Dicionário Feminista Brasileiro - Conceitos Para a Compreensão dos Feminismos [1 ed.]


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Dicionário Feminista Brasileiro : conceitos para a compreensão dos feminismos
ABORTO
Domenique Goulart
ADVOCACIA FEMINISTA
Nariel Diotto
ANTIFEMINISMO
Heroana Letícia Pereira
ASSÉDIO SEXUAL
Nívea Andreza de Oliveira Costa
Jéssica de Brito Carvalho
CARTA DAS MULHERES BRASILEIRAS AOS CONSTITUINTES
Bibiana Terra
CIDADANIA FEMININA
Isadora Prévide Bernardo
CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER
Bibiana Terra
CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA
Melina Girardi Fachin
CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER
Bibiana Terra
CRIMINOLOGIAS FEMINISTAS
Carolina Costa Ferreira
CULTURA DO ESTUPRO
Jaqueline Bianca Silva
DIREITOS REPRODUTIVOS
Emmanuella Magro Denora
Hemilly de Freitas Arruda
DIVERSIDADE
Ana Carolina de Faria Silvestre
DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
Ana Paula Lasmar Corrêa
DOMINAÇÃO MASCULINA
Marina Helena Vieira da Silva
ECOFEMINISMO
Mahryan Sampaio
ECONOMIA FEMINISTA
Carolina Boniatti Pavese
EMPODERAMENTO
Jéssica Pereira Arantes Konno Carrozza
ENCARCERAMENTO FEMININO
Paloma Silveira Pique Dourador
EQUIDADE DE GÊNERO
Renata Furtado de Barros
ESCREVIVÊNCIAS
Zane do Nascimento
ESTATUTO DA MULHER CASADA
Bianca Tito
FEMINICÍDIO
Larissa Faria de Souza
FEMINISMO DECOLONIAL
Larissa Faria de Souza
FEMINISMO INTERSECCIONAL
Fabiana Barcelos da Silva Cardoso
FEMINISMO LIBERAL
Camila Galetti
FEMINISMO MARXISTA
Mariana Pereira Rodrigues
FEMINISMO NEGRO
Mariete Lopes da Costa
FEMINISMO NEGRO II
Suelen Karini Almeida de Matos
FEMINISMO RADICAL
Maria Luiza Prestes Magatti
FEMINISMO(s)
Bibiana Terra
FEMINISMOS INDÍGENAS
Ana Manoela Primo dos Santos Soares Karipuna
IDEOLOGIA DE GÊNERO
Heroana Letícia Pereira
IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
Marcela Modesto Fermino
INTERSECCIONALIDADE
Gabriela M. Kyrillos
JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO
Nathália Mariel Ferreira de Souza Pereira
LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
Gabriela Maria Barbosa Faria
LEI MARIA DA PENHA
Fernanda Ribeiro Papandrea
LGBTQIA+
Débora Laís dos Santos Costa
LUGAR DE FALA
Vitória de Oliveira Ribeiro
MACHISMO
Isabella Fernandes Moreira Fontaniello
MINORIAS
Maíra Calixto Policarpo Moreira
MITO DA BELEZA
Bianca Tito
ONDAS FEMINISTAS
Bianca Tito
PACTO HETEROCISNORMATIVO
Grazielly Alessandra Baggenstoss
PARIDADE DE GÊNERO NA POLÍTICA
Gabriela Maria Barbosa Faria
PATRIARCADO
Ana Paula Lemes de Souza
POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO
Francisca Moana Araújo de Oliveira
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Bianca Tito
Bibiana Terra
PROTEÇÃO AO TRABALHO DA MULHER
Bibiana Terra
PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA MULHER
Estela Cristina Vieira de Siqueira
RACISMO
Maíra de Deus Brito
REPRESENTAÇÃO FEMININA NO PARLAMENTO
Cynthia Gruendling Juruena
SEGUNDO SEXO
Samia Moda Cirino
SEXO E GÊNERO
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger
SEXUALIDADE
Paloma Silveira Pique Dourador
SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA
Jéssica Melo Rivetti
TEORIA QUEER
Gabriela Pires
TRABALHO DOMÉSTICO
Amanda Eiras Testi
TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO
Thamiris Cristina Rebelato
TRABALHO REPRODUTIVO
Raquel Santana
TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES
Estela Cristina Vieira de Siqueira
TRANSSEXUAIS E TRANSGÊNEROS
Júlia da Silva Mendes
TRAVESTILIDADE E TRANSFEMINISMO
Dediane Souza
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Letícia Bartelega Domingueti
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Fabiane Simioni
VIOLÊNCIA POLÍTICA DE GÊNERO
Letícia Maria de Maia Resende
VIOLÊNCIAS DE GÊNERO
Marcela Andrade Duarte
LISTA DE AUTORAS
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Dicionário Feminista Brasileiro - Conceitos Para a Compreensão dos Feminismos [1 ed.]

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Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.

Simone de Beauvoir

ALGUMAS PALAVRAS INICIAIS

“É claro que eu estava com raiva. A questão de gênero, como está estabelecida hoje em dia, é uma grande injustiça. Estou com raiva. Devemos ter raiva. Ao longo da história, muitas mudanças positivas só aconteceram por causa da raiva. Além da raiva, também tenho esperança, porque acredito profundamente na capacidade de os seres humanos evoluírem.”

Chimamanda Ngozi Adichie

A historiadora Gerda Lerner uma vez escreveu que “a ignorância da sua própria história de lutas e conquistas tem sido uma das principais formas de manter as mulheres subordinadas”. Pensando nessa frase dela, assim como na de muitas outras feministas que tanto gosto de ler e estudar, comecei a refletir sobre a importância de reunir em um livro importantes conceitos para a compreensão dos feminismos.

Como uma pessoa que ama ler livros feministas e pesquisar sobre feminismos, fiquei durante muito tempo pensando sobre esse dicionário. Durante muito tempo ele era apenas um projeto dentro da minha cabeça. Eu queria organizar uma obra que reunisse diferentes mulheres, com diferentes perspectivas, para abordar importantes conceitos dentro dos feminismos. Sei que faltam aqui muitos verbetes, muitos outros temas que poderiam e deveriam ser trabalhados, no entanto, publicar era preciso e acho que conseguimos atingir um objetivo importante: publicar uma obra inteiramente feita por mulheres e com diferentes abordagens feministas. Sendo assim, apesar das ausências, tenho muito orgulho do resultado desse livro. Foi o projeto mais difícil e mais bonito que já organizei até hoje.

Como uma acadêmica que busca construir suas pesquisas com base em textos de mulheres feministas brasileiras, fico feliz em trazer contribuições para esse debate, de poder participar de um projeto feito pelas mãos de tantas mulheres inteligentes e competentes.

Apesar de vivenciarmos um período em que a aversão e o ódio pelos direitos das mulheres, pelos feminismos e pelos debates acerca da igualdade de gênero terem ganhado cada vez mais espaço no Brasil, com crescentes discursos antifeministas, fascistas e negacionistas, as feministas nunca deixaram de lutar e reivindicar pelos seus direitos. Na contramão da hostilidade, do sexismo e do machismo, os movimentos feministas não deixam de afirmar a importância das suas lutas, sendo que esta se encontra muito longe de acabar. E é importante pontuar: uma luta que precisa ser interseccional. Gênero, raça, classe, sexualidade, etnia, nacionalidade, dentre muitas outras opressões, são indissociáveis do debate feminista. As opressões, como nos ensinou Audre Lorde, atravessam umas às outras e a interseccionalidade não pode deixar de ser considerada.

E sobre interseccionalidades, aproveito a apresentação dessa obra para fazer uma pequena e singela homenagem à minha autora e feminista favorita: bell hooks. No final de 2021 nós a perdemos, uma das intelectuais mais brilhantes do mundo (mundo esse que parece um pouco menor sem ela). Mas seus ensinamentos sempre estarão conosco. Eu acredito que toda acadêmica tem um texto ou autora que lhe foi fundamental, que mudou a sua forma de compreender um tema, que mudou sua visão de mundo, que mudou suas perspectivas e que inspirou. bell hooks foi uma dessas autoras para mim. Nascida Gloria Jean Watkins, ela adotou o pseudônimo de bell hooks para homenagear a sua bisavó e decidiu por usá-lo assim, em letras minúsculas, para tirar o foco da sua figura autoral e deixá-lo nas suas ideais. O nome assim, em minúsculo, para uma autora com palavras imensas. Quanto conhecimento ela nos legou. Serei eternamente grata por todos os aprendizados.

Aproveito também para agradecer cada uma das autoras que aceitaram fazer parte desse projeto, muitas delas que mesmo sem me conhecerem, ao receberem o convite para participarem, me disseram “sim” e hoje são também autoras dessa obra. Eu sou grata por cada uma de vocês. O Dicionário Feminista é resultado da contribuição de todas vocês, de muitas mulheres, uma obra feita por muitas mãos e cada uma delas trouxe contribuições fundamentais para a compreensão de importantes conceitos dentro dos feminismos. Meu muito obrigada!

Por fim, quero dizer que apesar dos dias difíceis, do sentimento de raiva e de às vezes ficar muito desesperançosa, ainda mais diante do atual cenário que vivemos, eu escolho seguir acreditando. Por todas que sofreram com as opressões de gênero, de raça, de classe, de sexualidade, dentre outras, eu quero seguir acreditando. Acreditando que dá para melhorar, acreditando que luta é substantivo feminino, de que a revolução é feminista e de que podemos construir uma sociedade mais igual para todos. Acredito que desde as feministas que vieram antes de nós e até hoje, nós continuamos resistindo porque é impossível olhar para uma sociedade tão desigual, injusta e violenta com meninas e mulheres e nada fazer. Assim, as palavras de Angela Davis ecoam na minha cabeça todos os dias e deixo elas aqui para vocês também: “Eu não estou mais aceitando as coisas que não posso mudar, estou mudando as coisas que não posso aceitar”.

Com isso, seguimos articulando resistências e feminismos.

Com carinho e esperança de dias melhores,

Bibiana Terra Silvianópolis – MG, 2022.

APRESENTAÇÃO À OBRA

Fui incumbida, de modo imerecido, à escrita da apresentação dessa obra inédita, de imensa contribuição para a sociedade brasileira. Espero que os leitores e leitoras percebam que não me referi especificamente à comunidade científica, mas a toda a sociedade. Isso porque acredito que, apesar (ou, talvez, em razão) do rigor metodológico, da solidez da carreira científica de cada uma das autoras, da seriedade da pesquisa e da proposta apresentada, os impactos gerados pela leitura desse Dicionário Feminista serão percebidos para muito além das salas de aula e dos ambientes acadêmicos.

Esse Dicionário deve estar sempre à mão de qualquer pessoa. Deve estar nas escolas. Deve estar nas instituições e nos postos de trabalho. Deve estar nos hospitais e nos meios de transporte. Deve estar em eventos festivos, literários, acadêmicos. É para ser consultado e instruir com segurança quem precise (e todos precisamos) (re)aprender seus verbetes, de forma constante.

Grande parte da comunidade científica considera que o aprendizado não é linear. Existem saltos progressivos, retrocessos e bloqueios. Existem hipóteses que não são confirmadas e objetivos que são atingidos com mais facilidade do que se imaginava. A pesquisa é sempre surpreendente e desafiadora. Muitas vezes é preciso reestruturar, refazer, recomeçar. O cuidado na escolha de cada verbete, no convite feito para cada autora, nas correções extremamente minuciosas, demonstra o zelo da organizadora para com a obra.

Quanto à organizadora, Bibiana Terra, precisei gestar, no coração, algumas dessas palavras, antes de colocá-las, de fato, no papel. Parece que foi ontem que conheci aquela “menina” risonha, autêntica, muito carinhosa, no dia da minha banca de qualificação no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade

de Direito do Sul de Minas. Eu, um tanto atordoada pela pressão do momento, não percebi que ela estava acompanhada da sua irmã gêmea. Depois, pesquisamos juntas no Grupo de Pesquisa Direito Internacional Crítico, da mesma Faculdade, sob a orientação do professor Cícero Krupp da Luz. São dados que podem parecer irrelevantes, mas que, além de memórias afetivas, ajudam a apresentar a Bibiana e o seu trabalho.

Nossa amizade se fortaleceu a duras penas. Estou falando aqui do período da pandemia. Estou falando do período em que passei por uma severa restrição alimentar por sensibilidade ao glúten e emagreci sete quilos. Do período em que perdi meus avós. Do mesmo período em que uma pessoa muito importante para mim enfrentou um difícil tratamento oncológico. Do período em que eu enfrentava duas batalhas profissionais igualmente assustadoras: a carreira acadêmica, com o Mestrado, e a preparação para concursos públicos. Eu já falei isso para a Bibiana diversas vezes, mas até hoje desconfio que ela tenha entendido a dimensão da importância da amizade dela, de toda a doçura, apoio, risadas, figurinhas. Entretanto, para além de tudo isso, que tem uma relação com nosso vínculo de amizade, foi um momento em que eu estava perdendo a fé na vida. Nas pessoas. Nas instituições e na humanidade. Não foi simplesmente o apoio dela que ajudou a me sustentar: foi saber que, no mundo, existem pessoas como ela. Saber que ela existia, do “jeitinho” dela, aquecia e retalhava meu coração estraçalhado.

Não sei se pelo consumo duvidoso e levemente insalubre de café e açúcar, a Bibiana tem energia de sobra para contribuir com os estudos feministas e participar de inúmeros eventos acadêmicos, expondo seus resultados e estabelecendo uma rica troca com outros pesquisadores, o que somente enriquece o debate feminista no Brasil.

Os leitores e leitoras precisam saber que a organizadora dessa obra inédita no Brasil domina profundamente o assunto que pesquisa, ganha com frequência prêmios e menções honrosas, publica artigos de altíssima relevância e participa de diversos eventos acadêmicos, tudo isso sem o menor sinal de pedantismo. Ela

é a academia em que eu acredito. Domínio teórico impecável, envolvimento, presença, competência e respeito por todas as pessoas. Responsabilidade na condução e organização de projetos, pontualidade, atenção com prazos. Um grande profissional, sobretudo na área acadêmica, precisa reunir todas essas habilidades que ela tem. Não basta o domínio teórico, é preciso saber gerir projetos. Não basta aprovar artigos, é preciso cumprir prazos. Não basta lecionar, é preciso fazer a diferença na vida dos alunos. Ela faz tudo, literalmente, e com o perdão da expressão viral.

Uma pesquisadora cuja clareza e competência teóricas casam perfeitamente com seu modo de viver. Uma mulher que sempre agiu em total coerência com as ideias que pesquisa tão apaixonadamente. Nunca endossou discursos de competitividade entre suas colegas pesquisadoras. Nunca teve medo de expressar seu carinho e torcida por cada amiga e colega que passava pelo seu caminho. Ela abre portas, estende a mão, tudo isso sem abrir mão de se posicionar e se insurgir contra o que é errado.

Quanto à obra, seu título, propósito e o currículo das autoras convidadas falam por si e falam mais alto do que qualquer apresentação. Ainda assim, é de suma importância que exista um livro para trazer segurança aos conceitos que vamos incorporando em nossas pesquisas, discursos e práticas. O conhecimento científico se espraia desigual e gradativamente pela sociedade, de modo que é comum acontecer confusões entre conceitos. E, como grande amante das palavras, ciente do impacto da linguagem, sei que muitas decisões, em âmbito público e privado, são tomadas com base em novas ideias, surgidas pelo avanço da ciência. São políticas públicas, arranjos institucionais, cláusulas em contratos de trabalho, modo de organização familiar, normas administrativas e regulamentares nas escolas, nos esportes, enfim... o alcance é gigantesco. Por isso mesmo é preciso lançar mão de um instrumento insuspeito, sólido, bem construído e fundamentado, para disseminar ideias tão naturais quanto revolucionárias.

Por fim, importante mencionar que se trata de um produto coletivo, escrito a

muitas mãos, onde se imiscuem vozes de diversos matizes. Trata-se de uma obra que possui a interseccionalidade em seu âmago. São mulheres de todas as regiões do país, indígenas, brancas, negras e pardas, de diversas idades e realidades, contribuindo para a construção de um presente melhor, passando a limpo o passado e semeando igualdade para as futuras gerações.

De minha parte, resta somente agradecer a oportunidade de tentar, ainda que de forma infrutífera, apresentar esse belíssimo trabalho a altura do seu conteúdo. Que os bons ventos espalhem essas sementes!

Boa leitura!

Ana Paula Lasmar Corrêa Pouso Alegre - MG, 2022.

PREFÁCIO

“Quando penso em mim mesma como uma teórica da resistência, não é porque penso na resistência como o fim ou a meta da luta política, mas sim como seu começo, sua possibilidade”.

María Lugones

“Estamos cansados de saber que nem na escola, nem nos livros onde mandam a gente estudar, não se fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz é folclorizar todos eles”.

Lélia Gonzalez

Resistência , no dicionário ¹, é “o ato ou efeito de resistir”, a “capacidade que uma força tem de se opor a outra”, a “defesa contra uma investida” e a “não aceitação da opressão”. Já o significado de transcender, conforme o dicionário ², diz respeito a ir além do ordinário, exceder a todos. Em um sentido filosófico, seria ir além dos limites do conhecimento.

Ambos os termos são extremamente adequados para representar o que esta construção coletiva e transdisciplinar significa: ela contempla reflexões que transcendem a imposição epistemológica masculina, branca, elitista e eurocentrada, pois inclui as vozes de diferentes mulheres e vivências; e consequentemente, assume o caráter de prática de resistência, pois em um

mundo em que os ataques às mulheres, às feministas e à ciência ainda são constantes, representa a oposição ao avanço das forças autoritárias, que protagonizam diversas formas de opressão e violências.

Desse modo, a proposta desta obra significa muito mais do que uma construção acadêmica de verbetes que norteiam a teoria feminista. Estes escritos demonstram a coletividade de vozes e falas que, de seus locais, proporcionaram conjuntamente o diálogo, o debate e a estruturação de temas emergentes (e extremamente presentes) nos discursos, hábitos sociais e no meio acadêmico.

Em tempos que os ataques à educação e à pesquisa demonstram o fatídico cenário de retrocessos (seja de forma explícita ou velada), em que feministas e ativistas pró direitos humanos são perseguidos violentamente, em uma sociedade onde valorizam-se mais informações veiculadas irresponsavelmente em redes sociais e aplicativos, conceber uma obra coletiva, acadêmica, escrita apenas por mulheres e voltada à temática feminista, representa a força da resistência aos ataques sofridos pelos grupos minoritários, notadamente, mulheres, pessoas negras e LGBTQIAP+, indígenas, imigrantes, pessoas com deficiência e trabalhadoras.

Os avanços observados nos estudos de gênero e na teoria feminista são o reflexo das contínuas (e banalizadas) violações de direitos humanos sofridas diuturnamente, estimuladas pela vigência de uma política neoliberal e de exploração capitalista, as quais transformam os grupos minoritários em seres invisíveis aos olhos da sociedade e do Estado. Nesse cenário, as opressões de gênero, raça, classe e sexualidade adquirem novos contornos, pois diante da falta de participação igualitária na esfera pública e política, da consequente crise de representatividade e do esvaziamento da soberania popular, esses grupos são ainda mais invisibilizados e colocados à margem da sociedade, ao passo que predominam os interesses do mercado em detrimento das lutas por igualdade, das políticas públicas e sociais e da garantia dos direitos humanos.

É a partir da reflexão sobre esses fatores que este dicionário se origina. Os verbetes que o compõe atentam para toda a problemática que envolve o complexo sistema de desigualdade, o entrecruzamento de múltiplas opressões, a historicidade que resultou na sociedade que vivemos, os fatores que norteiam a sistemática e estrutural discriminação e exclusão social, além de propor alternativas e possibilidades de enfrentamento da desigualdade, visando a justiça social. Uma obra transdisciplinar, construída a partir da união de esforços de pesquisadoras de todo o país, que trouxeram significados essenciais para a compreensão do complexo sistema de hierarquias sociais vigente.

Conforme explanou Foucault³, desde que existam relações de poder, existirão possibilidades de resistência. E resistir a um modelo de sociedade fundamentado na desigualdade estrutural e exclusão social é fundamental para que sejam alcançadas condições mais equânimes de vida. Contudo, para que possamos construir uma sociedade mais justa e redistributiva, primeiro precisamos destruir e desarticular os pilares que ainda sustentam a lógica da dominação. Precisamos erguer nossas vozes para frustrar as tentativas de silenciamento. Precisamos ocupar espaços que, embora não tenham sido, originariamente, feitos para nós, são sim o nosso lugar: o ambiente público, de participação política, o meio acadêmico, o âmbito do trabalho e a esfera da economia. Precisamos lutar por nós enquanto o mundo ainda está contra nós.

Sabemos que é uma grande carga protagonizar e promover as transformações sociais. Algo que não deveria ser de responsabilidade daquelas que sempre foram oprimidas, mas sim, de todos que fazem parte da mesma sociedade. Mas também sabemos que se não formos a força da mudança, o mundo continuará exatamente da forma que está. Sejamos, portanto, as atrizes responsáveis pela destruição e pela reconstrução, sempre levando em conta o que ensinou uma das mais brilhantes professoras de todos os tempos, que recentemente partiu, mas deixou seu legado. Nas palavras de bell hooks, “Construir uma comunidade requer uma consciência vigilante do trabalho que devemos fazer continuamente para minar toda a socialização que nos leva a nos comportar de maneira a perpetuar a dominação”.

Desejo força para todas aquelas que estão lutando por um mundo melhor. Desejo que todas as mulheres, comprometidas com os ideais político-feministas, nos seus variados locais de atuação, deixem de ser hostilizadas e passem ser respeitadas e ouvidas. Espero que todas nós possamos ser as arquitetas da mudança, contribuindo para a edificação de uma sociedade mais justa, igualitária e acolhedora.

E assim, continuamos resistindo...

Nariel Diotto Condor - RS, 2022.

1 RESISTÊNCIA. In: DICIONÁRIO MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.

2 TRANSCENDER. In: DICIO. Dicionário Online de Português.

3 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

SUMÁRIO

Capa

Folha de Rosto

Créditos

ABORTO

Domenique Goulart

ADVOCACIA FEMINISTA

Nariel Diotto

ANTIFEMINISMO

Heroana Letícia Pereira

ASSÉDIO SEXUAL

Nívea Andreza de Oliveira Costa

Jéssica de Brito Carvalho

CARTA DAS MULHERES BRASILEIRAS AOS CONSTITUINTES

Bibiana Terra

CIDADANIA FEMININA

Isadora Prévide Bernardo

CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER

Bibiana Terra

CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA

Melina Girardi Fachin

CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER

Bibiana Terra

CRIMINOLOGIAS FEMINISTAS

Carolina Costa Ferreira

CULTURA DO ESTUPRO

Jaqueline Bianca Silva

DIREITOS REPRODUTIVOS

Emmanuella Magro Denora

Hemilly de Freitas Arruda

DIVERSIDADE

Ana Carolina de Faria Silvestre

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Ana Paula Lasmar Corrêa

DOMINAÇÃO MASCULINA

Marina Helena Vieira da Silva

ECOFEMINISMO

Mahryan Sampaio

ECONOMIA FEMINISTA

Carolina Boniatti Pavese

EMPODERAMENTO

Jéssica Pereira Arantes Konno Carrozza

ENCARCERAMENTO FEMININO

Paloma Silveira Pique Dourador

EQUIDADE DE GÊNERO

Renata Furtado de Barros

ESCREVIVÊNCIAS

Zane do Nascimento

ESTATUTO DA MULHER CASADA

Bianca Tito

FEMINICÍDIO

Larissa Faria de Souza

FEMINISMO DECOLONIAL

Larissa Faria de Souza

FEMINISMO INTERSECCIONAL

Fabiana Barcelos da Silva Cardoso

FEMINISMO LIBERAL

Camila Galetti

FEMINISMO MARXISTA

Mariana Pereira Rodrigues

FEMINISMO NEGRO

Mariete Lopes da Costa

FEMINISMO NEGRO II

Suelen Karini Almeida de Matos

FEMINISMO RADICAL

Maria Luiza Prestes Magatti

FEMINISMO(s)

Bibiana Terra

FEMINISMOS INDÍGENAS

Ana Manoela Primo dos Santos Soares Karipuna

IDEOLOGIA DE GÊNERO

Heroana Letícia Pereira

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

Marcela Modesto Fermino

INTERSECCIONALIDADE

Gabriela M. Kyrillos

JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO

Nathália Mariel Ferreira de Souza Pereira

LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA

Gabriela Maria Barbosa Faria

LEI MARIA DA PENHA

Fernanda Ribeiro Papandrea

LGBTQIA+

Débora Laís dos Santos Costa

LUGAR DE FALA

Vitória de Oliveira Ribeiro

MACHISMO

Isabella Fernandes Moreira Fontaniello

MINORIAS

Maíra Calixto Policarpo Moreira

MITO DA BELEZA

Bianca Tito

ONDAS FEMINISTAS

Bianca Tito

PACTO HETEROCISNORMATIVO

Grazielly Alessandra Baggenstoss

PARIDADE DE GÊNERO NA POLÍTICA

Gabriela Maria Barbosa Faria

PATRIARCADO

Ana Paula Lemes de Souza

POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO

Francisca Moana Araújo de Oliveira

PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Bianca Tito

Bibiana Terra

PROTEÇÃO AO TRABALHO DA MULHER

Bibiana Terra

PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA MULHER

Estela Cristina Vieira de Siqueira

RACISMO

Maíra de Deus Brito

REPRESENTAÇÃO FEMININA NO PARLAMENTO

Cynthia Gruendling Juruena

SEGUNDO SEXO

Samia Moda Cirino

SEXO E GÊNERO

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

SEXUALIDADE

Paloma Silveira Pique Dourador

SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA

Jéssica Melo Rivetti

TEORIA QUEER

Gabriela Pires

TRABALHO DOMÉSTICO

Amanda Eiras Testi

TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO

Thamiris Cristina Rebelato

TRABALHO REPRODUTIVO

Raquel Santana

TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES

Estela Cristina Vieira de Siqueira

TRANSSEXUAIS E TRANSGÊNEROS

Júlia da Silva Mendes

TRAVESTILIDADE E TRANSFEMINISMO

Dediane Souza

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Letícia Bartelega Domingueti

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Fabiane Simioni

VIOLÊNCIA POLÍTICA DE GÊNERO

Letícia Maria de Maia Resende

VIOLÊNCIAS DE GÊNERO

Marcela Andrade Duarte

LISTA DE AUTORAS

Landmarks

Capa

Folha de Rosto

Página de Créditos

Sumário

ABORTO

Domenique Goulart⁴

Como bell hooks nos deixa em seu legado, é preciso inicialmente situar que “a linguagem é também um lugar de luta” (HOOKS, 2019, p. 73). Ao nos comprometermos profundamente com esse pressuposto, passamos a entender a necessidade de buscarmos novas concepções e significados a “uma realidade que fora nomeada erroneamente” (KILOMBA, 2019, p. 28). Assim, adotar uma política e uma ética feministas implica também a necessidade de que interroguemos nossas práticas, buscando nomeá-las através de outros vocabulários. Podemos dizer que a proposta desta obra faz parte desse empenho em criar outros mapas conceituais a temas e ideias que foram atribuídos de sentido por lógicas patriarcais. Em outras palavras, a partir de uma ótica feminista, queremos expressar aqui o que certas práticas, ideias e momentos querem dizer quando os interpretamos criticamente desde um viés feminista.

Para nós, sujeitas epistemologicamente silenciadas e deslegitimadas, dizer com nossas próprias vozes, nomear nossa própria realidade, é ato primordial de coragem e de emancipação. E a coragem no processo de tomada de voz envolve profundamente o conteúdo daquilo que se diz (HOOKS, 2019, p. 38-39). Para as pessoas que figuram nas relações de poder cristalizadas estrutural e historicamente como sujeitos oprimidos, estabelecer novos léxicos é uma condição possibilitadora do próprio processo emancipatório, tendo em vista que a imaginação e a possibilidade desejante de outros mundos possíveis são capturadas pela linguagem de mundo colonizada. Para Grada Kilomba (2020, p. 21), “não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova linguagem. Um vocabulário no qual nos possamos todas/xs/os encontrar, na condição humana”.

Partindo desses pressupostos e mobilizando essas noções, passemos agora ao objeto específico deste verbete, o aborto. Percorreremos, neste ensaio, três dimensões que articulam a compreensão do aborto: i) a realidade da clandestinidade acarretada pela criminalização, ii) as práticas realizadas pelas redes feministas de socorristas, e iii) o lugar da maternidade compulsória dentro

da família patriarcal cisheteronormativa. Pois bem, em sentido figurado, abortar significa interromper, fazer cessar, não vingar, fracassar - guardemos essa ideia. Em sentido literal, aborto é o evento reprodutivo, provocado ou espontâneo, que interrompe o desenvolvimento de uma gestação. As práticas de abortamento sempre fizeram parte da vida reprodutiva das mulheres e pessoas com útero e sempre farão, pois são indissociáveis do livre exercício da sexualidade, sendo que “a decisão sobre realizar ou não um aborto incide diretamente sobre a integridade física e psíquica das mulheres [e pessoas com capacidade de gestar, e é] sua condição de sujeito autônomo” (BIROLI; MIGUEL, 2016, p. 16).

A própria forma como caracterizamos o aborto já nos permite questionar algumas questões: trata-se de um procedimento, de uma prática, de um cometimento, de um pecado, de uma culpa, de um trauma, de um episódio? Nos parece adequada uma abordagem sobre a interrupção da gravidez como um evento reprodutivo, porque desmistifica essa situação e demonstra que é algo natural na vida reprodutiva. Nem por isso pode ser considerado como algo corriqueiro e banal, porque mobiliza o corpo, a história, os desejos, os sonhos, os constrangimentos e as relações afetivas da pessoa que aborta. No que se refere às circunstâncias desse episódio da vida reprodutiva, segundo Cristião Fernando Rosas, médico ginecologista obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir [Doctors for Choice – Brasil], “um aborto legal e seguro, induzido, controlado, com a técnica adequada, com controle e monitoramento” é o evento reprodutivo “mais seguro que existe”, apresentando “14 vezes menos risco de morte que um parto natural com feto vivo” e metade do risco de morte em um aborto espontâneo e natural (GUZZO, 2020).

Ou seja, não necessariamente o aborto se trata de um momento de risco, tampouco de um contexto que intrinsecamente fragiliza o emocional da pessoa gestante. É certo que o aborto vem sendo caracterizado como inseguro pelas organizações internacionais feministas e de saúde, alcançando configuração de problema de saúde pública.⁵ Ocorre que esses contornos dizem respeito ao abortamento realizado em circunstâncias de criminalização e consequente clandestinização, precarizando vidas de modo estrutural, desigual, forçoso e completamente evitável. Essa diferenciação é elementar à compreensão da realidade e das possibilidades quanto às políticas do aborto. A clandestinização e

a criminalização são os motivos pelos quais, no Brasil, entre os anos de 2008 e 2016, “ocorreram cerca de 200.000 internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto, sendo cerca de 1.600 por razões médicas e legais”, e entre os anos de 2006 e 2015, foram registrados “770 óbitos maternos com causa básica aborto no SIM [Sistemas de Informação - Mortalidade]” (CARDOSO; VIEIRA, SARACENI, 2020).

Outra diferenciação se refere à importância de desmistificar a vinculação do aborto a riscos psicológicos adversos: pesquisas demonstram que a maioria das mulheres que querem e conseguem realizar o aborto expressa emoções positivas como o alívio, uma semana depois do procedimento (ROCCA; KIMPORT; GOULD; FOSTER, 2013). É a criminalização e a moralização que relegam quem aborta à insegurança, à clandestinidade e, ainda, à percepção desse ato como significado por culpa católica, trauma e medo da prisão. Quando dizemos que essa prática está inserida na vida cotidiana de pessoas com capacidade de gestar, queremos expressar a realidade dos dados que desvela que “a cada ano, 56 milhões de abortos são realizados globalmente. Isso equivale a uma média de 154 mil abortos por dia. Contudo, 45% desses procedimentos ainda são realizados de forma insegura” (SXPOLITICS, 2020). Nesse sentido, é fundamental perspectivarmos que os impactos recaem diferentemente sobre os corpos, pois é “possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e sem companheiro” (CARDOSO; VIEIRA, SARACENI, 2020).

Diante disso, compreender o aborto por uma perspectiva feminista situa interseccionalmente essa conjuntura de clandestinidade e pretende reinscrever essa realidade por meio de vocabulários, direitos e práticas alternativas. As redes feministas de socorristas na América Latina buscam reduzir esses riscos ao acompanhar mulheres e outras pessoas gestantes ao longo do procedimento abortivo, promovendo cuidados e dando acesso a medicação para a realização de abortos farmacológicos. Fornecendo kits de pílulas de misoprostol (conhecido por Cytotec) e de mifepristona, medicamentos recomendados por orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde da Organização Mundial de Saúde para um abortamento seguro (OMS, 2013) evitam que a pessoa gestante realize

uma interrupção em condições inseguras, salvando sua vida e fazendo com que não precisem procurar serviços da saúde, locais em que muitas vezes são criminalizadas.

Por meio de uma atuação micropolítica, as redes de socorristas latino-americanas transformam a realidade ao informarem sobre o abortamento seguro e militarem pela legalização. São redes que se tramam por coletivos que atuam “juntos na construção de acompanhamentos cuidadosos, amorosos e afetados” (SOCORRISTAS EN RED, 2021), mudando o relevo afetivo e incidindo nos processos tanto individuais quanto sociais de significação. Assim, “deslocando estruturas e medos, as socorristas sentem os impactos do ativismo com o avanço da consciência social sobre a despenalização do aborto”, reinscrevendo as práticas do aborto no imaginário social. Buscam provocar sensações potencializadoras não só nas mulheres e outras pessoas gestantes que abortam, mas também no domínio público em seu corajoso ativismo, uma vez que “ser aborteira é um contra-sentido que se apropria de todo mal e constrói potência” (GUIMARÃES, 2021).

É preciso compreender que essas redes são estigmatizadas, perseguidas e criminalizadas por grupos de vieses conservadores porque o acesso à interrupção de gestação politiza a maternidade compulsória que alicerça uma sociabilidade centrada na família tradicional patriarcal: se é possível escolher ser ou não ser mãe, então é possível pensar criticamente sobre esse percurso de vida tão naturalizado em uma mentalidade conservadora. A possibilidade de escolha da maternidade abre flancos no projeto familiarista, razão pela qual a manutenção da criminalização do aborto se justifica muito mais por uma posição conservadora do status quo do que por razões religiosas. De salientar, nesse sentido, a importante atuação das organizações Frente Evangélica pela Legalização do Aborto (FEPLA) e Católicas Pelo Direito de Decidir (CDD) que defendem argumentos religiosos para subsidiar a reivindicação da legalização do aborto. Importa antever, portanto, que é muito mais o conservadorismo do que a religiosidade que motiva as políticas antiaborto (ROCHA, 2020).

A possibilidade de interrupção de gravidez como uma política feminista abala profundamente o sistema social de organização pelo cuidado familista, desorganizando mandatos de gênero fundados na maternidade compulsória e na feminização dos regimes de trabalhos reprodutivos. Assim, abre espaço para a criação de outras subjetividades: “desde a consigna ‘La maternidad será deseada o no será’ [A maternidade será desejada ou não será] até a reivindicação por uma educação sexual integral no currículo escolar, se aprofundaram debates sobre sexualidades, corporalidades, vínculos e afetos” (GAGO, 2020a, p. 127). Dizemos assim que “à ousadia política que temos ao defender publicamente esses direitos junta-se a tarefa desafiadora de refletir e elaborar conceitos e propostas que deem conta da análise da realidade que temos e daquela que queremos construir” (ÁVILA, 1993).

Retomemos aqui o sentido figurado do aborto: interromper, não vingar, fracassar. Podemos pensar, assim, que o aborto faz fracassar um projeto de feminilidade arraigado na maternidade compulsória, apontando para potências subversivas do projeto de família tradicional patriarcal, vez que “o aborto é uma prática contrahegemônica: muda a gestão e a regulação da reprodução (familiar e heterossexual), interrompe o destino destinado e ressignifica os vínculos e o desejo, a compreensão de si” (GAGO, 2020b). Podemos pensar, assim, que há um fracasso na adequação às regras generificadas do patriarcado, o que possibilita a invenção de modos mais plurais, criativos, autônomos, autênticos e solidários de ser e de estabelecer laços sociais não fechados no modelo familiar cisheteronormativo e monogâmico (HALBERSTAM, 2020). A possibilidade de decidir se, como, quando e com que parir acaba por deslocar radicalmente noções generificadas que organizam a sociedade patriarcal, pautada pela “moralidade sexual conservadora, que define a família pelo objetivo da reprodução biológica – restringindo-a a arranjos heterossexuais” (BIROLI, 2020, p. 151). E, com efeito, “tal desestabilização implica, direta e dialeticamente, a ruptura da dicotomia entre as esferas pública e privada” (ÁVILA, 1993).

Quando falamos de formas autônomas, autênticas e criativas de escolher se, como, quando e com que parir, estamos falando, por exemplo, de homens transgêneros gestando; de projetos de criação comunitária de crianças, descentralizando a mãe como responsável exclusiva, implicando solidariamente

redes de afetos com pessoas amigas; de casais de mulheres lésbicas planejando gravidezes, e também de contextos em relações não-monogâmicas ou poliafetivas que organizam de modo inventivo e amoroso as dinâmicas familiares. A partir da interdependência como elemento primordial que desperta um senso de responsabilidade ética e cooperação mútua, falamos de multiplicidades de possibilidades éticas de vida, de laços forjados voluntariamente na amorosidade, e não necessariamente pela compulsoriedade de vínculos familiares pré-estabelecidos de “sangue”, muitas vezes atravessados por práticas violentas e abusivas embaixo do teto patriarcal (HOOKS, 2020).

Falamos aqui da agência de instituir rotas alternativas à solitária estrutura do núcleo cisheteronormativo e monogâmico, o qual se estabelece mediante a fragilização das demais redes de apoio, propondo que as simbióticas relações da unidade familiar patriarcal tradicional bastam a si mesmas, despotencializando todos os seus integrantes. É exatamente por isso que “as famílias que apresentamos ao patriarcado não o agradam. E é talvez o próprio rompimento do fechamento prescrito à estrutura da família que inaugura novas redes, novas conexões. E é essa crítica à família que ainda assusta o poder conservador, visto que quebra a falácia dos abusos sistemáticos que a estrutura patriarcal acredita encobrir” (RIBAS, 2019).

Neste ensaio propomos uma concepção crítica do aborto, articulando diferentes dimensões que compõem a realidade a respeito deste tema. Sem percorrer e abordar essas camadas do problema aqui trabalhado, entendemos que uma tentativa de conceituação ou definição, ainda que provisória, penderia à irresponsabilidade. Mobilizando desde a situação de clandestinidade relegada pela criminalização do aborto, perpassando as cuidadosas e amorosas práticas subversivas de redes socorristas latino-americanas, concluindo com a compreensão da importância da maternidade compulsória à estrutura social familista patriarcal, trouxemos à tona contornos macrossociais, mas também esferas subjetivas e microssociais a respeito das componentes que devemos antever quando falamos de aborto.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Maria Betania. Modernidade e cidadania reprodutiva. Revista Estudos Feministas, v. 1, n. 2, p. 382-382, 1993.

CARDOSO, Bruno Baptista; VIEIRA, Fernanda Morena dos Santos Barbeiro; SARACENI, Valeria. Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? Cadernos de Saúde Pública [online]. 2020, v. 36, n. 1. Disponível em: https://doi.org/10.1590/01002-311X00188718 Acesso em: 08 fev. 2022.

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Aborto e democracia. São Paulo: Alameda, 2016.

BIROLI, Flávia. Gênero, “valores familiares” e democracia. In: BIROLI, Flávia; CAMPOS MACHADO, Maria das Dores; VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia. São Paulo: Boitempo, 2020.

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GAGO, Verónica. La cuestión del aborto ocupa las calles en plena pandemia. Centro Cultural Kirchner, 2020b. Disponível em: https://cck.gob.ar/episodio-3-

caravana-verde-por-veronica-gago/6981/. Acesso em: 02 dez. 2020.

GUIMARÃES, Paula. Aborto feminista salva vidas e empodera mulheres. Portal Catarinas, 13 dez. 2017. Disponível em: https://catarinas.info/aborto-feministasalva-vidas-e-empodera-mulheres-na-america-latina/. Acesso em: 11 jan. 2021.

GUZZO, Morgani. Mudança na regra do aborto legal é perseguição aos direitos das mulheres. Portal Catarinas, 28 ago. 2020. Disponível em: https://catarinas.info/mudanca-na-regra-do-aborto-legal-e-perseguicao-aosdireitos-das-mulheres/. Acesso em: 29 ago. 2020.

HALBERSTAM, Jack. A arte queer do fracasso. Tradução de Bhuvi Libanio. Recife: Cepe, 2020.

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução de Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.

HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde. 2. ed. Uruguay: Organização Mundial da Saúde, 2013. Disponível em:

https://www.who.int/reproductivehealth/publications/unsafe_abortion/9789241548434/pt/. Acesso em: 11 jan. 2021.

RIBAS, Cristina. Feminismos bastardos. Feminismos tardios. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

ROCCA, CH.; KIMPORT, K.; GOULD, H.; FOSTER, DG. Women’s emotions one week after receiving or being denied an abortion in the United States. Perspect Sex Reprod Health. 2013; 45(3), p. 122-131.

ROCHA, Camila. Cristianismo ou conservadorismo? O caso do movimento antiaborto no Brasil. Revista TOMO, São Cristóvão, Sergipe, n. 36, p. 43-78, jan./jun. 2020.

SOCORRISTAS EN RED. Quiénes somos. Disponível em: https://socorristasenred.org/quienes-somos/. Acesso em: 18 jan. 2021.

SXPOLITICS. Chamada internacional à ação pelo direito ao aborto. Sexuality Policy Watch, 01 abr. 2020. Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/chamadainternacional-a-acao-pelo-direito-ao-aborto/10209. Acesso em: 03 abr. 2020.

4 Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS (2021), bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS (2019) e advogada. Atualmente é professora da cadeira de prática jurídica em violência doméstica na Universidade La Salle, trabalhadora da Política de Assistência Social no município de Porto Alegre, sócia da Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos e integrante do Conselho

Científico da Editora Blimunda. Endereço eletrônico: [email protected]

5 O ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, ex-coordenador do maior serviço de abortamento legal do país, elucida que para assim considerar-se um problema, ele não pode ser algo pontual e esparso, mas sim sistemático e recorrente. O outro requisito para um problema ser considerado como de saúde pública é que ele precisa ensejar real e significativo impacto à saúde da população (DIP, 2013).

ADVOCACIA FEMINISTA

Nariel Diotto

Em uma sociedade regida pelo patriarcado, um sistema de dominação e posse do corpo feminino, as mulheres são tratadas como objeto e propriedade, inseridas em uma posição de poder e domínio masculino. Essas raízes patriarcais, que estruturam toda a sociedade e naturalizam a desigualdade, são exteriorizadas pela violência, que pode ocorrer das mais variadas formas e em diferentes contextos: desde a violência direta vivenciada no âmbito privado, até mesmo a violência simbólica, originária da falta de representatividade e oportunidades iguais para as mulheres (DIOTTO, 2021).

Ao referir que o exercício do domínio dos corpos femininos é estrutural na sociedade, é importante salientar que todas as relações sociais são norteadas pela desigualdade de gênero e inferiorização de tudo que é feminino. E isso manifesta-se também nos espaços ocupados pelas mulheres no trabalho, na política e em todas as esferas sociais (DIOTTO, 2021). No sistema de justiça não é diferente. As instituições refletem a dura realidade em que mulheres vivem diuturnamente. Relegadas a papéis secundários, funções definidas a partir do órgão sexual, o sistema de justiça que deveria acolhê-la e garantir o seu pleno acesso à justiça, princípio constitucional brasileiro, reproduz inúmeros estereótipos, julgamentos, desqualificações e violências de ordem simbólica.

Essa violência, de ordem institucional, consiste “[...] no tratamento desigual e discriminatório destinado às mulheres, na falta de reconhecimento de sua condição de gênero e na negligência e omissão decorrentes da falta de aperfeiçoamento dos profissionais” (BECKER; DIOTTO; BRUTTI, 2020, p. 89). Discursos e hábitos discriminatórios são reproduzidos, os quais podem culpabilizar as mulheres pela violência sofrida nos casos de denúncias de violência doméstica e sexual, reforçar estereótipos relacionados a sua condição de gênero, principalmente em ações de família, em que interesses de menores estão envolvidos e as mães sobrecarregadas, entre outros fatores que podem estimular a continuidade da violência.

Para enfrentar as mais absurdas situações que as mulheres passam quando inseridas em uma demanda judicial, devem ser pensadas novas formas de atuação profissional, que levem em consideração o fato de que o gênero é uma categoria que influencia todo o sistema de justiça. Nesse sentido, a prática jurídica torna-se também uma prática política, em que se busca a concretização de direitos humanos e fundamentais. Ao unir a prática jurídica aos ideais e preceitos feministas, há a possibilidade de politizar a prática profissional, compreender a existência de uma desigualdade estrutural entre homens e mulheres - que reflete no sistema de justiça - para então, buscar a concretização de direitos humanos e fundamentais das mulheres, notadamente, da igualdade e da dignidade humana (DIOTTO, 2021). Nessa trilha, a advocacia feminista surge para prover uma assistência consciente da desigualdade e da violência estrutural e institucional no sistema de justiça, principalmente nos tribunais, pois visa combater teses jurídicas e sentenças que apresentem misoginia ou discriminação contra as mulheres.

Ao serem representadas no discurso jurídico, as mulheres são tratadas com forte influência de três formas excludentes, que mantêm e estimulam a discriminação de gênero: o sexismo estrutural; a masculinização do direito; sua forma sexuada (SMART, 1992). Isso significa que o direito exclui as mulheres, que ele foi feito para os homens e que possui um gênero universalizante, que é o masculino. Por este viés, “pensar o direito sem considerar a condição desigual dos gêneros é, portanto, uma forma de dificultar o acesso à justiça pelas mulheres, discriminálas no sistema de justiça e perpetuar as relações desiguais de gênero” (DIOTTO, 2021, p. 14). Mas mesmo que a prática jurídica possa desqualificar a identidade e experiência das mulheres, se desconsiderada a categoria gênero como fator de influência no discurso jurídico, por outro lado, há a possibilidade de vincular os ideais feministas ao campo do direito, construindo um local de luta e reivindicação (CASALEIRO, 2014). Sendo assim, o direito também possui a capacidade de contribuir com as reivindicações femininas e feministas, podendo ser usado para a desconstrução de papéis de gênero originários da dominação masculina. Nesse sentido, o direito pode representar um instrumento de poder na correção de erros e no alcance da justiça, o que pode acontecer por meio da advocacia feminista.

A advocacia feminista não é uma área específica do direito, mas sim, uma nova forma de pensar a prática jurídica, que considere a posição desigual e discriminatória das mulheres na sociedade. Por meio dela, é possível buscar direitos positivados, não apenas em uma demanda específica, mas de forma a transformar a visão e o posicionamento do Judiciário em várias questões relacionadas às mulheres, beneficiando, assim, todas aquelas que passarem por situação semelhante. A advocacia feminista é um instrumento de promoção da igualdade, tendo em vista que o acesso ao Judiciário passa a ser pautado no reconhecimento da desigualdade de gênero, que é estrutural. Ao advogar em benefício das mulheres, é possível enfrentar algumas situações de opressão, que inegavelmente, são produzidas e reproduzidas no sistema jurídico. Até porque, considerando que ainda resistem as raízes patriarcais no Estado hodierno, também persistem as desigualdades entre homens e mulheres em vários aspectos, sendo necessária uma visão feminista do direito, para que “[...] se questione cada teoria, cada conceito, cada lugar comum, pois eles estão arraigados de inferiorizações da mulher” (SALGADO, 2019, p. 23).

A partir dessa concepção, a prática da advocacia feminista surge como um instrumento de ruptura e enfrentamento ao sistema patriarcal, voltado à desconstrução dos papéis de gênero e ao combate da violência institucional. Também é uma forma de possibilitar a humanização do atendimento e representação dessas mulheres, visto que exige das advogadas feministas, agir com sensibilidade, empatia, ausência de julgamentos, validação dos relatos de suas clientes, além do compromisso e capacidade de identificar a opressão existente em cada caso em particular, mesmo que referidas opressões não sejam diretamente verbalizadas (DIOTTO, 2021). A advocacia feminista torna viável a formulação de teses jurídicas e estratégias que auxiliem as mulheres na sua demanda específica e que também estimulem discussões que identifiquem a existência do machismo e opressão.

Ao traçar a concepção de uma advocacia feminista, é importante pensar no papel das mulheres advogadas dentro de instituições jurídicas extremamente elitistas, que não apenas evidenciam a desigualdade de gênero, mas convergem com

outras exclusões sociais, como de classe, raça e sexualidade (ARAÚJO, 2017). Por isso, é indispensável salientar que a advocacia feminista não se preocupa apenas com diferenças entre homens e mulheres, mas com exclusões sociais que aprofundam ainda mais as opressões. Isso justifica-se diante das variadas diferenças entre as próprias mulheres, que tornam a realidade social de cada uma diferente e única. Exemplo disso é a dupla opressão sofrida pelas mulheres negras que, além de estarem em situação de minoria em virtude do gênero, também sofrem discriminação racial. Ou no caso das mulheres LGBTQIA+, que também são discriminadas em virtude da orientação sexual. A advocacia feminista, portanto, se baseia muito na militância feminista, que se soma às demandas de outros setores populares e se baseia em valores republicanos e democráticos (BARSTED, 2017).

Mesmo que nos últimos anos a participação das mulheres seja mais expressiva no direito, isso não é suficiente para uma efetiva emancipação e igualdade feminina. O Judiciário ainda reflete um poder branco e masculino, que continua a reproduzir e intensificar essas expressões de poder (ARAÚJO, 2017). Por esta razão, para que haja uma transformação no Judiciário e em todo o sistema de justiça, é necessário que mulheres inseridas na prática feminista desenvolvam o seu papel enquanto profissionais do direito, levando ao Judiciário teses fundamentalmente feministas e com potencial transformador. Desta forma, é importante que a advocacia feminista seja fortalecida, a fim de que possa contribuir com a ruptura de padrões de opressão.

Em suma, a advocacia feminista compreende vários ramos do direito, é uma forma de acolher as mulheres e lutar pela equidade, pela autonomia e emancipação feminina, garantindo que tenham seus direitos resguardados diante de uma sociedade e de um Judiciário marcado pelo patriarcalismo e pelo sexismo, que tendem a sempre desacreditar a palavra da mulher. A advocacia feminista deve ser uma advocacia humanizada e sensível, capaz de acolher a mulher sem julgamentos e com um olhar voltado para uma construção jurídica antimachista. Até porque, as leis são criadas em sua maioria por homens e, consequentemente, o direito parte do ponto de vista masculino. Compreender os jogos de poder e buscar subvertê-los, de modo a evitar juízos de valor que reforçam desigualdades, é um dos papéis da prática jurídica feminista (DIOTTO,

2021).

A advocacia feminista se mostra como um instrumento de defesa das mulheres, não apenas da opressão que resulta em uma demanda judicial, mas também da violência institucionalizada no sistema de justiça. Ao inserir os princípios feministas na prática profissional, além de uma defesa mais adequada, é possível proporcionar um atendimento mais humanizado, a partir da escuta e acolhida, tornando a experiência das mulheres no Judiciário um pouco mais suportável. Além disso, é possível, também, um maior protagonismo político, a partir da defesa dos direitos das mulheres a nível institucional.

Portanto, a advocacia feminista é pautada na defesa dos direitos das mulheres diante da violência em todos os âmbitos, inclusive no meio jurisdicional, que viola de forma massiva os direitos das mulheres. O conhecimento jurídico é aliado ao compromisso político feminista, visando a concretização de uma justiça de gênero por meio de uma perspectiva alternativa à dogmática tradicional. Defender que o direito adote uma perspectiva alternativa e seja utilizado como ferramenta de emancipação e não de subjugação das mulheres, é criar atores sociais conscientes da condição de sexismo e misoginia preponderante na sociedade. O positivismo e a dogmática tradicional não conseguem tratar a discriminação contra as mulheres e nem oferecer segurança e confiança para que as vítimas de violações de seus direitos obtenham reparação. Por esta razão, a advocacia feminista se mostra como um instrumento de emancipação das mulheres e de humanização do atendimento, capaz de transformar a prática jurídica e o tratamento destinado às mulheres no sistema de justiça.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Vera Lúcia Santana. Tecendo fios das trajetórias e experiências de Advocacia Feminista no Brasil: Entrevista com Vera Lúcia Santana Araújo,

Myllena Calasans de Matos, Denise Dourado Dora e Leila Linhares Barsted, realizada por Fabiana Cristina Severi. Revista InSURgência, v. 3, n. 1, Brasília, 2017.

BARSTED, Leila Linhares. Tecendo fios das trajetórias e experiências de Advocacia Feminista no Brasil. In: Entrevista com Vera Lúcia Santana Araújo, Myllena Calasans de Matos, Denise Dourado Dora e Leila Linhares Barsted, realizada por Fabiana Cristina Severi. Revista InSURgência, v. 3, n. 1, Brasília, 2017.

BECKER, Vanessa Thomas; DIOTTO, Nariel; BRUTTI, Tiago Anderson. Uma análise da violência institucional sofrida por mulheres vítimas de estupro a partir da série televisiva “Inacreditável”. In: SOUZA et al (Orgs.). Linguagens & contextos: expressões humanas em interpretação. Cruz Alta: Ilustração, 2020.

CASALEIRO, Paula. O poder do direito e o poder do feminismo: revisão crítica da proposta teórica de Carol Smart. Ex aequo, n. 29. Vila Franca de Xira, 2014.

DIOTTO, Nariel. A Advocacia Feminista e a possibilidade de humanização da prática jurídica. 210 fls. Dissertação (Mestrado em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social) – Universidade de Cruz Alta, Cruz Alta, 2021.

SALGADO, Gisele Mascarelli. O Estado e as desigualdades de gênero. In: FERRAZ, Carolina Valença. Manual Jurídico Feminista. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2019.

SMART, Carol. The Woman of Legal Discourse. Social and Legal Studies, London, v. 1, 1992. Disponível em:

https://doi.org/10.1177/096466399200100103. Acesso em: 12 jan. 2022.

6 Doutoranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Mestra em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social (UNICRUZ). Especialista em Ensino da Filosofia (UFPel) e em Direito Constitucional (FCV). Graduanda em História (UFPel). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Cidadania & Políticas Públicas (UNISC). Bolsista CAPES. Advogada. E-mail: [email protected]

ANTIFEMINISMO

Heroana Letícia Pereira ⁷

Antes de tecer considerações sobre o que vem a ser o antifeminismo, é preciso entender o que vem a ser o movimento feminista. O feminismo é um movimento de difícil definição, mas, essencialmente, é um movimento político que alcança o direito, a sociologia, a filosofia, a economia; em suma, todos os sistemas da sociedade. Trata-se de uma tradição de pensamento, bem como movimento histórico, que põe no centro das discussões a questão da igualdade entre homens e mulheres, os preconceitos relativos ao fato de as mulheres serem consideradas inferiores aos homens (DORLIN, 2021, p. 13). O movimento questiona as relações sociais que criam uma relação hierárquica entre homens e mulheres (ALVES; PITANGUY, 2011, p. 08).

Por se tratar de um movimento que questiona os papéis de sexo, personalidade, organização familiar, sexualidade, corpo, ele politiza os espaços privados, os quais, na tradição patriarcal da sociedade, são considerados invioláveis. A politização de espaços privados, íntimos e individuais é uma forma de questionar relações de poder que compõem a forma como as sociedades se organizam há séculos. E neste sentido é que surge o conflito (DORLIN, 2021, p. 14). Questionar o que é tido como normal e, portanto, natural, cria tensões, resistência, crises, uma vez que, ao questionar relações de poder tão intrínsecas às sociedades, passa-se a modificar as noções de cidadania, democracia e representação política.

O feminismo demonstra que o sexo é político, uma vez que ele está ligado às relações de poder da sociedade, por isso, rompe com os tradicionais modelos políticos vigentes (ALVES; PITANGUY, 2011, p. 08), os quais estão focados no domínio da esfera pública e não da privada, além de buscar superar as relações sociais calcadas em assimetrias de gênero, raça, classe. Contudo, o tradicional modelo calcado no poder do pater familias (o pai de família com poder absoluto sobre a mulher e os filhos) ainda faz parte da estrutura das famílias, ou de seu imaginário, e ainda pode ser percebido em diversas legislações, enquanto na esfera pública ainda predomina a maior representação política dos homens.

O poder foi e ainda é uma questão de assimetrias e uma destas assimetrias é a de gênero, uma vez que o poder é predominantemente masculino e tem como objetivo a dominação das mulheres, especialmente de seus corpos, haja vista a capacidade reprodutiva feminina (BUTLER, 2003, p. 201). Além disso, a dominação de gênero perpassa outras formas de dominação, como as de classe e raça, o que faz com que as formas de dominação e violência atinjam as mulheres de maneiras diferentes, por isso, de forma concomitante ou não, uma mulher branca, de alto poder aquisitivo, heterossexual não sofre as mesmas violências que uma mulher negra, de baixo poder aquisitivo, homossexual.

A mulher, definida biologicamente e socialmente como inferior ao homem, foi condicionada a se subordinar ao homem em qualquer situação, o que gerou a imposição de um Estado patriarcal. Neste sentido é que, ao se considerar a categoria raça, surge uma dupla inferiorização da mulher, na medida em que, além da subordinação originária do gênero, surge a subordinação de origem racial. Assim, na perspectiva de Lugones (2010, p. 28), embora haja a primeira e óbvia conclusão de que a mulher não branca sofre maiores violências, não se exclui o fato de que tanto o corpo branco como o não branco são considerados submissos e inferiores, sendo considerados “úteis” na medida em que podem gerar vida, mas não dotados de poder.

Os mitos relativos à maternidade são os mais vivenciados, defendidos e reproduzidos pela sociedade em relação às mulheres, definindo seus corpos como fontes obrigatórias de vida, sendo a maternidade, como forma de poder e controle sobre os corpos femininos, um aparato patriarcal, colonial, capitalista e racista. E tais relações de poder se originam de duas instituições, as quais têm o poder de controlar os corpos, principalmente os femininos, são elas o Estado e a Igreja (GONZAGA; MAYORGA, 2019, p. 60-61). Por isso, movimentos feministas tendem a ser rechaçados não somente por pessoas individuais, mas também pelos próprios aparatos institucionais.

Embora a paridade de gênero nas leis venha aumentando com o tempo, as

desigualdades persistem. Muitas legislações ainda impedem as mulheres de exercer direitos básicos, relativos à cidadania, bem-estar, segurança, oportunidades de exercer trabalhos dignos e adequadamente remunerados, bem como é notório que as mulheres continuam vulneráveis a diversos tipos de violência, muitas delas, inclusive, corroboradas pelas próprias instituições. A existência de leis, por si só, mostra-se insuficiente, pois é preciso realizar mudanças estruturais, como no acesso à educação e saúde, além de mudanças culturais e sociais, visto que as restrições aos direitos das mulheres são naturalizadas e seu papel na sociedade também existe dentro de uma estrutura violenta e enraizada culturalmente.

Notadamente, os homens gozaram por séculos de um poder quase ou totalmente absoluto, sendo beneficiados por uma cultura patriarcal que os coloca no topo das relações de poder, tendo domínio tanto da esfera pública quanto da privada. Assim, não é de seu interesse que tal estrutura mude, uma vez que os beneficia de todas as formas, seja de forma política, econômica, jurídica, sexual, educacional, entre outras. Por isso, movimentos que questionem seu poder e que se rebelem contra ele vão lhes causar temor e, consequentemente, agressividade, a fim de impedir que seus privilégios sejam diminuídos ou mesmo que sejam destituídos deles, afinal, o patriarcado é um sistema sexual de poder que dá privilégios de toda natureza aos homens e subordina as mulheres.

A fim de lutar contra a exclusão social, a violência e a dominação masculina em si é que as mulheres passam a sair da esfera privada e buscar a esfera pública, tanto é que uma das primeiras lutas do movimento é pelo sufrágio. Contudo, a tentativa feminina de ingressar nos espaços políticos, econômicos, culturais, intelectuais, entre outros, gerou movimentos de rechaço. Ainda que avanços significativos venham acontecendo cada vez mais, eles ainda são contidos por diversas formas de discriminação e violência que impedem ou dificultam a igualdade de gêneros e o fortalecimento do protagonismo feminino nas esferas de poder da sociedade (CRUZ; DIAS, 2015, p. 39).

As formas de oposição ao feminismo, o antifeminismo, são diversas e podem

ocorrer de modo explícito ou não. De um lado, pode ocorrer a violência frontal, que nega veementemente os direitos das mulheres, como a agressão física, de outro, pode haver o discurso, muitas vezes sutil, que desmoraliza o movimento feminista, especialmente se utilizando de discursos de fundo moral. E, ainda, de forma mais grave, pode haver o rechaço institucional aos direitos das mulheres, seja pela existência de legislações discriminatórias ou pela ausência de legislações emancipatórias/protetivas, o que também se aplica à existência ou não de políticas públicas voltadas à igualdade de gêneros.

Isto significa que o termo antifeminismo nem sempre é utilizado de forma explícita, embora esteja no fundo de diversas ações, o que dificulta a sua imediata identificação, já que a palavra possui um grande poder, justamente por carregar a memória social de um povo, o que demonstra a dificuldade em dar nome às formas de violência de gênero ou mesmo de assumir que algo é violência de gênero, até porque é comum assumir que uma violência é apenas física ou, mesmo sendo física, pode muitas vezes ser considerada justificável socialmente. A própria construção identitária do homem e da mulher, por exemplo nos dicionários mais utilizados no Brasil, reflete uma cultura que desumaniza a mulher ao ponto de relacionar a racionalidade humana ao homem, enquanto identifica a mulher como sua parceira.

As formas de organização da sociedade são historicamente pautadas em formas de dominação, as quais nem sempre ocorrem de forma fisicamente violenta, embora também sejam. Uma das formas de dominação mais fortes ocorre por meio da ideologia, de modo a incutir na mentalidade da população uma imagem do que seria a sociedade ideal, que não deve ser corrompida. Ou seja, a sociedade patriarcal é esta imagem de sociedade tida como ideal a ser preservado e qualquer ato que refute este ideal é severamente rechaçado. As formas de refutação ao feminismo estão baseadas em um ideal conservador que visa determinar qual é o lugar que homens e mulheres devem ocupar na sociedade e assumem a ideia de que mudanças de papéis podem deteriorar uma sociedade.

O antifeminismo se opõe a algumas ou a todas as formas de feminismo. As

formas mais conhecidas, uma vez que explícitas, de antifeminismo são aquelas existentes em discursos estereotipados, como os que afirmam que feministas são mal-amadas, agressivas, masculinizadas, “feias”, “sapatões”, não femininas, imorais, sexualmente libertinas e que odeiam homens. Por isso é comum ouvir de mulheres que elas são femininas e não feministas. É comum ver em veículos de imprensa, na publicidade, nas igrejas, entre outros, uma imagem de que as feministas são radicais que declaram guerra aos homens e buscam retirar deles os seus direitos.

Com o advento das redes sociais e a cultura digital, estes discursos são ainda mais reforçados devido a seu largo alcance. Isso torna mais fácil disseminar discursos violentos e intolerantes contra mulheres e o feminismo, tanto é que cada vez mais são criados sites, blogs, perfis em redes sociais, como o Telegram, com conteúdos altamente misóginos. Um exemplo é o caso dos incels, os chamados celibatários involuntários, que, além de possuírem páginas na internet voltadas à misoginia, também organizam e executam ataques terroristas. O termo incel se refere a homens que, por diversos motivos, não conseguem ter sucesso nas relações sexuais e culpam o feminismo por este insucesso, por isso direcionam todo o seu ódio às mulheres (ANDRADE, 2021, p. 40).

Outra forma de oposição ao feminismo se encontra em uma das instituições mais fortes da sociedade brasileira, a Família (tradicional cristã), que é fortemente amparada tanto pela Igreja quanto pelo Estado. Esta instituição define taxativamente os papéis de gênero, inclusive de forma autoritária e violenta e, por isso, considera o feminismo como um movimento que busca destruí-la. Isto se reflete nos movimentos contrários à descriminalização do aborto, à proteção dos direitos de profissionais do sexo, aos direitos das LGBTQIA+, uma vez que todos estes subvertem o principal papel atribuído às mulheres na sociedade, o de mãe. E isto se reflete principalmente no papel do poder legislativo que, sequer ou raramente, discute estas pautas.

A representação identitária da mulher sofre intenso abalo das relações de poder pelas quais se constrói um imaginário social e isto se reflete na legislação. Em

um primeiro momento porque a representatividade feminina é muito baixa, já que, no Brasil, dos 513 deputados, apenas 77 são mulheres, muito embora elas representem mais de 50% do eleitorado. Quando se legisla, o pressuposto que encabeça tal ato está impregnado com a matriz histórica de sua identidade, que é introjetada culturalmente no imaginário social. As representações de gênero são importantes, neste aspecto, porque geralmente se referem a uma dimensão de poder social, que representa hierarquia, já que a relação entre gêneros é, historicamente, de poder e traz consequências para as definições do “eu” social (PINTO, 2011, p. 176).

Portanto, o antifeminismo não reside apenas nos discursos emitidos por sites de incels, que, inclusive, não são apenas discursos, já que tais grupos de fato cometem crimes contra a vida, a dignidade e a liberdade de mulheres, sejam elas assumidamente feministas ou não. Para além destes discursos explícitos, há as próprias instituições da sociedade, como a Família, a Igreja e, principalmente, o Estado, que não costumam emitir discursos explicitamente antifeministas, mas que silenciam as pautas feministas ou criam legislações e políticas públicas contrárias ao movimento. Assim sendo, sem o intuito de esgotar o tema, o antifeminismo é uma ideia conservadora que busca manter os papéis de gênero condizentes com uma sociedade patriarcal e a dominação dos corpos femininos.

REFERÊNCIAS

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 2011.

ANDRADE, Bruna Letycia Ribeiro. “A culpa é toda delas”: analisando a naturalização do discurso dos celibatários involuntários (incels) no Brasil. RIBPSI -Revista Iberoamericana de Psicologia, Curitiba, PR, Brasil, v. 02, n. 01, p. 48-68, 2021.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.

CRUZ, Maria Helena Santana e DIAS, Alfrâncio Ferreira. Antifeminismo. Revista De Estudos De Cultura | Nº 01 | Jan. Abr./2015.

DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidade – Introdução à teoria feminista. Traduzido por Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Crocodilo/Ubu, 2021.

GONZAGA, Paula Rita Bacellar e MAYORGA, Claudia. Violências e Instituição Maternidade: uma Reflexão Feminista Decolonial. Psicologia: Ciência e Profissão, 2019 v. 39 (n.spe 2), e225712, 59-73.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas. Artigo originalmente publicado na revista Hypatia (traduzido com o consentimento da autora), v. 25, n. 4, 2010.

PINTO, Rosa Maria Ferreiro et al. Condição feminina de mulheres chefes de família em situação de vulnerabilidade social. Serv. Soc. Soc., São Paulo, 105, 167-179, março de 2011.

7 Doutoranda em Direito, com área de concentração em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Mestra em Direito, com área de

concentração em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas e em Letras pela Universidade do Vale do Sapucaí. Professora de Língua Portuguesa na E. E. Dr. José Marques de Oliveira.

ASSÉDIO SEXUAL

Nívea Andreza de Oliveira Costa⁸

Jéssica de Brito Carvalho

Compreende assédio sexual toda e qualquer situação em que um comportamento de caráter sexual inoportuno e indesejado se manifesta sob forma física, verbal ou não verbal, com o objetivo de violar a dignidade da pessoa e de criar um ambiente intimidativo, hostil, humilhante ou ofensivo (UNIÃO EUROPEIA, 2004).

No Brasil o assédio sexual é classificado como tipo penal desde o ano 2001, descrito no artigo 216-A do Código Penal. Contudo, segundo a descrição legislativa, o assédio sexual só se caracteriza como crime se houver uma relação hierárquica entre agressor e vítima, o que faz com o que a maioria das denúncias que chegam à justiça estejam relacionadas a fatos ocorridos dentro do ambiente de trabalho, sendo a maior parte das vítimas mulheres (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2017).

A primeira tipificação do assédio sexual pode ser traçada para meados do ano de 1970, quando Catharine Mackinnon (1979), jurista e ativista feminista estadunidense, publicou um relatório, onde referiu-se ao termo a partir de uma perspectiva jurídica, colocando-o assim como uma maneira de discriminação sexual nas relações empregatícias.

Foi devido à pressão exercida por grupos de cunho igualmente feminista que a Comissão Europeia publicou, em 1987, o primeiro relatório sobre assédio sexual, assim como também induziu que Portugal e a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) encomendassem o que viria a ser o primeiro estudo sobre assédio sexual no local de trabalho, que foi realizado entre os anos 1988 e 1989 e veio a público em 1994. O referido inquérito, tendo como base as experiências das mulheres portuguesas que trabalhavam para fora, isto é, a serviço de outrem, constituiu o assédio sexual no trabalho como uma forma de discriminação baseada no sexo, que se manifesta através de comportamentos

indesejados com para a vítima, de modo que atentam contra sua dignidade e liberdade.

Ademais, tal comportamento também acaba por impedir que a mulher alcance seu desempenho integral no trabalho, reforçando assim o estereótipo de instabilidade emocional das mulheres (PORTUGAL, 1994). O estudo, ainda que carecesse de abranger a total extensão do fenômeno, relevou ainda que cerca de 46% das mulheres entrevistadas teriam sofrido algum tipo de assédio, tendo como seu agressor colegas, superiores hierárquicos ou fornecedores da empresa.

A Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres (CIDM, 1996) sedimenta, em 1996, o entendimento que o assédio sexual se estabelece como qualquer tipo de conduta não desejada, seja ela explícita ou implícita, por parte de um indivíduo com para outro, tais quais: avanços sexuais, pedidos de favores sexuais, entre outros atos, sejam estes verbais ou físicos, de natureza sexual (PORTUGAL, 1996).

Em que pese a igualdade formal de direitos alcançada pelas mulheres no plano jurídico em relação aos homens, notadamente estruturas patriarcais ainda se mantêm, mesmo que, por vezes, se apresentem de forma menos explicita do que outrora. O que leva a uma notável lacuna entre haver a presença de direitos e a habilidade real de exercê-los.

A filósofa britânica Carole Pateman (2020) dialoga que tal fenômeno pode ser atribuído as inúmeras contradições envolvidas na incorporação das mulheres na sociedade civil. Pois, ainda que estas sempre tenham sido participantes da sociedade, de forma inegável, ao longo do desenvolver histórico, a ordem social que prevaleceu e ditou as estruturas da sociedade sempre foi de que mulheres deveriam reservar-se aos espaços privados, atuando nos bastidores, longe da vida pública, tornando-as irrevogavelmente dependentes dos homens, o que faz prevalecer a manutenção de situações de assédio sexual.

REFERÊNCIAS

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. A vitimização de mulheres no Brasil: 2017. São Paulo: FBSP, 2017.

MACKINNON, Catharine. Sexual Harassment of working women: a case of sex discrimination. New Haven: Yale University Press, 1979.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Trad. Marta Avancini. 2ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.

PORTUGAL. Ministério do Emprego e Segurança Social. CIDM — Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres (CIDM), Assédio Sexual no Trabalho. 2.ª Ed. Lisboa, 1996.

PORTUGAL. Ministério do Emprego e Segurança Social. Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego CITE - Assédio sexual no mercado de trabalho / Lígia Barros Queiróz Amâncio, Maria Luísa Pedroso de Lima – Lisboa, 1994.

UNIÃO EUROPEIA directiva 2004/113/CE DO CONSELHO de 13 de dezembro de 2004 que aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/? uri=CELEX:32004L0113&from=PL. Acesso em: 05 jan. 2022.

8 Doutorado em andamento em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino, ITE, Bauru/SP. Mestra em Direito em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas FDSM, Pouso Alegre/MG. Professora de Processo Civil no curso de Pósgraduação da Escola Mineira de Direito EMD em Varginha/MG. Professora no curso de graduação de Direito Constitucional, Teoria do Direito, Relações Internacionais e Direito Digital do Centro Universitário UNA, Grupo Ânima, nas unidades de Pouso Alegre/MG, Belo Horizonte/MG, Betim/MG, Contagem/MG e Itumbiara/GO. Professora de Psicologia Jurídica da Instituição Toledo de Ensino ITE, Bauru/SP, Advogada em Advocacia Luiz Tarcísio de Paiva Costa, Pouso Alegre/MG.

9 Mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu – Sistema Constitucional de Garantia de Direitos, mantido pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). E-mail: [email protected].

CARTA DAS MULHERES BRASILEIRAS AOS CONSTITUINTES

Bibiana Terra¹

Os debates a respeito dos direitos das mulheres brasileiras ganharam grande relevância no período da redemocratização do país, na década de 1980. Foram diversos os encontros, congressos, produção de materiais, como folhetos, cartazes, cartilhas e filmes. Este foi um trabalho que ocorreu tanto em nível de movimentos autônomos de mulheres, como a nível institucional – por exemplo, através dos conselhos municipais, estaduais e também do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM, importante órgão de representação feminina no país no período da constituinte (GUEDES, 1989, p. 301).

Naquele momento, no Brasil, a sociedade já estava a par de que uma Assembleia Nacional Constituinte seria instaurada e de que disso resultaria numa nova Constituição Federal, que em breve seria elaborada. O futuro texto constitucional teria a oportunidade de ser mais democrático no que diz respeito aos interesses e necessidades de diferentes grupos sociais e, assim, poder garantir os seus direitos. No entanto, isso somente ocorreria caso houvesse uma participação popular efetiva na edição da nova carta (PIMENTEL, 1987, p. 65).

Para Sílvia Pimentel, essa participação poderia se dar de duas maneiras. A primeira delas dizia respeito, especificamente, ao conteúdo que seria previsto no próximo texto constitucional. Diante disso, ainda no momento pré-constituinte, a população brasileira já poderia se ocupar em debater os temas de maior interesse nacional, para, no momento oportuno, encaminhar suas propostas para os constituintes. Além disso, no que diz respeito à segunda forma de participação, essa se daria através da escolha dos representantes constituintes, que teriam a responsabilidade de elaborar a nova Constituição Federal (PIMENTEL, 1987, p. 65).

Pensando nisso, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que nesse período era dirigido por Jacqueline Pitanguy, teve grande influência nas mobilizações

dos movimentos feministas, para que atuassem conjuntamente às mulheres e aos constituintes. O Conselho tinha a intenção de se articular com as deputadas constituintes para, desse modo, ter a chance de incorporar ao novo texto constitucional direitos para as mulheres (PINTO, 2003, p. 74) – direitos esses que os movimentos feministas já reivindicavam há algum tempo no Brasil.

As integrantes do CNDM compreendiam que, para que elas pudessem alcançar uma verdadeira democracia, essa deveria necessariamente contemplar os direitos das mulheres e reconhecer a sua participação na sociedade brasileira. Desse modo, garantir seus direitos nesse momento era fundamental, pois a partir disso eles estariam assentados em bases constitucionais. Assim, elas tiveram a percepção de que não poderiam mais ficar relegadas à vida privada como sua única perspectiva de atuação na sociedade.

A partir do desenvolvimento de todo um trabalho no período pré-constituinte, principalmente nos anos de 1985 e 1986, foi elaborada a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, durante um Encontro Nacional da Mulher e Constituinte, organizado pelo CNDM em 26 de agosto de 1986, na cidade de Brasília. Esse encontro conseguiu reunir mais de duas mil mulheres de diferentes regiões do país e de várias categorias, como trabalhadoras rurais, urbanas, donas de casa, professoras, etc. Assim, ele conseguiu sintetizar as demandas de muitas mulheres brasileiras (GUEDES, 1989, p. 301).

Sendo assim, pode-se compreender que em agosto de 1986, a partir das campanhas “Constituinte sem mulher fica pela metade” e “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher”, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, tendo organizado um evento no Congresso Nacional, reuniu muitas mulheres de todas as regiões do país (LUZ; TERRA, 2021, p. 219). Elas viajaram até Brasília para aprovar a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes.

Essa Carta tem uma grande relevância enquanto documento histórico, pois

contemplou diversas demandas da população feminina daquele momento. Com a previsão de uma ampla plataforma de reivindicações, ela apresentava as principais propostas das mulheres brasileiras para a proposição de um novo ordenamento normativo, que deveria se responsabilizar em alcançar a igualdade entre homens e mulheres (TERRA, 2022).

Esse documento contempla, em linhas gerais, as principais demandas das mulheres brasileiras e das feministas da década de 1980, que já vinham sendo objeto de atuação de grupos envolvidos com os movimentos feministas desde antes disso. Conforme entendimento de Céli Regina Jardim Pinto, essa carta pode ser considerada como um dos documentos mais importantes elaborados pelo feminismo brasileiro contemporâneo (PINTO, 2003, p. 75).

Esse também é o entendimento de Silvia Pimentel, que aborda que a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes é “a mais ampla e profunda articulação reivindicatória feminina brasileira. Não tem nada parecido. É marco histórico da práxis política da mulher, grandemente influenciada pela teoria e prática feministas” (PIMENTEL; BIANCHINI, 2021, p. 204). Assim, percebe-se a relevância desse documento para o feminismo brasileiro.

Dividida em duas partes, entre os princípios gerais e as reivindicações específicas, a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes contemplava as principais reivindicações das mulheres que não poderiam ser deixadas de fora pela nova Constituição Federal. O CNDM entendia que, para que houvesse um efetivo desempenho e aplicação do Princípio da Igualdade, era necessário que o novo texto constitucional estabelecesse preceitos legais que pudessem eliminar todas as formas de discriminação (PITANGUY, s.d).

Ainda na sua introdução, antes de dar início às suas propostas, esse documento trazia um alerta aos constituintes. Apresentava um trecho de uma carta de Abigail Adams para o seu marido, John Adams (constituinte norte-americano e segundo presidente dos Estados Unidos), em que ela destacava a importância da

sociedade se mobilizar na reconstrução do ordenamento jurídico, sendo que, para tanto, deveria ser dada a devida atenção às mulheres, pois estas não mais cumpririam leis que não ajudaram a formular. A partir dessa ideia, as brasileiras também exigiam que suas propostas fossem consideradas pelo novo texto constitucional que seria formulado (GUEDES, 1989, p. 301).

Nesse sentido, essa carta pode ser considerada um documento fundamental na história do feminismo brasileiro, sendo que nela foram apresentadas propostas das mulheres brasileiras para que houvesse uma ordenação normativa que igualasse os direitos entre homens e mulheres. Algumas das suas demandas ultrapassam os papéis que o Estado estava acostumado a desenvolver até então, sendo que o conceito de direitos humanos havia sido expandido e novas responsabilidades foram atribuídas ao governo (PITANGUY, s.d).

A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes estava dividida nos seguintes capítulos: 1. Princípios Gerais; 2. Reivindicações Específicas; 2.1. Família; 2.2. Trabalho; 2.3. Saúde; 2.4. Educação e Cultura; 2.5. Violência; 3. Questões Nacionais e Internacionais (PITANGUY, 2019, p. 87-88).

Assim, esse documento tratava desde os temas mais específicos a respeito dos direitos das mulheres, como a igualdade de direitos entre os sexos na família, na sociedade e no trabalho, como temáticas envolvendo direitos contraceptivos e de interrupção da gravidez; até os temas considerados mais gerais, como a reforma agrária, a redemocratização do Estado e das instituições, dívida externa, autodeterminação dos povos, entre outros mais. Após a sua redação final, o documento foi publicado pelo CNDM e as mulheres o distribuíram por todos os estados do país (GUEDES, 1989, p. 301).

Sendo assim, pode-se compreender que a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes foi um documento que não se limitou às reivindicações específicas das mulheres, tendo abrangido questões muito mais amplas. Assim, também previa demandas gerais, que eram do interesse de toda a população brasileira,

tanto homens quanto mulheres. Através dessa carta, as mulheres aproveitaram para expressar com clareza as suas reivindicações para o novo texto constitucional que estava por vir.

Dois pontos dela podem ser considerados bastante originais, quais sejam: a violência contra a mulher e o direito ao aborto. No que se refere à questão da violência contra a mulher, há uma proposta bem detalhada acerca da defesa da sua integridade física e psíquica, sendo prevista uma redefinição da sua classificação penal, prevendo pena para o explorador sexual e requerendo a criação de delegacias especializadas para o atendimento de mulheres vítimas de violência em todas as regiões do país (PINTO, 1994, p. 224-226).

O outro tema original da Carta diz respeito ao direito ao aborto. Embora esse documento não tenha proposto explicitamente a sua legalização, apresentou proposta constitucional que possibilitaria uma abertura para discussões posteriores. Nesse sentido, foi previsto que seria garantido às mulheres o direito de conhecer e decidir sobre o seu próprio corpo (PINTO, 1994, p. 225-226).

Partindo da compreensão de que essas demandas tinham como objetivo construir um cenário social mais igualitário, visto que buscavam leis menos discriminatórias, é possível identificar aspectos feministas atravessando toda a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes. Esse documento, associado à estratégia de convencimento e do debate constitucional impulsionado pela participação das mulheres brasileiras, representou um importante marco na história do movimento feminista brasileiro e serviu de impulso para a ampliação dos direitos das mulheres.

REFERÊNCIAS

GUEDES, Nair Barbosa. Mulher, participação popular e constituinte. In:

MICHILES, Carlos. [et al.] Cidadão constituinte: a saga das emendas populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

LUZ, Cícero Krupp da. TERRA, Bibiana de Paiva. “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher”: A participação do movimento feminista no processo constituinte de 1987 e 1988. In: Carla Rosane da Silva Tavares Alves. João Pedro de Carvalho Silvello. Nariel Diotto. Roana Funke Goularte. Solange Beatriz Billig Garcês. (Orgs.). Pesquisa e Sociedade: Linguagens e Práticas Contemporâneas. Cruz Alta: Editora Ilustração, 2021.

PIMENTEL, Silvia; BIANCHINI, Alice. Feminismo(s). São Paulo: Matrioska, 2021.

PIMENTEL, Silvia. A mulher e a constituinte: uma contribuição ao debate. 2ª Ed. São Paulo: Cortez: EDUC, 1987.

PINTO, Céli Regina Jardim Pinto. Participação (Representação?) Política da Mulher no Brasil: Limites e Perspectivas. In: SAFFIOTI, Heleieth; MUÑOZVARGAS, Monica (Orgs.). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: NIPAS; Brasília: Unicef, 1994.

PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

PITANGUY, Jacqueline. A carta das mulheres brasileiras aos constituintes: memórias para o futuro. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

PITANGUY, Jacqueline. As mulheres e a Constituição de 1988. Disponível em: http://cepia.org.br/wp-content/uploads/2017/11/nov089.pdf. Acesso em: 12 jan. 2022.

TERRA, Bibiana. A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: o movimento feminista e a participação das mulheres no processo constituinte de 1987-1988. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

10 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Especialista em Direito Internacional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisadora, advogada (OAB/MG) e professora. E-mail: [email protected].

CIDADANIA FEMININA

Isadora Prévide Bernardo¹¹

O conceito de cidadania remete ao sujeito – cidadão e cidadã – que pertence a uma comunidade e possui um conjunto de direitos e deveres. A cidadania é um conceito moderno, começou a ser conquistada a partir das Revoluções do século XVIII, para homens burgueses.

Dessa forma, estabelece-se aqui o conceito de cidadania feminina a partir de uma perspectiva etimológica, político-filosófica e histórica. O que compreendemos hoje como cidadania é fruto de uma construção histórica.

Etimologicamente, o conceito de cidadania vem da palavra cidadão, que deriva do termo latino ciuis e desse derivou ciuitas. Em latim, ciuis “é um termo de companheirismo, implicando habitat e direitos políticos compartilhados. O sentido autêntico de ciuis não é “cidadão”, conforme supõe uma tradição rotineira, e sim “concidadão”” (BENVENISTE, 1995, p. 333). Mas é preciso considerar que a relação de concidadania se estabelecia entre homens, na Roma Antiga. Ciuis expressa a condição de homem livre, que nasceu em uma sociedade e possui direitos. Um escravo não é cidadão, a escravidão o coloca fora da comunidade. É preciso distinguir as diferenças entre os círculos de pertencimento do ciuis e do dominus, o primeiro se relacionando com a esfera social; o segundo, com a esfera do lar, da casa, na Roma Republicana. Benveniste assevera que domus significa sempre “casa” no sentido de “família”. “Na mesma ordem de ideias, observamos que domi, domum, domo significam apenas “em casa” (BENVENISTE, 1995, p. 296), com ou sem movimento, como ponto de partida ou de chegada. Esses advérbios opõem “em casa” ao que está fora (foras, fori) ou ao estrangeiro (peregre) ou ainda as ocupações habituais, os afazeres em tempo de paz, domi, à guerra, militiae (BENVENISTE, 1995, p. 296).

Domus tem dois termos derivados: domicilium e dominus. O dominus tem

autoridade sobre sua domus. Ele representa sua domus, em uma concepção social e moral. Porém, no período Imperial, Caracalla ampliou a cidadania romana a todos os homens livres do mundo romano. Ao mesmo tempo os poderes imperiais aumentavam e todos se transformavam em súditos do dominus, que era o imperador.

A política romana do período republicano foi modelo aos patriarcas fundadores dos Estados Unidos da América quando combinaram Senado e Câmara (que substituíram as assembleias). O voto secreto, em Roma, pode ser considerado a essência da liberdade cidadã. Funari assevera:

O Fórum pode ser considerado o símbolo maior de um sistema político com forte participação da cidadania. Lá, os magistrados defendiam seus pontos de vista e tentavam conseguir o apoio dos cidadãos. O poder dependia desse apoio, a tal ponto que grupos rivais competiam pelo controle dos lugares em que os cidadãos se reuniam. Os romanos tinham um conceito de cidadania muito fluido, aberto, aproximando-se do conceito moderno de forma decisiva (FUNARI, 2005, p. 76).

A conquista de direitos civis e políticos – em decorrência das revoluções liberais do século XVIII, isto é, da Independência dos Estados Unidos e da Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa (1789) e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – não pode ser entendida como uma conquista universal dos direitos à vida, à liberdade, à propriedade privada e ao voto.

Em 1790, o Barão de Condorcet escreve Sur l’admission des femmes au droit de cité (Sobre a admissão do direito à cidadania das mulheres), em que defende o direito à liberdade das mulheres e questiona:

Por exemplo, todos eles [os homens] não violaram o princípio da igualdade de direitos ao privar silenciosamente metade da raça humana de contribuir para a formação de leis, excluindo as mulheres da cidadania? (CONDORCET, 1790, s.p).

Assim como Condorcet observou a distinção entre os direitos de homens e mulheres – pois não eram universais, mas direitos para homens. Em 1791, Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze, escreveu a Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã como uma resposta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Em sua obra, as palavras homem e cidadão foram substituídas por mulher e cidadã. A autora argumenta que homem não compreendia o sentido de humanidade, logo, não contemplava as mulheres. Dessa forma, além de alterar a fórmula de enunciação, reformula artigos, faz interrogações retóricas e adota um tom questionador. Ao mesmo tempo em que questiona os homens, também chama as mulheres para acordarem e tomarem consciência de sua situação.

Gouges questiona a capacidade dos homens de serem justos e chama o direito feito por eles de tirânico. Ela enuncia que as mulheres são livres e possuem os mesmos direitos que os homens, ou seja, há igualdade. Ambos possuem os seguintes direitos: liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão. A mulher deve exercer seus direitos naturais. A lei deve ser a expressão da vontade geral e cidadãs e cidadãos devem contribuir para sua formação. Dessa forma, a autora reivindica, em sua obra, os direitos políticos às mulheres. Ademais, ao mesmo tempo que estabelece o rigor da lei em caso de crime, afirma que da mesma forma que a mulher tem “o direito de subir ao cadafalso; deve igualmente ter o direito de subir à tribuna” (GOUGES, 2010, p. 28). Ela defendia a ocupação de lugares em empregos, encargos, indústrias e na distribuição de dignidades.

Em um movimento semelhante, na Inglaterra, em 1792, Mary Wollstonecraft publica sua obra Reivindicação dos Direitos da Mulher. Nesta há uma defesa não apenas da igualdade entres homens e mulheres do direito à educação, como

também ao voto, à propriedade privada, à ocupação de cargos públicos, ao reconhecimento de filhos nascidos fora do matrimônio e à herança. Como uma leitora de Rousseau, a autora questiona pontos da obra do genebrino. Chama-se a atenção quando, sem citar o Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens, ela afirma: “Rousseau se esforça em provar que tudo estava certo originalmente; inúmeros autores, que tudo está certo agora; e eu, que tudo estará certo” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 33). Assim, Wollstonecraft vislumbra que as coisas estarão corretas quando os direitos das mulheres forem garantidos.

A obra e a luta de Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft inspiraram a brasileira Dionísia Pinto Lisboa, mais conhecida como Nísia Floresta. Em 1832 a brasileira publicou Direitos das mulheres e injustiça dos homens, que considerou uma tradução da obra Reivindicação dos Direitos da Mulher¹². Ainda no século XIX, em 1893, as mulheres votaram pela primeira vez na Nova Zelândia e, em 1919, puderam ser eleitas para o parlamento.

Os direitos sociais são decorrentes dos movimentos do século XIX e início do XX e dos seguintes textos: Manifesto Comunista (1848), a Constituição do México (1917) e a de Weimar (1919). Segundo Melo:

As Constituições Mexicana e de Weimar são as primeiras constituições sociais do século XX, inspirando o nascimento do welfare state ou, em outras palavras, do Estado Social de Direito. A primeira ao prever os direitos sociais; a segunda como o documento fundamental de feição social-democrata (MELO, 2016, p. 26).

No século XX, com a criação da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), houve a universalização de direitos civis, políticos econômicos, sociais e culturais, “todos indissoluvelmente ligados e interrelacionados, concebidos como indivisíveis e interdependentes” (MELO, 2016, p. 93). Diferentemente da Declaração de 1789, que falava em homens e

cidadãos, no século XX a Declaração fala em seres humanos, o que já demonstra uma mudança do ponto de vista linguístico e conceitual. Melo afirma sobre o artigo 21 que “esse é o artigo dos direitos políticos, com a soberania popular mediante a participação em eleições periódicas e legítimas, com o sufrágio universal e o voto secreto” (MELO, 2016, p. 105). Ainda em perspectiva internacional com repercussão em nosso ordenamento jurídico, é preciso considerar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, em vigor, no Brasil, com reservas ao artigo 15, § 4º e ao artigo 16, § 1º, a, c, g, h, em 1984 (MELO, 2016, p. 421). Em 1994 o Congresso Nacional revogou o antigo decreto e aprovou a Convenção com os artigos antes suprimidos. “A promulgação, por sua vez, demoraria 8 anos e ocorreu mediante Decreto 4.377, de 13 de setembro de 2002” (MELO, 2016, p. 421).

A capacidade de exercer os direitos políticos, civis e sociais no interior do Estado, garante a cidadania. Tomando a questão da cidadania feminina no Brasil, Nísia Floresta fez as primeiras reivindicações, defendeu a igualdade de talentos e de desempenho de atividades e defendeu o acesso às mulheres a uma educação emancipatória. Deve-se observar que em seu tempo estava vigente a Constituição de 1824, em que o sufrágio era censitário, isso é, havia um caráter econômico para o exercício da cidadania (BRASIL, 1824).

Bertha Lutz lutou pela garantia dos direitos políticos das mulheres em 1919, quando fundou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher. Em 1927, o Estado do Rio Grande Norte, elegeu Juvenal Lamartine, que contava com o apoio de Bertha Lutz e Carmem Velasco Portinho. Então,

antes mesmo de empossado, Lamartine solicitou a José Augusto Bezerra de Medeiros, o antecessor que ainda se encontrava em exercício de mandato, a inclusão de emenda que, por fim, constou das disposições transitórias do texto: “Art. 17. No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei” (RESENDE, 2021, p. 56-57).

Diante deste dispositivo legal, Mossoró teve a primeira eleitora brasileira. Foi a professora Celina Guimarães Viana. A vanguarda para o voto feminino no Brasil foi no Estado Rio Grande do Norte, enquanto, na América Latina, deve-se lembrar que o Uruguai, em 1927, admitiu o voto feminino.

Foi em 1932 que as mulheres tiveram o direito ao voto garantido, no Brasil, quando o Decreto nº 21.076 estabeleceu: Art. 2º “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste Código” e Art. 56 “O sistema de eleição é o do sufrágio universal direto, voto secreto e representação proporcional” (BRASIL, Decreto nº 21.076, 1932). Sabe-se que isso não foi suficiente para que as mulheres tivessem voz na política, pois, até a contemporaneidade há uma baixa representatividade de mulheres em cargos eletivos. A Constituição de 1934 além de estabelecer o voto feminino, reduziu para 18 anos a idade para o exercício desse.

Com a Constituição de 1988 e a redemocratização tivemos a garantia de igualdade: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (BRASIL, art. 5º, §1º, 1988). Os direitos civis de homens e mulheres foram igualados também, quando se estabeleceu “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (BRASIL, art. 226, § 5º, 1988). Tivemos a garantia de direitos civis, políticos e sociais universais e iguais. A igualdade de direitos e deveres propicia um ponto de partida igual para a luta. Sabe-se do machismo, sexismo e patriarcalismo arraigado na sociedade brasileira. Mas, desde 1988 há mecanismos que nos garantem a criação de um espaço de luta, debates sociais, em que podemos buscar mais representatividade. Participar das decisões políticas e ter existência social alimentam o vínculo de pertencimento, os princípios democráticos e a consciência sobre direitos e deveres. Assim, há espaço para o exercício de uma cidadania feminina. Temporalmente, no Brasil, quando falamos de cidadania feminina, estamos diante de apenas 34 anos de história em que ela pode ser exercida.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 10 fev. 2022.

BRASIL. Constituição Politica do Imperio do Brazil, 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm Acesso em: 10 fev. 2022.

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CONDORCET, Marquês de. Sur l’admission des femmes au droit de cité. 1790. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/essentiels/anthologie/admission-femmesdroit-cite. Acesso em: 01 fev. 2022.

FUNARI, Pedro. Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). História da Cidadania. São Paulo: Contexto. 2005.

GOUGES, Olympe de. Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã. Trad. Isabel Robalinho. Funchal: Nova Delphi, 2010.

MELO, Fabiano Gonçalves Oliveira. Direitos humanos. São Paulo: Método, 2016.

RESENDE, Letícia Maria de Maia. Mulheres nos espaços de decisão: mecanismos afirmativos e paridade de gênero na política institucional do Brasil contemporâneo. 2021. 292 p. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito do Sul de Minas, 2021.

WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos Direitos da Mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.

11 Bacharela em Letras Latim-Português (FFLCH-USP); Licenciada em Filosofia; Mestre e Doutora em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Professora convidada de cursos de Pós-Graduação lato sensu e stricto sensu. E-mail: [email protected]

12 “Porém, de acordo com a historiadora Maria Lucia Garcia Pallares Burke a obra “seria a tradução de Woman not Inferior to Man, de autoria desconhecida (publicada sob o pseudônimo de “Sophia”) e, por sua vez, composta de trechos retirados de De l’égalité des deux sexes, discours physique et moral où l’on voit l’importance de se défaire des préjugés, originalmente publicado em 1673 por Franóis Poullain de La Barre” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 15).

CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER¹³

Bibiana Terra¹⁴

Na década de 1980, com os esforços da sociedade brasileira pela volta da democracia, os movimentos feministas, naquele contexto, deram início a uma fase de efervescência nas suas reivindicações pelos direitos das mulheres, fortalecendo e ampliando suas lutas (PINTO, 2010). Além disso, no Brasil, havia uma pauta que estava em evidência naquele momento, qual seja, a possibilidade da criação de uma nova Constituição Federal.

Nessa conjuntura, uma parte do grupo das feministas tinha a compreensão de que elas não podiam perder a oportunidade de participar da constituinte e, desse modo, elas passaram a se articular para que fosse criado um órgão de âmbito federal que atuasse como um ministério e que desenvolvesse políticas públicas focadas exclusivamente para a população feminina, para garantir os seus direitos e ouvir as suas demandas (PITANGUY, 2018).

Diante disso, durante as mobilizações das campanhas pelas Diretas-Já, que haviam se iniciado desde 1983, e da instituição do Movimento de Mulheres pelas Diretas-Já, foi criado, no ano de 1985, o órgão que ficou denominado de Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). Esse tratava-se de um Conselho de âmbito federal e nasceu da iniciativa de 40 mulheres do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), que procuraram Tancredo Neves, quando esse ainda era candidato à presidência do Brasil, para obterem dele a garantia da instauração de um órgão estatal para cuidar dos direitos das mulheres. Com a sua morte, o vice-presidente José Sarney assumiu a presidência e manteve a promessa, tendo então criado o CNDM (PINTO, 2003).

Sendo assim, em 1985 o governo federal, através de Sarney, criou esse Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que se tornaria, em determinado momento, um importante instrumento de mobilização das mulheres e dos movimentos feministas por suas reivindicações. Esse órgão traria inúmeros direitos para as

brasileiras, ampliando a cidadania feminina. Nesse sentido, ele contribuiu de forma significativa para que as feministas passassem a ocupar espaços institucionais e foi fundamental para as discussões que antecederam a Assembleia Nacional Constituinte em 1987 e 1988 (PITANGUY, 2019).

Assim, já de início, desde o momento de sua criação, é possível compreender que esse órgão revolucionou e, posteriormente durante o processo constituinte, revolucionaria, ainda mais, a participação e representação das mulheres brasileiras, dando abertura para que elas dialogassem e apresentassem suas pautas e demandas em espaços estatais. A sua criação foi muito importante para as mulheres e as feministas do país, pois colocou, nacionalmente, as discussões acerca dos direitos das mulheres em destaque, pois este tratava-se de um órgão de nível federal e que ficou amplamente conhecido.

O CNDM se organizou através de comissões por áreas de trabalho, envolvendo temas como violência de gênero, saúde, educação, cultura, mulher negra, mulher rural, entre outras. A sua criação, em agosto de 1985, se deu através da Lei 7.353 (BRASIL, 1985), que o definia como sendo um órgão federal com autonomia administrativa e orçamento próprio e que respondia diretamente ao Presidente da República, a quem cabia a nomeação de sua presidenta.

A sua formação atendeu à demanda dos movimentos de mulheres e feministas que consideravam importante, para a reconstrução das instituições políticas democráticas e para a sua participação posterior na constituinte, que fosse proposta uma agenda de igualdade de direitos entre homens e mulheres e que esta fosse compatível de ser implementada por um órgão federal dotado de autonomia (PITANGUY, 2019). Diante disso, elas lograram êxito, sendo que o CNDM foi aprovado e criado em agosto de 1985.

A criação desse espaço institucional pode ser considerada como uma grande vitória por parte dos movimentos feministas e de mulheres preocupadas com seus direitos, sendo um marco muito importante para a ampliação das suas

participações na política brasileira.

Vinculado ao Ministério da Justiça, o CNDM respondia, no entanto, à Presidência da República. Tinha como finalidade promover, em âmbito nacional, políticas para a eliminação da discriminação contra a mulher, “assegurando-lhe condições de liberdade e de igualdade de direitos”. Entre suas competências estavam a formulação de políticas para a “eliminação das discriminações que atingem a mulher”, a assessoria ao poder Executivo e a proposição de medidas “nas questões que atingem a mulher”, além da sugestão de projetos de lei à Presidência (...) (Lei 7.353, de 1985), expondo linguagens e preocupações presentes nos feminismos brasileiros naquele momento (BIROLI, 2018, p. 181).

O CNDM era composto por diferentes mulheres que integravam os movimentos feministas, sendo que podem ser citadas mulheres de grande renome dentro desses movimentos, tais como Lélia Gonzalez, Rose Marie Muraro, Jacqueline Pitanguy e a deputada estadual Ruth Escobar – a primeira mulher a presidi-lo, no momento de sua criação em 1985. Posteriormente a socióloga Jacqueline Pitanguy seria a sua presidenta, tendo atuado durante o período da Assembleia Nacional Constituinte em 1987 e 1988 (BIROLI, 2018).

Desde o momento em que este órgão foi criado, um dos principais cuidados que o Conselho Nacional teve foi o de planejar um programa que estivesse voltado para o novo processo constituinte que em breve seria instaurado. Para tanto, o CNDM lançou, em 1985, a campanha nacional “Mulher e Constituinte”, que era amplamente divulgada através dos slogans “Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher” e “Constituinte para valer tem que ter Direitos da Mulher” (LUZ; TERRA, 2021).

Esses dois slogans resumiam bem quais os objetivos das feministas e das mulheres brasileiras para aquele momento (LUZ; TERRA, 2021). Inspiradas por essas mensagens, elas passariam os meses antecedentes a constituinte se reunindo, estudando e debatendo suas principais reivindicações para o novo

texto constitucional que passaria a ser redigido (PIMENTEL, 1987).

Desde que essas campanhas passaram a ser lançadas, as integrantes do CNDM se organizaram e começaram a viajar para diversos estados do Brasil com o objetivo de ouvir diferentes mulheres brasileiras e registrar quais eram as suas principais demandas para a constituinte. Nesse sentido, através dessas ações, elas ampliaram os canais de comunicação entre os movimentos sociais e os mecanismos de decisão política, pois compreendiam que dessa maneira elas conseguiriam uma real aproximação entre os movimentos feministas e as diferentes mulheres da sociedade civil (PITANGUY, 2019).

Assim, com essa comunicação mais facilitada entre elas, poderia haver uma compreensão mais ampla de quais eram as suas principais reivindicações para aquele momento (PITANGUY, 2019). Diante disso, pode-se compreender que as campanhas nacionais “Mulher e Constituinte”, para demandar os direitos das mulheres na nova Constituição Federal, tiveram seu início através da organização de eventos em diferentes cidades do país, pois havia um objetivo de que fossem alcançadas o maior número de mulheres possível, bem como de que diferentes demandas fossem ouvidas, pois diferentes mulheres tinham diferentes reivindicações (LUZ; TERRA, 2021).

O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, nesse sentido, se articulou com os movimentos de mulheres, com outros grupos de feministas e com entidades locais da sociedade civil, como Conselhos de âmbito estadual e municipal, e com Assembleias Legislativas. Assim, fica demostrada a sua real preocupação em entender quais eram as principais demandas das mulheres para a constituinte (LUZ; TERRA, 2021).

Sendo assim, as articulações do CNDM com as deputadas mulheres durante esse período foram muito importantes, podendo ser considerada uma novidade no cenário político brasileiro. Além disso, essa foi a primeira vez, na história do país, em que houve a criação de um grupo suprapartidário de deputadas

constituintes que se articularam e ofereceram apoio a causa das mulheres (TERRA, 2022).

Ainda sobre o CNDM e sua atuação para a participação política das mulheres brasileiras, embora seja possível compreender que Conselho Nacional dos Direitos da Mulher tenha tido uma duração curta enquanto órgão de articulação das demandas das feministas e dos movimentos de mulheres em geral – sendo que o seu período de maior destaque foi o da constituinte, pois a sua efetiva atuação se deu entre o período de 1985 a 1989 – ele teve uma atuação exitosa para as brasileiras e não pode ser esquecido e nem ignorado.

Com o governo Collor, o CNDM perdeu seu orçamento e passaram a ser indicadas para a direção e como conselheiras, na maioria das vezes, mulheres com pouca tradição no movimento feminista. Diferentemente do que havia acontecido em seus primeiros anos, mesmo com a chegada do PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira) – partido que abriga uma das mais históricas feministas brasileiras – ao governo, em 1994, o conselho não conseguiu recuperar o espaço que havia conquistado na década de 1980. Entre 1985 e 1989, o CNDM tratou de quase todos os temas que centralizavam a luta feminista brasileira, desde questões consensuais como a luta por creches até as polêmicas ligadas a sexualidade e direito reprodutivo. Entretanto, sua maior e mais bemsucedida intervenção aconteceu junto à Assembleia Nacional Constituinte, êxito concretizado na própria Constituição de 1988 (PINTO, 2003, p. 72).

Assim, pode-se compreender que o período de grande destaque do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher se deu durante a segunda metade da década de 1980, durante os trabalhos desempenhados para a Assembleia Nacional Constituinte, durante os anos de 1987 e 1988, sendo que posteriormente ele perderia, de maneira significativa, a sua força política (TERRA, 2021).

Apesar disso, a sua importância e relevância para as mulheres e as feministas brasileiras não é de forma alguma diminuída, sendo que esse imprimiu marcas

que podem ser até hoje visualizadas na representação e participação política feminina no Brasil, pois trouxe importantes conquistas para elas, tendo marcado a Constituição de 1988 e possibilitado que houvesse aberturas institucionais para as mulheres brasileiras.

REFERÊNCIAS

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LUZ, Cícero Krupp da; TERRA, Bibiana de Paiva. “Constituinte para valer tem que ter direitos da mulher”: A participação do movimento feminista no processo constituinte de 1987 e 1988. In: Carla Rosane da Silva Tavares Alves; João Pedro de Carvalho Silvello; Nariel Diotto; Roana Funke Goularte; Solange Beatriz Billig Garcês. (Orgs.). Pesquisa e Sociedade: Linguagens e Práticas Contemporâneas. Cruz Alta: Editora Ilustração, 2021.

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PITANGUY, Jacqueline. A carta das mulheres brasileiras aos constituintes: memórias para o futuro. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

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TERRA, Bibiana. O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988: a representação política que revolucionou os direitos das mulheres no Brasil. LexCult: revista eletrônica de direito e humanidades, [S.l.], v. 5, n. 3, p. 34-58, nov. 2021. Disponível em: http://lexcultccjf.trf2.jus.br/index.php/LexCult/article/view/565 Acesso em: 25 fev. 2022.

TERRA, Bibiana. A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: o movimento feminista e a participação das mulheres no processo constituinte de 1987-1988. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

13 O presente verbete, salvo pequenas alterações, faz parte e foi retirado do

artigo intitulado “O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988: a representação política que revolucionou os direitos das mulheres no Brasil” escrito por essa mesma autora e publicado no V. 05, N. 3, da Revista Lex Cult, em novembro de 2021. Disponível em: http://lexcultccjf.trf2.jus.br/index.php/LexCult/article/view/565 Acesso em: 25 fev. 2022.

14 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Especialista em Direito Internacional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisadora, advogada (OAB/MG) e professora. E-mail: [email protected].

CONSTITUCIONALISMO FEMINISTA

Melina Girardi Fachin¹⁵

Inúmeros movimentos vêm remodelando o panorama contemporâneo do direito constitucional, possibilitando a formação de um contexto de (des)construção do discurso tradicional, fomentada por movimentos críticos, especialmente do constitucionalismo periférico. Estes caminhos que se abrem, plurais e diversos entre si, compartilham a insatisfação com o discurso constitucional hegemônico, constituído no paradigma moderno, em cumprir com muitas das promessas constitucionais.

Dentre os temas que revelam essa frustração destaca-se a desigualdade histórica e estrutural entre homens e mulheres, que persiste com maior ou menor intensidade em diferentes realidades (MACKINNON, 2012). É neste espaço que as abordagens do chamado constitucionalismo feminista surgem (BAINES; RUBIO-MARÍN, 2004) e tem se intensificado cada vez mais (BAINES; BARAK-EREZ; KAHANA, 2012). Na região latino-americana, marcada pelo androcentrismo, diversas iniciativas têm se formado em prol desta reconstrução (DA SILVA; BARBOZA; FACHIN, 2019 e 2020).

Ainda que seja um movimento diverso, complexo e miscigenado, com abordagens metodológicas e enfoques diversos, aplicado aos mais variados contextos, há um norte comum nas abordagens do constitucionalismo feminista: reivindicar o poder fundamental de redefinir as experiências constitucionais a partir de uma visão de gênero. Nossas reflexões orbitam, assim, em torno da das desigualdades e subordinação das mulheres, tendo como objeto de denúncia e análise as assimetrias de poder entre os gêneros e ponto de convergência a crítica ao patriarcado.

O constitucionalismo tradicional foi – e ainda é em alguma medida – um movimento sem mulheres. Nós fomos excluídas, esquecidas, invisibilizadas e caladas. O direito constitucional foi, desde a modernidade, construído e

projetado para um sujeito abstrato de sexo bem definido: o masculino.

O discurso constitucional nasce e se mantem indiferente às diferenças refletidas no tratamento díspar no acesso a serviços e bens, trabalho, segurança, participação política e mesmo na estrutura e formação do direito (BAINES, BARAK-EREZ; KAHANA, 2012). Como consequência, verifica-se, ainda, em diferentes tradições constitucionais, padrão de discriminação estrutural (CRENSHAW, 1991) em relação ao feminino, inerente inclusive às estruturas e mecanismos jurídico-constitucionais, institucionalizada em todos os âmbitos das sociedades.

O direito constitucional clássico é, portanto, um direito de exclusões. É um campo a ser transgredido – no sentido de atravessar, ir além dos limites. O desafio do constitucionalismo feminista é justamente quebrar o silêncio imposto às mulheres por tanto tempo na teoria constitucional e nos espaços de poder que definem a Constituição. Precisamos construir uma história constitucional que nos inclua, uma Constituição na qual nossa história possa ser contada (SOLNNIT, 2020).

Para edificar um direito constitucional feminista é necessário o protagonismo das mulheres, afinal, nada sobre nós será pensado sem a nossa participação. Assim, o primeiro passo que se coloca é de evidenciar as mulheres que fizeram e fazem o direito constitucional. É, em certa medida, um exercício de resgate constitucional das constitucionalistas que foram silenciadas, recusadas e olvidadas. Recompor esta paisagem feminal do direito constitucional, para além de fazer justiça com legado de importantes pensadoras como Mary Wollstonecraft, Olympe de Gouges e Simone de Beauvoir, nos inspira para avançar.

A coragem é contagiosa e esse inventário das constitucionalistas nos anima para repensar o direito constitucional por mulheres e para as mulheres. Esta viragem paradigmática não é apenas dos sujeitos constitucionais, mas da própria visão da

Constituição, aqui compreendida de modo amplo e não apenas na sua expressão normativa. Ver o direito constitucional pelas lentes do feminismo - aqui entendido como igualdade social, política e econômica entre os sexos (ADICHIE, 2015) - traz uma virada epistemológica que amplia a latitude e seus fundamentos, propondo uma revisão crítica de suas estruturas.

Quanto à latitude, o constitucionalismo feminista representa um desafio global, rompendo com a visão exclusivamente estatal do fenômeno constitucional, abrindo-o para uma dimensão transversal, integrada, comparada e multinível (SLAUGHTER, 2003). Isto não significa que haja uma universalidade constitucional, mas os diálogos entre diferentes experiências constitucionais (PIOVESAN, 2013) permitem demonstrar o caráter estrutural da opressão e estabelecer uma perspectiva mais ampla. Assim, lança-se luz, por meio de comparações (JACKSON, 2010), sobre os diferentes papéis que a Constituição desempenha em relação à justiça de gênero (NUSSBAUM, 2001).

Não há como pensar na proteção constitucional das mulheres desconsiderando o legado da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), na voz de sua interpretação autorizada feita pelo Comitê específico. Na região americana, destaque para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará) e sua interpretação evolutiva feita pelos órgãos do sistema interamericano – Comissão e Corte. Sob a perspectiva de gênero, o sistema interamericano tem tido a força catalizadora de propiciar avanços seja no campo normativo, seja no campo das políticas públicas (ANTONIAZZI, 2017), fortalecendo a proteção dos direitos humanos das mulheres.

Além desta abertura, o constitucionalismo feminista também provoca mudanças quanto aos fundamentos da teoria constitucional. Os princípios da igualdade e da não discriminação ganham novos contornos com a ideia central de diferença e alteridade (FRASER, 1997). O foco na diversidade é um dos aspectos mais evidentes de uma abordagem feminista do direito constitucional.

Se, para a concepção formal de igualdade, tal conceito é tomado tendo um ponto de partida abstrato, na concepção substancial, a igualdade é mirada como resultado, tendo como pressuposto as diferenças. Mostra-se, assim, essencial distinguir diferença e desigualdade. O constitucionalismo feminista afirma a igualdade com respeito à diversidade, o reconhecimento de identidades e o direito à diferença com base em uma plataforma emancipatória e igualitária.

No diálogo expansivo com o direito internacional, os constitucionalismos locais são instados a adotar diferentes perspectivas para realização do direito à igualdade e à não discriminação, identificando e reconhecendo as diferenças de gênero e garantindo que o tratamento dado não se traduza em um obstáculo para fruição de direitos das mulheres.

A diferença é reivindicada aqui em seu sentido plural: as desigualdades e a opressão vividas pelas mulheres não se limitam a um código binário homem/mulher, mas também abrangem raça, cultura e categorias de classe social (DAVIS, 2016). As mulheres não sofrem discriminação num vácuo, mas dentro de um contexto social, trazendo à tona o tema das interseccionalidades (AKOTIRENE, 2019). Com efeito, a discriminação das mulheres está indissociavelmente ligada a outros fatores tais como a raça, classe social, idade, origem étnica, orientação sexual. O constitucionalismo feminista não pretende incluir todos os aspectos da diversidade, mas contém uma chave epistemológica que os conecta com o constitucionalismo (MACKINNON, 2012).

Portanto, o constitucionalismo feminista transgride o direito constitucional clássico e hegemônico, desencadeando a expansão do discurso constitucional (plural, multinível e transversal) e reinstalando a diferença e a alteridade, em suas especificidades e multiplicidades, como seus fundamentos.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

ANTONIAZZI, Mariela Morales. O Sistema Interamericano e o impacto de sua jurisprudência. In: Seminário Internacional - Diálogo entre Cortes: fortalecimento da proteção dos direitos humanos. Brasília, ENFAM, 31 mar. 2017.

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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e diálogo jurisdicional no contexto latino-americano. In: Mariela Morales Antoniazzi; Armin von Bogdandy; Flávia Piovesan (Coord.). Estudos avançados de direitos humanos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.

SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Melina Girardi (Coord.). Constitucionalismo feminista. Vol 1. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

SILVA, Christine Oliveira Peter da; BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; FACHIN, Melina Girardi (Coord.). NOWAK, Bruna (Org.) Constitucionalismo feminista: expressão das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

SLAUGTHER, Anne-Marie. A Global Community of Courts. Harvard International Law Journal. v. 44. n. 1, 2003.

SOLNNIT, Rebecca. De quem é essa história? São Paulo: Cia das Letras, 2020.

15 Professora Adjunta dos Cursos de Graduação e Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estágio de pósdoutoramento pela Universidade de Coimbra no Instituto de direitos humanos e democracia (2019/2020). Doutora em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP.) Visiting researcher da Harvard Law School (2011). Mestre em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autora de diversas obras e artigos na seara do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, do Instituto dos Advogados do Paraná/IAP e da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Paraná - OAB/PR. Advogada sócia do bureau Fachin Advogados Associados.

CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER

Bibiana Terra¹

Considerada por grande parte da doutrina como uma “carta internacional dos direitos das mulheres” ou mesmo como uma “Declaração Universal dos Direitos da Mulher”, a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – mais conhecida pela sua sigla em inglês, CEDAW – surgiu em 1979, adotada pela Organização das Nações Unidas com o objetivo de proteger os direitos das mulheres (TOMAZONI; GOMES, 2015).

Essa Convenção entrou em vigor em 1981 e se fundamenta a partir de duas propostas gerais: a primeira delas, a de promover a busca pela igualdade de gênero, de modo a impulsionar os direitos das mulheres; e a segunda, a de reprimir todas as discriminações contra as mulheres nos Estados-parte. Assim, esse documento pode ser considerado como o primeiro tratado, de âmbito internacional, que sistematiza e prevê os direitos humanos das mulheres (PIMENTEL, s.d).

Cabe aqui destacar que a adoção da CEDAW se deu como resultado de décadas de esforços internacionais que tinham como objetivo promover e proteger os direitos humanos das mulheres em todo mundo, sendo essa uma grande preocupação da comunidade internacional. Nesse sentido, após uma série de iniciativas que vinham sendo tomadas por parte da Comissão de Status da Mulher, órgão da ONU, que promovia análises e recomendações sobre essa temática, houve a decisão de formular um tratado específico sobre os direitos humanos das mulheres, que formulasse políticas aos seus países signatários (PIMENTEL, s.d).

Sendo assim, pode-se compreender que a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher surgiu após décadas de debates e é considerada um marco muito importante na história dos direitos humanos e do direito internacional. Até o presente momento, o seu texto pode

ser compreendido como o documento internacional mais importante sobre os direitos humanos das mulheres (KYRILLOS, 2018).

Nesse sentido, cabe aqui destacar que a compreensão da CEDAW como uma Declaração Universal dos Direitos das Mulheres se deu pois o seu texto agrupa muitos princípios que já eram aceitos pelo direito internacional, além do fato dessa Declaração incluir diversos temas diferentes que englobam múltiplas áreas, tais como saúde, família, trabalho e educação (TOMAZONI; GOMES, 2015).

Diante disso, pode-se compreender que a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher apresenta uma característica bastante notória: ela abrange e recolhe, em um único texto, questões de diversas áreas que afetam a vida das mulheres. Assim, o seu texto se apresenta como a principal carta de direito internacional no que se refere aos direitos das mulheres (KYRILLOS, 2018).

A CEDAW é o único documento de tratado internacional que amplamente aborda os direitos humanos das mulheres. O seu texto pode ser considerado uma grande conquista para os movimentos de mulheres e feministas de todo o mundo, pois se apresenta como o único tratado que, especificamente, versa sobre diferentes vertentes dos direitos das mulheres, abrangendo questões de direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, dentre outros (SOUZA, 2009).

Conforme entendimento da teórica feminista Silvia Pimentel, a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher “simboliza o resultado de inúmeros avanços principiológicos normativos e políticos construídos nas últimas décadas, em grande esforço global de edificação de uma ordem internacional de respeito à dignidade de todo e qualquer ser humano” (PIMENTEL, s.d, p. 15).

Nesse sentido, a CEDAW se apresenta e pode ser compreendida como um parâmetro mínimo das ações estatais na proteção e promoção dos direitos humanos das mulheres, bem como na coibição às sus violações, seja no âmbito público ou privado (PIMENTEL, s.d). Com forte influência de âmbito internacional, essa Convenção tem grande relevância para as mulheres do mundo todo.

No seu texto, já de início, ainda no seu preâmbulo, essa Carta Internacional dos Direitos das Mulheres faz menção à Carta das Nações Unidas e à Declaração Universal dos Direitos Humanos. O texto, assim, reafirma a importância e relevância dos direitos humanos fundamentais, da igualdade entre todas as pessoas (sem distinção entre homens e mulheres) e acerca do princípio da dignidade da pessoa humana (CEDAW, 1979).

Fundamentando-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, ainda no seu início, destaca o seu menosprezo a qualquer tipo de discriminação, além de destacar a importância dos direitos e das liberdades individuais de todas as pessoas, sem quaisquer distinções (CEDAW, 1979).

Além disso, a Convenção ainda reitera que apesar de haver diversos instrumentos internacionais de direitos humanos, as mulheres continuam sendo alvo de muitas discriminações, sendo que essas podem ser compreendidas como entraves para as suas participações, no mesmo nível de igualdade que homens, em diferentes esferas de suas vidas. Por fim, ainda no seu preâmbulo, a CEDAW destaca sobre a sua intenção em “inaugurar uma nova era de proteção aos direitos das mulheres em nível global” (SOUZA, 2009, p. 351).

Acerca das discriminações sofridas pelas mulheres e que a CEDAW busca ressaltar, o seu conceito é apresentado já no 1º artigo do texto:

Artigo 1º: Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo (CEDAW, 1979, s.p).

Diante disso, a discriminação contra a mulher que a Convenção aborda ao longo de todo o seu texto pode ser compreendida como qualquer atitude que tenha o objetivo de coibir os seus direitos, de menosprezar a sua condição de mulher no que diz respeito aos direitos humanos, sociais, econômicos, políticos, culturais e civis, assim como quaisquer outros direitos que possam ser ameaçados. Nesse sentido, pode-se notar duas grandes propostas que a CEDAW apresenta, sendo elas a de promover os direitos das mulheres e a de buscar a efetivação da igualdade de gênero, de modo a eliminar todas as formas de discriminação contra elas.

Ainda, é importante também deixar destacado aqui que a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher não mencionou, especificamente, acerca da questão da violência contra as mulheres. Assim, ela ficou omissa em relação a esse problema, não tendo abordado temas considerados como da “esfera privada” da vida das mulheres (SOUZA, 2009, p. 353).

No entanto, isso acabou por impulsionar o Comitê da CEDAW, em janeiro de 1992 e através da Recomendação Geral nº 19, a se adequar para solucionar essa problemática. Assim, essa Recomendação trouxe como previsão essa questão e “passou a considerar o ato de violência, cometido tanto na esfera pública quanto na privada, uma maneira de discriminação contra a mulher, prevista no artigo 1º da Convenção tratada” (SOUZA, 2009, p. 353).

Tendo apresentado, ainda que de maneira ampla, acerca dessa Convenção, cabe destacar então que se pode compreender que o seu texto tem como um de seus objetivos principais sistematizar os direitos humanos das mulheres, de modo a romper com a visão pretensamente neutra e universal dos “direitos do homem”. A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher pode ser compreendida como um importante documento internacional de proteção dos direitos das mulheres.

REFERÊNCIAS

KYRILLOS, Gabriela de Moraes. Os direitos humanos das mulheres no Brasil a partir de uma análise interseccional de gênero e raça sobre a eficácia da convenção para a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW). 2018. 289p. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher - CEDAW. 18 dez. 1979. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4377.htm. Acesso em: 01 mar. 2022.

PIMENTEL, Silvia. Apresentação da Convençâo sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher – CEDAW. Instrumentos Internacionais de Direitos das Mulheres – ONU Mulheres. (Sem data) Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/ convencao_cedaw.pdf Acesso em: 01 mar. 2022.

SOUZA, Mércia Cardoso de Souza. A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e suas Implicações para o Direito Brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 5, 2009, p.

346-386.

TOMAZONI, Larissa; GOMES, Eduardo B. Afirmação histórica dos direitos humanos das mulheres no âmbito das Nações Unidas. Cadernos da Escola de Direito UNIBRASIL, Tarumã, v. 2, n. 23, p. 44-59, jul./dez. 2015.

16 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Especialista em Direito Internacional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisadora, advogada (OAB/MG) e professora. E-mail: [email protected].

CRIMINOLOGIAS FEMINISTAS

Carolina Costa Ferreira¹⁷

As Criminologias Feministas inspiram pesquisadoras de diversas partes do mundo a pensar sobre como os processos de criminalização impactam mulheres. Porém, como outras dimensões das chamadas Criminologias Críticas (FERREIRA, 2016), há diferentes significados para o termo Criminologias Feministas e, neste verbete, a perspectiva plural será adotada justamente para evidenciar a diversidade de pensamentos do campo criminológico crítico feminista.

Como se sabe, há muitos significados para “gênero”: o mais expressivo deles o traduz como a construção social sobre a identidade de uma pessoa. Simone de Beauvoir (2009), em sua célebre frase, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, aponta para os primeiros caminhos teóricos de formulação do conceito de gênero fundamentado na atribuição de papeis sociais compartilhados por homens e mulheres. Muitas feministas brancas seguiram o mesmo caminho, aprimorando tal conceito. Aos homens, destinar-se-ia o espaço público – o estudo, o exercício de uma profissão bem remunerada e com destaque perante a sociedade, enquanto às mulheres destinar-se-iam as funções de cuidado e de administração do lar – maternidade, criação de filhos, economia doméstica. Joan Scott refletiu sobre o conceito de gênero, em texto-referência escrito em 1986 e republicado em 1999, para dizer que gênero é “(1) uma categoria de análise desenvolvida de forma a incluir; (2) o leque existente entre os papeis sexuais e no simbolismo sexual; (3) o conjunto de ideias resultantes das distinções fundamentalmente sociais baseadas no sexo”.

Para feministas negras, a discussão sobre o acesso ao espaço público não fazia sentido; mulheres negras têm seus corpos historicamente explorados e não são consideradas cuidadoras de suas próprias casas; seus direitos sexuais reprodutivos são sucessivamente violados. Angela Davis demonstra essa diferença de compreensão ao analisar o fenômeno das “sufragistas” nos Estados Unidos, que não reconheciam direitos humanos, sociais e políticos de mulheres negras na mesma proporção que lutavam pelos direitos das mulheres brancas

(DAVIS, 2016, P. 57-78).

Os movimentos feministas se consolidam ao longo de todo o século XX e, nas décadas de 1980 e 1990, encontram-se, no Brasil, com as Criminologias Críticas, que se articularam como um campo científico fundado na crítica às questões de classe. A “criminalização da pobreza” é um conceito muito utilizado pelos criminólogos críticos, que se inspiraram nas ideias marxistas para a reflexão sobre os impactos do sistema capitalista na atuação do sistema de justiça. Como representação deste campo, podemos citar “A Criminologia Radical”, de Juarez Cirino dos Santos, e “Introdução crítica ao Direito Penal”, de Nilo Batista.

Entre os anos 1980 e 1990, com a redemocratização do Estado Brasileiro, o encontro entre Criminologias Críticas e os Feminismos foi inevitável, e se consolidou com o trabalho intitulado “Criminologia e Feminismo”, fruto de um evento realizado na Universidade Federal de Santa Catarina, que contou com a participação – oral e em forma de textos – dos professores Alessandro Baratta, Vera Regina Pereira de Andrade e Lênio Streck, sob a coordenação de Carmen Hein de Campos, nome muito importante para o desenvolvimento das Criminologias Feministas no Brasil. Neste livro, as autoras e os autores discorrem sobre o paradigma do gênero na construção do pensamento criminológico crítico e a posição da mulher como vítima do sistema de justiça criminal.

Podemos dizer que a potência deste encontro é sentida – e tensionada – até hoje. O campo criminológico crítico, majoritariamente branco¹⁸ e masculino, tinha dificuldades em compreender como os Feminismos poderiam dialogar com as Criminologias. Nesse sentido, uma aproximação de orientandas da Profa. Vera Regina Pereira de Andrade, como Carmen Hein de Campos, Ela Wiecko Volkmer de Castilho, Marília Montenegro Pessoa de Mello, Fernanda Martins e pesquisadoras com outras trajetórias como Luanna Tomaz vão permitir uma maior perspectiva ao debate de gênero. Tais pesquisadoras aproximam conceitos de performatividade de Judith Butler para compreender em que medida a ideia de ser um homem ou uma mulher acaba por excluir os chamados “desviantes”,

como as pessoas LGBTQIA+ (BUTLER, 2010, p. 20). Considerando que o processo de construção da identidade ocorre em um meio opressor, e parte de uma raiz heteronormativa, aqueles que se opõem à identidade apresentada se sentem limitados em seus direitos, devendo lutar contra a opressão que enfrentam por se desviarem das normas “ideais” de gênero. No campo criminológico, quando tais corpos encontram o poder punitivo, são “corpos matáveis”, na lição de biopoder de Michel Foucault, ou corpos criminalizáveis, abjetos, que não merecem reconhecimento como vítimas.

Entre os anos 2000 e 2010, os temas mais discutidos pelas pesquisadoras criminólogas feministas se referem à criminalização de mulheres no sistema de justiça. Com a política criminal de drogas evidenciada pela Lei nº 11.343/2006, a temática do encarceramento feminino reúne muitos estudos, desde a discussão sobre a produção legislativa necessária para diminuir os impactos do exercício da maternidade no cárcere até a investigação sobre os diversos processos de criminalização que são determinados às mulheres. Direitos sexuais e reprodutivos também são pauta, como a (des)criminalização do aborto, além de um novo sistema normativo de proteção das mulheres, em razão da aprovação da Lei nº 11.340/2006 – a Lei Maria da Penha.

A aprovação da Lei Maria da Penha é uma boa forma de se pensar sobre as Criminologias Feministas, já que sua elaboração foi iniciada e totalmente acompanhada por um consórcio de organizações não-governamentais feministas que, até os dias de hoje, se reúne sob o nome de “Consórcio Lei Maria da Penha”. A participação feminista na elaboração normativa, sobretudo de criminólogas feministas abolicionistas, é de importante relevo para que compreendamos que a Lei Maria da Penha não pretende a criminalização de novas condutas, mas, sim, a organização de políticas públicas de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. No entanto, como nos ensina Álvaro Pires em seu conceito de “racionalidade penal moderna”, a Lei Maria da Penha foi capturada pelo sistema penal e sua única porta de entrada se tornou a Delegacia de Polícia, moldando toda a compreensão que homens e mulheres possuem do alcance da lei.

Um outro tema muito frequente nos debates criminológicos críticos feministas é a morte violenta de mulheres por razões de gênero – os feminicídios. Com a aprovação da Lei nº 13.104/2015, que incluiu o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, há visibilidade empírica às mortes de mulheres, fruto da violência patriarcal. Quando nos aprofundamos nos dados, percebemos que mulheres negras são vítimas de feminicídio com mais frequência do que mulheres brancas. Esse é o maior desafio da chamada “quarta onda” ou da definição de “Feminismos”, plurais, no século XXI: uma visão interseccional, que indique a seletividade penal por meio das lentes de gênero, raça e classe. Esse é o maior desafio das Criminologias Feministas, atualmente: ampliar as lentes, de forma interseccional, para os mais diversos problemas sociais e político-criminais.

Assim, na produção de conhecimento sobre Gênero e Feminismos, quando se inserem as Criminologias Feministas como Criminologias Críticas, é preciso dar espaço de fala às mulheres negras. É preciso evidenciar a invisibilidade de certos espaços de fala às suas demandas e refletir sobre possibilidades, desde a epistemologia comprometida com a transformação social à ponta mais concreta: a definição de direitos por meio da lei. Dessa forma, todas as ideias trazidas neste texto tentarão dialogar – ainda com a dificuldade evidente de uma mulher branca, formada sem as definições de interseccionalidade vividas ou aprendidas desde os primeiros passos da graduação em Direito¹ . Porém, como nos lembra Katherine Bartlett, “as feministas devem ser capazes de desconstruir e construir conhecimento”³⁷.

Avançando no sentido do pensamento feminista, amarrado às questões da interseccionalidade, focando-se na realidade brasileira, percebe-se o reforço da crítica à violência estrutural do sistema penal por meio do discurso criminológico feminista, que buscou reformular teorias marcadas por parâmetros opressores que legitimam a inferioridade da mulher seja no lugar de vítima, ou autora no sistema de justiça criminal (ANDRADE, 2017). A criminologia crítica questiona o “sistema de controle do desvio social, revelando a contradição fundamental entre igualdade formal dos sujeitos de direito e desigualdade substancial dos indivíduos” (CAMPOS, 1999, p. 14); por outro lado, a chamada criminologia feminista revelou que, para além de uma visão crítica sobre a

seletividade do sistema penal, é necessário reconhecer que este advém de um sistema patriarcal, que invisibiliza a vítima em suas questões de gênero. Dessa forma, enquanto as Criminologias Críticas lutam em prol do abolicionismo e controle penal, alguns ramos das teorias feministas buscam a criminalização das condutas com o intuito de proteger as mulheres, vítimas de um sistema violador de direitos (BARATTA, 1999, p. 15). O termo “Criminologia Feminista” surge como uma resposta ao discurso criminológico, tido como androcêntrico (visão do mundo a partir de um modelo masculino), tanto na teoria como na prática; assim, ao colocar a mulher como foco dos estudos, instiga a crítica ao sistema de justiça, assumindo ela o papel de vítima ou autora dos delitos (CAMPOS, 1998, p. 51).

Vera Regina Pereira de Andrade (2013) critica a legitimação do sistema penal trazida por teorias feministas, quando o movimento deveria seguir caminho inverso à criminalização. A autora entende que o correto seria propor soluções que não contribuíssem com um sistema de base patriarcal, que por sua vez colabora para a manutenção das relações hierárquicas de poder gerando um ciclo sem fim de opressão e discriminação, justamente os objetos de desconstrução do movimento feminista como um todo.

Diante de um sistema estruturado na moral patriarcal, os feminismos foram os principais instrumentos de conscientização das mulheres quanto à necessidade de inserção da mulher como figura ativa no espaço político. Assim, as Criminologias Feministas têm o importante papel de dar visibilidade às mulheres, como sujeito ativo e passivo do crime, ao mesmo tempo em que são responsáveis, uma vez que originadas das Criminologias Críticas, por propor métodos alternativos à punição.

Portanto, não há um Feminismo, mas Feminismos, plurais, com premissas e lutas específicas, assim como não há apenas uma Criminologia, mas muitas Criminologias. É importante, assim, para os componentes do sistema de justiça, conhecer as vertentes dos múltiplos Feminismos para que, quando provocados, conhecer as formas de seu manejo para a efetivação de interesses e de direitos

das mulheres.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

BARTLETT, Katherine T. Métodos jurídicos feministas. In: FERNÁNDEZ, Marisol; MORALES, Félix. Métodos feministas en el Derecho: aproximaciones críticas a la jurisprudencia peruana. Lima: Palestra Editores, 2011.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

CAMPOS, Carmen Hein de (org). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.

CAMPOS, Carmen Hein de. O discurso feminista criminalizante no Brasil: limites e possibilidades. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 1998.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

FERREIRA, Carolina Costa. Os caminhos das Criminologias Críticas: uma revisão bibliográfica. Revista de Criminologias e Políticas Criminais. V. 2, n. 2, 2016, p. 171-192. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistacpc/article/view/1463 Acesso em 23 mar. 2022.

FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para a Criminologia Crítica brasileira: poder, racismo e direito no centro da roda. Caderno do CEAS, Salvador, 2016, p. 488-499. Disponível em: https://bradonegro.com/content/arquivo/12122018_112524.pdf Acesso em 29 mar. 2022.

GINDRI, Eduarda Toscani. As disputas dóxicas no campo da Revista Discursos Sediciosos. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília. Brasília, 2018. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/32661 Acesso em 29 mar. 2022.

SCOTT, Joan Wallach. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. In: SCOTT, Joan n. 238, 2016, Wallach. Gender and the politics of history. New York, Columbia University Press, 1999, p. 28-50.

17 Doutora e Mestra em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Graduada em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP - Franca). Professora do Programa de PósGraduação em Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino,

Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Professora da Graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (CEUB). Líder do Grupo de Pesquisa Observatório de Direitos Humanos (CNPq/IDP). Advogada criminalista.

18 Para um maior aprofundamento sobre este assunto, ver a dissertação de Mestrado de Eduarda Gindri (2018) e o texto de Felipe Freitas (2016).

19 A crítica à (falta de) pensamento interseccional nos cursos de Direito renderia outro texto.

CULTURA DO ESTUPRO

Jaqueline Bianca Silva²

O termo “cultura do estupro” surgiu entre os anos 1960 e 1970, quando mobilizações feministas nos Estados Unidos da América, Europa e Brasil fora materializado na constante culpabilização, parcial ou inteiramente, das vítimas e, a naturalização da violência ante a objetificação da mulher. O estupro não é, necessariamente, algo ligado ao desejo sexual dos homens frente as mulheres, mas, ao poder e dominação (LEMOS, 2019). Nesse sentido, Susan Brownmiller sustenta que o estupro é um mecanismo de controle historicamente difundido, mas amplamente ignorado, mantido por instituições patriarcais e relações sociais (como exemplos, falas cotidianas, pretensa casa segura, filmes, séries, músicas, meio artístico, condutas em transporte público, dentre outros) que reforçam a dominação masculina e a subjugação feminina (VITO; GILL; SHORT, 2009).

Diante disso, ainda, necessário acrescentar que, o estupro já fora significativo no início da década de 1990 diante o uso de campos de concentração sérvios, limpeza étnica e estupro sistemático de mulheres muçulmanas (Foca, cidade do sudeste da Bósnia-Herzegóvina, depois rebatizada de Srbinje, foi o local onde mulheres foram submetidas a um regime brutal de estupro). O estupro ou a ameaça de estupro é uma das armas mais destrutivas de um conflito armado, vez que tem a capacidade de desmoralizar um grupo conquistado (gerar trauma, vergonha, inibir casamentos, e etc.), mas também servir como forma de controle social, suprimindo os esforços de resistência de um grupo conquistado (exemplo quando vítimas são violadas, mortas e expostas ao público como lembrete) (VITO; GILL; SHORT, 2009). A camada dominadora transforma corpos nãoaceitos em corpos submissos, mas não apenas para fazer o que se espera, mas para operar como se quer.

Assim, verifica-se que o estupro está presente nas diferenças culturais, religiosas, raciais e geopolíticas, podendo ocasionar consequências psicológicas, exclusão/crítica social e éticas. À vista disso, no Brasil, foi publicado o Código Penal em 1940, que entrou em vigor no ano de 1942, passando o Título ser denominado “Crime contra os costumes” e o Capítulo “Dos crimes contra a

liberdade sexual”. O crime de estupro passou a ser definido até o ano de 2008 como o ato de “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” (BRASIL, 1940), ou seja, qualquer outro tipo de violência sexual enquadrava-se como “atentado violento ao pudor”, conforme artigo 214 e seguintes (BRASIL, 1940). Desta forma, observa-se que o direito penal escrito por homens protegia a conservação social, no qual o termo “costumes”, no sentido restrito, era empregado aos hábitos da vida sexual aprovados pela moral e disciplinas sociais (HUNGRIA; LACERDA, 1959).

A partir da alteração do texto do Código Penal realizada na data 07 de agosto de 2009, que modificou o Título para “Dos crimes contra a dignidade sexual”, incluindo no artigo 213 “praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (BRASIL, 2009), passou a ser considerado estupro qualquer outro ato libidinoso além do coito vaginal (COULOURIS, 2010). Deste modo, a construção legal do crime de estupro perpassa por âmbitos sociais as quais delega à mulher a condição de inferiorizada nas relações de poder, seja descredibilizando seu relato como vítima (limitado as marcas físicas, tipos de vestimentas, e etc.), ou, tornando-as rés dos procedimentos de investigações/produção da verdade (COULOURIS, 2010). Como exemplos, dentre tantos outros, os fatos ocorridos entre o diretor teatral Gerald Thomas e a repórter Nicole Bahls, bem como, do empresário André de Camargo Aranha e a influenciadora digital Mariana Ferrer.

No primeiro caso, Nicole Bahs sofrera uma violação ao seu corpo publicamente, quando Gerald Thomas colocou, insistentemente, a mão por debaixo do seu vestido sem o devido consentimento. Todavia, a grande repercussão no setor midiático diante o ocorrido fora, majoritariamente, contendido apenas como uma situação de constrangimento, incômodo e indiscrição em função do corpo de Nicole Bahs estar em constante evidência em suas atividades profissionais. Nicole Bahs não formalizou queixa contra seu agressor por entender que o episódio fazia parte do contexto do programa e ela tinha de aprender a separar a pessoa do personagem. Portanto, além de haver necessidade de se encaixar em todos os padrões culturais de gênero em torno do que é ser e como ser mulher ditados, muitas vezes, por homens, ainda, possui a agravante da negação do próprio reconhecimento como indivíduo, quando reconheceu que a agressão

fizera parte de um papel interpretativo (ROST; VIEIRA, 2015).

O segundo caso, de Mariana Ferrer e André de Camargo Aranha, ocorrido no ano de 2018, tem-se que apesar de o promotor responsável pelo processo alegar que não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto, intenção de estuprá-la (ALVES, 2020), fora um passo importante na proteção da vítima de processo criminal, uma vez que, após imagens de vídeo da audiência evidenciando Mariana implorar por respeito, ser humilhada pelo advogado de defesa e repreendida com seu choro (ALVES, 2020), fora sancionada a Lei 14.245/21, protegendo vítimas de crimes sexuais e práticas de atos atentatórios contra a sua integridade e dignidade durante o processo judicial, zelando pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, previsto no artigo 400-A (BRASIL, Lei nº 14.245, 2021).

Contudo, conforme já salientado, as formas de violência contra o corpo feminino advêm de diversas relações cotidianas, que seguem ancorados por discursos machistas e sexistas que são reproduzidos, mesmo que inconscientemente, das mais variadas formas, bem como, a busca por lucros de setores midiáticos. A música de infância “Maria Chiquinha”, de Sandy e Júnior, nos versos “Então eu vou te cortar a cabeça, Maria Chiquinha (...). Que c’ocê vai fazer com o resto, Genaro, meu bem? (...) O resto? Pode deixar que eu aproveito”, incita a violência da mulher de forma agressiva vez a desconfiança de fidelidade para com o homem²¹. Como também, a música satírica da banda Pedra Letícia, chamada “Teorema de Carlão”, que reproduz a mulher não inserida ao padrão de beleza como objeto de apenas saciar a vontade carnal do homem desdenhando, ainda, de sua forma de falar e aparência estética, conforme os versos.

(...) Você não tem quem pegar. Eu vou te dar uma dica seu besta. Olhe pra lá. E veja aquela moça aquela bem baranga. Ela diz pobrema. Ela tem bigode. Sem falar na pança (...). Então faça uma boa ação. Pegue uma baranga diga que a ama. Chama pra assistir DVD. Detona a Juliana Paes critique a Alinne Moraes (...). E olha o bem que você faz quando a beija uma vez mais. No céu você

guardou seu lugar (...)²² (grifo nosso).

Desta feita, ignorar letras de músicas e tantas outras produções de consumo popular é perpetuar e instigar a violência ao corpo da mulher nas múltiplas formas, vez que “a cada onze minutos uma mulher é estuprada no Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgados em 2015”.²³ A cultura do estupro consiste em um imaginário construído desde a infância, moldado por comportamentos sociais e sexuais, incitando no decorrer dos anos e, consequentemente, repassando a futuras gerações. Portanto, diante as implicações de gênero de uma prática social ou uma norma jurídica, indaga-se: como a omissão/neutralidade de sujeitos e instituições pode ser corrigida? Afinal, desconstruir paradigmas que mantém os estereótipos e estigmas do gênero feminino é uma ferramenta necessária para inibir outras formas de opressão.

REFERÊNCIAS

ALVES, Schirlei. Defesa humilha influencer Mariana Ferrer em julgamento que terminou com tese de ‘estupro culposo’. The Intercept Brasil, 2020. Disponível em: https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estuproculposo/. Acesso em 07 jan. 2022.

BRASIL. Decreto-lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm Acesso em 20 dez. 2021.

BRASIL. Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm Acesso em 20 dez. 2021.

BRASIL. Lei nº 14.245, de 22 de novembro de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14245.htm Acesso em 07 jan. 2022.

COULOURIS, Daniella Georges. A desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese. Universidade de São Paulo – USP. p.242. 2010.

HUNGRIA, Nelson; LACERDA, Romão Cortez. Comentário ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959.

LEMOS, Vanessa. A cultura do estupro. Revista Cult. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/a-cultura-do-estupro/. Acesso em: 20 dez. 2021.

LETRAS. Maria Chiquinha – Sandy e Júnior. Disponível em: https://www.letras.mus.br/sandy-e-junior-musicas/149622/ Acesso 15 jan. 2022.

LETRAS. Teorema de Carlão – Pedra Letícia. Disponível em: https://www.letras.mus.br/pedra-leticia/1320655/ Acesso em 15 jan. 2022.

ROST, Mariana; VIEIRA, Miriam Steffen. Convenções de gênero e violência sexual: A cultura do estupro no ciberespaço. Contemporânea | comunicação e cultura, v.13, n.02, p.261-276, maio-ago 2015.

UNIFESP. Departamento De Comunicação Institucional. Um estupro a cada 11 minutos. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/dci/publicacoes/entreteses/item/2590-umestupro-a-cada-11-minutos Acesso em 15 jan. 2022.

VITO, Daniela de; GILL, Aisha; SHORT, Damien. A tipificação do estupro como genocídio. Revista internacional de direitos Humanos, v.6, n.10, p.1-24, jun. 2009.

20 Advogada e Mestra em Direito pela FDSM com área de concentração em Constitucionalismo e Democracia. Pós-graduada em Direito na área de Processo Penal pela Instituição de Ensino Damásio de Jesus. Pós-graduada na disciplina “Olhares Plurais Sobre o Islam” da FFCLRP/USP. Membro do grupo de pesquisa Direito Internacional Crítico da FDSM.

21 Música “Maria Chiquinha” da dupla Sandy e Júnior. Disponível em: https://www.letras.mus.br/sandy-e-junior-musicas/149622/ Acesso em: 15 jan. 2022.

22 Música “Teorema de Carlão” da banda Pedra Letícia. Disponível em: https://www.letras.mus.br/pedra-leticia/1320655/ Acesso em: 15 jan. 2022.

23 Conforme dados disponíveis em: https://www.unifesp.br/reitoria/dci/publicacoes/entreteses/item/2590-umestupro-a-cada-11-minutos (UNIFESP - Departamento De Comunicação Institucional. Um estupro a cada 11 minutos.) Acesso em: 15 jan. 2022.

DIREITOS REPRODUTIVOS

Emmanuella Magro Denora²⁴

Hemilly de Freitas Arruda²⁵

Os direitos reprodutivos da mulher, diferente do que se possa a dar entender a partir do senso comum ou de vinculações mais liberais, não se restringem nem se esgotam à atividade sexual em si. Em verdade, representam um campo extenso, desde direitos basilares do Estado Democrático, como o direito à vida e à participação política (PEGORER, 2016, p. 8), com implicações amplas e cotidianas na vida de todos e todas, [in]diretamente dispostas na cultura ao próprio direito positivo. São reconhecidos direitos humanos que pretendem garantir a autonomia e a cidadania às mulheres (EMMERICK, 2021, p. 68), devolvendo a estas o controle, a autonomia, a liberdade e o poder decisório relativos a seus corpos, que envolvem a discussão de temas como aborto, reprodução assistida, maternidade, planejamento familiar e seus reflexos.

Destaque-se que o uso das categorias “mulheres” e “homens”, “feminino” e “masculino”, por nós aqui não se trata de binarismo estanque, mas de categorias políticas úteis, que podem nos auxiliar a considerar categorias outras e papéis socialmente encerrados nesses polos, e questioná-las. A marcação sexuada é importante para a materialidade dos corpos e de seus papéis de gênero, inclusive para subvertê-los, e não encerra a totalidade do fenômeno.

Tratam-se assim, os direitos reprodutivos, de direitos que ganharam destaque durante a “segunda onda”² do feminismo, a qual foi marcada por reivindicações relativas à sexualidade e à capacidade reprodutiva feminina, dando ênfase ao acesso a métodos contraceptivos, ao aborto legal e seguro, às creches em tempo integral, ao planejamento familiar e ao reconhecimento de formas diversas de famílias. Tais direitos são resultados de uma constante luta por reconhecimento, marcada por progressos e retrocessos.

Os direitos reprodutivos encontram nos movimentos feministas e nas pautas de gênero questionamentos sobre estruturas de possibilidade de sujeitos,

subjetividades, performatividade socioeconômica, determinação de existências possíveis bem como, a partir desse liame, possibilita a discussão ética em torno do tema, da produção e reprodução de corpos e do estabelecimento de padrões e reconhecimentos.

No Brasil, esse período conhecido como “segunda onda” de debates feministas, de ocorrência eurocentrada e nos EUA, mobilizado transversalmente em torno de pautas raciais, de descriminalização do aborto e comportamento sexual, coincide com a Ditadura Militar a partir de 1964, regime marcado pela repressão e perseguição de tudo aquilo que se considerava subversivo, incluindo-se neste locus mulheres que questionassem direitos civis (ou a ausência deles em condições de equivalência aos dos homens) e papeis sociais; desse modo, houve deliberadamente uma movimentação de Estado para inocular e silenciar as mulheres que aderiam aos movimentos feministas e também de resistência civil às ações militares, havendo censura para desenvolvimento de pesquisas e debates sobre tais temas, eis que desafiavam a construção tradicional de família, instituída a partir de um ideal moral cristão e patriarcal da “mulher virtuosa”. Importante ressaltar que a construção do ideal da mulher virtuosa converge à mãe exemplar, dona de casa, responsável pelos cuidados, e que não possui papel na vida pública e política, que guarda obediência ao pai e, por ocasião matrimonial, ao esposo.

Com a democratização a partir de 1985 e da Constituição da República em 1988, não obstante o reconhecimento formal de igualdade de sexo, materialmente ainda se herda estruturalmente desigualdades profundas e incrustradas como intrinsecamente válidas, e que na prática reservam violências físicas e simbólicas de gênero que são lidas como menos intoleráveis – como a violência doméstica, feminicídio e estupro conjugal até a perpetuação de estereótipos que desmerecem e diminuem o papel das mulheres como protagonistas e autoridades respeitáveis (ou como seres humanos...), nos deixando com os espólios das reparações históricas em circunstâncias de desigualdades e não liberdades.

Nesse viés, o reconhecimento de direitos reprodutivos das mulheres implica

ainda questionar a maternidade compulsória e as formas de dominações masculinas, que as limitam na estrutura patriarcal, vaticinando-se que os caminhos possíveis para as mulheres são reduzidos e com mais desafios, definidos como privados, “sorte”, aleatoriedade do acaso e desígnios divinos – eximindo o Estado de se comprometer com este grupo social de maneira coletiva e de pensar políticas públicas a partir de tais demandas, já mapeadas academicamente e não esgotadas. Através do controle e da vigia das instituições, as mulheres são condicionadas ao exercício da maternidade de forma satisfativa sem plena deliberação sobre o momento adequado de exercê-la – ou se quer exercê-la; sempre preocupadas e atentas aos cuidados, as meninas dedicam mais tempo às atividades domésticas e aos cuidados com as demais crianças e idosos, cabendo a tais ações delimitarem sua socialização, em uma espécie de treinamento para que, futuramente, exerçam seus papéis como mães (DENORA, 2018, p. 119-120).

É nessa realidade, focada na produção masculina e na disponibilização de corpos marcados pelo feminino, em que o Direito se encontra inserido. Logo, para abordar a realidade das mulheres, em regra, parte-se de uma legislação masculina punitivista, em que não se leva em consideração a autonomia e a vontade das mulheres, como no caso do aborto.

No Brasil, por escolher criminalizar o aborto voluntário, o Estado prioriza a existência do feto e seus supostos interesses, deixando que a mulher ocupe o segundo plano, assim como sua própria existência, que ficam interligados à gestação, perpetuando o mito e a romantização da maternidade como o seu único destino (DENORA, 2018, p. 143). Ao vedar o aborto, a legislação brasileira obriga a mulher a levar a gravidez adiante (DENORA, 2018, p. 139), o que corrobora o que já se sabe: não há outro caminho para a mulher senão ser mãe e dedicar sua vida a essa função, enquanto a abandona no exercício do maternar desestruturada.

Os cuidados exercidos pelas mães não resultam em pagamento, não há horário de início e fim, mas produzem o bem mais valioso para a perpetuação do capital:

a força de trabalho (FEDERICI, 2019, p. 68). Somente a partir do trabalho reprodutivo da mulher, o homem é capaz de desempenhar seu papel na vida pública. Não se trata apenas da limpeza da casa, mas do cuidado com a prole que, em alguns anos, será a nova força do trabalho, e da disponibilidade física, emocional e sexual, para que o marido trabalhe diariamente; significa dizer que “por trás de toda fábrica, de toda escola, de todo escritório, de toda mina, há o trabalho oculto de milhões de mulheres que consomem sua vida e sua força em prol da produção da força de trabalho” (FEDERICI, 2019, p. 68).

Há ainda que se destacar que, ausente uma figura de mulher universal, as mulheres enfrentam tais situações de maneiras distintas, cabendo a atenção aos marcadores não só de gênero, mas de raça e classe. É possível, em razão dos privilégios de classe e da branquitude, que mulheres releguem tais cuidados a outras mulheres, o que é uma solução privada; isso possibilita que o primeiro grupo possa se dedicar a outras atividades, como o trabalho fora de casa e à profissionalização. Às mulheres negras e pobres, por outro lado, tais opções não estão constantemente disponíveis, eis que sua força de trabalho sempre foi explorada, durante séculos foram escravizadas, vendedoras, quituteiras e prostitutas; hoje, são empregadas domésticas de outras mulheres (CARNEIRO, 2019, p. 314).

Centrar o debate de gênero em direitos reprodutivos e suas implicações é a forma mais efetiva de alcançar uma legislação que atenda aos princípios de igualdade e liberdade. Barsted (2021) destaca que o acesso ao aborto legal e seguro representa a expansão democrática, à luz das conferências internacionais que o estabelece como um direito sexual e reprodutivo essencial para a autonomia do corpo das mulheres.

Na estrutura masculina e patriarcal de mundo, a realidade é criada e normalizada compulsoriamente pela reiteração e amplas disseminações de ideias e justificativas – desde a religião à ciência –, de modo que as necessidades das mulheres são abandonadas, ou não ouvidas, ou mesmo desconhecidas por elas mesmas enquanto coletividade, forçando-as a se adaptarem a uma visão

falocentrada de forma de existir de si e de e no mundo, em que a disponibilização de espaço, seja ele jurídico ou político, não é suficiente, uma vez que não é capaz de garantir a equivalência política e jurídica na importância de suas demandas (DENORA, 2018, p. 143).

Como consequência, a mulher continua a não ocupar o espaço de sujeito de Direito, mas o de objeto, ao passo que é proibida de exercer o controle de sua própria sexualidade e reprodução (EMMERICK, 2021, p. 99). Perpetua-se, assim, o não acesso à justiça da mulher, mantendo-a em desqualificação e encerrada em sua capacidade reprodutiva como meio e fim, sendo lida como um sujeito “em falta” e relacional ao “modelo ideal” masculino. Toda a ordem daquilo que se vincula à mulher é visto como um ou tantos degraus abaixo do “ideal”, tão logo implicando que a capacidade de gerar vida da mulher seja tutelada na medida dos interesses patriarcais, desde a disponibilidade e “validade” do corpo feminino em período fértil, bem como implicações profissional e na ascensão da carreira aos efeitos previdenciários e de sobrecarga doméstica. Quando a mulher passou a ocupar o mercado de trabalho ela não “soltou” nada, mantendo-se ainda como a gestora principal da domesticidade e cuidados, trabalho este não reconhecido socialmente e visto como inferior – ao ponto de ser a única oportunidade de acesso financeiro para mulheres negras e/ou de classes de base.

Reconhecer e possibilitar amplo debate de direitos reprodutivos – que se iniciam em aborto, laqueadura, métodos contraceptivos, passando por um sistema de pré natal, creches, escolas e um ambiente urbano acessível e que reconhece crianças como seres humanos autônomos, até a legislação trabalhista e previdenciária – é reconhecer mulheres como seres aptos, de raciocínio lógico, responsáveis e autônomos, garantindo sua cidadania em um Estado Democrático de Direito, a partir de legislações modernas e políticas públicas inclusivas. A inobservância de tais direitos, sem a promoção de políticas públicas que os protejam e promovam de forma amplíssima apenas perpetua a mistificação sob sua sexualidade e reprodução, a desigualdade estrutural, a sobrecarga privada, e reforça a hegemonia masculinista estatal.

Nesse sentido, pode-se observar a condição de não-sujeito a que as mulheres são submetidas, mantendo ainda atual o que já fora observado por Simone de Beauvoir em 1939 na obra “O Segundo Sexo”, em que a mulher não é um ser autônomo, jamais essencial. Para o Estado, a mulher continua na posição de objeto, incapaz de pertencer à ideia de ser humano, indivíduo, independente e capaz de decidir suas ações e consequências, exceto se necessária a penalização – como no caso do aborto clandestino e ilegal. Assim, reconhecer os direitos reprodutivos da mulher e sua gama de implicações é medida urgente que afeta diversas especialidades jurídicas e que avançam o relógio da cidadania desse grupo, e por consequência, aumentam o nível de democracia de uma nação.

REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva feminista. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 313-323.

DENORA, Emmanuella Magro. (Re)Apropriando-se de seus Corpos: Direito das mulheres ao aborto seguro e à dignidade reprodutiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. 236 p.

EMMERICK, Rulian. Aborto: (des)criminalização, direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.

PEGORER, Mayara Alice Souza. Os Direitos Sexuais e Reprodutivos da Mulher: Das políticas públicas de gênero à diferença múltipla. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Alameda, 2017.

24 Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista CAPES. Mestra em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/2018). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL/2008). Advogada e Professora Universitária em Londrina/PR e região. E-mail: [email protected].

25 Acadêmica de Direito na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Vinculada ao grupo de pesquisa “O acesso à justiça e sua concretização por meio da mediação e da conciliação” (UEL). E-mail: [email protected].

26 Para fins pedagógicos de classificação utilizaremos o termo “segunda onda”, que relativamente pacificado o período de compreensão histórica, ainda que os questionamentos das ondas e movimentos feministas sejam sempre revisitados.

DIVERSIDADE

Ana Carolina de Faria Silvestre²⁷

Diversidade, segundo o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, trata-se de: 1. qualidade daquilo que é diverso, diferença, dessemelhança, variação, variedade. 2. Conjunto que apresenta características variadas; multiplicidade. 3. Ausência de acordo ou de entendimento; desacordo, divergência (MICHAELIS ONLINE).

O sentido denotativo da palavra diversidade nos conduz corretamente ao desafio primeiro que se impõe à autora deste verbete que é falar sobre diversidade, em um dicionário feminista, compatibilizando, por um lado, a diferença, a dessemelhança e a variedade e, de outro, a unidade viva e variada que caracteriza o conjunto de nós, mulheres, e o movimento feminista, sem adentrar no escopo de outras palavras deste verbete.

O movimento feminista não é um bloco indiviso, compacto e estanque. Pelo contrário, ele é plural, fluido e efervescente. A diversidade é, pois, uma característica que o constitui, ainda que não sustente de modo explícito todas as suas tendências. Não obstante, não é possível falar sobre feminismo sem reconhecer que a experiência de ser e estar no mundo como mulher é, também, singular. Há questões que nos atravessam como mulheres e que podem e devem ser assumidas (NUSSBAUM, 1999), mas há tantas outras que nos individualizam e que devem ser relevadas para que se possa ampliar o escopo de modo que o feminismo seja o mais inclusivo da diferença quanto possível. A partir desse exercício de índole dialética é possível propor um feminismo que não se esgota em si mesmo e que se renova a partir de uma perspectiva fenomenológico-existencial.

Para enfrentar o desafio das diversidades com o intuito de construir um feminismo que acolha e integre as narrativas e as formas de vida e de pensamento de todas as mulheres cis e trans, deve-se abrir o escopo para todas as

formas de ser e de estar mulher. Nesse processo, eu, mulher branca, cis, heterossexual e de classe média tenho lugar de fala, mas como são radicalmente plurais as experiências de ser e estar mulher e distintas as lutas das mulheres a partir da intersecção entre o feminismo e os marcadores sociais da diferença (as classes sociais, orientação sexual, etnia e demais dimensões constitutivas da praxis) (CRENSHAW, 2002), é premente ampliar o lugar de fala para que possamos discutir sobre a diversidade. Devido à impossibilidade de partilhar a escrita deste verdete a partir dessa preocupação basilar, convocaremos a literatura a fim de abrir este espaço para que uma outra mulher situada fale sobre suas experiências de estar mulher. A nossa interlocutora privilegiada, retirada do romance de Conceição Evaristo, será Ponciá Vicêncio. Mulher negra, proveniente da zona rural, cuja vida foi marcada por sonhos e por ausências.

Ponciá Vicêncio, quando menina, gostava de ser mulher, gostava de ser ela própria, gostava da roça e de brincar com as bonecas de milho ainda no pé. Ela cresceu quase sem a presença do pai, pois ele trabalhava constantemente na terra dos brancos e não tinha tempo para ficar com a esposa e a filha. Tinha um irmão, mas conviveu pouco com ele, pois o destino do pai e do filho era o mesmo, semear as terras dos homens brancos. A mãe de Ponciá era artesã e a filha costumava ajudá-la buscando argila na beira do rio para que das mãos hábeis da mãe surgissem panelas, potes e bichos de barro. Ponciá parecia ter puxado à mãe e, certo dia, fez um boneco de barro que se assemelhava ao avô paterno sem nunca o ter conhecido. Na verdade, antes desse episódio já havia outros indícios que corroboravam uma estreita e inexplicável relação entre Ponciá e o avô, que conhecera bebê. Ela andava como ele e sorria e chorava ao mesmo tempo como o avô.

Em dada altura, uns missionários apareceram pela roça e descobriu-se que demorariam por lá. Todas as crianças que quisessem poderiam aprender a ler e a mãe de Ponciá permitiu que ela frequentasse a escola e aprendesse coisas que não serviriam para a vida na roça, mas seriam úteis para a vida na cidade. Quem sabe o destino da menina não estaria lá. Ponciá, dia após dia, vencia as dificuldades e passou a conhecer as letras, aprendeu o abecedário e, finalmente, aprendeu a ler as letras e as sílabas com os padres. Aprendeu sozinha, depois que a missão deixou aquelas terras, a ler as folhas da cartilha por insistência e por ser

inteligente.

Certo dia, depois da morte do pai, Ponciá decidiu que recomeçaria na cidade. Estava cansada de trabalhar o barro, de ir e vir às terras dos brancos e voltar com as mãos abanando, estava cansada de ver as mulheres e crianças cuidarem das plantações em suas terras e de ter que entregar a maior parte para os coronéis... queria outro caminho. Queria concretizar seu sonho de uma vida melhor.

Ponciá deixou a mãe, sem ter tempo de se despedir do irmão, e apanhou o trem para a cidade. Ao chegar lá, ao descer do trem, não sabia para onde ir. Não havia nenhum parente lá já que nenhum deles tinha tido a coragem de Ponciá de ousar recomeçar a vida longe da roça. Ela mesma nunca havia estado lá. Era a sua primeira vez na cidade, era a sua primeira vez fora da roça... avistou uma igreja e foi para lá como se soubesse o porquê. Nessa altura, a fome apertara. Fazia três dias que mal comia... passou a primeira noite na cidade nos degraus da igreja, rodeada de mendigos, crianças, mulheres e homens. Pela manhã, depois da igreja, decidiu que abordaria as senhoras depois da missa a fim de pedir-lhes emprego.

Uma delas escreveu um endereço em um papel onde, talvez, precisassem de uma empregada... sim, precisavam e Ponciá sentiu-se grata por saber ler e pela oportunidade que recebera. Ponciá trabalhava e juntava dinheiro para comprar um barraco. Traria a mãe o irmão para a cidade e a vida seria feliz. Depois de muitos anos de trabalho, ela finalmente conseguiu comprar um quartinho na periferia da cidade e voltar à roça. No entanto, descobrira que sua mãe e seu irmão não estavam mais lá, que haviam ido para a cidade também. Ponciá regressou à cidade decidida a encontrar sua família. Trabalhava como doméstica, procurava os seus e aconteceu de se apaixonar. Seu homem trabalhava na construção civil e quase não falava, assim com seu pai e irmão. Falava só o necessário.

Ponciá engravidou várias vezes, mas suas gestações nunca chegaram a termo.

Devagar, ela foi entristecendo e se recolhendo cada vez mais nas lembranças do passado. Não cuidava da casa, quase não comia e por várias vezes apanhara do marido... estava consumida pela tristeza de não saber o paradeiro de sua família, pela culpa de ter ido embora da roça e pela tristeza da vida solitária, empobrecida, violenta... pela dor da vida que poderia ter sido, mas não foi...

Ponciá Vicêncio não queria mais nada com a vida que lhe era apresentada. Ficava olhando sempre um outro lugar de outras vivências. Pouco se dava se fazia sol ou se chovia. Quem era ela? Não sabia se dizer. Ficava feliz e ansiosa pelos momentos de sua autoausência. Antes gostava de ler. Guardava várias revistas e jornais velhos. Lia e relia tudo. (...) Um dia Ponciá juntou todas as revistas e jornais e fez uma grande fogueira com tudo. De que valia ler? (EVARISTO, C. 2021, p. 77-79.)

Certo dia, fora de si, perdida em um outro mundo entre mundos, Ponciá se levantou do banquinho em que permanecera por tantos anos e, decidida, foi para a estação. Queria voltar, queria voltar para o rio, queria moldar argila, queria voltar para a roça... na estação, atordoada e perdida, terminou por encontrar o irmão. Encontrou a família que tanto procurara, mas Ponciá não era mais a mesma. A vida matara os sonhos de Ponciá. A moça inteligente e corajosa que um dia havia sonhado e lutado pela vida na cidade não existia mais... em seu lugar, havia uma mulher perturbada, traumatizada e doente.

A narrativa ficcional de Ponciá, mulher negra, proveniente da zona rural, abre o espaço para as diversas narrativas das mulheres, para a importância de ouvi-las a partir da percepção de que somos outsiders within (forasteiras de dentro) (COLLINS, 1998), e para a necessidade de um feminismo no plural. Todas nós, mulheres, experienciamos o mundo da vida e a condição de estar mulher a partir de um ponto de vista único que não pode ser invisibilizado ou pouco relevado para que as pautas políticas do movimento não sejam somente umas em detrimento de outras.

A diversidade, se levada a sério e assumida como um pilar fundamental da luta feminista, conduz todes a ocupar somente o lugar de fala que lhe cabe, se algum lhe couber, e a abrir-se sempre às singulares narrativas de cada uma das mulheres. A partir da abertura e do acolhimento ao modo de ser e estar dessa outra mulher, assumida sempre como um fim em si mesma (KANT, 2005) e como uma singularidade radical que partilha com outras, outros e outres o espaço da cidade, o movimento feminista poderá se renovar e avançar.

REFERÊNCIAS

COLLINS, P. H. La política del pensamiento feminista negro. In: NAVARRO, M.; STIMPSON, C. (orgs.) ¿Qué son los estudios de mujeres? Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1998.

CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas. Ano 10, v. 1, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf. Acesso em: 16 mar. 2022.

DIVERSIDADE. In: DICIO, Dicionário Michaelis on-line. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portuguesbrasileiro/diversidade/. Acesso em: 15 mar. 2022.

EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. 3 ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2021.

KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela, Lisboa: Ediçôes 70, 2005.

NUSSBAUM, M. C, “Secret Sewers of vice”: Disgust, Bodies, and the Law. In: BANDES, S. (ed.) The passions of Law. New York and London: New York University Press, 1999.

27 Doutoranda em Ciências Jurídico-filosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Mestre e pós-graduada em Ciências Jurídicofilosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora na Faculdade de Direito do Sul de Minas. Gestora do Núcleo de Extensão da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Gestora de Relações Interinstitucionais na Faculdade de Direito do Sul de Minas. Autora e coautora de artigos e livros publicados no Brasil, Portugal, Espanha, Itália e Inglaterra. Membro da rede em Didática e Pedagogia do Direito coordenada por Maria Francisca Elgueta e Eric Palma da Unidad de Pedagogía Universitaria y Didáctica del Derecho de la Universidad de Chile. Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura. Membro da International Research Collaborative network intitulada Law, Reason and Emotion. Membro da Collaborative Research Network intitulada Law and Emotion. Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito. Tradutora de Emotion: a very short introduction (Dylan Evans).

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO

Ana Paula Lasmar Corrêa²⁸

De forma breve, pode-se conceituar divisão sexual do trabalho como a separação de atividades, atribuições e responsabilidades no campo do trabalho com base na relação entre os sexos. O conceito de divisão sexual do trabalho complementase, em relação simbiótica, com o conceito de segregação horizontal feminina no meio ambiente de trabalho, que é a condição que leva a uma concentração maior de mão de obra feminina em certos tipos de trabalho – ocupações que possuem identificação com os serviços domésticos, como cozinheiras, costureiras, secretárias, etc., em detrimento de outros – científicos, ligados à engenharia e à mecânica, por exemplo.

Existe uma segmentação real na população econômica ativa, com características nítidas de discriminação sexual. Em geral, no meio urbano, o maior percentual do contingente feminino, em praticamente todos os países concentra-se nas profissões que guardam uma certa analogia com as atividades que executavam no lar. São elas: enfermeiras, professoras, secretárias ou mecanógrafas, balconistas, cozinheiras, serventes, lavadeiras, cabeleireiras, modistas e tecelãs. Em regra, essas profissões são mal remuneradas e de pouco prestígio (BARROS, 1995, p. 505).

As habilidades femininas para certos tipos de trabalho são tradicionalmente ensinadas por outras mulheres, e transmitem a ideia de que são atributos inatos, o que contribui para a desvalorização e má regulação desse tipo de serviço, pois se entende que ele não pressupõe qualificação, mas exprime competências naturais das mulheres (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION, 2010, p. 5), o que fortalece a divisão sexual do trabalho.

É importante ressaltar que a divisão sexual do trabalho não é uma constante histórica. Em alguns momentos durante a Idade Média não havia tamanha disparidade entre as ocupações femininas e masculinas, o que mostra que houve

um retrocesso social que permitiu a construção de certos estereótipos, historicamente.

Curioso é que, do século X ao XIV, as profissões comuns aos dois sexos se avolumam, havendo mulheres escrivãs, médicas e professoras; os salários, por sua vez, não se distanciavam tanto dos salários masculinos. No Renascimento, as mulheres vão perdendo várias atividades que lhes pertenciam, como o trabalho com a seda, com materiais preciosos, com a cerveja e com as velas, e se confinam entre as paredes domésticas, entregues ao trabalho a domicílio, que surge nos primórdios do século XVI, e perde importância a partir do século XIX, quando o algodão e a lã são retirados das casas para as fábricas. Os homens, dada a miséria que enfrentavam no campo, dirigem-se às fábricas, para executarem um trabalho que até então era confiado às mulheres. Em seguida, a mão-de-obra da mulher e do menor é solicitada na indústria têxtil, tanto na Inglaterra, como na França, porque menos dispendiosa e mais “dócil”. O processo de industrialização vivido pelo mundo europeu, no século XIX, caracterizou-se pela exploração do trabalho dessas chamadas “meias-forças” (BARROS, 1995, p. 29-30).

As bases que fundamentam a divisão sexual do trabalho relacionam-se à atribuição, ao homem, da virtude da razão, do cálculo e do pensamento, enquanto à mulher associam-se as ideias de sensualidade e emoção, visões que fundamentam essa desigualdade. A oposição entre mente e corpo, refletida nos papéis masculinos e femininos, decorre de concepções históricas naturalizadas e não compreendidas como articuláveis. Essa seria a oposição binária fundamental, abstrata e geral, da qual decorrem muitos conflitos nas sociedades da modernidade tardia (DOUGLAS, 1967).

Compreendendo-se a gênese da desigualdade de gênero tipicamente binária como decorrência da oposição entre consciência e matéria e esmiuçando-se a construção histórica dessas ideias, tem-se influências do cristianismo, da Reforma Protestante e, por fim, do combo “Estado e mercado”, que formaram o pano de fundo valorativo de compreensão do mundo, cujos reflexos são

explícitos pela divisão sexual do trabalho.

A discriminação profissional e salarial simultâneas são ainda explicadas pela existência de um mercado de emprego dual, ou seja, há empregos “primários e secundários”. Os primeiros são bem remunerados, oferecem escalas de promoção, segurança e boas condições de trabalho, enquanto os últimos, por possuírem características contrárias, são desalentadores. Ora, dentro de certos limites, os primeiros salários na empresa dependem do empregador, que estabelece se o candidato está apto para o emprego primário ou secundário. Na prática, então, o mercado de emprego dual favorece os homens (BARROS, 1995, p. 150).

Diversos fatores contribuem para a divisão sexual do trabalho, como as estruturas econômicas, as influências culturais, as próprias disposições legais historicamente reprodutoras de desigualdade e a dificuldade de participação na vida política e social, entre outros.

A Recomendação nº 150/1975, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Orientação Profissional e Formação Profissional no Desenvolvimento de Recursos Humanos já mencionava a importância da “alteração nos comportamentos conservadores ainda existentes, e sobre formas estereotipadas de trabalho feminino e masculino na família e na sociedade” (BARROS, 1995, p. 168). A preocupação com a reprodução desses estereótipos justifica-se pois eles alimentam uma cultura de valores desiguais entre os sexos, com fundamento no preconceito contra a mulher, sendo que a própria vítima, muitas vezes, tende a enquadrar-se nesses preconceitos que não encontram respaldo na ciência contemporânea (CAMPOS; TEIXEIRA, 2010).

Os desafios relacionados à igualdade de gênero em relação ao trabalho não se restringem à diferença salarial percebida pelas mulheres e à concentração de mão-de-obra feminina em atividades específicas, muitas vezes consideradas mais simples. As causas e consequências relacionadas às condições desiguais em

relação à equidade de gênero incluem uma educação desigual dos filhos; influências da religiosidade, em geral (PIRES, 2014); formação escolar com viés sexista (ROSEMBERG, 2001) e a construção de papéis femininos inferiorizados desde a filosofia platônica na Idade Antiga. Porém, sempre houve, na história, exceções, mulheres que se dedicaram a trabalhos externos, ingressando em universidades, conduzindo politicamente, exercendo a medicina, entre outros exemplos (BARROS, 1995, p. 215).

Por fim, é importante ressaltar que a visão inferiorizante sobre o trabalho feminino, que o associava a ideia de “meias-forças”, não condizia com a realidade da força de trabalho feminina que, apesar de marginalizada, sempre representou uma parcela considerável em termos de produtividade e economia, e, mais recentemente, considera-se que a taxa de atividade laboral feminina vem crescendo mesmo em períodos de crise (AQUINO; MENEZES; MARINHO, 1995).

REFERÊNCIAS

AQUINO, Estela Maria L. de; MENEZES, Greice Maria de S.; MARINHO, Lilian Fatima B.; Mulher, Saúde e Trabalho no Brasil: Desafios para um Novo Agir. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (2): 281-290, abr/jun, 1995.

BARROS, Alice Monteiro de. A mulher e o direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995.

CAMPOS, Marta Silva; TEIXEIRA, Solange Maria. Gênero, família e proteção social: as desigualdades fomentadas pela política social. Rev. katálysis, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 20-28, jun. 2010. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/katalysis/article/view/S141449802010000100003 Acesso em: 13 jan. 2022.

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PIRES, Carlos Manoel Pimenta. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, set. 2014. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S1517-97022014000300010&lng=pt&nrm=iso Acesso em: 13 jan. 2022.

ROSEMBERG, FÚLVIA. Educação formal, mulher e gênero no Brasil contemporâneo. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 515-540, 2001. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104026X2001000200011 Acesso em: 13 jan. 2022.

28 Mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Procuradora do município de Pouso Alegre – Minas Gerais.

DOMINAÇÃO MASCULINA

Marina Helena Vieira da Silva²

Uma das questões de suma importância que passa pela pauta de discussões e lutas feministas, se refere à consciência das mulheres sobre si mesmas e, mais do que isso, das disparidades, injustiças e subjulgamentos enfrentados em decorrência da institucionalização da dominação patriarcal, que acaba por obstaculizar as possibilidades femininas, dentre elas, a de existência de igualdade para com o gênero masculino.

Ao abordar uma relação de dominação, em qualquer das esferas que possam ser imaginadas, o ponto comum identificado será a caracterização de uma sujeição de um indivíduo para com o outro, gerando uma dissimetria e viabilização do exercício do controle. Tal dissimetria pode ser identificada tanto em um aspecto simbólico, a partir de mecanismos inconscientes e naturalizados socialmente, como nas práticas cotidianas. A dominação abordada no presente caso, se refere à distinção conferida, em caráter de inferioridade, às mulheres, que ainda nos tempos atuais são consideradas incapazes ou inaptas para a prática de determinados atos, funções e hábitos.

Aos olhos de alguns, ao se mencionar a expressão dominação masculina pode ocorrer uma relação única e exclusiva com práticas de violência física em decorrência do exercício da força masculina sobre a fragilidade corporal feminina, entretanto, não somente assim posturas que perpetuam o patriarcado podem ser adotadas, sendo, por muitas vezes, institucionalizados pensamentos, posturas e ideais que permitem a manutenção de uma dominação do gênero masculino sobre o feminino, muitas vezes de forma inconsciente e involuntária.

Para que se compreenda a dominação masculina, e a forma que é exercida socialmente, mesmo que de forma velada e simbólica, é necessário abordar o patriarcado e a sua criação, que, historicamente, foi formado por homens e mulheres, tendo como principal característica a expressão de papéis a serem

adotados pelos homens e pelas mulheres em valores e costumes sociais (LERNER, 2019, p. 261), sendo que, desde os tempos primitivos, já era possível identificar o androcentrismo incorporado, que não necessitava ser justificado, pois era imposto, visto como algo neutro (BORDIEU, 2020, p. 24), levando a um enfoque das relações de poder demarcadas pelo gênero, a partir de perspectivas masculinas, tomadas como válidas tanto para homens quanto para mulheres.

Assim, tanto homens quanto mulheres acreditavam na divisão estabelecida, que deixava clara a distinção entre os gêneros em diversos aspectos da vida social, sempre evidenciando a inferioridade e posição de subjugação conferida ao sexo feminino. Durante a escravidão, por exemplo, o estupro era concebido como uma forma de dominação (DAVIS, 2016), repressão, sendo o principal objetivo existente afastar a resistência demonstrada pelas escravas, a fim de que não fossem desmoralizados, em uma demonstração de passividade e fraqueza que é característica das formas de exercício da dominação masculina exercida. É possível perceber, portanto, que, além da conduta de dominação adotada, havia um pensamento também ligado à dominação de gênero que levava à prática da conduta primeiramente mencionada.

Assim, pode-se extrair que, para que haja a dominação, será exercida uma forma de poder, que, por sua vez, terá como objetivo justamente a promoção dessa dominação, a partir da qual há uma manifestação intersubjetiva em que há uma determinação ou o exercício de influência de comportamento de outros (que se assujeitam) aos objetivos próprios de quem assujeita alguém, conforme assevera Boaventura de Souza Santos (CASTANHEIRA NEVES, 2008, p. 502). Tal situação se apresenta, consequentemente, como uma forma de exclusão, o que torna necessário o estabelecimento de limites ao seu exercício. Tem-se, dessa forma, que o controlar é poder, e o ser controlado é submeter-se ao poder.

Para que possamos compreender de forma clara e precisa como a dominação é exercida de forma diversa da violência física e da utilização da força braçal do homem sobre a mulher, necessariamente devemos passar por sua dimensão

simbólica, abordada por Pierre Bourdieu, que leva em conta para seus estudos, a existência de uma violência simbólica, exercida a partir de formas praticamente imperceptíveis aos olhos das pessoas, gerando reflexos diretos nas práticas violentas ainda identificadas e aceitas socialmente.

Dessa forma, a partir de uma objetividade de estruturas sociais, de formas de exercício de produção, reprodução, é conferida aos homens uma posição privilegiada, como se fossem matrizes das percepções e pensamentos, aplicando as categorias construídas sob sua ótica como se naturais fossem (BORDIEU, 2020, p. 60-62), gerando um preconceito desfavorável contra o feminino.

A força da dominação masculina, assim como de qualquer violência simbólica que pode ser exercida, consiste, portanto, no poder de imposição das significações, que passam a ser disseminadas a partir de instrumentos de construção da realidade, e, ainda, de uma forma de censurar e silenciar as demais formas de dizer que sejam divergentes das formas impostas pela classe dominante. Nesse passo, homens, como um grupo que se beneficia do patriarcado, acaba por partir de um pressuposto de superioridade com relação às mulheres, com a possibilidade de controle (HOOKS, 2020, p. 13), exercido muitas vezes por medo de que os benefícios mencionados decorrentes do patriarcado sejam perdidos, sendo muitas vezes mais fácil apoiar de forma passiva o exercício da dominação do que se arriscarem em uma mudança.

A própria ordem social existente, caracterizada por divisões que claramente podem ser identificadas, principalmente com relação ao sexo, acaba por funcionar como uma forma de ratificação da dominação masculina, ao passo que naturaliza a divisão dos sexos com o exercício de dominação, como se fosse algo inevitável e realmente natural do ser humano, como, por exemplo, com a divisão social do trabalho, que de forma marcante delimita quais as atividades que devem ser atribuídas a cada um dos sexos.

Pode-se dizer que a dominação masculina é exercida muito mais pelo

reconhecimento da potência feminina, que claramente gera insegurança e temor, do que por uma condição de inferioridade da mulher (JACOEL, 2008, p. 128), sendo justamente por essa razão utilizadas formas veladas de dominação, em uma busca pela manutenção da dominação exercida sem que se deixe clara a adoção de tais posturas.

Em uma perspectiva feminista, que deve levar em conta um estudo interseccional que aborde as questões de gênero juntamente com outros marcadores sociais nas vidas das minorias, como a questão de raça e classe³ , é necessário reforçar cada vez mais a importância e necessidade de que haja uma compreensão do impacto do sexismo, que consequentemente acaba por produzir privilégios e exclusões sociais (CARNEIRO, 2011, p. 122), assim como o racismo também, tornando necessária, além da postura de mudança de pensamento e prática masculina, uma solidariedade entre as próprias mulheres, com a propagação do conhecimento acerca de tais questões com os homens, auxiliando, assim, que seja afastada a perpetuação do exercício de formas de dominação masculina.

É necessário lembrar, ainda, a importância de a questão de raça ser analisada juntamente com a questão de gênero, em decorrência da modificação de cenários que pode ser observada em decorrência dos fatores históricos e sociais por conta da diferença racial. Um homem negro não tem acesso ao poder, e a mulher branca, por sua vez, pode ser a opressora de uma mulher negra, exercendo a dominação.

De qualquer modo, a dominação masculina, que também pode ser visualizada como uma forma de violência de gênero, além de ser existente há um longo período, ainda é vivenciada pelas mulheres, que sofrem com condutas adotadas por perpetradores de formas de subjugação e exercício de dominação nos locais de trabalho, nas ruas, e dentro de suas próprias residências, sendo essas decorrentes principalmente de um sistema hierárquico de poder (ARRUZZA; BHATTACHARYA, 2019, p. 57-59) que se consubstancia no gênero, raça e classe.

Assim, é imprescindível que os homens, ainda estando inseridos em uma rede de dominação com relação às mulheres, mesmo que de forma inconsciente, debatam e reflitam acerca das questões feministas e da opressão muitas vezes exercida, rompendo com a hierarquia e desestabilizando a forma hegemônica de pensamento, lembrando sempre que é necessário pensar o lugar de fala como uma postura ética, sabendo o lugar de onde falamos para colocar em prática o diálogo e a mudança de perspectivas (RIBEIRO, 2019), lutando para que o direito de igualdade das mulheres seja preservado, respeitando sempre o seu lugar de fala a respeito das lutas enfrentadas acerca dessa questão.

Tanto homens quanto mulheres, de todas as idades, posições sociais e culturas, devem desenvolver, internamente e para quem propagarem seus ideais, pensamentos emancipatórios em busca de uma superação da dominação masculina, desnaturalizando mecanismos que, muitas vezes socialmente enraizados, devem ser abolidos, para que não sejam as práticas de dominação, muitas vezes exercidas de forma sutil e praticamente inconscientes (caracterizadoras da violência simbólica abordada por Bourdieu), mantidas socialmente como se naturais fossem.

Há a necessidade de que seja realizada uma descolonização do conhecimento, a partir da exploração de formas alternativas e emancipatórias para sua produção, nos termos abordados por Grada Kilomba³¹, afastando as condutas de dominação exercidas, sejam elas explícitas ou simbólicas, levando a uma nova forma de conhecimento e de reprodução de pensamento que levem em conta a igualdade entre os gêneros e a necessidade de que, a partir de um pensamento interseccional sejam respeitados os direitos e afastada a pressuposição da existência de uma hierarquia.

REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Nancy Fraser. Feminismo para os 99%: um manifesto. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Trad. Maria Helena Kuhner. 18ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

CASTANHEIRA NEVES, António. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Vol. 3. 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

HOOKS, Bell. O feminismo é para tomo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Bhuvi Libanio. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.

JACOEL, Aparecida Sueli Carneiro; CURY, Cristiane. O poder feminino no culto dos orixás. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (Ed.). Guerreiras de natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Grupo Editorial Summu, 2008.

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. Trad. Luiza Sellera. São Paulo: Cultrix, 2019.

RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro para um novo marco civilizatório. SUR 24 - v.13 n.24 p. 99 – 104, 2016.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén Livros, 2019.

29 Mestra em Direito, com área de concentração em Constitucionalismo e Democracia, na linha de pesquisa Relações Sociais e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Pós-graduada pela Escola Paulista de Direito (EPD) em Direito Civil e Processual Civil. Graduada pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).

30 Nesse sentido, é importante ressaltar que assim como as mulheres possuem situações diferentes entre elas, inexistindo uma universalidade feminina, considerando, por exemplo, a posição de desequilíbrio estabelecida entre uma mulher branca e uma mulher negra, evidentemente menos privilegiada socialmente, também não há uma universalidade entre os homens, sendo imprescindível, para compreender a dominação masculina, realizar uma pesquisa interseccional sobre a forma pela qual a dominação masculina se reconfigura de acordo com cada situação concreta e específica (RIBEIRO, 2016; e AKOTIRENE, 2019).

31 Entrevista de Grada Kilomba: ‘O racismo está sempre se adaptando ao

contemporâneo’. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/gradakilomba/ Acesso em: 20 de janeiro de 2022.

ECOFEMINISMO

Mahryan Sampaio³²

O Ecofeminismo, ou Feminismo Ecológico, surge como uma vertente teórica que busca interseccionar a luta pela igualdade de gênero e preservação do ecossistema, estabelecendo uma conexão entre a opressão enfrentada por mulheres e a degradação do meio ambiente. O processo histórico de construção do ecofeminismo possui diversas posições, vozes e organizações que divergem sobre o seu surgimento, que pode ser resultante do ativismo prático ou conceituação. Nos anos 1960 e 1970, a luta das mulheres em prol da igualdade de gênero formava a segunda onda feminista, concentrando-se no direito reprodutivo das mulheres. Além disso, as manifestantes estiveram à frente de movimentos pela paz e antiguerras, trazendo pautas como desarmamento, direito dos animais e proteção da natureza. Em 1974, o termo “ecofeminismo” é utilizado pela primeira vez de forma teórica, sendo conceituado por Françoise D’Eaubonne, na obra “ Le Féminisme ou la Mort ” (“O Feminismo ou a Morte”, em tradução livre). Para ela, para que a sociedade global fosse capaz de sair da lógica de destruição ambiental, seria necessário questionar a relação entre os sexos, pois haveria um vínculo entre devastação da natureza e dominação masculina.

Após a Segunda Guerra Mundial, a agricultura moderna se desenvolveu em escala global com apoio técnico e financeiro de instituições internacionais, resultando na chamada Revolução Verde. A incorporação de novas tecnologias no setor foi responsável por aumentar a produtividade agrícola, mas trouxe produtos geneticamente modificados e aumento de insumos químicos, como fertilizantes e agrotóxicos. O plano de fundo histórico relaciona-se diretamente à extensão do conceito e atuação ativista relacionadas ao ecofeminismo.

Em 1978, Mary Daly conceitua a vertente sob a perspectiva de saúde feminina, afirmando que recuperar o controle do próprio corpo seria uma das maiores práticas ecológicas e feministas, e para isso seria necessário preservá-lo da contaminação da produção agrícola e industrial. Em seu livro “Gyn/Ecology”, Daly propõe uma nova forma de produção e consumo, associando o

desenvolvimento sustentável ao feminismo. Para a autora, o domínio patriarcal da natureza poderia ser explicado através de bases existencialistas: a natureza feminina, capaz de dar a luz e fornecer vida ao planeta, seria aquela naturalmente ligada à conservação ambiental. Enquanto isso, a natureza masculina, com suas limitações, seria a única capaz de criar tecnologias poluentes. O desenvolvimento do ecofeminismo nas décadas seguintes traz múltiplas contribuições, criticando o dualismo hierárquico de homens vs. mulheres, o desenvolvimento técnico ocidental e a visão de progresso instituída pelo ocidente. Além disso, orienta-se por estudos que comprovam que na distribuição por gênero, as mulheres são impactadas de forma desproporcional pelas questões ambientais.

O ativismo climático afirma que as mudanças na temperatura global da terra trazem efeitos para o planeta e afetam a vida de todas as pessoas, mas não da mesma forma, o que é tido como injustiça ambiental. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mulheres e meninas correspondem a 80% dos deslocados por desastres e mudanças climáticas em todo o mundo. Além disso, têm maior probabilidade de viver com menor poder socioeconômico, possuindo baixa capacidade de recuperação e redução de danos em seus territórios de origem após um grande desastre natural.

Logo, o ativismo prático destaca frequentemente que existem comunidades muito mais atingidas por tais efeitos, argumentando que a proteção do meio ambiente é uma questão de gênero. Em concordância, o ecofeminismo prega que a estrutura que sustenta a exploração da natureza é a mesma estrutura que oprime o sexo feminino. Como exemplo, é possível citar que na maioria das sociedades são as mulheres as responsáveis pelo saneamento básico e cultivo de alimentos, e um dos grandes efeitos do aquecimento global é o processo de desertificação do solo, que dificulta o plantio e colheita, assim como a manutenção da segurança alimentar e subsistência familiar.

A mudança climática é vista como um multiplicador de ameaças, com o potencial de agravar a migração e o deslocamento de populações, obrigando

mulheres a andarem dezenas de quilômetros todos os dias para garantirem água, lenha e comida para as suas famílias, e dessa forma se tornam vulneráveis à violência. Em conformidade, o Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)³³ sobre riscos extremos diz que 72% do total de pessoas que vivem em extrema pobreza e que estão mais vulneráveis a desastres ambientais são mulheres.

Para autoras latino-americanas como Alicia H. Puleo, uma das principais responsáveis pelo pensamento ecofeminista, é preciso entender a vertente como uma reflexão ético-política. Neste sentido, orienta-se para a ecojustiça e sustentabilidade, tendo como pilares a crítica ao preconceito, defesa dos princípios de igualdade e autonomia, interculturalidade e valorização da ciência. Por esta razão, o ecofeminismo é um movimento capaz de relacionar não somente mulheres e meio ambiente, mas também raça e etnia, nacionalidade, classe social, orientação sexual e outros marcadores sociais da diferença, desde que estejam interseccionados ao gênero (PULEO, 2002, p. 36).

Os movimentos ecofeministas organizados do Sul Global argumentam que mulheres, comunidades indígenas, minorias raciais, jovens, idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica são os mais afetados pela degradação do meio ambiente, com destaque para as mudanças climáticas. Assim, as minorias sociais seriam a principal composição da classificação de risco Most Affected People and Areas, ou Pessoas e Áreas Mais Afetadas, conceito amplamente utilizado através da sigla MAPA.

Dorcerta E. Taylor, socióloga ambiental e historiadora jamaicana, fornece uma breve explicação sobre a luta pela justiça e preservação ambiental em seu ensaio “Mulheres de cor, justiça ambiental e ecofeminismo”, bem como o papel emergente das mulheres negras para o fortalecimento e legitimidade do movimento. Taylor examina a relação crítica entre mulheres, pessoas racializadas, ativismo ambiental e feminismo ecológico, com o objetivo de questionar o protagonismo de homens brancos, cisgêneros e pertencentes à elite europeia nas discussões sobre sustentabilidade. Em razão de serem os principais

detentores de poder na pirâmide social, são responsáveis por estarem à frente das principais discussões sobre políticas públicas, acordos e tratados mundiais, mas não representam a população-alvo. Por conseguinte, o ecofeminismo reafirma o entendimento de que os estudos de gênero não se referem apenas às mulheres, mas também sobre a forma pela qual as ações na agenda ambiental são enquadradas, estudadas e implementadas. Além disso, teóricas ecofeministas interseccionais, como Deane Curtin e Karen J. Warren, alegam que o conhecimento das mulheres do Terceiro Mundo sobre o meio ambiente é muitas vezes descartado em programas de ecodesenvolvimento, mesmo que nenhum desenvolvimento sustentável ocorra até que os conhecimentos tradicionais e práticas instintivas recebam os lugares conceitualmente centrais que merecem (WARREN, 1997, p. 82).

No Brasil, o movimento pela demarcação de terras quilombolas é protagonizado por matriarcas e novas ativistas, que enfrentam a invisibilidade estatística e articulam-se em busca de políticas públicas pela garantia e proteção de seus territórios. Segundo a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), o Brasil possui aproximadamente 2 milhões de pessoas ou 130 mil famílias quilombolas, entre homens e mulheres. Entretanto, conforme a Fundação Palmares, apenas 2.500 destas comunidades são certificadas, tornando o excedente invisível às políticas públicas para o direito à saúde, educação, moradia, saneamento básico e mobilidade. Ao adicionar “lentes de gênero” para a vida das comunidades, têm-se que enquanto os homens migram para as cidades mais próximas em busca de trabalho, mulheres permanecem para proteção das famílias e reafirmar seus saberes ancestrais. Em razão disso, as matriarcas do território atuam como líderes comunitárias, pois obtêm a maior parte de seu sustento através do manejo de recursos naturais, preservam manifestações culturais, e asseguram a organização social e produtiva do local. No que tange à governança e participação política, as quilombolas são vistas ocupando o papel social de diretoras de associações e porta-vozes com a mídia e imprensa. Contudo, por estarem diretamente ligadas à terra, sofrem diretamente os impactos da neocolonialização e o do conflito agrário, sendo expostas às variadas formas de violência resultantes da supressão de direitos e empreendimentos desenvolvimentistas.

Em conformidade, observa-se a atuação constante de mulheres agricultoras que participam ativamente de movimentos agroecológicos formados no Brasil nas últimas três décadas, como camponesas, agricultoras familiares e trabalhadoras rurais. Neste sentido, há um movimento crescente pelo reconhecimento e valorização de suas práticas locais, reconhecendo-as como contribuições relevantes para a gestão ambiental e a sustentabilidade. Assim, agricultoras vêm se consolidando como militantes ambientalistas, responsáveis por questionar as desigualdades de gênero no setor rural e o tradicional modelo produtivo destruidor do meio ambiente. Em perspectiva ecofeminista, a construção dessas identidades comuns parte do questionamento de suas condições naturais, compreendendo a importância de entender ideologicamente o sistema de opressão, para que então sejam capazes de ressignificar o papel de homens e mulheres nas suas relações com o meio natural (SILIPRANDI, 2009, p. 37).

O debate ambientalista tem ganhado força e maior notoriedade pelos esforços da sociedade civil, sobretudo das mulheres, que alertam sobre o impacto das ações humanas na natureza, constantemente a fim de combater a pobreza, a subordinação de gênero e a destruição ecológica. Estabelecendo uma relação explícita, mas sem aderir ao essencialismo, as ecofeministas apresentam uma semelhança básica entre a natureza e as mulheres, visibilizando o fato do trabalho de ambas não ser valorizado o suficiente, apesar de ser por meio desse trabalho invisível que a sociedade se sustenta (SAMPAIO, 2021). Para elas, o novo sistema deve ser baseado em uma maior valorização do trabalho feminino, como o direito à agricultura familiar e de subsistência, segurança alimentar, produção livre de poluentes, conservação e preservação de habitats naturais e ecossistemas, assim como formas de energia limpa.

Partindo da compreensão de que pensar a questão ambiental é compreender que as mudanças climáticas impactam de modo desigual ambos os gêneros, as ecofeministas brasileiras solicitam seu protagonismo nesses espaços para reivindicarem mudanças.

O feminismo ecológico reconhece a mulher como sujeito político dotado de

direitos, de forma que possa sinalizar a urgência da pauta ambiental. Em linhas gerais, a consolidação do ecofeminismo representa um marco para o movimento feminista mundial, reconhecendo as mulheres como as primeiras vítimas da deterioração ambiental, ao mesmo tempo em que são indispensáveis para a defesa da natureza. O movimento apresenta uma nova perspectiva sobre os desafios rumo à igualdade de gênero, destacando que manter uma boa relação com o meio ambiente, bem como amenizar os impactos ambientais da existência das mulheres, são ações capazes de melhorar a qualidade de vida e condição existencial feminina.

REFERÊNCIAS

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CURTIN, Deane. Environmental ethics for a postcolonial world. Rowman & Littlefield Publishers, 2005.

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GASPARINI, Nicole Wey. Potência feminina na COP26: por que é urgente falar sobre gênero e crise climática. Um Só Planeta, 2021. Disponível em: https://umsoplaneta.globo.com/clima/noticia/2021/11/09/potencia-feminina-nacop26-por-que-e-urgente-falar-sobre-genero-e-crise-climatica.ghtml. Acesso em: 02 fev. 2022.

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WARREN, Karen J. (Ed.). Ecofeminism: Women, culture, nature. Indiana University Press, 1997.

32 Ativista pela igualdade de gênero, raça e mudanças climáticas. Formada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (FEBASP), é Embaixadora da Juventude da ONU e Diretora-Executiva do Instituto Perifa Sustentável.

33 O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas foi estabelecido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e a Organização Meteorológica Mundial em 1998, em resposta ao reconhecimento generalizado de que a influência humana nas emissões de gases de efeito estufa possuía o potencial de alterar o sistema climático. Seu papel é fornecer uma avaliação da compreensão de todos os aspectos das mudanças climáticas (IPCC, 2007. p. 2).

ECONOMIA FEMINISTA

Carolina Boniatti Pavese³⁴

Embora a economia não seja homogênea, existe um pressuposto comum às suas abordagens tradicionais: a definição da economia como a ciência de escolha. Trata-se do estudo de como as sociedades alocam recursos escassos entre os usos alternativos. É neste entendimento que repousa sua (falsa) objetividade e recaem os argumentos desta ser uma ciência neutra em relação às questões de gênero e igualmente imparcial no que tange a valores e moral. Diante da ausência de análises feministas, “a economia resulta em um relato tendencioso e incompleto dos fenômenos econômicos. É uma perspectiva que racionaliza e naturaliza a desigualdade de renda, pobreza e outras hierarquias sociais com base em gênero, raça, etnia, classe e nacionalidade” (BARKER, 2016, p. 1).

A economia feminista emerge para preencher essas lacunas analíticas e metodológicas e reverter a legitimação de desigualdades produzidas pelas abordagens convencionais. As feministas demonstram que o conhecimento científico, inclusive aquele econômico, inevitavelmente reproduz valores contextuais que refletem o gênero, classe, cultura e localização social de seus praticantes (HARDING, 1993; STRASSMANN, 1993; BARKER E FEINER, 2004). Sendo uma intersecção entre o feminismo e a economia, considerando pluralidade conceitual e teórica dos dois campos, a Economia Feminista não pode ser considerada uma proposta monolítica. Trata-se, então, de um conjunto de abordagens heterogêneas que convergem no posicionamento de gênero com sua categoria analítica central (ESQUIVEL, 2020).

Apesar da economia feminista ter ganho prominência nas últimas três décadas, suas origens remontam a reformas sociais e movimentos político-econômicos do século XIX e início do século XX, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Em seus primórdios, parte expressiva do debate estava centrada no argumento de que o acesso das mulheres à educação universal era condição fundamental à emancipação das mulheres. Para os liberais clássicos, a educação seria uma ferramenta de acesso aos “direitos naturais”, sem significar necessariamente uma “revolução social feminina”. Para os socialistas, a educação feminina

contribuiria para que parcela da classe trabalhadora compreendesse a luta de classes.

Adentrando o século XX, a chamada “primeira onda” do movimento feminista avançou discussões sobre questões trabalhistas, acesso à propriedade e herança. Essas temáticas permearam a escola marxista, ainda que de modo secundário, e foram assimiladas às abordagens neoclássicas, sobretudo no debate do trabalho doméstico e participação das mulheres no mercado laboral. Com a “segunda onda”, a partir da década de 70, as questões de gênero foram incorporadas de modo mais sistemático na academia.

É importante ressaltar que a gênesis e o desenvolvimento da economia feminista contemporânea são processos oriundos do processo e do encontro entre os chamados “estudos das mulheres” e a maior participação de acadêmicas numa área predominantemente masculina. Como ocorre em outras áreas, não apenas na academia, quando os sujeitos se tornam agentes da produção de conhecimento e da construção das narrativas há uma mudança de paradigma na leitura do objeto e na definição da ciência (JACOBSEN, 2020). Isso explica o papel da economia feminista em explorar normas sociais associadas a gênero, investigar a origem das desigualdades e incitar um debate sobre a natureza masculina das ciências e as consequentes implicações de apagamento das mulheres enquanto agentes e objetos do conhecimento científico.

A institucionalização da Associação Internacional de Economistas Feministas (AIEF), em 1992, pavimentou o caminho para a consolidação desta subárea, promovendo oportunidades de publicação, fomento, networking e criando arena formal de legitimação das abordagens feministas, desafiando a falsa noção de “neutralidade de gênero” da economia. Neste movimento, foram publicadas as primeiras obras dedicadas a analisar os pressupostos da economia sobre lentes feministas: “Além do homem econômico: teoria feminista e economia”, de Ferber e Nelson (1993) e “Fora da margem: perspectivas feministas sobre a economia”, editado por Feiner et. Al. (1995). Ainda em 1995, a AIEF lançou o Feminist Economics, que permanece sendo a principal revista acadêmica sobre o

tema (JACOBSEN, 2020).

Marilyn Power (2004) identifica “cinco pontos de partida metodológicos centrais” comuns à expressiva parte das análises feministas da economia: 1) o trabalho doméstico é parte vital de qualquer sistema econômico, devendo ser incorporado como aspecto analítico essencial, ao invés de secundário ou opcional; 2) o êxito econômico não se traduz apenas em termos monetários, ao contrário, deve-se ter com medida central o bem-estar humano; 3) ênfase na agencia é importante à compreensão de processos e resultados de eventos econômicos, já que dela derivam análises sobre estruturas e relações assimétricas de poder que as relações econômicas; 4) considerações éticas são fundamentais e inevitáveis nas análises econômicas, portanto convém reconhecê-las ao invés de negá-las; 5) “mulher” não se constitui uma categoria homogênea, de modo que muitas abordagens partem de uma perspectiva interseccional (POWER, 2004).

Em comum, as teorias feministas desafiam pressupostos da naturalização do trabalho doméstico, examinando o complexo nexo entre atividades de assistência não remuneradas e o mercado laboral. Esse processo se intensificou com a industrialização e concentração dos meios produtivos, uma vez que a família, considerada uma unidade de produção, cessou de exercer parcela significativa da atividade produtiva direcionada ao mercado. Assim, parte do trabalho doméstico da mulher deixa de estar diretamente associado a atividades econômicas remuneradas. Na divisão entre esfera econômica pública e espaço privado, inerente ao sistema capitalista, o trabalho da mulher sofre maior desvalorização (DELPHY, 2015; FEDERICI, 2018).

O apontamento do impacto desta divisão social do trabalho e da consequente desvalorização – ou desmonetização – das atividades exercidas predominantemente por mulheres é ponto de partida tanto das análises econômicas mais liberais quanto das interpretações mais críticas.

Waring (1989), por exemplo, analisa a definição econômica dominante de

termos como “trabalho” e “atividade econômica” para demonstrar como os sistemas políticos e econômicos domésticos e internacionais, tornam invisível o trabalho não remunerado realizado em grande parte por mulheres na esfera doméstica. De acordo com o modelo neoclássico de oferta de trabalho, atividades no mercado laboral monetizadas recebem o tratamento de produtivas (contribuindo ao PIB). Em contrapartida, o tempo disperso sem implicar em trabalho remunerado é considerado o tempo de “lazer”. Nesta lógica, atividades realizadas dentro da família ou para subsistência e não trocas de mercado são consideradas “improdutivas”. Consequentemente, o trabalho doméstico e a função reprodutiva das mulheres recebem o mesmo tratamento de “lazer”, pois não há transação monetária envolvida (WARING, 1989).

Para a economia feminista ortodoxa as desigualdades de gênero no mercado de trabalho são economicamente ineficientes, no que pode ser resumido em dois motivos. Primeiro, essas desigualdades acarretam perda de recursos escassos, uma vez que subtilizando um contingente expressivo de mão-de-obra, em alguns contextos até mais bem qualificada do que aquela masculina. Segundo, o empoderamento econômico está diretamente associado ao poder de compra, vital ao capitalismo. A privação das mulheres a uma participação no mercado de trabalho em condições equitativas às dos homens impactam negativamente em sua renda e consequente poder aquisitivo. Ao reproduzir a desigualdade econômica de gênero, a economia negligencia a exploração do potencial de um mercado consumidor composto por metade da população. As feministas ortodoxas concluem que a eliminação das desigualdades de gênero é salutar tanto para as mulheres quanto para a economia, o que é conhecido como argumento da “economia inteligente” (CHANT; SWEETMAN 2012).

Em outra contribuição importante, as economistas feministas enfatizam a grave negligência da análise macroeconômica ao desconsiderar o setor não-mercantil da economia. Isso tem implicações diretas na execução de práticas que reforçam ainda mais as desigualdades de gênero na sociedade. Reformas políticas que resultam da aplicação da teoria econômica neoliberal dominante veem o trabalho como um insumo não produzido para o crescimento econômico e desconsideram o papel do trabalho não pago, particularmente na reprodução social e na manutenção do lar e da comunidade (BERNARD; WALTERS 1995; ELSON,

1995).

Quantificar a produtividade econômica apenas em termos monetários leva a uma depreciação intencional do valor e da contribuição das mulheres para a sociedade. Os gastos com políticas sociais que aumentam o bem-estar humano são comumente percebidos como “despesas” e encargos financeiros, em última análise deslegitimando a demanda das mulheres por apoio econômico e político para serviços sociais que melhorariam a igualdade de gênero (FRASER E GORDON, 1997). À medida que os programas de ajuste estrutural aumentam a pressão sobre as mulheres para se envolverem em empregos remunerados, a flexibilidade da divisão do trabalho por gênero no domicílio resulta na intensificação do trabalho não remunerado das mulheres (FLORO, 1995). Ao demonstrar as fraquezas das reformas políticas que acompanham os processos de globalização, a análise econômica feminista aponta o caminho para o desenvolvimento de políticas alternativas, conscientes de gênero, consistentes com os objetivos do desenvolvimento humano.

Para compreender o que parece ser um paradoxo do sistema capitalista, Folbre e Hartmann (1988) e Bergmann (1989) argumentam que a racionalização da desvantagem das mulheres no mercado de trabalho decorre do retrato neoclássico do comportamento humano e da escolha “racional”. Em contraponto, teorias com “perspectiva de gênero” enfatizam variáveis não econômicas que as abordagens econômicas dominantes não consideram adequadas. A posição desfavorecida das mulheres no mercado de trabalho é vista como um reflexo da subjugação das mulheres na sociedade patriarcal como um todo. Similarmente, as teorias de gênero chamam a atenção para “quão próximo as características das ocupações femininas refletem os estereótipos comuns das mulheres e suas supostas habilidades” (ANKER, 1997, p. 6) e não são apenas uma extensão de seu papel doméstico. Daí, por exemplo, a suposição de que as mulheres são melhores no cuidado do que os homens e/ou têm menos força física do que os homens.

Para o marxismo feminista e o socialismo feminista, a divisão sexual do trabalho

está diretamente relacionada às necessidades do capitalismo, tanto por assegurar uma reserva de mão de obra flexível e vulnerável à maior exploração quanto por garantir a reprodução da força de trabalho a baixo custo. Consequentemente, variações nas taxas de participação das mulheres nas atividades econômicas remuneradas respondem às necessidades do capital. Embora este pareça um argumento que deve estar no centro da crítica ao capitalismo, as abordagens marxistas e socialistas tradicionais tendem a negligenciar as desigualdades de gênero embutidas nas questões de classe (CASTANO, 1999). Neste sentido, Heide Hartmann, uma das primeiras feministas socialistas, enfatiza que:

A luta contra o capital e o patriarcado não pode ter sucesso se o estudo e a prática das questões do feminismo são abandonados. Uma luta apontada apenas nas relações capitalistas de opressão irá falhar, uma vez que sua base apoios nas relações patriarcais de opressão serão negligenciados. E a análise do patriarcado é essencial para uma definição do tipo de socialismo que destruiria o patriarcado, o único tipo de socialismo útil para as mulheres (HARTMANN, 1981, p. 24).

Analisar como as estruturas e sistemas econômicos atuam na desigualdade de gênero em sua complexidade pressupõe a adoção de uma perspectiva interseccional. Jaggar (2001) reforça o entendimento de que “mulher” não deve ser tratado como um conceito homogêneo. Diferenças em termos de nacionalidade, idade, classe, religião, etnia, sexualidade, estado civil e maternidade definem a forma como as mulheres são percebidas na sociedade e, em última análise, as oportunidades que elas devem ter em participar das esferas econômica, política e social. Pomatto (2019) afirma que, ao adotar uma análise interseccional de gênero, as desigualdades estruturais construídas na economia se tornam visíveis, revelando as diferentes realidades dos indivíduos e a forma como são impactados pelas políticas econômicas, comerciais e financeiras, em nível doméstico e internacional. Através de uma abordagem interseccional, as desigualdades que penalizam as mulheres são facilmente identificadas (POMATTO, 2019). Várias acadêmicas e ativistas têm contribuído na produção de conhecimento e análises nesta direção (BENÉRIA 1987, 1992; BERGERON, 2009; VALDIVIESO, 2009).

Apesar de inegáveis avanços e de sua indiscutível importância, a ausência de uma abertura intelectual universal à agenda de pesquisa feminista e aos desafios de se manter uma heterodoxia na academia, se apresentam como desafios para que a economia feminista rompa com certa marginalização do estudo e debate econômico e permeie as abordagens mais tradicionais, assim ressignificando nosso entendimento sobre economia e seu papel na reprodução (ou emancipação) das relações sociais.

REFERÊNCIAS

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WARING, Marilyn. If Women Counted: A New Feminist Economics. London: Macmillan, 1989.

34 Professora de Relações Internacionais na ESPM. PhD em Relações Internacionais pela London School of Economics (2014). Mestre em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas, UNESP-UNICAMP-PUC-SP (2007) e especialista em Estudos Europeus pelo Colégio Europeu de ParmaItália (2007). Graduada em Relações Internacionais pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2001) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (2003). Possui experiência de docência e pesquisa na PUC-Minas, London School of Economics e Universidade de Oxford. Atua na área de Relações Internacionais, com ênfase em cooperação internacional e organizações internacionais, principalmente nos seguintes temas: Relações Brasil-União Europeia, Integração Regional, Governança Global e Feminismo.

EMPODERAMENTO

Jéssica Pereira Arantes Konno Carrozza³⁵

A dominação está presente nas sociedades ao longo da história sob diferentes formas (BAQUERO, 2012, p. 173). O seu estudo assume centralidade no diálogo com as mais variadas áreas do conhecimento, como a economia, direito, saúde pública, serviço social, administração pública (BERTH, 2020, p. 152), política e educação (BAQUERO, 2012, p. 173), também ao se questionar a possibilidade de emancipação do ser humano. Existe um vasto campo para pensar e agir em formas de resistência e de superação de diversas opressões que atingem grupos vulneráveis.

Nesse sentido, tem se tornado comum, tanto no discurso acadêmico, quanto em órgãos governamentais e não governamentais, na política e até mesmo no movimento feminista, falar sobre empoderamento, sobretudo no contexto do discurso sobre gênero e desenvolvimento (SARDENBERG, 2006). Contudo, o que a política, por exemplo, entende como empoderamento não pode ser a mesma coisa que as feministas latino-americanas, em especial, entendem por empoderamento. Atrás dessa palavra escondem-se vários conceitos bastante diferentes.

A origem da palavra é inglesa com elementos em latim na sua formação. No Brasil, “empoderamento” é um neologismo. Literaturas apontam que a construção do conceito teve influência de Paulo Freire, quando analisou na década de 1960, em “A pedagogia do oprimido”, a realidade de grupos oprimidos, que culminou na inspiração da teoria do empoderamento (BERTH, 2020, p. 36), popularizada nos Estados Unidos com a publicação do livro “Black empowerment: social work in oppressed communities”³ , no qual Barbara Bryant Solomon discute as dificuldades de desenvolver trabalhos sociais voltados à população negra.

No que diz respeito às raízes do empowerment, pode-se dizer que estão na

Reforma Protestante. Hugh Hewitt (apud BAQUERO, 2012, p. 175) destaca que o movimento religioso de Martinho Lutero teve consequências que foram além da religião. A escrita é associada ao poder, uma vez que o domínio dessa tecnologia era de conhecimento restrito. O processo de reforma luterana, iniciado no século XVI, oportunizou o empoderamento das pessoas pois a tradução da bíblia do latim para o dialeto local possibilitou a leitura dos textos sagrados entre a comunidade, tornando-os sujeitos de sua religiosidade.

Contemporaneamente, o empoderamento se expressa nas lutas pelos direitos civis e nos movimentos feministas e de minorias. Nas palavras de Gohn (2002, p. 72-73),

sua utilização nos anos 90 ocorre – menos pela sua dimensão políticaparticipante – que deu espaço aos movimentos populares e aos militantes de facções político-partidárias, nos anos 70-80, para realizarem um trabalho “de base”, gerador de consciências críticas no sentido pleno da transformação social, contestador da ordem social vigente; e mais pela sua dimensão de empowerment (empoderamento) dos indivíduos e grupos de uma comunidade – gerando um processo de incentivo às potencialidades dos próprios indivíduos para melhorarem suas condições imediatas de vida, objetivando o “empoderamento” da comunidade, isto é, a capacidade de gerar processos de desenvolvimento auto-sustentável, com a mediação de agentes externos – os novos educadores – atores fundamentais na organização e o desenvolvimento dos projetos. O novo processo ocorre, predominantemente, sem articulações políticas mais amplas, principalmente com partidos políticos ou sindicatos.

É fato que o feminismo negro ou o movimento de mulheres negras, dentro dos feminismos, foi responsável pelo resgate conceitual e ressignificação do empoderamento. Resgate porque, de acordo com Berth (2020, p. 125), “não é novidade para os movimentos de mulheres negras a necessidade de busca por processo de empoderamento como condição de sobrevivência”. Ainda que o termo tenha nascido de homens teóricos brancos, foram as práticas interseccionais que evidenciaram esse conceito na luta de todos os movimentos

por emancipação e libertação sociopolítica.

Contudo, antes de iniciar as reflexões sobre os processos de empoderamento, é necessário elucidar exatamente de que poder se está falando quando é utilizado o neologismo “dar poder” (BERTH, 2020, p. 18). Isso porque, para Vasconcelos (apud MARINHO; GONÇALVES, 2016, p. 81), empoderamento é um conceito fluido e muitas vezes utilizado de forma maleável, de acordo com a necessidade e o corpo ideológico de cada grupo social que dele se apropria. Dessa forma, quem dá o poder e de que tipo de poder se está falando?

De acordo com Berth (2020, p. 21), dar poder é falar na condução “articulada de indivíduos e grupos por diversos estágios de autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e autoconhecimento de si mesmos e de suas habilidades humanas, de sua história” e, principalmente, do entendimento quanto à sua posição social e política, tanto na esfera individual, quanto coletiva.

Uma das contradições fundamentais do uso do termo “empoderamento” está presente no debate entre empoderamento individual e coletivo. “Fazer as coisas por si mesmo”, “ter êxito sem a ajuda dos outros” é uma visão individualista que mascara as relações de poder das estruturas contra a base. A prática individual do empoderamento desconecta as pessoas do contexto sociopolítico, histórico, de solidariedade e do que representa a importância da cooperação (LEÓN, 2001, p. 97).

Dessa maneira, pode-se afirmar que poder é a capacidade que um indivíduo ou grupo possui, em algum nível, de encontrar informações e novas percepções críticas sobre si mesmo e sobre o mundo, e conhecer suas habilidades e características próprias, herdadas pela ancestralidade que lhe é inerente, para criar ou descobrir ferramentas e poderes de atuação no meio em que vive e em prol da coletividade (BERTH, 2020, p. 21).

A junção de muitos indivíduos empoderados forma uma coletividade empoderada que, consequentemente, é formada por “indivíduos com alto grau de recuperação da consciência do seu eu social, de suas implicações e agravantes” (BERTH, 2020, p. 52). Portanto, com cooperação e solidariedade, torna-se evidente a possibilidade de alterar as estruturas sociais atuais (LEÓN, 2001, p. 97). A perspectiva da teoria do empoderamento visa primordialmente a mudança social com o rompimento, tanto individual, quanto coletivo³⁷, das estruturas de poder hierarquizantes (BERTH, 2020, p. 53).

O fato de um sujeito que pertence a um grupo oprimido ter desenvolvido pensamento crítico acerca de sua realidade não retira a dimensão estrutural que o hierarquiza. Mesmo que tenha saído do lugar de subalternidade, enquanto a sua comunidade não se empoderar, esse sujeito continuará em constante fragilidade social e exposto à violência que o atinge. A teoria do empoderamento deve ser aplicada como instrumento de emancipação e erradicação dessas estruturas que oprimem – razão pela qual o empoderamento é um processo gradual e de rompimento (BERTH, 2020, p. 52-58).

Sobre silenciamento e ignorância prejudicial contra grupos oprimidos, pode-se pensar a realidade das mulheres negras a partir do relato de Monique Evelle, ativista negra brasileira: “Nunca fui tímida, fui silenciada” (BERTH, 2020, p. 58). De acordo com a autora, a longo prazo, esse silenciamento dos oprimidos e o desinteresse de grupos dominantes em falar sobre a dominação das estruturas deixaram um enorme atraso na produção de conhecimento profundo sobre a erradicação dos problemas históricos.

Muitas vezes, quando o sujeito está imerso na realidade opressiva, ele não tem uma percepção clara de si mesmo enquanto oprimido. Neste nível, ele pode não estar comprometido com a luta para superar a contradição enquanto membro de uma classe hierarquizada: “um polo não aspira a sua libertação, mas a sua identificação com o polo oposto” (BERTH, 2020, p. 22). O empoderamento não é inverter esses polos “opressor/oprimido”, mas sim uma postura de enfrentamento para eliminar a situação injusta e equilibrar a existência em

sociedade.

Portanto, quando o conceito de empoderamento é distanciado de seus sentidos originais, “o resultado costuma ser a apropriação de um discurso pasteurizado, de fachada, paternalista, mais interessado em manter o estado atual das coisas do que em estimular o caldo efervescente de personalidades e demandas silenciadas por opressões que se cruzam” (BERTH, 2020, p. 154). Quando se fala em empoderamento, conclui-se que se trata de um conceito complexo, distorcido e incompreendido, o que se deve em grande parte ao debate acrítico sobre o tema (BERTH, 2020, p. 30).

O empoderamento não tem um caráter universal, daí parte a necessidade de questionar continuamente de que poder se está falando, e analisar como subverter a lógica atual. Empoderar é, antes de tudo, pensar em caminhos de reconstrução das bases sociopolíticas, rompendo com o que foi posto ao longo da história. Para Batliwala (apud BERTH, 2020, p. 24), o termo se refere à resistência, protesto e mobilização coletivas que questionam as bases das relações de poder. Dessa forma, faz-se necessária a análise sob uma perspectiva interseccional que combina opressões, uma vez que o oprimido não é um conceito abstrato, mas marcado por gênero, raça, sexualidade e outras categorias.

REFERÊNCIAS

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MARINHO, Paloma Abelin Saldanha; GONÇALVES, Hebe Signorini. Práticas de empoderamento feminino na América Latina. Revista de Estudios Sociales, n. 56, p. 80-90, abr./jun. 2016.

SARDENBERG, Cecília M. B. Conceituando “Empoderamento” na Perspectiva Feminista. I Seminário Internacional Trilhas do Empoderamento de Mulheres

(Pathways of Women’s Empowerment RCP) – Projeto TEMPO: NEIM/UFBA, 2006.

35 Mestranda em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Bolsista CAPES com dedicação exclusiva. Editora Associada da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas - Qualis Capes B1 (Versão eletrônica ISSN: 2447-8709). Graduada em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM; graduada em administração pelo Centro de Ensino Superior em Gestão, Tecnologia e Educação – FAI. E-mail: [email protected]

36 “Empoderamento negro: trabalho social em comunidades oprimidas”, em tradução livre.

37 “(...) não significa dizer que a dimensão individual esteja alijada do processo, ao contrário: o empoderamento individual e coletivo são duas faces indissociáveis do mesmo processo. O empoderamento individual está fadado ao empoderamento coletivo, uma vez que uma coletividade empoderada não pode ser formada por individualidades e subjetividades que não estejam conscientemente atuantes dentro de processos de empoderamento” (BERTH, 2020, p. 54).

ENCARCERAMENTO FEMININO

Paloma Silveira Pique Dourador³⁸

O encarceramento é um fenômeno inconcebível no período medieval, dito isto, é possível defini-lo como um elemento próprio do estatuto do processo de humanização das penas. Desse modo, tem-se que os sistemas punitivos foram e continuam sendo alterados para atender as evoluções sociais, principalmente no tocante a modificação para o sistema capitalista de produção; enquanto no Absolutismo os suplícios eram utilizados para ostentar o poder do rei, na modernidade não há mais possibilidade de grandes encenações teatrais como formas de punir, abrindo espaço para o poder disciplinar nas instituições prisionais (ALVAZREZ; GAUTO; SALLA, 2006, p. 338).

Assim, o encarceramento repousa em um dos modelos punitivos investigados pelo filósofo francês Michel Foucault — com maior detalhamento — na obra Vigiar e Punir: nascimento da prisão, publicada em 1975³ — considerada uma das principais obras que marcam o pensamento genealógico⁴ do filósofo. Foucault examinou dois estilos de punição que não se assemelham ou pertencem a um gênero comum, mas sim a um determinado estilo penal, os suplícios e a utilização do tempo⁴¹, sendo este último o repousar no encarceramento.

Quando analisamos o encarceramento, devemo-nos ter à vista que ele pertence ao modelo punitivo das prisões, penitenciárias e, assim, ao cárcere. Estreitando nosso plano de análise ao Brasil, observamos a ostentação da quarta maior população carcerária do mundo e, deste montante, tem-se que uma grande parcela das matrículas geradas correspondem a mulheres. Conforme o último relatório realizado pelo Levantamento de Informações Penitenciárias (Infopen), o sistema prisional brasileiro custodiou 37.828 mulheres no primeiro semestre de 2017. Ainda, conforme o referido levantamento de dados, o Estado de São Paulo concentrou 31,6% da população prisional feminina do país (cerca de 12.183 mulheres privadas de liberdade), seguido pelo Estado de Minas Gerais com 10,6% (total de 3.365 mulheres) e o Estado do Rio de Janeiro, ocupando o terceiro lugar com 7,3% (2.168 mulheres)⁴². As três capitais custodiam cerca de 17.716 (dezessete mil e setecentos e dezesseis) detentas. Mulheres gozando das

mais diferentes particularidades — físicas, psicológicas, econômicas e socioculturais —, compartilham uma mesma característica, a matrícula em uma das penitenciárias brasileiras com maior número populacional. Ainda, as estatísticas apontam que entre os anos de 2000 e 2014, a população penitenciária feminina no Brasil ostentou um crescimento de 567,4%, enquanto a masculina, no mesmo período, correspondeu a apenas a 220,20% (CANES, 2015).

A partir dos dados sobre o encarceramento feminino no Brasil, evidencia-se que “mesmo com o avanço nas discussões sobre penas alterativas e sobre o direito alterativo em vários países no mundo, o sistema penitenciário brasileiro tem sido tratado predominantemente sob a estreita lógica do confinamento de pessoas” (JULIÃO, 2016, p. 47). É nessa verdadeira caixa de clausura que as mulheres são diariamente depositadas e esquecidas, como se ao ingressar em uma unidade prisional fossem, automaticamente, destituídas de humanidade. Não sem propósito que “as prisões se caracterizam como teias de relações sociais que promovem violência e despersonalização das pessoas” (ROSA; ONOFRE, 2016, p. 159).

No prefácio à obra Mulheres privadas de liberdade: vulnerabilidades, desigualdades, disparidades socioeducacionais e suas intersecções de gênero e pobreza (2016), Vera Maria Ramos de Vasconcellos nomeia filhas da exclusão o grupo de mulheres em instituições brasileiras de privação de liberdade; é sob as filhas da exclusão que repousa uma vulnerabilidade redobrada, denominada por alguns autores como dupla vulnerabilidade, uma vez que diz respeito à privação de liberdade e, também, a vulnerabilidade a partir de questões de gênero (GONÇALVES; COELHO; BOAS, 2017, p. 27).

Resta evidente, portanto, que no sistema prisional, para além das mazelas comuns à punição, o gênero feminino arca com moléstias não imagináveis à concepção masculina. O cárcere é também um lugar de discriminação em face do gênero. Assim, de acordo com o Instituo Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC⁴³), “o cárcere é, em si mesmo, uma violação de direitos que atinge de forma mais intensa as mulheres” (2016). A par disso, Gonçalves, Coelho e Boas

pontuam que embora há situações em que as dificuldades das mulheres são as mesmas dos homens no cárcere, como o ambiente, o sistema e a superlotação, existem questões específicas da mulher custodiada como a situação dos filhos e das filhas, a gravidez, o aspecto emocional, as perspectivas após o cumprimento da pena e etc., que precisam ser observadas. Diagnosticar o encarceramento feminino é visualizar que “a violência da prisão não ocorre simplesmente porque mulheres são tratadas da mesma forma que homens na prisão, mas porque o gênero é instrumentalizado como mecanismo de controle” (ITTC, 2016, s.p).

Desse modo, se faz necessário o questionamento sobre quem são essas mulheres que fazem número quando pensamos no encarceramento brasileiro. Para responder ao questionamento, valer-nos-emos do Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil (2017, s.p), que dispõe que a mulher presa no Brasil é: “jovem, mãe solteira, afrodescendente e na maioria dos casos, condenada por envolvimento com tráfico de drogas (ou entorpecentes)”. A investigação sobre o encarceramento no Brasil não pode furtar-se do exame da constituição da mulher no sistema prisional a partir do sexismo e do racismo.

O encarceramento feminino pressupõe que “as mulheres que deveriam estar privadas de seu direito de ir e de vir têm restringido todo o conjunto de direitos concernentes à dignidade humana” (GONÇALVES; COELHO; BOAS, 2017, p. 70) e, “somente com o desencarceramento é possível eliminar as violações às quais o sistema prisional expõe as mulheres” (ITTC, 2016, s.p). Gênero, poder e encarceramento não podem ser afastados, pois eles constituem o discurso sobre a mulher no sistema prisional.

REFERÊNCIAS

ALVAREZ; GAUTO; SALLA. A contribuição de David Garland: a sociologia da punição. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ts/a/nySB45jMfqqScTJXWTk7d6S/?

lang=pt. Acesso em 10 set. 2021.

CANES, Michèlle. Número de mulheres presas cresceu mais de 500% no Brasil nos últimos 15 anos. Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/numero-demulheres-presas-cresceu-mais-de-500-no-brasil-nos-ultimos. Acesso em: 4 mai. 2022.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2018.

GONÇALVES, Betânia Diniz; COELHO, Carolina Marra Simões; BOAS, Cristina Campolina Vilas. Mulheres na prisão: um estudo qualitativo. Editora Appris Ltda. Curitiba/PR, 2017.

HOFFMAN, Marcelo. Michel Foucault: Conceitos Fundamentais. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.

INFOPEN. Relatório Temático sobre mulheres privadas de liberdade – junho de 2017. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública - Departamento Penitenciário Nacional, 2017.

ITTC. Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. 2016. Disponível em: http://ittc.org.br/ittc-explica-mulheres-presas-miolo-de-pao/. Acesso em 4 mai. 2022.

JULIÃO, Elionaldo Fernandes. Dossiê sobre as Políticas de Encarceramento de Mulheres no Brasil. In.: MATTOS, Carmen Lucia Guimães de; ALMEIDA, Sandra Maciel de; CASTRO, Paula Almeida de; BORGES, Luís Paulo Cruz. (orgs.) Mulheres privadas de liberdade: vulnerabilidades, desigualdades, disparidades socioeducacionais e suas intersecções de gênero e pobreza. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

ROSA, Camila Simões; ONOFRE, Elenice Maria Cammarosano. Mulher, Negra e Encarcerada: Reflexões sobre processos de opressão. In.: MATTOS, Carmen Lucia Guimães de; ALMEIDA, Sandra Maciel de; CASTRO, Paula Almeida de; BORGES, Luís Paulo Cruz. (orgs.) Mulheres privadas de liberdade: vulnerabilidades, desigualdades, disparidades socioeducacionais e suas intersecções de gênero e pobreza. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

38 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), área de concentração Constitucionalismo e Democracia, Linha de Pesquisa Efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católicas de Minas Gerais. Advogada. E-mail: [email protected]

39 De acordo com Hoffman: “Vigiar e Punir: o nascimento da prisão, de Michel Foucault, publicado em 1975, contém sua exposição mais famosa e elaborada do poder disciplinar” (2018, p. 41).

40 Utilizamos a concepção do termo “genealogia” a partir de Margaret A. Mclaren, para quem “as genealogias de Foucault são uma forma de crítica social. Ele enfatiza consistentemente a contingência de processos históricos, indicando que as coisas poderiam ser diferentes” (2016, p. 52).

41 A utilização do tempo surge com uma economia do castigo, a qual foi redistribuída na Europa e nos Estados Unidos, evidenciando uma “nova justificação moral ou política do direito de punir” (FOUCAULT, 2018, p. 13).

42 Para maiores informações ver: INFOPEN. Relatório Temático sobre mulheres privadas de liberdade – Junho de 2017. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública - Departamento Penitenciário Nacional, 2017, p. 9-10.

43 O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania – ITTC é uma organização de Direitos Humanos fundada em 1997 cuja visão é erradicar a desigualdade de gênero, garantir direitos e combater o encarceramento.

EQUIDADE DE GÊNERO

Renata Furtado de Barros⁴⁴

A humanidade tem uma história que é permeada de práticas culturais e tradicionais que, por um exercício costumeiro de repetição, justificam-se de forma incontestável e respaldam suas diretrizes em uma naturalização da conduta humana. Em muitos aspectos as práticas culturalmente instituídas são excludentes e permeadas de preconceitos que reafirmam a hegemonia dos grupos, que estão na detenção do poder, sobre todos os outros colocados em uma posição de vulnerabilidade. A naturalização desses conceitos culturais hegemônicos limita a possibilidade de se questionar os papéis culturalmente limitantes, instituídos a cada pessoa, e os papéis de gênero são tão arraigados na cultura, que dificilmente permitem resistência, humanização e equidade.

Os valores e crenças vividos, em muitos momentos, não refletem a necessária preocupação com a centralidade das relações humanas dignas e plurais, perpetuando práticas que são excludentes e violadoras de certos grupos, dentre eles as mulheres.

O perigo dessas práticas tradicionais nocivas à defesa plural e igualitária dos direitos humanos de todas as pessoas, dentre elas, as mulheres, é se impor uma limitação cultural intransponível e justificada pela teoria da restrição de direitos com base na natureza humana, que exclua por definitivo os grupos colocados em posições de inferioridade na relação político social em razão do seu gênero.

O termo equidade, muitas vezes associado como sinônimo do termo igualdade, tem sido utilizado na reflexão sobre as relações humanas desde a Antiguidade e tem sua origem no termo latino aequitas que significa equiparado a um nível de justiça aplicada, simétrico e efetivo (WILLIAMS, 2015, p. 76).

O desenvolvimento das reflexões sociais sobre a igualdade implica em um pensamento ideológico geral de compreensão da necessidade jurídico normativa de se instituir formalmente a igualdade entre os indivíduos. A equidade vai além, pois trabalha a percepção crítica social dos limites culturais e jurídicos impostos aos grupos vulneráveis, para se ter uma igualdade material, diante de uma perspectiva de proteção de direitos humanos que reconheça a universalização desses direitos sem desrespeitar as diversidades caracterizadoras de cada ser humano.

Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza. Temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (SANTOS, 2003, p. 56).

Discutir a equidade de gênero é polêmico diante do senso comum, uma vez que desde as primeiras abordagens de análise da relação de igualdade, entre os seres humanos, se instituiu um comparativo físico entre eles, o que se vincula à utilização conceitual do termo gênero como discriminante dos seres humanos pela separação binária e genital do mundo entre o que seriam os homens e as mulheres (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 291).

A discussão política de equidade é indispensável segundo Jacques Rancière e só encontra espaço no que ele chama de dissenso, ou seja, das discordâncias e rupturas feitas com os paradigmas naturalizados pelo senso comum da sociedade que interrompem a lógica da dominação de uns sobre os outros. A equidade não se instituiu naturalmente na ordem social, ela demanda lutas e se apresenta contra o curso colocado como natural das coisas (RANCIÈRE, 2013, p. 49).

Igualdade é o que eu chamei de pressuposto. Não é, que seja entendido, um princípio ontológico fundador, mas uma condição que só funciona quando é colocado em ação. Consequentemente, a política não é com base na igualdade no

sentido de que outros tentam baseá-lo em algum geral predisposição humana, como linguagem ou medo. Igualdade é, na verdade, a condição necessária para ser capaz de pensar política. No entanto, a igualdade é não, para começar, política em si. Ele faz efeito em muitas circunstâncias que não têm nada de político sobre eles (no simples fato, por exemplo, que dois interlocutores podem se entender) (RANCIÈRE, 2013, p. 48, tradução nossa).⁴⁵

A filosofia ocidental, elaborada de forma majoritária por homens faz questionamentos, desde a República de Platão, sobre a igualdade de homens e mulheres em relação às suas virtudes. Essa preocupação é política e gera uma espécie de pensamento estereotipado de imagens de sexo e/ou identidade de gênero. O que acaba se criando, de forma intencional, é um discurso de impotência política do feminino em relação ao masculino, gerando a ideia de que a sociedade nada pode fazer diante dessa diferença natural, além de reproduzir e reafirmar a desigualdade de gênero.

Simone de Beauvoir em sua obra O Segundo Sexo questiona as matrizes naturalistas de percepção da existência humana. Ela afirma que a constituição do que é ser mulher não passa pela sua natureza, mas pela elaboração cultural do que se espera e se permite que ela seja. O gênero é forjado pela sociedade que se apropria do que a mulher poderia ser diante de suas potencialidades, para determinar o que ela deve ser nas expectativas sociais naturalizadas (BEAUVOIR, 2014, p. 324).

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino. (BEAUVOIR, 2014, p. 324).

Judith Butler vai além na discussão sobre a equidade de gênero e questiona as próprias bases de instituição do gênero como um critério classificatório da identidade humana que demande equidade. Ela questiona “Existe um gênero que

as pessoas dizem ter, ou é um atributo essencial que uma pessoa é dita ser, como implícito na questão ‘Que gênero você é?’” (BUTLER, 2006, p. 75, tradução nossa)⁴ .

A ruptura com ideia da existência de uma única identidade do masculino ou feminino é necessária, segundo Butler, uma vez que a identidade humana é sempre provisória e está em constante reformulação (2006, p. 225). A equidade de gênero só será verdadeiramente alcançada na perspectiva a partir do momento em que o sexo possa ser desnaturalizado, passando a ser investigado como entidade discursivamente construída ao longo da história como forma de dominação política (BUTLER, 2006, p. 252).

A caracterização da identidade de sexo e de gênero é performativa, ou seja, o que é colocado como natural, em realidade se institui como uma sequência de atos sem ator ou autor preexistentes, definidos como atos naturais do gênero masculino ou feminino. A identidade da mulher limita-se constantemente por essa dinâmica de poder que lhe restringe a um devir, um construir sem origem ou fim que devem atender aos paradigmas sociais de poder. Toda identidade de gênero é uma forma de paródia produzida das relações de poder (BUTLER, 2006, p. 335).

Sendo assim, a ideia de natureza e gênero humano contidas nos dicionários deve ser descontruída e reconstruída sob a perspectiva da equidade. A equidade de gênero só será verdadeiramente alcançada quando a sociedade se despir da necessidade hegemônica de classificar os seres humanos com o critério limitante do gênero. Equidade se alcança pela percepção de que a identidade humana está aberta a certas formas de intervenção e de ressignificações contínuas. As práticas discursivas e democráticas devem levar em conta o direito a igualdade e a luta por equidade que deve ser combativa dos paradigmas limitantes do sujeito, dentre eles o gênero.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London: Routledge, 2006.

RANCIÈRE, Jacques. The Politics of Aesthetics. London: Bloomsbury Academic, 2013.

ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michael. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

WILLIAMS, Raymond. Keywords: a vocabulary of culture and society. New York: Oxford University Press, 2015.

44 Doutora em Direito Público pela PUC Minas (2015). Mestra em Direito Público pela PUC Minas (2010). Bacharel em Direito pela Universidade

FUMEC (2005). Especialização em Direito Processual pelo IEC PUC Minas/IAMG (2007). Professora Adjunto I da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tem experiência na área de Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional e Internacional, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, constitucionalização do direito, direito constitucional, guerra cibernética e Filosofia do Direito. Professora colaboradora do Programa da Pós-Graduação em Direito da PUC Minas, onde leciona a disciplina Tópicos Especiais em Direitos Humanos e Decolonialidade, Gênero, Raça e Sustentabilidade Ambiental.

45 “Equality is what I have called a presupposition. It is not, let it be understood, a founding ontological principle but a condition that only functions when it is put into action. Consequently, politics is not based on equality in the sense that others try to base it on some general human predisposition such as language or fear. Equality is actually the condition required for being able to think politics. However, equality is not, to begin with, political in itself. It takes effect in lots of circumstances that have nothing political about them (in the simple fact, for example, that two interlocutors can understand one another)”. (RANCIÈRE, 2013, p. 48).

46 “Is there “a” gender which persons are said to have, or is it an essential attribute that a person is said to be, as implied in the question “What gender are you?” (BUTLER, 2006, p. 75).

ESCREVIVÊNCIAS

Zane do Nascimento⁴⁷

Nas duas primeiras décadas dos anos 2000, as escritoras negras brasileiras provocaram verdadeiro giro literário tornando público a produção de contos, crônicas, poesias, artigos, ensaios e crítica literária em blogs pessoais. Diante do atual cenário pandêmico que aprofunda a interação literária e acadêmica com as telas, urge abordar a nuance insubmissa de escritoras como Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Esmeralda Ribeiro, Waleska Barbosa e Fátima Trinchão, que vertem para o ambiente digital as escrevivências. Este introito possibilita afirmar o sentido do caminhar dessas autoras em prol das práticas e políticas afirmativas que reverbera no conceito-corpóreo das escrevivências, como pretendemos apresentar.

Em sua dissertação de mestrado intitulada Literatura Negra: uma poética da nossa afro-brasilidade, defendida pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRio), Conceição Evaristo (1996, p. 96) destaca a importância do corpo negro nas expressões e manifestações artísticas como a dança, o jongo especificamente, e o samba de partido alto entoado por nomes como Jovelina Peróla Negra. Ela lembrando-nos que a “escrevivência do corpo negro é realizada não só pela apresentação física desse corpo em si, de seus movimentos religiosos ou lúdicos, mas também pela construção material que esse corpo opera, que esse corpo produz”.

Assim sendo, para compreender o vocábulo apresentado, faz-se necessário situar a corporeidade negra como lócus da restituição da memória e identidade negra. Como nos ensina a educadora Nilma Lino Gomes (2017, p. 94), “o corpo negro não se separa do sujeito”, de igual forma, ela continua afirmando que “a identidade se constrói de forma coletiva, por mais que se apresenta individual”. De outro modo, Conceição Evaristo (1996, p. 29) destaca a importância do lugar social para a escritura negra, afinal, as escrevivências têm como princípio a consciência política de autoria e vivência negra para concretizar a política do “escrever inscrevendo-e-se-vendo”.

À vista disso, é possível afirmar a consonância do discurso literário a partir daquilo que se vive cotidianamente. Ou seja, tomando para si o protagonismo da cena, o sujeito coletivo negro tece o seu “escrever-viver-vendo-sendo-e-estandodiante-e-dentro”, grafado desta maneira hifenizada para afirmar a ubiquidade dos sentimentos e ações de sua criação literária, ou melhor, das suas escrevivências (EVARISTO, 1997, p. 29).

Nesse sentido, Conceição Evaristo, autodefinida doutora-em-literatura comparada-mãe-de-Ainá-Evaristo-professora-aposentada-escritora-intelectualinsubmissa-mulher-negra, enfatiza em inúmeras ocasiões públicas que o seu primeiro público-leitor e crítica literária que a legitimou foi o Movimento Social Negro. Isto posto, é preciso contextualizar as políticas e ações deste ator político, como define a educadora Nilma Lino Gomes (2017), para melhor entender a posição tomada pela referida autora ao aproximar o quilombo do conceitocorpóreo das escrevivências.

Para a historiadora Beatriz Nascimento (2021), naquela época da década de 1970, quando jovens negras/os de outros estados haviam se mudado para a cidade do Rio de Janeiro como a própria Conceição Evaristo, a fundamentação epistemológica que (re)funda o Movimento Social Negro perpassa pelo resgate do quilombo, cujo papel central fundamentou a ressignificação da raça em sua perspectiva sociológica. Lembrando uma passagem fundamental dessa discussão, Conceição Evaristo (2010, p. 139) explicita a predileção por adotar o quilombo e não a senzala, “porque quilombo é um lugar de escolha, a senzala, como gueto, guarda o sentido de um lugar vivido por imposição”.

Ante o exposto, a história oficiosa do Brasil é mobilizada das margens ao centro pela literatura negra a fim de denunciar a estigmatização e/ou apagamento do sujeito coletivo negro em diversos âmbitos, entre elas, a literatura. Historicamente, ela foi condizente com as estereotipias ligadas à população negra, como a construção de personagens nas quais as mães pretas foram consideradas infecundas, outras mulheres negras libidinosas, crianças e homens

negros violentados e/ou violadores, por isso a autora insiste em dizer que o “corpo negro vai ser alforriado pela palavra poética” das escrevivências (EVARISTO, 2010, p. 134).

No Brasil, duas obras são leituras recomendáveis para compreender o alcance do conceito-corpóreo das escrevivências, respectivamente, Escrevivência: Identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (DUARTE; CÔRTES; PEREIRA, 2016) e Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo (DUARTE; NUNES, 2020). Nesta segunda obra, em especial, a autora homenageada reflete sobre o conceito em voga, cunhado como postura contra-hegemônica frente a colonialidade do projeto literário vigente. Isto posto, respondendo a indagações suscitadas na Academia e para além dela, Conceição Evaristo insiste que o intento do seu projeto literário é criar personagens negras humanizadas, exatamente “onde outros discursos literários negam, julgam, culpabilizam ou penalizam” (DUARTE; NUNES, 2020, p. 16).

Assim, as vidas-grafias de Conceição Evaristo confundem-se com a apropriação sociopolítica do quilombo pelo Movimento Social Negro que, como percorrido neste breve vocábulo, estabeleceu forte influência na feitura do conceitocorpóreo das escrevivências. No referendado Literatura Negra: uma voz quilombola na literatura brasileira, Conceição Evaristo (2010, p. 133) evidencia essa premissa, reiterando aquilo que ela preferiu designar sendo a mística do quilombo na literatura negra brasileira.

Portanto, a feitura da criação literária de autoria negra, especialmente no tocante às escritoras negras brasileiras, parte do ato político de “escrever inscre-ViVendo-se, cuidando para que não se dê um branco na memória, deixando que o corpus negro caia no vazio da deslembrança (EVARISTO, 1996, p. 100).

REFERÊNCIAS

DUARTE, Constância Lima; CÔRTES, Cristiane; PEREIRA, Maria do Rosário (Orgs). Escrevivências: Identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. Belo Horizonte: Idea, 2016.

DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabela R (Orgs). Escrevivência: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020.

EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: uma poética de nossa afrobrasilidade. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). Departamento de Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), 1996.

EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: uma voz quilombola na literatura brasileira. In: PEREIRA, Edimilson de A. Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010, p. 132-142.

GOMES, Nilma L. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis-RJ: Vozes, 2017.

NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

47 Mestra em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). Possui

graduação em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia e Estudos Latino-Americanos (UnB). Entre 2017 e 2019 atuou como facilitadora de Oficinas Escrevivências, um projeto coletivo gestado no âmbito do Decanato de Assuntos Comunitários da UnB voltado para o protagonismo das/os estudantes da Assistência Estudantil. Atualmente, apresenta o programa de podcast Opará.

ESTATUTO DA MULHER CASADA

Bianca Tito⁴⁸

A Lei nº 4.121 de 27 de agosto de 1962, que ficou conhecida como “Estatuto da Mulher Casada”, é uma lei responsável por dispor acerca da situação jurídica da mulher casada no Brasil (BRASIL, 1962). A sua aprovação significou uma importante conquista para a cidadania das mulheres brasileiras, que antes desse Estatuto encontrava-se controlada por seus maridos, aos quais era dado até mesmo o direito de negarem que suas esposas pudessem trabalhar. Particularmente no que se refere aos seus direitos civis, podemos falar em um relevante avanço, pois foi a partir desta lei que houve uma mudança, ao menos formalmente, na condição até então vivenciada pelas mulheres em suas relações conjugais (TERRA, 2021).

O Código Civil de 1916, por exemplo, determinava, por meio de seu artigo 6, inciso II, constante do capítulo I, do Título I, Livro I, ser a mulher casada relativamente incapaz para o exercício de certos atos da vida civil, enquanto persistisse a sociedade conjugal. Tal dispositivo demonstra a autoridade do homem sobre a mulher, com a vontade do marido sendo considerada como superior à vontade da esposa, pois era ele o chefe da sociedade conjugal e a quem cabia a função de tomada de todas as decisões, bem como de representar legalmente a família. Era ele, então, quem administrava os bens do casal, inclusas as posses pertencentes a mulher (BRASIL, 1916).

Essa foi uma realidade que persistiu por muito tempo na sociedade brasileira e que, como se nota, esteve apoiada por diversos dos textos legislativos nacionais, que contribuíram para a sua manutenção. Nesse sentido, pode-se verificar que a legislação brasileira, ao se referir a situação jurídica das mulheres, apoiou a manutenção do patriarcalismo e ajudou a comprovar que esse não se refere tão somente a “um sistema ideológico, mas também uma realidade fática” (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019, p. 36). Foi diante de um cenário como esse que o Estatuto da Mulher Casada apareceu como resultado de uma série de reivindicações feitas pelas feministas brasileiras naquele momento (TERRA, 2022).

Elas pediam por reformas que levassem em consideração sua situação social, política, jurídica e econômica (TERRA, 2022). Com isso, procuravam discutir as relações de poder existentes entre homens e mulheres, questionando a discriminação sofrida pelas mulheres, as desigualdades culturais, a manutenção de estruturas sexistas e as construções de gênero, temas que haviam sido deixados de lado pelo feminismo brasileiro posteriormente a conquista dos direitos políticos, pois o movimento tinha questões mais urgentes a serem debatidas, como o enfrentamento à ditadura militar (PEDRO, 2018).

Para tanto, a participação de Romy Medeiros, advogada e feminista que em 1949 havia criado o Conselho Nacional de Mulheres, foi de grande relevância para que o Estatuto da Mulher Casada viesse a ser aprovado (TERRA, 2021). Foi ela quem, naquele ano, propôs ao Instituto dos Advogados do Brasil – IAB que um projeto de lei fosse indicado ao Congresso Nacional tendo como principal objetivo que a incapacidade relativa da mulher casada fosse revogada. Foi a partir disso que a questão proposta passou a ser estudada e deu-se a elaboração do anteprojeto para que a condição da mulher casada fosse modificada, sendo este não só elaborado por ela, mas com a sua liderança no movimento feminista para sensibilizar juristas e políticos brasileiros pela aprovação do Estatuto (GAZELE, 2005).

Tramitando por vários anos e sofrendo diversas alterações ao longo desse tempo, a Lei 4.121 não é exatamente aquela inicialmente proposta, ainda assim não deixou de ser extremamente significativa para a igualdade das mulheres (GAZELE, 2005). Tais reivindicações fizeram com que em 1962 elas conseguissem que o Código Civil então vigente fosse alterado, estabelecendo não ser mais direito do marido o controle completo das decisões familiares, que eram dadas de forma unilateral. Desse modo, posteriormente, já com a aprovação do Estatuto da Mulher Casada, importantes alterações legislativas foram realizadas e contribuíram para a emancipação feminina em diversas áreas (TERRA, 2022).

Com o Estatuto, foi reconhecido às mulheres a plenitude de seus direitos civis, instaurando, por meio disso, a igualdade civil entre homens e mulheres, diferentemente do que determinava o Código Civil da época, que estabelecia a subordinação da mulher casada ao marido (SOIHET, 2000). A lei nº 4.121, portanto, causou uma significativa melhora na condição jurídica da mulher casada e representa, especialmente considerando a época de seu advento, “a subida de alguns degraus na construção dos direitos humanos das mulheres” (GAZELE, 2005, p. 59).

Foram quatorze os artigos alterados do Código Civil de 1916 e um do Código de Processo Civil vigente à época. Entre as importantes alterações que foram trazidas por meio dele, está a mudança no Código Civil para garantir à mulher casada a faculdade de trabalhar, bem como o direito de, ao exercer profissão lucrativa, dispor livremente do produto de seu trabalho e dos bens que a partir dele foram adquiridos, sendo exceção os casos em que o casal tenha estipulado algo diverso por meio de pacto antenupcial. Com isso, a mulher finalmente pôde tornar-se economicamente ativa, sem a necessidade de autorização do marido (BRASIL, 1962).

Trazendo certa emancipação no que diz respeito as relações conjugais, a mulher passou a ter garantido o direito de contribuir para as decisões acerca da sociedade conjugal, deixando o marido de ser o chefe absoluto desta. O pátrio poder (poder que era apenas do homem de determinar sobre os filhos e a família) passou então a ser compartilhado entre ambos, tendo a mãe o direito de opinar e decidir sobre os interesses dos filhos. Além disso, passou também a poder requisitar a guarda dos filhos em caso de separação do marido (BRASIL, 1962). Tais alterações foram de grande relevância para a situação da mulher casada, que somente a partir de então passou a ter direitos sobre sua família, sua casa, os filhos e seus bens.

A mulher não poderia praticar, sem autorização, apenas aquelas mesmas ações que, igualmente, o marido precisasse de consentimento para realizar, como, por exemplo, contrair obrigações que implicassem em alienação dos bens do casal.

Ou seja, passou a ser exigido o consentimento mútuo para a alienação de imóveis e, da mesma forma, para dar fiança, ainda, ela poderia também receber herança. (BRASIL, 1962). Modificações como essas demonstram que, dentro do possível, o Estatuto da Mulher Casada objetivou que homens e mulheres fossem equiparados dentro do casamento, diminuindo as restrições que até então eram impostas sobre as mulheres pelo legislador.

Dessa maneira, ele marcou o início de uma série de transformações que ocorreram no âmbito legal e que foram de suma importância para os direitos das mulheres e sua busca pela igualdade (TERRA, 2022). Isso foi muito relevante especialmente quando observamos “a realidade do cotidiano da mulher casada, respaldada na legislação civil, [que] consistia em verdadeira ofensa à sua cidadania [e] feria os princípios dos direitos humanos” (GAZELE, 2005, p. 67). O Estatuto, portanto, representa um novo tempo para os direitos civis das mulheres e contribuiu para ampliar o significado de cidadania no Brasil, tornando realidade os direitos humanos das mulheres no contexto nacional.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ, 1º de janeiro de 1916: Presidência da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm Acesso em: 15 fev. 2022.

BRASIL. Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada. Brasília, DF: Presidência da República, 1962. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4121.htm Acesso em: 15 fev. 2022.

GAZELE, Catarina Cecin. Estatuto da Mulher Casada: Uma história dos direitos

humanos das mulheres no Brasil. 195p. Dissertação de Mestrado (Mestrado em História Social das Relações Políticas). Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2005.

PEDRO, Joana Maria. Corpo, prazer e trabalho. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Org.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2018, p. 238-259.

SARTORI, Alana Taíse Castro; SCHNORRENBERGER, Neusa. O processo de dominação dos corpos das mulheres através do “mito da beleza” de Naomi Wolf. Anais do VI Congresso Latino-americano de Gênero e Religião: Vulnerabilidade, Resistência, Justiça, São Leopoldo, v. 6, p. 24-44, 2019. Disponível em: http://www.anais.est.edu.br/index.php/genero/article/view/893 Acesso em: 15 fev. 2022.

SOIHET, Rachel. A pedagogia da conquista do espaço público pelas mulheres e a militância feminista de Bertha Lutz. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 15, p. 97-117, set./dez. 2000.

TERRA, Bibiana de Paiva. Da legítima defesa da honra ao crime de feminicídio: Uma análise feminista do enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil. LexCult, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 66-89, jan./abr. 2021.

TERRA, Bibiana. A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: o movimento feminista e a participação das mulheres no processo constituinte de 1987-1988. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

48 Doutoranda em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra em Direito, com ênfase em constitucionalismo e democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito de Família e das Sucessões. Especialista em Direito Público. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Advogada, pesquisadora e professora. E-mail: [email protected].

FEMINICÍDIO

Larissa Faria de Souza⁴

E se dermos um nome ao problema? Logo de início é preciso mencionar que “o problema que não tem nome” a que Betty Friedan (1971) menciona no primeiro capítulo da obra “A Mística Feminina”, em verdade, restringia-se a um grupo de mulheres brancas, casadas, pertencentes à classe média alta, com formação universitária. Todavia a alusão que me atenho ao usar esta famosa expressão é de que nomear e definir o problema é um passo importante para coibi-lo.

É preciso nomear o fato de que, segundo os dados levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2019, por dia, em média 10 mulheres foram vítimas de homicídio – ou seja 3.737 (três mil setecentos e trinta e sete) mulheres foram mortas naquele ano – e dessas, 35,5% (trinta e cinco vírgula cinco por cento) a motivação está relacionada aos contextos de violência doméstica ou ao desprezo pelo sexo feminino (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).

Em 1976, o termo femicídio foi utilizado por Diana Russel para se referir a morte de mulheres ocasionada por homens pelo simples fato de serem mulheres, o que a escritora entendeu como uma alternativa feminista ao termo homicídio. Por sua vez, baseando-se no termo femicídio apresentado por Russel, Marcela Lagarde cunhou a expressão feminicídio para tratar das mortes de mulheres ocorridas em um contexto de impunidade e conivência do Estado.

Por sua vez, para Eleonora Menicucci, o feminicídio é, na verdade, um crime de ódio, conceituado com o intuito de reconhecer e dar visibilidade à morte violenta de mulheres motivadas pela discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemáticas. Segundo Menicucci, o feminicídio não é um evento isolado, pelo contrário, faz parte de um processo contínuo de violências, abusos, sejam eles verbais, físicos ou sexuais, e diversas outras formas de mutilação e de barbárie e que resultam em atos de violência extrema, como a morte (CAMPOS, 2015).

Em 09 de março de 2015, o Brasil tipificou o feminicídio, integrando assim uma lista que contava com até então 15 países da América Latina. Essa tipificação é resultado de reinvindicações feministas, assim como recomendações como a da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher. O crime, atualmente, está previsto na Lei 13.104 que alterou o Código Penal vigente no país (TERRA; FARIA; SOUZA, 2021).

É preciso mencionar, todavia, que historicamente a violência contra a mulher sempre existiu, sobretudo no ambiente doméstico. Mas é na década de 1980 que o problema toma maior visibilidade e, mediante atuação e reinvindicações de grupos feministas, passa-se a reconhecer direitos das mulheres e adotar políticas públicas de proteção a esse grupo.

Assim, influenciadas pelos movimentos feministas, o ordenamento jurídico brasileiro sofreu alterações legislativas que possibilitaram o reconhecimento da violência doméstica como um problema do Estado. Como por exemplo o artigo 226, §8º da Constituição da República de 1988, que assegura a assistência familiar e possibilita a criação de mecanismos que coíbam a violência doméstica; a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, que trata da temática da violência doméstica (SILVA; WRIGHT, 2015).

Ocorre que criminalizar a morte de mulheres em razão do gênero ou no contexto de violência doméstica, por si só, não demonstra ser suficiente, sobretudo quando para muitos o crime justifica-se na proteção da honra. Ademais, conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os números vêm crescendo, cerca de 1,9% (um vírgula nove por cento) de aumento no primeiro semestre de 2020 (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020).

A realidade é que a tipificação do feminicídio expôs um grande problema social.

Mulheres morrem simplesmente por serem mulheres, e mesmo com os avanços e conquistas, continuam sendo vítimas da sociedade que as trata como objeto, como propriedade do pai, do marido.

No Brasil, recorrentes são os casos de assassinato de mulheres por seus parceiros ou ex-parceiros e muitas vezes são tratados como fato isolado, causado por um momento de descontrole em razão do comportamento da vítima (PRADO; SANEMATSU, 2017). Pode parecer absurdo, mas mesmo a cultura continua a reafirmar tal fato, como por exemplo no trecho musical: “Se te agarro com outro te mato, te mando flores e depois escapo”.⁵

A visibilidade que se dá ao termo feminicídio com o sancionar de leis como a brasileira contribui para discussões importantes sobre a violência de gênero, é preciso compreender, no entanto, que o fenômeno feminicida é fruto de um processo contínuo e histórico de atribuição de um papel social às mulheres, papel este de submissão, tornando-as vítimas de brutalidades perpetradas em um contexto social patriarcal que é marcado pela violência de gênero, tornando mulheres vulneráveis e colocando-as em permanente situação de violência. O feminicídio é, portanto, o ponto máximo, o ápice, o limite de um conjunto de violências e vulnerabilidades (OLIVEIRA, 2015).

É importante mencionar, todavia, que a elaboração de diplomas legais, per si, não é suficiente a provocar significativas transformações sociais, sendo, portanto, necessário um esforço do Estado, através de políticas públicas de gênero e medidas extrapenais, para a erradicação da violência de gênero e a promoção dos direitos da mulher.

REFERÊNCIAS

CAMPOS, Carmen Hein de. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-

feminista. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 7, n. 1, p. 103-115, jan.jun. 2015.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wpcontent/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-interativo.pdf. Acesso em: 22 dez. 2021.

FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina. Trad. Áurea B. Weissemberg. Rio de Janeiro: Vozes, 1971.

OLIVEIRA, Ana Carolina Godim de A.; et al. Feminicídio e violência de gênero: Aspectos sociojurídicos. Revista Tema, v.16, nº24/25, jan. dez. 2015.

PRADO, Débora; SANEMATSU, Marisa. Feminicídio: Invisibilidade mata. São Paulo, Instituto Patrícia Galvão, 2017.

SILVA, Salete Maria Da. WRIGHT, Sonia Jay. As mulheres e o novo constitucionalismo: uma narrativa feminista sobre a experiência brasileira. Revista Brasileira de História do Direito, V. 1, N. 2, P. 170-190, Jul/Dez. 2015.

TERRA, Bibiana; FARIA, Gabriela Maria Barbosa; SOUZA, Larissa Faria de. Feminismos e Direito das Mulheres: Argentina, Bolívia e Brasil em transformação. In: Antonio Escandiel de Souza; Carla Rosane da Silva Tavares Alves; Fábio César Junges; Tiago Anderson Brutti. (Org.). Práticas Socioculturais em Linguagens. Cruz Alta: Editora Ilustração, 2021.

49 Mestranda em Direito com ênfase e Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. E-mail: [email protected]

50 Trecho da música “Se te agarro com outro te mato” do cantor e compositor Sidney Magal, 1980.

FEMINISMO DECOLONIAL

Larissa Faria de Souza⁵¹

Bell hooks ⁵², mulher, afro-americana, feminista, em sua obra “Teorias Feministas: da margem ao centro”, expõe: “Quando essas mulheres começaram a encontrar-se e a falar umas com as outras, esta revolta coletiva começou a ser conhecida como “libertação das mulheres” e mais tarde evoluiria e transformarse-ia no movimento feminista” (HOOKS, 2019, p. 2). Mas acontece que as mulheres que por muito tempo dominaram os discursos feministas, eram em sua grande maioria mulheres brancas, da classe média alta. Assim a afirmação de que “todas as mulheres são oprimidas” pressupunha um destino comum às mulheres, sem considerar que fatores como raça, classe, religião, sexualidade diversificam as experiências dessas mulheres e determinam em que medida o sexismo atuará em suas vidas (HOOKS, 2019, p. 4).

Não se pode negligenciar a importância do feminismo como teoria e prática. O movimento foi e continua sendo essencial à luta feminina bem como responsável por inúmeras conquistas das mulheres. Lélia Gonzales, pioneira nos estudos sobre cultura negra no Brasil, falecida em 1994, menciona que o feminismo contribuiu a externar bases simbólicas e materiais da opressão feminina, assim como desencadeou debates públicos do que antes tinha-se por tabu (GONZALEZ, 2020). Mas ainda que reconheçamos tão importantes contribuições, esses pensamentos se originaram em ideais eurocêntricos e norteamericanizados, ou sejam, refletiam as necessidades daquelas mulheres como sendo universais. Mas existe uma mulher universal?

Esse pensar fez com que muitas mulheres considerassem que o movimento pela libertação das mulheres, da forma com que foi descrito pelas mulheres brancas burguesas, era em verdade uma forma de se atender aos interesses delas às custas de mulheres pobres e das classes trabalhadoras, em regra mulheres negras. Quando Betty Friedan, em “A Mística Feminina”, transforma as dificuldades das mulheres brancas em condição que afetaria todas as mulheres, ela deixa de considerar o racismo, o classicismo, e passa a tratar como vítima do sexismo a mulher branca que pretende trabalhar fora e estudar, mas é obrigada a

permanecer em casa (HOOKS, 2015).

Mas se essa ausência de identificação da mulher negra com o movimento feminista gerou o chamado “feminismo negro” e posteriormente o que chamamos de “feminismo interseccional”, baseado na ideia de interseccionalidade – termo cunhado pela autora afro-americana Kimberlé Crenshaw e que auxilia na compreensão de que diferentes grupos sociais estão em posições vulneráveis, pois sofrem múltiplas e simultâneas opressões (CRENSHAW, 1989) – e quanto às mulheres que vivenciam a realidade dos países colonizados?

Para compreendermos o significado de feminismo decolonial é preciso compreender que a teoria decolonial pressupõe a necessidade de se produzir epistemologias pluriversais considerando sujeitos cujos conhecimentos e práticas foram invisibilizados, subalternizados e negados pela violência da colonização e da pós-colonização. Anibal Quijano (2010), sociólogo peruano, assim como outros intelectuais latino-americanos, deram início à uma análise do colonialismo pensado a partir do eurocentrismo, do racismo e da modernidade.

A modernidade importada ao subcontinente latino-americano teve como origem o impacto social e filosófico representado pelo que se chamou “descobrimento” moldada por discursos racionais de legitimidade, sem, no entanto, deixar de apresentar papel periférico quando se trata do desenvolvimento de pressupostos modernos, o que lhe rendeu rótulos de subdesenvolvimento ou em desenvolvimento.

Assim, a teoria decolonial possibilitou se vislumbrar como o projeto europeu de colonização das Américas calcou-se em uma teoria pseudocientífica da raça com intuito de mascarar os verdadeiros intentos de expropriação capitalista da mão de obra escrava e acúmulo de capital globalizado.

O racismo que justificou a escravidão de negros e índios, na mesma época em que a Europa saía da servidão e entrava no sistema liberal de pagamento do trabalho mediante salário, deixou marcas indeléveis no continente latinoamericano. Entre essas marcas, destaca-se a colonialidade do saber, do poder e do ser. Ou seja, apesar de supostamente independentes, os países latinoamericanos continuam subordinados a um modelo de poder que reproduz a hierarquia racial e econômica da época da colônia, que marginaliza os saberes locais e, finalmente, que cinde a identidade nacional, uma vez que ela é marcada por um imaginário colonizado pelo racismo europeu (CASTRO, 2020, s.p).

Partindo dessa teoria baseada na colonialidade do poder, Maria Lugones, filósofa feminista argentina, propõe uma visão a que chamou feminismo decolonial, na qual amplia a visão de Quijano e menciona que assim como a raça, o conceito moderno colonial de gênero –que naquele momento identificava a diferença sexual – também foi um meio a se dominar e controlar os corpos e o trabalho (LUGONES, 2008). “Homens e mulheres não europeus, indígenas e africanos, eram considerados “diferentes” – leia-se inferiores –, porque não seguiam as mesmas regras de socialização e convivência das sociedades coloniais” (CASTRO, 2020, s.p).

Se o conceito de homem civilizado apresentado pelos europeus, diga-se colonizador, foi tido como universal e serviu para legitimar a dominação e submissão dos povos e corpos, da mesma forma o conceito universal de “mulher” subjugou as colonizadas, apresentando-as ao mundo como não mulheres. A grande questão é que esse pensamento perdura, e mesmo hoje ainda nos deparamos com visões que menosprezam mulheres latino-americanas.

Assim, o feminismo decolonial latino-americano se une ao movimento das mulheres negras, uma vez que não podemos falar em mulheres brasileiras ou latino-americanas sem considerar a herança colonial escravista. Pensar um feminismo decolonial abarca a busca por meios de combater o imaginário racista e colonial de inferioridade do não europeu e mesmo não estadunidense. Através do feminismo decolonial se pretende deixar de glorificar a história colonial

escravista e violenta, criando mecanismos de conscientização acerca do genocídio negro e indígena e sobre a importância de políticas de reparação e de justiça (CASTRO, 2020).

Ainda que reconheçamos as contribuições possibilitadas pelo feminismo em seus primórdios, em sua maioria esses pensamentos se originaram em ideais eurocêntricos e norte-americanos, induzindo-nos a pensar o feminismo latinoamericano como um movimento espelho de pautas cujas necessidades são de mulheres que se encontram geograficamente privilegiadas.

Por razões como esta, disseminou-se a ideia de que as mulheres latinoamericanas não se consideravam feministas, já que, supostamente, a luta feminina em seus países estabeleceu preocupações concernentes a movimentos rurais e de libertação nacional, afastando-se do feminismo. Esse pensamento reflete o desconhecimento da realidade vivida pelas mulheres latino-americanas, e se alastrou, inclusive, em seus países, onde se argumentava que o movimento feminista é “produto de contradições existentes nos países desenvolvidos, mas não em sociedades subdesenvolvidas” (STERNBACH, 1994, p. 255).

Assim, o feminismo decolonial contestando a colonialidade do saber, propõe uma revisão epistemológica radical das teorias feministas eurocêntricas e norteamericanizadas. Segundo María Lugones, “diferentemente da colonização, a colonialidade do gênero ainda está conosco; é o que permanece na intersecção de gênero/classe/raça como construtos centrais do sistema de poder capitalista mundial” (LUGONES, 2014).

REFERÊNCIAS

CASTRO, Susana de. Dossiê: O que é o feminismo decolonial? Revista Cult, Ed. 262, outubro de 2020. Disponível em:

https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-o-que-e-o-feminismo-decolonial/. Acesso em :10 jan. 2022.

CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum: Vol. 1989: Iss. 1, p. 139167, Article 8.

GONZALES, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano (org.) Flavia Rios e Marcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

HOOKS, Bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015, p. 193-210.

HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza Libânio. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Trad. Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.

LUGONES, María. Colonialidad y gênero. Tabula Rasa, n. 9, p. 73-101, jul. dic., 2008.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. Revista estudos feministas, v.22 n.3 2014, p. 935-952. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755, acesso em: 04 jan.

2022.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

STERNBACH, Nancy Saporta. Feministas na América Latina: de Bogotá a San Bernardo. Revista de Estudos Feministas, v.2 n.2, 1994. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16213 Acesso em: 03 jan. 2022.

51 Mestranda em Direito com ênfase e Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. [email protected]

52 O nome da autora está escrito em letras minúsculas pois é assim que ela prefere e se identifica.

FEMINISMO INTERSECCIONAL

Fabiana Barcelos da Silva Cardoso⁵³

Antes da sua definição é preciso entender a sua abordagem enquanto intersecção. Trata-se de um corte aprofundado em um conceito já determinado e identificado dentro de um grupo considerado como vulnerável, através da qual, se consegue evidenciar que, nesta perspectiva, se identifica outras situações de opressão que aumentam a fragilidade que, em sua gênese foi verificada. Assim, dentro de um conjunto composto por elementos comuns surgem cruzamentos estruturados por vários fatores que majoram a carga de exclusão, invisibilidade, desconsideração, exploração, dentre outros fatores que atingem a sua dignidade.

Nestes termos, a palavra “dignidade” vem de dignus, que ressalta aquilo que possui honra ou importância. Com São Tomás de Aquino, há o reconhecimento da dignidade humana, qualidade inerente a todos os seres humanos, que nos separa dos demais seres e objetos (RAMOS, 2021, p. 43).

Sob as lentes do feminismo, a expressão feminismo interseccional permite que, enquanto método de estudo, se faça uma abordagem identificando a existência de grupos de mulheres que se tornam duplamente, triplamente, ou mais, fragilizadas por simplesmente se identificarem mulheres em uma sociedade, ou seja, se identificam outras matrizes de potencial violação de direitos que se somam ao gênero atingindo a sua dignidade.

Assim, a dignidade humana consiste na qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, que o protege contra todo tratamento degradante e discriminação odiosa, bem como, assegura condições materiais mínimas de sobrevivência (SARLET, 2001, p. 60).

Neste sentido, o feminismo interseccional, visa enxergar a condição da

dignidade da mulher pela carga opressora da etnia, da forma física, da classe social, do nível de estudo, do local de origem, etc. A exemplo disso, tem-se: mulheres negras (mulher +negritude), mulheres trans (mulher + a condição de transgênero), mulheres indígenas (mulher + descendência indígena), mulheres com deficiência (mulher + deficiência), etc.

Silvio de Almeida (2019) apresenta três concepções de racismo: individualista, institucional e estrutural, e que essa classificação parte dos seguintes critérios: relação entre racismo e subjetividade, relação entre racismo e estado e relação entre racismo e economia.

Djamila Ribeiro (2019, p. 34) destaca que pessoas brancas não costumam pensar sobre o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre focado na negritude. Em decorrência que as pessoas brancas não se perguntam o porquê de não haver pessoas negras trabalhando em pequenas e grandes empresas, em espaços de poder. E para que isso possa ser mudado, é preciso que as pessoas brancas lutem por essa mudança.

Já Grada Kilomba (2019) menciona que até serem homogeneizados do processo colonial, os povos negros existiam como etnias, culturas e idiomas diversos – isso até serem tratados como “o negro”. Tal categoria foi criada em um processo de discriminação, que visava o tratamento de seres humanos como mercadoria. Portanto, o racismo foi inventado pela branquitude e deve se responsabilizar por ele.

Ao fazer novos recortes, é possível ainda, verificar a soma das vulnerabilidades, como em casos de mulher negra periférica analfabeta e obesa. (Mulher+negra+trangênero+periférica+analfabeta+obesa). Neste último exemplo, verifica-se que além de todas as questões que se fazem pesar na identificação enquanto sujeito de direitos, na figura feminina, esta mulher ainda tem a sobrecarga para lutar contra o sistema que se insurge estruturalmente contra à população negra, quando inserida em uma sociedade racista, bem como,

em ser pobre e sofrer a discriminação e a impossibilidade à certos serviços e espaços de poder.

Não é diferente quanto às questões das mulheres transgênero. Segundo Fernanda Lima Moretzsohn de Mello e Patricia Burin (2020), a norma inaugura entre nós um microssistema de proteção às mulheres. Embora estejamos todas submetidas ao machismo estrutural, as vulnerabilidades variam. A seu turno, os desafios enfrentados pelas mulheres heterossexuais, transgêneros e pelas gays também lhes são próprios. A mulher transgênero, ainda que carregue em sua estrutura genética cromossomos masculinos, é também submetida a violências de gênero.

Nestes termos, se verifica a situação de não alfabetizada a impossibilitando de participar, na sua comunidade ou agrupamento, de todas as atividades que exigem a escrita, leitura e compreensão textual. Fica evidente que existem interrelações entre educação, desigualdade e a possibilidade de desenvolvimento humano. Haddad (2013, s.p), entende por desenvolvimento, “não só o crescimento econômico, mas também aborda sua dimensão humana, social e ambiental, como exercício da cidadania e valorização do potencial sociocultural da população”. Assim, ao se enquadrar neste contexto, enquanto sujeito de direitos, a mulher possui evidenciada a sua exclusão social.

Por fim, ainda sobre o exemplo apresentado, se adiciona a todos os elementos acima descritos, a obesidade, que em uma sociedade que por muitos anos, através das mídias publicitárias, da indústria da moda, desde muito tempo, criou o padrão da beleza tendo como base a magreza. Segundo Bianca Gabriely Ferreira Silva (SILVA, 2018) os padrões estéticos são representados pelos traços étnicos dominantes repassados como padrão de beleza que deve ser replicado independente das características da maioria da população, repassados e difundidos pela mídia e pela sociedade.

Por todo o exposto, fica evidente que o feminismo interseccional permite a análise dentro do grupo das mulheres, identificando sistemas de opressão que

podem ser cruzados a qualquer momento, e que, muitas vezes, são somados aumentando a fragilidade diante da vulnerabilidade que todas já possuem por se identificarem quanto ao gênero feminino.

REFERÊNCIAS

HADDAD, Sergio. Educação e Desenvolvimento. Revista Política Social e Desenvolvimento. Nº 2. Ano 1. P. 8-11, 2013.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MELO, Fernanda Lima Moretzsohn de. BURIN, Patrícia. Mulheres transgênero, Lei Maria da Penha e autoridade policial. Consultor Jurídico – Conjur, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-03/lima-burin-mulherestransgenero-maria-penha-policia#:~:text=Assim%2C%20transgênero%20é %20a%20pessoa%20cujo%20gênero%20não,manto%20de%20proteção%20da%20Lei%20M Acesso em: 20 jan. 2022.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2021.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SILVA, Bianca Gabriely Ferreira. Consumo de produtos de estética capilar:

sacrifício, autoimagem e rituais de embelezamento. Dissertação (Mestrado em Administração) – Universidade Federal de Pernambuco. CCSA, 2018.

53 Possui graduação em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus Santiago (2007) e Especialização em Direito Civil e Processo Civil (2009). Foi contemplada com uma Bolsa de Pesquisa CAPES - PROSUP II no Mestrado em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (2013). Atualmente é professora titular, Coordenadora do Curso de Direito.

FEMINISMO LIBERAL

Camila Galetti⁵⁴

Os feminismos possuem uma multiplicidade de correntes, estratégias de atuação e finalidades. Nas discussões acerca das teorias feministas, é comum que se faça uma divisão a partir de correntes de pensamentos ou ondas e isso se dá, principalmente, porque as bandeiras de luta, contextos sociais, políticos se modificam de tempos em tempos demandando do movimento novas estratégias de enfrentamento. Além disso, é necessário ressaltar que essa multiplicidade se ampara também no fato de que não existe uma categoria única de ser mulher. As mulheres são multifacetadas e atravessadas de formas diferentes a partir de marcadores atrelados a raça/etnia, classe e sexualidade.

Porém, um feminismo hegemônico se consolidou calcado principalmente a partir da ideia de uma identidade feminina universal, por se concentrar nas opressões que mulheres brancas sofrem, não se atentando assim à multiplicidade de corpos femininos e opressões. Como contrarresposta a um feminismo considerado hegemônico, se pluralizou as lutas das mulheres, disputando narrativas nos movimentos feministas e ampliando o escopo de luta para outras vivências, corpos, sexualidades e de classe privilegiada, tendo fincado suas raízes no solo do capitalismo.

Nesse emaranhado, se consolidou algumas correntes como o feminismo marxista; feminismo negro; feminismo anarquista, feminismo radical e o liberal. Os quais mapeiam a origem das opressões femininas e a partir disso, pensam quais estratégias serão adotadas para combater tais opressões. Neste verbete, o feminismo liberal terá destaque, no intuito de relatar no que se baseia esse tipo de feminismo, as problemáticas que estão intrínsecas no escopo dessa vertente, bem como, qual é o perfil de mulheres que constroem e sustentam tal ideário.

Portanto, no primeiro momento será trazido o que entendemos por liberalismo e como mulheres se apropriam desse espectro ideológico, político e econômico,

atrelando a uma agenda feminista. Já no segundo momento, relataremos as apropriações desse de certas pautas e como se dá a construção de narrativas. Por fim, será abordado as assimetrias dessa corrente e do quanto, ela não busca emancipar as mulheres, mas sim inseri-las no capitalismo produzindo o apagamento do quanto esse sistema é desigual e não tem como finalidade gerar melhores condições de vida.

O liberalismo é uma corrente política e econômica que possui como sustentáculo a defesa da liberdade individual e, tudo que faz alusão ao indivíduo direciona essa corrente. Existem várias categorias de liberalismo e estas imergem em contextos políticos específicos. Um deles, é o liberalismo clássico o qual surgiu com as ideias de filósofos liberais do século XVII, colocando-se contra o Antigo Regime na Europa — Monarquias Absolutistas, assentadas em ideários atrelados ao direito divino, ou seja, os governantes só poderiam ser eleitos por Deus.

Já o liberalismo moderno, impulsionado no século XX, foca na liberdade individual como um objetivo central. Mas de forma geral, a doutrina liberal nasce e resiste por bastante tempo amparada inicialmente nos três dogmas “o trabalho precisa encontrar seu preço no mercado; a criação da moeda deve estar sujeita a um mecanismo de auto regulação; as mercadorias devem circular livremente de país em país sem obstáculos ou preferências” (Karl Polanyi, 1992).

Porém, o liberalismo começou a ruir e foi duramente questionado entre às duas guerras mundiais em um contexto de crises brutais como a de 1930. Essa crise perdurou por muitas décadas e refletiu nas diversas correntes liberais — clássica, conversadora, social. Sobre esse aspecto Laval e Dardot (2016) apontam que a crise dos vários tipos de liberalismos se deu entre os anos de 1880 a 1930 onde em todos os países industrializados, os reformistas sociais ganharam terreno, havendo uma considerável revisão dos dogmas no que tange a economia e formando um contexto intelectual e político para o neoliberalismo.

De acordo com esses autores, a tensão entre os tipos de liberalismo contribuiu para o declínio das políticas liberais, pois de um lado estavam os reformistas sociais que defendiam o ideal de um bem comum e de outros os partidários da liberdade individual como fim absoluto (LAVAL; DARDOT, 2016, p. 37). Sumarizando, o liberalismo desmantela toda ideia de solidariedade e coletividade, ele reforça a meritocracia e a valorização dos esforços individuais.

Tendo em vista os aspectos mencionados, questionamos: como isso afeta as mulheres em suas especificidades?

O impacto de noções e políticas liberais ressoam nas organizações feministas, mais especificamente nas consideradas feministas liberais ou neoliberais⁵⁵, principalmente a partir de determinadas pautas como questões atreladas ao trabalho feminino. A partir daí, são criadas e sustentadas narrativas que aparentemente abarcam todas as mulheres, mas que, na prática, são excludentes e só proporcionam visibilidade a um grupo seleto de mulheres.

O feminismo liberal tem como um dos seus fios condutores a construção do ideário de que o teto de vidro foi quebrado e, com isso, as mulheres conseguem se inserir nos mais inúmeros ramos empregatícios, principalmente os empresariais. Tal lógica não considera as questões de raça/etnia, sexualidade, classe social e os atravessamentos que perpassam isso, até porque como Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019) pontuam, que essa possibilidade de ascensão profissional só é possível para mulheres com elevada escolarização que desfrutam das possibilidades de almejar altos cargos empresariais, e que são majoritariamente brancas.

Verónica Gago (2020), ao analisar o impacto do neoliberalismo sobre as mulheres afirma que este tem efeitos diferenciados sobre elas. Há uma exploração específica do trabalho feminino, exigindo da teoria feminista reconceitualizar a própria noção dos corpos implicados nessas atividades. Já Françoise Vergès, sobre esta discussão, aponta que a relação dialética construída

entre os corpos eficientes da burguesia neoliberal e os corpos exaustos das mulheres negras ilustra os vínculos entre neoliberalismo, raça, gênero e heteropatriarcado (VERGÈS, 2020, p. 19).

Cabe destacar que na última década, com a consolidação de políticas neoliberais e a transição entre a sociedade da disciplina para a sociedade do rendimento formou-se o ‘sujeito neoliberal’, responsável pelo seu rendimento, auto vigilante e empreendedor de si. Novas subjetividades se evidenciam na construção do sujeito neoliberal, pois esse assimila e incorpora os valores e ideais do mercado, onde é explorado de forma voluntária e até mesmo apaixonada (HAN, 2018, p. 38). Com isso, muitas empresas se colocam como se estivessem investindo em mulheres, por acreditar no potencial feminino e nas múltiplas habilidades dessas. Segundo Cornwall (2018), o argumento para “investir em mulheres” que se faz presente nessas instituições, está atrelado ao que a autora chamou “empoderamento light” que aponta as mulheres como “o santo graal do crescimento econômico” (CORNWALL, 2018, p. 3).

O conceito de empoderamento é essencial na compreensão das problemáticas do feminismo liberal, pois ele é mobilizado corriqueiramente nas narrativas dessas feministas, mas é importante salientar que esse é um conceito em disputa, como bem pontua Madalena Leon, socióloga colombiana, do mesmo modo que outros conceitos “brigam” para que sua definição seja legitimada, conforme a necessidade que o meio social demanda, como mulher ou negritude, por exemplo, (o que é ser mulher, o que é ser negro, etc) (BERTH, 2019).

Como afirma Joice Berth (2019), muitas feministas, mobilizam o empoderamento ou se dizem empoderadas, a partir de conquistas pessoais rasas para a coletividade (apesar de importantes para elas), sem se dar conta do quanto seu pertencimento ao grupo minoritário de mulheres, coloca essas conquistas num contexto de fragilidade. Assim, se estabelece um uso esvaziado do conceito de empoderamento principalmente por parte de feministas liberais, as quais mobilizam esse o atrelado à ascensão individual das mulheres no sistema capitalista.

O foco excessivo no indivíduo é uma das características cruciais do feminismo liberal/neoliberal e soma-se a isso, a narrativa excessiva de livre escolha, como se as mulheres pudessem ser o que quiserem, num contexto em que o trabalho do cuidado, o trabalho afetivo, reprodutivo é visto como excepcionalmente função da mulher, ou como a realidade brasileira que quase metade dos lares são sustentados por mulheres⁵ .

Em relação à produção neoliberal das mulheres, os direitos e deveres dessas, há uma diversificação das hierarquias capitalistas e isso se reflete nas relações entre as mulheres e o corpo, o cuidado, o trabalho produtivo versus improdutivo. Tudo corrobora para a conservação e manutenção do capitalismo e nesse escopo se constrói uma nova subjetividade que abarca às três questões citadas — corpo, cuidado, trabalho. Como definido por Dardot e Laval (2016, p. 31), essa relação trata se dá:

[...] construção de uma nova subjetividade, o que chamamos de “subjetivação contábil e financeira”, que nada mais é do que a forma bem-acabada da subjetivação capitalista. Trata-se, na verdade, de produzir uma relação do sujeito individual com ele mesmo que seja homóloga à relação do capital com ele mesmo ou, mais precisamente, uma relação do sujeito com ele mesmo como um “capital humano” que deve crescer indefinidamente, isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais.

Essa produção de sujeito individual afeta diretamente os movimentos feministas, ao ponto de se ter uma corrente considera feminista e liberal. Tal corrente possui inúmeras problemáticas, por naturalizar certas violências de gênero, por potencializar a sobrecarga das mulheres via discursos que fazem alusão às mulheres como guerreiras, e também, afeta as subjetividades femininas e a percepção de feminilidade dessas. Associando autocuidado com consumo de produtos para se fazer skincare — cuidados com a pele. Com isso, as mulheres tornam-se auto vigilantes de seus corpos, pautando-se numa regulação perpétua e exaustiva que as deixam cativas aos padrões de beleza e consumo.

Conforme discutido até aqui, se evidencia o quanto o liberalismo não é tão somente uma teoria política e econômica, mas também, uma prática governamental constitutiva de um tipo específico de sujeito. Assim, na contemporaneidade fica evidente o quanto a formação de um sujeito neoliberal afeta diretamente as mulheres e suas ações via movimentos sociais, pois o valor das ações coletivas é enfraquecido e não se vislumbra emancipar as mulheres nesta lógica. Portanto, esse modelo econômico e político favorece ações de instituições que legitimam a acumulação capitalista, estimulam a individualidade e inibem a ação dos movimentos sociais como agentes transformadores.

Nessa lógica, o neoliberalismo mostra-nos autônomos enquanto se destrói socialmente as possibilidades dessa autonomia (GAGO, 2020, p. 212), bem como, ressignifica o ser mulher, alinhado com a lógica capitalista e patriarcal. Ao conectar capitalismo com formas de poder e soberania, o feminismo liberal atua numa agenda de equiparação de direitos, mas sem um enfrentamento à exploração do trabalho e à precarização da vida. Reiterando a narrativa do direito de escolha das mulheres essa corrente promove o apagamento de mulheres racializadas, provoca enfraquecimento do corpo coletivo, múltiplo e também esvazia a potência da solidariedade que deveria permear os movimentos sociais.

REFERÊNCIAS

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019.

BERTH, Joice. Empoderamento e os perigos do esvaziamento leviano de conceitos. Revista Carta Capital, 2019. Disponível em:

https://www.cartacapital.com.br/opiniao/empoderamento-e-os-perigos-doesvaziamento-leviano-de-conceitos/ Acesso em: 12 fev. 2022.

CORNWALL, Andrea. Além do “Empoderamento Light”: empoderamento feminino, desenvolvimento neoliberal e justiça global. Cad. Pagu (52) 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/9zJqwjXHP4KbgfsLRCY7WpC/abstract/?lang=pt Acesso em: 12 fev. 2022.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

GAGO, Verónica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Elefante, 2020.

HAN, Byung Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2018.

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Compus, 1992.

VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu, 2020.

54 Mestra e doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB),

pesquisadora do Projeto Mulheres Eleitas (LAPPCOM/UFRJ).

55 Com a crise do liberalismo no século XX, emergiu o que se é considerado de Neoliberalismo. O projeto político e social neoliberal apareceu como resposta às crises do liberalismo, consolidando-se principalmente a partir de 1930. Autoras/es como David Harvey (2013), Michael Foucault (2008), Pierre Dardot e Christian Laval (2016), Michael Hardt e Antônio Negri (2004), Wendy Brown (2019) auxiliam na compreensão do conceito.

56 Segundo o IPEA, o percentual de casas com comando feminino saltou de 25% em 1995 para 45% em 2018, com inserção no mercado de trabalho.

FEMINISMO MARXISTA

Mariana Pereira Rodrigues⁵⁷

O Feminismo Marxista encontra nos escritos de Karl Marx e Friedrich Engels as possibilidades de análise cujo trabalho trouxe contribuições teóricas e metodológicas para a compreensão das raízes da opressão das mulheres a partir de uma concepção materialista histórico-dialético. Embora o marxismo ofereça ferramentas para uma teoria explicativa da condição da mulher, a vasta obra teórica de Marx e Engels pouco se dedicou em compreender de maneira específica as formas de opressão de gênero ou de apresentar possíveis condições de libertação. Tais discussões sobre o papel da mulher na sociedade aparecem nas obras de maneira periférica, durante as análises, por exemplo, da evolução histórica das construções familiares, da questão da propriedade privada, da produção e da divisão social do trabalho, etc (ALAMBERT, 1986, p. 15).

Diante dessas limitações na obra dos autores, os movimentos feministas de diversas gerações produziram renovações nas análises marxistas através da perspectiva feminina, buscando compreender a relação da opressão de gênero com a reprodução do capitalismo e os inúmeros contornos que ela assume conforme a classe social de cada mulher (MARCELINO, 2019, p. 32). Como apresenta Silvia Federici “à medida que o interesse no marxismo e no feminismo se renova, e o olhar de Marx sobre “gênero” recebe nova atenção, surgem novos consensos entre as feministas (...)” (FEDERICI, 2018, p. 84). Portanto, a significativa contribuição das feministas, conforme observa Giovanna Marcelino, é “ter ido ‘além de Marx’” e trazer a sua teoria um ponto de vista de gênero (MARCELINO, 2019, p. 34).

São numerosas as análises teóricas feministas que foram feitas a partir de diversos textos marxianos comprometendo-se, assim, em compreender a opressão das mulheres a partir de uma “teoria fundamentada nas práticas humanas corporificadas, através das quais a vida socio-material é produzida e reproduzida” (FERGUSON, 2017, p. 27). Isto é, a investigação marxista se dá no campo das relações históricas complexas buscando analisar o movimento histórico e suas contradições a partir das condições materiais e suas mudanças no

decorrer do tempo. Desse modo, o materialismo histórico-dialético proporciona a compreensão de que a subordinação de gênero é uma construção histórica, uma produção social, “gerada nas e pelas relações sociais, em contextos socioeconômicos determinados, tendo em vista a associação de homens e mulheres para a produção e reprodução de sua vida material” (MARCELINO, 2019, p. 33).

À medida que as feministas foram se apropriando da teoria de Marx, as interpretações sobre os conceitos propostos pelo autor para pensar o sistema capitalista foram se enriquecendo e proporcionando uma outra perspectiva sobre a reprodução da força de trabalho. Como aponta Silvia Federici, ao analisar o papel central do trabalho reprodutivo para a acumulação de capital, permitiu indagar qual seria, então, a história do processo capitalista “se não fosse compreendida do ponto de vista da formação do proletariado assalariado, mas do ponto de vista das cozinhas e quartos onde a força de trabalho é produzida diariamente, geração após geração” (FEDERICI, 2018, p. 105).

Muitas contribuições importantes geradas pelas feministas marxistas se deram, especialmente, por mulheres que viveram a experiência política nos partidos comunistas e socialistas, que se prestaram à causa da transformação revolucionária. Segundo Maria Lygia Quartim, as contribuições mais significativas, da geração subsequente a Karl Marx e Engels, se deram na arena das lutas de classes, no movimento comunista internacional, no qual vale destacar as expoentes Rosa Luxemburgo, Alexandra Kollontai e Clara Zektin que se dedicaram à causa política, à transformação da sociedade e à emancipação da mulher trazendo ao debate a dupla jornada de trabalho, a maternidade, o casamento e as necessárias medidas sociais e políticas que pudessem trazer melhorias a condição das mulheres (MORAES, 1996, p. 16-26).

Os estudos em torno da luta socialista e da libertação da mulher tem o processo revolucionário na Rússia como um dos mais significativos.⁵⁸ A compreensão de que as condições das mulheres trabalhadoras envolvem formas de opressões particulares,⁵ a intelectual russa, Alexandra Kollontai, ressaltou a necessidade

da socialização das tarefas domésticas no qual a criação de lavanderias, refeitórios e creches públicas contribuiriam na vida da família proletária. A participação ativa de Kollontai foi decisiva para que o Estado Soviético, durante o Governo de Lenin, organizasse tais instituições para a libertação da mulher do trabalho doméstico. Como foi muito bem observado por Giovanna Marcelino “as feministas socialistas, portanto, não abordaram a questão da libertação da mulher como um problema apenas jurídico, mas como uma questão de classe e de transformação da sociedade” (MARCELINO, 2019, p. 42). A reestruturação das bases da sociedade tanto da sua moral e quanto dos seus costumes era uma condição necessária “para que a libertação das mulheres fosse efetiva e plenamente alcançada” (MARCELINO, 2019, p. 42).

Outro período importante que marca a construção do feminismo marxista está entre os anos de 1960. Tal conjuntura contou com a participação de muitos movimentos sociais engajados na luta anticapitalista, representando um grande avanço em relação ao período anterior incorporando novas pautas e reivindicações. Foi trazido ao debate a necessidade de ampliação das lutas para além de questões econômicas para o combate contra o capitalismo (MARCELINO, 2019, p. 44).

Neste cenário, encontra-se em destaque, principalmente, Simone de Beauvoir, que proporcionou um diálogo entre a filosofia existencialista francesa com o marxismo. Sua obra O Segundo Sexo permitiu uma compreensão da construção social da mulher. A famosa frase “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2016, p. 11) buscava explicar que não há um destino biológico, psicológico ou econômico que “define a forma que a mulher ou a fêmea humana assume no seio da sociedade” (BEAUVOIR, 2016, p. 11), mas, sim, o conjunto ordenado da civilização que elabora e qualifica o feminino, trazendo à discussão como o valor atribuído ao feminino é um fator social. ¹

A construção do feminismo marxista tem ganhado destaque junto aos crescentes movimentos anticapitalistas que tem ressurgido na atualidade. As reivindicações mostram-se cada vez mais plurais e complexas, a vinculação entre os conceitos

de gênero, raça, classe, ² nacionalidade, etnia, sexualidade e etc, têm ampliado o protagonismo e evidenciado diversos grupos que unem a perspectiva feminista e a luta anticapitalista (MARCELINO, 2019, p. 44). A importância e a atualidade de Karl Marx decorrem da sua interpretação de um mundo que em essência continua presente, os problemas por ele apontado continuam atuais ainda que sob novos moldes. Desse modo, conforme as palavras de Silvia Federici, não se pode ignorar o trabalho de Marx, “enquanto o capitalismo seja o modo dominante de produção, mas deve ir além dele” (FEDERICI, 2018, p. 87).

REFERÊNCIAS

ALAMBERT, Zuleika. Feminismo: o ponto de vista marxista. São Paulo: Nobel, 1986.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida. vol II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

FEDERICI, Silvia. Notas sobre gênero em “O Capital” de Marx. Cadernos Cemarx, Campinas, SP, n. 10, 2018. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/cemarx/article/view/10922 Acesso em 12 jan. 2022.

FERGUSON, Susan. MCNALLY, David. Capital, força de trabalho e relações de gênero. Revista Outubro, n. 29, novembro de 2017. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/capital-forca-de-trabalho-e-relacoes-de-genero/ Acesso em: 12 jan. 2022.

GOLDMAN, Wendy. Mulher, estado e revolução. São Paulo: Boitempo/Iskra,

2014.

KOLLONTAI, Alexandra. Autobiografia de uma mulher comunista sexualmente emancipada. São Paulo: Sundermann, 2007.

MARCELINO, Giovanna Henrique. Feminismo, ponto de renovação do marxismo. Revista Outubro, n. 33, 2º semestre de 2019. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/feminismo-e-a-renovacao-do-marxismo/ Acesso em: 12 jan. 2022.

MORAES, Maria Lygia Quartim de. Vinte anos de feminismo. Campinas, Tese de Livre-docência, Departamento de Sociologia, IFCH/Unicamp, 1996.

57 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, na Linha de Pesquisa Relações Sociais e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. E-mail: [email protected]

58 Para uma compreensão mais minuciosa sobre a Revolução Russa e a condição da mulher durante esse período conferir: GOLDMAN, Wendy. Mulher, estado e revolução. São Paulo: Boitempo/Iskra, 2014.

59 A condição da mulher trabalhadora não se reduziu as questões trabalhistas e a esfera doméstica, aspectos morais, modelo familiar, libertação sexual, relacionamentos livres, também foram alguns dos temas debatidos durante o período da Revolução Russa.

60 Cabe ressaltar que estas instituições não foram suficientes para a libertação da mulher devido a diversas circunstâncias que a Rússia vivia na época. Contudo, elas foram muito importantes para compreender suas falhas e seus acertos e a necessidade de sua ampliação e de seu aperfeiçoamento. Além disso, “as mulheres russas, pela primeira vez na vida, viram as portas das empresas públicas e dos órgãos de administração do Estado abrirem-se diante de seus olhos.” Conferir: TOLEDO, Cecília. Apresentação. In: KOLLONTAI, Alexandra. Autobiografia de uma mulher comunista sexualmente emancipada. São Paulo: Sundermann, 2007. p. 20-21.

61 Para uma análise profunda de seu trabalho conferir: BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida. Vol II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

62 Vale destacar o trabalho incomparável de Angela Davis que integra o grupo de feministas marxistas que tem aprofundado o debate sobre gênero, classe e raça. Para o conhecimento do seu trabalho recomenda-se a leitura da obra DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

FEMINISMO NEGRO

Mariete Lopes da Costa ³

Entre as diferentes vertentes do movimento feminista, existe uma chamada “feminismo negro”. Essa corrente remete aos movimentos de mulheres atuantes tanto nas lutas contra as desigualdades de gênero como na luta antirracista. Impulsionado por mulheres negras, essa vertente feminista considera que o debate de gênero é indissociável do de raça, devendo ser analisado conjuntamente (RIBEIRO, 2018).

A temática dos feminismos negros levanta cada vez mais debates na sociedade. Este movimento social, organizado por grupos de mulheres negras, luta por direitos sociais e políticos delas, bem como objetiva promover e destacar as pautas reivindicativas pelos seus direitos, pela igualdade de gênero e igualdade racial (ADICHIE, 2009).

Diante dessa compreensão, cabe destacar que:

O pensamento feminista negro não é uma novidade. Embora sua visibilidade tenha aumentado nas últimas décadas, o feminismo negro não se constitui de forma responsiva ao feminismo branco e tampouco é um mero desdobramento dele. Feministas negras existem desde os primórdios do feminismo, o que nem sempre houve foi o reconhecimento destas enquanto feministas, devido ao racismo (BUENO, 2020, p. 31-32).

Nesse sentido, o feminismo negro pode ser compreendido como um movimento social, político e intelectual construído a partir de mulheres negras envolvidas com o combate às desigualdades de gênero e raça. Contrariamente ao que se costuma afirmar, essa vertente do movimento feminista não objetiva segregar as mulheres, mas, pelo contrário, o seu intuito é justamente alcançar todas elas, de

modo a considerar as especificidades de cada uma (RIBEIRO, 2018).

Sendo assim, as integrantes do feminismo negro apontam que cada grupo social possui suas próprias particularidades, sendo que essas não podem deixar de ser consideradas, pois a universalização da mulher – a mulher branca ocidental – foi feita de maneira excludente. Diante disso, é possível compreender que houve a exclusão de mulheres negras dentro do próprio movimento feminista, pois as pautas que envolviam questões de raça eram quase sempre desconsideras, pois somente questões envolvendo gênero deveriam ser levadas em conta (DAVIS, 2016).

Nesse sentido, Djamila Ribeiro (2018, p. 45-46) afirma que:

As críticas de algumas dessas feministas vêm no sentido de mostrar que o discurso universal é excludente, porque as mulheres são oprimidas de modos diferentes, tornando necessário discutir gênero com recorte de classe e raça, levando em conta as especificidades de cada uma. A universalização da categoria “mulheres” tendo em vista a representação política foi feita tendo como base a mulher branca de classe média – trabalhar fora sem a autorização do marido, por exemplo, jamais foi uma reivindicação das mulheres negras ou pobres.

Diante disso, o que a autora busca destacar é que embora as desigualdades de gênero e essa luta una as mulheres, existem muitas outras especificidades que as diferenciam (RIBEIRO, 2018, p. 53), sendo que essas especificidades e características próprias não podem deixar de ser consideradas pelos movimentos feministas, sob pena de não alcançar todas elas.

Sendo assim, pode-se destacar que durante muito tempo as mulheres negras foram excluídas dentro do próprio movimento feminista, sendo que as suas reivindicações e pautas foram, em grande parte, negligenciadas pelas mulheres

brancas, que defendiam que o mais importante era discutir as desigualdades de gênero, já que todas elas eram mulheres (DAVIS, 2016). No entanto, conforme destaca Djamila Ribeiro (2018, p. 133), “a violência de gênero atinge todas as mulheres, mas atinge de forma mais grave aquelas que combinam mais de uma opressão”.

A teórica feminista interseccional bell hooks (2019) afirma sobre a existência do racismo dentro do feminismo. Nesse sentido ela destaca que a partir do momento que mulheres negras passaram a questionar e apontar esse racismo dentro do movimento feminista, as mulheres brancas se revoltaram e as acusaram de querer separá-las. Desse modo, as mulheres negras que confrontaram o racismo existente no feminismo foram excluídas por parte das outras e, além disso, ainda tiveram a culpa apontada para elas mesmas por isso.

Assim, a autora ainda continua e destaca que:

Hoje em dia é tão comum para a militância feminista evocar a tríade gênero, raça e classe social que as pessoas frequentemente se esquecem de que, no início, a maior parte das pensadoras feministas, muitas delas brancas e provenientes de classes privilegiadas, era refratária a essa perspectiva. As pensadoras feministas radicais/revolucionárias que queriam falar sobre gênero com base na tríade raça, sexo classe social eram chamadas de traidoras e acusadas destruírem o movimento mediante uma mudança de foco (HOOKS, 2019, p. 18).

Diante disso pode-se compreender que durante muito tempo os movimentos feministas trataram as mulheres de maneira universal, sem considerar as suas especificidades e diferenças de opressões que elas poderiam estar sujeitas. O feminismo, naquele contexto, defendia que era a questão de gênero que as unia e que somente isso importava, sendo que a luta antirracismo, assim, não caberia dentro da luta feminista (CARNEIRO, 2011).

Nesse sentido, bell hooks afirma que para que haja uma revolução feminista que realmente acabe com as desigualdades, não basta apenas dar fim a opressão machista, sendo necessário também acabar com as opressões de raça e classe. Assim, a autora aponta que não adianta um grupo de mulheres (aqui, mulheres brancas e de melhores classes sociais) se libertar da opressão machista, enquanto continuar a existir diversos outros grupos de mulheres que seguem sendo exploradas (HOOKS, 2019).

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Trad. Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

BUENO, Winnie. Imagens de Controle: Um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre, RS: Zouk, 2020.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Trad. Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo:

Companhia das Letras, 2018.

63 Mestra em Direito, com ênfase em constitucionalismo e democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.

FEMINISMO NEGRO II

Suelen Karini Almeida de Matos ⁴

Antes de entrarmos de fato no conceito, é importante compreender sua origem epistêmica. A chamada segunda onda do feminismo surge dentro de um contexto de novas perspectivas além dos estudos de classe. A teoria marxista traz um olhar para os papéis sexuais da mulher no mercado de trabalho, que também influência no que se entende por conceito de classe, afinal outras classes entram em pauta.

O cenário era composto nos anos 60, pós-segunda guerra mundial, esse fato histórico transformou profundamente a sociedade. Algumas tendências de comportamento do capitalismo surgem,

(..)como a mudança da “sociedade da produção” para a do consumo; a proliferação de novas categorias de trabalhadores profissionais e dos serviços; e a revolução eletrônica e o novo poder da mídia na formação da cultura e da subjetividade. No mundo inteiro, a população concentrava-se cada vez mais nos centros urbanos, onde o acesso à escolarização, à informação e aos meios de comunicação – mesmo tratando-se de processos que envolvem novas e antigas hierarquias e desigualdades – era cada vez maior. No terceiro mundo, havia uma nova e grande onda de resistência à histórica dominação colonial, que se relacionava não apenas com antigas relações de poder, mas com o crescimento de novas expectativas de uma vida melhor que também faziam parte da “modernidade periférica”; suas porta-vozes, não poucas vezes, eram os jovens intelectuais desses países, que usufruíam de um acesso privilegiado às novas formas de capital cultural que se desenvolviam no ocidente (ALDEMAN, 2004, p. 23-24).

Neste contexto é possível perceber novos atores sociais que começam a se tornar protagonistas. Novas formas de viver foram evidenciadas, abalando as estruturas hegemônicas de poder. No âmbito do feminismo, movimento no qual estamos

discutindo aqui, perde-se um pouco do discurso no qual se falava durante a primeira onda, pois o contexto social é outro, como já foi apresentado. Igualdade nas diferenças é o lema, pois

A luta feminista desse período, baseada no discurso da diferença não destitui o sexo da condição naturalizada proposta pelo discurso biológico anterior. A teoria feminista do período de certa maneira retoma os postulados de Beauvoir, que pensava o sexo como natural e o gênero (mesmo sem usar essa palavra) como construído e a crítica feminista avança no sentido de começar a questionar sobre esta possível naturalização (JESUS, SACRAMENTO, 2014, p. 195).

As feministas pertencentes à segunda onda atribuíam ao patriarcalismo e a opressão contra as mulheres como fundamentos principais do movimento. Ao entender mulher como categoria única, assim como Simone Beauvoir dizia, se inicia um processo de violência epistêmica contra o purismo que contempla o ser mulher, pautas negras e latinas são deixadas de lado.

A segregação racial fortemente estruturada nos Estados Unidos começa a ser abalada pelos movimentos civis, com início nos anos 70 com a criação do grupo Panteras Negras. Angela Davis (2016), mulher negra, militante e ativista, fazia parte da luta pelo combate ao racismo, presa com um julgamento que durou 18 anos, onde após solta foi proibida de lecionar na universidade na qual trabalhava. Sua história repercutiu fazendo seu nome ecoar pelos quatro cantos do mundo, influenciando mulheres de diversas nacionalidades, em especial nos países em que a presença negra era marcada.

Davis (2016) fez com que a sociedade começasse a perceber as violências nas quais mulheres negras sofrem, como o estupro como um dos sintomas do racismo e machismo estrutural do país. A autora traz as diferenças do ser mulher branca e ser mulher negra em pauta, onde segundo ela, enquanto mulheres brancas estão lutando pelo direito ao voto, mulheres negras lutam pelo simples fato de serem consideradas seres humanas e serem incluídas na estrutura social

como qualquer outro indivíduo.

Com essa perspectiva surge o conceito da interseccionalidade, onde afirma-se que não se pode considerar gênero como um marcador social isolado, é mais do que necessário atribui outros marcadores como raça, classe, sexualidade, etc., para que, dentro do movimento feminista, não se ignore e silencie mulheres que são caladas pelo feminismo hegemônico branco e heteronormativo, pois, como bem contextualiza a filosofa negra brasileira Djamila Ribeiro (2018),

(...) a teoria feminista também acaba incorporando e estruturando o discurso das mulheres brancas como dominante. Assim, o contradiscursos e contranarrativas não são importantes somente num sentido epistemológico, mas também no de reivindicação de existência. A invisibilidade da mulher negra dentro da pauta feminista faz com que ela não tenha seus problemas nem ao menos nomeados. E não pensa em saídas emancipatórias para os problemas que nem sequer foram ditos. A ausência também é ideologia (RIBEIRO, 2018, p. 124).

Sendo assim, o feminismo negro surge como uma espécie de ramificação do feminismo idealizado pelas mulheres brancas como uma ferramenta de luta política destinada, em um primeiro momento para as mulheres negras. É importante compreender que essa ação é de grande relevância, pois, mulheres negras sofrem situações distintas em relação as mulheres brancas e que, com o feminismo negro, pode-se pensar em estratégias que sejam mais coerentes com a realidade desse grupo.

A filosofa negra e brasileira Sueli Carneiro (2004) dialoga com o trabalho das feministas negras estadunidenses e questiona que “seria a mulher negra o próprio antagonismo das mulheres brancas, constantemente estereotipadas como sendo a mulher bestializada, desumanizada, promíscua e lasciva, além de feias, dotadas de sobre-força e trabalhadoras adequadas para serviços desumanizados” (CARNEIRO, 2004, p. 286).

Ou seja, o lugar da mulher negra está localizado na subalternidade, no trabalho doméstico, na falta de amor e afeto nas relações amorosas, na total ausência de reconhecimento intelectual e da objetificação de seus corpos. Ou seja, estamos falando “(...) da importância de se dar nome à visibilidade para se restituir a humanidade” (RIBEIRO, 2018, p. 25).

Obviamente não devemos compreender de forma única e estática a vivência das mulheres negras, afinal, estamos falando de seres plurais e que possuem diferentes realidades de vida. Por isso, como bem pontua a advogada e intelectual negra Patrícia Hill Collins (2012),

O que quer dizer que apesar de termos consciência das vivências negras como um todo, não podemos nos deixar levar para os caminhos de uma história única e universal que transforma a opressão em uma categoria homogênea. Ao contrário, mesmo dentro do feminismo negro é necessário fazer recortes e análises mais aprofundadas e diferenciadas, levando-se em consideração a sexualidade, etnia, nacionalidade, religiosidade, cidadania e classe a que essas mulheres pertencem (COLLINS, 2012).

Sendo assim, o feminismo negro se constitui enquanto categoria de análise, onde encontramos um espaço para aprofundarmos nosso diálogo sobre outros marcadores sociais que atravessam a existência feminina negra. A interseccionalidade anda de mãos dados com o feminismo negro, pois ambos contemplam, de forma epistêmica, as reflexões necessárias para se trabalhar em uma sociedade com mais equidade de gênero, raça e entre outros tão importantes.

O feminismo negro aponta para um novo marco civilizatório. Eu, enquanto mulher negra, compreendo essa categoria como uma potente ferramenta que nos ajuda a compreender quanto se é necessário nos articularmos enquanto coletivo

na construção de uma rede de solidariedade e dororidade ⁵. E para as mulheres brancas, enxerguem no feminismo negro a importância de se olhar com afeto e atenção para as particularidades que nossa existência negra possui no mundo. O feminismo negro, para além da epistem, é força política e articuladora para a construção de novas narrativas e a ocupação de espaços que são de todas nós, mulheres negras, por direito.

REFERÊNCIAS

ALDEMAN, Miriam. A voz e a escuta: Encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea. Florianópolis – SC. Tese (doutorado) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. 2004.

CARNEIRO, Sueli. A mulher negra na sociedade brasileira: o papel do movimento feminista na luta anti-racista. In: MUNANGA, Kabengele, (Org.). O negro na sociedade brasileira: resistência, participação, contribuição. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2004. p. 286 (História do negro no Brasil).

COLLINS, Patricia Hill. Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro. In: JABARDO, Mercedes, et al. Feminismos Negros. Una Antología. Madri, 2012. Disponível em: https://www.traficantes.net/sites/ default/files/pdfs/Feminismos%20negros-TdS.pdf. Acesso em: 10 mar. 2022.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

JESUS, Milena Santos de; SACRAMENTO, Sandra Maria Pereira do. A Abordagem Conferida ao Sexo e Gênero nas Distintas Ondas Feministas.

Maceió - AL. Revista Café com Sociologia. Vol. 03; nº 3; set./dez. de 2014, p. 188-206. 2014. Disponível em: https://revistacafecomsociologia.com/revista/index.php/revista/article/view/355. Acesso em: 10 mar. 2022.

RIBEIRO. Djamila. Quem Tem Medo do Feminismo Negro? São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.

64 Doutoranda em Antropologia (PPGA-UFPR). E-mail: [email protected].

65 Dororidade é um conceito cunhado pela autora brasileira Vilma Piedade em seu livro que leva esse nome. Ele diz respeito sobre o quanto o termo “sororidade” não dá conta da realidade vivida pelas mulheres negras. Para ela, “sororidade, etimologicamente falando, vem de sóror – irmãs. Dororidade vem de Dor, palavra-sofrimento. Seja Físico. Moral. Emocional (PIEDADE, 2017, p. 17).

FEMINISMO RADICAL

Maria Luiza Prestes Magatti

O vocábulo “radical”, adjetivo de dois gêneros na Língua Portuguesa, refere-se primacialmente a algo que é relativo ou pertencente à raiz ou à origem; algo que é original. Este entendimento se replica em distintas áreas do conhecimento, a começar pela Gramática, onde “radical” é a parte da estrutura de uma palavra que contém seu significado básico e permite o recebimento dos sufixos flexionais necessários à contextualização – paralelamente, na Química “radical” é o grupo de átomos que não se alteram no caso de reações químicas e na Botânica “radical” é a folha que nasce de um caule ainda subterrâneo.

Nas Ciências Feministas, portanto, o termo obedece às mesmas premissas; dessa forma, o feminismo radical se consolida na década de 60 como uma corrente teórica que diverge do ativismo feminista, à época, popular, propondo políticas que se fundamentem diretamente na raiz dos problemas experienciados por mulheres e que objetivam a eliminação da supremacia masculina em todos os contextos sociais e econômicos – raiz essa identificada na materialidade do sexo biológico, tornando as mulheres uma classe (WILLIS, 1984; GIARDINA, 2010; e FIRESTONE, 2003). A respeito disso, a feminista radical estadunidense Robin Morgan construiu a seguinte definição:

Eu acredito que o sexismo é a raiz da opressão, aquela que, até e a não ser que extirpermos, continuará a se estender nos ramos do racismo, do ódio de classe, etarismo, competição, desastre ecológico e exploração econômica. Isso significa, para mim, que as assim chamadas revoluções até a data de hoje foram golpes de Estado entre homens, em uma trépida tentativa de podar os galhos, mas deixando a raiz cravada no propósito de preservar o privilégio masculino (MORGAN, 1977, p. 19).

Uma ideia marcante do feminismo radical se refere ao patriarcado como forma primária de outras opressões que socioculturalmente se desenvolveram (KLEIN,

1996). Nesse sentido, a referida corrente teórica se distingue de outras, pautadas no socialismo (tais como o feminismo marxista e o anarcofeminismo, que por sua vez percebem questões de classe e de economia como igualmente potentes – ou até mesmo superiores – fontes de opressão em relação ao patriarcado (WILLIS, 1984), e, ainda, do feminismo liberal, que identifica nos sistemas legais e na política institucional o fundamento da opressão contra as mulheres. Explicitamente, no feminismo radical, compreende-se que a classe dos homens é opressora da classe das mulheres dentro de um sistema global nomeado como patriarcado (TONG, 2017).

Apesar de ter sido, desde o início de sua popularização, bastante criticado por setores reformistas do feminismo (MORGAN, 1977), é indiscutível a influência da teoria e do ativismo radical no último século à nível mundial, envolvendo (i) o reconhecimento das questões privadas/íntimas como pautas políticas, (ii) o impacto na legalização do abortamento em diversos países, (iii) a chamada de atenção para as discussões envolvendo o trabalho doméstico e de cuidado (principalmente envolvendo crianças, idosos e pessoas com deficiência) e (iv) o desenvolvimento da segunda onda feminista (WILLIS, 1984).

Para além disso, o feminismo radical é responsável por ampla literatura relacionada à indústria do sexo – à qual se opõe, criticando-a através da exposição dos danos causados às mulheres durante a produção de pornografia, o dano social do consumo de pornografia, a coerção e a pobreza que levam as mulheres a se tornarem prostitutas, os efeitos prejudiciais a longo prazo da prostituição, a natureza racial e classista da prostituição e o domínio masculino sobre as mulheres na prostituição e na pornografia. Tais temas são muito caros ao feminismo radical, visto que este se critica desde o princípio a exploração e a opressão da mulher a partir de suas capacidades sexuais e reprodutivas, a partir da materialidade de seu sexo.

A respeito da prostituição, nota-se sob a perspectiva radical que, quando ela não é compreendida como instrumento de exploração sexual, confere aos homens o poder social e econômico de agir como uma classe patrão em matéria de relações

sexuais, implica que os corpos das mulheres existem como um recurso a ser usado por outras pessoas e despreza o fato de que o dinheiro atua como instrumento de coerção (DITUM, 2014; DWORKIN, 1981; e MACKINNON, 1993).

No pensamento feminista radical não pode haver prostituição e emancipação de mulheres simultaneamente (DWORKIN, 1993) porque a subjugação sexual das mulheres é o fundamento primordial da opressão sexista e sua manutenção reforça definições patriarcais basilares, razão pela qual, na mesma esteira de raciocínio, o feminismo radical denuncia a produção de pornografia. Argumentase que a atividade pornográfica envolve coerção física, psicológica e, conforme já mencionado, econômica das mulheres que atuam e modelam nela; ademais, que nas performances as atrizes são reduzidas a meros objetos para total uso e abuso sexual por homens a fim de que a narrativa se construa exclusivamente sobre o prazer sexual masculino enquanto à mulher resta o papel de servidão e humilhação (DWORKIN, 1993).

A sexualidade é pauta importante no feminismo radical. É nesse sentido que as lésbicas radicais se distinguem até mesmo de outras feministas radicais por suas raízes ideológicas na lesbianidade política. As lésbicas radicais veem a lesbianidade como um ato de resistência contra a instituição política da heterossexualidade, que consideram perigosa e opressora em relação às mulheres. O perigo se encontra, conforme a lésbica radical Jill Johnson, no fato de que até mesmo o movimento radical, combativo à todas as formas de opressão, procurou “deixar intacta a unidade nuclear básica da opressão: o sexo heterossexual” (JOHSNON, 2000, p. 157).

Compreende-se através da teoria radical que é necessário criticar a opressão psicológica advinda da heteronormatividade e desafiá-la para que o intento da emancipação coletiva das mulheres seja bem-sucedido, tendo em vista que este modo de construir relações de afetividade e grupos familiares é “o fundamento sexual das instituições sociais” (JOHSNON, 2000, p. 157) e realiza manutenção de inúmeras relações de poder patriarcais através da dominação pessoal e íntima

– de forma contraposta às premissas do movimento radical (ABBOTT; LOVE, 2000).

É notável ao feminismo radical que a lesbianidade ameaça os sistemas patriarcais. A lesbianidade, no feminismo radical, não diz respeito apenas à preferência sexual de uma mulher por outras mulheres, mas, principalmente, à liberação e independência absoluta – especialmente financeira e emocional – dos homens; esta manifestação de liberação promove maior afastamento individual da opressão psicológica que envolve a heteronormatividade, promovendo maior sucesso aos esforços de afastamento coletivo.

Por fim, é necessário mencionar a questão do feminismo radical em contraponto com a identidade de gênero. Sendo o primeiro fundamentado sobre a premissa de que a materialidade do sexo biológico é a raiz da opressão patriarcal, buscase, em seus intentos revolucionários, o seguinte:

[O] objetivo final da revolução feminista deve ser, ao contrário do primeiro movimento feminista, não apenas a eliminação do privilégio masculino, mas da própria distinção sexual: diferenças genitais entre seres humanos não importaria mais culturalmente (FIRESTONE, 2003, p. 16).

Diante disso, promove-se através da teoria radical que as distinções materiais entre os sexos masculino e feminino não devem ultrapassar suas funções reprodutivas na sociedade, abstendo-se de atuar culturalmente como o fazem nos dias de hoje (DALY, 1990). Isto porque a partir da movimentação radical bemsucedida pela emancipação coletiva das mulheres se dá, também, o fim do gênero, de seus estereótipos, suas atribuições impostas (tais quais a feminilidade estética e a comportamental) e sua violência (POIROT, 2009).

Assim, o feminismo radical pode ser nomeado como crítico (e/ou abolicionista)

de gênero, o que provoca conflito metodológico e epistemológico com o transativismo (JEFFREYS, 2008). O conflito se dá porque o feminismo radical argumenta que a diferença de comportamento entre homens e mulheres é o resultado da socialização patriarcal global e, como as mulheres trans são atribuídas ao sexo masculino no nascimento, elas recebem privilégios correspondentes na sociedade; mesmo que optem por se apresentar como mulheres, o fato de terem uma escolha nisso as diferencia das pessoas designadas como mulheres ao nascimento e socializadas pela família e pela comunidade desde então (JEFFREYS, 2014).

REFERÊNCIAS

ABBOTT, Sidney; LOVE, Barbara. Is Women’s Liberation a Lesbian Plot? In: CROW, Barbara. Radical Feminism: A Documentary Reader. New York: New York University Press, 2000.

DALY, Mary. Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism. Boston: Beacon Press, 1990.

DITUM, Sarah. Why we Shouldn’t Rebrand Prostitution as “Sex Work”. London: New Statesman, 2014.

DWORKIN, Andrea. Pornography: Men Possessing Women. Londres: The Women’s Press, 1981.

DWORKIN, Andrea. Prostitution and Male Supremacy. Michigan Journal of Gender & Law, Michigan, 1993.

FIRESTONE, Shulamith. The Dialetic of Sex. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2003.

GIARDINA, Carol. Freedom for Women: Forging the Women’s Liberation Movement. University Press of Florida, 2010.

JEFFREYS, Sheila. Gender Hurts: A Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism. Abingdon: Routledge, 2014.

JEFFREYS, Sheila. Transgender Activism: A Lesbian Feminist Perspective. The Journal of Lesbian Studies, 2008.

JOHSNON, Jill. The Making of the Lesbian Chauvinist. In: CROW, Barbara. Radical Feminism: A Documentary Reader. New York: New York University Press, 2000.

KLEIN, Renate; ROWLAND, Robyn. Radical feminism: History, politics, action. In: BELL, Diane; KLEIN, Renate. Radically Speaking: Feminism Reclaimed. North Geelong: Spinifex Press, 1996.

MACKINNON, Catharine. Prostitution and Civil Rights. Michigan Journal of Gender & Law, Michigan, 1993.

MORGAN, Robin. Going Too Far: The Personal Chronicle of a Feminist. New York: Random House, 1977.

POIROT, Kristan. Domesticating The Liberated Women: Containment Rhetorics Of Second Wave Radical/lesbian Feminism. Women’s Studies in Communication. Vol. 36, issue 3. London, 2009.

TONG, Rosemarie; BOTTS, Tina. Feminist Thought: A More Comprehensive Introduction. 5th edition. Boulder, CO: Westview Press, 2017.

WILLIS, Ellen. Radical Feminism and Feminist Radicalism. Social Text. Duke University Press, 1984.

66 Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em Desigualdades de Gênero e Autonomia Feminina no Brasil (CHH-UEL) e ao Grupo de Pesquisa em Processos Estruturais (CESA-UEL). Endereço eletrônico: [email protected].

FEMINISMO(S) ⁷

Bibiana Terra ⁸

O feminismo, de maneira ampla, é u m movimento político que reivindica pela libertação das mulheres e pelo fim das opressões baseadas nas discriminações de gênero. Trata-se de um movimento com características e historicidade própria, sendo que este articula suas lutas, militância e fundamentação teórica, estando atualmente consolidado como um discurso que possui caráter intelectual, filosófico e político e que busca desconstruir os padrões que sempre mantiveram as mulheres como inferiores aos homens durante toda a história da humanidade.

As desigualdades entre homens e mulheres podem ser compreendidas como um traço existente se não em todas, na grande maioria das sociedades. Essas desigualdades não foram disfarçadas ou deixadas de lado, mas pelo contrário, foram assumidas como reflexo da natureza diferenciada dos dois sexos e como necessária para o progresso da espécie. No entanto, o pensamento feminista discorda dessa compreensão e denuncia a situação das mulheres como efeito dos padrões de opressão que reproduz assimetrias entre ambos (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 17-20).

Nesse sentido, apresenta-se o conceito de feminismo. A definição deste, enquanto movimento que se contrapõe à dominação masculina, pode ser compreendida pela construção de críticas que vinculam a submissão das mulheres no âmbito doméstico à sua supressão do âmbito público. No mundo ocidental, o movimento feminista, enquanto movimento político e intelectual, apareceu na virada do século XVIII para o XIX como uma decorrência não desejada da Revolução Francesa (MIGUEL; BIROLI, 2013, p. 08).

Diante disso, primeiramente, é preciso compreender que o feminismo se desenvolveu ao longo da história como um movimento político, social e filosófico, sendo uma das suas principais características a busca pela igualdade entre homens e mulheres e, consequentemente, direitos iguais para todos. Esse é

um movimento que se contrapõe ao patriarcado e questiona as relações de poder, as opressões e as explorações de grupos de pessoas sobre outras (TELES, 2017, p. 22).

O movimento feminista tem grande relevância histórica, pois, junto com outros movimentos de libertação, denuncia as diferentes formas de opressão que não se restringem apenas ao caráter econômico. Assim, juntos rompem com o silêncio e se organizam dentro das suas próprias particularidades, buscando superar as opressões sofridas (ALVES, 1991, p. 07-10). Ele também se refere às ações de mulheres que estão dispostas a combater as discriminações e a subalternidade, buscando possibilitar o protagonismo de sua própria história.

Esse é um movimento fundamental para a construção de identidades políticas femininas, visto que é uma reunião estruturada de ideias que guia ações políticas. Diante disso, tem como compreensão a noção de que as mulheres são discriminadas e não gozam dos mesmos direitos e condições de igualdade que os homens. Além disso, compreende que essa noção é resultado da desigualdade estrutural das mulheres em meio à sociedade e do reconhecimento de que são necessárias soluções coletivas para que haja mudanças estruturais (AVELAR, 2001, p. 24).

Enquanto corrente intelectual, o feminismo, em suas diferentes vertentes, articula suas reivindicações pela igualdade de gênero com a investigação das causas e mecanismos de reprodução da dominação masculina. Muito embora haja um senso comum que afirma que o feminismo já foi “superado”, haja vista que as mulheres já conquistaram sua igualdade formal, acesso à educação, seus direitos políticos e entrada no mercado de trabalho, permanece ainda hoje um contexto de dominação masculina (MIGUEL; BIROLI, 2014, p. 17-20).

O feminismo questiona essa opressão específica contra as mulheres e, desse modo, propõe uma transformação social, econômica, política e ideológica de toda a sociedade, sendo que, no decorrer do tempo, se manifestou de diferentes

formas (TELES, 2017, p. 22). As suas lutas e movimentações se dão a partir do reconhecimento de que as mulheres são especificamente e sistematicamente oprimidas. Assim, o feminismo se baseia na certeza de que as relações entre homens e mulheres não estão naturalmente inscritas, sendo que, nesse sentido, existem possibilidades de transformação (TERRA, 2022).

O feminismo pode ainda ser compreendido enquanto movimento político e social que possui intenções de construir direitos iguais para todas as pessoas. Sendo assim, ele se apresenta como teorias e filosofias que reivindicam igualdade entre homens e mulheres e promovem a construção dos direitos das mulheres. O feminismo parte da percepção de que existe uma opressão específica da população feminina, sendo esta marcada pela dominação e exploração dos homens contra as mulheres (MELO; THOMÉ, 2018, p. 19).

Desde as suas primeiras movimentações, ainda no século XIX, o feminismo foi um movimento bastante particular. Ao mesmo tempo que desafiava a ordem conservadora que excluía as mulheres das esferas públicas, ele também desafiava os processos revolucionários, que enxergavam as movimentações das mulheres como um desvio da busca do proletariado pela sua libertação. Assim, havia um entendimento de que o movimento feminista causaria um esvaziamento da luta de classes (PINTO, 2003, p. 10-11).

Desse modo, pode-se compreender que o movimento feminista, ao longo de seu desenvolvimento na história, encontrou fortes resistências, tanto por parte dos setores considerados progressistas, ou seja, ligados a uma política mais à esquerda, quanto pelos mais conservadores. O feminismo foi equivocadamente identificado como uma proposta de separar os sexos ou mesmo de querer impor uma supremacia das mulheres, sendo mal-visto tanto pelos conservadores quanto pelos progressistas.

Tendo apresentado, de forma ampla, o conceito de feminismo, é importante ressaltar que, atualmente, são diversas as correntes feministas existentes⁷ e

mesmo as suas tentativas de classificações ainda não são o suficiente para mapear todas elas. Nesse sentido, é preciso esclarecer que, embora essa pesquisa adote o uso da terminologia “feminismo” e “movimento feminista”, no singular, ao longo do seu texto, não deixa de considerar que são muitos os movimentos feministas existentes hoje.

Assim, essa adoção do termo “feminismo” não implica em uma compressão hegemônica destes movimentos, pois compreende que eles são múltiplos e diversificados, sendo inclusive conhecidos também como “feminismos”. Nesse sentido, destaca-se aqui a importância de se assumir uma perspectiva interseccional e não hegemônica das mulheres e do feminismo – dos feminismos. Mas, para muito além de somente uma questão de identidade ou de marcadores, essa perspectiva também implica em muitas outras questões que são fundamentais para as mulheres e para o reconhecimento de seus direitos, não podendo nunca ser deixada de lado.

Nesse sentido, importa lembrar que, em que pese a universalidade do movimento feminista e o seu objetivo de redefinir o papel da mulher na sociedade e alcançar igualdade para todos, a subordinação das mulheres não se manifesta da mesma forma e nos mesmos graus de intensidade, a variar de acordo com a sociedade, a época, a classe social, raça, entre outros fatores. Tampouco essa subordinação é vivenciada ou percebida da mesma maneira, mesmo por mulheres em condições semelhantes (COSTA; SARDENBERG, 2008, p. 24).

Desse modo, conforme apontam Silvia Pimentel e Alice Bianchini (2021, p. 07), “diversas teóricas e ativistas feministas vêm alertando que, para realmente alcançar essa igualdade, é necessário considerar as múltiplas e diversas experiências de mulheres em contextos específicos”. Há, nesse sentido, a percepção de que não existe uma mulher universal que represente todo o movimento – mulher essa que foi desde sempre representada por uma mulher branca ocidental. O que há, na verdade, é uma grande pluralidade e diversidade de mulheres.

Sendo assim, cabe aqui destacar que durante muito tempo, e até mesmo ainda hoje, o movimento feminista afirmou que todas as mulheres são oprimidas. Essa afirmação está correta, elas são.⁷¹ No entanto, esse tipo de afirmativa costuma deixar de considerar importantes fatores como raça, classe, orientação sexual, nacionalidade, entre tantos outros. Isso porque, como coloca bell hooks⁷², o sexismo é, sem dúvidas, um sistema de dominação institucionalizado, porém, este nunca foi capaz de determinar, de maneira absoluta, o destino de todas as mulheres (HOOKS, 2019b, p. 32).

Diante disso apresenta-se necessário compreender que, embora o objetivo central do movimento feminista seja o fim do machismo e a igualdade para todas as mulheres, a opressão de gênero nâo é a única opressão a qual elas estão sujeitas (TERRA; SOUZA, 2021). Nesse sentido, é fundamental que o feminismo e seus movimentos não deixem de considerar questões de classe, raça, nacionalidade, sexualidade, dentre tantas outras opressões que as mulheres estão sujeitas. É necessário que o feminismo considere as intersecções existentes entre essas opressões pois somente dessa maneira poderá existir um feminismo/movimento feminista que de fato alcance todas as mulheres (RIBEIRO, 2018, p. 47).

Assim, na compreensão de bell hooks, uma revolução feminista não acabará com a opressão sexista se não acabar também com o racismo, o elitismo e o imperialismo, pois não adianta um grupo de mulheres se libertar da dominação masculina se existirem outros grupos de mulheres que continuem sendo exploradas (HOOKS, 2019a). O termo “mulher”, tão usado nos discursos feministas, com frequência se referiam apenas às experiências das mulheres brancas, de classe média ou alta e heterossexuais, como se essa fosse uma totalidade, relegando ao silêncio e ao ocultamento a existência individual de muitas outras mulheres (RIBEIRO, 2018).

Com isso, refutar o ideal da mulher universal é necessário para que o feminismo possa alcançar a todas e, por isso, a importância de se considerar a interseccionalidade. Para que esse seja um movimento que considere todas as mulheres, não se pode falar em “mulher” e considerar que, assim, já se está

falando de todas elas. As mulheres possuem pontos de partida diferentes, elas são oprimidas de modos diferentes, pois, apesar de estarem unidas pelo gênero, outras especificidades as atravessam de maneira diferente (RIBEIRO, 2018, p. 53).

Assim, nesse contexto, o feminismo acreditava que podia definir uma categoria universal da mulher, ignorando suas especificidades e intersecções. No entanto, é preciso compreender que esse tipo de discurso hegemônico, que coloca todas as mulheres como iguais e desconsidera as suas possíveis múltiplas opressões, acaba por excluir e silenciar a existência individual de muitas delas (DAVIS, 2016), o que impede que o feminismo represente todas elas.

Além disso, ainda é preciso deixar aqui destacado que o feminismo não se limita a ser um movimento organizado e publicamente reconhecido. Isso porque este também se revela em todas as esferas em que as mulheres procuram transformar e recriar as suas relações, de modo que elas não sejam desvalorizadas e hierarquicamente inferiores aos homens. Ou seja, que o feminino não seja desvalorizado. Sendo assim, o feminismo busca recriar as relações entre todas as pessoas e que as características determinadas socialmente como “femininas” não sejam tidas como inferiores (ALVES, 1991, p. 07-10).

De outro modo, o feminismo também pode ser definido como a tomada de consciência por parte das mulheres acerca das opressões e explorações sofridas por elas nas sociedades patriarcais em diferentes momentos históricos. Dessa forma, também, ele se articula como movimento político e, ao mesmo tempo, como movimento social. Além disso, o termo feminismo passou a ser utilizado no lugar de outras expressões, tais como “movimento das mulheres” ou “problemas das mulheres”, para descrever as movimentações femininas na busca pelos seus direitos e liberdades (GARCIA, 2015, p. 11).

Nesse sentido, é também importante destacar que existe uma diferença entre “movimentos feministas” e “movimentos de mulheres”, sendo que essas

denominações não possuem o mesmo significado. Enquanto o movimento de mulheres significa ações organizadas por grupos que demandam direitos e melhores condições de vida e trabalho, o movimento feminista se refere às ações de mulheres que objetivam combater as discriminações e a subalternidade sofridas por esse grupo, buscando assim o protagonismo de suas próprias histórias (TELES, 2017, p. 23).

Nesse sentido, pode-se compreender que enquanto os movimentos de mulheres destacam questões relacionadas à emancipação das mulheres e de transformação da sociedade em suas relações de gênero, os movimentos feministas reivindicam por demandas ligadas à melhoria por condições de vida, tais como transporte público, saneamento básico, saúde, direitos reprodutivos, entre outras (TERRA, 2022).

Abordar a diferença entre os movimentos de mulheres e os movimentos feministas não é simples, sendo que, na verdade, se torna muitas vezes difícil de destacar suas diferenças, uma vez que em grande medida as pautas apresentadas por eles podem ser as mesmas, diferenciando somente na forma com que estes apresentam os seus objetivos. No entanto, enquanto os movimentos feministas se caracterizam pela busca da emancipação das mulheres, os movimentos de mulheres demandam direitos relacionados às condições de vida, sem necessariamente questionarem a opressão em razão da hierarquia de gêneros na sociedade, que é um ideal dos discursos feministas desde o seu início (TERRA, 2022).

Diante do exposto, cabe por fim destacar que foi justamente através de muitas reivindicações, principalmente por meio dos movimentos feministas, que a diferença de gênero deixou de ser uma justificativa possível para a supressão de direitos e para a previsão de direitos marcadamente inferiores para as mulheres. Essa distinção de tratamento passou a ser considerada como um dos fatores que evidenciavam as discriminações sofridas pelas mulheres em meio à sociedade e, nesse sentido, ela deveria ser combatida. Essa busca pelo reconhecimento dos direitos das mulheres e pelo fim das desigualdades é que impulsiona o

feminismo.

REFERÊNCIAS

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

AVELAR, Lúcia. Mulheres na elite política brasileira. 2ª Ed. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer: Editora da Unesp, 2001.

COSTA, Ana Alice Alcantara; SARDENBERG, Cecília Maria B. O feminismo no Brasil: Uma (breve) retrospectiva. In: COSTA, Ana Alice Alcantara; SARDENBERG, Cecília Maria B. (Orgs). O feminismo do Brasil: reflexões teóricas e perspectivas. Salvador: UFBA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a mulher, 2008.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.

GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2015.

HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza Libânio. 3 Ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019a.

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MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e Poder: histórias, ideias e indicadores. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.

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TERRA, Bibiana. A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: o movimento feminista e a participação das mulheres no processo constituinte de 1987-1988. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

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67 FEMINISMO/FEMINISMOS/FEMINISMO(S).

68 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Especialista em Direito Internacional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisadora, advogada e professora. E-mail: [email protected].

69 Esse ponto é interessante de ser destacado, pois, a partir dos estudos das teorias feministas, é possível identificar as dificuldades que o movimento feminista teve que enfrentar para fazer com que as suas especificidades fossem consideradas inclusive pela esquerda que, embora seja mais sensível às suas demandas, também demonstrava seu receio de que houvesse um desvio da luta de classes.

70 Entre outras, pode-se apontar as seguintes vertentes: feminismo liberal, feminismo marxista, feminismo negro, feminismo interseccional, feminismo

radical, feminismo decolonial, etc.

71 Considerando-se que até hoje nenhum país do mundo atingiu a igualdade de gênero.

72 No presente texto o nome de bell hooks será todo escrito em letras minúsculas pois é assim que a autora norte-americana Gloria Jean Watkins, que adota o nome de sua bisavó materna, se apresenta.

FEMINISMOS INDÍGENAS

Ana Manoela Primo dos Santos Soares Karipuna⁷³

As articulações e associações de mulheres indígenas dos povos originários brasileiros, são movimentos que não compartilham das mesmas raízes, trajetórias e lutas por direitos que os movimentos feministas, pois são movimentos diferentes e em suas especificidades com experiencias diversas. Os feminismos não nascem dentro dos territórios dos povos originários, por isso é incorreto tratar os coletivos de mulheres indígenas pela nomenclatura de feminismo indígena, que é termo que generaliza as existências, conhecimentos e práticas culturais de mulheres pertencentes a 305 diferentes povos que habitam e formam o Brasil. Além de que caso pudéssemos nomeá-los de feminismo indígena estes seriam muitos feminismos, tanto o quanto o são as quantidades de povos originários no país. Mas nomeá-los de feminismos indígenas também é classificar os movimentos das populações originárias, a partir de movimentos outros, com os quais muitos destes povos não possuem relações diretas e frequentes (SOARES, 2021).

A articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), que reúne lideranças de vários povos indígenas do Brasil, explica no documento “Manifesto A Mãe do Brasil é Indígena” (2021) que seus movimentos devem ser nomeados como de mulheres indígenas ou originárias, os definindo como movimentos ancestrais com valores e memórias matriarcais. Ou seja, com valores que são passados pelas gerações através das mães, tias e avós. Além de que o próprio movimento considera que nós somos a continuidade destas mulheres. O Manifesto referenciado, também afirma a relevância dos debates de gênero e geração dentro dos movimentos de mulheres indígenas, que estes sejam espaços de conexão para fortalecer as mulheres, assim como também fortalecer o movimento indígena. Ponderando, que as mulheres originárias são múltiplas e ocupam diversos lugares e posições dentro e fora das aldeias, são: cacicas, pajés, benzedeiras, educadoras, médicas, advogadas, antropólogas, políticas etc. Em seus movimentos de mulheres, as originárias são as protagonistas e as lideranças.

As organizações entre as mulheres originárias são anteriores ao contato e à invasão de seus territórios no século XVI pelos não indígenas, que geraram os processos de genocídio, etnocídio e ecocídio que vivenciam até hoje. Sônia Guajajara na Conferência “A perspectiva indígena para um outro mundo”, durante o evento Fazendo Gênero em julho de 2021⁷⁴, explicou que as mulheres indígenas estão se organizando e desde o ano de 2015 estão procurando formas de articular estratégias de formação, empoderamento e participação nos espaços. De acordo com esta liderança, isto não significa que as mulheres não se organizavam antes e que não estavam junto aos indígenas homens lutando pela igualdade de direitos e respeito às especificidades dos povos indígenas. O que Guajajara evoca é que a partir da mobilização “Acampamento Terra Livre (ATL)” de abril de 2015, por meio de articulações nacionais, as mulheres indígenas passaram a ter uma maior visibilidade. A data de abril de 2015 no ATL é destacada por Guajajara, pois é neste momento que começa a ser planejada a I Marcha das Mulheres Indígenas, que ocorreu quatro anos depois, em agosto de 2019 em Brasília e que resultou em um documento que aponta os objetivos pelos quais as mulheres indígenas se articulam (DOCUMENTO FINAL DA I MARCHA DAS MULHERES INDÍGENAS, 2019). Guajajara, ainda neste mesmo evento afirmou que as lutas por emancipação das mulheres indígenas não se dissociam das lutas contra o extermínio dos povos indígenas e de seus territórios geradas pelo capital. Completando que as mulheres originárias buscam ocupar os distintos lugares com vistas a quebrar as barreiras do machismo, do preconceito e da subserviência. Guajajara defende que a violência contra a mulher não é cultural dos povos indígenas, mas uma herança da colonização que pode ter reprodução dentro dos territórios originários (SOARES, 2021). As mulheres originárias têm seus corpos atravessados pelas violências praticadas dentro e fora de seus territórios. Porém, a antropóloga e indígena Elisa Urbano Ramos, pertencente ao povo Pankararu explica que haver dentro dos povos indígenas tradições em que as mulheres não podem confeccionar, ver e tocar objetos ou falar sobre determinados assuntos, não significa exclusão de gênero, mas que estas práticas são a tradição de um povo (RAMOS, 2020, p.30). O que é violência para uma mulher indígena, não necessariamente é para uma mulher indígena.

No Documento Final da I Marcha das Mulheres Indígenas (2019). As lideranças explicaram que as mulheres originárias estão em muitas lutas em âmbito nacional e internacional. As lideranças mulheres estão em permanente processo

de luta em defesa de direitos para a garantia das suas existências: que são as existências de seus corpos, espíritos e territórios. Enfrentam em seus movimentos os desmontes das políticas indigenistas e ambientais. As lutas das mulheres indígenas, junto a seus povos e territórios, são pela preservação da vida e da terra, nisto estão contidas as lutas pela demarcação dos territórios; proibição da mineração e garimpo dentro das terras indígenas; acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e respeito as práticas tradicionais ligadas a saúde indígena; acesso à educação e respeito as práticas educacionais próprias dos povos originários; preservação das línguas indígenas; direito de acesso à justiça; garantir uma política pública indigenista que contribua efetivamente para a promoção, o fomento, e a garantia de direitos de forma participativa e dialogada com as organizações indígenas; preservação dos biomas; combate às mudanças climáticas; alimentação saudável e sem agrotóxicos; aumento da representatividade das mulheres indígenas nos espaços políticos, dentro e fora das aldeias; criação de uma legislação específica que combata a violência contra a mulher indígena, culturalmente orientada à partir da realidade dos povos indígenas; e combate às violências, machismos e racismos contra os povos das originárias (DOCUMENTO FINAL DA I MARCHA DAS MULHERES INDÍGENAS).

As lutas das mulheres indígenas enquanto movimentos de mulheres está enraizada na luta pela preservação do território e ao respeito pelos corpos, conhecimentos e culturas de seus povos de origem. Não respeitar o território para as originárias é desonra aos ancestrais que em vida lutaram pela preservação da terra. Sonia Guajajara explica que a Mãe de todas as lutas para os povos indígenas é a luta pela terra⁷⁵, portanto também para as mulheres originárias. Para as mulheres indígenas em movimentos, seus corpos são corposterritórios, pois trazem em si as oralidades, as memórias e as práticas que aprenderam em suas comunidades, ainda que estes corpos transitem por outros espaços que não o território indígena (XÁKRIABA, 2018).

Para a compreensão dos movimentos de mulheres indígenas é relevante explicar que o povo ao qual uma mulher originária pertence, é um marcador protagonista em suas trajetórias, narrativas e movimentos, enquanto marcadores de gênero são algo que vem após ao do povo (BARATA, 2018, p.13). Explicar que a

nomenclatura de feminismo indígena ou feminismos indígenas é algo que não contempla os movimentos de mulheres originárias, não significa que mulheres indígenas não possam se declarar como feministas. Caso suas trajetórias e seus corpos sejam de alguma forma atravessados pelos movimentos feministas estas poderão se declarar como feministas e dialogar com estes movimentos. Mas isto é um algo que ocorre no campo da individualidade e não da coletividade enquanto movimentos do território. É compreensível que mulheres indígenas sejam feministas, mas até o momento não ocorrem os feminismos indígenas. Geralmente, o uso do termo feminismo indígena advém de quem não é “parente”, não é indígena. É termo atribuído pela academia e pela mídia (SOARES, 2021).

No final do Documento Final da I Marcha das Mulheres Indígenas (2019) é explicado que o dever das mulheres originárias em movimentos e como lideranças é fortalecer e valorizar os conhecimentos tradicionais, honrar a memória dos ancestrais e lutar pela defesa dos direitos dos povos indígenas.

REFERÊNCIAS

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GOUVEIA CASTELO BRANCO BARATA, Camille. Mulheres da montanha: corporeidade, dor e resistência entre indígenas. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade Federal do Pará, Belém, 2018.

MANIFESTO DAS PRIMEIRAS BRASILEIRAS – AS ORIGINÁRIAS DA TERRA: A MÃE DO BRASIL É INDÍGENA. Disponível em:

https://anmiga.org/manifesto/ Acesso em: 30 de mai. de 2022.

RAMOS, Elisa Urbano. Relato de experiencia/memorial. Do tronco velho Pankararu aos estudos sobre mulheres indígenas. In: Vivências diversas: Uma coletânea de indígenas mulheres. Organização Braulina Baniwa, Jozileia Kaingang, Lucinha Tremembé. 1. ed. São Paulo. Hucitec, 2020. p. 25-42.

SOARES, Ana Manoela Primo dos Santos. Mulheres Originárias: Reflexões com movimentos de indígenas mulheres sobre as existências e inexistências de feminismos indígenas. Cadernos De Campo. v. 30, n. 2. São Paulo. 2021. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/190396/179243 Acesso em: 13 jun. 2022.

XAKRIABÁ, Célia Nunes Correa. O Barro, o Genipapo e o Giz no fazer epistemológico de Autoria Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada. (Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Sustentável). Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

73 Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Licenciada em Ciências Sociais (UFPA). Pesquisadora na Liga Acadêmica Brasileira de Antropologia e Direito Indígena (LABADI). Integrante do Grupo de pesquisa Diversidade e Interculturalidade na Amazônia (DINA): Pesquisas colaborativas e pluridisciplinares - Museu Paraense Emílio Goeldi. Membro do grupo Ameríndia - Grupo de pesquisa em Etnologia Indígena e dos Povos e Comunidades Tradicionais (UFPA). Antropóloga, Socióloga e Professora. Email: [email protected]

74 Conferência: A perspectiva indígena para um outro mundo & Marcha Virtual. Youtube, 27 de julho de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=46IJ0z94NXQ&t=1518s Acesso em: 10 jun. de 2022.

75 Conferência: A perspectiva indígena para um outro mundo & Marcha Virtual. Youtube, 27 de julho de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=46IJ0z94NXQ&t=1518s Acesso em: 10 de jun. de 2022.

IDEOLOGIA DE GÊNERO

Heroana Letícia Pereira⁷

O termo ideologia de gênero é relativamente novo, tendo aparecido no Brasil com mais frequência a partir dos protestos iniciados no ano de 2013, quando eclodiu uma crise econômica e política no país, ganhado mais força com os protestos pelo impeachment da presidenta do Brasil, Dilma Rousseff e, posteriormente, com as eleições presidenciais de 2018. Porém, o termo surgiu há mais tempo, principalmente com as discussões sobre o PNE (Plano Nacional de Educação), em 2010, momento em que o combate às desigualdades de gênero na educação entrou em pauta; e a publicação do livro “ La ideología del género. O el género como herramienta de poder”, também em 2010, escrito pelo professor argentino Jorge Scala, que tem como base teórica ideias concebidas por Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI.

O alemão Joseph Aloisius Ratzinger (1997, p. 142-143), então cardeal, e o futuro papa Bento XVI, escreveu um livro chamado “O Sal da Terra” (tradução livre), em 1997, no qual, entre outras coisas, rechaça o movimento feminista, especialmente os estudos de gênero. Nele, o cardeal revela sua preocupação com possíveis subversões e afirma que a luta contra as opressões de gênero esconderia um suposto combate à natureza biológica do ser humano e, inclusive, ao Deus cristão. Na sua concepção, as emancipações política, econômica e social das mulheres, que são preceitos feministas, seriam formas de revolução contra pressupostos biológicos ao afirmarem que gênero e sexo são concepções distintas. Ratzinger considera os estudos de gênero como insurreição contra a natureza e a criação porque, nestas concepções, o ser humano possui agência, isto é, ele não é considerado criatura e sim sujeito.

O conceito de agência é discutido por diversos pesquisadores, mas, devido à natureza deste texto, opta-se pela discussão feita por Judith Butler, uma das mais importantes pesquisadoras dos estudos de gênero. Para Butler, a agência é um ato de liberdade advindo do desejo, desejo este que antecede a metafísica e a linguística. Ao conceber o ser humano como sujeito e não como criatura, atribuise a ele a realização de atos de exclusão e diferenciação que o distinguem dos

demais e do próprio ambiente, ele não encontra a si mesmo de forma autônoma. Por ser um ato essencialmente político, a agência recusa a ideia de que o ser humano é uma criação (BUTLER, 2018, p. 79). E, por isso, Ratzinger recusa de forma tão veemente a ideia de humano como agente, visto que, nesta concepção, se recusa a ideia de criação divina, na qual o ser humano homem foi feito à imagem e semelhança de deus, enquanto a mulher foi feita a partir da costela do homem, tendo ambos recebido seus papéis biológicos e sociais desde o nascimento.

Já Jorge Scala publicou diversos livros nos quais parte não somente das ideias de Ratzinger, mas também de ideias contrárias à agenda de combate às desigualdades de gênero da ONU. O que Scala (2010) afirma ser ideologia de gênero é a concepção de que, a partir da noção de que gênero é uma construção social e sexo é um aspecto biológico − de fato defendida pelos estudos de gênero − cada pessoa seria absolutamente livre para determinar seu próprio gênero, podendo mudar de gênero quantas vezes quiser, o que significaria não haver diferença alguma entre homens e mulheres, exceto as diferenças biológicas. Scala também afirma que a ideologia de gênero permite qualquer tipo de união matrimonial entre os sexos, bem como aceitaria todo tipo de família e defenderia o aborto como direito humano da mulher.

Scala (2010) associa o conceito de ideologia aos estudos de gênero porque, para ele, ideologia é um corpo fechado de ideias que parte de um pressuposto falso e se impõe sobre os indivíduos por meio do sistema educacional (escolas e universidades) e também pelos meios de comunicação, especialmente a propaganda. Afirmando ainda que seria este o mesmo método utilizado pelos nazistas e marxistas. E, neste sentido, ele vê a agenda de gênero da ONU, que é voltada para diversos setores, incluindo a educação e a comunicação, como uma imposição do gênero que, se descumprida, geraria sanções às nações, bem como acredita que esta é uma forma de a ONU controlar os Estados soberanos.

Quando, em 2010, se deu início às discussões sobre o PNE no Brasil, muitos ânimos se exaltaram. O Plano Nacional de Educação é decenal, ou seja, é

discutido e reformulado a cada dez anos com o objetivo de incorporar nos planos de educação do país demandas novas que surjam com o tempo. Ele deve estar alinhado com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos de 1990, bem como com os pressupostos da ONU e da própria legislação brasileira, principalmente a Constituição, não somente no tocante às desigualdades de gênero, mas também sobre quaisquer aspectos necessários à evolução da sociedade brasileira (REIS; EGGERT, 2017, p. 14-15).

O debate sobre o PNE ocorre de forma ampla e democrática, sendo realizado em todos os estados e municípios brasileiros até que se chegue ao texto final. Contudo, o que gerou controvérsias foi justamente a discussão sobre diversidade sexual e de gênero. O texto final do PNE de 2010 aprovado na câmara dos deputados possuía um artigo que estabelecia como diretrizes do Plano Nacional de Educação a superação das desigualdades educacionais, a promoção da igualdade racial, regional, de gênero, de orientação sexual, bem como a erradicação de todas as formas de discriminação. O outro motivo de controvérsias foi a linguagem do texto, que possuía flexão de gênero e não utilizava o masculino como forma genérica (por exemplo, os/as profissionais) (REIS; EGGERT, 2017, p. 15).

Contudo, o texto teve um substitutivo no Senado. Neste texto, foi retirada a frase “promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, bem como foi retirada a flexão de gênero e utilizada a forma genérica masculina. Quando o texto retornou à Câmara dos Deputados, as discussões tornaram-se ainda mais acaloradas, levantando-se principalmente a questão da ideologia de gênero. No fim das contas o texto final manteve a supressão da frase “promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, mas também manteve a flexão de gênero. Claramente com o intuito de dar neutralidade ao texto.

Assim, no cerne desta discussão está a igreja católica, uma vez que os estudos de gênero se chocam com seus dogmas, como os mitos da criação, a estrutura

familiar e os papéis de gênero (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 727). Contudo, o que os defensores da chamada ideologia de gênero propagam não é uma teoria, mas sim um pânico moral, visto que há uma deturpação de teorias que de fato existem e uso massivo de propaganda que alega existir uma ameaça às estruturas tidas como normais pela sociedade (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 739), por exemplo com a existência de mulheres assumindo a presidência de seus países, como ocorreu no Brasil com a eleição de Dilma Rousseff.

O termo gênero e seus estudos já são amplamente debatidos desde os anos 70, mas o tema tem se tornado cada vez mais controverso e permeado por polêmicas e desinformação justamente por conta dos pânicos morais. De fato, os estudos de gênero estão pautados na diferenciação entre gênero e sexo biológico. Butler (2014), ao questionar a dicotomia entre sexo e gênero ressalta que as estruturas políticas estão permeadas pela dominação e pela exclusão, bem como rejeita a categorização do ser mulher como pessoas que compartilham uma característica comum, assim como considera que o sujeito feminino se faz pelo sistema político. Contudo, os estudos de gênero não afirmam ser possível escolher o gênero a bel prazer.

Já ideologia é um modo de pensamento e trata-se de um termo comumente associado ao marxismo, muito embora o termo tenha sido amplamente discutido por pesquisadores de diversas áreas ao longo do tempo. Marx e Engels (1982, p. 1049) elaboram o conceito de ideologia como sendo um conjunto de pensamentos e doutrinas presentes em diversos sistemas, como a religião e a política, sistemas estes considerados puros, mas que na realidade produzem juízos especulativos e inverdades sobre os homens a fim de manter intactas as suas estruturas.

Já Althusser (1985) discute a existência de aparelhos ideológicos do Estado, que são descritos como um certo número de realidades apresentadas a um observador imediato na forma de diferentes instituições especializadas, tais como as igrejas, as escolas, as famílias, o direito, a política, a imprensa, a cultura (p. 43-44).

Diferentemente dos aparelhos repressivos do Estado (como a polícia, o exército, as prisões), os aparelhos ideológicos possuem maior domínio no âmbito privado. Além disso, enquanto os aparelhos repressivos operam por meio da violência, os aparelhos ideológicos operam por meio da ideologia (embora, de modo secundário, também operem por meio da repressão, ainda que simbólica) (p. 4647). Escolas e igrejas educam com métodos simbólicos, tais como a seleção e a exclusão.

O incômodo causado pela flexão de gênero em um texto legal se deve ao fato de que as palavras expressam as relações de poder entre os sexos assim como o direito também é um instrumento de perpetuação de assimetrias de gênero (ALVES e PITANGUY, 2011, p. 15). Por isso, o uso de flexão de gênero ao invés do uso do masculino como genérico não é um ato simples ou inocente, ele demonstra a intenção de não silenciar a existência do elemento gênero como marcador de assimetrias. Contudo, gênero não é uma questão unicamente gramatical, mas pode ser bem elucidado na célebre frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, de Simone de Beauvoir, uma vez que o feminino é não dado pela biologia, mas sim construído pela sociedade (SAFFIOTI, p. 160).

Assim, o termo ideologia de gênero e sua ampla disseminação se deve ao fato de que trazer as assimetrias de gênero para a esfera pública e inclusive inseri-las em textos legais voltados para a educação, que é um sistema focado em crianças, causa um forte abalo nas estruturas patriarcais da sociedade, especialmente a religião e a família, e sua definição de papéis de gênero. O despertar deste pânico moral é uma forma de demonizar e combater um inimigo ao afirmar que a agenda de gênero não seria uma busca pela superação das assimetrias de gênero, mas sim uma tentativa de erosão das instituições da sociedade.

REFERÊNCIAS

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ideológicos do Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

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BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

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BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. Temas: Divisão do Trabalho; Idealismo; História.

MISKOLCI, Richard e CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Sociedade e Estado [online]. 2017, v. 32, n. 03, p. 725-748.

RATZINGER, J. A. La sal de la tierra. Madrid: Libros Palabra, 1997.

REIS, Toni e EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educação & Sociedade [online]. 2017, v. 38, n. 138, p. 09-26.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Primórdios do conceito de gênero. Cadernos Pagu, n. 12, p. 157-163, 1999.

SCALA, J. La ideología del género. O el género como herramienta de poder. Rosario: Ediciones Logos, 2010.

76 Doutoranda em Direito, com área de concentração em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Mestra em Direito, com área de concentração em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas e em Letras pela Universidade do Vale do Sapucaí. Professora de Língua Portuguesa na E. E. Dr. José Marques de Oliveira.

IMPORTUNAÇÃO SEXUAL

Marcela Modesto Fermino⁷⁷

Para expor sobre crimes de violência sexual, é necessário compreender que o universo em que estamos nos inserindo é um universo de dor, e que colocar essa dor em suspenso para enfrentá-lo não significa perdê-la de vista, pois é a solidariedade com a mesma que nos motiva a resgatar a voz dos saberes emancipatórios (ANDRADE, 2007). É preciso realçar que, apesar de homens também poderem ser vítimas, a parcela maioritária é de mulheres (independentemente da idade); emerge-se, portanto, a importância de se analisar o tema sob uma perspectiva feminista.

O ponto de partida é observar o gênero como construção.⁷⁸ Quando não há essa observação, é fácil confundir o ser mulher apenas em uma ótica biológica, o que nos remete à uma objetificação sobre nossos corpos – “A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la” (BEAUVOIR, 2009, p. 30).

Na Idade Média, com a ascensão do cristianismo na Europa no século IV, o clero, ao acreditar que as mulheres obtinham um poder sexual sobre os homens, conferiu ao sagrado a obrigação de evitar mulheres e as práticas sexuais; dessa forma, fizeram da sexualidade um motivo de se envergonhar, e assim a casta patriarcal tentou quebrar o poder das mulheres e erotizaram o feminino (FEDERICI, 2017, p. 80).

Com o passar dos anos, a rotulação de mulheres como objetos sexuais não mudou, pelo contrário, pode-se afirmar que piorou a situação. No século XV, com o intuito de captar mais trabalhadores jovens, a França resolveu descriminalizar o estupro em mulheres proletárias, oferecendo sexo gratuito (leia-se aval para estuprar). Em Veneza, a prática também foi adotada, e tornouse comum o estupro coletivo de grupos de 2 a 15 pessoas (FEDERICI, 2017, p. 103).

É inegável que estas passagens da história influenciam até os dias atuais o pensamento ocidental, em especial no Brasil, o foco deste verbete, que é conhecido pelo turismo sexual; por exemplo, em maio de 2014, ano de copa do mundo aqui no país, uma boate paulistana fez uma propaganda em um outdoor que dava a entender que havia uma mulher praticando sexo oral em um jogador (PISCITELLI, 2015).

Logo, não é de se surpreender que homens se sentem à vontade para objetificar o corpo feminino, levando estes a cometerem crimes de cunho sexual. Neste verbete, falaremos sobre a Importunação Sexual. Até 2018, o ato era tratado como um Crime de Contravenção Penal (de menor potencial ofensivo), no art. 61 da Lei 3.688/41; a pena era de multa. Pode-se compreender, portanto, que esta tipificação causava certa impunidade ao agente, visto que, além do fato de ser de difícil comprovação, o máximo que aconteceria ao final do processo seria uma pena em pecúnia.

Em agosto de 2017, entretanto, houve um caso de repercussão nacional em que um homem ejaculou no pescoço de uma mulher dentro do transporte público, em São Paulo. A decisão do juiz foi a de liberar o agressor, sob a alegação de que o crime não seria estupro (e não foi), mas apenas uma contravenção penal (e na época, ainda era) (CARTA CAPITAL, 2017). Infelizmente, em uma interpretação pura da norma, o magistrado acabou ferindo a liberdade da mulher em prol da obediência da lei. É partindo de situações como esta que surge a necessidade de questionar a “profunda e grave crise de legitimidade do sistema penal” (ANDRADE, 1999, p. 106).

O ato de importunação sexual foi tipificado como crime através da Lei nº 13.718/2018, sendo inserido no Código Penal no art. 215-A⁷ . A referida lei revogou o art. 61 da Lei de Contravenções Penais (importunação ofensiva ao pudor), e surge para buscar aumentar o cerco de amparo às vítimas.

Para que seja configurado o ato libidinoso, considera-se ato praticado pelo agente que seja “capaz de proporcionar a satisfação da libido, a excitação, o prazer sexual” (JORGE; GENTIL, 2019, p. 39), sendo indiferente se o mesmo, ao realizar a ação, “atinja efetivamente o clímax, bastando que o ato, ao menos aparentemente, tenha essa finalidade” (JORGE; GENTIL, 2019). A principal forma de se caracterizar a importunação sexual é observar se o ato praticado não se configura estupro ou estupro de vulnerável; não sendo nenhum dos dois, tipifica-se como o art. 215-A.

Os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a dignidade sexuais, o que ainda é um tabu em discussões fora dos movimentos feministas, afinal, a liberdade sexual da mulher ainda é tratada como uma justificativa para a realização de determinados atos praticados por homens (leia-se crimes sexuais). “E isto porque se trata de um (sub)sistema de controle social seletivo e desigual (de homens e mulheres) e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas” (ANDRADE, 1996, p. 90).

Tratando-se desse assunto que emerge a necessidade de trazer um condicionamento de ordem teórica, mais especificamente uma análise criminológica, advinda das criminologias crítica e feminista, em que se observa um déficit nos diálogos necessários para a compreensão das necessidades das mulheres:

Esse déficit parece se evidenciar quando se indaga sobre o sentido de proteção que as mulheres buscam através do sistema penal, permanecendo difusa a resposta sobre o sentido dessa proteção, o que eu poderia ilustrar com perguntas como: o que buscam as mulheres com a criminalização de condutas como o assédio sexual? O que esperam elas do sistema penal? (ANDRADE, 1999, p. 111).

Por fim, para concluir o assunto, é importante destacar a diferença entre assédio

sexual e importunação sexual. O primeiro é disseminado comumente na mídia como sinônimo do segundo, o que, na verdade, não se verifica no âmbito jurídico. O assédio sexual, tipificado no art. 216-A, traz o seguinte texto: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” (BRASIL, 1940, s.p). Ou seja, ocorre em relações de emprego/trabalhistas, não se assemelhando com a importunação sexual, que é mais abrangente.

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. In: CAMPOS, Carmen Hein (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre, 1999. Editora Sulina.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Violência sexual e o sistema penal: proteção ou duplicação da vitimação feminina? Revista Sequência – PPGD UFSC. v. 17, n. 33, 1996. p. 87-114.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. – 2 ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del2848compilado.htm. Acesso em 30 de mar 2022.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del3688.htm. Acesso em 30 de mar 2022.

CASO de ejaculação em ônibus não configura estupro, afirma juiz. Carta Capital. Brasil, 30 de agosto de 2017. Seção Sociedade. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ejaculacao-em-onibus-nao-configuraestupro-afirma-juiz/. Acesso em 30 de mar 2022.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução: Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

JORGE, Ana Paula; GENTIL, Plínio Antonio Brito. Importunação sexual ou estupro? Os caminhos da satisfação da lascívia. Revista de Direito Penal, Processo Penal e Constituição. Belém, v. 5, n. 2, Jul/Dez 2019. p. 31-46.

PISCITELLI, Adriana. Turismo sexual no Brasil. Revista Eletrônica de Jornalismo Científico. Publicado em 10/06/2015. Disponível em: https://comciencia.br/comciencia/handler.php? section=8&edicao=114&id=1379&tipo=1. Acesso em 30 de mar 2022.

77 Mestranda em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, na linha de pesquisa Relações Sociais e Democracia pela Faculdade de Direito do

Sul de Minas – FDSM. Bolsista CAPES. Graduada em Direito pela FDSM. Integrante do grupo de pesquisa do CNPq Razão Crítica e Justiça Penal, vinculado ao PPGD da FDSM. Bolsista de Iniciação Científica pela FAPEMIG (2018-2019) e FDSM (2020-2021). Atualmente pesquisa questões relacionadas a Criminologia e Direito Penal. Contato: [email protected].

78 Vide verbete “Sexo e Gênero”.

79 Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.

INTERSECCIONALIDADE

Gabriela M. Kyrillos⁸

Pretender apresentar a interseccionalidade em um verbete que comporte todos os seus significados é um propósito que estaria destinado ao fracasso. Constantemente a interseccionalidade é entendida como uma ferramenta analítica capaz de dar conta de mais de uma forma de opressão simultânea. Ela tem se desdobrado nas últimas décadas em múltiplas áreas do conhecimento e perspectivas teóricas, diversos propósitos políticos e utilizada em múltiplos espaços da sociedade que inclui a academia, as burocracias governamentais e as lutas nacionais e transnacionais por justiça social. Então mesmo sendo correto afirmar que a interseccionalidade é um modo de nomear uma nova sensibilidade analítica, é preciso reconhecer que ela é muito mais que isso.

Dedico o espaço deste verbete a apresentar algumas das possibilidades de significação da interseccionalidade na esperança de que possa funcionar como um mapa provisório que precisa estar em permanente construção. Isso aproxima esse texto do entendimento de Collins (2019) da interseccionalidade como fundamentalmente dialógica sendo impossível que uma única pessoa ou um grupo seja capaz de encerrar todo seu significado. Assim, esse é um mapa provisório e aberto que como todo mapa surge a partir de um local específico.

O ponto de origem deste mapa é meu local enquanto uma acadêmicapesquisadora, branca, brasileira nordestina que vive no extremo sul do país, comprometida há vários anos com as estratégias políticas e epistemológicas feministas. A interseccionalidade tem me ajudado a entender melhor a realidade social na qual eu vivo e os marcadores que me atravessam, seja como discriminações, seja como privilégios. Em especial, me auxilia a entender a branquitude enquanto um sistema de poder estruturante da sociedade brasileira (BENTO, 2002; SCHUCMAN, 2020), que constantemente me beneficiou e beneficia, mesmo quando outros marcadores possam ser de prejuízo em razão do sexismo ou do classismo.

Minha aproximação com a interseccionalidade foi um caminho único e pessoal. Mas como todas as experiências pessoais, ocorreu em um campo social e coletivo com elementos comuns com outras tantas experiências, que geraram as próprias formas de compreensão do termo. Collins e Bilge (2016, p. 2) definiram a interseccionalidade como “[...] um modo de entender e analisar a complexidade no mundo, nas pessoas, e nas experiências humanas. Os eventos e as condições sociais e políticas de vida e do eu raramente podem ser entendidos como moldados por um único fator.”⁸¹. Essa abordagem entende que a interseccionalidade enquanto ferramenta analítica proporciona um melhor acesso das pessoas à complexidade do mundo no qual vivem, ao mesmo tempo em que possibilita melhor acesso à complexidade de si mesmas (COLLINS, BILGE, 2016).

Assim, entendendo o potencial analítico e discursivo da interseccionalidade para a melhor compreensão da realidade em que vivemos, proponho que comecemos por entender sua origem, aquilo que tenho chamado de antecedentes históricos da interseccionalidade (KYRILLOS, 2020). Com isso, pretendo reforçar a ideia fundamental de que a interseccionalidade transmite uma preocupação que existia dentro dos movimentos sociais e de textos teóricos desde muito antes do surgimento do conceito e de sua apropriação pelo mundo acadêmico (COLLINS; BILGE, 2016). Sendo basilar reconhecer e valorizar que esses movimentos e textos foram elaborados por mulheres não brancas.

Assim, apesar da interseccionalidade ter sido cunhada pela jurista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw em 1989, a compreensão de sexismo, racismo, capitalismo e colonialismo como elementos que se influenciam mutuamente e que são estruturantes das sociedades brasileira e latino-americanas são anteriores à interseccionalidade. Assim, autoras com enfoques e pontos de partida distintos têm se dedicado há teorizar a partir desse compromisso político que abarca a complexidade.

Dentre as autoras estadunidenses cabe destacar Angela Davis (2016), bell hooks (HOOKS, 2015) e Audre Lorde (2019a; 2019b). Em especial esta, escreveu na

década de 1980 sobre a necessidade dos movimentos que lutam por igualdade reconhecerem as diferenças existentes dentro dos grupos. Pautando-se no entendimento de que não há hierarquias de opressões e que estas devem ser analisadas e enfrentadas de modo combinado, portanto, não é possível superar o sexismo, sem enfrentar o racismo ou a lesbofobia, por exemplo.

Dentre as brasileiras, é fundamental citar Lelia Gonzalez (2020) que tem uma vasta produção comprometida com o entendimento e a superação das desigualdades de raça, gênero, classe e outras. Em um dos textos mais importantes do pensamento sociológico brasileiro, Gonzalez (1984) aborda como gênero e raça são elementos fundamentais da constituição da sociedade brasileira, bem como de seus mitos fundadores como o da democracia racial. Existe toda uma geração de intelectuais e ativistas negras brasileiras que se dedicaram a enfrentar esse perverso mito que sempre pretendeu encobrir o racismo no país, dentre elas Sueli Carneiro (1995).

Essas autoras são apenas alguns exemplos dentre muitas outras. Elas partem, não por acaso, do campo dos feminismos negros. Talvez a principal diferença em termos de construção teórica e epistemológica do que posteriormente denominamos como interseccionalidade seja o fato de que nessas construções existentes até a década de 1990 predominava uma abordagem que se aproximava à ideia de soma de opressões (CRENSHAW, 2002). Afastar-se da lógica de soma, que pressupõe sistemas separados que se encontram eventualmente, é uma das contribuições da interseccionalidade.

Nas últimas décadas, por vezes em paralelo e com críticas ao campo dos estudos interseccionais, outras referências têm continuado a ampliar as possibilidades de leituras pautadas em mais de um eixo de poder. Continuando com nosso enfoque no continente americano – sem ignorar a importância do que se tem produzido sobre esses temas em outros continentes, como o africano (PEREIRA, 2021) – vale mencionar em especial as autoras vinculadas às abordagens decoloniais, tais quais Gloria Anzaldúa (1987), Maria Lugones (2008), Rita Segato (2012) e Ochy Curiel (2007). Este breve panorama teórico serve também para reforçar

que os antecedentes e as preocupações contidas na interseccionalidade não são exclusivos do norte global. A interseccionalidade não começou quando foi nomeada por Crenshaw, na verdade, é a sua trajetória anterior que torna possível o importante ato de nomeá-la, assim como sua popularização.

O segundo aspecto relevante sobre a interseccionalidade é compreendê-la enquanto pesquisa e práxis crítica, essa abordagem decorre especialmente do livro de Patricia Collins e Sirma Bilge (29016). Nele, as autoras reforçam que há uma sinergia entre a pesquisa crítica e a práxis crítica, que juntas compõem a interseccionalidade (COLLINS, BILGE, 2016, p. 33). Logo, a forma como uma perspectiva interseccional permeou e permeia as práticas nos movimentos sociais não é uma etapa anterior à interseccionalidade, pois esta não pode ser entendida exclusivamente como uma teoria acadêmica. Trata-se de perceber a multidimensionalidade da interseccionalidade e romper com lógicas de linearidade narrativa e de binarismo entre saber científico e práxis, rejeitando qualquer perspectiva que entenda a teoria como superior à prática (COLLINS, BILGE, 2016). A interseccionalidade contribuiu para redefinir a ação social como um modo de conhecimento pois a reconhece como uma forma potencial de fortalecimento para as próprias teorizações interseccionais (COLLINS, 2019).

Entender a interseccionalidade como teoria e práxis crítica é especialmente relevante quando consideramos o aumento quantitativo do uso da interseccionalidade ao mesmo tempo em que se esvazia seu propósito e significado político (BILGE, 2018). O risco é justamente “[...] despolitizar a interseccionalidade e colocar suas ideias a serviço das agendas neoliberais que defendem soluções individuais e baseadas no mercado para problemas sociais coletivos” (COLLINS, 2022, p. 12).

Assim um terceiro ponto (que talvez seja o mais basilar de todos os elementos desse mapa), é compreender que a busca por justiça social é um elemento central da interseccionalidade. Portanto, se nos preocupamos com o paradoxo de evitar que o sucesso da interseccionalidade não resulte em seu fracasso, é importante recuperar seu ethos de justiça social, o que significa que talvez tenhamos que

salvá-la “[...] de nós mesmas(os) se praticarmos a interseccionalidade como ‘negócios de sempre’, ou seja, apenas como mais um discurso acadêmico ou conteúdo especializado sem implicar a academia como um todo.”⁸² (COLLINS, BILGE, 2016, p. 198). Isso é especialmente importante para pessoas brancas, como eu, que ocupam espaços de poder como é o ambiente acadêmico. Se não estivermos atentas, podemos reproduzir nossos pactos narcísicos que negam e/ou evitam o enfrentamento do racismo no Brasil, reforçando assim os privilégios que temos em razão da branquitude (BENTO, 2002), inclusive utilizando a interseccionalidade como um jargão esvaziado de seu compromisso político, reforçando os locais de poder de pessoas brancas e contribuindo para ocultar as contribuições de negras e indígenas.

Vale destacar, por fim, a importância da interseccionalidade para todas as pessoas que atuam no campo do Direito. Crenshaw (1989) partiu de uma preocupação concreta quanto ao modo de eixo-único que dominava a criação de legislações antidiscriminatórias e frequentemente falhava em alcançar as experiências das mulheres negras. Nesse sentido, em seu texto “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color”, Crenshaw (1990) apresentou a interseccionalidade estrutural como fundamental para compreender e superar a violência contra as mulheres, em especial de dois tipos: a agressão física (battering) e o estupro. Partindo de casos concretos, Crenshaw (1990) demonstrou como o sistema de raça, gênero e classe convergem de modo específico para as experiências que vivem as mulheres vítimas de violência doméstica, bem como, o modo como esses elementos estruturais influenciam nas legislações e decisões judiciais em casos de estupro de mulheres racializadas.

Portanto, estou em sintonia com Akotirene quando compreende que a definição apresentada por Crenshaw reforça que “[...] a interseccionalidade é, antes de tudo, lente analítica sobre interação estrutural em seus efeitos políticos e legais.” (AKOTIRENE, 2018, p. 58). Assim sendo, é importante que se valorize as contribuições da interseccionalidade para o Direito e, em especial, para o campo dos Direitos Humanos nacional e internacional (STELZER; KYRILLOS, 2021; CAMPBELL, 2015; CATOIA et al., 2020; KYRILLOS; STELZER, 2021).

Sobre isso, merece destaque o texto de Crenshaw (2002) para a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, que ocorreu em Durban, África do Sul, em 2001. Ele é um marco no que diz respeito à inclusão da interseccionalidade no âmbito internacional dos Direitos Humanos, pois a partir deste position paper, aumentou as referências ao conceito da interseccionalidade (mesmo que com outras nomenclaturas) no âmbito internacional dos Direitos Humanos (COLLINS; BILGE, 2016). Esse texto influenciou a própria compreensão na Conferência da existência de “intolerâncias correlatas” nos processos discriminatórios vivenciados pelas mulheres (BLACKWELL; NABER, 2002).

Desse modo, em sintonia com tantas outras ativistas e acadêmicas, entendo que a interseccionalidade é um campo em aberto quanto aos seus usos e significados presentes, bem como ao que ainda pode vir a ser. Concordo com Collins (2019) quando nos diz que a interseccionalidade vai muito além do que podemos imaginar, mesmo quem se dedica a estudá-la há vários anos. Assim como, entendo se tratar de um campo que se constitui de forma dialógica e tem na heterogeneidade não uma marca de fraqueza, mas um recurso com enorme potencial que podemos utilizar para nos mover a um futuro mais justo (COLLINS; BILGE, 2016).

Isso não me parece significar que qualquer uso da interseccionalidade é benéfico para as pessoas que a construíram e para aquelas que estão aliadas no propósito de superação das injustiças sociais decorrentes da coconstituição do racismo, sexismo, capitalismo, LGBTfobia, colonialismo, dentre outros. Assim, entendo que o destino provisoriamente final deste mapa é um entendimento compartilhado de que a interseccionalidade deve ser implicada em nossas realidades e com nossas estratégias coletivas e criativas de superação das desigualdades estruturais que cotidianamente enfrentamos. Nesse sentido, merece destaque as contribuições de Bruna Pereira a partir de seu compromisso com uma estratégia mais radical e complexa da interseccionalidade, que parte de situações concretas de interação social para aproximar gênero e raça como “sistemas de significado e regimes de representação”, sem priorizar ou

segmenta-las em categorias distintas (PEREIRA, 2021, p. 451).

Que possamos, portanto, entender a interseccionalidade em aberto naquilo que ainda pode ser, mas que não percamos de vista os elementos centrais do que ela já tem sido: uma construção coletiva, originada nas lutas dos movimentos sociais de mulheres negras e indígenas e que busca enfrentar as injustiças sociais históricas e atuais, como racismo, sexismo, as heranças do colonialismo, o capitalismo e as estratégias neoliberais dentro e fora da academia. Foram esses elementos que busquei sistematizar aqui, na esperança de que nos ajude a melhor navegar com e pela interseccionalidade, tendo no horizonte a construção de sociedades mais justas.

REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, C. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte, MG: Letramento: Justificando, 2018.

ANZALDÚA, G. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. [s.l.] Aunt Lute, 1987.

BENTO, M. A. S. Pacto Narcísico no Racismo - branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado—São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.

BILGE, S. Interseccionalidade Desfeita: salvando a interseccionalidade dos estudos feministas sobre interseccionalidade. Revista Feminismos, v. 6, n. 3, 2018.

BLACKWELL, M.; NABER, N. Interseccionalidade em uma era de globalização: As implicações da Conferência Mundial contra o Racismo para práticas feministas transnacionais. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 189–198, jan. 2002.

CAMPBELL, M. CEDAW and Women’s Intersecting Identities: A Pioneering New Approach to Intersectional Discrimination. Revista Direito GV, v. 11, n. 2, p. 479–504, dez. 2015.

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CATOIA, C. de C. et al. Caso “Alyne Pimentel”: Violência de Gênero e Interseccionalidades. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 1, 2020.

COLLINS, P. H.; BILGE, S. Intersectionality. 1. ed. Cambridge: Polity Press, 2016. v. 1.

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CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 171–188, jan. 2002.

CURIEL, O. Crítica Pós-Colonial a Partir das Práticas Políticas do Feminismo Antirracista. NÓMADAS, v. 26, p. 92–101, 2007.

DAVIS, A. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

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GONZALEZ, L. Por um Feminismo Afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

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LUGONES, M. Colonialidad y género. Tabula Rasa, n. 09, p. 73–101, 1 jul. 2008.

PEREIRA, A. C. J. Pensamento Social e Político do Movimento de Mulheres Negras: o lugar de ialodês, orixás e empregadas domésticas em projetos de justiça social. Tese—Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016.

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SCHUCMAN, L. V. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. 2. ed. São Paulo: Editora Veneta, 2020.

SEGATO, R. L. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. e-cadernos CES, n. 18, 1 dez. 2012.

STELZER, J.; KYRILLOS, G. M. Inclusão da Interseccionalidade no âmbito dos Direitos Humanos. Revista Direito e Práxis, v. 12, p. 237–262, 3 mar. 2021.

80 Professora Adjunta do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Co-líder do Grupo de Pesquisa Interseccionalidades e Decolonialidade nas Relações Internacionais – INDERI/CNPq. E-mail: [email protected].

81 Todas as citações de textos que estão originalmente em inglês foram feitas por uma tradução livre minha e sempre será indicado em nota de rodapé sua versão original. Portanto: “[...] a way of understanding and analyzing the complexity in the world, in people, and in human experiences. The events and conditions of social and political life and the self can seldom be understood as shaped by one factor.”.

82 No original: “[...] from ourselves if we practice intersectionality as ‘busines as usual’, namely, as just another scholarly discourse or contente specialization without implicating academy at large.”.

JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO

Nathália Mariel Ferreira de Souza Pereira⁸³

Em uma sociedade regida pelo patriarcado e que as práticas discriminatórias são vivenciadas não apenas na realidade social, mas também no âmbito das instituições, com possível prática inclusive de violências institucionais de gênero, a aplicação do julgamento com perspectiva de gênero se demonstra como ferramenta hermenêutica necessária para concretização dos ideais de justiça efetiva em nosso país.

Inicialmente cumpre destacar que, especialmente do ponto de vista da realização de direitos e de garantias dispostas constitucionalmente, é o poder judiciário, aqui alcançando também Ministério Público, Defensoria e outras instituições que atuam nesse campo, o palco das chamadas demandas contramajoritárias.

Nesse contexto e diante da ocorrência do déficit democrático no campo da representação política assim como pelo descontentamento com poderes eleitos que não conseguem executar com precisão as garantias e preceitos constitucionais, desponta o poder judiciário como sujeito necessário e com papel relevante no campo da concretização de direitos fundamentais, ou seja, desempenhando a chamada jurisdição contramajoritária, passando a gozar de legitimidade para atuar como instância representativa de grupos vulneráveis da sociedade.

A despeito das resistências teóricas pontuais, o papel contramajoritário do judiciário estaria assentado em dois fundamentos principais: a) a proteção dos direitos fundamentais, que correspondem ao mínimo ético e à reserva de justiça de uma comunidade política, insuscetíveis de serem atropelados por deliberação política majoritária; b) a proteção das regras do jogo democrático e dos canais de participação política de todos. A maior parte dos países do mundo confere ao Judiciário e, mais particularmente, à suprema corte ou corte constitucional, o status de sentinela contra o risco da tirania das maiorias. Evita-se, assim, que

possam deturpar o processo democrático ou oprimir as minorias (BARROSO, 2015, p. 19-20).

Nesse sentido, deve-se ainda considerar que não apenas as instituições jurídicas, mas o próprio sistema do direito é baseado na lógica da justiça simétrica, que implica o reconhecimento da igualdade entre todos os membros de uma classe de pessoas criadas por uma norma jurídica, fator que exige a atribuição do mesmo tratamento a todas elas, quando, na prática, sabemos que essa neutralidade moral e política não existe, nem guarda qualquer relação com a finalidade estatal e missão constitucional de igualdade material (MOREIRA, 2020).

É necessário inserir a condição e contexto social saindo de uma leitura individual para uma leitura de grupo, a ênfase na questão do grupo indica então que o processo de interpretação da igualdade deve procurar promover a igualdade de status, uma vez que uma sociedade democrática não pode permitir que segmentos sociais estejam numa situação permanente de desvantagem social e nesse campo surge a necessidade do julgamento com perspectiva de gênero, no campo dos direitos das mulheres (não restritas ao sentido biológico), com atenção especial, em prol de uma leitura interseccional, para as mulheres pretas, que cumulam vias outras de opressão sobre si.

Ao estabelecer então as práticas e as perspectivas necessárias na atuação judicial, permite-se ampliar as possibilidades de justiça assim como garantir que a lógica excludente majoritária, que permeia a formação e acesso inclusive dos quadros das instituições jurídicas, não mais sejam marcados pelo esforço natural dos grupos dominantes de buscarem manter seu status social, perpetuando uma ordem social que os beneficia e que não deve ser modificada para seus interesses.

Adilson Moreira, em seu tratado do direito antidiscriminatório, define o conceito nesse campo de hermenêutica do oprimido, partindo da ideia de que o intérprete não deve ser visto como um sujeito unitário, mas como um sujeito que ocupa

diferentes posições dentro das cadeias de significação social. O ato de interpretação deve ser uma atividade que procura compreender o outro a partir desse mesmo pressuposto: os sujeitos estão posicionados em diferentes relações de poder dentro de uma sociedade. Igualdade significa igual consideração e respeito, mas dentro das circunstâncias nas quais um sujeito específico se encontra, consideração pelas diferenças e pelos fatores sociais do caso (MOREIRA, 2020).

Esse esforço já resultou na proposição, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, do Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero em 2021, tendo como objetivo principal a adoção da imparcialidade no julgamento de casos de violência contra mulheres e evitando avaliações baseadas em estereótipos e preconceitos existentes na sociedade e promovendo uma postura ativa de desconstrução e superação de desigualdades históricas e de discriminação de gênero, em todos os campos do judiciário estadual, federal, trabalhista, militar e eleitoral.

O protocolo foi inspirado no “protocolo para juzgar con perspectiva de género”, concebido pelo Estado do México após determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, diante do atendimento ao sistema de proteção internacional de gênero, atende ao Objetivo 5 da Agenda 2030 da ONU, que trata de todas as formas de discriminação nesse campo, assim como atende a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), que determina aos Estados partes que ajam com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher, bem como incorporem na sua legislação nacional normas penais, processuais e administrativas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, além das Recomendações do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), que orientam os Estados Partes sobre o acesso das mulheres à Justiça e a violência contra as mulheres com base no gênero.

REFERÊNCIAS

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MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antidiscriminatório. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

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SOUZA, Renata Martins. Da atuação contramajoritária do STF: da inconstitucionalidade da legislação “Escola sem partido”. Migalhas, Brasília, 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/342612/da-atuacaocontramajoritaria-do-stf-da-inconstitucionalidade-da. Acesso em: 22 jun. 2022.

83 Doutoranda em direitos humanos (PPGIDH/UFG). Mestra em direito (UcB/2018). Pós-graduanda em direito da anticorrupção (ENFAM). Pesquisadora nos grupos SCOTUS (IDP), Centro de estudos constitucionais comparado (UnB) e Núcleo de direito internacional e política

(NEPEDIPOL/UERJ). Membra da ABRADEP. Vice coordenadora do GT PGE de Combate à Violência Política de Gênero. Procuradora da República. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8571929541734986. E-mail: [email protected].

LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA

Gabriela Maria Barbosa Faria⁸⁴

No Brasil, em 2019, segundo dados atualizados do Atlas da Violência - IPEA, 3.737 mulheres foram assassinadas no país, o que representa um índice de 3,5 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo feminino. O documento estabelece um índice alarmante, uma mulher é morta no Brasil a cada seis horas (IPEA, 2021). Outro dado importante de ser mencionado é que o Brasil se encontra no 5º lugar em um ranking de violência contra a mulher realizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH).

No país, foi a partir da década de 1970 que os assassinatos e as violências cometidas contra as mulheres começam a ganhar uma maior visibilidade e notoriedade na mídia brasileira. Os movimentos feministas e de mulheres da época denunciavam os altos índices de agressões e homicídios perpetuados contra mulheres por seus companheiros ou ex-companheiros. Diante disso, foram realizadas naquela época inúmeras campanhas, em diversos estados do Brasil, que tinham como principal slogan “Quem ama não mata”.

Dessa maneira, as movimentações feministas deram visibilidade e respaldo a pautas em defesa das mulheres vítimas de violência, denunciando principalmente a utilização do argumento da legítima defesa da honra, rotineiramente utilizado nos tribunais brasileiros para inocentar acusados e réus confessos de seus crimes praticados contra suas namoradas, companheiras ou ex-companheiras (TERRA, 2021, p. 85).

A tese da legitima defesa da honra era então frequentemente utilizada de modo a estabelecer impunidade perante atos criminosos praticados por homens, principalmente perante o tribunal do júri, imputando à mulher a culpa pela sua própria morte ou lesão sofrida. Argumentavam ser justificável a realização do ato criminoso em virtude de um comportamento considerado socialmente inaceitável realizado pela vítima (DEL PRIORE, 2014, p. 207-208).

Um dos casos mais emblemáticos e marcantes nesse sentido foi o de Ângela Diniz. Assassinada com três tiros no rosto e um na nuca em 30 de dezembro de 1976, em sua casa em Búzios, na Praia dos Ossos, por seu companheiro Raul Fernandes do Amaral, conhecido como Doca Street. Naquela época a defesa de Doca Street utilizou a tese da legitima defesa da honra em seu julgamento no tribunal do júri, alegando ter cometido o crime por amor, de maneira passional, em defensa de sua honra, o que permitiu que recebesse uma pena irrisória pelo assassinato de sua companheira (GROSSI, 1993, p. 167).

Desse modo, pode-se compreender que, de vítima, Ângela Diniz passou a ré, isto é, alocando sobre ela a culpa de seu próprio assassinato. No entanto, a intensa cobertura da mídia e das diversas manifestações e campanhas promovidas pelos movimentos feministas da época, o caso Street passou por um novo julgamento no ano de 1981, quando, dessa vez, Doca fora condenado a 15 anos de reclusão por homicídio qualificado (GROSSI, 1993, p.167-168).

Apesar de ter sido um argumento muito usado principalmente até a década de 1980, nos tribunais brasileiros, a tese jurídica da legítima defesa da honra continuava ainda sendo utilizada em tribunais do júri e em diversos julgamentos em inúmeros estados do país, tanto para obter uma absolvição nos casos de feminicídio e de violência contra as mulheres, quanto para obter uma diminuição da pena imputada pelo crime cometido (DEL PRIORE, 2014, p. 208-209).

Desse modo, vale mencionar também que foi somente em 12 de março de 2021 que o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, decidiu que não seria mais admitida a tese da legítima defesa da honra em julgamentos de feminicídio no país. A tese apontava que era justificável que o companheiro tivesse cometido algum tipo de crime contra a sua mulher, em virtude de um comportamento considerado inadequado socialmente. Desse modo, a honra do homem era colocada como um bem mais valioso do que a vida da mulher.

Assim, no julgamento da medida cautelar pleiteado na ADPF nº 779, prolatado pelo ministro Dias Toffoli, estabeleceu-se que a tese não deveria mais ser aceita como uma excludente de ilicitude. Ao julgar a medida, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a tese da legitima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art.1º, III, da Constituição Federal, e da proteção à vida e da igualdade de gênero, previstos no art. 5° do mesmo texto constitucional (MACHADO; BATISTA; AZEVEDO, 2020, p. 840).

Assim, essa tese, que ainda era muito utilizada nos tribunais de todo o país, passou finalmente a não mais ser aceita. Uma mudança de entendimento mostrase outra grande conquista, conquista essa que pode ser atribuída aos movimentos e a luta feminista no Brasil, que se pensada junto a tipificação do Feminicídio (Lei 13.104/2015) é essencial e muito necessária ao combate da violência contra as mulheres no país (TERRA, 2021, p. 85-86).

Desse modo, não há mais que se falar em tese da legítima defesa da honra em casos relacionados à violência contra a mulher, não mais se configurando como aceitável como tese de defesa para inocentar ou reduzir a pena estabelecida ao réu no Brasil, a homens que assassinam mulheres e culpam a própria vítima pelo ocorrido “em nome do amor” e para resguardar sua honra.

REFERÊNCIAS

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014.

GROSSI, Miriam Pillar. De Ângela Diniz a Daniela Perez: a trajetória da impunidade. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n.1, 1993.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Atlas da violência 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acesso em: 28 de fev. 2022.

MACHADO, Cibele Lasinskas; BATISTA, Camila Raposo; AZEVEDO, Carolina Trevisan de. Transpondo barreiras: Um estudo de caso da ADPF 779 e seus efeitos no ordenamento jurídico brasileiro. Brazilian Journal of Development, v. 8, n. 1, p. 829-845, 2022.

TERRA, Bibiana de Paiva. Da legítima defesa da honra ao crime de feminicídio: uma análise feminista ao enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil. Lex Cult Revista do CCJF, [s. l.], v. 5, n. 1, p. 66-89, abr. 2021. Disponível em: http://lexcultccjf.trf2.jus.br/index.php/LexCult/article/view/516 Acesso em: 28 de fev. 2022.

84 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pósgraduanda em Direitos Humanos e Interseccionalides pela Escola Mineira de Direito (EMD). E-mail: [email protected]

LEI MARIA DA PENHA

Fernanda Ribeiro Papandrea⁸⁵

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) representa uma grande vitória na luta contra a violência doméstica e familiar contra a mulher, tendo sido aprovada após um longo período de busca por justiça por parte de Maria da Penha, brasileira vítima de violência doméstica, que dá nome à legislação. A história de Maria da Penha é representativa da violência doméstica à qual milhares de mulheres são submetidas diariamente em todo o Brasil.

Importante destacar que o processo de elaboração de uma lei especial de combate à violência doméstica contra a mulher no Brasil foi muito longo e antecipado de muitas manifestações e debates. Na década de 1970, um grupo de mulheres saiu às ruas, sob o lema “O amor não mata”. A bandeira contra a violência é forte, e o tema está na agenda feminista como uma de suas principais demandas (BRAZÃO; OLIVEIRA, 2010).

O caso Maria da Penha foi muito emblemático em razão da grande violência sofrida pela vítima e da dificuldade que enfrentou para que o seu agressor fosse punido. Com efeito, Maria da Penha teve uma trajetória de mais de 19 anos em busca por justiça, o que fez dela um ícone na luta pelo fim da violência contra a mulher.

Em 1983, Maria da Penha foi vítima de duas tentativas de feminicídio por Marco Antonio Heredia Viveros, seu então marido. Primeiro, ele atirou nas costas dela enquanto ela dormia. Em decorrência dessa agressão, Maria da Penha sofreu uma paraplegia – além de outras complicações físicas e psicológicas – devido a danos irreversíveis na terceira e quarta vértebras torácicas, ruptura da dura-máter e destruição do terço esquerdo do trauma medular (INSTITUTO MARIA DA PENHA, 2018).

Quatro meses depois, quando Maria da Penha voltou para casa após duas cirurgias, internação e tratamento, ele a manteve em cárcere privado por 15 dias e tentou eletrocutá-la. A próxima violência que Maria da Penha sofreu foi por parte do poder judiciário, que a descredibilizou, fazendo com que ela precisasse travar uma longa batalha por justiça (INSTITUTO MARIA DA PENHA, 2018).

Importante notar que a mobilização do feminismo e do movimento de mulheres na defesa e politização da violência doméstica foi decisiva para o desenvolvimento das diretrizes atuais para o enfrentamento da violência contra a mulher. Nesse processo, não só a prática feminista veio à tona, mas também o papel do judiciário enquanto protagonista nas resistências a estas perspectivas (OLIVEIRA, 2017).

Assim, diante da dificuldade em obter reparação frente à justiça brasileira, o caso de Maria da Penha foi denunciado pelo Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA) da Organização dos Estados Americanos.

Assim, em 2001, diante da omissão do Estado Brasileiro, que permaneceu inerte mesmo após receber quatro ofícios da Comissão Interamericana, foram dadas diversas recomendações desta àquele. Entre as recomendações estão as de continuar e fortalecer o processo de reforma para evitar a tolerância nacional e o tratamento discriminatório da violência doméstica contra a mulher no Brasil; ações de capacitação e conscientização de funcionários do poder judiciário e policial sobre a importância da intolerância à violência doméstica sexual; simplificar o processo de justiça criminal e reduzir tempo de litígio sem comprometer os direitos e garantias do devido processo (OEA, 2014).

Em 2002, tendo por base também as recomendações do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), foi formado um consórcio de organizações para elaborar um projeto de lei como

política pública para o combate à violência contra a mulher. O consórcio foi composto por diversas ONGs e em 2003 apresentou o resultado de suas pesquisas para a elaboração da Lei de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres (CALAZANS, CORTES, 2011).

Diante disso, apenas em agosto de 2006 a Lei 11.340/06 foi sancionada, dando início à legislação brasileira sobre o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher e alterando também dispositivos do Código Penal e da Lei 9099/95 (Lei dos Juizados Especiais). A Lei Maria da Penha é dividida em sete títulos, englobando temas de direito penal, direito civil, direito processual e direito constitucional.

Destaca-se que a Lei Maria da Penha cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da Constituição Federal e de tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A lei reafirma a condição da mulher como dotada de direitos humanos, independente de condições raciais, sociais, idade ou religião. Nesse diapasão, determina que cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos das mulheres (BRASIL, 2006).

A lei determina que configura violência doméstica contra a mulher, qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Destaca-se que a violência psicológica passou a constituir crime no ano de 2021, quando houve alteração na legislação de referência. A Lei nº 14.188 de 2021 também prevê o crime de violência psicológica contra a mulher no Código Penal, que pode ser atribuído a quem causar dano emocional para prejudicar e atrapalhar seu pleno desenvolvimento, ou para degradar ou controlar sua conduta, comportamentos, crenças e decisões (BRASIL, 1940).

O crime pode ocorrer por meio de ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, extorsão, ridicularização, acesso restrito ou qualquer outro meio. As penas variam de seis meses a dois anos de prisão e multa.

Essa regra está incluída na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340 de 2006), permitindo que juízes, representantes do Ministério Público e até mesmo a polícia (quando não houver representante) possam retirar imediatamente o agressor do local onde mora com a vítima; o que anteriormente só poderia ser feito caso a integridade física da vítima estivesse em jogo.

Um aspecto muito importante na legislação é que, buscando seguir as recomendações internacionais, esta aborda o tema da violência doméstica e familiar sobre diversos ângulos, destacando a importância de uma ação integrada da sociedade e do Estado para coibir esta violência tão presente nos lares brasileiros.

Assim, estabelece em seu artigo 8º que “a política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais.” (BRASIL, 2006).

Importante destacar que com o decorrer dos anos e a aprovação da lei, a atuação do poder judiciário, que anteriormente era contrária à concretização dos direitos das mulheres, conforme visto, sofreu grandes modificações. Assim, atualmente o poder judiciário é importante garantidor dos direitos das mulheres e da coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Neste sentido, importante destacar que existem diversos entendimentos sumulados no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que solidificam a legislação de regência. Destaca-se o teor da Súmula 600 do STJ: “Para

configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, não se exige a coabitação entre autor e vítima”.

Ademais, importante destacar entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a condenação por violência doméstica contra a mulher pode incluir dano moral mínimo mesmo sem prova específica, em razão do grau de humilhação e constrangimento a que é submetida a vítima (BRASIL, 2018).

Além disso, para o Supremo Tribunal Federal a distinção entre os gêneros (feminino e masculino) está de acordo com a Constituição Federal, pois é necessário resguardar as características físicas e morais da mulher (maior vulnerabilidade) e isso leva em consideração a cultura brasileira.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal resolveu grande controvérsia sobre a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) ao julgar a ADC 19/DF e a ADI 4424/DF, em caso relatado pelo Ministro Marco Aurélio em 09 de fevereiro de 2012. O tribunal considerou os artigos 1º, 33 e 41 da Lei 11.340/2006 constitucionais. Além disso, deu interpretação conforme a Constituição aos artigos 12, inciso 1 e 16º da mesma lei, afirmando a natureza incondicional do processo penal em caso de crimes de lesão corporal contra a mulher, qualquer que seja a sua extensão (BRASIL, 2012).

Apesar de todos os avanços alcançados, a luta pela extinção da violência contra a mulher ainda deverá enfrentar um longo caminho. Prova disso é o aumento alarmante de ocorrências de violência doméstica durante a pandemia do COVID19.

Assim, o isolamento social causado pela pandemia da COVID-19 tem destacado alguns indicadores preocupantes de violência doméstica contra a mulher de

forma potencializada. Organizações que trabalham para combater a violência doméstica encontram aumento na violência doméstica devido à coexistência forçada, estresse, a crise econômica e o medo do coronavírus.

Dos 3.739 homicídios de mulheres no Brasil em 2019, 1.314 (35%) foram classificados como feminicídio. Isso equivale a dizer que a cada sete horas uma mulher é morta pelo fato de ser uma mulher. 88,8% dos crimes foram praticados por companheiros e ex-companheiros (BRASIL, 2020).

Além disso, deve-se destacar que, até o momento, a lei nunca sofreu retrocessos. Contudo, existem atualmente mais de 20 propostas legislativas que propõem mudanças no texto original ou afetam diretamente a lei. Para o movimento feminista, as leis só precisam ser alteradas após os primeiros cinco anos de vigência. Essas mudanças devem ser baseadas em observação empírica e elaboradas por uma comissão de parlamentares, juristas, órgãos executivos e representantes dos movimentos feministas e de mulheres (CALAZANS; CORTES, 2011).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro: Presidência da República, 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em: 08 fev. 2022.

BRASIL. Lei no 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos

Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 30 mar. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.424 DISTRITO FEDERAL. Rel. Min. Marco Aurélio. Plenário. Julgado em 09/02/2012. Disponível em: http://www.stf.jus.br. Acesso em: 07 jan. 2022.

BRAZÃO, Analba; OLIVEIRA, Guacira César (Orgs.). Violência contra as mulheres: uma história contada em décadas de luta. Brasília: CFEMEA, 2010.

CALAZANS, Myllena; CORTES, Iáris. O processo de criação, aprovação e implementação da Lei Maria da Penha. In: CAMPOS, C. H. (Org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS/ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Relatório n. 54/01, Caso 12.051, Maria da Penha Maia Fernandes, 4 abr. 2001, Brasil. Disponível em: http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/299_Relat%20n.pdf. Acesso em: 27 set. 2018.

INSTITUTO MARIA DA PENHA. Site Institucional. Disponível em: https://www.institutomariadapenha.org.br/quem-e-maria-da-penha.html Acesso em: 18 jan. 2022.

OEA. Organização dos Estados Americanos. Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção de Belém do Pará” Disponível em: http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/m.Belem.do.Para.htm Acesso em: 06 jan. 2022.

OLIVEIRA, Tatyane Guimarães. Feministas ressignificando o direito: desafios para aprovação da Lei Maria da Penha. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/27767. Acesso em: 10 jan. 2022.

85 Procuradora do Município de Pouso Alegre. Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM, com bolsa CAPES. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Especialista em Direito Administrativo pela Faculdade UniBF. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Advogada e pesquisadora. E-mail: [email protected]

LGBTQIA+

Débora Laís dos Santos Costa⁸

LGBTQIA+ é uma sigla utilizada para indicar Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, Queer, Intersexuais, Assexuais e Mais. O “+” presente na sigla é para incluir outros grupos e variações de sexualidade e gênero que fogem da heteronormatividade. Cada letra da sigla tem sua própria história de movimentações sociais, suas representatividades e demandas, reunidas em LGBTQIA+ elas representam a diversidade desses grupos.

Nesse sentido, tendo apresentado o significado da sigla, é necessário, em um primeiro momento, deixar claro que a concepção de pessoas que não são heterossexuais existiu desde a Antiguidade (DOVER, 2016). A nomenclatura que se tinha difere da atual, entretanto o fato de indivíduos terem afeto pelo mesmo gênero ou sentirem que não pertencem ao gênero de nascença não é algo recente.

Em duas obras sobretudo, Banquete e Fedro, Platão toma o desejo homossexual e o amor homossexual como ponto de partida para desenvolver sua teoria metafísica; e é de particular importância que ele considere a filosofia não como uma atividade a ser praticada em meditação solitária e comunicada em pronunciamentos ex cathedra por um mestre para seus discípulos, mas como um progresso dialético que pode muito bem começar na resposta de um homem mais velho ao estímulo proporcionado por um homem mais jovem que combina beleza corporal com ‘beleza da alma’ (tradução nossa).⁸⁷

Nota-se, também, que a comunidade LGBTQIA+ — sigla atual que abrange diversas sexualidades e questões de gênero — é sistematicamente violentada e passa por uma invisibilidade pela sociedade moderna heteronomativa. Por meio de uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT) 92,5% das pessoas que se identificam como membros da comunidade já sofreram algum tipo de violência.

Mesmo existindo por vários anos observa-se que a comunidade LGBTQIA+ não usufrui dos mesmo direitos e garantias que as pessoas heterossexuais e por esse motivo a luta por igualdade ainda existe, podendo ser vista em vários momentos na história da sociedade moderna, tendo, para alguns pesquisadores, como manifestação inicial o evento histórico do Stonewall Inn em junho de 1969 (CARTER, 2010), o qual tem como uma das principais personagens Marsha P. Johnson.

Os motins de Stonewall foram uma série de protestos violentos e manifestações de rua que começaram nas primeiras horas da manhã de 28 de junho de 1969 e se concentraram em um bar gay na seção de Greenwich Village de Nova York. Esses distúrbios foram amplamente creditados como a força motivadora na transformação do movimento político gay⁸⁸ (tradução nossa).

Com a sociedade conservadora que foi se edificando nos anos anteriores, mesmo com a contracultura do movimento hippie e punk dos anos 50 e 60, os indivíduos que faziam parte da comunidade LGBTQIA+ foram hostilizados pela sociedade padrão, sendo vítimas de ataques verbais e físicos (DEITCHER, 1995) e por esse motivo era necessário que se tomassem cuidados procurando lugares privados para expressar afeto e se socializar, uma vez que esse comportamento vindo do mesmo gênero era visto como ilegal no país inteiro até 1962 — em 1969 apenas Illinois alterou sua legislação e Nova York a modificou em 1980, de acordo com o site da BBC.

É necessário que se centre a pesquisa no Stonewall Inn, foco da revolta que viria a edificar a tradição das paradas LGBTQIA+, uma vez que não é possível fazer uma reconstrução histórica de manifestações do gênero, devendo apresentar um recorte metodológico.

Assim, o Stonewall Inn era um bar gay comandado pela máfia (CARTER, 2010),

que comprava estabelecimentos investindo pouco na manutenção e subornando os policiais e extorquindo clientes ricos que queriam manter sua sexualidade em segredo. Por ser um dos poucos locais que recebia a comunidade LGBTQIA+ era o principal espaço para que essas pessoas se relacionassem.

Quem foi para o Stonewall? Representantes de todo o espectro da expressão gay. Homens enrustidos com empregos e reputações respeitáveis que procuram uma maneira discreta de expressar suas preferências pelo mesmo sexo. Homens casados agindo de acordo com seus desejos de se envolverem fisicamente com outros homens. Jovens fugitivos, atraídos pela cena gay de Nova York, que andavam juntos nas ruas de Manhattan e festejavam juntos no Stonewall. Artistas, performers e intelectuais que viviam abertamente como gays. Alguns amigos heterossexuais de gays (tradução nossa).⁸

Desse modo, mesmo com questões sanitárias problemáticas e possível extorsão de alguns clientes, aquele era o único local onde a comunidade que estava a margem da sociedade civil, poderia ter algum tipo de lazer e demonstração de afeto sem ser violentada ou criminalizada, e por esse motivo, o bar recebia uma grande quantidade de pessoas que não poderiam ser classificadas dentro do padrão heteronormativo, chamando atenção dos vizinhos que se incomodavam tanto com eles quanto com o barulho.

Dentro dessa construção histórica e social encontra-se a figura da Marsha P. Johnson, uma mulher negra, transexual, prostituta e ativista pelos direitos LGBTQIA+, que, junto com Sylvia Rivera — mulher transexual e latina — auxiliavam os jovens de rua, que muitas vezes eram expulsos de casa por causa da sexualidade.

(...) Sylvia (Ray) Rivera e Marsh P. Johnson, duas rainhas de rua que conheciam as opressões de raça e economia, bem como da sexualidade. Sua primeira tarefa foi tentar criar um lar para seus moradores de rua (tradução nossa).

Marsha P. Johnson pode ser vista como personagem importante para tal momento histórico, isto pois, mesmo não tendo qualquer privilégio, por causa de questões raciais, sexuais e econômicas, ainda assim — junto com Sylvia Rivera — lutava a favor de causas em prol da comunidade, como o direito ao lazer e ao afeto, questões que podem ser entendidas quando analisar-se-á os acontecimentos que deram início a primeira parada gay.

No dia 28 de julho de 1969 houve uma batida policial no Stonewall Inn que não foi previamente avisada, como era o acordo feito e pago pela máfia, e diferentemente das outras invasões da polícia, nessa a comunidade LGBTQIA+ não cedeu lutando contra os abusos e a violência.

O primeiro copo de vidro jogado contra as viaturas foi de Marsha P. Johnson, “(...) parece razoável concluir que Marsha Johnson foi quase indubitavelmente uma das primeiras a ser violenta naquela noite e pode até ter sido a primeira” (tradução nossa) ¹. A revolta foi tão grande que os vizinhos do bar participaram na manifestação, agredindo a polícia que não estava preparada para tais atos, fazendo com que se refugiassem dentro do bar, ficando presos lá.

A multidão deu pouco tempo a Pine para refletir sobre o que fazer a seguir. Ele havia servido na Segunda Guerra Mundial e compreendia a gravidade de sua situação. “Nós não tínhamos homens, e os homens do outro lado estavam chegando como se fosse uma guerra real. E foi isso que aconteceu, foi uma guerra.” Como um jornalista de contracultura escreveu depois de testemunhar a cena: “Você podia ver o medo e a descrença nos rostos dos porcos”. As autoridades podiam estar mais bem armadas - afinal de contas, elas possuíam armas -, mas estavam esmagadoramente em menor número, pelo menos até a chegada dos reforços. Se isso era uma guerra, a manobra militar que melhor se adequava à sua situação era óbvia (tradução nossa). ²

Cansados dos abusos a comunidade reagiu, sendo visto como um levante coletivo contra a violência dispendida a eles, nos dias que se passaram os policiais tentavam incitar algum ato agressivo por parte da comunidade LGBTQIA+ por meio de provocações verbais. O clima em Greenwich Village — bairro onde se localizava o bar — continuava apreensivo com manifestações ocorrendo durante os 6 dias após a revolta de Stonewall Inn (DUBERMAN, 1993).

Marsha P. Johnson esteve no centro da manifestação mais importante para a comunidade LGBTQIA+, além disso, ela e Sylvia Rivera conceberam um abrigo para jovens transexuais e travestis, sendo a primeira organização liderada por minorias, ou seja, mulheres transexuais e não-brancas, denominada de Street Transvestite Action Revolutionaries. Também preocupada com questões que envolvia a sua comunidade associou-se com o grupo ACT UP, que tratava de assuntos relacionados a aids,

Queremos ver todos os gays terem uma chance, direitos iguais, como os heterossexuais têm na América. Não queremos ver gays presos nas ruas por coisas como vadiagem ou sexo ou qualquer coisa assim. O STAR [Street Travestite Action Revolutionaries] foi originalmente iniciado pela presidente Sylvia Lee Rivera e Bubbles Rose Marie, e eles me pediram para ser vicepresidente. STAR é um grupo muito revolucionário. Acreditamos em pegar a arma, iniciar uma revolução, se necessário. Nosso principal objetivo é ver os gays liberados e livres e com direitos iguais aos de outras pessoas nos Estados Unidos. Gostaríamos de ver nossos irmãos e irmãs gays fora da prisão e nas ruas novamente. Há um monte de travestis gays que foram presos sem motivo nenhum, e a razão pela qual eles não saem é que não podem conseguir um advogado ou qualquer fiança (tradução nossa). ³

Se preocupando com o bem-estar dos jovens que estavam na mesma posição que um dia também esteve, Johnson fez tudo o que estava nas suas mãos para garantir que pessoas como ela tivessem comida e um local para dormir, e isso incluía se prostituir para pagar aluguel e comida para que estes não precisassem

fazer.

Em 1992 o corpo de Marsha foi encontrado no rio Hudson e rapidamente decretado que o caso não se passava de um suicídio, entretanto, não se tinham provas concretas de que Johson tinha intenção de se matar, tendo, porém, indícios de assassinato (DESTA, 2022).

Marsha P. Johnson com Sylvia Rivera foram duas mulheres que lideraram os direitos LGBTQIA+ após a revolta de Stonewall, assistiram jovens da comunidade e deram um passo em direção a uma sociedade mais igualitária para a comunidade LGBTQIA+, negra e latina.

REFERÊNCIAS

BAUSUM, Ann. Stonewall: breaking out in the fight for gay rights. New York: Viking, 2015.

BBC. Dia do orgulho LGBTQIA+: o que foi a revolta de Stonewall que deu origem à comemoração. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral48432563. Acesso em: 14 abr. 2022.

CARTER, David. Stonewall: The Riots That Sparked the Gay Revolution. New York: St. Martin’s, 2010.

DEITCHER, David. The question of equality: lesbian and gay politics in America since Stonewall. New York: Scribner, 1995.

DESTA, Yohana. Meet the Transgender Activist Fighting to Keep Marsha P. Johnson’s Legacy Alive: In the Netflix documentary The Death and Life of Marsha P. Johnson, Victoria Cruz joins the canon of legendary New York activists. Disponível em: https://www.vanityfair.com/hollywood/2017/10/thedeath-and-life-of-marsha-p-johnson-victoria-cruz. Acesso em: 14 abr. 2022.

DOVER, K.J. Greek Homosexuality. London: Bloomsbury Academic, 2016.

DUBERMAN, Martin B. Stonewall. New York: Dutton, 1993.

JOHNSON, Marsha P; RIVERA, Sylvia. Street Transvestite Action Revolutionaries (STAR): Survival, Revolt, and Queer Antagonist Struggle. New York: Untorelli Press, 2013.

86 Escritora, mestre em Constitucionalismo e Democracia na Faculdade de Direito do Sul de Minas, membro do Grupo de Pesquisa Razão Crítica e Justiça Penal e graduada em Direito na Faculdade de Direito do Sul de Minas e Graduada com menção honrosa em Letras português/inglês pelo Centro Universitário do Sul de Minas.

87 In two works above all, Symposium and Phaedrus, Plato takes homosexual desire and homosexual love as the starting-point from which to develop his metaphysical theory; and it is of particular importance that he regards philosophy not as an activity to be pursued in solitary meditation and communicated in ex cathedra pronouncements by a master to his disciplines, but as a dialectical progress which may well begin in the response of an older male

to the stimulus afforded by a younger male who combines bodily beauty with ‘beauty of the soul’ (DOVER, 2016, p. 12).

88 The Stonewall Riots were a series of violent protests and street demonstrations that began in the early morning hours of June 28, 1969, and centered around a gay bar in the Greenwich Village section of New York City. These riots were widely credited with being the motivating force in the transformation of the gay political movement (CARTER, 2010, p. 01).

89 Who went to the Stonewall? Representatives of the full spectrum of gay expression. Closeted males with respectable jobs and reputations seeking a discreet way to express their same-sex preferences. Married men acting on their desires to be physically involved with other men. Runaway youths, drawn by New York’s gay scene, who hung together on the streets of Manhattan and partied together at the Stonewall. Artists, performers, and intellectuals who lived openly as gays. A few straight friends of gays (BAUSUM, 2015, p. 6-7).

90 (...) Sylvia (Ray) Rivera and Marsh P. Johnson, two street queens who knew the oppressions of race and economics as well a sexuality. Their first order of business was to try to create a home for their homeless (DEITCHER, 1995, p. 40).

91 (...) it seems reasonable to conclude that Marsha Johnson was almost indubitably among the first to be violent that night and may possibly even have been the first” (CARTER, 2010, p. 298)

92 The crowd gave Pine little time to reflect on what to do next. He had served in World War II, and he understood the gravity of his situation. “We didn’t have the manpower, and the manpower for the other side was coming like it was a real war. And that’s what it was, it was a war.” As one counterculture journalist wrote

after witnessing the scene: “You could see the fear and disbelief on the faces of the pigs.” The authorities may have been better armed - they did possess guns, after all - but they were overwhelmingly outnumbered, at least until reinforcements arrived. (BAUSUM, 2015, p. 45).

93 We want to see all gay people have a chance, equal rights, as straight people have in America. We don’t want to see gay people picked up on the streets for things like loitering or having sex or anything like that. STAR [Street Transvestite Action Revolutionaries] originally was started by the president, Sylvia Lee Rivera, and Bubbles Rose Marie, and they asked me to come in as vice president. STAR is a very revolutionary group. We believe in picking up the gun, starting a revolution if necessary. Our main goal is to see gay people liberated and free and have equal rights that other people have in America. We’d like to see our gay brothers and sisters out of jail and on the streets again. There are a lot of gay travesties who have been in jail for no reason at all, and the reason why they don’t get out is they can’t get a lawyer or any bail. (JOHNSON, RIVERA, 2013, p. 22).

LUGAR DE FALA

Vitória de Oliveira Ribeiro ⁴

A importância da auto rrepresentação discursiva de grupos subalternizados e a responsabilização de grupos privilegiados foram discussões que estiveram em alta nos últimos sete anos, principalmente nas redes sociais. Os movimentos sociais aqueceram o debate, que foi incorporado pelos movimentos negro, LGBTQ+ e o de cultura periférica, destacando o conceito Lugar de Fala. O termo causou confusão e muitas dúvidas sobre poder ou não falar sobre determinados assuntos. A origem do termo é imprecisa, mas acredita-se que surgiu a partir da discussão sobre feminist standpoint, Teoria Crítica Racial, Teoria Pós-Colonial e pensamento decolonial; alguns teóricos afirmam que tem raízes no debate feminista americano em meados dos anos 1980; outros apontam que o conceito aparece em trabalhos como o de Linda Alcoff (1991) “The Problem of Speaking for Others”, e em “Pode o subalterno falar?” de Gayatri Spivak (2010), com a sua primeira versão publicada em 2003 (RIBEIRO, 2019).

Não existe um consenso sobre quem cunhou o termo, visto que a sua ideia está presente em vários trabalhos. Além do diálogo com produções acadêmicas, também é articulado por motivos éticos com âmbitos social, cultural e político. É possível, portanto, articular o conceito a partir de algumas perspectivas teóricas, principalmente aquelas que abordam hierarquias globais de gênero, raça, classe, e que também compreendem como estruturas coloniais/opressivas em que uns são privilegiados em detrimento da opressão de outros. Por isso, o termo ganhou espaço no debate de resistência dos grupos historicamente oprimidos, justamente porque esse sistema de opressão permanece inabalado, mesmo com o passar do tempo, posto que se criam novas formas do mesmo.

Djamila Ribeiro (2019), escritora do livro “Lugar de Fala”, parte da perspectiva de Patricia Hill Collins e da teoria feminist standpoint, mas aponta a existência de outras teorias que podem ser utilizadas para compreender o conceito. A contribuição da Teoria Pós-colonial e Decolonial à explicação do termo está em teorizar que mesmo com o fim do colonialismo, relações de colonialidade nas esferas econômica e política persistem, e que se estende a outros âmbitos: ao

controle da economia, da autoridade, dos recursos naturais, do gênero e da sexualidade, da subjetividade e do conhecimento (MIGNOLO, 2017).

Walter Mignolo (2017) também teoriza sobre como dentro dessa estrutura, algumas vidas foram/são consideradas descartáveis e outras não. A chamada “dispensabilidade” da vida é também tratada por Mbembe (2018), que afirma que enquanto alguns corpos são considerados descartáveis, outros têm o poder de decretar quais vidas podem ser descartadas e quais não. As vidas consideradas descartáveis são as vidas dos que foram colonizados, os subalternos, oprimidos pelo sistema; enquanto, os que detém o poder para determinar a “descartabilidade” da vida são os privilegiados, opressores, e fazem parte do grupo considerado “a norma”, “universal”. Estes são os mesmos que detém também o poder de falar e terem suas falas sempre legitimadas e validadas. Enquanto os subalternos, até quando tentam contar a própria história, são descredibilizados.

Em adição, Gayatri Spivak (2010) contribui para a compreensão de como o silêncio é imposto a sujeitos que foram colonizados e afirma que os subalternos não têm direito a voz. Se eles têm as próprias vidas consideradas descartáveis e suas humanidades questionadas e não reconhecidas, dificilmente suas vozes seriam ouvidas. Apesar de Spivak ser crítica à romantização dos sujeitos que resistem, destaca-se aqui a necessidade de considerar o rompimento do silêncio dos subalternos.

Tratar sobre Lugar de Fala, além de ser pela persistência de estruturas que privilegiam uns em detrimento da opressão de outros, é também importante ressaltar a dificuldade de o grupo privilegiado assumir a posição de “escuta”. Quem é autorizado a falar e tem sempre o discurso legitimado, geralmente não se dispõe a escutar. Grada Kilomba (2020) fala da dificuldade que o grupo privilegiado tem em ouvir, pelo incômodo que “o falar” do subalterno gera, provavelmente, porque escutar o que o subalterno tem a falar é ter que encarar o próprio lugar de privilégio e se responsabilizar por ele.

Considera-se, portanto, Lugar de Fala como uma ferramenta política para se posicionar contra o silenciamento de minorias. O conceito está vinculado a um debate que transcende a perspectiva individual. É preciso considerar que os indivíduos fazem parte de um grupo que foi criado a partir de uma localização social nas relações de poder e, portanto, compartilham experiências comuns como consequência, justamente, do lugar social que ocupam (RIBEIRO, 2019).

Lugar de Fala é também compreendido como um instrumento teóricometodológico (AMARAL, 2005), o qual dá a possibilidade de se analisar casos empíricos sobre diversas áreas, sob a luz do conceito que esclarece a existência de “lugares diferentes” a partir dos quais se falam. Joice Berth (2019, p. 42) compreende o conceito como “uma posição estratégica de descortinador da bipolaridade social”, que anseia pela igualdade, mas propõe meios que podem não agradar alguns para se alcançar a transformação social.

Compreender a ideia e todos os aspectos que o conceito carrega, é compreender como as estruturas de opressão impedem que indivíduos pertencentes a determinados grupos sociais tenham o direito à fala e à humanidade; é compreender que todo indivíduo fala a partir de um lugar social e a partir de uma perspectiva, podendo assim entender o que está implícito dentro da normatização hegemônica. Se todo discurso tem um ponto de partida, fala-se dos privilégios ou “não-privilégios”, pelas condições sociais dos grupos; fala-se de como, a depender do lugar social que certo grupo ocupa, ele terá ou não acesso a lugares de cidadania, oportunidades e privilégios (RIBEIRO, 2019).

Como aponta bell hooks (1989), as subalternas são vistas como objetos, têm suas realidades, identidades e histórias definidas e contadas por outros. Por isso, pensar Lugar de fala e aplicar o conceito em ou a partir de todas as áreas, envolve romper com o silêncio imposto ao subalterno. O debate deve ser ampliado para além da questão do silenciamento, deve abranger a resistência e transformações. Incorporar Lugar de Fala aos diversos âmbitos da vida é agir pela mudança e criação de espaços de escuta. E, logo, agir pela visibilidade dos subalternos e para que as opressões sejam nomeadas e os indivíduos vistos como

sujeitos com suas humanidades e com capacidade de agência e resistência (BELL HOOKS, 1989).

Spivak (2010) questiona a posição dos investigadores e intelectuais póscoloniais e aponta sua crítica aos esforços do Ocidente em tentar falar pelo sujeito do Terceiro Mundo, e mesmo que assim seja feito, esses esforços estão imbricados no discurso ocidental hegemônico. A autora aponta para a cumplicidade da produção intelectual do Ocidente com os interesses econômicos internacionais do Ocidente. E afirma que não é possível falar pelo subalterno sem que essa fala esteja colada ao discurso hegemônico. A autora critica o intelectual que quer falar pelo outro e resistir pelo outro, consequentemente. Porque agindo assim é o mesmo que reproduzir opressões e relações hierárquicas de poder: o subalterno permanece silenciado, sem espaço para se posicionar e ser ouvido. Spivak reconhece a própria cumplicidade e a dos intelectuais nesse processo de reproduzir opressões, e é por esse reconhecimento que é possível questionar o lugar de onde se fala e se teoriza.

Djamila Ribeiro (2019) chama atenção para essa questão da responsabilização, é preciso que o sujeito do poder se responsabilize pela sua localização social, “o fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na constituição dos lugares de grupos subalternizados.” (RIBEIRO, 2019, p. 48).

Aspectos das lutas das(os) oprimidas(os) podem ser encontrados na construção da ideia que o termo carrega, e consequentemente o termo pode ser visto como uma “abreviação” de toda a bagagem que os movimentos feministas negro, interseccionais, LGBTQI+ e entre tantos outros, carregam. Mas também, Lugar de Fala deve ser visto como uma ferramenta de transformação, seja ela teóricometodológica ou de resistência epistemológica, usada por todas e todos que abraçam as lutas.

REFERÊNCIAS

ALCOFF, Linda. The problem of speaking for others. Cultural critique, n. 20, p. 5-32, 1991.

AMARAL, Márcia Franz. Lugares de fala: um conceito para abordar o segmento popular da grande imprensa. Revista Contracampo, n. 12, p. 103-114, 2005.

BERTH, Joice. Empoderamento. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

HOOKS, Bell. Talking back: Thinking feminist, thinking black. South End Press, 1989.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. n-1 edições, 2018.

MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 32, n. 94, p.p. 1-18, 2017.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar. UFMG, 2010.

94 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (PPGRI/UFU).

MACHISMO

Isabella Fernandes Moreira Fontaniello ⁵

Para que seja possível entender como o machismo surge e sua definição, é necessário olhar a forma com que a sociedade foi moldada e como as regras e os padrões influenciaram como a mulher é vista na sociedade. No início da concepção de sociedade ainda não existia uma divisão de sexos, em que os homens e as mulheres governavam em conjunto. Durante esse período as mulheres possuíam um local central em suas tribos, visto que eram consideradas “seres sagrados” devido à capacidade de dar a vida.

Desse modo, não havia uma centralização do poder para determinado sexo. Embora a divisão de tarefas já existisse, ainda não era vista como um sinônimo de superioridade ou inferioridade, mas como uma complementaridade. No entanto, em algumas tribos essa estrutura de governança e poder começou a mudar. A força física se tornou essencial para a sobrevivência do grupo. Com isso, a masculinidade começou a ser mais valorizada, fazendo com que as sociedades se tornassem patriarcais (BALBINOTTI, 2018).

A partir disso, os trabalhos realizados pelas mulheres passaram a ser vistos como inferiores aos dos homens, visto que estes eram considerados como heróis, guerreiros e responsáveis pela proteção da família. Com isso, as mulheres foram colocadas em uma posição de subordinação aos homens (GOLDSTEIN, 2001). Esse modelo de sociedade tornou-se o padrão, difundido até os dias de hoje. Segundo Gerda Lerner:

O patriarcado mantém e sustenta a dominação masculina, baseando-se em instituições como a família, as religiões, a escola e as leis. São ideologias que nos ensinam que as mulheres são naturalmente inferiores. Foi, por exemplo, por meio do patriarcado que se estabeleceu que o trabalho doméstico deve ser exercido por mulheres e que não deve ser remunerado, sequer reconhecido como trabalho (LERNER, 2020, p. 17).

Com essa concepção da criação e do modelo patriarcal e como se fixou na sociedade, é possível compreender que o machismo é uma expressão do patriarcado e pode ser definido como um “sistema de representações simbólicas que mistifica as relações de exploração, de dominação entre homem e a mulher” (DRUMONT, 1980, p. 81).

Desse modo, esse conceito de representação-dominação é responsável por uma divisão entre dominante e dominado. A partir disso, criam-se duas linguagens: a masculina e a feminina. Associando à forma em que o homem é visto na sociedade, ou seja, como um sinônimo de autoridade, domínio, força física e resistência, em contraste a imagem emocional, de submissão e fraqueza atribuída às mulheres (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2005). O machismo representa as relações reais e imaginárias acerca dessa dominação.

Segundo Anne Sisson Runyan e V. Spike Peterson (2014), a sociedade patriarcal divide os homens e as mulheres por estereótipos criados socialmente. Em que o que é masculino é concebido como o sujeito e o feminino como objeto. Assim, existe uma posição de inferioridade que a mulher ocupa, ao contrário do homem que está em uma posição de privilégio. Esses adjetivos constroem uma base sólida para o machismo.

As dicotomias de gênero são produzidas a partir dos estereótipos construídos socialmente. Para Heleieth Saffioti (1987, p. 8), esses estereótipos são “a atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumprido pelas diferentes categorias de sexo”. A teoria feminista propõe o gênero como uma categoria que consegue compreender a desigualdade social e as dicotomias entre homens e mulheres como uma construção social. Neste sentido, a noção do machismo também é entendida como uma construção que fortalece essas dicotomias, mantendo as mulheres como subordinadas aos homens (COUTO; SCHRAIBER, 2013).

O machismo está intrínseco nas práticas sociais, fazendo-se presente nos primeiros momentos da socialização humana como a família, a escola e as religiões, tornando-se estrutural. Ele está presente não apenas nos aspectos sociais, mas também “nos aspectos subjetivos da relação do indivíduo com o mundo, com a vida e com os outros” (HINTZE, 2021, s.p). O machismo estrutural tem como base três elementos: 1. Normalização: responsável pela produção de uma moral machista; 2. Hierarquização: coloca os valores masculinos sobre os femininos; 3. Naturalização: tem como natural a desigualdade entre homens e mulheres. Desse modo, o machismo estrutural não causa mazelas para sociedade, mas em níveis subjetivos e institucionais (HINTZE, 2021).

Para as mulheres esses danos são ainda maiores sendo responsável pela violência, discriminação, humilhação e preconceito, que remetem a desvalorização social da mulher. Além disso, também causa micro agressões que estão presentes no cotidiano e podem ser manifestadas através da desqualificação do pensamento; apropriação de ideias; interrupção da fala; assédios; objetificação; hipersexualização; padronização estética e violência econômica (TENORIO, 2019).

Desse modo, é possível compreender que o modelo de sociedade patriarcal foi o berço do machismo, colocando os homens em uma posição de dominação (KRONSELL, 2011). Assim, embora haja uma evolução na divisão do trabalho e a incorporação da mulher em outras esferas públicas, o machismo ainda está na estrutura social e é base do pensamento conservador. Com isso, coloca o homem acima das mulheres, valorizando o masculino em detrimento do feminino. O machismo ocorre conscientemente e inconscientemente, uma vez que ele se torna o padrão e parte de como a sociedade é concebida.

Para isso, é fundamental se apoiar nas lentes feministas nos estudos de gênero, pois elas começam a questionar e pensar formas de desvincular as estruturas de dominação para que o machismo pare de prejudicar as relações, visto que ele causa danos na sociedade como um todo. Assim, é necessário romper com esse

modelo patriarcal que faz com que se tenham tantas violências e micro agressões, que faz com que a sociedade se torne ainda mais desigual.

REFERÊNCIAS

BALBINOTTI, Izabele. A Violência Contra a Mulher como Expressão do Patriarcado e do Machismo, Revista da Esmesc, v. 25, n.31, p. 239-264, 2018.

COUTO, Marcia Thereza; SCHRAIBER, Lilia Blima. Machismo hoje no Brasil: uma análise de gênero das percepções de homens e mulheres. In: VENTURI, Gustavo; TATAU, Godinho. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2013.

CONNELL, Robert; MESSERSCHMIDT, James. Hegemonic Masculinity: Rethinking the Concept. Gender & Society, Vol. 19, N. 6, 2005.

DRUMONT, Mary Pimentel. Elementos para uma análise do machismo. Perspectivas, São Paulo, 3: 81-85, 1980.

HINTZE, Helio (Org.). Desnaturalização do machismo estrutural na sociedade brasileira. Jundiaí: Paco Editorial, 2020.

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. Trad. Luiza Sellera. São Paulo: Cultrix, 2019.

KRONSELL, Annica. Gendered Practices in Institutions of Hegemonic Masculinity. Lund University, Sweden, 2014.

PETERSON, V. Spike; RUNYAN, Ann Sisson. Global Gender: Issues in The New Millennium. Fourth Edition, Westview Press, 2014.

SAFFIOTI, Heleieth. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

TENORIO, Emily Marques. Machismo. Conselho Federal de Serviço Social. Brasília, 2019.

95 Graduada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), campus Poços de Caldas. Mestrado em andamento pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista INCT-INEU.

MINORIAS

Maíra Calixto Policarpo Moreira

Muito se discute sobre direitos das minorias e a sua proteção. Entretanto, proteger as minorias e seus direitos requer que se tenha conhecimento, primeiramente, sobre a conceituação do próprio termo. Entender quem são e de que necessitam as minorias são questionamentos importantes que geram consequências práticas aos direitos anunciados a esse grupo. Pois minorias referem-se a pessoas que lutam, em primeiro momento, por reconhecimento de seus direitos. Dessa forma, as minorias buscam ter direitos, bem como exercêlos, preservando o objeto de discriminação, por fazer parte do traço cultural, um elemento identificador da sua cultura, a identidade que une o indivíduo aos demais de seu grupo específico (minoria) (SIQUEIRA; CASTRO, 2017).

O Pacto de Direito Civis e Políticos foi o primeiro diploma normativo a mencionar o tema minorias, em seu art. 27. Contudo, apenas citou as minorias, não trazendo conceituações ao termo.

Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua (BRASIL, 1992).

Após, a Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e a Proteção das Minorias, criada pela ONU, trouxe uma definição do termo minorias, que se limitou a critérios quantitativos.

Um grupo numericamente inferior ao resto da população de um Estado, em posição não-dominante, cujos membros - sendo nacionais desse Estado -

possuem características étnicas, religiosas ou linguísticas diferentes das do resto da população e demonstre, pelo menos de maneira implícita, um sentido de solidariedade, dirigido à preservação de sua cultura, de suas tradições, religião ou língua (MAIA, 1995).

Vários autores também se dedicaram a conceituar o termo minorias, na tentativa de melhor garantir os direitos desse grupo, seja o reconhecimento ou seu exercício, ampliando o conceito para além de critérios quantitativos. Assim, Mazzuoli definiu minorias como uma configuração de categorias de pessoas social e historicamente menos protegidas pelas ordens domésticas, o que tem levado o direito internacional público a estabelecer padrões (standards) mínimos de proteção, tanto em âmbito global como nos contextos regionais (MAZZUOLI, 2014, p. 179).

Ainda nessa linha de raciocínio, Oliva e Künzli ao citar Donnelly, dizem que no termo “minoria” está implícita a ideia de que o grupo definido como tal é estigmatizado no corpo social em que está inserido, sendo necessária ação política para eliminar a discriminação (DONNELLY, 2003, p. 229). Assim, para se entender minorias é preciso a compreensão de que há existência de um grupo dominante e outro dominado. Nesse sentido:

O conceito de dominação é de extrema importância na definição de uma minoria. Isso porque não se está diante de um conceito simplesmente numérico, mas de um agrupamento humano que demanda uma proteção especial, independente do seu número de integrantes. Ou seja, caso um agrupamento humano seja dominante em relação aos demais, não existe a necessidade de proteção específica do Direito Internacional, mesmo quando o grupo em questão for numericamente inferior (OLIVA e KUNZLI, 2018).

Para Siqueira e Castro (2017), o que define minorias é o traço cultural comum presente em todos os indivíduos, originando grupos específicos, são sujeitos ligados entre si, daí a denominação “minoria” [como especificação]. Entretanto,

nem sempre diz respeito a um grupo que possui o menor número de pessoas, pelo contrário, por vezes são numerosos.

Assim sendo, o conceito de minorias vai além de uma questão numérica e está mais ligada ao fato de existir um grupo com menor dominância na sociedade e que precisa ter seus direitos reconhecidos em igualdade com o grupo dominante.

Partindo da compreensão do conceito de minorias, pode-se dizer que as mulheres são grupos de minorias, pois lutam por reconhecimento de direitos e igualdade com homens, na sociedade. Ainda que não sejam numericamente inferiores aos homens, é notório que mulheres são menos protegidas e por isso precisam de constante reconhecimento de direitos no meio social e políticas públicas para alcançar igualdade material.

Assim, o fato de que homens se comportam com superioridade em relação às mulheres, o que causa consequências no exercício de direitos pelas mulheres, impõe ao Estado uma obrigatoriedade de implementação de igualdade material. Na visão de Da Matta (1997) a questão das minorias passa pela compreensão do comportamento hierarquizado, onde existindo conflitos, o indivíduo posiciona-se com uma superioridade em relação a esses grupos, como se a “maioria” detivesse “mais direitos a ter direitos”; os membros do grupo, dotados de um interesse individualizado, adotam um comportamento arrogante e arbitrário para se colocar em posição de confronto com aquele que ele considera socialmente inferiorizado.

Nesse contexto, os movimentos feministas têm o destaque na construção dos direitos das mulheres, pois foram eles que iniciaram as discussões e lutas para despertarem o interesse a respeito da desigualdade entre homens e mulheres, em busca da eliminação da superioridade masculina em relação às mulheres. Os movimentos feministas questionam a proteção da mulher e a sua emancipação e efetivamente, esse tema começou a tomar maiores proporções para o Direito na segunda metade do século XIX, quando as feministas se organizaram como

movimento político. Sendo assim, essa é uma organização que questiona o acesso das mulheres às decisões políticas do Estado e, também, à proteção que as mulheres recebem desse mesmo Estado, como sendo pertencentes aos grupos de minorias.

Ao se analisar os elementos que caracterizam os grupos de minorias, Siqueira e Castro (2017) concluem que todos possuem elementos em comum: posição de não-dominação junto ao corpo social; vínculo subjetivo de solidariedade entre seus membros para a proteção de sua identidade cultural; demandam uma especial proteção estatal, sofrem uma opressão social. Nesse sentido, ressalta a importância dos movimentos feministas na luta por direitos das mulheres, pois são esses os pontos que tais movimentos demonstram quando comparam os direitos reconhecidos a homens e mulheres.

Quando se pensa na influência das mulheres em decisões políticas do Estado, no acesso de mulheres a cargos de liderança, na remuneração entre mulheres e homens exercendo um mesmo cargo, na situação de subordinação e violência doméstica, nos casos de assédio e outros tipos de violência; fica nítido a posição de não dominação das mulheres junto ao corpo social, demandando do Estado proteção especial. Assim, cabe ao Estado a inclusão dessas minorias na sociedade por meio de movimentos sociais.

No caso das mulheres, já foram editados vários instrumentos normativos em busca de igualdade e proteção, para tratar de questões específicas e de acordo com a demanda das vulnerabilidades (direitos políticos, direito à nacionalidade independente do marido, proibição ao casamento forçado, proteção contra violência doméstica, e etc.). Entretanto, essa afirmação formal ainda não é capaz de romper com paradigmas enraizados em nossa sociedade, por isso a inferioridade da mulher continua a existir e com isso ainda continua a ser um grupo de minorias.

Ao se compreender o conceito de minorias e os elementos que sustentam essa

definição, compreende-se o motivo pelo qual mulheres são classificadas como minorias. Partindo dessa classificação exige-se que o Estado crie normas especiais de proteção, políticas públicas e assistência às mulheres. Esse é o objetivo de movimentos feministas, que têm importância em todas as conquistas de direitos das mulheres. Romper com atos que inferiorizam a mulher é paradigma que deve ser seguido por um Estado que busca uma igualdade material e se baseia na dignidade da pessoa humana. Esse parâmetro de igualdade é a essência de lutas feministas para proteção da mulher, como grupo de minorias.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 10 mar. 2022.

CANOTILHO, J.J. Gomes; Correia, Marcus Orione; Correia. Erika Paula. Direitos Fundamentais Sociais. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2015.

CHAKIAN, Silvia. A construção dos direitos das mulheres: histórico, limites e diretrizes para uma proteção penal eficiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1997.

MAIA, L.M. O Direito das Minorias Étnicas. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/lucianomaia/lmaia_minorias.html. Acesso em: 10 mar. 2022.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

OLIVA, Thiago Dias; KUNZLI, Willi Sebastian. Proteção das minorias no direito internacional. R. Fac. Dir. Univ. São Paulo, v. 113 p. 703 - 719 jan./dez. 2018.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU, 1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/. Acesso em: 10 mar. 2022.

SIQUEIRA, Dirceu; CASTRO, Lorenna. Minorias e grupos vulneráveis: a questão terminológica como fator preponderante para uma real inclusão social. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE). vol. 5, n. 1, 2017. Disponível em: www.unifafibe.com.br/revista/index.php/direitos-sociaispoliticas-pub/index. Acesso em: 10 mar. 2022.

96 Advogada Especialista em Ciências Penais - PUC Minas.

MITO DA BELEZA

Bianca Tito ⁷

O “mito da beleza” se refere a uma expressão cunhada no início dos anos noventa pela jornalista e escritora feminista estadunidense Naomi Wolf, que escreveu um livro que traz essa em seu título. Tal termo foi estabelecido pela autora para se referir aquilo que compreende como um tipo bastante específico de controle social que é exercido sob as mulheres com o objetivo de manter intacto o domínio masculino. O mito da beleza, à vista disso, assumiria a função de uma coerção social que outros mitos, como da maternidade, domesticidade, castidade e passividade, anteriormente bem-sucedidos, já não seriam mais tão capazes de se impor e exercer seu poder sob a vida das mulheres (WOLF, 2019).

Isso porque à medida que as mulheres foram conseguindo se desvencilhar de alguns dos muitos padrões que lhes são impostos, se libertando deles, o mito da beleza surgiu para invadir esse terreno perdido. O que para Naomi Wolf (2019) significa que, observadas as especificidades de cada época, todas as gerações de mulheres desde 1830 tiverem de enfrentar alguma versão do mito da beleza. Girando em torno das instituições masculinas e do poder institucional dos homens, ele não tem a ver com as mulheres propriamente, mas sim com determinadas qualidades que, em um certo período, são consideradas belas nas mulheres e, por isso, representam um comportamento feminino tomado como desejado naquele período. ⁸

O mito da beleza, portanto, não foi o único responsável pela desvalorização das mulheres, havendo também vários outros mitos que foram, e continuam sendo utilizados para oprimi-las. Foi a partir das revoluções do século XX e com a organização do movimento feminista, em que as mulheres reivindicavam por seus direitos, como de um tratamento igualitário, que muitos desses mitos foram sendo superados. Uma movimentação como essa acabou por expor a existência de fragilidades em um sistema milenar de dominação que é pautado pelo sexo biológico. Este sistema, existente ainda hoje e reconhecido como patriarcalismo, utiliza-se de várias estratégias que o mantém em vigência, entre as quais a do mito da beleza (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019).

Com isso, conforme as mulheres conseguiam reivindicar seus direitos e demandar por acesso ao poder, o mito foi utilizado para prejudicá-las de obter algum sucesso, sendo essa a sua regra central, de que “para cada ação feminista [haveria] uma reação contrária e de igual intensidade por parte do mito da beleza” (WOLF, 2019, p. 50). Dessa maneira, ele representa “uma violenta reação contra o feminismo, que emprega imagens da beleza feminina como uma arma política contra a evolução da mulher” (WOLF, 2019, p. 26). Algo muito importante nesse aspecto é que o mito da beleza adentra uma pluralidade de esferas da vida das mulheres, podendo exercer, ao mesmo tempo, influência em várias delas, ou até mesmo em todas elas.

E, assim sendo, ele adentra na esfera do trabalho das mulheres, está na cultura, nas religiões, nas relações sexuais, na forma como se alimentam (ou deixam de se alimentar) e, também, com a prática da violência. Ainda, esse poder exercido sobre as mulheres encontraria respaldo não só em uma construção social, ou seja, que é criada e reproduzida dentro das sociedades, mas também no próprio Direito, que tratou a aparência das mulheres como sendo ao mesmo tempo função e culpa delas. O que faz com que esse aja como um dos mecanismos através dos quais o mito da beleza consegue perpetuar, deixando as mulheres sem a possibilidade de realizar uma escolha verdadeiramente livre (WOLF, 2019).

Isso demonstra que embora efetivas mudanças tenham ocorrido para as mulheres, sendo todas elas bastante significativas para a construção e consolidação dos seus direitos, não podendo ser ignoradas, ainda assim, com base nas considerações propostas por Wolf (2019), seria possível dizermos que o mito da beleza continua até hoje exercendo a sua influência no modo de vida das mulheres, tanto na maneira como elas se relacionam umas com as outras, mas também com o restante da sociedade e em suas questões pessoais e íntimas. Uma realidade como essa ajuda a perceber que existe no mito da beleza uma característica que é política e coopera para que as mulheres sejam descartadas enquanto indivíduos.

Nesse aspecto, essa qualidade a que chamamos de “beleza” existiria de um modo que é apontado como universal, estimulando todas as mulheres a encarná-la, pois somente assim poderiam ser desejadas (WOLF, 2019). Ou seja, “a beleza feminina corresponde a um destes mitos fomentadores de dominação, sendo um dos mecanismos que contribuem para a manutenção do patriarcalismo na contemporaneidade” (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019, p. 33). O que faz com que a beleza se torne uma obrigação para as mulheres, mas não para os homens, sendo papel deles tão somente o de lutarem pelas “mulheres belas” (WOLF, 2019).

A beleza, então, é “uma abstração conceitual daquilo que representa algo com valorização positiva na sociedade” (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019, p. 33). Isso, para Naomi Wolf, demonstra que, em realidade, o que a beleza significa é um sistema monetário, e “como qualquer sistema, ele é determinado pela política e, na era moderna no mundo ocidental, consiste no último e melhor conjunto de crenças a manter intacto o domínio masculino” (WOLF, 2019, p. 29). Com isso, o mundo ocidental consegue impor um ideal único de beleza e o coloca como universal e imutável.

Ou seja, esse mito “faz parte de uma variedade de lendas que as sociedades repetem para manter seus sistemas sociais” (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019, p. 40). Isso ocorre como uma reação diante do medo de que as mulheres conquistem mais espaço e, através disso, reivindiquem e conquistem poder. Isso significa que a reação do sistema tem como origem o medo. É o medo de que as estruturas sociais como se encontram sejam modificadas que faz com que o mito da beleza seja compreendido como necessário para a sobrevivência dessa estrutura de poder (WOLF, 2019).

Para além disso, a beleza está relacionada com o valor dos indivíduos do sexo feminino, valor esse que não é medido em moeda, mas sim um valor subjetivo que é utilizado para estimular nas mulheres sentimentos de inferioridade diante das imagens que lhes são impostas de uma aparência física ideal que é veiculada

pela mídia. Assim, a beleza não se trata de um conceito que é objetivo ou até mesmo natural aos seres humanos, mas sim uma ideia que vai sendo cultural e historicamente construída com o propósito de manter e atender interesses que se busca conservar (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019).

Por meio disto, “a beleza se transmuta em uma narrativa mítica, ou seja, um ensinamento perpetuado através de estratégias linguísticas que objetivam moldar a identidade das mulheres de acordo com os padrões estéticos de beleza no decorrer das décadas” (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019, p. 34). Diante disso, o que ocorre é que às mulheres está sendo atribuído um valor, em uma hierarquia vertical e de acordo com um padrão físico que é culturalmente imposto, pois é a cultura que estereotipa as mulheres para que elas se adequem ao mito (WOLF, 2019). Nesse cenário, a beleza se revela como um importante elemento para a manutenção do patriarcalismo, pois demonstrou ser uma ideologia com o poder de controlar as mulheres (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019).

Ao fazer isso, o mito da beleza “expressa relações de poder segundo as quais as mulheres precisam competir de forma antinatural por recursos dos quais os homens se apropriaram” (WOLF, 2019, p. 29). O que faz com que, mesmo depois de tantas lutas, conquistas e importantes alterações legislativas e sociais que elas conseguiram, o mito da beleza continue vivo. Assim, nota-se que por detrás dos conceitos de beleza que foram sendo inventados encontram-se muitas revelações, entre elas a que possui maior impacto é a percepção de ser o conceito de beleza utilizado para a manutenção da cultura dos homens (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019).

Conceito esse que impregnou os corpos e as mentes das mulheres, de modo a fazer com que a beleza seja “um dos poucos mitos que ainda no século XXI tem a força necessária para controlar os corpos das mulheres e subjugá-las a um papel de inferioridade perante o sexo biológico masculino” (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019, p. 41). A beleza, então, não é um padrão biológico, pelo contrário, o seu “significado” vai sendo moldado de modo

cultural a cada período histórico, o que é feito com o objetivo de vincular o valor das mulheres, enquanto seres humanos, ao nível em que elas são capazes de se adaptar e encaixar nesse padrão imposto.

Como proposta de combate ao mito da beleza e os seus efeitos para a vida de todas as mulheres, Naomi Wolf (2019) sugere que essas se certifiquem de que a sua aparência não tenha a menor importância, desde que se sintam bonitas. Pois o problema não é se optam por X ou por Y, mas a autonomia de que se utilizam para isso, se essa escolha é realmente sua ou se ela é produto de uma imposição. Por causa disso, ela entende que para que as mulheres possam ter a aparência que quiserem, criando novos significados para a beleza, seria necessária a terceira onda do feminismo, ainda não ocorrida quando seu texto foi escrito.

A definição de beleza sobre elas precisa partir das próprias mulheres, pois enquanto essa vier “de fora”, as mulheres continuarão a ser manipuladas (WOLF, 2019). Sendo assim, são dois importantes aspectos que devem ser observados diante do objetivo de desconstrução do mito da beleza. O primeiro deles é que os interesses que o mito visa proteger sejam identificados, isto é, quem ou o que se beneficia com a sua manutenção. Em segundo lugar, é preciso analisar se existe uma determinada parcela de indivíduos humanos a qual, especificamente, o mito traz consequências negativas. Identificados esses dois aspectos, deve-se a partir daí serem buscadas formas de desconstrução mítica e cultural (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019).

REFERÊNCIAS

SARTORI, Alana Taíse Castro; SCHNORRENBERGER, Neusa. O processo de dominação dos corpos das mulheres através do “mito da beleza” de Naomi Wolf. Anais do VI Congresso Latino-americano de Gênero e Religião: Vulnerabilidade, Resistência, Justiça, São Leopoldo, v. 6, p. 24-44, 2019. Disponível em: http://www.anais.est.edu.br/index.php/genero/article/view/893

Acesso em: 21 jan. 2022.

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Trad. Waldéa Barcellos. 5. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

97 Doutoranda em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra em Direito, com ênfase em constitucionalismo e democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito de Família e das Sucessões. Especialista em Direito Público. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Advogada (OAB/MG), pesquisadora e professora. E-mail: [email protected].

98 Não só em relação ao que é entendido como belo, mas de modo geral no que diz respeito ao comportamento das mulheres, o mito é utilizado para induzi-las a agirem de uma determinada forma, pois a perfeição, que deve ser por elas almejada, “muda de acordo com as necessidades dos empregadores, dos políticos e, na economia do pós-guerra que dependia de um crescimento exponencial do consumo, dos anunciantes” (WOLF, 2019, p. 100). Assim, o objetivo do mito da beleza não é “a hegemonia dos padrões estéticos, mas sim dos padrões comportamentais” (SARTORI; SCHNORRENBERGER, 2019, p. 39).

99 Sobre isso, ao tratar sobre a mulher no mercado de trabalho (uma das esferas trabalhadas por Wolf), do ponto de vista da modernidade e sem levar em consideração a escravização das mulheres negras, a autora nos lembra de uma questão extremamente relevante e para a qual o mito da beleza foi crucial, que é a criação de cada vez maiores e mais poderosos empecilhos que as impedissem de conquistar algum espaço. E, dessa forma, “o mercado de trabalho refinou o

mito da beleza como uma forma de legitimar a discriminação das mulheres no emprego” (WOLF, 2019, p. 40). Ou seja, o mito atua em diversas esferas na vida das mulheres e influencia na conquista de seus direitos, entre eles especialmente a liberdade.

ONDAS FEMINISTAS

Bianca Tito¹

Ao longo de sua história, marcada por avanços e retrocessos, o movimento feminista defendeu diferentes pautas em favor dos direitos civis, políticos e sociais das mulheres, as quais foram reivindicadas como meio para que a emancipação feminina fosse conquistada, tendo os seus direitos legalmente previstos e protegidos (TERRA; TITO, 2021). Essa história, tendo em vista que em determinados momentos uma pauta específica acabou por chamar mais atenção do que outras, é, até mesmo por questões didáticas, narrada como uma sequência de ondas (PIMENTEL; BIANCHINI, 2021).

As ondas feministas nas quais se divide o movimento feminista significam períodos nos quais algumas das particularidades mais marcantes do movimento predominaram e, assim, obtiveram maior destaque do que outras, dominando o debate da época. Essas ondas, portanto, indicam um momento histórico no qual houve grande agitação militante e/ou acadêmica em prol de uma pauta específica que se sobressaiu entre as demais. Diante disso, dado o fato de, ao longo da história, as mulheres terem se organizado em diferentes momentos, esses ficaram conhecidos como ondas feministas (SANTIAGO, 2020).

Embora os feminismos tenham se estabelecido em diversos lugares, fazendo com que as suas interações e inspirações sejam diferentes em todo o mundo, sob a perspectiva do feminismo ocidental, aqui abordada, é possível destacarmos que as suas ondas se dividem em quatro (TERRA; TITO, 2021). No entanto, destacase que antes do surgimento da primeira onda, que teve início com a organização do movimento feminista e foi marcada pelas demandas sufragistas, já existiam discussões em torno dos direitos das mulheres, eis que, no ocidente, desde o final do século XIX até a metade da década de 1950, elas reivindicavam por direitos iguais aos homens (PIMENTEL; BIANCHINI, 2021).

É durante a segunda metade do século XIX e início do século XX que,

objetivando reivindicar seus direitos, as mulheres passam a se reunir de modo organizado (PIMENTEL; BIANCHINI, 2021). Isso marca o primeiro momento em que há uma grande organização entre as feministas. As suas primeiras manifestações buscavam que seus direitos políticos fossem reconhecidos, de modo que, assim como era garantido aos homens, elas também pudessem votar e ser votadas. A busca para que seus direitos políticos fossem reconhecidos fez com que elas ficassem conhecidas como “sufragistas” e marca o momento que é compreendido como a primeira onda feminista (ALVES, 2019).

Surgido inicialmente na Europa e nos Estados Unidos, o movimento das sufragistas representou uma campanha mais acentuada por parte das mulheres pelos seus direitos políticos e é entendido como o primeiro momento no qual, enquanto um movimento organizado, elas se reuniram para reivindicar por seus direitos (ALVES, 2019). Da mesma maneira, no Brasil é a reivindicação pelos seus direitos políticos que marca uma primeira fase organizada do movimento feminista brasileiro, sendo esse um de seus principais eixos e tendo representado um importante avanço no que diz respeito ao princípio da isonomia entre homens e mulheres (TERRA; TITO, 2021).

Isso significa que “a primeira onda feminista se refere a movimentos articulados, em diversas partes do mundo ocidental, reivindicando o direito ao voto, desde o final do século XIX, até a década de 1920” (PIMENTEL; BIANCHINI, 2021, p. 28). Nesse período, as reivindicações das mulheres buscavam o direito de participar da vida pública, o que se deu de modo mais específico na demanda por seus direitos políticos. Elas desejavam uma efetiva participação na vida política, da qual eram excluídas, ficando confinadas apenas ao ambiente doméstico (SILVA, 2019). Por essa razão, o direito de votar e ser votada pode ser compreendido como tendo uma enorme importância na luta das mulheres pela igualdade de gênero (TERRA, 2022).

Posteriormente a esse momento, obtido o direito ao voto e diante de uma sensação de que já haviam conquistado tudo que precisavam, o movimento feminista passou por um período de esvaziamento. Foi nas décadas de 1960 e

1970 que os debates feministas ressurgiram com a reivindicação de que o trabalho da mulher fosse valorizado, bem como seu direito ao corpo e ao prazer. Há, então, um novo feminismo, que agora passa a apresentar demandas para além dos direitos políticos, econômicos e educacionais, se preocupando também em destacar questões ligadas a sexualidade, ao corpo feminino e aos direitos reprodutivos, bem como as violências, opressões e discriminações de gênero (PEDRO, 2018).

Esse período marca a segunda onda feminista, que trouxe como debate central o fato de ser homem ou ser mulher não se referir a “um destino determinado biologicamente, mas antes uma construção social”, havendo, por isso, uma atribuição de “caráter sociocultural às diferenças existenciais entre os sexos” (PIMENTEL; BIANCHINI, 2021, p. 32). Sendo assim, a segunda onda procurava questionar as relações de poder entre homens e mulheres e as estruturas sexistas, discutindo as discriminações as quais eram submetidas as mulheres e as desigualdades culturais existentes (MIGUEL; BIROLI, 2014).

É sob essas circunstâncias que o movimento feminista se expande pelo mundo e se inicia um período que esteve marcado pela presença dos movimentos sociais. Aquelas ideias tradicionais sobre o que seria ideal para as mulheres vão perdendo espaço para um novo pensamento feminista que surge nesse momento. São, portanto, as ideias surgidas e defendidas durante a segunda onda do movimento feminista que acabam por exercer uma forte influência no surgimento da próxima onda (TERRA; TITO, 2021). A partir do início da década de 1990, as feministas passaram a se ocupar em questionar o próprio movimento, é nesse período que pode ser identificada a terceira onda feminista (MIGUEL; BIROLI, 2014).

Isso se deu porque elas perceberam que os estudos feministas abordavam experiências que representavam um grupo muito específico de mulheres, isto é: mulheres da classe média e brancas. Esse tipo de questionamento já havia ocorrido anteriormente, porém foi somente com a terceira onda que a questão ganhou notabilidade, fazendo com que, naquele momento, as mulheres

envolvidas com o movimento feminista fizessem críticas as ondas anteriores (MIGUEL; BIROLI, 2014).

Por conseguinte, é possível identificar que a terceira onda surge tendo uma característica muito questionadora, se dispondo a discutir definições genéricas até então predominantes e os discursos feministas que tomavam em consideração apenas as “experiências vividas por mulheres brancas integrantes de uma classe economicamente privilegiada da sociedade” (SILVA, 2019, p. 19). Buscando que as diversas identidades femininas fossem reconhecidas, essa onda se empenhou em entender as falhas ocorridas na onda anterior, questionando o sentido de mulher que naquela foi levantado, dado que nele prevalecia “uma noção de mulher universal e indiscriminada, resumida essencialmente no seu sexo” (SILVA, 2019, p. 19).

É nesse cenário que o conceito de interseccionalidade ganha destaque. Desenvolvido por Kimberlé Crenshaw (2002), a autora defende a ideia de que as distintas formas de opressão existentes em nossa sociedade produzem distintas formas de desigualdade, pois não são somente as opressões de gênero que afetam as mulheres, existindo também outros fatores, como raça, classe, orientação sexual e nacionalidade, entre outros, que igualmente influenciam as suas vidas e geram consequências na forma como são vistas e tratadas em sociedade. Nesse sentido, o que faz o conceito de interseccionalidade é procurar capturar essas diferentes formas de opressão, tomando em consideração a interação que ocorre entre os distintos eixos de subordinação.

Acontecendo atualmente, aparece a quarta onda feminista, que possui características bastante específicas, pois é fortemente marcada pela presença da internet, que juntamente ao uso das redes sociais e do ativismo digital a potencializou e, por essa razão, é até mesmo chamada de “feminismo das hashtags”. Há, inclusive, autoras que entendem ser a quarta onda feminista uma onda digital, pois é através do meio digital que tem ocorrido os debates e mobilizações que, individual ou coletivamente, transformaram a internet em um importante instrumento que auxilia na difusão de denúncias, pautas e

reivindicações (PIMENTEL; BIANCHINI, 2021).

Nesse sentido, a internet se torna um meio fundamental a ser utilizado para a divulgação de causas importantes para as feministas, bem como para que apresentem as suas reivindicações e consigam se organizar em torno de determinadas mobilizações. Há, com isso, um notório auxílio por parte da internet na mobilização feminista, que consegue através dela propagar as suas pautas e buscar alterar a realidade por meio de uma mudança cultural e da desconstrução de estereótipos sexistas e machistas que ainda se fazem tão presentes socialmente (RODRIGUES; GADENZ; RUE, 2014). Isso se dá também pelo fato de ser essa onda “caracterizada principalmente pelo uso maciço das plataformas de redes sociais” (SILVA, 2019, p. 28).

“O uso massificado das redes sociais e da tecnologia potencializou maior alcance e intercomunicação das vozes das mulheres permitindo uma verdadeira explosão do ativismo digital. Nasce, assim, o ciberfeminismo” (PIMENTEL; BIANCHINI, 2021, p. 60). Em um cenário como esse entende-se que a internet surge para os feminismos atuais como uma verdadeira aliada, dada a possibilidade que oferta as feministas para que “ampliem os seus espaços de troca, em que as mulheres possam ter suas vozes mais amplamente divulgadas e que, consequentemente, suas pautas e discussões tenham um maior alcance” (TERRA; TITO, 2021, p. 70).

É a partir dessa divisão das ondas feministas que “a teoria feminista faz um recorte histórico sobre as principais reivindicações das mulheres” (TERRA; TITO, 2021, p. 71). De modo que é possível compreendermos que os feminismos são movimentos que buscaram reivindicar os direitos das mulheres e que, ao fazê-lo em contextos históricos específicos, ficaram conhecidos como ondas feministas. Os direitos das mulheres não são fruto de uma conquista espontânea, mas sim de um longo processo histórico marcado por lutas e reivindicações que pediam que esses fossem reconhecidos, o que fez com que cada momento específico na história contribuísse para que a cidadania feminina fosse reconhecida e que a garantia dos direitos das mulheres avançasse.

REFERÊNCIAS

ALVES, Branca Moreira. A luta das sufragistas. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.

MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014.

PEDRO, Joana Maria. Corpo, prazer e trabalho. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Org.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2018.

PIMENTEL, Silvia; BIANCHINI, Alice. Feminismo(s). São Paulo: Matrioska, 2021.

SANTIAGO, Bruna. O que são as ondas do feminismo? Entenda um pouco da história do feminismo, e como chegamos até aqui. Rev. Digital QG Feminista, n. 11, fev. 2020. Disponível em: https://medium.com/qg-feminista/o-que-são-asondas-do-feminismo-eeed092dae3a Acesso em: 14 jan. 2022.

RODRIGUES, Alexsandra Gato; GADENZ, Danielli; RUE, Letícia Almeida de la. Feminismo.Com: O movimento feminista na sociedade em rede. Derecho y Cambio Social, 2014.

SILVA, Maria Jacilene. Feminismo na atualidade: a formação da quarta onda. Recife: Independently published, 2019.

TERRA, Bibiana. A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: o movimento feminista e a participação das mulheres no processo constituinte de 1987-1988. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

TERRA, Bibiana; TITO, Bianca. As ondas feministas e os direitos das mulheres: uma análise das suas reivindicações e conquistas. In: JUNGES, Fábio César [et al] (Org.). Das fissuras históricas às questões atuais na perspectiva das práticas socioculturais. Cruz Alta: Ilustração, 2021.

100 Doutoranda em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra em Direito, com ênfase em constitucionalismo e democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito de Família e das Sucessões. Especialista em Direito Público. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Advogada (OAB/MG), pesquisadora e professora. E-mail: [email protected].

PACTO HETEROCISNORMATIVO

Grazielly Alessandra Baggenstoss¹ ¹

O pacto heterocisnormativo consiste em consensos e práticas deles derivadas sobre a forma de existência, afetividade e convivência das relações sociais pautada na heterossexualidade e na cisgeneridade ¹ ². Caracteriza-se como um comprometimento das pessoas a agirem, consigo e com as demais pessoas, de modo a reforçar a heterocisnormatividade. Desses consensos, há, invariavelmente, a oposição às realidades não-heterocisnormativas.

As práticas e as formas seguidas nas relações sociais condizem com a ideia de performatividade de um gênero em específico. O gênero, nesse sentido, é praticado, ou produzido, a partir de diversos modos regulados por uma determinada estrutura simbólica rígida e hegemônica, cujas normas identificam e regulam os corpos. A performatividade consiste na repetição dessas práticas, o que produz uma ilusão de substância naquilo que é, somente, forma (BUTLER, 2018). Nessas práticas e em sua rede enunciativa, o gênero também é negociado. Enquanto praticado, é uma ação com um determinado sentido. Uma ação que é dirigida a um outro; uma relação, portanto. Um corpo que se relaciona com o(s) outro(s) e se negocia, em sua agência e com seus limites. A agência do sujeito, ou sua capacidade de ação, é constituída pela própria dinâmica do poder, e pode apresentar limitações, seja, as características da estrutura física do indivíduo, ou, ainda, limitações condicionadas “à renovação pela ação da própria pessoa, de forma implícita e inconsciente, nos novos atos que se passam a repetir” (FURLIN, 2013; e BUTLER, 2015). Esses consensos e práticas são orientadas por lógicas complexas e variantes organizadas por normas de gênero. As normas de gênero são, por sua vez, compreendidas como determinações institucionais ou socialmente obrigatórias, que nos direcionam a fazer um gênero ou outro, a partir da matriz binária (BUTLER, 2016). Por isso que a reprodução do gênero é sempre uma negociação com o poder, de forma que represente o cumprimento de determinadas normativas ou não. É no desfazimento ou refazimento de tais normas que se localizam os critérios de intelegibilidade dos modos de existência ou convivência.

As normas de gênero, assim, organizam as lógicas que integram o pacto heterocisnormativo: a heteronormatividade e a cisnormatividade. A heteronormatividade é o conjunto de normas “[...] que regula, justifica e legitima a heterossexualidade como uma forma de sexualidade mais natural, mais válida e mais normal em detrimento das outras, vistas como negativas e inferiores” (OLIVEIRA, 2017, p. 15). A heteronormatividade opera em uma lógica de regular os corpos em uma funcionalidade heterossexual, validando tal modelo de sexualidade como a mais legítima ou a única permitida (OLIVEIRA, 2017). A cisnormatividade, por sua vez, pauta-se pela cisgeneridade como a forma legítima ou mais adequada de vida. Sua definição, no meio jurídico brasileiro em que tais questões são abordadas, é repetidamente ventilada como a indicação de correspondência da identidade de gênero que fora atribuída a uma pessoa quando do seu nascimento, em virtude da observação e associação com a genitália da criança – fixando, aí, a identidade de gênero no sexo. No entanto, essa compreensão é rasa e permeada por enunciados como “nascido no corpo errado” e na ideia de supremacismo de quem é cisgênero. A cisgeneridade, portanto, não é tão somente uma qualificação ou operador analítico, mas é também um “posicionamento epistêmico+político” (VERGUEIRO, 2016, p. 257). Nessa ótica, a cisgeneridade pode ser pensada em três dimensões: a pré-discursiva, composta por normativas que definem sexos e gêneros de acordo com um entendimento do corpo; a binária, caracterizará, de forma reduzida, o corpo em feminino ou masculino; e a de permanência, que pretende a fixação de determinados comportamentos a um sexo específico a partir da identificação dos corpos em “normais”, “ideais”, “congruentes” ou “padrão” (VERGUEIRO, 2016).

O modelo normativo cis e hetero, assim, são emulados como naturais e, portanto, compulsórios (RICH, 1993), o que se integra à ideia de complementariedade entre homem cis e mulher cis, conforme defendido pelo projeto humanista moderno, especialmente pelo Estado e pela Igreja Católica/Cristã. Por consequência, essa complementariedade naturalizada organizará a família moderna, inventada em uma subjetivação da mulher cis, branca e burguesa na dependência econômica das mulheres aos homens e na busca do modelo ideal de feminilidade, devendo a mulher ser esposa submissa, passiva, obediente, preocupada com a casa, e boa mãe (FEDERICI, 2017). Ainda, como um efeito e uma das condições de possibilidade da heteronormatividade, tem-se a homonormatividade, como uma dimensão daquela ao buscar a adesão de sujeitos

da comunidade LGTB+ no enquadramento heteronormativo (OLIVEIRA; COSTA; NOGUEIRA, 2013; e LASIO; SERRI; IBBA; OLIVEIRA, 2019). A homonormatividade pode aparecer no contexto quando indivíduos, apesar de se identificarem como dissidentes da heterossexualidade, parecem emular normas do campo de pesquisa ao não demonstrarem reflexão aprofundada sobre a heterossexualidade compulsória, nem a cisgeneridade compulsória.

As práticas aqui mencionadas também se relacionam com outras referências de hierarquia social, como raça, posição de classe, etnia (OLIVEIRA, 2017). Desse modo, o termo heterocisnormatividade é entendido como um conjunto de normas sociais relacionados à heteronormatividade e à cisgeneridade reconhecidas como pontos de partida de análise, não excluídas outros critérios de análise de discriminação social.

A heterocisnormatividade produz a formação imaginária de qual gênero a pessoa deveria praticar e, por consequência, do que seria ou do que deveria ser um homem e do que seria ou deveria ser uma mulher, partindo do seu espectro biológico (o que seria aceito como “sexo”). Esses significantes constituem subjetividades, atravessam a intersubjetividade e, por fim, organizam os espaços sociais e políticos de convivência. Esse imaginário de homem e de mulher, nessa perspectiva, seriam ideais a serem alcançados e, entre si, seriam complementares em uma justificativa biológica naturalizante (WITTIG, 2006). Como sectário, qualquer oposição a esse entendimento de organização política, tido como fato natural, é refutado como “algo contrário à natureza” ou, para os adeptos a algum fundamentalismo religioso, como “blasfêmia”, “heresia” ou “pecado”, o que caracteriza uma forma de interditar o debate com argumentos metafísicos e ideológicos. A justificativa biológica ou divina, então, conformada como fato natural, esconde em si as operações políticas práticas, subjetivas e cognitivas que formam a relação mulher-homem na ordem social. Na complementariedade havida na relação mulher-homem, a compreensão do que é mulher é feita a partir de uma orientação econômica, política e ideológica, orientada pelas diretrizes do que for direcionado pelos homens. Em tal concepção, essa mulher torna-se um ideário a ser alcançado pelas mulheres, as quais são os produtos reais da relação social.

O argumento biológico é sustentado a partir da ideia de heterossexualidade como única possibilidade de orientação sexual. Rubin denominará tal compreensão como “heterossexualidade obrigatória”, no sentido de organização social implica que a unidade econômica mínima e viável seja um casal homem-mulher, instituindo uma divisão sexual do trabalho (produção e reprodução) que implica uma dependência entre os sexos (OLIVEIRA, 1975). É o que Adrienne Rich (1993) e Judith Butler (2018) denominarão, ressalvados os sentidos teóricos específicos, de heterossexualidade compulsória. A compulsoriedade constitui-se como a ideia de que a heterossexualidade seria a única forma de expressão da sexualidade, o que é reforçado pelas tecnologias de gênero, como a mídia, as instituições religiosas, e o próprio Estado, que produzem regimes de verdade de significações sobre o que é ser um determinado gênero (homem ou mulher). Há, então, um complexo e coercitivo conjunto de condicionamento social em direção à heterossexualidade e à cisgeneridade – se o argumento biologizante fosse legítimo, tais condicionamentos não seriam necessários (WITTIG, 2006).

As tecnologias de gênero (LAURETIS, 1994), portanto, são instituições sociais que atuam como sistema normativo definindo subjetividades. Integram, em rede de sentidos, um sistema de condicionamentos, como o direito, a mídia, a família, a religião. A heterossexualidade, então, pode ser observada como forma de instituição política e que introduz a questão de modos das normas da sexualidade (OLIVEIRA, 2017), por meio da heterocisnormatividade. Tais normas produzem sujeitos heterossexuais, cuja condição sexual não é questionada, pois se pressupõe a sua universalidade, o que acarreta a invisibilização de existências que não condigam com essa ordem (WITTIG, 2006).

A heterocisnormatividade formata a estruturação de um sistema relacional a partir do sexo-gênero como forma de economia política, em que a divisão sexual e social do trabalho constrói o sistema de gênero. Há, assim, a alocação dos corpos de acordo com seu gênero (RUBIN, 1975). Entre homens e mulheres, nessa política econômica, há uma assimetria de poder, visto que as mulheres são comodificadas, ou seja: pessoas que são categorizadas e organizadas a partir de um viés produtivo. Como consequência, podem ser transformadas em

mercadoria e passíveis de troca entre os homens (OLIVEIRA, 2017). O ser mulher, portanto, é produto de uma determinada economia política comodificada e resulta de processos sociais. Nesses termos, a questão pode parecer subjetiva e individual, mas denota como a sociedade está organizada política, econômica e ideologicamente. Nesse cenário, Wittig alerta, assim, que os obstáculos supostamente subjetivos, individuais ou privados são, na verdade, problemas sociais. Aí, considera-se que a sexualidade não é somente uma expressão individual e subjetiva, mas pode ser lida como uma instituição social de violência (WITTIG, 2006), que, por sua vez, se apoia no pacto heterocisnormativo.

Para a manutenção da mulher no espaço heterocisnormativo, os condicionamentos e coerções sociais produzem uma figura imaginária que se traduz em uma mulher ideal, supostamente ancorada em uma ideia de natureza feminina. Em tal formação imaginária, as mulheres são persuadidas a corresponder, característica por característica, a ideia de natureza que foi estabelecida pela heterocisnormatividade. A perversão dessa ideia acarreta a visão de que o corpo deformado seria o natural. Assim, corpo e mente das mulheres são convencidos nesse sistema, que considera que a divisão entre homem e mulher é natural e que as mulheres devem ser pensadas na coletividade, no sentido de que não haveria diferença entre elas, já que o ideal deveria ser alcançado por todas pela ficção universalista.

Todas as mulheres, a partir dessa lógica, seriam heterossexuais; encontrarem seu par complementar (o homem), o que pressuporia que todas deveriam cogitar serem atraentes esteticamente para o gênero oposto; serem mães (pela falácia da destinação biológica); serem boas mães; além de outras características como docilidade, fragilidade, ternura, etc. Essa construção, sofisticada e mítica, reinterpreta traços físicos – em si mesmos neutros, mas marcados pelo sistema social – por meio da rede de relações nas quais elas são vistas, a fim de que as mulheres cumpram uma determinada lógica na economia política, o que somente é possível quando a consciência e o corpo das mulheres estão apropriados pelo mito da mulher.

Assim, as mulheres atuariam fomentando o pacto heterocisnormativo, desenvolvendo feminilidade que seja correspondente às normas mencionadas. No campo das relações sociais, então, será observado, ao reconhecer esse panorama discriminatório, que as mulheres heterocisnormativo invisibilizem as mulheres dissidentes de seu pacto. A questão pode parecer subjetiva e individual, mas denota como a sociedade está organizada política, econômica e ideologicamente (WITTIG, 2006). A lógica racial e de gênero, que estrutura o Estado Brasileiro, é pautado pela heterocisnormatividade e pela branquitude; realidades diversas serão secundarizadas ou invisibilizadas pelo discurso estatal. Os processos relacionais, assim, são legitimados por essa mesma lógica. Portanto, a família sobre a qual se fala, como discurso hegemônico, é a família heterocisnormativa. O reconhecimento estatal, a partir da formação da subjetividade jurídica, também se refere, limitadamente, às pessoas que se enquadram nessa cena.

REFERÊNCIAS

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BUTLER, Judith. Corpos que ainda importam. In: COLLING, L. Dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EdUFBA, 2016.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Trad. Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

FURLIN, Neiva. Sujeito e agência no pensamento de Judith Butler: contribuições para a teoria social. Sociedade e Cultura, [S. l.], v. 16, n. 2, 2014. Disponível em: https://revistas.ufg.br/fcs/article/view/32198 Acesso em: 14 fev. 2022.

LASIO, Diego; SERRI, Francesco; IBBA, Isabella; OLIVEIRA, João Manuel de. Hegemony and heteronormativity: homonormative discourses of LGBTQ activists about lesbian and gay parenting. Journal of Homosexuality, 66 (8), 2019, 1058-1081. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30052152/ Acesso em: 12 fev. 2022.

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Coord.). Tendências e impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

OLIVEIRA, João Manuel de; COSTA, Carlos Gonçalves; NOGUEIRA, Conceição. The workings of homonormativity: Discourses of lesbian, gay, bisexual and queer people on discrimination and public display of affections in Portugal. Journal of Homosexuality, 60, 2013, 1475–1493. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/24059969/ Acesso em: 12 fev. 2022.

OLIVEIRA, João Manuel de. Desobediências de gênero. Salvador: Devires, 2017.

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gay studies reader. London, Routledge, 1993.

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RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on de ‘political economy’ of sex. In: REITER, Rayna. Toward and anthropology of women. New York: Monthly Review Press, 1975.

VERGUEIRO, Viviane. Pensando a cisgeneridade como crítica decolonial. In: MESSEDER, S.; CASTRO, M. G.; MOUTINHO, L. (Orgs.). Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero [online]. Salvador: EDUFBA, P. 249-270, 2016. Disponível em: https://books.scielo.org/id/mg3c9/pdf/messeder-9788523218669-14.pdf Acesso em: 14 fev. 2022.

WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensayos. Barcelona: Egales, 2006.

101 Professora do Curso de Graduação e dos Programas de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil. Doutora e Mestra em Direito. Pesquisadora no campo de Direito e Feminismos, Teoria e Ética Política, Psicologia Social com ênfase em estudos de gênero e feminismos.

102 O conceito foi desenvolvido, inicialmente, no artigo “A subjetividade jurídica e o pacto heterocisnormativo”, publicado na Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 9, n. 2, p. 105-119, jul. 2021. Para este trabalho, são corrigidas questões fundamentais, como a lógica normativa da cisgeneridade. Este verbete foi, assim, mais bem organizado nos estudos de doutoramento em psicologia da sua autora.

PARIDADE DE GÊNERO NA POLÍTICA

Gabriela Maria Barbosa Faria¹ ³

Nas últimas décadas a participação dos movimentos feministas e de mulheres na configuração das sociedades latino-americanas tem ganhado cada vez mais espaço e destaque, o que resultou em uma maior promoção de igualdade entre mulheres e homens em todas as esferas sociais. Porém, apesar dos inúmeros avanços, o espaço político ainda continua sendo uma das áreas onde a desigualdade se mostra extremamente presente, sendo inúmeros os mecanismos que têm restringido as mulheres de acessarem e participarem de maneira plena e efetiva desses espaços (NAKAMURA, 2018, p. 44).

Desse modo é importante aludir que ainda existem inúmeras barreiras ligadas a uma cultura patriarcal, que se expressa em um desigual acesso entre homens e mulheres em diversos âmbitos e espaços da sociedade, principalmente nos espaços de tomada de decisão, sendo necessária a realização de reformas legislativas e a implementação de políticas públicas, de maneira a tentar superar essas barreiras impostas e fortalecer uma participação em igualdade de condições entre homens e mulheres (BAUTISTA, 2021, p. 109).

Isto posto, nas últimas décadas diversas medidas foram sendo tomadas para a resolução dessa problemática, para que dessa forma mais mulheres tenham, cada vez mais, oportunidades de ocuparem espaços de poder e de tomadas de decisões. Assim, diversos países vêm implementando medidas afirmativas de modo a tentar reduzir essas desigualdades entre homens e mulheres na arena política, pois:

(...) elas são, afinal, parte fundamental das democracias, não apenas como indivíduos, mas também como grupo influente, como coletivo que se mobiliza, se organiza e organiza ainda outros grupos, que luta para realizar suas justas aspirações e seus desejos de autonomia e libertação. É essencial, pois, que as mulheres possam participar em todas as áreas da vida pública e institucional: na

sociedade civil, nos partidos políticos, nos processos eleitorais e também nos órgãos de governo (MATOS, 2020, p. 109).

A necessidade de garantir as mulheres condições efetivas de participação nos espaços de poder foi pauta em diversas resoluções e conferências internacionais. Diante disso, cabe destacar o impacto e a influência de documentos como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em 1979, a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim em 1995 e o Plano 50/50, da Organização das Nações Unidas (ONU).

Mas foi a partir de 2007, após a 10ª Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, realizada pela Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL), mais conhecida como Consenso de Quito, que a difusão da paridade de gênero na região prosperou (ONU MULHERES, 2018, p. 11). Esse Consenso repercutiu de maneira positiva em toda a América Latina, permitindo um maior ganho de legitimidade sobre a presente questão nas agendas políticas governamentais.

Assim, dentre os países pertencentes à região, sete já incorporaram a paridade de gênero em seus ordenamentos jurídicos, sendo eles: Bolívia (2008), Equador (2008), Costa Rica (2009), Honduras (2012), Nicarágua (2012), Panamá (2012) e México (2014). Isso demonstra que apesar das diversas barreiras e mecanismos apresentados para a promoção da igualdade de gênero, a América Latina manifesta um contexto favorável a implementação de novas legislações em seus países.

Porém, é importante salientar que apesar de todos esses países terem implementado a paridade de gênero em suas legislações e constituições, cada país apresenta especificidades próprias e diferentes sistemas eleitorais, o que resulta em uma implementação diversa em cada um dos países. Sendo assim, em alguns desses, a paridade de gênero na política foi constitucionalizada e em outros foi somente implementada em leis infraconstitucionais.

Diante disso, pode-se compreender que em cada um desses países a paridade de gênero assume um papel de funcionamento diferente, de acordo com o arranjo político-eleitoral ao qual encontra-se inserido. Assim, seus efeitos são diversos e sua efetividade se define a partir do sistema eleitoral que se encontra imposta, o que resulta em diferenças quanto a sua implementação, aplicação e quanto a sanção ao seu descumprimento (PÉREZ, 2015, p. 99).

Contudo, cabe destacar que os avanços conquistados são visíveis e extremamente positivos em todos os países. A paridade de gênero, portanto, permite enfrentar questões e problemas que há décadas pareciam impossíveis de serem solucionados. Sendo assim, essa pode ser compreendida como um direito de ambos os sexos/gêneros de gozarem das mesmas oportunidades, sem que haja qualquer tipo de distinção ou diferenças de tratamento (DÍAZ; BECERRIL, 2020, p. 93).

Vale destacar que a paridade de gênero não é tão somente uma medida afirmativa que será derrogada quando tiver alcançado seus resultados e objetivos. Pelo contrário, a paridade não é uma medida temporária, é uma medida permanente, que tem por objetivo estabelecer iguais condições de participação entre homens e mulheres, redefinindo todo o espaço político, remodelando-o como um espaço que deve ser compartilhado de maneira igualitária entre homens e mulheres (ALBAINE, 2015, p. 147).

Essa estratégia, na esfera política, pretende compor diversas instâncias e órgãos decisórios de maneira paritária em termos de sexo/gênero. Estabelecendo, então, que esses espaços públicos devem ser integrados, igualmente, por 50% de representantes do sexo feminino e 50% por representantes do sexo masculino, de modo a buscar alcançar a igualdade no exercício do poder (CORREA, 2021, p. 37).

Diante disso, a implementação da paridade de gênero reformula toda a arena do poder político, demonstrando que a necessidade de sua aplicação nesses espaços vai muito além do que somente uma proposta de participação equilibrada entre mulheres e homens. A paridade, então, é uma estratégia de acesso voltada para a superação histórica e estrutural que mantém as mulheres fora desses locais. É reconhecer que as sociedades são diversas e que quanto mais grupos minoritários houver ocupando esses espaços de poder, mais políticas públicas e legislações serão promulgadas refletindo a realidade daquela localidade (MARTELOTTE, 2016, p. 92).

Por fim é importante aludir que a implementação da paridade de gênero não é um fim, mas sim o primeiro passo para que as mulheres possam exercer seus direitos de maneira plena, pois para avançar é necessário que outras medidas transversais sejam tomadas para que seja efetivo o cumprimento da paridade, sendo necessário garantir também que as mulheres, após eleitas, consigam exercer seus direitos políticos de maneira plena, livre de violência ou discriminação e em igualdade de condições com os homens.

REFERÊNCIAS

ALBAINE, Laura. Obstáculos y desafíos de la paridad de género. Violencia política, sistema electoral e interculturalidad. Íconos-Revista de Ciencias Sociales, n. 52, p. 145-162, 2015.

BAUTISTA, María Magdalena Sam. Los derechos político-electorales de las mujeres en México: algunas reflexiones sobre sus desafíos. Pluralidad y Consenso, v. 11, n. 47, 2021.

DÍAZ, Carlos Muñiz; BECERRIL, Gisel Pérez. Paridad de género de los derechos políticos en México. Revista Especializada en Investigación Jurídica,

Juárez, ano 4, n. 6, jan./jun. 2020. Disponível em: https://erevistas.uacj.mx/ojs/index.php/reij/article/view/3490/3009 Acesso em: 8 fev. 2022.

MATOS, Marlise. Mulheres e a violência política sexista: desafios à consolidação da democracia. In: BIROLI, Flávia [et al]. (Org.). Mulheres, poder e ciência política: debates e trajetórias. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.

NAKAMURA, Luis Antonio Corona. La paridad en la participación política de las mujeres en México, bajo la tutela del derecho constitucional y convencional. Misión Jurídica: Revista de Derecho y Ciencias Sociales, Bogotá, v. 11, n. 15, jun./dez. 2018.

PÉREZ, Senadora Lucero Saldaña. La paridad en México, un motor de cambios y un compromiso compartido. Pluralidad y Consenso, Cidade do México, v. 5, n. 24, 2015. Disponível em: http://revista.ibd.senado.gob.mx/index.php/PluralidadyConsenso/article/view/35/34 Acesso em: 08 fev. 2022.

ONU MULHERES. Marco normativo para consolidar a democracia paritária. 2018.

CORREA, Lorena Vázquez. Paridad en todo¿ya?: avances y pendientes en la armonización local, reglamentación e instrumentación del principio constitucional. Pluralidad y Consenso, Cidade do México, v. 11, n. 47, p. 36-49, jan./mar. 2021.

103 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pósgraduanda em Direitos Humanos e Interseccionalides pela Escola Mineira de Direito (EMD). E-mail: [email protected]

PATRIARCADO

Ana Paula Lemes de Souza¹ ⁴

Dentro dos debates feministas, uma das palavras mais polêmicas, polissêmicas e também controversas é o patriarcado. O conceito já teve papel, senão central, ao menos de notável relevância para as teorias feministas, enquanto, em outros momentos, teve o seu uso abolido ou a sua importância menorizada. Independente dessas flutuações de sentido, os debates em torno desse conceito continuam produzindo diferenças para os feminismos.

No sentido de Barros (2016, p. 26), um conceito é uma expressão verbal que passa a ser “operacionalizada sistematicamente no interior de certo campo de saber ou de práticas específicas”. No caso do feminismo, trata-se de entender como o seu campo de estudos e suas práticas sistematizaram a expressão patriarcado, convertendo-a em repertório analítico e instrumental, que, embora poroso, tem as funções elaboradas, reelaboradas e mobilizadas dentro do arsenal conceitual, que é histórico, mas, também, produtor de diferenças históricas.

O patriarcado tem sido entendido, com maior estabilidade conceitual, como o sistema político, legal ou de organização societária, em que há o predomínio da figura do pai (pater). Contudo, não é o mesmo que sociedade patrilinear, que é o modelo em que a linhagem e a descendência operam por precedência da parentela masculina. Há, no primeiro termo, a articulação de um conceito que se difere, qualitativamente, por ser mais robusto, englobando outras questões para além do sentido antropológico da parentela, referindo-se às formas de exercício de poder que colocam o homem em lugar de prestígio.

Etimologicamente, o patriarcado se trata da conjunção entre pater (pai) e arkhé (origem/mandato/autoridade), tratando-se, na tradução literal, do modelo de autoridade do pai, indicando a centralidade do poder exercido pelo gênero masculino. Por englobar o sentido de origem, compreende-se como o termo se articula, delimitando, simbolicamente, os âmbitos da feminilidade e da

masculinidade, no molde de oposição hierárquica, tal como esboçado por Dumont (2008, p. 370), com o uso da distinção homem/mulher em um sentido opositivo, onde um elemento engloba o seu contrário.

O patriarcado afigura, enquanto conceito, a colocação da masculinidade no lugar do neutro, e a feminilidade no lugar do “outro”, sendo esse o sentido contemporâneo do termo. Incorporado e reinterpretado pela teoria feminista, representa o modelo de domínio do sexo masculino sobre o feminino, criador de ontologias e estabilizador de categorias, composto por associações que duraram e se estenderam na história do ocidente, criando padrões estruturantes suportados por práticas discriminatórias, técnicas, linguagens e opressões diversas.

Enquanto pressuposto semântico, falar em patriarcado compreende o sexo em sua dimensão biopsicossocial, que opera na produção das subjetividades, por modelos de individuação, correspondendo ao conjunto de práticas e discursos que constroem, semanticamente, o masculino e o feminino.

A construção da subjetividade atua, conjuntamente, com outras produções de ontologias, sendo as três mais destacadas a raça, oriunda do colonialismo, a classe, oriunda do capitalismo e o gênero, oriundo do patriarcado. Ou ainda, brincando com texto clássico de McClintock (2003), ao explorar a invisibilização do trabalho doméstico por parte do capitalismo moderno, através do travestismo e fetichismo de Hannah Cullwick, que usava pulseira de couro como símbolo do trabalho forçado, mostram-se as relações triangulares existentes entre a escravidão, base do capitalismo mercantil, o trabalho assalariado, base do capitalismo industrial, e o trabalho doméstico, base do patriarcado.

No ocidente, a ascensão histórica do patriarcado representou a mudança ocasional na configuração de sentido que, dada a lógica reiterada de apropriação, transformou o modo de vida pastoril no modelo patriarcal, baseado no controle do corpo e da sexualidade da mulher. Esse modo de vida sucedeu o período

conhecido como matricial ou matrístico, o que ocorreu a partir da destruição por parte dos pastores indo-europeus patriarcais, os hebreus, que se instalaram no leste da Europa, há cerca de seis ou sete mil anos, dizimando e suplantando a cultura anterior, a fim de instalarem uma nova, em que o corpo e a sexualidade da mulher deveriam ser controlados.

Dentre os povos paleolíticos que viveram na Europa há vinte mil anos, passou a haver uma bifurcação: alguns deles se tornaram sedentários e agricultores ou coletores, enquanto outros foram para o Leste até a Ásia, seguindo as manadas dos animais silvestres em suas migrações anuais, modo de vida pastoril que, represando os valores da estabilidade, da segurança e da propriedade, passou, geração a geração, ao controle do corpo e da sexualidade da mulher, correspondendo a troca do modelo da parentela matrilinear para o patrilinear.

Certamente, não se trata do mesmo modelo de organização societária vigente nesse período, mas uma diferença importante foi produzida nesse momento. Houve a mudança do regime do corpo – regime notadamente matrístico, para o da posse, que se baseia no controle do corpo das mulheres, consolidando expectativas e formando campos de sentido, que, repassados transgeracionalmente, e, por meio da familiaridade, foram mantidos (LEMES DE SOUZA, 2018).

O patriarcado se trata de modelo epocal, que, embora vigente, não é perpétuo. No Brasil, o regime de reprodução social esteve atrelado à reprodução sexual, como fenômeno social e biológico, configurando domesticidades trançadas na economia da servidão, funcionando na produção ontológica, ao lado de outras práticas do capitalismo imperial e colonial, como o colorismo, a construção da intimidade e seus territórios morais.

Não sendo sentido estável, o conceito de patriarcado, ao ser rearticulado pelas teóricas feministas, pode convergir para aquilo que Stengers (2016) chamou de “recuperar as operações”, associando feminismo, anti-imperialismo,

antirracismo e ativismo pela Terra e permitindo a criação de outros vínculos. Em suma, questionar o tempo presente para permitir outros possíveis.

REFERÊNCIAS

BARROS, José D’Assunção. Os conceitos: seus usos nas ciências humanas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: O sistema de castas e suas implicações. Tradução de Carlos Alberto da Fonseca. 2. ed. 1. reimpressão. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008.

LEMES DE SOUZA, Ana Paula. As tranças de Lilith: feminismo, direito e democracia. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial. Cadernos Pagu (20).7-85, 2003.

STENGERS, Isabelle. Uma ciência triste é aquela em que não se dança. Conversações com Isabelle Stengers. Revista de Antropologia. São Paulo. 155186, 2016.

104 Doutoranda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e pós-graduada em Filosofia do Direito e

Direito Público. Escritora, poeta, ensaísta, pesquisadora, professora, advogada e colunista.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO

Francisca Moana Araújo de Oliveira¹ ⁵

O termo políticas públicas pode ser definido como programas de ação do governo para a realização de objetivos políticos socialmente relevantes e determinados, como uma forma de coordenação dos meios que estão à disposição do Estado, para direcionar tanto as atividades estatais quanto as atividades privadas, em certo espaço de tempo (BUCCI, 1997). As políticas públicas de gênero, portanto, são visadas, especialmente, com o objetivo de promover igualdade entre os gêneros e combater as discriminações que assolam a sociedade brasileira.

A inserção dessa pauta na agenda pública se deu de forma tardia, mas politizou questões que eram até então tratadas como exclusivamente femininas e relativas tão somente à esfera privada (PINTO, 2003). A aderência à perspectiva de gênero aconteceu juntamente com o fortalecimento do movimento feminista e de mulheres, na década de 1980, durante o período de redemocratização, pósditadura civil-militar, em virtude dos debates e reinvindicações sociais das mulheres. Ainda assim, a priori, as mulheres foram posicionadas como beneficiárias das políticas de saúde, pela importância que se dava ao controle do papel reprodutivo da mulher, na sociedade (ARAUJO; ADRIÃO, 2017), em consonância com as atribuições domésticas de cuidadora do lar e da família, como consequência direta da divisão sexual dos espaços.

E justamente por essa dualidade entre aquilo que é público e o que é privado na socialização dos gêneros, a tolerância à violência contra a mulher, especialmente a violência doméstica e familiar, acabou entrando para o centro desse debate, culminando, em 1985, na inauguração da primeira Delegacia Policial de Defesa da Mulher – DPDM (CEREGATTI, et. Al., 2015; e FARIA; ARAÚJO, 2019). Fortalecidas, no mesmo ano, pela instituição do Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), que atuou diretamente pela participação ativa das mulheres na constituinte, no movimento político conhecido como lobby do batom, aprovando quase 80% das reinvindicações apresentadas na Carta das Mulheres Brasileiras no texto da nova Constituição Federal de 1988 (BOHN, 2010; e

SILVA; GOMIDE, 2020).

A Constituição de 1988, inclusive, marca uma reviravolta não só no contexto das políticas públicas de gênero, mas nos direitos das mulheres como um todo, servindo como baliza formal para mudanças necessárias na cultura nacional. Considerando que mulheres e homens passaram a ser vistos como iguais perante a lei, não havendo mais justificativa para perpetuar desigualdades, especialmente no que diz respeito aos direitos trabalhistas e previdenciários, tanto para mulheres urbanas quanto para mulheres rurais, a exemplo do direito à aposentadoria, ao salário maternidade, até mesmo ao reconhecimento da categoria de trabalhadora (LINS DE ALMEIDA, 2021).

No entanto, considerando que a legislação por si não pode garantir mudanças no campo material, no ano seguinte a promulgação da nova Constituição, o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), como principal órgão de articulação de políticas de gênero, no âmbito federal, na época, acabou perdendo força institucional entre os anos de 1989 e 2002, sendo reduzido a um órgão meramente consultivo, vinculado ao Ministério da Justiça, e sem autonomia financeira ou administrativa (BOHN, 2010). É a partir do primeiro ano do Governo Lula que as políticas de gênero passam a ser encaradas como prioridade na agenda pública.

Desse modo, a Secretaria Especial de Políticas Para Mulheres (SPM) foi instituída em 2003, com status de ministério, estrutura regimental, orçamento próprio e competência para elaborar o planejamento, articulação, promoção e execução de programas e políticas de gênero que contribuíssem na ação do governo federal e demais esferas de governo, com vistas à promoção de igualdade e combate à discriminação, além de autonomia para promover a cooperação com organismos nacionais e internacionais, públicos e privados, voltados à implementação de políticas para as mulheres (BRASIL, 2003).

É nessa época que foi adotada a perspectiva de transversalidade de gênero nas

ações e políticas governamentais, incorporada até mesmo no Plano Plurianual (PPA) 2004-2007, como princípio direcionador do trabalho a ser desenvolvido pela SPM, a fim de garantir “uma ação integrada e sustentável entre as mais diversas instâncias governamentais e, consequentemente, o aumento da eficácia das políticas públicas, assegurando uma governabilidade mais democrática e inclusiva em relação às mulheres” (BANDEIRA, 2005, p. 05).

Entre as principais ações da SPM, pode-se destacar o convênio com o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), em consórcio com outras ONGs Feministas¹ , em 2004, para a elaboração do anteprojeto de lei que visava a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, em um processo de articulação política que antecedeu a primeira legislação brasileira de enfrentamento a violência de gênero contra as mulheres, conhecida como Lei Maria da Penha, sancionada pelo então Presidente Lula sob o nº 11.340/2006, em agosto de 2006 (CARONE, 2018). Em continuidade, a Presidenta Dilma, em 2013, sancionou a Lei do Minuto Seguinte, com o intuito de controlar e/ou tratar os danos físicos e psicológicos decorrentes de violência sexual, ao priorizar o atendimento obrigatório, integral e multidisciplinar às vítimas, nos serviços públicos de saúde e de assistência social.

Ainda em 2013 foi publicado o Programa Mulher Viver Sem Violência, para coordenar as ações de implementação das Casas da Mulher Brasileira, como um espaço público de reunião dos principais serviços especializados e multidisciplinares de atendimento às mulheres em situação de violência, como núcleos da Defensoria Pública, Delegacia, abrigamento temporário, entre outros serviços, além da ampliação da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, e dos Centros de Atendimento às Mulheres nas Regiões de Fronteiras Secas (BRASIL, 2013), o que permitiu a materialização de algumas das políticas públicas elencadas e recomendadas pelo texto da Lei Maria da Penha.

Entretanto, com a destituição da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016, as políticas públicas de gênero começaram a ser ameaçadas pelo contexto político e falta de interesse de Temer a atender as reinvindicações e demandas dos

movimentos feministas e de mulheres, tendo um governo marcado por ministérios compostos exclusivamente por homens brancos. Como consequência, as políticas para mulheres sofreram substanciais cortes orçamentários, chegando à redução de até 61% da verba destinada ao atendimento de mulheres em situação de violência (GONÇALVES; ABREU, 2018), além do prejuízo direto que as reformas e políticas de austeridade causaram às brasileiras.

Nesse cenário, relembramos que Simone De Beauvoir já alertava em 1949, que “basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados” (BEAUVOIR, 1949, p. 29), e isso ficou muito claro durante a campanha eleitoral de 2018, que elegeu o então Presidente Jair Messias Bolsonaro, sob a égide dos polêmicos debates sobre a ideologia de gênero, da implementação do medo como política, além de diversos posicionamentos públicos de cunho machista, racista e LGBTfóbicos, que orientaram as ações e políticas públicas do atual governo, a exemplo da mudança do programa nacional de enfrentamento à violência contra a mulher, que aboliu o termo “gênero” e a própria perspectiva de transversalidade de gênero, além de não prever a continuação dos Centros de Atendimento às Mulheres nas Regiões de Fronteiras Secas (BRASIL, 2019), entre outras ações que culminaram na maior vulnerabilidade das mulheres brasileiras durante a pandemia do Coronavírus.

REFERÊNCIAS

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BANDEIRA, Lourdes Maria. Fortalecimento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres: avançar na transversalidade da perspectiva de Gênero nas Políticas Públicas. Brasília: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal); Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR), jan. 2005. Disponível em: https://www.cepal.org/mujer/reuniones/quito/Lourdes_Bandeira.pdf. Acesso em: 11 fev. 2022.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

BOHN, Simone R. Feminismo estatal sob a presidência lula: o caso da Secretaria de Políticas Para as Mulheres. Revista Debates, v. 4, n. 2, 28 dez. 2010. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/debates/article/view/17439 Acesso em: 12 fev. 2022.

BRASIL. Decreto nº 10.112/19, de 12 de novembro de 2019: dispõe sobre o Programa Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20192022/2019/Decreto/D10112.htm#art1. Acesso em: 11 jan. 2022.

BRASIL. Decreto nº 4.625/03, de 21 de março de 2003: dispõe sobre a estrutura regimental e o quadro demonstrativo dos cargos em comissão da Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres, órgão integrante da presidência da república, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4625.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2 Acesso em: 11 jan. 2022.

BRASIL. Decreto nº 8.086/13, de 30 de agosto de 2013: dispõe sobre o Programa Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher. Disponível

em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2013/decreto/d8086.htm. Acesso em: 11 jan. 2022.

BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas e direito administrativo. Revista de Informação Legislativa: Brasília V. 34, N. 133, p. 89-98, jan./mar. 1997.

CEREGATTI, Alessandra. et al. Mulheres em luta por uma vida sem violência. São Paulo: SOF, 2015.

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LINS DE ALMEIDA, Marisangela. Mulheres do campo, sindicalismo e ação política: a construção histórica da categoria trabalhadora rural. Caminhos da História, [S. l.], v. 26, n. 1, p. 165–184, 2021. Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/3699. Acesso em: 23 jan. 2022.

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voltadas à igualdade de gênero. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

105 Mestranda em Politicas Públicas (UFPI); Especialista em Estratégias de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (ESP CE, 2020); Pós-graduada em Direito Público (Uniamérica, 2021); e Graduada em Direito (FLF, 2019).

106 De acordo com Calazans e Cortes (2011), o Consórcio Feminista era composto pelas seguintes ONGs: A Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), a Themis (Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero), o Cladem (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), o Cfemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), a Advocaci (Advocacia Cidadã pelos Direitos Humanos) e pela Agende (Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento).

PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Bianca Tito¹ ⁷

Bibiana Terra¹ ⁸

Novos patamares de evolução dos direitos dos cidadãos brasileiros foram possíveis a partir da Constituição Federal brasileira de 1988. Dentre as conquistas trazidas por esse texto, uma das mais importantes foi a consagração do Princípio da Igualdade (TERRA; TITO, 2021). É o artigo 5º, através de seu inciso I, que determina que são iguais em direitos e obrigações homens e mulheres, reconhecendo assim o Princípio da Igualdade (BRASIL, 1988). Por essa razão, o texto constitucional brasileiro é considerado, em termos de direitos e cidadania, uma das legislações mais avançadas, em que esse princípio é fundamental à garantia da democracia e na construção dos valores sociais (CANOTILHO; MENDES; SARLET; STRECK, 2013).

Essa conquista se deu como resultado, entre outros fatores, dos movimentos sociais feministas que nas décadas anteriores lutaram e reivindicaram por uma garantia como essa e, com isso, exerceram influência na reformulação constitucional que estava ocorrendo, bem como na redemocratização do país (PITANGUY, 2019). Foi em um cenário como esse que a luta pelo Princípio da Igualdade se fortaleceu e demonstrou ser necessário que ele fosse garantido pela nova Constituição, com a sua efetiva concretização e cumprimento. Para tanto, o movimento feminista brasileiro atuou no processo constituinte e influenciou na edição desse princípio (TERRA; TITO, 2021).

A percepção de tal necessidade já estava em curso nas décadas anteriores, e a abertura democrática dos anos 1980 possibilitou que as questões das mulheres, seus direitos e demais questões relacionadas a gênero, ganhassem mais espaço no campo jurídico (PITANGUY, 2019). Dessa maneira, o início dos anos 1980 representam, na história do Brasil, um período de abertura democrática, em que os direitos sociais e individuais ocuparam o centro das transformações ocorridas no processo de redemocratização vivenciado naquele momento. Dois foram os marcos definitivos desse processo: as eleições diretas para presidente da república, colocando fim ao regime militar, e a elaboração do novo texto constitucional (TERRA; TITO, 2021).

A nova Constituição do Brasil, promulgada em outubro de 1988, foi marcada pelas reivindicações das mulheres e dos movimentos sociais feministas, eis que muitas das pautas por elas abordadas passaram a ser incorporadas ao texto constitucional. É por essa razão que além de representar um importante instrumento para a redemocratização do país, a Constituição é igualmente um instrumento muito significativo para a luta dos direitos feministas. Ela representa um marco político-jurídico na institucionalização dos direitos humanos no Brasil e para a proteção da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, pode-se compreender que é notória a participação e a influência que as mulheres exerceram na previsão do Princípio da Igualdade entre homens e mulheres no texto constitucional editado em 1988 (TERRA; TITO, 2021).

Buscando a igualdade nas relações sociais, foi um longo caminho o percorrido pelas mulheres até o texto de 1988, caminho esse que se estende e continua a ser percorrido até os dias atuais. Muitas das vitórias que foram obtidas e dos direitos que a partir delas foram conquistados, em prol da emancipação das mulheres, se deu através dos movimentos feministas. Em um período no qual diferentes temas buscaram chamar atenção, e que esteve marcado pela agitação das lutas sociais, o feminismo influenciou na reforma constitucional, que pôde então contar com as mulheres brasileiras. Buscava-se a participação política e que transformações institucionais fossem realizadas (PITANGUY, 2019).

Utilizando-se do lema “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – CNDM criou e divulgou, em 1985, uma campanha denominada “Mulher e Constituinte”, por meio da qual, em todo o Brasil, mobilizava diversos debates entre as mulheres. Foi desta que resultou a “Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”, um importante documento feminista que no ano seguinte, em 1986, foi entregue ao Congresso Nacional. O CNDM exerceu um papel muito importante neste momento e objetivava que as demandas feministas, e das mulheres de modo geral, fossem articuladas e atendidas (BIROLI, 2018). Entre tais demandas estava a previsão do Princípio da Igualdade entre homens e mulheres.

Notadamente no que se refere a esse Princípio da Igualdade, ele esteve presente nas Constituições brasileiras desde o início do período republicano, sendo formulado como um Princípio de Igualdade perante a lei, que deveria tratar todos os cidadãos de maneira igual. Sendo assim, conforme previsto no artigo 5º, caput, da Constituição de 1988, é garantido a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à igualdade e sua inviolabilidade, o que mantém a tradição constitucional de conceder a todas as pessoas um tratamento igualitário. Nesse sentido, na sequência do texto, é o inciso I desse mesmo dispositivo o responsável por determinar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos dessa Constituição” (BRASIL, 1988, s.p).

É esse dispositivo do texto constitucional, juntamente ao §5º do artigo 226 (que determinou a igualdade em direitos e deveres entre o homem e a mulher dentro da sociedade conjugal), que demonstra a importância dada pela Constituição de 1988 ao Princípio da Igualdade entre homens e mulheres. Portanto, a previsão desse princípio pela Carta Magna “foi um grande passo para os direitos das mulheres e o movimento feminista, sendo que esse princípio gera consequências positivas até os dias atuais. Ele prevê a igualdade de aptidões e de possibilidades entre todos os cidadãos de gozar de tratamento isonômico pela lei” (TERRA; TITO, 2021, p. 125).

Cabe ainda destacar que além de inaugurar o capítulo dos direitos individuais com o princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza, a Constituição Federal de 1988 reafirma esse princípio em outros de seus artigos, bem como ele ainda é reforçado por meio de muitas outras normas, algumas diretamente determinadoras da igualdade, outras buscando a equidade entre os desiguais mediante a concessão de direitos sociais fundamentais.

Percebe-se, assim, que a Constituição Federal de 1988 desempenhou um papel de enorme importância no que diz respeito aos direitos humanos das mulheres brasileiras, tendo avançado significativamente em suas previsões. O seu texto promoveu uma alteração que pode ser compreendida como “uma verdadeira

mudança de paradigma do Direito brasileiro no que se refere à igualdade de gênero” (TERRA; TITO, 2021, p. 126), coibindo tratamentos desiguais entre homens e mulheres.

REFERÊNCIAS

BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Texto constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 19 fev. 2022.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

PITANGUY, Jacqueline. A carta das mulheres brasileiras aos constituintes: memórias para o futuro. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileira: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

TERRA, Bibiana; TITO, Bianca. Igualdade de gênero na Constituição Federal de 1988: O movimento feminista brasileiro e a conquista do princípio da igualdade. Revista de Gênero, Sexualidade e Direito, v. 7, n. 1, p. 112-129, jan./jul. 2021. Disponível em:

https://www.indexlaw.org/index.php/revistagsd/article/view/7607/pdf. Acesso em: 19 fev. 2022.

107 Doutoranda em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra em Direito, com ênfase em constitucionalismo e democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito de Família e das Sucessões. Especialista em Direito Público. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Advogada, pesquisadora e professora. E-mail: [email protected].

108 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Especialista em Direito Internacional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisadora, advogada (OAB/MG) e professora. E-mail: [email protected].

PROTEÇÃO AO TRABALHO DA MULHER

Bibiana Terra¹

Conforme a História nos mostra, as mulheres sempre foram submetidas ao domínio dos homens (sendo raríssimas as exceções de antigas sociedades matriarcais), elas sofreram discriminações em razão de seu gênero e estiveram à margem da sociedade pelo simples fato de serem mulheres, sendo o gênero feminino desvalorizado. Essas desigualdades, que são inegáveis e perduram ainda hoje, afetaram todas as esferas de suas vidas, sendo que as relações trabalhistas não ficaram ilesas dessas discriminações, mas, pelo contrário, em muitos momentos essas foram reforçadas.

Sendo assim, é possível compreender que as desigualdades e discriminações de gênero também são reproduzidas dentro da seara trabalhista, sendo que as mulheres, desde que adentraram o mercado de trabalho, sofrem com as opressões de gênero. Atualmente, tanto em âmbito nacional como em nível internacional, há um grande número de normas jurídicas e outras previsões normativas que buscam coibir essas discriminações no mercado de trabalho. No entanto, infelizmente, elas ainda persistem, sendo que os efeitos da divisão sexual do trabalho impactam muitos aspectos das vidas das mulheres (TERRA; OLIVEIRA, 2022).

Nesse sentido, mesmo após diversas previsões e em pleno século XXI, em uma sociedade marcada por avanços sociais, econômicos, legislativos e culturais, as mulheres ainda enfrentam discriminações e desigualdades dentro de seus trabalhos, sendo esse um desafio ainda não superado. O Direito do Trabalho tem um papel importantíssimo nesse contexto, sendo que buscou e ainda busca relações equânimes entre os trabalhadores e trabalhadoras. Diante disso e partindo dessas compreensões, é importante refletir acerca da proteção ao trabalho da mulher.

As conquistas dos direitos das mulheres, em diferentes períodos e contextos,

nunca foram fáceis, tendo essa sido marcada por diversas manifestações e reivindicações por parte delas e das representantes dos movimentos feministas para que eles fossem alcançados (VIEIRA; SOUTO MAIOR, 2017). Inclusive, é interessante analisar que, ao menos de uma perspectiva ocidental dos feminismos, as reivindicações por melhores condições de trabalho foram uma das primeiras pautas a dar ensejo aos movimentos de mulheres e feministas no mundo.

Muito embora o mais comum seja falar que os movimentos feministas tiveram seu início com as movimentações das sufragistas e a luta pelo reconhecimento do direito ao voto – o que não deixa de ser verdade – eles também foram impulsionados por mulheres operárias e “donas de casa” que reivindicavam por melhores condições trabalhistas, por igualdade salarial e pelo direito de trabalharem fora de casa sem necessitarem de autorização de seus maridos (como durante muito tempo o ordenamento jurídico brasileiro previu para as mulheres casadas, o que somente seria modificado em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada).

Nesse ponto das reivindicações de mulheres pelo direito de trabalhar, é fundamental pontuar a pluralidade de mulheres que compunha e ainda compõe os movimentos feministas, sendo que, conforme aborda Angela Davis (2016), as interseccionalidades não podem ser ignoradas nas reivindicações dessas pautas. Nesse sentido, isso é importante de ser destacado pois como Davis aponta, enquanto as mulheres brancas reivindicavam pelo direito de trabalhar fora de casa, as mulheres negras já estavam inseridas nesse contexto e sem qualquer proteção jurídica. Sendo assim, para elas, sofrendo as consequências da escravidão e do racismo, o importante eram melhores condições de emprego e não o direito de trabalhar fora de suas casas, pois essas já trabalhavam e sem ter qualquer respaldo jurídico, relegadas à informalidade e à precariedade.

Essa compreensão também é importante de ser apontada pois a divisão sexual do trabalho não perpassa apenas pelas desigualdades de gênero, mas também pelas opressões de raça, classe, sexualidade, etnia, nacionalidade, dentre outras

(BIROLI, 2018). Assim, elas são interseccionais e não podem deixar de ser consideradas, pois as opressões atravessam umas às outras e afetam as mulheres de múltiplas e distintas maneiras (HOOKS, 2019).

Essa questão é, ainda, muito relevante pois ao se analisar o trabalho precarizado, ao menos no contexto brasileiro, são as mulheres negras as mais desvalorizadas e prejudicadas, sendo elas as trabalhadoras que ocupam as maiores posições de desvantagem em suas relações trabalhistas. Por exemplo, na questão do trabalho doméstico, esse é, em sua larga maioria, desempenhado por mulheres negras, que compõem quase a sua totalidade, pois no Brasil esse é um emprego amplamente ocupado por elas (TITO; TERRA; RESENDE, 2022).

Conforme abordado anteriormente, ainda hoje as sociedades estão estruturadas em contextos sexistas – bem como estruturalmente racista – o que significa dizer que as mulheres, e principalmente as mulheres negras, enfrentam muitas dificuldades em diferentes áreas de suas vidas e as relações trabalhistas não estão imunes às desigualdades e discriminações de gênero e raça, dentre outras. Com isso, é interesse apontar que tanto a legislação trabalhista como o texto constitucional buscam coibir tratamentos discriminatórios, buscando igualar as relações entre trabalhadores e trabalhadoras, prevendo proteção especial tanto na Consolidação das Leis do Trabalho quanto na Constituição Federal de 1988.

No plano jurídico nacional é importante abordar que embora os textos constitucionais anteriores ao de 1988 vedassem discriminações em razão de sexo (no sentido de gênero), não havia ainda um respaldo jurídico acerca do trabalho das mulheres. No entanto, houve legislações que buscavam a proteção da trabalhadora, sendo que as primeiras leis sobre o trabalho feminino no contexto brasileiro datam de 1932, antes mesmo da edição da CLT, sendo que essa regulamentava o trabalho das mulheres em estabelecimentos industriais e comerciais, assegurando descanso antes e após o parto (BARROS, 2009).

É aqui interessante notar que desde 1932 – inclusive, ano em que as brasileiras

conquistam seu direito ao sufrágio – havia a garantia de dois intervalos de meia hora cada para a trabalhadora amamentar seu bebê, além da lei estabelecer acerca de local apropriado para tanto. Ainda data daquela época uma outra conquista muitíssimo importante para as mulheres trabalhadoras, que é a da proibição de demitir mulher grávida pela sua gravidez (ou seja, por esse motivo e não outro que enseje justa causa da demissão) – assim, a lei já previa sobre a estabilidade na gravidez (BARROS, 2009).

Com a vinda da Constituição Federal de 1988, símbolo da redemocratização do país e apelidada de “Constituição Cidadã”, essa trouxe avanços significativos para os direitos das mulheres e dos trabalhadores e trabalhadoras, de modo geral (TERRA, 2022). Esse texto constitucional incluiu os direitos sociais dentro do título dos direitos fundamentais e o trabalho dentro dos direitos sociais (artigo 6º). Além disso, houve uma significativa ampliação dos direitos e garantias trabalhistas, previstos no artigo 7º da Constituição Federal. O combate à discriminação pode ser compreendido a partir do princípio constitucional da isonomia, previsto no artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, que prevê que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (BRASIL, 1988). Esse princípio é importantíssimo e terá seus reflexos na seara trabalhista, haja vista que o direito do trabalho deve respeitar a constituição e os princípios constitucionais, além de ser fundamental que haja uma leitura constitucionalizada do direito do trabalho (OLIVEIRA, 2020).

Embora em textos constitucionais anteriores já vedassem as discriminações em razão de sexo (no sentido de gênero), o texto de 1988, vigente ainda hoje, quebrou paradigmas ao tratar homens e mulheres iguais em direitos e obrigações, vedando distinções de qualquer natureza (TERRA, 2022). Além disso, a Constituição também foi bastante significativa para as trabalhadoras brasileiras, trazendo entre as suas previsões, no seu artigo 7º, inciso XX, acerca da proteção do mercado de trabalho das mulheres, inclusive com a previsão de incentivos específicos para elas no sentido de protegê-las contra discriminações e também tendo revogado dispositivos da CLT que se passavam como tutelares, mas que em realidade produziam ainda mais discriminações. Ainda, trouxe a previsão da igualdade salarial (algo que, embora com algumas diferenças, já era previsto pelas constituições de 1934, 1946 e 1967), proibindo a diferença de

salários por motivo de sexo na execução de atividades iguais e também importantes previsões de proteção à maternidade.

Nesse sentido, em relação aos avanços trazidos pelo texto constitucional de 1988, essa foi a Constituição, até hoje, que mais avançou nas questões dos direitos das mulheres e dos trabalhadores. Podem ser apontadas, entre outros, a garantia da isonomia jurídica entre homens e mulheres; a proteção da maternidade como um direito social; proibição de discriminações por razão de sexo no mercado de trabalho; licença maternidade de 120 dias sem prejuízo do salário e custeado pela Previdência Social (a partir de 2002 a licençamaternidade foi estendida a empregada que adota ou que tem guarda judicial da criança, o que pode ser considerado um avanço no combate à discriminação); salário-família; estabilidade da gestante desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, sendo vedada a sua dispensa arbitrária ou sem justa causa e esse direito não é afastado nem mesmo pela falta de conhecimento do empregador sobre a gravidez de sua trabalhadora (conforme entendimento sumulado pelo TST na súmula 244); assistência gratuita às crianças do seu nascimento até os cinco anos de idade; descanso especial para amamentação; além de outras importantes previsões constitucionais (BRASIL, 1988).

Além das previsões constitucionais, a legislação trabalhista traz importantes previsões na proteção das trabalhadoras mulheres e da maternidade, como o direito de rescindir contrato de trabalho se a gestante estiver desempenhando funções que possam prejudicar seu bebê, tendo ela o direito de ser transferida de função durante o período da gravidez; também pode ser apontada modificação legislativa de 1999 que acrescentou à CLT o direito das empregas gestantes de serem dispensadas até seis vezes durante o horário de trabalho para realizarem consultas médicas ou exames, não podendo essa ausência ser computada de seus salários (BRASIL, 1999).

Nos anos seguintes a promulgação da Constituição Federal de 1988 foram editadas importantes leis protetivas ao trabalho das mulheres e do combate à discriminação das trabalhadoras, sendo que cabe mencionar as leis nº 9.029/1995

e nº 9.7999/1999, que acentuavam a prescrição antidiscriminatória do texto constitucional e foram importantes para as trabalhadoras. A lei de 1995 proibiu a exigência de atestados ou exames de gravidez ou esterilização da empregada, proibindo práticas discriminatórias. A Lei nº 9.7999 de 1999, por sua vez, revogou parte do capítulo “da proteção ao trabalho da mulher”, que continha dispositivos que previam acerca da exigência de atestados médicos para as mulheres e as restringia a prestação de determinados trabalhos. Ela promoveu alterações importantes no artigo 373-A da CLT, que passou a trazer novas e importantes previsões para as mulheres trabalhadoras.

Dentre essas previsões, uma que cabe ser aqui mencionada e que está prevista no artigo 373-A da CLT (BRASIL, 1943) é acerca da vedação de se exigir atestado para comprovação de gravidez ou esterilidade, seja para admissão ou permanência no emprego (a proteção à intimidade da trabalhadora deve ser respeitada). Essa determinação trazida pela legislação trabalhista é muito pertinente, haja vista que as mulheres trabalhadoras sofrem inúmeras discriminações relacionadas à maternidade. Sobre isso, a Constituição Federal demonstrou preocupação com as trabalhadoras mães, sendo que a proteção à maternidade é um direito social. Assim, o artigo 7º traz entre os seus incisos a licença à gestante pelo prazo de 120 dias (sendo que desde 2008, a partir de lei que instituiu o Programa Empresa Cidadã, há possibilidade desse prazo ser estendido até 180 dias mediante concessão de incentivos fiscais para o setor privado).

Desde uma análise histórica até a abordagem das previsões legislativas no contexto brasileiro, o que cabe aqui destacar é que apesar dos significativos avanços trazidos pela Constituição Federal de 1988 e de outras leis posteriores a ela e que visavam a mulher trabalhadora, ainda hoje, na sociedade contemporânea, as desigualdades e discriminações enfrentadas pelas mulheres no mercado de trabalho não foram totalmente superadas. As desigualdades salariais, as diferenças de tratamento, assédios e outras práticas ainda constrangem e discriminam as trabalhadoras.

O direito do trabalho brasileiro, bem como de âmbito internacional, já avançou bastante nesse sentido, sendo que a influência dos movimentos de mulheres e feministas é inegável nas lutas pelo reconhecimento de seus direitos e para a sua inserção no mercado de trabalho. Infelizmente, as desigualdades e discriminações ainda perduram, sendo que refletir sobre essa temática aqui proposta é fundamental para que sejam pensados novos caminhos para superar essas desigualdades na seara trabalhista, bem como por uma sociedade mais equânime em todas as suas esferas.

REFERÊNCIAS

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2009.

BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.

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BRASIL. Lei 9.7999, de 26 de maio de 1999. Insere na Consolidação das Leis do Trabalho regras sobre o acesso da mulher ao mercado de trabalho e dá outras

providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9799.htm Acesso em: 22 mai. 2022.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo, Boitempo, 2016.

HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Trad. Bhuvi Libanio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

OLIVEIRA, Paulo Eduardo Vieira de. O direito do trabalho no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2020.

TERRA, Bibiana. A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: o movimento feminista e a participação das mulheres no processo constituinte de 1987-1988. São Paulo: Editora Dialética, 2022.

TERRA, Bibiana. OLIVEIRA, Paulo Eduardo Vieira de. A divisão sexual do trabalho e a pandemia do covid-19 no Brasil: Uma análise dos seus impactos nas trabalhadoras brasileiras. In: TITO, Bianca. TERRA, Bibiana. GOULARTE, Roana Funke (Org.). Filosofia e Sociologia do Direito. Coleção Pensamento Jurídico Vol. 03. Cruz Alta: Ilustração, 2022.

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VIEIRA, Regina Stela Corrêa; SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Mulheres em luta: a outra metade da história do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2017.

109 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Especialista em Direito Internacional pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisadora, advogada e professora. E-mail: [email protected].

PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA MULHER

Estela Cristina Vieira de Siqueira¹¹

Tomando a Revolução Francesa como marco temporal para o surgimento da primeira dimensão – ou geração – de Direitos Humanos em 1789, compreendendo-se como tal o surgimento de direitos civis e políticos como os conhecemos e que até então eram impensáveis em uma Europa submersa em séculos de absolutismo monárquico, também começam a surgir discussões acerca dos direitos das mulheres – embora historicamente, tantas mulheres visionárias tenham também inspirado essa luta nos séculos anteriores.

O que se precisa saber é que a Declaração dos Direitos oriunda de todo esse processo revolucionário do iluminismo francês é, sim, um marco histórico para a aquisição de direitos por cidadãos comuns, sem raízes aristocráticas, mas que não lograria êxito em incluir nominalmente em seu texto as mulheres.

Diante dessa lacuna, Marie Gouze, dramaturga de Montauban, conhecida pelo pseudônimo Olympe de Gouges¹¹¹, elaboraria um panfleto em forma de protesto a essa ausência das mulheres na Declaração de 1789, legalmente alheias aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade e cidadania compartilhados por seus compatriotas homens, cujo gênero vem exposto no próprio nome do texto histórico, “do homem e do cidadão”.

O documento não foi tão bem acolhido e popularizado na época e De Gouges seria vista, enquanto girondina e abertamente defensora dos direitos das mulheres, como “perigosa” pelos jacobinos, que a condenariam à morte, em 1793. Seu texto voltaria ao centro das discussões em 1986, quando a jornalista e ativista Benoîte Groult (2013, p. 118) republicou o conteúdo pela primeira vez, em toda a sua riqueza e representatividade.

Nesse período, apenas um ano depois do texto de Gouges, em 1792, a filósofa britânica Mary Wollstonecraft, publicaria a obra “Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher” (WOLLSTONECRAFT, 1796), argumentando por mais direitos, como ao acesso pleno ao sistema educacional, em todas as suas etapas. Mas, ainda, as mulheres não poderiam ser consideradas como seres plenos em sua cidadania, aqui considerada como pleno gozo de direitos políticos, porque embora as mulheres fossem destinatárias de direitos civis, enquanto seres humanos, elas ainda não possuíam direitos políticos, afastadas daquilo que chamamos de direito ao sufrágio universal – o direito ao voto.

Exatamente em razão dessa impossibilidade de exercer suas opiniões através do voto, em 1869, em sua obra “A Sujeição da Mulher”, John Stuart Mill e Harriet Taylor Mill (2009) condenariam a situação das mulheres no Reino Unido, com John advogando no parlamento britânico também por mais direitos e igualdade entre os gêneros. Como parlamentar, propôs que as mulheres tivessem acesso ao sufrágio, algo até então inédito.

Ainda no século XIX, em um movimento que perduraria até o início do século XX, surgiria o movimento das Sufragistas britânicas, associadas à Women’s Social and Political Union (1903-1917) (PARLAMENTO BRITÂNICO, s.d), de Emmeline Pankhurst e suas três filhas, Christabel, Sylvia e Adela. A Primeira Guerra Mundial enfraqueceria a pauta do voto e as sufragistas atuariam diretamente no conflito (DAVIS, 1999, p. 44-53), motivo pelo qual receberiam reconhecimento por parte da sociedade britânica e, em 1918, o voto feminino seria aprovado no Reino Unido. A WSPU seria dissolvida em 1917, e Emmeline e a filha Christabel dariam origem ao Partido das Mulheres, em novembro do mesmo ano (DAVIS, 1999, p. 44-53).

Um dos marcos mais conhecidos sobre a afirmação internacional dos direitos das mulheres é o Dia Internacional da Mulher, comemorado mundialmente no dia 08 de março. No entanto, há uma certa discussão acerca da sua real origem – que, ao contrário do imaginário popular, não surgiu em razão da greve de mulheres de Nova York, que terminou com o grave incidente do incêndio na fábrica onde

trabalharam. A greve de fato ocorreu e é lembrada pelos movimentos feministas ao redor do mundo, mas não é o motivo pelo qual a data é comemorada em 08 de março. A inspiração para a data, adotada pela ONU na década de 1970, é de origem soviética (KAPLAN, 1985).

Nas primeiras revoltas que dariam origem à Revolução Russa, ocorreria em Petrogrado, hoje São Petersburgo, uma greve de mulheres contra a primeira guerra, contra a fome e contra o domínio dos Czares, que seriam retirados do trono e mortos poucos meses depois, sendo a primeira da série de greves que deu origem à Revolução. Essa greve, ao contrário da greve que levou a fama da data, de fato ocorreu em 08 de março, no ano de 1917 (23 de fevereiro, no calendário juliano, adotado na Rússia à época, e que seria substituído pelo gregoriano durante a União Soviética) (KAPLAN, 1985, p. 169).

Infelizmente, nenhum desses acontecimentos históricos daria origem à proteção internacional, integrada, dos direitos das mulheres, que somente seria conhecida sob a égide da Organização das Nações Unidas, em 1945. No entanto, nem a Carta das Nações Unidas, de 1945, nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, faziam menção expressa às mulheres, embora também não fizessem aos homens, mas aos humanos, de modo geral. E também, muito embora mulheres como a brasileira Bertha Lutz, na Carta das Nações, e a americana Eleanor Roosevelt, na DUDH, fossem centrais à assinatura e redação desses textos.

Seria apenas nas décadas de 60 e 70 que os primeiros documentos explicitamente dirigidos aos direitos das mulheres surgiriam, como reflexo dos movimentos feministas e pela liberdade sexual, após a segunda guerra mundial. Em 1967, seria adotada a Declaração para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres (UNGA, 1967), o primeiro documento de seu tipo, embora menos conhecida que o documento do qual foi precursor, a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres.

Em 1975, a ONU decretaria o Ano Internacional da Mulher, na Resolução 3010 (XXVII) (UNGA, 1975), no qual aconteceria na Cidade do México a 1ª Conferência Mundial Sobre as Mulheres, de 19 de junho a 2 de julho, dando origem a um plano de ação, de implementação e monitoramento, pelos direitos das mulheres (Resolução 30/3520 da Assembleia Geral) (UNGA, 1975). Na sequência, a Assembleia-Geral também adotaria a Resolução 31/136 de 16 de dezembro de 1976 (UNGA, 1976), quando seria criada a Década da Mulher, durando de 1976 a 1985.

Durante esses 10 anos, em 1979, surge o mais importante documento internacional sobre Direitos das Mulheres, a Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres – CEDAW (OHCR, 1979), a primeira a reconhecer a violência contra a mulher como crime contra a humanidade. Sob o escopo da CEDAW, surge o Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres, o CEDAW Committee (OHCHR, s.d), responsável por discutir e monitorar os avanços e retrocessos quanto ao texto da convenção. Atualmente é presidido pela advogada ganense Hilary Amesika Gbedemah (OHCHR, s.d).

Muitos eventos sobre a temática se seguiriam, bem como inúmeros eventos sobre Direitos Humanos, mas seria em 1993, na Conferência Mundial dos Direitos Humanos, que surgiria a declaração de direitos humanos e o plano de ação correspondente mais abrangentes até o momento, a Declaração e o Plano de Ação de Viena (ONU MULHERES, 1994). O artigo 18 da declaração traria a seguinte redação:

os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais. A violência de gênero e todas as formas de assédio e exploração sexual são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser eliminadas. Os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades das Nações Unidas, que devem incluir a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher (ONU MULHERES, 1994, s.p).

Na mesma direção, em 1998, no Estatuto de Roma (BRASIL, Decreto nº 4.388, 2002), também seriam incluídas as modalidades de limpeza étnica e estupro de guerra como forma de genocídio, após os tribunais ad hoc de Ruanda e da Ex Iugoslávia – uma garantia adicional para as mulheres e uma afirmação histórica importante, sobretudo aquelas que vivem em regiões de conflito armado.

No contexto regional do Sistema Interamericano, em 1994, a Organização dos Estados Americanos adotou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Convenção de Belém do Pará (CIDH, 1994), que traz uma importante contribuição ao Direito Internacional, pois se trata do primeiro tratado internacional de natureza legalmente vinculante sobre a temática, criminalizando todas as formas de violência contra a mulher, com uma ênfase especial na violência sexual.

O Conselho Europeu adotou um documento semelhante, a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, também chamada de Convenção de Istambul, em vigor desde 2014 – sendo também o primeiro documento vinculante voltado à prevenção da violência de gênero na Europa.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm Acesso em: 11 jan. 2022.

BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de

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CIDH. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, “Convenção De Belém Do Pará” (Adotada em Belém do Pará, Brasil, em 9 de junho de 1994, no Vigésimo Quarto Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral). Disponível em: http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm Acesso em: 11 jan. 2022.

DAVIS, Mary. Sylvia Pankhurst: a life in radical politics. London: Pluto Press, 1999.

DUBOIS, Laurent. Avengers of the New World: the story of the Haitian revolution. Cambridge: Harvard University Press, 2004.

GROULT, Benoite. Ainsi soit Olympe de Gouges. Paris: Bernard Grasset, 2013.

KAPLAN, Temma. On the socialist origins of International Women’s Day. Feminist Studies, v. 11, n. 1, p. 163-171, 1985.

MILL, Harriet Taylor; MILL, John Stuart. The Subjection of Women. Auckland: The Floating Press, 2009.

OHCHR. Biographical Data form for Candidates to the Committee on the

Elimination of Discrimination against Women: GBEDEMAH, Hilary. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/CEDAW/CVMembers/CVMs._Hilary_Gbedem Acesso em: 11 jan. 2022.

OHCHR. Comittee on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/CEDAW/Pages/CEDAWIndex.aspx Acesso em: 11 jan. 2022.

OHCHR. Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women. New York, 18 December 1979. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/cedaw.aspx Acesso em: 10 jan. 2022.

ONU MULHERES. Declaração e Programa de Ação de Viena (1993). Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2013/03/declaracao_viena.pdf. Acesso em: 11 jan. 2022.

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PARLAMENTO BRITÂNICO. Start of the Suffragette Movement. Disponível em: https://www.parliament.uk/about/livingheritage/transformingsociety/electionsvoting/womenvote/overview/startsuffragette/ Acesso em: 27 dez. 2021.

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UNGA. General Assembly resolution endorsing the outcome of the World Conference of the International Women’s Year: A/RES/3520 (XXX), 15 December 1975. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/record/198616 Acesso em: 10 jan. 2022.

UNGA. UN General Assembly, Declaration on the Elimination of Discrimination against Women, 7 November 1967, A/RES/2263(XXII), Disponível em: https://www.refworld.org/docid/3b00f05938.html. Acesso em: 10 jan. 2022.

WOLLSTONECRAFT, Mary. Vindication of the Rights of Woman with Structures on Political and Moral Subjects. London: J. Johnson, 1796.

110 Doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Varginha (2014) e mestrado em Direito, com concentração em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito

de Sul de Minas (2017).

111 Hoje, a figura de De Gouges é tanto aclamada pelos movimentos feministas quanto rechaçada, por ser considerada como controversa, em razão da postura que adotou quanto à Revolução Haitiana, de inspiração também iluminista, mas oriunda de um movimento negro que objetivava os mesmos direitos dos franceses – liberdade, igualdade e fraternidade. Muito embora o objetivo dos jacobinos negros não tenha sido inicialmente se emancipar da França, rapidamente a revolução escalou para a violência generalizada, em razão da resistência dos franceses, brancos, em aceitar uma colônia composta majoritariamente por negros com amplitude de direitos. De Gouges, muito embora tenha inicialmente apoiado a revolução, posteriormente retirou seu apoio, afirmando na peça “l’Esclavage des Noirs”, em 1792, que a escalada violenta da revolução dos negros era um dos motivos que justificava a violência dos tiranos, pois, de fato, deveriam ser “domados”, uma fala de cunho profundamente racista (DUBOIS, 2004, p. 129).

RACISMO

Maíra de Deus Brito¹¹²

Pesquisadoras brasileiras e estrangeiras colocam a população brasileira em xeque: existe ou não racismo no nosso país? Em dezembro de 2020, um levantamento do Atlas Político mostrou um cenário curioso já conhecido por muitas: 90,6% da população diz que há racismo no Brasil, porém, 97,5% não se considera racista.

Como números tão contraditórios são possíveis?

Antes de responder essa questão, é preciso deixar nítido o conceito de racismo.

Dentre algumas definições literais, racismo é o “tratamento desigual e injusto ou violência contra pessoas que pertencem a um grupo, etnia, cultura etc. diferentes” (AULETE digital). Contudo, o que está nos dicionários não é o suficiente para a complexidade de tal fenômeno.

O professor Silvio Almeida nos ajuda nesse mergulho. No livro “Racismo estrutural” (2019), o autor afirma:

racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam (ALMEIDA, 2018, p. 25).

Ao longo da obra, Silvio Almeida ainda se debruça nas concepções

individualista, institucional e estrutural do racismo; relembra que o racismo não é uma patologia ou anormalidade; e nos ajuda a responder uma das principais questões sobre o tema: não é possível falar de racismo sem falar de raça que, surgiu como um conceito biológico, no entanto, é utilizado também como categoria sociológica – como se apresenta aqui.

É urgente compreender que ao falar de raça e racismo, coloca-se em evidência como alguns grupos raciais foram preteridos em relação a outros e como a ideologia do racismo tem força e é perpetuada em ambientes públicos e privados.

O próximo passo é não esquecer que em nome do racismo, vários genocídios ocorreram na história da humanidade (MUNANGA, 2019) – como nos ensinou o antropólogo Kabengele Munanga. O maior deles foi o genocídio da população indígena nas Américas. Há pesquisas que indicam que 90% dos povos americanos desapareceram depois da chegada de Cristóvão Colombo (BATTAGLIA, 2019).

Outro cenário preocupante é o genocídio antinegro, em curso há séculos no Brasil. De acordo com relatório “A violência contra pessoas negras no Brasil 2021” (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021), 76,2% das pessoas assassinadas no Brasil, em 2020, eram negras. Entre as vítimas de homicídio, a soma da população preta e parda representa 75,8% e, entre as vítimas de lesão corporal seguida de morte, 75,3%.

Para ter uma ideia da persistência do problema: entre 2009 e 2019, quase 406 mil pessoas foram assassinadas, o que equivale a cidade de Palmas (TO), totalmente dizimada. Além disso, o número de negros mortos aumentou (1,6%), enquanto o número de não negros mortos diminuiu consideravelmente (33%) (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021).

Crianças e mulheres não escapam das trágicas estatísticas – 63% das crianças vítimas da violência letal eram majoritariamente negras e 61% das vítimas de feminicídio eram pretas e pardas (dados referentes ao ano de 2020) – que têm como protagonistas os jovens negros.

Um dos últimos documentos que traz de maneira evidente o extermínio da juventude negra é o Atlas da Violência 2017. Ao cruzar gênero, raça e idade, observamos que, entre 2005 e 2015, 318 mil jovens (15 a 29 anos) foram assassinados, sendo que, em 2015, 47,8% eram homens na faixa etária citada. Naquele mesmo ano, foi registrado um aumento de 18,2% na taxa de homicídio de negros e a queda de 12,2% na mortalidade de não-negros – evidenciando uma tendência cujas porcentagens oscilam, mas não mudam radicalmente: homens jovens negros são os que mais morrem e que mais continuam a morrer no Brasil (BRITO, 2018).

O racismo também deixa marcas psicológicas. No livro “Não. Ele não está” (BRITO, 2018), Aparecida e Ana Paula, mães que perderam os filhos assassinados, narram suas trajetórias; a vida dos filhos mortos precocemente e de maneira violenta; e revelam os impactos dessas mortes no dia a dia. Ambas reclamam que a memória não é a mesma e comentam como o irmão de Luciano e a irmã Johnatha lidam até com as consequências dos assassinatos. O primeiro não consegue tocar no assunto ou ir em velórios; a segunda faz acompanhamento psicológico desde o assassinato do irmão.

Retornamos à questão inicial: porque o Brasil é um país com racismo, mas, aparentemente, sem racistas?

Por que nosso racismo é um crime perfeito (MUNANGA, 2019). Kabengele Munanga cunhou esse termo para demonstrar que o modelo de racismo brasileiro é implícito, subentendido, o oposto do praticado no apartheid na África do Sul, cuja segregação era evidente. Ao ter um modelo complexo, fica difícil saber quem é racista e o que é racismo e, consequentemente, fazer uma

análise crítica desses sujeitos e cenários.

No modelo do crime perfeito, o racismo à brasileira mata duas vezes: a primeira fisicamente, a segunda pelo silêncio (MUNANGA, 2019). É comum pessoas negras, indígenas e ciganas – entre outras chamadas de minorias políticas –, revelarem episódios racistas e ninguém acolher tais denúncias.

Por isso, é urgente falar sobre o racismo, pois só assim será possível romper com o ciclo de silêncios que tem deixado marcas físicas e psicológicas históricas, dificultando a luta antirracista. Refutar a ideia de democracia racial é assumir a existência do racismo e possibilitar novas estratégias na busca por respeito à diversidade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

ATLAS DA VIOLÊNCIA 2017. Brasília: Ipea, 2017. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf. Acesso em: 14 mar. 2022.

ATLAS POLÍTICO. Racism in Brazil. Disponível em: https://atlasintel.org/poll/racism-in-brazil-2020-11-22. Acesso em 15 mar. 2022.

AULETE digital. Racismo. Disponível em: https://aulete.com.br/racismo.

Acesso em: 15 mar. 2022.

BRITO, Maíra de Deus. Não. Ele não está. Curitiba: Appris, 2018.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. A violência contra pessoas negras no Brasil 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/11/infograficoviolencia-desigualdade-racial-2021-v3.pdf. Acesso em: 13 mar. 2022.

MUNANGA, Kabengele. Polêmicas Contemporâneas #30 | Kabengele Munanga | ‘Racismo – O Crime Perfeito’. YouTube, 14 ago. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l_f6c86WFjs. Acesso em: 15 mar. 2022.

BATTAGLIA, Rafael. Morte de indígenas na América teria causado uma pequena Era do Gelo. Superinteressante, 2019. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/morte-de-indigenas-na-america-teria-causadouma-pequena-era-do-gelo/. Acesso em: 15 mar. 2022.

112 Jornalista, mestra e doutoranda em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB). Autora do livro “Não. Ele não está”. Professora de Direitos Humanos e Gênero e Raça no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Integrante do Maré – Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro e do projeto Lélia Gonzalez Vive.

REPRESENTAÇÃO FEMININA NO PARLAMENTO

Cynthia Gruendling Juruena¹¹³

É necessário e urgente que ocorram reflexões para modificar, gradativamente, a realidade do Parlamento brasileiro e de sua composição, que atualmente é bastante homogênea. Ainda é perene a dificuldade de grupos minoritários ocuparem cadeiras no Poder Legislativo, grupos estes que na verdade são maioria populacional no Brasil, como mulheres ¹¹⁴ e negros ¹¹⁵. O enfoque que se concederá neste verbete, fruto de palestra proferida no I Parla Brasil, será no tocante à representação feminina no Parlamento.

Segundo dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) (BRASIL, 2021), nas eleições municipais de 2020, houve aumento no número de candidatas mulheres eleitas para os Poderes Legislativo e Executivo, totalizando um percentual de 16,1%. Em 2016, esse número foi de 13,5%. Nas eleições gerais de 2018, também ocorreu aumento no número, em que as candidatas eleitas somavam um percentual de 16,2% - enquanto nas eleições gerais de 2014 esse percentual havia sido de 11,1%. É um número ainda bastante aquém do percentual populacional de mulheres no país e do total de mulheres filiadas em partidos políticos – 47,72%.

Nas últimas reformas eleitorais, tem-se tido uma preocupação em aprimorar, de certa forma, a estruturação do sistema eleitoral para maior acesso de mulheres a cargos políticos. A Lei 12.034/09, por exemplo, assegurou a necessidade de alterações na redação do dispositivo de cotas de gênero, trazendo a obrigatoriedade de preenchimento de, no mínimo, 30% das candidaturas de cada sexo.

Em 2021, verificou-se novamente a tentativa de aprovações no Congresso Nacional, a fim de implementar modificações na Lei Eleitoral. O Plenário do Senado Federal aprovou algumas propostas que promovem alterações na atual legislação eleitoral em diversos pontos. Todas essas matérias esperam, agora, a

análise da Câmara dos Deputados.

Evidentemente que surgiram proposições no tocante ao acesso de mulheres a cargos políticos. O projeto de lei 1.951/2021 visa algumas alterações, destacando-se aqui algumas delas: há uma mudança na redação relacionada à cota de gênero, que passaria a utilizar o termo “reservar 30% das candidaturas” pelos partidos políticos, e que, ficando vagas remanescentes, não poderão ser preenchidas por candidatos de outro sexo. No entanto, a redação de 1997, utilizava justamente esse termo, de reserva de vagas, sem a obrigatoriedade de preenchimento. Assim, referir-se novamente à mera reserva de candidaturas pode implicar em grande retrocesso, pois como se trataria meramente de uma reserva de vagas, poderiam estas ficar desocupadas.

Também com relação ao projeto de lei 1.951, há outra proposta, bem interessante e inovadora no âmbito do Parlamento brasileiro, que é a previsão de porcentagem mínima de Cadeiras a serem preenchidas por mulheres. A aplicação ocorreria a partir das eleições de 2022 e essa porcentagem mínima de cadeiras seria aplicada de forma gradual, ou seja: eleições de 2022 e 2024, 18%, eleições de 2026 e 2028 seria de 20% e assim por diante, até chegar em 30% nas eleições de 2038 e 2040.

Há críticas que estão sendo direcionadas a essa previsão gradual na reserva de cadeiras, de que nas próximas eleições já deveria haver a reserva de vagas de 30%. Indubitavelmente que é o mínimo que almeja aqueles e aquelas que buscam uma sociedade mais justa, igualitária e plural. No entanto, teço crítica um pouco distinta: partilho da preocupação desse percentual tão pequeno que vai sendo acrescido, inicialmente de 2 em 2 por cento, e ainda sendo aplicado o mesmo percentual por duas eleições seguidas. Poder-se-ia implementar de forma gradativa, porém, de modo mais célere e com percentuais maiores acrescidos a cada eleição, para que se alcançasse antes das eleições de 2038 o mínimo de 30%.

Essa preocupação de implementar gradativamente o percentual de cadeiras no Parlamento brasileiro é para que, concomitantemente, vá ocorrendo modificações na conscientização dos eleitores, da necessidade de um voto mais plural. Nas palavras de Liszt Vieira (2001, p. 49), “a participação política assume a mais alta forma de humanidade como princípio de incorporação e unidade social”. Constituem-se importantes componentes da justiça como equidade a heterogeneidade e a multiplicidade de perspectivas.

As estruturas tradicionais de dominação, exclusão e desigualdade do aparelho estatal se encontram enraizadas nas instituições, valores e identidades coletivas, baseadas em preconceitos de raça, gênero e classe (VIEIRA, 2001, p. 79). A consequência principal do preconceito é a discriminação. Na discriminação, aparece o juízo de valor: um grupo é bom e o outro mau, um civilizado e o outro bárbaro ou um superior e o outro inferior. E, muitas vezes, há uma consequência, que é a de exploração, escravidão ou eliminação do grupo considerado mau, bárbaro ou inferior. As consequências do preconceito ocorrem em determinados graus: discriminação jurídica, marginalização social e perseguição política (BOBBIO, 2002, p. 106-118).

Nesse sentido, há preconceitos de raça, gênero e classe enraizados no aparelho estatal, sendo uma barreira para o acesso de grupos minoritários nos espaços de poder. Por isso a importância de implementação gradativa de alterações no sistema eleitoral, pois trata-se também de mudança social. Essas modificações são essenciais para concretização de postulados da Constituição de 1988, de pluralismo político e redução das desigualdades sociais. O princípio republicano, pautado no texto constitucional, implica na valorização da diversidade para construção de um espaço público de inclusão (SALGADO; GUIMARÃES; MONTE-ALTO, 2015, p. 175).

Assim, em paralelo, defende-se que devem ser intensificadas campanhas de incentivo do voto em candidaturas femininas. As organizações da sociedade civil que atuam nessas pautas precisam urgentemente somar esforços nessas frentes. O papel da sociedade civil organizada, em conjunto com ações e políticas do

Estado, é essencial na construção de espaços públicos plurais. Deve ocorrer a promoção do debate na sociedade civil sobre temas que muitas vezes são excluídos ou colocados em segundo plano na agenda pública (DAGNINO, 2002, p. 10), sendo a atuação das organizações da sociedade civil fundamental neste processo.

Ainda, enquanto cidadãos que acreditam que a democracia deve ser plural, ou seja, a composição do Parlamento brasileiro deve abarcar a heterogeneidade, também é possível auxiliar individualmente nessas mudanças. Um exemplo seria com a realização de doações financeiras para essas candidaturas de mulheres e pessoas negras – que muitas vezes enfrentam problemas no financiamento de suas campanhas¹¹ , fator este bastante decisivo no acesso a cargos políticos.

Dessa forma, defende-se no presente ensaio que a redação do dispositivo que se relaciona com as cotas de gênero deve permanecer com o termo “preenchimento de vagas”, e não ser alterado para “reserva de vagas”, para não haver retrocessos nas candidaturas femininas.

Salienta-se a aprovação da Emenda Constitucional n. 111, em 28 de setembro de 2021. Dentre as inovações dessa emenda, destaca-se o dispositivo 2º, que prevê peso em dobro dos votos para mulheres e negros, a fim de distribuição de recursos do fundo partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), nas eleições realizadas de 2022 a 2030 para a Câmara dos Deputados. Essa previsão pode servir enquanto importante incentivo dos próprios partidos políticos a essas candidaturas, vez que impactará na distribuição de recursos financeiros para os partidos.

Deve ocorrer uma atuação conjunta em diversas frentes para que se conscientize acerca da importância de um sistema representativo plural, para que se altere o cenário de exclusão de grupos no Parlamento brasileiro. O Estado, através de ações e campanhas; os partidos políticos, a partir de distribuição mais equânime de recursos; os cidadãos, contribuindo financeiramente no financiamento de

candidaturas de grupos minoritários ou politicamente, na conscientização de outras pessoas acerca da importância da diversidade; e, ainda, da sociedade civil organizada¹¹⁷, de organizações da sociedade civil que contribuam para inclusão de candidaturas femininas.

É preciso que o Parlamento no Brasil deixe de ser marcado pela exclusão. Parafraseando Jandira Feghali (2021, p. 104) em seu texto sobre violência política de gênero, enfatizo que: “não tem volta. A democracia e a liberdade política plena exigem a presença, a vez e voz das mulheres de todas as cores, pensamentos, religiões e orientações”.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros ensaios. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Unesp, 2002.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: https://www.tse.jus.br/hotsites/pesquisas-eleitorais/resultados.html. Acesso em: 19 nov. 2021.

DAGNINO, Evelina. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. In: DAGNINO, Evelina (Org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 09-16.

FEGHALI, Jandira. Para não calar, encarar! In: D’ÁVILA, Manuela (org). Sempre foi sobre nós: relator da violência política de gênero no Brasil. Porto Alegre: Instituto E se fosse você, 2021, p. 88-107.

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IBGE. Quantidade de homens e mulheres. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidadede-homens-e-mulheres.html. Acesso em: 19 nov. 2021.

JUVENTUDES IBEROAMERICANAS. En busca de la realización de la igualdad de género en el ámbito público. Disponível em: https://juventudesiberoamericanas.com/en-busca-de-la-realizacion-de-laigualdad-de-genero-en-el-ambito-publico/. Acesso em: 21 nov. 2021.

SALGADO, Eneida Desiree; GUIMARÃES, Guilherme Athaides; MONTEALTO, Eric Vinicius Lopes Costa. Cotas de gênero na política: entre a história, as urnas e o Parlamento. Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito, Paraíba, n. 03, p. 156-182, 2015.

SANTANO, Ana Cláudia. O financiamento da política: teoria geral e experiências no direito comparado. 2. ed. rev. atual. Curitiba: Íthala, 2016.

VIEIRA, Liszt. Os argonautas da cidadania: sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001.

113 Doutora em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Mestre em Direito, Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano (NUPED/PUCPR). Diretora acadêmica do Instituto Política por.de.para mulheres e membro fundadora do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar (PARLA). Professora de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). E-mail: [email protected]

114 Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019, as mulheres constituem 51,8% da população brasileira. IBGE (IBGE, 2021).

115 Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019, os negros constituem 56,2% da população brasileira (IBGE, 2021).

116 Destaca-se aqui o crowdfunding, que vem sendo uma resposta para tornar viáveis candidaturas não beneficiadas pelo sistema tradicional de financiamento, ou que obtêm poucos recursos. Um dos desafios ainda enfrentados por este instituto é a cultura política, visto que ainda há desconfiança por parte da população, especialmente no envio de valores através da internet (SANTANO, 2016, p. 85-89).

117 Com relação à atuação de organizações sem fins lucrativos nesse âmbito, neste texto Tailaine Cristina Costa e eu trazemos algumas questões sobre a participação feminina no âmbito público e explicamos um pouco sobre o Instituto Política por.de.para Mulheres. O mesmo pode ser encontrado em: JUVENTUDES IBEROAMERICANAS. En busca de la realización de la igualdad de género en el ámbito público. Disponível em: https://juventudesiberoamericanas.com/en-busca-de-la-realizacion-de-laigualdad-de-genero-en-el-ambito-publico/. Acesso em: 21 nov. 2021.

SEGUNDO SEXO

Samia Moda Cirino¹¹⁸

Sexo e gênero são categorias sobre as quais perpassam as mais diversas compreensões nos feminismos. Trata-se de discussão central, eis que as estratégias de lutas para superação da violência de gênero requerem adequada compreensão dessas categorias e de suas interrelações com outras categorias, como corpo, sexualidade, raça, classe etc. Inclusive, pode-se afirmar que o desenvolvimento dos feminismos, seus rumos e pautas, é radicalmente alterado de acordo com a interpretação que se confira a essas duas categorias.

No século XX, como referência da virada dos estudos sobre gênero nos feminismos, temos a filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986). À época do lançamento da obra O Segundo Sexo (1949), o mais impactante em sua célebre frase: “não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009, p. 361), foi a assunção de uma postura que rompeu com a compreensão comum até então nos feminismos de que gênero era um dado natural. Ou seja, Beauvoir ousou ir além da compreensão biologizante de gênero de sua época, que encerrava as mulheres ao seu papel social natural, reprodutivo, e as limitava a um estereótipo feminizado, submisso e frágil.

A noção não natural do gênero é defendida pela autora (BEAUVOIR, 2009, p. 71) segundo o entendimento de que “não é a natureza que define a mulher: esta é que se define retomando a natureza em sua afetividade”. A partir dessa afirmação, Beauvoir expõe que o gênero não está pré-determinado, baseado na morfologia do corpo, mas, antes, trata-se de uma construção cultural, variável de acordo com o significado socialmente atribuído à diferença sexual em um processo de aculturação dos corpos:

[...] é enquanto corpos submetidos a tabus, leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se realiza: é em nome de certos valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é a fisiologia que pode criar valores. Os dados

biológicos revestem o que o existente lhes confere (BEAUVOIR, 2009, p. 69).

Com isso, há uma virada nos feminismos para compreender o gênero como constructo social, ou seja, a interpretação dada à diferença sexual em cada contexto social e cultural específico. A diferença sexual é aqui entendida como as posições sexuais dentro de uma ordem simbólica que estabelece o sentido de realidade e de inteligibilidade cultural (CIRINO; CASTRO, 2019, p. 416).

Mas, as questões suscitadas por Beauvoir, que impactaram definitivamente os rumos dos feminismos, vão além da exposição do gênero como constructo social - ainda que ela não tenha ingressado na questão de como essa constituição ocorre no processo de subjetivação. A intensão de Beauvoir em O Segundo Sexo é encontrar um potencial emancipatório para as mulheres a partir da compreensão do gênero como um devir. Os mecanismos trabalhados por ela para essa emancipação são a agência (transformação individual com alteração do entorno) e apropriação dos significados culturais.

Desse modo, entre os diversos aspectos que envolvem “ser mulher” na obra de Beauvoir, temos como contribuições emblemáticas para o desenvolvimento dos feminismos: I) a superação da noção de gênero a partir de fatores biológicos, desvelado como sexo vivido de forma cultural; II) a distinção entre sexo e gênero, que tangenciaram seus estudos, e questionamentos acerca da própria noção de sexo, ainda que não fosse o foco de suas análises; III) a compreensão do gênero como um aspecto da identidade gradualmente adquirido, ou seja, um processo, um devir de si mesmo que culminaria em uma espécie de emancipação das mulheres por transcendência a um status universal masculino.

Sobre a contribuição dos estudos de Beauvoir para a elucidação do gênero, a interpretação conferida pela filósofa norte americana Judith Butler, referência sobre Estudos de Gênero no século XXI, é uma das mais citadas e controvertidas. Na célebre obra Problemas de Gênero (1990), Butler considera que “se há algo de certo na afirmação de Beauvoir, de que ninguém nasce e sim

torna-se mulher, decorre que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim” (BUTLER, 2015, p. 69). Como um processo contínuo, o termo está aberto a intervenções e ressignificações.

Em uma leitura superficial e isolada da vasta obra de Butler, especialmente na obra citada - Problemas de Gênero - pode-se incorrer no equívoco comumente apontado a ela, de que teria focado indevidamente sua crítica no aspecto voluntarista do gênero em Beauvoir, a exemplo da seguinte passagem: “É o gênero tão variável e volitivo quanto parece sugerir a explicação de Beauvoir?” (BUTLER, 2015, p. 29). Contudo, há que se considerar que Butler se serve, de certo modo, do aspecto de constituição do gênero como um processo descrito por Beauvoir para, então, desenvolver sua própria teoria performativa de gênero. Nesse sentido, em seus estudos iniciais em Yale French Studies, Butler (1986, p. 41) exalta o fato de Beauvoir ter logrado apresentar uma alternativa aos modelos patriarcais de aculturação que tratam os humanos como produtos de causas a priori, sem deixar qualquer possibilidade transformadora para a agência pessoal.

A complexidade dos debates que envolvem a obra O Segundo Sexo evidencia que, em Beauvoir, gênero é uma construção ambígua, pois, como destaca Butler (1986, p.36), não se trata apenas de uma construção cultural imposta sobre a identidade, mas um processo de constituição de si mesmo. A tensão apontada envolta do gênero requereu de Beauvoir entrar na discussão sobre o corpo, mas não restrita à contradição comumente discutida na modernidade, entre ser em ou além do corpo, e sim acerca do processo de aculturação dos corpos descritos por Beauvoir (2009, p. 65):

[…] Pois, sendo o corpo o instrumento de nosso domínio no mundo, este se apresenta de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. Eis porque os estudamos tão demoradamente; são chaves que permitem compreender a mulher. Mas o que recusamos é a ideia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia dos sexos; não explicam por que a mulher é o Outro; não a condenam

a conservar para sempre essa condição subordinada.

Isso decorre do fato de Beauvoir compreender o corpo como situação que comporta dois significados: I) como realidade material, isto é, um lugar de interpretação cultural, uma realidade previamente definida em um contexto social; II) o corpo como situação, ou seja, de ter que assumir e interpretar aquele conjunto de significações culturais recebidas. Como situação, para a maioria das mulheres, o corpo significado culturalmente torna-se um limite intransponível.

Se o corpo, assim como o gênero, é também uma situação cultural, logo, falar em um sexo natural, em Beauvoir, igualmente, não parece correto, eis que a anatomia sozinha não possui qualquer significador inerente nos seus estudos. Como aponta Butler (1986, p. 46), na obra de Beauvoir, alguém se tornar um gênero, implica muito mais do que uma simples distinção entre sexo e gênero.

Quanto à questão específica da categoria sexo, Beauvoir não entrou propriamente nessa definição, mas seus estudos serviram para diversas feministas avançarem no sentido de também questionarem o estado natural do sexo. Por outro lado, justamente ao não questionar propriamente a categoria do sexo, a tese de Beauvoir acabou por dar margem a interpretações no sentido de que ela se manteve presa aos feminismos que partem do sexo biológico para a afirmação do gênero, a exemplo das seguintes considerações da autora sobre o papel da constituição biológica: “Esses dados biológicos são de extrema importância: desempenham na história da mulher um papel de primeiro plano, são elementos essenciais de sua situação” (BEAUVOIR, 2009, p. 65). Isso permitiu uma certa compreensão de que, em Beauvoir, o sexo continuaria como um dado invariável e anatomicamente distinto dos corpos (fêmea), enquanto o gênero (mulher), foco propriamente de seus estudos, seria o significado cultural e a forma que o corpo adquire, enquanto sexo vivido.

Segundo essa leitura, ao manter o aspecto biológico para afirmação do sexo, o corpo continuaria como um local passivo de inscrição de um sexo

biologicamente determinado e o gênero como diferença sexual, portanto, determinado culturalmente a partir do significado conferido às diferenças biológicas entre homens e mulheres. Consequentemente, estaria mantida a relação mimética entre sexo natural e gênero. Com o sexo preso ao aspecto biológico, o conceito de gênero continuaria suplementar, de modo que o biológico seria sempre a base sobre a qual os significados culturais são estabelecidos.

Em uma leitura diversa, ao advertir sobre o sexo vivido, e vivido culturalmente, Butler considera na obra de Beauvoir uma potência para questionar a própria categoria de sexo. Primeiramente, deve-se considerar que não foi escopo de Beauvoir fazer uma distinção entre sexo e gênero e, portanto, entrar em discussão pormenorizada sobre o que seria o sexo. Ainda assim, seus estudos indicam que o sexo também não é tão fixo, pois se apresenta como sexo vivido, logo, também como processo de aculturamento dos corpos. Aliás, comumente há uma confusão em tentar entender sexo como gênero em Beauvoir, a exemplo do questionamento realizado por Butler na obra Problemas de Gênero (2015, p. 29):

[...] Se como afirma ela [Beauvoir], ‘o corpo é uma situação’, não há como recorrer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais; consequentemente, o sexo não poderia qualificar-se como uma facticidade anatômica pré-discursiva. Sem dúvida, será sempre apresentado, por definição, como tendo sido gênero desde o começo.

Mas, em outros estudos, Butler (1986, p. 45) ressalta que não se deve levar as formulações de Beauvoir a consequências não declaradas ou pretendidas pela filósofa, ou seja, indagar a relação necessária, ou não, entre gênero e sexo. Isso porque, afirma Butler (1986, p. 45), ao entender o corpo como situação, Beauvoir coloca essas categorias em um âmbito muito mais amplo de discussão, isto é, no campo da cultura, que vai muito além da distinção entre sexo e gênero.

Ao questionar o caráter biológico do gênero, Beauvoir logra demonstrar porque

as mulheres são o que denomina Segundo Sexo. Esse termo cunhado por ela evidencia o dualismo nas relações de gênero, ou seja, o homem representa o positivo e o neutro, a ponto de designar os seres humanos, enquanto a mulher aparece como o negativo, “de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação sem reciprocidade” (BEAUVOIR 2009, p. 16). Nesse sentido, o homem é o Sujeito na nossa sociedade, enquanto as mulheres são o Outro, portanto, não sujeito, eis que “a humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo” (BEAUVOIR, 2009, p. 16).

Assumindo uma perspectiva hegeliana, Beauvoir descreve a interrelação entre o homem descorporificado e a mulher corporalmente definida. Em outras palavras, a mulher é o seu corpo; essa é sua essência; ela é como um objeto, uma facticidade. Está presa na imanência como forma de opressão, e não na transcendência, o que é significativamente diferente de afirmar que alguém existe com o seu corpo, pois implica entender o corpo como um projeto e portador de significados criados (BUTLER, 1986, p. 43).

Por isso, a saída apontada por Beauvoir seria uma espécie de modelo de liberdade sem gênero, pois, especialmente para a mulher, tornar-se um gênero, implica sacrificar sua autonomia e capacidade de transcendência. Por outro lado, Butler (1986, p. 43) ressalta que ela acaba por assumir um modelo de liberdade usualmente corporificado do modelo masculino, haja vista não vislumbrar um modelo fora do dualismo homem/mulher. Essa postura foi por muito tempo adotada nos feminismos, especialmente na década de 1980, com o ingresso expressivo de mulheres no mercado de trabalho, numa espécie de emancipação que significaria para as mulheres se corporificarem abstratamente como homens.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2009.

BUTLER, Judith. Sex and gender in Simone de Beauvoir´s Second sex. Yale French Studies. n. 72, Simone de Beauvoir: Witness to a Century. 1986, pp. 3549.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CIRINO, Samia; CASTRO, Bruna. O corpo-objeto da mulher: reificação da lógica opressora das relações de gênero no crime de importunação sexual. Argumenta Journal Law, Jacarezinho – PR, Brasil, n. 30, 2019, p. 405-433. Disponível em: http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/1628/pdf Acesso em: 30 jun. 2022.

118 Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestra em Direito e Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professora no Programa de Mestrado Profissional em Direito e no Curso de Graduação em Direito das Faculdades Londrina (FL). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

SEXO E GÊNERO

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger¹¹

Segundo Oka e Laurenti (2018, p. 248), “quando “sexo” e “gênero” são tratados em termos de uma lógica binária e oposta, há uma exclusão de pessoas e identidades que não se conformam a essa norma e, inevitavelmente, há uma invisibilidade desses sujeitos segundo esse ponto de partida epistemológico”. De acordo com os autores, não é que essas pessoas não sejam visíveis em outros contextos sociais, mas a pesquisa científica, ao partir de uma visão de mundo que não permite uma pluralidade de existências desses sujeitos em sua própria teoria, corre o risco de cometer uma exclusão deles, implicando em problemas éticos” (OKA; LAURENTI, 2018, p. 248).

Assim, a partir dos chamados processos identitários enquanto descontínuos e impermanentes, no contexto da contemporaneidade e da globalização, precisa-se agora entender o que é o “gênero. A historiadora Joan Scott (1995) relatou que o termo “gênero” em sua utilização mais recente começou a ser utilizado entre as feministas americanas que visavam destacar o caráter social das diferenças baseadas no sexo. O termo “gênero” indicava, nesse sentido, uma rejeição ao determinismo biológico que termos como “sexo” carregavam consigo, e chamava a atenção igualmente para o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade.

Ainda, era também um termo proposto por pesquisadoras feministas que acreditavam que pesquisas sobre as mulheres mudariam os paradigmas disciplinares, não apenas trazendo novos temas, mas impondo um “reexame crítico das premissas e dos critérios do trabalho científico existente” (SCOTT, 1995, p. 73). A partir disso, Scott (1995, p.75) ressalta que o uso do termo “gênero” acaba sendo utilizado como sinônimo de “mulheres” em diferentes livros e artigos, visando alcançar um certo “status científico” uma vez que teria uma conotação mais objetiva e neutra que o termo “mulheres”.

Assim, “gênero” acaba tornando-se uma forma de indicar construções culturais, isto é, uma forma de se referir às origens unicamente sociais das identidades de mulheres e homens, ou ainda, “uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (SCOTT, 1995, p. 75). E, mesmo que essa utilização enfatize o fato de as relações entre os sexos serem sociais, ela não explica as razões pelas quais essas relações são construídas como são, nem como funcionam ou mudam e, dessa forma, apesar de ser um tema novo na pesquisa histórica, não tem poder analítico para questionar os paradigmas históricos existentes. Então, a autora elabora sua definição de gênero, dividindo-a em duas partes e em diversos subconjuntos interrelacionados, porém diferenciados. Estão no núcleo da sua proposta as seguintes proposições: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86). Com isso, as mudanças nas formas de organização das relações sociais correspondem a mudanças nas representações do poder, mas não de forma unirecional.

Assim, a teorização sobre gênero reside principalmente como uma forma primária de dar significado às relações de poder. Scott define, por sua vez, gênero enquanto: “um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado. O gênero não é o único campo, mas ele parece ter sido uma forma persistente e recorrente de possibilitar a significação do poder no ocidente, nas tradições judaico-cristãs e islâmicas” (SCOTT, 1995, p. 88).

Nesse sentido, o gênero forneceria maneiras de compreender as complexas conexões entre as diversas formas de interação humana, e, assim, quando historiadores(as) tentam encontrar as maneiras pelas quais o conceito de gênero legitima e constrói as relações sociais, “eles/elas começam a compreender a natureza recíproca do gênero e da sociedade e as formas particulares e contextualmente específicas pelas quais a política constrói o gênero e o gênero constrói a política” (SCOTT, 1995, p. 88).

Dessa forma, gênero seria uma das referências pelas quais recorrentemente o

poder político é concebido, legitimado e criticado. Não apenas fazendo referência ao significado da oposição homem/mulher, mas também o estabelecendo, e protegendo o poder político (revestindo-se de certeza e fixidez, para além da construção humana, como ordem natural/divina). A oposição binária e o processo social das relações de gênero, portanto, “tornam-se parte do próprio significado de poder; pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o sistema inteiro” (SCOTT, 1995, p. 92).

Scott (1995) posiciona-se no sentido de tratar a oposição entre homem e mulher como algo contextualmente definido, repetidamente construído, como uma problemática e não como algo naturalmente dado, mas não chega a questionar o próprio caráter social da construção do significado de “sexo biológico” ou outras possíveis identidades de gênero que não estejam enquadradas dentro do binário homem-mulher. E nesse sentido, a filósofa Judith Butler (2003) procura demonstrar porque a noção de gênero deve ser reformulada. Afirma que tradicionalmente a distinção entre sexo e gênero volta-se para demonstrar que, por mais que o sexo seja “dado” em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído, e consequentemente, não é nem resultado causal do sexo, nem fixo como este. Trata-se de uma distinção que abre espaço ao gênero enquanto uma interpretação múltipla do sexo.

Mas, uma vez que o gênero são os significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, não é possível dizer, conforme a autora, que ele decorra de um determinado sexo. Levada essa afirmação ao seu limite lógico, Butler assevera que, logo, distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos (BUTLER, 2003, p. 2425).

O gênero, nesse sentido, não deve ser entendido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado, mas deve designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Isso significa dizer que “o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual ‘a natureza sexuada’

ou ‘um sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura” (BUTLER, 2003, p. 25). Ou seja, o próprio sexo não é uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura e colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma forma pela qual a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são eficazmente asseguradas. Para Butler, “a produção do sexo como pré-discursivo deve ser compreendida como efeito do aparato de construção cultural que designamos por gênero” (BUTLER, 2003, p. 26).

A feminista francesa Monique Wittig também ecoou a frase de Beauvoir, em 1981. Repetindo “Ninguém nasce mulher” no título de seu ensaio, aproximou-se e ao mesmo tempo distanciou-se de sua conterrânea existencialista: segundo Wittig, a categoria sexo não é natural, mas política e serve aos propósitos de uma sexualidade reprodutora. Isto significa que não haveria outro propósito em dividir pessoas entre sexos feminino e masculino senão atender às necessidades econômicas da heterossexualidade, que institui e reveste as categorias de uma visão naturalizada.

O sexo é, portanto, um ideal regulatório cuja materialização ocorre por meio de certas práticas altamente reguladas. Ele não é apenas um fato do corpo revelado pela natureza, mas um processo pelo qual as normas regulatórias o materializam e produzem essa mesma materialização através da reiteração forçada dessas normas. Para Butler (idem), a necessidade dessa reiteração já se mostra como um sinal de que a materialização não é em nenhum momento totalmente completa, pois apesar dos esforços, os corpos não conseguem se conformar completamente às normas pelas quais sua materialização é imposta. A partir disso, observamos que o “sexo” além de funcionar como norma, faz parte da prática regulatória que produz os corpos que define e controla (BUTLER, 2010, p. 153).

Nesse sentido, o “sexo” é uma narração cultural e política do corpo, discursivamente produzida e difundida, portanto, não existiria a distinção entre “sexo” e “gênero” afirmada por Beauvoir e tantas outras autoras. O gênero estaria imbuído no sexo e o sexo no gênero desde o início.

Portanto, o gênero só pode significar algo como uma unidade de experiência, de sexo, gênero e desejo, quando se entende que o sexo exige um gênero, sendo o gênero uma designação psíquica e/ou cultural do eu, e um desejo sendo o desejo heterossexual e, dessa forma, diferenciando-se mediante uma relação de oposição ao outro gênero que ele deseja. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS), embora conceitue gênero como “as características socialmente construídas das mulheres e dos homens”, já enfatiza a importância de se manter sensível a “identidades diferentes que não se encaixam necessariamente nas categorias binárias de homem e mulher”¹²

Como bem ressaltou a bióloga Anne Fausto-Sterling (2002) em seus ensaios, as verdades sobre a sexualidade/identidade humana são um componente das lutas morais, sociais e políticas travadas em nossas culturas e economias. Concomitantemente, componentes dessas lutas morais, sociais e políticas são, em termos literais, corporificados no nosso ser fisiológico. A grande questão, nesse sentido, é como nossos corpos incorporam e confirmam essas verdades, quando falamos em gênero, e de que maneira verdades esculpidas pelo meio social em que os biólogos praticam seu ofício, por sua vez, dão forma a nosso ambiente cultural e são legitimadas pelo discurso jurídico.

Dito tudo isso, a normatividade produzida e que produz o sistema sexo/gênero influencia nossa organização jurídico-social e o “contrato original”, que é invocado tantas vezes como o fundamento do Direito, é estudado no seu aspecto de acordo social, mas especialmente suprimido em relação ao acordo de gênero (e também de raça) que o envolve. Ainda, pudemos perceber que a coerência sexo/gênero/sexualidade normatizada também opera como um modo de regulação da vida das pessoas e da sociedade, uma vez que, havendo uma forma “normal” de vivenciar os gêneros, existirá também uma forma “normal” de construção da família, por exemplo. Não há como deixar de identificar um caráter político nessa lógica, uma vez que não resta lugar para aqueles que a escapem (OLEA, 2018).

Há compreensões de verdade no Ocidente. E, nesse sentido, a ideia de um

sentido unívoco do “sexo” trazida por Foucault (1993) como uma produção a serviço da regulação e do controle sociais da sexualidade também tem por base uma ideia de verdade a ser revelada, mas dessa vez, não sobre um fato jurídico ocorrido, mas sobre os próprios sujeitos, ou sobre suas “essências”.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2003.

BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo”. In: LOURO, Guacira. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismos em duelo. Tradução de Plínio Dentzien. Cad. Pagu [online]. 2002, n.17-18, pp.9-79.

FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

OKA, Marcelo; LAURENTI, Carolina. Entre sexo e gênero: um estudo bibliográfico exploratório das ciências da saúde. Saúde Soc. São Paulo, v.27, n.1,

p.238-251, 2018. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/sausoc/2018.v27n1/238-251/pt. Acesso: 04 mar. 2022.

OLEA, Thais. CORPOS QUE CHORAM, CORPOS QUE LUTAM: OS DISCURSOS JURÍDICOS E O PROCESSO DE GENERIFICAÇÃO COMPULSORIA. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito e Justiça Social. Universidade Federal do Rio Grande, 2018.

Organização Mundial da Saúde, em matéria chamada “Gender, equity and human rights”. Disponível em: http://www.who.int/gender-equityrights/understanding/gender-definition/en. Acesso: 10 fev. 2022.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revisão de Tomaz Tadeu da Silva. Educação & Realidade: Porto Alegre, vol. 20, nº2, jul/dez. 1995, pp. 71-99.

WITTIG, Monique. El pensamiento heterosexual y otros ensaios. Madrid: EGALES, 2006.

SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes; REIS, Maurício Martins. Identidade e alteridade do ser: os desafios da pluriversalidade à interculturalidade. CONPEDI Law Rewiew: Onãti, Espanha. v.2, n. 3. p. 154-173. Jan/Jun 2016.

119 Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Direito pela UFPR. Possui Graduação em Direito pela Universidade

Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1995). Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande FURG. Professora dos cursos de graduação e do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP/RS. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, Direito Ambiental e Direitos Humanos, América Latina e questões decoloniais. Professora pesquisadora do CNPq e FAPERGS. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Tutelas à efetivação dos direitos indisponíveis, Linha Tutelas à efetivação de Direitos Públicos Incondicionados. Grupo de Pesquisa: Sociedade da informação e “Fake Democracy”: os riscos à liberdade de expressão e à democracia constitucional - FMP-RS. Responsável pelo Grupo de Estudos da FURG sobre Direito constitucional, violência e crise migratória. Advogada do escritório de Advocacia Luciane Dias Sociedade de Advogados - Pelotas/RS.

120 Retirado do site oficial da Organização Mundial da Saúde, em matéria chamada “Gender, equity and human rights”. Disponível em: http://www.who.int/gender-equity-rights/understanding/gender-definition/en/. Acesso em: 12 mar. 2022.

SEXUALIDADE

Paloma Silveira Pique Dourador¹²¹

A sexualidade é tida como atributo fundamental e eixo de compreensão do ser humano pelo menos desde Platão (2016), na antiguidade, e Schopenhauer (2014), na modernidade. Definida, por vezes, como algo que, estritamente, “diz respeito aos usos do corpo, e em particular – mas não exclusivamente – dos órgãos genitais, a fim de obter prazer físico e mental, e cujo ponto mais alto é chamado por alguns de orgasmo” (LHOMOND, 2009, p. 231), de modo que a sexualidade (2022) — qualidade do que é sexual — poderia se expressar através de condutas, comportamentos, práticas, relações e atos sexuais .

No entanto, quando buscamos pelo termo sexualidade, passamos, muitas vezes, à margem da sexualidade como parte das complexidades que enredam o ser feminino, daí a suma importância da reflexão feminista a seu respeito. Isso ocorre em decorrência de um discurso que confere voz a sexualidade masculina em detrimento do silenciamento da feminina, atribuindo à sexualidade uma característica de gênero no campo discursivo. Assim, como observa Margaret A. Mclaren (2016, p. 148), o poder do discurso normalizador, a partir de Michel Foucault, “está em sua habilidade de definir experiência de uma forma particular, enquanto, ao mesmo tempo, disfarça essa particularidade”. A sexualidade como algo íntimo ao masculino e distante, muitas vezes proibido, do feminino, foi construída em determinado momento e sob certas circunstâncias.

Historicamente, vemos que o campo da sexualidade propriamente dito se desdobrou, até o século XVIII, sob os controles e as chancelas da religião, normatizando as formas de expressão da sexualidade, seja proibindo alguns ou prescrevendo outros. Entretanto, através das diversas revoluções que puseram fim ao Ancien Régime e — ao menos em parte — ao controle moral-religioso da política, o discurso sobre a sexualidade passou a ser objeto — mas não exclusivo — da medicina, do direito civil e, também, do direito penal (FOUCAULT, 1999). Nesse interim, até o fim do século XIX e início do XX, o discurso médico sobre a sexualidade (consubstanciado na psiquiatria e na nascente sexologia) qualificava todo uso da sexualidade que não fosse para fins reprodutivos como

uma espécie de “perversão”¹²², havendo, mesmo na seara jurídica, criminalização expressa de comportamentos homossexuais quaisquer que fossem.

No entanto, ao início do século XX, com as problematizações a respeito da sexualidade trazidas pelo fundador da psicanálise, Sigmund Freud, a reflexão sobre o sexual muda estruturalmente de eixo. Sendo pioneiro em seus estudos sobre a sexualidade (e das pulsões sexuais) — fazendo-os de maneira que não fossem mais um juízo moral nem policial, normatizador, como os outros psiquiatras vinham fazendo até então —, Freud vê a sexualidade como principal meio de compreensão do humano e seus sintomas, chegando a publicar, através de seus estudos clínicos a respeito da histeria, seus “três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Importante colocar, ainda, que Freud não enxerga a sexualidade como função ligada à reprodução, ao contrário do pensamento psiquiátrico que o precede, mas como polimórfica e fragmentada, o que estabelece um confronto com a visão de um discurso moral da sexualidade que deveria servir apenas para fins reprodutivos.

Já naquilo que toca o percurso feminista de indagações e insurreições quanto à sexualidade, notar-se-á que chega mesmo a ser onipresente em toda a sua história. A dar-se o primeiro passo com Mary Wollstonecraft que publica, em 1792, o clássico “Reivindicações dos direitos da mulher” — considerado um dos documentos fundadores do feminismo —, em que, dentre as principais denunciações contidas na obra, tem-se a exclusão das mulheres do acesso a direitos básicos e a necessidade de exposição feminina à educação como base fundamental para o fim das desigualdades.

Em verdade, durante todo o século XIX, as movimentações de cunho feminista buscavam sobretudo a efetivação do sufrágio universal e obtenção de direitos civis e humanos básicos. Mas será no início do século XX — acompanhando a lenta derrocada do discurso normativo-psiquiátrico a respeito da sexualidade — que o entrelaçamento de sexualidade e feminismo se intensificará. Nesse aspecto, há de se mencionar a revolucionária russa Alexandra Kollontai, que elabora várias reflexões feministas sobre a revolução russa e a emancipação

política e sexual. Foi uma das primeiras a tocar diretamente na amarga ferida do direito reprodutivo (até então inexistente) das mulheres como meio de emancipação do jugo das opressões do capitalismo e do machismo. Para ela, fundamentalmente, uma revolução comunista que se quisesse emancipadora não deveria furtar-se de pautar questões que dissessem respeito à sexualidade, visto que é por esta via que se mantém a condição de submissão da mulher na sociedade.

Dentre as pesquisas que buscam lançar luz sob o projeto de comercialização e domesticação do corpo feminino, destaca-se Silvia Federici, que na obra “Mulheres e caça às bruxas” (2019), reconsidera o ambiente e as motivações sociais que deram início as acuações de bruxaria¹²³, atentando-se, em um primeiro momento, a relação entre a caça às bruxas e o processo contemporâneo de cerceamento e privatização de terras e, em um segundo momento, a relação entre a caça às bruxas e o crescente cerceamento do corpo feminino por meio da ampliação do controle estatal sobre a sexualidade e a capacidade reprodutiva das mulheres. A autora retoma o exposto na obra Calibã e a bruxa para trazer à tona o projeto em que as mulheres foram “empobrecidas pela capitalização da vida econômica e que a regulação da sexualidade e da capacidade reprodutiva delas foi a condição para a construção de formas mais rígidas de controle” (FEDERICI, 2019, p. 22). Assim, as autoridades puniam na figura da bruxa o “desvio da norma sexual que, naquele momento, colocava o comportamento sexual e a procriação sob o domínio do Estado” (FEDERICI, 2019, p.53-54)

Ainda, a figura da bruxa carregava consigo a descrição da sexualidade das mulheres a partir de uma análise como diabólico, a quintessência da “magia” feminina, que é central para a definição de bruxaria. A sexualidade feminina representava uma ameaça social e, portanto, a “nascente classe capitalista precisou desprezar a sexualidade e o prazer feminino” (FEDERICI, 2019, p.6667).

Ao longo do século, as reflexões sobre a sexualidade e a vida reprodutiva irão se desenvolver principalmente no campo da psicanálise, psicologia, psiquiatria e da

ginecologia/urologia. Importante colocar que também comportamentos sexuais homossexuais e etc. permaneciam vistos como uma doença pela OMS até o ano de 1990. Para fins de controle reprodutivo, um dos grandes feitos foi a invenção do anticoncepcional na década de 60, que permitiu ainda mais essa separação entre sexo e reprodução para as mulheres. Assim, tem-se que a luta por direitos civis pelas feministas se deu com grande ênfase até os anos 60 (continua até hoje em países do sul global e mesmo dos países desenvolvidos, mas com ênfase em outras facetas do direito civil como tratamento equânime ao dos homens no trabalho e etc.) lutando por direito ao voto e o direito ao divórcio unilateral, que não era reconhecido em muitos países até então.

Outro grande acontecimento para a sexualidade foi a rebelião de stonewall, nos EUA, em 1969, que levou à libertação gay e luta por direitos LGBT nos EUA e no mundo, dando origem à marcha LGBT. Ainda, outro fato importante para a sexualidade foi a libertação sexual/revolução sexual de 1960/1970. A liberação sexual inclui uma maior aceitação do sexo fora das relações heterossexuais e monogâmicas tradicionais (principalmente do casamento). A contracepção e a pílula, nudez em público, a normalização da homossexualidade e outras formas alternativas de sexualidade e a legalização do aborto foram fenômenos que começaram a ganhar força nas sociedades ocidentais. A revolução de maio de 1968 na França foi uma das principais a pautar essas questões da revolução sexual. Foi um momento de quebra de tabus, como da masturbação, das fantasias eróticas, pornografia e etc.

A luta pela liberação sexual e pelos direitos civis feministas após o surgimento de métodos contraceptivos como o anticoncepcional alavancaram o debate sobre o aborto, ocorrendo principalmente na França, na década de 70, onde houve grandes movimentos feministas. Houve também as marchas contra o estupro, que aconteceram principalmente no ano de 1975 na França, que também dizem respeito à toda essa questão de sexualidade entrelaçada pelo feminismo. Se faz necessário salientar que a principal reflexão sobre a sexualidade na história vem através de Michel Foucault (1999), com suas publicações da “história da sexualidade”.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Sexualidade. São Paulo: Melhoramentos, 2022.

FEDERICI, Silvia. Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade – I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2018.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: companhia das letras, 2016.

KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a nova moral sexual. Rio de Janeiro: expressão popular, 2011.

LHOMOND, Brigitte. Sexualidade. In: HIRATA, Helena [et al] (orgs.)

Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

PLATÃO. O banquete. Tradução José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora 34, 2016.

SCHOPENHAUER, Arthur. [W II] O Mundo como Vontade e Representação. Tomo II. Tradução Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Editora UFPR, 2014.

121 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), área de concentração Constitucionalismo e Democracia, Linha de Pesquisa Efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católicas de Minas Gerais. Advogada. E-mail: [email protected].

122 Neste ponto, se faz necessário salientar que um dos quatro grandes dispositivos do saber e poder se perfaz na histerização do corpo da mulher, “correspondendo a um triplo processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado como integralmente saturado de sexualidade foi integrado ao campo das práticas médicas e, finalmente, estabeleceu-se sua comunicação orgânica com o corpo social, o espaço familiar e a vida dos filhos” (CASTRO, 2016, p. 400).

123 Nesta pesquisa, utilizamos o termo “bruxa”, a partir dos estudos de Silvia Federici (2019, p. 53), como a mulher de má reputação que na juventude apresentara comportamento libertino/promíscuo e muitas vezes tinha crianças fora do regime matrimonial, agindo contra o modelo de feminilidade imposto à população feminina da Europa através do púlpito e da reorganização familiar.

SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NA POLÍTICA

Jéssica Melo Rivetti¹²⁴

Quando criança, Dilma Vana Rousseff sonhava em ser bailarina. Essa era a realidade de muitas meninas nos anos de 1940 e 1950 no Brasil, que vislumbravam seguir contos de fadas e profissões consideradas “femininas”. Essas estórias das mulheres como fadas, princesas, mães e cuidadoras, são contadas séculos após séculos, tornando-se uma espécie de norma oculta introjetada por meio da socialização familiar e escolar (ILLOUZ, 2012). Vale destacar que não estamos falando apenas de contos escritos há séculos atrás, mas sim, de temas ainda presentes no cotidiano heteronormativo e de dominação masculina (BUTLER, 2011). As mulheres ainda, nos dias de hoje, ocupam posições que destacam uma certa “ética do cuidado” (GILLIGAN, 1982), fruto das assimetrias nas esferas domésticas como a divisão sexual do trabalho, desvalorização do trabalho feminino e as diversas formas de violência de gênero. Nesse sentido, a feminilidade é forjada como uma “função-trabalho” que oculta as desigualdades sociais mascarando a exploração das mulheres ao utilizar um discurso de cunho afetivo e de cumprimento do destino biológico (FEDERICI, 2019, p. 31).

Sabe-se que a maioria da população mundial é composta por mulheres, mas por que isso não reflete nas instâncias de poder? Segundo dados divulgados em um estudo da União Interparlamentar, o Brasil ocupa a posição 145° em termos de participação das mulheres na política nacional. Na Câmara dos Deputados, das 513 cadeiras, apenas 76 são ocupadas por mulheres, ou seja, 15% do total. Já no Senado, das 81 cadeiras, apenas 14 (17%) são ocupadas por mulheres.

Quando comparado com o índice geral dos demais países, o Brasil fica abaixo tanto na Câmara baixa (ou Câmara dos Deputados) 15% em comparação a 26% do total. Já na Câmara alta (Senado, no nosso caso), a diferença diminui, mas ainda continua elevada, como se pode ver no gráfico abaixo. Ficamos com apenas 17% de mulheres no Senado em comparação a 25% do total.¹²⁵

O gráfico acima evidencia que apesar de estar abaixo do nível mundial de participação política feminina, a média mundial também está distante de uma paridade de gênero. No caso do Brasil, se as mulheres são 52% da população total, por que há baixa representatividade política?

São inumeráveis os motivos dessa disparidade acontecer e, muito disso ocorre, em função das dinâmicas da esfera privada. As mulheres são tradicionalmente responsáveis por trabalhos domésticos como a maternidade, o cuidado com os outros (jovens, crianças e idosos), além do preparo de alimentação e demais atividades não remuneradas. Elas são mais sobrecarregadas com esses afazeres do que os homens.

Em geral, também têm pouco incentivo familiar, partidário e financeiro para seguir com suas postulações ao pleito. Mais adiante também sofrem com a falta de tempo para participar de atividades políticas e partidárias, já que se encontram com sobrecarga de trabalho (BARROS, SILVA NASCIMENTO, 2021).¹² Esses entraves elencados, tanto simbólicos quanto materiais, dificultam cada vez mais o acesso e permanência das mulheres em espaços de deliberação política.

Nesse sentido, ressaltamos que os baixos índices de representação feminina não são resultados de falta de interesse, predisposição ou de capacidade cognitiva, mas de uma estrutura de dominação das elites econômicas, majoritariamente heteronormativa, masculina e branca, que reproduzem discursos de desqualificação profissional da pluralidade que abarca a categoria de mulheres. Essas barreiras invisíveis que impedem o acesso formal das mulheres em posições prestigiosas no campo político, econômico e cultural, são chamadas de teto de vidro ou glass ceiling.

Ao alcançar os restritos espaços da elite política, superando os percalços da subrepresentação, sofrem também distintas violências simbólicas e de gênero por seus pares ao não serem reconhecidas como agentes políticas legítimas.

Chamamos essa ambígua dualidade de ser uma política ocupando espaços de destaque e, ainda assim, não ter reconhecimento, como uma espécie de protagonismo marginalizado (MELO, 2016).

Isso ocorre, pois, mesmo exercendo uma posição de maior prestígio político em um Estado democrático, muitas ainda precisam mobilizar uma série de credenciais para obter uma governabilidade –para além do que seria usual a qualquer político homem–, o que demonstra traços de sexismo e misoginia no campo político (BOURDIEU, 2011). Um exemplo disso é o que se passou com duas presidentas latino-americanas eleitas em períodos similares, Dilma Rousseff no Brasil e Cristina Fernández de Kirchner na Argentina.

De um lado temos Rousseff, uma política “novata” que ingressou no campo do poder através de sua experiência técnica e burocrática (capital educacional e social) e mesmo sem nunca ter participado de uma eleição, saiu vitoriosa das eleições presidenciais em 2010. Após sua reeleição em 2014, sofreu um processo de impeachment justificado por discursos conservadores e antifeministas de seus opositores (RUBIM, ARGOLO, 2018). De outro lado, Fernández de Kirchner, uma política profissional cuja carreira política consolidou-se na área, vencendo todas as eleições que disputou até hoje, seja como deputada, senadora, governadora, presidenta e vice-presidenta. Esses dois casos trazem elementos interessantes porque demonstram diferentes tipos de violência política de gênero (KROOK, 2017)¹²⁷, seja por um apelo aos trejeitos de feminilidade de uma, e à crítica pela “ausência” de enquadramento aos padrões estéticos socialmente naturalizados por outra. Mesmo tão diferentes e com atributos políticos, as duas possuem histórico de serem alvos de ataques questionando a estética, as competências intelectuais, de gestão administrativa e, principalmente, a sexualidade e a vida afetiva.

Notem-se que não há impeditivos normativos que restrinjam a inserção feminina das atividades com status de distinção, no entanto, sabemos que o caminho das mulheres em direção ao topo é muito mais adverso do que aqueles que historicamente ocuparam essas posições. Para além dessas dificuldades em se

atingir as cúpulas, existe também uma necessidade de urgência por determinados grupos de saírem no nível mais baixo da pirâmide social, como por exemplo, as mulheres abaixo da linha de pobreza, mulheres racializadas, as mães solo, e outras (VERGÈS, 2020).

Ao fazermos uma leitura interseccional sobre a sub-representação das mulheres na política, transversalizamos categorias como raça, classe, etnia, orientação sexual, escolaridade e localização geográfica com gênero e observamos um problema ainda mais profundo que é o solo pegajoso ou sticky floor (BURIN, 2008).

Antes de se atingir o topo, as mulheres precisam, primeiramente, ter condições sociais e econômicas para concorrer em razoáveis condições de igualdade aos homens. Para isso, é necessário superar o solo pegajoso e ir acessando os espaços socialmente desnaturalizados as suas presenças. Para a defesa de mais mulheres na política é preciso então, de medidas institucionais como, à curto prazo, políticas afirmativas como as cotas de gênero¹²⁸ e, a longo prazo, políticas transformativas como a reforma política e alteração do sistema eleitoral para que seja exequível o combate às injustiças sociais (FRASER, 2007). Esses “remédios” seriam voltados para a correção da estrutura de desigualdades, superando a ausência de reconhecimento da agência das mulheres e de grupos historicamente subalternizados (como LGBTQIA+, pessoas racializadas, imigrantes e outros).

O caso da infância de Dilma, citado inicialmente, nos demonstra a importância do que chamamos de representatividade, uma vez que a partir do momento em que se tem identificação com o/a Outra/o, esse passa a ser um exemplo a ser seguido. No ano de 2010 com a vitória eleitoral da primeira mulher à presidência no país, muitas brasileiras, mulheres e meninas, passaram a vislumbrar este espaço político como um local possível de acesso e de carreira. Ao se ver na Outra o sentimento de pertencimento é fortalecido.

Salientamos também que a temática da representação política tem sido sistematicamente desenvolvida em pesquisas acadêmicas, mas ainda encontramos espaços para reflexões originais e que buscam assimilar as novas demandas do cenário político contemporâneo, revisando as noções e práticas democráticas, além do aprimoramento do conceito e da ação de representação (PITKIN, 1967; PHILLIPS, 2013; URBINATI, 2006; YOUNG, 2000; FARIA, 2020).

Em nosso país a representação das mulheres no campo político anda a passos lentos, com índices que não são suficientes para uma igualdade nas casas legislativas, no Senado e, principalmente, no Executivo. Apesar disso, temos muitos exemplos de atuação das mulheres na política, seja a nível institucional, partidário e militante. A questão, para além da estrutura institucional, está na invisibilização histórica de seus nomes, de suas vozes e lutas sociais, nas conquistas de direitos políticos e sociais.

Nos últimos anos os movimentos feministas têm feito uma recuperação dessas figuras, reconhecendo-as como sujeitos políticos e produtores de conhecimento, de cultura e de história. Esse movimento de visibilização de mulheres e lutas “esquecidas”, pode ser entendido como uma ação política que também incentiva para que mais mulheres se vejam representadas na história legítima e oficial (PERROT, 2005).

O objetivo é que jovens e crianças sejam educados e socializados, tanto em espaços privados como em âmbitos públicos (como as escolas) a terem suas vozes escutadas. Essa mudança na educação visando uma maior socialização política feminina é essencial para a transformação cultural. Os feminismos têm lutado com afinco para que essa mudança seja possível, e por isso, vemos um aumento significativo de interesse na participação dessa parcela jovem da população por atuar em instâncias políticas e em movimentos sociais em geral. Um exemplo foi a insurgência entre os anos 2015 e 2016, de uma mobilização estudantil de secundaristas reivindicando melhorias na educação pública ao ocupar escolas nos estados do Rio de Janeiro, Paraná e em São Paulo (CASTRO,

TAVARES, 2020).

Em consequência à educação política, as jovens se sentem inclinadas e com mais oportunidades para participar institucionalmente da política (AVELAR, 2001). O que significa, em termos gerais, a ampliação de pautas que sejam de interesse das mulheres como o aumento do número de creches, escolas, e demais bandeiras defendidas pelos movimentos feministas como a equidade salarial, de oportunidades e de reconhecimento do trabalho (remunerado ou não, como o de cuidado). Mais mulheres e jovens feministas no campo do poder, enquanto representantes políticas, à nível municipal, estadual e nacional, significa também a possibilidade de que cada vez mais mulheres vislumbrem esse caminho de atuação.¹² Isso ocorre porque se rompe com as amarras visíveis e invisíveis da estrutura social de dominação masculina – como o teto de vidro e o solo pegajoso. Nesse sentido, o imaginário social vai, com o progresso das mulheres em cargos eletivos, sendo remodelado e transformado para que elas sejam reconhecidas como sujeitos políticos legítimos e naturalizadas à essas posições de poder (AVELAR, 2001).

Por fim, destacamos que a importância das mulheres ocuparem espaços de elite e de poder, superando a sub-representação, se dá através do avanço de uma sociedade rumo a um espaço igualitário, que respeite as diferenças e que tenha como fundamento o pluralismo político e a defesa do Estado democrático que só pode ser conquistado através da representação política com paridade de gênero.

REFERÊNCIAS

AVELAR, Lúcia. Mulheres na elite política brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

BARROS, Antonio Teixeira; SILVA NASCIMENTO, Willber. Mulheres

partidárias: atuação militante e participação nas atividades dos partidos. Agenda Política, v. 9, n. 1, p. 186-225, 2021.

BOURDIEU, Pierre. O Campo Político. Revista brasileira de Ciência Política, n. 5, p. 193-216, 2011.

BURIN, Mabel. Las “fronteras de cristal” en la carrera laboral de las mujeres. Género, subjetividad y globalización. Anuario de psicología/The UB Journal of psychology, p. 75-86, 2008.

BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge, 2011.

KROOK, Mona Lena. Violence against women in politics. Journal of Democracy, v. 28, n. 1, p. 74-88, 2017.

CASTRO, Lucia Rabello de; TAVARES, Renata. Direitos geracionais e ação política: os secundaristas ocupam as escolas. Educação e Pesquisa, v. 46, 2020.

FARIA, Alessandra Maia Terra. Teorias da Representação Política. Curitiba: Editora Appris, 2020.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpos e Acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Revista Estudos Feministas, v. 15, p. 291308, 2007.

ILLOUZ, Eva. Por qué duele el amor. Una explicación sociológica. Buenos Aires: Katz Editores, 2012.

MELO, Jéssica M. C. Com a palavra, Cristina Kirchner: Os usos da memória de Eva Perón no bicentenário argentino. 201f. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2016.

PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Florianópolis: EDUSC, 2005.

PHILLIPS, Anne. Democracy and Difference. Vancouver: Wiley, 2013.

PITKIN, Hanna Fenichel. The Concept of Representation. Berkeley: University of California Press, 1967.

RUBIM, Linda Silva Oliveira; ARGOLO, Fernanda. O Golpe na perspectiva de Gênero. Salvador: Edufba, 2018.

URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? Lua Nova, p. 191228, 2006.

VERGÈS, Françoise. Um feminismo Decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro e Raquel Camargo. São Paulo: Editora UBU, 2020.

YOUNG, Iris Marion. Inclusion and Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.

124 Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do GPSECC e bolsista CNPq. É mestra em Ciências Sociais pela Unifesp e atualmente coordena o Projeto Mulheres Eleitas da UFRRJ. Tem experiência com estudo de mulheres nas elites políticas, presidentas da América Latina, primeiras-damas e violência política de gênero. E-mail: [email protected].

125 Dados divulgados pela Inter-Parliamentary Union. Disponível em: https://data.ipu.org/women-ranking?month=1&year=2022. Acesso em: 31 jan. 2022.

126 No estudo de Barros e Silva Nascimento (2021), os autores verificam que no caso do campo político brasileiro, as mulheres localizadas no prisma políticoideológico de esquerda costumam possuir um maior capital militante em relação às mulheres de direita, que geralmente ingressam via capital familiar. Quer dizer, em cada horizonte político há um recurso de acesso que é legítimo e distinto ao outro.

127 No Brasil temos também um caso que ilustra até onde a violência política de gênero pode chegar, que é o silenciamento total de uma mulher que ousa ocupar o espaço político e ter sua voz ouvida. A vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco, mulher, negra, bissexual, mãe e periférica, defensora dos direitos

humanos foi brutalmente assassinada em março de 2018. C.f.: Quem é Marielle Franco? Disponível em: https://www.institutomariellefranco.org/quem-emarielle. Acesso em: 01 fev. 2022.

128 “O que são as cotas para mulheres na política e qual é sua importância?” por Danusa Marques [13/09/2018]. Disponível em: https://www.generonumero.media/o-que-sao-as-cotas-para-mulheres-na-politicae-qual-e-sua-importancia/. Acesso em: 31 jan. 2022.

129 É preciso destacar que não adianta termos apenas “mais mulheres na política” ou em cargos de grande visibilidade, mas sim, mulheres com narrativas progressistas e que beneficiem toda ou a maioria da multiplicidade de mulheres. Vale lembrar que no Brasil há muitas mulheres ocupando cargos de destaque no Legislativo atualmente e, percebemos que utilizam um discurso conservador, que rechaça a bandeira dos direitos reprodutivos e sexuais, enaltecendo agendas religiosas, antifeminista e anticiência. Então, é preciso ter cada vez mais pessoas sensíveis e aliadas à luta das mulheres, sobretudo em instâncias institucionais, que é onde se efetiva as políticas públicas.

TEORIA QUEER

Gabriela Pires¹³

As origens históricas da teoria queer remontam a meados dos anos 80, impulsionadas pela onda dos novos movimentos sociais pelos direitos civis nos Estados Unidos, pelas feministas, negros e os homossexuais. Tais acontecimentos ganharam força na iminência do surgimento da chamada contracultura, em que novos sujeitos começam a influenciar na produção do conhecimento acadêmico e na demanda por novos direitos, colocando em pauta questões sobre a vida privada e suas demandas, corpo, desejo e a sexualidade nas relações de poder (MISKOLCI, 2016).

Segundo Miskolci (2016), outro marco histórico que impulsou a teoria queer foi a epidemia da aids. Movimentos sociais conservadores dos Estados Unidos lutaram para manter as tradições, sendo a epidemia um período catalizador biopolítico que gerou resistências do movimento homossexual e lésbico que fundaram a chamada Queer Nation. A palavra queer é um xingamento nos países luso-fônicos, a qual significa algo sujo, imoral e uma injúria. Ou seja, a Queer Nation, naquele contexto, representava a nação dos anormais, abjetos e excluídos. “É assim que surge o queer, como reação e resistência a um novo momento biopolítico instaurado pela aids” (MISKOLCI, 2016, p. 24).

A palavra abjeção possui relevância nesse contexto histórico, pois representou os sujeitos aidéticos que causavam ojeriza à população, não somente isso, os abjetos seriam aquelas pessoas indignas de humanidade, visto que eram considerados uma verdadeira ameaça a ordem política e social. A teoria queer surge para questionar os sistemas normalizadores do biopoder calcados na matriz cisheteropatricarcal dentro de uma estrutura e dos dispositivos de controle dos corpos e do desejo na sociedade contemporânea. Isto é, a teoria queer poderia ser traduzida como a teoria das identidades anormais dissidentes, pois questiona diretamente as normas da biopolítica, gerando rupturas na ordem ideológica hegemônica, a qual sempre puniu severamente os corpos que ousam questionálas (MISKOLCI, 2016).

Entre as produções intelectuais que deram impulso a teoria queer podemos citar, segundo Miskolci (2016), o francês Guy Hocquenghem em sua obra dos anos 70 chamada Le désir homossexual (O desejo homossexual), obra sobre a influência do medo da homossexualidade dentro da político-social, bem como artigos da antropóloga cultural americana mais conhecida como ativista e teórica da política de sexo e gênero Gayle Rubin, principalmente o ensaio Thinking Sex (Pensando sobre Sexo) de 1984.

No Brasil, o primeiro texto que inaugurará a teoria queer, dentro do campo da educação, em 2001, chama-se Teoria Queer: uma política pós-identitária para educação, da doutora Guacira Lopes Louro, publicado na Revista Estudos Feministas, estudo que demostrou a inclinação dos estudos queer na área educacional. Tal pesquisa será importante, pois a teoria queer irá direcionar a crítica aos métodos pedagógicos de ensino de modo que eles são parte da manutenção do sistema de opressão das identidades sexuais e de gênero dissidentes da norma binária (LOURO, 2001).

Admitindo que uma política de identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela pretende se insurgir, teóricos/as queer sugerem uma teoria e uma política pós-identitárias. Inspirados no pós-estruturalismo francês, dirigem sua crítica à oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria central que organiza as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre os sujeitos (LOURO, 2001, p. 541).

Atualmente, o caráter violento da socialização escolar chama-se bullying, em que alguns acreditam ser um processo novo, porém são práticas antigas do sistema escolar. O que contribuiu para o surgimento desse conceito foi a sensibilização das violências cotidianas sofridas pelas crianças e adolescentes trans e gays. Por meio de suas práticas normalizadoras que oprimem os dissidentes das normas de sexualidade e gênero, a estrutura das escolas sempre contribuiu para que o assédio ocorresse (MISKOLCI, 2016).

Por meio de tecnologias de gênero, dispositivos discursivos, linguísticos e jurídicos, os indivíduos são enquadrados compulsoriamente desde o nascimento na lógica binária do gênero e da sexualidade (LAURETIS, 2019). Por isso, para entender o objeto de questionamento da teoria queer, é necessário o estudo sobre as categorias de sexo, gênero e sexualidade.

Tradicionalmente nossa sociedade, aliado a um aparato histórico-cultural, possui a crença de que apenas existe um indicador para identificar se uma pessoa é um homem ou uma mulher, isto é, caracterizam e definem a identidade de gênero por meio dos órgãos reprodutivos. Esse paradigma é oriundo, dentre uma gama de fatores e processos epistêmicos ocidentais, do século XVIII, da época em que se iniciou os estudos e saberes sobre o sexo como definidor do sujeito enquanto verdade pautada pela ciência (FOUCAULT, 1988).

Em síntese, o sexo, enquanto conhecimento, tornou-se um agrupamento discursivo que, ao longo dos anos, serviu de base, sentido e cognição que direcionaram os modelos atuais de divisão sexual em dois sexos distintos entre macho e fêmea (SEDGWICK, 2016). Tais pesquisas cientificas sobre a diferença dos sexos “[...] surgem no mesmo momento em que passam a ser instaurados os fundamentos do que viria a ser o paradigma moderno da ciência, calcado neste momento em bases empiricistas” (CARVALHO, 2014, p. 73-74).

Segundo Laquer (2001), a distinção sexual da genitália iniciou no século II nos tratados médicos de Galeno, em que o modelo prevalecente era o monismo sexual. Neste período o sexo masculino era tido como a referência e a vagina um órgão subdesenvolvido do pênis. Por isso, é evidente a questão histórica e situacional da formação e distinção entre os sexos, demonstrando uma elite dos saberes que definia modelos essencialistas hegemônicos sobre o corpo.

Neste contexto, é importante destacar que, engendrados em relações de poder, os

saberes sobre o sexo estão ligados diretamente a dimensão histórica e social das instituições, as quais funcionam por meio de estruturas hierarquizadas que criam valores e modelos naturalizados para homens e mulheres (INTERDONATO; QUEIROZ, 2017).

Numa perspectiva binária ou dicotômica, o sexo a partir de uma referência biológica imutável exerce uma força central nos debates em relação aos papéis de gênero, isto é, “[...] criando referenciais polarizados de quem são os homens e as mulheres. Pênis e vagina não são meramente caracteres corpóreos, mas chaves disciplinares que orientam nosso reconhecimento de mundo” (CARVALHO, 2014, p.72).

Por conseguinte, a teoria queer surge para questionar a compulsoriedade das normas heterocis na sociedade, além disso vem trazer luz as injustiças e violências perpetradas por esse sistema em que oprimido e opressor saem perdendo. Para que ocorram fissuras na estrutura histórica de opressão, é necessário o apontamento sistemático por meio de ações e debates. Denunciar as normas que sustentam a manutenção da violência sobre os corpos de pessoas gays, lésbicas, travestis e transexuais é uma das formas de ressignificar as opressões e conferir dignidade humana a diversidade.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Natalia Silveira de. Gênero e sexualidade: intersecções em disputa. In:

JESUS, Jaqueline Gomes de. (Org.). Transfeminismo: teoria e práticas. Rio de Janeiro: Metanoia, 2014. p. 69-84.

LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

LOURO, GUACIRA LOPES. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas. 2001, v. 9, n. 2. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2001000200012. Acesso em: 18 mar. 2022.

LAQUER, Thomas. Inventando o Sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

SEDGWICK, E. K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 28, p. 19–54, 2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8644794. Acesso em: 26 mar. 2021.

INTERDONATO, G. L.; QUEIROZ, M. C. “Trans-Identidade”: A Transexualidade e o ordenamento jurídico. Curitiba: Appris, 2017.

130 Pós-graduanda em Direito Previdenciário pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva - CERS; Bacharel em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Membro do Conselho Municipal da Diversidade de Santa Cruz do Sul. Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6301330965038441.

TRABALHO DOMÉSTICO

Amanda Eiras Testi¹³¹

Considerado inicialmente na Bíblia como castigo, o trabalho foi aplicado a Adão como punição por ter comido a maçã proibida e alguns historiadores defendem que este foi o momento da aparição do trabalho na sociedade, enquanto outros pesquisadores acreditam que ele já era realizado, inclusive, às margens do Nilo, antes mesmo da formação do Egito (HENDRICK apud SOUTO MAIOR, 2000, p. 35).

Se de um lado não se pode precisar o exato momento do trabalho na sociedade, doutra banda, o trabalho doméstico surge juntamente com a existência da raça humana, devendo o mesmo ser observado sob uma ampla perspectiva.

A complexidade que o tema trabalho doméstico apresenta, advém dos grandes desafios em que este percorreu no decorrer da história, seja por suas características peculiares, seja pelas desigualdades de gênero e raça, bem como pela desvalorização do trabalho reprodutivo, o que acaba por resultar na violação dos direitos humanos e fundamentais da trabalhadora e do trabalhador doméstico.

Em junho de 2011 a Organização Internacional do Trabalho – OIT apresentou a Recomendação nº 201, que discorria sobre o trabalho decente para as trabalhadoras e trabalhadores domésticos e na mesma data, houve a adoção da Convenção nº 189 da OIT, igualmente intitulada de Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos, ratificada pelo Brasil em janeiro de 2018, a qual definiu em seu artigo 1º, alínea “a” que “o termo trabalho doméstico designa o trabalho executado em ou para um domicílio ou domicílios” (OIT, 2011).

Nesse sentido, o trabalho doméstico abrange tarefas como limpar a casa, cozinhar, lavar roupas e passá-las, cuidar de crianças e demais membros de uma família que exijam cuidados especiais, jardinagem, transporte de pessoas daquela residência (motorista), dentre outras atividades desenvolvidas no âmbito residencial.

Embora o trabalho doméstico tenha sido definido e apreciado pelos diplomas legais supracitados, sua proteção permaneceu inserida em um limbo jurídico até 2015, haja vista que a própria Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, legislação criada para proteger os empregados, em seu artigo 7º, alínea “a” preconiza que salvo disposição expressa, seus preceitos não se aplicam “aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas” (BRASIL, 1943).

O que denota, portanto, é que acerca da proteção legislativa, a categoria dos domésticos não pôde contar com a proteção celetista, sendo referida proteção inserida expressamente no arcabouço jurídico brasileiro apenas em 2015, com o advento da Lei Complementar nº 150, de 01 de junho de 2015, a qual limitou a exploração dos domésticos até então permitida pela consolidação de leis do trabalho, diploma legal este que deveria tutelar todas as categorias de trabalhadores.

Acerca da divisão sexual do trabalho, ainda muito latente no seio do trabalho doméstico, não se pode olvidar que o movimento emancipatório das mulheres advindo da luta feminista já apresentou avanços significativos, contudo, a nossa sociedade, ainda patriarcal, reconhece o espaço residencial como um universo feminino, ocupado naturalmente pelas mulheres, o que faz com que o trabalho doméstico, seja, em grandiosíssima parte, desenvolvido por mulheres, estratificando-as e segregando-as.

Em pesquisa apresentada em 12 de junho de 2020, a ONU Mulheres, a

Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) apresentaram o documento intitulado “Trabalhadoras Domésticas Remuneradas na América Latina e no Caribe em face da crise da COVID-19”, o qual exibe uma visão geral da situação de especial vulnerabilidade que as trabalhadoras e os trabalhadores domésticos enfrentam na região, destacando os impactos da atual crise causada pela COVID-19 (OIT, 2020).

Dentre os dados apresentados, a pesquisa supracitada demonstrou que entre 11 e 18 milhões de pessoas estão envolvidas em trabalho doméstico remunerado. Destas, 93% são mulheres. O trabalho doméstico representa entre 10,5% e 14,3% do emprego feminino na região. Contudo, mais de 77,5% atuam em situação de informalidade, o que significa que uma parte significativa destas mulheres trabalham em condições precárias e sem acesso à proteção social. A renda das mulheres empregadas no serviço doméstico também é igual ou inferior a 50% da média de todas as pessoas ocupadas (OIT, 2020).

Corroborando as estatísticas apresentadas, dados da Pnad Contínua, do IBGE, referentes ao 4º trimestre de 2019 e o 4º trimestre de 2020, expõem que dos 6,6 milhões de trabalhadores domésticos existentes no Brasil, as mulheres representam 92,4% desse índice, das quais mais de 65% são negras (DIEESE, s.d).

Os trabalhadores domésticos ocupam importante papel na organização socioeconômica do país, uma vez que desenvolvem tarefas de cuidado, representando significativa parcela na força de trabalho global, porém, ainda se encontram entre os grupos mais vulneráveis, marcado pela invisibilidade e baixa proteção jurídica.

Não menos importante de se comentar, os trabalhadores domésticos recebem, em grande parte, salários incompatíveis (ínfimos) com as atividades desenvolvidas, frisa-se, de cuidado e não raras vezes, são vítimas de violências morais, sendo

humilhados, sobrecarregados e desvalorizados.

Nesse cenário, a criação de Convenções e Recomendações por parte da Organização Internacional do Trabalho – OIT, se torna um mecanismo de balizamento para melhora das condições de vida e labor dos trabalhadores, sendo que a ratificação pelo Brasil da Convenção nº 189, tende a ser um antídoto à superexploração e desvalorização até então instituída na vida dos empregados domésticos, pois somente no momento em que se tornarem protagonistas da proteção merecida, a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, deixará de ser algo previsto para ser usufruído, o que efetivamente se espera de um Estado fundado sobre bases sociais, como o Brasil.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em: 22 jan. 2022.

DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICAS E ESTUDOS ECONÔMICOS – DIEESE. Trabalho Doméstico no Brasil. Disponível em: https://www.dieese.org.br/outraspublicacoes/2021/trabalhoDomestico.html. Acesso em: 22 jan. 2022.

HENDRICK, Van Loon. “A história da Humanidade”, 1953 apud SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social. São Paulo: LTr, 2000.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Convenção e

Recomendação sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos. 2011. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/---protrav/--travail/documents/publication/wcms_169517.pdf. Acesso em: 22 jan. 2022.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. COVID-19 acentua a situação precária de trabalhadoras e trabalhadores domésticos na América Latina e no Caribe. 12 de junho de 2020. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_747981/lang--pt/index.htm Acesso em: 22 jan. 2022.

131 Professora e Pesquisadora. Doutoranda em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FDUSP.

TRABALHO INVISÍVEL DO CUIDADO

Thamiris Cristina Rebelato¹³²

Os estudos desenvolvidos no âmbito da divisão sexual do trabalho têm como objeto a percepção da distribuição desigual de homens e mulheres no mercado de trabalho nas diversas áreas de atuação e postos de trabalho, bem como sua variação no tempo e espaço, visando compreender essa divisão de atividades em esfera pública e privada.

A criminalização do controle das mulheres sobre a procriação é um fenômeno que trouxe repercussão tanto sobre o papel social da mulher, bem como consequências na organização capitalista do trabalho. Ao se negar as mulheres o controle sobre os seus próprios corpos, o Estado as compeliu ao exercício da maternidade à condição de trabalho forçado, naturalizando a sua biologia e psicologia, confinando as mulheres à atividade reprodutiva, reduzindo sua importância social a máquina de reprodução de filhos e filhas para o Estado (FREDERICI, 2017, p. 200-202).

O casamento passa a ser visto como verdadeira carreira a ser percorrida pelas mulheres, para que não vivam a margem social, partindo da premissa de incapacidade de sobreviverem sozinhas, fixada a ideia de inferioridade perante os homens, estando à disposição do poder masculino.

Em uma sociedade capitalista e patriarcal, as diferenças biológicas e as consequentes construções e expectativas sociais vinculadas a cada gênero alicerçam uma distinção cultural e arbitrária modulada socialmente, que atribuem a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e às mulheres a esfera reprodutiva (HIRATA; KERGOAT, 2017, p. 600.)

Os discursos estruturantes de hierarquia entre os sexos estabeleceram a

inferioridade física e mental das mulheres, as destinando “a família e o tecido”, a realização de trabalho intrínseco ao cuidado daqueles que constituem mão de obra mercadologicamente reconhecida, figurando relações de subordinação em âmbito familiar por serem consideradas não produtivas (SCOTT, 1991, p. 428).

A mulher tem sua subjetividade condicionada, sendo tratada como “o outro” nas relações sociais: filhas obedientes, boas esposas, mães compulsórias e cúmplices de violências praticadas contra elas mesmas, vivenciando uma estrutura social em que seu corpo não lhe pertence, tornando-se objeto do sujeito da relação de gênero (homem) através da dominação da atividade reprodutiva da mulher, da submissão de sua sexualidade ao desejo do homem e da fixação do seu papel social de acordo com sua atividade reprodutiva e de cuidados domésticos.

Como fora destacado por Silvia Federici (2021, p. 28), ainda que o trabalho da mulher para o capital não resulte necessariamente em um contracheque, ou tenha como termo inicial e final os portões de uma fábrica, seu esforço gera o produto mais precioso do mercado capitalista: a força de trabalho, sendo a responsável pela reprodução e cuidados em termos físicos, emocionais e sexuais daqueles que são considerados mão de obra significante ao sistema capitalista.

Segundo Susan Moller Okin, nos debates de teoria política que alcançam a ambiguidade “público x privado”, desvelam a natureza política da família (como núcleo basilar do sistema capitalista) e a relevância da justiça na vida pessoal e na produção das desigualdades que afetam as mulheres (OKIN, 1989).

As diferentes comunidades intelectuais formulam suas próprias concepções sobre o tema do trabalho do cuidado e da sua centralidade, visto a diversidade com que tal atividade se estrutura e desenvolve quando passamos de um contexto social a outro. No Brasil, um aspecto de ações plenas relacionadas ao cuidado possui significado nativo, longo e amplamente difundidos, embora possuam significados difusos na prática (GUIMARÃES; HIRATA, 2020, p. 3031).

As atividades reificadoras de hierarquia entre os gêneros, de “cuidar da casa”, “cuidar das crianças”, “cuidar do marido e dos filhos” têm sido tarefas exercidas por agentes subalternos e femininos, as quais no contexto social brasileiro têm estado associadas a submissão (GUIMARÃES; HIRATA, 2020, p. 31), seja exercida inicialmente pelas escravas, posteriormente, por mulheres brancas, negras, asiáticas, latinas e indígenas, sendo exemplar das desigualdades imbricadas de gênero, de classe e de raça, pois os cuidadores são majoritariamente mulheres, pobres, negras, muitas vezes migrantes (provenientes de migração interna ou externa) (HIRATA, 2016, p. 54).

O trabalho de cuidado é uma atividade profissional em plena expansão na economia de serviços em escala internacional. Tradicionalmente, às mulheres tem sido naturalizado o encargo do cuidado domiciliar, das pessoas idosas, das crianças e dos deficientes físicos e dos doentes, todavia, uma vez reconhecidamente atuantes no mercado de trabalho, enfrentam dificuldades crescentes para cuidar dos membros dependentes da família (GUIMARÃES; HIRATA, 2020, p. 49).

A conciliação do trabalho dentro e fora do âmbito doméstico faz com que as mulheres exerçam dupla jornada de trabalho, dinâmica que se apresenta como uma dificuldade de inserção das mulheres no mercado de trabalho. O maior desempenho de atividades não remuneradas em âmbito familiar/privado contribui para uma menor participação das mulheres no mercado de trabalho, estando sujeitas a menores rendimentos, figurando relações de trabalhos mais precárias.

A realização de atividades laborais por mulheres fora do ambiente privado e o cenário de envelhecimento da população acarretaram o desenvolvimento das profissões relacionadas ao cuidado e, de maneira mais ampla, a explosão do setor de serviços em período recente, em todos os países industrializados, ressaltando a importância crescente de ocupações ligadas ao cuidado no mundo contemporâneo. A profissionalização desse tipo de trabalho e sua remuneração

têm a virtude de questionar o cuidado com sua qualidade “natural” ou “inata” (GUIMARÃES; HIRATA, 2020, p. 50).

As redes sociais são centrais na provisão do cuidado, sendo a família o lugar predominante do cuidado, onde as mulheres (sejam mães, filhas, empregadas domésticas, diaristas e cuidadoras) além de serem recrutadas para as tarefas domésticas, também são levadas a cuidar das pessoas idosas e das crianças da família. O mercado é, assim, um provedor de cuidados sobretudo pela oferta de serviços dessas empregadas domésticas, mas também pelas empresas e agências de home care (HIRATA, 2016, p.60), confirmando a ideia da centralidade do trabalho das mulheres, tanto nas instituições quanto em domicílio, tanto realizado gratuitamente quanto a título de atividade remunerada (HIRATA, 2016, p.61.)

Compreender a dinâmica das ocupações ligadas ao trabalho do cuidado, a necessidade de sua prestação em um cenário mercantil e sua relação com o trabalho doméstico não remunerado apresenta-se como pré-condição para se pensar no tema sobre um ponto de vista da igualdade e justiça, apresentando o seguinte paradoxo: se é evidente a essencialidade das atividades do cuidado para a reprodução e perpetuação da vida, porque é representado como sendo um trabalho desqualificado, desvalorizado, mal remunerado e, por vezes, destituído de cidadania (GUIMARÃES; HIRATA, 2020, p. 51).

As profissionais de trabalho doméstico, seja em sua realização assalariada ou não remunerada, devido ao ambiente íntimo em que é desenvolvido, é impossível evacuar a dimensão sexual constitutiva das relações de cuidado, acabam sendo vítimas de abusos e de assédios morais e sexuais, sofrendo a desvalorização e estigmatizarão social das atividades desenvolvidas.

REFERÊNCIAS

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

FEDERICI, Silvia. Patriarcado do salário: notas sobre Marx, gênero e feminismo. São Paulo: Boitempo, 2021.

GUIMARÃES, Nadya Araújo; HIRATA, Helena Sumiko. O gênero do cuidado: Desigualdade, Significações e Identidades. São Paulo: Ateliê Editorial, 2020.

HIRATA, Helena. O trabalho de cuidado. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 13, p. 53-64, 2016.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa. v. 37. N. 132, p. 595-609, set/dez. 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005. Acesso em: 25 mai. 2021.

OKIN, Susan Moller. Justice, Gender and the Family. New York: Basic Books, 1989.

SCOTT, Joan W. “La Travailleuse”: In: G. Duby e M. Perrot (orgs.). Histoire Des Femmes. Vol. 4. Paris: Plon, 1991.

132 Mestranda em Direito na linha de pesquisa Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Especialista em direito material e processual do Trabalho e direito Tributário. Advogada.

TRABALHO REPRODUTIVO

Raquel Santana¹³³

O trabalho reprodutivo, muitas vezes também denominado “trabalho de cuidado”, pode ser conceituado como aquele que “assegura a continuidade das pessoas e da vida” (ARAUJO, 2014, p. 173). Trata-se de categoria sociológica analítica que se opõe ao trabalho “produtivo”, em uma análise crítica feminista e marxista (HIRATA; KERGOAT, 2007).

Nessa perspectiva, o trabalho reprodutivo possui baixo ou nenhum valor social, sob a ótica do sistema capitalista de produção, e é historicamente desempenhado por mulheres. É de nós, mulheres, que se espera a realização dos trabalhos de cuidado das pessoas da família, a organização e limpeza da casa, a preparação da comida... enfim, é de nós que se espera todo o trabalho exercido na “privacidade do mundo familiar” (ARAUJO, 2014, p. 173) e sem o qual a existência e a reprodução humanas não se tornariam possíveis.

A organização social do trabalho reprodutivo no Brasil detém características peculiares, que são alguns dos reflexos de um país forjado no trabalho escravo, de cujas amarras jamais verdadeiramente se desvencilhou. Não é sem razão, assim, que o trabalho reprodutivo é, aqui, realizado pelas mulheres brancas, mas também substancialmente por mulheres negras, estas últimas “na condição de trabalhadoras domésticas ou de cuidado remuneradas”. (SANTANA; REZENDE, 2021).

O conceito do trabalho reprodutivo e o seu (não) valor social está imbricado a outra categoria analítica essencial aos estudos feministas e de gênero no mundo do trabalho: o trabalho produtivo. Diversamente do trabalho reprodutivo, o trabalho produtivo é aquele que produz valor social e que, via de regra, é realizado no âmbito público pelos homens – no início do processo de industrialização brasileiro, nas grandes fábricas e, atualmente, nas grandes corporações, em ambos os casos, majoritariamente por homens brancos

(ALVES, 2019).

Tratam-se, assim, os trabalhos produtivos, daqueles valorizados socialmente por serem considerados indispensáveis à lógica capitalista: para toda produção na esfera pública há uma contraprestação remuneratória (ainda que precária, como no caso dos trabalhadores informais), que é, pois, paga ao trabalhador/empregado.

A lógica acima, em que labor é igual à contraprestação financeira, não se verifica no trabalho reprodutivo, exceto quando exercido por trabalhadoras domésticas ou cuidadoras remuneradas, cujas condições de trabalho, no que se inclui a contraprestação, são essencial e historicamente precárias (BERNARDINOCOSTA, 2007), em razão da negação às trabalhadoras domésticas da condição de “sujeitas de direitos” (RAMOS, 2018). E, em que pese a contraprestação recebida, nos contratos formais, por imposição legal, o emprego doméstico não pode ter finalidade lucrativa para o empregador, nos termos do art. 1º, da Lei Complementar 150/2015, sob pena de desvirtuação da contratação.

A partir do conceito de cada uma das categorias e da dualidade intrínseca a elas (“trabalho produtivo” versus “trabalho reprodutivo”), há uma inequívoca hierarquia entre os trabalhos de homens e mulheres (HIRATA; KERGOAT, 2003).

No topo da cadeia hierárquica, verifica-se que, em síntese, o trabalho de cunho produtivo vale mais que o trabalho reprodutivo. Tudo aquilo que é produção oriunda do trabalho de homens possui mais valor que a produção de mulheres, ainda que o trabalho realizado seja o mesmo, tanto no âmbito privado/domiciliar, quanto no mercado de trabalho (SANTANA, 2022). E, neste último, uma vez mais, o valor social do trabalho de homens brancos, mulheres brancas e homens negros e mulheres negras é diferente: os dados da PNAD de 2018 revelam que a desigualdade de rendimentos entre homens brancos e mulheres pretas ou pardas é de 44,4% (IBGE, 2019, p. 7 apud SANTANA; REZENDE, 2021). Esses dados,

afinal, tornam inequívoco considerar as hierarquias não somente de gênero, mas também de raça, nas análises sobre desigualdades existentes nos trabalhos produtivo e reprodutivo.

Apesar da baixa valorização social, é certo que sem o trabalho reprodutivo, (desenvolvido pelas mulheres e destinado aos cuidados da família e casa), o trabalho produtivo (realizado nos mercados de trabalho) não se sustentaria. De fato, é o trabalho reprodutivo que possibilita “o crescimento econômico dos países, representando uma espécie de ‘subsídio’ às economias nacionais” (BAJARAS, 2016, p. 22).

Esse subsídio, no entanto, é lucrativo apenas para os homens e para a lógica sexista do próprio sistema capitalista de produção. Para desempenhar o trabalho reprodutivo, as mulheres ou se submetem à sobrecarga da dupla jornada de trabalho – quando exercem o trabalho de cuidado não remunerado e o trabalho fora de casa – ou deixam de ingressar no mercado de trabalho, tendo sua autonomia econômica tolhida pelas lógicas capitalista, sexista e racista em que se estrutura o mercado de trabalho brasileiro.

Inobstante, a importância ou o valor social do trabalho reprodutivo/de cuidado não remunerado tem sido cada vez mais reivindicada pelas mulheres e tem ganhado grandes holofotes, especialmente nas reivindicações insurgentes no dia 8 de março.

A cada ano, o 8 de março tem se tornado uma data simbólica de reinvindicação por maior igualdade entre homens e mulheres em todos os âmbitos da vida – o que, infelizmente, não tem alcançado as pautas em torno das desigualdades históricas proporcionadas pelas hierarquias de raça, que têm sido discutidas no 25 de julho (Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha).

As reinvindicações do 8 de março, por certo, englobam as pautas por melhores e maiores condições de igualdade no mercado de trabalho. Nesse âmbito, as discussões sobre o valor social do trabalho reprodutivo/de cuidado têm sido colocadas em pauta, ou bem melhor explicando, em cifras, permitindo o avanço no debate, a partir da mensuração sobre o trabalho não pago feito por mulheres. É o que revela pesquisa divulgada pela Oxfam Brasil (BRASIL, OXFAM, apud THINK, OLGA, 2020), que estampou diversos cards divulgados no 8 de março de 2022 nas redes sociais de gigantes corporativas como a Google Brasil, em parceria com a Think, Olga.¹³⁴

Na pesquisa em questão, dentre as várias constatações relevantes, uma das que estampou as redes sociais da Google Brasil foi a que noticia: “o trabalho de cuidados não pago das mulheres equivaleria a 10, 8 trilhões de dólares. Apenas 4 economias do mundo ficariam acima desse valor. Representa 24 vezes a economia gerada pelo Vale do Silício” (BRASIL, OXFAM, apud THINK, OLGA, 2020).

As cifras que acompanham a pesquisa dispensam novos argumentos às análises acerca dos trabalhos produtivo e reprodutivo, anteriormente apresentadas, que se estruturam em sólidas pesquisas realizadas especialmente a partir da década de 70. No período em questão, o ingresso das mulheres brancas no mercado de trabalho começou a se tornar viável (HIRATA, 2016; HIRATA; KERGOAT, 2019), em razão, entre outros aspectos, da contratação de mulheres negras para o desempenho dos trabalhos doméstico e de cuidado remunerados (CHAVES, 2014; ENGEL; PEREIRA, 2015; GONZALEZ, 1988).

Ocorre que, desde esse período, são observadas poucas iniciativas em torno da resolução das questões acerca da divisão de responsabilidade pelo trabalho de cuidado, com o intuito de diminuir ou extirpar as hierarquias de gênero existentes no trabalho reprodutivo. Assim, pouco se avançou no tocante à criação de medidas que pudessem possibilitar a adequada (re)distribuição do trabalho reprodutivo (SANTANA, 2022). Daí porque os números de 2022 não surpreendem às mulheres que vivenciam a sobrecarga oriunda do trabalho

reprodutivo ou se dedicam ao estudo do tema.

Como consequência, conforme constatado já na década de 70, a lógica por trás das relações do trabalho reprodutivo “continua estruturando cotidianos e intensificando relações de gênero” (ENGEL; PEREIRA, 2019, p. 5).

Em razão da intensificação dessas relações de gênero e, igualmente de raça, o 8 de março ainda segue sendo a data em que o espanto e a preocupação em torno das desigualdades entre o valor social do trabalho reprodutivo e produtivo apenas parece se concretizar quando veiculado por meio de cifras (neste ano, em dólares).

O espanto e a preocupação, por si só, não garantem a continuidade da vida das pessoas, que só é possível por meio da execução das tarefas domésticas sem as quais nenhum de nós pode se manter ativo ou produtivo. É necessário avançar, inclusive em direção ao acolhimento das demandas reivindicadas por mulheres negras no 25 de julho, a fim de que o 8 de março se torne uma data em que o holofote esteja em torno das políticas públicas e institucionais, que valorizem e (re)distribuam as responsabilidades pelos cuidados entre todos os atores sociais, conforme, aliás, determinam os artigos 226, 227 e 230 da CF.

Um dos caminhos para isso é alçar o cuidado e as demais atividades provenientes do trabalho reprodutivo a um patamar de direito fundamental, e, com isso, fomentar a criação de políticas de redistribuição dessas atividades (SANTANA, 2022). Medidas assim poderão possibilitar que mulheres absorvam cada vez menos trabalho reprodutivo, incluindo-se aqui mulheres negras nos trabalhos de cuidado e doméstico remunerados, para que, enfim, o 8 de março e o 25 de julho se tornem datas de concretas celebrações, também no que tange a avanços quanto ao valor e a redistribuição do trabalho produtivo.

REFERÊNCIAS

ALVES, Raissa Roussenq. Entre o silêncio e a negação: uma análise da CPI do trabalho escravo sob a óptica do trabalho “livre” da população negra. 2017. 152 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Disponível em: http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/24473/1/2017_RaissaRoussenqAlves.pdf. Acesso em: 25 jan. 2019.

ARAUJO, Anna Bárbara. Continuidades e descontinuidades entre trabalho de cuidado não remunerado e remunerado: por uma análise a partir da desvalorização e das demandas emocionais do trabalho. Áskesis: Revista dxs discentes do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFSCar, v. 3, n. 2, p. 171–184, 2014, p. 173.

BARAJAS, Maria de La Paz Lópes. Avanços na América Latina na mediação e valoração do trabalho não remunerado realizado pelas mulheres. In: FONTOURA, Natália; ARAÚJO, Clara (Org.). Usos do tempo e gênero. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ; Secretaria de Políticas para as Mulheres - SPM; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA, 2016, p. 21–39. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2016/04/uso_do_tempo_e_genero.pdf. Acesso em: 25 jan. 2019.

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SANTANA, Raquel. As cuidadoras na sala de visita: regulamentação jurídica do trabalho de cuidado à luz da trilogia de Carolina Maria de Jesus. São Paulo: Dialética. 2022.

133 Mestra em “Direito, Estado e Constituição”, com ênfase em Direito do Trabalho (PPGD/FD-UnB). Pesquisadora do Grupo “Constituição, Trabalho e Cidadania” (CNPq/UnB). Assessora jurídica de Ministro do TST.

134 Disponível em: https://www.instagram.com/p/Ca2tyZcFGfO/ Acesso em: 8 mar. 2022.

TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES

Estela Cristina Vieira de Siqueira¹³⁵

O tráfico de seres humanos atinge a todos os gêneros, mas de forma mais presente e alarmante quando vem acompanhada do viés de desigualdade de gênero, sendo mulheres e meninas mais expostas a formas brutais de exploração, como é o caso da escravidão sexual. Pessoas do gênero feminino representam mais da metade das estatísticas globais de tráfico de pessoas (46% dos adultos, 19% das crianças), conforme dados do relatório anual do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), atualmente em sua 5ª edição (UNODC, 2020).

O mesmo relatório aponta que a cada 10 vítimas de tráfico de seres humanos no ano de 2018, 5 eram mulheres adultas e 2 eram meninas, sendo que um terço dos números totais é composto por crianças (19% meninas e 15% meninos). No que diz respeito ao tráfico para fins de exploração sexual, em 76% dos casos de tráfico de mulheres as vítimas serão traficadas com esse fim, e 72% das meninas traficadas também. Mulheres também são traficadas para serviços domésticos, casamento forçado, agricultura, e em menor escala, para outras atividades econômicas. A modalidade com menor proporção de tráfico de pessoas, de modo geral, é a destinada a remoção de órgãos e tecidos.

As vítimas são frequentemente coagidas com violência pelos traficantes, que também podem se utilizar de meios fraudulentos para seduzir potenciais traficados, através de propostas tentadoras de emprego, educação e/ou melhores condições de vida (UNODC, Human Trafficking, s.d), sendo o crime em si dividido em três elementos principais: o ato, os meios e o propósito (UNODC, The Crime, s.d).

Desde 2000, o Combate ao Tráfico de Mulheres e Crianças é realizado sob o escopo do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico

de Pessoas, o Protocolo de Palermo, voltado especialmente ao recorte etário e de gênero (BRASIL, 2004), em razão da desproporção das estatísticas quanto a mulheres e crianças.

A definição de “tráfico de pessoas”, levando-se em consideração o recorte especial do Protocolo de Palermo quanto a gênero, aparece logo no artigo 3 de seu texto, com a seguinte redação:

A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos (BRASIL, 2004, s.p).

Nesse sentido, é preciso notar que entre todas as formas de tráfico de seres humanos, o tráfico para fins de exploração sexual é o de maior monta, correspondendo a 50% do total, comparado com o tráfico para fins de exploração laboral, que corresponde à 38%, por exemplo. Há uma preferência por parte dos criminosos por vítimas-alvo que já se encontrem em contextos marginalizados e economicamente precários, sendo que migrantes indocumentados e pessoas sem uma ocupação fixa também são mais vulneráveis (UNODC, 2020).

Ainda de acordo com o relatório do UNODC (2020), além da preferência por mulheres no tráfico para exploração sexual, há algumas modalidades de tráfico que são sofridas exclusivamente por mulheres (e aqui incluiremos também homens trans que engravidem, embora eles não apareçam nominalmente no relatório), como a venda de bebês e a extração de óvulos.

Um dado importante de ser mencionado é a subnotificação no que diz respeito a dados referentes à comunidade LGBTQIA+, dificultando a compreensão dos padrões de tráfico internacional de pessoas em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Ainda, a exploração sexual é a principal forma de tráfico na América do Norte, na América Central e Caribe, na América do Sul, no Leste Europeu e na Europa Central, na Ásia Oriental e no Pacífico (UNODC, 2020).

Há que se mencionar também um importante elemento colonial sobre a dimensão do termo “tráfico de mulheres”, em razão do racismo de séculos de escravidão de pessoas oriundas do continente africano, a nível global. Quando o mundo começou a despertar para os reais problemas relacionados à violência sofrida pelas mulheres, entre os séculos do iluminismo francês até o século XX¹³ (como pode ser notado através da leitura de inúmeros verbetes do presente dicionário), surge também uma preocupação com relação ao tráfico de mulheres, mas com um detalhe: apenas com o tráfico de mulheres brancas (MÉXICO, s.d).

Tão absurdo quanto soa e algo impensável para os dias atuais, embora seja considerado um dos primeiros documentos internacionais destinados ao fim da escravidão em termos gerais, o primeiro documento sobre o tráfico de pessoas surgiu em 1904, o Acuerdo internacional para la supresión de la trata de blancas (UNIVERSITY OF MINNESOTA, 1951) exatamente para isso: a supressão do tráfico de brancos, pois o tráfico de seres humanos negros era aceito não apenas pela população da época, mas pelos Estados.

O texto de 1904 seria reafirmado em 1910, em um documento com ainda maior amplitude por não ser apenas um acordo, mas uma Convenção para a repressão do tráfico de pessoas brancas (UNIVERSITY OF MINNESOTA, 1905) - para o Direito Internacional, uma Convenção deve ser ratificada, o que agrega uma formalidade maior que o acordo, que pode ou não ser ratificado.

A expressão somente deixaria de ser utilizada na legislação internacional em 1921 (OAS, 1921), com a Convenção para a Supressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, adotada em Genebra, já após o surgimento da Liga das Nações (1919), a primeira organização internacional de vocação universal, precursora da Organização das Nações Unidas. Ainda assim, é importante mencionar, há países onde a expressão ainda é corrente do vocabulário local, como sinônimo de tráfico de pessoas.

Também é importante mencionar que ao longo de toda a trajetória da criação da expressão “Tráfico de Mulheres e Crianças” para a proteção internacional, esse viés etário e de gênero sempre aparece combinado nos documentos – um elemento que pode passar despercebido da maior parte das análises, mas que denota, como bem observa a Organização Internacional para as Migrações, a infantilização da mulher na sociedade, ainda atualmente, privando-as de autonomia, de forma extremamente paternalista, em estatísticas que deveriam visibilizar a gravidade do tráfico de mulheres, através do viés de gênero (TRIANDAFYLLIDOU; McAULIFFE, 2018, p. 210).

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de Março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm. Acesso em: 11 jan. 2022.

MÉXICO. Secretaria de Gobernación. ¿Es correcto decir Trata de Blancas? Debemos referirnos a Trata de personas. Disponível em: https://www.gob.mx/segob/es/articulos/trata-de-blancas?idiom=es. Acesso em: 11 jan. 2022.

OAS. Convencion Internacional para la Represión de la Trata de Mujeres y Niños, 1921. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/Convencion_Internacional_para_la_Prevencion_de_la_Trata_de_M Acesso em: 11 jan. 2022.

TRIANDAFYLLIDOU, A. and McAULIFFE, (eds.). Migrants Smuggling Data and Research: A global review of the emerging evidence base. Vol. 02. IOM, Geneva, 2018.

UNIVERSITY OF MINNESOTA. Human Rights Library. International Convention for the Suppression of the “White Slave Traffic,” May 4, 1910, 211 Consol. T.S. 45, 1912 GR. Brit. T.S. No. 20, as amended by Protocol Amending the International Agreement for the Suppression of the White Slave Traffic and Amending the International Convention for the Suppression of the White Slave Traffic, May 4, 1949, 2 U.S.T. 1999, 30 U.N.T.S. 23, entered into force June 21, 1951. Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/instree/whiteslavetraffic1910.html. Acesso em: 11 jan. 2022.

UNIVERSITY OF MINNESOTA. Human Rights Library. International Agreement for the Suppression of the “White Slave Traffic,” 18 May 1904, 35 Stat. 1979, 1 L.N.T.S. 83, entered into force 18 July 1905. Disponível em: http://hrlibrary.umn.edu/instree/whiteslavetraffic1904.html. Acesso em: 11 jan. 2022.

UNODC. Global Report on Trafficking in Persons (GLOTiP), 2020 Report. Vienna. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/data-andanalysis/tip/2021/GLOTiP_2020_15jan_web.pdf. Acesso em: 11 jan. 2022.

UNODC. Human Trafficking. Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/en/human-trafficking/human-trafficking.html. Acesso em: 11 jan. 2022.

UNODC. The Crime – Human Trafficking. Disponível em: https://www.unodc.org/unodc/en/human-trafficking/crime.html. Acesso em: 11 jan. 2022.

135 Doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Varginha (2014) e mestrado em Direito, com concentração em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito de Sul de Minas (2017).

136 Para tanto, conferir o verbete “Proteção Internacional da Mulher” na presente obra e de autoria da mesma autora.

TRANSSEXUAIS E TRANSGÊNEROS

Júlia da Silva Mendes¹³⁷

Par a apresentar o conceito de “transexuais e transgêneros”, é de suma importância primeiro definir alguns conceitos, e o primeiro deles é o significado de “identidade”. Isto porque, diariamente, os indivíduos se deparam com algumas indagações, tais como: “Quem é você? Do que gosta? De onde veio?” (COLLING, 2018, p. 9). E tudo isto faz parte da construção de sua identidade, de como se identifica em relação a vários aspectos e de que forma pode ser explicado para outras pessoas (COLLING, 2018, p. 9).

De acordo com Colling (2018), a composição biológica dos corpos acaba interferindo na construção das identidades. Partindo dessa perspectiva, uma pessoa com a pele clara não se identificaria como negra e, consequentemente, não estaria à mercê de uma série de preconceitos de ordem racial que atingem as pessoas negras dentro de uma sociedade com resquícios racistas. Isto demonstra que, ao se trabalhar com identidades, também se está dialogando com uma perspectiva cultural, tendo em vista que existe uma atribuição positiva para determinados corpos em detrimento de outros. De um ponto de vista mais profundo, é possível perceber que esta construção guarda uma íntima relação com processos históricos, políticos e econômicos que contribuíram para a construção das identidades.

O autor Stuart Hall (2007, p. 103-133), importante pensador a respeito da construção das identidades, possui o seguinte entendimento sobre o termo:

Utilizo o termo identidade para significar o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de

discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós (...) Isto é, as identidades são posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora “sabendo” sempre que elas são representações, que a representação é sempre construída ao longo de uma “falta”, ao longo de uma divisão a partir do lugar do Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas – idênticas – aos processos de sujeito que são nelas investidos.

Conforme a citação de Hall, as pessoas seriam interpeladas para assumir determinadas posições identitárias, até mesmo no modo de pensar e se expressar. Este processo de construção identitária ocorre utilizando discursos, palavras e práticas que já estão à nossa disposição. Contudo, essas práticas discursivas sofrem modificações ao longo do tempo. Portanto, as identidades não poderiam ser pensadas como fixas/eternas, mas como algo em constante evolução (COLLING, 2018, p. 10).

É nesta vertente que Silva defende que a identidade “não é uma essência, não é um dado ou fato – seja da natureza, seja da cultura. Não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. Tampouco é homogênea, definitiva e acabada” (TADEU DA SILVA, 2007, p. 97). De acordo com o autor, a identidade é uma construção, uma relação ou um ato performativo, pois estaria ligada a sistemas de representação, bem como intimamente conectada com relações de poder (TADEU DA SILVA, 2007).

Com essa breve explanação a respeito da identidade, é necessário também adentrar ao conceito de gênero. De acordo com Preciado, este termo pertenceria ao discurso biotecnológico. Isto porque, em razão da rigidez do sexo do século XIX, o psicólogo infantil John Money, que era incumbido do tratamento de bebês intersexuais, vai se opor à plasticidade tecnológica do gênero. Neste contexto, John Money utiliza, em 1947, pela primeira vez a noção de gênero, desenvolvendo-a mais tarde com Anke Ehrhardt e Joan e John Hampson, com o

escopo de demonstrar a possibilidade de modificar hormonal e cirurgicamente o sexo dos bebês nascidos com órgãos genitais e/ou cromossomos que a medicina não conseguia distinguir entre feminino ou masculino (PRECIADO, 2008, p. 81).

No entanto, foi no interior do feminismo que a categoria gênero passou a ser pensada de outra forma (LOURO, 2008, p. 19). Nas palavras de Colling, “Gênero, para o feminismo, não é ideologia, mas uma categoria de análise útil para identificar e denunciar as relações e assimetrias entre os gêneros, entre homens e mulheres” (COLLING, 2018, p. 25) ou seja, como uma forma de apontar as diferenças e hierarquias entre homens e mulheres, bem como para desnaturalizar os próprios gêneros das pessoas.

Algumas feministas anglo-saxãs passaram a distinguir gênero de sexo, como foi o caso de Scott. A autora, assim como outras teóricas, também considerava que as relações entre os sexos são construídas socialmente. Contudo, para a autora, essa constatação ainda não era capaz de explicar como e por que as relações eram construídas dessa forma, privilegiando o sujeito masculino em detrimento do feminino (SCOTT, 1994). Assim, para se explicar, Scott faz uma articulação entre a noção de construção social com poder, constatando que gênero:

Tem duas partes e diversas subpartes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser distinguidas na análise. O núcleo essencial da definição repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: gênero é um elemento constitutivo das relações sociais, baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e mais, o gênero é uma forma primeira de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1994, p. 13).

Para Jesus (2012, p. 10), gênero seria a forma com que as pessoas identificam umas às outras e se identificam como sendo homens ou mulheres. A autora salienta que, em termos de gênero, qualquer ser humano pode ser enquadrado, com todas as limitações comuns a qualquer classificação, como transgênero ou

“cisgênero”. No caso dos Cisgêneros, seriam as pessoas que se identificam com o gênero ao qual foi atribuído no nascimento. Já as não-cisgêneros são aquelas que não se identificam com o gênero que lhes foi determinado, como é o caso dos transgêneros, ou trans.

A Organização das Nações Unidas, em nota informativa a respeito das pessoas transgêneros, conceitua a identidade de gênero da seguinte forma:

A identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento. Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não binária ou com outros termos, tais como hijra, terceiro gênero, dois-espíritos, travesti. Identidade de gênero é diferente de orientação sexual (...)”.¹³⁸

A orientação sexual já é referente à atração afetiva por alguém de algum outro gênero. Destaca-se que sexo e orientação sexual não estão interligados, portanto, nem todo homem e mulher são naturalmente heterossexuais. Jesus ressalta que o sexo teria caráter biológico, enquanto o gênero é construído socialmente por meio das diferentes culturas em que o indivíduo está inserido. No entanto, a definição entre ser homem e mulher vem da percepção que cada indivíduo possui de si próprio, bem como da forma que esse sujeito se expressará socialmente.¹³

Algumas pessoas cruzam de uma forma mais intensa as normas de gênero, tais como: as transexuais e as transgêneros. Colling ressalta que é extremamente difícil definir ou distinguir travestis, transexuais e pessoas trans, tendo em vista que se estaria tentando definir identidades. Neste ponto, ressalta-se que cada identidade é composta por uma grande quantidade de características que nunca deixam de ser criadas e recriadas. Neste contexto, seria arriscado tentar criar categorias tão rígidas do que é ser uma ou um “transexual de verdade”, o que,

por exemplo, é feito por meio de alguns discursos médicos em relação ao tema, (COLLING, 2018, p. 35) em suas palavras:

Sempre que estamos falando de identidades, o fundamental é respeitar o modo como as pessoas desejam ser identificadas. Ou seja, as pessoas que se identificam como transexuais possuem diferenças em relação às travestis. E essas diferenças não podem ser reduzidas a ter ou querer ter determinado órgão sexual. Existem modos de ser travesti e modos de ser transexual que irão fazer com que as pessoas se identifiquem ou não com essas identidades (COLLING, 2018, p. 36).

De acordo com Pamplona e Diniz (2007) o sujeito transexual é compreendido como aquele que não reconhece o sexo biológico que lhe foi atribuído no momento do nascimento. Essas pessoas se sentem inseridas dentro de um corpo estranho, distinto daquele que considera que realmente pertence ao seu gênero. Desta forma, está presente um conflito com as normatizações e regulações de gênero.

A palavra transexualismo, para Mary Del Priori (2017), é recente e estaria ligada às tentativas de agir sobre o corpo para modificá-lo. A partir do livro “O fenômeno transexual”, do médico alemão Henry Benjamim, o conceito começou a se impor e fazer a distinção clínica entre Transexualismo e travestismo. Enquanto o primeiro trata de um problema de identidade, o segundo seria um prazer particular, de se vestir com roupas de outro sexo.

Para Colling (2018, p. 36), os transgêneros também são considerados como um desafio quando se trata de definição. A terminologia é utilizada de forma genérica ao se referir a todas as pessoas que, de alguma forma, transitam entre os gêneros mais conhecidos (feminino e masculino). Neste compasso, é como se em determinados dias, eles quisessem se apresentar tanto na forma de vestir, como de se comportar, com elementos marcados como femininos e, em outros dias, como masculinos. Não somente isso, os transgêneros também não

desejariam necessariamente o gênero que é tido pela sociedade como oposto ao seu, sendo que este referido desejo aparece expressamente no caso dos transexuais, por exemplo. Neste contexto, é como se essas pessoas não se identificassem com os gêneros que a sociedade definiu de forma dicotômica, as identidades masculinas e femininas.

Jesus (2012, p. 25) também entende que transgênero seria uma espécie de conceito “guarda-chuva”, na medida em que abrangeria os diversos grupos diversificados de pessoas, referidos grupos que não se identificam com as normas de gêneros. Neste viés, esses indivíduos rejeitam o padrão determinado socialmente atinente a comportamentos ou papéis esperados e atribuídos pela classificação sexo/gênero, que é definida quando do seu nascimento.

As identidades trans aparecem como uma forma de rompimento do modelo binário de gênero. As pessoas cisgêneras que fazem parte deste modelo binário são aquelas que possuem identidade de gênero em conformidade com o sexo biológico, ou seja, que lhe foi designado no nascimento. Os obstáculos surgem quando às identidades transgêneras não são reconhecidas em virtude da normatividade cisgênera. Neste contexto, cria-se “um aparato compulsório que reforça a naturalização de uma identidade em detrimento da outra” (INTERDONADO; QUEIROZ, 2017, p. 42), corroborando, para a marginalizações dos transgêneros e transexuais (INTERDONADO; QUEIROZ, 2017, p. 42). Este grupo, é, portanto, frequentemente alvo de várias espécies de violências e violações de direitos, que criam barreiras invisíveis, dificultando o acesso ao mercado de trabalho, à saúde, à educação, à Justiça, entre outras garantias fundamentais.

REFERÊNCIAS

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https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/30887/1/eBook%20%20Genero%20e%20Sexualidade%20na%20Atualidade.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.

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INTERDONADO, Giann Lucca, QUEIROZ, Marisse Costa de. “Trans Identidade”: A transexualidade e o ordenamento jurídico. Curitiba- PR: Appris editora, 2017.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2ª edição – revista e ampliada. Brasília: Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional – EDA/FBN, 2012.

LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

PAMPLONA, Renata Silva e DINIS, Renata Fernandes. A Transexualidade em Questão: Problematizações nos contextos educacionais. Revista eletrônica. Itinerarius Reflectionis. Volume, 13, nº 2, Ano, 2007.

PRECIADO, Paul B. Testo yonqui. Madrid: Espasa, 2008.

PRIORI Mary Del, Histórias íntimas. Sexualidade e erotismo na história do

Brasil. 2 Ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2017.

SCOTT, Joan W. Preface a gender and politics of history. Cadernos Pagu, nº. 3, Campinas/SP 1994.

TADEU DA SILVA, Tomaz. A produção social da identidade e da diferença. In: TADEU DA SILVA, Tomaz (org.). Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2007.

137 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Graduada m Direito, pela Universidade José do Rosário Vellano – UNIFENAS. Advogada e pesquisadora.

138 Nações Unidas. Nota Informativa. Unidos e Iguais. Disponível em: https://unfe.org/system/unfe-91-Portugese_TransFact_FINAL.pdf? platform=hootsuite. Acesso em: 10 de março de 2020.

139 De acordo com JESUS “Sexo é biológico, gênero é social, construído pelas diferentes culturas. E o gênero vai além do sexo: O que importa, na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a auto-percepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente.” (JESUS, 2012, p. 8).

TRAVESTILIDADE E TRANSFEMINISMO

Dediane Souza¹⁴

De noite pelas calçadas Andando de esquina em esquina Não é homem nem mulher É uma trava feminina Parou entre uns edifícios, mostrou todos os seus orifícios Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto Tá sempre em desconstrução Nas ruas, pelas surdinas é onde faz o seu salário Aluga o corpo a pobre, rico, endividado, milionário Não tem Deus nem pátria amada Nem marido, nem patrão O medo aqui não faz parte do seu vil vocabulário Ela é tão singular Só se contenta com plurais Ela não quer pau Ela quer paz¹⁴¹ (Trecho da Música Mulher, Mulher – composição de Linn da Quebrada, 2017)

Abro esse verbete invocando esse trecho da música “Mulher, Mulher” da travesti e agitadora cultural Linna da Quebrada no intuito de refletir o lugar que a sociedade brasileira impõe aos corpos das travestis; o lugar da rua, das margens, a subalternidade. A ressignificação desses lugares, desses corpos travestis e transexuais são estratégias de resistência que o movimento social organizado de travestis e transexuais no Brasil vem articulando com outras frentes de ativismo social no intuito de construir estratégias de enfrentamento as violências contra as identidades dessas sujeitas, na construção do eu, e do nós travestis.

A construção de novos imaginários sociais das identidades travestis e transexuais no contexto brasileiro é uma marca forte das sujeitas que pertencem a esse seguimento populacional. Nós estamos por construir imaginários e lugares de humanidades. Enquanto sujeitas e protagonistas de nossas identidades a partir de construções corporais, políticas, práxis e teóricas que marcam a nossa existência que tem sido atravessada por violências no campo comunitário, social, estatal. Essas experiências são característica de vivências a partir da nossa construção identitária, corpórea e política como sujeitas pertencentes à travestilidade.

Pensar a travestilidade esta além da associação dos pronomes femininos ela/delas e ao sinônimo de mulher enquanto categoria pertencente ao padrão cis¹⁴². Reivindicar a travestilidade enquanto um terceiro gênero, não necessariamente associado a binariedade ocidental de gênero mulher-homem. Pensar a travestilidade no Brasil é reconhecer o protagonismo de sujeitas que rompem com a lógica binária ocidental de gênero com a possibilidade de terceiro gênero construído a partir das margens e reinventando outras possibilidades de ser nominada como travestis, sem o enquadramento da binariedade que a sociedade convencionou a nominar e enquadrar enquanto homem-mulher como únicas possibilidades de ser e existir.

Negar a existência de outras possibilidades de construção de gênero para além das normativas impostas culturalmente pelo ocidente a partir da genitália é arbitrário. O transfeminismo é uma corrente de pensamentos que travestis e

transexuais vem desenvolvendo no campo teórico, político e prático na produção de resistências e saberes e situado na corporeidade travestis e transexuais.

Reconhecer as nossas singularidades, as subjetividades e as necessidades de nós sujeitas travestis e transexuais é uma construção coletiva de transfeminismo. Hoje mais do que nunca, existe a necessidade de nos colocar no lugar de sujeitas pensadoras e críticas de um sistema euroamericano que divide a sociedade ocidental a partir de uma lógica binária de gênero. A estratégia aqui é pensar que os nossos corpos e vidas são vítimas de violências, que são estruturadas pelo patriarcado, machismo, misoginia e da transfobia. Entender que essas violências e/ou violações de direitos estão marcados numa estrutura de não reconhecimento dos corpos e identidade travestis que são dissidentes a essa norma cisheteronormativa que retira de nós a nossa humanidade.

Nós enquanto travestis estamos por produzir saberes que estão conectados aos corpos e nossas identidades, construindo assim experiências e vivencias que são únicas ao universo da travestilidade. Essa travestilidade não é única, assim como as mulheres não são únicas, existe uma pluralidade e diversidade no que tange a nossa existência. Pensar a travestilidade perpassa por uma situacionalidade histórica, política, geográfica e cultural. Ressalto esses pontos no sentido de contextualizar essa categoria no sentido de fluidez dessa categoria que estamos por criar e recriar atravessados por marcadores da diferença tais como raça, classe e geracionais.

Observo que a minha experiência enquanto uma pessoa adulta, nordestina, negra e pertencente a classe trabalhadora é marcada por múltiplas violências que são potencializadas pela minha identidade de gênero enquanto travesti. Quando esses marcadores são acionados nos corpos travestis e de mulheres negras estão por acionar a interseccionalidade cunhada por Kimberlé Crenshaw em “Mapeando as Margens: Interseccionalidade, Políticas Identitárias e Violência contra Mulheres de Cor” (2020).

Sou uma sujeita que passo pelo processo de construção do meu corpo para além da binariedade de mulher-homem, assim o meu corpo é reconstruído e elaborado por colaboração do universo da travestilidade no exercício de irmandade. A travestilidade no Brasil como um terceiro reivindica diariamente a possibilidade de existir e resistir.

O ser e o existir travesti estão alicerçados no ativismo e nas ressignificação dos corpos e identidades enquanto processo coletivo e individual. O eu travesti conecta com o nós travestis, pois as inserções no universo da travestilidade se dar por meio de referências que são as travestis mais velhas que estão por construir os grandes tapetes vermelhos para os desfiles dos corpos travestem que irão estrear no espaço púbico, numa reivindicação política e identitária de existência, rompendo o a lógica binária de mulher-homem.

Aqui dialogarei com outras companheiras travestis e transexuais para a reivindicação desse lugar de feministas travestis, compreendendo que o feminismo como uma categoria universal não nos cabe, existindo a necessidade urgente de apresentar outras possibilidades de feminismo, assim como as mulheres negras não se identificam com a categoria “universal” de feminismo por entender que somos plurais, diversas e que existem fatores interseccionais que alinham a nossa existência.

Propor um transfeminismo e entender que nós travestis e transexuais podemos ser feministas e nos aliar com o feminismo negro e a interseccionalidade, enquanto aproximações no que tange ao campo das violências. Inspirada no livro “TRANSFEMINISMO” (2021) da intelectual Letícia Carolina Pereira do Nascimento, me alinho nas suas reflexões sobre aliança entre o transfeminismo e feminismo negro como construção que nos inspira a pensar as estruturas sociais racistas e transfóbicas, no sentido de enfrentamento das estruturas de opressão que produzem as violências.

O Transfeminismo é uma corrente teórica dos feminismos que trabalha com as

experiências das sujeitas travestis e transexuais na disputa dos feminismos enquanto categoria analítica, “impossível permanecer insistindo em mulher, no singular, numa condição universalizante, como sujeita única do feminismo. É preciso localizar as sujeitas, de modo a favorecer a dimensão plural de nossas existências” (NASCIMENTO, 2021, p. 68).

Como aponta a intelectual e transfeminista Letícia Nascimento (2021) o transfeminismo não é apenas uma corrente do feminismo, é mais além, é uma construção de ideias e teorias e políticas que perpassam as experiências das travestis e transexuais, experiências que estão muitas das vezes pautadas pelo lugar da subalternidade do exótico.

Importante entender o transfeminismo como um movimento epistêmico e político feito por e para mulheres transexuais e travestis, como afirma Letícia Nascimento, (2021). Neste caminho as travestis e transexuais que se reconhecem como Transfeminista vem provocando tensões dentro do movimento feminista em busca de reconhecimentos nas produções de saberes e sistematização das práxis, incidências política e na construção de correntes teóricas e práticas no movimento feminista e no movimento de travestis e transexuais.

Aponto que necessitamos construir outros caminhos para marchar no transfeminismo de forma a disputar as diversas frentes dos feminismos e apresentar reflexões de uma construção coletiva de travestilidades e transexualidades em aliança teórica e pratica com o feminismo negro.

Assim, venho pensando e elaborando a travestilidade e o transfeminismo, enquanto um projeto político, teórico e prático baseado em minhas experiências individuais e coletivas. Criando saberes que são atravessados pela minha identidade e corporeidade de uma travesti e negra. Portanto, observo que a aliança com o feminismo negro se dá por uma aproximação de discriminações e violências que perpassam pela subalternidade. Logo, reitero a minha posição de reivindicar a categoria de travestilidade enquanto terceiro gênero, que está além

da binariedade de mulher-homem ocidental.

REFERÊNCIAS

CRENSHAW, Kimberlé. Mapeando as Margens: Interseccionalidade, Políticas Identitárias e Violência contra Mulheres de Cor. Trad. Paula Granato e Gregório Benevides. In: MARTINS, Ana Claudia Aymoré; VERAS, Elias Ferreira (Orgs.). Corpos em aliança: diálogos interdisciplinares sobre gênero, raça e sexualidade. Curitiba: Appris, 2020.

NASCIMENTO, Letícia Carolina Pereira do. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

140 Travesti preta, graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo e Mestranda em Antropologia pelo Programa Associado de PósGraduação em Antropologia – UFC/UNILAB.

141 Trecho da Música Mulher, Mulher da Linn da Quebrada, 2017 – grifo meu.

142 (Cis) é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu gênero de nascimento.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Letícia Bartelega Domingueti ¹⁴³

É violênc ia física, psicológica, moral, sexual, patrimonial, e é mais. É também uma das principais motivações para mortes de mulheres no Brasil. Em termos simples, pode ser dividida em cinco tipos: violência física, moral, patrimonial, psicológica e sexual. A violência física é a mais visível, observada nos casos de agressões ao corpo da mulher, como chutes e empurrões (BRASIL, Lei nº 11.340, 2006).

A violência moral está diretamente relacionada às práticas de injúria, calúnia e difamação (BRASIL, Lei nº 11.340/2006). Ocorre essencialmente nos casos em que a imagem da vítima é exposta, nos casos em que se observa ridicularização e sentimentos de vergonha e culpa. Aliás, a culpa é um dos sentimentos mais observados pela vítima em todos os casos.

Já a violência patrimonial é caracterizada por limitações impostas pelo agressor quanto ao acesso da vítima ao dinheiro, a sua independência, ou à tomada de decisões (BRASIL, Lei nº 11.340/2006). Nesses casos, observa-se submissão, vez que muitas vezes a mulher é impedida de trabalhar e, consequentemente, de conquistar sua independência financeira. Caracteriza-se, no dia a dia, por situações disfarçadas de proteção e excesso de zelo.

Uma das formas mais difíceis de se verificar, e de se comprovar, a violência patrimonial está, ainda hoje, enraizada em muitos relacionamentos. Pode ser verificada quando a mulher já se acostumou a justificar todos os seus gastos para o companheiro, quando ela deixa de comprar ou de ter uma experiência que lhe agradaria porque ele desaprova. É uma forma de controle sutil e esmagadora.

A violência sexual, dentro de um relacionamento, é observada quando a vítima pratica atos contra a sua vontade. Quanto se sente na obrigação de satisfazer os desejos do parceiro, mesmo quando não comunga do mesmo interesse. Esse tipo de violência também faz parte de relacionamentos em que a liberdade e o desejo de ambas as partes não são respeitados. Relacionamentos em que o ato sexual é obrigação.

Salienta-se que, ainda que dentro de relacionamentos, qualquer ato sexual somente pode ser realizado quando há vontade de ambas as partes, visto que práticas em sentido contrário violam preceitos constitucionais e podem vir a ser caracterizadas como estupro.

Já a violência psicológica, comumente presente nos casos em que os demais tipos de violência são observados, verifica-se quando há dano emocional, diminuição da autoestima, interferindo em seus comportamentos, crenças e decisões (BRASIL, Lei nº 11.340/2006). É verificada, muitas vezes, em relacionamentos em que há humilhações constantes, em que a vítima passa a não ter certeza se está certa ou errada, ou se é ou não culpada pelos atos praticados pelo agressor.

A violência psicológica é o que impede, muitas vezes, que a mulher deixe o ciclo de violência, pois dá ao agressor poder sobre a vítima, faz com que ela acredite que não será feliz sem ele e que, se mudar traços de seu comportamento, viverá feliz.

A violência é um ato que pode ser expresso sob diversas formas, podendo ser elas, física, moral, psicológica, sexual e patrimonial, bem como, existem vários enfoques sob as quais podem ser definidas. Trata-se de agressão injusta, ou seja, aquela que não é autorizada pelo ordenamento jurídico. É um ato ilícito, doloso ou culposo, que ameaça o direito próprio ou de terceiros, podendo ser atual ou

iminente (ROSA FILHO, 2006, p. 55).

Importante salientar que qualquer mulher pode ser vítima de violência doméstica, independente do quanto tenha estudado, de quantas informações possua ou de seu acesso aos meios de proteção. O agressor que pratica violência psicológica faz com que a vítima acredite que os constrangimentos e humilhações pelas quais passa, são culpa dela. Por este motivo, ao invés de tentar sair do relacionamento, tenta mudar os próprios comportamentos. Trata-se de uma relação de poder existente entre a vítima e o agressor.

O que permeia, para todas, é o exercício do poder entre os gêneros, mas não como único fator hierarquizante no contexto das relações sociais, o que pode explicar as diferenças no processo de enfrentamento. A violência contra as mulheres é banalizada, minimizada, negada pela cultura machista e sexista, sendo percebida pela sociedade como algo que não poderia ser evitado (STREY, 2000, p. 9-18).

O enfrentamento deste problema muitas vezes é realizado por meio de estratégias de resistência construídas dia após dia. São estratégias de empoderamento, de construção e contribuição para que haja mudanças nas relações entre homens e mulheres (LETTIERE, 2011). Para o enfrentamento deste problema, a família deve ser utilizada como base para proteção e superação.

Inúmeros são os agentes que podem contribuir para a superação da situação vivenciada, tanto no que se refere a relações sociais, institucionais e vínculos familiares. Para a vítima, a segurança de ter apoio e proteção é fundamental para a tomada de decisão no sentido de superação da violência vivenciada, muitas vezes, por longos anos.

A vítima de violência doméstica muitas vezes se sente culpada, pensa se poderia ter feito algo diferente. Ainda que esclarecida, é, no íntimo, pensar se ainda existem chances de ele mudar. “E se ele nunca mais fizer isso? Ele disse que foi a última vez, que não vai mais beber.” Existe agressor que põe a culpa na bebida, no passado, no stress do dia a dia. Existe agressor que põe a culpa na mulher, nos filhos, no trabalho. Existe agressor que admite a culpa: “não consigo me controlar”.

Viver em um ambiente em que uma mulher é agredida é sentir-se desprotegido. É sentir o gosto da impunidade, da seletividade da lei e das decisões judiciais. É colocar a vida debaixo dos ativismos das decisões dos magistrados. É ter que contar, e recontar, e recontar, detalhes que gostaria de esquecer.

Mas se não contar, a solução não vem. Mas se contar ela vem de algum lugar? Da polícia, da delegacia, do juiz.? Tem o parente que pergunta, a amiga que não entende como ninguém percebeu, como deixaram isso acontecer?

A violência doméstica, embora inaceitável nos discursos, é silenciosamente aceita pela sociedade como parte integrante dos relacionamentos. É fruto de uma evolução histórica e se configura como um dos mais importantes desafios sociais, vez que a própria vítima apresenta dificuldades de reconhecimento e superação da situação.

Então, não obstante no dia 07 de agosto de 2006 tenha sido sancionada a Lei nº 11.340 – Lei Maria da Penha – que criou muitos mecanismos de proteção e formas de eliminação das violências sofridas como as Delegacias Especializadas e Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, fato é que muito ainda há que ser feito.

A Lei Maria da Penha tem como objetivo assegurar a integridade física, psíquica,

sexual, moral e patrimonial da mulher (DIAS, 2013). É mais um dos mecanismos existentes e que, juntos, visam a superação de um problema social já cronificado.

Muitos fatores podem ser facilitadores da prática de violência doméstica, como os casos em que a vítima não possui rede de apoio, ou seja, não tem familiares ou amigos que possam ser suporte, caso ela opte por encerrar o relacionamento e superar a situação vivenciada.

Questões patrimoniais e filhos também costumam dificultar a superação. Inúmeras vezes é possível observar a vítima permanecer em um relacionamento não saudável por acreditar que sair dele seja inviável. Isso acontece quando ela não tem condição de prover o próprio sustento.

Como uma das mais preocupantes formas de violência, a violência doméstica é praticada contra a mulher pelo namorado, companheiro, marido. Por ser praticada no seio familiar, é de difícil comprovação e superação. Envolve um trabalho árduo e lento, mas que não pode deixar de ser realizado. A denúncia e a superação vêm aos poucos, mas há que se lembrar que é, sim, possível superá-la.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-

2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em: 19 jan. 2021.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias: LEI 12.344/10: Regime obrigatório de bens. Lei 12.398/11: Direito de Visita dos Avós. 9ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

LETTIERE, Angelina. NAKANO, Ana Márcia Spanó. Violência doméstica: as possibilidades e os limites de enfrentamento. Rev. Latino-Americana de Enfermagem, nov-dez, 2011.

ROSA FILHO, Cláudio Gastão da. Crime Passional e Tribunal Do Júri. Florianópolis: Habitus, 2006.

STREY, M. N. Será o século XXI o século das mulheres?. In: STREY, M. N.; MATTOS, F.; FENSTERSEIFER, G.; WERBA, G. C (Eds.). Construções e perspectivas em gênero. São Leopoldo: Unisinos, 2000. P. 9-18.

143 Mestra em Direito, com Ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em direito civil e processual civil pela Instituição de Ensino LFG. Advogada e professora (Escola Mineira de Direito – EMD). E-mail: [email protected]

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Fabiane Simioni¹⁴⁴

Em 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu uma declaração ¹⁴⁵, segundo a qual os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos adotados internacionalmente ¹⁴ . Apesar das evidências sugerirem que as experiências de desrespeito e maus-tratos durante a assistência ao parto são amplamente disseminadas, atualmente não há consenso internacional sobre a definição desse problema. De um lado, as associações e sindicatos dos profissionais de saúde são relutantes, salvo algumas exceções, quanto ao estatuto ontológico e epistêmico do termo. Por outro, iniciativas governamentais e da sociedade civil mobilizam a correlação entre as práticas de profissionais da área da saúde de abusos e maustratos contra parturientes ¹⁴⁷ no período da assistência ao parto e no puerpério a violações dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.

É importante ressaltar que a obstetrícia moderna cumpre um papel importante no contexto de uma gravidez de alto risco, ou mesmo nas eventuais emergências obstétricas. No entanto, o paradigma biomédico contemporâneo, inscreveu a gravidez na lógica do risco e da patologia e padronizou a assistência em ambientes hospitalares. O parto, outrora um evento familiar e doméstico, até o século XIX, foi transferido para um ambiente institucional e profissionalizado, que nega às parturientes e aos acompanhantes a oportunidade de participarem da tomada de decisões sobre o que é melhor para si e para a criança. O processo de submissão às técnicas e aos procedimentos tornam sujeitos em pacientes, objetos de intervenção biomédica, sem potência ou capacidade para manifestarem qualquer contrariedade ou objeção em relação ao modo como são acolhidos pelos serviços de cuidado médico-hospitalar. Aquilo que hoje alguns grupos da sociedade civil organizada afirmam ser uma violência é tomado pelos profissionais, em geral, como práticas de rotina que visam tão somente o melhor resultado útil possível (PIMENTEL, et.al., 2014). A própria OMS (2014) refere a necessidade de um processo inclusivo de implementação e monitoramento da assistência ao parto com a participação de parturientes, comunidades, profissionais e gestores(as) da saúde, formadores(as) de recursos humanos em saúde, organismos de educação e certificação, associações profissionais,

governos, interessados(as) nos sistemas de saúde, pesquisadores(as), grupos das sociedades civis e organizações internacionais. Esse processo, de acordo com a OMS, é um esforço para garantir que as situações de abuso, desrespeito e maustratos sejam identificadas e relatadas de forma regular e consistente, e que as medidas preventivas e terapêuticas localmente apropriadas sejam implementadas.

No contexto brasileiro, a primeira pesquisa de opinião que contemplou o tema da violência obstétrica foi realizada em 2010, pela Fundação Perseu Abramo (FPA)¹⁴⁸. Segundo o levantamento, 25% das entrevistadas afirmaram terem sofrido algum tipo de violência durante o atendimento do parto, o que também foi referido por cerca da metade daquelas que passaram por um aborto. Trata-se de práticas prejudiciais à integridade física e emocional que têm sido cada vez mais questionadas em decorrência de ausência de indicação terapêutica na maior parte dos casos. Em outras palavras, são práticas de uso extensivo e ineficazes, de acordo com os estudos baseados em evidências científicas. Cada vez mais têm sido consideradas desumanas e degradantes, uma violação dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, da dignidade de parturientes.

Além da ineficácia e da ausência de indicação terapêutica de tais práticas, há o abuso verbal. De acordo com a pesquisa da FPA (2010), uma em cada quatro mulheres (25%) ouviu de algum(a) profissional, durante a assistência ao parto, frases como: “não chora que ano que vem você está aqui de novo” (15%), “na hora de fazer não chorou, não chamou a mamãe” (14%), “se gritar eu paro agora o que estou fazendo” (6%), “se ficar gritando seu neném via nascer surdo” (5%). Esse tipo de comunicação verbal reflete o aprendizado informal de profissionais sobre como disciplinar as pacientes, desmoralizando seu sofrimento e desautorizando eventuais pedidos de ajuda (MATTAR; DINIZ, 2012).

No parlamento brasileiro, o tema foi debatido, em 2013, pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Senado Federal. O relatório final¹⁴ constatou que as ações que o Ministério da Saúde vem desenvolvendo não têm sido suficientes para alterar a realidade de maus-tratos durante o parto. A

comissão recomendou que fossem intensificadas as ações junto aos estados da federação para prevenir e punir a violência obstétrica, bem como que fossem desenvolvidas campanhas de divulgação sobre os direitos de pacientes a um procedimento médico adequado e não invasivo.

Em 2016, a Escola Nacional de Saúde Pública (FIOCRUZ), publicou o inquérito nacional sobre parto e nascimento¹⁵ , contemplando uma amostra representativa dos partos hospitalares de todo o país (266 maternidades públicas e privadas com 500 ou mais partos anuais em 191 municípios). A pesquisa entrevistou mais de 23 mil mulheres e mostrou que as práticas prejudiciais ou ineficazes ainda são rotina no país.

Quanto aos homens trans e pessoas transmasculinas, observamos relatos nas mídias sociais e na imprensa brasileira que destacam a transfobia e os maustratos das equipes das maternidades contra os pacientes e suas/seus acompanhantes¹⁵¹. O traço comum, nesses casos, é uma formação técnicocientífica precária cuja centralidade está na patologização e abjeção dos corpos e das experiências que subvertem a cisheteronormatividade. A heteronormatividade pode ser compreendida como um conjunto de prescrições que fundamentam processos sociais de regulação e controle da sexualidade (MISKOLCI, 2009). Trata-se de um critério organizador e classificatório que faz da heterossexualidade reprodutiva o parâmetro para julgamentos sobre a variedade de práticas, identidades e relações sexuais, afetivas e amorosas (PECHENY, 2008). No caso das pessoas transgênero nos deparamos com experiências de não conformação a heterossexualidade e a identidade cisgênero.

Os dados sumariamente apresentados nos permitem afirmar que a violência obstétrica é um problema de saúde bastante recorrente nos partos hospitalares no Brasil. A cotidianidade dos procedimentos e dos comportamentos mencionados nas narrativas de parturientes tem gerado diferentes repercussões. No nível institucional, as associações e sindicatos de profissionais da área da medicina estão orientados politicamente para a defesa das suas práticas e para a negação da violência obstétrica como resultado de imperícia ou negligência no exercício

profissional. No nível das mobilizações sociais, pacientes e suas redes de apoio reivindicam mudanças no paradigma biomédico, com o objetivo de destacar a necessidade de uma transformação cultural sobre a assistência ao parto e ao puerpério que passa, necessariamente, (i) por reformas nos componentes curriculares das áreas de conhecimento relacionadas aos campos da saúde e dos direitos humanos, em especial, dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, como também (ii) pela responsabilização civil, criminal ou administrativa, conforme o caso.

Se a violência obstétrica existe, ainda que não haja consenso em relação ao nome sob a qual se deva conhecer suas práticas, também é verdade que não há consenso sobre o modo como o mundo jurídico deveria responder a esse problema. Ainda que diferentes instrumentos normativos internacionais reconheçam a importância e a urgência de uma aplicação universal dos direitos e princípios relativos à igualdade, não-discriminação, segurança, liberdade, integridade e dignidade; há um debate necessário sobre a correlação entre as principais categorias de violência obstétrica e as correspondentes violações dos direitos humanos.

Para contribuir nesse debate, elaboramos o quadro abaixo, a partir de outros estudos e exemplos¹⁵². Observamos uma série de violações de direitos fundadas em práticas prejudicais e discriminatórias que comprometem a capacidade de parturientes de exercerem suas escolhas reprodutivas com segurança e liberdade. Os exemplos elencados não são exaustivos, apenas pretendem ilustrar as ocorrências mais recorrentes. Ressalte-se que a incidência das práticas prejudiciais ou ineficazes realizadas nos serviços de saúde tem maior prevalência em parturientes racializadas (pretas e pardas). Como demostram Leal et. al. (2017, p. 6) “[...] as mulheres de raça/cor preta e parda, quando comparadas às brancas, apresentaram, de maneira geral, piores indicadores de atenção pré-natal e atenção ao parto”.

Quadro 1: Categorias de violência obstétrica e violações de direitos humanos

Abusos e maus-tratos

Violações de direitos

Abuso físico

Direito à integridade física e moral

Intervenções não consentidas

Direito à informação; direito ao consentimen

Cuidado indigno e abuso verbal

Direito à integridade moral e emocional.

Abandono, negligência e recusa de assistência

Direito à segurança; direito à saúde e à assis

Retenção em hospital

Direito à liberdade; direito à proteção contra

Desde o âmbito internacional, vários dispositivos normativos de proteção de direitos humanos mencionam um conjunto de deveres dos Estados e dos particulares quanto à proteção dos direitos humanos. Para o tema da violência obstétrica, nos interessa compreender os direitos intrinsecamente vinculados aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos. A partir de outros estudos¹⁵³ e do conjunto de instrumentos normativos internacionais que reconhecem os direitos sexuais e os direitos reprodutivos¹⁵⁴, elaboramos o quadro 2 como uma tentativa para melhorar a compreensão do problema.

Quadro 2: Direitos sexuais e direitos reprodutivos de reconhecimento internacional

Direitos humanos

Direitos sexuais e direitos reprodut

Direito à vida

Não morrer por causas evitáveis rel

Direito à saúde

Receber assistência de profissionai

Direito à segurança, à liberdade e à integridade pessoal

Não sofrer torturas, tratamentos deg

Direito ao planejamento reprodutivo

Autonomia para desenvolver um pl

Direito à intimidade

Presença de um(a) acompanhante e

Direito à igualdade e a não-discriminação

Não sofrer discriminação em razão

Direito à informação adequada e oportuna

Acesso à informação em linguagem

Direito à participação

Participar dos mecanismos de contr

Direito ao progresso científico

Desfrutar das inovações científicas

O quadro 2 sugere uma série de elementos subjacentes à saúde sexual e reprodutiva de parturientes, formulados em termos de direitos sexuais e de direitos reprodutivos. No âmbito da proteção global, o direito internacional dos direitos humanos aporta conceitos e categorias descritivas instando a comunidade internacional para que empreendam uma busca permanente para elevação dos padrões de eficácia dos direitos humanos.

No caso específico da violência obstétrica, alguns Estados latino-americanos aprovaram legislações nas quais houve a expressa tipificação desse tipo de violência. Na Argentina, na Venezuela e no México¹⁵⁵, a tipificação da violência obstétrica foi desenvolvida a partir do marco global da Convenção CEDAW (1979), como também do marco regional da Convenção de Belém do Pará (1994), as quais tratam de situações de discriminação e violência contra as mulheres. Os referidos dispositivos normativos não poderiam ser considerados como uma espécie de linha de chegada. São, antes de tudo, uma oportunidade de discussão esclarecida sobre o tema. A própria ênfase na violência obstétrica como uma categoria de violência contra as mulheres atrai críticas em razão dos limites cisheteronormativos. Não nos parece de boa técnica legislativa que a violência obstétrica possa ser categorizada exclusivamente como uma espécie de violência contra as mulheres. Seria mais adequado que a violência de gênero fosse a classe da qual a violência obstétrica seria uma espécie, a fim de acolher tanto a violência dirigida às mulheres cis quanto transgênero. Ao inserir a violência obstétrica na classe da violência de gênero estaria contemplada a diversidade de casos em que homens trans ou pessoas transmasculinas também estão submetidos a um regime de constrangimentos e violações de direitos humanos nas interações com equipes de saúde, no contexto da gestação, parto, puerpério e aborto.

Em um mundo em que as diferenças são tomadas como instrumentos para a preservação de padrões de desigualdades, os quais resultam em menor capacidade de agência para uma vida com dignidade e segurança, a tipificação da violência obstétrica parece um marco jurídico importante que merece ser ampliado para acolher as experiências de pessoas transgênero. Nesse caso, em

particular, é preciso associar a ferramenta analítica da interseccionalidade, justamente para considerar que “as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, faixa etária – entre outras – são interrelacionadas e moldam-se mutuamente” (COLLINS; BILGE, 2021, p. 15-16)¹⁵ . Na contramão da seletividade de práticas discriminatórias, a interseccionalidade possibilita uma leitura integrativa e complexa sobre os regimes de desrespeito e precarização, os quais resultam, cada vez mais, em relatos de violência, abuso e maus-tratos contra parturientes.

Recentemente, o Comitê CEDAW, mencionou a abordagem interseccional na análise da violência no caso Alyne Pimentel vs. Brasil¹⁵⁷. Nesse caso, o órgão considerou os efeitos do racismo e da discriminação racial na violência de gênero contra as mulheres, em especial na análise dos direitos reprodutivos de mulheres negras, pobres e periféricas (CATOIA, et. al., 2020). O Comitê CEDAW reconheceu que a negação do acesso aos serviços de saúde materna de qualidade é uma prática discriminatória. Os Estados signatários da Convenção CEDAW têm a obrigação de garantir que qualquer parturiente tenha acesso a serviços de saúde de forma oportuna, não discriminatória, acessível e adequada, independentemente de classe social ou raça. Essa decisão do Comitê CEDAW é considerada inovadora porque é o primeiro caso, no sistema global de proteção de direitos humanos, que ratifica a obrigação que os Estados têm de garantir o igual acesso, sem discriminação às informações e aos serviços especializados de saúde materna (KISMÖDI et. al. 2012; COOK, 2013).

REFERÊNCIAS

CATOIA, C. de C.; SEVERI, F. C.; FIRMINO, I. F. C. Caso “Alyne Pimentel”: Violência de Gênero e Interseccionalidades. Revista Estudos Feministas, 28(1), 2020.

COLLINS; P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.

COOK, R. Human Rights and maternal health: exploring the effectiveness of the Alyne decision. Journal of Law, Medicine & Ethics, 41(1), p. 103-123, 2013.

FACIO, A. Los derechos reproductivos son derechos humanos. San Jose: IIDH, UNFPA, 2008.

JEWKES, R.; PENN-KEKANA, L. Mistreatment of women in childbirth: time for action on this important dimension of violence against women. PloS Med, 12(6). 2015. Disponível em: https://journals.plos.org/plosmedicine/article? id=10.1371/journal.pmed.1001849 Acesso em: 20 jun. 2022.

KISMODI, E.; MESQUITA, J. B. de; IBAÑEZ, X. A.; KHOSLA, R.; SEPÚLVEDA, L. Human rights accountability for maternal death and failure to provide safe, legal abortion: the significance of two ground-breaking CEDAW decisions. Reproductive Health Matters, 20(39), p. 31-39, 2012.

LEAL, M. do C.; GAMA, S. G. N. da; PEREIRA, A. P. E.; PACHECO, V. E..; CARMO, C. N. do C.; SANTOS, R. V. The color of pain: racial iniquities in prenatal care and childbirth in Brazil. Cad. Saúde Pública, 33, 2017.

MATTAR, L. D.; DINIZ, S. G. Reproductive hierarchies: motherhood and inequalities in women’s exercising of human rights. Interface - Comunic., Saude, Educ., 16(40), p.107-19, 2012.

MISKOLCI, R. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias, 11(21), p. 150-182, 2009.

PECHENY, M. Introducción. Investigar sobre sujetos sexuales. In: PECHENY, M.; FIGARI, C.; JONES, D. (eds.). Todo sexo es politico: estudios sobre sexualidad en Argentina. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2008, p. 9-17.

PIMENTEL, C.; RODRIGUES, L.; MULLER, E.; PORTELLA, M. Autonomia, risco e sexualidade: a humanização do parto como possibilidade de redefinições descoloniais acerca da noção de sujeito. Realis, 4(01), p. 166-185, 2014.

TESSER, C. D, KNOBEL R, ANDREZZO, H. F. de A., DINIZ, S. G. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Rev Bras Med Fam Comunidade, 10(35), p. 1-12. 2015.

144 Doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora de graduação (Relações Internacionais e Direito) e do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Co-líder do grupo de pesquisa Interseccionalidades e Decolonialidade nas Relações Internacionais (INDERI/FURG/CNPq).

145 Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/134588/3/WHO_RHR_14.23_por.pdf. Acesso em: 03 de março de 2022.

146 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979); Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (1993).

147 Sabe-se que as experiências de violências na gestação, no parto, no puerpério ou no aborto não são eventos exclusivas de pessoas do sexo feminino. Na medida do possível, optamos por usar um termo neutro na tentativa de incluir respeitosamente as experiências de mulheres cis, homens trans e pessoas transmasculinas. Os termos “mulher/mulheres – woman/women – mujer/mujeres” serão mantidos quando se tratar de documentos normativos, decisões de órgãos internacionais ou outras fontes e referências bibliográficas.

148 Ver os dados da pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado” (2010).

149 Disponível em https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/entenda-aviolencia/pdfs/relatorio-final-da-comissao-parlamentar-mista-de-inquerito-sobrea-violencia-contra-as-mulheres. Acesso em 03 de março de 2022.

150 Disponível em https://nascernobrasil.enspa.fiocruz.br/?us_portfolio=nascerno-brasil. Acesso em 03 de março de 2022.

151 A título exemplificativo, foram noticiados dois casos em 2021: em Jaraguá do Sul, no estado de Santa Catarina, Terra Rodrigues e Derick Wolodascyk (https://catarinas.info/hospital-e-acusado-de-transfobia-por-nao-respeitaridentidade-de-genero-de-gestante-e-acompanhante/) e em Aracajú, em Sergipe, o casal Lourenzo Gabriel Duvale e Isis Broken ((https://ponte.org/casal-denunciatransfobia-em-atendimento-medico-em-sergipe/). Nas duas experiências, os episódios de violência obstétrica se entrecruzam com a transfobia.

152 Ver JEWKES e PENN-KEKANA (2015); https://doi.org/10.1371/journal.pmed.1001849TESSER (2015).

153 Ver FACIO (2008).

154 Além dos citados anteriormente, ver Plataforma de Cairo (1994) e de Beijing (1995).

155 Na Argentina, a Lei 26.485/2009 (Ley de Protección Integral para prevenir, sancionar, y erradicar la violencia contra las mujeres en los ámbitos en que desarrollen sus relaciones interpersonales) define a violência obstétrica como “aquella que ejerce el personal de salud sobre el cuerpo y los procesos reproductivos de las mujeres, expresada en un trato deshumanizado, un abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales, de conformidad con la Ley 25.929” (refere-se a Ley de Parto Humanizado). Na Venezuela, a Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a uma vida libre de violencia (2007) conceitua a violência obstétrica com “la apropiación del cuerpo y procesos reproductivos de las mujeres por personal de salud, que se expresa en un trato deshumanizador, en un abuso de medicalización y patologización de los procesos naturales, trayendo consigo pérdida de autonomía y capacidad de decidir libremente sobre sus cuerpos y sexualidad, impactando negativamente en la calidad de vida de las mujeres”. No México, o Senado aprovou a modificação da Ley General de acceso a una vida libre de violência, em 30 de abril de 2014, e incluiu o artigo 6º que define por violência obstétrica como “toda acción u omisión por parte del personal médico y de salud que dañe, lastime, denigre o cause la muerte a la mujer durante el embarazo, parto y puerperio”.

156 Para aprofundar, ver o verbete “interseccionalidade”, de Gabriela Kyrillos. Aqui nesse espaço, fazemos o uso desse marco teórico como uma ferramenta de análise e de crítica, sem desconsiderar a complexidade de seus usos e abusos. Sobre os abusos da interseccionalidade, ver: BILGE (2018).

157 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alyne da Silva Pimentel

Teixeira vs. Brasil. Comunicação nº 17/2008, CEDAW/C/49/D/17/2008. Disponível em https://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/CEDAW/Jurisprudence/CEDAWC-49-D-17-2008_en.pdf. Acesso em 03 de março de 2022.

VIOLÊNCIA POLÍTICA DE GÊNERO

Letícia Maria de Maia Resende¹⁵⁸

Atos violentos estão presentes em diversos contextos, de modo que também são numerosas as formas de violência que ocorrem em razão do gênero. Nesse sentido, a socióloga nicaraguense Isabel Torres García afirma que “a violência é um conceito complexo e de difícil compreensão, tem multiplicidade de abordagens analíticas, assim como um sentido multifatorial e multidimensional de causas e consequências” (GARCÍA, 2017, p. 23). Dessa maneira, depreendese que a violência apresenta muitas vertentes, podendo ser apontados como exemplos de suas modalidades a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, todas essas positivadas como formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, presentes no artigo 7º da Lei nº 11.340 de 2006, conhecida como a Lei Maria da Penha (BRASIL, Lei nº 11.340, 2006). Diante disso, nota-se que há outras modalidades de violência, dentre as quais se destaca a violência política, própria do ambiente político-partidário.

A sub-representação de gênero no ambiente da política formal é uma realidade em vários países, em especial no Brasil, cuja sociedade, a exemplo de outras ocidentais, organizou seus espaços e atividades com base no sistema sexogênero, “sistema institucionalizado que distribui recursos, propriedade e privilégios a pessoas de acordo com papéis de gênero definidos culturalmente” (LERNER, 2019, p. 289). Assim, conforme o gênero, algumas tarefas acabaram por se constituir como de viés predominantemente feminino ou masculino. Dessa maneira, por exemplo, a produção vinculou-se ao gênero masculino da mesma forma que a reprodução se vinculou ao gênero feminino, bem como todas as demais tarefas afeitas ao cuidado.

Diante dessa separação de atividades, os espaços também se organizaram historicamente de modo a tornarem-se mais receptivos a um gênero do que a outro. A dicotomia entre ambientes públicos e privados fez com que os primeiros se adequassem mais aos homens, sendo as mulheres predestinadas à ocupação dos ambientes privados, como o doméstico. O espaço político, diante dessa conjuntura, estruturou-se por relações de poder patriarcais e machistas, de modo

que quando da extensão dos direitos políticos, ativos, em especial, às mulheres praticamente não houve mudança efetiva de sua composição, uma vez que atualmente, quase trinta anos depois de tal conquista, os índices de mulheres representantes permanecem baixos.

As mulheres ainda são minoria da composição das casas legislativas do Brasil. A atual legislatura federal contempla a maior bancada feminina de toda a história democrática do país, com 77 deputadas federais na Câmara dos Deputados e 12 senadoras no Senado Federal. A média de mulheres em cargos eletivos, em todos os níveis, sejam eles municipais, estaduais e federais, fica na casa dos 15%, sendo que as mulheres correspondem à maioria da população brasileira e do eleitorado do país, havendo um verdadeiro descompasso quando da sua inserção e permanência na esfera da política institucional, tradicionalmente ocupada pelo gênero masculino. Isso faz com que a tomada de decisões políticas, bem como a própria atividade legiferante, mantenham a perspectiva masculina em vários aspectos.

Assim, frente à organização patriarcal do Estado brasileiro, cujas relações de poder construíram-se e sedimentaram-se historicamente de modo a alijarem o gênero feminino dos espaços de decisão, as mulheres que decidem por entrar na carreira política podem ser vistas como invasoras e, de fato, enfrentam diversos desafios, sendo constantemente alvo de condutas comissivas e omissivas destinadas a prejudicar suas campanhas, tanto no período anterior, quanto no posterior às eleições, isto é, antes, durante e depois do exercício do mandato. Tais condutas caracterizam a violência política, uma vez que ambientadas na esfera política, marcada historicamente por nefastas práticas de patriarcalismo e coronelismo, ainda vicejantes hodiernamente, relacionadas ao abuso de poder.¹⁵

A violência política, de acordo com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pode ser conceituada como “a agressão física, psicológica, econômica, simbólica ou sexual contra a mulher, com a finalidade de impedir ou restringir o acesso e exercício de funções públicas e/ou induzi-la a tomar decisões contrárias à sua vontade” (BRITO, 2021). Tendo em vista que as

vítimas majoritárias dessas condutas são as mulheres, chega-se ao conceito de violência política de gênero, que corresponde a “todo e qualquer ato com o objetivo de excluir uma pessoa devido ao seu gênero do espaço público, impedir seu acesso ou restringir seu exercício de livre participação política” (BRITO, 2021).

A matéria, recentemente, foi objeto de amplo debate que culminou em sua legislação.¹ Trata-se da Lei nº 14.192, promulgada e publicada em 4 de agosto de 2021, originária do Projeto de Lei nº 349 de 2015 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, Projeto de Lei nº 349/2015), de autoria da deputada federal Rosângela Gomes (PRB-RJ). A nova Lei Ordinária dispõe sobre o combate à violência e à discriminação político-eleitorais contra a mulher, merecendo destaque o seu artigo 3º, que considera a violência política contra a mulher “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher”. Aliás, afirma em seu parágrafo único que “constituem igualmente atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo” (BRASIL, Lei nº 14.192, 2021). A lei ainda reconhece a violência política contra as mulheres como crime passível de multa ou pena de reclusão, dada a alteração no Código Eleitoral, o qual agora traz em seu texto o artigo 326-B.¹ ¹

Segundo a coordenadora da ONU Mulheres no Brasil, Ana Querino, “a violência política pode ser definida por uma série de agressões físicas, psicológicas e sexuais cometidas contra candidatas, eleitas, nomeadas ou no exercício da função pública ou ainda contra sua família” (INSTITUTO MARIELLE FRANCO, 2021, p. 15). Nesse sentido, tal violência intenciona restringir, suspender ou impedir o exercício do cargo, sendo um fenômeno que atinge não só as mandatárias, mas seus assessores, ativistas, sua rede de apoio, além de violar as bases do regime democrático e do Estado de Direito, tornando-se uma ameaça a toda a sociedade. É possível afirmar, ainda, que a violência política se relaciona a uma resistência à inserção de minorias então alijadas da esfera política, como as pessoas negras, os indígenas, e as mulheres.

A especificidade da violência política baseada em gênero e raça se sustenta sobre as assimetrias das relações de poder entre negros e brancos, homens e mulheres, pessoas cis e trans, que configuram a lógica racista e patriarcal do “fazer político” impregnados na noção moderna de democracia (INSTITUTO MARIELLE FRANCO, 2021, p. 13).

Conforme expõe o trabalho da pesquisadora de comunicação política Luciana Panke, realizado a partir de entrevistas com candidatas e assessores de campanhas eleitorais na sociedade latino-americana, “dentro dos partidos é onde várias mulheres enfrentam suas maiores dificuldades: conseguir ser incluídas, a partir daí, nas mesas de decisão e nas listas eleitorais” (PANKE, 2016, p. 56). Ainda de acordo com os relatos obtidos em seu trabalho, é possível perceber que são várias as dificuldades enumeradas no ambiente interno das organizações partidárias, como exclusão das mesas decisórias e diretivas, inexistência de financiamento igualitário de campanhas masculinas e femininas e, ainda, denúncias de assédio moral e até sexual.

Logo, entende-se que sindicatos e partidos políticos são agentes importantes na conscientização e fiscalização dos atos de violência política. Isso porque grande parte dos casos de abuso de poder contra as candidaturas femininas acontece no interior das associações partidárias, restando conhecido como “abuso de poder partidário mediante violência política de gênero” (COELHO, 2020, p. 81), situação em que as mulheres, apesar de serem mais de 45% das pessoas filiadas,¹ ² têm suas campanhas constantemente subestimadas ou prejudicadas quanto ao financiamento e à divulgação, por exemplo.

Nesse cenário, diante de uma interpretação ampliativa, pode-se apontar como exemplo de violência política de gênero o não cumprimento do preenchimento obrigatório das cotas de candidaturas de gênero e até mesmo o desvio, pelos partidos políticos, dos recursos destinados ao financiamento de campanhas femininas, sendo estes utilizados de maneira muito superior na divulgação e patrocínio das campanhas masculinas. Isso porque tais atos ferem a igualdade de pressupostos para a competição eleitoral e, inclusive, os próprios direitos

eleitorais das mulheres.

Ademais, a violência política de gênero pode ser ilustrada por fatos amplamente disseminados pela mídia brasileira, como o caso de importunação sexual ocorrido na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) em dezembro de 2020, quando a deputada Isa Penna recebeu um abraço por trás do então deputado Fernando Cury, que passou a mão nos seios da colega durante a votação do orçamento do estado para o ano de 2021. Também, e ainda mais extremo, o caso de Marielle Franco, então vereadora da cidade do Rio de Janeiro, assassinada em março de 2018.

Desde o ocorrido, o Instituto Marielle Franco, criado pela família da vereadora com o intuito de “inspirar, conectar e potencializar mulheres negras, LGBTQIA+ e periféricas a seguirem movendo as estruturas da sociedade por um mundo mais justo e igualitário”, vem realizando pesquisas que retratam a violência política de gênero e raça contra candidatas e parlamentares negras do país. Os dados referentes ao pleito municipal de 2020 apontam que 98,5% das candidatas sofreram pelo menos um tipo de violência política, segundo seus relatos (INSTITUTO MARIELLE FRANCO, 2021, p. 82).

Desse modo, a violência política de gênero pode ser compreendida como um mecanismo que impede e limita a participação das mulheres na política, seja como candidatas ou, se já eleitas, durante a atuação de seus mandatos, constituindo-se, assim, uma maneira de perpetuar os baixos índices de representantes mulheres na esfera política brasileira, sendo, portanto, uma das causas da sub-representação de gênero. Por conseguinte, combater a violência política de gênero é uma forma de lutar pelo respeito e pela igualdade de oportunidades, compondo, ainda, um caminho no sentido para se alcançar a paridade de gênero na política institucional.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11340.htm Acesso em: 22 dez. 2021.

BRASIL. Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021. Estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher; e altera a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral), a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei dos Partidos Políticos), e a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições), para dispor sobre os crimes de divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral, para criminalizar a violência política contra a mulher e para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Lei/L14192.htm Acesso em: 22 dez. 2021.

BRITO, Thais. O que é violência política de gênero? POLITIZE! Mai. 2021. Disponível em: https://www.politize.com.br/violencia-politica-de-genero/ Acesso em: 22 dez. 2021.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 349/2015. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao? idProposicao=946625 Acesso em: 22 dez. 2021.

COELHO, Margarete de Castro. O teto de cristal da democracia brasileira: abuso de poder nas eleições e violência política contra mulheres. Belo Horizonte: Fórum, 2020.

GARCÍA, Isabel Torres. Violencia contra las mujeres en la política. Investigación em partidos políticos de Honduras. Instituto Nacional Demócrata (NDI), 2017.

INSTITUTO MARIELLE FRANCO. Violência política de gênero e raça no Brasil – 2021: eleitas ou não, mulheres negras seguem desprotegidas. Rio de Janeiro, 2021.

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história de opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix, 2019.

PANKE, Luciana. Campanhas eleitorais para mulheres: desafios e tendências. Curitiba: Editora UFPR, 2016.

158 Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, na Linha de Pesquisa Relações Sociais e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Pós-graduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS).

159 As formas típicas de abuso de poder, previstas na Lei Complementar nº 64 de 1990, conhecida como a Lei das Inelegibilidades, são o abuso de poder político, conhecido também como abuso de autoridade, o abuso de poder

econômico e o uso indevido dos meios de comunicação social, conhecido como abuso de poder midiático.

160 A Bolívia foi um dos primeiros países a tipificar a violência política de gênero a partir da Lei nº 243, de 28 de maio de 2012.

161 Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo. Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. Aumenta-se a pena em 1/3 (um terço), se o crime é cometido contra mulher: I - gestante; II - maior de 60 (sessenta) anos; III - com deficiência.

162 Dados do TSE indicam que 45,72% das pessoas filiadas a partidos políticos são mulheres. Esses dados podem ser encontrados em: TSE. Estatísticas de filiados a partidos revela baixa participação feminina e de jovens na política. Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticiastse/2021/Junho/estatisticas-de-filiados-a-partidos-revela-baixa-participacaofeminina-e-de-jovens-na-politica. Acesso em: 22 dez. 2021.

VIOLÊNCIAS DE GÊNERO

Marcela Andrade Duarte¹ ³

Desde a Grécia antiga, com Aristóteles, prevalecia a ideia de que “a fêmea é fêmea em virtude de certas carências de qualidade”. No mesmo sentido, São Tomás de Aquino expressava a mulher como um “homem incompleto, um ser ocasional”. Por ser considerada “um ser de paixões e de emoções, comandada por seu útero” (DIDEROT, 2000), a mulher foi compreendida como um ser movido por seus instintos naturais, escrava da sua fisiologia e refratária à razão, o que a colocava em uma posição de inferioridade e subordinação em relação ao homem: o único que, naturalmente, possuía relevância e era capaz de exercer autoridade e poder na sociedade.

Sob essa ideologia consolidou-se o patriarcado, um sistema com estruturas de poder baseadas tanto na ideologia quanto na violência, através do qual os homens dominam, oprimem e exploram as mulheres (SAFFIOTI, 2004). No patriarcado, a autoridade e o poder do homem se corporificam diariamente em todos os espaços da sociedade, fundamentando-se em uma espécie de binarismo sexual hierárquico: cidadãos homens, livres, racionais e provedores são superiores às mulheres, mães, procriadoras, cuidadoras, passionais e absolutamente dependentes (MATOS; PARADIS, 2014).

Para Pierre Bourdieu (2012, p. 18), a relação de dominação e violência característica do patriarcado encontra apoio na divisão sexual do trabalho, que institui uma distribuição rigorosa das atividades atribuídas aos homens e às mulheres. Essa distribuição estrutura os espaços e define os papéis de cada sujeito social. Enquanto o homem deve ocupar os lugares públicos e de liderança, à mulher deve ser reservado o espaço privado e subjugados: a casa, local onde se exercem os cuidados com a alimentação e com a família. Para o autor, essa concepção tradicional de distribuição de tarefas fortalece o estigma de inferioridade, vulnerabilidade e dependência (financeira, emocional) da mulher em relação ao homem.

E é justamente a partir dessa construção social dominante da feminilidade e da masculinidade que as mulheres permanecem reféns das demonstrações de comando e de poder por parte dos homens, de tal modo que as violências cometidas contra elas passam a compor a lógica estruturante de domínio social e a replicarem-se em todas as relações, impedindo-as de gozarem dos seus direitos em condição de igualdade com os homens e de romperem com as relações abusivas às quais, muitas vezes, estão sujeitas.

Apesar dos séculos que separam o pensamento clássico do atual, ainda hoje, há resquícios de uma visão androcêntrica que impulsiona a dominação masculina na sociedade patriarcal. A ruptura com a aceitação generalizada da subordinação e das formas de violência vivenciadas pelas mulheres é recente e teve início com o processo de desnaturalização do ser mulher liderado por Simone de Beauvoir em 1949.

O seu clássico O Segundo Sexo (BEAUVOIR, 1980) abriu portas para o ideal de que “o pessoal é político”. Além disso, colocou o corpo na esfera pública e apresentou a revolucionária distinção entre “sexo” e “gênero” que, posteriormente, se firmou como um dos pilares mais importantes do pensamento feminista na luta contra a desigualdade entre homens e mulheres.

A teoria da identidade de gênero, amplamente invocada no processo de emancipação feminina, reconhece que o termo “sexo” está relacionado à esfera biológica, isto é, aos atributos naturais do homem e da mulher, enquanto o termo “gênero” corresponde a uma categoria analítica resultante das relações de poder existentes na sociedade. Scott, seguindo o pensamento pós-estruturalista, afirma que o gênero é a “organização social da diferença sexual”, de modo que as características e os estereótipos discriminatórios e de inferioridade vinculados às mulheres não são naturais, mas sim resultantes de uma construção sociocultural, política e histórica (SCOTT, 2019, p. 49-80).

Sob essa perspectiva, a violência de gênero está relacionada à prática de

violência motivada pelo sexo, pela identidade de gênero ou orientação sexual daquele que a sofre. Apesar de não atingir apenas as mulheres, uma vez que alcança também crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos, a violência de gênero tem as mulheres como suas vítimas preferenciais e se manifesta de diferentes formas na sociedade, tais como agressões físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais, políticas e simbólicas. De acordo com Heleieth Saffioti (2004), a violência de gênero é uma categoria de violência mais geral, que ocorre normalmente no sentido homem contra mulher, mas pode ser perpetrada, também, por um homem contra outro homem ou por uma mulher contra outra mulher.

Diariamente, pessoas sofrem espancamento, estrangulamento, sufocamento e são violentadas em razão da sua identidade de gênero. Da mesma forma, são humilhadas, manipuladas, silenciadas e perseguidas pelo simples fato de serem e de se reconhecerem como são. Na esfera sexual, muitas vezes, são constrangidas, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso de força, a manter ou a participar de relação sexual indesejada. Também são violentadas quando sofrem retenção e destruição dos seus objetos, quando perdem a autonomia e a liberdade sobre a sua vida e sobre os seus recursos financeiros, ou ainda, quando são impedidas de ocuparem lugares de tomadas de decisões.

Além dessas formas mais explícitas, a violência de gênero também se manifesta através da violência simbólica (BORDIEU, 2000), ou seja, a partir da reprodução inconsciente dos valores culturais machistas e misóginos dominantes na sociedade. A violência simbólica encobre as relações de poder e naturaliza as representações sociais sobre a hierarquia, sobre os papéis dos sujeitos sociais, a moral e os valores socialmente compartilhados, de modo a naturalizar a prática da violência contra as mulheres e contra os mais vulneráveis.

A violência de gênero em todas as suas formas é um fenômeno frequente que atinge pessoas (especialmente, mulheres) de diferentes classes sociais, origem, idade, estado civil, cor, raça e identidade sexual. Mas, a depender do pertencimento a diferentes grupos minoritários, a vulnerabilidade da vítima se

agrava ainda mais. Por essa razão, refletir sobre a violência de gênero implica na necessidade de se reconhecer os sistemas de opressão e de dominação existentes na sociedade para além de uma perspectiva pautada em um único parâmetro: a diferenciação indevida baseada estritamente no sexo.

Na verdade, torna-se necessário pensar a violência de gênero a partir da interação entre os diferentes fatores que colocam as vítimas em posições estruturalmente distintas. Ou seja, sob a perspectiva da interseccionalidade (CRENSHAW, 1989), que leva em consideração o racismo e o sexismo como fatores simultâneos de exclusão, a violência de gênero se manifesta de diferentes formas e graus. O racismo, o patriarcalismo, o capitalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam uma hierarquia entre as vítimas e influenciam diretamente na medida e na maneira como a violência irá se manifestar (MOREIRA, 2016), afetando, principalmente, mulheres negras, pobres e periféricas e a população trans (travestis, transexuais e transgêneros).

Apesar dos avanços conquistados nos últimos anos, em especial, no âmbito legislativo, com a elaboração de leis voltadas à proteção dos direitos humanos e a adesão do Brasil a tratados e convenções internacionais e interamericanos através dos quais o Estado assumiu obrigações importantes no enfrentamento à violência de gênero e à discriminação, ainda existe um grande descompasso entre e a realidade normativa e a realidade fática.

Tão importante quanto a existência de um aparato jurídico que condene a violência de gênero, também é a implementação de políticas públicas pensadas e estruturadas a partir dos múltiplos eixos envolvidos na violência de gênero (raça, etnia, classe social, religião, orientação sexual, entre outros). Por essa razão, a produção de dados oficiais que retratem o perfil da vítima, a forma e o local onde ocorre a violência, a frequência com que é praticada, quem são as pessoas que a praticam, entre outras características, é imprescindível para possibilitar a compreensão do fenômeno em toda a sua complexidade e a encontrar a melhor forma de enfrentá-lo.

Ao adotar o conceito violência de gênero, deve-se reconhecer a construção social e histórica do feminino e do masculino, bem como as relações sociais assimétricas e dominantes existentes nas sociedades. É fundamental que se reconheça que não há apenas uma realidade ou uma mulher universal (TRUTH, 2014) e que existe uma diversidade de experiências responsáveis por determinar em que medida o sexismo será uma força opressora na vida de cada indivíduo (HOOKS, 2019).

Assim, apenas a partir da retomada dos preceitos ligados à interseccionalidade e do reconhecimento da interação entre as diversas formas de opressão vigentes nas sociedades contemporâneas é que se torna possível abordar a violência de gênero e refletir sobre os meios eficazes para o seu enfrentamento, pois ao ignorar essa realidade, corre-se o risco de se fortalecer as desigualdades e, involuntariamente, contribuir para a invisibilização e o silenciamento das minorias que mais sofrem violência de gênero.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: a experiência vivida. Trad. Sérgio Millet. 4ª Ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2000.

CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum: Vol. 1989: Iss. 1, p. 139167, Article 8.

DIDEROT, Deniss. Sobre as mulheres. In: DIDEROT, Deniss. Obras I Filosofia e Política. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Trad. Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.

MATOS, Marlise; PARADIS, Clarisse Goulart. Desafios à despatriarcalização do Estado brasileiro. Cadernos Pagu, n. 43, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cpa/a/ZThn9C6WZM8tpMhN3BWM4Qp/? format=pdf&lang=pt. Acesso em: 05 jan. 2022.

MOREIRA, Adilson José. Direitos Fundamentais como Estratégias Antihegemônicas: Um Estudo sobre a Multidimensionalidade de Opressões. Revista Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 09, n. 03, p. 1559-1599, 2016.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

TRUTH, Sojouner. E eu não sou uma mulher? Convenção dos Direitos da Mulher, Ohio, 1851. Trad. Osmundo Pinho, Geledés, 8 jan. 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/. Acesso em: 04 jan. 2022.

163 Mestra em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), com bolsa da CAPES, tendo atuado como editora associada da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas durante todo o período do mestrado. É graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015). E-mail: [email protected]

LISTA DE AUTORAS

Essa obra foi escrita pelas mãos de 58 mulheres, sendo elas:

Amanda Eiras Testi: Professora e Pesquisadora. Doutoranda em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FDUSP.

Ana Carolina de Faria Silvestre: Doutoranda em Ciências Jurídicofilosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Mestre e pós-graduada em Ciências Jurídico-filosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora na Faculdade de Direito do Sul de Minas. Gestora do Núcleo de Extensão da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Gestora de Relações Interinstitucionais na Faculdade de Direito do Sul de Minas.

Ana Manoela Primo dos Santos Soares Karipuna: Doutoranda e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Licenciada em Ciências Sociais (UFPA). Pesquisadora na Liga Acadêmica Brasileira de Antropologia e Direito Indígena (LABADI). Integrante do Grupo de pesquisa Diversidade e Interculturalidade na Amazônia (DINA): Pesquisas colaborativas e pluridisciplinares - Museu Paraense Emílio Goeldi. Membro do grupo Ameríndia - Grupo de pesquisa em Etnologia Indígena e dos Povos e Comunidades Tradicionais (UFPA). Antropóloga, Socióloga e Professora. Email: [email protected].

Ana Paula Lasmar Corrêa: Mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Procuradora do município de Pouso Alegre – Minas Gerais.

Ana Paula Lemes de Souza: Doutoranda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), mestra em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) e pós-graduada em Filosofia do Direito e Direito Público. Escritora, poeta, ensaísta, pesquisadora, professora, advogada e colunista.

Bianca Tito: Doutoranda em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra em Direito, com ênfase em constitucionalismo e democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em Direito de Família e das Sucessões. Especialista em Direito Público. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Advogada (OAB/MG), pesquisadora e professora. E-mail: [email protected].

Bibiana Terra: Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, na Linha de Pesquisa Relações Sociais e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas - FDSM (2021). Especialista em Direito Internacional pela Escola Brasileira de Direito - EBRADI (2021). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade AnhangueraUniderp (2020). Pós-graduanda em Direito do Trabalho pela Faculdade Legale (2022). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas (2018). Autora do livro “A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes: o movimento feminista e a participação das mulheres no processo constituinte de 1987-1988”, fruto de sua dissertação de mestrado, que foi premiada com Menção Honrosa no I Prêmio ABraSD Cláudio Souto de Teses. Uma das organizadoras da obra “Diálogos de Gênero: Perspectivas contemporâneas” e da Coleção Pensamento Jurídico. Professora no curso de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Interseccionalidades na disciplina Gênero, Feminismo e Direitos

Humanos, na Escola Mineira de Direito - EMD. Integrante dos grupos de pesquisa do CNPq Direito Internacional Crítico; Razão Crítica e Justiça Penal; e Direito do Trabalho na Atualidade, todos três vinculados ao PPGD da FDSM. Jovem Pesquisadora da Cátedra Jean Monet - FECAP, no grupo de trabalho Mulheres e Meninas. Advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil da 25ª Subseção de Minas Gerais. Membro (associada) do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito - CONPEDI. Membro (associada) da Associação Brasileira de Filosofia e Sociologia do Direito - ABRAFI. Tem experiência na área de Direito, sendo que seus temas de interesse na pesquisa são: direitos das mulheres, direito e feminismo, interseccionalidades de gênero e raça, constitucionalismo feminista e teorias feministas. Para contato: [email protected].

Camila Galetti: Mestra e doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora do Projeto Mulheres Eleitas (LAPPCOM/UFRJ).

Carolina Costa Ferreira: Doutora e Mestra em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Graduada em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP Franca). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Professora da Graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (CEUB). Líder do Grupo de Pesquisa Observatório de Direitos Humanos (CNPq/IDP). Advogada criminalista.

Carolina Pavese: Professora de Relações Internacionais na ESPM. PhD em Relações Internacionais pela London School of Economics (2014). Mestre em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas, UNESPUNICAMP-PUC-SP (2007) e especialista em Estudos Europeus pelo Colégio Europeu de Parma-Itália (2007). Graduada em Relações Internacionais pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2001) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (2003). Possui experiência de

docência e pesquisa na PUC-Minas, London School of Economics e Universidade de Oxford. Atua na área de Relações Internacionais, com ênfase em cooperação internacional e organizações internacionais, principalmente nos seguintes temas: Relações Brasil-União Europeia, Integração Regional, Governança Global e Feminismo.

Cynthia Gruendling Juruena: Doutora em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Direito, Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano (NUPED/PUCPR). Diretora acadêmica do Instituto Política por.de.para mulheres e membro fundadora do Instituto Brasileiro de Direito Parlamentar (PARLA). Professora de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). E-mail: [email protected]

Débora Laís dos Santos Costa: Escritora, mestre em Constitucionalismo e Democracia na Faculdade de Direito do Sul de Minas, membro do Grupo de Pesquisa Razão Crítica e Justiça Penal e graduada em Direito na Faculdade de Direito do Sul de Minas e Graduada com menção honrosa em Letras português/inglês pelo Centro Universitário do Sul de Minas.

Dediane Souza: Travesti preta, graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo e Mestranda em Antropologia pelo Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia – UFC/UNILAB.

Domenique Goulart: Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS (2021), bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS (2019) e advogada. Atualmente é professora da cadeira de prática jurídica em violência doméstica na Universidade La Salle, trabalhadora da Política de Assistência Social no município de Porto Alegre, sócia da Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos e integrante do Conselho Científico da Editora Blimunda. Endereço eletrônico: [email protected].

Emmanuella Magro Denora: Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Bolsista CAPES. Mestra em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/2018). Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL/2008). Advogada e Professora Universitária em Londrina/PR e região. E-mail: [email protected].

Estela Cristina Vieira de Siqueira: Doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Varginha (2014) e mestrado em Direito, com concentração em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito de Sul de Minas (2017).

Fabiana Barcelos da Silva Cardoso: Possui graduação em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus Santiago (2007) e Especialização em Direito Civil e Processo Civil (2009). Foi contemplada com uma Bolsa de Pesquisa CAPES - PROSUP II no Mestrado em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (2013). Atualmente é professora titular, Coordenadora do Curso de Direito.

Fabiane Simioni: Doutora em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora de graduação (Relações Internacionais e Direito) e do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Colíder do grupo de pesquisa Interseccionalidades e Decolonialidade nas Relações Internacionais (INDERI/FURG/CNPq).

Fernanda Ribeiro Papandrea: Procuradora do Município de Pouso Alegre. Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM, com bolsa CAPES. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade

Damásio. Especialista em Direito Administrativo pela Faculdade UniBF. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Advogada e pesquisadora. E-mail: [email protected]

Francisca Moana Araújo de Oliveira: Mestranda em Políticas Públicas (UFPI); Especialista em Estratégias de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (ESP CE, 2020); Pós-graduada em Direito Público (Uniamérica, 2021); e Graduada em Direito (FLF, 2019).

Gabriela M. Kyrillos: Professora Adjunta do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Co-líder do Grupo de Pesquisa Interseccionalidades e Decolonialidade nas Relações Internacionais – INDERI/CNPq. E-mail: [email protected].

Gabriela Maria Barbosa Faria: Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Pós-graduanda em Direitos Humanos e Interseccionalidades pela Escola Mineira de Direito (EMD). E-mail: [email protected]

Gabriela Pires: Pós-graduanda em Direito Previdenciário pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva - CERS; Bacharel em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Membro do Conselho Municipal da Diversidade de Santa Cruz do Sul. Endereço eletrônico: [email protected]. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6301330965038441.

Grazielly Alessandra Baggenstoss: Professora do Curso de Graduação e dos Programas de Pós-graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil. Doutora e Mestra em Direito. Pesquisadora no campo de Direito e Feminismos, Teoria e Ética Política,

Psicologia Social com ênfase em estudos de gênero e feminismos.

Hemilly de Freitas Arruda: Acadêmica de Direito na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Vinculada ao grupo de pesquisa “O acesso à justiça e sua concretização por meio da mediação e da conciliação” (UEL). E-mail: [email protected].

Heroana Letícia Pereira: Doutoranda em Direito, com área de concentração em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Mestra em Direito, com área de concentração em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas e em Letras pela Universidade do Vale do Sapucaí. Professora de Língua Portuguesa na E. E. Dr. José Marques de Oliveira.

Isabella Fernandes Moreira Fontaniello: Graduada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), campus Poços de Caldas. Mestrado em andamento pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista INCT-INEU.

Isadora Prévide Bernardo: Bacharela em Letras Latim-Português (FFLCHUSP); Licenciada em Filosofia; Mestre e Doutora em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Professora convidada de cursos de Pós-Graduação lato sensu e stricto sensu. E-mail: [email protected].

Jaqueline Bianca Silva: Advogada e Mestra em Direito pela FDSM com área de concentração em Constitucionalismo e Democracia. Pós-graduada em Direito na área de Processo Penal pela Instituição de Ensino Damásio de

Jesus. Pós-graduada na disciplina “Olhares Plurais Sobre o Islam” da FFCLRP/USP. Membro do grupo de pesquisa Direito Internacional Crítico da FDSM.

Jéssica de Brito Carvalho: Mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu – Sistema Constitucional de Garantia de Direitos, mantido pela Instituição Toledo de Ensino (ITE). E-mail: [email protected].

Jéssica Melo Rivetti: Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora do GPSECC e bolsista CNPq. É mestra em Ciências Sociais pela Unifesp e atualmente coordena o Projeto Mulheres Eleitas da UFRRJ. Tem experiência com estudo de mulheres nas elites políticas, presidentas da América Latina, primeiras-damas e violência política de gênero. E-mail: [email protected].

Jéssica Pereira Arantes Konno Carrozza: Mestranda em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Bolsista CAPES com dedicação exclusiva. Editora Associada da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas - Qualis Capes B1 (Versão eletrônica ISSN: 2447-8709). Graduada em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM; graduada em administração pelo Centro de Ensino Superior em Gestão, Tecnologia e Educação – FAI. E-mail: [email protected].

Júlia da Silva Mendes: Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Graduada m Direito, pela Universidade José do Rosário Vellano – UNIFENAS. Advogada e pesquisadora.

Larissa Faria de Souza: Mestranda em Direito com ênfase e Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de

Minas. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. E-mail: [email protected].

Letícia Bartelega Domingueti: Mestra em Direito, com Ênfase em Constitucionalismo e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Especialista em direito civil e processual civil pela Instituição de Ensino LFG. Advogada e professora (Escola Mineira de Direito – EMD). E-mail: [email protected].

Letícia Maria de Maia Resende: Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, na Linha de Pesquisa Relações Sociais e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Pósgraduada em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MINAS).

Mahryan Sampaio: ativista pela igualdade de gênero, raça e mudanças climáticas. Formada em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (FEBASP), é Embaixadora da Juventude da ONU e Diretora-Executiva do Instituto Perifa Sustentável.

Maíra Calixto Policarpo Moreira: Advogada Especialista em Ciências Penais - PUC Minas.

Maíra de Deus Brito: Jornalista, mestra e doutoranda em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB). Autora do livro “Não. Ele não está”. Professora de Direitos Humanos e Gênero e Raça no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Integrante do Maré – Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro e do projeto Lélia Gonzalez Vive.

Marcela Andrade Duarte: Mestra em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), com bolsa da CAPES, tendo atuado como editora associada da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas durante todo o período do mestrado. É graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2015). E-mail: [email protected].

Marcela Modesto Fermino: Mestranda em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, na linha de pesquisa Relações Sociais e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Bolsista CAPES. Graduada em Direito pela FDSM. Integrante do grupo de pesquisa do CNPq Razão Crítica e Justiça Penal, vinculado ao PPGD da FDSM. Bolsista de Iniciação Científica pela FAPEMIG (2018-2019) e FDSM (20202021). Atualmente pesquisa questões relacionadas a Criminologia e Direito Penal. Contato: [email protected].

Maria Luiza Prestes Magatti: Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em Desigualdades de Gênero e Autonomia Feminina no Brasil (CHH-UEL) e ao Grupo de Pesquisa em Processos Estruturais (CESA-UEL). Endereço eletrônico: [email protected].

Mariana Pereira Rodrigues: Mestra em Direito, com ênfase em Constitucionalismo e Democracia, na Linha de Pesquisa Relações Sociais e Democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. E-mail: [email protected]

Mariete Lopes da Costa: Mestra em Direito, com ênfase em constitucionalismo e democracia, pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).

Marina Helena Vieira da Silva: Mestra em Direito, com área de concentração em Constitucionalismo e Democracia, na linha de pesquisa Relações Sociais e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM). Pós-graduada pela Escola Paulista de Direito (EPD) em Direito Civil e Processual Civil. Graduada pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).

Melina Girardi Fachin: Professora Adjunta dos Cursos de Graduação e Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Estágio de pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra no Instituto de direitos humanos e democracia (2019/2020). Doutora em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP.) Visiting researcher da Harvard Law School (2011). Mestre em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Autora de diversas obras e artigos na seara do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros/IAB, do Instituto dos Advogados do Paraná/IAP e da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Paraná - OAB/PR. Advogada sócia do bureau Fachin Advogados Associados.

Nariel Diotto: Doutoranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Mestra em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social (UNICRUZ). Especialista em Ensino da Filosofia (UFPel) e em Direito Constitucional (FCV). Graduanda em História (UFPel). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direito, Cidadania & Políticas Públicas (UNISC). Bolsista CAPES. Advogada. E-mail: [email protected].

Nathália Mariel Ferreira de Souza Pereira: Doutoranda em direitos humanos (PPGIDH/UFG). Mestra em direito (UcB/2018). Pós-graduanda em direito da anticorrupção (ENFAM). Pesquisadora nos grupos SCOTUS (IDP), Centro de estudos constitucionais comparado (UnB) e Núcleo de

direito internacional e política (NEPEDIPOL/UERJ). Membra da ABRADEP. Vice coordenadora do GT PGE de Combate à Violência Política de Gênero. Procuradora da República. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8571929541734986. E-mail: [email protected].

Nívea Andreza de Oliveira Costa: Doutorado em andamento em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino, ITE, Bauru/SP. Mestra em Direito em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas FDSM, Pouso Alegre/MG. Professora de Processo Civil no curso de Pós-graduação da Escola Mineira de Direito EMD em Varginha/MG. Professora no curso de graduação de Direito Constitucional, Teoria do Direito, Relações Internacionais e Direito Digital do Centro Universitário UNA, Grupo Ânima, nas unidades de Pouso Alegre/MG, Belo Horizonte/MG, Betim/MG, Contagem/MG e Itumbiara/GO. Professora de Psicologia Jurídica da Instituição Toledo de Ensino ITE, Bauru/SP, Advogada em Advocacia Luiz Tarcísio de Paiva Costa, Pouso Alegre/MG.

Paloma Silveira Pique Dourador: Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM), área de concentração Constitucionalismo e Democracia, Linha de Pesquisa Efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católicas de Minas Gerais. Advogada. E-mail: [email protected].

Raquel Fabiana Lopes Sparemberger: Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Direito pela UFPR. Possui Graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1995). Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Professora dos

cursos de graduação e do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP/RS. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, Direito Ambiental e Direitos Humanos, América Latina e questões decoloniais. Professora pesquisadora do CNPq e FAPERGS. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Tutelas à efetivação dos direitos indisponíveis, Linha Tutelas à efetivação de Direitos Públicos Incondicionados. Grupo de Pesquisa: Sociedade da informação e “Fake Democracy”: os riscos à liberdade de expressão e à democracia constitucional - FMP-RS. Responsável pelo Grupo de Estudos da FURG sobre Direito constitucional, violência e crise migratória. Advogada do escritório de Advocacia Luciane Dias Sociedade de Advogados - Pelotas/RS.

Raquel Santana: Mestra em “Direito, Estado e Constituição”, com ênfase em Direito do Trabalho (PPGD/FD-UnB). Pesquisadora do Grupo “Constituição, Trabalho e Cidadania” (CNPq/UnB). Assessora jurídica de Ministro do TST.

Renata Furtado de Barros: Doutora em Direito Público pela PUC Minas (2015). Mestra em Direito Público pela PUC Minas (2010). Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC (2005). Especialização em Direito Processual pelo IEC PUC Minas/IAMG (2007). Professora Adjunto I da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Tem experiência na área de Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional e Internacional, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, constitucionalização do direito, direito constitucional, guerra cibernética e Filosofia do Direito. Professora colaboradora do Programa da PósGraduação em Direito da PUC Minas, onde leciona a disciplina Tópicos Especiais em Direitos Humanos e Decolonialidade, Gênero, Raça e Sustentabilidade Ambiental.

Samia Moda Cirino: Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestra em Direito e Bacharela em Direito pela

Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professora no Programa de Mestrado Profissional em Direito e no Curso de Graduação em Direito das Faculdades Londrina (FL). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Suelen Karini Almeida de Matos: Doutoranda em Antropologia (PPGAUFPR). E-mail: [email protected].

Thamiris Cristina Rebelato: Mestranda em Direito na linha de pesquisa Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM. Especialista em direito material e processual do Trabalho e direito Tributário. Advogada.

Vitória de Oliveira Ribeiro: Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (PPGRI/UFU).

Zane do Nascimento: Mestra em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). Possui graduação em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia e Estudos Latino-Americanos (UnB). Entre 2017 e 2019 atuou como facilitadora de Oficinas Escrevivências, um projeto coletivo gestado no âmbito do Decanato de Assuntos Comunitários da UnB voltado para o protagonismo das/os estudantes da Assistência Estudantil. Atualmente, apresenta o programa de podcast Opará.