensibilidades culturais contemporâneas. São Paulo: Studio Nobel, 1998. OTT, C. Joy Division’s Unknown Pleasures. Londres: Continuum, 2003. PRYSTHON, A. Cosmopolitismos periféricos. Ensaios sobre modernidade, pós-modernidade e Estudos Culturais na América Latina. Recife: Bagaço, 2002. REYNOLDS, S. Beijar o céu. São Paulo: Conrad, 2006. ROBERTSON, M. Factory records. The Complete Graphic Album. San Francisco: Chronicle Books, 2007. WILSON, T. 24 Hour Party People. What The Sleeve Notes Never Tell You. Londres: Channel 4 Books, 2002.
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A CIDADE GRANDE NO IMAGINÁRIO DO FORRÓ PÉ DE SERRA ATUAL
Felipe Trotta A música popular é um artefato cultural de grande importância e projeção em nossa sociedade. Refletir sobre as relações entre música e espaços urbanos é, de certa forma, mergulhar nas construções de sentidos e nos ambientes imaginários dessa prática cultural, desenvolvida prioritariamente nas cidades. Diversas searas da música popular urbana manifestam de alguma forma essa relação com o território físico. As cidades são, de modo geral, os espaços mais cantados em versos de canções de vários repertórios musicais, que se auto-valorizam, demarcam fronteiras e imaginários a partir de lugares, paisagens, ruas e da própria construção simbólica da cidade. É só pensarmos em alguns clássicos do cancioneiro nacional e internacional dedicados à exaltação de cidades como Cidade Maravilhosa, Voltei Recife, Hino do Elefante de Olinda, Sampa, São Salvador ou o mega hit New York New York. Da mesma forma, espaços dentro das cidades são louvados e referenciados em repertórios diversos, que narram as belezas (e dilemas) de morros (Ave Maria no morro, Alvorada, Exaltação a Mangueira), bairros (Garota de Ipanema), ruas (Pelas ruas que andei, Canção do amor demais), praias (Coqueiro de Itapoã), praças (Um frevo novo) e diversos lugares nas cidades que, lembrados e continuamente cantados em músicas importantes do repertório de determinados gêneros musicais, se sedimentam afetivamente no imaginário compartilhado da população. Música popular e território são, portanto, categorias estreitamente interligadas. Porém, as narrativas não se restringem ao componente verbal das canções. A base instrumental, os estilos 200
vocais, arranjos, padrões de mixagem, ritmos e “levadas” dos repertórios também ajudam a determinar territorialidades. Nesse sentido, os gêneros aparecem como eixos importantes de diferenciação e de estabelecimento de fronteiras musicais e espaciais. É só pensarmos na simbiose entre o frevo e as cidades de Recife e Olinda, entre o samba e o Rio de Janeiro e entre a chamada axé music e a capital baiana. Trata-se de uma construção simbólica que associa determinadas sonoridades a certos espaços geográficos, quase sempre urbanos (Janotti Jr., 2006, p.143). As cidades e determinados gêneros musicais mantêm entre si muitas vezes uma forte relação de propriedade, que ajuda na construção de identidades e nas estratégias de valoração e circulação midiática. Se, de um lado, as canções evocam afetivamente espaços físicos, agregando mentes e corações, por outro, essas relações espaciais quase sempre acirram disputas e contradições nas valorizações dos gêneros musicais. Algumas localidades no interior das cidades demarcam seus territórios de influências e de circulação musical através de práticas musicais, excluindo outros territórios e referenciais identitários. Falar bem da Mangueira, por exemplo, é marcar uma zona de disputa com outros morros/escolas de samba cariocas, como a Portela ou o Estácio. Da mesma forma, quando o rapper Zé Brown, do grupo Faces do Subúrbio enumera áreas urbanas ocupadas por populações de baixa renda1 está, ao mesmo tempo, relacionando sua prática musical (o rap) a esse conjunto populacional e, assim, estabelecendo uma arena comum de troca de símbolos e valores compartilhados (supostamente) por tal público. 1
Refiro-me à letra da canção Butadas (Zé Brown / Tiger): (...) Sou de Casa Amarela/ Sou do Alto Zé do Pinho/ Sou da Bomba do Hemetério/ Água Fria, sou de Peixinhos/ Alto Zé Bonifácio/ Sou Morro da Conceição/ Sou Ibura de Baixo/ Santo Amaro eu sou Jordão/ Sou do Alto do Brasil/ Entra a Pulso/ Macaxeira/ Sou Corrego do Genipapo/ Afogados, Imbiribeira/ Sou a Treze de Julho/ Paulista, sou Paratibe/ Sou de Nova Descoberta/ Arruda/ Camaragibe/ Sou Várzea, Caxangá, sou Alto Santa Isabel/ Sou Alto da Favela/ Sou o Alto do Céu/ Linha do Tiro/ Sou Alto do Pascoal/ Sou Corrego da Padaria/ Sou Alto do Pica Pau/ Eu sou de Pontezinha/ Sou Torre e Jaboatão/ Sou de Barra de Jangada/ Rodinha/ Sou Torreão/ Olinda Jardim
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A dimensão crítica do rap confere um sentido particular à canção, uma vez que o gênero se insere no universo musical urbano como símbolo de uma certa resistência da “periferia”, construída através de discursos de denúncia contra as condições desiguais de vida, moradia, bens e serviços em geral. Analogamente, a recorrência com que autores prestigiados da bossa nova como Tom Jobim e Vinicius de Moraes cantavam o Rio de Janeiro das décadas de 1950 e 1960, com suas praias freqüentadas pela elite, aeroportos e bares requintados estabelecia um eixo de identificação entre os habitantes desses espaços urbanos – de alto poder aquisitivo – e o universo simbólico e imagético do gênero. Mas a coisa não é tão simples. Apesar da tentação imediata, aceitar a existência de uma “ressonância” entre espaços urbanos e práticas musicais significa encarar como estáveis as divisões sociais, que podem ser altamente determinantes em alguns aspectos da vida urbana, mas que precisamente na experiência musical encontram incrível maleabilidade. Estamos falando de uma arena social de contínua negociação e de intensas disputas simbólicas, pavimentadas pelo espectro alargado do mercado massivo, no qual os produtos culturais são endereçados potencialmente a todos e apropriados de forma diferenciada pelos vários setores da sociedade, com construções específicas de significados.
O forró e a “saudade do sertão” O gênero musical atualmente conhecido como forró, herdeiro do “baião” lançado nacionalmente por Luiz Gonzaga tem em seu imaginário uma relação bastante tensa com a idéia de cidade. Isto
Brasil/ Sou do Ó, 13 de Maio/ Sou do Vasco da Gama/ Sou do Alto do Balaio/ Alto da Primavera/ Alto Santa Teresinha/ Sou o Corrego do Zé Grande/ Euclides/ Sou Areinha/ Sou Porta Larga/ Prazeres/ Sou Mangabera/ Ilha sem deus/ Sou Alto da Gamelera/ Sou do Alto da Foice/ Do Alto da Bondade/ Alto do Eucalipto/ Praça da Santidade/ Sou do Beco da Facada/ O Beco do Pavão/ Campo Grande/ Encruzilhada/ Eu sou é do Fundão (...).
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porque o referencial simbólico, sonoro, imagético, discursivo e afetivo de quase todo o repertório do forró, desde os anos 1940 até hoje, está fundado na valorização da idéia de sertão. A noção de campo, em oposição à cidade é, portanto, constitutiva do gênero. O significante campo e seus múltiplos significados, costuma ser associado a formas de vida social consideradas naturais, plenas de paz, simplicidade ou inocência. Por outro lado, o segundo termo do binômio, e seus corolários, é vinculado à idéia de centros de empreendimento, saber e progresso. De igual forma, têm-se combinado importantes associações negativas ora a um ora a outro: a cidade como espaço do egoísmo, da competitividade, da ambição; o campo como lugar do atraso, da ignorância, da rotina (Mendonça, 1997, p.9).
Pode-se dizer que o forró musicou essa poderosa simbologia do sertão-campo, que desde o final do século XIX representa na identidade nacional uma certa autenticidade perdida, conferindolhe uma base instrumental, um conjunto de narrativas e memórias eternizadas no seu repertório compartilhado. Sob o ponto de vista da estrutura sonora, a combinação instrumental de sanfona, triângulo e zabumba, criada e utilizada exaustivamente pelo compositor, passou a responder pela própria idéia do forró, tornando-se uma espécie de “santa trindade”2 do gênero, responsável por seu reconhecimento no cenário musical. Ao som da sanfona de Luiz Gonzaga, alguns clássicos do repertório foram divulgados em larga escala no país, inaugurando um conjunto de memórias musicais e afetivas compartilhadas por grande parte da população brasileira. O seu jeito especial de tocar ruralizou a sanfona, estabelecendo uma relação indissociável entre o instrumento e o ambiente sociocultural do sertão. As temáticas sertanejas, identificadas com uma certa pureza e
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A expressão foi empregada pelo prestigiado forrozeiro Santanna, em entrevista ao autor em 14/02/2008.
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simplicidade rural, a partir de então, tinham um acompanhamento instrumental determinado. Reforçando ainda a lógica rural-sertaneja, é possível identificar na obra seminal de Luiz Gonzaga uma construção narrativa onde as ações humanas são fortemente marcadas por sua relação com a natureza, que corresponde a um tipo de administração temporal no qual os ciclos de trabalho e festas relacionados ao plantio e à colheita determinam períodos de prosperidade, carência, tensão, trabalho e ócio (Vieira, 2000, p.195-198). Assim, os elementos da natureza são evocados nas canções de diversas maneiras seja através da descrição paisagens, lugares e cenários, da observação de animais ou da narrativa de angústia pela espera de mudanças climáticas (Austregésilo Lima, 2005, p.151). A temporalidade rural opõe-se à velocidade das cidades, onde pessoas, automóveis, notícias e emoções circulam apressadamente por seus espaços físicos apertados e onde é proibido perder tempo “olhando pro céu”. No entanto, o sertão gonzagueano não está construído exclusivamente sobre uma noção mais “natural” do tempo, mas também vincula-se à idéia de saudade. Imaginado a partir de referenciais urbanos, o sertão do repertório do forró encontra-se eternamente distante no tempo e no espaço. Sua tensão emotiva reside basicamente na dicotomia entre o aqui do cantador e o lá do ambiente idealizado nas canções (Vieira, 2000, p.147). Um exemplo particularmente contundente da expressão musical dessa saudade é o início da música No meu pé de serra (Luiz Gonzaga/ Humberto Teixeira), lançada em 1946: Lá no meu pé de serra Deixei ficar meu coração Ai que saudades tenho Eu vou voltar pro meu sertão
A expressão pé de serra utilizada nesta canção servirá de inspiração, décadas mais tarde, para designar a vertente estilística do gênero mais estreitamente identificada com esta origem simbólica. A localidade mencionada na canção situa-se numa espécie de 204
“interior do interior”, onde a única referência possível é a proximidade com a serra. Por outro lado, trata-se de uma distância apenas física, uma vez que o “coração” do personagem continua no local. Desenvolve-se aqui uma tensão emotiva entre a distância real e a proximidade afetiva, que se tornará constitutiva do imaginário do forró. Para o semiólogo da canção Luiz Tatit, um dos grandes motivos para a projeção comercial da obra de Luiz Gonzaga era exatamente o seu “tom rural”, que demonstrava para os empresários do ramo que “havia uma lacuna a ser preenchida no empreendimento popular das emissoras: o grande contingente de público que migrava do nordeste para trabalhar na capital” (1996, p.149). Assim, a tensão entre campo e cidade se transformava em um segmento de mercado urbano temperado com sabores do sertão nordestino. Trata-se, portanto, de uma música que, “saindo do sertão para a cidade, reinventa um sertão pé-de-serra, um sertão-lembrança, um sertão cartão-postal, um sertão-paraíso. Um sertão agora visto pelos olhos de quem partiu, mirou a cidade e mergulhou num mundo maior” (Vieira, 2000, p.90). Em meados do século passado, as narrativas do sertão cantadas no repertório gonzagueano, quase todo composto em parceria com Zé Dantas ou Humberto Teixeira, ecoavam de forma altamente expressiva na memória de milhares de migrantes, que compartilhavam os significados, as paisagens e as imagens. Colaboravam, assim, para a consolidação de uma imagem de Nordeste, estreitamente vinculada à idéia de sertão e apontando inexoravelmente para o passado, para a memória e para a saudade. O baião será a “música do Nordeste”, por ser a primeira que fala e canta em nome desta região. Usando o rádio como meio e os migrantes nordestinos como público, a identificação do baião com o Nordeste é toda uma estratégia de conquista de mercado e, ao mesmo tempo, é fruto desta sensibilidade regional que havia emergido nas décadas anteriores (Albuquerque Júnior, 2006, p.155).
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A ênfase no aspecto regional facilitou a ocupação de um filão mercadológico que respondesse a essa demanda. Nesse sentido, a vertente comercial inaugurada por Luiz Gonzaga foi trilhada por conterrâneos seus, com relativo sucesso, sedimentando a criação de um novo gênero musical baseado na referência rural-sertaneja. Nomes como Jackson do Pandeiro, Marinês, Trio Nordestino, entre outros, tornaram-se ícones do gênero forró, coadjuvando Luiz Gonzaga na criação de um conjunto de “regras de gênero” (Fabbri, 1981, p.52) que transformaram o forró numa categoria reconhecida pelo conjunto da sociedade. É importante sublinhar que o referencial sertanejo que moldou a construção do gênero musical forró sempre foi acompanhado por uma estratégia comercial visual de absorver signos deste universo. O chapéu de couro e as paisagens rurais compõem parte importante deste imaginário, reforçando a identificação simbólica entre a prática musical do forró e as referências à idéia de sertão.
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Uma vez criada comercialmente a referência básica do gênero, o repertório consagrado se consolida como uma fonte de elementos musicais e simbólicos para reconhecimento e caracterização do forró. Articula, dessa forma, uma memória musical e afetiva, cadastrando tais elementos e relacionando-os a sentimentos, valores, pensamentos e visões de mundo compartilhados por aqueles que se identificam e admiram o gênero. Dentre esses elementos, podemos destacar a importância do instrumental baseado na sanfona, zabumba e triângulo e a temática rural-saudosista, concebida a partir da tensão entre a idealização do sertão e a realidade da produção musical urbana. Como símbolo representativo mais importante, o “pé de serra” vai batizar esse conjunto de simbologias, opondo a vertente tradicional do forró a outras tendências estilísticas que surgiram no mercado a partir do início da década de 1990. O forró pé de serra se transforma numa categoria que agrega nomes como Maciel Melo, Dominguinhos, Santanna e Petrúcio Amorim, que reiteram em várias músicas sua filiação afetiva e emocional ao universo simbólico do sertão. Um exemplo emblemático desta simbiose atual é a canção Cheiro de nós (Nanado Alvez/ Ilmar Cavalcante), gravada por Santanna em 2001: Ainda sinto o cheiro bom Terra molhada já secou mas ainda cheira Menino grita pendurado na porteira O pai já vem trazendo o gado pra trancar (...) É como cheiro de saudade Que na verdade nunca vai sair de mim Anda comigo desde os tempos de menino Acompanha o meu destino Me faz tão feliz assim
Com um acompanhamento baseado na “trindade” da sonoridade do forró, somado a uma estrutura harmônico-melódica recorrente em canções consagradas do repertório, a letra enaltece o sentimento de saudade através do cheiro da terra molhada, numa 207
valorização intencional e explícita do ambiente rural. Com isso, aciona uma determinada bagagem musical e afetiva ao utilizar elementos musicais e poéticos previamente empregados na sedimentação do gênero, “anáfonos”3 (Tagg, 1982, p.24) aos encontrados em canções conhecidas do repertório. Mais uma vez, a associação ao universo do sertão não se restringe ao componente sonoro, mas inclui também uma latente preferência pela adoção de imagens, indumentária e cenários sertanejos, que podem ser encontrados em capas de discos, sites na Internet e nas apresentações ao vivo dos principais forrozeiros pé de serra em atividade.
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Segundo o musicólogo Philip Tagg, uma “anafonia” é um elemento sonoro similar a outro previamente ouvido e conhecido, que pode ser associado a conjuntos de significados igualmente análogos. O reconhecimento de anafonias é central na metodologia de análise musical semiótica proposta pelo autor, que destaca que a construição de sentidos na música não se dá literalmente, mas lateralmente, ou seja, através desses reconhecimentos e do acesso a essas memórias musicais e afetivas que permitirão as associações e identificações.
O forró se sedimentou no mercado através dessa valorização do sertão. Seu conjunto de sonoridades (principalmente a sanfona), vocabulário (através da utilização de jargões da linguagem regional 4) e imagens (chapéu de couro, cenários de agreste, casas de barro, etc...) passou a servir de indicador de qualidade da produção forrozeira, conferindo valor e legitimidade aos artistas e às canções. Quanto mais próximo de uma relação estreita com o sertão, mais “autêntica” era a voz do forrozeiro e melhores suas condições de ingressar no mercado.
A cidade grande e o forró Uma vez que o sertão é construído no imaginário do forró pelo migrante como espaço de saudade (Albuquerque Jr, 2006, p.151), esse imaginário é repleto de referências, ainda que indiretas, à idéia de cidade. Como o sertão imaginado – “cartão-postal” – tem origem no ambiente urbano, sua descrição assume quase sempre uma forma comparativa. Nesse sentido, ao narrar um tempo mais lento, descrevendo coisas e animais que para serem vistas “o cristão tem que andar a pé”5, o repertório referencial do forró investe na valorização de uma temporalidade rural em resposta ao tempo acelerado do progresso da cidade. Tudo o que tem de bom no sertão (e no Nordeste) se constrói e se reafirma, portanto, pela negação de características encontradas na “capital”. Um bom exemplo é o clássico No Ceará não tem disso não (Guio de Morais), lançado por Luiz Gonzaga em 1950: Tenho visto tanta coisa nesse mundo de meu Deus Coisas que pra um cearense não existe explicação
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Podemos pensar em canções como Peba na pimenta, O ABC do sertão, Sala de reboco, O canto da ema, entre outras. O uso de uma linguagem propositadamente carregada de sotaque e jargões de linguagem não hegemônicas conferia aos artistas de forró uma aura de autenticidade, que sempre foi algo fundamental para a projeção comercial do gênero. Verso da canção Estrada de Canindé (Luiz Gonzaga).
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Qualquer pinguinho de chuva fazer uma inundação Moça se vestir de cobra e dizer que é distração Vocês cá da capitá me adiscurpe essa expressão (...) Nem que eu fique aqui dez anos eu não me acostumo não Tudo aqui é diferente dos costumes do sertão Não se pode comprar nada sem topar com tubarão Vou voltar pra minha terra no primeiro caminhão Vocês vão me adiscurpar mas arrepito essa expressão No Ceará não tem disso não, tem disso não, tem disso não
A música é uma prática cultural que representa e elabora visões de mundo, pensamentos e formas de comportamento compartilhadas. Nesse sentido, a falta de adequação do sertanejo aos costumes da cidade descrita na canção acima aponta para uma negociação tensa entre visões de mundo conflitantes. As relações de gênero e a sexualidade são eixos temáticos bastante abordados, comumente pelo viés bem humorado, que é um recurso para elaborar assuntos polêmicos e complexos, discutindo uma determinada moral vigente. As “moças” que se “vestem de cobra” configuram uma temática recorrente do repertório consagrado do forró, como em Xote de Copacabana, de Jackson do Pandeiro: Aquelas moças correndo de maiô à beira-mar As mulheres na areia se deitam de todo o jeito Que o coração do sujeito chega a mudar a pancada E muitas delas vestem um tal de biquini Se o cabra não se previne dá uma confusão danada
Temática semelhante é abordada na pouco conhecida Garotas do Leblon (Luiz Gonzaga/ Severino Ramos): Quando chega o domingo vou correndo pro Leblon Chego na praia tibungo com as meninas Chega a ser aquilo bom, aquilo bom
É evidente que tais conflitos não podem ser explicados exclusivamente pela dicotomia entre sertão e cidade, uma vez que 210
essas canções foram compostas e divulgadas num determinado período histórico propício para este tipo de debate (com a emergência do feminismo, com a liberação sexual, etc...), no qual a experiência do sertanejo migrante na cidade apenas intensificava alguns dilemas morais. Porém, as comparações entre referenciais culturais mais ligados a um padrão tradicional (encontrado de forma mais intensa no mundo rural) e a noção de velocidade e tecnologia (modernidade) da cidade estiveram na ordem do dia do repertório do forró desde seu surgimento comercial. No repertório do forró pé de serra atual, a tensão entre cidade e sertão aparece de várias formas. Alguns compositores abordam de maneira bastante explícita sua preferência pelos referenciais rurais, tanto na utilização ortodoxa do trio instrumental quanto na temática das letras, altamente reverente ao imaginário do sertão. A tecnologia e a velocidade são representantes da vida urbana que, com freqüência, entram em choque com os referenciais sertanejos, como em Minha home page (Petrúcio Amorim): Quando eu me lembro do ruído da cancela Do cheirinho da panela, do terreiro da usina Uma sanfona, uma zabumba, uma viola E eu ali contando história no ouvidos das meninas Como era bela a lua nova no engenho Fazer amor no meio do canavial Felicidade cadê tu que hoje não vem Minha esperança se perdeu na capital Como é que vou dizer no meu computador Se a home page não tem cheiro e nem chora Da alegria e da saudade do amor Que o tempo nunca leva embora
Destaca-se nesta canção a forte ênfase nos elementos que perfazem a caracterização do sertão e que operam numa antítese da vida na cidade, descrita como um espaço sem esperança ou felicidade. A imagem de um computador sem cheiro ou emoção representa a frieza da cidade, que se contrapõe à vida afetuosa e romantizada do sertão dos engenhos, cancelas e canaviais, ao som da zabumba, 211
sanfona e viola. Esse tipo de discurso aparece em diversas canções do repertório, que descrevem o sertanejo na cidade como uma pessoa fora de lugar, “contrariado”6 e saudoso. Uma exceção a essa visão pessimista é a canção Coração @ com.você, de Xico Bizerra, que utiliza linguagem de informática para enviar uma mensagem de amor à sua amada, aparentemente sem maiores sacrifícios emotivos: Configurei meu coração e só tu pode acessar Tive cuidado, botei senha, venha se conectar (...) Mas se tu quiser, um texto com a fonte mais linda te escrevo E na planilha do amor demonstro meu enlevo Vou te contar on-line a extensão do meu amor E num arrasta-pé, sob teu domínio eu cheiro teu cangote Passo a noite em teu site só dançando xote E jogo na lixeira os arquivos da dor
Como uma espécie de mapa de referências dessa simbologia da cidade no forró pé de serra, a emblemática canção auto-biográfica Cidade Grande, de Petrúcio Amorim, resume algumas questões centrais do imaginário da cidade grande construído no repertório do forró pé de serra. Lançada em 1993 no seu segundo LP e regravada pelo próprio artista em 2000 no CD “A festa do forró”, a música apresenta uma sonoridade não muito ortodoxa em relação ao perfil sonoro referencial do gênero. Ao lado das duas sanfonas, da zabumba e do triângulo, ouvimos com certa clareza o baixo elétrico, a bateria, guitarra e teclado. O diálogo entre instrumentos característicos de outras searas musicais como a combinação roqueira “baixo guitarra e bateria” evidencia um tom menos rural no resultado sonoro, buscando uma estética que caminha para a urbanidade. O próprio 6
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Na canção Lamento sertanejo, de Dominguinhos e Gilberto Gil, o sertanejonarrador expressa esse sentimento: “Por ser de lá/ Do sertão, lá do cerrado/ (...) Eu quase que não consigo/ Ficar na cidade sem viver contrariado”.
Petrúcio descreve essa mescla como algo salutar, que vem sendo feita desde o final da década de 1970: Foi quando em 1978, 1979 (...) apareceu Jorge de Altinho (...) com uma tendência de deixar o forró mais jovem. Porque a característica do forró (...) era a zabumba o triângulo e a sanfona, e cada um que ouvia imaginava o pai, avô, a avó, (...) pensava em Luiz Gonzaga, falando do sertão, da vida do boiadeiro, da seca, da miséria. Então Jorge me falou que estava querendo fazer um trabalho no Nordeste, mas que fosse uma conotação de música popular e que as rádios voltasse a tocar o forró (...). Aí é onde vem a história que eu digo história melhorada do forró. Forró só se ouvia zabumba, triangulo e sanfona. Aí passou-se a fazer show com a inclusão da bateria, do baixo, da guitarra e dos metais: sax, trombone e pistom. (...). Porque (...) a adesão estava sendo tão grande ao forró que (...) começaram a fazer [shows] em casas grandes com capacidade de 5 mil, 6 mil pessoas. Pra se formar no palco o show somente com a zabumba, o triângulo e a sanfona não dava para as pessoas ouvirem, mesmo que fosse boa a qualidade do som da época, não se ouvia perfeição, não tinha o baixo para dar o peso, não tinha a guitarrinha pra dar o agudo. De peso mesmo a zabumba que não é esse peso todo, o triangulo fazendo o agudinho e a sanfona. E as pessoas sentiam necessidade (Petrúcio Amorim, depoimento ao autor em 25/02/2008).
De certa forma, é possível entender a sonoridade desta gravação como uma tentativa de conciliação de um conflito entre os trios instrumentais da cidade (e do rock: baixo, guitarra e bateria) e do sertão (sanfona, triângulo e zabumba), que já não era exatamente uma novidade no repertório. No entanto, ouvindo-se a canção, é fácil perceber que o ambiente afetivo tende indiscutivelmente para o lado dos referenciais sertanejos, principalmente pelo grande destaque da sanfona, que toca a introdução e todos os comentários melódicos ouvidos durante a gravação. O imaginário do sertão aparece ainda 213
na temática da letra, que descreve a cidade grande como um lugar de dissimulação, sofrimento e loucura no qual a grandeza esconde mistérios indecifráveis. Cidade grande, chaminé de gasolina Foi minha sina nos teus braços vir parar Tua grandeza me levou a um delírio Feito um colírio clareando meu olhar Cidade grande paraíso da loucura Quem te procura feito vim te procurar Sofre um bocado pra entender o teu mistério Falando sério foi difícil acostumar Cidade grande moça bela (bis) Tu tens o cheiro da ilusão Quem passou na tua janela Já conheceu a solidão Teu movimento comparei ao um formigueiro De tão ligeiro eu comecei a imaginar Meu Deus do céu como é que a felicidade Nesta cidade acha um espaço pra morar Minha tristeza rejeitou tua alegria Num belo dia quando pude perceber Que o progresso e que faz do teu dinheiro Um cativeiro onde se mata pra viver Cidade grande... (bis) Quando eu olhei a água preta do teu rio Um calafrio me subiu ao coração Fiquei com medo de algum dia o oceano Achar um plano e se vingar na traição Cidade grande se tu fosses minha um dia Eu te mostraria como a abelha faz o mel Mas quem sou eu apenas um simples poeta Que vê a vida com os olhos para o céu
O ambiente de loucura e ilusão assusta o migrante do sertão que “veio parar” nos “braços” da cidade, tornando difícil e sofrida sua adaptação. Na primeira estrofe e no refrão, o personagemcantor narra seus sentimentos gerais sobre essa chegada, refletindo a tensão entre sertão e cidade. 214
As duas estrofes seguintes da música descrevem, respectivamente, dois aspectos centrais na construção do imaginário da cidade grande no forró pé de serra: a velocidade e natureza. Como vimos, a relação temporal-espacial descrita no repertório referencial aponta para uma vivência orgânica, conduzida pelos ciclos da natureza e permeada por relações humanas mais diretas. A felicidade está associada à vivência do ritmo cadenciado da caminhada7, onde se pode “olhar o céu” e ver “o orvalho mudar de cor”. Assim, os dois choques mais latentes do migrante-narrador são precisamente o “movimento ligeiro” e a “água preta do rio”, representantes de uma falta de espaço-tempo para a própria felicidade e pelo descaso para com a natureza. No entanto, essa cidade é reconhecida como lugar alegre, rejeitada pela tristeza do personagem-cantor. O ambiente urbano é diagnosticado como um lugar de competição (“onde se mata pra viver”), com pouco espaço para a felicidade. Note aqui que há uma diferença entre alegria e felicidade, sendo o segundo um sentimento mais profundo e sereno que, no subtexto da canção, só pode ser atingido longe do ambiente “ligeiro” da cidade.
Imaginários: o sertão contra a cidade, que constrói o sertão De um modo geral, a noção de cidade na música popular brasileira é tratada com um certo carinho. Com exceção de algumas práticas musicais que se posicionam de forma mais crítica com relação às contradições das cidades, os variados repertórios de música popular urbana nutrem uma relação amigável e afetuosa em relação ao território que ocupam. Quase sempre, as cidades são cenários nos quais as simbologias e as redes de relacionamento social vão surgir e se atualizar continuamente nos repertórios musicais. 7
A imagem da caminhada aparece em várias canções, tanto como medida de distância (como em Vem viver essa paixão, de Maciel Melo ou Légua tirana, de Luiz Gonzaga) quanto para enaltecer esse tempo mais dilatado, contrapondo-o a um tempo apressado, comprimido (veja Estrada de Canindé, de Luiz Gonzaga).
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Nesse sentido, o forró talvez seja um exemplo idiossincrático por eleger como referencial afetivo principal uma localidade que se encontra irremediavelmente distante de sua área física de produção. Imaginando um sertão “cartão-postal”, visto, sentido e cantado a partir da experiência urbana, o forró sedimenta uma série de atributos idealizados a esta ruralidade, construída como uma espécie de negativo da cidade. O imaginário urbano celebrado pelo rock, pelo samba e pela bossa nova aparece no repertório forrozeiro invertido na reverência ao paradigma sertanejo, este sim associado à autenticidade, à felicidade e construindo uma imagem saudosista incontornável. Esse negativo territorial opera ainda como uma forma de associação ao passado do gênero, fundado no referencial do repertório de Luiz Gonzaga. Desta forma, os forrozeiros contemporâneos, ao atualizarem seu olhar enviesado da cidade para o campo, estabelecem um eixo de permanência temporal do forró, sedimentando uma tradição musical. Campo, cidade, passado e presente se fundem em referências simbólicas construídas a partir de uma tensão emotiva de desencontro espacial e temporal, que se torna recurso expressivo preferencial do repertório forrozeiro, cativando mentes, corações e construindo imaginários de sertões em cidades de todos os tamanhos.
Referências ALBUQUERQUE JUNIOR., D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez / Recife: Massangana, 2006. FABBRI, F. A theory of music genres: two applications. In: Popular Music Perspectives, Papers from the First International Conference on Popular Music Research, David Horn e Philip Tagg, eds., IASPM, Göteborg & Exeter, 1982. JANOTTI JUNIOR, J. Mídia e música popular massiva: dos gêneros musicais aos cenários urbanos inscritos nas canções. In Imagens da cidade: espaços urbanos na comunicação e cultura contemporânea. Ângela Prysthon (org.). Porto Alegre: Sulina, 2006. LIMA, J. M. A. S. A oralidade e a imagética em Luiz Gonzaga. Dissertação de mestrado defendida no PPGCOM – UFPE. Recife, 2005.
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MENDONÇA, S. R.. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Hucitec, 1997. TAGG, P. Introductory notes to the semiotics of music. Disponível em www.tagg.org. Acesso: 12/06/2005. Liverpol/ Brisbane, 1999. TATIT, L. O cancionista: a composição de canções no Brasil. São Paulo, EdUsp, 1996. VIEIRA, S. O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. São Paulo: Annablume, 2000.
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SOM DE PRETO, DE PROIBIDÃO E TCHUCHUCAS: O RIO DE JANEIRO NAS PISTAS DO FUNK CARIOCA
Simone Pereira de Sá É som de preto, de favelado Mas quando toca, ninguém fica parado Amilckar e Chocolate. Som de Preto.
Apresentação Ao explorar as conexões entre o ambiente urbano e a experiência da modernidade Marshall Berman (1987) utilizou-se de uma expressiva metáfora. Floresta de símbolos foi a expressão do autor para descrever a polifonia da metrópole moderna, tomando-a como um texto aberto à leitura e ao deciframento, onde múltiplos discursos se entrecruzam, numa disputa constante pelo mapeamento do território através de visões, descrições e apropriações ora harmoniosas, ora conflitantes. Dentre as múltiplas narrativas que atravessam a cidade, caberia destacar a centralidade daquelas produzidas pelas indústrias culturais – e dentre elas, o caso específico da indústria da música massiva – articuladas numa via de mão dupla com a questão da cidade e, em especial, com as identidades urbanas na modernidade. Via de mão dupla porque é inegável que a cultura da música observa, traduz, representa e atribui sentidos expressivos ao espaço urbano, produzindo narrativas que, ao longo do século XX (e início do XXI) colaram-se a certos bairros ou cidades de maneira definitiva. Sampa, Cidade Maravilhosa, New York, New York são alguns dos exemplos que encabeçam uma lista interminável de músicas que se 218
tornaram cartões postais auditivos das cidades homenageadas, com os quais somos conclamados a dialogar. Por outro lado, a cultura da música ocupa a cidade, apropriando-se de seus espaços físicos e construindo circuitos concretos – de bares, locais para shows ou ocupação informal de praias e ruas que, de novo, vão cartografar e dar sentido a certos bairros, regiões ou, em casos extremos, à cidade ou mesmo a nação como um todo. É o caso da Lapa com samba e choro; de New Orleans com o jazz; da Jamaica com o reggae; de Ibiza com a música eletrônica, ou de Salvador com o axé. Partindo desta articulação, meu objetivo neste trabalho é o de abordar o funk carioca, apreendendo-o como uma expressiva narrativa sobre a cidade do Rio de Janeiro nas duas últimas décadas, que faz parte da paisagem sonora e da experiência urbana de qualquer morador ou turista em visita à cidade nos dois sentidos acima mencionados: produzindo um discurso sobre os territórios urbanos e ao mesmo tempo ocupando espaços e criando um circuito de bailes que cartografa a cidade de uma maneira bastante específica. Trilha sonora de uma cidade partida. Som da resistência carioca. O Outro do samba. Problema nacional. Estas observações – emitidas em momentos diferentes por diferentes agentes sociais – apontam para a disputa simbólica e para a complexidade dos canais de negociação através dos quais este gênero circula. Partindo da análise realizada por colegas que tiveram o funk como objeto de pesquisa – em especial os seminais trabalhos de Hermano Vianna (1988) e de Micael Herchmann (2000); e seguindo algumas pistas sugeridas por eles e corroboradas por trabalhos jornalísticos de excelente qualidade – tais como o de Silvio Essinger (2005) e de Suzana Macedo (2003), procuro ressaltar aspectos que legitimam o funk como uma narrativa polifônica que traduz aspectos do imaginário social do Rio de Janeiro na atualidade. Entender a especificidade desta articulação e seus circuitos alternativos de circulação, num momento em que a cidade não fala mais em nome da nação são, pois, os desafios deste artigo, que se organiza em duas seções. 219
Na primeira, parto do contexto histórico de identificação carioca com o samba e deste com a identidade nacional, buscando contrapô-lo ao momento posterior, de fragmentação das identidades, quando surge o funk. Na segunda, retomo aspectos da história do funk, identificando algumas de suas diferentes estratégias discursivas para se construir como gênero em articulação com o território e com o imaginário da cidade.1
“Coração do meu Brasil...” Como é sabido, o debate sobre a identidade nacional 2 no Brasil remonta às décadas posteriores à Independência, quando a preocupação dos intelectuais e ideólogos em definir o “caráter” e a “identidade” nacionais esbarravam nos diagnósticos que condenavam a mistura de raças e recomendavam o embraquecimento, para superar o “atraso” do desenvolvimento do país. (Schwarcz, 1993) A virada de perspectiva se dá entre os anos de 1920 e 30, quando se assiste à “invenção de uma tradição” ligada à cultura popular carioca, à herança afro-baiana que aportou na capital após a Abolição da Escravidão e à mestiçagem; e que fica conhecida como a teoria do melting pot, a partir da obra de Gilberto Freyre, especialmente em Casa Grande e Senzala (1952). Ainda que a contribuição de Freyre seja incomensurável e pouco avaliada, não se pode atribuir a um só personagem a vitória do argumento que resulta na valorização da cultura popular como símbolo da identidade brasileira. Pelo contrário, pode-se afirmar que Gilberto Freyre foi um dos catalisadores de uma discussão constituída por muitas vozes e repleta de mediadores que vão desde interlocutores institucionais 1
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Este trabalho insere-se no contexto das reflexões da pesquisa “Cibercultura, gêneros e cenas na música eletrônica do Brasil”, financiado pelo CNpq. Para os fins desta discussão, partiremos da definição sociológica de identidade enquanto “processo de construção de significados com base em um ou mais atributos culturais inter-relacionados (Castells, 1999, 22); compreendendo em decorrência a noção de identidade nacional como uma das identificações que ocorre por ocasião do processo de fortalecimento dos Estados-nação.
do Governo Getúlio Vargas a empresários da indústria de entretenimento, além de compositores populares e cantores que contribuem para a invenção, a muitas mãos, de uma tradição que tem por base rítmica a matriz da cultura carioca, onde se encontram heranças musicais distintas; e por base ideológica a idéia de mestiçagem3. Desde então o Carnaval e seus ritmos passam a reivindicar para si o papel de agentes da homogeneização e harmonia da nação brasileira, tarefa que vão desempenhar com sucesso, pelas próximas décadas, permeando as diferenças hierárquicas e as desigualdades sociais. Ou seja: no Brasil, quando se trata de “falar em nome da nação”, a crença é a de que, ao lado do futebol, a música é talvez o outro único terreno em que temos autoridade e legitimidade para nos apresentarmos perante o mundo com uma produção forte, potente e original representada pelo samba. Ao mesmo tempo, o discurso de legitimação do samba recorre muito fortemente à categoria de “tradição”, traduzida em adjetivos como “raiz” e “pureza”, a partir de um estratégico esquecimento das diversas misturas que fundam este gênero musical. Se até anos 50/60, a identificação nacional passa pela capital – a “Cidade Maravilhosa” que é o “coração do meu Brasil”; pelo “espírito carioca” – informal, espontâneo, cosmopolita, hedonista, cultuando o ócio e a malandragem– e sua música, notadamente o samba e as marchinhas de Carnaval, a mudança da capital para Brasília representa o marco inicial de modificação desta imagem. A partir daí inicia-se um longo processo de esvaziamento cultural do Rio de Janeiro como referência nacional, acirrado nas décadas seguintes por uma trama complexa de fatores dentre os quais podemos mencionar o crescimento urbano desordenado, com a multiplicação das favelas, a incorporação da cidade ao Estado do Rio, o crescimento
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Para a discussão sobre o estabelecimento do samba enquanto símbolo da identidade nacional, ver o trabalho de Vianna (1995). E também Sá (2002) Para a discussão das relações entre cultura e política, na década de 30, ver: Estado Novo: ideologia e poder. Oliveira, Lucia Lippi et alli. Rio de janeiro, Zahar.1982 e Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Monica Pimenta Velloso. Rio de janeiro, FGV/CPDOC.
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da violência e do poder do tráfico de drogas e a incompetência de sucessivos governos estaduais e municipais para gerir os conflitos. Processo que tem por resultado a imagem da “cidade partida”, que inviabiliza a ideologia do convívio harmônico entre morro e asfalto tão celebrado na música popular até então e cujo ponto final se dá com a bossa nova. Junte-se a isto um processo mais geral – o chamado processo de globalização, que envolve o planeta em relações de comércio, finanças, cultura e transmissão da informação, e, entre outros, tem profundos impactos na rearticulação das identidades. Sobre este fenômeno, cuja discussão não cabe nos limites desta reflexão, o ponto a ressaltar é o de que os vetores da desterritorialização, fragmentação, fluxo e trânsito transnacional colocam em xeque a definição de identidade fixa e estável da modernidade4. Em primeiro lugar, porque uma das fontes importantes de material para a construção da identidade cultural – o Estado-nação – vem sendo confrontado por formas de articulação transnacionais, que borram estas fronteiras, tensionando as relações do cidadão com a nação. Da mesma forma, a metrópole também pode ser afetada, ou pelo menos descentrada, a partir de um processo de fragmentação, desmaterialização ou de esmaecimento de fronteiras - seja em relação ao rural, na oposição clássica; seja em relação aos fluxos virtuais; que se acompanha pela desmaterialização da oposição residência/ trabalho. Como este processo afeta a música popular brasileira enquanto fonte de identidade? Ora, refletindo todos estes processos, o que o cenário musical brasileiro traz de novo a partir de final dos anos 70 e início dos 80 é a crescente diversidade, revelando-nos um panorama onde a hegemonia da cultura musical carioca e do circuito de produçãodistribuição-consumo centrado nas gravadoras do eixo Rio-São Paulo vai sendo mais e mais desafiado pela fragmentação, segmentação e 4
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Conforme observa Hall (1992) a noção de identidade fixa e estável já fora questionada pela psicanálise; pelo marxismo e pela perspectiva foucaultiana, dentre outras correntes, na modernidade. Trata-se aqui, no caso da globalização, de mais um fator a colocar esta noção em risco.
diversidade dos novos grupos e propostas musicais, que se articulam em níveis diversos de independência com o grande mercado nacional e criam novas formas de relacionamento transversal com os polos da cultura internacional. É neste contexto que a oposição entre comunidade e cena musical (Straw, 1991), torna-se relevante para a discussão. Pois, enquanto a primeira define um grupo estável, cujo envolvimento com a música toma a forma da exploração de idiomas musicais enraizados geográfico-historicamente, como é o caso acima mencionado da comunidade do samba, sempre ciosa de suas raízes, tradições e fronteiras; a noção de cena remete a um grupo demarcado por um espaço cultural onde coexiste uma diversidade de práticas musicais que interagem de formas múltiplas, através de diferentes trajetórias de troca e fertilização. Entretanto, esta distinção não deve ser tomada de forma absoluta. Pelo contrário.Creio que sua utilidade se dá somente se tomarmos comunidade e cena como estados momentâneos do processo de construção dos gêneros musicais, entendendo a oposição como uma tensão entre dois vetores opostos que atravessam e mediam este processo, contribuindo para a compreensão de como gêneros globais são apropriados e traduzidos localmente. É dentro deste novo cenário que o funk vai se desenvolver, como veremos a seguir.
“Rio 40 graus...” Ainda que a origem do funk carioca remeta-se ao contexto de toda uma movimentação que tem início ao final da década de 60 e atravessa os anos 70 em torno de festas noturnas para dançar ao som da soul music5, podemos identificar seu surgimento a partir de meados da década de 80, em consonância com o sucesso do Miami Bass no Estado americano da Flórida. Esse estilo musical – que
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Discuto este processo em detalhes no texto Sá (2007). Ver também Vianna (1988), Herschmann (2000) e Essinger (2005) .
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logo chegou ao Brasil e foi adotado nos bailes – tem como marcas as batidas pesadas e os versos curtos, mais acelerados e menos engajados politicamente do que o hip hop. Além de dezenas de alto falantes empilhados, este tipo de música usa graves de freqüências muito baixas (abaixo de 60 HZ) que normalmente são removidas na hora da mixagem, produzindo um som poderoso, que mexe com o corpo na pista. Segundo o DJ Marlboro, um dos pioneiros e mais importantes Djs de funk do Brasil (Macedo, 2003, p.47) “O Miami Bass estourou no Brasil antes de estourar nos EUA. Uma explicação pra isso pode ser a batida mais grave das baterias eletrônicas, que tem certa semelhança com o nosso surdo do samba”. Nesta primeira fase que marca a entrada do Miami Bass no Brasil pela porta da periferia do Rio, durante a segunda metade nos anos 80, sem qualquer conexão com as grandes gravadoras ou estratégias globais de marketing, os bailes eram animados exclusivamente por músicas estrangeiras, conforme atesta Marlboro: Só tocava música estrangeira... só tocava internacional nos bailes... Alguns eram instrumentais e outras eram com letras... quando você tocava uma música, instrumental, às vezes os refrões eram cantados... são os BGs das músicas... o lado B dos discos.
Por cantada, Marlboro refere-se a uma prática de apropriação que é importante enfatizar: ignorantes das letras em inglês, o que os freqüentadores cantavam era uma frase que, sonoramente, se assemelhasse ao que estava sendo dito em inglês, mas que tinha um sentido absolutamente distinto em português. Temos aqui, então, uma primeira forma de apropriação criativa, que resulta num produto obviamente híbrido: música americanas tocadas em versões instrumentais com refrões gritados pelo público dos bailes em português. Foi assim, por exemplo que uma das mais conhecidas músicas da galera do funk, que virou inclusive hino das torcidas cariocas, surgiu. Trata-se da música Whoop!There it is, do Tag Team, que se torna Uh! Tererê! Ou que You talk too much torna-se a melô do Tomate. 224
Prosseguindo na explicação dos passos desta apropriação, Marlboro lembra a origem da prática de dar novos nomes às canções: Melô era um apelido que a gente dava pra facilitar pros ouvintes pedirem a música no rádio.(...) A pessoa ficava constrangida, tímida em falar nomes difíceis em inglês.(...) Aí a gente lançou uma brincadeira no rádio que era assim: pegava uma música e pedia pro pessoal batizar. No final do programa pegava a melhor, o ouvinte que tinha dado a melhor sugestão entrava no ar e aí tinha solenidade de batismo: “pelos poderes do big mix...pela comunidade dançante do Rio de Janeiro - que está de bem com a vida – eu te batizo óóóóó música como a melô da.. 6
Músicas internacionais, apropriações de refrões e uma intensa atividade de leva-e traz e de garimpo e descoberta de discos novos, importados, pelas equipes de som marcam então este primeiro momento da construção do funk. Construção que, conforme ressaltam Vianna (1988) e Herschmann (2000), ocorre através de um circuito paralelo à margem das grandes gravadoras e da imprensa– que ignoram o fenômeno – e vai até o final da década de 80. Ainda conforme os pesquisadores, os discos eram conseguidos através de empregados de companhias aéreas ou de agências de viagem, quando não os próprios Djs, que traziam direto dos EUA – Nova York ou Miami – as novidades, disputadas a peso de ouro pelas equipes de som. Uma vez conseguido um bom disco, a primeira providência era arrancar o selo e adulterar a capa, para dificultar a identificação da música por outros Djs e garantir pelo menos temporariamente, a exclusividade. Entretanto, os passos que começam a mudar o perfil das músicas na direção de uma nacionalização do gênero, já estão a caminho desde meados desta mesma década. Mais precisamente, o primeiro passo é dado pelo já citado Hermano Vianna, que deu de presente a Marlboro uma bateria 6
Entre outras, destacam-se a Melô da Nega (Roll it up my nigger) e A Melô do Gigolô (It´s a gigolô, gigolô, Tony).-Macedo; 2003, p.53.
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eletrônica, em 1985. Com a bateria e um tecladinho, o DJ conta que começou a experimentar certas produções de sonoridades, introduzindo nos bailes, timidamente, “uns quatro minutos” de experimentações que depois foi “evoluindo”. “Fazer música, fazer letra, tentar ver a sonoridade...o que gente podia colocar...som de pagode...som de samba... ver se a mistura podia dar certo...Aí a gente foi fazendo várias experiências mas nunca ficava bom...” O primeiro resultado positivo vem com a versão de Melô da mulher feia. “Foi aí que eu descobri que a música não podia ser falada mas cantada.” diz Marlboro. E a resposta da pista foi imediata. A partir deste momento, as letras em português vão sendo apresentadas nos bailes até que, já em 93 ou 94, as equipes só tocam músicas com letras “cem por cento nacionais”. A nacionalização se dá em cima da batida sonora do Miami Bass e da prática do sampler –a prática de pegar-recortar-copiar-misturar que, sob influência do rap, tornou-se característica da música eletrônica7. Mas, convém nos determos um pouco mais nesta idéia das músicas “cem por cento nacionais”. Pois, de um lado, as letras retratam crescentemente as questões do cotidiano das favelas e bairros de periferia, com forte apelo ao território ou à comunidade. É o caso, por exemplo, dentre tantos outros, do Rap da Felicidade, cujo refrão canta: “Eu só quero é ser feliz, andar tranqüilamente na favela onde eu nasci”, seguindo-se um discurso contra a violência nas favelas, que reivindica junto às autoridades “um pouco mais de competência” (Essinger, 2005, 141) Ou de um dos maiores hinos do funk, o Som de Preto citado na abertura deste trabalho. Inúmeras são as músicas que parecem retomar o espaço das favelas e periferias, de maneira pacífica e harmoniosa, rejeitando o imaginário de violência associado a este território junto à população do Rio de Janeiro e do Brasil e construindo um discurso “consciente”, que prega a paz e valoriza e se orgulha da própria comunidade – em músicas com títulos tais como Rap da Cidade de Deus de Cidinho e
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Discuto estes procedimentos da cultura eletrônica em trabalho sobre as práticas dos Djs. Ver (Sá;2003).
Doca, (que obviamente refere-se ao bairro/favela da cidade com este nome); o Endereço dos bailes, de Junior e Leonardo (que enumera as belezas da cidade e emenda com a lista dos bailes cariocas), o Rap das Galeras, de Manão e Neguinho (que bate o recorde do gênero, listando 66 comunidades); o Rap do Abc, também de Junior e Leonardo, entre tantos outros. Cabe observar que nestas músicas sobressai um discurso inclusivo, que tem ainda como marca o humor; e que defende as favelas como parte da geografia simbólica da cidade do Rio de Janeiro, mas que não toma a mídia, a classe média ou ordem dominante necessariamente como inimigos ou alvo de combate. Entretanto, se as temáticas e a entonação destas canções sugerem um processo de territorialização (Canclini, 1990) do gênero na periferia carioca, a sonoridade destas canções aponta para o vetor contrário, podendo remeter a inúmeras e inusitadas referências – da Tarantella a Madonna, de Prodigy a Gilberto Gil, da vanguarda do Kraftwerk – uma das importantes e recorrentes citações do funk - a trilhas de filmes famosos e/ou sucessos pop do rádio. Além disto, um mesmo material pode ser utilizado em canções diferentes, em versões remixes ou em novas composições 8, ressaltando a importância das noções de reapropriação e circularidade para a compreensão do processo9. Neste mesmo momento, cabe ainda observar que a nacionalização do funk e sua consolidação como expressão dos subúrbios e favelas cariocas não implica em reconhecimento cultural ampliado, tal como se deu com o samba. Pelo contrário. Foi justamente durante estes anos de consolidação que o funk sofreu a maior perseguição e estigma da mídia, da policia e dos “formadores
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A Tarantella aparece, por exemplo, em Dança do Italiano, Empurra, empurra e Tchuco, tchuco chapa quente, lembra Macedo (2003). E, curiosamente, não há qualquer conotação “ideológica” na apropriação das músicas. O que faz com que um sucesso pop da década de 80 tal como Your Love, do grupo The Outfield, sirva de trilha para o polêmico Rap das Armas, de Junior e Leonardo. Discuto estas noções na parte final deste trabalho.
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de opinião”, que acenaram reiteradamente com os argumentos do pânico moral para analisar o fenômeno10. O incidente crítico (Zelizer, 1992)11 que catalisou esta onda ficou conhecido como o “arrastão” e aconteceu em outubro de 1992 nas praias cariocas. Foi quando gangues de facções rivais de morros se encontraram, provocando pânico, confusão e talvez alguns roubos entre os banhistas. Veiculado no Jornal Nacional, principal telejornal da Rede Globo sem identificar os agentes dos distúrbios, a reposta imediata das autoridades consultadas foi a de que “eram os funkeiros”. Seguiu-se um enorme debate e a associação entre os bailes funk e a violência atravessou a década de 90, presente no imaginário da mídia, das autoridades policiais e da classe média, com medidas de repressão, cartas nos jornais e ondas de demonização do fenômeno na mídia.12 O que em nada diminuiu a força do funk na periferia do Rio de Janeiro. No final da década de 90, o funk carioca já apresenta uma extensa produção sobre o tema da violência – especialmente a partir das polêmicas composições conhecidas por “proibidões”, cujas letras tematizam, às vezes em tons laudatórios, a presença das gangues de traficantes, as disputas entre comandos rivais no Rio de Janeiro e seus valores, tais como o de punição aos delatores, chamados de “X-9” na gíria dos morros. Funks que se tornam bastante populares a partir de 1999, circulando em fitas cassetes e CDs piratas vendidos de maneira discreta pelos camelôs (Essinger, 2005). Nesse caso, a entonação é bastante diferente da primeira vertente mencionada. Tal como, por exemplo, o funk gravado pelo conhecido MC Catra, Cachorro, cujo refrão foi reproduzido na imprensa com grande estardalhaço: “Cachorro, se quer ganhar um din-din/vende o X-9 10
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Para a noção de “pânico moral” aplicada ao funk, ver: Freire Filho e Herschmann (2003); e também Herschmann (2000) Para a autora, a noção de incidente crítico demarca situações onde os padrões ou rotinas de ação dos agentes, normalmente naturalizados, vêm à tona e são explicitados, discutidos, negociados e contestados. Para uma compilação de matérias de jornais sobre o assunto, ver a monografia de final de curso de jornalismo de Pamela Oliveira “O Funk Impresso”, orientada pela autora no curso de jornalismo da UFF em 2002.
pra mim/ cachorro, entrega este canalha/deixa ele bem amarrado, pega o dinheiro e rala (vai embora rápido)/se não lá vai bala”.Ou o “Rap das armas” de Junior e Leonardo, que enumera os tipos de armas utilizadas na guerra dos traficantes cariocas, e tem como refrão o onomatopéico refrão-chiclete pa-ra-pa-pa-pa, simulando tiros. Lançada em 1995, esta música torna-se fenômeno nacional no momento em que escrevo, por aparecer na trilha do filme Tropa de Elite. O argumento de Catra, tal como de outros Djs que gravaram esta vertente do funk, é a de que “o proibidão é feito para ser cantado no baile. Não é uma apologia ao crime mas um relato da minha comunidade. O funk nasceu na favela e infelizmente o tráfico também faz parte dela. A sociedade não está preparada para entender o proibidão, porque quem não sofre não dá valor ao sofrimento. Quem não vive no morro não sabe o que acontece lá”. (Essinger; 2005; p.235) Marlboro, por sua vez, diz que sempre foi contra e não dá visibilidade a este tipo de música em seus bailes. Mas, complementa, corroborando a opinião dos anteriores: “Ele fala do traficante com a visão de quem está na favela, que vê o cara como um herói, o cara que não entra no barraco dele dando tiro, não mete o pé na porta da casa dele, não mata o amigo de infância dele. O cara está ali como benfeitor da sociedade” (Essinger, 2005, p.238). Estas opiniões ganham muito pouco espaço na grande mídia impressa e da televisão, que preferen classificar os proibidões como caso de polícia. Um terceiro momento desta história coincide com a chegada do novo século e marca uma nova invasão do funk, agora em espaços distintos de seus bailes de origem. Casas noturnas de classe média, academias, novelas da Rede Globo começam a tocar este tipo de música. Ainda causando suspeição e associado ao mau-gosto, o funk entretanto amplia seus espaços de veiculação. Vale ressaltar que neste momento, sobressai dentro do funk a vertente “sensual”: letras de duplo sentido e forte apelo erótico, que ganha um tom mais provocativo quando incorpora o ponto de vista feminino sobre o assunto. Conforme canta Tati Quebra-Barraco : “Sou feia mas tô na moda e to podendo pagar hotel pros homens, isto é que mais importante”. (música do CD Boladona) 229
Ah, um tapinha não dói; Me chama de cachorra que eu faço Au, au, me chama de gatinha que eu faço miau... É assim,de maneira bem humorada e escrachada e ressaltando a sua ligação com o espaço das favelas e periferias, principalmente através de gírias e bordões utilizados no cotidianos das comunidades, que grupos tais como O Bonde do Faz Gostoso, o Bonde das Tigronas e especialmente Tati Quebra-Barraco tornam-se as grandes atrações dos bailes funk, passando a dividir a cena com os MCs já conhecidos. Um novo incidente crítico marca o ápice desta onda: a presença do funk nas edições do importante TIM Festival – de 2003 e 2005 – e a visibilidade deste acontecimento na mídia. Conhecido por revelar novas tendências, o festival convidou o DJ Marlboro para fechar uma das noites em 2003. Acompanhado de vários dos cantores e dançarinos de funk tais como MC Serginho e Lacraia e Bonde das Tigronas, dentre outros, ele tocou na mesma noite que teve como a atração principal a cantora Peaches, associada ao gênero de eletrônica conhecido como electroclash.13 “A vingança do DJ Marlboro” é o título da matéria do jornal O Globo, que saudou a escalação do “mestre do funk carioca” no Tim Festival em 2003 e deu o tom da recepção da notícia no principal jornal carioca14. Numa longa entrevista, com tom levemente ufanista, Marlboro lembra que é o mais antigo DJ em atividade no Brasil e comemora o reconhecimento tardio do funk: “Sempre
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O electro surge na virada dos anos 70 para os 80 em Nova York. No fim dos anos 90, o DJ alemão Hell vai reciclar o electro a partir de seu selo, Gigolô Records. O som mais sujo e primitivo e o retorno dos vocais são as marcas registradas desta sonoridade. Os franceses Miss Kittin e Hacker, os americanos FischerSpooner e Felix, a canadense Peaches além do cast da Gigolô Records – são alguns dos atuais representantes do electro Para os amantes da eletrônica, é uma sonoridade de qualidade, por ser experimental e vir do underground. Ver o documentário Clash of Cultures – The rise of the new electro scene. Planet Pop, 2003. Além de “ A vingança de Marlboro” – Segundo Caderno do Globo, p.2 – 22/10/2003; ver “Funk” – Segundo Caderno de O Globo, 21/12/2003; e “Choro, funk, tango e (até o) rock se renovam” – Segundo Caderno de O Globo, p.2 – 03/11/2003, sobre a edição de 2003.
acreditei. Quando comecei, minha expectativa era que o funk ia fazer parte da MPB e ter espaço e reconhecimento, como o samba. Tudo que estou vivendo só mostra que eu estava certo”. Em outro trecho da entrevista, o DJ comenta ainda – “não entendo como um sujeito que ouve Peaches (...) pode falar mal de Tati Quebra-Barraco” e desdenha de sua companheira canadense de palco:“ Peaches é legal, mas o funk carioca está à frente. Temos batidas como o tamborzão, um quase samba que só podia ter nascido na favela.” O discurso do DJ enfatiza, asim, o “pioneirismo” do funk na produção de batidas eletrônicas, sua ligação antiga, dos anos 80, com Kraftwerk e Afrika Baambata e com o “som do gueto” de bandas como Front 242 e Public Enemy – este, “antes de virar pop”. A confirmação do espaço conquistado vem na edição seguinte do Festival, de 2005, quando o destaque dado pela imprensa a uma das mais desconhecidas atrações, a cantora MIA, se deve ao fato dela apropriar-se do funk Melô da Injeção, de Deise Tigrona na faixa Bucky Done Gun, de seu CD Arular. Além disto, seu namorado, o DJ/produtor Diplo flerta com o funk há algum tempo, declarando-se na imprensa apaixonado pelos bailes15. A apresentação da cantora nascida no Sri Lanka e residente em Londres, cuja expectativa era de criar um grande baile funk, não se confirmou. Curiosamente, o show só cresceu no momento de entrada de sua convidada brasileira, que levantou a platéia e colocou todo mundo pra dançar16. A partir daí, o funk parece tornar-se a bola da vez no mercado internacional, sobressaindo nestes últimos anos as notícias sobre o crescente interesse da Europa e dos EUA pelo gênero. Excursões de Tati Quebra-Barraco, Deise Tigrona e o
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Ver:“ Mais pop, menos jazz” – Segundo Caderno de O Globo, p.1, 19/10/ 2005; “ Diversão para todos os gostos” – Segundo Caderno de O Globo, p.11, e as matérias de capa dos Cadernos Rio Show do mesmo jornal, respectivamente de 21 e 27/10/2005; além da Revista Veja, de 7/09/2005, p.122, matéria “ Tchuchuca asiática”, sobre a proximidade de M.I.A e o funk. Estas minhas impressões ao assistir ao show ao vivo, foram confirmadas pelas críticas e também quando assisti à versão televisionada colocada no ar pela MTV.
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próprio Marlboro pela Europa e E.U.A. além do sucesso do Diplo produzindo e gravando o gênero têm sido constantes na imprensa e blogs especializados17. O fato mais interessante deste terceiro momento é portanto o da legitimidade cultural que o electroclash garante ao funk. Subitamente, aquelas músicas gravadas toscamente, especialmente quando cantadas por mulheres de periferia, que combinam humor e ironia falando do que gostam em matéria de sexo passam a “fazer sentido”, pois remetem ao universo musical – não só em termos de sonoridade como quanto às temáticas e mesmo uma certa postura de palco, com roupas colantes e danças provocantes – de Miss Kittin, Peaches, etc. Por outro lado, os produtores brasileiros, especialmente Marlboro, acentuam esta proximidade, seja no seu discurso – tal como na matéria citada anteriormente – seja na produção musical, remixando sucessos de pista como a música mencionada de MIA (a pedido de Diplo) e tocando-a no seu set. Um outro desdobramento é o sucesso de bandas como o Bonde do Rolê. Trata-se de um trio curitibano oriundo da classe média e do universo dos DJs, que apropriou-se da sonoridade do funk carioca e deslanchou uma rápida e, bem-sucedida carreira internacional desde 2006 gravando seu primeiro CD pelo selo Mad Decent, do incansável Diplo. Isto sem falar de sinais anteriores de circulação ampliada, tais como as gravações de funk feitas por Fernanda Abreu; a inserção de citações do funk em shows de Caetano Veloso e Paula Toller; e até mesmo Roberto Carlos, que no seu show de final de ano de 2006 convidou o MC Leozinho para um dueto ao som do sucesso “Se ela dança, eu danço”.18 17
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Um exemplo: o Jornal Washington Post, nas sua previsões do que seria in e out em 2007, colocou o “Favela Funk” em alta (enquanto o reggaeton afro-caribenho estaria out). Fonte: O Globo, 3 de janeiro de 2007, pg 14, coluna do Ancelmo Góes. Diplo, por sua vez, ganhou a capa da Revista URB – referência importante de música e cultura alternativa nos E.U.A de março de 2005, com destaque para a sua ligação com o funk carioca, enquanto MIA foi a capa do mês seguinte. Paula Toller cantou Tapinha (de Elisabeth Ribeiro Raiol e Naldinho) no Rock in Rio 3, de 2001. Caetano incorporou a música ao seu show Noites
Considerações finais Creio que esta argumentação permite-nos observar que o funk não só ocupa espaços, criando um circuito dentro da cidade do Rio de Janeiro e participando ativamente da paisagem sonora da cidade; como também produz narrativas urbanas que disputam o imaginário simbólico da cidade e ampliam a visão que o samba clássico – que pretende cantar em nome da cidade e da nação; ou sua variante moderna, a bossa-nova – que se relaciona com a cidade predominantemente a partir da zona sul – propõem. Mais especificamente, creio que três entonações do funk se entrecruzam e merecem atenção: a voz que reivindica um lugar de fala pacífico e harmonioso dentro da geografia carioca para o morador das comunidades – a voz do “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”; a polêmica voz dos proibidões, que chama a atenção para o cotidiano de violência da cidade; e a não menos polêmica voz feminina, a voz do “sou feia mas tô na moda”, que inverte o tradicional discurso machista, sem deixar de demarcar nas canções o seu lugar de mulher de periferia do Rio de Janeiro.Discursos que, na sua heterogeneidade, dialogam, atualizam e ampliam o discurso do samba, que como vimos, corresponde a um outro momento da discussão sobre as identidades coletivas. Entretanto, se podemos reconhecer a identificação das camadas juvenis e populares com o funk, esta identificação não é exclusivista. Conforme apontou Herschmann, sambistas e funkeiros compartilham o mesmo território; e estas podem ser identidades complementares e não conflitantes. Por outro lado, quando remontamos à história da construção do funk, também podemos perceber que, à diferença do samba, estes artistas afirmam e se orgulham de suas articulações com agentes “externos” à cena – tal como é o caso das referências do Miami
do Norte, do mesmo ano.(Essinger; 2005; 202) E Fernanda Abreu tem uma longa história de diálogos com o funk carioca nos seus diversos projetos musicais.
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Bass, na origem; ou do electroclash, recentemente, apontando para um processo de circularidade cultural (Martin-Barbero; 2001) e de hibridismo (Canclini; 1990) que convém retomar. Pois, na reflexão dos autores mencionados, fica claro que o processo de comunicação entre o popular e o erudito; ou entre centro e periferia não tem um vetor definido – de baixo pra cima ou vice-versa – constituindo-se antes por um leva-e-traz de referências que exigem estas noções – de circularidade cultural, mestiçagem e reapropriação – para sua compreensão. Sugerindo a substituição de argumentos baseados nas oposições entre centro e periferia, ou na noção de comunidades – pensadas como conjuntos homogêneos, orgânicos e fechados em si – por um olhar que perceba as “economias cruzadas, os sistemas de significado que se intersectam e as personalidades fragmentadas” (Canclini, 1990, p.292), estas obras desconstroem a hipótese baseada nas noções de origem e autenticidade dos fenômenos culturais, enfatizando que a impureza e as misturas são a norma. Nesta reflexão, as noções de desterritorialização e reterritorialização ganham espaço privilegiado, entendendo-se o primeiro como o processo de “perda da relação ‘natural’ da cultura com os territórios geográficos e sociais” e o segundo como “certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas” (Canclini, 1990, p.288). Podemos observar este processo em ação no caso do funk de maneira exemplar. Das apropriações realizadas na cidade do Rio de Janeiro de um ritmo globalizado, como vimos, o funk carioca cria uma linguagem própria e produz uma narrativa que atribui significado à experiência de parcelas dos habitantes de morros e favelas. A partir daí, novas apropriações realizadas por músicos da esfera global ao mesmo tempo em que sua proximidade com um outro gênero – o electro – vão legitimá-lo e re-significá-lo, ampliando seu alcance para além da periferia carioca e permitindo novas articulações de sentido que neste momento ganham o mundo. Desterritorializações e reteritorializações, feitas num campo de imbricamentos e trocas sucessivas entre o local e o global – onde o consumo da informação internacional e “cross-fertilization” entre estilos dis234
tintos combina-se com as referências afetivas, históricas, geográficas e da cultura local. Música da cidade, que nos dizeres de Marlboro é “a trilha sonora de tudo que acontece no Rio – de bom ou de mal”. Mas que, mesmo discutindo os valores, dilemas e conflitos da periferia do Rio de Janeiro, não pretende totalizar ou “falar em nome da cidade”, muito menos em nome da identidade nacional.Desta maneira, ela relativiza as noções de identidade musical fixas, estáveis e fechadas e desconstrói o mito da identidade musical brasileira a partir do consenso da “comunidade sambista”, enriquecendo e ampliando os múltiplos sentidos da experiência de habitante da metrópole carioca. Uma segunda pista também produtiva para a reflexão diz respeito às relações tensivas do funk com a mídia, seu lugar ainda ambíguo19 e a sua circulação por canais alternativos. Seria então o funk uma expressão de cultura popular resistente ou underground? Neste ponto, creio que a sugestão de pensar nas mídias como agentes articulados dentro de um campo de forças, relacional, que implica em alianças ou em disputas e divergências, ao invés de um conglomerado homogêneo, pode nos ajudar. Um exemplo desta perspectiva encontra-se na análise da cena clubber do Reino Unido por Thornton (1996), ao discutir o papel de diferentes mídias – de filipetas a celulares, de jornais segmentados aos grandes complexos da mídia massiva mainstream – na constituição desta subcultura nos anos 80. Assim, para compreendê-la em sua diversidade, a autora primeiramente propõe uma tipologia que discrimina o conjunto a partir de seu alcance em: 19
Para um exemplo recente desta ambiguidade, ver a matéria de capa da Revista de Domingo do Globo de 24 de janeiro de 2008, sobre a dançarina da “Dança do Créu” – sucesso do funk. Ambíguo porque, por um lado, ganha-se a capa da Revista. Por outro, desde o editorial, o tom da matéria é inacreditavelmente irônico e preconceituoso: “Com músicas de gosto duvidoso (o.k., na maior parte das vezes, é de mau gosto mesmo) e um elenco de ‘cantores’ e dançarinos bizarros, o funk carioca ainda é capaz de causar espanto. O alívio é saber que, na mesma velocidade em que surgem, esses sucessos desaparecem(...)” Discuto estes procedimentos da cultura eletrônica em trabalho sobre as práticas dos Djs. Ver (Sá, 2003).
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1) micro-mídias (tais como filipetas, fanzines, informações passadas um a um através de celulares, etc); 2) as mídias de nicho – ou especializadas (mídias segmentadas, voltadas para uma fatia específica de público); 3) grande mídia (que é a mídia massiva, mainstream). A partir desta tipologia, a autora percebe a dinâmica social e a especificidade desses diferente meios de comunicação – num cenário que pode ser de complementação ou de disputa simbólica entre eles – divergindo assim das análises que entendem as mídias como elementos alheios, periféricos ou que adulteram as expressões da cultura periférica ou underground. Ora, se tomamos esta tipologia de Thornton, podemos afirmar que o circuito de produção-circulação-consumo do funk se constitui, preferencialmente, a partir das mídia de nicho ou micromídias, uma vez que a mídia mainstream ignorou o fenômeno por longos anos. Por outro lado, a visibilidade midiática do funk nestas macro-mídias é bastante complexa, oscilando ainda hoje entre a demonização e a glamourização, conforme já apontado nos exemplos. O curioso é que, mesmo assim, entre os produtores e consumidores do funk, não há um discurso de valorização do alternativo ou underground, nem qualquer dilema em relação à utilização dos espaços concedidos mais recentemente pelas mídias mainstream. Distantes da posição dicotômica que opõe resistência e cooptação, os porta-vozes do funk parecem reconhecer a centralidade da(s) mídia(s) na cultura contemporânea, utilizando-se de todos os possíveis canais de visibilidade para dar vazão à pluralidade e diversidade de vozes que narram a cidade do ponto de vista da periferia – em diálogo com outras entonações da multifacetada cidade do Rio de Janeiro.
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Este livro foi confeccionado especialmente para a Editora Meridional e impresso na Gráfica Metrópole