Oficina de tradução: a teoria na prática [5 ed.] 9788508112814, 9788508112821


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Table of contents :
1. Abre-se uma nova oficina 7
Oficina de tradução ou translation workshop? 8
2. A questão do texto original 11
O significado/carga e o tradutor/transportador 11
“Pierre Menard, autor del Quijote”, uma lição de Borges
sobre linguagem e tradução 13
A obra “visível” de Menard e o sonho de uma linguagem
não-arbitrária 14
A obra “invisível” e a missão impossível de Menard 19
O texto original redefinido 22
3. A qu estão do texto literário 25
O preconceito da inferioridade ou da impossibilidade 25
Uma teoria literária menardiana 28
Repensando o literário 30
Quando ameixas não são simplesmente ameixas 31
A tradução de textos literários redefinida 36
4. A questão da fidelidade 37
O conceito de fidelidade e o texto/palimpsesto 37
Uma Cleópatra melindrosa 38
O autor, o texto e o leitor/tradutor 40
A fidelidade redefinida 42
5. A teoria na prática 46
“Aporo”, de Carlos Drummond de Andrade 46“Um inseto cava”, 48; “Que fazer, exausto, etn país bloqueado?”, 48; “ Eis
que o labirinto [...] presto se desata”, 50; “ Uma orquídea forma-se”, 51
O poema: máquina de significação 52
“Insect”, versão de John Nist 54
Uma nova versão de “Áporo” 55
6. Exercícios de tradução 58
“Poema de sete faces” versus “Seven-sided poem” 59
“ [...] um anjo torto”, 61; “As casas espiam os homens”, 63; “pernas brancas
pretas amarelas” , 64; “O homem atrás do bigode”, 64; “ Mundo mundo vasto
mundo”, 65; “ [...] comovido como o diabo” , 66
“The rival” versus “Rival” 67
“ If the moon smiled, she would resemble you”, 68; “And your first gift is
making stone out o f everything”, 70; “The moon, too, abases her subjects”,
72; “No day is safe from news o f you”, 73; “The rival”: o título, 74
7. R ecado ao tradutor/aprendiz 76
8. V ocabulário crítico 79
9. B ibliografia com entada 81
Dicionários 81
Obras sobre tradução 82
Obras sobre teorias textuais 83
Outros 84
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Oficina de tradução: a teoria na prática [5 ed.]
 9788508112814, 9788508112821

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série

r incípios P

74

Rosemary Arrojo O ficina de tradução A teoria na prática

m

edifura ática

serie oP rincipios

Rosemary Arrojo Pós-doutora pela Yale U niversity c dou to ra pela Johns H opkins U niversity, EUA

Oficina de tradução A teoria na prática

ea

a U t o r a á li r a

© Rosemary Arrojo D ireto r ed ito ria l E d ito r E d ito ra assisten te C o o rd e n a d o ra de revisão E sta g iário

Fernando Paixão Carlos S. Mendes K o s íi Tatiana Corrêa Pimenta Ivany Picasso liat ist a Rodrigo Antonio

A rte

E d ito r D ia g ra m a d o r C a p a e p r o j e t o g r á f ic o

E d ito ra ç ã o ele trô n ic a

Antonio Paulos Claudemir Camargo Homem de Melo & Troia Doní^ii MoacirK. Matsusaki

E d iç ã o a n t e r io r

D ireto res P r e p a r a d o r a de te x to

Benjamin Abdala .Iiiiiu h Lenice Buenoda Silvu

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Siiiimii YoUNsel'Ciimpcilclli

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÂO-NA I ( IN 11 SINDICATO NACIONAL DOSEDITOKI S 1)1 I I VI« >S, Kl A8l3o

5.ed. Arrojo, Rosemary Oficina de tradução: a teoria na prática / Rosemary Arrojo - 5.ed. - São Paulo : Ática, 2007 85p. - (Série Principios ; 74) Inclui bibliografia comentada ISBN 978-85-08-11281-4 I. Tradução e interpretação. I. Título. II. Série 07-2345.

ISBN 978 85 08 11281-4 (aluno) ISBN 978 85 08 11282-1 (professor)

2007 5“ edição 1? impressão

( ’1)1)418.02 CDU 81 ’25

IMPONIANM Au com prar um livro, você rem u nera e re c o n h íw o i mImIIhmIu iu ito re o de m uitos outros profissionais envolvlilm n.t pm duçào editorial e n a com ercialização das obr.iv tnllhim'1, («vlkurcs, dlagram adores,ilustradores,gráfícos, divulgatiori»*, tllklrlbuidores, livreiros, e n tre outros. Ajudenos a i (hhImI«*í .1 çópla flegall Ela g e ra desem prego, prejudica a dlfiu íin >l.i t ullnr.i «• encaTece os livros q u e você com pra.

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EDITORA AFILIADA

Sumário

1. A b re-se um a nova oficina

7

Oficina de tradução ou translation workshop? 8 2. A q u estão do texto original

11

O significado/carga e o tradutor/transportador 11 “Pierre Menard, autor del Quijote”, uma lição de Borges sobre linguagem e tradução 13 A obra “visível” de Menard e o sonho de uma linguagem não-arbitrária 14 A obra “ invisível” e a missão impossível de Menard 19 O texto original redefinido 22 3. A q u estã o do texto literário

25

O preconceito da inferioridade ou da impossibilidade 25 Uma teoria literária m enardiana 28 Repensando o literário 30 Quando ameixas não são simplesmente ameixas 31 A tradução de textos literários redefinida 36 4. A q u estão da fidelidad e

37

O conceito de fidelidade e o texto/palimpsesto 3 7 Uma Cleópatra melindrosa 3 8 O autor, o texto e o leitor/tradutor 40 A fidelidade redefinida 4 2 5. A teoria na prática

46

“Aporo”, de Carlos Drummond de Andrade 46

“ Um inseto cava”, 48; “Que fazer, exausto, etn país bloqueado?” , 48; “ Eis que o labirinto [...] presto se desata” , 50; “ Uma orquídea form a-se” , 51

O poema: máquina de significação 5 2 “Insect”, versão de John N ist 54 Uma nova versão de “Áporo” 55 6. E xercícios de trad u ção 5 8

“Poema de sete faces” versus “ Seven-sided poem ” 59 “ [...] um anjo torto” , 61; “As casas espiam os hom ens”, 63; “ pernas brancas pretas am arelas” , 64; “O homem atrás do bigode” , 64; “ M undo mundo vasto m undo”, 65; “ [...] com ovido como o diabo” , 66

“The rival” versus “Rival” 67 “ If the moon sm iled, she would resemble you”, 68; “And your first gift is m aking stone out o f everything”, 70; “ The moon, too, abases her subjects”, 72; “N o day is safe from news o f you” , 73; “ The rival” : o título, 74

7. R ecad o ao trad u tor/ap ren d iz 8. V ocab u lário crítico

79

9. B ibliografia co m en ta d a Dicionários 81

81

Obras sobre tradução 82 Obras sobre teorias textuais 8 3 Outros 84

76

A M aria José Arrojo

Este livro é parte de um projeto de pesquisa patrocinado pela Pontifícia U niversidade C atólica de São Paulo

1 Abre-se uma nova oficina

Provavelm ente o leitor nunca tenha ouvido falar num a oficina d e tradução. Se consultar dicionários, ou se perguntar a outros falantes de português, perceberá que oficina de tradução não existe com o expressão já cons­ truída e consagrada pelo uso. T erem o s que entendê-la, portanto, m etaforicam ente e, para construir esse sentido figurado, partim os d o subs­ tantivo concreto oficina. Segundo dicionários da língua, oficina pode ter as seguintes acepções: “lugar onde se trabalha ou onde se exerce algum ofício”; “lab o ratório” ; “ casa ou local onde funciona o m aquinism o de uma fá­ b ric a ” ; “ lugar onde se fazem consertos em veículos auto­ móveis” ; e, em sentido figurado, “lugar onde se opera transform ação notável” . Já que tem os, p o r assim dizer, perm issão de liberar nossa im aginação quan d o tentam os entender um a m etá­ fora, vam os relacionar os possíveis significados de oficina à nossa m etafórica oficina de tradução, delineando, ao m esm o tempo, seus objetivos. E m prim eiro lugar, pretende-se que esta oficina crie um espaço ao ofício e à prática da tradução, onde a teoria

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te rá um p ap el im portante, na m edida em que p o d e rá nos auxiliar a enten d er o que acontece q u ando traduzim os e tam bém a enfrentar o constante processo de tom ada de decisões envolvido em to d a tradução. À im agem da ofi­ cina sobrepom os, então, a im agem do laboratório, onde se põem em p rática e se testam as fórm ulas e os conceitos aprendidos da teoria. A lém disso, com o o ficin a pode ser “casa ou local onde funciona o m aquinism o de um a fábrica; lugar onde estão os instrum entos de um a indústria, arte ou p rofissão” , nossa oficina de tradução preten d e m ostrar tam bém o outro lado do processo de traduzir, os instrum entos e os m eca­ nism os dessa atividade que, coincidentem ente, pode ser considerada um a “indústria” (em seu sentido mais am p lo ), “a rte ” ou “p ro fissão ” . E , já que analisarem os e com entarem os alguns textos em inglês ou português e suas respectivas versões para um a dessas línguas, nossa oficina, um p o u co pretensiosam ente, tam bém estará ten tan d o “co n sertar” as traduções e as so­ luções que consideram os inadequadas. P o r fim , mais a nível do inconsciente, há ainda o desejo, aliás sem pre presente em toda decisão de escrever e publicar um livro, de que esta oficina tam bém possa ser “ um lugar onde se op era transform ação n otável” , m esmo que essa tran sfo rm ação seja, em nosso caso, sim plesm ente ten tar ch am ar atenção p ara um cam po ainda tão pouco explorado e carente de estudos mais especializados.

Oficina de tradução ou translation workshop ? E m b o ra tenha tentado m o strar ao leito r que oficina d e tradução p ode ser um título sugestivo e eficiente, na m edida em que enfatiza a abordagem prática que pretendo desenvolver aqui, devo confessar que esse título não é exa­

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tam ente “original” , tendo, na verdade, surgido de um a tradução. E n q u an to buscava um títu lo p ara o livro, lem brei-m e de um curso que fiz na U niversidade Jo h n s H opkins (B al­ tim ore, E U A ), na p rim av era de 1981, ch am ad o T ransla­ tion W orkshop. É ram os um grupo de seis alunos e nos reuníam os sem analm ente p a ra discutir nossas próprias tra­ duções e traduções consagradas de textos famosos (a partir de várias línguas, mas sem pre para o in g lês), sob a orien­ tação do professor W illiam A rrow sm ith, p oeta e trad u to r de renom e n o s meios literários am ericanos e internacionais. A ntes de iniciarm os o curso, já sabíam os qu e seria um curso mais prático do que teórico, devido ao seu próprio título. Segundo o A m erican heritage dictionary o f the English language (ver B ibliografia com entada), w orkshop, além de “oficina” ( “ an area, ro o m or establishm ent in w hich m a ­ n ual w o rk is done” ), tam bém p o d e se referir a “ a regularly scheduled sem inar in som e specialized field” que, num a trad u ção não m uito satisfatória p ara o português, seria “um curso regular so b re algum assunto especializado” . U m se­ minar, como um w orkshop, é um tipo de curso para o qual não tem os um a p alavra específica em português. D e acor­ do com o mesmo dicionário, um sem inar é “a small group of advanced students engaged in original research under the guidance of a professor” (um g ru p o pequeno de estu­ dantes universitários adiantados, envolvidos em trabalho de pesquisa, sob a o rientação de um p ro fe sso r). U m sem i­ nar, como um w orkshop, sugere uma dinâm ica especial em sala de aula: os alunos assum em um papel essencial­ m ente ativo, pesquisando e realizando trabalhos, enquanto o professor passa a ser um orientador. Assim , supondo que este livro fosse escrito e publi­ cado nos E stad o s U nidos, seu título, Translation w ork­ shop, envolveria um leque de significados diferentes dos que sugeri no início d esta introdução. A lém disso, p a ra ­ doxalm ente, O ficina d e tradução é um título mais original

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do que T ranslation w orkshop, p orque seu sentido figurado é inesperado e ainda não consagrado pelo uso. E m inglês am ericano, w o rkshop, no sentido de curso ou sem inar, já não im pressiona mais com o m etáfora; é, p o r assim dizer, um a m etáfo ra gasta, que perdeu sua força figurativa. Seria, então, m inha trad u ção m ais original do que o próprio “original”? Seria a m inha um a boa tradução? Se­ ria oficina d e tradução fiel ao “original” translation w ork­ sh o p ? Que relações se estabelecem entre o “original” e o “trad u zid o ” ? E m síntese, essas são tam bém as questões básicas que envolvem a realização e a avaliação de qualq u er tradução, e é sobre elas que convidarei o leitor a refletir nas páginas que se seguem. A lém disso, ao tentarm os refletir sobre os m ecanism os da tradução, estarem os lidando tam bém com questões fundam entais sobre a natureza da p ró p ria lingua­ gem, pois a trad u ção , um a das m ais com plexas de todas as atividades realizadas pelo hom em , implica necessaria­ m ente um a definição dos limites e do poder dessa capa­ cidade tão “hum ana” que é a produção de significados. A final, não é p o r acaso que até hoje, em nosso m undo cada vez m ais com putadorizado, n ão há nem a m ais rem ota possibilidade de que um a m áquina venha substituir satis­ fatoriam ente o hom em na realização de um a tradução.

2 A questão do texto original

T o d o te x to é ú n ico e é, ao m esm o tem p o , a tradução de o u tro texto . N e n h u m te x to é c o m p le ta m e n te o ri­ g in a l p o rq u e a p ró p ria lín g u a , em sua essência, já é u m a tra du çã o : em p ri­ m e iro lugar, do m u n d o n ão-verbal e, e m seg u n do , p o rq u e to d o signo e toda fra se é a tradução d e o u tro signo e de o utra frase. E n tre ta n to , esse argu­ m e n to p o d e ser m o d ific a d o sem p e r­ d e r sua validade: to d o s os te x to s são orig in a is p o rq u e to d a tradução é d i­ feren te . T o d a tradução é, até certo p o n to , u m a criação e, c o m o tal, co n s­ titu i u m tex to único.

(Octavio Paz)

O significado/carga e o tradutor/transportador U m a das im agens m ais freqüentem ente utilizadas pe­ los teóricos p ara descrever o processo de trad u ção é a da tran sferên cia ou d a substituição. De aco rd o com J. C.

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C atford, um dos teóricos mais conhecidos e divulgados no B rasil, a tradução é a “substituição do m aterial textual de um a língua pelo m aterial textual equivalente em outra língua” 1. Eugene N ida, outro teórico im portante, expande essa im agem através da com paração das palav ras de uma sentença a um a fileira de vagões de carga 2. Segundo sua descrição, a carga pode ser distribuída entre os diferentes vagões de form a irregular. A ssim , um vagão poderá conter m uita carga, enquanto outro poderá carregar m uito pouca; em outras ocasiões, um a carga m uito grande tem que ser dividida en tre vários vagões. D e m aneira sem elhante, su­ gere N ida, algum as palavras “carregam ” vários conceitos e outras têm que se ju n ta r para conter apenas um. D a m esm a m aneira que o que im porta no tran sp o rte da carga não é quais vagões carregam quais cargas, nem a seqüên­ cia em qu e os vagões estão dispostos, m as, sim que todos os volum es alcancem seu destino, o fundam ental no p ro ­ cesso de trad u ção é que to d o s os com ponentes significati­ vos do original alcancem a língua-alvo, de tal form a que possam ser usados pelos receptores. Se pensam os o processo de trad u ção com o transporte de significados entre língua A e língua B, acreditam os ser o texto original um objeto estável, “tran sp o rtáv el”, de con­ tornos absolutam ente claros, cujo conteúdo podem os clas­ sificar com pleta e objetivam ente. A final, se as palavras de um a sentença são com o carga co n tid a em vagões, é p e r­ feitam ente possível determ inarm os e co n tro larm o s todo o seu conteú d o e até garantirm os que seja tran sposto na íntegra p a ra outro conjunto de vagões. A o m esm o tem po, se com pararm os o tra d u to r ao encarregado do transporte dessa carga, assum irem os que sua função, m eram ente m e­ cânica, se restringe a garan tir que a carga chegue intacta 1 U m a teoria lingüística da tradução, p. 22. V. Bibliografia comen­ tada. 2 Language structure and translation, p. 190. V. Bibliografia co­ m entada.

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ao seu destino. Assim , o tradutor traduz, isto é, tran s­ p orta a carga de significados, m as não deve interferir nela, não deve “in terp retá-la” . E ssa visão tradicional, qu e obviam ente pressupõe um a d eterm inada teoria de linguagem , se reflete tam bém nas diretrizes em geral estabelecidas p a ra o trab alh o do tra ­ dutor. N esse sentido, os três p rincípios básicos que defi­ nem a boa tradução, sugeridos por um de seus teóricos pioneiros, A lexander F ra se r T ytler, ainda são exem plares: 1) a tradução deve reproduzir em sua totalidade a idéia do te xto original; 2) o e stilo da tradução deve se r o mesmo do original; e 3) a tradução deve ter toda a flu ência e a naturalidade do texto original 3.

“ Pierre Menard, autor del Quijote” , uma lição de Borges sobre linguagem e tradução P a ra que possam os discutir os p roblem as e as lim i­ tações dessa im agem consagrada que vincula a tradução à transferência de significados de uma língua p ara outra, vam os exam inar um conto do escrito r argentino Jorge L uis Borges que tem um títu lo instigante: “P ierre M enard, au to r del Q uijote" 4. E m b o ra seja um conto bastante com ­ plexo que, à prim eira vista, pode desiludir os leitores m e­ nos acostum ados a v isitar os textos labirínticos de Borges, vale a pena ten tar p en etrar sua tram a ap aren tem ente sim­ ples, mas que oferece, em suas poucas páginas, um dos com entários m ais brilhantes e m ais com pletos que já se escreveu sobre os m ecanism os da linguagem e suas im pli­ 3 The principles o f translation, publicado em 1791. A pud B a s s n e t t c G u i r e , Susan. Translation studies, p. 63. V. Bibliografia co­ mentada. 4 In; — , Ficciones, p. 47-59. V. Bibliografia com entada. T odas as citações serão traduzidas do original p ela A utora. -M

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cações p a ra uma teoria da tradução e para um a teoria da literatu ra 5. O conto é apresentado como um a resen h a póstum a das obras de Pierre M en ard (personagem fictício criado p o r B o rg e s), um hom em de letras francês que viveu na prim eira m etade d o século X X . O n arra d o r é um crítico literário que tenta apresentar o verdadeiro catálogo das obras d e M enard, de quem se diz am igo, com o objetivo de retificar um catálogo recém -publicado, que considera falso e incom pleto. Segundo o n arrad o r, é fácil enum erar o que cham a a obra “visível” de M enard; e ele nos apre­ senta dezenove obras (m onografias, traduções, análises e alguns p oem as) publicadas e não-publicadas, que sugerem, como escreveu Borges no prólogo de Ficciones, o “ dia­ gram a da história m ental” de M enard: sua ideologia, suas concepções teóricas, seus desejos e até suas contradições.

A obra “visível” de Menard e o sonho de uma linguagem não-arbitrária Vam os exam inar algum as das obras “visíveis” de M e­ nard p a ra que possam os entender um pouco sua concep­ ção de linguagem. Se analisarm os mais detidam ente seus trabalhos teóricos, verem os que têm muito em comum com as teorias tradicionais da tradução. M en ard concebe o texto com o um objeto de contornos perfeitam ente determ ináveis, acreditando, p o rta n to , que seja possível, como sugerem os três princípios básicos de T ytler, reproduzir totalm ente, em outra língua, as idéias, o estilo e a n atura­ lidade de um texto original. Com ecem os nossa leitura 5 Para um a versão mais aprofundada da leitura de “P ierre M enard, autor del Q uijote" proposta aqui, ver A r r o j o , Rosemary. “ Pierre Menard, autor del Quijote”: esboço de um a poética da tradução via Borges. Tradução e Comunicação — Revista Brasileira de Tra­ dutores, n.° 5. V. Bibliografia comentada.

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pelos seguintes “trab alh o s” encontrados no arquivo p arti­ cular de M enard: [ ...] c) uma m onografia sobre "ce rtas conexões ou afinidades" do pensam ento de D esca rte s, Leibniz e de John W ilkins; d) uma m onografia sobre a Ars magna generalis, de Ramón Lull;

[ ...] h) os rascunhos de uma m onografia sobre a lógica sim bó­ lica de George Boole (p. 46).

O que teriam em com um esses pensadores? N o en­ saio “ E l idiom a analítico de Jo h n W ilkins” , da coletânea Otras inquisitiones 8, o p ró p rio B orges sugere algum as co ­ nexões entre o pensam ento de R en é D escartes (1596-1 6 5 0 ), im p o rtan te filósofo francês, e do religioso inglês John W ilkins (1 6 1 4 -1 6 5 0 ). A m bos sonhavam com a pos­ sibilidade de um a linguagem universal, que não fosse arb i­ trária e que, p o rtan to , não dependesse dos caprichos d a in terp retação ; cada palavra teria um significado fixo e único, independentem ente de qualquer contexto. Segundo B orges, no idiom a universal idealizado p o r W ilkins, “cada p alav ra define a si m esm a” (p. 2 2 2 ), constituindo um signo evidente e definitivo, im ediatam ente decifrável por qualquer pessoa. T al idiom a, im aginava W ilkins, deveria ser cap az de “organizar e abarcar todos os pensam entos hum an o s” (p. 2 2 2 ). Borges descreve esse p ro jeto am bi­ cioso: [ Wilkins] dividiu o universo em quarenta categorias ou gê­ neros, su bd ivisív e is, por sua vez, em esp é cie s. Atribuiu a cada gênero um m onossílabo de duas letras; a cada d ife ­ rença, uma consoante; a cada espécie, uma vogal. Por exem plo, de quer dizer elem ento; deb, o prim eiro dos ele­

u P. 221-5. V. Bibliografia comentada. Todas as citações serão tra ­ duzidas do original pela A utora.

m entos, o fogo; deba, uma porção do elem ento do fogo, uma chama (p. 222).

E exam ina m ais detidam ente a oitava categoria, a das pedras: W ilk in s as divide em com uns (rocha viva, cascalho, ardósia), razoáveis (mármore, âmbar, coral); p recio sas (pérola, opala); transparentes (ametista, safira) e in so lú v eis (carvão, argila e arsênico). Q uase tão alarm ante quanto a oitava é a nona categoria. Esta nos revela que os m etais podem ser Im perfeitos (cinabre, m ercúrio); a rtificia is (bronze, latão), re cre m e n tícios (lim alha, ferrugem ) e naturais (ouro, esta­ nho, cobre) (p. 223).

De acordo com Borges, ainda no m esm o ensaio, Des­ cartes, antes de W ilkins, já havia sonhado u sar o sistema decim al de num eração p a ra criar um a linguagem univer­ sal, absolutam ente racional, livre de am bigüidades. Supu­ nha D escartes que, através da utilização de algarismos, poderíam os “apren d er num só dia a nom ear todas as quan­ tidades até o infinito e a escrevê-las num idiom a novo” (p. 2 2 2 ). O filósofo alem ão G o ttfried W ilhelm L eibniz (1646-1 7 1 6 ), precursor do projeto da lógica sim bólica, cujo objetivo último é a criação de um a linguagem não-arbitrária, tam bém tentou construir um a linguagem universal, que intitulou A rs com binatoria, com base no m odelo de John W ilkins e na A rs m agna do filósofo e m issionário espanhol R am ón L ull ( 12 36-13 1 5 ) 7. De todos esses projetos, a obra de L ull é talvez a mais extravagante. T ratava-se de um a arm ação de discos com os quais propunha relacionar exaustivam ente todas as possíveis relações de um tópico. A arm ação era cons­ 7 Cf. L e w i s , E. I. A survey o f sym bolic logic. Berkeley, University of C alifornia Press, 1918. p. 4.

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tituída de três círculos concêntricos divididos em com par­ timentos. U m círculo era dividido em nove predicados re­ levantes; o terceiro círculo era dividido em nove pergun­ tas: “O quê? P o r quê? D e que tam anho? D e que espé­ cie? Q uando? O nde? C om o? D e que lugar? Q ual?”. U m dos círculos era fixo; o s outros giravam , fornecendo uina série com pleta de p erg u n tas, e de afirm ações relacionadas a elas 8. Finalm ente, o m atem ático e lógico inglês G eorge B oole (1 8 1 5 -1 8 6 4 ) é considerado o segundo fundador da lógica sim bólica, intuída p o r L ull e W ilkins, e form aliza­ da, pela prim eira vez, por L e ib n iz 9. P o r trás de todos esses projetos am biciosos, podem os identificar um desejo de se chegar a um a verdade única e absoluta, expressa através de uma linguagem que pudes­ se neutralizar com pletam ente as am bigüidades, os duplos sentidos, as variações de interpretação, as m udanças de sentido trazidas pelo tem po ou pelo contexto. Esse desejo, com partilhado p o r D escartes, L eibniz, L ull e Boole, e que nos fornece um esboço da teoria da linguagem e da teoria da trad u ção professadas p o r M enard, se revela tam bém na teoria literária im plícita em seus trabalhos críticos. P ara M enard, o literário é um a categoria perfeita­ mente distinguível do não-literário. T an to o poético como o não-poético são características textuais intrínsecas e es­ táveis, que podem ser objetivam ente determ inadas. O item b do catálogo de suas o b ra s é, por exem plo, uma m onografia so b re a p ossib ilid a de de constru ir um voca­ bulário poético de c o n c e ito s que não fo s s e m sinônim os ou p e rífra se s dos que inform am a linguagem com um , “ mas ob­ jeto s ideais criados por uma convenção e essen cia lm en te d estin a d os às n e c e ssid a d e s p oética s"

(p . 48).

8 C f. R e e s e , W . L . Dictionary o f philosophy and religion; eastern and western thought. New Jersey, H um anity Press, 1980. 9 C f. L e w i s , E . I., op. cit., p. 4.

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O item i é “um exam e das leis m étricas essenciais da prosa francesa, ilustrado com exem plos de Saint-Sim on” (p. 4 9 ) . O item n é “um a o b stinada análise dos ‘costumes sintáticos de T o u let’ ” , e o item í é “um a lista m anuscrita de versos que devem sua eficácia à p o n tu a ç ã o ” (p. 5 0 ). P ara M enard, a crítica é o catalogar de características for­ mais evidentes e não deve “elogiar” ou “cen su rar” . Como nos inform a o n arrad o r, M enard “declarava que censurar e elogiar são operações sentim entais que nada têm a ver com a crítica” (p. 4 7 ) . M enard, discípulo de D escartes, Leibniz, R am ón Lull e Jo h n Wilkins, considera que a crí­ tica, com o a tradução ou a leitura, não deve “ in terp retar” ou ir além do texto original e, sim, delim itar seus contor­ nos objetivos e im utáveis. C ontudo, a p ró p ria bibliografia de M en ard sugere a im possibilidade desse desejo. Como poeta e trad u to r, ele constantem ente p roduz versões diferentes do “m esm o” texto. O item que encabeça o catálogo de seus trabalhos é “ um soneto sim bolista que apareceu duas vezes (com variações) na revista L a C onque (núm eros de m arço e o utubro de 1 8 9 9 )” . O item g é uma tradução, “com pró­ logos e n otas do L ib ro de la invención liberal y arte dei juego de ajedrex, de R u y L ópez de Segura”. O item k é outra trad u ção , “um a trad u ção m anuscrita” (e, portanto, não um a versão “definitiva” ) da “A guja de navegar cul­ to s”, de Quevedo, intitulada “L a boussole des précieux”. O item o é “um a transposição em alexandrinos do ‘Cime­ tière M a rin ’, de Paul V aléry ”. C uriosam ente, h á também uma “versão literal da versão literal” que fez Q uevedo da Introd u ctio n à la vie d évo te de San F rancisco de Sales (p. 4 8 -5 0 ). P orém , entre todos os projetos m enardianos, o que mais clara e espetacularm ente ilustra a im possibilidade de se chegar a um a linguagem n ão-arbitrária, que pudesse co ntro lar os con teú d o s e os limites de um texto, é a reali­ zação de sua o b ra “invisível”, que exam inam os a seguir.

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A obra “invisível” e a missão impossível de Menard Segundo o n arrad o r, a o b ra que realm ente define o talento de M enard é seu trab alh o “invisível”, sua obrà mais significativa — “a subterrânea, a interm inavelm ente heróica, a ím p ar”, ou seja, a rep ro d u ção dos capítulos IX e X X X V III da Prim eira p arte do D o m Q uixote, de M i­ guel de C ervantes, e parte do capítulo X X II. P o r que seria “invisível” essa obra de M enard? E m prim eiro lugar, em oposição à sua o b ra “visível”, seu trabalho “ invisível” p a­ rece nunca ter sido publicado. E m segundo lugar, talvez seja “invisível” porque, mais do que um a o b ra “ rea l”, trata-se de um desejo, de um sonho que não p ô d e ser rea­ lizado. A lém disso, invisível pode sugerir tam bém que o que M en ard cham a de a “reescritura” ou a “repro d u ção ” do Q uixo te fosse, na verdade, um a “le itu ra ”, form a “invi­ sível” de se reescrever ou traduzir. C onform e nos explica o n arrad o r, o inusitado obje­ tivo de M enard não era sim plesm ente repro d u zir o Q ui­ x o te ., m as repetir na íntegra o texto escrito por Cervantes. Pierre M enard busca a to talidade: interp retação total, con­ trole to tal sobre o texto, “total identificação com um autor determ inado” (p. 5 1 ) . T al atitude rejeita, obviam ente, um a interpretação co ntem porânea do Q uixo te e, ao negar-se a sim plesm ente “ in terp retar” ou “trad u zir” o Q uixote, M enard pretende recuperar não apenas a totalidade do texto de C ervantes, m as tam bém o contexto em que fora escrito: “N ão queria outro Q uixote — o que seria fácil — m as o Q uixote” (p. 5 2 ). O pro jeto “invisível” de M en ard reflete, portanto, uma teo ria da trad u ção (e um a teoria da leitu ra) sem e­ lhante à de C atford ou N ida, já que p arte de um a teoria da linguagem que autoriza a possibilidade de d eterm inar e delim itar o significado de uma palavra, ou m esmo de um texto, fora do contexto em q u e é lid a ou ouvida.

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A p rim eira estratégia que M enard pensa em em pre­ gar p a ra alcançar seu objetivo é, literalm ente, transfor­ m a s s e em C ervantes, isto é: conhecer bem o espanhol, recuperar a f é católica, guer­ rear contra os m ouros ou contra os turcos, esquecer a his­ tória da Europa entre os anos de 1602 e de 1918, ser M i­ g u e l de Cervantes (p. 52-3).

A b an d o n a, entretanto, tal m étodo, p o r ser pouco es­ tim ulante. A final, como nos explica o n arrad o r, “ser, de algum a m aneira, C ervantes e chegar ao Q uixote pareceu-lhe m enos árduo — p o r conseguinte, menos interessante — que continuar sendo Pierre M enard e chegar ao Q ui­ xote através das experiências de Pierre M en ard ” (p. 5 2 ). M enard im põe-se, assim, o “m isterioso dever de recons­ truir literalm ente a obra espontânea de C ervantes” (p. 5 2 ). Esse “m isterioso dever” pode ser in terp retado como um a alegoria do que tradicionalm ente se pretende atingir em to d a trad u ção : M enard se im põe a tarefa de repetir um texto estrangeiro, escrito em outra língua, p o r um outro au tor e num outro m om ento, sem deixar de ser ele p ró ­ prio, isto é, sem poder an u lar seu contexto e suas circuns­ tâncias. M enard parece, inclusive, um a caricatura exage­ rad a do tra d u to r im aginado p o r T ytler, refletido nos três princípios básicos com entados no início deste capítulo: 1) a tradu ção deve rep ro d u zir em sua totalid ad e a idéia do texto original; 2 ) a trad u ção deve ter o m esm o estilo do original; e, 3 ) a trad u ção deve ser fluente e n atu ral como o original. E m b o ra reconheça que seu projeto é a in d a m ais “im­ possível” do que “to rn ar-se” C ervantes, o p ró p rio M enard, com o um su p ertrad u to r, consegue (ap aren tem en te) ven­ cer essa im possibilidade e p ro d u z alguns fragm entos ver­ balm ente idênticos ao D o m Q u ix o te de M iguel de C er­ vantes. E n tretan to , ao tentar identificar-se totalm ente com

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C ervantes e proteger a intenção ou o significado “origi­ nais” do texto, M enard inadvertidam ente ilustra a invia­ bilidade de seu projeto. O n a rra d o r nos apresenta um fragm ento do D om Q u ix o te reescrito p o r Pierre M enard e o com para ao fragm ento equivalente do D o m Q u ix o te de C ervantes: É uma revelação cotejar o Dom Quixote de M enard com o de Cervantes. Este, por exem plo, escreveu (Dom Quixote, prim eira parte, capítulo nono): “ [ . . . ] a verdade, cuja mãe é a história, êm ulo do tempo, dep ósito das ações, testem unha do passado, exem ­ plo e aviso do presente, advertência do porvir". Redigida no século dezessete, redigida pelo "engenho leigo" C e r­ vantes, essa enum eração é um mero elogio retórico da his­ tória. M enard, por o u tro lado, escreve: " [ . . . ] a verdade, cuja mãe é a história, êm ulo do tem po, depósito das ações, testem unha do passado, exem ­ plo e aviso do presente, advertência do porvir". A história, "m ãe" da verdade; a idéia é assom brosa. Menard, con­ tem porâneo de W illia m Jam es, não define a história com o uma indagação da realidade, mas com o sua origem . A v e r­ dade histórica, para ele, não é o que aconteceu; é o que julgamos que tenha acontecido. A s sentenças fin ais — "exem plo e aviso do presente, advertência do porvir" — são descaradam ente pragm áticas. Também é vivido o con­ tra ste entre os e stilo s. O estilo arcaizante de M enard — no fundo estrangeiro — padece de alguma afetação. O m esm o não acontece com o do precursor, que maneja com naturalidade o espanhol corrente de sua época (p. 57).

M en ard tenta recu p erar o significado “original” de C ervantes, mas som ente consegue reproduzir suas p ala­ vras. O que M en ard lê e rep ro d u z como sendo o verda­ deiro Q u ixo te (e, p o rtan to , de acordo com M enard, im u­ tável e evidente) é interp retad o pelo n a rra d o r/c rític o com o algo diferente. Paradoxalm ente, ao “rep etir” a to ­ talidad e do texto de C ervantes, M en ard ilustra a im possi­

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bilidade da repetição total, exatam ente porque as pala­ vras do texto de C ervantes não conseguem delim itar ou petrificar seu significado “original”, independentem ente de um contexto, ou de uma interpretação. Essas m esm as pa­ lavras assum em um determ inado valor q u ando o n a rra ­ d o r/c rític o as relaciona ao contexto de C ervantes, e um valor diferente quando relacionadas ao contexto de Pierre M enard. Assim , ainda que um trad u to r conseguisse che­ gar a uma repetição total de um determ inado texto, sua tradução não recuperaria nunca a totalidade do “original” ; revelaria, inevitavelm ente, um a leitura, um a interpretação desse texto que, p o r sua vez, será, sem pre, apenas lido e interpretado, e nunca to talm ente decifrado ou controlado. A lém disso, quando M en ard se transform a em “au ­ to r” do Q uixote, seus leitores tam bém interpretam seu texto sob diferentes pontos de vista e não conseguem recuperar suas intenções originais. A lém da interp retação do n a rra­ d o r/crític o , que já m encionam os acim a, há, por exemplo, a de M ad am e Bachelier, que vê no Q uixo te de M enard “um a adm irável e típica subordinação do a u to r à psico­ logia do herói”. O utros leitores, “nada perspicazes”, se­ gundo o n arrad o r, consideram a obra “invisível” de M e­ n ard um a m era “tran scrição ” do Q uixote. O utros, ainda, com o a B aronesa de B acourt, reconhecem na m esm a obra a influência de N ietzsche (p . 5 6 ).

O texto original redefinido A té aqui, nossa rápida incursão pelo conto de Borges tentou questionar a visão tradicional de texto, sugerida pelas teorias da tradução esboçadas no início deste capí­ tulo. C om o sugere nossa leitura de “Pierre M enard, autor del Q u ijo te” , traduzir não pode ser m eram ente o trans­ porte, ou a transferência, d e significados estáveis de uma língua para outra, p o rq u e o próprio significado de uma

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palavra, ou de um texto, na língua de partid a, som ente p o derá ser determ inado, provisoriam ente, através de uma leitura. Assim , se voltarm os às nossas questões iniciais, referentes ao próprio título deste livro, parece ficar mais claro que, ao traduzirm os translation w orkshop p o r “ofi­ cina de trad u ção ”, o que acontece n ão é um a transferência total de significado, po rq u e o p róprio significado do “ori­ ginal” não é fixo ou estável e depende d o contexto em que ocorre. Assim , antes de traduzir translation w orkshop por “oficina de tra d u ç ã o ”, estabeleceu-se o contexto em q u e havia originalm ente ocorrido: título de um curso espe­ cial e avançado, oferecido por um a universidade am eri­ cana. A o m esm o tem po, a tradução que sugeri, “oficina de trad u ç ã o ”, com o o Q uixo te de M enard em relação ao Q uixote de C ervantes, passa a existir num outro contexto e ganha vida própria, a partir do m om ento em que se transform a no título de um livro publicado no Brasil. O texto, com o o signo, deixa de ser a representação “fiel” de um objeto estável que possa existir fora do labi­ rinto infinito da linguagem e passa a ser um a m áquina de significados em potencial. A imagem exem plar do texto “original” deixa de ser, p o rtan to , a de u m a seqüência de vagões que contêm uma carga determ inável e totalm ente resgatável. A o invés de considerarm os o texto, ou o signo, com o um receptáculo em que algum “co n teú d o ” possa ser depositado e m antido sob controle, pro p o n h o que sua im a­ gem exem plar passe a ser a de um palim psesto. Segundo os dicionários, o substantivo m asculino palim psesto, do grego palim psestos ( “ raspado novam ente” ) , refere-se ao “ antigo m aterial de escrita, principalm ente o pergam inho, usado, em razão de sua escassez ou alto p reço , du as ou três vezes [. . .] m ediante raspagem do texto a n terio r”. M etaforicam ente, em nossa “oficina” , o “palim psesto” passa a ser o texto que se apaga, em cada com unidade cul­ tural e em cada época, p ara d a r lugar a outra escritura

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(o u in terp retação , o u leitura, o u trad u ção ) do “m esm o” texto. Assim, com o nos ilustrou o conto de Borges, o texto de D o m Q uixote não pode ser um conjunto de sig­ nificados estáveis e imóveis, para sem pre “d epositados” nas palavras de M iguel de C ervantes. O que temos, o que é possível ter, são suas m uitas leituras, suas m uitas interpretações — seus m uitos “palim psestos” . A trad u ção , com o a leitura, deixa de ser, portanto, um a atividade que protege os significados “originais” de um au to r, e assum e sua condição de produtora de signi­ ficados; m esm o p o rqu e p rotegê-los seria im possível, como tão bem (e tão co n trariad am en te) nos dem onstrou o borgiano Pierre M enard.

3 A questão do texto literário

N e n h u m p ro b le m a tão co n sub sta n cia i c o m as letras e seu m o d e sto m istério c o m o o q u e p ro p õ e u m a tradução. U m e sq u ec im e n to estim u la d o p ela vai­ dade, o tem o r d e co n fessa r p rocessos m e n ta is q u e a d iv in h a m o s perigosa­ m e n te c o m u n s, a ten ta tiva d e m a n ter in ta cta e central u m a reserva incal­ cu lá ve l d e so m b ra velam as tais escri­ tu ra s diretas. A tradução, p o r o u tro lado, parece d estin a d a a ilustrar a discussão estética.

(Jorge Luis Borges)

O preconceito da inferioridade ou da impossibilidade O ponto nevrálgico de toda teoria de tradução parece ser a tradução dos textos que cham am os de “literários”, questão geralm ente ad iada o u excluída tan to dos estudos sobre tradução quanto dos estudos literários. A grande m aioria dos escritores e poetas que abor­ dam a questão da trad u ção de textos literários considera

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que traduzir é destruir, é descaracterizar, é trivializar. P ara muitos, a tradução de poesia é teórica e praticam ente impossível. P ara outros, a eventual traduzibilidade do texto poético é vista com o sinal de inferioridade. P ara o poeta am ericano R obert F ro st (1 8 7 4 -1 9 6 3 ), p o r exem plo, a verdadeira poesia é intraduzível, definindo-se precisa­ m ente com o aquilo que “se p erd e” em qualq u er tentativa de tr a d u ç ã o 1. Segundo o francês Paul V aléry (1871-1 9 4 5 ), “co n tem p o rân eo ” e “com panheiro” de Pierre M e­ nard, a qualidade d o texto poético é inversam ente p ro ­ porcional à sua traduzibilidade: quanto mais resistente for o texto “aparen tem ente” poético ao ataque de qualquer transform ação form al, m enor será o seu grau de p o e s ia 2. G eorge S teiner, em A fte r Babel: aspects o f langua­ ge and translation (V . B ibliografia co m e n ta d a ), cita várias opiniões sem elhantes, tam bém de escritores e p oetas céle­ bres, insatisfeitos com os “estragos” causados pela tra ­ dução. E ntre outros, S teiner cita o poeta alem ão H einrich Heine (1797-1856), p ara quem as versões francesas de seus poem as eram “lu ar recheado de p a lh a ” (p. 2 4 0 ). O russo-am ericano V ladim ir N abokov (1 8 9 9 -1 9 7 7 ), um dos maio­ res escritores deste século e que, entre suas inúm eras obras, incluiu traduções, expressa sua visão no poem a “O n tran s­ lating ‘E ugene O negin’ ” : W hat is translation? On a platter A poet's pale and glaring head, A p a rro t's speech, a m on key's chatter, And profanation of the dead (p. 240). (“Sobre a Tradução de ‘Eugene Onegin " O que é tradução? Numa bandeja.

' Citado pelo poeta e tradutor inglês Donald Davie numa confe­ rência apresentada para os alunos do Programa de M estrado em Teoria e Prática da T radução Literária, Universidade de Essex, Colchester, Inglaterra, no ano letivo de 1967-1968; texto mimeografado. - Idem.

27 A cabeça pálida e fulgurante de um poeta, A fala de um papagaio, a tagarelice de um macaco, E a profanação dos mortos.)

M arin Sorescu, poeta rom eno contem porâneo, tam ­ bém expressa sua crítica através de um poem a, intitulado “T rad u ç ã o ”, que traduzo a p artir da versão inglesa: Estava fazendo exame De uma língua morta. E tinha que me traduzir De homem para macaco. Fiquei na minha, Transform ando uma floresta Em texto. Mas a tradução fico u m ais d ifícil Quando fui chegando perto de mim. Porém, com um certo esforço, Encontrei equivalentes sa tisfa tórios Para as unhas e os pêlos dos pés. Perto dos joelhos C o m ece i a gaguejar. P e rto do coração minha mão com eçou a trem er E inundou o papel de luz. M esm o assim , tentei im provisar Com os pêlos do peito, M as falhei com pletam ente Na alma.

Segundo esses poetas e escritores, a trad u ção é um a atividade essencialm ente inferior, p o rq u e falha em captu­ rar a “alm a” ou o “esp írito ” do texto literário ou poético. Essa visão reflete, portanto, a concepção de que, especial­ mente no texto literário o u poético, a delicada conjunção

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entre form a e conteúdo não pode ser to cada sem prejuízo vital, o que co ndenaria qualq u er possibilidade de tradução bem -sucedida.

Uma teoria literária menardiana N ovam ente, estam os diante de um a concepção “me­ n ard ian a ” da literatura, reflexo da teoria lingüística e da teoria da trad u ção que com entam os no capítulo anterior. C om o vim os, P ierre M en ard som ente consideraria legítim a um a trad u ção que, literalm ente, não alterasse em nada o texto “original” , uma trad u ção que, em pleno século X X , pudesse resgatar o verdadeiro Q uixo te escrito por Miguel de C ervantes no início do século X V II. P a ra o poeta, trad u to r e “rom ancista invisível” Pierre M en ard, como para os poetas e escritores citados acima, o literário e o poético são características textuais intrínsecas e estáveis, que perm item , inclusive, um a distinção clara e objetiva entre textos literários e textos não-literários. P ortanto, qualquer m udança (ta n to a nível form al, quanto a nível de co n teú d o ) que pudesse o co rrer num texto “ literário” im plicaria um a alteração de suas características e, conse­ qüentem ente, a eventual perda daquilo que o to rn a “lite­ rá rio ”. A o m esm o tem po, podem os o b serv ar que a teoria de tradução im plícita nos com entários desses poetas e escri­ tores é essencialm ente a m esm a do teórico E ugene N ida, cuja co m paração do processo de trad u ção a um a transfe­ rência de carga de um grupo de vagões p ara o u tro exam i­ namos no início do capítulo anterior. N ida redime a tra ­ dução de textos não-literários exatam ente porque, nesse caso, a conjunção c o n te ú d o /fo rm a não é considerada fun­ dam ental, não im portando, com o vimos, em quais vagões se encontram as diversas p artes da carga tran sp o rtad a,

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nem a seqüência em que os vagões se organizam , m as, sim, que to d o s os co n teú d o s alcancem o seu destino. E ssa “transferência” n ão pode, p o rta n to , ser aceita pelos defensores da intraduzibilidade do literário e do poé­ tico p o rq u e consideram que é precisam ente essa intocabilidade da conjunção fo rm a /c o n te ú d o que constitui a pe­ culiaridade do texto “ artístico ”. A literariedade é, assim, considerada com o algo que alguns textos privilegiados “co n têm ” , com o um a “ alm a” ou um “espírito”. C onform e escreveu o poeta italiano G iacom o L eo p ard i (1 7 9 8 -1 8 3 7 ): A s idéias estão contidas e praticam ente engastadas nas p alavras com o pedras preciosas num anel. Elas se incor­ poram às palavras com o a alma ao corpo, de tal modo que constituem um todo. A s Idéias são, portanto, inseparáveis das palavras- e, se se separarem delas, não serão m ais as m esm as. Escapam ao nosso intelecto e ao nosso poder de compreensão; tornam-se irrecon hecíveis, exatam ente o que aconteceria à nossa alma se se separasse de nosso c o rp o 3.

T a n to a imagem de L eopardi, que sintetiza as con­ cepções de N abokov, F ro st, V aléry e Sorescu (além de M e n a rd ), quanto a de N ida, apresentam o texto (literá­ rio ou n ã o ) com o um receptáculo de idéias e /o u carac­ terísticas distinguíveis e objetivam ente determ ináveis. N o capítulo anterior, através do conto de Borges, tentam os questio n ar essa concepção de texto e, à im agem do te x to / /v a g ã o de carga sobrepusem os a im agem do tex to /p alim p sesto. T entarem os, agora, exam inar as im plicações desse tex to /p alim p sesto p ara um a definição da p ró p ria literatura, pois a discussão sobre a tradução ou a traduzibilidade dos textos que cham am os de literários ou poéticos depende de um a discussão an terio r sobre o status do texto “original” , isto é, sobre aquilo que nos leva a co n sid erar um deter­ minado texto “poético” ou “literário ”. 3 A p u d St e in e r , G .

A fte r Babel. . . , n o t a 1, p. 24 2 .

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Repensando o literário Se tentássem os rastrear, através da história da cultura ocidental, as diversas respostas dadas à pergunta aparente­ m ente sim ples: “O que é literatu ra?”, provavelm ente che­ garíam os a respostas tão diferentes quanto as épocas que as produziram . Basta lem brar, p o r exem plo, que enquanto Platão bania a poesia de sua R epública p o r ser “perigosa”, A ristóteles a celebrava, principalm ente sob a form a de tra ­ gédia, p o r seu efeito benéfico de catarse. M as, nem pre­ cisaríam os consultar nossos mestres gregos. Se fizéssemos a mesma pergunta a teóricos contem porâneos, tam bém o b ­ teríam os respostas divergentes. N a verdade, seria surpreen­ dente se obtivéssem os respostas m uito sem elhantes, uma vez que nossa tradição cultural tem cham ado de “poem as” textos tão díspares quanto Os Lusíadas, de Cam ões, e “Q u ad rilh a”, de C arlos D rum m ond de A n d rad e, ou Para­ dise L o st, de John M ilton, e “ In a Station of the M etro ”, de E zra P ound. D e um lado, tem os tex to s m onum entais com o os de Cam ões e M ilton e, de ou tro , textos que um leitor avesso às sutilezas do poético consideraria prosaicos, com o o poem a citado de P ound, constituído de apenas dois versos: The apparition of th e se faces in the crowd; Petals on a wet, black bough. (A aparição dessas faces na multidão; Pétalas num ramo negro, úmido.)

O que teriam em com um esses textos tão diferentes? O que nos perm ite classificá-los com o m esm o rótulo de “poem a” ? C ertam ente, o que nos perm ite ch am ar tanto Os L usíadas quanto “Q u ad rilh a” de “poem as” não são suas características textuais intrínsecas, nem sua tem ática, nem m esm o as eventuais “ interições” de seus autores tão distintas entre si, m as sim, nossa atitude p eran te os mes-

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mos. O poético é, na verdade, um a estratégia de leitura, um a m aneira de 1er e, não, com o queria P ierre M enard, um co n ju n to de propriedades estáveis que objetivam ente “encontram os” em certos textos. Assim, há textos que, devido a circunstâncias exteriores e não às suas caracte­ rísticas inerentes, nossa tradição cultural decide 1er de form a literária ou poética. A literatura seria, p o rtan to , um a categoria convencio­ nal criada por um a decisão com unitária. C om o sugere o teórico am ericano Stanley Fish, o que será, em qualquer época, reconhecido com o literatu ra é resultado de um a d e­ cisão, consciente ou não, da com unidade cultural sobre o que será considerado “literário ” 4. Podem os im aginar, por exem plo, que o contexto histórico e cultural que produziu e celebrou um poem a com o Os Lusíadas certam ente não produziria nem reconheceria com o “poem a” um texto como “Q u ad rilh a ”. H oje, entretanto, nossa com unidade cultu­ ral, que Stanley F ish cham a de “com unidade interpretativa”, perm ite incluir tan to Cam ões quan to D rum m ond entre os m aiores poetas da língua portuguesa. D e m a­ neira sem elhante, podem os entender tam bém p o r que al­ guns poetas são tão celebrados d urante um certo período e com pletam ente esquecidos em outro, ou, ainda, porque às vezes “redescobrim os” ou “revisitam os” um poeta “in­ justiçad o ” no passado.

Quando ameixas não são simplesmente ameixas T om em os um exemplo prático que possa nos ajudar a ilu strar essas conclusões sobre o literário ou o poético 4 Is there a text in this class?; the authority of interpretive com m u­ nities, p. 1-17. V. Bibliografia comentada.

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e a exam inar suas implicações p a ra o processo de tra ­ dução. S uponham os que o seguinte fragm ento seja o c o n ­ teúdo de um bilhete deixado por um hóspede norte-am ericano sobre a mesa da cozinha de seu anfitrião brasileiro, que não dom ina m uito bem o inglês: T h is is just to say I have eaten the plum s that were in the ic e b o x and w hich you w ere probably saving for breakfast. Forgive me, they were d e licio u s: so sw eet and so c o ld 5.

C om o trad u to res de um sim ples bilhete de caráter pessoal, cujo contexto e função acabam de ser estabelecidos, sabe­ mos que nosso objetivo é reproduzir a inform ação e o pedido de desculpas do “original” : Este bilhete é só para lhe dizer que com i as am eixas que estavam na geladeira e que provavelm ente v o c ê estava guardando para o café da manhã. Desculpe-m e, elas esta­ vam deliciosas, tão doces e geladas.

T eríam os, entretanto, o u tra s leituras, o u tras traduções e, portanto, pelo m enos um outro “tex to ” ao constatarm os que o fragm ento acim a é, na verdade, um poem a do am e­ ricano W illiam Carlos W illiam s (1883-1963): Th is is just to say I have eaten the plum s th a t w ere in th e icebox

5 O exemplo e os argum entos apresentados aqui foram inicialmente desenvolvidos em A r r o j o , Rosemary. A tradução como reescritura: o texto/palim psesto e um novo conceito de fidelidade. Tra­ balhos em Lingüística Aplicada, Campinas, U niversidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, dez. 1985, n.° 5 e 6, p. 1-8.

33 and w hich you w ere probably saving for breakfast Forgive me th ey w e re deliciou s so sw e e t and so cold «

A o serm os apresentados ao “m esm o” fragm ento, agora rotu lad o de poem a, o que antes era prosaico passa a ser poético. C om o leitores do poem a, m em bros de um a com unidade cu ltu ral p a ra a qual tal te x to se enquadra dentro das convenções literárias estabelecidas, aceitam os o desafio im plícito de in terpretá-lo poeticam ente e passam os a procurar um sentido coerente p ara ele. Passam os a pen­ sar, p o r exemplo, nas possíveis im plicações da oposição entre o ato de com er as am eixas e as relações sociais que esse ato viola. O posição essa que não se resolve pacifica­ m ente: ao m esm o tem po em que o poem a, pela sua própria razão de ser, reconhece a prioridade das regras, através do pedido de perdão, afirm a tam bém que a experiência sensual im ediata é im portante (p rincipalm ente pelas suas últim as palavras “so sweet and so cold” ) e que as relações pes­ soais (a relação sugerida entre o l e o y o u ) devem ante­ cipar um espaço p ara tal experiência 7. E n q u an to que a trad u ção do tex to /b ilh ete não nos trouxe m aiores dificuldades, a trad u ção do tex to /p o em a nos obrigaria a tom ar várias decisões nada fáceis. Um le ito r/tra d u to r que concordasse, em linhas gerais, com a in terpretação esboçada acim a, teria que resolver, por exem ­ 6 E m B r a d le y , S. et alii, ed. Tlie Am erican tradition in literature, 4. ed. N e w Y ork, G ro sset & D unlap, 1974, p. 1618-9. 7 Essa leitura foi esboçada pelo crítico am ericano Jonathan Culler, em Structuralist poetics. New Y ork, Cornell University Press, 1975. p. 175-6.

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plo, o p ro b lem a da trad u ção de plums. Se aceitam os que, no poem a “original” , as frutas representam um estím ulo à sensibilidade que transgride as regras sociais, é im portante que as associações desenvolvidas a p a rtir de plum s en­ contrem equivalentes no texto traduzido. Já que passam a re p re se n ta r o sensual, ou aquilo que excita os sentidos, é im portante que essas frutas, cobiçadas e consum idas pelo eu do poem a e especialm ente reservadas pelo você para o café da m anhã, sejam frutas verm elhas e red o n d as (talvez com o a fruta proibida e desejada do Jardim d o É d e n ), de pele lisa e m acia, carnudas, suculentas e doces. T am ­ bém passa a ser significativo o fato de que essas associa­ ções encontrem eco num o u tro sentido possível de plum , que em inglês coloquial pode significar “algo considerado bom e desejável, como por exem plo, um em prego bem re­ m un erad o ” , acepção derivada de outras m ais antigas. O O xfo rd E nglish dictionary (edição com p acta) lista algu­ mas que podem nos interessar: “um a coisa b oa, um pitéu; um a das m elhores partes de um artigo ou livro; um a das recom pensas da vida; tam bém o m elhor de um a coleção de objetos ou anim ais” . A o traduzirm os p lu m s p o r am eixas, en tretan to , o le­ que de associações pode se m odificar radicalm ente. Em prim eiro lugar, am eixas não são necessariam ente plum s. Q uand o falam os em am eixas, hoje, na com unidade cultu­ ral em que vivem os, pensam os em am eixas pretas (prunes, em in g lês), frutas secas e enrugadas, que dificilm ente se­ riam associadas ao sensual e que, por um a irônica coinci­ dência, podem fazer parte de um nada “poético” café da m anhã, como rem édio para distúrbios intestinais. Pensa­ mos tam bém em nêsperas, as am eixas am arelo-alaranjadas, de pele lisa e aveludada que, em bora pudessem deflagrar algumas das associações que construím os a partir das am eixas verm elhas, não são as mesmas frutas de que nos fala o poeta norte-am ericano.

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N esse ponto, tocam os em um a questão im portante, aliás um a das prim eiras a ser a b o rd ad a em qualquer discussão sobre tradução e, em especial, sobre a tradução de textos literários: a que deve ser fiel nossa tradução de p lum s nesse poem a? D eve a tradução ser fiel ao con­ texto em que (supom os q u e) o poem a ten h a sido escrito, isto é, deve a trad u ção levar em conta que o poem a p ro ­ vavelm ente tenha sido escrito na pacata R uth erford, New Jersey, em m eados da década de 30? Podem os im aginar que, nos anos 30, num a cidadezinha do nordeste am eri­ cano, consum ir am eixas verm elhas no café da m anhã não era necessariam ente um háb ito consagrado da população em geral, o que nos levaria a concluir que as p lu m s do poem a de W illiam s realm ente sugerem algo que foge ao habitual. M as, quando pensam os em “am eixas verm e­ lhas” em nosso contexto cultural, a sugestão não é sim­ plesm ente de algo que foge ao habitual, mas, sim, de algo muito raro e inacessível. E isso, considerando que nosso contexto cultural é o de um grande centro u rb ano e de­ senvolvido da região Sul do Brasil. E ssa sugestão de ra rid a d e e inacessibilidade, que m o­ dificaria sensivelm ente o status da sensualidade no poem a traduzido, se intensificaria, por exem plo, se esse poem a atingisse um público leitor em outras regiões brasileiras, ou m esm o em outros países de língua portuguesa. Assim , m esm o se fosse possível, um a tradução “literal” do poem a estaria estim ulando associações e relações diferentes d a­ quelas que podem os desenvolver a p artir do “original” . P o r ou tro lado, u m a trad u ção “n ão -literal” do poem a, isto é, um a tradução que pretendesse recriar e ad ap tar suas im agens m ais im portantes, p ara que o texto traduzido fosse fiel às associações que construím os a partir do “ori­ ginal” , um a tradução que escolhesse “pêssegos” ou “sap o tis”, ou quaisquer o u tras frutas, com o equivalentes do original p lu m s, não seria fiel ao poem a, enquanto repre-

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sentante e p roduto de um determ inado au to r e seu con­ texto histórico.

A tradução de textos literários redefinida O que poderia torn ar extrem am ente difícil, e até mesmo im possível, a trad u ção do poem a de W illiam Carlos W illiam s não seriam, p o rtan to , suas características ineren­ tes, m as sim, a in terp retação que construím os a p artir dele. A trad u ção do substantivo p lum s, que nos pareceu óbvia quando consideram os o tex to /b ilh ete, passa a ser pro b le­ m ática quando lidam os com o te x to /p o em a, exatam ente porque, quando “aceitam os” 1er um determ inado texto de form a “poética” (isto é, quando aceitam os que determ i­ nado texto possa ser rotulado de “poem a” ) , passam os a considerar significativas todas as relações e associações que puderm os com binar num a interpretação coerente. Assim, as questões acim a, que p ro visoriam ente deixam os sem res­ postas, sugerem que qualquer tradução de “This is just to say” seria necessariam ente um reflexo da interpretação que, p o r algum a razão, decidíssem os privilegiar. D a m esm a form a que a leitura do c rític o /n a rrad o r em “P ierre M enard, au to r del Q uijoté” “diferencia” os dois fragm entos verbalm ente idênticos do D o m Q uixote (um deles, de C ervantes; o outro, de M e n a rd ), foi a nossa leitura que distinguiu o poem a de W illiam C arlos Williams do sim ples “bilhete” escrito p o r um hóspede norte-am ericano a seu anfitrião brasileiro. T ais conclusões a respeito da literariedade desm istificam os preconceitos que, em geral, envolvem a tradução dos cham ados textos “literários” ou “poéticos”. Isso não significa, entretanto, que a tradução desses textos seja sim­ ples ou fácil. Q uando equiparam os a trad u ção ou a lei­ tura de um poem a à sua criação, fica claro que exigimos de seu leitor ou trad u to r uma sensibilidade e um talento sem elhantes aos que tradicionalm ente se exigem dos poetas.

4 A questão da fidelidade

Q ual dessa s m u ita s tra d u çõ es [da O disséia] é fiel?, q u ererá saber, tal­ vez, m e u leitor. R e p ito que n e n h u m a ou q u e to d a s. S e a fid e lid a d e te m que ser às im aginações d e H o m e ro , aos irrecu p erá veis h o m e n s e dias que ele im a g in o u , n e n h u m a p o d e sê-lo para nós; todas, para u m grego d o século dez. (J o rg e L uis B o rg es)

O conceito de fidelidade e o texto/palimpsesto A ntes de nos concentrarm os no poem a de William C arlos W illiams, lem brem o-nos, um a vez mais, de Pierre M enard. C om o vimos, M enard, o tra d u to r total, aspirava a um a fidelidade total: pretendia reescrever o Q uixote exatam ente com o Miguel de C ervantes o escrevera, repe­ tindo seu contexto histórico e social, suas circunstâncias, suas intenções e motivações.

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A im possibilidade do sonho de M en ard já nos per­ m itiu reform ular o conceito de texto “original” e, até mesmo, o pró p rio conceito de literatura. R esta-nos, agora, repensar a questão da fidelidade. M en ard não pode ser com pletam ente fiel ao texto de C ervantes porque esse texto, conform e tentam os ilustrar através da imagem do tex to /p alim p sesto , não é um recep­ táculo de conteúdos estáveis e m antidos sob controle, que podem ser repetidos na íntegra. O texto de Cervantes, como qualq u er outro texto, “literário” ou não, som ente p o d erá ser ab o rd ad o através de um a leitura ou interpre­ tação. Com o Pierre M enard, todo leitor ou tra d u to r não po­ derá evitar que seu contato com os textos (e com a pró­ pria realid ad e) seja m ediado p o r suas circunstâncias, suas concepções, seu contexto histórico e social. A p ro p riad a­ mente, com o sugere o fragm ento do Q u ixo te de Cervantes, “repro d u zid o ” p o r M enard, a “m ãe da verdade é a histó­ ria”, isto é, aquilo que consideram os verdadeiro será irre­ m ediavelm ente determ inado por todos os fatores que cons­ tituem nossa história pessoal, social e coletiva. Nesse sen­ tido, é a história que dá à luz a verdade, e não a verdade que serve de m odelo p ara a história. Assim, o Q uixote de M enard, em bora verbalm ente idêntico ao de C ervantes, revela, m ais do que o m undo de C ervantes, a própria his­ tória de M enard, que, p o r sua vez, tam bém é m ediada pela visão do n a rra d o r/c rític o .

Uma Cleópatra melindrosa P ara entenderm os um pouco m elhor essa relação entre história e realidade, vam os im aginar a seguinte situação: um concurso de fantasias realizado em São P aulo, em m eados da década de 20, d u ran te uma festa, à qual da­

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remos o título de C leopatra, R ain h a d o N ilo. T odos os convidados deverão com parecer vestidos a caráter, e o ponto m áxim o da festa será a escolha d aquela que apre­ sentar a m elhor caracterização de C leopatra, isto é, da­ quela que se apresentar com o a versão mais “fiel” à C leo­ patra “original”, que viveu no Egito cerca de um século antes de C risto. H averá um grupo de jurados, com posto de hom ens e mulheres, previam ente escolhidos por seus conhecim entos de história egípcia e da biografia da rainha. F inalm ente, haverá um fo tógrafo especialm ente contratado para docum entar a escolha. Se hoje tivéssem os a o p ortunidade de exam inar a foto da vencedora, o que veríapios? C ertam ente, reco­ nheceríam os na foto várias características do que consi­ deram os os usos e costum es da década de 20. O pen­ teado, a m aquiagem , o traje e até a expressão facial e corporal dessa “C leo p atra” vencedora estariam inevitavel­ mente m arcados pelo estilo e pela m oda dos anos 20, re­ velando, na verdade, um parentesco m uito m aior com sua pró p ria época do que com a época da “v erd ad eira” Cleo­ patra. E m b o ra possam os im aginar que a confecção do traje tenha se baseado em descrições sobre os trajes egíp­ cios da época de C leopatra, eventualm ente encontradas em livros de história, o traje que essa C leopatra dos anos 20 conseguiu “produzir” foi feito com os tecidos, com as téc­ nicas de corte e costura, e p o r alguém que viveu nos anos 20. Se tivéssemos a o p ortunidade de com parar atenta­ m ente essa foto com o u tras que docum entassem eventos sem elhantes realizados na m esm a época, m as em cidades diferentes, com o N ova Y ork, Paris, ou, quem sabe, até m esm o, R io de Janeiro, poderíam os registrar diferenças locais e características específicas dos usos e costumes dessas cidades, expressas através das candidatas vence­ doras.

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E se o concurso fosse repetido hoje? E se tam bém tirássem os um a foto de nossa C leopatra? M esm o que ten­ tássem os, através de um a pesquisa séria e cuidadosa, ser absolutam ente “fiéis” àquilo que consideram os constituir a “v erd ad eira” C leopatra, e evitar os “erro s” que even­ tualm ente poderíam os detectar em nossas hipotéticas Cleo­ p atras dos anos 20, não revelaria a nossa versão da rainha egípcia as idiossincrasias, o estilo e as concepções dos anos 80, vigentes num a grande cidade ocidental do H e­ m isfério Sul?

O autor, o texto e o leitor/tradutor D o m esm o m odo que é impossível p a ra M enard tornar-se C ervantes, e do memo m odo que é impossível p ara as “C leopatras” dos anos 20 e dos anos 80 to rn a ­ rem -se C leopatra, é im possível resgatar integralm ente as intenções e o universo de um autor, exatam ente porque essas intenções e esse universo serão sem pre, inevitavel­ m ente, nossa visão daquilo que possam ter sido. Além disso, com o sugeriu o teórico francês R o lan d Barthes, q ualquer texto, p o r perten cer à linguagem , pode ser lido sem a “ap ro v ação ” de seu autor, que p ode apenas “visi­ ta r” seu texto, com o um “convidado” , e não com o um pai soberano e co n tro lad o r dos destinos de sua criação 1. O au to r passa a ser, portan to , mais um elem ento que utilizam os para construir um a interp retação coerente do texto. A ssim , quando revelei ao leitor q u e o tex to /b ilh ete sobre as am eixas verm elhas era, na verdade, um poem a do grande poeta norte-am ericano W illiam C arlos Williams, 1 V er B a r t h e s , R. F ro m w o rk to text. In: H a r a r i , J. V. (ed.). Textual strategies; perspectives in post-structuralist criticism. New York, Cornell U niversity Press, 1979. p. 77.

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esse d ad o provavelm ente m otivou o leitor a aceitá-lo com o tex to poético e a levar a sério a in terp retação proposta. O foco in terpretativo é transferido do texto, com o receptáculo da intenção “original” do autor, p ara o in tér­ prete, o leitor, ou o trad u to r. Isso não significa, absoluta­ mente, que devem os ignorar ou desconsiderar o que sa­ bem os a respeito de um autor e de seu universo quando lem os ou traduzim os um texto. Significa que, m esm o que tiverm os com o único objetivo o resgate das intenções o ri­ ginais de um determ inado au to r, o que som ente podem os atingir em nossa leitura ou tradução é expressar nossa visão desse autor e de suas intenções. A ssim , em pregando novam ente a imagem de B arthes, mesmo que considerás­ semos o autor o “pai absoluto” do texto que lemos ou traduzim os, ele será irrem ediavelm ente nosso “convidado” nessa em presa; sua atuação, sua p ró p ria “presença” nesse p ro je to dependerá sem pre do papel que, explícita ou im ­ plicitam ente, lhe outorgam os. C ontudo, quando um leitor “p ro d u z” um texto, sua interp retação não p ode ser exclusivam ente sua, da m esm a form a q u e o escritor n ão p ode ser o au to r soberano do texto que escreve. N o conto de Borges, a interpretação que o n a rra d o r/c rític o p ropõe do Q u ixo te de M enard é um pro d u to de sua época: suas leituras, seu convívio com M enard, suas concepções teóricas. O p ro je to quixotesco de M enard, com o vimos, tam bém é produto de sua teoria da linguagem , de suas convicções, de sua “com unidade inte rp re ta tiv a ”, com o diria Stanley Fish. O m eu próprio projeto — a teoria de tradução que proponho neste livro — não pode ser inteiram ente m eu\ é, inevitavelm ente, tam bém um p roduto de m inha história: dos livros que li, dos autores que aprendi a adm irar, d a visão de m undo que essas leituras e esses autores aju d aram a construir.

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A fidelidade redefinida à prim eira vista, pode parecer que, ao questionarm os a possibilidade de que um a tradução seja inteiram ente fiel ao texto original, estam os questionando não só a própria possibilidade teórica de q ualquer tradução, m as tam bém a possibilidade de qualquer critério objetivo p a ra avaliarm os textos traduzidos. C onform e tentam os d em onstrar anteriorm ente, a tra ­ dução seria teórica e praticam ente im possível se esperás­ semos dela um a transferência de significados estáveis; o que é possível — o que inevitavelm ente acontece, a todo m om ento e em toda tradução — é, com o sugere o filó­ sofo francês Jacques D errida, “um a transform ação: uma tran sfo rm ação de um a língua em outra, de um texto em o u tro ” 2. M as, se pensam os a tradução com o um processo de recriação ou transform ação, com o poderem os falar em fidelidade? C om o poderem os avaliar a qualidade de uma tradução? R etom em os o exem plo dos concursos de fantasias. C om o vimos, cada “versão” ap resentada da rainha C leo­ patra traria irrem ediavelm ente a m arca de sua localização no tem po e no espaço. M esm o assim, essas versões foram avaliadas d u ran te cada um dos concursos hipotéticos, em que os jurados, ao elegerem a m elhor C leópatra, elege­ ram , na verdade, aquela que consideraram a versão mais “fiel” à C leópatra “original”. E o que seria, p ara cada grupo de jurados, a C leópatra “v erd ad eira” ou “original” ? C om o já sugerim os, a C leópatra “v erd ad eira” ou “original” seria exatam ente o conjunto de suposições e características que, p a ra cada com unidade interpretativa, representada pelos jurados, constituiriam o personagem histórico conhecido com o C leópatra. O bviam ente, da 2 In:

J. apud S p i v a k , G. C. Prefácio do tradutor. In: J. O f G ramm atology. Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1980. p. 87.

D

D

e r r id a ,

e r r id a ,

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m esm a m aneira que as C leopatras escolhidas seriam dife­ rentes entre si, dependendo da época e da localização do concurso, tam bém seriam diferentes as características que cada co m u n id ad e in terpretativa atrib u iria à “v erdadeira” C leopatra. A lém disso, com o vimos, se pudéssem os obser­ var a foto de um a de nossas hipotéticas C leopatras da dé­ cada de 20, não seria possível evitar que nosso julgam ento se realizasse a partir de nossas próprias suposições e con­ vicções. Assim, a “versão” considerada “fiel” à C leopatra “original” p o r um a com unidade interp retativ a de São Paulo, em m eados da década de 20, não seria aceita por uma com unidade interp retativ a da m esma cidade, sessenta anos depois. V ejam os com o essas conclusões podem ser transferi­ das à questão da tradução de “This is just to say”, de W illiam C arlos W illiams, sobre a qual discutim os no capí­ tulo anterior. Com o o texto foi apresentado em duas “ver­ sões”, um a v ersão /b ilh ete e um a v ersão /p o em a, terem os que considerar pelo m enos duas situações diferentes. U m a tradução fiel ao te x to /b ilh e te seria, na verdade, fiel ao contexto estabelecido p a ra sua interpretação. As conven­ ções contextuais que deveriam reger essa trad u ção foram estabelecidas a partir do m om ento em que se especifica­ ram seu objetivo e circunstâncias, isto é, a partir do m o­ m ento em que estabelecem os que se tratav a de um bilhete inform al, escrito p o r um hóspede norte-am ericano a seu anfitrião brasileiro. D a m esm a form a, a trad u ção do te x to /p o e m a seria fiel às convenções estabelecidas — implícita ou explicita­ m ente — p ara sua leitura, levando-se em conta, é claro, que essas convenções são m ais com plexas e apresentam m ais variáveis, dependendo da com unidade cultural e da época que as produziram . Assim , nossa trad u ção desse, ou de qualquer outro poem a, seria fiel, em prim eiro lugar, à nossa concepção de poesia, concepção essa que deter­ m inaria, inclusive, a própria decisão de traduzi-lo.

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Im aginem os, por exem plo, um a com unidade interpretativa cujas idéias sobre poesia fossem sem elhantes a al­ guns conceitos cultivados no século passado. Tal com u­ nidade, que certam ente prezaria form as rígidas e estereo­ tipadas com o característica fundam ental do texto poético, nem consideraria a possibilidade de traduzir “poetica­ m ente” “T h is is just to say” porque não o veria como um poema. Im aginem os uma outra com unidade interpretativa, cujos pressupostos sobre poesia perm itissem “aceitar” o texto de W illiam s como poem a. Suponham os tam bém que essa com unidade se tivesse interessado particularm ente pela organização sonora e rítm ica de “T his is just to say”, considerando, inclusive, ser essa a característica que faz desse texto um poem a que merece ser traduzido. P ara tal com unidade, um a trad u ção fiel ao poem a de W illiams teria que ten tar reproduzir, ou recriar, sua estru tu ra sonora e rítm ica, em detrim ento de seu “c o n teú d o ”. E m o utras palavras, nossa trad u ção de q ualquer texto, poético ou não, será fiel não ao texto “ original”, mas àquilo que consideram os ser o texto original, àquilo que consideram os constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será, com o já sugerim os, sem pre produ to daquilo que somos, sentim os e pensam os. A lém de ser fiel à leitura que fazem os do texto de p artid a, nossa tradução será fiel tam bém à nossa própria concepção de tradução. A inda tom ando com o exemplo “This is ju st to say”, podem os im aginar um a com unidade interpretativa, p ara a qual a tradução desse texto se jus­ tificaria som ente se o trad u to r tentasse reproduzir o poem a “originalm ente” escrito p o r Williams num a cidadezinha do nordeste am ericano, em m eados da d écada de 30. Tal com unidade, que certam ente com partilharia das idéias de Pierre M en ard sobre a linguagem e a trad u ção, tentaria produzir um a tradução “literal” do poem a, sem conside­ rar que o mesmo seria lido num contexto e num a época

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diferentes. P ara tal com unidade, a única tradução possí­ vel de p lu m s seria, com bastan te p robabilidade, “am eixas”, ou, no m áxim o, “am eixas verm elhas”. Podem os im aginar, ainda, um a outra com unidade in terpretativa, p ara a qual todo texto traduzido devesse, de algum m odo, se incor­ po rar ou se ad ap tar ao contexto cultural da língua-alvo. T al com unidade poderia, p o r exem plo, considerar “pêsse­ gos” ou “caquis” opções m elhores ou mais “fiéis” do que “am eixas” . A lém de ser fiel à nossa concep ção de poesia e à nossa concepção de trad u ção , a tradução de um poem a deve ser fiel tam bém aos objetivos que se propõe. Im agi­ nemos, p o r exem plo, um a palestra sobre a o b ra de W illiam C arlos W illiams, ap resentada em portu g u ês p ara um a pla­ téia que n ão dom ina o inglês. O p alestrad o r poderia a p re ­ sentar e analisar o poem a “This is just to say” através de um a trad u ção inform al, sem p retender recriar ou recuperar, através dessa tradução, o que considera as características poéticas do “original” . O utras seriam as preocupações e os objetivos de um tra d u to r — outra seria a “fidelidade” — se o mesm o poem a tivesse que ser traduzido para inte­ grar um a coletânea de poetas m odernos de todo o m undo. C ontudo, se concluím os que toda trad u ção é fiel às concepções textuais e teóricas da com unidade interpreta­ tiva a que pertence o trad u to r e tam bém aos objetivos que se propõe, isso não significa que caem p o r terra quais­ quer critérios p ara a avaliação de traduções. Inevitavel­ mente, com o os grupos de jurad o s dos concursos de fan­ tasia que usam os com o exem plo, aceitarem os e celebrare­ m os aquelas traduções que julgam os “fiéis” às nossas pró­ prias concepções textuais e teóricas, e rejeitarem os aquelas de cujos pressupostos n ão com partilham os. Assim, seria im possível que um a trad u ção (o u leitu ra) de um texto fosse definitiva e unanim em ente aceita p o r todos, em qual­ quer época e em qualquer lugar. As traduções, com o nós e tudo o que nos cerca, não podem deixar de ser m ortais.

5 A teoria na prática

“Áporo” , de Carlos Drummond de Andrade A trav és da leitura e dos com entários sobre a tradução de um poem a de C arlos D rum m ond de A ndrade, vamos tentar ilustrar as conclusões teóricas desenvolvidas nos seg­ m entos anteriores. “Á p o ro ” , publicado em 1945 na coletânea A rosa do povo, é o texto escolhido pois, apesar de sua brevidade, pode nos d ar um bom exem plo do que seria 1er “poetica­ m ente” um texto. A lém disso, com o essa leitura é regida por convenções que nos perm item um a interp retação quase sem lim ites de todos os elem entos que constituem o texto, o exam e de sua versão p ara o inglês (in titu lad a “ Insect”, de autoria de John N ist) pod erá nos p ropiciar um a visão aguçada dos problem as e dos limites da tradução em geral. C om ecem os pelo “original” de D rum m ond:

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Áporo Um inseto cava cava sem alarm e perfurando a terra sem achar escape.

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Que fazer, exausto, em país bloqueado, enlace de noite raiz e m inério?

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Eis que o labirinto (oh razão, m istério) presto se desata:

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em verde, sozinha, antieuclidiana, uma orquídea form a-se 1

C om o sugerim os anteriorm ente, 1er um p o e m a im plica aceitar um convite im plícito à criação. Q uan d o aceita p a r­ ticipar desse p ro jeto , quan d o aceita o desafio de 1er “poe­ ticam ente” um texto, o leitor aceita tam bém — com o regra básica desse jogo — que todos os elem entos que consti­ tuem o poem a podem adquirir um significado “poético” e contribuir p ara a construção de um a interpretação. A leitura de “Á p o ro ” que p ro p o n h o a seguir se asse­ m elha à construção de um quebra-cabeça, cuja chave se encontra no título. D erivado do grego áporos ( “sem pas­ sagem ” ) , segundo a m aioria dos dicionários da língua, o substantivo m asculino áporo significa: / ) “inseto himen ó p tero ” , e 2 ) “problem a de difícil solução”. A esses dois significados é possível acrescentar-se um terceiro, encon­ trado apenas no D icionário contem porâneo da língua por­ tuguesa, de C aldas A ulete (V . Bibliografia com entada) : áporo pode ser tam bém “ um tipo de p lanta da fam ília das orquídeas, solitária, geralm ente esverdeada”. A lém de ser a “chave” que “ab re” o poem a e norteia m inha leitura, o título “Á p o ro ” tam bém a sintetiza. Assim, os dois prim eiros q uartetos nos apresentam a conjunção 1 Cf. Obra completa. Organização de A frânio C outinho. Rio de Janeiro, A guilar, 1967. p. 154.

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dos dois prim eiros significados apresentados: um inseto que cava (o “áp o ro ”, segundo C aldas A ulete, é um gê­ nero de inseto him enóptero da fam ília dos cavadores) e que encontra nesse cavar um problem a de difícil solução. N os tercetos, a situ a ç ã o /á p o ro se resolve com a form ação da o rq u íd e a /á p o ro , verde e sozinha 2.

“ Um inseto cava” V am os ten tar co n stru ir m elh o r esse en re d o /q u eb ra-cabeça. O prim eiro q uarteto, que introduz o inseto e o seu cavar “sem alarm e”, apresenta uma estrutura harm o­ niosa. T odos os versos têm o m esm o núm ero de sílabas e há sim etria na distribuição de sílabas acentuadas: nos versos / e i , o acento cai na terceira e quin ta sílabas e, nos versos 2 e 4, as sílabas acentuadas são as prim eiras e as quintas. H á tam bém um esquem a regular de rim as (a b a b ), várias assonâncias (cava, alarme, a, terra, achar, escape, inseto, sem, p erfu ra n d o ) e alguns sons consonantais predom inantes, que ecoam por toda a estrofe: um, inseto, sem, perfurando, alarm e, terra, escape. Esses ecos de sílabas sem elhantes, sons e até palavras repetidas, asso­ ciados à regularidade do m etro e da acentuação, podem su­ gerir a regularidade, a h a rm o n ia e a co nstância do trab alh o paciente d o inseto.

“Que fazer, exausto, em país bloqueado?” Q ual é a natureza e quais são as circunstâncias desse trabalho? O segundo q uarteto, na m edida em que desen­ 2 A leitura de “Á poro” aqui proposta tam bém é o tem a de um artigo da A utora: U m áporo e suas aporias: reflexões sobre um poem a de Carlos D rum m ond de A ndrade. Tradução c Com uni­ cação-, Revista Brasileira de Tradutores, 7, dez. 1985. V. Bibliografia comentada.

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volve o segundo significado de áporo, ten ta nos dar um a resposta, em bora seja, paradoxalm ente, tam b ém um a p e r­ gunta. O inseto, que cava “ sem alarm e” n a h arm o n ia da prim eira estrofe, enfrenta agora um a situação de difícil solução e se encontra, po rtan to , num a estrofe m enos h ar­ m oniosa que, diferentem ente da prim eira, conta apenas com algum as repetições de sons: fazer, exausto, bloquea­ do, raiz, país, minério. O locus d a atividade do inseto se define, ainda que de form a am bígua, no verso 6: “em país b lo q u ead o ”. A ausência de artigo, ou dem onstrativo, antes do substantivo país em presta ao mesm o um papel duplo. Pensam os num p a ís/E s ta d o que, p o r se identificar com um a situação difí­ cil, sugere o B rasil contu rb ad o e au toritário do início da década de 40, em que o poem a foi escrito. Podem os pen­ sar tam bém num p a ís/lu g a r n ão-determ inado: a própria região d a dificuldade e do limite. O adjetivo bloqueado também autoriza uma interp retação pelo menos dupla. O bjetivam ente, esse adjetivo refere-se a “p aís”, já que, de­ vido à ausência de artigo ou dem onstrativo, não faria sen­ tido um a leitura que considerasse “b lo q u ead o ” com o modificador de “inseto” : “Q ue fazer, exausto, bloqueado em p aís. . .? ”. E ntretan to , quando lem os a estrofe, talvez de­ vido à posição de “ex au sto ”, que ressoa em “b loqueado”, o últim o parece contam inar tam bém o “inseto”, sugerindo que o bloqueio é tan to d o país quanto do inseto exausto. A lém disso, descobrim os que essa situ a ç ã o /á p o ro é cons­ tituída do “enlace de n o ite /ra iz e m inério”, uma união perfeita que se expressa tam bém ao nível da form a através do enjam bem ent 3 e da ausência de vírgula entre “noite” e “raiz”. 3 Enjam bem ent: “[ . . . ] processo poético de pôr no verso seguinte um a ou mais palavras que com pletam o sentido do verso anterior (Cf. F e r r e i r a , A urélio B uarque de H olanda. Dicionário A urélio.) V. Bibliografia comentada.

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A ntes de desenvolver as associações possíveis a partir de “enlace de n o ite /ra iz e m inério”, convém antecipar que identifico o cavar desse inseto drum m ondiano com o p ro ­ cesso de criação artística e com a p rópria criação do poem a “ Á p o ro ”. A lém disso, há, pelo m enos, um a se­ gunda leitura com plem entar que não pode deixar de con­ siderar o poem a com o p ro d u to do “sentim ento do m undo” do poeta D rum m ond, vivendo os anos difíceis da ditadura de G etúlio V argas e da Segunda G u erra M undial. Assim, o cavar do inseto tam bém sugere a tentativa paciente, cons­ tante e exaustiva de se en co n trar um a saída p ara esse p aís/m u n d o bloqueado. Essas duas leituras se enriquecem a p artir das asso­ ciações suscitadas pelo “enlace de n o ite /ra iz e m inério”. “N oite raiz e m inério” sugerem a p ró p ria m atéria-prim a que constitui o processo de criação descrito no poem a: os elem entos com que conta o inseto em sua busca. A “noite” sugere o “escu ro ”, o não-saber-o-que-fazer nessa situ a ç ã o / /á p o ro , e até as condições em que o inseto realiza seu trabalho. “R aiz” sugere a busca de um com eço, de um início que pudesse crescer e b ro ta r; e o “m inério” sugere a criação em seu estado bruto, o m inério que precisa ad­ quirir uma form a, form a essa que parece o próprio objeto do inseto.

“Eis que o labirinto [ . . . ] presto se desata" N o prim eiro terceto, a situ a ç ã o /á p o ro inesperada­ m ente se resolve. “O labirinto se desata”, sem que pos­ samos saber, entretanto, com o se processou esse desatar. A resolução da situação difícil é cercada (a té no nível visual, já que o verso vem entre p a rên teses), p arad o x al­ m ente, de razão e m istério. O labirinto se desata (isto é, a obra se cria, a esperança de liberdade se instaura, o poem a se escreve) por obra da razão (isto é, do trabalho

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racional, con scien te), m as tam bém de form a m isteriosa, no “escu ro ”, fugindo, p o rtan to , ao con tro le do in se to /c ria ­ dor. O binôm io “ra z ã o /m isté rio ” se aproxim a, assim, do verso 8 ( “ raiz/m in ério ” ) , n ão só a nível son o ro mas tam ­ bém a nível sem ântico: o processo de criação d o áporo, descrito em term os do “enlace de noite raiz e m intério”, se consum a no verso 10: “ (o h razão, m isté rio )” . A duplicidade de “ razão, m istério” se revela tam bém na construção “ o labirinto se d esata”. P odem os considerá-Ia uma construção reflexiva, em que o labirinto fosse tanto o sujeito com o o objeto da ação de desatar; podem os con­ siderá-la tam bém com o uma construção passiva, de acordo com a qual o labirinto é desatado, m as o sujeito não se nom eia, alternativa mais viável dentro do e n re d o /q u e b ra-cabeça que arm am os até agora. Assim, o inseto, cujo paciente cavar desencadeia o desatar d o labirinto, não se pode nom ear sujeito absoluto desse desatar, já que o m esm o o co rre não só por interferência d o seu trabalho racional e consciente, mas tam bém de form a “m isteriosa”.

“ Uma orquídea forma-se" A últim a estrofe esclarece o desatar do labirinto: a resolução da situação difícil é a form ação d e um a orquí­ dea verde, solitária e antieuclidiana. A s últim as peças do quebra-cabeça se ju n tam : a situ a ç ã o /á p o ro se tranform a numa o rq u íd e a /á p o ro , que traz em sua cor a m esma es­ perança tím ida e forte de tantos outros poem as de D rum ­ m ond. C om o a flor feia de “A flor e a náusea”, que nasce em m eio ao caos e a desesperança, “ iludindo a polí­ cia e rom pendo o asfalto” . E ssa f lo r/á p o ro solitária, su b ­ versiva tam bém p o r ser antieuclidiana, já que subverte o establishm ent das form as e axiom as aceitos com o irrefutá­ veis e verdadeiros, pode ser a esperança “verde” do poeta D rum m ond no Brasil dos anos 40. Pode sugerir tam bém

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a singularidade e a força da o b ra de arte e, obviam ente, do próprio poem a “Á p o ro ”, cuja form a lem bra um soneto cortado verticalm ente pela m etade: soneto ganche que não se enquad ra d en tro da geom etria rígida dos sonetos con­ vencionais. A raiz e o m inério do verso 8 finalm ente en­ contram sua form a.

O poema: máquina de significação O jogo da leitura poética não deve d escartar nenhum fragm ento que possa ser em pregado na co n stru ção de um a interpretação. C om o nesse jo g o não há lugar p ara aci­ dentes ou casualidades, a m áquina de significados, em que se transform a um poem a no m om ento em que é lido, deve tentar in corporar aos seus m ecanism os todos os elem entos, mesmo aqueles que aparentem ente nada significam. No “Á p o ro ”, um desses elem entos é o núm ero de sílabas do últim o verso, “um a orq u íd ea form a-se”, que se destaca dos dem ais p o r ser o único a contar com seis sílabas. P or­ tanto, exatam ente o verso em que se forma a o rq u íd e a / /á p o ro é tam bém “antieu clid ian o ”, na m edida em que subverte a organização do próprio “Á p o ro ”. A criação artística que, com o vimos, não pode ser unicam ente pro­ duto da racionalidade, é essencialm ente subversiva na me­ dida em que extravasa seus próprios m oldes e planos. O u tro fragm ento que se destaca nesse verso é o pro­ nom e se, que encerra o poem a. Em prim eiro lugar, o que cham a a atenção é sua posição enclitica, num a situação em que a próclise ( “U m a o rquídea se form a” ) seria mais natural e estabeleceria um p aralelo desejável com o verso 11. V isualm ente, o hífen que separa o “se” do verbo (e d o verso) pode enfatizar a sugestão d o extravasar. O “-se” poderia representar a relação estabelecida entre criador e objeto criado, entre o in se to /á p o ro e a o rq u íd e a /áp o ro .

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R elação essa que sugere quase um expelir, um parto, o m om ento m esm o em que a orquídea sai da terra. T al interpretação pode ser ainda enriquecida pela observação de que a sílaba “se” se encontra tam bém no centro do substantivo “ inseto” : o inseto “contém ” aquilo que se transform a em o rquídea e que nasce depois de um processo quase doloroso. Se prestarm os atenção aos de­ mais versos do poem a, podem os observar que a sílaba “ se” , ou variações dela (i.e., sibilante - f vogal e ) , são constan­ tes no poema. N o prim eiro quarteto, o “se” de “inseto” se repete em “sem ”, nos versos 2 e 4, e surge a variação “es” em “escap e”. N o segundo q uarteto, concentram -se diversas variações, em que o s desaparece e é substituído por ou tras sibilantes: “fazer”, “exau sto ”, “enlace”, “raiz e” . No prim eiro terceto, “se” volta a o co rrer em sua form a original, além da variação “es” : “ presto se d esata”. Em seguida, a sílaba “se” volta a se repetir som ente no últim o verso. T ais ocorrências poderiam sugerir os vários cam i­ nhos percorridos pelo in se to /c ria d o r em sua tentativa de chegar à form a ideal da o rq u íd e a /á p o ro . É interessante n o tar que o m aior núm ero de variações aparece exata­ mente no segundo quarteto, onde se instaura a situ a ç ã o / /á p o ro . N o últim o verso do prim eiro terceto, quando o “labirinto presto se d esata”, a sílaba “se” volta a ocorrer em sua form a original, ao lado de duas variações que são m ais sem elhantes a ela do que as ocorridas na estrofe an­ terior. M as, em bora a situ a ç ã o /á p o ro se resolva nesse terceto, isto é, a “form a” já tenha sido encontrada, é so­ m ente no últim o verso que esse parto term ina. A form a escolhida ( “se” ), entre tantas outras ( “es” , “ze”, “ex”, “ce”, “z e” ), é exatam ente aquela que é mais com patível com seu criad o r ( “inseto” ), aquela que, literalm ente, está contida nele.

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“ Insect”, versão de John Nist “In se c t” , versão para o inglês de “Á p o ro ” , foi publi­ cada num a coletânea organizada e traduzida p o r John Nist, intitulada In the m id d le o f the road (A rizo n a, University of A rizona Press, 1 9 6 7 ): 1 2 3 4

Insect An in se ct digs digs w ithout alarm boring the earth w ithout finding an escape.

5 6 7 8

What can one do, exhausted, in a blockaded country, union of night root and m ineral?

9 10 11

And then the labyrinth (oh reason, m ystery) qu ickly unties itself:

12 13 14

in green, alone, an-Euclidean, an orchid form s.

A o propor o título “ Insect” , Nist sugere que esse é o significado a ser privilegiado, ou seja, p rep ara seu pú­ blico para a leitura de um poema que trata essencialm ente de um inseto. Perde-se, assim , a relação que tanto valo­ rizei em m inha leitura entre os três significados de áporo, o que to rn a m ais difícil p a ra seus leitores encontrarem um fio interpretativo coerente. A lém disso, não há na versão de N ist nenhum a preo­ cupação com a regularidade do m etro, nem qualquer ten­ tativa de co n stru ir efeitos sonoros. N o prim eiro quarteto, p o r exem plo, os versos têm , respectivam ente, três, cinco, quatro e sete sílabas. O últim o verso, em particular, pa-

SS

rece não pertencer à estrofe, já que quebra o ritm o até certo ponto m antido nos três prim eiros. E m geral, sua trad u ção , que sem pre tende a ser “li­ teral” , achata as duplicidades e as am bigüidades que pri­ vilegiei em m inha leitura. A o trad u zir “ em país b lo quea­ do” p o r “in a blockaded cou n try ” , N ist sugere apenas a im agem do p a ís/E sta d o cercado que, além de lim itar a interpretação do setting do poem a a um a situação de fe­ cham ento político, tam bém dissolve a am bigüidade que nos levou a relacionar “b loqueado” tanto a “país” como a “inseto ” . 0 prim eiro terceto de “Insect” neutraliza a surpresa e o inesperado que cercam o desatar d o labirinto: “A nd then the labyrinth” sugere um a resolução m uito m ais tran ­ qüila da situ ação /áp o ro d o que o “original” : “Eis que o lab irin to ” . N o mesm o terceto, N ist in terp reta “o labirinto se desata” com o um a constru ção reflexiva: “T he laby­ rinth [. . . ] quickly unties itself” , o que desvincula a ati­ vidade do inseto da resolução da situ a ç ã o /á p o ro , to rn a n ­ do difícil p ara o leitor construir um a interp retação coe­ rente a respeito do papel do inseto no poem a.

Uma nova versão de “ Áporo” Supondo que pudéssem os sugerir alterações para que “Insect” fosse mais “fiel” à leitura de “Á p o ro ” que ap re­ sentei acim a, p roporia a seguinte versão: 1 2 3 4

Ãporo * An in setc digs digs in silen ce piercing the ground finding no escape.

5 6

What can one do, exhausted, in a confining site,

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union of nigh root and m ineral?

9 10 11

But look; the labyrinth (oh reason, m ystery) is suddenly untied:

12 13 14

in green, alone, anti-Euclidean, an orchid is form ing.

* áporo: 1. a d iffic u lt problem; 2. a highly sp e cia lize d in se ct that has organs for boring and piercing; 3. a plant o f the orchid fam ily, herbaceous, s o li­ tary, generally greenish.

Já que “Insect” faz p a rte de um a coletânea de poe­ mas de D rum m ond, vertidos para o inglês, espera-se que seus leitores, apesar de não dom inarem o português, te­ nham um certo interesse em poesia brasileira. C om o esses leitores estariam , p o r assim dizer, preparados para 1er poe­ mas “estrangeiros” (poem as que, eventualm ente, conte­ nham term os ou expressões com os quais não estão fam i­ liarizad o s), “ Á p o ro ” pode ser um bom título tam bém para a versão p a ra o inglês. A lém disso, com o vim os, podem os supor que até m esm o um leitor m édio de D rum m ond, cuja língua m atern a fosse o português, necessitaria de vários di­ cionários p ara decifrar o título “original”. A p a rtir do p ró p rio título, po rtan to , a versão de “Á p o ro ” que p roponho te n ta transferir ao le ito r as peças do quebra-cabeça que construí em m inha leitura. Assim, o sentido “literal” é, p o r vezes, sacrificado p ara que o todo, inclusive a m aterialidade do poem a, se m antenha harm ônico. N o prim eiro q u arteto , por exem plo, foram es­ colhidos “ in silence” (em silêncio) e “piercing” (fu ra n d o ), apesar de evocarem sentidos m enos proem inentes do ori­ ginal, p ara que contribuíssem p ara a form ação de um a

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rede de sons sibilantes, que pudesse sugerir a organização sonora e a regularidade do original. N o segundo quarteto, “in a confining site” tenta p re­ servar a m ultiplicidade de sentidos atribuída a “em país b lo q u ead o ”. O participio presente “confining” parece es­ tender a ação de confinar tam bém ao inseto: o p a ís /lu ­ gar “co n fin a” e o inseto se encontra “co n fin ad o ”. A lém disso, “con fin in g ”, ao lado de “site” (que, diferentem ente de country, não restringe o setting do poem a a um p a ís/ /E s ta d o ) , estabelece um a rede harm oniosa de sons: “confm ing”, “s/te”, “u/i/on”, “n /g h t”, “m /neral” . O s dois últim os tercetos de m inha versão tentam evi­ ta r os problem as que já apontei na versão de Nist. N o prim eiro, “But lo o k ” parece mais eficiente do que “A nd then” em sugerir a form a surpreendente em que se desata o labirinto. D iferentem ente da versão de N ist, minha ver­ são o p ta pela passiva “the labyrinth is [. . .] u n tied”, que não d escarta a participação do inseto na resolução da situ a ç ã o /á p o ro . N o últim o terceto, apenas o últim o verso difere da versão de N ist. O ptei pelo presente contínuo em “an o rchid is form ing” exatam ente p ara enfatizar o m o­ mento em que a orquídea se form a, tão destacado em m inha leitura.

6 Exercícios de tradução

E ste capítulo tem com o objetivo prop iciar ao leitor uma opo rtu n id ad e de p articip ar m ais ativam ente de nossa oficina, exercitando na prática as conclusões já desenvol­ vidas. N ovam ente, trabalharem os com poem as, devido à sua brevidade e p o r perm itirem um a leitura criativa e m inu­ ciosa, e com suas respectivas traduções publicadas: “Poem a de sete faces” , de C arlos D rum m ond de A n d rad e e a versão “Seven-sided poem ” de E lizabeth B ishop; “ T h e rival” , de Sylvia P lath , e sua tradução para o português, “R ival” , de L uiz C arlos de Brito R ezende. V am os 1er cada poem a paralelam ente à sua tradução e tentar estabelecer as principais diferenças de signifióado entre nossa leitura do “original” e a leitura sugerida pelo texto traduzido. Com base nesse m aterial, convidarem os, então, o leitor a elaborar novas traduções que sejam mais “fiéis” à nossa leitura dos poem as do que as versões p u ­ blicadas.

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“ Poema de sete faces” versus “Seven-sided poem” O “Poem a de sete faces” (em A lg u m a Poesia, 1923-1 9 3 0 ) é um d os m ais conhecidos textos de C arlos D rum ­ m ond de A ndrade. E lizabeth Bishop, poetisa norte-am e­ ricana que viveu vários anos no Brasil, é a auto ra da ver­ são “Seven-sided poem ” , que com pararem os a seguir ao original de D rum m ond. Poem a de se te faces 1

Quando nasci, um anjo torto

2

d e sses que vivem na sombra

3

disse: Vai, C arlo s! se r gauche na vida.

4

A s casas espiam os homens

5

que correm a trá s de m ulheres.

6

A tarde ta lv e z fo s s e azul,

7

não houvesse tantos desejos.

8

O bonde passa cheio de pernas:

9

pernas brancas pretas amarelas.

10

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta [meu coração.

11

Porém meus olhos

12

não perguntam nada.

13

O homem atrás do bigode

14

é sério, sim ples e forte.

15

Quase não conversa.

16

Tem poucos, raros am igos

17

o homem atrás dos óculos

e do bigode.

18

M eu Deus, por que me abandonaste

19

se sabias que eu não era Deus

20

se sabias que eu era fraco.

60 21 22 23 24 25

M undo mundo vasto mundo, se eu me cham asse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. M undo mundo vasto mundo, m ais vasto é meu coração.

26 27 28 29

Eu não devia te dizer mas essa lua mas e sse conhaque botam a gente com ovido com o o diabo x.

Seven-sided poem 1 2 3

W hen I w as born, one of the crooked angels who live in shadow, said: C a rlo s, go on! Be gauche in life.

4 5 6 7

The houses w atch the men, men who run after women. If the afternoon had been blue, there might have been le ss desire.

8 9 10 11 12

The tro lle y goes by fu ll of legs: w hite legs, b la ck legs, yello w legs. M y God, why all the legs? my h eart asks. But my eyes ask nothing at all.

13 14 15 16 17

The man behind th e m oustache is serious, sim ple, and strong. He hardly ever speaks. He has a few , ch oice friends, the man behind the spe cta cles and

18 19 20

M y God, why hast Thou forsaken me if Thou k n e w 'st I w as not God, if Thou kn e w 'st I w as w eak?

1 Cf. O bra com pleta, cit. p. 108.

the moustache.

61 21 22 23 24 25 26 27

Universe, vast universe, if I had been named Eugene that w ould not be w hat I mean but it would go into verse faster. U niverse, vast universe, my h eart is vaster.

28 29 30 31

I oughtn't to tell you, but this moon and th is brandy play the devil w ith one's e m o tio n s 2

O poem a é constituído de sete faces, sete estrofes, que se assem elham a sete instantâneos, ap arentem ente des­ conexos, que perscrutam a realidade. A o invés de nos determ os num a possível interp retação global do poem a, vam os ten tar estabelecer as principais diferenças entre cada um a das “faces” de D rum m ond e as “faces” equivalentes do texto de Bishop.

“[ . . . ]

um anjo torto”

P a ra que possam os construir um significado para a prim eira estrofe, é fundam ental entenderm os o “anjo to rto ”, que abençoa o nascim ento de “C arlos” com a fam osa de­ term inação: “Vai, Carlos! ser gauche na v id a ”. Segundo o N o vo dicionário A urélio, o adjetivo torto refere-se àquilo que “não é reto ou direito ” e, portanto, principalm ente depois da leitura de “Á p o ro ”, podem os ver nesse “anjo to rto ” um anjo não-convencional, um anjo “antieuclidiano”, que foge aos padrões estabelecidos para os anjos com uns. E m linguagem coloquial, to rto pode sig­ 2 Cf. B i s h o p , Elizabeth. The com plete poems. New Y ork, Farar, Straus & G iroux, 1969. p, 161-2.

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nificar tam bém “de um olho só ”, que podem os incorporar ao “anjo” de D rum m ond: to rto porque som ente pode ver um lado das coisas, o lado gauche. Torto pode significar ainda “e rra d o ”, “enganado”, “sem lealdade”, “desleal”, acepções que não associarem os a esse “a n jo ” p o rq u e há no poem a (e na o b ra de D rum m ond) um a certa sim patia em relação ao torto e ao gauche. A final, é o “ anjo to rto ” que está presente ao nascim ento do ew-Carlos como o poeta — e lhe dá uma direção na vida. Assim , o “anjo to rto ”, que p odem os associar ao diabo, parece ter do diabo apenas o que este tem de contestádor e subversivo, e não o que tem de m au e perverso, ou desleal. Nesse contexto, ser-gauche-rca-v/da significaria não ser com o os dem ais, ou pensar com o os demais, signifi­ caria até m esm o escrever, em plena d écada de 20 no Brasil, um poem a com o o “Poem a de sete faces”. P o r o u tro lado, a p rim eira estrofe de “Seven-sided poem ” parece privilegiar exatam ente os significados de torto que descartam os acim a. A lém de literalm ente sig­ nificar “to rto ”, o adjetivo crooked (em “one of the crooked angels” ), em linguagem figurada, som ente pode significar “desonesto”, “frau d u len to ”, “falso” , “p erverso”. Além disso, esses significados parecem enfatizados p o r associa­ ção ao substantivo cro o k que, em linguagem coloquial, quer dizer “escroque”, “vigarista”, “trap aceiro ”, “v elhaco”. Se essas são as associações às quais relacionam os o angel do poem a em inglês, fica claro que deve m udar tam ­ bém a interpretação que darem os ao “C arlos” e ao seu destino gauche. Se o anjo que esteve presente ao seu nas­ cim ento é um anjo “p erverso” ou “desonesto”, a determ i­ nação de ser gauche na vida que recebeu desse anjo pode sugerir um castigo ou um a m aldição. A lém disso, nessas circunstâncias, ser-gauche-na-vida tam bém significa “ser-perverso ” ou “ser-desleal” .

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“As casas espiam os homens” Nos dois prim eiros versos da segunda estrofe, o m undo exterior espreita os hom ens que correm atrás de m ulheres, e os dois últim os versos n o s dão u m a m edida desse desejo: “A tard e talvez fosse a z u l/n ã o houvesse tantos desejos”. C om o os hom ens que correm atrás de m ulheres, carregados de desejos que buscam satisfação, a tarde se encontra carreg ad a de nuvens que ofuscam o seu azul. As nuvens, como os desejos, im pedem que os hom ens “vejam ” com clareza. A estro fe equivalente da versão de E lizabeth B ishop parece, à prim eira vista, “fiel” à de D rum m ond mas, se analisarm os mais detidam ente os versos 6 e 7 (“If the after­ noon had been b lu e ,/th e re m ight have been less desire” ), podem os chegar a um a interp retação diferente. Além de “azul”, o adjetivo blue pode significar “triste, “ nervoso”, “ab a tid o ”, m elancólico”. Assim, os versos acima podem sugerir tam bém que “teria havido m enos d e se jo / se a tarde tivesse sido triste”. P o rtan to , se a tard e não foi triste, foi, provavelm ente, en solarada e azu l, o que sugere virtualm ente o oposto do que “lem os” no poem a de D rum m ond. A lém disso, os tem pos verbais em pregados nos ver­ sos trad u zid o s (had been, there m ight have b e e n ) indicam que a tard e e os desejos fazem p a rte do passado: a tarde e os desejos desses hom ens já se foram , em bora continuem correndo atrás de m ulheres. N os versos de D rum m ond, por o u tro lado, esses desejos e essa tard e estão m uito m ais próxim os e “presen tes”. A tarde nublada de desejo é tam bém a tarde em que se encontra o eu que nos fala desses hom ens e m ulheres. C om o o desejo e com o o “correr-atrás^de-m ulheres”, a tard e (q u e passa a sugerir o p ró ­ prio tem po, em seu sentido mais am plo) ain d a não chegou ao fim.

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“pernas brancas pretas amarelas” Um elem ento de ligação entre a segunda e a terceira estrofes pode ser o desejo que, no verso 8, atrai os olhos do eu p ara o bonde que passa “cheio de p ern as” : “per­ nas brancas pretas am arelas” . A ausência de vírgulas enfatiza a “q u an tidade” de pernas e, até a nível visual, sugere que não há intervalos form ais, não há a separação convencionalm ente exigida (pela gram ática e pelos costum es) entre os vários pares de pernas, que se m isturam , significativam ente, apesar das raças diferentes. N os versos de B ishop — “T he trolley goes by full of leg s:/w h ite legs, black legs, yellow legs” — a repetição do substantivo legs parece eficiente ao sugerir a quantida­ de e a proxim idade das pernas que passam no bonde. C ontudo, essas pernas, apesar de próxim as, estão muito mais bem com portadas, adequadam ente dispostas entre as vírgulas, que separam , inclusive, tam bém as brancas das pretas e das am arelas.

“O homem atrás do bigode” Q uem será o hom em que se esconde a trá s dos óculos e do bigode? Será, talvez, o eu que o b serv a as pernas que passam no b o n d e e que, na estrofe seguinte, em tom bí­ blico, se dirige a Deus e se queixa do abandono? Sabe­ mos, entretanto, que esse hom em , “sério, sim ples e fo rte”, “ quase não conversa” e “tem poucos, raros am igos”. A interpretação desse últim o verso esb arra no adje­ tivo raros. H á, pelo m enos, duas possibilidades. Em pri­ m eiro lugar, raros pode apenas enfatizar a pouca quanti­ dade de am igos desse hom em “sério, simples e fo rte”. Em segundo lugar, raros poderia indicar a qualidade desses poucos amigos, que seriam , portanto, inconnm s, extraordi­

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nários, preciosos. Se considerarm os que esse hom em “qua­ se não conversa” e se esconde “atrás dos óculos e do bi­ gode”, e se o associarm os à estrofe seguinte em que alguém confessa a D eus sua fraqueza e seu ab andono, terem os que o p tar pela prim eira possibilidade sugerida acima. N ovam ente, se nos detiverm os no verso equivalente da versão de B ishop — “H e has a few, choice friends” — podem os chegar a uma interp retação diferente. Como ad­ jetivo, choice significa “escolhido com c u id ad o ”, “exce­ lente” . Assim , o homem de óculos e bigode de “Seven-sided poem ” tem poucos amigos porque os escolhe cuida­ dosam ente e, não p orque se esconde e tem dificuldade de se com unicar, como concluím os a p artir do texto de D rum ­ m ond.

“Mundo mundo vasto mundo” A sexta face do poem a de D rum m ond é talvez um a das estrofes mais conhecidas de to d a a p oesia brasileira. M as, tam b ém a p artir dessas rim as tão fáceis e tão repeti­ das, podem os “construir” significados pertinentes ao poema. O eu, com o sabem os, se cham a Carlos e não “rim a” com o m undo, ou seja, n ão se harm oniza, n ão se afina com ele, não o repete (com o R a im u n d o o repete) porque repetir o m undo, ou “rim ar” com ele, não é um a solução. R epetir o m undo, sem transform á-lo, não é próprio de quem tem um “co ração vasto” e nasceu p ara ser g auche na vida, sob as bênçãos de um “anjo to rto ” . A solução e n co n trad a p o r E lizabeth B ishop para m anter um esquem a sem elhante de rim as é b astante cria­ tiva: “ U niverse, vast u n iv e rse ,/if I had been nam ed E u­ g e n e /th a t would not be w hat I m e a n /b u t it w ould go into v erse/fa ste r./U n iv erse , vast universe,/m y h e a rt is v aster”. Sugere, entretanto, um a reflexão diferente daquela que d e­ senvolvem os a p a rtir da estrofe “original”. Se o eu se cha-

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m asse E ugene, conseguiria apenas um a rim a m ais rap id a­ mente mas, não a expressão real de seus sentim entos, já que seu coração é m aior do que o universo. E n quanto a estrofe de D rum m ond, segundo m inha leitura, privilegia o •ser-gauche-rca-v/da, o não-rim ar-com -o-m undo, a estrofe de E lizabeth Bishop reforça a dificuldade de expressão. “[ . . . ]

comovido como o diabo”

A ultim a estrofe do p o em a nos rem ete à prim eira, e o que as aproxim a é a relação que estabelecem os anterior­ m ente entre o “anjo to rto ” e o “diabo” : “E u não devia te d ize r/m a s essa lu a /m a s esse c o n h a q u e /b o ta m a gente com ovido com o o d iab o ”. “C om ovido com o o d iab o ” perm ite pelo m enos duas leituras que se encaixam na interpretação que construím os. E m português coloquial, com o o dia b o p ode significar “m uito”, “extrem am ente”, portanto, a lua e o conhaque botam a gente m uito com ovido. A lém disso, pode-se 1er “com ovido com o o d iab o ” em seu sentido “literal”, ou seja, a emoção que se acentua com a presença da lua e com o conhaque é sem elhante à em oção sentida pelo diabo, ou pelo “anjo to rto ” que abre o poema. Em oção n aturalm ente g auche e m arota, que pode até ter sido a origem das sete faces do poem a. E m “Seven-sided p o em ” , E lizabeth B ishop apropria­ dam ente tenta m anter a figura do diabo com o parte de um a expressão coloquial: “ I o u g h tn ’t to tell y o u ,/b u t this m o o n /a n d this b ra n d y /p la y the devil w ith o n e’s em otions”. Seu sentido, entretanto, se transform a com pletam ente. To play the devil with significa “estrag ar”, “a rru in a r” . Assim, enquanto na estrofe de D rum m ond, a lua e o conhaque intensificam as em oções do eu-gauche e o equiparam ao “anjo to rto ”, seu “p a d rin h o ” , no poem a de B ishop, esses m esm os elem entos arruinam as emoções do eu, que, ao invés de se identificar com o “d ia b o ”, se coloca como sua

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vítim a, já que o “d iab o ” (com o p arte da expressão to play the devil w ith ) é um elem ento que “a rru in a ”, juntam ente com a lua e o conhaque.

“The rival” versus “ Rival” “T h e rival”, o p o em a de Sylvia P lath (1 9 3 2 -1 9 6 3 ) que vam os 1er em seguida, foi publicado postum am ente na coletânea A riel, em 1966. “R iv al”, a versão p a ra o p o r­ tuguês, é de Luiz C arlos de Brito Rezende e foi publicada no F o lh etim n.° 371 (suplem ento dom inical do jornal Folha de S. P a u lo ), em 2 6 /2 /1 9 8 4 . 1 2 3 4 5

The rival lí the moon sm iled, she would resem ble you You leave the sam e im pression O f som ething beautiful, but annihilating, Both of you are great light borrow ers. Her O-mouth grieves at the world; yours is [unaffected,

6

And your firs t g ift is making stone out of

9 10

[everything. I wake to a m ausoleum; you are here, Ticking your fin gers on the m arble table, [looking fo r cigarrettes, Spiteful as a woman, but not so nervous, A n d dying to s a y som ething unansw erable.

11 12 13 14 15

The moon, too, abases her subjects, But in the daytim e she is ridiculous. Y o u r d issa tisfa ctio n s, on th e other hand, A rriv e through the m a ilslo t w ith loving regularity, W hite and blank, expansive as carbon monoxide.

16 17

No day is safe from news of you, W alking about in A frica maybe, b u t thinking o f m e 3.

7 8

:! Cf.

Bradley,

S. et alii, ed., op. cit., p. 1907.

68 Rival 1 2 3 4 5

Se a lua sorrisse , pareceria contigo Você deixa a mesma im pressão De algo lindo e arrasador. E ambos sabem defender o seu. Ela chora de boca cheia; você é manhoso.

6 7 8 9 10

E o seu m aior charm e é saber tirar de tudo pedra. A co rdo num m ausoléu; te vejo A cata de cigarros, tam borilando o mármore Com m alícia de moça, só que não tão nervoso, M orrendo de vontade de dizer algo irretorquível.

11 12 13 14

A lua, também, degrada seus súditos, M as de dia ela é ridícula.

15

A s tuas in sa tisfações, por outro lado, A te rrissa m na caixa de correio com regularidade [encantadora, Branco no branco, expansivas com o monóxido [de carbono.

16 17

Nem um dia se passa sem notícias suas, Passeando pela Costa do M arfim , talvez, mas [pensando sem pre em mim.

“ If the moon smiled, she would resemble you” “T h e rival” se constrói a partir da com paração que o eu estabelece entre você e a lua, já configurada no verso 1. N os versos 2 e 3, descobrim os que, segundo o eu, a lua é uma figura am bígua: a lua, com o você, dá a im pressão de “algo belo, p orém arra sa d o r”. N os três prim eiros versos, a versão praticam ente “li­ teral” de B rito R ezende parece “fiel” ao que “lem os” no poem a de P lath. A única o b servação a fazer se refere ao uso dos pronom es de tratam en to de 2.a ( “ contigo” ) e 3.a

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( “você” ) pessoas que, em bora em pregados indiscrim ina­ dam ente na linguagem coloquial de várias regiões brasi­ leiras, poderiam dar m argem a interpretações não sugeri­ das pelo poem a de p artida. Para leitores m ais atentos, esse’ em prego indiscrim inado de pronom es p oderia sugerir, p o r exem plo, algum a característica, ou até m esm o um a ati­ tude, d o eu que fala no poem a. A s diferenças entre os dois textos se acentuam nos versos 4 e 5. O verso 4 de Plath, “B oth of you are great light b o rro w ers”, ( “V ocês dois são especialistas em tom ar em prestado a luz” , num a tradução a p ro x im a d a ), sugere que você, como a lua, por não ter “luz” p rópria, necessita da “luz” alheia p ara p o d er “b rilh a r”. V o cê, além de dis­ tante e frio, com o a lua, apresenta um “b rilh o ” que, na verdade, tom a em prestado de outrém . A sugestão de distância e frieza é reforçada no verso seguinte: “H er O -m outh grieves at the w orld, yours is unaffected ” ( “A boca dela, em form a de O, sofre pelo m undo; a sua perm anece im passível” ). V ocê é, portanto, ainda mais frio e insensível do que a lua que, apesar da distância e da ausência de “calor” próprio, sofre pelo m undo, enquanto “você” (ou a sua b o c a ) perm anece in­ sensível. N a versão portuguesa, encontram os um a lua e um você bastan te diferentes: “E m am bos sabem defender o se u ./E la chora de boca cheia; você é m an h o so”. Em “am bos sabem defender o seu” , não se estabelecem dife­ renças entre você e a lua, perdendo-se um dado im portante da com paração sobre a qual se desenvolve o “original” , ou seja, tanto você, com o a lua são, de certa form a, “p a ­ rasitas” e aparen tam um brilho que, na verdade, não têm. N o verso seguinte, a co m paração entre você e a hia se sim plifica ain d a mais. E m b o ra boca cheia possa-lem brar a form a da lua (ou de sua boca em form a de O, como no texto de P la th ), chorar de boca cheia sugere, em nossa linguagem coloquial, “chorar sem m otivos”. P o rtan to , se

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a lua “ch o ra sem m o tiv o s”, a lua é tam bém “m anhosa” , como “você”, perdendo-se novam ente uma distinção im­ p ortante.

“And your first gift is making stone out of everything” A com paração entre a lua e você continua a se de­ senvolver na segunda estrofe. De acordo com o verso 6, num a versão literal, “Seu talento m aior é tran sfo rm ar tudo em p e d ra ”, ou seja, você tem a habilidade de transform ar tudo o que toca em pedra, talvez até mesm o o eu que se vê ro d e a d o (a ) de frieza e insensibilidade, num a estrofe em que a pedra é um a presença m arcante: o m ausoléu, o tam po de m árm ore da mesa. O eu se en co n tra, assim, literalm ente p re s o (a ) nessa atm osfera pétrea fria. “A corda para um m ausoléu” que, devido à proxim idade a vo c ê no verso, p o d e ser direta­ m ente relacionado a este últim o: “I w ake to a m ausoleum ; you are h e re ” . Você, que tem o talento de transform ar tudo em pedra, transform a em pedra de m ausoléu o rela­ cionam ento que m antém com o eu, e n te rra n d o -o (a ) num a atm osfera de frieza, insensibilidade e morte. Nos versos seguintes, você, que tam borila os dedos sobre o tam po da mesa de m árm ore à procura de cigarros (“ Ticking your fingers on the marble table, looking for cigarettes” ), é “ rancoroso como uma m ulher, mas não tão nervoso” (“ Spiteful as a w om an, but not so nervous” ), sendo esse o único m om ento no poem a em que se to rn a claro que você é um hom em , o que nos leva a concluir que o eu seja provavelm ente um a mulher. N o adjetivo sp itefu l (“ ran co ro so ” , “ m alévolo” , “ m aligno” , “ odiento” , “ vingativo” ), se refletem novam ente a frieza, a insensibi­ lidade, a dureza e até o talento p a ra m agoar e ferir que podem os associar à pedra. E , se o eu nos declara que

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vo cê é um hom em “spiteful as w om an, b u t not so nervous”, tam bém nos deixa entrever algo sobre seus p ró p rio s senti­ m entos e sobre a com plexa relação que m antém com você. A final, se uma m ulher considera a m ulher com o modelo de ran co r e descontrole em ocional, podem os supor que tam bém se espelha e se revela nesse m odelo. N o poem a traduzido, a segunda estrofe sugere um relacionam ento diferente en tre eu e você. N o prim eiro verso — “ E o seu m aior charm e é saber tirar de tudo p ed ra” — pode-se identificar um a atitude mais positiva do eu em relação a você. C harm e, de acordo com os di­ cionários, é “a tra ç ã o ”, “e n can to ” , “sed u ção ” . Assim, você seduz o eu por sua capacidade de “tirar de tudo p ed ra” que, diferentem ente do verso de Plath, p ode sugerir que a “p e d ra ” (ou a frieza, a insensibilidade, a capacidade de ferir) não vem de vo cê e, sim, daquilo que o cerca e, até, quem sabe, do p ró p rio eu. V o c ê não “tran sfo rm a tudo o que to ca em p e d ra”, apenas sabe encontrar e colher as “p ed ras” que já existem ao redor. N o verso 9 da versão de B rito R ezende, aprendem os que você p ro cu ra cigarros “com m alícia de m o ça”. Se­ gundo o N o v o D icionário A urélio, o substantivo malícia pode significar “tendência p a ra o m al” , “ m á índole”, “ in­ tenção m aldosa, satírica ou o b scen a” . E n tre ta n to , antes de incorporarm os esses significados de malícia à nossa lei­ tu ra d o poem a, devem os considerar, p o r exem plo, que B rito R ezende nos fala de “m alícia de m oça” (jovem , inexperiente, fem in in a?), um tipo de m alícia que podem os associar tam bém ao “ch arm e” (verso 6 ) e ao “m anhoso” (verso 2 ) . Assim , p a ra nossa in terp retação do poem a tra ­ duzido, há outros significados de malícia que se encai­ xam m elhor: “esperteza”, “vivacidade”, “sagacidade”, “as­ tú cia”, “m anha” , “brejeirice”, “m aro tice”. E , se você “tam b o rila o m árm o re” “ à cata de cigarros”, de form a “ m a­ liciosa” , que lem bra a m alícia (a “brejeirice” , a “vivaci-

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d a d e” , a “ astú c ia ” ) de um a m oça, podem os im aginar um você seguro de si, sedutor, capaz de conseguir o que quer. A o desenvolverm os essas associações, o retrato psi­ cológico de você que em erge a partir do p o em a traduzido parece mais com plexo do que aquele que delineam os no poem a de Plath. À sugestão de segurança e “ brejeirice” , opõe-se a segunda p arte do verso 9 (“ só que não tão n er­ voso” ), que sugere nervosism o, irritabilidade, descontrole em ocional. Essas sugestões, que nos fazem vislum brar um você contraditório e imprevisível, encontram eco no verso 6, com entado acima. Se o “seu m aior charm e é saber tirar de tudo p e d ra ”, o “ seu m aior charm e” pode ser tam ­ bém irritar-se ou m agoar-se facilm ente, ver sem pre o lado “ped ra” das coisas.

“The moon, too, abases her subjects” N a terceira estrofe, conclui-se a com paração entre você e a lua. Segundo o verso 11, “T he m oon, too, abases her subjects” ( “A lua, tam bém , hum ilha seus súditos” ). A lua, com o você, talvez devido a sua distância e aparente superioridade, “ hum ilha seus súditos” mas, som ente à noite, quando o “b rilh o ” falso de am bos pode ser visto. À noite, o eu provavelm ente se esquece da falsidade desse “ brilho” e, com o súdito de um rei “belo p orém arra sa d o r” (verso 3), se deixa seduzir e hum ilhar. Pela m anhã, en tretanto, o encanto se esvai, e o eu “aco rd a para um m ausoléu” : como a lua, você perde o “ brilho” e volta a ser apenas frio e distante. N o verso 12, a lua, com o você, é “ ridícula” ( “B ut in the daytim e she is ridiculous” ), já que, depois da m agia da noite, seu “brilho” não se vê e se desm ascara sua falsa superioridade. M esm o quando você não está presente, “suas insatis­ fações chegam à caixa de cartas com regularidade encanta­ dora” (versos 13 e 1 4 ). M as, essas cartas, com o a lua

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durante o dia, n ã o têm “b rilh o ” n em cor: são “white and blank” (literalm ente, “bran cas e em b ran co ” ). B lank, in­ clusive, p ode sugerir outros significados tam bém encaixáveis em nossa in terp retação : “pálido”, “d escorado”, “va­ zio”, “ m on ó to n o ”, “inútil”, “inexpressivo”, “confuso”, “im poten te” . A lém disso, essas cartas ( “expansive as c arb o n m o ­ noxide” ) são “expansivas” ( “ francas”, “com unicativas”, “am igáveis” ), m as trazem um veneno m ortal. A lém de se expandirem , isto é, de ocuparem um espaço cada vez m aior na caixa de correspondência, são, tam bém , como o m onóxido de carb o n o , altam ente venenosas e podem até m esm o levar à m orte. A terceira estrofe do texto traduzido parece fiel à leitura apresentada acim a. Inclusive, foi possível m anter grande p a rte da m ultiplicidade de significados que atribuí­ mos ao verso 15.

“No day is safe from news of you” N a últim a estrofe do “original”, conclui-se a reflexão sobre as cartas “expansivas” e “venenosas”. D urante o dia, você, como a lua, se afasta e leva seu “b rilh o ” p ara m uito longe: “W alking ab o u t in A frica m aybe, but think­ ing of m e” ( “C am inhando pela Á frica, talvez, mas pen­ sando em m im ” ). Esse afastam ento de você coincide com a em ergência da racionalidade e da lucidez do eu que, longe do “brilh o ” falso de você, deixa de ser seu “súdito” hum ilhado, e é você quem passa a pensar em m im. Esses dias, esses m om entos de lucidez, são, en tretan to , am eaça­ dos pela chegada das cartas “expansivas”, que podem en­ venenar o c « e levá-la à m orte. “N enhum dia está a salvo de notícias suas” (n u m a tradução lite ra l). N o verso 76 do poem a traduzido ( “N em um dia se passa sem notícias suas” ), p erd e-se essa relação en tre as

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cartas potencialm ente “venenosas” e os “dias” que se en­ contram à m ercê desse perigo. N o verso 17, entretanto, conseguiu-se repro d u zir até m esm o um a rim a interna ( “M arfi'm ”, “m im " ) , equivalente à “original” ( “m aybe”, “m e” ). “C osta do M arfim ”, além das associações sugeri­ das pelo “original” A frica (o u seja, o afastam ento e a dis­ tância de você que, com o a lua, passa a ser “visível” so­ mente em outras lo n g itu d es), pode lem brar tam bém, atra­ vés do “ m arfim ”, a p rópria “cor” da lua, sua frieza, sua insensibilidade.

“The rival”: o título D epois de term os lido atentam ente o poem a de Sylvia P lath, talvez seja mais fácil entenderm os seu título que, por não esclarecer se rival é m asculino ou fem inino, dá m argem a várias interpretações. A p artir da leitura que construím os, podem os pensar em você com o “rival” da lua, com quem com pete em be­ leza, frieza, aparente superioridade, capacidade de sedu­ ção e até mesmo na necessidade de obter de outrem brilho e calor. P o r trás dessa “com petição” entre a lua e você há, im plicitam ente, um a relação de “rivalidade” tam bém entre eu e você, em bora sutil e velada. C om o vimos, durante o dia, quan d o você, como a lua, perde o brilh o e se afasta, quem brilha, em lucidez e superioridade, é o eu, que p o ­ dem os relacionar, p o rtan to , ao sol. A lém de fonte de calor e energia, responsável pelo “brilh o ” da lu a /v o cê, é o sol/ e u o centro de um sistem a, do qual a lu a /v o c ê p a r­ ticipa com o m ero satélite. P aralelam ente, “T he rival” pode sugerir tam bém a pre­ sença de um terceiro personagem que, apesar de signifi­ cativam ente ausente do poem a, seria responsável (ou, pelo m enos, parcialm ente responsável) pela visão que o eu nos

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apresenta de você e, portanto, até mesmo, pela própria escritura do poem a. Esse personagem , distante com o a Á frica que você visita quando se afasta do eu, poderia ser a “riv al” com quem o eu com pete pela atenção do “belo e a rrasad o r” você. A o om itir o artigo em sua tradução do título, Brito Rezende perm ite a seus leitores a m ultiplicidade de inter­ pretações que sugerim os acim a. Se tivesse optado por “O rival” ou “ A riv al” , delim itaria, já a p artir do título, as relações que um leitor pudesse estabelecer entre eu, você e a lua, e elim inaria, ou encorajaria, dependendo do artigo escolhido, a “inclusão” do terceiro personagem m encio­ nado acima.

7 Recado ao tradutor/aprendiz

Através das reflexões teóricas e dos exem plos práti­ cos apresentados, O ficina de tradução pretendeu conscien­ tizar o tra d u to r/a p re n d iz sobre as dificuldades e a im por­ tância de seu ofício. A o considerarm os a trad u ção um a atividade essen­ cialm ente p ro d u to ra de significados, e ao considerarm os o trab alh o do tradutor pelo menos tão com plexo quanto o do escritor de textos “ originais” , fica evidente que não pode haver fórm ulas m ágicas nem atalhos fáceis para se aprender a traduzir. A lém da com plexa tarefa de dom inar as línguas en­ volvidas no processo, apren d er a traduzir significa neces­ sariam ente apren d er a “ 1er” . Ler, aqui, se refere à con­ cepção de leitura que tentam os desenvolver nos capítulos anteriores: aprender a “1er” significa, portanto, aprender a produzir significados, a partir de um determ inado texto, que sejam “aceitáveis” para a com unidade cultural da qual participa o leitor. C onform e tentam os dem onstrar, 1er “ad eq u adam ente” um poem a com o “This is just to say”, de W illiam C arlos Williams, im plica conhecer a concepção de poesia que o

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criou e saber aplicar as convenções estabelecidas para sua leitura. Com o vimos, um leitor desse poem a, h ab ituado a 1er poesia e fam iliarizado com suas convenções, poderá atribuir ao substantivo p lu m vários significados além de “am eixa verm elha”. E n tretan to , se o m esm o substantivo ocorrer num estudo sobre botânica, um leitor “adequado” do texto deverá saber exatam ente quais os significados que p o derá (o u n ão ) atribuir a ele. Assim , quanto mais bem inform ado for o leitor, quanto m elhor conhecer sua com unidade cultural, quanto m elhor conhecer a o b ra do poeta que p retende 1er, quanto m aior fo r a sua prática com o leitor de poem as, m elhor e m ais bem -sucedida será sua leitura. A o m esm o tem po, quanto m elhor e mais bem -sucedida for sua leitura, m aio­ res serão as condições que esse leitor terá de influenciar e m udar as concepções e as convenções que regem a com u­ nidade à qual pertence. O m esm o se aplica a qualquer o u tro texto. P ara que um leitor de um determ inado texto científico possa “1er” criticam ente esse texto, tam bém é necessário que esteja in­ fo rm ad o acerca dos pressupostos e concepções científicas da com unidade que o produziu e que conheça as conven­ ções que devem reger sua leitura. A p re n d e r. a “1er” envolve, portanto, m uita leitura, m uita pesquisa, m uita aquisição de inform ação e, acim a de tudo, um espírito crítico aguçado, além de u m a curiosida­ de persistente e difícil de ser satisfeita. A o m esm o tem po em que aprende a “1er”, o trad u ­ to r/a p re n d iz deve tam bém aprender a “escrever”, com o m esm o cuidado e com a m esm a persistência daqueles que se p re p a ra m p ara ser escritores. E screver e traduzir, com o sugere O ctavio Paz, são operações “gêm eas”. A lém de re­ fletir a leitura que o tra d u to r elaborou a p a rtir d o “origi­ n al” , todo texto traduzido será, para um público que não tem acesso a esse “original”, texto de p a rtid a p ara a cons­ trução de outras leituras. D aí a grande responsabilidade

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do trad u to r perante o texto (e o a u to r) que trad u z e pe­ rante o público para quem traduz. A lém de aprender a “1er” e a “escrever”, o trad u to r deve m anter-se inform ado a respeito das teorias e dos es­ tudos sobre tradução, p ara que possa co m preender m elhor e refletir criticam ente sobre a natu reza de seu trabalho e p a ra que tenha instrum entos que o auxiliem a resolver suas questões práticas. A ssim , ao invés de p rescrever fórm ulas infalíveis ou d e revelar m acetes secretos que g arantam um a b o a tradu­ ção, este livro tentou m ostrar que traduzir é um a ativi­ dade extrem am ente com plexa. C ada tradução (p o r m enor e m ais sim ples que seja) exige do tra d u to r a capacidade de confrontar áreas específicas de duas línguas e duas culturas diferentes, e esse confronto é sem pre único, já que suas variáveis são im previsíveis. Afinal, com o sugerim os no início, se traduzir dependesse sim plesm ente de d ecorar al­ gum as regras e de conhecer uma língua estrangeira, há m uito tem po as m áquinas de traduzir já teriam consegui­ do substituir o homem.

8 Vocabulário crítico

C om unidade interpretativa: cunhado pelo teórico norte-am ericano Stanley Fish, o conceito de com unidade in­ terpretativa ( interpretive co m m u n ity) se refere ao con­ junto de elem entos responsáveis, numa determ inada época e num a determ in ad a sociedade, pela em ergência de significados aceitáveis. O significado não se encon­ tra, po rtan to , para sem pre depositado na palavra ou no texto. Form a-se, sim, a partir da ideologia, dos padrões estéticos, éticos e m orais, das circunstâncias históricas e da psicologia que constituem a com unidade sociocul­ tural em que se in terpreta esse texto ou essa palavra. T e x to original: tradicionalm ente, o “original” se refere ao texto a p artir do qual se “origina” a tradução. M as, por associar o texto a ser traduzido à “origem ”, a de­ nom inação te x to original pode sugerir tam bém que toda tradução não passa de um a tentativa de reprodução, cópia sem pre im perfeita e sem pre inferior ao m odelo, à m atriz “original”. N a m edida em que questiona a esta­ bilidade de qualquer texto, seja “original” ou não, e na m edida em que cham a atenção p ara o papel do tradutor com o “p ro d u to r” de significados, O ficina de tradução

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questiona, tam bém o term o original, coloca-o entre aspas e sugere um substituto m enos “preconceituoso” : texto de partida. T ex to -palim psesto: o substantivo palim psesto, do grego palim psestos ( “raspado novam ente” ), se refere ao “an ­ tigo m aterial de escrita, principalm ente o pergam inho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou três vezes [. . .] m ediante raspagem do texto a n terio r”. Em O ficina de tradução, o palim psesto passa a ser a im agem exem plar do texto que não pode nunca ser “ori­ ginal” : o texto que se apaga, em cada com unidade cul­ tural e em cada época, p ara d ar lugar a outra escritura (o u interp retação , ou leitura, ou trad u ção ) do “m esm o” texto. T radução: de acordo com a etim ologia, tradução (d o latim traductione) significa “ato de conduzir além, de tra n s­ fe rir”, acepção desenvolvida tam bém pelas teo rias de tradução criticadas neste livro. O que O ficina de tra­ dução p ro p õ e é o reconhecim ento do caráter essencial­ m ente criativo do processo de tradução. C om o tenta­ mos dem onstrar, traduzir, m ais do que transferir, é transfo rm ar: “transform ar um a língua em outra, e um texto em o u tro ” (Jacques D e rrid a ).

9 Bibliografia comentada

Dicionários O s dicionários citados neste livro e q u e recom enda­ mos ao leitor que se dedica à tradução são os seguintes: ínglês-lnglês A m e r i c a m heritage dictionary of the English lan­ guage. N ew Y ork, D ell Publishing, 1970. T h e c o m p a c t edition of the Oxford English dictionary. O xford, O xford U niversity Press, 1971. T h e O x f o r d advanced learn er’s dictionary of current E n­ glish. O xford, O xford U niversity Press, 1974. The

Português-Português C a l d a s A u l e t e , F . J.

D icionário contem porâneo da lín­ gua portuguesa, L isboa, P arceria A n to n io M aria Pe­ reira, 1948. F e r r e i r a , A urélio B uarq u e de H olanda. N o vo dicioná­ rio da língua portuguesa. R io de Janeiro, N ova F ro n ­ teira, 1975.

82

Inglês-Portiiguês V a l l a n d r o , L eonel & V a l l a n d r o , L ino. D icionário in-

glês-portugiiês.

Porto A legre, G lobo, 1976.

Obras sobre tradução B a s s n e t t - M c G u i r e , Susan. Translation studies. L ondon

and N ew Y ork, M ethuen & Co., 1978. A A u to ra tem com o objetivo dem onstrar a autonom ia dos estudos sobre trad u ção ( translation stu d ie s), que não devem ser considerados com o ram os m enores da lingüística ou da literatu ra com parada. A presenta uma introd u ção com petente às principais questões relaciona­ das à tradução, e um resum o da história das teorias de­ senvolvidas sobre o assunto. C a t f o r d , J. C .

Um a teoria lingüística da tradução. São Paulo, C ultrix, 1980. (T ra d u ç ã o brasileira de A lin­ guistic theory o f translation; an essay in applied lin­ guistics. O xford, O x fo rd U niversity Press, 1965.) A teoria de tradução p ro p o sta p o r C atford, citada rapi­ dam ente no C apítulo 2, difere radicalm ente da que p ro ­ ponho nesta O ficina de tradução. Com base na teoria lingüística de H alliday, C atfo rd constrói uma teoria que focaliza o processo de trad u ção em term os de substitui­ ção e equivalência, revelando uma concepção de lin­ guagem que não considera os papéis do sujeito e do contexto histórico-social na produção de significados.

N id a , Eugene.

Language structure a n d translation. C a li­ fornia, S tan fo rd U niversity Press, 1975. N ida é autor de vários estudos sobre trad u ção e espe­ cialista em traduções da B íblia. E m bora apresente uma visão mais am pla do que a de C atford, N ida tam bém parte de teorias lingüísticas que pensam a trad u ção como

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um processo de “tra n sp o rte ” de significados estáveis de um a língua p ara outra. P a z , O ctavio. T raduction: literatura y liter alidad. B a r­ celona, T usquets E d ito r, 1971. E sse pequeno livro de Paz é, entre as obras citadas nesta seção, o que tem m ais afinidades teóricas com as refle­ xões desenvolvidas em O ficina de tradução. Um ensaio brilhante sobre linguagem , literatura e tradução. S t e i n e r , G eorge. A jte r Babei, aspects of language and translation. O xford, O xford U niversity Press, 1975. S teiner apresenta um pan o ram a am plo e bem -inform ado das principais tendências que norteiam a teoria e a p rá ­ tica da tradução. O ferece um a bibliografia extensa, en­ volvendo obras em várias línguas, abrangendo o período de 1913 a 1973.

Obras sobre teorias textuais A teoria de trad u ção esboçada em O ficina de tradu­ ção p artiu de teorias textuais geralm ente rotuladas de “pós-estru tu ralistas”. E n tre os au to res m ais influentes, in­ cluem -se: B a r t h e s , R oland. F ro m w ork to tex. In : H a r a r i , J. V. ed . Textual strategies; perspectives in post-structuralist criticism . New Y ork, C ornell U niversity Press, 1979. p. 73-91. E sse ensaio sintetiza a visão pós-estruturalista de B ar­ thes, que ele próprio cham ou de “ sem ioclasta” , em franca oposição à semiologia, da qual foi tam bém um dos teóricos mais im portantes. P ara o B arthes “sem io­ clasta”, a leitura é um processo essencialm ente p ro d u to r de significados que n ão pode (nem deve) se restringir à proteção dos significados “originais” de um autor. D e r r i d a , Jacques. Positions. T rad u ção de A lan Bass. Chicago, U niversity of Chicago Press, 1978.

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U m a coletânea de entrevistas de Jacques D errida, um. dos pensadores m ais controvertidos e celebrados na F ra n ç a e n os E stados U nidos atualm ente. Seu projeto de “d esconstrução” (o term o é do p róprio D e rrid a ) do conceito de “v erd ad e” original e estável, pressuposto pela tradição cultural do m undo ocidental, im plica uma reform ulação do objeto e dos m étodos de disciplinas com o a filosofia, a teo ria da literatu ra e a lingüística. F i s h , Stanley. I s th ere a te x t in th is class?', the authority

of interpretive com m unities. Cam bridge, H arvard U ni­ versity Press, ■1980. F ish é um d o s m ais ágeis e brilhantes teóricos norte-am ericanos de nosso tem po. Suas conclusões acerca do leitor e da “com unidade in terp retativ a” na p ro d u ­ ção de significados reform ulam não só a visão tradi­ cional do processo de leitura, mas tam bém o próprio conceito de literatura.

Outros B o r g e s , Jorge Luis.

P ierre M enard, au to r del Quijote.. In: ----- . Ficciones. M adri, A liança E d itorial, 1981. ----- . E l idiom a analítico de Jo h n W ilkins. I n : ------ . Otras inquisiciones. B arcelona, E ditorial B ruguera, 1980. p. 221-5. (P ro sa C om pleta, v. 2)

----- . L as versiones hom éricas. In : ----- . Discusión. Barcelona, E d itorial B ruguera, 1980. p. 181-6. (P rosa C om pleta, v. 1 ) A teo ria d a linguagem (e da literatu ra) sugerida pelos textos de Borges antecipa o pensam ento teórico con­ tem porâneo (aqui representado p o r Fish, Barthes e D e rrid a ). “P ierre M enard, au to r del Q uijote” e os curtos ensaios citados são leitura o brigatória para os leitores de O ficina de tradução.

85 T r a d u ç ã o e C o m u n i c a ç ã o ; revista brasileira de trad u to ­

res. São Paulo, Á lam o. R evista bianual do D ep artam en to E d ito rial do C entro H ispano-B rasileiro de C ultura (F acu ld ad e Ibero-A m erican a de São P a u lo ). Publicação pio n eira no cam po dos estu d o s sobre tra d u ç ã o no B rasil, oferece, em cada núm ero, um a síntese das principais tendências teóricas d a disciplina e questões de interesse a todos os tra d u ­ tores e estudiosos d a linguagem.

s é rie I D

rin c íp io s

A Série Princípios contribui para a form ação dos estudantes universitários e para a informação do leitor em geral em diversas áreas do conhecimento. Conheça outros títulos. Análise da conversação Luiz Antônio Marcuschi A articulação do texto Elisa G uim arães Best-seller - A literatura de mercado Muniz Sodré Coesão e coerência textuais Leonor Lopes Fávero

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Como analisar narrativas Cândida V ilares Gancho Com o ordenar as idéias Edivaldo Boaventura Concordância verbal Maria Aparecida Baccega

Guia teórico do alfabetizador Miriam Lemle A imagem Eduardo Neiva Jr. Iniciação ao latim Zelia de Almeida Cardoso

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Leitura sem palavras Lucrécia D ’Aléssio Ferrara

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Linguagem e ideologia José Luiz Fiorin

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O signo Isaac Epstein O sim bolism o Álvaro Cardoso Gom es

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Teoria da literatura R oberto Acizelo de Souza Teoria do conto N ádia Battella Gotlib Teoria lexical Margarida Basilio O verbo inglês - Teoria c prática V alter Lellis Siqueira V ersos, sons, ritmos Norm a Goldstein

Trechos que você encontrará neste livro: "[Ao] te n ta rm os refletir so b re os m e ca n ism os da tradução, estarem os lidan­ do também com questões fundam entais sobre a na­ tureza da própria lingua­ gem, pois a tradução [ .] im plica necessariam ente uma definição dos limites e do poder dessa capaci­ dade tão 'hum ana' que é a produção de significados." "[A] tradução seria teórica e praticam ente im p o ssí­ vel se esperássem os dela uma transferência de sig ­ nificados estáveis; o que é possível - o que inevita­ velm ente acontece [...] é, com o sugere o filósofo francês Jacques Derrida, 'uma transformação: uma transform ação de uma língua em outra, de um texto em outro'." "[A] tradu ção de q u a l­ quer texto, poé tico ou não, será fiel não ao texto 'original', mas àquilo que consideram os ser o texto original, àquilo q u e (consideram osconstituí-lo, ou seja, à nossa interpreta­ ção do texto de partida, que será [...] sem pre pro­ duto daquilo que som os, sentim os e pensam os."

s é rie

rin c íp io s

Consagrada como uma das m ais importantes coleções destinadas ao público u n i­ versitário, a Série Princípios ganha novo fôleg o , com edições atualizadas. Veja alg un s títulos: Linguagem e ideologia

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leda M aria A lve s Teoria da literatura

Roberto Acízelo de Souza O verb o inglês -Teoria e prática

Valter Le llis Siqueira Versos, sons, ritmos

N orm a G old stein

Á re a s cobertas pela série Princípios: •Administração e Economia - tarja vinho •Artes e Comunicação tarja vermelha •Ciências Humanas tarja verde • Educação - tarja laranja • Letras e Lingüística tarja azul

Areas de interesse do volume: Lingüística Literatura

O que ocorre quando traduzimos texto? A que devemos ser “fiéis" quando realizamos uma tradução? Sob os pontos de vista teórico e prático, é possível traduzirmos com suces­ so textos literários e poéticos? Esses são alguns dos pontos essen cia is que norteiam as reflexões desenvolvidas em Oficina de tradução - A teoria na prática. Com base nas teo­ rias textuais contem porâneas, que consideram fundam en­ tais o papel do leitor e de seu contexto histórico-social na produção de uma leitura, este livro abre espaço para uma discussão atualizada sobre os principais problem as que envolvem a tradução. Além disso, Rosemary Arrojo transfe­ re essas questões para a prática, por m eio da análise de três poem as - de Elizabeth Bishop, Sylvia Plath e Carlos Drum­ mond de Andrade - e sua tradução. R o s e m a r y A r r o jo é pós-doutora p e la Yale University e dou­ tora pela Johns H opkins University,, EUA.

ISBN 978-85-08-11281-4