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Portuguese Pages [764] Year 2022
APRESENTAÇÃO
O crescimento
recente dos populismos no mundo tem uma dimensão fácil de perceber que exige um combate mais urgente: os ataques às instituições, em especial às Supremas Cortes; as campanhas contra a imprensa livre; a escolha de setores marginalizados — os imigrantes, os homossexuais, os professores de esquerda — como bodes expiatórios para problemas muito mais complexos. O Brasil de Bolsonaro é um dos países em que essa dimensão da crise da democracia é bastante evidente. Entretanto, a crise da democracia tem também outra dimensão, com raízes mais profundas na vida social: a desconfiança com relação às instituições e aos procedimentos que não se adequam à ideologia extremista. Os novos populistas minam a crença na ciência, na discussão pública baseada em fatos; minam a confiança em tudo que não reforce os preconceitos que eles já têm. Mais do que isso, os populistas contemporâneos pretendem substituir universidades, especialistas e imprensa livre pelos vários “escritórios do ódio” que organizam suas redes e bases sociais. Longe de representar uma bem-vinda disposição a discutir com os especialistas em termos racionais e razoáveis — afinal, as universidades e a imprensa também podem estar erradas —, os negacionismos modernos prometem aos militantes extremistas que seus preconceitos coincidem exatamente com o que eles achariam se tivessem submetido suas ideias à discussão pública e embasada em fatos. Assim, o negacionismo da ciência justifica decisões do líder populista que levam milhares à morte, como no caso da pandemia no Brasil; o negacionismo da história absolve os interesses mais escusos e rebaixa a reputação dos melhores ideais; o negacionismo
antimídia isola os militantes extremistas em uma bolha imune ao diálogo. Ao fazê-lo, enfraquecem a crença na discussão aberta e razoável que busca conhecer os fatos, que é a base de qualquer projeto democrático. Neste Dicionário dos negacionismos no Brasil, estão reunidos especialistas de todas as áreas em que tem atuado o negacionismo brasileiro — na ciência, na política, no direito, na história. Esses experts produziram um documento que atesta a teimosia da democracia, da busca pelos fatos e da paciência do diálogo. Os verbetes aqui elencados não são, de modo nenhum, a palavra final sobre os fatos; mas todos eles aceitam o teste dos dados, da lógica e da argumentação moral. Se o debate público brasileiro tivesse se pautado por estes princípios nos últimos anos, nossas instituições seriam mais sólidas, nossas vidas seriam melhores, e centenas de milhares de brasileiros que se foram durante a pandemia ainda estariam na conversa. Celso Rocha de Barros Doutor em Sociologia por Oxford Colunista da Folha de S.Paulo
INTRODUÇÃO
A ciência
brasileira alcançou, com a pandemia do covid-19, visibilidade e alcance inegáveis em nossa agenda pública. Virtualmente, cada cidadã e cada cidadão, de norte a sul do país, tem hoje uma opinião sobre nossas instituições e autoridades científicas e faz questão de expressá-la. Por um lado, alguns grupos atacam cientistas e universidades, falsificando evidências e argumentos, negando consensos científicos mundialmente aceitos. Outros grupos saem em sua defesa, invocando a lisura sempre imperfeita e inacabada da produção científica e suas aplicações tecnológicas, bem como os benefícios sociais, econômicos, sanitários e ambientais dela advindos. Como instrumento de reflexão, de produção e de valorização do conhecimento científico sistemático e institucionalizado, este Dicionário dos Negacionismos no Brasil se inscreve de forma categórica no campo antinegacionista. Os verbetes do Dicionário apresentam conteúdos e debates científicos de forma acessível ao público leitor e não especializado. Elaborados por experts das mais diversas áreas do conhecimento e vinculados a instituições nacionais e estrangeiras, os termos debatidos estão sempre ligados aos conflitos desenrolados ao redor da ciência e contra ela. A escolha dos temas dicionarizados obedece a três critérios. Existem verbetes relativos a momentos e contextos históricos que são atualmente objeto de disputa nos usos sociais e políticos das ciências, a exemplo da Revolta da Vacina (1904) e da Ditadura (1964-1985). Outro eixo de verbetes diz respeito às instituições e autoridades científicas que produzem ciência e estão igualmente empenhadas em sua defesa, nacional e internacionalmente. É esse o caso de verbetes sobre a Academia Brasileira de Ciências e a Fiocruz, bem como aqueles dedicados a
personalidades como Naomi Oreskes. O terceiro eixo é também aquele que conta com a maior quantidade de verbetes, sendo dedicado à variedade de negacionismos vigentes, às suas armas de ataque e a seus ideólogos. Porém, ao contrário do que se imagina, não existe uma definição unívoca do que é o negacionismo. Com o objetivo de apurar sua compreensão e combate, negacionismos podem ser entendidos como estratégias que, por meio da desqualificação deliberada da ciência, visam fins políticos, econômicos, morais ou outros. No entanto, os negacionismos são diversos e complementares. Quer dizer, ao mesmo tempo em que contam com seus agentes e interesses específicos, eles compartilham também lógicas de atuação. Exemplos desse compartilhamento aparecem, por exemplo, nos verbetes a respeito de negacionismo climático, negacionismo histórico e negacionismo científico. Em cada verbete são apresentados verbetes relacionados tematicamente no próprio dicionário. Também é feita uma indicação de leitura complementar que permita ao leitor aprofundar sobre o tema. Ressalte-se que as eventuais diferenças de análise entre autores dos verbetes deste dicionário não ultrapassam os pressupostos comuns de todos que aqui escrevem: o compromisso com a ciência, a recusa do negacionismo científico, a defesa de uma posição em que a ciência está comprometida com a produção de conhecimento que amplie possibilidades humanas, garanta direitos e afirme claramente uma postura de construção civilizatória. O fenômeno do negacionismo é profundamente paradoxal. De um lado, estão aqueles que, em defesa das pesquisas científicas, mobilizam o adjetivo negacionista para nomear e delimitar seus adversários. De outro lado, a despeito das fartas evidências e análises que mostram a existência de grupos organizados para atacar as ciências de forma planejada, poucos deles se reconhecem como negacionistas. Há mesmo quem diga que a palavra negacionismo sequer existe porque ela não consta nos dicionários
brasileiros. A esses últimos, endereçamos duas correções. Primeiramente, a Academia Brasileira de Letras reconheceu, em 2021, a palavra “negacionismo” e a incorporou ao Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Mais ainda: seguindo o ritmo da história e da política brasileiras, o nosso Dicionário dos negacionismos no Brasil dá nome aos negacionismos e negacionistas, engrossando o coro daqueles que defendem não só as instituições e autoridades científicas, como também as fontes de produção e validação do conhecimento que estão na base de qualquer democracia. A ampla variedade de negacionismos contemporâneos revela a combinação de distintos processos de transformação dos conflitos políticos, inúmeros padrões de diferenciação e de organização identitários, diferentes formas de articulação entre dinâmicas sociais locais e globais, complexas estratégias de grupos hegemônicos ressentidos com a perda relativa de status e a expansão de direitos de coletividades historicamente oprimidas, mobilização baseada em interesses materiais e simbólicos, intencionais ou tácitos, disputas por recursos e políticas públicas. Compreender os negacionismos no Brasil e suas consequências é tarefa urgente do campo científico. Nosso Dicionário, como dissemos, pretende ser um instrumento de reflexão e de valorização do conhecimento científico interdisciplinar e sistemático, produzido especialmente, mas não apenas, na universidade pública e nos institutos públicos de pesquisa em nosso país. Esperamos, humildemente, que ele possa ser uma contribuição para o alargamento do debate contemporâneo e para o esclarecimento de alguns dos aspectos mais sombrios da política e da sociedade brasileiras: os negacionismos e seus desdobramentos fascistas, regressivos, reacionários e conspiracionistas. Boa leitura. José Szwako e José Luiz Ratton
NOTA DO EDITOR As contribuições dos autores de cada verbete não pretendem representar a posição das instituições aos quais estão filiados. Trata-se apenas da posição de cada pesquisador e da sua expertise no tema tratado em cada verbete. Isso vale para todos os que contribuíram com este Dicionário, mas gostaríamos de enfatizar, de forma especial os seguintes pesquisadores: Adrian Gurza Lavalle (professor e pesquisador do Departamento de Ciência Política da USP, pesquisador do Cebrap), Janine Melo (pesquisadora do Ipea), Natália Massaco Koga (pesquisadora do Ipea) e Pedro Palotti (pesquisador do Ipea).
ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS (ABC) Dominichi Miranda de Sá *
C
riada em 1916, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) tem uma história inseparável da promoção do valor social da ciência no país. Sociedade científica honorífica, supra-institucional, não governamental e sem fins lucrativos, sua fundação é um dos marcos do processo de profissionalização da carreira científica no Brasil. A geração que a criou em 1916, como Sociedade Brasileira de Ciências, e a rebatizou em 1921 como Academia Brasileira de Ciências, esteve envolvida na implementação das universidades públicas brasileiras a partir da década de 1930. Mais ainda, essa mesma geração organizou múltiplas iniciativas de divulgação científica: revistas para públicos variados; exposições e cursos livres em escolas do país e no Museu Nacional do Rio de Janeiro; bem como filmes educativos. Os fundadores da ABC criaram, em 1923, uma estação de rádio que transmitia programas científicos e de cultura, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a primeira do Brasil. Os cientistas escreviam os roteiros e eram os próprios locutores das emissões radiofônicas. O primeiro presidente da ABC, Henrique Morize, e outros membros da primeira geração defendiam o fomento institucional a pesquisas e formação em ciência básica, além do compromisso dos cientistas com o seu país e a melhoria de vida da população brasileira. Instalada na Escola Politécnica, hoje o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no Largo do São Francisco, a ABC foi subdividida, inicialmente, em três seções: Ciências Matemáticas, Físico-Químicas e Biológicas. Sua sede atual, também no Rio, foi adquirida em 1959. Nas sessões e debates entre seus membros, nos primeiros anos de sua existência, eram priorizadas a
criação de novos campos do conhecimento, em contexto de baixa especialização disciplinar; a exortação à realização de pesquisas sobre temas nacionais; e a definição de novas áreas de atuação pública. A ABC foi fundamental no Brasil para a emergência de um tipo especializado de profissional que se autodenominava e era reconhecido socialmente como cientista. Foi igualmente importante para a discussão sobre o papel nacional a ser exercido pela ciência nas primeiras décadas do século 20. Tratava-se de ampliar o diálogo entre os cientistas e a sociedade, e fornecer estudos e evidências científicas para a formulação de políticas públicas. Seus membros lideraram a criação de muitas instituições brasileiras, com destaque para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em 1951. Com o apoio de recursos públicos, especialmente a partir das décadas de 1960 e 1970, por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a ABC tem realizado eventos científicos, nacionais e internacionais; editado periódicos de referência e boletim semanal de notícias de atividades abertas ao público; e, ainda, promovido vídeos e palestras de divulgação científica. Em sua história, atuou primordialmente na proposição de estudos e programas para políticas científicas, mas também em áreas como educação, saúde, política externa e meio ambiente. A conta com um quadro atual de mais de 900 membros entre os mais importantes cientistas brasileiros de todas as áreas do conhecimento. Desde o fim da ditadura civil-militar brasileira, a ABC tem tido atuação pública proeminente na promoção de políticas de Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I), em particular, na proposição de programas que ajudem a reverter o papel do Brasil como um dos vilões ambientais do planeta. Em 1986, a Comissão Internacional do The International Geosphere-Biosphere Program foi instalada na Academia como uma rede global para estudo da mudança climática. Durante a Conferência Eco-92, realizada no Rio de Janeiro, a ABC,
com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a UFRJ, organizou a RioCiência-92, uma série de debates sobre as articulações entre as diferentes disciplinas e a ecologia. Esses campos de atuação constituíram parte relevante do trabalho da ABC nas décadas seguintes, especialmente a partir de 2014, quando passaram a ocorrer cortes sistemáticos e crescentes no orçamento de CT&I no país. No ano de 2016 a situação se agravou ainda mais: foi feita a fusão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) com o Ministério das Comunicações (MCTIC). Neste mesmo ano, foi aprovada a Proposta de Emenda à Constituição 55/2016, mais conhecida como a PEC do Teto de Gastos, que limitou o aumento dos gastos públicos à variação da inflação pelos 20 anos seguintes. Para piorar toda a situação, emergiram, no Brasil e fora dele, atores e discursos anticiência e negacionistas. Nos discursos negacionistas, os cientistas são representados como “inúteis”, sem pesquisas de relevância no cotidiano da população, e “excessivamente politizados”, especialmente nas universidades públicas. Um dos fundamentos dessa onda negacionista é a defesa de que a ciência deve ser “neutra” e obrigatoriamente aplicada. Quer dizer, sustenta-se a defesa de uma ciência destituída de valores sociais e ética, dedicada exclusivamente ao desenvolvimento de aparatos tecnológicos de uso comercial ou industrial imediato. Esses negacionismos têm buscado justificar o baixo investimento público em ciência, bem como a ausência deliberada de políticas baseadas em evidências científicas. Ao lado de outras instituições, em reação ao difícil contexto econômico e político-institucional do país, a ABC multiplicou suas linhas de ação no enfrentamento aos negacionismos, que contam hoje com apoio em partes dos governos dos diferentes entes federativos brasileiros. A Academia tem buscado demonstrar a importância da ciência inclusive para o enfrentamento das emergências sanitárias. Nos anos de 2016 e 2017, durante a tríplice epidemia de dengue, zika e chikungunya, a
ABC advogava que “a ciência salva vidas”. Nos anos de 2020 e 2021, durante a pandemia de covid-19, a ABC alertou que “o negacionismo mata”. Nesse contexto, a ABC reavivou a sua missão histórica: a importância da ciência básica para uma sociedade do conhecimento e capacidade de inovação tecnológica. Em 2020 e 2021, no contexto da pandemia de covid-19, a ABC intensificou ainda mais a sua atuação contra o negacionismo científico e o diálogo com a sociedade civil. Atuou contra a desestruturação da ciência brasileira e, também, se opôs a discursos, inclusive oficiais, contrários a medidas de controle da pandemia utilizados no mundo inteiro, como o uso de máscaras, quarentenas e isolamento social. Posicionou-se contra o uso e a promoção, inclusive por associações de médicos, de tratamentos sem comprovação científica, assim como em oposição a iniciativas antivacina no país. Em conjunto com diversas instituições, como a Academia Nacional de Medicina (ANM) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), lançou lemas, iniciativas e campanhas de conscientização de cunho antinegacionista. Dentre outros esforços, nesse sentido, estão: o Fórum “Medidas para Contenção do Coronavírus”; o projeto “Conhecer para entender”; a nota “Ciência para a defesa da vida”, a “Marcha Virtual pela Ciência e pela Vida”; além de vários vídeos, a exemplo do “Vacina Salva”. Essa intensa agenda de comunicação pública e de divulgação científica para a população reimprime a missão da ABC e seu dever não só com a ciência, mas com uma ciência comprometida com a qualidade de vida da população e um projeto nacional soberano e de longo prazo. Como se vê, na falta de coordenação nacional no controle da pandemia, a ABC atuou em múltiplas frentes e com forte capacidade de articulação com outras instituições e associações científicas. Ao renovar a sua missão histórica, a ABC também se transformou. Em 2020, elegeu, por unanimidade, como um de seus membros, Davi Kopenawa Yanomami, liderança indígena internacionalmente reconhecida. Com essa eleição, não valoriza apenas a cultura
indígena e as sabedorias ancestrais, mas problematiza a visão eurocêntrica da ciência, e reconhece que os cientistas têm muito a aprender com os saberes indígenas, especialmente no que se refere à emergência climática e ao destino da Amazônia. Davi Kopenawa Yanomami integrará os debates e os grupos de trabalho sobre o futuro do planeta na associação. Na ABC, a centenária defesa da ciência caminha de par com a valorização da vida em todo o globo. É fundamental que as posições dos diferentes atores institucionais sejam devidamente documentadas pela História, para que a população, no futuro, conheça as responsabilidades pelas mortes de hoje e pelo lugar periférico que o Brasil ocupa em ciência, economia e desenvolvimento humano no mundo. Caberá reconhecer também quem enfrentou o negacionismo científico na pior crise sanitária do século. LEIA MAIS
The Brazilian academy of sciences and the paths of scientific research in Brazil: an intertwined history. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências, 2016. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. Projeto de ciência para o Brasil. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Ciências, 2018. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. Webnários da ABC (vídeos e podcasts 2020-2021). Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
FIOCRUZ POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS POLÍTICA DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
* Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
AGRONEGÓCIO E AGROTÓXICOS Juliana G. de Moraes *
A agricultura
surgiu no mundo por meio da domesticação de aproximadamente 1.400 espécies de animais e vegetais, resultando no que se conhece como agrobiodiversidade. Ao longo dessa trajetória, o modelo produtivo agrobiodiverso foi reduzido à ideia de uma natureza mais conservada, instalando-se, no seu lugar, um modelo de acumulação capitalista agroindustrial, cuja agricultura brasileira tornou-se referência mundial. Esse modelo de produção agrícola passa, então, a ser identificado pelo termo agronegócio, que consiste no guarda chuva conceitual da agroindústria ou complexo agroindustrial. Tem sua gênese na noção de agribusiness, que explica as cadeias de negócios que se desenvolvem por meio da junção da atividade agrícola com indústria e setor financeiro. O termo foi introduzido no Brasil para explicar os complexos agroindustriais para exportação de bens primários, as commodities agrícolas. Difundido como Agro, o termo acabou formando um mito que reflete uma vocação desse setor como locomotiva econômica da sociedade brasileira. O ponto de vista aqui defendido é que as narrativas desinformacionais em torno do agronegócio e dos agrotóxicos não se traduzem em abafamento de verdades, como no negacionismo climático, nem em uma condição de negação da realidade por uma crença orientada por pequenas bolhas (religiosas ou familiares), como no negacionismo científico. Pressupomos que o negacionismo no tema do agronegócio e dos agrotóxicos é um tipo de justificação historicamente bem articulada. As justificações negacionistas no Agro brasileiro se trazem em hiper crenças ancoradas pela comunidade científica, pelos governos (desde pelo menos 1950) e pela grande mídia. Sendo assim, trata-
se de informações de qualidade e autoridade que justificam a manutenção de um negócio “pop, tech, tudo”, ainda que socialmente excludente e ambientalmente destrutivo. Citaremos alguns elementos que consideramos norteadores dessa justificação negacionista. O primeiro é o fato de que o marketing à volta do Agro pode não explicar como ele funciona, quando se observa que a mídia foca nos resultados da produtividade, na publicidade dos seus produtos como base alimentar, nas figuras de autoridade a eles relacionadas (empresas e lideranças). Nesse contexto, o seu arranjo institucional fica em segundo plano. A justificação do Agro como da locomotiva da economia e autoridade alimentar nega que ele é, na sua essência, um sistema de governança. Liderado pela elite agrária, bancária e industrial, esse setor se mantém, em termos de ganho de produtividade, pelo esforço institucional das suas organizações para agregação na esfera pública brasileira dos interesses de cada segmento, disputando a demanda distributiva dos recursos públicos. Para que o Agro seja pop, uma rede de negociação política precisa funcionar. Nesse contexto, empresas (por exemplo a Cargill) precisam custear entidades, tais como Instituto Pensar Agropecuária (IPA), que também necessita prestar suporte técnico para Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que, por sua vez, reúne 257 deputados e senadores (48% do Senado e da Câmara) no Congresso brasileiro. Há, portanto, uma concertação política que leva esses grupos a se destacarem na economia por meio de dispositivos institucionais que tratam dos temas amplos de seu interesse. Nesse sentido, pode-se afirmar que o Agronegócio é locomotiva econômica porque é um pacto político nacional e não o contrário. Decidindo sobre a demanda distributiva que leva o setor produtivo a ser lucrativo ou não, essas entidades não atuam somente como porta-voz das negociações comerciais. Atuam também na elaboração da distribuição de recursos do Plano Safra da Agricultura
Familiar, induzindo o fortalecimento ou engessamento desse setor. O segundo elemento que consideramos norteador da justificação negacionista no Agro é a sua face moderna, ou tech. Proponente de uma ordem agroalimentar industrial, esse modelo não se considera coerente pelos atributos de sustentabilidade, mas pelo o quanto está intricado a ele a “ciência-técnica-informação”. A automatização digital do agronegócio, conhecido como Agro 4.0, conta com o uso de ferramentas que compilam processos físicos e digitais em rede que produzem de dados precisos, culminando em ganho de eficiência e produtividade. No entanto, através do seu potencial tech e corporativo, o Agro esconde sua face mais arcaica de dominação política do mundo agrário: coronelismo, mandonismo e escravismo. Sua capacidade para ser um modelo produtivo competitivo está relacionada à lógica exploradora das relações de trabalho no campo e da excessiva concentração da propriedade da terra. A justificação das mudanças tecnológicas leva a um tipo de negacionismo que se recusa a repensar as relações de trabalho e reformas que impediriam as práticas violentas e a criação de normas de controle dessas práticas. O terceiro elemento norteador da justificação negacionista no Agro é a sua afirmação midiática como autoridade agroalimentar. A lógica da produção alimentar não é a mesma lógica do Agronegócio. Esta se orienta pelo ganho em curto prazo e pela volatilidade de preços dos ativos agrícolas nas bolsas de valores. Em plena pandemia do covid-19, o ano de 2021 está marcado pelo incremento nos saldos comerciais no agronegócio, ao mesmo tempo em que o Brasil tende a voltar para o mapa da fome e a Organização das Nações Unidas chama atenção para os riscos de uma crise global de insegurança alimentar. O poder alimentar do Agro também passa pela regulação da propriedade genética das sementes e das cultivares de grande valor comercial. Essa medida não é importante para que o produto seja
bom para consumo, mas para que ele tenha alto rendimento. A lógica alimentar, por outro lado, se orienta pela criação de estoques, de mercados locais com oferta de produtos frescos e garantia de preços justos para o produtor e consumidor. Esses alimentos prometem dar conta dos problemas alimentares através da adição de vitaminas sintetizadas que resolvem o baixo valor nutricional dos alimentos ultraprocessados, conformando os “alimentos fortificados”, “nutracêuticos”, “funcionais” e “alimentos médicos”. Quem planta comida e leva para o prato dos brasileiros são os pequenos e médios produtores em unidades de produção familiares, dinamizando os mercados regionais e de proximidade. Assim, ao se afirmar a autoridade alimentar, o Agro nega que a agricultura familiar alimenta o país. Isso não quer dizer que o Agro não se coloque como norteador de políticas alimentares do país. O Agronegócio, efetivamente, regula a qualidade dos alimentos por meio de uma violência jurídica praticada para criação de patentes de organismos vivos (milhos que não germinam), retirada de informações sobre transgenia em rótulos e permissão da circulação de veneno pelo território brasileiro. Aqui chegamos ao quarto elemento constitutivo do negacionismo no Agro: intitular agrotóxicos de defensivos. Pesticidas, agroquímicos, defensivos fitossanitários agrícolas são noções relativas aos “agrotóxicos”. Esse termo foi cunhado pela lei 7.802/1989, que regula componentes químicos físicos ou biológicos destinados a produção, armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, por meio da alteração da “composição da flora e da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos". O seu uso também foi autorizado no tratamento de matérias orgânicas, controle de pragas urbanas e domésticas, até no tratamento de problemas de saúde pública. O Agro recusa o fato de que o Brasil é líder mundial de consumo de agrotóxicos e de que mais de 20% de todo veneno produzido no mundo vem parar no país. Uma das explicações para tanto é que o país tem uma das maiores áreas agrícolas do mundo. Entre 2007 e
2015, 84 mil pessoas sofreram intoxicação após exposição aos agrotóxicos no país. Em 2018, foram despejados 1,5 milhões de litros de agrotóxicos que vão parar no solo, na água e em diversos tipos de culturas consumidas in natura. O grupo mais afetado pela liberação do uso do agrotóxico são os trabalhadores rurais, população que fica invisibilizada diante da importância dos consumidores urbanos. A justificativa negacionista pertinente aos agrotóxicos está no seu uso descontrolado e abusivo. Esse posicionamento segue sustentado pelo reducionismo do erro técnico, como no caso da extinção das abelhas que pode ser evitada se o agrotóxico for aplicado corretamente. Nessa lógica, o problema não seria usar, mas não usar corretamente. A agricultura de precisão tem sido a aposta sustentável para essa solução. De outra forma, ela também pode ser considerada ideológica quando se observa que, mesmo quando o termo “agrotóxico” é regulamentado por lei, um continente de teses e dissertações utiliza no seu lugar o termo “defensivo agrícola”. Esse uso demonstra inconformidade aos aspectos legais e possível ligação com indústria de agrotóxicos. Assim, está posta a face negacionista dos agrotóxicos legitimada por uma confiança na capacidade defensiva do agrotóxico por parte de agrônomos que criam um dualismo das narrativas (veneno/agrotóxico). Ao mesmo tempo, há aversão ao termo por parte de setores da sociedade orientados pelas ciências sociais e pela agroecologia. Vale destacar que estas ciências não são inimigas do Agro, mas estão rompendo com a referência genérica da lógica de mercado, em favor do reconhecimento de uma pluralidade de lógicas mercantis atreladas à agrobiodiversidade. O quinto e último elemento da justificação negacionista no Agro aqui citado é o fato de que sua faceta sociopolítica, mais conservadora, é regional, de base, enquanto o lado oposto, a faceta socioambiental é, em grande parte, mais internacional. Diante disso, a confiança do povo brasileiro nos atributos morais das elites rurais
pode colocar os interesses de uma coletividade pequena (nacional) acima dos interesses da coletividade mais ampla (mundial). Consideramos que essa face sociopolítica regional conta com dois estereótipos, de atores estimados pelo imaginário brasileiro. O primeiro é a figura do fazendeiro, ou agroboy, que passa a impressão de que se enriquece neste setor com muito trabalho duro, dirigindo seu próprio monomotor etc. Assim, formam-se as categorias de vencedores e perdedores no campo brasileiro, influenciando na distribuição de custos e benefícios públicos e na segurança alimentar da população. Outro estereótipo, este de mais autoridade, é a figura do bom gestor. De face mais institucional, ele dispõe de uma habilidade e articulação para defender os interesses do setor. Bastante retratados na grande mídia, ambos conformam a representação social dos cases de sucesso no campo brasileiro. O lado socioambiental, por sua vez, está mais distante da população no geral, pois é formado pelos países consumidores e por uma parcela da sociedade civil que está engajada em mudanças na direção dos sistemas agroalimentares alternativos. Agronegócio e agrotóxicos são noções inter-relacionadas com as retóricas negacionistas estabelecidas nos campos político, midiático e científico. Orquestrado por instituições intersetoriais e governos engajados na sua construção, o negacionismo no Agro, diferentemente de outros temas, não depende de pequenos grupos de alcance, dado que se estabelece enquanto bloco de poder. Estrategicamente, esse bloco vem construindo uma gramática que justifica o desmantelo de um pacto social que seja plural. No âmbito das políticas ambientais, promove a desconsideração das diferentes dinâmicas e escalas que se expressam nas configurações regionais no âmbito da produção de alimentos saudáveis. Por fim, as justificações negacionistas mais conservadoras no Agro se amplificam no governo atual, sobretudo, a partir da proposição da extinção do Ministério do Meio Ambiente, do
esvaziamento progressivo de recursos, pastas e autarquias vinculadas à conservação do meio ambiente, da segurança alimentar e da agricultura familiar, acompanhadas da recente desconsideração do acordo de Paris. LEIA MAIS
NIEDERLE, P.A.; WESZ JR., W.J. As novas ordens alimentares. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2018. 432 p. POMPÉIA, C. “Concertação e poder: o agronegócio como fenômeno político no Brasil.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 35, n. 104, 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
AMAZÔNIA ANTROPOCENO PANDEMIA
* Pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
ÁGUA Eliana Mattos Lacerda *
É desnecessário
afirmar que água potável é fundamental para a vida humana e para a maioria da vida no planeta; no entanto, existe uma tendência a desconsiderarmos que esse recurso tão precioso vem sendo ameaçado progressivamente e de forma alarmante. Não é à toa que investimentos significantes têm sido utilizados para explorar fontes de água fora do planeta, e a confirmação da sua existência na Lua e em Marte pela Nasa tem causado euforia internacional. Autoridades mundiais estimam que embora 71% da superfície da terra seja coberta por água, 97% dessa água encontra-se nos oceanos, sendo inadequada para consumo ou uso industrial (salvo raras exceções). Os 3% restantes representam a proporção de água doce existente no nosso planeta — dos quais aproximadamente 2,5% estão retidos nas geleiras, círculos polares, atmosfera, solo, e aquíferos. Isso significa que apenas 0,5% da água doce está atualmente disponível para consumo, sendo encontrado nos rios, lagos, e reservatórios. Em 1997, a Organização Mundial da Saúde (OMS) avaliou que mais de um bilhão de pessoas não tinham acesso a abastecimento de água adequado, acessível e seguro. Naquela mesma década, a Organização das Nações Unidas (ONU) estimou que 1,8 bilhão de pessoas em 2025 estariam vivendo sob “escassez absoluta” de água (caracterizada como a disponibilidade de menos de 500 m3 de água por pessoa por ano, e que 2/3 da população mundial poderiam estar em situação de “estresse hídrico” (30%), a região perderia as condições climáticas para sustentar uma floresta úmida como a Amazônia, dando lugar a uma vegetação mais esparsa, de menor estatura, com menos biomassa, e mais adaptada a secas. Essa é a hipótese de savanização da Amazônia, também conhecida no inglês como Amazon forest dieback ou Amazon tipping point. Embora seja ainda uma hipótese em franca investigação, a concretização desse cenário teria consequências sociais, econômicas e ambientais catastróficas para a região e suas populações. Tanto o desmatamento como a degradação florestal, o garimpo ilegal e os impactos das mudanças do clima sobre a floresta e seus povos são deletérios para o desenvolvimento da região, pois prejudicam as cadeias produtivas (o mercado consumidor europeu tem baixa aceitação a produtos ligados ao desmatamento), comprometem o ainda pouco conhecido maior tesouro biológico do planeta e colocam em risco modos de vida tradicionais da região. Na verdade, essa usurpação ambiental das terras públicas na Amazônia através do desmatamento, degradação e garimpo beneficia financeiramente uma rede muito restrita de empresários atuantes, geralmente de maneira simultânea, nos ramos madeireiro, agropecuário, de mineração, indústria siderúrgica, empreiteiras e bancos que os financiam. Desse modo, há tempos aventa-se a alternativa de uma economia para a região baseada na exploração sustentável da hiperdiversidade biológica e dos recursos genéticos da região para uma indústria de biotecnologia de alto valor agregado, que gere riqueza de maneira mais transversal para a sociedade, mantendo a floresta em pé, muito embora tentativas passadas, como o Centro de Biotecnologia da Amazônia, em Manaus, não resultaram ainda em grandes avanços nesse sentido. Mais recentemente tem se debatido também o papel da cultura, em seu sentido mais amplo, como um motor de mudanças na relação e proximidade das pessoas, em sua maioria populações urbanas, com a floresta Amazônica, de modo a garantir sua existência às futuras gerações.
LEIA MAIS
HEMMING, J. Tree of rivers: the story of the Amazon. London. Thames & Hudson, 2009. 368 p. LAPOLA, D. M. “Por uma cultura da floresta: entrelaçar ciência e arte é chave para o futuro da Amazônia.” Revista ClimaCom, ano 7, n. 17, jun. 2020. Disponível em: . Acesso em: 27. set. 2021. MEIRELLES FILHO, J. A. O livro de ouro da Amazônia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2009. 400 p. CONFIRA
ANTROPOCENO ATIVISMOS (ATAQUES AOS) NEGACIONISMO CLIMÁTICO
* Professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
AMÉRICA LATINA Michelle Fernandez *
O negacionismo
não é um fenômeno recente, nem se limita à América Latina. Na história da humanidade, e no contexto latinoamericano, negar graves violações de direitos humanos ou crimes contra a humanidade como fatos históricos e buscar seu apagamento, distorção ou esquecimento tem sido uma prática sistemática. Isso aconteceu, por exemplo, com a negação do genocídio dos povos indígenas, com a história da escravidão dos povos africanos que chegaram ao nosso continente, ou com milhares de mortos políticos durante regimes autoritários. Nesse sentido, os discursos negacionistas e relativistas são inerentes aos processos de mortandade e funcionam em prol da impunidade dos responsáveis. No âmbito das ditaduras e dos processos de conflitos armados inerente à América Latina se recorreu à prática do negacionismo. Nas primeiras décadas do século 21, houve um ciclo de crescimento do movimento negacionista nos países da região impulsionado pelo ressurgimento e fortalecimento de governos e grupos de extrema direita. Cultivando o negacionismo ao longo das últimas décadas, esses grupos negam crimes históricos e defendem uma narrativa antidireitos que criminaliza numerosos atores sociais no presente, inclusive aqueles que trabalham para a manutenção da memória histórica. Assim, para entender melhor o negacionismo na América Latina, é necessário observar as estratégias políticas da direita, que atua para legitimar sua ação no presente a partir da negação de fatos do passado. O negacionismo é uma distorção ilegítima do registro histórico de tal forma que certos eventos aparecem de forma mais favorável ou mesmo desfavorável. Para ilustrar o negacionismo na América Latina apresentarei brevemente a seguir uma aproximação de três países da região: Argentina, Colômbia e Chile.
A Argentina depara-se com o negacionismo quando o centro da discussão são as vítimas do regime militar das últimas décadas do século 20. No inicio do seu mandato, o presidente Alberto Fernández propôs a criação de uma lei que cria sanções contra o negacionismo, em resposta a declarações de diferentes personalidades políticas, entre elas o ex-presidente Mauricio Macri e o ex-candidato presidencial Juan José Gómez Centurión, que colocaram em dúvida a cifra de 30 mil pessoas desaparecidas entre 1976 e 1983 durante a ditadura militar. Um outro momento que suscitou um forte movimento negacionista na Argentina foi a partir dos julgamentos de crimes contra a humanidade que ocorreram durante a ditadura. A direita atuou fortemente em um movimento negacionista quando esses julgamentos começaram a avançar como crimes econômicos. Em última instância, o que se defendia era rever os crimes que envolviam o empresariado na trama de violência instaurada pelo Estado durante a década de 1970. Esse fato foi uma tentativa de obstruir desesperadamente o trabalho de julgamento e punição dos perpetradores das violações de direitos humanos chanceladas pelo Estado. Em grande medida, o intuito dos negacionistas argentinos é reverter a situação judicial em que se encontram muitos militares e forças de segurança devido ao seu envolvimento em crimes contra a humanidade durante o regime ditatorial. Portanto, o que se observa na Argentina é a construção de um movimento negacionista, apoiado pela direita e extrema direita, em prol da defesa de grupos políticos e sociais que cometeram crimes durante o período de exceção. Na Colômbia, o debate sobre o negacionismo está vinculado ao tema do conflito armado. Ao longo da história recente, esse conflito tem sido uma das preocupações recorrentes não só da sociedade colombiana, mas também de organizações internacionais e da própria comunidade internacional. Sobre sua existência e desenvolvimento foram elaboradas inúmeras hipóteses, teorias e investigações tratando das variáveis, causas, dinâmicas, efeitos e possíveis formas de solução. No entanto, o governo colombiano,
durante a presidência de Álvaro Uribe, no período entre 2002 e 2010, negou repetidas vezes a existência do conflito e referiu-se a ele como resultado de uma simples ação terrorista contra o sistema democrático. Com relação à negação do conflito armado, o país enfrenta uma estratégia política de longo prazo. A tese negacionista que Uribe impôs por meio de sua política de segurança democrática hoje serve de pivô para os setores que ocupam o poder insistam em manter e estender as circunstâncias e condições contextuais que tornaram o conflito armado ética e politicamente viáveis. Se a tese negacionista da origem, natureza e evolução do conflito armado se consolidasse como um projeto político em que convergiram setores de direita e extrema direita, o país ficaria dividido e polarizado. Por um lado estariam aqueles interessados em exigir que o Estado promovesse as transformações que a consolidação de uma paz estável e duradoura exige; e, por outro, aqueles que insistiriam na manutenção da democracia baseada na doutrina da segurança nacional e de um Estado fortemente repressivo diante das demandas dos diferentes atores sociais. Assim, ao negar o conflito armado, o governo de Álvaro Uribe buscava tirar todo o reconhecimento político da guerrilha. Dessa forma, tentava-se limitar a aplicação de medidas humanitárias internacionais nesse conflito, caracterizado pelo acúmulo de crimes perpetrados e pela ocorrência permanente de crises humanitárias. Nesse sentido, é preciso apontar a complexidade do conflito armado colombiano devido a uma série de fatores que o cercam e que constituem uma grande dificuldade em defini-lo. Mas, acima de tudo, é preciso reconhecer a existência do conflito como tal. No Chile, o cenário negacionista assemelha-se bastante ao caso argentino. As violações de direitos humanos cometidas pela ditadura chilena entre 1973 e 1990 foram oficialmente registradas pelas Comissões da Verdade do Estado, mas ainda hoje são discutidas por uma parte da sociedade desse país. Grupos políticos de direita e extrema direita negam atrocidades do período ditatorial. No
mesmo sentido, cidadãos afirmam que têm o direito de expressar sua opinião sobre o que aconteceu durante a ditadura militar chilena, ainda que essa opinião apague a memória de vítimas do regime autoritário. Um dos casos mais notórios foi o de um ministro da Cultura, que depreciou o Museu da Memória e teve de renunciar apenas três dias após a posse. São registrados também de forma recorrente ataques verbais às redes sociais que tratam da memória histórica chilena e, mais diretamente, a destruição e degradação de locais destinados à conservação dessa memória. Com o avanço do movimento negacionista na América Latina, no Chile e em vários países da região — como na Argentina, na Colômbia e no Peru —, leis para combater o negacionismo e proteger a memória histórica foram promulgadas ou estão em discussão. A demanda por uma lei surge a partir da ideia de que o reconhecimento das violações dos direitos humanos deve se transformar em um consenso básico da democracia para que nunca mais volte a acontecer. A manipulação do passado para fins políticos tem uma longa tradição na América Latina. As disputas sustentadas pelos negacionistas estão fundadas na necessidade de esconder fatos históricos em prol do favorecimento de grupos políticos e sociais. Nesse sentido, a construção de uma nova “verdade histórica” ascende junto com movimentos de extrema direita. As motivações dos negacionistas para recriar a história podem ser diversas. Por uma perspectiva político-social, negacionistas têm usado esse dispositivo para manter uma audiência em tempos de crise política, principalmente diante dos desafios enfrentados pelos regimes democráticos entre o final do século 20 e início do século 21. Diante disso, o desafio que se apresenta ao continente latino-americano está centrado no fortalecimento da democracia e na contenção da extrema direita. Disso dependerá a preservação da nossa memória histórica e o controle do negacionismo. LEIA MAIS
ALCALÁ, H. N. “Informe sobre proyecto de ley que sanciona con cárcel a quienes nieguen, justifiquen o minimicen los delitos de lesa humanidad cometidos em Chile. Boletín N° 8049-17.” Estudios Constitucionales, Santiago, v. 10, n. 1, p. 405-426, 2012. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. GIORDANO, V.; RODRÍGUEZ, G. “Luchas memoriales y estrategias de poder de las derechas en América Latina hoy.” Universitas, Cuenca, n. 31, p. 19-36, set./fev. 2019. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. BAUTISTA, F. J.; JOVEL, A. G. “La negación del conflicto colombiano: un obstáculo para la paz.” Espacios Públicos, Toluca, v. 15, n. 33, p. 9-34, jan./abr. 2012. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. RANALLETTI, M. “Apuntes sobre el negacionismo em Argentina. Uso político del pasado y reivindicación del terrorismo de Estado en la etapa post-1983.” In: XII Jornadas Interescuelas/Departamentos de Historia, 12., 2009, San Carlos de Bariloche. Mesa 9.15. Los usos del pasado en la Argentina: producción historiográfica y debates colectivos acerca de la historia nacional (siglos XIX y XX). San Carlos de Bariloche: Acta Académica, 2009. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021.
CONFIRA
NEGACIONISMO DEPENDENTE PANDEMIA POPULISMO SANITÁRIO
*Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB)
ANISTIA Cristina Buarque de Hollanda * Matheus Vitorino Machado **
A partir
de 1975, a cena heterogênea dos opositores da ditadura militar no Brasil (1964-1985) pouco a pouco convergiu em torno de uma única palavra de ordem, anistia, que depois ganhou os seguintes adjetivos: ampla, geral e irrestrita. As diferenças de perspectiva entre os vários grupos de oposição não se apagaram, mas foram temporariamente suspensas diante do inimigo comum. O vocabulário da resistência pouco a pouco perdeu as tintas radicais da primeira década de ditadura. No lugar de ideais revolucionários, os vários segmentos de oposição se encontraram na defesa do mínimo: os direitos humanos mais básicos. Num contexto de medo e incerteza sobre o futuro, a anistia foi abraçada como atalho para a democracia. Primeiro foram algumas poucas mulheres engajadas no Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) liderado por Therezinha Zerbini. Depois, o que poderia parecer um delírio voluntarista ganhou corpo e vigor. No rastro do MFPA, surgiram os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA ), a princípio nas grandes capitais e depois em todo país. Eles estiveram no epicentro do único movimento de massas que a ditadura conheceu. Foi, portanto, pelas mãos das oposições nas ruas, nos presídios e também no exílio que a anistia chegou na pauta pública, com formulação ampla e ousada. Mas foi pelas mãos do último ditador, o General João Figueiredo (1979-1985), que ela avançou nas vias institucionais, com formato restritivo que excluía os chamados “terroristas”. Afinada com a retórica da “reconciliação nacional” que marcou a transição, a lei de anistia (lei 6.683 de 1979) apontava dois eixos de reparação de pessoas afetadas pela ditadura: um de familiares de pessoas mortas e desaparecidas pelo regime e outro eixo de
pessoas cujo exercício profissional foi drasticamente afetado pela perseguição política. Nos dois casos, o texto da lei foi tomado pelas partes afetadas como insuficiente e, ao longo dos anos 1990 e 2000, se tornou brecha legal para novos arranjos institucionais. No caso de familiares, a previsão legal de “declaração de ausência de pessoa” não satisfazia a demanda por atestados de óbito com causa mortis. Mais de 15 anos depois, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (CEMDP), veio expandir — embora ainda não a contento — o tratamento do Estado à questão. No caso de trabalhadores que perderam seus empregos por perseguição política ou por retaliação ao envolvimento com protestos por melhores condições de trabalho e salário, a lei condicionava sua “reversão ao serviço ativo” à “existência de vaga e ao interesse da Administração”. Na prática, portanto, os pleiteantes ao retorno eram reféns das próprias instituições demissoras. Para avaliar a enxurrada de pedidos de reingresso que se seguiram à promulgação da lei, os diferentes órgãos públicos criaram comissões específicas para lidar com o assunto. O cenário pulverizado e precário das várias comissões de anistia, sem protocolos partilhados, ensejou ondas de judicialização dos requerimentos. Foi apenas em 2002 que a Comissão de Anistia (CA) centralizou o tratamento da questão e deu orientação precisa a elementos vagos da lei de 1979. Ela nasceu como uma comissão de vocação estritamente administrativa, encarregada de avaliar a procedência ou não de milhares de pedidos de reparação laboral que retroagiam aos anos da ditadura. Seus técnicos calculavam as perdas materiais precipitadas pela ação autoritária. Quer dizer, propunham-se ao exercício contrafactual de imaginar como teria sido a vida material dos trabalhadores na hipótese de não ter sido perturbada pela ditadura. Entre os pleiteantes, a linguagem corrente era a do direito do trabalho. Falava-se em índices de reposição inflacionária e na incorporação de progressões presumidas. Cinco anos depois de sua criação por lei (nº 10.559, de 2002), a CA acumulava problemas graves: as diferentes metodologias de análise, os tempos incertos e
desiguais de tramitação de processos e, sobretudo, a desconfiança com os altos valores de indenizações, instigada pela grande imprensa. A CA havia se tornado um problema político para o governo Lula (2003-2011). Foi então, em 2007, que seu ministro da Justiça, Tarso Genro, nomeou um novo presidente para a CA, Paulo Abrão, e promoveu uma inflexão sensível em seu funcionamento. Abrão acomodou mudanças substantivas dentro da moldura institucional existente. Ele promoveu com êxito uma mudança de perspectiva na maneira de conceber a anistia. Sem prejuízo de sua feição pecuniária, calcada nas reparações individuais na forma de indenizações, Abrão converteu as rotinas de decisão burocrática sobre os processos de anistia em rituais públicos de testemunho, numa espécie de comissão da verdade avant la lettre no país. Não se tratava mais, como na lei de 1979, de um perdão magnânimo concedido pelo Estado a “subversivos” ou “terroristas”, mas, ao contrário, de um perdão “pedido pelo Estado” a legítimos opositores de sua circunstância autoritária. A virada promovida por Abrão marcou a culminância do ciclo de institucionalização das políticas de anistia. A partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff (2011-2016), esse cenário passa por um notório processo de desestruturação: busca-se virar pelo avesso o sentido político da institucionalidade acumulada nos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016). No lugar da crítica, o desenho institucional da reparação é inflexionado e usado para produzir o elogio da ditadura. Quer dizer, os espaços institucionais já existentes são ocupados com a estratégia de refutar seus princípios de fundação e, no seu lugar, ocasionalmente afirmar a narrativa militar para os anos de autoritarismo. Antes travada na imprensa, nos livros e nos currículos, a longa batalha da memória sobre a ditadura passou, com Temer, a ganhar uma versão pró-ditadura com locus institucional. O futuro dirá se o processo em curso de reenquadramento institucional das comissões constitui um fim em si mesmo ou, ao invés disso, parte de outro processo, de
desinstitucionalização. Seja como for, esse movimento de lógica negacionista incide sobre a maneira de ler a ditadura e também os instrumentos da democracia para lidar com seu legado, como é o caso da anistia — que no Brasil se tornou uma espécie de selo identitário reivindicado por movimentos sociais e conferido (ou não) pelo Estado como reconhecimento de seus perseguidos políticos passados, os “anistiados”. Embora remonte aos anos incertos da redemocratização, o negacionismo começou a infiltrar o Estado de maneira consistente apenas no governo de Michel Temer (20162019), quando a Comissão da Anistia foi drasticamente atingida nas suas composições física — com sete conselheiros exonerados — e simbólica — com a extinção dos pedidos de desculpas às vítimas, ritual caro à gestão de Abrão. Hoje, no governo Jair Bolsonaro, o negacionismo atinge seu ápice no Estado. Na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, dissolveu-se a “Equipe de Identificação” e extinguiu-se a possibilidade de retificação de atestados de óbito. No lugar da equipe historicamente comprometida com a pauta, foram nomeadas figuras alinhadas com a exaltação à ditadura. Na CA, a subversão também foi marcante. Ainda em 2019, enquanto parlamentares do PSL pressionam por uma CPI das indenizações para atingir a CA, o governo desloca a comissão para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, pasta sob o comando da pastora e advogada Damares Alves. Em seguida à transferência, foram providenciadas exonerações em série e nomeação de sete militares para o corpo de conselheiros, além de um advogado engajado na contestação à ação de familiares para a presidência. A CA hoje não opera políticas de reparação simbólica, indefere cerca de 90% dos requerimentos que recebe e se dedica a anular e revisar centenas de indenizações concedidas em governos anteriores. Político notório por seus ataques virulentos às vítimas da ditadura e pela celebração ao regime autoritário, Bolsonaro cultiva uma posição ambígua nas suas formas de descrever o passado. Nisso
alinha-se à retórica de militares e simpatizantes, que colhem hoje os frutos de sua resiliência nas últimas décadas. Antes e agora, o negacionismo assume formas direta e explícita ou indireta e subreptícia. Grosso modo, elas são articuladas a partir de premissas falsas que, mesmo rejeitadas, dão lugar a outras. Assim, no negacionismo tout court, a violência do período é tributada estritamente aos “comunistas”. Nessa versão que nega o passado, os agentes de Estado são eximidos de responsabilidade pela repressão, e as sequelas deixadas pelo regime são negligenciadas. No lugar de governos violentos fala-se em governos “rígidos” e intolerantes com uma suposta “desordem”. Quando, numa versão modulada do negacionismo, se reconhece o engajamento de operadores do Estado em práticas de repressão, perseguição e tortura, nega-se seu caráter sistemático, acusando suas vítimas de “crimes comuns” como roubo, sequestro e assassinato. Num próximo degrau negacionista, quando se reconhece o caráter político que orientava as práticas de repressão, nega-se o direito à defesa e à anistia das vítimas, argumentando que seus supostos planos de insurreição comunista eram suficientemente nefastos para justificar os crimes cometidos contra elas. Em geral, para os grupos e discursos negacionistas, os movimentos pela ampliação e regulamentação da anistia de 1979 são movidos por ressentimento e pela disposição revanchista. Operados por civis alegadamente interessados em ostracizar as Forças Armadas e obter ganhos financeiros ilegítimos, tais movimentos teriam agido estritamente em benefício de “organizações de esquerda” que receberam do Estado indenizações indevidas, apelidadas como “Bolsa-Ditadura”. Não raro enquadrada no selo da corrupção, a CA seria uma “caixa-preta” responsável por uma “farra de indenizações”, como definiu reportagem da revista IstoÉ. Enquanto isso, militares e demais atingidos pela ação de “terroristas de esquerda” durante a ditadura militar estariam ao relento, reféns dos arbítrios de governos revanchistas.
Nas suas várias camadas, o negacionismo ancorado em quadros militares foi e é compartilhado com setores amplos da sociedade. Se tais setores ganharam tração política recente com o crescimento de Bolsonaro, eles estavam, desde a redemocratização, continuamente presentes nos debates travados acerca da anistia. Embora os negacionistas tenham expandido sua presença no Estado e operado uma inflexão radical na institucionalidade estabelecida, a batalha de memórias não está vencida. Ela segue aberta, com forças antinegacionistas atuando a partir de fora e das bordas do Estado ou hibernando silenciosamente — à espera de tempos melhores — no seio dele, em postos da administração pública. LEIA MAIS
BENETTI, P.; CATEB, C.; FRANCO, P.; OSMO, C. “As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte.” Mural Internacional, Rio de Janeiro, v. 11, e48060, p. 2-20, nov. 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. ABRÃO, P.; TORELLY, M. “Mutações do conceito de anistia na justiça de transição brasileira — A terceira fase da luta pela anistia.” Revista de Direito Brasileira, v. 3, n. 2, ago. 2012. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021.
CONFIRA
DITADURA NEGACIONISMO HISTÓRICO TORTURA
* Professora e pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais de Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) ** Pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
ANTIGÊNERO Lucas Bulgarelli * Heloisa Buarque de Almeida **
O movimento
político antigênero é aquele que acusa a teoria de gênero e os ativismos ligados a essa temática — como os feminismos e movimentos LGBTQI+ — de constituírem uma “ideologia de gênero”. Para compreender esse termo, retoma-se aqui resumidamente o conceito de gênero e como ele afetou as concepções acerca da natureza da diferença sexual. A partir dessa ideia, é possível compreender melhor o que é questionado pelos movimentos e ativismos conservadores que se definem contra uma suposta “ideologia de gênero”. Gênero é um termo conceitual muito usado nas ciências humanas, marcadamente desde a última década do século 20. Esse conceito derivou do esforço de desnaturalizar as relações sociais e as desigualdades, ideia cara às ciências humanas, particularmente à Antropologia e à História, em diálogo com as teorias feministas que discutiam o processo de “se tornar” uma mulher, como no trabalho pioneiro de Simone de Beauvoir. A noção de gênero teria surgido inicialmente em meados do século 20 no campo da Medicina e da Psiquiatria, associada ao modo de intervir nos corpos de crianças intersexuais e no tratamento hormonal e cirúrgico de pessoas que não se adequavam ao sexo registrado em seu nascimento. Grosso modo, gênero se referia ao processo de aprendizado cultural de se constituir como homem ou mulher na vida social, o que se dava a partir dos corpos e era determinante para construção das identidades. Num primeiro momento, tanto no campo da biomedicina, como no das ciências humanas, o termo gênero surge a partir da distinção entre natureza e cultura. Nessa abordagem, o sexo seria uma base biológica a partir da qual as diferentes culturas elaborariam o que seria
considerado feminino ou masculino e, por extensão, as categorias de mulher e de homem. De início, o termo considera que há uma base no dimorfismo sexual dos corpos, que se transformaria em categorias de classificação e de possibilidades sociais para homens e mulheres em cada contexto social. Tal sugestão é marcante na bibliografia dos anos 1970-80. Em outro momento teórico, nos anos 1990, junto dos questionamentos do que seria “natural” e os limites distintivos entre a natureza e a cultura, a teoria de gênero questiona a base biológica dos corpos e sua aparente substancialidade. O dimorfismo sexual passa a ser colocado em xeque por vários saberes — inclusive no campo da biologia, a partir do reconhecimento de um espectro de intersexualidade. Nessa perspectiva, o sexo não é algo natural ou vindo da natureza. Antes, o sexo é considerado como uma categoria repleta de sentidos simbólicos, associações, saberes, construções culturais e políticas. Ou seja, mesmo o sexo passa a ser considerado como gênero, pois a ideia de uma base natural evidentemente binária é considerada como um construto do próprio saber ocidental. Em certa medida, a noção de natureza herdada do Iluminismo supôs que o corpo marcado pela genitália seria um substrato do gênero, mas esse substrato e seu binarismo foram questionados nos anos 1990. Ao evidenciar, por meio da noção de gênero, a precariedade das distinções entre sexo e gênero, feministas e estudiosas de gênero passam, já na década de 1990, a ser alvo de questionamentos e ataques. Publicado em 1997, o livro The Gender Agenda, escrito pela ativista católica e jornalista norte-americana Dale O’Leary, é um dos primeiros escritos que manifestam repúdio ao gênero. Tendo o feminismo e as feministas como alvo, o texto identifica o surgimento de uma “ideologia feminista radical” que teria começado a se manifestar em fóruns internacionais. Exemplos de tais fóruns são as Conferências do Cairo (1994) e de Pequim (1995), eventos que colaboraram para o desenvolvimento de discussões sobre gênero, sexualidade e direitos sexuais e reprodutivos no âmbito da efetivação dos direitos humanos. Para O’Leary, o crescimento de
uma “ideologia feminista radical” nestes espaços visaria a implementação de uma “ideologia comunista” e “sexualmente libertária” por meio da afirmação da existência de diferentes gêneros e sexualidades. A denúncia de que os feminismos buscavam promover uma “guerra dos gêneros” que visava “abolir a natureza humana” foi aos poucos se tornando o fundamento da construção de uma interpretação negacionista sobre o gênero, sintetizada no neologismo “ideologia de gênero”. Dentre os episódios que foram especialmente marcantes para a difusão da “ideologia de gênero” no Brasil e na América Latina, é possível destacar ao menos dois. O primeiro deles ocorreu em 1998, quando uma nota foi apresentada na Conferência Episcopal do Peru intitulada Ideología de Género: sus peligros y alcances. O documento destacava a necessidade de combater forças destinadas a “desconstruir a sociedade”, tendo como “primeiro alvo a família”. O segundo episódio ocorreu dois anos mais tarde, quando foi publicado o livro La ideología de género: el género como herramienta de poder. Escrito pelo advogado argentino Jorge Scala em 2010, o texto apresentou uma resposta radical contra os avanços ocorridos nas legislações de países como a Argentina, que havia regulamentado o casamento entre pessoas do mesmo gênero no início daquela década. Ativistas e pesquisadoras chamam a atenção para como o estabelecimento do gênero no campo da atuação política transnacional passou a representar uma ameaça para valores conservadores defendidos por ativistas cristãos e pelas cúpulas da Igreja Católica. No caso brasileiro, mas não apenas, essa ameaça passou também a ser compartilhada entre outras denominações cristãs. Conforme aumenta a participação de lideranças evangélicas nas esferas da política, seja por meio de campanhas eleitorais ou através da incidência política e jurídica junto ao Estado, cresciam também os esforços de lideranças tanto católicas como evangélicas em denunciar os pretensos perigos trazidos pelo conceito de gênero. Aos poucos, a noção de “ideologia de gênero” permitiu a distintas denominações religiosas constituir afinidades políticas
estratégicas com a consolidação de alianças que começaram a se fortalecer em meados dos anos 2000. Exemplo elucidativo dessas alianças é a atuação do Escola Sem Partido (ESP), criado em 2004 pelo procurador católico Miguel Nagib com o objetivo de barrar uma suposta doutrinação “marxista”, “esquerdista” e “conspiratória” nas salas de aula e escolas. Em um contexto de expansão e diversificação de estudantes no ensino básico e superior, as ações que visavam combater a “ideologia de gênero” se voltaram para o ambiente escolar e para a educação. Desenvolvidas sob o pretexto da proteção das crianças e adolescentes, várias ações e campanhas possibilitaram a composição de parcerias entre lideranças religiosas conservadoras e grupos que defendiam a proibição de conteúdos e debates por eles classificados como políticos, partidários ou ideológicos nas escolas. Se, de início, a circulação de uma interpretação distorcida do gênero por meio da ideia de “ideologia de gênero” circulava apenas em redutos religiosos e conservadores, o desenvolvimento de ações e campanhas antigênero permitiu novos usos da “ideologia de gênero”. Essa noção passou, cada vez mais, a ser mobilizada como recurso político capaz de aglutinar setores políticos e religiosos heterogêneos e, em alguns casos, mesmo em conflito. Em torno da invenção da “ideologia de gênero”, circulam atores como juízes, promotores, psicólogos e advogados que desempenham uma forma de ativismo conservador por meio de suas associações profissionais e redes de ativistas. Além disso, políticos e lideranças começaram também a investir na denúncia da “ideologia de gênero” como estratégia com rendimentos eleitorais. O exemplo mais elucidativo é o do ex-deputado Jair Bolsonaro, que ganhou notabilidade em programas de televisão e nas redes sociais em função das denúncias contra a distribuição de material educativo sobre gênero e sexualidade em escolas públicas brasileiras pelo governo Dilma Rousseff. Apelidando o material de “kit gay”, Bolsonaro chamou a atenção de grupos religiosos e
setores políticos, angariando também parte do capital político que o permitiu se eleger presidente em 2018. Como se vê, os investimentos orientados contra as pesquisas e teorias de gênero têm se mostrado politicamente lucrativos para grupos políticos e religiosos que buscam reinscrever no vocabulário político sua agenda. Essa moral conservadora é pautada por noções como as de família tradicional, de inevitabilidade da heterossexualidade e da cisgeneridade, bem como do predomínio parental nas escolhas de vida dos filhos e da rigidez sobre condutas sexuais consideradas desviantes. Assim, a mobilização antigênero nega padrões igualitários e democráticos de sociedade, de família e de sexualidade. LEIA MAIS
CORRÊA, S. Ideología de Género: rastreando sus orígenes y significados en la política de género actual. Rio de Janeiro, 16 fev. 2018. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. HARAWAY, D. “’Gênero’ para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra.” Cadernos Pagu, Campinas, n. 22, p. 201– 246, 2004. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. JUNQUEIRA, R. D. “A invenção da ‘ideologia de gênero’: a emergência de um cenário político discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero.” Revista Psicologia Política, São Paulo, v. 18, n. 43, p. 449-502, set./dez. 2018.
CONFIRA
GUERRAS CULTURAIS DESIGUALDADE E INTERSECCIONALIDADE QUEER *Pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) ** Professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP)
ANTI-INTELECTUALISMO José Szwako *
O anti-intelectualismo
pode ser entendido como uma atitude de aversão ou um sentimento de hostilidade à comunidade universitária e ao estilo intelectual de vida nutrido em espaços de formação acadêmica e cultural. Isso significa, por um lado, oposição continuada e sustentada a alguns dos traços mais característicos do ethos acadêmico, como o exercício de abstração e o emprego de raciocínio reflexivo e analítico. Por outro lado, e de modo mais concreto, significa a contraposição a encarnações mais evidentes e palpáveis da comunidade científica, ou a partes dela, como instituições acadêmicas, associações ou autoridades científicas. Em ambas as dimensões, o anti-intelectualismo se expressa como atitude que, embora diversa, compartilha com as teorias conspiracionistas e com os diversos negacionismos um parentesco de primeiro grau. O grande marco no estudo das ofensas e ataques dirigidos à vida acadêmica é Anti-Intellectualism in American Life, de Richard Hofstadter, publicado em 1963. Hofstadter mapeia algumas das principais fontes de hostilidade ao pensamento reflexivo distribuídas entre diferentes grupos e classes sociais, remontando à história estadunidense dos séculos 19 e 20. Exemplo dessa hostilidade pode ser vista entre os evangelicals — nome que reúne denominações religiosas sem tradução direta com os grupos chamados “evangélicos” ou neopentecostais em contexto brasileiro. Na primeira metade do século 20, os evangelicals configuraram uma aliança fundamental e fundamentalista em oposição ao evolucionismo e ao racionalismo no ensino nos Estados Unidos. Outro exemplo adequado de anti-intelectualismo é visto também na impaciência demonstrada por filantropos de grandes universidades com o pensamento abstrato e o ensino voltado para teorias básicas. Ao contrário, na visão instrumental da universidade, elas deveriam
se orientar pelo conhecimento com efeitos práticos e visíveis para o mundo do business. Um terceiro traço anti-intelectual está nos usos que partidos, tanto de direita como de esquerda, fazem das universidades. Não são raras as vezes nas quais a vida universitária foi atacada e acusada de elitismo por políticos populistas ao longo da história daquele país. Como se vê, são basicamente três as lógicas que permeiam o sentimento hostil face a intelectuais e ao pensamento reflexivo: a lógica do irracionalismo, do instrumentalismo e do populismo, que se pretende “antielitista”. Tais lógicas, por sua vez, são adequadas para discernir dinâmicas anti-intelectuais em perspectiva histórica. No caso brasileiro, o anti-intelectualismo pode ser situado, para além do contexto contemporâneo, no conjunto das forças que marcaram nossa última ditadura (1964-1985). O golpe de 1964 abriu uma sequência de medidas arbitrárias contra centenas de catedráticos, tais como aposentadorias compulsórias e perseguições, radicalizadas após o Ato Institucional de 1968. O avanço da reforma universitária implementada desde fins da década de 1960 impôs à comunidade universitária uma condição profundamente ambígua. Ao mesmo tempo em que meios ilegais de repressão eram utilizados contra estudante e docentes tachados de “comunistas”, cresceram expressivamente os investimentos em infraestrutura para de um sistema de pesquisa no país. As palavras de ordem então dirigidas à universidade eram “modernizar” e “racionalizar”. Por meio delas, uma retórica instrumentalista dava vazão ao anticomunismo do regime e era evocada para aplacar adversários intelectuais e conter futuros críticos e opositores, em especial, no corpo discente. No entanto, com os primeiros sinais de fragilização do regime autoritário ao final dos anos 1970, o investimento em departamentos e programas de pós-graduação produziu também efeitos inesperados. A mesma “modernização” que servia de fachada para formas políticas de controle e perseguição serviu, mais adiante, como alicerce fundamental para a mobilização das universidades contra o autoritarismo.
O anti-intelectualismo brasileiro contemporâneo tende a misturar continuidades e rupturas com relação a essa história pretérita. Do ponto de vista de suas heranças intelectuais, figura incontornável no rol dos ataques às universidades no Brasil foi Olavo de Carvalho e seu longo investimento para difamar cientistas e instituições consagradas. Já do ponto de vista contemporâneo, momento singular das ofensas anti-intelectuais recentes pode ser visto na acusação de “balbúrdia”. Por meio dessa afirmação, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, difundia em meados de 2019 a falsa ideia de que a universidade pública brasileira não desenvolve pesquisa nem ensino de qualidade. Enquanto Weintraub amaçava várias universidades de corte de recursos, o presidente Bolsonaro o endossava prometendo “aparar” centros acadêmicos que seriam repletos de “vagabundos” e “comunistas”. Por momentos, Bolsonaro chegou a dizer publicamente que cursos como Sociologia e Filosofia deveriam ter menos verbas, pois, para ele, o aluno deveria aprender coisas “úteis” ao bem-estar das famílias. Dessa forma, esse repertório anti-intelectual de hoje reproduz o anticomunismo de outrora, inovando em uma concepção restritiva de seu instrumentalismo. Esse tipo de afronta à universidade não é fenômeno isolado. Durante a corrida eleitoral de 2018 para a Presidência, a equipe de campanha de Bolsonaro chegou a defender a ideia de que as universidades públicas deveriam ter “mensalidades”. Por detrás dessa proposta, reside um populismo de extrema direita que quer emprestar à universidade pública uma imagem de “elite”, que deveria pagar pelo ensino. Tal imagem não apenas desconhece a complexidade da política de ensino superior e realidade própria das universidades, que são desiguais regional e internamente, como tampouco entende que meras “mensalidades” não financiariam um sistema inteiro de pesquisa científica. Outra frente de atuação anti-intelectualista conjuga aquela veia anticomunista com a fabricação de pânicos de gênero, que vêm marcando vários países para além do Brasil. Desde meados de 2004, o movimento Escola Sem Partido tem se mobilizado em vários
âmbitos da educação brasileira, do ensino fundamental ao ensino superior, para tentar barrar as discussões das teorias de gênero, por eles denominadas de “ideologia de gênero”. Docentes foram objeto de ataques, sobretudo, em suas escolas e salas de aula, por parte de ativistas que elaboram e difundem teorias conspiratórias segundo as quais os professores seriam “comunistas” que supostamente “doutrinam” estudantes. Apesar de terem sofrido derrotas constitucionais importantes por volta de 2020, os militantes do Escola Sem Partido seguem, no arco de alianças e apoios ao bolsonarismo, se opondo à disseminação de conteúdos curriculares fundamentais no combate à violência sexual impetrada contra crianças e adolescentes. De maneira sintomática, o mais recente parceiro nesse rol de alianças parece ser o agrobussiness, hoje abertamente interessado na representação do agronegócio e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra nos currículos e livros escolares. A crise trazida pelo covid-19 acirrou ainda mais o antiintelectualismo do governo Bolsonaro e de suas bases de apoio na sociedade. Ao lado de universidades e escolas, centros de pesquisa como o Instituo Butantan e a Fiocruz passaram a compor o alvo das ofensas e inverdades dirigidas contra as ciências e autoridades científicas. Mais uma vez, o anticomunismo tem pautado os ataques, agora atualizados sob lógica combinatória de conspiracionismo e negacionismo: os cientistas seriam, no repertório anti-intelectual, uma suposta “elite” que teria interesses econômicos no crescimento da crise pandêmica, e não no seu combate. Se não bastasse a crise humanitária que desde 2020 atravessa o Brasil, o governo Bolsonaro tem se valido da arbitrariedade na relação com as reitorias das universidades federais, contrariando a vontade expressa pelas maiorias das respectivas comunidades universitárias. Mais ainda, tem se utilizado de instituições estatais e de expedientes administrativos para perseguir e controlar docentes abertamente críticos do governo. Analogamente às demais empreitadas anti-intelectuais, essa forma de perseguição preocupa
não apenas por se tratar de um modus operandi governamental, mas, mais especialmente, porque ela veicula e quer consagrar, com apoio de parcelas do eleitorado, um modelo hierárquico e excludente de sociedade. LEIA MAIS
HOFSTADTER, R. O anti-intelectualismo nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 545 p. (Rumos da cultura moderna, v. 5). MOTTA, R. P. As universidades e o regime militar. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 429 p. CONFIRA
ESCOLA SEM PARTIDO OLAVO DE CARVALHO UNIVERSIDADE
*Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
ANTROPOCENO Lorena Cândido Fleury *
D
atam da década de 1970 as preocupações de cunho global a respeito dos efeitos do crescimento econômico ilimitado, com sua consequente demanda ilimitada de apropriação e uso dos chamados recursos naturais, sobre o planeta Terra ou, mais propriamente, sobre a viabilidade do planeta Terra como um sistema biogeológico. Tais preocupações se formalizaram em reuniões internacionais como a Conferência de Estocolmo, em 1972, e os Trabalhos do Clube de Roma, entre 1972 e 1974, e ainda mais amplamente por meio de documentos como o famoso Relatório Brundtland, intitulado Nosso futuro comum, publicado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1987. Foi neste último relatório que se deu a formulação do conceito de desenvolvimento sustentável. Ratificado na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente realizada no Rio de Janeiro em 1992, sua incorporação na Agenda 21 visou difundir o princípio de que seria necessário qualificar o imperativo do desenvolvimento com parâmetros que permitissem sua conciliação com a manutenção da viabilidade de futuras gerações humanas no planeta. Ainda que não haja dúvidas sobre a amplitude da difusão do conceito de sustentabilidade daí decorrente, muito se discute quanto sua efetividade em reorientar as práticas, sendo de modo geral bem aceita a afirmação de que de empresas a estados nacionais e acordos internacionais a lógica do “business as usual” seguiu balizando as decisões, inclusive no que diz respeito às questões ambientais. Contudo, a partir do início dos anos 2000, o debate a respeito das consequências ambientais da apropriação humana da natureza vem, literalmente, mudando de escala. Eventos climáticos extremos cada vez mais recorrentes têm amplificado no debate público a discussão, ainda que não inédita, mas inicialmente restrita ao
campo das “ciências do clima”, sobre aquecimento global e mudanças climáticas. Mais diretamente, discute-se o papel da agência humana nas transformações de ordem global em diferentes indicadores biogeoquímicos de como funciona a Terra enquanto um sistema. Em uma palavra, começa-se a falar, então, em Antropoceno. Mas o que é o Antropoceno? Segundo Bruno Latour, o Antropoceno é o conceito filosófico, religioso, antropológico e político mais decisivo já produzido como uma alternativa ao ideal de modernidade. Apresentado em 2000 pelo químico da atmosfera e Prêmio Nobel Paul Crutzen, em uma conferência do International Geosphere Biosphere Programme, o conceito de Antropoceno foi criado para designar uma nova época geológica, a presente, colocando fim ao Holoceno, iniciado há 11.500 anos. Em artigo de 2002 na revista Nature, Crutzen afirmou ser apropriado denominar o presente como Antropoceno para demarcar a época geológica atual de muitas maneiras dominada pela Humanidade. De acordo com o Anthropocene Working Group (AWG), os fenômenos associados ao Antropoceno incluem perturbações antropogênicas marcadas e abruptas dos ciclos de elementos como carbono, nitrogênio, fósforo; mudanças ambientais geradas por essas perturbações, incluindo aquecimento global, aumento do nível do mar e acidificação do oceano; mudanças rápidas na biosfera, como resultado da perda de habitat, predação, explosão de populações de animais domésticos e invasões de espécies; e a proliferação e dispersão global de muitos novos “minerais” e “rochas”, incluindo concreto, cinzas volantes e plásticos, e a miríade de "tecnofósseis" produzidos a partir desses e de outros materiais. O que interessa, portanto, à discussão geológica do Antropoceno é a constatação de que muitas dessas mudanças persistirão por milênios ou mais, e estão alterando a trajetória do sistema terrestre, algumas com efeito permanente. Isso porque estão sendo refletidas em um corpo distinto de estratos geológicos que agora se acumulam, com potencial para serem preservados em um futuro distante.
Mas designar à humanidade o lugar de agente geológico, isto é, de fator transformador central desse biossistema, possui consequências que extrapolam o campo da ciência geológica. Rompe-se, assim, a divisão estabelecida entre história humana e história natural, delimitada pelas suas distintas ordens de escala. E, a despeito de alguns consensos, permanecem algumas controvérsias seja sobre pertinência do conceito, seja sobre a escolha do termo (seria Antropos o mais adequado? Capitaloceno, Plantantionoceno ou ainda Chtuluceno) ou sobre seu marco temporal inicial. Nessa tarefa de produção ativa do Antropoceno enquanto evento geopolítico do presente, a busca por indicadores socioecológicos que lhe caracterizem exerce papel central. A análise de parâmetros tão distintos quanto, por exemplo, a presença de metano na atmosfera, a perda de florestas tropicais na superfície global, a presença de cultivos aquáticos de camarão, a porcentagem de população urbana no mundo, o consumo de fertilizantes, o PIB global e a população humana total no planeta — todos esses parâmetros indicam uma “arrancada” que pode ser observada por volta de 1800, e uma “grande aceleração” após 1945. É que falar em termos de Antropoceno não é falar apenas de geologia. Trata-se também de modelos de desenvolvimento, de tal forma imbricados, que se torna incontornável a constatação de que o presente ordenamento político e social, além de produzir injustiças e desigualdades sociais, tem conduzido a consequências tão desastrosas para a vida na Terra como uma provável extinção em massa. Talvez por isso os esforços em negar a existência das mudanças climáticas. Ou, quando reconhecidas, em tratá-las como “naturais”, ou seja, desvinculadas da ação humana, tal qual tendem a afirmar os negacionismos. Nas mais das vezes, grupos e discursos negacionistas se utilizam de uma característica cara à prática científica — o ceticismo —, lhe subvertendo como uma tentativa de rejeitar a responsabilização que o conhecimento científico sobre o Antropoceno tem acenado. A despeito das variadas críticas a ele dirigidas, o Antropoceno tem sido adotado em várias searas: em pesquisas científicas das
humanidades às ciências climatológicas, em produções audiovisuais e documentários, bem como nos ativismos ambientais globais, como o protagonizado pela jovem sueca Greta Thunberg. Dessa forma, parece ter sido capaz de capturar e nomear a tensão fundamental e fundante do momento presente, ao colocar os desejos contemporâneos de onipotência diante de suas angústias da imprevisibilidade. Seu uso tem se demonstrado, portanto, eficaz em atravessar barreiras e produzir alianças. Diante da incisiva constatação dos limites à coexistência decorrentes do modo pelo qual a humanidade tem vivido sobre o planeta Terra, talvez nada mais necessário do que a produção criativa de significado coletivo, mas não unívoco, sobre a época em que vivemos. Nomear o presente como Antropoceno, nesse sentido, pode ser menos um acordo sobre o que temos sido enquanto humanidade, e mais uma abertura para novos horizontes possíveis, nos quais entram em disputa perguntas sobre quem importa e o que importa, sobre quem existe e o que existe. Talvez seja essa a fissura que o Antropoceno pode, quem sabe, começar a criar. LEIA MAIS
ALASIEWICZ, J. et al. (Ed.). The Anthropocene as a geological time unit: a guide to the scientific evidence and current debate. Cambridge: Cambridge University Press, 2019. HARAWAY, D. “When species meet: staying with the trouble.” Environment and Planning D: Society and Space, Santa Cruz, v. 28, n. 1, p. 53-55, fev. 2010. CHAKRABARTY, D. The climate of history in a planetary age. Chicago: University of Chicago Press, 2021. CONFIRA
NEGACIONISMO CLIMÁTICO PANDEMIA
SINDEMIA
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
ANVISA — AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA Ana Claudia Farranha *
P
or que cada família ou indivíduo não pode escolher os produtos (remédios, cosméticos, alimentos etc.) que julgar ser o melhor para seu uso? O que é vigilância sanitária? O que se leva em conta quando se autoriza o uso e a comercialização de um produto no Brasil? Por que a Anvisa é responsável por fazer essas autorizações? Essas são questões que passaram a fazer parte do nosso cotidiano. E é totalmente razoável que elas estejam “na boca do povo”, pois cada dia amplia-se o conjunto de siglas e expressões que eram desconhecidas para muitos de nós e hoje já não se vive sem falar nelas. Considerando essa situação, este verbete explica o papel da Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no universo da saúde, apresentando algumas das suas ações no combate à covid-19. Para iniciar, vale dizer que a vigilância sanitária é a ação de zelar pela saúde da coletividade. Em outras palavras, trata-se de verificar qual o risco existente no uso de um determinado produto (seja ele industrializado ou não). Essa ação é importante, pois evita que o uso indiscriminado de determinados produtos prejudique gravemente a saúde da população. Assim não se pode comercializar um produto no território nacional sem que ele esteja de acordo com a especificações para seu uso seguro. Exemplo disso está no uso de agrotóxicos. Apesar de ser venenoso, para o seu uso seguro, ele deve obedecer a especificações técnicas e, também, devem os seus fabricantes serem fiscalizados se estão (ou não) cumprindo essas especificações. Da mesma forma, os cosméticos, medicamentos, o tabaco (uso e comércio), as medidas sanitárias adotadas em aeroportos e portos e em regiões de fronteiras, as medidas para importação de
equipamentos médicos — tudo isso compõe o rol de ações que visa garantir saúde e se propõe a prevenir doenças, epidemias, maus usos de serviços e produtos que afetam a saúde da população do país. É sobre esses temas e muitos outros que a Anvisa atua. Nesse contexto, há um longo histórico de medidas adotadas pelo Estado brasileiro no sentido de prevenir riscos através de uma atividade regulatória das condições sanitárias. Isso é assim desde os tempos do Império, com a criação da Inspetoria de Saúde Pública do Porto do Rio de Janeiro (1820), passando pela Primeira República (criação do Conselho de Saúde Pública e Inspetoria Geral de Higiene, em 1890) e pela Era Vargas (com a criação de muitas normas de controle e fiscalização sanitária). Já no período da Ditadura Militar (1964-1985) foi instituída, no âmbito do Ministério da Saúde, a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (1977) que posteriormente teve seu nome alterado para Secretaria de Vigilância Sanitária (1994) até o estabelecimento, no mesmo ano, das diretrizes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Em 1999, a atividade de regulação das condições sanitárias foi transferida para Agência Nacional de Vigilância Sanitária — Anvisa, criada em 1999 pela Lei nº 9.782/99. Essa trajetória nos ajuda compreender que o tema da regulação sanitária (regras, controle e fiscalização) não é novo no mundo público. Essa é uma atividade inerente ao papel do Estado. A Anvisa é uma autarquia especial de direito administrativo, vinculada ao Ministério da Saúde, criada em contexto de Reforma Administrativa, cujo objetivo era dotar as entidades formuladas nesse modelo de autonomia administrativa (sem subordinação administrativa ao Poder Executivo). Além disso, objetiva-se também garantir que seus dirigentes, embora indicados pelo presidente da República, seriam sabatinados pelo Senado Federal, tendo mandados fixados em lei e, portanto, menos a deriva da vontade dos governantes. Embora o tema da autonomia e da subordinação dos órgãos governamentais no Brasil levante inúmeras discussões, fato é que
as Agências Reguladoras foram criadas para garantir que as ações voltadas para um setor econômico em específico (aviação civil, telecomunicações, cinema, petróleo, gás e biocombustíveis, transportes terrestres, saúde suplementar, transportes aquaviários, águas, energia elétrica e vigilância sanitária) pudessem se constituir de maneira a equilibrar os diferentes interesses destes setores (empresas, governo e usuários). Assim, a regulação desses setores e atores não dependeria dos humores dos governantes, que ora poderiam estar de acordo com as políticas do setor ou ter posições altamente divergentes dessas políticas. Quando se fala em autonomia administrativa das agências, chama-se atenção para um conjunto de decisões que levam em conta critérios técnicos e administrativos tomados em um determinado contexto institucional. É extensa a lista de áreas e temas nos quais a Anvisa atua regulando e vigiando condições sanitárias: ela vai do tabaco a medicamentos, passando por laboratórios, cosméticos, portos e serviços de saúde, chegando a alimentos e agrotóxicos. Em cada um destes temas, é possível encontrar uma série de normas, procedimentos e instruções que visam garantir a melhores condições sanitárias com vistas a proteger a saúde da população. Entretanto, fica a pergunta: como tem atuado a Anvisa diante da covid-19? E quais os desafios colocados para a agência em um contexto de negacionismo? São muitas as ações implementadas pela Anvisa em relação ao combate à covid-19. Elas vão desde um conjunto de reuniões e protocolos até entendimentos e consensos que vêm acontecendo desde fevereiro de 2020. Entretanto, o tema da vacina parece ganhar destaque na ação destes órgãos. Nesse processo, a agência avalia os resultados dos estudos clínicos (há todo um fluxo administrativo a ser seguido nesse processo) e analisa os riscos a que população está submetida face ao uso de um medicamento ou terapia farmacológica. Todo e qualquer laboratório que queira comercializar seu produto no território nacional precisa ter a autorização da Anvisa, autorizando
sua disponibilização no país. Essas autorizações são para: I) registro; II) uso emergencial; III) importação excepcional; IV) e uso pelo Consórcio Covax Facility. Como trata-se de um processo baseado em evidências, a agência estabeleceu um procedimento que tem basicamente o seguinte fluxo: I) pesquisa básica e testes não clínicos (pesquisa-se a segurança da vacina e sua capacidade de gerar anticorpos); II) estudos clínicos (realizados em seres humanos, depois da fase de pesquisa básica e que requerem avaliação pela própria Anvisa); III) fase 1 (primeira etapa dos testes em seres humanos identificando os anticorpos produzidos e possíveis reações); IV) fase 2 (dedicada a identificar qual a melhor dose para promover a imunização); V) fase 3 (realizada em grandes populações para avaliar a segurança e identificar a eficácia da vacina); VI) registro (os técnicos especializados da Anvisa analisam todos os relatórios das fases que antecederam ao pedido de registro e decidem qual o tipo de uso, as possibilidades as limitações que poderão ser feitas em relação a esse pedido). É importante destacar que dada a urgência que envolve os temas de saúde pública, em todos os lugares do mundo, as fases descritas acima têm sido desenvolvidas de forma simultânea. Isso não invalida os resultados, mas mostra como os recursos de novas tecnologias devem estar a serviço da Humanidade e para seu bem. Para concluir, é possível afirmar que os desafios colocados no cenário político e institucional requerem a compreensão de que a tarefa de regular não é um ato de vontade (que levada ao extremo pode significar capricho negacionista) dos governantes. A regulação envolve autorização, fiscalização e acompanhamento de medidas sanitárias. Mais ainda: trata-se de um compromisso público, regulado por regras públicas e órgãos cuja missão institucional tem compromisso com a manutenção e o desenvolvimento de direitos e garantias fundamentais estabelecidas nas Constituição Federal. LEIA MAIS
ALVES, F. N. R.; PECI, A. “Análise de Impacto Regulatório: uma
nova ferramenta para a melhoria da regulação na Anvisa.” Revista de Saúde Pública, v. 45, n. 4, ago. 2011. Disponível em: . Acesso em: 22 fev. 2022. PIOVESAN, M. F. A construção política da Agência Nacional de Vigilância Sanitária — Anvisa. 2002. Tese (Mestrado), Curso de Saúde Pública. Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2002. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Agência Nacional de Vigilância em Saúde — Anvisa. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br. Acesso em: 22 fev. 2022. CONFIRA
CONSTITUCIONALISMO LAWFARE POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS
* Professora da Universidade de Brasília (UnB)
ARTES AUDIOVISUAIS Julio Cavani * José Luiz Ratton **
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overnos autoritários continuam a atacar as artes em pleno século 21. As prisões do artista Ai Weiwei (China), do cineasta Jafar Panahi (Irã) e da banda Pussy Riot (Rússia) são alguns dos exemplos mais famosos internacionalmente. No Brasil, há episódios recentes similares de ataque às artes como a campanha puritana e moralista que resultou no cancelamento da exposição Queermuseu em Porto Alegre, em 2017 e na censura contra a peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu nas cidades de Salvador, Jundiaí, Rio de Janeiro, Garanhuns e Recife, em 2017 e 2018. No primeiro dia de 2019, o Ministério da Cultura foi extinto e os atuais governantes encontraram, desde então, diferentes mecanismos para desmontar as variadas formas de expressão artística no Brasil, seja pela interrupção de políticas de fomento, bloqueio e redução de verbas, alteração de legislação, desmonte de processos institucionais consagrados, ou mesmo gestos mais extremos, como o simples abandono de equipamentos culturais os mais diversos (a Cinemateca Brasileira, museus e bibliotecas públicas, construções de valor arquitetônico e histórico). No campo das leis de incentivo e dos patrocínios públicos, posições negacionistas são largamente utilizadas para defender a extinção dos mecanismos de apoio às artes e à cultura em geral. Alegações contestáveis e sem fundamentação técnica, e subterfúgios jurídicos são utilizados como justificativas para a paralisação de editais e para a censura explícita ou implícita de conteúdos. A sabotagem a Aquarius na indicação do filme que representaria o Brasil e os adiamentos da estreia de Marighella são dois exemplos de punição contra opositores. Na Fundação Palmares, está em curso um processo sistemático de desmonte que
tem como objetivo explícito o apagamento e a negação da memória artística, social e cultural das populações negras no Brasil. Sem argumentação fundamentada em fatos, governos anteriores, tanto do PSDB, quanto do PT, são acusados de direcionamento para artistas supostamente alinhados. Tais posições, de natureza conspiratória, constituem forma evidente e estratégica de construção discursiva negacionista, que se divulga facilmente através dos grupos e milícias digitais. É perceptível que, por um lado, tais teorias da conspiração sobre as artes brasileiras nunca vêm acompanhadas de evidências que as subsidiem. Por outro, e não menos evidente, demonstram desconhecimento completo tanto dos processos de construção de editais públicos, quanto da composição das bancas de pareceristas, cada vez mais criteriosos no estabelecimento de parâmetros consistentes, diversificados e democráticos sobre trajetórias profissionais e acadêmicas dos artistas e coletivos postulantes. O caso exemplar deste ataque às artes é o incêndio da Cinemateca Brasileira. Trata-se de evento que pode ser interpretado como um gesto de negação continuada e deliberada que rejeitou os inúmeros alertas sobre a iminência da tragédia, largamente fundamentada em informações oriundas das comunidades artística e científica, que abandonou a gestão da instituição e negligenciou a tomada de providências urgentes de segurança. Não é possível outra interpretação senão aquela em que o governo Bolsonaro assumiu o risco e negou uma obrigação que era sua. A previsível destruição do acervo histórico teve e terá como consequências duradouras o apagamento físico e simbólico de parte relevante da memória (audiovisual) do país. Quando filmes e documentos são destruídos, as interpretações do passado e as possibilidades de construção de versões históricas fidedignas e baseadas em fatos tornam-se nebulosas, quando não desaparecem. Outro exemplo notório do ataque às artes brasileiras: o caso do filme Aquarius. É sabido e notório, entre estudiosos das artes visuais do Brasil e de fora do país, que havia um conjunto robusto e
consistente de argumentos, baseados em séries estatísticas históricas e no conhecimento qualitativo das dinâmicas institucionais do campo do Cinema que tornavam altamente provável a indicação de Aquarius ao Oscar, caso fosse escolhido pelo comitê brasileiro nomeado para a indicação do representante nacional. A postura dissociada de evidências, assumida pelos responsáveis pela (não) escolha da obra produzida por Emilie Lesclaux e dirigida por Kleber Mendonça, pode ter prejudicado economicamente o próprio país no maior certame comercial da indústria global de entretenimento de massa. É evidente que uma ação dessa natureza contribui para o desmonte da cadeia produtiva das artes visuais no país, atingindo dezenas de milhares de pessoas envolvidas na produção audiovisual brasileira. Os convites a Kleber Mendonça, em 2017, e a Emilie Lesclaux, em 2021, para serem integrantes votantes da Academy of Motion Picture Arts and Sciences de Hollywood constituem, em primeiro lugar, notório reconhecimento das obras e trajetórias profissionais destes dois profissionais de audiovisual baseados no Brasil. Por outro lado, são sinalização marcante de repúdio, por parte dos integrantes da Academia, à perseguição governamental contra artistas que apresentem posicionamento divergente e crítico aos desmandos e retrocessos institucionais que ocorrem no Brasil desde 2016. Se fizermos o exercício de voltar algumas décadas na história brasileira, perceberemos que essa não é a primeira tentativa sistemática de apagamento e negação da história brasileira através do ataque generalizado às artes e à cultura no país. Durante o regime militar, inúmeras obras artísticas, nacionais ou estrangeiras, foram censurados por motivos políticos e em nome da moral. Filmes, exposições, peças teatrais, músicas, livros, festivais. Entre os filmes nacionais que tiveram cenas cortadas ou exibições proibidas, estão obras historicamente fundamentais para a compreensão do Brasil como Terra em transe, O Bandido da Luz Vermelha, A margem, Eles não usam black tie, Macunaíma, Esta noite encarnarei no teu cadáver, Cabra marcado para morrer e
Iracema: uma transa amazônica. No campo literário, livros como Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, Dez estórias imorais, de Aguinaldo Silva, Copacabana Posto 6 e As traças, de Cassandra Rios, entre outros, foram objeto da censura. Na cena musical, as canções Opinião e Acender as velas de Zé Kéti, o álbum Milagre dos peixes de Milton Nascimento, as músicas Cálice de Gilberto Gil e Chico Buarque e Vaca profana de Caetano Veloso, cantada por Gal Costa em seu álbum Profana, são algumas das inúmeras peças musicais que foram censuradas de diversas formas. No audiovisual brasileiro, há dezenas de documentários que revelaram crimes políticos ocorridos durante a ditadura por meio de depoimentos, imagens e áudios. Cabra marcado para morrer é o marco primordial do ataque às artes como forma de combate à memória das lutas sociais. O filme, dirigido por Eduardo Coutinho, retratou o assassinato de uma liderança dos agricultores, João Pedro Teixeira, na Paraíba, ocorrido 1962. Antes de seu lançamento, previsto para 1964, teve o set de filmagens, o Engenho Galileia, invadido por policiais, que prenderam toda a equipe, sob a acusação de comunismo. A obra foi finalizada em 1984, com depoimentos da viúva de João Pedro e de figurantes da época. Filmes de ficção que reconstituem o período militar são praticamente um gênero à parte no cinema nacional, com tramas situadas nos mais diferentes contextos. Anteriores a Marighella, existem exemplos como Amores de chumbo, Batismo de sangue, Cabra cega, Deslembro, Hoje, O ano em que meus pais saíram de férias, Ação entre amigos, O que é isso companheiro?, A taça do mundo é nossa e Torre, um curta de animação. O maior festival brasileiro de documentários chama-se É Tudo Verdade. Referência ao filme inacabado que Orson Welles tentou realizar no Brasil, o nome do evento é uma defesa da memória histórica legítima associada à produção audiovisual documental. A ênfase em fatos históricos que os documentários conseguem desvelar, ajudam a construir percepções e posições comumente silenciadas. Com realização anual, tem importância política ímpar e
um título que soa como irônica afronta aos negacionistas e disseminadores de fake news. À guisa de conclusão, vale lembrar que os negacionismos já forneceram material para personagens célebres, oriundos ou não da literatura, como o maior mentiroso de todos os tempos, retratado no filme Aventuras do Barão de Münchhausen, de Terry Gilliam. Já Terry Jones, outro ex-Monty Python, dirigiu As aventuras de Erik, o viking, que satiriza terraplanistas de todas as épocas, na cena em que os navegadores atravessam o oceano até chegarem à borda da Terra. O setor audiovisual brasileiro realizou, nos últimos anos e em condições de terra arrasada, múltiplas obras que revelam, denunciam e satirizam todos os tipos de negacionismos disseminados por governantes e cidadãos comuns. Ao que parece, terá material e oportunidade para continuar revelando, denunciando e satirizando os negacionistas nacionais, como já vem fazendo, na televisão, no rádio, nas mídias sociais, no cinema e nas artes em geral. LEIA MAIS
ARAÚJO, J. Z. A negação do Brasil. São Paulo: Senac SP, 2000. PINTO, L. S. O cinema brasileiro face à censura imposta pelo Regime Militar no Brasil. In: Classificação Indicativa no Brasil: desafios e perspectivas. 2006. Disponível em . Acesso em 28 fev. 2022. RASPE, R. E. Aventuras do Barão de Münchhausen. São Paulo: Global, 2015. 9ª ed.
* Jornalista, escritor, curador e realizador audiovisual
**Cientista social, professor e pesquisador do Departamento de Sociologia da UFPE
ATIVISMOS (ATAQUES AOS) Carla Bezerra * José Szwako **
“V
amos botar ponto final em todos os ativismos do Brasil” — foi essa a promessa de campanha feita pelo então candidato à Presidência, Jair Bolsonaro, logo após o primeiro turno das eleições de 2018. Nessa ocasião, Bolsonaro sugeria que o Brasil viveria um suposto “comunismo”. Naquele mesmo outubro, rotulou os ambientalistas brasileiros de “ativistas xiitas” e acusou os movimentos sociais do que chamou de coitadismo. Ele disse: “Isso não pode continuar existindo. Tudo é coitadismo. Coitado do negro, coitada da mulher, coitado do gay, coitado do nordestino". Em oposição declarada a uma parte da sociedade civil, afirmou que as “minorias” têm no país “superpoderes” e que, tal como os “ativismos”, isso também deveria acabar. Esse conjunto de ataques e difamações nos dá acesso a alguns dos valores centrais que norteiam a ideologia e as decisões do governo Bolsonaro. Sua compreensão do que seriam os ativismos carrega também uma dimensão do conflito político que consiste na renitente luta pela definição do que é a sociedade civil e do que ela deveria ser, bem como sobre onde esta se situa ideologicamente no espectro político. Em certo sentido, é pouco surpreendente o fato de o discurso bolsonarista evocar modelos de sociedade, de associativismo e de ativismo. O que causa preocupação, antes, é sua explícita menção ao desejo de apagamento da identidade e organização de determinados grupos sociais — desejo que flerta evidentemente com os fascismos do século 20. No plano teórico, a ideia de ativismo pode ser bem situada ao lado dos seus dois congêneres: sociedade civil e associativismo. Por um lado, a sociedade civil consiste no complexo de redes e discursos em constante relação com agentes políticos e econômicos. Por
outro lado, o associativismo diz respeito ao tecido das organizações e relações por meio das quais grupos de várias ideologias e pertencimentos perseguem causas coletivas, numa permanente tensão entre interesses privados e virtudes públicas. Em plano de continuidade com seus congêneres, o termo ativismo (ou militância) compreende tanto uma dimensão individual, quanto coletiva da ação criativa e proativa engajada na defesa de uma causa. Assim, o ativismo é expressão de uma sociedade civil pluralizada, ela própria materializada em indivíduos e organizações civis e nas relações destes com o Estado e o mercado. Ao longo da história brasileira, abundam os casos de ativismos vindos da sociedade civil. Nas últimas décadas do Império, por exemplo, foram várias as associações e ativistas abolicionistas que atuaram, não só pelo fim da escravidão, mas também pela compra de alforrias e para o letramento de escravos e libertos. Já durante o Estado Novo, a consolidação das leis trabalhistas institucionalizou, sob a forma de direitos, a tripla face das relações entre mobilização operária e o governo Vargas: pressão, repressão e cooptação. O caso da mobilização de grupos anarquistas no Brasil, por sua vez, atravessa todo o século 20 indo da Primeira República e chegando mesmo até hoje. É, no entanto, no final de nossa última ditadura que o termo sociedade civil, em particular, ganha força entre nós. A chamada sociedade organizada foi um dos pilares de nossa redemocratização, cujos primeiros passos foram dados ao longo da segunda metade da década de 1970, tendo na Lei da Anistia, de 1979, o seu ápice. É dessa época, então, que data a imaginação hoje tão difundida pelo bolsonarismo de que os ativismos deveriam ser exterminados. Vários movimentos sociais ganhavam maior visibilidade à época, em especial, os feminismos, o então chamado ecologismo, as organizações do movimento negro, bem como o assim nomeado movimento homossexual. Junto de lideranças populares, urbanas e dos movimentos campesinos, do catolicismo de base e do sindicalismo renovado, esses movimentos não só estiveram nas Diretas Já, em 1984, como também se fizeram
imprimir em vários capítulos e artigos de nossa Constituição de 1988. Esse setor da sociedade civil, que se articulou em torno da oposição à ditadura, pela redemocratização e pela ampliação de direitos civis, políticos e sociais, é fortemente associado às esquerdas partidárias e ao Partido dos Trabalhadores. Ao longo das últimas décadas, esses atores influenciaram também nas agendas de diferentes governos, com especial destaque para os governos petistas, valendo-se de inúmeros canais abertos à participação da sociedade civil. Da participação em Conselhos e Conferências de Políticas Públicas, passando pela realização frequente de reuniões para apresentar demandas junto a membros do alto escalão do Governo, à ocupação de cargos no Governo, foram muitos os canais utilizados por atores cuja trajetória se vincula ao ativismo em organizações da sociedade civil do campo democrático. Não por acaso, são estes os mesmos movimentos e ativismos atualmente visados pela violência do discurso presidencial. Seu discurso caracteriza-se pelo desejo de eliminação do adversário, que é por ele identificado na esquerda partidária e na sociedade civil. Ao dizer que pretende eliminar todos os ativismos, Bolsonaro se refere a um ativismo específico que defende bandeiras de oposição a seu projeto de governo. No entanto, há setores da sociedade civil alinhados com valores ideológicos de direita presentes ao longo da história do Brasil. Dentre os mais notórios de nossa história, cabe mencionar o movimento integralista de 1932, dirigido por Plínio Salgado e fortemente alinhado aos valores do fascismo italiano. Já em 1964, temos a série de manifestações conhecidas como Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que se opunha às medidas de João Goulart e defendia sua derrubada, dando suporte social para o golpe empreendido naquele ano. Mais recentemente, são inúmeros os movimentos que ganharam notoriedade defendendo pautas de direita em oposição aos governos petistas. Nas manifestações de 2013 e de 2015, grupos
como o Movimento Brasil Livre e o Vem pra Rua emergiram das redes sociais para se consolidarem como organizações com atuação contínua e, não raro, financiada por empresários ou partidos de direita. Como tende a ocorrer nos quadros dos movimentos sociais, parte de suas lideranças nessas manifestações logrou eleger-se a cargos eletivos, a exemplo de Kim Kataguiri (DEM) e Carla Zambelli (PSL), esta última fortemente alinhada ao presidente Bolsonaro. Observada pelos conflitos entre diferentes grupos, nota-se que a sociedade civil é plural e comporta a diversidade de posições ideológicas presente na sociedade. Quer dizer, o uso do termo ativismo ou ativista aplicado somente aos grupos opositores do governo simplifica e distorce a realidade, de modo a negar a existência de controvérsia legítima. A lógica bolsonarista opera assim uma falsa oposição: “o povo versus os ativistas”. De um lado, estariam aqueles “patriotas” que apoiam o governo e que supostamente encarnariam o povo. De outro lado, estariam os “ativistas”, como se o termo fosse adequado apenas a pessoas e grupos de esquerda. Nessa lógica, os militantes e mobilizações bolsonaristas não seriam ativistas. O apagamento das diferenças de opiniões na sociedade civil, que forja uma falsa unidade em torno de valores pretensamente patrióticos, se constitui assim como um elemento chave de uma retórica iliberal, negacionista e antidemocrática. LEIA MAIS
ABERS, R. N. “Os movimentos sociais e o ativismo no governo Bolsonaro.” Nexo Jornal, [S. l.], 30 jun. 2019. Debate. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. DAGNINO, E. “Civil society in Latin America.” In: EDWARDS, M. (Org.). The Oxford handbook of civil society. Oxford: Oxford
University Press, 2011. LAVALLE, A. G.; SZWAKO, J. “Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos, contra-argumentos e avanços no debate.” Opinião Pública, Campinas, v. 21, n. 1, p. 157-187, abr. 2015. Artigos. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/op/article/view/86415 81>. Acesso em: 27 set. 2021. ROCHA, C. Menos Marx, mais Mises: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). 2019. Tese (Doutorado em Ciência Política) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo São Paulo, 5 fev. 2019. CONFIRA
PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) PARTICIPAÇÃO SOCIAL POLÍTICA
*Pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) **Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
AUSTERIDADE Gustavo Onto *
A
usteridade, ou austeridade fiscal, é uma agenda governamental de políticas ou medidas econômicas que prescreve a prática voluntária de restrição fiscal ou orçamentária governamental. Tal agenda supõe que a disciplina fiscal promove maior confiança dos agentes econômicos, isto é, de investidores e empresários, em relação ao futuro da economia de um país. A criação dessa confiança seria, por sua vez, revertida em maiores investimentos privados, solucionando problemas de crescente endividamento e baixo crescimento de economias nacionais. De acordo com defensores dessa agenda, o reequilíbrio dos gastos públicos, chamado de “ajuste” ou “consolidação fiscal”, aumentaria a confiança, pois o governo deixaria de emitir títulos de dívida para fazer novos gastos. Essas dívidas atraem capitais privados que poderiam estar direcionados para investimentos mais produtivos. Associada ao nome do economista italiano Alberto Alesina, a tese da austeridade expansionista tem sido promovida na prática em diversos países nos últimos anos e defendida como ideia por economistas de viés mais liberal. Entretanto, os alegados benefícios de uma rígida política fiscal não têm qualquer comprovação empírica ou histórica sólida, mesmo em países com altas taxas de endividamento público. Pelo contrário, as experiências recentes de políticas de austeridade têm resultado em crises ainda maiores do que aquelas que tentavam evitar, com aumento da dívida pública e dos juros, bem como queda nas taxas de emprego e do produto interno bruto. O corte de gastos públicos tende a pressionar a renda da população, especialmente aquela mais carente de serviços governamentais, fazendo com que a economia como um todo se retraia. A defesa imperativa de redução dos gastos governamentais permanece sendo uma ideologia que resiste aos fatos, como notou
Mark Blyth. Desde o século 17, pensadores liberais têm utilizado argumento de contenção da dívida pública ou dos déficits fiscais para defender interesses sociais particulares e para impedir o crescimento do papel do Estado, seja como provedor de serviços para a população ou como interventor direto para o desenvolvimento das economias nacionais. A política de austeridade beneficia diretamente os empresários em detrimento dos trabalhadores. Com a redução ou não implementação de direitos trabalhistas, promovida pela ideia de austeridade, a força de trabalho se fragiliza na negociação com os empregadores. Mais recentemente, com a ascensão do neoliberalismo, as teses da austeridade têm dado suporte intelectual ao desmonte do Estado de bem-estar social, sob o argumento de que este teria ocasionado crises das dívidas soberanas. Na realidade, a crise da dívida pública de países, tanto do Norte como do Sul global, é uma consequência da transformação das relações de endividamento. Com a maior financeirização da economia internacional a partir do fim dos anos 1980, a dívida pública deixou de ser um compromisso com a cidadania e passou a representar uma relação financeira com bancos comerciais e outras instituições privadas. Como diz a antropóloga Laura Bear em seu trabalho etnográfico Navigating austerity: Currents of debt along a South Asian river, a dívida pública tornou-se um “fato matemático”, ocultando da opinião pública a discussão política sobre suas causas e consequências, bem como as relações sociais que a sustentam. Por essa razão, o crescimento da dívida pública em diversos países, independentemente do motivo, tem servido de justificativa para políticas de austeridade. Isso foi o que ocorreu nos Estados Unidos e na Europa recentemente, depois da crise financeira de 2008. O colapso do mercado hipotecário norte-americano, produzido pelas ações pouco cautelosas dos próprios agentes financeiros, gerou a necessidade de um amplo pacote de recuperação sustentado pelo governo. Esse volume enorme de recursos, necessário para manter o funcionamento de bancos e outras instituições financeiras, foi custeado por todos os cidadãos, independente de sua
responsabilidade. Essa mesma coletivização dos prejuízos também aconteceu na Europa. A enorme crise bancária, em 2010, deu lugar a dívidas nacionais que têm sido pagas por toda a população indiscriminadamente. Além da clara injustiça de obrigar que todos paguem por uma dívida que não foi de sua fabricação, a exigência e a eficácia do pagamento podem ser questionadas. Em primeiro lugar, os gastos públicos sustentam direta e indiretamente rendas familiares, gerando empregos e produzindo demanda para bens e serviços. Ao reduzir esses gastos, o governo arrecada menos impostos no futuro e acaba por obter menos recursos para o pagamento das dívidas. Criticando a tese da austeridade expansionista, o Nobel de economia Paul Krugman garante que não é a “fada da confiança” que gera maior crescimento econômico. A confiança não é produto do corte orçamentário, mas da percepção pelos empresários de uma demanda crescente, que pode ocorrer exatamente pelo aumento dos gastos públicos. Além disso, o tamanho da dívida pública não é necessariamente sinônimo de desastre econômico, como comprovado por vários países altamente endividados. Como explica a economista Stephanie Kelton no livro The Deficit Myth, para assegurar a credibilidade da política econômica é importante a transmissão de uma previsibilidade de estabilização da relação entre dívida pública e crescimento econômico, mesmo quando a dívida continua numa trajetória ascendente no curto-prazo. A exigência de um equilíbrio orçamentário em qualquer circunstância e a qualquer custo social é um profundo equívoco. O modo como é adotada a agenda de austeridade difere bastante entre os países, mas não em suas consequências sociais. As reformas econômicas implementadas dentro desse tipo de programa sempre afetam desproporcionalmente populações mais vulneráveis, mais dependentes dos gastos públicos. A restrição orçamentária prejudica programas de transferência de renda e a qualidade dos serviços públicos em saúde e educação, por exemplo, contribuindo para agravar desigualdades de renda, de gênero e de raça. Ao buscar reduzir o papel do Estado a um mínimo e cortar custos, as
políticas de austeridade também estimulam relações de trabalho precárias e deixam de lado infraestruturas públicas essenciais, como redes de saneamento, de energia elétrica e de transporte. A privatização de empresas públicas acaba por ser apresentada, equivocamente, como solução inevitável. No fundo, apenas mais um efeito perverso da política de austeridade e de seu fomento ao desmantelamento da capacidade estatal. Por um breve período, a pandemia do coronavírus parecia ter dado fim à agenda de austeridade que ressurgiu com força no Brasil após a crise econômica de 2013. Formou-se uma espécie de consenso entre economistas de que todo gasto em leitos hospitalares, vacinas e auxílios financeiros era pouco para evitar um colapso social. Os problemas da dívida pública e de ajuste fiscal, antes tratados como urgentes pelo governo, agora representavam questões menores. Porém, assim que o orçamento do governo foi ajustado para que fosse possível implementar as medidas emergenciais, surgiram preocupações sobre quem pagaria por toda a despesa excedente de recursos não planejada. Em pouco tempo, os supostos excessos dos valores dos auxílios geraram demandas por um controle maior dos gastos. É importante lembrar que, antes da pandemia, as medidas de austeridade justificavam-se, no Brasil, também pelos ditos excessos, dessa vez cometidos pelos governos do Partido dos Trabalhadores. Por vezes a justificativa ia além, com a alegação de que o corte de gastos era necessário devido às exageradas garantias e direitos da Constituição de 1988, que, segundo seus críticos, “não caberiam no Orçamento”. Esse discurso moral é típico das políticas de austeridade. Em tal discurso, deveríamos pagar por supostos gastos desmedidos de um período anterior. Esse tom moral é parte importante da capacidade persuasiva dos apelos à austeridade. Há uma longa trajetória em nossa cultura de crítica ao consumo imoderado e ao endividamento. Na Antiguidade, a austeridade era um valor entre romanos, que censuravam a necessidade de luxos em nome da autossuficiência da unidade doméstica. O endividamento exagerado, por exemplo, era passível de punição carcerária no início da Revolução Industrial.
Não é por acaso que governos recentes adeptos a políticas de austeridade argumentam que devemos cuidar das finanças estatais como cuidamos das finanças domésticas, com disciplina e parcimônia. Buscam legitimar cortes de gastos com base em nossa concepção formada sobre os “pecados” dos excessos e das dívidas. Essa analogia, entretanto, é enganosa. Ela simplifica o governo das finanças públicas como se fosse apenas um tipo particular de orçamento doméstico. Se há um limite claro para os gastos na nossa casa, ele é bem mais flexível no governo da economia nacional, como a própria pandemia tornou evidente. A política fiscal não é uma ciência exata, mas sim uma decisão política sobre quanto e como gastar o dinheiro público. E por isso deve ser objeto de ampla discussão e análise pública. A agenda de austeridade tende a restringir essa discussão a falsas analogias e a preconceitos morais, como se se tratasse de decisões puramente matemáticas. O apelo à austeridade representa, por isso, um retrocesso democrático. LEIA MAIS
BEAR, L. Navigating austerity: Currents of debt along a South Asian River. Stanford: Stanford University Press, 2015. 264 p. BLYTH, M. Austeridade: a história de uma ideia perigosa. Tradução: Freitas e Silva. 2 ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. 334 p. KELTON, S. The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy. New York: PublicAffairs, 2020. 272 p. CONFIRA
ECONOMIA NEOLIBERALISMO REACIONARISMO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
BOLSONARISMO Camila Rocha * Esther Solano ** Jonas Medeiros ***
O bolsonarismo
pode ser caracterizado como um fenômeno baseado na mobilização do que chamamos de “política do choque”. A política do choque é uma estratégia utilizada por grupos que se sentem marginalizados no debate público. Tais grupos procuram chamar atenção para suas pautas se afastando da respeitabilidade e utilizando táticas chocantes para uma audiência mais ampla: a disrupção, a transgressão e a quebra de decoro. Tal estratégia pode ser utilizada por grupos localizados à esquerda ou à direita do espectro político. Exemplo disso à esquerda pode ser visto nas manifestações de participantes das Marchas das Vadias que, entre os anos 2011 e 2012, procuravam chamar atenção para suas demandas ao exporem seus seios em público. E, à direita, a política do choque fica bem exemplificada na utilização uma retórica agressiva, permeada de palavrões e de um humor ácido, autointitulado “politicamente incorreto”. Tal estratégia se justificaria diante da impossibilidade de obter atenção de outro modo. Afinal, as pautas e demandas de quem usa a política do choque seriam menosprezadas, e até mesmo ridicularizadas, pela mídia e pela política tradicionais. No entanto, se, com a eleição de Jair Bolsonaro, os discursos de direita e de extrema direita conquistaram espaço inegável na política e na mídia, como seria possível considerar que diretistas continuem a ser ou se sentir marginalizados? Para compreender tal fenômeno é preciso olhar para as dinâmicas recentes do debate público brasileiro. Desde o final dos anos 1970, uma série de grupos e movimentos que representam trabalhadores, mulheres, negros e indígenas conquistou participação inédita no debate público
brasileiro por meio das lutas de inúmeros movimentos sociais. Tal processo culminou na institucionalização de direitos em um novo pacto democrático. Esse pacto, por sua vez, foi consagrado na Constituição Federal de 1988 e em um arranjo político específico baseado em grandes coalizões parlamentares para garantir governabilidade ao Poder Executivo. É justamente contra esse pacto de 1988 e contra a maior pluralidade deste debate público ampliado que o bolsonarismo se insurge. Ao longo do tempo, os avanços, maiores ou menores, em políticas públicas voltadas para mulheres, negros e pessoas LGBTQI+, desencadearam conflitos de um novo tipo. Afinal, determinados setores da sociedade reagiram ao perder seu poder relativo ou por se sentirem marginalizados no debate público. Parte dessa reação se deu por meio da circulação de suas próprias ideias em fóruns alternativos. E, para tanto, a popularização da internet no país na virada da década de 2000 para 2010 teve papel fundamental. Foi desse modo que Bolsonaro e seus apoiadores puderam continuar a se perceber e se apresentar como “antissistêmicos”. Em sua visão, o establishment teria, desde meados do regime militar, sido permeado por aquilo que chamam de uma “hegemonia cultural esquerdista”. Essa alegada “hegemonia” representaria ameaças existenciais a suas visões de mundo e a seus modos de vida tradicionais. Daí, então, a necessidade de apostar na “política do choque”, mesmo após a ascensão de Bolsonaro à Presidência. Durante o governo Bolsonaro, tanto o presidente como seus filhos utilizaram a política do choque diversas vezes. Comentários escatológicos, o uso de palavrões em declarações à imprensa, bem como ameaças autoritárias continuaram a ser frequentemente mobilizados em declarações públicas. No entanto, apenas bolsonaristas menos poderosos foram punidos. Isso ocorreu por terem cruzado a tênue fronteira que divide, de um lado, a aceitação da política do choque como parte do exercício democrático e, de outro, ataques declarados ao Estado de Direito. Casos exemplares nesse sentido foram os do ex-secretário da cultura Roberto Alvim e
do deputado federal bolsonarista Daniel Silveira. O primeiro foi exonerado ao fazer um discurso com referências nazistas. Já Silveira foi preso ao divulgar um vídeo no YouTube em que xingava o Supremo Tribunal Federal, ameaçando os ministros com violência e elogiando medidas da ditadura militar, como o Ato Institucional nº 5. A opção pelo conflito aberto e disruptivo ficou ainda mais patente durante a crise pandêmica. Bolsonaro optou por ignorar consensos produzidos no debate público por especialistas acerca da adoção de medidas como distanciamento social e isolamento. Em suas aparições públicas, defendeu que o vírus só causaria uma “gripezinha”, criticou a “histeria” da grande mídia e o que chamou de “confinamento em massa” proposto por alguns governadores. Além disso, debochou de pessoas que contraem a doença, incentivou e frequentou aglomerações de seus apoiadores sem utilizar máscara. Polêmico, o presidente chocou amplos setores da opinião pública ao afirmar que o Brasil deveria “deixar de ser um país de maricas” e “enfrentar a pandemia de peito aberto”. Ainda que tais declarações tenham sido criticadas na mídia tradicional, Bolsonaro conseguiu fazer com que seus apoiadores aderissem à sua narrativa. A ideia de que seria preciso fazer uma escolha entre preservar a saúde ou a economia do país foi amplamente endossada, inclusive por seus eleitores das classes populares. Em pesquisa realizada em maio de 2020, constatamos que, embora fosse consenso que Bolsonaro havia errado ao diminuir a gravidade da pandemia, seus eleitores de baixa renda entendiam que a quarentena seria inviável para quem não possuía recursos materiais para tanto. O auxílio emergencial no valor de 600 reais, fornecido pelo governo entre abril e dezembro daquele ano, seria insuficiente para viver, diziam. Tal sentimento era ainda mais forte entre os homens, que ecoavam a ideia de que seria preciso ser “macho” e enfrentar a pandemia “de peito aberto”. Assim, a despeito de não concordarem com a ideia de que a pandemia fosse apenas
uma “gripezinha”, os apoiadores de Bolsonaro continuavam a celebrar seu estilo agressivo e intransigente. Afinal, sua postura chocante seria um indicativo de que ele é alguém “sincero”, “autêntico”, “verdadeiro”. Em sua visão, Bolsonaro seria diferente de políticos tradicionais, tidos como “corruptos” e pautados pelo “marketing eleitoral”. Tendo isso em vista, o fenômeno do bolsonarismo é profundamente paradoxal. Seu primeiro paradoxo se relaciona às conexões entre Bolsonaro e grupos da direita brasileira contemporânea que o apoiaram pragmaticamente no segundo turno. Afinal, a despeito de se reivindicarem contra o legado autoritário da ditadura militar, tais grupos colaboraram ativamente para a eleição de um de seus defensores mais convictos. O segundo paradoxo é a possibilidade de atribuir uma suposta dimensão antissistêmica a posicionamentos tradicionais ou mesmo reacionários, em especial, no que tange a pautas relacionadas a gênero, sexualidade e direitos de crianças e adolescentes. Por meio do uso da política do choque, a ascensão política de Bolsonaro se legitimou entre eleitores e grupos da população brasileira que não são de extrema direita. Para tanto, transforma discursos de ódio em uma retórica aceitável do “politicamente incorreto”. Ao mesmo tempo, dá vazão a sentimentos de raiva e revolta contra a corrupção e políticas afirmativas ou compensatórias, tais como as cotas raciais e os programas de transferência de renda. E, por fim, o terceiro paradoxo é a possibilidade da direita e da extrema direita continuarem a se apresentar como antissistêmicas mesmo após terem passado a ocupar posições centrais de poder. O que ajuda a explicar por que Bolsonaro continuou a contar com cerca de 30% de aprovação, mesmo em meio a uma sobreposição de crises de ordem política, econômica e sanitária. O futuro do bolsonarismo é de difícil previsão, considerando que o uso da “política do choque” por pessoas que estão no centro do sistema político é um fenômeno instável e pode apontar para vários desenvolvimentos diferentes. Caso o bolsonarismo se fortaleça, é
possível uma ruptura com a destruição completa do pacto democrático de 1988 e sua substituição por novas instituições, um projeto constantemente sinalizado, embora não concretizado, por Bolsonaro. LEIA MAIS
CESARINO, L. “Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil.” Revista Internet & Sociedade, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 91-120, fev. 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. PINHEIRO-MACHADO, R; SCALCO, L. M. “Da esperança ao ódio: juventude, política e pobreza do lulismo ao bolsonarismo.” Cadernos IHU Ideias, São Leopoldo, v. 16, n. 278, p. 3-15, 4 out. 2018. ROCHA, C.; MEDEIROS, J. “’Vão todos tomar no…’: a política de choque e a esfera pública.” In: CANDIDO, Marcia Rangel. HaoSHorizontes ao sul. [S. l.], 27 abr. 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
FASCISMO NEGACIONISMO CIENTÍFICO REACIONARISMO
* Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) ** Professora e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) *** Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
BOLSONARO, J. M. Marcos Nobre *
J
air Messias Bolsonaro é o terceiro de seis filhos de um dentista prático e de uma dona de casa. Nascido em 1955, no interior paulista, Bolsonaro morou dos 10 aos 18 anos em uma cidade da região mais pobre do estado de São Paulo, o Vale do Ribeira. A partir de sua passagem pelo Exército, entre 1973 e 1988, estabeleceu-se definitivamente no Estado do Rio de Janeiro. Em sua trajetória, Bolsonaro forjou uma personalidade política que ama a ordem e odeia a disciplina. Nos anos 1970, tornou-se militar, mas conservou aspirações, convicções e desejos típicos da vida civil. Como militar, planejou e executou atos de insubordinação não apenas em relação ao Exército, mas em relação à própria ordem democrática renascente na década de 1980. Do final da década de 1980 até 2018, foi legislador com mandato, mas adotou o desrespeito ao decoro parlamentar como regra de atuação. Mostrou-se admirador e manteve relações próximas com figuras das milícias, organizações ilegais que, no entanto, pretendem legitimar suas ações como meio para instaurar e garantir a ordem em comunidades cariocas. Na eleição de 2018, essa combinação fez dele o candidato que ama e promete a ordem e que, ao mesmo tempo, recusa qualquer disciplina institucional. Sua vitória eleitoral fez dele um presidente que ama e promete a ordem, ao mesmo tempo em que apresenta a ordem existente como desordem. Bolsonaro foi um candidato antissistema e assim continuou como presidente. Bolsonaro presidente é aquele que governa apenas para “os bons brasileiros”. Ou seja, governa apenas para quem o apoia. Do ponto de vista da manutenção de sua base social de apoio, a tática de Bolsonaro desde o início de seu mandato como presidente foi dupla: esquivar-se permanentemente de qualquer responsabilidade como
suposto dirigente do “sistema”; e vetar qualquer medida potencialmente danosa aos interesses de sua base de apoio. Governando para uma minoria numericamente significativa, Bolsonaro teve sempre um duplo objetivo: evitar o impeachment e garantir uma vaga no segundo turno da eleição presidencial de 2022. Para isso, pode beneficiar-se do fato de que “o sistema” que ataca permanentemente continuou a funcionar, mesmo que de maneira precária, mesmo sofrendo ataques cotidianos de quem supostamente deveria dirigir o sistema. Trata-se de um peculiar “parasitismo”, próprio de dirigentes eleitos como outsiders, como antiestablishment. São certamente muitas as razões a explicar a coalizão eleitoral de conveniência que elegeu Bolsonaro. Mas a razão que unificou seu discurso de campanha e que caracteriza seu estilo de governo como presidente é a que corresponde a esse impulso antissistema — tantas vezes reduzido de maneira rasa a “antipetismo”, como se a expressão fosse autoexplicativa. Bolsonaro joga permanentemente com a ambiguidade das expressões “sistema” ou “velha política”. Em um sentido mais amplo, unificador de sua base de apoio, “sistema” é “tudo o que está aí”, tudo o que existe de corrupto e de corruptor na vida do país. No sentido mais preciso em que Bolsonaro e seu núcleo duro de apoio entendem essa expressão, o “sistema” é “de esquerda” e se confunde com a própria redemocratização do país. Com Bolsonaro, pela primeira vez desde a redemocratização uma figura política conseguiu catalisar, concentrar e organizar a preferência do eleitorado autoritário, que andava disperso desde o fim da ditadura militar. Essa grande novidade não deve ser menosprezada ou subestimada. Trata-se de uma organização veio para ficar. E, no entanto, a eleição de Bolsonaro à presidência da República não é caso único, excepcionalidade. Faz parte e é resultado de um movimento global de revoltas conservadoras. Dizer que se trata de revoltas conservadoras quer dizer também que nem todas foram revoltas guiadas por objetivos abertamente autoritários. Mas, ao
longo dos anos 2010, não foi a direita democrática, mas a extrema direita a mais bem-sucedida em canalizar a insatisfação que as novas direitas identificaram e fomentaram. Foi também a extrema direita a mais bem-sucedida em alcançar o poder de Estado. Isso se deve em grande medida à sua habilidade em navegar com eficácia no novo ambiente digital que passou a determinar a política. Também por isso, o encontro de Bolsonaro com a extrema direita global — com a estadunidense, em especial — é decisivo para entender a tática e a estratégia que levaram a seu sucesso eleitoral em 2018. Porque, se até a década de 2000 o discurso de Bolsonaro contra as instituições democráticas sublinhava a inutilidade de eleições como reais instrumentos de mudança (no sentido que ele dá a “mudança”), a década de 2010 representará uma guinada tática de grande relevância, um alinhamento com a extrema direita global no sentido de apostar na via eleitoral, agora com novas armas, digitais dessa vez. Por toda a parte, mobilizações de extrema direita se servem de déficits reais das democracias existentes para chegar ao poder de Estado. Por meio de eleições, em um primeiro momento. Partem do pressuposto de que a democracia é necessariamente a submissão de quem não pertence à coalizão social e política vencedora de eleições, que democracia é e sempre foi uma arma que uma aliança de estratos do eleitorado dirige contra o resto do eleitorado. E decidem que vão utilizar, elas também, essa arma, propondo e liderando coalizões de conveniência. Ao disputarem e vencerem eleições não apontam para uma possível reconstrução de regras compartilhadas de justiça em conexão interna com formas democráticas institucionalizadas. Martelam incessantemente a lacuna entre a “vontade popular” e os mecanismos estabelecidos de representação política, mas não acreditam possível, muito menos pretendem, suprir essa lacuna em sentido democrático. A peculiaridade de Bolsonaro talvez esteja na maneira como se serviu desses déficits reais da democracia — especialmente visíveis quando a sociabilidade passa ser determinada pelo digital — para
vencer a eleição presidencial de 2018 e para governar. Historicamente, o marcador de diferença mais visível no reconhecimento de uma pessoa ou de um grupo como pertencente à elite brasileira é o fato de não se sujeitar às regras e às leis tais como se aplicam a quem não pertence à elite. Sem ameaçar as elites econômicas estabelecidas — e isso certamente é decisivo —, Bolsonaro prometeu a extensão dessa mesma regra — de maneira às vezes simbólica, às vezes muito real, mas sempre seletivamente — a certos grupos sociais que experimentavam uma sensação de exclusão da arena política. Foi o que trouxe para sua coalizão integrantes de denominações evangélicas e de polícias, por exemplo. Ao mesmo tempo, Bolsonaro prometeu que submeteria pelo menos parte da elite tradicional — aquela ligada ao sistema político, sobretudo — a leis e regras tais como observadas para quem não “pertence à elite”. Foi o que trouxe para sua coalizão parcelas do eleitorado identificadas ao lavajatismo, por exemplo. Esse amálgama contraditório produziu a coalizão de conveniência vitoriosa na eleição presidencial de 2018. Ter na liderança de uma coalizão eleitoral como essa um representante da extrema direita não significa que Bolsonaro dispusesse desde o início de um projeto autoritário claro e bem delineado. Ainda mais em seu primeiro estágio, o do primeiro mandato, cujo objetivo é meramente destrutivo. Como outros líderes autoritários pelo mundo, Bolsonaro vai descobrindo possibilidades e potencialidades à medida que consegue fortalecer sua posição. Ainda assim, em seu primeiro estágio, ao menos dois elementos positivos caracterizam esse projeto. Um deles é o objetivo de tornar organicamente autoritário todo o impulso antissistema, o conjunto de sua base de apoio. O outro desses elementos é dado pelo sentido e pela direção do ímpeto destrutivo das instituições, que vem da certeza de Bolsonaro de que a redemocratização é a responsável por todos os males do país. Assim se poderia explicar o propósito de uma personalidade política que ama a ordem e odeia a disciplina, que cultiva o caos institucional em nome da ordem.
Expressões destacadas dessa combinação de promessa de ordem e permanente produção do caos são os vários negacionismos que caracterizam a atuação de Bolsonaro. Negacionismo dos horrores da ditadura militar, da objetividade científica e jornalística, da confiabilidade das urnas eletrônicas de votação, da eficácia das vacinas e do distanciamento social contra a covid-19, entre tantos outros. Bolsonaro “nega” tudo o que faz parte do “sistema”, e o “sistema”, por sua vez, engloba todas as instituições: a mídia, a ciência e a tecnologia, a política, e assim por diante. Seria um erro, entretanto, entender os negacionismos de Bolsonaro como negação pura e simples da institucionalidade. Como é um erro achar que a mera “negação do negacionismo” seria um caminho frutífero para combater o bolsonarismo. Como se fosse possível e desejável simplesmente ter como horizonte prático o retorno a uma situação anterior às revoltas de junho de 2013, momento e que foram escancaradas as fraturas expostas da democracia brasileira. Seriam erros, sobretudo, por passarem por alto o já mencionado sentido propositadamente ambíguo de “sistema” na estratégia de Bolsonaro. O negacionismo bolsonarista pretende buscar e mesmo dispor da “autêntica ciência”, da “verdadeira objetividade factual”, da “boa política”, e assim por diante. Os negacionismos de Bolsonaro não se voltam contra essas instituições enquanto tais, mas contra a suposta perversão delas. No sentido amplo de “sistema” de que se vale, Bolsonaro passa a mensagem de que essa perversão foi realizada por um sistema político estruturalmente corrompido e corruptor. No sentido mais restrito, que é propriamente o de Bolsonaro e de sua base de apoio mais fiel, essa perversão teria sido realizada pela “esquerda” desde o momento em que teria “tomado o poder”, a partir do fim da ditadura militar. A perversão teria sido obra da própria redemocratização, seria obra da própria democracia. Ou, dito de maneira sumária: a democracia ela mesma seria a perversão, origem e causa de todas as demais perversões. E, como tal, deveria
ser, ela também, eliminada. LEIA MAIS
HOCHSCHILD, A. R. Strangers in their own land: anger and mourning on the American right. New York: The New Press, 2016. 410 p. NOBRE, M. Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia. São Paulo: Todavia, 2020. 80 p. RETRATO NARRADO #Primeira temporada: A trajetória de Jair Bolsonaro, setembro a novembro de 2020. [Locução de]: Carol Pires. [S. l.] Retrato Narrado, set. 2020 — nov. 2020. Podcast. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. ROCHA, C.; SOLANO, E.; MEDEIROS, J. The Bolsonaro Paradox: Public Sphere and Right-Wing Counterpublicity in Contemporary Brazil. Berlin: Springer, 2021. 209 p. (Latin American Societies — Current Challenges in Social Sciences). CONFIRA
POPULISMO DIGITAL POPULISMO SANITÁRIO REACIONARISMO
* Professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador e presidente do Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento (Cebrap)
BRUNO LATOUR Luiz Augusto Campos *
B
runo Latour é um dos autores mais citados das ciências humanas e, certamente, o mais citado na área de Estudos da Ciência e Tecnologia (STS, na sigla anglófona). Sua celebridade, porém, está longe de refletir um consenso: ao contrário, poucos autores geram controvérsias tão polarizadas quanto ele. Várias são as razões para tal, mas a principal parece ser a dificuldade em encaixá-lo nas tradicionais clivagens dominantes nas ciências humanas. Rotulado de relativista por uns e de hiperempirista por outros, ele foi atacado nos últimos anos com desqualificativos que vão de “negacionista” a “cientificista”. Nascido na França em 1947, Bruno Latour doutorou-se em Filosofia e Teologia na Universidade de Tours em 1975, mas logo migrou para a Antropologia. Sua primeira incursão etnográfica se debruçou sobre o processo de industrialização da Costa do Marfim. A partir de 1976, contudo, começa seu campo mais conhecido no setor de neuroendocrinologia de um dos maiores laboratórios bioquímicos do mundo, o Instituto Salk em San Diego. É dessa estada que nascem seus trabalhos mais famosos, bem como sua cooperação com o antropólogo inglês Steve Woolgar e seu diálogo com outros nomes então envolvidos nas chamadas “etnografias da ciência” como Karin Knor-Cetina e Michael Lynch, todos pesquisando laboratórios na Califórnia. Metodologicamente, Latour buscou aplicar aos cientistas naturais todos os tradicionais métodos e premissas etnográficas próprias da Antropologia e dos estudos de sociedades ditas tribais. Aparentemente simples, essa translação suscitou e continua suscitando controvérsias. Como o etnógrafo da ciência deveria proceder para compreender os sentidos articulados durante, por exemplo, um experimento científico? Para estudar um laboratório bioquímico, seria preciso tornar-se um bioquímico antes? Ou a
ênfase nas dimensões antropológicas da ciência recomendaria que se ignorasse as questões de método científicos em prol de uma análise exclusiva na dimensão “social” das práticas experimentais? Até a década 1970, as respostas a essas questões se distribuíam em dois polos. Para um grupo, o etnógrafo da ciência deveria levar tão a sério o discurso dos cientistas que precisaria antes compreender profundamente o próprio método científico. Um segundo grupo recusa essa assimilação mantendo seu foco na dimensão propriamente “humana” do fazer científico e na descrição das relações sociais para além dos experimentos como, por exemplo, o tipo de socialização dentro do laboratório, as conversas e fofocas trocadas pelos cientistas, a produção de suas redes de financiamento e apoio etc. Para Latour, contudo, essas duas abordagens perderiam de vista o que há de mais importante a ser observado em um laboratório: a imbricação entre a dimensão humana e não humana das coisas, e o papel da ciência na constituição das fronteiras entre elas. Noutros termos, é a partir dos laboratórios que se reconfigurariam as divisões aceitas entre o social e o natural, entre o mundo físico e mundo cultural, entre objetos e sujeitos. O foco do etnógrafo da ciência deveria ser então o processo de construção dessas fronteiras a partir, mas também para além dos laboratórios. Todo artefato científico (teorias, tecnologias, rotinas de análise etc.) seria um híbrido de natureza e cultura, de política e ciência. Os laboratórios seriam, por excelência, os espaços de purificação desses artefatos controversos, que depois migram para a sociedade e reconfiguram as relações sociais (e naturais) como um todo. Daí o fato de que a Antropologia do laboratório não se reduziria à observação de uma dessas duas dimensões subjetiva ou objetiva, mas sim na maneira como o próprio mundo moderno se constitui por essa cisão e a partir da mediação das tecnologias e teorias científicas. Há aqui mais que uma tentativa de desconstruir as tradicionais divisões entre natureza e sociedade. Quer também desfazer os focos ditos internalistas e externalistas dos estudos da ciência, pois é a própria divisão entre interno e externo que a vida
em laboratório inaugura. É central nessa concepção latourniana uma releitura de Leviathan and the Air- -Pump, obra de Steve Shaffer e Simon Shapin sobre a controvérsia entre Robert Boyle e Thomas Hobbes acerca da existência do vácuo ainda no século 18. Embora Hobbes seja hoje associado à filosofia política, e Boyle à ciência moderna, ambos não dividiam o político e o natural em suas teorias, o que se refletia em suas opiniões. Enquanto o primeiro buscava na lógica matemática os argumentos morais que negariam a existência do vácuo, Boyle optou por produzir uma demonstração semipública de sua bomba de ar. A despeito de múltiplos fracassos e erros de funcionamento, a bomba de ar precisou “funcionar” apenas uma vez para convencer juízes notórios de que o vácuo existia. A vitória de Boyle sobre Hobbes remodelou a divisão mesma entre o natural e o político e, mais importante ainda, legitimou a ideia de que experimentos deveriam ocorrer em espaços fechados e com ajuda de maquinários complexos, o que hoje consideramos um laboratório. A derrota de Hobbes implicou, por isso, uma reconfiguração da prática considerada científica e, especialmente, da divisão entre o político e natural na modernidade. É por tudo isso que o etnógrafo da ciência deve, segundo Latour, desconfiar da fala dos cientistas: ela busca apenas naturalizar as distinções entre o político e o natural, escamoteando as dimensões sociais dos artefatos científicos. Nos seus termos: “se perguntamos a um pesquisador o que ele faz, quem nos responde? Na maior parte das vezes é a epistemologia, é a filosofia da ciência que sopra as respostas”. Contra isso, o diferencial da Antropologia da Ciência seria o de tencionar os esforços científicos de naturalização da sociedade, penetrando os laboratórios e na disputa pela politização da natureza. Para tal, humanos e não humanos, cientistas e seus artefatos, todos deveriam ser tratados de modo simétrico, pois são igualmente capazes de agência. Um remédio, por exemplo, só pode “funcionar” se isolarmos toda sua resistência às demandas humanas sobre ele. Seu advento depende de uma complexa rede sociotécnica, que mistura actantes de todos os tipos. Nessa Teoria
do Ator em Rede, o estatuto de objeto ou sujeito é ele próprio produzido pelos envolvidos. Não é gratuito, portanto, que Latour seja considerado um dos maiores expoentes do que se convencionou chamar de “Guerras da Ciência”, ou seja, do conjunto de polêmicas acadêmicas e públicas sobre o estatuto epistemologicamente privilegiado do discurso científico. Uma dessas controvérsias surgiu em 1996, quando o físico Alan Sokal publicou na revista Social Text um artigo em que defendia a tese segundo a qual a Física Quântica seria uma disciplina tão dependente da hermenêutica quanto a Literatura ou a História, elogiando a virada pós-moderna dos estudos de ciência. Apesar de aclamado pelo periódico, o artigo era uma farsa, fruto da vontade de Sokal em denunciar a falta de critérios acadêmicos dos periódicos pós-modernos e o completo nonsense da visão hegemônica nos estudos da ciência. Embora Latour não tenha participado diretamente da publicação, ele se manifestou poucos meses depois, tendo seu texto debatido pelo próprio Sokal. Mais importantes que as reações de Latour a Sokal são as contendas particularmente ferozes em torno da ciência na década de 1990. Hoje em dia, porém, elas reemergem sob outros enquadramentos. Movimentos anticientíficos se fortaleceram politicamente em todo o globo, ao mesmo tempo que um cataclisma climático se tornou iminente e que uma pandemia assolou o planeta. Nesse novo contexto, não foram raras as vezes em que Latour foi atacado como “filósofo da pós-verdade”, fonte indireta das visões negacionistas da ciência hoje esposadas pela direita política. Ele próprio vem avaliando essas acusações em sucessivas conferências e entrevistas. Apesar de reconhecer certa inconsequência na retórica com que julgava a ciência nos seus primeiros livros, Latour tem enfatizado que o estado de coisas atual reflete em grande medida as frustrações da sociedade em relação às promessas não cumpridas pelos cientistas. O ímpeto modernizante de um Louis Pasteur ou Marie Curie, sonhadores de um mundo sem doenças, haveria cedido à sanha ilimitada da indústria farmacêutica, por exemplo. Por isso, “antes de acusar o
‘povo’ de não mais acreditar em nada nem ninguém, é preciso considerar o efeito dessa imensa traição de confiança: ele foi abandonado num descampado”, diz o francês. Nesse contexto de polarizações sobre o estatuto mesmo do real, onde podemos encontrar um terreno comum para aterrarmos? Outrora receoso em relação à fala dos cientistas, Latour agora se coloca no outro lado do front, numa guerra em defesa da ciência, agora focada nas condições sociais e políticas que permitam a construção de um mundo comum: “para começarmos a descrever de modo objetivo, racional, eficaz a situação terrestre, representando-a com algum realismo, precisamos de todas as ciências, porém posicionadas de outro modo”. Não fica claro, porém, se essa nova mirada pró-ciência atualiza as visões anteriores de Latour frente a um novo contexto ou se há uma retratação de suas premissas mais fundamentais. Embora afirme expressamente a urgência de uma nova postura frente à ciência, poucos são os textos em que ele se dedica a debater os impactos dessa virada em sua abordagem teórica original. Independente dessas polêmicas, no entanto, Bruno Latour permanece plástico perante as clivagens teóricas dominantes nas ciências sociais e uma referência incontornável dos Estudos da Tecnologia e da Ciência. LEIA MAIS
LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 192 p. LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 1998. LATOUR, B. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Tradução: Marcela Vieira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. 160 p. SHAPIN, S.; SCHAFFER, S. Leviathan and the Air--Pump: Hobbes,
Boyle, and the experimental life. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1985. CONFIRA
CASO AGAMBEN GUERRAS DA CIÊNCIA NEGACIONISMO CLIMÁTICO
*Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
CASO AGAMBEN Raphael Nascimento *
E
m 30 de janeiro de 2020, o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte confirma a presença de dois turistas chineses infectados pelo vírus Sars-CoV-2. Em pouco tempo, o número de contágios domésticos cresce significativamente na Itália, até que o primeiro óbito é registrado em 21 de fevereiro. Nas semanas seguintes, o país se torna o epicentro europeu da então epidemia da covid-19. Em consequência, políticos e autoridades sanitárias anunciam uma série de medidas restritivas. Os italianos foram proibidos de se deslocar entre municípios, de realizar manifestações e tiveram os serviços educacionais suspensos. Tratava-se de diminuir as taxas de contaminações por meio de uma quarentena severa, defendida pela maior parte da comunidade científica. No dia 26 de fevereiro de 2020, o filósofo italiano Giorgio Agamben inicia uma série de publicações na Una Voce, sua coluna no site da editora Quodlibet. Tratando das medidas emergenciais acionadas na Itália e em outros países, ele insistiu em três teses interrelacionadas. Em primeiro lugar, que a pandemia é uma “invenção”. Em seguida, que as medidas emergenciais são desdobramentos do “estado de exceção” normalizado no mundo contemporâneo. E, no mesmo sentido, que as restrições durante o período pandêmico representam a limitação dos indivíduos à mera sobrevivência, cuja consequência é o declínio da sua participação autônoma na vida política. Nas três teses, a pandemia é apresentada como mero pretexto para o exercício de formas “totalitárias” de governo. Giorgio Agamben se notabilizou nas últimas décadas pela sua obra de filosofia política. Suas reflexões sobre a vinculação entre lei, norma e violência na constituição do Estado moderno representam um ponto de inflexão no pensamento político contemporâneo. O caráter heterodoxo dessas incursões filosóficas, assim como de seus posicionamentos na esfera pública, o fez reconhecido por
muitos como um pensador vinculado a certo espectro da esquerda. Por essa razão, seu diagnóstico sobre a pandemia da covid-19 ensejou um intenso debate. Para alguns, o objetivo de Agamben era evidenciar como as medidas emergenciais representavam uma renúncia à liberdade. Ainda que outros intelectuais alertassem sobre o mesmo ponto, chamava-lhes a atenção como a negação da gravidade da pandemia, dos dados sobre as mortes e das medidas sugeridas por cientistas, aproximava o filósofo do negacionismo científico propalado por militantes e políticos da extrema direita. O debate foi iniciado com a publicação do artigo A invenção da pandemia, no qual as medidas de distanciamento social são adjetivadas como frenéticas, irracionais e totalmente imotivadas. As afirmações de Agamben se apoiavam nos dados do Consiglio Nazionalle delle Ricerche, órgão vinculado ao Ministério da Educação italiano, segundo os quais a maioria dos infectados apresentavam sintomas leves ou moderados. Ainda que o filósofo subestimasse predições científicas existentes já naquele momento, esperava-se que revisse suas posições com o agravamento da pandemia — quando o exército italiano precisou utilizar seus caminhões para transportar as centenas de mortos em Bérgamo. No entanto, ao contrário, ele continuou acusando de irracionais as medidas de distanciamento social e apontando a suposta ausência de critérios científicos na divulgação dos dados. No artigo Nova reflexão, de 20 de abril de 2020, acusou a imprensa de não especificar as causas das mortes e de não comparar o contexto noticiado com o dos anos anteriores. A semelhança entre essas declarações e as de políticos como Donald Trump foi reforçada quando Agamben prosseguiu chamando a pandemia de epidemia, mesmo após a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciar o caráter global do acontecimento. A tentativa de deslegitimar o discurso científico ganhou mais força após A medicina como religião, texto de 2 de maio de 2020. Nele, Agamben afirmou que medicina contemporânea está fundada no binarismo cristão entre o mal, representado pela doença, e Deus, simbolizado como cura. Tal fundamentação religiosa motivaria
“perseguições” aos críticos do distanciamento social, como ele. Perseguições que seriam comparáveis às da Inquisição, quando os hereges foram castigados em nome de Deus. Ironicamente, essa acusação redunda do binarismo sobre o qual Agamben desenvolve suas ideias. Por um lado, a ciência é sempre apresentada por ele como como um saber colonizador, por outro, a sua filosofia é sempre um meio de libertação. Influenciada pelas ideias de Michel Foucault, a suspeita sobre a ciência é uma constante em muitos dos seus livros. Mas enquanto o pensador francês produziu uma reflexão imanente ao discurso científico e às suas condições de possibilidade, Agamben preferiu distanciar-se do seu objeto de reflexão, a pandemia, substituindo a crítica da ciência pela sua negação. Com o rechaço das explicações científicas, o estado de exceção no qual o filósofo acredita vivermos foi apontado como a causa da “invenção” científico-midiática da pandemia. Diferente de algumas das principais tradições filosóficas e jurídicas, a exceção é por ele entendida como um elemento fundante das democracias liberais. Não por acaso, parte da sua obra mais recente é, entre outras coisas, uma tentativa de evidenciar como o estado de exceção subjaz à formalidade jurídico-constitucional dos estados de direito. Mas se tais reflexões foram construídas por meio de uma profunda investigação filosófica, o seu uso no enquadramento dos efeitos sociopolíticos do coronavírus foi marcado pelo conspiracionismo. Agamben defendeu que a suposta invenção de uma pandemia inexistente foi um mecanismo excepcional para suprimir a liberdade dos indivíduos. A debilidade dessa premissa repousa na desconsideração da hipótese de que as medidas emergenciais foram acionadas para conter a propagação do vírus e, como consequência, diminuir o número de mortes. Se aceitássemos a posição de Agamben, acreditaríamos que as orientações da comunidade científica serviram apenas à perpetuação de práticas “totalitárias”. Há um paralelo entre essa argumentação e aquela sobre os acontecimentos do 11 de setembro de 2001. Na época, o filósofo
afirmou que o medo gerado pelos ataques ao World Trade Center permitiu um conjunto de medidas excepcionais, como o controle de deslocamentos entre países e o recrudescimento dos policiamentos nacionais e transnacionais. Para ele, atualmente o coronavírus substituiu o terrorismo como pretexto para as práticas de exceção, visto que os saberes militares acionados no pós-11 de setembro foram complementados pelas ações biossecuritárias decretadas durante a pandemia. Inspirado pelas reflexões do historiador Patrick Zylberman, Agamben argumentou que a construção de um cenário de catástrofe sanitária propiciou a cessação absoluta de todas as atividades políticas. Como todas as asserções encontradas nos textos da Una Voce, a tese da biossegurança tem como premissa a suposta ausência de verdade factual dos dados sobre a pandemia. A sua falsidade deriva não apenas desse caráter conspiratório, mas também da tentativa de generalizar o contexto europeu para outras realidades. Ainda que o estado de exceção pandêmico fosse evidenciado na Itália, ele não serviria como enquadramento universal. O caso do Brasil, por exemplo, pôs por terra as afirmações de Agamben sobre a docilidade dos indivíduos no uso de máscaras e a tirania dos governantes que decretaram quarentenas e lockdowns. Mesmo prescindindo da sofisticação retórica do filósofo, Jair Bolsonaro também atacou as medidas de distanciamento social, se opôs à decretação de quarentenas e acusou imprensa e universidades de inventar dados. Em artigo de 10 de julho de 2020, Agamben também sugeriu que as medidas restritivas foram premeditadas. Como exemplo, referiuse ao Event 201, uma simulação realizada pelo Johns Hopkins Center for Health Security para discutir ações públicas e privadas em situações de catástrofe sanitária. O evento foi apoiado pelo Fórum Econômico Mundial e pela Bill & Melinda Gates Foundation, o que foi suficiente para o filósofo insinuar uma espécie de complô internacional para a perpetuação do estado de exceção. Dessa vez, o caráter contingente dos acontecimentos históricos foi substituído pela revelação dos supostos cálculos políticos de agentes e
instituições que ambicionam suspender qualquer direito. Esses argumentos apresentados na Una Voce podem ser considerados uma denúncia do “capitalismo comunista” no qual Agamben acredita vivermos. Segundo o texto de 15 de dezembro de 2020, estaríamos assistindo à conjugação entre um intenso desenvolvimento produtivo aliado a uma lógica totalitária de controle e vigilância. Longe de ser um acontecimento episódico, a adoção de medidas emergenciais durante a pandemia seria parte dos mecanismos de perpetuação de um regime que uniria os aspectos mais desumanos do capitalismo ao lado mais atroz do comunismo estadista. Talvez por isso Agamben não hesite em chamar os defensores do distanciamento social de nazistas, fascistas e de compará-los a figuras como Adolf Eichmann, condenado pela participação no Holocausto. Mas, poderíamos nos perguntar, qual tem sido o papel das populações nesse processo? Seriam elas escravas de uma pandemia inventada por uma alegada conspiração político-científicomidiática internacional? Tratar-se-ia apenas de uma farsa pandêmica suprimindo qualquer resquício de autonomia política? Diante dessas inquirições, Agamben insistiria que a pandemia limitou os indivíduos à mera existência biológica, retirando quaisquer dimensões políticas e afetivas das suas práticas. Esqueceu-se, porém, que movimentos como o Black Lives Matter, nos Estados Unidos, e as manifestações pelo aborto legal na Argentina ocorreram exatamente durante a pandemia. Mesmo as revoltas antivacina, cujas posturas guardam alguma semelhança com as suas, refutam seu argumento da docilidade das populações. As intervenções de Agamben foram uma tentativa de revelar o caráter arbitrário dos discursos e práticas associados à pandemia da covid-19. Tratava-se de evidenciar como um conjunto de relações políticas produziram formas de governo baseadas em saberes político-sanitários. Mas o negacionismo científico do filósofo transformou a reflexão sobre o fenômeno na reiteração de teorias conspiratórias cujos desdobramentos foram deletérios em muitos
países. A aventura de Giorgio Agamben mostrou os limites de uma filosofia política que confunde a crítica da ciência com a sua negação. LEIA MAIS
AGAMBEN, G. Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia. Tradução: Isabella Marcatti Luisa Rabolini. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020. 46 p. (Pandemia Capital). CHOLLET, A. Réponse à Agamben sur l’état d’exception. In: CHOLLET, A. Blog du Centre Walras Pareto. Lausanne, 22 de abril de 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. de 2021. FRATESCHI, Y. Agamben sendo Agamben: o filósofo e a invenção da pandemia. In: RENZO, A. Blog da Boitempo. São Paulo, 12 de maio de 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. de 2021. CONFIRA
BRUNO LATOUR FAKE NEWS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
CHINA Marco Cepik *
D
esde o início da pandemia causada pelo covid-19, a palavra China (中国) é usada com mais frequência no Brasil. Pesquisa liderada pelo professor Wladimir Gramacho (CPS-UnB) no último quadrimestre de 2020, utilizando técnica de painel de dados on-line com uma amostra aleatória de 2.771 brasileiros, encontrou que 78,1% dos participantes já manifestavam a intenção de se vacinar. Quando a China era mencionada como país de origem da vacina, tal intenção era reduzida em 16,4%. Entre apoiadores do presidente Bolsonaro, 27% declararam muita chance de se vacinar se o imunizante tivesse relação com a China, enquanto 54% dos que se opunham a Bolsonaro declararam que se vacinariam mesmo que o imunizante fosse chinês. Quando dizem vacina, vírus ou China, o que as pessoas imaginam ou sabem? Começo, pois, explicitando que, neste texto, falo do país cujo nome oficial é República Popular da China ( 中 华 人 民 共 和 国 ). Segundo o censo demográfico de 2020, lá realizado, a população da China é de 1.411.778.724 pessoas, incluindo 658 mil na Região Administrativa Especial de Macau e 7,5 milhões na Região Administrativa Especial de Hong Kong. Inclui ainda 23,5 milhões de chineses de Taiwan, que a grande maioria dos países, incluindo os Estados Unidos e o Brasil, reconhecem ser uma província da RPC a ser reunificada por via pacífica sob a fórmula “um país, dois sistemas”. Por brevidade, não comentarei sobre os chineses da diáspora (海外中国人), os mais de 50 milhões nascidos na RPC e seus descendentes que vivem em outros países, incluindo 9,3 milhões na Tailândia, 6,9 milhões na Malásia, 4,1 milhões em Cingapura, 2,8 milhões na Indonésia e mais de 5 milhões nos Estados Unidos e Canadá. No Brasil ainda são veiculadas poucas notícias consistentes sobre economia, tecnologia e capacidades militares da China. Menos
ainda sobre a sociedade e o sistema político. É como se a economia e a tecnologia funcionassem apesar dos chineses e de suas instituições. Para problematizar tal negacionismo, utilizarei como mote três postagens de perfis brasileiros na plataforma Twitter. Desconheço os autores e não sei se suas opiniões são representativas. Começo por algo que eu já havia escutado antes, mas nunca como metonímia para o tédio. No dia 25 de julho de 2020, @CarlaAssis22 escreveu no Twitter: “Meus dias tão parecendo chinês tudo igual” [sic]. Ora, como assim chineses todos iguais? Afinal, entre quaisquer dois indivíduos da espécie homo sapiens existe uma variação genética típica de 20 milhões de pares de bases (de um total de mais de três bilhões que formam nossos 23 cromossomos). A plasticidade fenotípica também é expressiva, bastando alguns segundos para identificar muitas diferenças entre duas pessoas chinesas quaisquer, ou entre duas brasileiras. Por outro lado, temos evidências cada vez mais robustas sobre a ancestralidade comum dos sapiens que surgiram na África há 200 ou 300 mil anos e se dispersaram pelo planeta desde 70 mil anos atrás. Portanto, além de entender as variações estatísticas de haplogrupos de DNA mitocondrial associadas com nossas andanças pelo planeta, conhecer a história sociocultural e política de diferentes populações ajudaria a superar o tédio e o preconceito. No caso da China, a história política registrada começa por volta de 2070 antes da era atual (BCE), quando a primeira dinastia préimperial foi estabelecida por Yu, o Grande. Fiquemos então com um marco mais recente, a fundação da RPC em 1º de outubro de 1949. Nas décadas desde então, a sociedade chinesa realmente não pode ser caracterizada como estática. No primeiro censo, realizado em 1953, havia 582,6 milhões de chineses (22% da população mundial à época), que se tornaram um bilhão em 1982 e 1,4 bilhão em 2020 (17,9% da população mundial). Deste total, 60,6% vivem hoje em áreas urbanas, um aumento enorme comparado aos 17%, 9% de 1978. O número de cidades com mais de um milhão de habitantes na China já é maior do que a soma das cidades de mesmo porte
existentes na América do Norte e na Europa. As infraestruturas de transporte urbano e ao largo de quase 9,6 milhões de km2 do território nacional, além das conexões terrestres, marítimas e aéreas com o resto do mundo, evidenciam a profunda e rápida transformação do país e, portanto, de sua gente. Um enorme desafio social que a China enfrentou e venceu recentemente foi eliminar a pobreza extrema. O objetivo de construir uma sociedade “moderadamente próspera” ( 小 康 社 会 ) foi estabelecido em 1978, no marco das Quatro Modernizações impulsionadas pelo governo Deng Xiaoping. Em 2012, ainda havia 98,9 milhões de pessoas extremamente pobres vivendo em áreas rurais. Em 2020, todas haviam superado essa condição, conforme critérios tais como renda disponível (não comprometida com a compra de alimentos), anos de escolaridade, saúde básica, aposentadoria, saneamento e habitações de ao menos 48 m2. Há conflitos na sociedade chinesa, derivados de clivagens reconhecíveis em qualquer sociedade contemporânea, geracionais, de gênero, entre regiões, grupos de interesse e visões de mundo. As desigualdades de renda e riqueza, por exemplo, não são tão acentuadas como na África do Sul, Brasil ou Estados Unidos, mas existem. Em março de 2021, segundo o Hurun Report, havia 1.058 bilionários na China (mais do que a soma dos bilionários da Índia e dos Estados Unidos), os quais controlavam uma riqueza combinada de 4,5 trilhões de dólares. Definitivamente, os chineses não são todos iguais. Vale perguntar, então, o que os une enquanto “comunidade política”? Consulto mais uma vez a opinião de brasileiros no Twitter. No dia 9 de outubro de 2020, @Rafael Fontana escreveu: “Há 14 anos a saúde mundial está nas mãos do governo chinês, (...) uma ditadura que já matou mais de 60 milhões do seu próprio povo”. Complementando, no dia 12 de junho de 2021, @MatheusSevero2 escreveu: “Para isto o PCC adota o trabalho escravo. Lá na China se trabalha até por um prato de comida”. Hipérboles que fabulam uma China tirânica, chã, impondo seu comunismo miserável ao mundo. Na realidade, como escreveu Guimarães Rosa, “quem mói
no aspro não fantaseia”. No Capítulo I da Constituição chinesa de 1982 (emendas em 2004 e 2018), princípios gerais são explicitados. Ali se lê, por exemplo, que a RPC é uma ditadura democrática liderada pela classe trabalhadora, baseada na aliança entre o proletariado e os camponeses. Que a liderança do Partido Comunista (中国共产党) é o traço definidor do socialismo com características chinesas. Que todo o poder pertence ao povo, que o exerce por meio do Congresso Nacional do Povo (全国人民代表大会). E que o país é uma república multiétnica, que proíbe a discriminação e a opressão contra minorias e contra outros países. Princípios a um só tempo semelhantes e distintos do liberalismo, igualmente herdeiros do Humanismo e do Iluminismo, mesclados com o fundo cultural confuciano e taoísta que distingue o marxismo chinês. Como ocorre na França ou nos Estados Unidos, os 143 artigos da Constituição chinesa expressam aspirações, estabelecem parâmetros e se desdobram em estruturas políticas e administrativas complexas e adaptativas, as quais podem ser mais ou menos consistentes com as ambições constitucionais. Superar o negacionismo a respeito da China inclui manter atitude crítica em relação ao seu sistema político. A mesma que devemos ter em relação à Austrália ou qualquer outro país. O ponto crucial é que existe razoável consenso científico acerca do nexo causal entre resultados econômicos e tecnológicos e instituições e dinâmicas sociopolíticas. E isto vale para a China também. Bastam três exemplos. O Partido Comunista da China foi fundado em 1921. Cem anos depois, possui 95,1 milhões de membros (6,74% da população da RPC). Em 2014, mais de 22 milhões de chineses solicitaram ingressar no partido, mas apenas dois milhões foram aceitos. Para os que ingressam, ir da base ao topo é um processo longo e exigente. Os sete membros do Comitê Permanente do Politburo demoram décadas para ascender por meio de seleção e eleição, desde os comitês partidários locais em vilas, cidades e empresas
até responsabilidades partidárias e governamentais provinciais e nacionais. E o PCC não é o maior partido político do mundo. Na Índia, o partido hindu de direita Bharatiya Janata (BJP), fundado em 1980, possuía 180 milhões de filiados em 2019 (13,3% da população indiana). Nos Estados Unidos, em 2020, o Partido Republicano tinha 35 milhões de eleitores registrados (10,6% da população americana). A legitimidade do PCC decorre do seu papel histórico na emancipação da China, do seu desempenho na promoção do desenvolvimento do país, bem como da capacidade de combinar coerção, autoridade e convencimento de forma efetiva, flexível e perseverante. Embora mais de 90% da população seja etnicamente Han (汉族), a definição política de nacionalidade chinesa ( 中 华 民 族 ) é multiétnica. Dentre os 56 grupos reconhecidos, os cinco mais populosos em 2010 eram os Zhuang (16,9 milhões), os Hui (10,5 milhões), os Manchú (10,3 milhões) e os Uigures (10 milhões). Isso se reflete institucionalmente. Por exemplo, no Congresso Nacional do Povo, formado em 2021 por 2.980 delegados eleitos (dos quais 2.095 pertencem ao Partido Comunista). Em conjunto com os 175 grupos representados na Conferência Consultiva dos Povos da China (中国人民政治协商会议全国委员会), a sessão anual do poder legislativo e as comissões permanentes têm papel relevante na estabilização e na definição de objetivos coletivos (vide o 14º Plano Quinquenal 2021-2025). O poder executivo central é organizado a partir do Conselho de Estado, liderado pelo presidente da República e pelo primeiro-ministro, desdobrando-se em ministérios, agências especializadas e empresas estatais nas diversas áreas de políticas públicas. Além dos órgãos do governo central, a China conta com mais cinco níveis de governança administrativa. O primeiro é o nível provincial, formado por 22 províncias, cinco regiões autônomas (Guangxi, Mongólia Interior, Ningxia, Tibete e Xinjiang), as duas regiões administrativas especiais de Hong Kong e Macau, além das quatro maiores municipalidades: Chongqing (28,8 milhões), Xangai (24,1 milhões), Pequim (21,7 milhões) e Tianjin (12,9 milhões). O
segundo nível é formado por 334 prefeituras (áreas maiores do que cidades e menores do que províncias), de quatro tipos distintos. O terceiro nível desdobra-se em 2.851 cantões com oito tipos diferentes de distritos. Abaixo, o quarto nível administrativo é formado por 39.864 subdistritos de sete tipos diferentes, enquanto o quinto e mais básico nível de relação entre a sociedade e o estado é formado por 662.393 comitês residenciais e vilarejos. Note-se que a China, uma república unitária, é mais descentralizada em termos fiscais e administrativos do que a República Federativa do Brasil. Em 2021, a distância entre a renda per capita nominal da China (11.819 dólares) e do Brasil (7.010 dólares) já seria motivo para rever preconceitos. No dia 9 de julho, a China havia aplicado 1,31 bilhão de doses de vacinas em seus cidadãos, enquanto o Brasil havia aplicado 95,6 milhões de doses. O governo central da China realizou gastos com Ciência e Tecnologia em 2020 na ordem de 378 bilhões de dólares. No Brasil, o orçamento executado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação em 2020 foi de 1,35 bilhão de dólares. Precisamos de menos negacionismo e mais conhecimento sobre a China, para o bem do Brasil. LEIA MAIS
SANJUAN, T.; BENOIT-GUYOD, M. Atlas de la Chine: Une grande puissance sous tension. 3 ed. Paris: Autremont, 2015. 1 atlas monde (98 p.). YU, J.; GUO, S. (Orgs.). The Palgrave Handbook of Local Governments in Contemporary China. Singapura: Springer Singapore/Palgrave Macmillan, 2019. 755 p. WU, W.; FRAZIER, M. (Eds.). The Sage Handbook of Contemporary China. London: Sage Publications, 2018. v. 1-2. CONFIRA
NEGACIONISMO DEPENDENTE
PANDEMIA SINDEMIA * Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
CINEMA Helvécio Ratton *
O incêndio da Cinemateca Brasileira, em chamas em 29 de julho de
2021, revelou, de forma contundente, a política de destruição do cinema brasileiro promovida pelo governo Bolsonaro. Muito além de um acidente causado por um problema no ar-condicionado, o incêndio que destruiu toneladas de documentos e cópias de filmes históricos foi visto por cineastas e ex-funcionários da Cinemateca como uma tragédia anunciada, resultado do abandono e descaso não somente com o passado de nosso audiovisual, mas também com seu presente e futuro. Para compreender o que há por trás dessa política negacionista, que despreza o valor simbólico e econômico do cinema nacional, e saber quem são seus beneficiários, é importante lembrar outros momentos da difícil relação entre Estado e cinema no Brasil. Nosso mercado de cinema, desde os primórdios no início do século 20, foi amplamente dominado pelo cinema produzido na Europa e Estados Unidos e, anos mais tarde, ocupado de forma exclusiva pelo cinema norte-americano. As primeiras ações de proteção ao cinema produzido no país surgiram nos anos 1930, no governo Vargas, quando se esboçou uma política para o setor e foi criada a cota de tela, que determinava a obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais nas salas de cinema. Essa política protecionista teve continuidade no governo , quando se criou a Comissão Federal de Cinema, em 1956, e se estabeleceu a cota de tela em 42 dias por ano. Durante o regime militar, foram criadas instituições importantes para o cinema brasileiro, como o Instituto Nacional do Cinema (INC), em 1966, e mais tarde a Embrafilme — Empresa Brasileira de Filmes, em 1969, que viria a absorver o INC. Apesar da relação ambígua com o cinema — durante a ditadura havia censura, que cortava trechos e impedia o lançamento de alguns filmes —, os
militares no poder compreendiam a importância estratégica da indústria audiovisual. A Embrafilme não somente fomentava a produção de filmes, como também atuava em sua distribuição. Seus recursos vinham da própria atividade, do imposto sobre filmes estrangeiros criado com base na lei de remessa de lucros. No começo dos anos 1970, os filmes brasileiros atraiam, por ano, 13,8% do público que frequentava as salas de cinema do país. No final daqueles anos, como resultado de uma política agressiva de ocupação do mercado implantada pela Embrafilme, os filmes brasileiros chegaram a arrecadar quase 50% da receita anual do mercado cinematográfico. Preocupados com a crescente perda de espaço no mercado brasileiro, os distribuidores estrangeiros de filmes, numa ação orquestrada, desencadearam uma verdadeira batalha jurídica contra os mecanismos que regulavam nosso mercado — a cota de tela de 32% para os filmes nacionais e o ingresso padronizado, que permitia a fiscalização das bilheterias. O poder público foi bombardeado por sucessivas liminares e mandatos de segurança que minaram progressivamente sua capacidade de regular o mercado, que se transformou num espaço selvagem, onde até mesmo as estatísticas deixaram de ser confiáveis, perdendo-se a noção precisa de dados elementares, como número de espectadores e volume de dinheiro movimentado. Essa situação chegou ao seu auge em 1990, no governo Collor, que decidiu extinguir os órgãos estatais de fomento e controle — Embrafilme e Concine — e acabou com qualquer tipo de estímulo ao cinema brasileiro. Esse desmonte institucional foi sustentado por um discurso em nome da liberdade de mercado e da livre concorrência. O que assistimos a partir daí foi a produção de cinema no Brasil, por volta de 100 filmes por ano até aquele momento, cair a zero, gerando desemprego no setor e o sucateamento do pouco que havia de infraestrutura técnica. Foram três anos sem produzir ou lançar um único filme brasileiro no mercado. Com facilidades para importação de filmes jamais vistas em qualquer outra atividade econômica, os distribuidores norte-americanos comemoraram a
ocupação plena do mercado brasileiro de cinema. Durante o governo Itamar Franco, em 1993, no bojo de uma política de revalorização da cultura brasileira, criou-se uma importante lei de estímulo ao cinema, a lei do Audiovisual. Esta lei permite às empresas investirem em filmes brasileiros uma pequena parcela, 3%, do imposto de renda devido. O resultado veio rápido: entre 1994 e 98, foram produzidos cerca de 80 filmes. Uma produção pequena, mas significativa, marcada pela diversidade e pelo aumento do nível técnico dos filmes, que deixou para trás deficiências crônicas, por exemplo, no som, hoje de ótima qualidade. Esse período ficou conhecido como a Retomada, verdadeiro renascimento do cinema brasileiro. A partir desse momento, inicia-se a construção de uma política audiovisual, com a participação ativa de profissionais das diversas áreas do cinema, que será ampliada e consolidada nos governos seguintes. No governo FHC, em 2001, foi criada a Agência Nacional do Cinema (Ancine), que passou a concentrar as funções de fomento e regulação. Para elaborar a política estratégica da indústria audiovisual brasileira, foi criado o Conselho Superior de Cinema, composto por representantes do setor e membros do governo. Em paralelo à criação da Ancine, buscou-se um mecanismo para financiar a produção de forma autossustentada e sem pesar no orçamento do país. O caminho encontrado foi a criação de uma taxa sobre os produtos audiovisuais exibidos nas salas de cinema, TVs e internet, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica (Condecine). A Condecine passou a ser a fonte principal de recursos para o fomento do cinema brasileiro independente e seu alcance foi ampliado nos governos Lula e Dilma, passando a incluir as teles, empresas de telecomunicação que distribuem conteúdos audiovisuais. Em 2006, foi criado o Fundo Setorial do Audiovisual, voltado para o fomento do audiovisual e abastecido com recursos da Condecine. Outra medida importante foi a regulação do mercado de TV por assinatura, em 2011, com a criação de cotas de conteúdo nacional, o que abriu um novo e promissor mercado para os produtores independentes. O passo
seguinte, que já vinha sendo discutido na Ancine, seria a regulação do streaming, com a criação da Condecine VOD (vídeo sob demanda), e da cota de tela de produtos nacionais nas plataformas. Como resultado da política implementada ao longo desses anos, a indústria audiovisual brasileira se consolidou como o setor mais estruturado da chamada economia criativa e alcançou dimensão comparável às indústrias têxtil e farmacêutica, sendo responsável por 1,67% do PIB brasileiro, com faturamento de 27 bilhões de reais por ano e gerando mais de 300 mil empregos diretos e indiretos em todo o país. No ano de 2018, foram lançados 185 filmes brasileiros em todos os segmentos do mercado, com 14,8% do público das salas de cinema. Além da presença crescente em nosso mercado, os filmes brasileiros vêm sendo premiados nos mais importantes festivais de cinema e conquistando novos mercados no exterior. Na contramão dessa onda promissora, já no governo Temer foram adotadas medidas que fragilizaram a indústria audiovisual brasileira e ameaçam a existência do cinema independente no Brasil. Foi o início do desmonte das instituições audiovisuais, que teve continuidade no governo seguinte. Logo ao assumir o governo, o presidente Bolsonaro ameaça privatizar ou extinguir a Ancine caso não possa usar filtros nos projetos da agência. Na sequência, a nova diretoria da Ancine decide cancelar saldos de chamadas públicas dos últimos quatro anos, anulando compromissos financeiros assumidos com produtores nacionais. A Agência Nacional do Cinema é esvaziada e quase totalmente paralisada nos meses seguintes. Além de não repassar recursos dos editais de produção dos anos anteriores, nenhum novo edital foi lançado pela Ancine. No início de 2019, Bolsonaro vetou a prorrogação da Lei do Audiovisual, impedindo a captação de recursos para projetos cinematográficos. O veto foi derrubado pelo Congresso, mas a inexistência da lei durante vários meses do ano causou sérios prejuízos para a produção. O Conselho Superior de Cinema, responsável por formular a política audiovisual do país, teve sua composição modificada no
final do governo Temer, passando a incluir representantes de plataformas norte-americanas de streaming, além de advogados dessas empresas e diretores de emissoras de TV. Nenhum representante da produção brasileira independente foi indicado e os interesses estrangeiros no audiovisual passaram a ser predominantes no conselho, onde não deveriam sequer estar presentes. A regulação do streaming, com a composição atual do Conselho Superior de Cinema, passou a ser algo improvável, ao contrário do que acontece na Europa, onde as plataformas são obrigadas a oferecer 30% de conteúdo local em seus catálogos. Em outro retrocesso anunciado, a lei que estabeleceu cotas para conteúdos nacionais nas TVs por assinatura está sendo questionada pela atual direção da Ancine, como se não fosse mais necessária. Aqui, é importante ressaltar que não existe país no mundo que tenha fortalecido sua indústria audiovisual sem utilizar a cota de tela nos vários segmentos de exibição. Nem mesmo os Estados Unidos, com uma indústria altamente consolidada, abandonou esse recurso. Por seus elevados custos de produção e seu grande alcance de mercado, cinema é arte e indústria, linguagem e economia. As possibilidades cada vez maiores de circulação de conteúdos audiovisuais nas salas de cinema, TVs, canais da internet ou plataformas de streaming, transformaram o audiovisual em uma indústria poderosa, movimentando bilhões de dólares em todo o mundo e empregando milhares de pessoas. Além de sua importância econômica, o audiovisual é um meio estratégico para afirmação da cultura de um país, não só no exterior como também internamente, por funcionar como espelho, como referência para sua população encontrar e admirar sua própria identidade. A política negacionista do governo Bolsonaro é mais um episódio que se repete na trajetória do cinema brasileiro. Como o Brasil, apesar do esforço realizado nos últimos anos, ainda não foi capaz de criar uma política de Estado para o audiovisual, o destino de nosso cinema depende sempre daqueles que estão de passagem pelo poder. Ao longo de sua história, o cinema brasileiro, como um
pêndulo, oscila entre ser considerado um instrumento importante na construção de uma nação moderna e independente, ou ser desprezado e sufocado por governos subservientes aos interesses norte-americanos. CONFIRA
CULTURA PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) QUEER
*Cineasta, dirigiu, entre outros filmes, A dança dos bonecos, Menino maluquinho, Amor & Cia, Batismo de sangue, O lodo
CLÍNICA MÉDICA Artur Perrusi *
C
omo a Clínica Médica pode ser capturada pelo negacionismo, negando, desta forma, a ciência? Como método, a Clínica Médica articula eventos (situação do paciente), sinais (manchas, deformidades...) e sintomas (dor, queixas...). Produz uma medicina classificatória, fundamentalmente sindrômica. Deduz, com certa dificuldade, diagnóstico e tratamento, mas não demonstra causa ou etiologia. Articula, com certo sucesso, as manifestações e percepções dos sentidos em particular, o visível, mas fracassa em revelar o oculto, especificamente, o invisível — a articulação entre o visível e o invisível começará a ser inteligível com a dita clínica anátomo-fisiológica. A racionalização das práticas terapêuticas, patrocinadas pela clínica, atinge assim seus limites. Embora seja exuberante em classificações de doença (nosologia), a clínica tem dificuldade em demonstrar uma etiologia — classifica as doenças, mas não demonstra suas causas. Entretanto, desde os tempos hipocratianos, a clínica é acoplada e mesmo deduzida de teorias etiológicas (teoria dos humores, por exemplo). Até o surgimento da medicina dita científica, uma grande diversidade de etiologias não tinha comprovação causal. E teoria etiológica sem comprovação causal impõe limites na apropriação racional de uma prática terapêutica, demarcando seu alcance no diagnóstico, no tratamento e na própria clínica. Na medicina contemporânea, a clínica pode se articular com teorias etiológicas sem comprovação causal ou ainda sem evidências científicas (ou, ainda, sem consenso científico), a exemplo da homeopatia, a acupuntura e mesmo a psicanálise. A medicina contemporânea não tem “vacina epistemológica” e sempre conviveu com terapias ineficazes, embasadas em crenças e estudos pseudocientíficos, que estão além e aquém da ciência médica. Tal argumento não significa que a clínica de uma medicina
classificatória, como a psiquiatria, por exemplo, não possa se articular com a ciência, mas sim que a comprovação científica de uma etiologia ultrapassa o momento da clínica. A etiologia de uma doença pode ser inferida do exame clínico, mas sua comprovação não é “clínica”, e sim demonstrada por outros procedimentos, principalmente científicos — na medicina baseada em evidências, a clínica é parte da investigação e não determinante do processo de comprovação. Somente depois da comprovação ou verificação, a clínica pode, de fato, articular os sintomas com tal ou qual causa (lesão, distúrbio metabólico, por exemplo) — a conexão entre o visível e o invisível é a posteriori. Na clínica, a etiologia é sempre hipótese, que precisa ser verificada por procedimento científicos. No caso, tal situação ocorre mesmo na clínica anátomo-fisiológica, uma clínica articulada à medicina científica. A fisiologia não verifica suas hipóteses apenas pelo exame clínico, e sim por procedimento que vicejam na medicina científica. Com suas comprovações, inclusive etiológicas, a fisiologia pode enfim ser utilizada no raciocínio clínico. Há um hiato entre Clínica Médica e ciência, o que nunca foi necessariamente prejudicial à medicina, mas pode representar, em certas situações históricas, uma porta de entrada para o negacionismo. Em suma, Clínica Médica não é ciência, logo, o seu agente mais comum, o médico, não é cientista. A medicina contemporânea é dispositivo complexo que articula diversos saberes; como tais, não são necessariamente científicos ou, pelo menos, não são (ainda) conhecimentos consolidados no cânone da medicina científica. A clínica, atualmente, tornou-se apenas momento do mundo profissional da saúde. Pode-se, inclusive, inferir que atualmente a clínica subordina-se à ciência (vista aqui como biomedicina) e à tecnologia — não se clinica sem o aval de exames complementares, por exemplo. Igualmente, a determinação normativa da clínica, seu momento justamente vocacional, daquela medicina na cabeceira do leito do paciente, da experiência in job do profissional e do humanismo
hipocratiano, foi atropelada pelo trem da biomedicina. A clínica não está propriamente em crise, mas sim sua independência. A autonomia do profissional médico, no caso, tinha e tem sua base ética (deontologia) na clínica como atributo típico do profissional médico e do campo da saúde em geral. A deontologia, embutida na clínica, não consegue evitar seu próprio esvaziamento ao ser “agenciada” pela medicina científica — em tese, uma medicina completamente “formalizada” pela razão científica pode gerar formas de ação completamente objetivadas e desprovidas, no limite, de conteúdo ético. Ora, o negacionismo aproveita a desvalorização da clínica, em relação ao aparato científico da medicina, para desconectá-la total ou parcialmente da ciência. E faz da clínica o mote da autonomia do profissional médico contra um alvo concreto: a dita medicina baseada em evidências. O negacionismo brasileiro da ocasião, que produziu a apologia da cloroquina, captura a Clínica Médica por duas portas de entrada: seu hiato com a ciência e seu instante vocacional, baseado na autonomia da medicina profissional. Defendemos que há conjunção aqui. O exemplo da posição do Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o dito “tratamento precoce” (um kit medicamentoso, com hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, sulfato de zinco, vitamina D e prednisolona) pode ser ilustrado em parecer do CFM que defendeu de pronto o respeito à autonomia do médico (leia-se, aqui, a independência da avaliação clínica) e a valorização da relação médico-paciente (raramente, uma relação simétrica) para aplicação do tratamento precoce. Ora, no caso aqui analisado, o negacionismo radicaliza a autonomia profissional ao fincá-la na independência da clínica. Muitos médicos manifestaram, principalmente no WhatsApp, a relação umbilical entre a experiência profissional in job e a experiência clínica. A experiência vivida do médico, no trabalho e na trajetória profissional, em relação à cloroquina, mesmo a partir de casos específicos, poderia ser generalizável. A argumentação vai ainda mais longe, pois a “experiência clínica” também corroboraria a terapia: a “cura” de pessoas com covid somente poderia ter uma
causa fundamental — o tratamento precoce. Foca-se, assim, em exemplos que confirmam o que se acredita, em detrimento de exemplos contrários. O que contraria é eliminado da argumentação pelo pré-conceito e pelo pré-julgamento: pessoas curadas, logo, “tratamento precoce”; pessoas que morreram, logo, fizeram algo errado. Nessa condição, a experiência clínica do profissional enquadra um campo cognitivo que define as fronteiras do raciocínio: o que vemos mais, o que mais aparece, o que se afina com nossas concepções, pois bem, são essas as visões corretas. Estamos diante, aqui, do que poderíamos chamar de viés cognitivo, utilizado e abusado pelo negacionismo, mas que não teria efeito se não fosse martelado por emoções ou sentimentos morais. São morais porque são interpelados e vêm juntos com a defesa de valores (a autonomia profissional, por exemplo). Podemos alegar que o negacionismo é “projetivo”, pois produz adesão emocional a crenças ou a valores. Constitui comprometimento emocional. Cria formas de engajamento (a Associação Médicos Pela Vida que o diga), vinculando a defesa clínica da cloroquina à política. No caso brasileiro, a defesa clínica da cloroquina só se torna inteligível quando os sentimentos morais, inscritos em determinados valores, principalmente reacionários, foram capturados pela política de extrema direita. A clínica, como esfera de representação e ação mais ou menos independente, sofreu enquadramento político. Tal política “capturou” o negacionismo científico e o usou para realização de seus interesses. Assim, nessa linha argumentativa, a tendência seria o médico bolsonarista fazer a defesa clínica do “tratamento precoce”, pois apareceria, nessa bolha profissional, com mais nitidez a fixação dogmática de crenças pela politização: negação de toda visão contrária e adoção de juízos coletivizados (crenças de grupo — se o líder político defende, nós defendemos). Por isso, a clínica do “tratamento precoce” apareceria num universo cognitivo limitado e isolado de informações. Haveria a tendência a normalizar falácias lógicas negando a alteridade, isto é, a produção científica abundante (logo, fatos consolidados) que nega a eficácia do “tratamento precoce” e contraria políticas públicas construídas a
partir de absurdos e ilações sem comprovações. A “politização da clínica”, geralmente, vem acompanhada de teorias conspiratórias (“as grandes revistas científicas de medicina não são mais confiáveis”, por exemplo), que têm função de coesão social e afetiva. Produz inimigos e se baseia, muitas vezes, num sentimento moral especial, que tem geralmente atribuição política, o ódio, esse grande purificador de angústias. Para isso acontecer, é preciso que a indução lógica, existente na clínica, torne-se numa indução mascarada pela retórica — a produção de exemplos clínicos particulares, induzindo o médico a inferir generalizações, seria exemplo de incitamento retórico. A função da retórica, aqui, seria a produção de adesão a argumentos falaciosos, como a defesa de uma clínica soberana e independente da. ciência. A clivagem aberta entre argumento e realidade sobrevive por meio de inferências, mesmo que continue logicamente inconciliável. Podemos pensar que a retórica, como técnica de persuasão, é uma estratégia cognitiva. São recursos discursivos que estão menos relacionados à constituição de diálogos, numa situação que envolva alguma ética do entendimento, do que a formas de manipulação. A força persuasiva de uma falácia lógica aumenta sua influência cognitiva justamente quando a argumentação é construída por relatos anedóticos. Quando um médico relata que vários dos seus pacientes melhoraram da covid com o uso da cloroquina, produz uma narrativa que escondeu a lógica e as evidências científicas nalgum canto do obscurantismo. Apesar do esforço de argumentação, a narrativa visa a manipulação. Mas o que visa a manipulação? Ora, induzir alguém a pensar de determinada forma. Temos aqui o paradoxo, típico da estratégia cognitiva do negacionismo, de articular manipulação e indução de pensamento, muitas vezes de forma emocional e baseada em valores. Seria conceber uma clínica contraposta a evidências científicas, logo, sem capacidade de reflexão, já com interditos e proibições na produção de conhecimento. Ou seja, seria o uso da clínica contra ela mesma, em que o exame clínico não teria mais referência a não ser as experiências profissionais dos médicos.
Aqui talvez estejamos diante do negacionismo já como prática de poder, realizando o que faz todo autoritarismo que se preze, ao utilizar a retórica como “técnica de persuasão”: o abuso de operações lógicas que transformam a proposição verdadeira (a cloroquina não tem eficácia terapêutica) numa falsa (a cloroquina tem eficácia terapêutica), mas utiliza a retórica sempre da mesma maneira, trocando o valor verdadeiro pelo falso — o negacionismo é o falseamento constante da realidade. E, nesse ponto, seria movimento produzido conscientemente, isto é, movimento pensado que reproduz estratégias de desinformação, de censura e de desvalorização — a ignorância médica, como efeito de uma estratégia. Esse tipo de negacionismo, que captura a Clínica Médica em detrimento da ciência, usa recursos ideativos e práticos que ativam obediências e conformismos. Logo, vai além da cognição, pois é também um mecanismo, juntando representações com determinadas práticas ou comportamentos, que só se torna inteligível quando analisados do ponto de vista da reprodução de relações de poder. Por fim, o negacionismo que captura a clínica para combater a medicina científica faz parte de um mais amplo, o negacionismo da pandemia (“gripezinha”, vírus “chinês”, vacina com chip, a máscara como liberticida... e tantas outras bandeiras de luta da extrema direita brasileira). E poderíamos imaginar dispositivo ainda mais abrangente, reproduzindo todas as fantasias de negação, e que seria justamente esse aparato de produção universal de fake news, a dita guerra cultural. Parece ser uma lógica de ação político-cultural que condensa todos os negacionismos. A “guerra cultural” seria propriamente o meio da “luta pela hegemonia” contra qualquer pensamento progressista ou simplesmente contra qualquer forma de pensar, uma espécie de “duplipensar” geral aplicado a todo o campo de valores, como faz o astrólogo/filósofo do negacionismo; um universo paralelo dominado por imagens invertidas de todo tipo de realidade, para parodiar um velho barbudo. CONFIRA
GLOBALISMO MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS POPULISMO SANITÁRIO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
COMITÊ CIENTÍFICO DA COVID-19 — NORDESTE Sergio M. Rezende *
N
os primeiros dias de 2020 o mundo tomou conhecimento de uma informação preocupante vinda da China. O Dr. Zhong Nanshan, médico na cidade de Wuhan, comunicou ao governo local que um novo coronavírus, possivelmente originário de morcegos, estava causando uma doença muito séria na população. A nova doença, que rapidamente debilitava as pessoas e podia levar a óbito, recebeu o nome de covid-19 (coronavírus disease 19, por ter iniciado em 2019). Em algumas semanas o governo local decretou lockdown e construiu um hospital de campanha para a internação dos doentes que se multiplicavam. As atenções do mundo voltaramse para a Província de Hubei e a cidade de Wuhan, e os feriados do Ano Novo Chinês foram prorrogados. O resto do mundo acreditava que a nova doença ficaria confinada à China, mas logo os primeiros casos da covid-19 foram anunciados na Itália e na Alemanha, em pessoas infectadas por viajantes que chegavam da China. Em algumas semanas a nova epidemia se espalhava na Itália, Alemanha, França, Espanha, Reino Unido, e chegava aos Estados Unidos. No início de março a Organização Mundial da Saúde reconhecia a situação de pandemia, quando 114 países anunciavam a infecção de mais de 118 mil pessoas. Antes do final de março já eram noticiados os primeiros casos da doença do Brasil, em turistas que chegavam da Europa. A reação imediata do chefe do governo no Brasil foi a negação da gravidade da doença. O presidente declarou à mídia que a doença não era séria e que em pessoas saudáveis causaria no máximo uma gripezinha, aconselhando a população a continuar a vida normal. Na China e na Europa rapidamente a ciência entrou em cena, identificando os efeitos da covid-19: que podia causar danos
permanentes aos pulmões (Síndrome Respiratória Aguda) e ao coração, deixando sequelas graves ou mesmo levando a óbito em poucas semanas. Também houve grande avanço nos métodos de testagem, mas nenhum medicamento específico para o tratamento da doença foi identificado. E também nenhum tratamento precoce teve sua eficácia comprovada cientificamente. A ciência também demonstrou que o novo coronavírus, denominado Sars-CoV-2 era transmitido no contato entre as pessoas, ou por meio de gotículas expelidas por tosse, espirro etc. Então, a única maneira não farmacológica de controlar a epidemia do coronavírus era o isolamento social, o uso de máscaras, a higienização sistemática etc. Durante aquele mês de março, enquanto a epidemia ganhava força no Brasil, o governo federal mantinha a atitude negacionista, rejeitando todas conclusões e recomendações da ciência. Foi então que, no final do mês, os governadores dos nove estados do Nordeste resolveram tomar uma atitude. Em agosto do ano anterior eles haviam criado o Consórcio Nordeste (CNE), uma organização jurídica com gestão flexível, amparada por lei, cuja missão era articular as ações dos governos estaduais, fazer compras conjuntas, criar programas comuns, entre outros. O CNE criou o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus (C4), com o objetivo de auxiliar os gestores da região na tomada de decisões sobre as ações de enfrentamento a crise sanitária da covid-19. O Comitê foi formado por cientistas indicados pelos nove estados e estruturado com subcomitês especializados nos vários temas relacionados com a doença, tais como equipamentos, insumos e procedimentos hospitalares, virologia, testes e vacinas, epidemiologia e modelos matemáticos, políticas públicas de intervenção e fomento à pesquisa. Logo o C4 passou a emitir boletins, dirigidos aos governos estaduais e municipais, com recomendações de ações para a contenção do espalhamento do coronavírus, informações para as equipes de saúde, análises de cenários e riscos, entre outros, com base no melhor conhecimento científico existente. A primeira recomendação do Boletim 1 era enfática: os estados e
municípios deveriam impor determinações de distanciamento social e medidas restritivas correlatas, pois estas eram essenciais para conter o avanço da epidemia. Nos estudos iniciais o C4 já reconhecia que o coronavírus chegou ao NE pelas capitais, transportado por pessoas das classes sociais mais altas, retornando de viagens aéreas (internacionais e nacionais). Inicialmente ele foi espalhado pelas famílias dos viajantes, através da contaminação de convidados e trabalhadores em eventos sociais, como também de empregadas domésticas, propiciando assim a transmissão comunitária nas periferias das capitais. Em seguida ele foi para o interior por transporte terrestre e se espalhou nas cidades menores. A epidemia expandiu rapidamente no Nordeste, pelo fato de ser uma das regiões mais pobres do país, com enormes desigualdades sociais, com aglomeração de pessoas nas moradias e trabalhando em setores comerciais informais ou desestruturados. Enquanto o presidente da República mantinha as atitudes negacionistas à ciência, rejeitando as medidas de isolamento social, o uso de máscaras de proteção e a fazer propaganda de medicamentos para tratamento precoce, sem comprovação científica de sua eficácia, o número de casos e de óbitos pela covid19 no Brasil aumentava assustadoramente, tornando o país o epicentro da pandemia no mundo. Por outro lado, todos os governos do Nordeste decretaram medidas de distanciamento físico com isolamento social, proibição de eventos, fechamento de escolas, universidades, academias, cinemas etc. instituição do teletrabalho para pessoas nos grupos de risco e funcionários públicos, bem como outras medidas recomendadas pela ciência. Seis meses após o início da epidemia no Brasil os números diários de casos e óbitos pela covid-19 começavam a diminuir, indicando o final de uma “onda epidêmica” muito mais longa que nos países europeus, onde a queda se verificou dois a três meses após o início, em razão das medidas restritivas logo implantadas. No final do ano de 2020 o quadro da pandemia no mundo voltou a preocupar. Com o relaxamento das restrições na Europa, e também o surgimento de novas cepas do coronavírus, mais contagiosas que
a original, todos os países passaram a vivenciar uma segunda onda da doença, com os números diários de casos e óbitos subindo rapidamente e ultrapassando os valores da primeira onda. Nos Estados Unidos, onde o governo negacionista de Donald Trump nunca impôs medidas restritivas, os números explodiram. No Brasil, as aglomerações causadas pelas eleições municipais e pelas festas de Natal e Ano Novo desencadearam o início da segunda onda. Em janeiro de 2021 o país acompanhou os acontecimentos dramáticos de Manaus, onde o número de doentes aumentou tão rapidamente que faltou oxigênio para o tratamento de muitos internados em UTIs. E como resultado do grande número de pessoas infectadas, surgiu uma nova cepa do vírus, que passou a ser conhecida como variante de Manaus. Um assunto que ganhou muita importância no final de 2020 foi a vacina contra a covid-19. Desde o início da pandemia, os especialistas afirmavam que a única maneira de controlar a doença seria através da vacinação em massa da população. Mas alertavam que o desenvolvimento de uma vacina exigiria muito tempo, talvez alguns anos, para que uma vacina candidata passasse por todas fases de teste exigidas pelas agências reguladoras na área da saúde. Porém, com o enorme avanço da ciência na área de biotecnologia nas últimas décadas, pesquisadores em universidades e centros de pesquisa, em articulação com empresas farmacêuticas, no início do segundo semestre de 2020 já anunciavam início de testes em humanos de várias vacinas candidatas. Nessa época, empresas estrangeiras procuraram o governo brasileiro para oferecer suas futuras vacinas. O governo rejeitou todas elas, pois o presidente da República afirmava que não seriam importantes. O esforço nas instituições brasileiras para desenvolver vacinas contra a covid-19 era muito incipiente, devido, em grande parte, aos cortes orçamentários para ciência e tecnologia nos últimos anos. A pressão da sociedade e da mídia acabou fazendo com que o governo federal se movimentasse para adquirir vacinas contra a covid-19 e incluí-las no Plano Nacional de Imunização (PNI). Finalmente, no final de janeiro de 2021, a vacinação foi iniciada no Brasil.
Mesmo assim, a segunda onda da pandemia ganhou corpo no Brasil, e como em outros países foi mais intensa que a primeira. No início de abril, a média móvel de sete dias de casos de covid-19 atingiu 100 mil, enquanto a média de óbitos atingiu 3 mil, chegando a 4,5 mil em dias de pico. Desde então os números começaram a cair lentamente, mas em junho o número total de óbitos pela covid19 ultrapassou a terrível marca de meio milhão de pessoas. Uma verdadeira tragédia! Resultado, em grande parte, da inépcia do governo federal, da permanente atitude negacionista do presidente da República e suas campanhas contra o isolamento social, o uso de máscaras de proteção, e até contra a vacina, influenciando diretamente seus seguidores mais fanáticos. Esse descalabro foi amplamente demonstrado nos depoimentos feitos por autoridades e especialistas na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada no Senado Federal para apurar as responsabilidades pela tragédia da covid-19 no país. Desde que a maior crise sanitária iniciou-se no Brasil, o trabalho do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Nordeste não esmoreceu. Até junho de 2021 o Comitê tinha emitido 17 Boletins de recomendações, vários comunicados e pareceres relativos aos vários aspectos da covid-19 e as vacinas contra ela. Diante da condução da crise pelo desgoverno federal, e com base nos estudos do Comitê, o Consórcio Nordeste tomou a iniciativa de tentar adquirir vacinas de outras empresas não fornecedoras do PNI. A mais importante delas, a vacina Sputnik V, produzida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia, teve a importação recusada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, mais de uma vez, por razões discutíveis. Finalmente, depois de muita insistência do CNE, a Anvisa autorizou a importação da vacina, mas apenas cerca de um milhão de doses, quantidade muito menor que os 37 milhões solicitados. No balanço geral da crise da covid-19 no Brasil, o quadro da distribuição geográfica teve implicações significativas. No início da epidemia alguns estados do Nordeste apresentavam os piores desempenhos, e os prognósticos de especialistas para a região
eram muito sombrios. Porém, após um ano, em 15 de junho de 2021, enquanto a média de óbitos pela doença no país era de 232 por 100 mil habitantes, todos nove estados nordestinos tinham menos óbitos que a média nacional. A menor taxa do país era do Maranhão, com 121/100 mil, a segunda menor de Alagoas, 150/100 mil, depois Bahia, 152/100 mil depois Pernambuco com 176/100 mil etc. Há duas razões para esse cenário. Uma é que em todos estados do Nordeste o presidente da República foi derrotado nas eleições de 2018. Portanto, no Nordeste ele tem menos seguidores para suas péssimas recomendações. A outra, sem dúvida, é que os governadores e prefeitos da região rejeitaram o comportamento negacionista do desgoverno federal e decidiram ouvir a ciência para tomar as decisões de enfrentamento da maior crise sanitária já vivida pelo Brasil. CONFIRA
PANDEMIA PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) SINDEMIA
* Professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ex-ministro da Ciência e Tecnologia (2005-2010)
COMUNICAÇÃO PÚBLICA DA CIÊNCIA Diogo Lopes de Oliveira *
D
esde a década de 1950, a partir do termo “alfabetização científica”, tem havido uma gama de significados que pretendem sistematizar formas de comunicar ciência. “Compreensão pública da ciência”, “engajamento público da ciência”, “popularização da ciência”, “ciência popular”, “vulgarização” e “culture scientifique” (em francês, “ciência cultural”), “diseminación” e “apropiación social” (em espanhol, “disseminação” e “apropriação social), “scientific temper” (“temperamento científico”, previsto na Constituição da Índia). A comunicação científica, por exemplo, inclui comunicação profissional entre cientistas — publicações em periódicos, questões associadas à revisão por pares e acesso aberto, além de apresentações em conferências, por exemplo. Todos esses termos sofreram diferentes tipos de críticas vindas de parte da comunidade científica: alguns acreditam que eles não representam a ciência em seu sentido estrito, outros afirmam que menosprezam o sentido maior da ciência. Há até quem afirme que esses termos “condenam” a ciência como atividade de lazer. Independentemente das críticas, das formas e dos conteúdos ao longo dos últimos 70 anos, esses termos variaram muito, tanto quanto os profissionais que tentam comunicar o papel da ciência, como ela é feita e porque ela é importante em maior ou menor medida para todo o mundo. Nos últimos anos, para combater os movimentos anticiência, especialmente durante a onda de extrema direita que varreu o mundo, fez-se necessário que a ciência e a tecnologia se ocupassem de pessoas, de gente, de povo. O termo Comunicação Pública da Ciência e da Tecnologia (CPCT) refere-se
especificamente ao conteúdo dirigido ao público. Portanto, todas as atividades do ensino não formal e que pensem o cidadão como um sujeito em construção por toda a vida são fundamentais para uma comunicação destinada ao público daquilo que a ciência significa. Atividades como as feiras e olimpíadas de ciências, os cafés científicos, as semanas de ciência e tecnologia, os museus e centros de ciência, as peças de teatro, livros e filmes sobre personalidades e fenômenos da ciência, todos esses elementos, entre tantos outros, formam a tentativa de comunicar publicamente a história, os conceitos e as aplicações do conhecimento científico. O objetivo inicial de comunicar ciência era levar conhecimento geral sobre conceitos e descobertas científicas ao cidadão comum. Com o passar do tempo, porém, os divulgadores de ciência passaram a ver sua prática como uma ferramenta não apenas para formar cidadãos, mas também para torná-los um componente essencial do próprio processo científico, que vai além de laboratórios e pesquisas feitas por acadêmicos para outros acadêmicos. Para essa parte daqueles que fazem CPCT, quanto mais as pessoas conhecem genuinamente a ciência, mais são capazes de exercer seus direitos e deveres de cidadania de forma independente e autônoma. As formas para alcançar o objetivo de sensibilizar a população sobre a importância da apropriação da ciência por parte de cada cidadã e cidadão variam entre simplesmente informar até tornar pessoas não familiarizadas com a ciência em participantes de pesquisas científicas, um conceito poderosíssimo chamado ciência cidadã. Assim, a ciência e a tecnologia se transformam em elementos de redução da desigualdade por meio do conhecimento, de fomento à democracia e ao pensamento crítico. A CPCT trata a ciência, a partir de um complexo emaranhado de interesses políticos, econômicos, sociais e culturais. Embora não haja uma fórmula para fazer isso, deve-se focar nos processos reais da ciência — não em uma “ciência pura” idealizada ou em algum método hipotético-dedutivo idealizado —, mas na mistura complexa de processos lógicos e sociais, no acesso a materiais e recursos,
nos acidentes históricos, no apoio financeiro (ou na falta dele), nas redes de conexões entre pessoas e instituições etc. São todos esses componentes que coletivamente produzem conhecimento confiável. Se mais pessoas entenderem a complexidade de fazer ciência, se a população for capaz de enxergar as incertezas desse processo e, ainda assim, perceber que a ciência é fundamental para que a humanidade entenda a si e ao seu entorno, a essência do conhecimento humano é alcançada. A curiosidade, a dúvida e o método em busca de evidências tornam-se práticas de aprendizado para a vida inteira. É exatamente a partir dessas “falhas”, comuns a toda e qualquer atividade humana, que o negacionismo encontra terreno para confundir, deturpar, dissimular ou mesmo mentir. Uma sociedade conectada com a ciência, participante ativa das decisões públicas sobre assuntos científicos, é bem menos propensa a replicar desinformação e mais capaz de defender-se de quem utiliza a força da ciência para nublar a opinião pública. Quem planta informação falsa para colher algum benefício econômico ou político, o faz por falha de caráter e não pela falha — como parte de todo e qualquer aprendizado — própria de quem busca a verdade, o consenso, o entendimento. É importante apontar que na CPCT há algumas tensões. Por exemplo, entre abordagens que principalmente explicam os aspectos técnicos da ciência e tecnologia, e aquelas que são mais focadas nas interações da ciência e da sociedade. Mesmo entre as pessoas que olham para a sociedade, há quem destaque os benefícios que a C&T traz (novos medicamentos, materiais e formas de geração de energia mais eficientes, soluções para a poluição etc.), e há quem aponte para maneiras pelas quais a C&T está implicada na produção da própria poluição, no controle corporativo do sistema alimentar, no apoio às indústrias de defesa e assim por diante. É esse convite à reflexão que a CPCT faz a toda pessoa que estiver disposta a enxergar o mundo através das lentes da ciência, com seus erros e acertos.
Todas e todos aqueles que comunicam ciência deveriam buscar maneiras de mostrar essas complexidades. Se isso acontecer, será uma ferramenta fundamental no combate à desinformação, porque mais pessoas entenderão que a ciência não fala a uma só voz, que os cientistas discordam e estão se movendo em direção a um conhecimento mais confiável, que os cientistas às vezes se contradizem, porque a ciência não é apenas uma coisa, especialmente quando começamos a abordar questões ligadas às aplicações de ciência e tecnologia. Quem comunica ciência pretende mostrar os benefícios de enxergar o mundo através do acúmulo de conhecimento que a humanidade gerou, seja nos laboratórios de pesquisa ou na bagagem acumulada por povos e comunidades tradicionais ao longo de séculos, por exemplo. Quem comunica ciência, aprende todos os dias com quem não faz ciência. Na construção dessa sensibilização, desse convencimento, aprendemos todos. LEIA MAIS
Trench, B. & M. Bucchi (Ed.) (2021). Routledge Handbook of Public Communication of Science and Technology. 3rd ed. Routledge. https://doi.org/10.4324/9781003039242 Jamieson, Kathleen Hall, Kahan, Dan, & Scheufele, Dietram A. (Eds.). (2017). Oxford Handbook of Science of Science Communication. New York: Oxford University Press. Collins, Harry, & Pinch, Trevor. (2012). The Golem: What Everyone Should Know About Science. 2nd ed. Cambridge/New York: Cambridge University Press.
* Professor da UFCG, professor permanente do Programa de Pós--
Graduação em Comunicação da UFPB e secretário Regional da SBPC/Paraíba
CONSPIRITUALIDADE Letícia Cesarino *
O termo
conspiritualidade (no inglês, conspirituality) é um neologismo formulado por Charlotte Ward e David Voas, em 2011, para designar formações híbridas de pensamento conspiratório e espiritualidade new age, que vêm se difundindo com a popularização e plataformização da internet. Grosso modo, o componente new age da conspiritualidade abrange espiritualidades alternativas, baseadas em filosofias e saberes pré-modernos ou orientais, que entendem a pessoa como um ser holístico, regido por princípios que se estendem ao cosmo. Em sua forma típica, inclui uma dimensão milenarista de mudança de paradigma rumo ao despertar de uma “nova era”, aliada a crenças em lógicas encantadas e poderes invisíveis, bem como processos de transformação pessoal envolvendo cura, renovação ou desenvolvimento de poderes psíquicos. Exemplos incluem mindfulness, meditação e outras formas de expansão da consciência e da corporalidade; energias, mediunidade e formas de ação à distância por agentes humanos ou espirituais; astrologia, interpretação de sonhos e outras técnicas oraculares, dentre outros. Já o componente conspiratório é marcado por narrativas — as famosas “teorias da conspiração” — que revelam planos e maquinações de agentes humanos atuando supostamente nas sombras, por trás do mainstream da grande mídia e da política. Aqueles interessados em “despertar” para uma realidade que vinha sendo até então ativamente escondida têm acesso a esses alegados planos e forças ocultas por meio da decodificação de sinais no mundo visível. Seguidores dessas narrativas tornam-se assim “pesquisadores” que vão “conectando os pontos” no que, em princípio, pareciam ser fatos contingentes ou aleatórios. Exemplos recentes de teorias da conspiração populares na internet são o Deep State, a chamada “Nova Ordem Mundial”, o terraplanismo, o
QAnon, e as múltiplas narrativas em torno da fabricação da pandemia da covid-19 como “plandemia” ou “fraudemia”. Não obstante as diferenças entre os dois lados da conspiritualidade — um, mais ligado a um estereótipo de público feminino, otimista e preocupado com o desenvolvimento pessoal, e o outro com um caráter mais masculino, conservador, pessimista e preocupado com questões mundanas —, ambos teriam em comum a suposição de que nada acontece por acaso, nada é o que parece, e tudo está conectado. A conspiritualidade seria assim um equilíbrio entre opostos. Como colocaram Ward e Voas, um modo de temperar ceticismo político com otimismo espiritual; de equilibrar a beligerância da teoria da conspiração com a autoabsorção da new age. Ao longo da última década, a caracterização original de Ward e Voas foi sendo refinada por outros autores. Asprem e Dyrendal ampliaram o quadro original, remetendo a convergência conspiritual a um momento bem anterior às suas formas contemporâneas digitalmente mediadas. Eles apontam dois precedentes na história europeia. Primeiramente, a emergência da categoria “esoterismo” no final do período medieval, quando saberes cristãos neoplatônicos resgatando “antigos sábios” como Zoroastro e Hermes Trismegistro passaram de saberes menores ao status de movimentos heréticos — e, com o advento do Iluminismo, a saberes irracionais ou equivocados. E um segundo momento, no século 19, quando correntes subterrâneas de conhecimentos rejeitados reemergiram nos contrapúblicos formados pela imprensa ocultista na Europa, junto com as novas forças invisíveis estudadas pelo mesmerismo (magnetismo animal) ou o espiritismo e o retorno dos rumores conspiratórios envolvendo judeus, irmandades secretas etc. As conspiritualidades contemporâneas continuam evocando muitos desses antigos repertórios e privilegiando saberes ofuscados pela emergência da modernidade iluminista, tais como esoterismo, misticismo, teosofia e paganismo. Não é à toa, por exemplo, que gurus da nova direita como Olavo de Carvalho e Steve Bannon tenham, no passado, se interessado ou feito parte de comunidades
esotéricas ou orientalistas. Além da reconstituição histórica, Asprem e Dyrendal propõem uma compreensão mais ampla da conspiritualidade, com base num padrão geral associado ao que o sociólogo britânico Colin Campbell chamou de cultic milieu ou meio cúltico. Originalmente, Campbell cunhou essa noção no contexto da contracultura dos pós-guerra, para designar movimentos e saberes marginais que vão se conectando de forma frouxa em oposição a ortodoxias políticas, científicas, culturais prevalentes na sociedade mais ampla. Desse ponto de vista, a conspiritualidade se caracteriza, sobretudo, pela recuperação e valorização de saberes obscurecidos, rejeitados ou suprimidos por formações hegemônicas. Hoje, remeteriam àquilo que Michael Barkun chamou de reivindicações de conhecimento estigmatizadas, que seus aderentes reconhecem como sendo verdadeiras, não obstante sua marginalização pelas instituições que convencionalmente distinguem o conhecimento do erro. A falta de reconhecimento tende a retroalimentar as narrativas conspiratórias, que passam a explicar a rejeição pelo mainstream como fruto de um plano deliberado de elites para manter seu domínio. Embora frequentemente se proponha a resgatar tradições antigas, na prática o meio cúltico se caracteriza pela ausência de uma ortodoxia alternativa coerente. Nele, predominam experiências pessoais e místicas que articulam, de forma fluida, elementos doutrinais e estruturas organizacionais advindos de fontes diversas. Os aderentes costumam transitar por uma variedade de movimentos, crenças, gurus, a partir de suas próprias composições e trajetórias individuais. O que Christopher Partridge chamou de “ocultura” — a cultura que se forma em torno do oculto — torna-se um local de experimentação e empreendedorismo cultural, bem como do consumo criativo de representações que fluem da cultura popular para o meio cúltico e vice-versa. Partridge destacou o papel da mídia e da indústria do entretenimento na conformação e popularização das conspiritualidades contemporâneas. Com efeito, no atual ambiente
das mídias digitais, as narrativas que circulam via internet passam a ser cada vez mais centrais na difusão de novos repertórios e na popularização das conspiritualidades em suas versões luminosas como nas mais sombrias. Temáticas apocalípticas e alternâncias entre camadas narrativas visíveis e invisíveis do tipo plot twist, por exemplo, são muito comuns na indústria cultural contemporânea: das séries e filmes aos games, das plataformas mainstream da internet de superfície até as correntes mais obscuras dos aplicativos de mensagens e dark web. Também com relação ao contexto contemporâneo, Asprem e Dyrendal notam corretamente que, apesar de as novas mídias não terem inventado a conspiritualidade, elas propiciaram sua passagem de fenômeno residual e marginal para o mainstream da cultura popular. O papel dessas mídias, contudo, não é apenas o de oferecer novos conteúdos para preencher uma gramática conspiritual que vem pronta do mundo offline. Especialmente a plataformização da internet parece constituir um ambiente apropriado para a difusão da conspiritualidade como uma forma de produção de conhecimento sobre a realidade, por propiciar uma arquitetura, em certa medida, análoga à do meio cúltico. Por um lado, as novas mídias oferecem o que chamei em outra ocasião de affordances antiestruturais. Trata-se de propriedades técnicas que introduzem um viés favorável a práticas, ideias e identidades não apenas relegadas a um papel marginal ou subalterno, mas subdeterminadas (ou seja, não plenamente reconhecidas) pela ortodoxia anterior. Esse caráter subdeterminado explica, por exemplo, a facilidade e fluidez com que as identidades conspirituais são combinadas e recombinadas e, ainda, por que identidades ligadas à nova direita parecem ser mais suscetíveis a esse fenômeno. Por outro lado, a arquitetura fractal e segmentada de plataformas como as das mídias sociais permite que usuários componham seus próprios meios cúlticos personalizados, a partir de fragmentos que chegam a eles por vias algorítmicas. Essa integração epistêmica da construção de realidades no usuário individual equivale ao
fenômeno mais geral que Liesbet Van Zoonen chamou de “eupistemologia”. Já é bem estabelecido que um preditor de crença em uma teoria da conspiração é a crença em outras: os fragmentos conspirituais vão sendo acumulados pelos indivíduos de forma caleidoscópica, sem percepção de contradição entre si — numa lógica similar ao que Douglas Rushkoff chamou de “fractalnoia”. Além disso, observa-se, na conspiritualidade, uma composição aparentemente paradoxal entre individualismo e coletivismo que também é própria da plataformização: o foco é no despertar e na transformação a partir do indivíduo, mas operando sempre dentro de uma comunidade — algoritmicamente segmentada — que devolve a esse indivíduo fragmentos especulares de si mesmo. Finalmente, o que Wendy Chun chamou da temporalidade de crise permanente da internet contemporânea também favorece a proliferação de gramáticas milenaristas como as que subjazem a conspiritualidade. Há, nas narrativas conspirituais, um espelhamento mimético entre o modo como os mundos visível e oculto são pensados: à atribuição de causas e intenções humanas a grandes males sistêmicos corresponde a atribuição de capacidade a certos agentes humanos de reverterem esses males — o guru, o líder messiânico, o político populista. Em sua forma típica, supostos whistleblowers (delatores) como o QAnon são os mediadores que forneceriam acesso exclusivo a esse mundo invisível, dispensando pistas a serem decodificadas de forma ativa pelos seguidores em suas “pesquisas” na internet. Como em todo meio cúltico, esse é um ambiente experimentado pelos indivíduos como empoderador e libertador, em contraposição a uma sociedade dos “normais” cujas elites os rejeitavam ou relegavam a um lugar secundário. A digitalização crescente do modo de apreender a realidade da conspiritualidade abre assim um vasto espectro de possibilidades, vindo a abranger desde conspiracionismos de caráter mais abertamente político a saberes e ciências alternativas, passando por linguagens energéticas e espirituais mais difusas. No caso da pandemia da covid-19 no Brasil, por exemplo, esses novos híbridos abrangeriam desde narrativas como a da “fraudemia” e do
tratamento precoce até gramáticas que circulam de modo frouxo na indústria do bem-estar envolvendo imunidade, torcer contra ou a favor, energias positivas ou negativas. Frequentemente, esses repertórios se sobrepõem e se misturam, sem contradição aparente entre si. Às satisfações identitárias e cognitivas de se pertencer a um meio cúltico, as plataformas podem acrescentar, ainda, satisfações mais materiais, permitindo novos tipos de empreendedorismo, networking e monetização da conspiritualidade na economia da influência e em outros mercados digitais. LEIA MAIS
ASPREM, E.; DYRENDAL, A. “Conspirituality reconsidered: how surprising and how new is the confluence of spirituality and conspiracy theory?” Journal of Contemporary Religion, London, v. 30, n. 3, p. 367-382, 23 set. 2015. PARTRIDGE, C. The Re-Enchantment of the West. London: T&T Clark, 2004. v. 1. WARD, C.; VOAS, D. “The emergence of conspirituality.” Journal of Contemporary Religion, London, v. 26, n. 1, p. 103-121, 7 jan. 2011. CONFIRA
DESINFORMAÇÃO INTERNET POPULISMO DIGITAL
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
CONSTITUCIONALISMO (ANTI) Marjorie Marona * Fábio Kerche **
O anticonstitucionalismo pode ser entendido como o movimento de aversão e/ou subversão do fundamento liberal das democracias representativas contemporâneas que se projeta em face da Constituição e das Cortes Constitucionais.
Nas democracias contemporâneas, as eleições livres e competitivas operam como principal método de seleção dos governos, ancorado no princípio majoritário como fundamento de legitimidade do poder político. Conexa à lógica eleitoral, opera uma dimensão liberal, na qual é afirmado o reconhecimento de direitos e liberdades individuais, frequentemente inscritos em uma Constituição que as limita ao mesmo tempo que lhes oferece condições de possibilidade. O liberalismo político é uma “casa de muitas moradas”. O liberalismo político não é somente uma tradição que enfatiza o indivíduo, sua liberdade e seus direitos. A sua história se deu também na interseção com o constitucionalismo, isto é, com o reconhecimento de que o adjetivo democrático dado a um governo depende do respeito e da proteção a indivíduos e minorias e da observância de direitos e garantias fundamentais. Mesmo definições mais minimalistas de democracia não descuidam do elemento liberal, complementando a dimensão constitucional à lógica eleitoral. Um conceito assim bifronte de democracia permite destacar a relevância da Constituição e das Cortes Constitucionais como o marco em que operam os governos. Na ausência de uma Constituição, entendida como expressão da institucionalização da liberdade e da sua prática, as escolhas eleitorais podem colocar em risco os derrotados. As democracias constitucionais, portanto, podem ser descritas como um regime político que articula três
componentes institucionais distintos: I) eleições justas e periódicas; II) um robusto rol de direitos e garantias fundamentais; e III) o respeito ao princípio do rule of law. Decorre dessa definição a adesão ao primado da superioridade da Constituição em regimes democráticos contemporâneos. Assim, a ideia de controle constitucional remete à capacidade dos governos de operar nos limites da Constituição, em atenção a ela. O modelo mais comum do controle de constitucionalidade em democracias contemporâneas reside na existência de uma Corte Constitucional. Em geral, tal Corte tem caráter judicial e é dotada de atribuições para constranger as instituições políticas e seus agentes a atuarem com respeito às regras e princípios constitucionais. As Cortes Constitucionais representam, portanto, importante mecanismo contramajoritário de fiscalização e controle nas modernas democracias constitucionais. Nesses regimes opera-se baseado na superioridade da Constituição em relação à produção legislativa e aos atos normativos emanados, principalmente, do Executivo. Ou, dito de outro modo, maiorias conjunturais são limitadas pelo órgão (em geral, judicial) encarregado de avaliar se uma iniciativa respeita as regras previstas na Constituição. No Brasil, o processo constituinte de 1987-88 nos legou um amplo e acessível sistema de controle constitucional das leis, caracterizado por um hibridismo singular se comparado com outros países. Por um lado, permite-se que qualquer juiz possa discutir questões relativas à Constituição em relação a casos concretos. Por outro, também são previstas ações diretas e em abstrato perante o Supremo Tribunal Federal (STF), em um acúmulo das características dos modelos difuso e concentrado. Nesse último caso, o STF se reveste das atribuições típicas de uma Corte Constitucional, podendo declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dos dispositivos legais decididos, inclusive, por maiorias parlamentares. Essas decisões têm efeitos imediatos e impactam toda a sociedade. O STF também atua como instância revisora final do Poder Judiciário. Seus ministros julgam recursos
extraordinários, revisando decisões de juízes de instâncias inferiores sobre casos concretos que giram em torno de questões constitucionais. O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, inclusive por ser um modelo híbrido, é notadamente acessível. O rol de atores legitimados a tomar parte das contendas que envolvem matérias constitucionais é bastante amplo. Todo cidadão brasileiro pode questionar, a partir de instâncias inferiores do Poder Judiciário, a constitucionalidade de uma lei em razão de uma disputa judicial específica em que esteja envolvido — o que eventualmente pode demandar atuação do STF, como corte revisora. Ademais, a Constituição, autoriza diversos agentes do Estado e da Sociedade Civil a incitar o STF a atuar como Corte Constitucional por meio da propositura de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), Ações Diretas de Constitucionalidade (ADC) e Ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Trata-se de um sistema, portanto, que envolve múltiplos e numerosos atores, dos dois lados da equação que conforma o controle constitucional: virtualmente, todo cidadão pode provocar o Poder Judiciário e qualquer magistrado está habilitado a reagir e decidir sobre matérias constitucionais. O STF, em particular, além de funcionar como potencial revisor de todas as ações impetradas nas instâncias inferiores, pode ser interpelado diretamente por múltiplos atores: partidos políticos, governadores, assembleias legislativas dos estados, o procuradorgeral da República, mesas da Câmara e do Senado, além de corporações e organizações da sociedade civil, representando os mais diversos interesses. Essa ampla acessibilidade ao STF resulta em significativos desafios que o tribunal tem de enfrentar. Além de funcionar como órgão julgador máximo dos conflitos de interesse que emergem de grupos da sociedade civil, nas últimas décadas o STF se consolidou como o grande tribunal da federação e árbitro das contendas atinentes à governabilidade. O cenário de agigantamento do
Supremo, e o inevitável descontentamento daqueles que foram derrotados em suas demandas, acabou por estimular iniciativas com vistas a limitar o poder da corte, conhecidas como Court-curbing pela literatura especializada. Propostas desse tipo geralmente envolvem alterações legislativas que reduzem a capacidade institucional das cortes constitucionais, seja pela alteração da sua composição, limitação da sua competência ou jurisdição, modificação de procedimentos internos etc. Por vezes, ainda, o Legislativo atua na reversão de determinadas decisões tomadas pela corte constitucional. Esses são os exemplos mais comuns quando se pensa na pletora de respostas dadas pelos políticos como sinal de descontentamento com os órgãos encarregados de avaliar a constitucionalidade de decisões tomadas por parlamentares. No Brasil, embora a mais extensa reforma judicial do período democráticos tenha fortalecido o STF (Emenda Constitucional nº 45/04), tramitam no Congresso Nacional diversas propostas para limitar o poder do Supremo e seus ministros. Decisões que impactam a conjuntura política são, na quase totalidade dos casos, os elementos detonadores das iniciativas reformistas de Court-curbing, que parecem ganhar ares de retaliação. Os atores judiciais, por sua vez, tendem a resistir às mudanças, qualificando-as de oportunistas, motivadas por interesses e dinâmicas particularistas. Em sentido inverso, há ainda os casos em que o lobby das elites judiciais atua por mudanças institucionais que alarguem ainda mais a competência das cortes e amplie os poderes de ministros, incrementando a capacidade institucional do STF. Nessa disputa para definir as fronteiras da atuação do tribunal, registram-se, por fim, as mudanças geradas a partir de iniciativas endógenas, que emergem do exercício das próprias funções jurisdicionais e/ou regulamentares dos ministros do STF. Essa espécie de queda de braço, que se evidencia de tempos em tempos, em torno dos limites da atuação das cortes constitucionais,
é compreendida pela literatura como decorrência da dinâmica inerente do jogo democrático constitucional, ancorado no modelo de separação dos poderes da República. A partir de 2019, contudo, com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República, instalou-se uma prática de negação do constitucionalismo que extrapola a previsível disputa entre as forças políticas majoritárias e em face dos limites constitucionais impostos pelas cortes. Não se trata, portanto, de mais uma forma de expressão institucional do problema contramajoritário. O que passou a existir foi, na verdade, um ataque iliberal, no sentido de que atenta contra o valor do rule of law. A hostilidade dirigida a mecanismos frequentemente associados ao constitucionalismo marca amplamente o governo e os discursos de Jair Bolsonaro. Os exemplos são inúmeros: da estratégia de governar por meio de medidas unilaterais, passando pelo tratamento dispensado à imprensa e pela mobilização sistemática e organizada de fake news como método de governo, ao desmonte e/ou subversão das políticas públicas voltadas a minorias historicamente oprimidas e/ou excluídas (mulheres, negras e negros, povos indígenas, comunidade LGBTQI+). Todos esses são eventos que podem ser caracterizados como afronta a direitos constitutivos de uma democracia liberal, previstos na Constituição e que, no limite, deveriam ser assegurados pela institucionalização do rule of law. As ameaças e ataques desferidos contra o STF por Jair Bolsonaro e seus asseclas são inéditos em intensidade e forma, ao menos no período democrático. Expressão das práticas negacionistas do governo Bolsonaro no campo do constitucionalismo liberal, caracterizam uma postura francamente anti-institucional. Já às vésperas da vitória de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, um dos filhos do presidente declarou que “se quiser fechar o STF” basta ordenar a um “soldado e um cabo”. Depois disso, inúmeras manifestações da base política e social de apoio ao governo, algumas contando com a participação do presidente, investiram contra a corte. Jair Bolsonaro desqualificou pública e sistematicamente os ministros do STF, particularmente quando suas
decisões não estavam alinhadas à agenda do governo ou colocavam sob suspeita seus familiares e aliados diretos. Por certo, o constitucionalismo atrapalha decisões tomadas por aquele que se arroga o representante da maioria, em um cenário em que “as minorias têm que se curvar” — nas palavras do presidente. O ponto alto das práticas negacionistas do governo na dimensão do constitucionalismo foi registrado pela imprensa, dando conta de que Bolsonaro teria seriamente cogitado intervir no Supremo Tribunal Federal, ideia da qual foi demovido, não sem custo para a relação entre os poderes da República. Distinguir as retaliações às cortes constitucionais de propostas legítimas de aprimoramento institucional nem sempre é tarefa simples. Políticos dificilmente admitem que agem motivados por descontentamentos sectários, assim como os integrantes do Poder Judiciário e de cortes constitucionais geralmente identificam aspectos negativos em iniciativas legislativas não impulsionadas por eles. O negacionismo constitucional ostentado pelas práticas e discursos de Jair Bolsonaro e de sua base de apoio político e social, entretanto, não deixa margem para qualquer dúvida: trata-se de um movimento iliberal, marcadamente anti-institucional que extrapola a tensão inerente à relação entre a democracia, ancorada no princípio majoritário, e o liberalismo, baseado em direitos individuais e respeito a minorias. A mobilização institucional do problema contramajoritário pressupõe o princípio da supremacia da Constituição, colocando-se como uma questão de ajuste (até onde podem ir as cortes no controle dos poderes políticos?), mas nunca de negação (as cortes constitucionais não podem estabelecer qualquer controle sobre os poderes políticos). Ao contrário, as ameaças abertas, ataques retóricos ou físicos, e outras formas de pressão, diretas ou sutis, com diversos níveis de intensidade, mas, sobretudo, sem amparo legal, expressam a postura antiliberal de rechaço a todo tipo de controle, procedimento ou regra democrática que caracteriza o governo Bolsonaro no Brasil.
LEIA MAIS
MARONA, M.; MAGALHÃES, L. “Guerra e Paz? o supremo tribunal federal nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro.” In: AVRITZER, L.; MARONA, M.; KERCHE, F. (Orgs). Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. MOUNK, Y. O povo contra a democracia: porque nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. Tradução: Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das letras, 2019. 432 p. DRINÓCZI, T.; BIEŃ-KACAŁA, A. (Eds.). Rule of Law, Common Values, and Illiberal Constitutionalism: Poland and Hungary within the European Union. London: Routledge, 2020. 260 p. (Comparative Constitutional Change). CONFIRA
LAWFARE PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) POLÍTICA
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) ** Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Unirio)
CULTURA Edson Farias *
C
om emprego bastante generalizado no mundo contemporâneo, o termo cultura é bastante controverso na medida em que há muitas e variadas semânticas que o descrevem. Hoje, de um lado, ele se intersecciona com planos políticos, econômicos, moral, expressivos, o que o faz contracenar com posicionamentos ideológicos, condições de inscrição em estruturas coletivas (de classe, etnicorraciais, de gênero, de orientação sexual, de referência socioespacial e outras), além de anteparos morais e epistêmicos, até de enquadramentos cosmológicos os mais diversos. De outro, ocorre a multiplicação das suas semânticas, muitas das quais apresentando contradição entre si. Deste modo, o termo sinaliza tanto para lutas sociais das quais participa, como para o fato mesmo da questão cultural ter se imposto como um objeto de disputa e detonador de conflitos. A genealogia da palavra a relaciona à ideia de cultivo, portanto, descende do processo de sedentarização de comunidades humanas que, na contramão dos grupos coletores, significou o advento e a ascensão numérica dos grupos dedicados às atividades agrícolas e pastoris, com os seus respectivos modos de vida. As inovações nos meios de simbolização relacionados a esses modos de vida, em especial, o uso da escrita, sem dúvida, deixaram efeitos escalonados que pressionaram a favor da ampliação no emprego da noção de cultura com a finalidade de nomear, classificar e descrever práticas e outros aspectos das sociedades humanas, por se tratar da civilização cristã-ocidental. Já consolidada nos ambientes intelectuais desde meados do século 19, a ideia de cultura sofreu fortes impactos com a eclosão das duas grandes guerras mundiais no século passado e, nos rastros de ambas, o desmonte da distribuição do poder mundial intrínseco ao domínio dos grandes impérios coloniais europeus. O
advento da polarização hegemônica entre os Estados Unidos e a União Soviética manifesta na geopolítica da Guerra Fria, opondo as sociedades capitalistas àquelas do socialismo real, instaurou um outro cenário para as lutas e as coalisões sociais e aos desenhos institucionais pelo mundo afora. Igualmente com a ampliação do sistema interestatal com a deflagração do processo de descolonização na África e na Ásia, os quais compuseram a trama dos países subdesenvolvidos. A acentuada popularização da ideia de cultura, em particular, depois da Segunda Guerra, parece ter ecoado um conjunto não necessariamente coeso de motivações. Deste modo, um fator de impacto foi a campanha promovida pela Unesco com a finalidade de evitar a reedição do Holocausto nazista, para isso favorecendo maior visibilidade e conhecimento entre o que passa a ser classificado e reconhecido como diferentes culturas (nacionais e de grupos étnicos, principalmente). A generalização das ciências sociais com a implantação de sistemas universitários em diferentes sociedades nacionais mundo afora, por outro lado, viabilizou a implantação de estudos sistemáticos cujos objetos de conhecimento focalizavam os níveis culturais, a questão da indústria cultural e da cultura de massas, igualmente, a díade cultura e identidade nacional ante o avanço do imperialismo, sobretudo, o estadunidense. Àquela altura histórica, quando começava a emergir um consenso sobre o entendimento das culturas como sistemas simbólicos dotados de lógica e ecologia próprias, deu-se intensa politização de vários, entre os empregos da noção de cultura. Nesse mesmo período, a noção já se generalizara na classificação e nomeação de padrões comportamentais de grupos humanos em diferentes continentes. Talvez muitas das reações à ocidentalização, que acompanhou a montagem de projetos desenvolvimentistas em diferentes países na América Latina, África e Ásia, tiveram por respaldo a moção de respeito à dignidade das culturas, agora, entendidas como sistemas simbólicos dotados de lógicas de significação próprias. O período da história mundial que se estendeu, sobretudo, da década de 1950 à de 1980, viu-se marcado
por debates com forte traço de enfrentamentos disjuntivos, os quais foram detonados a partir da deflagração de disputas entre as díades da “modernidade/modernização” com aquela da “tradição/ tradicionalismo”. As vozes que advogavam em defesa da primeira díade se respaldavam no repertório conceitual das teorias da modernização articuladas ao paradigma sociológico funcionalestruturalista estadunidense. Nesse paradigma, cumprindo uma função sistêmica de integração normativa, a dinâmica da cultura consiste no escalonamento hierárquico de um conjunto de ideáriosvalores com os quais se poderia inferir o status da complexidade societária e com isso classificar o nível de desenvolvimento de uma específica formação social. Nunca é demais chamar atenção para o fato de estar essa modelagem ancorada no que seriam as condições dos Estados Unidos após a Segunda Guerra. Portanto, uma outra sociedade nacional seria avaliada como “moderna” ou “tradicional” na medida que, respectivamente, ou se aproximasse ou se distanciasse do arranjo liberal industrial de massa norte-americano. Para citar apenas alguns dos requisitos intrínsecos a esse parâmetro: maior participação do setor secundário da economia na geração da renda e no recrutamento da mão de obra; o aumento no raio de alcance do contrato jurídico de trabalho; a generalização do dinheiro como meio de troca universal no funcionamento dos mercados autorregulados de bens, serviços e atividades manuais; o predomínio da família nuclear; a ampla extensão da escolarização letrada; a ascendência das crenças laicas; plena legitimidade da ciência positiva como representação da verdade; acesso aos insumos informativos distribuídos pelos meios de comunicação massivos; crescente delimitação das esferas da experiência social etc. Considerada a pluralidade de fatores envolvidos nos específicos tecidos das diferentes sociedades nacionais dispersas pelos cinco continentes, abria-se um hiato entre o modelo normativo da modernização e os contextos histórico empíricos à sua realização. A tensão de maior relevo resultava da implantação de projetos desenvolvimentistas — industrialização e incremento da
produtividade agropecuária — que exigiam alterações sensíveis de costumes e formidáveis deslocamentos populacionais do campo para os centros urbanos. Em favor da luta contra o “atraso” sociocultural, as narrativas modernizadoras propagandeavam o abandono das formas coletivas de vida identificadas à tradicionalidade. A alegação de que os diferentes modos de vida correspondem a sistemas simbólicos dotados de coerência interno serviu de argumento para contramovimentos que passam a reivindicar, entre outros: direitos de povos indígenas (demarcação de terras e respeito às especificidade cosmológica contra a intervenção de agentes da catequese cristã, por exemplo), preservação de ambientes e fazeres/saberes de grupos caracterizados por padrões rurais de convivência e, ainda, a preservação de nichos das culturas populares em ambientes citadinos, com suas marcas étnicas de formação identitária e organização da vida coletiva. A virada à década de 1990 trouxe em seu bojo o desmonte da geopolítica da Guerra Fria, com o desaparecimento da União Soviética e dos demais países que compunham o chamando “segundo mundo” do socialismo real. Celebrado como a vitória do “livre mercado”, o cenário mundial doravante instaurado repercute a expansão do capitalismo cada vez mais estribada na dinâmica dos serviços financeiros, por sua vez, amparada no formidável incremento das conexões digitais cibernéticas. Oriundo do vocabulário da administração empresarial, o termo globalização rapidamente se populariza e, com isso, atrai para si adeptos na mesma medida que é alvo de detratores. A aposta celebradora contida nesse termo exaltava uma nova época, em que haveria ampla margem para os fluxos de pessoas, ideias, símbolos, estilos de vida, mercadorias e serviços ocorrerem sem os entraves das fronteiras nacionais, das distâncias continentais e das chancelas das identificações aferradas ao critério da perenidade autorreferente. As culturas estariam irremediavelmente conectadas por um movimento de trocas ininterrupto, o que deixaria por rastros molduras identitárias individuais e coletivas tão mais plurais quanto
instáveis, já que abertas a reavaliações constantes. O anverso dessa pretensa euforia liberalizante que coordenaria o mercado global das diferenças culturais e etnicidades se revelou no crescente emprego da oposição “global versus local”, com ela se vocaliza as assimetrias notórias de posicionamento dos diferentes símbolos e suas respectivas formas de vida na arena mundial de competição simbólica, a um só tempo amplíssima e bastante segmentada. A cultura adquire característica interseccional nas últimas décadas. Isso ocorre pelo fato de cruzar os âmbitos políticos, econômicos, morais e epistemológicos. Assim, os usos da ideia de cultura têm se erguido sobre um terreno minado. A prioridade posta na visibilidade e nos usos obtidos por culturas respaldadas no poder econômico, político e bélico de Estadosnação hegemônicos e em corporações empresariais transnacionais, estão à contrapartida do acirramento dos chauvinismos nacionalistas e de campanhas alentando o “choque de civilizações”. Dentro dessa mesma atmosfera, o redesenho da esfera pública, agora já parte da trama midiática redefinida pela tecnologia digital e a temporalidade on-line, abrigou a conversão dos Direitos Humanos ao universalismo normativo contido na bandeira da diversidade cultural. Assim, no compasso da institucionalização dessa bandeira no interior dos países, mas igualmente em órgãos internacionais, fazia-se eco às disputas em favor da renomeação/reconceituação no espaço intelectual-acadêmico, deflagradas pelo movimento antimanicomial e as muitas versões de estudos culturais, contra a vigência dos quadros cognitivos e morais que reiteram a dominações à maneira da eurocentria epistêmica, o androcentrismo, a heteronormatividade, a normalidade psíquica. Disputas estas em sintonia com lutas promovidas por movimentos sociais em busca da conquista de direitos nos sistemas jurídicos nacionais e nos acordos internacionais, principalmente, aquelas referidas a grupos estigmatizados pelos marcadores de diferenças de gênero, etnicorraciais, de orientação sexual, além dos identificados por portarem necessidades especiais (surdos/mudos, cegos, tetraplégicos e paraplégicos, perfis psiquiátricos etc.).
Sintomas dos efeitos dessas lutas, as guerras culturais vieram à tona como práticas discursivas definidas pelas controvérsias, em que são mobilizadas opiniões divergentes cujos objetos compreendem costumes e valores sempre entendidos como posicionados em campos não só opostos, mas principalmente irreconciliáveis. Inscritas no incremento das ecologias sociotécnicas informacionais, em particular a internet, entram competições, disputas, tomadas de posição contra ou favor do paradigma do reconhecimento da diversidade cultural humana. Logo, nessas performances, ou se respalda ou rechaça a plataforma moral da diversidade, o que tende a estender os enfretamentos às matrizes civilizatórias. São indispostas, portanto, éticas, moralidades, visões de mundo e sentidos de humanidade. Simultaneamente, a memória histórica se torna foco de intensa luta no cenário mundial contemporâneo. Da última década em diante, as guerras culturais se tornaram estratégicas nas lutas promovidas pelas facções ultraconservadoras em diferentes sociedades nacionais. Elas têm sido atualizadas, então, sob o credo bélico-raivoso da convergência reacionária, mediante as ecologias sociotécnicas da comunicação digital, em que sentimentos de repúdio e ódio subsidiam rituais de purgação e depuração. Com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência da República, em janeiro de 2019, esse viés ultraconservador de norteamento das guerras culturais se instalou como esquema do Governo federal. Interrompeu-se, nesse momento, o movimento que, amparado na Constituição de 1988, paulatinamente institucionalizou no âmbito do executivo federal as premissas do direito e da afirmação cultural sintonizada com a concepção multicultural de sociedade nacional, às quais serão manifestas nas políticas públicas executadas pelo ordenamento público federal. Signos inequívocos desse direcionamento foram a criação da Fundação Cultural Palmares (FCP), o advento das Políticas de Patrimônio Imaterial, executada pelo departamento homônimo do Iphan, a implantação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e do Sistema Nacional de Cultura. Faces distintas da montagem dos Sistema MinC — Ministério da
Cultura que, criado em 1985, durante o primeiro governo pósredemocratização ao final da ditadura militar, conheceu amplo remanejamento funcional, principalmente, a partir da administração Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2007), com a gestão de Gilberto Gil. Não foi gratuito, portanto, que logo no início da administração bolsonarista o Ministério da Cultura se tornasse uma secretaria subordinada ao Ministério do Turismo e, assim, fosse desmontado o sistema federal de órgãos culturais. Nesse compasso, a Fundação Palmares se afasta de muitas das reivindicações de lideranças negras, em particular aquelas relativas à afirmação das matrizes culturais afrobrasileiras, em favor de uma perspectiva assimilacionista. Por sua vez, fundiram-se as Secretarias da Diversidade Cultural e da Economia Criativa. A unificação assinala, por certo, a primazia concedida ao credo liberal no tocante à tônica posta no investimento público em produções e bens simbólicos sintonizados aos princípios da gestão empresarial definida pela obtenção do lucro financeiro. Por outro lado, o credo liberal implicou no descompromisso governamental com a mobilização de meios (simbólicos e materiais) à visibilidade de grupos, modos de vidas, formas de expressão marginalizados na história nacional: a exemplo dos cultos e celebrações de matrizes religiosas afrobrasileiras, as estéticas corporificadas afirmativas de ancestralidades negras, a relevância concedidas aos saberes definidos como tradicionais, as configurações não binárias do gênero e as experiências múltiplas relacionadas às diversas sensibilidades sexuais. LEIA MAIS
FARIAS, E. “O povo e a guerra cultural no campo bolsonarista.” In: MONTEIRO, G. T.; TEIXEIRA, C. S. (Orgs.). Bolsonarismo: teoria e prática. Rio de Janeiro: Gramma, 2020, p. 83-106. DI CARLO, J.; KAMRADT, J. “Bolsonaro e a cultura do politicamente incorreto na política brasileira.” Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 55-72, 20 dez. 2018.
CONFIRA
ANTIGÊNERO GUERRAS CULTURAIS REACIONARISMO
* Professor e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB)
DESAPARECIMENTO Sabrina Villenave *
P
ráticas de desaparecimento em contextos democráticos, em geral, são invisibilizadas e, portanto, negadas. Esse processo acontece em sua maioria, por duas maneiras. Uma delas se dá pela dificuldade em se compreender esse tipo específico de violência uma vez que o modelo arquetípico de “desaparecido político” está relacionado à ditadura. Outro motivo, é quando o desaparecimento ocorre como uma tentativa de apagamento. Na discussão sobre negacionismo, proponho indagar sobre as políticas de visibilidade e invisibilidade que levam à decisão de se reconhecer práticas contemporâneas de desaparecimento e apagamento. O conceito de desaparecimento está relacionado ao contexto histórico, político e social das ditaduras que aconteceram na América Latina no período dos anos 1960, 1970 e 1980. Nesse contexto histórico, a categoria “desaparecimento” refere-se a uma série de práticas utilizadas pelas forças militares no contexto da ditadura que engloba o sequestro, tortura e morte daqueles que faziam oposição ao regime. Pode-se afirmar que a politização dessa violência resultou no que entendemos hoje por “desaparecimento político”. Uma característica muito importante dessa violência, quando se fala da ditadura militar de 1964 no Brasil, está na negação de que sequestro-tortura-morte sequer aconteceram. Diante de tal negação, múltiplas iniciativas de comissões da verdade foram instauradas por toda a América Latina, em países que passaram pela traumática experiência de regimes autoritários. O Brasil pode ser considerado como uma iniciativa tardia, se comparado com outros países do continente, somente instituindo a sua Comissão da Verdade em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff. No entanto, a politização de formas de violência está acompanhada do risco da invisibilização da mesma prática em
contextos diferentes ou contra outros grupos. No contexto brasileiro, por exemplo, a categoria “desaparecido político” não engloba o desaparecimento forçado de grupos indígenas ou trabalhadores rurais durante os anos da ditadura no país, ou mesmo de vítimas de grupos de extermínio nos trinta anos de redemocratização do país. De acordo com a Comissão da Verdade, 8.350 indígenas e 10.000 trabalhadores rurais foram vítimas de desaparecimento forçado no país pelas forças militares ou por grupos ligados a elas. Ainda que a categoria “desaparecimento forçado” esteja tipificada no direito internacional, e em tratados internacionais de organizações como as Nações Unidas ou Organização dos Estados Americanos, muito do entendimento sobre desaparecimento está ainda vinculado ao contexto histórico e traumático do passado ditatorial, incluindo práticas como o sequestro, a tortura e a morte de dissidentes políticos dentro de áreas militares oficiais ou extraoficiais. Esse entendimento específico levanta questionamentos sobre a capacidade de nossa sociedade em tornar visível práticas de violência que levam ao desaparecimento, mas que não estão necessariamente seguindo o mesmo encadeamento de ações, ou que envolva os mesmos atores. Seguindo uma dinâmica similar, porém não idêntica, o pedreiro Amarildo de Souza foi levado sob custódia por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, torturado dentro de uma unidade da UPP e teve seu corpo desaparecido. O caso não entra na definição de “político” como no contexto da ditadura, por estarmos em um diferente regime político e uma vez que ambos os atores envolvidos — policiais e pessoas não envolvidos na resistência ao regime político vigente — não se enquadram no exemplo clássico. Desta forma, o caso foi classificado como homicídio. Faz-se importante ressaltar, que o “desaparecimento” não é tipificado na lei brasileira, de forma que a violência do apagamento do corpo não está contemplada. É importante lembrar que o desaparecimento de alguém é uma violência que leva a profundos traumas e sofrimento para a família, comunidade e sociedade a qual aquele indivíduo está inserido. Além disso, o
direito ao sepultamento digno está previsto no Código Civil Brasileiro. Atualmente no Brasil, grupos de extermínio e milícias estão envolvidos em práticas de violência que também levam ao desaparecimento de corpos e vestígios de pessoas, mas que também não seguem o mesmo padrão de práticas como a do passado ditatorial. Muitos são os exemplos mais recentes no país, de uma violência que apaga não apenas corpos, como também vestígios de sua própria violência. É comum que, nesses casos, outras nomenclaturas sejam evocadas no lugar do uso de “desaparecimento” para qualificar a violência sofrida. O uso de termos como massacre ou mesmo assassinato está muito associado ao desaparecimento de pessoas e aproxima o desaparecimento da morte. Outro exemplo da época da redemocratização do Brasil ficou conhecido como o Massacre de Acari, em 1990. Em Acari onze jovens foram desaparecidos, incluindo sete menores de idade. A maioria deles, residentes da favela de Acari, estava participando de um churrasco em Magé — município no Rio de Janeiro — quando um grupo que se identificou como formado por policiais invadiu a casa em que os jovens estavam pedindo por dinheiro e joias. A dona da casa, uma senhora de 71 anos, e seu neto de 12 anos conseguiram escapar, mas nenhum dos outros jovens que estavam na casa foram vistos novamente e seus corpos nunca foram encontrados. As mães dos adolescentes organizaram um movimento pedindo por justiça, que ficou conhecido como as Mães de Acari. No entanto, em 1993, uma das mães foi assassinada enquanto investigava o caso. Em 2010 o caso foi encerrado pela divisão de homicídios por falta de provas. A investigação concluiu que o ataque foi cometido por um grupo de extermínio da região, formado por policiais e conhecido como Cavalos Corredores, e que o desaparecimento dos jovens foi resultado da ação de um esquadrão da morte. No entanto, o desaparecimento dos jovens, como uma forma mais específica de violência, não ganhou tanta atenção. Nesse exemplo, pode-se notar
como a narrativa em torno do caso está associada a um massacre, mas coloca o desaparecimento de seus corpos como algo invisível. A negação e a invisibilidade do desaparecimento de pessoas como violência ainda corrente em nosso período democrático não se dá apenas no contexto brasileiro. Em 2014, no México, um grupo de estudantes e professores que estavam se direcionando para participar de um protesto foram parados pela polícia e desapareceram em seguida. O caso ficou conhecido como Ayotzinapa porque a maioria dos quarenta e três estudantes desaparecidos eram alunos da Escola Rural de Ayotzinapa. Embora o caso tenha ganhado bastante atenção em todo o mundo, segundo a organização não governamental Human Rights Watch, outras 149 pessoas desapareceram no país, entre 2006 e 2012, com evidência de participação de policiais sob o contexto de “guerra às drogas” iniciada pelo então presidente Felipe Calderon. A autora Maria Victoria Pita também fala do caso de desaparecimento de jovens moradores de áreas periféricas no contexto da Argentina e defende que há uma despolitização desse tipo de desaparecimento. Ela afirma que, em um país em que a mobilização pública e parte de sua cultura e tradição, mortes causadas por policiais não são consideradas políticas. Ela afirma que a politização da morte de alguém está relacionada à importância que é dada àquela vida. Podemos também observar um outro tipo de tentativa de “desaparecimento” em que o fato está relacionado a uma tentativa de “apagar” a existência de certos indivíduos. Nesse caso, o tipo da morte não está relacionado à qualidade empregada àquela vida, mas sim ao que o corpo daquele indivíduo representa em termos identitários. Tem aumentado muito nos últimos anos, no Brasil, o número de mortes entre a população LGBTQI+ por transfobia, a exemplo do ocorrido em junho de 2021, no Recife, com Roberta, mulher trans, negra e moradora de rua, queimada viva. Esse caso pode ser analisado como uma tentativa de fazer desaparecer, apagar, ao deixar apenas as cinzas daqueles que são considerados fora da norma, e que tem essa diferença claramente visível em seus corpos.
Seguindo essa conceitualização de desaparecimento como apagamento, podemos classificar o desaparecimento forçado de pessoas indígenas na época da ditadura, não apenas como desprezo ou descaso por suas vidas, mas também como tentativa de apagamento da existência desses indivíduos e de seus corpos. Seria então o desaparecimento de pessoas não envolvidas diretamente na resistência a questões políticas, ou não perpetrados por agentes militares, apolítica? Uma das consequências desse entendimento específico do que é político e do que constitui desaparecimento, é a despolitização de embates que levam a diversas práticas de violência na nossa contemporaneidade. Revelase de extrema importância ações que tornem visíveis as práticas de desaparecimento, tanto quanto crime, que infelizmente, ainda ocorre em nossa contemporaneidade e em regimes democráticos, como também práticas de apagamento, quando a intenção é fazer desaparecer o corpo de indivíduos em que suas identidades são visíveis em seus corpos. Ademais, é relevante ressaltar que a negação do desaparecimento enquanto violência, ainda corrente em contextos fora de regimes ditatoriais, está relacionada à negação da importância da vida das vítimas e a desqualificação desse tipo de violência. A ideia de que desaparecimentos em regimes democráticos são apolíticos coloca limites na percepção de que violências perpetradas que levam ao desaparecimento ainda acontecem. LEIA MAIS
ARAÚJO, F. A. Das “técnicas” de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência, sofrimento e política. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. 224 p. FERREIRA, L. C. de M. Pessoas desaparecidas: uma etnografia para muitas ausências. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015. 292 p. PITA, M. V. Formas de morir y formas de vivir: el activismo contra la violência policial. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2010. 256 p.
CONFIRA
ANISTIA DITADURA NEGACIONISMO HISTÓRICO
* Pesquisadora da Universidade de Manchester
DESIGN INTELIGENTE Cristiano Roberto Hentges *
O design inteligente (DI) é um movimento de natureza religiosa com
influência política e que defende o argumento pseudocientífico de que a complexidade e diversidade dos seres vivos não poderia ter surgido por acaso. Para seus defensores, estes teriam sidos criados ou planejados por um designer, ou seja, uma mente consciente. Eles sustentam também que as estruturas orgânicas e os processos moleculares não poderiam evoluir passo a passo, como afirma a teoria evolutiva, mas teriam que ser formados “prontos” ou guiados por um agente externo. Tal argumento, que invoca um agente para explicar a complexidade do mundo natural, não é em nada novo. Esse tipo de raciocínio surgiu várias vezes durante a história, sendo que seu primeiro registro data da Grécia Antiga, com o autor Xenofonte. No caso do DI, trata-se de uma versão renovada do criacionismo, mas que utiliza a terminologia científica e conceitos pseudocientíficos de forma mais sofisticada. Ele possui uma relação estreita com um movimento anterior conhecido como criacionismo científico, que também utilizava uma roupagem das ciências para sustentar sua defesa do relato bíblico. O que diferencia ambos é que, à diferença do criacionismo, o DI não defende necessariamente a literalidade bíblica. Para compreender o DI é preciso reconhecer também a sua ligação com o pós-modernismo, uma espécie de corrente ou estilo teórico que se sustenta filosoficamente em conceitos e análises que desafiam a validade objetiva das tradições acadêmicas. Utilizada pelo DI desde sua origem, a abordagem pós-moderna tem se mostrado extremamente útil para um grupo que pretende substituir as teorias evolutivas pela narrativa bíblica. O DI surgiu de grupos cristãos nos Estados Unidos e teve lá seu
maior impacto, embora atualmente ele seja defendido também por denominações criacionistas, islâmicas, judaicas e hindus. O seu maior financiador é o Discovery Institute, grupo politicamente conservador sem fins lucrativos com sede em Seattle, fundado em 1990. Teórico de peso para o movimento foi Phillip E. Johnson, o “pai do DI” como ele mesmo se descreveu. O autor publicou em 1991 o livro Darwin on Trial (Darwin sob julgamento) e participou da criação do documento antievolucionista conhecido como a estratégia Wedge. Mais ainda, Johnson foi co-fundador do chamado Centro para Ciência e Cultura, parte integrante do Discovery Institute que pressiona políticos e instituições de ensino para a modificação das grades curriculares em favorecimento do DI. O título da obra de Johnson mostra que o antievolucionismo é um dos pilares de sustentação do movimento. A obra Origem das espécies foi publicada em 1859, porém a oposição criacionista às suas teorias surgiu somente nas últimas décadas do século 19, quando a discussão ganhou a arena pública, já que até então a repercussão da obra havia ficado restrita somente aos círculos acadêmicos. O duelo “evolução versus criação” difundiu-se em vários países desde as primeiras décadas do século 20, mas foi especialmente nos Estados Unidos que ganhou força e recebeu nomes como “as guerras da evolução” ou “o debate das origens”. As ideias contidas em toda a obra de Darwin desafiaram a interpretação literal bíblica ao oferecerem uma resposta alternativa plausível para o mistério da origem e diversidade de espécies no nosso planeta e, ao fazer isso, atingiram o âmago do mundo cristão. Se as suas teorias estivessem corretas, a vida não poderia ter apenas alguns milhares de anos, como prescrito na Bíblia. Todas as espécies vivas atuais estariam relacionadas entre si por um descendente comum, e, o mais importante, os seres humanos seriam apenas mais um elo nessa cadeia sem fim onde espécies surgem e desaparecem. A razão do conflito com o darwinismo pode ser compreendida com
mais clareza através da leitura do Documento Wedge, escrito pelo Discovery Institute e vazado na internet em 1999. Ele apresenta um plano de ação social, acadêmica e política abrangendo um período de 20 anos conhecido como “estratégia da cunha” (Wedge Strategy). O objetivo dos seus autores, segundo o próprio documento, seria resgatar os valores teístas do Ocidente em contraposição aos intelectuais que se basearam nas descobertas da ciência moderna. Sustentam também que Charles Darwin, Karl Marx e Sigmund Freud não acreditavam nas concepções tradicionais de Deus e do homem. Esses autores teriam retratado os seres humanos não como seres morais e espirituais, mas como animais ou máquinas que habitavam um universo governado por forças puramente impessoais e cujo comportamento e os próprios pensamentos eram ditados pelas forças inflexíveis da biologia, química e do ambiente. O documento também aponta a teoria de Darwin como agente catalizador para mudanças culturais. Além disso, descreve a teoria da evolução como o tronco de uma árvore maligna que produziria supostos frutos podres tais como o secularismo, crimes, livros obscenos, homossexualidade, relativismo, drogas, educação sexual, comunismo, engenharia genética, aborto, rock pesado, inflação e outros. O ano de 2005 marca o momento chave para o movimento nos Estados Unidos quando ele enfrentou seu grande desafio jurídico. Na ocasião, uma escola pública na Pensilvânia foi processada por inserir o ensino do DI no currículo e por exigir que fosse lida uma declaração durante as aulas de biologia desacreditando a teoria evolutiva. O caso ficou conhecido como Kitzmiller versus Dover Area School District e foi quando o movimento de DI teve seu status de ciência negado. Seu ensino em escolas públicas foi julgado inconstitucional, pois o movimento não se distinguia de seus antecedentes criacionistas, sendo de cunho religioso e não científico. Devido a essa derrota jurídica, houve uma mudança de estratégia
por parte dos membros do DI que, por recomendação do Center for Science and Culture (CSC), passaram a não mais ensinar as crenças do movimento, mas sim a indicar os pontos fortes e fracos da evolução. A partir de então, o movimento passou a clamar por liberdade acadêmica. Mais de 30 projetos de lei contendo esse termo foram propostos por legisladores antievolucionistas desde 2002. A história e o resultado desse julgamento e de outros que ocorreram durante todo século 20 mostram três grandes tendências do DI nesse período nos Estados Unidos. A mais óbvia é que a ambição dos criacionistas foi sendo restringida. Se em 1925 o professor americano John Scopes foi condenado por ter ensinado a teoria evolutiva e em 1929 o ensino da mesma foi proibido em muitos estados, já em 1987 o ensino do criacionismo é que foi banido, freando os antievolucionistas. Outra tendência foi a mudança de estratégia no campo terminológico, com o emprego progressivo dos termos e, até mesmo, métodos das ciências pelos detratores da teoria evolutiva e a paralela supressão e mascaramento de qualquer terminologia religiosa. Por fim, os exemplos oferecidos pelos defensores do DI de supostas falhas e lacunas na teoria evolutiva têm se limitado a casos cada vez mais microscópicos e intangíveis. No Brasil, o movimento chegou em 2014, com a fundação da Sociedade Brasileira do Design Inteligente, por ocasião do 1º Congresso Brasileiro do Design Inteligente, ocorrido em Campinas. Além disso, em 2017 criou-se também uma parceria da Universidade Presbiteriana Mackenzie com o Discovery Institute. Para compreendermos o potencial de difusão do DI no Brasil, é preciso considerar que, segundo pesquisa do Datafolha de 2010, para 59% dos brasileiros, os seres humanos se desenvolveram ao longo de milhões de anos a partir de formas menos evoluídas de vida, com Deus guiando esse processo de evolução. Mais ainda, 25% dos pesquisados acreditam que Deus criou os seres humanos de uma só vez, praticamente da forma que são hoje, em algum
momento nos últimos dez mil anos. Embora não haja, em princípio, ligação direta entre denominações religiosas, partidos políticos e o movimento de DI, percebe-se que, no Brasil, esse movimento se utiliza da mesma estratégia adotada nos Estados Unidos desde a aparição do Documento Wedge. Dado que atualmente não lhes parece possível banir ou substituir o ensino da teoria evolutiva pelo criacionismo, o que visam é inserir o DI no currículo escolar de forma complementar, apelando a uma versão retorcida dos princípios democráticos. Dentro da academia brasileira, nome de destaque do DI é Marcos Nogueira Eberlin. Apesar de ser químico e ter várias publicações científicas na sua área, o acadêmico não publicou ainda nada relacionado ao DI em periódicos revisados por pares, mas publicou livro intitulado Fomos planejados: a maior descoberta científica de todos os tempos. Para o autor, a evolução faliu por supostamente não conseguir explicar a complexidade da vida. A falta de publicações em periódicos e a ausência de hipóteses testáveis mostram a limitação do movimento de DI do ponto de vista da credibilidade científica. Isso reflete-se no trabalho dos membros norte-americanos do DI e, também, no dos brasileiros. Em termos gerais, os conceitos defendidos pelos proponentes do DI não têm correspondência com as evidências científicas discutidas por eles, mas, paradoxalmente, é essencial ao próprio movimento reivindicar legitimidade científica perante o público. LEIA MAIS
FORREST, B.; GROSS, P. R. Creationism’s Trojan Horse: The Wedge of Intelligent Design. 1. ed. New York: Oxford University Press, 2004. 448 p. HENTGES, C. R.; ARAÚJO, A. M. de. “Uma abordagem históricocrítica do Design Inteligente e sua chegada ao Brasil.” Filosofia e História da Biologia, v. 15, n. 1, p. 1-19, 2020.
PIGLIUCCI, M. Denying Evolution: Creationism, scientism, and the nature of science. Oxford: Sinauer Associates/ Oxford University Press, 2002. 275 p. PENNOCK, R. T. Tower of Babel: The evidence against the new creationism. Massachusetts: MIT Press, 1999. 452 p. CONFIRA
NEGACIONISMO CIENTÍFICO RELIGIÃO TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
DESIGUALDADE Bruno Costa *
O negacionismo, no debate sobre a desigualdade social, apresenta
uma peculiaridade curiosa: é pouco frequente a negação da existência do fenômeno. Talvez por ser a desigualdade tão evidente na experiência imediata do cotidiano, o negacionismo nesse campo milita antes em um conjunto de afirmações correlatas e nas consequências do fenômeno. Essas afirmações podem ser resumidas em três conjuntos: I) a desigualdade não é relevante, e a preocupação da sociedade e dos governos nesse campo deveria ser unicamente o enfrentamento à pobreza e a promoção do que é chamado prosperidade; II) a desigualdade pode ser desagradável, mas é justa e necessária, pois expressa, recompensa e incentiva o esforço e a capacidade (o que se convencionou chamar de mérito) e III) a desigualdade pode ser ruim, mas é um mal necessário para garantir as condições de melhorar o bem-estar de todos. O primeiro ponto se expressa no seguinte questionamento: se se enfrentam as formas severas de privação — em uma palavra, pobreza — e se melhoram as condições absolutas de vida de todos, por que a sociedade deveria se importar que alguns sejam mais favorecidos? Essa preocupação revelaria apenas ressentimento e inveja, que não deveriam ser fundamentos legítimos para qualquer intervenção pública. Há um importante debate moral a ser feito sobre esse tipo de afirmação. No entanto, para o propósito deste verbete o mais relevante é afirmar que é uma assertiva factualmente equivocada. É hoje um consenso que altos níveis de desigualdade são deletérios de várias maneiras para a vida social, mesmo naquelas sociedades em que as condições materiais absolutas mínimas sejam razoáveis. Além disto, as consequências negativas da desigualdade não são restritas àqueles que se encontram nos níveis socioeconômicos mais baixos (os “mais pobres”); ao contrário, o
desempenho das sociedades mais desiguais tende a ser inferior, mesmo para os “mais ricos”, ainda que, internamente, estejam em melhor situação. Esses efeitos se manifestam em vários campos. Em um plano mais abstrato, altos níveis de desigualdade comprometem a própria coesão social, ao minar a noção de destino compartilhado, de que o esforço comum beneficia a todos, e a própria capacidade de alteridade, uma ideia mínima de igualdade que permite a alguém colocar-se no lugar do próximo e reconhecer que poderia ser a própria pessoa a viver os sucessos ou o sofrimento do outro. Quando padrões de vida, círculos sociais, possibilidades e riscos cotidianos são tão distantes, as atitudes em relação aos muito acima ou muito abaixo em termos socioeconômicos passam a ser de indiferença ou, ainda pior, de hostilidade ou ameaça. Nesses termos, a possibilidade e disposição para a construção de soluções coletivas para os problemas ou anseios são comprometidas fortemente. Essa relação geral aparentemente etérea se traduz empiricamente em fenômenos bastante palpáveis: mesmo controlados outros fatores (renda per capita e escolaridade, por exemplo), quanto maior a desigualdade de um país, mais baixa tende a ser a confiança interpessoal, e mais alta a percepção (e também outros índices) de corrupção. Mais que isso, a desigualdade é o principal preditor dos índices de violência (especialmente homicídios intencionais), além de influenciar também as taxas de encarceramento. Na verdade, em praticamente todos os campos relevantes da vida social, os efeitos da desigualdade também são extensos e sistematicamente corroborados. Para não estender demasiadamente, podem ser mencionados os efeitos sobre saúde e educação. Entre os países desenvolvidos (com renda alta, portanto), quanto maior a desigualdade, piores são as expectativas de vida e os níveis gerais de saúde física. A mesma relação é válida na comparação entre os estados norte-americanos. Uma meta-análise de estudos randomizados e com análises multinível demonstrou uma associação sistemática, muito provavelmente causal, entre o índice de Gini do país e o risco de morte precoce, apontando que,
para cada 0,05 de aumento no índice de Gini, corresponderia 8% adicionais de risco de morte, mesmo levando em conta sexo, idade, nível socioeconômico. Resultados parecidos são encontrados em diversos outros trabalhos que analisam mortalidade infantil (tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento), obesidade ou saúde mental. Do ponto de vista da educação, níveis mais altos de desigualdade (e também de segregação escolar) estão associados a piores desempenhos médios ou globais dos estudantes em comparações internacionais por meio de testes padronizados. Nesse campo, as evidências são bastante notáveis, porque esse resultado se mantém, mesmo levando em conta outros fatores que também têm influência importante, como a renda do país e dos estudantes ou o gasto em educação; ainda que se restrinja o universo comparado a países desenvolvidos (OCDE, por exemplo) ou quando se comparam apenas os estudantes de nível socioeconômico mais alto de cada país. A desigualdade — e não apenas a privação absoluta — prejudica a todos e é, per se, um fator limitador das possibilidades educacionais de um país. Saúde e educação são suficientes para demonstrar alguns pontos. Primeiro, que as distintas esferas da vida social não são estanques: são conjuntos de relações sociais e materiais que têm uma lógica própria, mas que se entrelaçam de formas variadas e complexas. Pode-se afirmar com bastante segurança que níveis altos de desigualdade material tendem a se traduzir em desigualdades em várias outras dimensões da sociedade e, por meio delas, se reproduzem no tempo e entre gerações. Além disso, altos níveis de desigualdade não prejudicam apenas os mais pobres ou vulneráveis. A desigualdade afeta o bem-estar de todos e limita o horizonte de possibilidades da sociedade de forma global, mesmo que aqueles comparativamente privilegiados não se deem conta disso. Em suma, a afirmação de que a desigualdade não deveria ser objeto de preocupação, mas somente a melhora das condições absolutas de vida, não se sustenta empiricamente. A desigualdade tem efeitos independentes, deletérios e generalizados sobre as
sociedades. O segundo conjunto de afirmações negacionistas pode ser expressa assim: a desigualdade pode ser um fenômeno desagradável e até mesmo prejudicial sob certos aspectos, mas seria justa e, em boa medida, necessária. Justa porque expressa a maneira pela qual uma sociedade recompensa seus membros mais empreendedores, competentes e esforçados. Mas também necessária: na medida em que se vive em uma sociedade competitiva, é preciso que ela distribua recompensas desiguais para dar aos indivíduos incentivos suficientes para buscarem se formar, para se dedicar ao trabalho, para inovar, o que, no final das contas, seria benéfico para toda a sociedade. Se todos recebessem valores (ou recompensas, nesses termos) parecidos, não haveria motivação suficiente, o que levaria a sociedade à estagnação, geraria perda de produtividade e de eficiência, com prejuízo para todos, inclusive para os mais pobres. No entanto, o suposto de que as desigualdades atuais refletem o esforço, a formação ou o talento — o mérito, essa noção tão elusiva e enganosa — é simplesmente falsa. Os supostos que sustentam a noção de uma sociedade meritocrática, descrita nos termos acima seriam: I) as posições sociais se distribuem segundo o mérito e a qualificação, não segundo a filiação hereditária; II) as qualificações que determinariam que posições sociais serão ocupadas por cada um seriam adquiridas, não herdadas. E a educação formal seria o meio principal de adquirir estas qualificações; III) para todo indivíduo, a possibilidade de acesso à educação formal depende apenas de suas preferências e capacidades. Nas sociedades meritocráticas, há igualdade de oportunidades educacionais. Só na medida em que essas condições se verificam seria plausível discutir, nos termos liberais e meritocráticos, a justiça ou necessidade de uma distribuição marcadamente desigual de renda, riqueza, bens, serviços ou outros recursos. O problema é que na maior parte dos países — e, no Brasil, é ainda pior — praticamente nenhum desses supostos se comprova,
ao menos plenamente. O primeiro implicaria a existência de alta mobilidade social, uma alta probabilidade de que uma pessoa venha a ocupar uma posição social diferente daquela de seus pais. Uma sociedade com baixa mobilidade indica que as posições e recompensas mais valorizadas não estão abertas a todos, mas resultam de condições herdadas ou de mecanismos de discriminação racial, de gênero, orientação sexual, étnica; enfim, as chances de vida são definidas por sua origem social e não pelo seu esforço ou pela sua competência. A mobilidade encontra-se estagnada ou em queda em muitos países e é muito baixa no Brasil. Estudo recente da OCDE demonstra que seriam necessárias nada menos que nove gerações para que os descendentes de alguém que nasceu entre os 10% mais pobres do Brasil alcançasse não o topo da pirâmide, mas a modesta renda média da população brasileira, indicando que cerca de 70% da desigualdade de rendimentos de uma geração são transmitidos para a geração seguinte. Entre os países avançados da OCDE essa marca é bem mais baixa — seriam necessárias em média 4 ou 5 gerações — mas tampouco permite classificá-los como sociedades meritocráticas. Os outros supostos também são empiricamente problemáticos. De fato, a escolaridade responde por boa parte das diferenças, por exemplo, de remuneração. Mas, mesmo com uma mesma escolaridade, permanecem muito acentuadas as desigualdades de remuneração de gênero, étnicas e raciais, entre outras, mostrando que mecanismos variados de discriminação persistem influenciando as chances de vida. Finalmente, o suposto de que as realizações educacionais dependeriam unicamente das escolhas e dedicação dos indivíduos e de suas famílias é notoriamente irrealista. Não existe ainda um país que tenha conseguido eliminar totalmente a influência da origem social e das condições herdadas sobre o alcance educacional dos estudantes. No Brasil, sob qualquer critério, as desigualdades de oportunidades educacionais são ainda mais intensas e disseminadas, dos pontos de vista socioeconômico, racial, regional, de localização, entre outros. Ou seja, mesmo que se adote, do ponto de vista normativo, uma concepção de justiça em
que as desigualdades de resultados e posições sejam justificadas em termos de méritos e incentivos, uma análise mais atenta mostra que a falta de igualdade de oportunidades (ou das condições iniciais) e a persistência de mecanismos discriminatórios na alocação dessas recompensas, recursos e posições tornam a justificativa meritocrática pouco mais do que uma quimera e muito de uma mistificação ideológica. Resta, por fim, o argumento segundo o qual, ainda que injusta, ainda que prejudicial em outros campos, a desigualdade seria um requisito, ao menos temporário, do crescimento econômico. Haveria assim um dilema entre equidade e crescimento. Segundo Branko Milanovic, nessa visão, sem lucros elevados não pode haver crescimento, e a existência de lucros elevados supõe graus também significativos de desigualdade. Em uma economia de mercado isto significa que alguém tem que ser rico o suficiente para poupar e para investir, o que significa, em termos práticos, que um grau significativo de desigualdade é condição para que o crescimento econômico possa produzir mais bem-estar para todos, ainda que desigualmente. Há vários problemas conceituais e empíricos com esse raciocínio. Em primeiro lugar, ele não é um argumento em favor da desigualdade enquanto tal: a existência de indivíduos com mais riqueza seria justificada, mas somente sob a condição de que esta riqueza não fosse utilizada para o consumo conspícuo, o próprio prazer etc., mas essencialmente para o investimento, o que é uma condição bastante estrita. Mas o maior problema do argumento é a sustentação empírica. Durante muito tempo toda uma linha de pesquisa foi malsucedida em encontrar uma relação positiva sólida e não controversa entre desigualdade e crescimento econômico. Com a pesquisa empírica mais recente, porém, a figura que se desenha é a de uma correlação significativa e negativa entre altos níveis de desigualdade e crescimento econômico. E mais, o crescimento econômico sob alta desigualdade é mais instável e menos sustentável. Finalmente, vem se tornando uma importante hipótese e agenda de pesquisa a questão que deveria ser óbvia: qual crescimento e crescimento para
quem? Segundo Milanovic, a desigualdade pode ser boa para o crescimento da renda dos ricos (ou seja, torna-os ainda mais ricos), mas ser prejudicial para o crescimento renda dos pobres (que perdem ainda mais terreno em relação aos ricos). Em suma, as evidências recentes vêm demonstrando ainda mais que a relação entre desigualdade e crescimento econômico é eminentemente negativa e prejudicial à prosperidade social. Assim, se nenhuma das três linhas do negacionismo no campo da desigualdade encontra respaldo nos fatos, elas seguem cumprindo um relevante papel ideológico, fornecendo um véu de respeitabilidade acadêmica ou de valor público e social àquilo que é, no fundo, pouco mais que interesse de classe. CONFIRA
GENOCÍDIO IBGE POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS
* Pesquisador da Fundação João Pinheiro (FJP)
DESIGUALDADE E INTERSECCIONALIDADE Rogério de Souza Medeiros *
U
ma profunda, complexa e persistente desigualdade está entre os traços mais marcantes da estrutura social brasileira. De acordo com dados do Banco Mundial, o Brasil é o oitavo país mais desigual do mundo e o mais desigual de toda a América Latina em concentração de renda (GINI index — World Bank estimate). Um fenômeno significativo em si mesmo, mas com nítidas consequências para as mais distintas áreas da vida nacional, da habitação à saúde, da educação à segurança pública. A desigualdade no Brasil se impõe como uma realidade incontornável. As paisagens geográficas e sociais do país fornecem um relato eloquente acerca dos impactos de uma ordem econômica, social, cultural e politicamente excludente. Imagens de extensas favelas ao lado de luxuosos prédios e condomínios, casas de palafitas, cenas de crianças negras descalças brincando em ruas sem saneamento, emolduradas por paredões de altos edifícios residenciais de padrão requintado, são todos exemplos da nossa desigualdade social que ilustram páginas de relatórios e capas de revistas no Brasil e no exterior. Baseados em metodologias inovadoras que fizeram uso de dados de imposto de renda, estudos realizados a partir da primeira década do século 21 apontam para uma notável estabilidade da concentração de riqueza no topo da pirâmide social ao longo de todo o século 20. Os dados revelam que houve, ao longo do último século, algo em torno de 25% da renda nacional concentrados nas mãos do 1% mais rico, com pouquíssimas variações no período. Em 2017, 5% da população brasileira detinha a mesma fatia da renda nacional que o outros 95% (dados de uma importante entidade internacional de promoção da equidade social). Em suas
consequências, a permanência dessa gigantesca desigualdade de renda se desdobra em dramáticas desigualdades educacionais, alimentares, nutricionais, habitacionais, sanitárias, entre muitas outras. Mas as nossas desigualdades também são bem mais abrangentes do que as desigualdades de renda. Por exemplo, de acordo com o Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, no Brasil, a taxa de participação dos homens na força de trabalho era de 73,3%, enquanto das mulheres a participação era de 54,5%. Em 2020, as mulheres representavam apenas 16% de todos os vereadores eleitos no país. No mesmo ano, enquanto os homens ocupavam 62,6% de todos os cargos gerenciais, as mulheres ocupavam 37,4% desses cargos. Esses exemplos ilustram uma acentuada desigualdade de gênero, que coloca o Brasil como o país com o 2º pior índice de desigualdade de gênero da América Latina, de acordo com o Fórum Econômico Mundial. Junto com essas desigualdades de renda e de gênero, o Brasil também sustenta o legado histórico de uma profunda desigualdade racial. De acordo com o IBGE (Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil), em 2018, 34,6% dos trabalhadores brancos estavam em ocupações informais, enquanto entre os trabalhadores pretos e pardos 47,3% estavam na informalidade, o que revela uma aguda desigualdade racial no acesso às garantias definidas pela legislação trabalhista. Apenas 29% dos cargos gerenciais eram ocupados por pessoas pretas ou pardas. O rendimento médio mensal das pessoas brancas ocupadas era, em 2018, 73,9% superior ao da população preta ou parda e os trabalhadores brancos com curso superior recebiam 45% a mais por hora do que os trabalhadores pretos ou pardos com o mesmo nível de instrução. No que diz respeito aos indicadores de violência, o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde registrou, em 2017, que uma pessoa preta ou parda tem 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio do que uma pessoa branca. Diante dessas evidências, podemos afirmar que o Brasil é um país extremamente desigual, há muito tempo e em muitos sentidos. Além disso, é importante considerar que, embora esses números já
demonstrem de maneira inequívoca desigualdades marcantes de classe, gênero e raça, os efeitos de cada uma dessas dimensões sofre influências das outras. Ou seja, há que se levar em conta que alguns desses indicadores de desigualdade são ainda mais agudos nos entrecruzamentos das categorias de classe, raça e gênero. Os estudos sobre o caráter interseccional (imbricado, mutuamente reforçado) das desigualdades no Brasil revelam que as distâncias que dividem a população brasileira em termos do acesso aos meios necessários para uma vida digna são ainda maiores do que os dados parciais de cada uma dessas dimensões já revelam. Ou seja, estamos diante de um quadro de injustiças sociais que está profundamente enraizado na estrutura da sociedade brasileira, mantido e reforçado pela combinação de mecanismos econômicos, culturais e políticos. Esse processo de manutenção se dá pela combinação de heranças históricas — como o legado de um longo passado escravocrata —, sedimentadas em códigos culturais (racismo, sexismo e preconceito com os pobres) que passam a orientar condutas e comportamentos discriminatórios, tanto no nível individual/pessoal, quanto no nível do funcionamento das instituições (do mercado de trabalho, da educação, da mídia, do sistema de justiça etc.). Considerando esse panorama abrangente de algumas das formas mais persistentes e interconectadas de desigualdades observadas no Brasil, restaria perguntar como os brasileiros percebem e interagem com esse quadro de injustiças sociais. Como coletividade, quais os padrões conhecidos de atitudes e opiniões dos brasileiros em relação às suas desigualdades mais persistentes? Uma das formas conhecidas de analisar como uma dada população percebe e se posiciona acerca das desigualdades que lhe afetam é observando o grau de apoio ou rejeição que recebem as medidas de combate às desigualdades. Esse é um campo de pesquisa que se desenvolveu como parte dos estudos sobre
sistemas de políticas sociais, ou regimes de bem-estar social. Mais especificamente, o interesse nas percepções sobre as desigualdades e nos posicionamentos de apoio ou rejeição da população às políticas públicas de combate às desigualdades deu origem a uma literatura de pesquisa conhecida como welfare attitudes (atitudes sobre bem-estar). No Brasil, estudos desse tipo têm sugerido relações ambíguas da população com medidas adotadas visando à redução das desigualdades e alguns dos seus efeitos diretos. As atitudes variam muito em função de diversos fatores, como classe, região, sexo, escolaridade e o tipo de medida adotada. Em levantamento feito em uma conjuntura extremamente favorável de crescimento econômico (primeira década dos anos 2000), especialistas apontaram que havia, entre as populações mais pobres do Norte e Nordeste do país, com renda inferior à média nacional, uma proporção bem maior apoiando medidas de caráter distributivo do que aquela observada entre os estratos de maior renda. O brasileiro médio considera central o papel do governo na redução das desigualdades entre ricos e pobres e na garantia do bem-estar da população e identifica a desigualdade de renda como um dos principais problemas do país. Por outro lado, ao considerar a pobreza enquanto um problema fortemente relacionado às desigualdades, as percepções da população sobre as suas causas revelam grandes divisões, onde muitos consideram que a pobreza se deve à falta de oportunidades e outros consideram que ela existe por motivos individuais, como falta de esforço ou interesse por parte daqueles que se encontram nessa condição. Igualmente interessante de perceber é a tendência da população brasileira em apoiar medidas distributivas de caráter focalizado (voltada para grupos populacionais específicos) e a rejeitar medidas de caráter universal, como a criação e ampliação de novos direitos de cidadania, apesar da literatura especializada no assunto apontar que as medidas de cunho universalista geralmente alcançam efeitos não apenas mais abrangentes, mas também mais duradouros no combate às desigualdades. Uma grande divisão também é observada em relação à política pública mais conhecida do Brasil na
atualidade, o Programa Bolsa Família (programa de transferência condicionada de renda para a população mais pobre) que segue dividindo opiniões, julgamentos e atitudes em relação aos seus mais diversos aspectos, como a cobertura, o valor do benefício, os tipos de exigência para tornar-se apto a receber (as chamadas “condicionalidades”). Se, por um lado, a maior parte da população defende a manutenção do programa como uma necessidade, por outro, as opiniões se dividem bastante em termos de quem seriam os verdadeiros “merecedores” desse auxílio governamental, bem como em termos dos usos considerados aceitáveis e não aceitáveis dos recursos recebidos. Em suma, verifica-se que as percepções e opiniões acerca de políticas distributivas no país não se baseiam em critérios estritamente técnicos, mas são sim fortemente impactadas por orientações ideológicas e valores morais que a todo momento são evocados para justificar apoio ou rejeição a essas medidas. Nesse sentido, cabe ainda ressaltar que, no entrecruzamento das diversas formas de desigualdade que caracterizam a sociedade brasileira, fatores culturais, econômicos e sociais se combinam e afetam a visão que as pessoas têm tanto da desigualdade quanto das medidas para combatê-la. É o caso das grandes representações culturais que constituem traços de uma identidade nacional. Um exemplo conhecido e amplamente debatido é a imagem de que no Brasil as relações entre os grupos raciais seriam mais harmônicas do que em outras partes do mundo. É o que ficou conhecido como o mito da democracia racial, ideia que se tornou bastante difundida no Brasil e no exterior até meados do século 20. Já a partir da década de 1960, essa ideia recebeu críticas profundas, baseadas em pesquisas acadêmicas, e passou a figurar na galeria de mitos nacionais, e não mais como uma tese com pretensões de validade científica. No entanto, a força do argumento que o mito carrega continua reverberando fortemente entre nós, e é muito visível quando se argumenta que no Brasil o preconceito é antes de classe, e não de raça. Por fim, em linha com essas considerações, o caráter intrincado
das nossas desigualdades faz com que elas se complementem e se reforcem: a atitude de negação da existência do racismo entre nós implica no encobrimento de desigualdades raciais já amplamente documentadas, a negação da existência de traços patriarcais nas nossas relações cotidianas ajuda a encobrir persistentes desigualdades de gênero, assim como atribuir aos pobres a responsabilidade pela existência da pobreza ajuda a manter veladas todas as dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais que contribuem para a manutenção desse fenômeno. LEIA MAIS
SOUZA, P. H. G. F. de. Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013). São Paulo: Hucitec, 2018. LAVINAS, L.; COBO, B.; WALTENBERG, F.; VELGA, A.; MÉNDEZ, Y. S. Percepções sobre desigualdade e pobreza: o que pensam os brasileiros da política social? Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2014. 195 p. SVALLFORS, S. Contested welfare states: welfare attitudes in Europe and beyond. Stanford, CA: Stanford University Press, 2012. 272 p. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Condições de vida, desigualdade e pobreza. Brasília: IBGE, 2021. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
DESIGUALDADE PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA)
POPULISMO CIENTÍFICO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
DESINFORMAÇÃO (COMBATE À) Dayane Machado * Leda Gitahy **
A desinformação é a mentira deliberada, estrategicamente utilizada
para obter vantagens. Ao longo da história e especialmente em momentos de grande tensão social, tais como guerras, crises financeiras e pandemias, diferentes estratégias de desinformação costumam ser mobilizadas para desorientar políticas públicas, fortalecer agendas e legitimar a perseguição a determinados grupos sociais. Karl Popper foi um dos primeiros a analisar esse processo na obra The Open Society and Its Enemies, partindo dos ataques e abusos dos nazistas em relação aos judeus. Em A sociedade do espetáculo, Guy Debord tratou da espetacularização da vida, caracterizando a sociedade contemporânea, entre outros fatores, pelo surgimento da mentira sem contestação. Debord já falava em um desaparecimento da distinção entre a verdade e a mentira e, ao tratar da desinformação, chamava atenção para a profissionalização da conspiração em causa própria. Atualmente, o termo desinformação é utilizado para denominar três diferentes categorias: a informação incorreta, a desinformação em si e a má-informação. A informação incorreta é o conteúdo falso que as pessoas compartilham acreditando que seja verdadeiro. Ela pode ser resultado de uma comunicação mal planejada, de um malentendido e da falta de atenção ou de verificação dos materiais por parte do público. Diferente da informação incorreta, que acontece sem querer, a desinformação é o conteúdo falso produzido e distribuído com a intenção de confundir ou de enganar. É a mentira deliberada, frequentemente utilizada para benefícios políticos e financeiros. A má-informação, por sua vez, é o conteúdo verdadeiro, ou parcialmente verdadeiro, distribuído sem autorização com o
propósito de prejudicar indivíduos ou instituições. O vazamento de informações pessoais é um exemplo desse tipo de manobra e, embora esses conceitos possam se sobrepor em algumas situações, a distinção entre eles é importante para identificar as causas e as respostas mais adequadas para cada um desses problemas. Por ser um fenômeno complexo que atravessa vários tipos de mídia, essas três categorias também podem assumir formas muito variadas e sua produção e distribuição podem envolver públicos em situações muito diferentes. O processo de identificação, especialmente da informação incorreta e da desinformação, não é, portanto, uma tarefa simples, exigindo certos critérios para a contextualização e para o diagnóstico de cada caso. Grande parte das pesquisas sugere que o modo mais adequado para essa identificação envolve avaliar se o conteúdo é considerado incorreto a partir de dois parâmetros: as melhores evidências sobre o assunto em questão, bem como o posicionamento de experts relevantes naquele dado momento. Esses cuidados são essenciais para lidar com o próprio processo de desenvolvimento da ciência, visto que, especialmente no caso de temas pouco estudados, o conhecimento científico tende a mudar conforme novas descobertas são realizadas. Um exemplo disso ocorreu durante a pandemia de covid-19: as pesquisas levaram alguns meses para confirmar os principais mecanismos de transmissão da doença, o que fez com que as medidas oficiais de prevenção fossem adaptadas ao longo do tempo. A circulação de desinformações em escala e velocidade inéditas, como vem ocorrendo nos últimos anos, é um fenômeno preocupante porque pode causar inúmeros danos à sociedade. Há evidências de que a exposição excessiva a conteúdos enganosos como teorias da conspiração pode influenciar a decisão das pessoas de se vacinar ou de cumprir o calendário vacinal. Essa exposição também pode diminuir o engajamento do público em relação a questões políticas, reduzir o apoio a propostas de combate às mudanças climáticas,
intensificar conflitos sociais, enfraquecer os níveis de confiança da população em relação a processos democráticos e, em situações graves como pandemias, pode diminuir a adesão das pessoas a recomendações oficiais de saúde, aumentando os riscos de exposição e de mortes. Como argumenta o relatório Mitigating Medical Misinformation, do Shorenstein Center nos Estados Unidos, há diversas formas de combater a desinformação, mas o ideal é que a resposta envolva vários setores da sociedade e que ela seja coordenada e colaborativa. Em momentos de crise, por exemplo, é importante que a população tenha acesso a informações pontuais, locais, relevantes e persistentes. Em outras palavras, a mensagem precisa fazer sentido para o contexto do público naquele momento e ela precisa ser repetida em diferentes canais midiáticos para estabelecer uma percepção compartilhada dos acontecimentos. De modo geral, o combate à desinformação pode ser dividido em abordagens de curto e de longo prazo. No primeiro tipo de abordagem, podemos destacar ao menos duas estratégias essenciais. Primeiramente, é preciso monitorar os boatos para avaliar o momento correto de corrigi-los. Esse cuidado evita a amplificação, uma tática muito comum entre os manipuladores — quem produz e distribui a desinformação buscando algum benefício. Em campanhas de manipulação midiática, a amplificação consiste em atrair a atenção de celebridades, de políticos e de outras personalidades que tenham acesso a grandes veículos de comunicação. Quando essas tentativas funcionam, os boatos podem alcançar públicos gigantescos em pouco tempo e essa exposição midiática, mesmo que numa tentativa de correção, pode então popularizar e legitimar a mentira em vez de combatê-la. Por outro lado, o monitoramento pode indicar que o boato já está circulando amplamente, fazendo com que a imprensa e outras organizações falem publicamente sobre ele. Nesses casos, o ideal é seguir um formato de desmistificação baseado nas principais pesquisas sobre o tema e que aumenta as chances de sucesso da
intervenção: a estratégia “fato-falácia-fato”. Começamos citando a informação correta. Em seguida, mencionamos a mentira em questão, explicando porque ela está errada e quais mecanismos ela usa para tentar enganar as pessoas. Por último, repetimos a informação correta. Além de seguir esse formato, é essencial que a comunicação seja respeitosa e que ela não menospreze ou desconsidere o público, uma vez que atitudes agressivas tendem a atrapalhar a desmistificação, criando novos obstáculos para o processo. Quanto à abordagem de longo prazo, uma das iniciativas mais importantes é estabelecer alianças entre diferentes setores tais como organizações civis, veículos midiáticos, instituições educacionais e agências governamentais. Os grupos precisam receber treinamento para monitorar boatos e responder de forma adequada a cada estágio de uma campanha de manipulação. Esse tipo de treinamento pode ser oferecido em diferentes formatos, sendo que os cursos de alfabetização midiática costumam ser os mais gerais. O processo de preparação para identificar a desinformação e compreender o seu funcionamento recebe assim o nome de “inoculação” porque ele funciona como uma espécie de vacina, podendo diminuir a vulnerabilidade das pessoas em relação a tentativas de manipulação. É por isso que, embora a alfabetização midiática seja especialmente relevante para jornalistas, políticos, profissionais da saúde e professores, ela pode trazer benefícios a públicos diversos. Outro cuidado de longo prazo é a identificação de obstáculos que possam atrapalhar o acesso da população a informações confiáveis e relevantes. As redes sociais, por exemplo, vêm sendo cada vez mais utilizadas para o consumo de conteúdos sobre ciência e saúde, ainda que o uso delas seja associado a um maior risco de consumir desinformações sobre assuntos importantes. Ao mesmo tempo, parte significativa da população ainda não tem acesso à internet e recorre a meios de comunicação como o rádio para se
manter informada. Essas desigualdades fazem com que a realidade dos diferentes públicos — quais são as mídias, aplicativos e dispositivos mais utilizados por cada grupo demográfico — seja um fator decisivo no processo de planejamento e de adaptação da mensagem a cada formato de conteúdo ou contexto. Finalmente, um obstáculo fundamental para o enfrentamento desse problema tem sido a falta de ação e de regulação das redes sociais. Embora as empresas constantemente anunciem novas medidas de combate a conteúdos desinformativos ou perigosos, um grande volume de pesquisas indica que plataformas como o Facebook e o YouTube continuam contribuindo para a popularização de conteúdos extremistas, para a estruturação de campanhas de desinformação e para o fortalecimento de movimentos negacionistas. Manipuladores midiáticos exploram as vulnerabilidades desse tipo de serviço para se organizar, para alcançar grandes audiências e para lucrar com conteúdos enganosos. No entanto, nos últimos anos, além de serem lucrativas para os próprios produtores, as desinformações se tornaram um negócio oportuno também para as plataformas. O Center for Countering Digital Hate estima que, ao longo de um ano, o Facebook, o Instagram, o Twitter e o YouTube ganham, juntos, aproximadamente um milhão de dólares apenas com o movimento antivacinação norte-americano. Nesse contexto de conflito de interesses e de inação por parte das empresas, a pressão externa e coletiva vem se estabelecendo como uma das estratégias mais viáveis para o enfrentamento desse problema. O ideal é que os diferentes públicos impactados pela desinformação colaborem com esse tipo de iniciativa, defendendo políticas de uso transparentes e pautadas em práticas de responsabilização. Ao mesmo tempo, é importante destacar que a regulação das plataformas não é uma tarefa simples, exigindo a participação de experts e a mobilização de propostas que sejam baseadas em evidências. Sem esses cuidados, legislações inadequadas podem ser desenvolvidas e, em vez de combater a
desinformação, elas podem se tornar instrumentos de perseguição política e de censura, principalmente em momentos de crise e em contextos políticos autoritários. LEIA MAIS
LEWANDOWSKY, S.; COOK, J.; LOMBARDI, D. et al. O manual da desmistificação 2020. Fairfax: George Mason University — Center for Climate Change Communication, 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. VRAGA, E. K.; BODE, L. “Defining misinformation and understanding its bounded nature: using expertise and evidence for describing misinformation.” Political Communication, v. 37, n. 1, p. 136-144, 6 fev. 2020. The fórum. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. WARDLE, C.; DERAKHSHAN, H. “Reflexão sobre a ‘Desordem da Informação’: formatos da Informação Incorreta, Desinformação e Má-informação.” In: IRETON, C.; POSETTI, J. (Orgs.). Jornalismo, fake news & desinformação: manual para educação e treinamento em jornalismo. Brasília: Unesco, p. 46-58, 2019. CONFIRA
FAKE NEWS PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Pesquisadora da Universidade de Estadual de Campinas (Unicamp) ** Professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
DESREGULAMENTAÇÃO DAS ARMAS DE FOG0 Carolina Christoph Grillo *
A
s armas de fogo e o controle sobre elas foram historicamente centrais nos processos de formação dos Estados modernos. Desde a invenção da pólvora na China do século 9 e a fabricação das primeiras bombardas no século 13, as estratégias e táticas de guerra passaram por transformações em ritmo cada vez mais acelerado. E depois que os canhões, mosquetes e arcabuzes substituíram as catapultas, lanças e flexas, as dinâmicas geopolíticas globais nunca mais foram as mesmas. Na Europa, a superioridade bélica proporcionada pelas armas de fogo propiciou tanto a centralização dos meios coercitivos como a expansão dos mercados e domínios coloniais dos Estados recém-formados. Nesses países, a formação de exércitos nacionais e instituições policiais foi concomitante ao desmantelamento dos exércitos particulares e o desarmamento da população civil. O Estado e o capitalismo, tal como os conhecemos, seriam impensáveis sem o advento e a evolução das armas de fogo, bem como das políticas de controle e desarmamento das suas populações. O poder letal desses artefatos, conjugado a outras invenções tecnológicas, redesenhou as fronteiras e as relações de poder em todo o planeta, culminando em duas grandes guerras no século 20. Apenas o poder aniquilador das armas de destruição em massa e os tratados internacionais ratificados na esteira de uma corrida armamentista viriam a frear a escalada das guerras totais. Medidas de controle das armas e desarmamento foram sempre adotadas ao longo da história, ora com base em valores humanitários, ora como termos impostos pelos vitoriosos aos derrotados ou, ainda, como acordos negociados entre inimigos para evitar a mútua destruição. No século 20, a maioria dos tratados internacionais de controle de armas tiveram como objeto as armas de destruição em massa —
nucleares, químicas e biológicas — ou certas armas convencionais consideradas excessivamente lesivas ou cujos efeitos são indiscriminados, a exemplo das minas explosivas e bombas incendiárias. Dentre o conjunto mais amplo das armas de fogo estão as chamadas “armas pequenas” que são aquelas que podem ser carregadas e utilizadas por um único indivíduo, tais como revólveres, pistolas, carabinas, fuzis e metralhadoras leves. Essas armas de uso individual despontam como o principal instrumento da violência fatal no mundo. Em 2017, mais da metade dos homicídios ocorridos no mundo foram praticados com armas de fogo, conforme o Estudo Global sobre Homicídios do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). No Brasil, as mortes por armas de fogo representaram mais de 70% das 47.773 mortes violentas ocorridas em 2019, segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Porém, ainda assim, são raros os instrumentos internacionais de controle sobre o mercado das armas pequenas. Dentre eles, está o Protocolo das Armas de Fogo (Firearms Protocol) que exige dos países signatários: I) criminalização da fabricação e venda ilegal de armas; II) elaboração de um sistema estatal de autorizações e licenças para a fabricação e exportação de armas; III) marcação, identificação e rastreabilidade das armas. No mais, a regulamentação dos registros de posse e porte de armas de fogo é de competência dos governos nacionais. O que está em jogo nos debates domésticos sobre o controle das armas é o monopólio estatal do uso legítimo da força. A interdição da violência interpessoal privada foi um elemento central na formação dos Estados modernos, que conferiu, por um lado, às instituições de justiça o poder de arbitragem sobre os conflitos e, por outro lado, conferiu às polícias o poder de uso legítimo da força para a manutenção da lei e da ordem. É certo que muitos Estados nacionais — inclusive o Brasil — violam os direitos de seus cidadãos e/ou deixam de oferecer uma proteção satisfatória, o que alimenta os movimentos contrários ao desarmamento. No entanto, por definição, a proposta de armar a população civil implica no
enfraquecimento da proteção oferecida pelo Estado. A não ser que a intenção seja possibilitar a deposição de um governo ou regime político via guerra civil, não há qualquer razoabilidade nas propostas de desregulamentação das armas dentro de um regime democrático. Nos Estados Unidos, os defensores do direito individual da posse e porte de armas, baseiam-se numa interpretação “insurreicionista” da segunda emenda da Constituição, para a qual “o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado”. A segunda emenda referia-se especificamente às milícias regulamentadas dos estados e seu direito de resistência à eventual opressão pelo governo federal. Entretanto, em decisões posteriores, a Suprema Corte adotou o entendimento de que ela se refere ao direito individual à legítima defesa. Como resultado da baixa regulamentação da compra e porte de armas, os EUA concentram 40% das armas de fogo em posse de civis no mundo, segundo o Small Arms Survey. Com efeito, a taxa de homicídios nos EUA é até cinco vezes maior que a de países como a Alemanha que, apesar do Índice de Desenvolvimento Humano semelhante, adotam políticas de controle de armas mais restritivas. Já no Brasil, onde não há respaldo constitucional à formação de milícias civis armadas, as propostas de desregulamentação das armas de fogo têm se apresentado como uma medida de combate à criminalidade, alimentando-se do sentimento de insegurança da população. O Estatuto do Desarmamento (Lei 10826 de 22 de dezembro de 2003) avançou no controle das armas no país, mas não obteve êxito em proibir o comércio doméstico de armas e munições, pois o seu artigo 35 foi reprovado no referendo de 2005. Mais recentemente, em 2018, a defesa pública das armas de fogo ocupou o cerne da plataforma eleitoral de Jair Messias Bolsonaro à presidência, cuja principal marca foi o gesto de simulação de armas performado com as mãos. Dentre as medidas de segurança pública de sua proposta de plano de governo, constava: “Reformular o Estatuto do Desarmamento para garantir o direito do cidadão à
LEGÍTIMA DEFESA sua, de seus familiares, de sua propriedade e a de terceiros”. Após eleito, Bolsonaro imediatamente cumpriu a sua principal promessa de campanha e, nos primeiros dias de governo, emitiu um decreto visando a flexibilizar as regras para a posse de armas de fogo. Este foi seguido por mais de 20 atos editados com essa finalidade apenas em seu primeiro ano de governo. Embora Bolsonaro tenha encontrado resistência no congresso para a manutenção de seus decretos e a aprovação de projetos de lei, suas iniciativas tiveram êxito em aumentar o número de armas em circulação. Em agosto de 2019, foi publicada uma instrução normativa da Polícia Federal, que autorizou o registro de até quatro armas por pessoa e reduziu a burocracia para a concessão de registros. Segundo os dados da Polícia Federal, no ano de 2019 observou-se um aumento de 65,6% do número de registros de posse de armas de fogo ativos no Sistema Nacional de Armas (Sinarm) em relação a 2017. No que se refere aos registros de Colecionador, Atirador e Caçador (CAC), entre 2019 e 2020 houve um aumento de 120,3%. Há atualmente 2,1 milhões de registros ativos nos sistemas federais. Fundamentando-se na equívoca premissa de que armar os “cidadãos de bem” faria a ocorrência de crimes diminuir, as medidas de Bolsonaro contrariam o conhecimento científico acumulado sobre o tema. Mesmo o mínimo bom senso é capaz de reconhecer a precariedade da segurança pública numa sociedade em que todas as pessoas andam armadas. Mas, além disso, há um consenso entre experts de todo o mundo a respeito da correlação “mais armas, mais crimes”. Em ampla revisão internacional, Thomas Conti demonstra que as pesquisas sobre a relação entre armas, crimes e violência apontam para a tendência de aumento dos homicídios conforme é maior a disponibilidade de armas de fogo. Segundo um estudo do IPEA, realizado por Daniel Cerqueira e João Manuel de Mello, se o Estatuto do Desarmamento não tivesse sido aprovado, as taxas de homicídio entre os anos de 2004 e 2007 teriam aumentado 12% a mais do que a taxa observada. Isso porque a
cada 1% a mais de armas de fogo em circulação há um aumento de 2% na taxa de homicídio. A proposta de armar os “cidadãos de bem” para combater a ação de criminosos implica na suposição — cínica ou errônea — de que as armas escolhem o suposto caráter de seus proprietários. A pesquisa As Armas do Crime do Instituto Sou da Paz revelou que a maioria das armas apreendidas em prisões em flagrante na cidade de São Paulo eram de fabricação nacional, 56% fabricadas pela Forjas Taurus, 69% de calibre permitido e 54% tinham a numeração raspada. Ao contrário do que alguns imaginam, 90% das armas apreendidas eram de cano curto (revólveres e pistolas) e a principal arma do crime é o revólver de calibre .38 de fabricação nacional. Essa e outras pesquisas, todas amplamente divulgadas na imprensa, afirmam que a maioria das armas utilizadas para praticar crimes no Brasil foram compradas legalmente no país. Ou seja, é pouco o esforço necessário para compreender que um número maior de armas em circulação não significa combate ao crime, mas, ao contrário, aumenta disponibilidade de armas para a prática de crimes violentos. Como então compreender a defesa do armamento da população civil no Brasil? Se há alguma justificativa racional para tal, ela não leva em conta a oferta de segurança à população. Ao contrário do que alegam os idólatras das armas trata-se, antes, do interesse da indústria bélica nacional, forte apoiadora das candidaturas de extrema direita no país. O Brasil é um dos maiores exportadores de armas de fogo do mundo. Quando consideradas apenas as exportações de Armas Pequenas e Armas Leves (APAL), o Brasil ocupa a terceira posição, atrás apenas dos Estados Unidos e Itália, segundo o Small Arms Survey. A indústria nacional possui três gigantes da fabricação de armas e munições: a estatal IMBEL e as empresas privadas Forjas Taurus e Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC). Embora Bolsonaro tenha declarado a sua intenção de combater o “monopólio” da Forjas Taurus no mercado nacional, a perspectiva de crescimento do mercado doméstico de armas fez com que as ações desta empresa se valorizassem em
140% no mês anterior ao primeiro turno das eleições de 2018. Devemos, ainda, entender que não existem somente interesses econômicos por detrás da exaltação das armas. A compreensão dessas razões passa também pelo fascínio em torno desses artefatos e de como eles transformam seus portadores, conferindolhes novas potências. É perfeitamente compreensível o desejo pela posse de objetos tão poderosos e pela experiência de autodeterminação deles advinda. O problema está na externalização desse desejo sob a forma de argumentos falaciosos. Tais argumentos negam os achados de pesquisas que, repetidas vezes, demonstram a correlação entre aumento de armas em circulação e aumento de homicídios. Assim, a defesa da desregulamentação das armas de fogo promete soluções simples para problemas complexos. A proposta de armar a população civil pode ser legítima em diferentes sentidos, mas deve estar claro de que não se trata de uma medida de combate à criminalidade. LEIA MAIS
CERQUEIRA, D. R.; MELLO, J. M. de. Menos armas, menos crimes. Brasília: Ipea, 2012. Disponível em: < https://www.ipea.gov.br/portal/index.php? option=com_content&view=article&id=15101 >. Acesso em: 27 set. 2021. CONTI, T. V. Dossiê Armas, Crimes e Violência: o que nos dizem 61 pesquisas recentes. In: CONTI, T. V. Thomas V. Conti. São Paulo, 5 out. 2017. Disponível em: . Acesso em: 27 jul. 2021. INSTITUTO SOU DA PAZ. “As armas do Crime.” São Paulo: ISP, ago. 2013. Disponível em: < https://soudapaz.org/wpcontent/uploads/2019/11/as_armas_do_crime_vers_o_final_19_08_
13.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2021. CONFIRA
MILÍCIAS NEGACIONISMO CIENTÍFICO VIOLAÇÕES DE ESTADO
* Pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF)
DITADURA Caroline Silveira Bauer *
A
s manifestações públicas relativas à ditadura civil-militar brasileira realizadas pelo bolsonarismo são formas de instrumentalização ideológica e propagandística de uma narrativa sobre o passado com finalidades políticas no presente. Esses usos do passado podem ser identificados, de maneira geral, em três práticas distintas, mas muitas vezes interligadas: na negativa em denominar o período como uma ditadura; na apresentação de justificativas que pretensamente legitimem o golpe e o regime militar; e na recuperação de valores propalados pelos governos militares discricionários. Nessas narrativas expressam-se muito mais experiências individuais, juízos de valores, sensos comuns do que análises e interpretações sobre a ditadura. Nesse sentido, diferem-se dos estudos científicos realizados no âmbito das ciências humanas, jurídicas, políticas e sociais. Portanto, não deveriam ser compreendidas como mais uma das leituras possíveis sobre o período, porque se situam no âmbito do anticientificismo e do antiintelectualismo, deslegitimando os debates e os consensos historiográficos. Por seu caráter muitas vezes apologético do autoritarismo e da violação dos direitos humanos, também podem ser consideradas como narrativas antidemocráticas. As apropriações realizadas do regime pós-1964 pelo bolsonarismo também ocorrem mediante distorção, falseamento, manipulação e omissão deliberados de alguns episódios. Isso pode configurar uma forma de negação, de não aceitação de uma determinada realidade, e de construção de um relato de um passado mítico. As bases bolsonaristas não denominam o período de 1964 a 1985 como uma ditadura, preferindo termos genéricos como governo militar, intervenção militar ou movimento militar. A rejeição do termo
ditadura ocorre, principalmente, por quatro motivos. Primeiramente, pelas afinidades ideológicas e identificações do bolsonarismo com as Forças Armadas, que nunca o empregaram para conceituar o período pós-1964. Nesse sentido, a grande presença de militares compondo a base e os governos bolsonaristas conformam uma “comunidade de memória” e reproduzem as narrativas propaladas nos círculos castrenses. Depois, por uma alegação do ponto de vista conceitual, de que o poder dos generais-presidentes não era absoluto, porque os poderes judiciário e o legislativo seguiram funcionando e porque havia eleições. Nesses discursos, predomina a distorção e a manipulação: não há referência ao poder constitucional autoproclamado pelo “Comando Supremo da Revolução”; aos civis processados pela justiça militar; aos vereadores, deputados e senadores que tiveram seus mandatos cassados; e à realização de eleições indiretas para a maior parte dos mandatos. Além disso, omite-se a supressão real de direitos civis, políticos e sociais e as graves violações de direitos humanos. Sobre os dois últimos motivos, não surpreende que, ao utilizar o termo “ditadura”, o bolsonarismo faça referência aos governos de Hugo Chávez (1999-2013) e Nicolás Maduro (2013-atualmente), na Venezuela ou aos mandatos de Fidel Castro (1959-2008) e Raúl Castro (2008-2018) em Cuba. Outro uso se concentra em um apelo genérico à ideia de “ditaduras africanas”, supostamente beneficiadas com financiamentos oriundos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) durante as gestões do Partido dos Trabalhadores (PT). Essas menções compartilham a referência a experiências de governos de esquerda, em diferentes matizes, compreendidos pelas bases bolsonaristas como exemplos de regimes comunistas, socialistas ou totalitários. Na recuperação da propaganda anticomunista dos partidos conservadores e liberais do Ocidente, característica da Guerra Fria, os alvos são governos com políticas sociais progressistas. Em relação às justificativas e a legitimação do golpe e da ditadura,
as narrativas bolsonaristas utilizam-se três principais argumentos. Afirmam que a sociedade brasileira teria clamado às Forças Armadas por uma intervenção, ou seja, que o golpe e a ditadura possuiriam apoio popular; que “medidas excepcionais” eram necessárias para o combate à corrupção e à subversão, que teriam caracterizado o governo do então presidente João Goulart; e que havia atuação de movimentos guerrilheiros no Brasil, o que justificaria o golpe e a ditadura como medidas “contrarrevolucionárias”. Esse exercício retórico ignora dados fatuais. Ignora-se, por exemplo, os dados do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), que, em pesquisa realizada em março de 1964, demonstrou que 40% dos paulistanos consideravam as reformas pretendidas por Goulart como “absolutamente necessárias, e com urgência” e apenas 7% como “não necessárias”. Ignora-se, igualmente, que existiam instrumentos jurídicos para o enfrentamento às possíveis adversidades do período, sem a necessidade de concentrar o poder no Executivo Federal. Por fim, utiliza-se de falseamentos históricos, como a existência de movimentos guerrilheiros no pré-1964 no Brasil, quando, na verdade, essas organizações passaram a se articular apenas no final dos anos 1960, quando já vigia o regime ditatorial. Por fim, existem alguns usos do passado da ditadura civil-militar como recuperações de certas práticas e certos valores que orientavam esse regime e que possuem identificação com o autoritarismo e o conservadorismo do bolsonarismo. Pode-se citar, como exemplo, a imagem historicamente construída das Forças Armadas e dos militares como sinônimos de correção, disciplina e obediência; e o recurso à violência como uma forma simplista de resolução de problemas, remetendo à lógica repressiva ditatorial. Quanto a esse último aspecto, podem ser identificados usos e argumentos negacionistas utilizados pela própria ditadura. Quer dizer, o discurso atual que tenta negar o passado ditatorial se utiliza de versões falsas sobre os assassinatos cometidos pelas forças
repressivas. Portanto, ao invés de tratarem de assassinatos, inúmeros documentos oficiais tornados públicos falam de “confrontos com as forças policiais”, de “mortes em atropelamentos” ou de “suicídios”. Mais ainda: não só a repressão fatal era negada, como são também, quiçá até hoje, negados o emprego da censura como forma de ocultar informações à população brasileira, bem como a existência de tortura sistemática pelo regime autoritário. Nas últimas décadas, não foram poucas as ocasiões nas quais a faceta violenta da ditadura brasileira veio à tona. Frente a isso, o paradoxo trazido pelo bolsonarismo não é menor: como e por que grupos e discursos continuam tentando justificar e legitimar as práticas da ditadura, mesmo quando não se pode mais negar a existência dessas realidades e violências? Ocorre, portanto, uma referência à ditadura não como evento histórico, mas como repositório de práticas de valores que deveriam ser resgatados no presente. Nesse sentido, não haveria constrangimentos em realizar manifestações apologéticas e nostálgicas em relação ao período, pois não se trataria de um regime ditatorial, mas de um regime que propalou valores autoritários e conservadores. E mais: nessa construção idílica do passado, a ditadura teria sido extremamente eficiente na resolução de seus “problemas” econômicos e sociais. Nesse sentido, pode-se instrumentalizar o medo como forma de dominação política. A ditadura, assim, seria utilizada reativamente como uma lembrança do que poderia ocorrer caso houvesse um aumento da mobilização e da participação política, percebidas como ameaças às forças e aos valores conservadores. LEIA MAIS
APARICI, R.; GARCÍA-MARÍN, D. (Coords.). La posverdad: uma cartografia de los medios, de las redes y la política. Barcelona: Gedisa, 2019. 201 p. KLEM, B.; PEREIRA, M.; ARAÚJO, V. (Orgs.). Do fake ao fato:
des(atualizando) Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020. 240 p. MELO, D. B. de (Org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. CONFIRA
NEGACIONISMO HISTÓRICO REVISIONISMOS E CRIME CONTRA A HISTÓRIA TORTURA
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA Luisa Massarani *
J
osé Reis (1907-2002), ícone da divulgação científica no país, definiu divulgação científica de formas diversas ao longo das mais de seis décadas que atuou nesse campo. De grande importância para a consolidação da divulgação científica no Brasil, Reis define o campo desde seu lugar de fala, como cientista que teve um papel fundamental na institucionalização da ciência especialmente a partir dos anos 1940 e como jornalista, com atuação por cerca de seis décadas na Folha de S.Paulo. No texto A divulgação da ciência e o ensino, de 1964, ele enfatizou “o trabalho de comunicar ao público, em linguagem acessível, os fatos e os princípios da ciência, dentro de uma filosofia que permita aproveitar o fato jornalisticamente relevante como motivação para explicar os princípios científicos, os métodos de ação dos cientistas e a evolução das ideias científicas. Aquele fato jornalisticamente interessante não ocorre todos os dias. Cabe, porém, ao divulgar, tornar interessantes os fatos que ele mesmo vai respingando no noticiário. E se tiver habilidade, fará isso até com fatos antigos, que ele trará novamente à vida”. Fundamental nessa definição é o fato de que a divulgação científica vai muito além de informar/transmitir conteúdos científicos para a sociedade. Entre as muitas questões que perpassam a divulgação científica está a importância de discutir como a ciência funciona. Um outro aspecto que Reis destaca ao longo de sua carreira é como a prática de divulgação científica pode ser útil como forma de atrair a atenção da sociedade e governantes para a ciência e a importância de investir em pesquisa. No entanto, não há uma definição de divulgação científica única ou consensual. Não há sequer uma definição razoavelmente bem aceita pela comunidade de divulgadores da ciência — seja profissionais da prática da divulgação científica ou pesquisadores na
vertente acadêmica da divulgação científica. Sendo um campo amplo e diverso, a divulgação científica tem recebido outras definições mais amplas, tal como a de Frans van Dam, Liesbeth de Bakker, Anne M Dijkstra e Eric Jensen, publicada, em 2020, no livro Science Communication — An Introduction, no qual afirmam: “A divulgação científica descreve as muitas formas por meio das quais o processo, os produtos e as implicações das ciências — definidas de forma ampla — podem ser compartilhadas ou discutidas com as audiências. A divulgação científica envolve a interação com o objetivo de interpretar desenvolvimentos científicos ou técnicos ou discutir questões com uma dimensão científica ou técnica”. Outros termos também podem ser usados em alguma medida de forma equivalente à divulgação científica. Algumas pessoas se referem ao campo como popularização da ciência, comunicação da ciência, comunicação pública da ciência e tecnologia, engajamento público da ciência (e tecnologia), apropriação social da ciência, cultura científica, entre outros. Embora haja razoável consenso de que todos esses termos não são sinônimos, é controverso em que medida eles se diferenciam, e como. Em outras palavras, tampouco há consenso na definição de cada um desses termos e a interrelação e diferenciação entre eles. Em Aproximaciones a la investigación en divulgación de la ciencia en América Latina a partir de sus artículos académicos, publicado em 2017, junto de outros pesquisadores observamos que poucos artigos incluem uma definição divulgação científica nos textos. Os poucos artigos que incluem uma definição não necessariamente são convergentes. Considerando essa revisão da literatura, mas também o olhar de quem atua na área desde de 1987, pode-se fazer algumas considerações sobre os diferentes termos usados. A primeira delas é que o termo divulgação científica parece ser o termo mais numericamente utilizado em comparação com os demais. Há influências relacionadas a países. Por exemplo, no México, o termo em espanhol para “comunicação da ciência” é mais usado em
comparação com outros países da América Latina. No Brasil, esse termo está associado a estudos na área acadêmica da Comunicação Social, enquanto na Ciência da Informação, “comunicação científica” pode ser entendido como disseminação entre pares. Mas as particularidades não se referem ao idioma, já que em Portugal usa-se mais comunicação da ciência que divulgação científica. Essa dimensão geográfica pode se entrelaçar a seu caráter temporal, bem como de identidade. Atualmente em desuso, o termo “vulgarização da ciência” foi bastante recorrente na França a partir do século 19 e pode ser visto no Brasil no início do século 20, momento em que a França tinha papel importante na formação das elites intelectuais. “Popularização da ciência” ganha peso na segunda metade do século 20, com particular perspectiva de ampliar o acesso da ciência de maneira bastante ampla, incluindo grupos marginalizados ou socialmente vulneráveis. O termo popularização da ciência está vinculado à identidade de profissionais que a realizam e que acreditam ser eles os que dialogam com os excluídos. É consenso a importância da necessidade de ampliar a inclusão social e o acesso à ciência. Mas, sem reduzir a importância da identidade no campo, o fato é que iniciativas etiquetadas como popularização da ciência não são necessariamente mais inclusivas que aquelas iniciativas etiquetadas como divulgação científica. Outros termos também semanticamente implicam em forte envolvimento social, como apropriação social da ciência, muito usado na Colômbia, e engajamento público na ciência e tecnologia, com influência britânica. Mas além das fronteiras, caminhos e descaminhos dos termos usados — ou rejeitados —, algumas questões de fundo precisam ser abordadas. Não há dúvida de que conteúdos de ciência são importantes em iniciativas de divulgação científica e que os cidadãos e as cidadãs
precisam estar bem informados para tomar suas decisões. Mas, como o próprio José Reis destacava, a divulgação científica precisa ir além de transmitir pacotes de conhecimentos científicos. É preciso manter um diálogo em que se fale de processos científicos, que a ciência seja relevante socialmente, que se saiba diferenciar informações verdadeiras de falsas e ajude a identificar fontes confiáveis — aspecto que ganha relevância em tempos de pandemia. Não há dúvida de que a divulgação científica é importante para a sociedade, mas — como também já sinalizava José Reis (e outros cientistas antes dele) — também é para a própria ciência. A divulgação tem sido sistematicamente usada como estratégia de sensibilizar a sociedade e tomadores de decisão sobre a importância de se investir na ciência e em cientistas. Não há dúvida de que os cientistas têm um papel fundamental na divulgação científica, seja como fonte ou como atores sociais protagonistas no diálogo. Mas outros atores sociais são fundamentais no processo de divulgação científica, igualmente como protagonistas, incluindo jornalistas, mediadores em museus de ciência, artistas, influenciadores e quem mais desejar entrar nesse bonde — incluindo cidadãos. Nesse sentido, um dos principais desafios na divulgação científica é a necessidade de que haja muito mais ênfase em conhecer melhor os distintos públicos da divulgação científica e que sentidos constroem a partir das experiências que têm nas iniciativas de divulgação científica. LEIA MAIS
CHAGAS, C.; MASSARANI, L. Manual de sobrevivência para divulgar ciência e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2020. MASSARANI, L.; MOREIRA, I. de C. (Orgs.). Pesquisa em divulgação científica: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2021.
MASSARANI, L. et al. Aproximaciones a la investigación en divulgación de la ciencia en América Latina a partir de sus artículos académicos. Rio de Janeiro: RedPoP/Casa de Oswaldo Cruz, 2017. CONFIRA
DESINFORMAÇÃO FAKE NEWS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Professora e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
DROGAS Frederico Policarpo *
O termo
“droga” já foi usado para designar alimentos, como as especiarias coloniais no período das Grandes Navegações a partir do século 16. O historiador Henrique Carneiro nota que a origem mais provável do termo é oriunda do holandês droog, usado para se referir a produtos secos, como a pimenta e o açúcar. O significado do termo foi se transformando ao longo do tempo e, desde o início do século 20, com a criação de um sistema de controle global promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU), a palavra é usada tendo como referência critérios científicos e regulamentações legais. Ou seja, os critérios científicos classificam as drogas de acordo com o seu potencial para o uso médico, enquanto as leis classificam as drogas entre as lícitas e ilícitas. Esse sistema global de controle sobre as drogas é compartilhado pelos países signatários das Convenções de Drogas da ONU. Contudo, quando saímos desse modelo e partimos para observação de como o controle de drogas se efetiva cotidianamente, é fácil notar que as políticas públicas sobre drogas são informadas por outros critérios que não só os científicos. Há fatores políticos, econômicos e morais que interferem de modo decisivo nas ações em torno das drogas. O exemplo mais destacado que ilustra bem a interferência desses fatores é a política conhecida como Guerra às Drogas, declarada pelos EUA nos anos 1970. Por conta do poderio militar e da importância econômica dos EUA, essa política tem uma influência marcante no mundo atual, em especial, nos países da América Latina. A principal característica da Guerra às Drogas é deixar de lado critérios científicos e enfatizar a abordagem militarizada de repressão às drogas, tendo consequências desastrosas do ponto de vista da saúde e da segurança pública. Autoproclamada “antidrogas”, essa postura militarizada limita o acesso ao
atendimento médico para pessoas que desenvolvem usos abusivos e problemáticos das drogas. Mais ainda, ela leva ao encarceramento em massa e ao aumento da letalidade policial, em especial, de populações vulnerabilizadas. Em 2018, a comunidade científica brasileira decidiu participar mais diretamente do debate público e se posicionou contrária a essa abordagem militarizada “antidrogas”. Durante a 70ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira Progresso da Ciência, os cientistas encaminharam a autoridades dos três Poderes uma moção que condena a política brasileira de drogas vigente afirmando que, do ponto de vista científico, não se trata de ser contra ou favor, mas de reduzir os danos eventuais do consumo de drogas. A moção cobra a formulação de políticas públicas sobre drogas com base em evidências científicas, livre de ideologias partidárias e moralismos. Esse posicionamento público é mais um capítulo que ilustra a tensão permanente entre ciência e política no tratamento das drogas. No Brasil dos últimos anos, essa tensão alcançou patamares que beiram o absurdo com posicionamentos negacionistas de porta-vozes do governo federal. A estratégia negacionista consiste em colocar em suspeição os dados científicos. Análises bem fundamentadas e com rigor científico acerca das drogas e seus usos, bem como os próprios dados quantitativos sobre a circulação e o consumo de drogas são simplesmente desprezadas e desqualificadas. Exemplo disso foi a polêmica envolvendo a divulgação do levantamento sobre uso de drogas realizado pela Fundação Oswaldo Cruz. A Fiocruz ganhou uma concorrência pública lançada em 2014 pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para a realização do III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. O levantamento foi feito entre maio e outubro de 2015, quando pesquisadores entrevistaram cerca de 17 mil pessoas com idades entre 12 e 65 anos, em todo o Brasil, com o objetivo de estimar e avaliar os parâmetros epidemiológicos do uso de drogas.
Considerado o mais abrangente estudo epidemiológico sobre drogas no país, o III Levantamento ficou pronto ao final de 2017. Porém, e aqui começam as suspeições e tentativas de desqualificação da ciência, o governo proibiu sua divulgação. Inicialmente, o governo acusou a Fiocruz de não respeitar as exigências do edital e, em seguida, colocou em questão a confiabilidade dos dados. O ponto central parecia ser que o levantamento não apoiava a ideia, defendida pelo governo, de que há uma suposta “epidemia” de drogas no Brasil. Depois de muita especulação e com um crescente apoio público à Fiocruz, o então ministro da Cidadania, Osmar Terra, a voz no governo mais contrária à divulgação da pesquisa, deixou clara que era essa mesma a discordância. O título de uma entrevista então dada ao jornal O Globo sintetiza sua posição: “Ministro ataca Fiocruz e diz que ‘não confia’ em estudo sobre drogas, engavetado pelo governo”. Nessa entrevista, Osmar Terra afirmou que, ao andar pelas “ruas de Copacabana”, era “óbvio para a população” que existiria no país uma “epidemia de drogas”. E mesmo sem qualquer pesquisa sistemática, ele chegou a dizer que era necessário se “basear em evidências”. É importante pontuar que em nenhum momento desse episódio a Fiocruz entrou na polêmica sobre uma possível epidemia, ou não, de drogas. Em nota pública, a instituição defendeu a competência dos pesquisadores envolvidos e o resultado do levantamento. O problema do governo foram os dados. Os dados mais alarmantes não foram do consumo das drogas ilícitas tais como a maconha, cocaína e crack. O alerta da pesquisa acenava para o uso não prescrito das drogas lícitas, a exemplo dos analgésicos opiáceos, dos tranquilizantes benzodiazepínicos, bem como do alto consumo de bebida alcoólica, associado, pela Organização Mundial de Saúde, a danos de saúde que provocam morte. Com a desaprovação do governo, a Presidência da Fiocruz se viu obrigada a acionar a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal para intermediar esse conflito. Somente em
agosto de 2019, passados quase dois anos da conclusão, a Fiocruz conseguiu um acordo para a divulgação da pesquisa. Esse exemplo ilustra de modo adequado como a estratégia negacionista ignora os dados científicos. Mais ainda, o negacionismo desqualifica a ciência quando os resultados científicos não convêm a suas ideologias e moralidades. Os dados vindos de pesquisas como o III Levantamento poderiam, antes, servir como insumo e instrumento para a elaboração de políticas públicas sobre drogas. No entanto, com o negacionismo no governo, sai a ciência e entra a opinião baseada em “evidências” de um passeio pelas ruas de Copacabana. LEIA MAIS
BASTOS, F. I. P. M. et al. (org.). III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz/ICICT, 2017. CARNEIRO, H. S. “Transformações do significado da palavra ‘droga’: das especiarias coloniais ao proibicionismo contemporâneo.” In: VENÂNCIO, R. P.; CARNEIRO, H. S.(Org.). Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda Editorial, 2005. SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA. “Moção aprovada na assembleia geral ordinária dos sócios: por uma política de drogas progressista e não proibicionista.” Jornal da Ciência, Maceió, 26 jul. 2018. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021.
CONFIRA
FIOCRUZ POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIA SBPC
* Professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF)
ECONOMIA Vinicius Torres Freire *
É fácil perceber o que se entende por negacionismo quando se trata da negação do Holocausto ou da afirmação de que vacinas inoculam chips de espionagem, de que a Terra é plana ou de que as matas brasileiras não queimavam nos meses secos de 2019. Essas ideias parecem caricatas pela sua falsidade óbvia, mas são exemplos adequados de proposições que costumam merecer a acusação forte de negacionismo, na verdade uma desqualificação absoluta. Não haveria debate legítimo quando, de modo deliberado, se recusassem a consideração de um conjunto de evidências e a argumentação baseada em lógica. O negacionista habitaria um universo paralelo ao da controvérsia razoável ou racional, pois sua polêmica seria baseada em mera retórica. É uma condenação radical. É mais difícil lançar tal acusação ou fazer tal juízo sobre ideias relativas à economia ou, para ser mais preciso, à teoria e prática dessa disciplina científica e de suas aplicações e discussões no mundo da vida comum. Não porque em debates econômicos quaisquer inexistam afirmações que desconsiderem fatos ou argumentação baseada em lógica, ao contrário, como aliás parece ocorrer com tanta ciência ou conhecimento organizado. Devido a características da disciplina, porém, a economia parece se prestar menos a apresentar um conjunto de proposições e fatos que sejam definidos de modo incondicional. Até por isso, não oferece alvos simples para o negacionista exemplar ou comum, embora possa passar a impressão de que permita qualquer controvérsia. “O livre comércio promove a eficiência econômica”, dirá um economistapadrão, “satisfeitas certas premissas”, o que qualifica e condiciona a discussão da aplicação do modelo teórico caso a caso; não significa que a disciplina seja relativista ou que todos os casos sejam absolutamente particulares. Ainda assim, será incomum derivar da
economia uma afirmação do tipo “seres humanos não conviveram com dinossauros vivos”. Isto posto, há exemplos de um negacionismo menos evidente ou que ataca a ciência e o debate disciplinado de modo menos sensacional ou direto, um irracionalismo que, ao menos na conversa pública recente do Brasil, pode ser agrupado em dois gêneros maiores, para fins didáticos. Em um caso, nega-se a própria existência de que há um assunto a ser debatido de modo metódico; uma convicção acerca da realidade prescinde do ataque à ciência ou ao debate organizado, pois ignora mesmo sua existência ou se recusa a considerar que possam existir fatos que ameacem a crença. “O governo tem dinheiro, basta cortar os privilégios dos políticos” é uma afirmação comum e popular a respeito do que economistas chamam de “conflito distributivo”. Pode ser baseada em uma percepção de que existem privilégios, desperdícios e corrupções ou fundamentar a oposição a um aumento de impostos, muita vez difundida por meio de campanhas midiáticas e políticas. No que diz respeito ao conflito acerca de usos e fontes de recursos, é uma recusa da consideração dos fatos da escassez relativa. Começa por uma declaração vaga (existem recursos bastantes para quais fins?), portanto inverificável. É justificada por uma afirmação que pode ser classificada de falácia de relevância, pois desvios perdulários ou ilegais de recursos orçamentários são relativamente ínfimos dados o tamanho e a composição das despesas públicas de fato destinadas a fins tais como Previdência, salários, benefícios sociais, saúde, educação, defesa, ciência e tecnologia ou investimentos em infraestrutura, por exemplo. Tal afirmação tem alguns dos traços distintivos do negacionismo: propagação por meio de falsos especialistas (charlatanismo), deturpação de dados elementares e conhecidos do problema, falácia de relevância e a crença em conspiração como elemento essencial do problema. Há variantes similares baseadas em declarações explícitas de indivíduos que se apresentam como
especialistas ou assim são tratados por certos grupos de interesse. Por exemplo, “há recursos suficientes e com destinação específica para o pagamento das despesas previdenciárias públicas” (na presente situação do orçamento do setor público brasileiro). A afirmação omite o fato de que, tudo mais constante, a destinação específica de recursos (vinculação) para o pagamento de despesas previdenciárias redundará ou em redução de outros gastos (salários, saúde, educação etc.) ou em endividamento adicional do setor público ou em aumento de impostos (ou uma combinação das alternativas). Ou seja, omite-se o que estava no centro da questão inicial, o conflito distributivo. Na solução desse autodenominado especialista, a disputa de recursos escassos foi resolvida de modo dissimulado em favor de um certo beneficiário de certo tipo de despesa pública por meio do pode se chamar, por praticidade, de falácia da desconversa. Trata-se de deturpação e desconsideração do conjunto de fatos, do truque da pista falsa (“há recursos legalmente definidos para a Previdência”) e da configuração incompleta do problema (não importam aqui suas soluções, que podem ser diversas). São traços da retórica negacionista (que inclui charlatanismo, vários tipos de falácias lógicas, argumentação com espantalhos, consideração do detalhe irrelevante em vez dos dados principais, do recurso à ideia da conspiração como princípio geral de entendimento etc.). Outro grande conjunto de afirmações de caráter negacionista é a disseminação governamental de informação falsa que não se confunde necessariamente com propaganda, mas que se baseia ela mesma em uma percepção fantasiosa da realidade. No Brasil dos tempos em que estas páginas eram escritas, essa variante de negacionismo era com frequência manifesta em declarações dos assessores econômicos do candidato e depois presidente Jair Bolsonaro, em particular aquelas de Paulo Guedes, que veio a se tornar ministro da Economia (embora não seja exclusiva de tal governo). Nos inícios da epidemia no Brasil, o ministro fazia a seguinte avaliação da conjuntura econômica nacional: I) com “reformas”, a
economia cresceria, na contramão da economia mundial já abalada pelo vírus e mais do que na média dos três anos anteriores; II) com o crescimento, a receita de impostos cresceria e “sobrariam recursos para todos”; III) com recursos em torno de R$ 4 bilhões, seria possível “aniquilar o coronavírus”. Tais declarações podem ser classificadas como mero meio de propaganda de um programa político-econômico (“reformas”) por meio de deturpação edulcorada de fatos ou apenas equívocos graves de análise, o que não basta para tratá-las necessariamente como exemplos de negacionismo. Guedes, porém, teria de rever opiniões e providências poucos dias depois de tal análise de conjuntura e de tais previsões, fato recorrente tanto em sua carreira de assessor do candidato Bolsonaro como na de ministro. Não importariam os empecilhos administrativos, políticos, legislativos, financeiros e econômicos, seria possível obter recursos da ordem do trilhão de reais com a venda de participações do estado em empresas ou de patrimônio imobiliário da União. O déficit das contas federais, a diferença entre despesas e receita, seria zerado em um ano. Um contato pessoal do ministro ofereceria dezenas de milhões de testes de covid-19, com o que seria possível conferir certificados de imunidade a cidadãos, bastantes a ponto de permitir ao menos a diminuição das restrições sanitárias de circulação. Uma avaliação sem fundamento de especialistas em saúde levou seu ministério a prever o fim próximo da epidemia nos meses derradeiros de 2020. Projetos ou mesmo a aprovação de regulação econômica relevante ocorreriam “em breve”. Um plano inominado, mas de realização iminente, permitiria a arrecadação de outro trilhão de reais, segundo o presidente Jair Bolsonaro revelava em maio de 2019, pedindo a Paulo Guedes desculpas pela quase indiscrição. Tais percepções e previsões basearam certo curso outros (não se tratava de mero falseamento com a escamotear uma realidade intragável ou comportamentos). Nesses casos, não foram
de ação, não finalidade de de induzir apresentados
vantagens e desvantagens do programa governamental, análise de empecilhos e negociações políticas, inerentes ao governo democrático, ou cálculos financeiros e econômicos. Guedes ignorou os termos e métodos do debate político-econômico ao fazer a afirmações inverificáveis sobre a conjuntura econômica do país e sobre as perspectivas financeiras do governo do qual era a autoridade econômica maior. Antes ou além da deturpação de fatos, houve recusa deliberada ou fantasiosa da consideração do conjunto de evidências e do debate lógico e sistemático desses dados. Não houve, no caso de Guedes, contrafação específica de conhecimento tido como mais ou menos consensual entre os participantes do debate informado e racional. Houve recusa de tomar parte desse sistema, traço fundamental do negacionismo. Decerto o negacionismo está longe de explicar muitas insuficiências técnicas, científicas ou políticas do debate econômico público. Por exemplo, na conversa brasileira em particular, é mais comum e se torna cada vez mais intensa a discussão de certo aspecto da atuação do Estado na economia, seu papel redistributivo. Isto é, o que diz respeito à transferência de recursos entre setores sociais quaisquer por meio da tributação e da concessão de benefícios. Os outros aspectos centrais da economia têm peso menor, quando não são obliterados: a questão da produção (o que, quanto e como produzir) e a da distribuição (como e a quem cabem o produto social, a partilha entre capital e trabalho, grosso modo). Não é o caso de classificar tais pontos cegos como negacionistas. Além do mais, pelas próprias características da teoria e da prática da disciplina econômica, mesmo em sua versão padrão e academicamente dominante ou mais difundida, a controvérsia é frequente, quando não acerba. O que se pode chamar de modo menos polêmico de teoria econômica padrão é uma coleção mais ou menos estabelecida de modelos, como diz o economista Dani Rodrik, construções formais e lógicas, em geral matemáticas, descrições simplificadas da realidade e restritas por certas premissas, com as quais se criam e testam hipóteses sobre as relações de certos fatores ou variáveis. A
depender de premissas ou mesmo de condições históricas, a formulação ou a resposta de um problema pode mudar e, assim, dar vazão a contestações frequentes do que com temeridade pode ser chamado de conhecimento econômico estabelecido. O negacionismo aparece na tentativa de substituir o método e a consideração calculada das evidências pela mera retórica. CONFIRA
AUSTERIDADE NEGACIONISMO ESTRUTURAL NEOLIBERALISMO
* Jornalista e colunista da Folha de S.Paulo
ESCOLA SEM PARTIDO Marcos Paulo Dias Leite Resende * Cláudia Feres Faria **
O Escola
Sem Partido (doravante ESP) é um contramovimento social de caráter conservador-cristão fundado em 2004 por Miguel Nagib, procurador do estado de São Paulo em Brasília. Seu principal objetivo é atuar contra o que chama de “doutrinação política e ideológica nas escolas”. O ESP pode ser considerado um contramovimento social, pois sua ação é pautada pela reação a um conjunto de direitos conquistados por movimentos sociais e representantes políticos em luta pela garantia e ampliação dos direitos humanos. Com a ascensão ao governo federal de grupos políticos de centro-esquerda a partir de 2003, tornou-se mais frequente a formulação de políticas públicas, incluindo-se as políticas educacionais, que buscavam promover inclusão social e combate ao preconceito, acarretando uma série de reações de grupos conservadores. A ideia de “doutrinação política e ideológica” é imprecisa, porém muito utilizada pelos adeptos do ESP para designar práticas de ensino de educadores que supostamente se aproveitam do exercício da sua função para inculcar nos alunos seus valores e suas concepções políticas. De forma prática, tem-se denominado como “doutrinação política e ideológica” as discussões em sala de aula sobre temas que se opõem aos valores conservadores-cristãos dos pais dos alunos. Por esse motivo, os temas que mais encontram resistência dos adeptos desse contramovimento são o evolucionismo, as desigualdades, a pluralidade religiosa, bem como a educação sexual. Geralmente, a Teoria da Origem e Evolução das Espécies, de Charles Darwin, compreendida como uma concepção desafiadora do criacionismo, é contestada. Além disso, as críticas às cotas, às políticas feministas e/ou contra a homofobia surgem como respostas aos debates acerca das desigualdades,
principalmente aqueles que abordam concepções mais inclusivas sobre as questões raciais, de renda e de gênero. Os apoiadores do ESP questionam também os conteúdos de ensino relativos às religiões não cristãs, especialmente aquelas de matriz africana, e condenam a educação sexual como um incentivo à sexualização precoce de crianças e adolescentes. O debate levantado pelo Escola Sem Partido tem, com frequência, repercutido em vários níveis da Administração Pública e dos Parlamentos, desde o Congresso Nacional até as Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Tal repercussão se dá, sobretudo, por meio da proposição de projetos de lei que visam “coibir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas públicas”. O contramovimento pretende, desse modo, instituir instrumentos legais que instauram um espírito de autopoliciamento entre alunos e professores. Além disso, alguns projetos de lei também apresentam vedação expressa a determinados temas, como, por exemplo, aos debates acerca da suposta “ideologia de gênero”. Os primeiros projetos de lei guiados pelas ideias do ESP surgiram em 2014, dez anos após sua fundação. É possível identificar essas iniciativas como uma reação direta às articulações políticas e aos debates que fundamentavam o estabelecimento das diretrizes educacionais por meio do Plano Nacional de Educação (PNE) e, principalmente, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Nesse cenário, o contramovimento se dedicou a duas linhas de ação. Em primeiro lugar, questionou a competência do Conselho Nacional de Educação (CNE) e do Ministério da Educação para a definição dos parâmetros da BNCC, ao defender que o documento deveria tratar apenas de currículos e não de direitos. Os debates relativos aos direitos, segundo os adeptos do Escola Sem Partido, seriam de competência exclusiva do Congresso Nacional. Em segundo lugar, o Escola Sem Partido se posicionou contra os direitos inseridos no documento, reduzindo-os a uma suposta pauta que traduziria a “hegemonia da epistemologia marxista”. Assim, os conteúdos e parâmetros do BNCC deveriam ser substituídos por conteúdos
tradicionais/conservadores, compreendidos por eles como neutros. Com a consecução do golpe parlamentar, em 2016, e a ascensão de Michel Temer (MDB) à presidência, o amplo arranjo político conservador obteve relativo sucesso na reformulação das diretrizes educacionais. Desconsiderando o processo de construção coletiva anterior, que envolveu a contribuição de mais de 12 milhões de educadores nos diferentes níveis da federação (municipais, estaduais e nacional), a Base Nacional Comum Curricular foi reformatada pela Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, representando a maior alteração já ocorrida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Com essa medida unilateral da Presidência, retiraram-se da BNCC o Ensino Médio e os conteúdos relativos ao ensino de Artes, Educação Física, Sociologia, Filosofia e História da África e Cultura Afro-Brasileira. Essa exclusão foi considerada uma grande vitória do conservadorismo-cristão e representou um duro ataque às ciências humanas, apontadas como o lócus reprodutor das perspectivas progressistas. Além disso, consolidou-se a influência conservadora com o anúncio da exclusão de todas as menções às questões de gênero e à orientação sexual do documento. Posteriormente, as duas primeiras disciplinas foram retomadas através do Projeto de Lei de Conversão 34/2016 (ainda permanecendo a desregulamentação das demais) e as diretrizes curriculares do Ensino Médio foram homologadas em dezembro de 2018. As proposições legislativas que defendem a agenda do Escola Sem Partido têm sido sustentadas e conduzidas pelas bancadas cristãs, que congregam, principalmente, parlamentares neopentecostais, católicos carismáticos e espíritas kardecistas. Por esse motivo, os discursos em defesa desse contramovimento são dotados de caráter moralista, típico de lideranças religiosas conservadoras, conjugado a argumentos de ordem técnica e jurídica, que visam sustentar a atuação parlamentar na tese de que tais projetos são legais e constitucionais. Em diversas questões, torna-se clara a anteposição à ciência — com ênfase nos ataques às ciências humanas e sociais — acusada com frequência de
laicismo, de globalismo multiculturalista, de ativismo antirreligioso e de adesão a um alegado ateísmo comunista. Por outro lado, também são mobilizados argumentos de natureza técnico-jurídica, adequando-se às exigências procedimentais das instituições políticas formais. Mesmo sem a conquista de uma lei que garanta o suposto direito de vedar determinados conteúdos nas salas de aula, os adeptos do contramovimento podem comemorar algumas vitórias parciais. Uma delas é ter ajudado a alçar ao posto de presidente da República um deputado considerado do “baixo clero”, que tinha um mandato direcionado por bandeiras conservadoras similares à pauta do ESP. A partir desta janela de oportunidade, espaços importantes para a efetividade da política proposta pelo Escola Sem Partido foram abertos. Um exemplo disso é o perfil e a prática dos ministros da Educação nomeados pelo atual presidente. Sem exceção, todos eles assumiram a bandeira contra a alegada “doutrinação ideológica” e a favor do desmonte orçamentário do ensino público brasileiro. O desmonte do ensino público responde a uma lógica de privatização que ocorre por dois meios. De um lado, ele ocorre pela subordinação do público ao privado, com destaque à defesa da tese de que os conteúdos ministrados nas escolas ou não podem contradizer os valores familiares ou devem estar condicionados à autorização dos pais. De outro lado, se dá através da transferência do público ao privado, quando há a promoção de políticas de privatização do ensino público por meio, por exemplo, de uma política de vouchers (sistema financiado pelo Estado que prevê a entrega de vales para os pais escolherem uma instituição de ensino privada para seus filhos) ou por meio da educação domiciliar (homeschooling). No entanto, a despeito de suas vitórias parciais, o contramovimento sofreu forte revés institucional. O Supremo Tribunal Federal declarou, em agosto de 2020, a inconstitucionalidade dos projetos de lei inspirados pelo Escola Sem
Partido. Tal decisão acarretou, inclusive, encerramento das atividades políticas promovidas e controladas por Miguel Nagib nas redes sociais na internet. Com a derrota dos projetos de lei que personificavam a proposta do Escola Sem Partido, a agenda conservadora tem se reorientado e vem apostando, especialmente, na regulamentação da educação domiciliar. Os conservadorescristãos e os adeptos do ESP acreditam que, ao habilitar o ensino domiciliar, haverá a possibilidade de afastarem os filhos dos ambientes (escolares) reprodutores da suposta “doutrinação ideológica” e de mantê-los sob os olhares vigilantes da família. Essa opção, longe de atender a uma ampla parcela da população, tem como objetivo a perpetuação não só de valores tradicionais conservadores, mas também das desigualdades presentes em nossa estrutura social. LEIA MAIS
AÇÃO EDUCATIVA ASSESSORIA, PESQUISA E INFORMAÇÃO (Org.). A ideologia do movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo: Ação Educativa, 2016. Disponível em: < https://acaoeducativa.org.br/wpcontent/uploads/2017/05/escolasempartido_miolo.pdf>. Acesso em: 27 set. 2021. FRIGOTTO, G. (Org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UeRJ/LPP, 2017. CONFIRA
ANTIGÊNERO REACIONARISMO TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) ** Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
EXPLORAÇÃO SEXUAL E PROSTITUIÇÃO Adriana Piscitelli *
N
este verbete são analisadas as particularidades assumidas pela recusa em considerar o conhecimento acumulado sobre exploração sexual e prostituição no âmbito do atual governo federal eleito no Brasil em 2018. Apesar de não ser novidade ou exclusividade deste governo, tal recusa se intensificou no governo Bolsonaro, adquirindo um caráter hegemônico. Nesse contexto marcado por conservadorismos de extrema direita, essa recusa foi combinada com a falta de políticas públicas voltadas para as pessoas envolvidas no trabalho sexual e com uma singular pauta de proteção da infância e da adolescência que aciona a retórica dos direitos humanos, tendo complexos efeitos na garantia desses direitos. Poucos anos atrás era possível pensar nas ondas conservadoras considerando-as envolvidas em uma cruzada moral contra os direitos humanos no Brasil. No período aqui contemplado, porém, o governo brasileiro entrou na disputa sobre as formulações desses direitos, principalmente por meio do Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos. Sua ministra, Damares Alves, em uma linguagem tutelar do amor, considera as crianças como uma das categorias de pessoas que requerem especial proteção por serem alvo de violência. E a suposta proteção de crianças e adolescentes da violência sexual e, em sentido mais amplo, dos perigos da sexualidade tem contribuído para dar conteúdo ao ideal de “família tradicional” sustentado por correntes neoconservadoras no país. Esses movimentos são perceptíveis considerando declarações dessa ministra e material produzido pelo Ministério que leva à frente a “família”. Em julho de 2019 a ministra fez declarações sobre a exploração
sexual de meninas na Ilha de Marajó, no Pará. Apresentando o programa Abrace o Marajó, afirmou que os casos dessa ilha se tornaram emblemáticos da violência sexual no país. Segundo ela, “o número do incesto lá é absurdo e a exploração sexual de crianças e adolescentes é uma realidade”. A ministra aludiu a matérias que mostram os pais levando as filhas para subir nas grandes embarcações para fazer sexo com homens em troca de um litro de combustível. Afirmando que o Brasil inteiro considera essas práticas como culturais, ela declarou que o governo foi enfrentar a violência sexual que afeta meninos e meninas e o tráfico de mulheres que acontece na Ilha, levando “empreendimentos”. Especialistas teriam falado que as meninas lá são exploradas porque não têm calcinha. A ministra Damares Alves afirmou que, apesar de ter conseguido muitas calcinhas, em algum momento elas acabariam, e seria necessário levar uma fábrica de calcinhas para a Ilha de Marajó, para gerar emprego. Essas declarações causaram impactos no país e no âmbito internacional. Parte dos argumentos aponta para o fato de a ministra estar reforçando a “cultura do estupro”, culpabilizando as vítimas, e as responsabilizando e as suas famílias, em condições de extrema pobreza, pela violência sexual. Além disso, outra parte chamou a atenção para a atitude colonizadora, permeando a postura da representante sobre os investimentos a serem realizados na Ilha, sem consultar a população local. Esses questionamentos são válidos, mas as declarações da ministra denotam também sua negligência frente aos estudos durante décadas realizados no Brasil sobre exploração sexual, trabalho sexual e, inclusive, tráfico de pessoas. Mais ainda: denotam seu esforço de ignorar o exercício da prostituição de mulheres na Ilha de Marajó e os problemas por elas enfrentados. Esses temas têm sido analisados pelo conhecimento crítico, particularmente socioantropológico que, longe de vitimizar ou demonizar as pessoas envolvidas nessas práticas, considera as percepções dessas pessoas e as dinâmicas dessas problemáticas, oferecendo a partir de suas análises elementos para as políticas públicas.
A negligência desse conhecimento se torna evidente na utilização errônea e equivalente de diversos termos tratados como crimes. A pedofilia e o incesto (diferentemente do abuso sexual, da exploração sexual de crianças e adolescentes e do tráfico de pessoas) não são tipificados como crimes no Brasil. O crime é o estupro de vulnerável. Mas esse embaralhamento adquire sentido considerando a carga emocional e moral mobilizada por esses termos, dotando de maior eficácia a pauta da proteção da infância e da adolescência em relação a supostos perigos sexuais. Algumas autoras, como Marlene Teixeira Rodrigues, observam que é recorrente a disseminação de pânicos morais por meio da exacerbação dos medos, desconsiderando as causas reais dos problemas e deslocando-os para tipos diabólicos e imorais. No Brasil, a alimentação desses pânicos voltados para a sexualidade tem envolvido em tempos recentes o destaque da causa de proteção das crianças conjuntamente com o apagamento das necessidades e reivindicações que surgem a partir do próprio exercício da prostituição por parte de pessoas adultas. Dentre outras demandas, tais reivindicações incluem: o reconhecimento da prostituição como atividade laboral; retirar a profissão de um lugar estigmatizado; bem como eliminar as violências e a desproteção a que estão sujeitas os trabalhadores es e trabalhadoras do sexo. A prostituição foi considerada como profissão na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério de Trabalho e Emprego no ano de 2002. Apesar desse avanço, essas pautas ainda causam desconforto, inclusive em instâncias de governos considerados progressistas, em momentos anteriores à exacerbação dos conservadorismos no Brasil. As organizações de prostitutas tentam implementar essas pautas no país desde a década de 1980, enfrentando obstáculos por parte de diversos setores, incluindo correntes dos feminismos. Algumas linhas feministas, chamadas abolicionistas, têm apoiado pautas em diversas áreas dos direitos, mas têm sido contrárias à regulamentação e, até, ao exercício da prostituição, influenciando
durante a década de 2000 a falta de reconhecimento das reivindicações das prostitutas por instâncias do governo federal. O Estado brasileiro, porém, está constituído por um conjunto de instituições, práticas e pessoas que operam em diferentes dimensões, em ações permeadas por contradições. No âmbito dessas incoerências, as organizações de prostitutas contaram com o apoio de algumas instâncias do Estado, particularmente do Ministério de Saúde, que as considerou importantes aliadas na luta contra a disseminação da aids. A atuação dos feminismos abolicionistas, relativamente diluída na heterogeneidade de posições feministas existentes no país, intensificou-se no âmbito da agudização das expressões públicas conservadoras da década de 2010. Certamente há convergências entre as ideias desses feminismos e as do atual governo federal em relação à prostituição. No entanto, independentemente dos feminismos e apesar dos conselhos da ministra Damares Alves para que os clientes das profissionais do sexo fossem atendidos on-line durante a pandemia, o posicionamento dos diferentes setores do governo federal, à diferença de gestões anteriores, convergiu em ignorar as necessidades das prostitutas. Conjuntamente com a nomeação desta ministra da família, uma série de retrocessos institucionais, tais como a extinção do antigo Departamento Nacional de IST/HIV/AIDS e o desmonte de ações e projetos, afetou significativamente as trabalhadoras sexuais. De acordo com Marlene Rodrigues, o distanciamento social necessário para enfrentar a pandemia colocou obstáculos à atividade corpo a corpo majoritariamente utilizada pelas prostitutas no Brasil. Isso porque poucas conjugam a possibilidade de acessar as tecnologias com a estética que tornem viável o trabalho on-line. Assim como outros trabalhadores precarizados, com dificuldades para aceder ao auxílio emergencial concedido pelo governo, viram-se pressionadas a continuar trabalhando. E, sem o apoio do Ministério da Saúde, as organizações do movimento de prostitutas precisaram se articular com outros sujeitos políticos, ONGs e secretarias municipais e estaduais, criando uma diversidade de estratégias para reunir
dinheiro e cestas básicas para apoiar as pessoas envolvidas no trabalho sexual. O apagamento dos direitos das prostitutas coincidiu com uma retórica de proteção das crianças face à violência sexual, retórica que estabelece delicadas relações entre sexo precoce, falta de abstinência sexual e estupro. Nessas conexões surge mais uma vez uma responsabilização que envolve as vítimas, as famílias e a sociedade. Comentando o caso de uma menina de 10 anos que após ter sido abusada conseguiu abortar apesar dos obstáculos colocados por diversas instâncias, a ministra, Damares Alves, declarou que essa menina era uma das centenas que, com menos de 14 anos, ficava grávida no Brasil. Ela lembrou que quando almejou instituir um programa sobre sexo precoce no Brasil foi questionada por insistir na abstinência sexual. Desconsiderando toda a produção socioantropológica sobre o tema, ela afirmou que sabia do que estava falando pois “as crianças estão tendo relações sexuais cada vez mais cedo e nesse caso foi estupro”. Para a ministra, a grande motivação do caso de violência teria sido “a erotização de crianças no Brasil”. A responsabilização pelos perigos sexuais envolvendo crianças e adolescentes, e esse é o ponto a ser destacado, coexiste com o traçado de uma noção de família desejável. Trata-se de um modelo de família “tradicional”, organizada segundo a alegada ordem natural das relações entre homens e mulheres e, portanto, heterossexual. A importância concedida a esse modelo é evidente na formulação da suposta “ideologia de gênero”. Por meio dessa expressão, as alas conservadoras oferecem uma linguagem para ideia de que toda a ordem social estaria desestabilizada, sendo que aquele modelo de família seria o locus de produção dessa estabilidade ou do seu fim. O desenho tradicional de família reivindicado pela ministra tornase visível nas políticas do Ministério. Tais políticas estão dirigidas para o “fortalecimento de vínculos familiares”, expressão que alude ao reforço às hierarquias familiares e ao aumento da resiliência das
famílias e das crianças para resistir às pressões externas. Esse esboço é também perceptível na Coletânea publicada pelo Ministério, sem data, à qual é atribuída um caráter “científico” no título: Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois — coletânea de artigos científicos. A publicação considera ineficaz a educação sexual por ser “puramente genital”. Ao contrário, propõe como solução ensinar que a finalidade da sexualidade humana é o amor mútuo e a geração e criação de filhos. Fazendo uso de uma estrutura moral para educar os jovens, sobretudo as meninas, lhes indica para não entrarem, via gravidez, em um “círculo vicioso de decadência moral, analfabetismo e falta de cultura”. Assim, as políticas públicas lideradas pelo atual Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, embora não restritas a ele, tendem sistematicamente a negligenciar o conhecimento científico produzido e acumulado por décadas no Brasil. Elas dizem querer proteger crianças e adolescentes, incentivando métodos considerados ineficazes na literatura especializada internacional e nacional em termos de prevenção da gravidez. Mais ainda: não apenas criminalizam o trabalho das prostitutas, como tendem a reproduzir estereótipos sabidamente nefastos ao redor de adolescentes e da gravidez, rotulando-a como uma espécie de ingresso na “decadência moral”. LEIA MAIS
PISCITELLI, A.; LANDINI, T. S.; TEIXEIRA; F. “2021 Pesquisa e tráfico de pessoas, olhares sobre os mercados do sexo.” In: MEIRINHO, A. G. S. (Org.), et al. Tráfico de pessoas: uma visão plural do tema. Brasília: Ministério Público do Trabalho, p. 411-463. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. PISCITELLI, A. “Conhecimento antropológico, arenas políticas, gênero e sexualidade.” Revista Mundaú, Maceió, n.1, p. 73-90,
2016. RODRIGUES, M. T. “Prostituição, neoconservadorismo e pandemia — O movimento de prostitutas e os desafios da covid-19.” Revista Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 19, n. 48, p. 169 — 182, 2021. CONFIRA
DESIGUALDADE E INTERSECCIONALIDADE GUERRAS CULTURAIS PÂNICOS MORAIS
* Professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
FACT-CHECKING Afonso de Albuquerque *
O termo
fact-checking tem sido correntemente utilizado para descrever atividades de verificação da veracidade de informações divulgadas publicamente. Traduzido do inglês, significa algo como checagem ou verificação de fatos. O uso original do termo remete a uma atividade exercida cotidianamente nas salas de redação dos veículos como jornais e sites informativos. Nos termos do profissionalismo jornalístico, as informações devem ser verificadas antes de serem divulgadas na forma de notícias. Contudo, o uso contemporâneo do termo dá conta de uma prática mais recente, exercida por organizações especializadas: as agências de factchecking. A primeira agência de fact-checking, FactCheck.org, foi criada em 2003 nos Estados Unidos. A agência se originou como um projeto de extensão, a partir de pesquisas conduzidas na Annenberg School for Communication, na Universidade of Pennsylvania pela pesquisadora Kathleen Hall Jamieson. Em diversas obras, publicadas desde a década de 1980, a autora sugeriu que a desinformação política representava um risco para a democracia, na medida em que prejudica o processo de tomada de decisão pelos eleitores. O fact-checking seria, então, uma iniciativa destinada a corrigir essa ameaça. A perspectiva teórica de Jamieson aprofunda uma tradição inaugurada na década de 1920 por Walter Lippmann (1889-1974). Vinculado ao movimento progressista — que propunha uma perspectiva mais técnica e menos partidária da política — Lippmann foi um dos idealizadores do modelo da objetividade jornalística, que atribuía ao jornalismo o papel de prestar informações confiáveis, ao invés de interpretações politicamente orientadas sobre a realidade. Quase um século depois, Jamieson deu um passo adiante, na medida em que passou a cobrar precisão factual também dos discursos políticos.
O movimento do fact-checking se expandiu e ganhou escala global na década de 2010. De muitas maneiras essa expansão está ligada a um fenômeno mais amplo: a globalização neoliberal e seu impacto sobre os meios de comunicação ao redor do mundo, a partir da década de 1980. Até então, na maior parte dos países, o modelo de organização midiática predominante na maior parte dos países era de afiliação partidária dos meios de comunicação impressos e um modelo de rádio e televisão de caráter público e estatal. Nos termos desse modelo, a própria ideia de “fato” parecia ingênua. Tinha-se como premissa de que toda informação jornalística era atravessada por perspectivas políticas, de modo que a honestidade e correção profissional passariam por deixar claras quais seriam essas perspectivas e se manter fiel a elas. O processo de globalização midiática alterou esse panorama, na medida em que deu ao modelo vigente nos Estados Unidos um caráter universal. Para além disso, a expansão do modelo de factchecking contou com o apoio institucional de um conjunto de instituições sediadas nos Estados Unidos. O pivô desse processo foi exercido pela International Fact Checking Network (IFCN), fundada em 2015. A IFCN, por sua vez, está também ligada a uma rede internacional de instituições acadêmicas e organizações de verificação. A IFCN funciona como instituição que define as boas práticas em fact-checking e certifica determinadas agências como dotadas de autoridade para exercer o ofício de maneira competente. O fenômeno do fact-checking pode ser considerado sob inúmeros aspectos. O primeiro deles diz respeito à sua natureza epistemológica. Por um lado, as ambições por detrás do fenômeno do fact-checking são extremamente ambiciosas: almeja-se definir quais declarações são falsas e quais são verdadeiras. Os pensamentos filosófico e científico têm dedicado uma enorme atenção a esse problema, e as respostas a ele têm sido fundamentalmente modestas. Como regra, entende-se que os processos de definição de verdade são condicionais e relativos, e não absolutos. Por outro lado, tanto no campo da filosofia como no da ciência, a produção de conhecimento sobre o mundo segue
protocolos rigorosos, que devem ser apresentados de modo tão claro quanto possível, a fim de que se possa convencer o público ao qual eles se destinam. Até o presente, a epistemologia do factchecking ainda se apresenta como menos rigorosa do que as que caracterizam o campo científico, contudo. Um segundo aspecto remete à relação entre fact-checking e jornalismo. Novamente, há diferentes fatores a se considerar. Para começar, a explosão do fact-checking é consequência direta de uma crise de legitimidade da instituição jornalística. Como exposto mais acima, o fact-checking era anteriormente exercido no interior das organizações jornalísticas, como controle de qualidade interno. Em um contexto como o atual, no qual as notícias são produzidas de maneira cada vez mais apressada, tal procedimento se tornou muitas vezes um luxo que os veículos jornalísticos não se dispõem a bancar. O material publicado que resulta disso é muito menos confiável do que o que se produzia em condições mais rigorosas e com maior quantidade de tempo. Acrescenta-se a isso o fato de que as mídias sociais tornaram possível a um número muito maior de agentes a produzir discursos com grande alcance público. Alguns desses agentes têm sido capazes de mimetizar estilos discursivos próprios do jornalismo para produzir desinformação. Esse fenômeno tem sido objeto de grande atenção, sendo expresso pelo rótulo de fake news. Portanto, o fact-checking funciona como um instrumento que restitui ou tenta restituir ao jornalismo um pouco da sua autoridade contestada. O modo como ele o faz é inteiramente distinto da lógica de checagem jornalística anterior, pois as agências de fact-checking raramente analisam o conteúdo divulgado pelas organizações jornalísticas tradicionais. A possibilidade de que essas organizações sejam responsáveis por fake news é, em geral, descartada de saída. Quer dizer, a maior parte absoluta da atenção das agências de factchecking é orientada para agentes políticos, organizações jornalísticas de perfil mais alternativo, bem como discursos de autoria indeterminada.
Uma terceira dimensão do fenômeno diz respeito ao viés político do fact-checking. Ele se manifesta de diferentes maneiras, seja nas categorias usadas para classificar as declarações/informações públicas, nos procedimentos empregados no processo de classificação e nos critérios de seleção do que (e de quem) se torna objeto de avaliação. A partir desses critérios, o fact-checking opera em um terreno de minúcias. Não se trata de uma oposição simples entre verdadeiro e falso, dentro da qual caberia identificar apenas o que é cabalmente falso. Trata-se, antes, de classificar as declarações conforme uma escala de falsidade. As categorias empregadas, por exemplo, pelo Fact Checker, ligado ao Washington Post, refletem isso de maneira exemplar. Elas operam em uma escala de Pinóquios, na qual a verdade (Gepeto) é apenas uma possibilidade. A classificação, em si mesma, opera em um terreno de minúcias, que considera a precisão em detrimento do sentido geral. Um último aspecto relevante do fact-checking concerne ao seu impacto, de uma perspectiva pragmática. As agências de factchecking se apresentam como instrumentos a serviço do esclarecimento, que permitem ao público em geral distinguir o que é fato do que é fake. Na prática, contudo, elas se dirigem a um público especializado, constituído por organizações midiáticas tradicionais e plataformas de mídias sociais. Esses agentes têm o poder de conceder visibilidade a outros agentes sociais, mas o fazem segundo lógicas distintas. A mídia tradicional o faz de acordo com uma lógica qualitativa: ela associa esses agentes a valores positivos ou negativos, com base nas classificações das agências. As plataformas de mídias sociais têm uma abordagem mais direta, na medida em que são capazes de diminuir o alcance da visibilidade de seus usuários e mesmo bani-los das suas redes. CONFIRA
FAKE NEWS FALSEABILIDADE
IMPRENSA NEGACIONISTA
* Professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF)
FAKE NEWS Rafael Cardoso Sampaio *
N
uma tradução literal, “fake news” são notícias falsas. Uma definição simples assim já nos obriga a pensar que se trata de notícias, de narrativas sobre acontecimentos do cotidiano, buscando se assemelhar às notícias jornalísticas, mas que são falsas. São falsas no sentido de que podem ter sido inventadas, alteradas, distorcidas ou retiradas de seus contextos originais. Entretanto, a simplicidade dessa definição não permite lidar com a complexidade do fenômeno contemporâneo das fake news. Apesar de existirem fake news dos mais variados assuntos, frequentemente motivadas por razões econômicas, vale a pena entender o fenômeno especificamente dentro da política. Naturalmente, elementos como fofocas, boatos, mentiras e distorções sempre foram lugar comum das disputas políticas, não se tratando, portanto, de novidade. Todavia, o fenômeno das fake news, como o conhecemos, é essencialmente ligado ao mundo online e possui inúmeras particularidades, tendo, até mesmo, data de nascimento: as eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos da América. Nessa ocasião, Donald Trump, do Partido Republicano, foi eleito, derrotando sua oponente Hillary Clinton, do Partido Democrata. Essas eleições foram fortemente marcadas pela proliferação massificada de fake news nas redes sociais on-line por ambos os lados, porém, mais enfaticamente, contra Clinton. Diversos autores, inclusive, assumem que a eleição de Trump, a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit) e a escalada de políticos e governos populistas de extrema direita têm uma relação direta com o aumento global de uso de fake news. No caso do Brasil, eventos anteriores de mentiras e distorções em larga escala durante as eleições já ocorreram, como, por exemplo, uma falsa ficha criminal de guerrilheira de Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores (PT), disseminada durante as eleições de 2010.
Apesar disso, a questão das fake news se tornam verdadeiramente uma questão de envergadura nas eleições de 2018. Nesse pleito, há vários indícios de disparos massivos de mensagens por aplicativos de celular para milhares de grupos de pessoas. Parte considerável dessas mensagens eram fake news e direcionadas contra Fernando Haddad, candidato do PT. Tais mensagens o acusavam de defender o incesto, a pedofilia, a implantação do comunismo no Brasil e até de um pretenso “kit gay”, um manual que, supostamente, seria distribuído em escolas e incentivaria as crianças a serem homossexuais, quando Ministro da Educação, entre outros absurdos. Da mesma forma, embora em menor escala, Jair Bolsonaro (então do Partido Social Liberal — PSL) e sua campanha também foram alvos de fake news, como falsas alegações de preconceito contra nordestinos e sobre a intenção de confiscar as poupanças dos brasileiros. Embora as eleições nos Estados Unidos, em 2016, e no Brasil, em 2018, sejam apenas dois exemplos dentre vários existentes no mundo, elas nos ajudam a compreender o fenômeno das fake news, especialmente, pelos seus personagens. Donald Trump, particularmente, ficou conhecido por usar o termo fake news não para notícias falsas ou distorcidas, mas para tradicionais veículos jornalísticos profissionais que o cobravam ou o criticavam por suas ações. Para Trump e seus apoiadores, todo tipo de mídia contrária ao seu ponto de vista seria uma “mídia falsa”, pois estaria distorcendo a “verdade” em suas coberturas diárias, movimento repetido em outros países por líderes populistas de extrema direita. Por sua vez, em seu governo, Jair Bolsonaro fez uso de estratégias similares às de Trump, buscando estar em um constante clima de confronto com o jornalismo profissional tradicional. Bolsonaro, a exemplo desses líderes, também se apropriou de meios paralelos de informação, que não seriam filtrados ou mediados pela imprensa profissional, usando perfis em plataformas de redes sociais digitais e também aplicativos de conversação direta por celulares, notadamente na formação de grupos para a divulgação de suas mensagens.
Com base nesses exemplos, já é possível fazermos uma definição mais complexa do fenômeno. No seu sentido original, fake news são notícias falsas, inventadas, alteradas, distorcidas, retiradas de seus contextos originais, porém agora podemos acrescentar algumas características. Em primeiro lugar, elas não precisam apresentar um formato que, necessariamente, imite o jornalístico, podendo apresentar formas mais simples ou mesmo toscas. Entretanto, elas ainda, usualmente, são baseadas numa lógica de apresentar novidades baseadas em “fatos”, mesmo que inventados ou distorcidos. Portanto, as fake news são formuladas para chamar a atenção do público e circular rapidamente. Como tendem a exagerar o acontecimento falso ou distorcido, elas muitas vezes chamam mais atenção — têm maior circulação e alcance — que fatos e notícias reais, porém, pela mesma razão, as notícias falsas circulam por pouco tempo. Isso não impede, entretanto, que as mesmas fake news de um dado momento voltem a circular, posteriormente, com pouca ou nenhuma alteração em sua forma e conteúdo. Em segundo lugar, as fake news tendem a trabalhar com o chamado “viés de confirmação”. Ou seja, informações alinhadas ao pensamento do indivíduo, mesmo que não sejam verdadeiras. Logo, esses conteúdos se baseiam em crenças e perspectivas preexistentes, mas especialmente são focadas em paranoias, medos, ansiedades, teorias conspiratórias e preconceitos. Particularmente, quando há um clima de opinião conflituoso, as pessoas tendem a confiar mais nos seus grupos de relacionamento próximos (amigos, familiares e colegas de trabalho) e nos grupos baseados em seus interesses e crenças. São nesses grupos temáticos que intolerâncias, preconceitos, teorias conspiratórias e posicionamentos políticos podem servir como elo entre as pessoas e fomentar um sentimento de pertencimento com o grupo. Portanto, no campo político, fake news são usadas, geralmente, para provocar um distúrbio ou mesmo manipulação do debate público e para atacar candidatos, políticos, instituições políticas, políticas públicas, grupos minoritários, entre tantos outros. Elas jogam com as crenças anteriores das pessoas e com o sentimento de
pertencimento ao grupo, fomentando a lógica de “nós” contra “eles”, para serem mais aceitas como verdadeiras e como válidas a serem replicadas. Em terceiro lugar, no mundo contemporâneo, fake news são um fenômeno intrinsecamente digital. Fake news são nocivas, justamente, porque se espalham em velocidade assustadora por plataformas, aplicativos, celulares e redes de comunicação on-line e por poderem alcançar um número consideravelmente maior de indivíduos. Ainda assim, a complexidade atual do sistema midiático nos obriga a compreender que há vários fatores intermediários para essa disseminação. Por um lado, os algoritmos das plataformas de redes sociais são importantes questões no alcance orgânico que essas mensagens recebem. Sendo assim, os disseminadores de fake news tendem a fazer uso de contas falsas e de robôs (bots) para aumentar artificialmente o alcance de suas mensagens. Sistemas sofisticados podem ser usados para massificar o envio, inclusive para públicos específicos, e elevar o engajamento de tais mensagens nas diferentes plataformas. Interesses escusos também podem investir altos valores financeiros para patrocinar esses conteúdos falsos, quando não há regulação adequada. Por outro lado, é raro que campanhas de desinformação sejam bem-sucedidas apenas pelos seus elementos digitais, então a ação humana continua sendo vital. Novamente, podem existir ações coordenadas de grupos negacionistas que espalham as mensagens para pessoas ou pontos centrais da rede para garantir que as mesmas tenham forte alcance. No entanto, a circulação e o alcance dessas mensagens dependem sempre de pessoas dispostas a compartilhar os conteúdos para pessoas próximas a si. No seu sentido alternativo e distorcido, fake news é um termo utilizado por políticos ou grupos extremistas para desqualificar veículos midiáticos, geralmente do jornalismo profissional, que fazem coberturas negativas do grupo político em questão. Essa desqualificação acontece para a promoção de meios alternativos de comunicação, geralmente digitais, direcionados a grupos partidários
e militantes específicos, que não tenham filtragem ou mediação desses atores midiáticos. Esses canais paralelos costumam ser justamente aqueles que ajudam a difundir as fake news em seu sentido original. O combate às fake news é tópico particularmente complicado. Notadamente, agências de fact-checking (checagem de fatos) foram uma das principais respostas à difusão das notícias falsas. Essas agências, que podem pertencer ou não a empresas jornalísticas, ocupam-se de checar se notícias coletadas em diferentes redes digitais são verdadeiras ou falsas. Se consideradas falsas, usualmente o próprio jornalismo se ocupa em dar publicidade a isso. Todavia, a checagem e correção da verdade tende a ter efeito reduzido em relação às fake news, porque elas geralmente não alcançam o mesmo número de indivíduos expostos aos conteúdos falsos originais e, devido ao viés de confirmação, as próprias pessoas resistem à correção da informação. Ou ainda, mesmo que um jornal ou uma agência de checagem diga que uma informação é falsa, se ela contraria o pensamento e as crenças intolerantes do indivíduo, este vai resistir a acreditar que a mensagem corrigida era falsa. Aqui, o segundo conceito autorreferente de fake news importa, pois o indivíduo pode achar que os veículos midiáticos estão fabricando fake news, tentando atacar seu líder ou sua posição política. Depois das eleições norte-americanas e do Brexit, vários países começaram a discutir normas e regulações para tentar diminuir a circulação das fake news. De modo bastante geral, as leis e os projetos de leis aprovados e debatidos pelo mundo se detêm, primeiramente, sobre aplicar sanções penais aos grupos e indivíduos que criam as fake news e/ou, em certos casos, às pessoas comuns que as espalharam sem checá-las. Essas leis muitas vezes podem se restringir a um período específico, como o eleitoral. Além disso, muitas leis e projetos tratam de regulações sobre as próprias plataformas digitais, que podem incluir a correção de
informação (como fact-checking), bloqueio ou remoção de conteúdo, geralmente tentando responsabilizar ou impelir essas grandes corporações a dedicar mais recursos para minimizar a proliferação das fake news. Apesar de parecer uma solução natural, há controvérsias se leis assim não dão poder excessivo às empresas, que podem optar por uma retirada arbitrária e massiva de conteúdo, podendo ter efeito sobre a liberdade de expressão e, no limite, ser usadas contra grupos minoritários ou oposicionistas de governos e políticos. Atualmente, as melhores iniciativas têm sido de corregulação. Nelas, agentes de governos, sociedade civil, mídia e academia trabalham em conjunto com as plataformas digitais para inibir a circulação de fake news. A única solução vista como unânime tende a ser de longo prazo: melhorar a literacia midiática das pessoas, ou seja, um consumo de mais e melhores fontes de informações, visando aumentar a capacidade dos sujeitos de distinguirem boas fontes de informação e notícias falsas. Tamanha mudança de comportamento depende de vários e contínuos programas de governo e da sociedade civil, além de investimento significativo e contínuo em educação. Em suma, as fake news são um fenômeno recente do mundo digital e não devem sair do horizonte político no curto prazo, afinal são fáceis de serem criadas e de circulação relativamente simples, ajudam a reforçar pontos de vista extremistas em pessoas ou a destruir reputações e são difíceis de serem detectadas e combatidas. Ao invés disso, elas devem se tornar cada vez mais complexas e sofisticadas no uso de novas tecnologias digitais e tenderão a ser um desafio constante para quem almeja eleições justas, cidadania bem informada e um debate público de qualidade. LEIA MAIS
ALBUQUERQUE, A. “As fake news e o Ministério da Verdade Corporativa”. Revista Eptic, Sergipe, v. 23, n. 1, jan./abr. 2021. Disponível em: . Acesso em:
27 set. 2021. GOMES, W. da S.; DOURADO, T. “Fake news, um fenômeno de comunicação política entre jornalismo, política e democracia”. EJM — Estudos em Jornalismo e Mídia, Santa Catarina, Belo Horizonte, v. 16, n. 2, p. 33-45, jul./dez. 2019. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. RECUERO, R. “#Fraude nas Urnas: estratégias discursivas de desinformação no Twitter nas eleições 2018”. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, v. 20, n. 3, p. 383-406, jul./set. 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. TANDOC, E.; LIM, Z.; LING, R. “Defining ‘fake news’. A typology of scholarly definitions.” Digital Journalism, London, v. 6, n. 2, p. 137153, 30 ago. 2017. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) REACIONARISMO TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
FALSEABILIDADE Renan Springer de Freitas *
F
alseabilidade é o nome pelo qual ficou conhecido o critério proposto pelo filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994) para distinguir os enunciados científicos dos não científicos. De acordo com esse critério, enunciados científicos são aqueles que têm conteúdo empírico. Afirmar que um enunciado tem conteúdo empírico é afirmar que se ele for verdadeiro há fenômenos que não podem acontecer; mais exatamente, é afirmar que ele é incompatível com afirmações que descrevem a ocorrência desses fenômenos. Consideremos, por exemplo, o enunciado que exprime a lei da gravitação universal: matéria atrai matéria na razão direta das suas massas e na razão inversa do quadrado da distância que as separa. Afirmar que esse enunciado tem conteúdo empírico é afirmar que é possível conceber pelo menos uma afirmação, não importa se verdadeira ou falsa, que seja incompatível com ele em razão de descrever algum fenômeno que não poderia acontecer se ele fosse verdadeiro. Não é necessário que o fenômeno descrito já tenha ocorrido nem que possa vir a ocorrer. Basta que seja observável. Uma afirmação como, por exemplo, “ontem minha caneta flutuou assim que a coloquei sobre a mesa”, descreve a ocorrência de um fenômeno que não poderia acontecer caso o enunciado que exprime a lei da gravitação universal fosse verdadeiro. Logo, essa afirmação é incompatível com o referido enunciado e, como corolário, este último tem conteúdo empírico. Se não tivesse, pelo menos no que lhe diz respeito, nada haveria de surpreendente no fato de uma caneta flutuar. Da mesma forma que o referido enunciado proíbe a ocorrência de tal fenômeno, ele proíbe que ocorra um choque entre Mercúrio e Vênus ou entre a Terra e Marte. Disso resulta que conteúdo empírico é uma questão de grau: um enunciado terá mais ou menos conteúdo empírico dependendo da amplitude de fenômenos que ele proíbe de acontecer.
Mas já houve um tempo, bastante remoto, em que não se concebia enunciados com conteúdo empírico. Em sua célebre obra Humano, demasiado humano, seção 111, o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) nos remete inadvertidamente a esse tempo ao se referir a uma “fase da humanidade” em que não havia o que pudesse surpreender: o sol poderia não se pôr no fim da tarde nem reaparecer pela manhã; a chuva, o vento, as floradas tanto poderiam acontecer a qualquer momento quanto simplesmente nunca mais voltar a acontecer. Em nenhum desses casos era considerada a possibilidade de existir regularidades que pudessem se impor a acontecimentos singulares. Um pôr do sol não tinha relação com outro, uma florada não tinha relação com outra e assim por diante. Como era possível explicar a ocorrência de qualquer fenômeno nessas circunstâncias? Assim: quando se remava, não era o ato de remar o que movia o barco; remar era apenas uma cerimônia mágica por meio da qual se convocava um demônio para mover o barco; quando as fontes secavam, era obra de demônios subterrâneos, quando um homem caía, era o efeito invisível de uma flecha lançada por algum deus. Em nenhum desses casos é concebível a descrição de um único fenômeno que não pudesse acontecer se a explicação dada fosse válida. Isso significa que, inadvertidamente, os escritos de Nietzsche nos remetem a uma "fase da humanidade" em que não era concebível a existência de enunciados que pudessem ser incompatíveis com descrições de fenômenos observáveis. Enunciados de tal natureza só se tornaram concebíveis em uma, por assim dizer, “fase mais tardia”, após os antigos gregos nos legarem as ideias de "ocorrência natural" e de "causa natural". Nessa “fase mais tardia” não há lugar para deuses nem demônios, mas, em contrapartida, há lugar de sobra para a previsibilidade. Não só o nascer e o pôr do sol, a chuva, o movimento dos barcos, as enfermidades, a própria morte, agora convertidos em “ocorrências naturais”, tornaram-se previsíveis, mas também a propagação da luz, a força eletromagnética e a contração dos corpos em movimento, para nos limitarmos a alguns poucos exemplos. Posto
que deuses e demônios estão fora de combate, que causas, agora naturais, poderiam responder por esses fenômenos? Como a luz se propaga? Por que um objeto imantado faz outros corpos se moverem? No século 19 essas perguntas estavam postas para os estudiosos dos fenômenos naturais, então conhecidos como filósofos naturais. Para respondê-las, eles postularam a existência, não dos já banidos deuses e demônios, mas de um fluido invisível, rarefeito, que não era líquido nem gasoso, mas, ainda assim, podia preencher (e, assim acreditavam, de fato preenchia) todo e qualquer espaço existente entre dois corpos. Essa substância misteriosa, chamada éter, não podia ser detectada a não ser por meio dos seus supostos efeitos causais, que (assim acreditavam) não eram poucos. Desde o advento da teoria ondulatória da luz, que data do início do século 19, acreditava-se que a luz era uma onda e, por ser uma onda, tinha que ser feita, como toda onda, de alguma substância que vibra e oscila. Que substância seria? O éter. Da mesma forma, acreditava-se que um ímã só era capaz de atrair outros corpos porque provocava em torno de si uma perturbação da substância incorpórea que o cercava, a qual, uma vez perturbada, espalhava-se, atingia o outro corpo e, ao atingi-lo, fazia com que ele se movesse. Que substância incorpórea era essa? Mais uma vez, o éter. Antes, deuses e demônios; posteriormente, o éter e, em nossos dias, nem um nem outro. Não se faz mais necessário postular a existência de demônios para explicar por que o ato de remar faz um barco se mover nem a existência do éter para explicar o modo como a luz se propaga e o modo como um imã atrai um metal. Essas entidades, os demônios e o éter, tornaram-se dispensáveis, mas não está ao alcance da ciência afirmar (ou provar) que elas não existem (nem, se fosse o caso, que existem). Enunciados que postulam a existência dessas entidades não têm conteúdo empírico, e a ciência não tem como se impor nem como se contrapor a enunciados sem conteúdo empírico. Que relação ela tem ou pode ter com esses enunciados então? Essa pergunta é um caso particular de uma pergunta mais geral:
que relação existe entre os enunciados científicos e os não científicos, independentemente do critério pelo qual são distinguidos uns dos outros? A falseabilidade, há de se esclarecer, não é o único critério de demarcação existente. Ela se contrapõe a um outro, o “critério da verificabilidade”, segundo o qual não importa se um enunciado tem ou não conteúdo empírico desde que seja possível verificar (ou comprovar) a veracidade daquilo que ele assevera existir ou ocorrer. Se o que um enunciado assevera existir, por exemplo, essa substância incorpórea chamada éter, o critério da verificabilidade não proíbe que algum fenômeno ocorra caso ele seja verdadeiro, mas que haja resposta para a seguinte pergunta: segundo que método é possível verificar que essa substância realmente existe? Se essa pergunta puder ser respondida, o enunciado "o éter existe” pode ser considerado científico; caso contrário, ele é uma mera especulação metafísica e, como tal, precisa a todo custo ser mantido afastado da ciência para que esta possa se estabelecer e prosperar. Nos marcos do critério da falseabilidade, em contraste, nada há de errado com as "especulações metafísicas”, nem, em termos mais gerais, com os enunciados não científicos. Ao contrário, estes são imprescindíveis para a ciência porque são eles que constituem as premissas a partir das quais podem ser formulados os enunciados falseáveis. Nessa perspectiva, nenhum enunciado científico pode ser formulado à margem de premissas (não científicas) tais como, por exemplo: um pôr do sol tem necessariamente alguma relação com outro; a natureza não dá (ou, alternativamente, dá) “saltos”; os homens são movidos por pulsões inconscientes (ou, alternativamente, por interesses egoístas) etc. Disso resulta que quando se distingue o conhecimento científico do não científico por meio do critério da falseabilidade, a ciência, longe de repelir concepções de natureza metafísica — que podem, em princípio, incluir concepções filosóficas, teológicas ou mesmo religiosas —, depende de tais concepções para se estabelecer e para prosperar. A obra do historiador da ciência Alexandre Koyré ilustra essa dependência particularmente bem (vide sugestão de leitura).
Mas por que considerar a falseabilidade o critério por excelência de demarcação entre o conhecimento científico e o não científico? Que vantagem tem esse critério sobre o critério da verificabilidade? Por que, em resumo, reservar o epíteto “científico” apenas aos enunciados que têm conteúdo empírico? A resposta é a seguinte: porque só estes podem ser desmentidos por meio de testes empíricos e, por essa simples razão, desencadeiam um processo de aquisição de conhecimento que nenhum outro tipo de enunciado pode desencadear. Esse processo é o seguinte: enunciados passíveis de serem desmentidos demandam investigações cujos resultados possam desmenti-los. Essas investigações, ao serem feitas, podem conduzir ao surgimento de novas indagações que, se surgirem, conduzem a esforços no sentido de solucioná-las. Tais esforços, por sua vez, conduzem à formulação de novos enunciados, alguns dos quais podem ter um conteúdo empírico maior do que o enunciado que desencadeou todo o processo. Esses novos enunciados, por também serem falseáveis, demandam investigações que possam desmenti-los e, a partir daí, todo o processo se reinicia. Nessa perspectiva, somente enunciados que têm algum conteúdo empírico podem desencadear um processo que pode culminar na formulação de novos enunciados cujos conteúdos empíricos podem ser ainda maiores. Esses enunciados nunca podem ser verificados nem comprovados, mas podem ser corroborados, isto é, podem resistir aos testes empíricos aos quais porventura venham a se submeter e, na medida em que isso acontece, eles exprimem um ganho de conhecimento em relação ao enunciado que desencadeou todo o processo. Mas sobre o que exatamente se ganha conhecimento nesse caso? Nos marcos da proposta do critério da falseabilidade, a resposta seria a seguinte: quando se exige que um enunciado tenha conteúdo empírico, isto é, quando se exige que aquilo que ele enuncia como sendo verdadeiro possa de alguma maneira se revelar falso, pressupõe-se, necessariamente, a existência de alguma coisa que o contrarie e contra a qual ele possa se chocar.
Essa “alguma coisa” não é outra senão isso a que usualmente chamamos de realidade objetiva. Nessa perspectiva, é justamente sobre uma realidade que objetivamente se impõe a nós em qualquer circunstância concebível que se ganha conhecimento quando um enunciado falseável desencadeia todo o processo acima descrito. Disso resulta que, nos marcos da proposta do critério da falseabilidade, os enunciados falseáveis são, mais do que a matéria de que o conhecimento científico é feito, a nossa única via de acesso a uma realidade cuja existência independe de qualquer vontade ou ponto de vista particular. LEIA MAIS
KOYRÉ, A. “Da influência das concepções filosóficas sobre a evolução das teorias científicas.” In: KOYRÉ, A. Estudos de histórias do pensamento filosófico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. p. 80-90. POPPER, K. R. “Introdução à lógica científica.” In: POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editorial Cultrix, 1999. p. 25-58. ___________ “Ciência: conjecturas e refutações.” In: POPPER, K. R. Conjecturas e refutações. Brasília: Editora UnB, 1972. p. 1-27. CONFIRA
NIILISMO PSEUDOCIÊNCIA RELATIVISMO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG)
FASCISMO Jorge Chaloub *
O fascismo
tem uma definição polêmica. Algumas interpretações influentes preferem tratá-lo como inseparável de uma época e lugar, no caso a Europa das décadas que antecederam à Segunda Guerra Mundial. Outro caminho, aqui escolhido, segue as leituras que veem nele uma ideologia política que ultrapassa sua origem histórica e se adapta, por meio de inflexões e mudanças, a outros momentos, como o atual. Nesse sentido, o fascismo pode ser conceito relevante para compreender boa parte dos movimentos e discursos de ultradireitas que ganharam uma incontestável força nos mais diversos países durante a última década. Se não é simples definirmos governos contemporâneos como fascistas. Dada a natureza ideologicamente eclética de muitos deles, é mais fácil listar vários exemplos de discursos e práticas políticas explicitamente identificados com experiências do tipo. Governos como os de Victor Orban na Hungria, e Jair Bolsonaro, no Brasil, talvez não possam ser enquadrados em tal categoria, mas as ações e palavras desses líderes, e de seus grupos apoiadores, claramente retomam lemas e ações características do fascismo. Um dos mais claros elementos de continuidade está na construção de discursos públicos supostamente verdadeiros. A “verdade” é um conceito central para as diversas variantes nacionais e históricas do fascismo. Não estamos diante, todavia, de um conceito de verdade relacionado aos traços mais característicos dos debates da filosofia moderna sobre as possibilidades e limites da razão, o qual é frontalmente recusada pelo fascismo. Na gramática fascista, o “verdadeiro” não seria racional, mas estaria em uma dimensão ao mesmo tempo superior e anterior à sociedade e à história, que poderia ser conhecida pelas massas apenas através dos seus instintos. Há, nesse sentido, um elogio ao inconsciente das massas no fascismo, que seria acessado por suas relações com o líder e
com a mitologia ao seu redor. É através do lugar da liderança, e dos seus estímulos, que verdades anteriores e superiores à razão se exprimiriam em meio ao povo. Em perspectiva que pode parecer paradoxal, o soberano cria através do fascismo uma verdade que já estava prevista, em movimento que é ao mesmo tempo uma criação e uma revelação. O líder está diretamente identificado com a nação, que é não apenas um lugar, mas um modo de ser e viver o mundo. Todo o conhecimento e os valores passam pela nacionalidade, identificada como a verdade última para além das falsas aparências. Mais uma vez é o líder que se mostra capaz de desvelar essa realidade, através dos seus discursos, ações e da sua própria pessoa. A “verdade” deixa de ser acessada por meio de escrutínio racional, não sendo derivada da faculdade abstrata e universal de conhecer. Ela passa a ser expressão de um instinto, derivado do pertencimento a uma pátria e de uma forma de vida. O racional, assim, é constantemente representado no discurso fascista como o abstrato, aquilo que não revela o real, mas o substitui por abstrações, por falsidades. Passa por essa crença a recusa fascista à democracia representativa. As eleições seriam falsificações destinadas a enganar as massas, que encontram sua “verdade” fora da abstração das instituições. A incerteza dos processos eleitorais, que pressupõem um lugar vazio e mutável do poder, é substituída por um vínculo profundo entre o verdadeiro líder e as massas. Estamos diante de uma outra lógica de representação, bem distante das ditas falsas distinções entre público e privado, governo e Estado. Ela pressupõe um vínculo pessoal e intransferível entre povo e líder, que expressa e constitui os valores centrais da verdadeira ordem. Se há uma verdade anterior às abstrações da razão e das eleições, não há sentido em se apegar a elas e sua defesa revelaria a má-fé, ou a ingenuidade, dos que se colocam contra a verdade da nação e os seus reais interesses. Contra a falsa democracia das urnas, os fascistas frequentemente propõem uma verdadeira
democracia que prescinde das intermediações e manifestações formais como as eleições. Mas não basta apenas contrapor por meio do discurso as perspectivas adversárias: é necessário combatê-las abertamente e para tanto toda violência é justificável. O ato violento, assim, assume as feições de um parteiro da “verdade”, que a leva à vida e ao mundo. Outro traço comum do fascismo é a divisão da sociedade entre seus adeptos e os demais, representados como amigos e inimigos. O conceito de verdade é, desse modo, atravessado por essa divisão social e política. Enquanto os aderentes do fascismo acreditam possuir uma instintiva propensão ao verdadeiro, os inimigos, alegadamente atraídos pelo falso, são considerados como moralmente vis e devem ser violentamente combatidos. Não há, na imaginação fascista, algo como um conhecimento universal, mas apenas aquele marcado pelas divisões políticas da nação. Os “inimigos” são frequentemente representados com traços negativos e vistos pela perspectiva do patológico, física e moralmente, sobretudo. Eles também são usualmente identificados ao sistema dominante ou ao establishment, cujas supostas “formas ocultas” seriam capazes de explicar, por meio de teorias da conspiração, todos os elementos da visão de mundo fascista. O conspiracionismo, desse modo, inventa um mundo à imagem e semelhança dos seus interesses, sem maior preocupação em justificar suas afirmações. Os sentidos atribuídos à verdade e à razão já sugerem uma impossível conciliação entre o fascismo e qualquer forma relevante da ciência moderna. Nenhum dos mais corriqueiros conceitos de ciência conjugam os elementos caros à ciência fascista. Nesta são centrais a recusa à construção de conclusões a partir de evidências empíricas, a crítica a qualquer procedimento racional universalista, bem como a reivindicação de um explícito vínculo entre verdade, nação e poder. Isso não implica, todavia, uma recusa explícita do fascismo à ciência. Há, antes, um esforço renitente de se construir uma ciência fascista que, por um lado, rejeita o relativismo, pois este, em suas versões moderadas, compõe o centro do conceito de
prática científica moderna. Na ciência fascista, busca-se substituir o relativismo pela adesão a uma “verdade” fundamental, expressão de uma suposta ordem anterior que poderia ser alcançada por meio da fidelidade aos valores do líder ou do movimento. Nesse sentido, longe de ser mero traço secundário do fascismo, o negacionismo é um de seus elementos centrais. Seja qual for a acepção dada a tal predicado, é constante a presença de discursos comumente definidos como negacionistas nas afirmações fascistas. Há, além disso, uma forte intimidade entre o conceito de negacionismo e o de revisionismo, construído no debate historiográfico em torno do Holocausto para caracterizar àqueles que buscavam negar ou relativizar as atrocidades nazifascistas. O combate aos consensos científicos, sociais e institucionais é um dos elementos mais relevantes para a produção da identidade fascista, que, assim, se define de forma exterior e contrária ao establishment que busca destruir e substituir. Negar todo o existente em nome de uma verdade conhecida apenas por poucos constrói um senso de comunidade e reorganiza, ao menos discursivamente, a ordem social segundo parâmetros fascistas. As motivações usualmente decorrem da busca por um passado perdido ou da aposta em um futuro idílico. Aquele que nega o negacionismo se torna um inimigo, alguém que questiona e supostamente ameaça aos valores tidos como os mais importantes da nação. O negacionismo está também diretamente relacionado ao conceito fascista de autoridade. Para o fascismo, os padrões pregressos precisam ser destruídos e reorganizados de forma radical. Um dos critérios para a nova ordem é a substituição dos relativismos modernos pela estabilidade da autoridade fascista. O fascismo é contrário a qualquer divisão do poder e defende sua concentração nas mãos de um líder, cuja autoridade vem da sua alegada capacidade de expressar os valores nacionais e populares. Atribuir autonomia à ciência é, assim, um erro semelhante ao de conferir liberdade de ação autônoma a parlamentos e tribunais, pois divide o poder e o enfraquece. O líder fascista não tem uma autoridade
parcial, mas, a partir da sua alegada capacidade de compreender as verdades mais profundas, ele se coloca acima de todos, inclusive das autoridades científicas. O autoritarismo, nesse sentido, não é um excesso, mas o modo correto de exercício do poder. A possibilidade de compreender eventos contemporâneos a partir do esquema geral esboçado nessa acepção reforça, com efeito, a interpretação de que o fascismo subsiste como linguagem política atual, com grande influência em boa parte dos líderes da ultradireita. Se nem todo negacionismo é fascista, é inegável a contribuição de tal tradição política para as muitas formas de negação do conhecimento e das ciências nos dias de hoje. LEIA MAIS
ECO, U. O fascismo eterno. São Paulo: Record, 2018. FINCHELSTEIN, F. Uma breve história das mentiras fascistas. São Paulo: Vestígio, 2020. PAXTON, R. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2008. CONFIRA
CONSTITUCIONALISMO REACIONARISMO TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
FIOCRUZ — FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Gilberto Hochman *
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é uma instituição de pesquisa,
educação, assistência, informação e comunicação, produção de fármacos e imunobiológicos, vigilância em saúde e inovação tecnológica voltada para a saúde da população brasileira. Vinculada ao Ministério da Saúde e presente em todas as regiões do país, a Fiocruz é parte constitutiva do Sistema Único de Saúde (SUS). No alvorecer do século 20 e da segunda década republicana, a instituição nasceu num contexto marcado por crises sanitárias. Epidemias de peste bubônica, febre amarela e varíola ameaçavam e paralisavam a então capital federal e os principais portos e, desse modo, a economia de um país essencialmente agroexportador. Em 1899, ao retornar de Santos, para onde fora enviado com outros cientistas para conter uma epidemia de peste e evitar que ela alcançasse a capital federal, Oswaldo Cruz (1872-1917) foi convidado para ser o diretor técnico de um novo instituto de produção de soros e vacinas: o Instituto Soroterápico Federal, criado em maio de 1900 e instalado na Fazenda de Manguinhos na zona norte da cidade do Rio de Janeiro e dirigido inicialmente pelo Barão de Pedro Afonso. Em 1902 Oswaldo Cruz assumiria a direção-geral do Instituto e, reunindo um grupo de jovens pesquisadores, alguns deles ainda estudantes de medicina, buscou implementar um projeto em que a ciência não deveria oferecer apenas respostas a emergências sanitárias. Um país saneado e civilizado, conforme os termos da época, exigia um instituto de pesquisa, ensino e produção que, em diálogo com centros europeus na vanguarda da microbiologia e da medicina tropical, estabelecesse uma base científica e tecnológica capaz de produzir conhecimentos inovadores para a solução dos problemas brasileiros. Era um projeto ousado, pois a ciência era valorizada
fundamentalmente por sua aplicação imediata. Num ambiente intelectual marcado pelo positivismo, a categoria profissional de cientista ainda buscava diferenciar-se das tradicionais figuras do bacharel e do literato. Um novo espaço para a ciência brasileira deveria, na materialidade de suas edificações, bibliotecas e laboratórios, projetar para a sociedade o valor maior que se buscava atribuir ao conhecimento. O grandioso conjunto arquitetônico de Manguinhos, do qual se destaca o castelo mourisco inaugurado em 1918, símbolo e emblema da Fiocruz, é a expressão desse projeto institucional idealizado por Oswaldo Cruz. A institucionalização de um centro de excelência científica demandou, desde a sua gênese, sustentação política, social e econômica. Para isso, o Instituto de Manguinhos buscou combinar diferentes estratégias: capacidade de recrutar e treinar pesquisadores; associação com organizações públicas e privadas que pudessem utilizar os conhecimentos científicos e seus produtos, conferindo-lhes, assim, meios de financiamento; implementação de programas de pesquisa para atender às demandas da saúde pública e, ao mesmo tempo, promover a ciência básica capaz de renovar esses próprios programas em sintonia com redes científicas internacionais. A despeito de resistências, obstáculos de diversas naturezas, Oswaldo Cruz reuniu o prestígio e as condições para garantir sucesso e perenidade ao Instituto de Manguinhos como centro de medicina experimental reconhecido nacional e internacionalmente. Em 1908, foi renomeado Instituto Oswaldo Cruz (IOC), denominação que prevaleceu até 1970 quando, com outras instituições no campo das ciências biomédicas e da saúde, incorporou-se ao que passou a ser denominada Fundação Oswaldo Cruz. Alguns marcos exemplares desse modelo institucional aparecem já nas primeiras décadas do Instituto. Entre 1903 e 1907, Oswaldo Cruz acumulou a direção do Instituto com a direção da saúde pública brasileira e, a despeito da dura oposição que sofreu durante a chamada revolta da vacina em 1904, liderou campanhas bemsucedidas contra a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Em
1906, a criação e o patenteamento de uma vacina contra a peste da manqueira (carbúnculo sintomático, doença do gado bovino) pelo cientista Alcides Godoy (1880-1950) foi uma inovação da ciência veterinária. A receita oriunda de sua comercialização conferiu estabilidade e recursos financeiros próprios ao IOC até a década de 1930. Em 1909, a descrição de uma nova doença tropical (tripanossomíase americana ou doença de Chagas) por Carlos Chagas (1878-1934) projetou a ciência de Manguinhos no cenário internacional. O curso de especialização em bacteriologia e medicina tropical criado em 1908 exerceria papel fundamental para atrair e formar sucessivas gerações de cientistas no país.. Para fazer circular essa ciência, foi criado em 1909 um periódico científico bilíngue (originalmente em alemão e posteriormente em inglês), Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, editado ininterruptamente e com grande prestígio na comunidade científica até hoje. Em 1918, inaugurou-se o Hospital de Manguinhos (atual Instituto Nacional de Infectologia), que desde então constitui referência nacional para a pesquisa clínica e o atendimento em doenças infecciosas. Na década de 1910, Manguinhos foi aos sertões, com a realização de inúmeras expedições científicas que, comissionadas por órgãos públicos vinculadas a obras de infraestrutura, viabilizaram um maior conhecimento sobre o interior do país e sua população, em particular sobre as endemias rurais. Carlos Chagas, que substituiria Cruz na direção do IOC (1917-1934), liderou a resposta à pandemia de gripe espanhola no Rio de Janeiro. O sucesso nesse enfrentamento pavimentou sua nomeação para a direção dos serviços federais de saúde. Entre 1919 e 1926, investiu fortemente na expansão de políticas de saneamento em todo o país e na formação de profissionais de saúde, com a criação da Escola de Enfermagem Anna Nery com apoio da Fundação Rockefeller. Outro marco importante de sua gestão foi o estabelecimento, no Instituto, do Serviço de Medicamentos Oficiais. Chagas foi membro do Comitê de Higiene da Liga das Nações, projetando a instituição nos circuitos da saúde global e aprofundando a cooperação com países, agências multilaterais e organizações filantrópicas.
Ao longo de mais de um século, a Fiocruz foi protagonista de inúmeros desafios e iniciativas da saúde pública nacional e internacional. Participou, em articulação com a Fundação Rockefeller, do desenvolvimento da vacina contra a febre amarela na década de 1930 e do esforço de erradicação da doença na região das Américas; da mobilização brasileira na Segunda Guerra Mundial; da vitoriosa Campanha Global de Erradicação da Varíola (1966-1980), liderada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e das respostas a crises sanitárias globais, como a pandemia de gripe asiática em 1957 e do HIV-aids nos anos 1980 e 90. Atuou, ainda, na campanha de imunização que levou à certificação do Brasil como livre da poliomielite em 1994. Mais recentemente, participou dos esforços de contenção da gripe suína em 2010 e da tríplice epidemia de dengue, chikungunya e zika. No regime militar, a epidemia de meningite, inicialmente negada e censurada pelos governos Médici e Geisel, revelou a fragilidade da dependência do país em relação a vacinas e medicamentos. Essa crise levou à criação em 1976 do Instituto de Imunobiológicos de Manguinhos-Biomanguinhos (que hoje produz a vacina OxfordAstraZeneca-Fiocruz contra a covid-19) e do Instituto de Tecnologia em Fármacos-Farmanguinhos e, em 1983, do Instituto de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS). Foram ações que, como parte de políticas de modernização institucional e transferência de tecnologia, fizeram com que a Fiocruz seja hoje a maior produtora de vacinas para o Programa Nacional de Imunizações (PNI) e de medicamentos para o SUS. A despeito de sua credibilidade pública, a ciência de Manguinhos não esteve imune a crises. Algumas expressaram embates dos quais a ciência não está isenta, como nos casos da Revolta da Vacina e da controvérsia científica e política em torno da doença de Chagas na década de 1920. Outras disseram respeito a divergências e disputas em torno de identidade institucional e seu lugar e atribuições na estrutura do Estado. Desde os primeiros anos do governo Vargas, quando se criou o Ministério da Educação e Saúde, houve propostas de retirar a instituição do âmbito da saúde
pública, tornando-a um instituto de ciência e ensino nos moldes universitários. Em meados da década de 1940, por exemplo, houve a tentativa de anexá-lo à Universidade do Brasil. Em 1953, quando o ministério foi desmembrado, cogitou-se sua alocação na pasta da Educação, mas sua identidade como instituição de ciência e educação inseparável da saúde prevaleceu. O golpe de 1964, no entanto, traria ao percurso institucional uma crise de natureza bastante diversa. O chamado “Massacre de Manguinhos” foi parte do ataque e da perseguição à ciência brasileira que atingiu sobretudo as universidades a partir da decretação do Ato Institucional nº 5. Em 1 de abril de 1970, a ditadura militar aposentou compulsoriamente dez cientistas que constituíam importantes lideranças do instituto. O resultado foi trágico, com o fechamento de laboratórios e coleções científicas, descontinuidade de linhas de pesquisa e dispersão de equipes e alunos, inclusive com exílio de parte dos cassados. Estes seriam reintegrados apenas em 1986 com a volta da democracia. Em 1985, assumiu a presidência o médico sanitarista Sérgio Arouca (1941-2003), principal liderança do movimento pela reforma sanitária que emergiu na resistência à ditadura. Arouca presidiu a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que estabeleceu o conceito da saúde como direito de cidadania e dever do Estado e a formulação, inédita até então, de que “saúde é democracia; democracia é saúde”. Esses princípios seriam consagrados na Constituição de 1988 que pavimentou a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como um dos seus principais alicerces a Fiocruz. A democracia também se fez presente no cotidiano da instituição, que passou a eleger seus dirigentes, realizar congressos internos e contar com espaços colegiados com participação ampliada de seus trabalhadores. Conjunturas políticas diversas tornaram a Fiocruz alvo de ataques por sua gestão democrática e participativa e pela defesa dos princípios do SUS, como o caráter público do sistema de saúde e o direito universal à saúde, a regulação estatal do mercado da saúde,
a participação popular na formulação e controle das politicas e saúde, e a atenção integral à saúde. Tentativas de interferência sobre sua autonomia na escolha de seus dirigentes ocorreram durante os Governo Collor de Mello e Michel Temer. Tais ameaças têm sido superadas pelo reconhecimento público de suas respostas à sociedade na forma de conhecimento científico, formação de recursos humanos para o SUS e para ciência e tecnologia, produção de insumos e na atenção, assistência, prevenção e promoção à saúde. Sob a presidência da socióloga Nísia Trindade Lima a partir de 2017, a primeira mulher a dirigir a instituição, a Fiocruz é uma das protagonistas no enfrentamento da pandemia de covid-19 no Brasil, em ações diversificadas de vigilância epidemiológica, assistência hospitalar, produção e processamento de testes para diagnóstico, pesquisa clínica, comunicação e informação à população, formação e qualificação profissional para o SUS. Foi designada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) laboratório de referência para covid-19 nas Américas. É responsável pela produção em larga escala de uma das principais vacinas contra a covid-19, mediante acordo de transferência de tecnologia visando garantir autonomia nacional no fornecimento do imunizante à população por meio do PNI. Em um contexto marcado por ameaças negacionistas, por ataques às instituições públicas e à democracia, a Fiocruz atualiza seu projeto combinando ciência, tecnologia e inovação em saúde em defesa da vida. A confiança pública depositada na instituição criada por Oswaldo Cruz tem sido elemento fundamental de reforço à credibilidade da própria ciência brasileira. LEIA MAIS
BENCHIMOl, J. l. (Coord.). Rio de Janeiro do sonho à vida: a ciência na Belle Époque. 2. ed, Rio de Janeiro: Casa Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2020. KROPF, S. P.; HOCHMAN, G. “From the beginnings: debates on the history of science in Brazil.” Hispanic American Historical Review,
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ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS SBPC
* Professor e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
FUNDAMENTALISMOS Magali do Nascimento Cunha *
O termo
“fundamentalismo” não é novo e é carregado de ressignificações de acordo com contextos históricos distintos. Nasce entre cristãos protestantes nos Estados Unidos, mas popularizou-se durante a revolução (islâmica) iraniana no final anos 1970, a qual foi classificada por analistas e mídias noticiosas como “fundamentalista”, na forma de “religião tradicional militante”. Anos depois, no alvorecer do século 21, é retomado o sentido popularizado, quando passou a ser usado intensamente pelas mídias noticiosas, em todo o mundo, após os atentados de 11 setembro de 2001, nos EUA, como classificação das ações violentas extremistas assumidas por grupos radicais islâmicos. Com isso foi estabelecida uma imagem negativa do Islã, como, praticamente, sinônimo de fundamentalismo. A popularização do termo tornou-o equivalente a radicalismo e extremismo a partir de posturas de autoritarismo, intolerância, intransigência, fanatismo, recusa ao diálogo, negação da pluralidade, reconstrução da ordem moral e idealização do que existiu no passado. O movimento fundamentalista é originado no final do século 19 entre teólogos protestantes conservadores calvinistas no Seminário Teológico de Princeton (EUA) e ampliou-se, nos primórdios do século 20, entre outros grupos protestantes dos Estados Unidos. Na passagem do século 19 para o 20, tempo de fortes mudanças socioculturais e econômicas, com o avanço da ciência, e com processos de modernização, urbanização e industrialização, o evangelicalismo se dividiu em duas alas: a liberal, que assumiu o humanismo que embasava as mudanças, estabeleceu o diálogo da teologia com as ciências humanas e sociais e promoveu o surgimento das ciências bíblicas e da teologia liberal. A outra ala é a conservadora, que reagiu fortemente às transformações e à releitura
da tradição. O marco desse movimento conservador foi a publicação da coletânea de 12 volumes intitulada The fundamentals: a testimony to the truth (1910-1915) (Os fundamentos: um testemunho da verdade), que teve como editor o rev. Reuben Ancher Torrey. A coletânea apresentava textos sobre a Bíblia, com defesa de sua inerrância, além de conteúdos de crítica à modernidade, à teologia liberal, à filosofia moderna e ao catolicismo romano. Nessas bases, o cristianismo evangélico é apresentado como a religião verdadeira e é oferecida uma lista de dogmas e doutrinas que sustentam essa afirmação. Outros temas tratados foram a arqueologia e a ciência, com destaque para o fato de a abordagem não ser negacionista. Os textos eram críticos quando “os fundamentos” eram questionados, mas valorizavam a ciência como meio de validação dos fatos históricos da Bíblia. Estes “fundamentos” se colocam, portanto, como uma reação contra os valores da modernidade iluminista e humanista, que colocariam em xeque a centralidade do Cristianismo na cultura ocidental, provocando o processo de secularização. Característica comum desse posicionamento religioso é a revelação divina como princípio estruturante da organização da sociedade em todas as suas dimensões. Tendo como âncora a defesa do mito da civilização cristã ocidental, corporificada na cultura dos países protestantes dominantes, o fundamentalismo nascido entre evangélicos pleiteia para si o cristianismo verdadeiro recusando o diálogo ecumênico, o qual é avaliado como “relativização da fé”. O movimento fundamentalista manteve-se ativo até os anos 1930, com militantes conservadores presentes em todas as denominações evangélicas. A radicalização fez com que muitos desses se desvinculassem das igrejas evangélicas históricas por conta da adesão delas ao movimento ecumênico (em torno do princípio da unidade na diversidade) e suas organizações. Nos anos 1960, “fundamentalistas” significava “separatistas” e não estavam mais
relacionados a conservadores das igrejas históricas e mesmo das pentecostais. No período pós-Segunda Guerra Mundial, o fundamentalismo é ressignificado, se internacionaliza e se expande pelo globo acompanhando a expansão do capitalismo estadunidense. O american way of life é exportado para o mundo. Nesse momento, fundamentalistas veem-se como personagens contraculturais, numa batalha pela reconquista da América pelos valores familiares e cristãos, supostamente sequestrados pelo humanismo secular, pela ameaça comunista, pelo feminismo e pelos homossexuais. Isso se contrapõe, no período, às lutas pelos direitos civis e aos protestos contra a Guerra do Vietnã, abraçadas por amplas parcelas de evangélicos estadunidenses, e gera um certo mal-estar com as relações entre fundamentalismo e extrema direita, que atingia certos teólogos alinhados com o movimento. Até o final da década de 1960, o segmento fundamentalista nos EUA se mantinha politicamente desarticulado, estabelecendo vínculos com a política quando se imbuía de discursos de anticomunismo e de patriotismo. É nos anos 1970 que se inicia um processo de recuperação do “evangelicalismo” como fator de unidade e transição. O termo “fundamentalismo” ganha nova significação. Herdeiras do fundamentalismo do início do século 20, figuras de destaque inauguram a era dos televangelistas que têm ampla atuação na América Latina. É um tempo de maior ativismo político com aproximação ao Partido Republicano, formação de grupos de pressão, lobbies, articulações como a Moral Majority (Maioria Moral), a nova direita cristã, liderada por Jerry Falwell, em torno das pautas pró-vida e pró-família — isto é, contra o aborto (legalizado nos Estados Unidos em 1973), pela regulação das mídias, com indicações classificativas por faixa etária, contra as conquistas dos direitos civis de mulheres e LGBTQI+. Rapidamente a Direita Cristã, da qual a Maioria Moral seria a
principal organização, se tornou uma grande força política nos Estados Unidos e tinha como principais bandeiras: a defesa dos “valores da família” (o que incluía a oposição ao aborto em qualquer caso, o combate à expansão dos direitos dos homossexuais e, também, a restrição à pornografia); a volta da prática das orações e o ensino do criacionismo nas escolas públicas; o combate à disseminação do comunismo juntamente com uma defesa de cunho patriótico ferrenha do capitalismo e do “modo de vida” americano; uma posição extremamente crítica às políticas de bem-estar social; a defesa de uma postura pró-Israel por parte do governo norteamericano; entre outras. Nesses tempos, o conceito começa a ser utilizado, também, de forma análoga, a outras religiões como o Judaísmo e o Islã. Uma das características comuns dessa ampliação da utilização do termo a outras religiões é o antimodernismo, o que se amplia com outras análises para a reação a uma percepção de ameaça ou crise, a dramatização e a mitologização de inimigos da fé, o idealismo religioso, a infalibilidade das escrituras, o extremismo, o proselitismo. A Maioria Moral entrou fortalecida nos anos 1980, mas foi nos 1990 que ganhou mais espaço com a presidência dos republicanos Ronald Reagan e George Bush, com força fundamentalista amplificada nos anos 2000, com os governos de Bush filho e de Donald Trump, avaliado como extrema direita. De lá para cá, a perspectiva fundamentalista foi se transformando e ultrapassou as fronteiras da religião. Torna-se uma matriz de pensamento, uma postura, ancorada na defesa de uma verdade e na imposição dela à sociedade. É fato que, nas últimas décadas, grupos religiosos e não religiosos surgiram no espaço público, em diferentes contextos do mundo, com ações que podem ser classificadas como "fundamentalistas", caracterizadas como reativas e reacionárias às mudanças sociais. Nesse sentido, observa-se que o fundamentalismo se torna um fenômeno social que ultrapassa a dimensão religiosa, ganha um
perfil mais diversificado e adquire caráter político, econômico, ambiental e cultural. Nessas atuações, certos “fundamentos” são escolhidos para persuadir a sociedade, a fim de estabelecer fronteiras e lutar contra “inimigos”, o que frequentemente resulta em um movimento polarizador e separatista, que nega o diálogo, a democracia e estabelece um pensamento único que visa direcionar as ações no espaço público. Por isso, é importante tratar o termo fundamentalismo a partir de uma reconstituição histórica de suas diferentes expressões e rechaçar abordagens que o utilizam para denotar acusação e rótulo de contrários. Essa visão amplificada a partir das raízes e das transformações que o sentido de fundamentalismo experimentou leva à compreensão do conceito no plural — “fundamentalismos” — consistindo em formas muito concretas, primeiro, de interpretar a realidade (visões de mundo) e, depois, de atuar em função dessa interpretação. Portanto, fundamentalismos podem ser entendidos como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa. Esta é combinada com ações políticas decorrentes dela para o enfraquecimento dos processos democráticos, negação de abordagens científicas classificadas como nocivas à fé ou ao status quo, negação do valor da pluralidade cultural, da diversidade étnica e dos direitos sexuais e reprodutivos. Matriz religiosa e ações políticas são mutuamente condicionadas nos fundamentalismos. Por isso é possível classificar certas posturas sociopolíticas e econômicas como “fundamentalismos político-religiosos”. São identificados como inimigos a serem combatidos em “defesa” da fé ou do status quo movimentos sociais, ativistas de direitos humanos, cientistas, intelectuais, educadores, sindicatos, partidos políticos, lideranças sociais que atuam na direção oposta. As ações públicas de permanente embate contra estes “inimigos da verdade” são ancoradas no pânico moral (frequentemente com o uso de desinformação e fake news), como alimento do reacionarismo.
LEIA MAIS
CUNHA, M. do N. Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios à ação. Salvador: Koinonia, 2020. Disponível em: . Acesso em: 1 dez. 2021. PIERUCCI, A. F. “Fundamentalismo e integrismo: os nomes e a coisa.” Revista USP, São Paulo, n. 13, p. 144-156, 30 mai. 1992. Disponível em: . Acesso em: 1 dez. 2021. RAMIREZ, G. A. Políticas antigénero en América Latina — “Ideología de género”, lo “Postsecular”, el fundamentalismo neopentecostal y el neointegrismo católico: la vocación antidemocrática. Rio de Janeiro: Observatorio de Sexualidad y Política (SPW), 2020. Disponível em: . Acesso em: 1 dez. 2021. CONFIRA
ANTIGÊNERO REACIONARISMO RELIGIÃO
* Pesquisadora do Instituto de Estudos sobre Religião (ISER)
GENOCÍDIO Paulo César Ramos *
A ideia de genocídio tem origem no pós-Segunda Guerra Mundial, a
partir dos escritos de Raphael Lemkin para falar de eventos como o ocorrido com judeus durante o Holocausto e do que ocorreu, sob o Império Otomano, com os armênios no início do século 20. Essa ideia nasceu com outras matérias legais das relações internacionais e do direito internacional na época, mas tem um lugar muito limitado no imaginário social. Geralmente é um termo associado a um local e tempo específico, usado para falar de atos ou eventos de curta circunscrição no tempo e na geografia. Mais especificamente, o genocídio foi associado à chamada “solução final” nazista, às práticas dos campos de concentração e a demais medidas racistas do 3º Reich alemão contra os judeus. Contudo, no entendimento contemporâneo do termo, a ideia é de que, mesmo sem uma manifestação expressa da intenção de destruir e sem um só único ato ou episódio específico, há um sistema que leva parte significativa de suas instituições a praticar racismo institucional em várias áreas da vida social. Na Resolução 96 das Nações Unidas de 1946, o genocídio é entendido como “qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: assassinato de membros do grupo; dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo e transferência forçada de menores do grupo para outro”. Para esse entendimento de genocídio, dois elementos são importantes: intenção e ato. Em primeiro lugar, a intenção expressa que se realiza em determinado ato voltado ao malefício de um povo.
E, em segundo, a própria ideia de ato determinado, ou seja, é necessário que exista uma ação específica, um ato de ofício que possa ser classificado como genocídio. O Brasil ganhou uma lei sobre genocídio em 1956; comete genocídio “quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, [comete atos] como tal: I) matar membros do grupo; II) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; III) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; IV) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; V) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”. Mais tarde, em 1977, Abdias do Nascimento (o ator, escritor, parlamentar e líder do movimento negro) fez a mesma acusação ao Brasil. Ele apresentaria sua denúncia em forma de texto no Festival Mundial de Artes e Culturas Negras Africanas, o “Festac 77”, que ocorreria em Lagos, Nigéria, mas foi proibido pelas autoridades brasileiras de participar do evento. Seu libelo contra o governo brasileiro acabou sendo publicado, em 1978, sob o título Genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. O centro de acusação era movido pelo combate ao negacionismo. Nascimento sustentou que o Estado brasileiro operava para apagar a contribuição negra à nação em todos os níveis. Tal apagamento se dá, segundo ele, desde o material e demográfico (excluindo o registro de negros do Censo de 1970) até o simbólico e cultural (ao contar a história e a cultura do Brasil). Ao falar de genocídio, Abdias reverteu as duas noções centrais previstas no direito internacional — aquelas de ato e de intenção. O genocídio negro no Brasil é um processo e a sua intenção não é expressa, mas “mascarada”. Apenas posteriormente a pauta da violência física foi agregada ao conceito de genocídio negro, até chegar, nos dias de hoje, ao vocabulário de todas as organizações negras e antirracistas do Brasil. Desde a rearticulação nacional do movimento negro no Brasil, o termo aparecia pontualmente em referências sobre alguns
casos de violência policial oficial ou explícita, também utilizado para falar de investidas de organismos de saúde para esterilizar mulheres negras. Durante toda a Nova República, as expectativas de redução da violência e da repressão como consequências da volta da democracia e da redução da pobreza foram frustradas. O que se viu no período em que melhor se combinaram políticas de inclusão com crescimento econômico foi justamente a expansão do hiperencarceramento e dos homicídios contra jovens negros, sobretudo nas capitais e regiões metropolitanas. Sensíveis a essa realidade, jovens negros organizaram em 2007 o primeiro Encontro Nacional de Juventude Negra, donde lançaram a primeira Campanha Contra o Genocídio da Juventude Negra no país. Mesmo com a associação contraditória entre um termo que associa um povo (“geno”) com um segmento etário, a campanha fez sentido no que tinha de ação política. Nesse novo entendimento de genocídio, a ideia é de que, mesmo sem uma manifestação expressa da intenção de destruir e sem apenas um único ato ou episódio específico, há um sistema que leva parte importante de suas instituições a praticar racismo institucional na vida social. Esse quadro se reflete na sobrerrepresentação de homens negros jovens entre homicídios em geral e entre as vítimas da violência policial. Na forma como as organizações negras vêm utilizando a noção de genocídio, a expressão procura enfatizar que várias as instituições da sociedade brasileira, especialmente as instituições de repressão — como o sistema de Justiça, as polícias e o sistema carcerário — atuam de modo a produzir retrocessos na vida da população negra, tendo como seu resultado último a subtração da vida de jovens negros e em sua maioria do sexo masculino. Mais do que isso: o sistema social que exclui e que produz desigualdades atua em consonância para desfavorecer a população negra. A despeito de todas as contradições do uso político do termo ou mesmo da sua combinação com outros termos que subverteram seu sentido original, a palavra genocídio tornou-se profícua para retratar
a realidade brasileira. Ela se mantém até hoje nos documentos e manifestações dos movimentos negros em todo o Brasil, tem aderência de outros atores (de senadores da República a ministros do STF), sendo capaz de ressoar em arenas institucionais. O tema do genocídio chegou a produzir uma agenda governamental entre 2011 e 2014. Foi o Plano Juventude Viva, criado por iniciativa da Secretaria Nacional de Juventude, com parceria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), para reduzir os homicídios de jovens negros no Brasil. Após revezes em 2015, nos anos seguintes essa agenda abrigou-se nas duas casas legislativas federais, em duas CPIs. Uma forma que associava dois sentidos do termo genocídio, de morte física e apagamento simbólico, ganhou adesão institucional na Comissão Parlamentar de Inquérito da Violência contra Jovens Negros, presidida até 2015 pelo deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG). Combinando informações sobre exclusão social e homicídios, o documento produzido pela CPI chegou a usar a expressão genocídio simbólico. Em meio ao ocaso das políticas sociais do governo Dilma Rousseff, a comissão trouxe a inovadora proposta de criação (que nunca saiu do papel) de um Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Superação do Racismo e Reparação de Danos, a ser composto por parte da arrecadação do Imposto de Renda e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Também seria destinado a esse fundo 3% do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público. Os dados que mobilizaram o processo que forjou o entendimento de genocídio usado atualmente no país são aqueles que aparecem nos Mapas da Violência publicados entre 2006 e 2016. Em 2020, o levantamento de informações de homicídios publicado no Atlas da Violência infelizmente reforça as estatísticas anteriores. Vejamos que, em 2006, a peça de divulgação para o Encontro Nacional de Juventude Negra dizia que os dados para o homicídio da juventude eram alarmantes — pois a cada 100 mil jovens, 39,3 brancos morriam por homicídio, enquanto entre os jovens negros o número era de 68,4 por 100 mil, com uma diferença de 74% a mais. E o
Atlas da Violência de 2020, com dados de 2018, mostra que a população negra corresponde a 75% das vítimas de homicídios e a população jovem corresponde a 53,3% dos mortos. Vemos um dado igualmente alarmante: enquanto os homicídios do somatório de brancos, amarelos e indígenas diminuiu 12% entre 2017 e 2018, os homicídios de pessoas negras aumentou 12% no mesmo período. Embora os usos do termo genocídio não estejam livres de controvérsias, fica a questão: como chamar a inação deliberada dos governos em face de uma dinâmica que promove a preservação da vida de brancos e deixa acontecer impunemente a morte de negros? Esse estado de coisas que combina exclusão, encarceramento e morte sobre um grupo social específico merece receber qual nome? Seja como for, resta evidente que as dinâmicas de opressão não se fazem sem a manipulação de dados, o combate à ciência e ao conhecimento. Não é à toa que o governo que hoje é a acusado de genocida é o mesmo governo que nega seu negacionismo e nega também a verba para a realização do Censo. O mesmo Censo que, em 1977, motivou de Abdias do Nascimento a falar em genocídio — hoje um pouco menos mascarado. LEIA MAIS
LLEMKIN, R. Axis Rule in occupied europe: laws of occupation, analysis of government, proposals for redress. Washington, D.C.: Carnegie Endowment for International Peace, New York: Columbia University Press, p. 79 — 95, 1944. (Foundations of the laws of war). Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. NASCIMENTO, A. do. Genocídio do negro brasileiro: o processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Terra e Paz, 1987. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.
RAMOS, P. C. Contrariando a estatística: a tematização dos homicídios pelos jovens negros no Brasil. 2014. Dissertação (Mestrado em Sociologia) — Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 24 set. 2014. CONFIRA
DITADURA NEGACIONISMO ESTATÍSTICO TORTURA
* Pesquisador da Universidade de São Paulo (USP)
GLOBALISMO José Szwako * Carlos R. S. Milani **
O termo
“globalismo” tem, pelo menos, três acepções que correspondem a distintos sentidos, embora entrelaçados. A despeito dos sentidos assumidos, todos fazem referência ao fato de que a ordem global é fator incontornável nos arranjos socioeconômicos e políticos entre indivíduos, países e regiões do mundo. Em primeiro lugar, “globalismo” ou “ordoglobalismo” é o termo utilizado pelo historiador Quinn Slobodian em sua análise da gênese do pensamento neoliberal no século 20. Os chamados “globalistas”, segundo Slobodian, foram os economistas liberais tais como L. von Mises e seu discípulo, F. Hayek. Ao contrário do que em geral se atribui ao rótulo neoliberal, a reflexão dos economistas inspirados por Mises não esteve apenas dedicada à crítica do papel interventor dos Estados. As bases intelectuais fundamentais do neoliberalismo estiveram igualmente voltadas para a promoção e ao fortalecimento de instituições internacionais difusoras de valores liberais de mercado. No entanto, à diferença de outros liberalismos, o “globalismo” da vertente neoliberal via na governança global dos mercados (ao invés da regulação dos mercados pelos Estados ou pelas organizações internacionais) e na abertura das fronteiras para mercadorias não só uma forma de otimizar preços, mas também um caminho para o que Mises chamou de “capitalismo perfeito”. Em segundo, o termo “globalismo” também foi usado como referência às práticas, às normas e aos valores difundidos pelas Nações Unidas desde a sua fundação em 1945. O conjunto da obra onusiana é bastante complexo e heterogêneo, podendo ser sintetizado em três pilares: I) valores cosmopolitas relacionados a direitos humanos; II) a defesa da democracia como regime político e da diversidade cultural como modelo de sociabilidade; bem como III)
o fomento e a construção de ações coletivas em torno de bens considerados públicos globais. Dentre estes últimos, podemos considerar como exemplos de bens globais: o clima, o patrimônio cultural da humanidade, as reservas de biosfera, a solidariedade humanitária e a proteção da biodiversidade. Na transição entre os anos 1980 e 1990, somou-se ao trabalho de algumas agências da ONU um quarto pilar, especificamente relacionado com a primeira acepção de globalismo acima mencionada: a promoção de modelos de desenvolvimento em que os mercados e as corporações deveriam ter papel mais autônomo em relação aos Estados e seus poderes regulatórios. A emergência econômica ou o retorno da China ao centro do poder internacional colocam em questão esses quatro pilares. Isso porque Pequim não apenas reivindica uma reforma das organizações multilaterais que leve em consideração novos padrões culturais e políticos na definição dos sentidos da diversidade e das normas internacionais, mas também apresenta uma trajetória de modelo de desenvolvimento distinto do que foi construído no Ocidente quanto às relações entre Estado, mercado e sociedade. O globalismo onusiano, portanto, confronta-se com tarefas políticas que podem conduzir a desenhos institucionais bastante distintos do que foi decidido nos pós-1945. Em terceiro lugar, o termo “globalismo” ganhou destaque no Brasil nos últimos anos, devendo seu uso ser entendido dentro de um conflito ideológico no interior do qual grupos e intelectuais de extrema direita acusam algo ou alguém de ser “globalista” ou de representarem supostos “interesses globalistas”. Em seu discurso de posse como chanceler do governo Bolsonaro, o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, afirmou que o “globalismo se constitui no ódio, através das suas várias ramificações ideológicas e seus instrumentos contrários à nação”. As raízes intelectuais e ideológicas desta concepção de globalismo são várias. De um lado, ela segue tendências internacionais inspiradas em ideólogos de extrema direita como
Aleksandr Dugin e Steve Bannon, respectivamente, na Rússia e nos Estados Unidos. De outro lado, essa concepção se enraíza intelectualmente na obra de Olavo de Carvalho. Em seu livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, esse autor insiste que se trata de uma “revolução globalista” em curso, uma “mutação radical não só das estruturas de poder, mas da sociedade, da educação, da moral e até das reações mais íntimas da alma humana”. Nesse “projeto civilizacional”, haveria, de um lado, elites econômicas encarnadas em “banqueiros” e “bilionários”, eles próprios pretensamente alinhados a China e Rússia. Esses seriam o que o autor chama de “metacapitalistas”, ou seja, os capitalistas que se valem das alianças com Estados para se afastar das oscilações do mercado. E, de outro lado, haveria as agências do sistema das Nações Unidas, renitentemente acusadas de exercer uma “administração planetária”. Segundo o best-seller, desde a ONU “jorram sobre toda a população terráquea legislações uniformes em matéria de indústria, comércio, ecologia, saúde, educação, quotas raciais, desarmamento civil”. Assim, o “globalismo” é a forma pela qual Olavo de Carvalho e seus discípulos interpretam os rumos assumidos pela complexificação das relações internacionais e da globalização, cujo objetivos, em chave reacionária, seriam minar a assim chamada “civilização judaico-cristã”. Essa engenharia intelectual conspiratória ganha sentido dentro do arsenal de categorias de ofensa e acusação criadas pelo próprio Olavo de Carvalho e reproduzidas pela extrema direita nele inspirada. O “globalismo” seria expressão de um projeto gramsciano de poder, por meio do qual as forças “esquerdistas” têm, ao longo da segunda metade do século 20, conquistado não só o poder, mas o “universo da cultura, das ideias e da educação”. Nesse sentido, o “globalismo” e seus supostos atores — Nações Unidas, “metacapitalistas”, bem como partidos e políticos de esquerda — seriam defensores de bandeiras como o chamado “gayzismo” e o “abortismo”, visando, a suposta “implantação do socialismo”. Com efeito, ideias desse naipe têm pautado ideologicamente uma parte do governo Bolsonaro, em especial, uma parte relevante de
nossa política externa. Em sentido inverso ao das tradições diplomáticas brasileiras, Ernesto Araujo afirmou em seu discurso de posse que não estava no Ministério das Relações Exteriores para pedir “permissão à ordem global”, opondo-se veementemente à “marcha do globalismo” que não é “irreversível”. Mais ainda, ressoando o arsenal de difamações olavistas, posicionou-se contrariamente àqueles que “dizem que não existem homens e mulheres” e que “são os mesmos que propalam que um feto humano é um amontoado de células descartável”. Ao priorizar questões ideológicas e morais, o ex-chanceler deu à política externa brasileira tom discrepante da tradição diplomática, de modo a colocar o país numa forma de inserção internacional subordinada e dependente dos Estados Unidos do governo Trump, sob uma fachada alegadamente “patriota”. A retórica conspiracionista empregada nesse uso do termo “globalismo” encerra perigos nada desprezíveis à sociabilidade e à diversidade democráticas e, mais ainda, para a gestão dos riscos no Antropoceno. O desafio de compreender e refrear as estratégias reacionárias atravessa múltiplas escalas e atores, de maneira a extrapolar a arena das organizações e regulações transnacionais. Para o Brasil, o perigo vive na crescente difusão desse ideário e na sua eventual apropriação por partes de nossos quadros diplomáticos e mesmo militares. LEIA MAIS
CENTRO BRASILEIRO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS. Política internacional: reorientações do multilateralismo. Rio de Janeiro: Cebri, 2021. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. RUGGIE, J. G. “International regimes, transactions, and change: embedded liberalism in the postwar economic order.” International Organization, Cambridge, v. 36,
n. 2, p. 379-415, 1982. SlOBODIAN, Q. Globalists: the end of empire and the birth of neoliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 2018. TEITEIBAUM, B. Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Campinas: Unicamp, 2020. CONFIRA
ANTI-INTELECTUALISMO TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO NEGACIONISMO CIENTÍFICO
* Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) ** Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
GRIPE ESPANHOLA Lilia Moritz Schwarcz *
E
xiste uma diferença sensível, mas importante, entre negação e negacionismo. Negação é uma reação normal, digamos assim, diante de uma grande epidemia ou um quadro pandêmico. Como vivemos numa civilização que não está preparada para a doença e ainda menos para a iminência da morte, sociedades ocidentais costumam optar por adiar o problema, procrastinar, ou evitar tratar dele. Ou seja, adotam uma postura de negação. Entretanto, esse tipo de atitude, que pode ser pessoal ou coletiva, se mostra em geral passageira, sendo logo sucedida por políticas públicas de combate sanitário. Muito diferente é o negacionismo que se instaura quando dirigentes fazem questão de desconhecer e de desfazer desses quadros de doença coletiva. Negacionismo, nesse sentido, é uma atitude sistemática muito perigosa e que pode ocasionar letalidade elevada da população. E se estamos acostumados a pensar na história como evolução e progresso, quando comparamos o surto de Gripe Espanhola de 1918 com a crise atual, pode-se dizer que, no Brasil, o quadro é oposto. O Brasil foi atingido pela epidemia no segundo semestre de 1918. A doença atacara as tropas aliadas e as dos inimigos alemães no primeiro semestre daquele ano, levando à mortalidade de soldados de ambos os lados. Como ninguém sabia a origem, e só se conheciam os sintomas, a doença foi ganhando vários nomes: gripe dos três dias, por conta da velocidade de contágio; gripe bailarina, uma vez que mudava seu perfil epidêmico; gripe espanhola, pois essa nação não estava em guerra, tinha a imprensa livre, e noticiou a “estranha gripe” que afetava também aquele país. Por essa razão a Espanha levou a pecha e a alcunha, sem ter sido o foco da infecção.
A Espanhola demorou um semestre até chegar por estas bandas. Era tempo suficiente para avaliar a gravidade da situação, mas, mesmo assim, preferiu-se adiar qualquer medida de proteção. Praticou-se um negacionismo nacional, uma vez que não houve autoridade que resolvesse encarar o problema e planejar o futuro. Alegou-se que o país ficava longe da Europa, que por aqui não fazia frio e outra série de argumentos que evitavam lidar com o perigo que se aproximava e empreender políticas públicas para contê-lo. A República havia federalizado a pasta da saúde, não existia Ministério da Saúde e muito menos SUS, criado pela Constituição de 1988. Por isso, a saída foi uma não saída: empurrar o problema com a barriga. Mas a gripe chegou de navio. Em finais de agosto de 1918 uma série de embarcações aportou com suas tripulações contaminadas e, como não havia medidas protocolares para higienizar os portos e isolar as pessoas vindas da Europa, o contágio foi rápido e eficaz. O caso mais famoso é o do Demerara, conhecido a partir de então como o Navio da Morte. O Demerara parou no Recife, seguiu para Salvador e chegou ao Rio de Janeiro, então capital do país. De lá se dirigiu para o Rio Grande. Em sua rota, contaminou milhares de pessoas e causou centenas de mortes. Foi devastador. De lá, a epidemia entrou pelo centro do Brasil alcançando em cheio São Paulo — que se julgava até então invencível por conta de sua localização — e fez uma rota em direção ao Sul, ao mesmo tempo que tomou outro vértice alcançando cidades como Belém e Manaus. É possível dizer que os brasileiros foram pegos no contrapé. Boa parte das capitais do país, nesse contexto, havia se vestido como metrópoles europeias, recriando e higienizando os centros comerciais e jogando a pobreza para as margens e arredores das cidades. A ideia era converter as capitais em grandes cartõespostais modernos e ninguém contava com a chegada de uma epidemia letal como essa. Não havia estrutura, não existiam especialistas em número suficiente e tampouco hospitais para isolar os contaminados que cresciam rapidamente. Os cemitérios não
eram suficientes para tanta demanda inesperada, com os coveiros também adoecendo. Não faltaram, então, demonstrações de negacionismo. A despeito da profilaxia estabelecida por Carlos Steidel, secretário da Saúde do Rio de Janeiro, foram muitas as tentativas de camuflar a emergência. Em Porto Alegre as medidas foram adiadas até que as eleições daquele ano fossem realizadas. Em São Paulo, apelou-se para o bom ar e a altura da terra dos bandeirantes para evitar que programas mais agressivos começassem a ser implementados. Em Manaus, comentava-se que o calorão local daria um jeito de impedir que o mal se espalhasse pela cidade. Em Salvador, foi rezada uma missa contra a Peste para assim blindar os soteropolitanos dos males que vinham por mar. No Recife, inventou-se até palavra especial e chique, na verdade um eufemismo, a fim de evitar nomear a Espanhola, e assim assustar a população. O termo era Tanatomorbia — o qual quer dizer, apenas e tão somente, “doença que mata”! Também não faltaram os milagreiros de ocasião que, diante de uma população desassossegada, inventavam todo tipo de produto de suposta “eficácia comprovada”. No Rio de Janeiro dizia-se que a canja de galinha tinha resultados surpreendentes. Conclusão: o preço das aves subiu enormemente e formaram-se imensas filas na frente das granjas e lojas do ramo. Em São Paulo, a receita era a caipirinha, o que ocasionou o mesmo tipo de inflação no caso do limão. Em Porto Alegre proibiram-se os rituais do chimarrão coletivamente, e em Belém correu a notícia de que a santa de uma igreja local chorara por causa das vítimas da Espanhola. Depois constatou-se tratar-se apenas de um deslize do restaurador da peça, que deixara escorrer um pouco de parafina logo abaixo dos olhos da escultura sacra. Todavia, como um pouco de mentira funciona sempre melhor do que um punhado da dura realidade, os jornais que, a essas alturas, já haviam espalhado a notícia, acharam por bem não a desmentir. O paralelo mais impressionante atende pelo nome de Cloroquina.
Também em 1918, uma série de farmacêuticos e comerciantes espertos, e de olho no desespero da população, resolveram oferecer um velho remédio utilizado com sucesso para casos de malária. Seu nome era Sal de Quinino, também chamado de Cloroquinino. Na verdade, essa era nossa conhecida Cloroquinina, hoje muito propagandeada pelo presidente e seus ministros. No entanto, se compararmos 1918 com 2020 sairemos perdendo. Pois no passado não houve dirigente político que animasse a venda de tal produto que, já naquela circunstância, não tinha sua efetividade comprovada. Por sinal, é possível dizer que, de uma forma geral, saímos mal na comparação. Mesmo sem ministério da Saúde, líderes regionais seguiram as orientações dos cientistas, que prescreviam todo tipo de profilaxia: uso de máscaras, isolamento social, higienização das mãos, narizes e olhos, fechamento do comércio, das escolas, dos parques, das igrejas, dos cinemas, teatros e dos clubes de esportes. Houve mesmo quem negasse até o final a letalidade da Bailarina, mas naquela época não prosperou. Esse é o caso de um cinema em Belo Horizonte que resolveu não fechar suas portas, mas foi boicotado pela população. É o caso também do Teatro Municipal de São Paulo, cujos diretores alegaram que estavam com a programação fechada e que não poderiam interrompê-la. Mas não houve jeito, pois os próprios cantores adoeceram e as atividades acabaram suspensas. E como o aceite das medidas sanitárias foi geral, existiram também mais demonstrações de solidariedade. Clubes que haviam fechado suas portas para os sócios as reabriram como hospitais de campanha, tendo as Igrejas feito o mesmo. Aliás, sem o mau exemplo dos dirigentes — como ocorre no Brasil de hoje — foi mais fácil fazer com que a população seguisse à risca as determinações dos dirigentes da saúde. Muita gente morreu em 1918 e houve também alta subnotificação. Não obstante, no passado como no presente, a imprensa tratou de divulgar números mais confiáveis visando à aplicação de políticas
públicas. Naquele momento, a exemplo do que ocorre na nossa contemporaneidade, a pandemia não foi nada democrática. Morreram, pra valer, as populações negras que tinham sido expulsas para os morros e viviam sem infraestrutura básica; os imigrantes que se amontoavam em habitações insalubres; bem como grupos indígenas que não contaram com a assistência do Estado. Pouca gente escreveu sobre “os tempos da gripe”. Lima Barreto, exímio cronista, respondeu a uma missiva de Monteiro Lobato que o instara a redigir algo sobre a espanhola retrucando: “Eu não! Sou mais carnavalesco”. Alguns arriscaram escrever tempos depois, como Pedro Nava e Érico Veríssimo, narrando suas experiências enquanto crianças. Quem sabe o silêncio seja uma forma de negacionismo. Quem sabe seja apenas uma reação de assombro diante do desconhecido. De toda maneira, demorou muito para que alguns poucos se aventurassem a descrever essa crise sanitária que abateu os brasileiros em 1918. No carnaval de 1919 não faltaram carros alegóricos que ironizavam a experiência do ano anterior. Parece que quem sobreviveu para contar história preferiu comemorar a vida e não falar da morte, numa forma radical de negação. Mas o que chama mais atenção é a falta de registros. Até pouco tempo, quem tivesse parentes mais idosos poderia puxar pela memória deles para ver o que de lá saía. Uma coisa ficou. A triste epidemia virou marcador temporal de passado, com o povo lembrando da epidemia com a expressão nostálgica: “Era nos tempos da espanhola”. LEIA MAIS
BARRY, J. M. The great influenza: the story of the deadliest pandemic in history. London: Penguin Random House, 2005. BERTOLLI FILHO, C.. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2003.
SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. CONFIRA
NEGACIONISMO HISTÓRICO POLÍTICA REVOLTA DA VACINA
* Professora e pesquisadora Universidade de São Paulo (USP) e da Princeton University
GUERRAS CULTURAIS Gabriel Peters *
N
o seu sentido mais básico, o conceito de “guerra cultural” designa o choque entre diferentes visões de mundo, isto é, entre crenças e valores discrepantes acerca de como o mundo é e de como devemos nos orientar, na prática, em relação a ele. Ainda que a metáfora bélica da “guerra” possa ser entendida de modo mais ou menos radical, a noção emerge para dar sentido aos conflitos culturais que proliferam conforme transformações sociais “perturbam” a homogeneidade interna e a estabilidade histórica das representações, normas e costumes de uma coletividade. A centralidade desses conflitos na sociedade moderna torna-se compreensível, assim, à luz de duas de suas tendências-chave: “a aceleração da mudança histórica”, a qual estimula o choque entre defensores do “velho” e do “novo” nos mais diversos domínios (por exemplo, sistemas econômicos, gostos artísticos, esquemas de relacionamento erótico-afetivo e de vida familiar); “a globalização” como incremento, em extensão e profundidade, dos contatos entre coletividades culturalmente diferenciadas, contatos que possibilitam que membros de uma unidade cultural problematizem seus próprios modos “nativos” de conduta e experiência (por exemplo, a exposição às ideias do movimento gay em outros países leva um indivíduo a questionar a estigmatização da homossexualidade promovida por uma religião hegemônica na sua sociedade de origem). Tal diagnóstico das raízes socio-históricas da guerra cultural em sociedades modernas e globalizadas ainda deixa em aberto, contudo, amplas variações acerca do quão literal ou metafórica deve ser entendida a referência à guerra na expressão. Longe de ser questão acessória, essa variabilidade no entendimento das guerras culturais produz consequências práticas imensamente distintas. Tais consequências incluem, para dar exemplos extremos, desde um
debate construtivo sobre o papel da “tradição” na arte (por exemplo, a “guerra cultural” entre clássicos e românticos), de um lado, até a “desumanização” ideológico-cultural que prepara o genocídio de populações inteiras (por exemplo, dos judeus na Alemanha nazista ou dos tutsis na Ruanda nos anos de 1990), de outro. Com efeito, uma concepção maniqueísta em que a eliminação do adversário/inimigo é vista como único desenlace possível constitui uma especificidade decisiva da variante olavista e bolsonarista (“bolsolavista”) da guerra cultural. Como mostrou Rocha, tal concepção eliminacionista de guerra cultural decerto não é a única possível, já que disputas culturais por preeminência podem ser travadas entre contendores que reconhecem os direitos uns dos outros à existência e até se valorizam entre si. As táticas próprias à guerra cultural bolsolavista no Brasil, como a trollagem e o estilo paranoide de interpretação do mundo, convergem com aquelas praticadas por outros movimentos e regimes de extrema direita que conquistaram significativo poder e influência em sociedades como Polônia, Hungria, Turquia e Estados Unidos. Embora várias das semelhanças entre as visões de mundo desses atores sociopolíticos tenham emergido independentemente, elas rapidamente deram ensejo a uma deliberada aliança transnacional, uma espécie de “Internacional Nacionalista” promovida por figuras como Steve Bannon, cujas estratégias de guerra informacional foram decisivas para o sucesso eleitoral de Donald Trump nas eleições estadunidenses à presidência em 2016. A radicalização da guinada à direita no Partido Republicano, que culminaria no trumpismo, já estava em curso nos EUA desde as décadas anteriores, conforme a pauta dos costumes ganhava proeminência como fator de divisões políticas entre conservadores e progressistas. No livro Culture Wars, James Hunter descreveu as “guerras culturais” nos âmbitos da família, da arte, da educação, do direito e da política como, em última instância, lutas pela “definição” da essência mesma da sociedade estadunidense. A formulação de Hunter capturava a unidade ideológica por trás das posições em conflito naquelas esferas específicas — por exemplo, uma mesma
defesa conservadora da “família cristã” como núcleo da “América” se manifestava tanto na oposição ao casamento entre pessoas do mesmo sexo quanto na defesa do ensino do criacionismo nas escolas como “visão alternativa” ao darwinismo. Alçada ao título de um famoso discurso do político Pat Buchanan em 1992, a expressão “guerra cultural” prenunciava a estratégia republicana de apresentar a pauta da esquerda no plano dos costumes (por exemplo, casamento gay, descriminalização do aborto, usos “politicamente corretos” da linguagem etc.) como uma ameaça existencial, um plano de destruição do modo de vida da “verdadeira América”. A virada dos anos de 1980 para os de 1990 também sinalizava uma orientação “anti-intelectualista” que marcaria as atuações político-ideológicas dos movimentos e regimes capitaneados por atores como Trump nos EUA, Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia e Bolsonaro no Brasil. Nesse front da guerra cultural, as universidades — e, em especial, as ciências humanas — passam a ser atacadas como agentes engajados na destruição da civilização cristã ocidental, mediante um coquetel de propostas ideológicas que incluiriam do coletivismo econômico à instauração de uma “novilíngua” politicamente correta, da destruição dos gostos artísticos tradicionais até a dissolução da família pela advocacia em prol do aborto e da homossexualidade. Anos depois, como viu Eduardo Wolf ao manter seus apoiadores mobilizados por um discurso centrado na pauta dos costumes (por exemplo, kit gay) e vago em questões práticas de governança (por exemplo, política econômica), a campanha de Bolsonaro aplicava essa tática de guerra cultural antes empregada pelos republicanos nos EUA. O sucesso eleitoral dessa estratégia no Brasil já vinha se revelando nos anos anteriores, aliás, no crescimento da bancada evangélica no Congresso Nacional. Antes de tratar do caso brasileiro, entretanto, voltemos ao antiintelectualismo. Em seu best-seller, The Closing of the American Mind, Alan Bloom sustentou que a hegemonia da esquerda nas universidades “empobrecia a alma” dos estudantes norteamericanos, na medida em que encorajava a relativização histórica
e cultural das fundações culturais do Ocidente (por exemplo, ao discutir privilégios de gênero, raça e etnicidade na formação dos cânones literários). Ainda mais decisiva na convergência entre a direita trumpista nos EUA e a direita bolsonarista no Brasil foi o surgimento, pouco tempo depois, da teoria conspiratória que apresentava o “marxismo cultural” como uma estratégia de destruição da civilização ocidental liderada por intelectuais universitários de esquerda. Segundo esse argumento, líderes da Escola de Frankfurt como Adorno e Horkheimer representavam não a redução do marxismo ocidental a um protesto politicamente impotente contra o capitalismo, tal qual sublinhado por seus críticos liberais “ingênuos”, mas artífices de um ardil muitíssimo mais perigoso: a continuação da luta comunista contra o Ocidente por meios culturais, i.e., pelo adestramento gradual de corações e mentes para a causa esquerdista. Originadas do artigo The New Dark Age: Frankfurt School and "Political Correctness” de Michael Minnicino, as teorias euro-americanas do marxismo cultural convergiam, em significativa medida, com duas produções tupiniquins: o documento do exército brasileiro conhecido como “Orvil”, os escritos nos quais Olavo de Carvalho (OC, de agora em diante) desenvolveu, a partir dos anos de 1990, a ideia de que a esquerda brasileira vinha levando a efeito no país, desde o período da ditadura militar, uma “revolução cultural” de inspiração gramsciana, dedicada ao estabelecimento de uma “hegemonia” ideológica como caminho para a conquista última do poder político e econômico na sociedade brasileira. Segundo OC, ao perder o controle do aparato estatal para o regime militar nos anos de 1960, a esquerda teria substituído a “guerra de movimento” como tática revolucionária pelo que Gramsci chamara de “guerra de posição”: em vez de tomar o poder de assalto, tratava-se de preparar o caminho para o socialismo pela persuasão ideológica gradual, garantida pelo controle dos espaços de produção e difusão cultural, como universidades, editoras, redações de jornais e redes de televisão. Atento aos “intelectuais orgânicos” da extrema direita nos EUA, onde passou a residir desde
2005, Carvalho não tardaria em interpretar a cena estadunidense e global incorporando, ao seu “gramscianismo invertido”, outras duas crenças da direita estadunidense: a visão da agenda frankfurtiana como parte da conspiração “marxista cultural” (recentemente, OC chegou a aventar a hipótese de que Adorno teria escrito as músicas dos Beatles); a tese de que o avatar mais recente do socialismo seria um programa “globalista” de implantação de um governo mundial encampado por atores e instituições como George Soros, Barack Obama e a ONU. A retórica de OC opera como um dispositivo de simplificação da realidade, ao reduzir uma complexa dinâmica de forças e contraforças sociais a uma narrativa conspiratória. No seio desta, as mais variadas discordâncias políticas e culturais de sua visão de mundo podem ser prontamente assimiladas a um só inimigo “comunista” e “esquerdista” — capaz de abranger, assim, sobreviventes trotskistas, relativistas pós-modernos, feministas, “abortistas”, “gayzistas”, globalistas, satanistas e tutti quanti. O cerne do ensinamento estratégico de OC, assimilado até a medula pelo bolsonarismo, consiste na ideia de que esse adversário esquerdista não está engajado nem em um debate racional nem em uma disputa sociopolítica ordeira. A esquerda estaria investida, sim, numa guerra cujo propósito último é a destruição dos seus adversários por quaisquer meios necessários: da mentira difamatória e da ridicularização até o aparelhamento do estado e a execução de inimigos. Assim, a única opção factível para a direita seria, concluem OC e Bolsonaro, responder na mesmíssima moeda. Conforme essa lógica de guerra “bolsolavista”, mesmo a consciência crítica das atrocidades cometidas por líderes comunistas como Stálin e Mao Tsé-Tung, um elemento de racionalidade que muitos inicialmente consideraram bem-vindo no pensamento de OC, termina servindo ao raciocínio eliminacionista de uma espécie de “milicianismo filosófico”: todo adversário das posições “bolsolavistas” é um inimigo; todo inimigo é uma espécie de comunista; um comunista nunca disputará honestamente, mas recorrerá a quaisquer expedientes necessários para destruir seus
inimigos (inclusive, se houver oportunidade, a eliminação física). Conclusão: em face de um inimigo que almeja nossa eliminação, não temos outra escolha senão eliminá-lo antes. Eis a lógica por trás das diversas estratégias da guerra cultural bolsolavista, as quais incluem a “pós-verdade” alimentada por bolhas informacionais, o estilo paranoide e conspiratorial de interpretação do mundo e a trollagem como mecanismo de imunização à crítica. LEIA MAIS
ROCHA, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio. Goiânia: Editora Caminhos, 2021. STANLEY, J. Como funciona o fascismo. Porto Alegre: L&PM Editores, 2019. WOLF, E. “Luta pela alma do Brasil.” Veja, [S. l.], 30 nov. 2018. Política. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
ANTIGÊNERO NEGACIONISMO CIENTÍFICO PÂNICOS MORAIS
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
GUERRAS DA CIÊNCIA Marko Monteiro *
Q
uem vive a atual pandemia da covid-19 percebe muito claramente as intensas disputas em torno da ciência pelo mundo todo. A ciência que nos auxilia a formular respostas à pandemia, desde o uso de máscaras, o distanciamento social e até as vacinas, vem sendo objeto de celebração, mas também de repúdio e desinformação, e no Brasil não é diferente. Pelo contrário, as disputas aqui são talvez mais intensas, dado o nosso contexto social. Além disso, estamos muito próximos das guerras em torno da ciência que ocorrem nos EUA. Lá como aqui, cientistas, especialistas, médicos e políticos ocuparam a arena pública com discussões e lutas intensas para definir o papel da ciência na forma pela qual tomamos decisões, além de disputar até mesmo o que pode ser considerado boa ciência. A história nos mostra que a verdade e a ciência estão, desde sempre, profundamente entrelaçados com a sociedade e a política. Intelectuais nos anos 1920 e 1930, por exemplo, ocuparam-se dos ataques à ciência feitos naquela época de forma associada à ascensão do fascismo e do nazismo na Europa ocidental. Como era debatido então, a crença na ciência não é algo natural nem dado, mas sim fruto de culturas e acordos sociais. Por isso mesmo, essa crença rapidamente tornava-se descrença em momentos específicos, necessitando assim de um esforço constante e coletivo para ser sustentada, como dizia o sociólogo norte-americano Robert Merton. Embora não precisemos concordar com todos os princípios centrais da sociologia de Merton, devemos sempre nos lembrar da sua visão de que a ciência, quando se isola da sociedade mais ampla, convida para si a oposição e a descrença. A ciência, segundo ele, precisa de um engajamento constante por parte de pessoas e instituições interessadas na sua valorização. Embora
Merton possa muitas vezes ser lido como uma simples defesa da autonomia da ciência, cabe lembrar que essa autonomia é sempre socialmente negociada e, por isso mesmo, ela pode ser questionada e mesmo atacada. A associação entre ataques à ciência e subversão da democracia não é uma novidade histórica. Tal como em outros países latinoamericanos, durante o regime autoritário instaurado no Brasil em 1964, por exemplo, intelectuais e cientistas foram particularmente visados pelo regime como supostas ameaças à segurança nacional. Cientistas de todas as disciplinas foram alvo. Muitos foram exilados à força, torturados ou assassinados. As universidades brasileiras foram expurgadas de intelectuais progressistas e de esquerda, ainda que esse mesmo regime tenha aumentado ao longo do tempo o investimento em ciência e incorporado muitas reformas propostas por intelectuais progressistas. Intelectuais que pensaram a ciência como objeto de pesquisa ao longo do século 20 reforçaram a ideia de que a ciência nunca se separa do seu contexto sociopolítico. A partir dos anos 1990, no entanto, alguns desses intelectuais foram acusados de colocar em risco o lugar da ciência na sociedade. Esse intenso debate foi chamado de “guerras da ciência”. Nele, a oposição entre “realismo” e “pós-modernismo” abalou as concepções mais aceitas de ciência predominantes até então. Intelectuais considerados “realistas” buscaram construir grosso modo um contraponto aos chamados “construtivistas” do pós-modernismo. Essas posições divergiam filosoficamente a respeito do que seria o conhecimento e de como ele se constitui. Mas acabaram refletindo também nas posturas políticas de ambos os lados. Críticas à universalidade da ciência buscavam argumentar que ela é socialmente situada, sendo assim fruto de uma construção social. Essa posição foi muito associada ao movimento intelectual do pósmodernismo, que fez críticas a diversos conceitos tidos como universais buscando mostrar que eram também fruto de negociação e disputas sociais e linguísticas. Essa posição foi tida pelos seus
críticos “realistas” como deletéria. Os realistas estavam interessados em defender a ideia de que a ciência representa uma verdade baseada em evidências e um método científico que seria a garantia última da sua validade. Dessa forma, não caberiam críticas à ciência como relacionada à sociedade: a ciência seria universalmente válida em qualquer contexto, quando feita adequadamente. Uma inspiração para as chamadas guerras da ciência foi a publicação, nos anos 1960, de A estrutura das revoluções científicas de Thomas Kuhn. Nessa obra, Kuhn argumentou que a ciência não progredia apenas de forma linear por acúmulo de conhecimentos, mas podia ser vista como uma sucessão de paradigmas que tinham relação com o contexto social e histórico da sua época. Kuhn inspirou muitos sociólogos e antropólogos a estudarem como a ciência é feita na prática dentro de laboratórios, argumentando que poderíamos e deveríamos abrir a caixa preta da ciência. Já nos anos 1990, Paul Gross e Norman Levitt ajudaram a iniciar as guerras da ciência com a publicação em 1994 do livro Higher Superstition: The Academic Left and Its Quarrels with Science, acusando os pós-modernos de anti-intelectuais e criticando a postura muitas vezes relativista da esquerda acadêmica frente à ciência. O físico Alan Sokal, que ganhou notoriedade ao submeter um suposto artigo contendo um apanhado de frases sem sentido, buscou reforçar essa crítica aos pós-modernos e à ideia de que a realidade seria apenas uma construção da linguagem. Diversos autores reagiram a isto acusando esses críticos “realistas” de representarem uma reação conservadora contra mudanças nas políticas para ciência dos EUA. Dorothy Nelkin, por exemplo, reagiu à crítica de Sokal e outros, dizendo que os pós-modernos seriam bodes expiatórios para encobrir problemas presentes na ciência. A guerra das ciências, além de ser travada nas páginas de revistas e em eventos científicos, foi amplamente debatida na imprensa dos EUA. Trouxe para o público mais amplo questões típicas da filosofia e sociologia da ciência, como a noção de construção social do conhecimento. Além disso, colocou em lados opostos alguns
cientistas naturais e físicos contra filósofos e cientistas sociais, com repercussões que são sentidas ainda hoje. A divisão martelada naqueles anos de que uma ciência social de esquerda e pósmoderna estaria alimentando o anti-intelectualismo existe ainda hoje em certo senso comum. Assim como a ideia de que caberia aos alegados cientistas “de verdade”, os cientistas naturais, defender a verdade da ciência contra esses críticos. Esse debate está também relacionado à discussão mais atual sobre a chamada "pós-verdade" que tem agitado debates acadêmicos, sendo também associada à ascensão das mídias sociais. Para alguns críticos, existe atualmente uma ausência de fatos no debate público, em favor de discussões feitas a partir de posições político-ideológicas autocontidas e impermeáveis. Steven Fuller, um participante das guerras da ciência dos anos 1990, é atualmente também alguém que levanta esse problema nos chamados estudos sobre ciência e tecnologia. A partir de 2018, um elemento importante relacionado à pós-verdade é sua associação com a ascensão da extrema direita em diversos países, movimento indissociável das redes sociais e da forma como subvertem o debate público. Novamente, não conseguimos separar o debate sobre verdade do debate político mais amplo. Como argumentou o autor Bruno Latour, mais um protagonista das guerras da ciência dos anos 1990, o chamado “construtivismo” (isto é, a ideia de que a ciência não é algo pronto, mas sim constituído socialmente) não significa que a ciência não seja “real”. Evocando a teórica feminista Donna Haraway, diríamos que é exatamente através de uma perspectiva situada e engajada, ou seja, socialmente localizada, que podemos combater o antiintelectualismo e os ataques à ciência tão presentes hoje em dia. Isso porque o isolamento da ciência em uma posição de verdade inquestionável impede que vejamos as causas da alegada descrença na ciência, para muitos algo irracional ou fruto de desinformação. Além disso, muitos adeptos de um realismo mais simplista confundem uma posição filosófica construtivista com a ideia de que a ciência seria equivalente a uma opinião ou posição
ideológica, o que nunca foi a posição da maior parte dos autores relativistas. Ataques à ciência são fortemente associados na história com ataques à democracia. Sendo assim, precisamos entender que a defesa de uma anda de mãos dadas com a defesa da outra. Isso é uma posição política particular, e não uma defesa de uma ciência inquestionável, separada da sociedade. Tal como Merton analisou em 1938, a discussão não é apenas sobre ciência, mas é também sobre política, e sobre a própria esperança de um lugar duradouro para a democracia nas próximas décadas. Entender que a ciência é sempre situada na sociedade e na política nos ajuda a entender como precisamos nos alinhar com valores democráticos se desejamos que a democracia possa continuar a prosperar. E isso não tem nada a ver com dizer que a ciência é uma opinião, ou uma posição ideológica, como argumentam alguns críticos. Ao mesmo tempo, a pandemia da covid-19 nos ensina a enorme fragilidade dos arranjos sociais que sustentam a ciência e seu papel na democracia: por isso mesmo, engajar-se na defesa da ciência é parte integrante do desafio posto para a defesa da democracia no século 21. Estamos sempre tomando partido, e, portanto, a democracia não é um dado da natureza; ela é uma posição política que, assim como a própria ciência, precisa de apoio e defesa constantes. LEIA MAIS
HARAWAY, D. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial.” Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995. Artigos. KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2020. LATOUR, B. A esperança de Pandora. São Paulo: Scielo/Unesp, 2017. MERTON, R. K.; MARCOVICH, A.; SHIN, T. (Orgs.). Ensaios de
sociologia da ciência. São Paulo: Editora 34, 2013. CONFIRA
BRUNO LATOUR ORESKES, NAOMI TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
IBGE — INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA Alexandre de Paiva Rio Camargo *
E
m 1938, com a fusão do Instituto Nacional de Estatística, instalado dois anos antes, e do recém-criado Conselho Nacional de Geografia, nasceu o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até hoje o maior provedor de dados do país. Suas informações assistem às necessidades dos órgãos oficiais nas três esferas governamentais, permitindo assim identificar grandes problemas públicos. Mais ainda, os dados do IBGE ajudam a consolidar modelos de crescimento e a planejar investimentos, de forma a subsidiar a formulação de políticas sociais no combate à violência, à pobreza e à desigualdade. Além de coordenar o sistema nacional de informações estatísticas, geográficas, cartográficas e geodésicas, o IBGE tem sido responsável pelo estabelecimento da regularidade censitária no país, por meio dos censos que realiza a cada dez anos, sem interrupção desde a sua fundação. Essas estatísticas são chamadas de primárias por abranger todo o território nacional de forma exaustiva. Além delas, o IBGE responde atualmente por uma série de estatísticas derivadas, informações geradas com o emprego de métodos de amostragem que dependem dos resultados e do universo global revelados pelos censos. Entre as estatísticas derivadas, encontram-se as pesquisas por amostragem tais como a Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD) e a Pesquisa Mensal de Emprego (PME). Diferentemente das primárias, estas últimas fornecem o monitoramento constante do consumo, trabalho e rendimento das famílias brasileiras. Igualmente importantes são os indicadores econômicos, a exemplo do Produto Interno Bruto (PIB), que orienta as expectativas de crescimento e retração da economia. Na mesma categoria, contam-se os indicadores demográficos (de fecundidade, morbidade, mortalidade e migração), sociais (de saúde, educação,
desigualdade racial e participação eleitoral), bem como agropecuários. Esse conjunto de pesquisas evoluiu da sólida tradição dos recenseamentos, iniciada pelo IBGE em 1940. Em sua trajetória, o IBGE teve atuação fundamental na construção do Estado brasileiro, na promoção de saberes técnicos e na modernização da gestão pública. Criado no contexto da Era Vargas, junto à agenda de nacionalização e ocupação do vasto interior e dos vazios demográficos, coube ao instituto um conjunto de medidas que garantiram o reajustamento do quadro territorial brasileiro. Realizou a uniformização das toponímias e dos limites dos municípios, com a finalidade de dar maior precisão ao censo, minimizando os problemas de duplicidade e subcontagem dos levantamentos anteriores. De modo similar, estabeleceu a padronização cartográfica dos mapas municipais, o que depois viabilizaria a elaboração da primeira carta do Brasil na escala do milionésimo, então reivindicada para fins de administração e comparação internacional. Ao mesmo tempo, o IBGE reuniu autoridade para arbitrar as disputas históricas de limites entre os estados da federação, contendas que remetiam ao Império e permaneciam sem resolução. A representação cartográfica mais precisa do território trouxe à luz irregularidades, como a demarcação indevida de terras e a manipulação de divisas e limites, não raro, feitas de forma ilícita pelas oligarquias rurais. Através de conhecimentos especializados e de parâmetros objetivos, a atuação do IBGE permitiu mitigar os poderes privados que se sobrepunham ao interesse público, contribuindo para o fortalecimento da dimensão nacional e para a superação do atraso, em bases científicas e mensuráveis. Seu modelo organizacional não replicou a centralização política característica do Estado Novo. Ao contrário, foi o modelo da coordenação que se impôs na sua estruturação, aliando negociação política e autoridade científica para contornar as resistências estaduais na produção de estatísticas. De inspiração federalista, o desenho institucional do IBGE foi concebido como um modelo de articulação entre municípios,
estados e União. Tal desenho foi suficientemente forte e eficaz para obrigar estados e municípios a produzir cooperação, e também suficientemente flexível, para comportar a adesão voluntária dos entes federados, uma garantia de governabilidade e de legitimidade frente à população. Nesse modelo, chamado de “consórcio interadministrativo de base municipalista”, o IBGE aparecia como órgão máximo do sistema estatístico nacional, com status de autarquia e diretamente vinculado à Presidência da República. Esse sistema agregava entidades federais, numa Junta Executiva Central, e entidades estaduais, em Juntas Executivas Regionais, mas seus pés eram as Agências Municipais de Estatística, criadas em 1942. Contando com unidades em cada município, o IBGE obteve alcance nacional a partir da instância municipal, o que lhe dava capilaridade única entre os órgãos de Estado. De um lado, as unidades municipais de estatística aprimoravam a rede de coleta dos censos. Introduzido no círculo das autoridades locais, o agente municipal atuava como educador da população quanto às vantagens da estatística, minando resistências remanescentes aos inquéritos censitários. De outro lado, o agente de estatística se inteirava da vida local e aconselhava diretamente as lideranças municipais. Desempenhando o papel de porta-voz das políticas nacionais, também reportava as demandas locais aos estratos superiores da hierarquia administrativa, aproximando interesses e costurando acordos. Refletindo sua estrutura ramificada, e sua presença nos rincões mais afastados do centro do país, o IBGE engajou-se ativamente na campanha de valorização dos municípios. Após a constituinte de 1946, sediou as reuniões da Associação Brasileira de Municípios (ABM) e patrocinou a criação do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM). Além disso, editou por vinte anos a Revista Brasileira dos Municípios, destinada a divulgar eventos e assuntos em defesa da autonomia e do orçamento municipais. Junto à inserção burocrática, o prestígio do IBGE advinha de sua credibilidade científica. A geografia foi organizada sob a direção dos franceses Emmanuel de Martonne e Francis Ruellan, que estiveram à frente da criação dos cursos de geografia da Universidade de São
Paulo e da Universidade do Brasil. A Revista Brasileira de Geografia, editada desde 1939 pelo IBGE, foi por quatro décadas o principal veículo de introdução de novas metodologias e correntes teóricas do campo no Brasil. Quanto à estatística, diversos cursos de treinamento e capacitação formaram a primeira geração de estatísticos profissionais, cujos expoentes foram Mário Augusto Teixeira de Freitas, idealizador e primeiro secretário-geral do IBGE, Giorgio Mortara, eminente estatístico italiano asilado no Brasil, e Lourival Câmara, fundador da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, a primeira do país, criada como unidade do IBGE em 1953. A atuação do instituto não se deteve na geração de informações sobre o espaço nacional, ajudando também a produzir sua conformação atual. Assinada pelo geógrafo Fábio de Macedo Soares Guimarães, a obra Divisão regional do Brasil estabeleceu as “grandes regiões” hoje conhecidas — Norte, Nordeste, Sul, Sudeste (então chamada Leste) e Centro-Oeste. A divisão foi legalizada por decreto de 1942, obrigando todas as estatísticas oficiais de estados e municípios a serem tabuladas segundo as unidades regionais brasileiras. Anos mais tarde, o mesmo geógrafo dirigiu a comissão técnica que determinou a localização exata e a área da nova capital no planalto central, Brasília. Nas décadas de 1950 e 1960, têm início os trabalhos sobre redes urbanas, áreas metropolitanas e microrregiões homogêneas, no espelho da industrialização e do crescimento da malha de cidades. O planejamento territorial torna-se crescentemente econômico e baseado em modelos econométricos, passando a regular os investimentos, as medidas orçamentárias e os estímulos fiscais. O estabelecimento das Contas Nacionais nesse período espelha tal tendência, permitindo ao governo monitorar continuamente os fluxos de capitais existentes no país. A ascensão do regime militar consolida a nova orientação desenvolvimentista do Estado, e, com ela, impõe um novo perfil ao órgão. O IBGE deixa de se estruturar a partir da rede de agências
municipais. As estatísticas gerais e censitárias são então combinadas a outras formas de processamento de dados, mediante incorporação dos indicadores e das pesquisas por amostragem. De consumidor de registros administrativos (de hospitais, escolas, delegacias, tribunais etc.) de base municipal, o IBGE ganha formalização científica e torna-se produtor especializado de registros estatísticos. Elabora novas metodologias para fornecer uma massa muito maior de dados sobre a atividade econômica e social, mais ricos em significado para a ação do Estado. São marcos dessa mudança tanto a subordinação do instituto ao Ministério do Planejamento, e não mais à Presidência da República, como sua conversão jurídica à fundação, não mais uma autarquia. Em seu novo formato, o IBGE perde espaço na proposição dos grandes debates sobre os problemas e os rumos do país. Mas seguiu alimentando a agenda nacional com um crescente volume de informações. Ao mesmo tempo, resguardou sua posição de independência na produção e na divulgação do conhecimento, legitimando-se como instituição de pesquisa. Sua reputação científica se reflete na composição do quadro técnico, que sofre profunda diversificação. Aos estatísticos, geógrafos e cartógrafos, somam-se os economistas, demógrafos e cientistas sociais. A excelência acadêmica aliada à autonomia para promover investigações sociais produziu pioneirismos, inclusive na pesquisa qualitativa. Um exemplo é o Estudo Nacional de Despesa Familiar (ENDEF), que, entre 1974 e 1975, mensurou o consumo através da pesagem para estabelecer o grau de carência alimentar nas diferentes regiões do país. Em caráter experimental, foi feita uma segunda pesquisa, procurando compreender a configuração da pobreza como modo de vida, formado a partir dos valores, das crenças e vivências dos pobres. Uma inovação metodológica, aplicada em escala nacional, por meio da qual objetivou-se complementar as informações quantitativas, na formulação de políticas de combate à fome. Após a constituição de 1988, o IBGE revela em números as mudanças atravessadas pela sociedade brasileira, ao mesmo tempo
em que proporciona instrumentos para a extensão da cidadania aos nascentes movimentos sociais. Antes centralizador do programa estatístico, o Estado se junta a diferentes setores da sociedade civil na demanda por informações. Consultas públicas são realizadas para debater o desenho dos censos, o formato dos questionários, a inclusão de novas categorias. Entende-se que os diversos grupos sociais têm interesse em ser visibilizados estatisticamente, e que devem ser ouvidos antes de se definir o que importa ser contado, de modo a fortalecer a legitimidade dos processos de produção estatística. Por sua vez, a divulgação dos resultados das pesquisas obedece a um calendário de datas pré-fixadas, aumentando a transparência e a repercussão midiática. As pesquisas também passam a observar boas práticas para sua validação, como acessibilidade, independência, objetividade e sigilo. Nessa nova ambiência, os números e os mapas do IBGE permitem alterar as relações de poder e redistribuir recursos, fornecendo balizas para as transferências federativas, os repasses constitucionais, a participação eleitoral, os reajustes salariais, a igualdade racial, entre tantas outras dimensões da vida nacional. Em suma, o IBGE é hoje parte da sociedade democrática que ajudou a construir, fornecendo dados de qualidade para políticas baseadas em evidências e respondendo, com autonomia, aos governos que se alternam no poder. LEIA MAIS
PENHA, E. A. A criação do IBGE no contexto da centralização política do Estado Novo. Rio de Janeiro: IBGE, 1993. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. SENRA, N. de C. História das estatísticas brasileiras. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. 4 v. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021.
CAMARGO, A. de P. R. “A Revista Brasileira de Geografia e a organização do campo geográfico no Brasil (1939-1980).” Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 23-39, 2009. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
NEGACIONISMO ESTATÍSTICO POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS SBPC
* Professor e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Cândido Mendes (Iuperj-UCAM)
IMPRENSA NEGACIONISTA Daniela Pinheiro *
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o dia em que completava 894 dias como presidente do Brasil, Jair Bolsonaro conduziu uma motocicleta por cerca meia hora ao longo da Rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo, na companhia de outros motoqueiros num ato de apoio ao próprio governo. Sem máscara, mas de luvas e blusão de couro preto ornado com brasões das Forças Armadas, exibindo um capacete branco com seu nome gravado na altura da fronte, Bolsonaro levava um empresário na garupa, acenava para as câmeras e gritava para populares que balançavam bandeiras verde-amarelas ao longo do caminho. Ao final do trajeto, discursou num palanque improvisado atacando o uso da máscara e as medidas de restrição contra o coronavírus. Naquele dia, 2.037 pessoas morriam vítimas da covid19 no país. Desde o começo da pandemia, somavam-se 460.000. O site Hora Brasília divulgou que apenas a chamada motociata havia injetado 40 milhões de reais à cidade em emprego e renda. O Jornal da Cidade Online publicou ter contabilizado 1,3 milhão de veículos, o que catapultaria o evento para as páginas do Guinness Book. Sob a hashtag #contrafakenews, o blog Terça Livre ressaltou que o ato levara ao “desespero” os opositores do governo, que não se conformavam com a grandiosidade do desagravo ao governo. O site Senso Incomum endossou a posição do presidente contra a proteção facial e o Vlog do Lisboa estampou um post repetindo a cantilena. As informações dos sites e blogs foram reproduzidas nas redes sociais dos filhos de Bolsonaro, de correligionários, de apoiadores e admiradores do governo e também daqueles que ainda eram contra “tudo o que estava ali” nos governos anteriores. Nesse dia, o Twitter da Presidência da República e a conta pessoal do presidente repetiram as informações com alarde. Num post no Facebook, que teve centenas de compartilhamentos e milhares de curtidas,
Bolsonaro cravou ter participado do “maior passeio motociclístico do Brasil”. Era tudo mentira. O ato em São Paulo teve participação de pouco menos de 6.700 motocicletas. O dado é do sistema de monitoramento da Rodovia dos Bandeirantes. Não há qualquer levantamento sobre o que a motociata tenha recheado os cofres da cidade. Também não se sabe de onde saiu a informação de que os opositores de Bolsonaro estavam revoltados com a grande adesão ao evento. Até as crianças sabem que máscaras são eficazes na prevenção da doença. E nem de perto foi o maior ato do gênero no país. Mas não importa. Assim como o ocorrido no episódio da “motociata”, o governo Bolsonaro se esmera em espalhar informação falsa, distorcida e enviesada sobre praticamente todos os assuntos de interesse público — desde mudanças climáticas à corrupção no governo, do voto impresso a dados econômicos, mas, sobretudo, aos que dizem respeito à pandemia. No caso da passeata das motos, valeu-se do conteúdo publicado por canais na internet alinhados ao governo para divulgar o embuste do evento a seu favor — cujo verdadeiro impacto foi revelado, posteriormente, por estatísticas, registros e imagens oficiais. A estratégia se tornou recorrente: em vez de simplesmente divulgar a informação falsa sem dados que a corroborem, o governo reproduz mentiras publicadas nas plataformas e redes sociais de simpatizantes — o que, em tese, conferiria mais credibilidade à notícia por se tratar, aparentemente, de conteúdo produzido por veículos de informação. Muitas vezes, também, a manobra funciona na mão inversa: Bolsonaro verbaliza mais uma inverdade ou impropério, divulgado com destaque pelos mesmos sites e blogs, que apresentam a declaração como verdadeira. (Não falta material. De acordo com um levantamento da agência de checagem Aos Fatos, até julho de 2021, Bolsonaro dera 3.411 declarações falsas ou distorcidas — uma base de três mentiras por dia).
Há um terceiro arranjo unindo governo e veículos pseudonoticiosos: são eles os principais responsáveis por insultar, desmoralizar, estigmatizar, organizar humilhações públicas nas redes sociais contra opositores ao governo — preferencialmente jornalistas, ex-colaboradores, parlamentares, artistas e influenciadores digitais em ações, muitas vezes, orquestradas dentro do Palácio do Planalto. Entretanto, nada é tão espantoso quanto a novidade trazida no âmbito da comunicação pelos bolsonaristas: portais de órgãos do governo reproduzindo em suas páginas oficiais (inclusive com o link para acessá-las) sandices, asneiras e bravatas de ministros e do chefe do país, caso de uma entrevista com o então chanceler Ernesto Araújo ao portal Brasil sem Medo (autointitulado “o maior jornal conservador do Brasil”) em que ele afirma: “a pandemia não aumentou o número de mortes no Brasil”. A frase foi desmentida pela Agência Lupa, que monitora a desinformação no país. Por trás da estratégia de comunicação palaciana está o que ficou conhecido como Gabinete do Ódio, supostamente comandado por Carlos Bolsonaro, vereador e um dos filhos do presidente. Em uma sala no terceiro andar do Palácio do Planalto, tutelados pelo herdeiro do presidente, colaboradores produzem relatórios diários, com suas interpretações, sobre fatos do Brasil e do mundo, e são responsáveis pelas redes sociais da Presidência da República. Oficialmente contratados como assessores, são exímios disseminadores do discurso de ódio e mestres no uso de robôs e perfis falsos que manipulam conteúdo indevidos nas redes. Mas, sobretudo, trabalham de maneira siamesa com a chamada “imprensa negacionista”. A ascensão da mentira a fato é parte da espinha dorsal do projeto político do atual governante do país. Acompanha o esforço hercúleo, anunciado ainda durante a campanha eleitoral (uma característica de Bolsonaro: é coerente) de destruir o que ele mesmo chama de “a grande mídia” — veículos de comunicação tradicionais, que costumam seguir as regras republicanas da profissão. É algo inédito no Brasil, mas a prática foi claramente importada de nações, cujos
governantes também flertam com o autoritarismo, o populismo e a ruptura democrática. Foi assim com Recep Tayyip Erdoğan (Turquia), Viktor Orbán (Hungria), Donald Trump (Estados Unidos), Benjamin Netanyahu (Israel), entre outros. Irrelevantes e muitos inexistentes há pouco menos de três anos, os veículos da imprensa negacionista costumam ter nomes que remetem a marcas tradicionais da imprensa — como a Folha Política, que tem 2,4 milhões de inscritos no YouTube, ou a Gazeta do Brasil, que vende até canecas com o rosto de Bolsonaro. Há também o Renova Mídia, o Pleno News, o Terra Brasil, o Estudos Nacionais e mais uma miríade de veículos nanicos e barulhentos, cujo objetivo comum é apenas disseminar versões e interpretações de notícias alinhadas à agenda do governo. Uma característica também comum aos arautos da desinformação é que passaram a ser financiados indiretamente pelos cofres públicos. A título de curiosidade e informação, não se pode ignorar a imprensa “desinformadora”: a que, com passado no jornalismo tradicional, tornou-se porta-voz do bolsonarismo se locupletando das facilidades governistas: a rádio Jovem Pan, o jornal Gazeta do Povo, a Rede Record e o Sistema Brasileiro de Televisão. Durante os anos Lula (2002-2010) e Dilma (2010-2016), a prática de beneficiar veículos de comunicação favoráveis ao governo também ocorreu. Embora de forma menos explícita e não verbalizada pela autoridade máxima do governo. O PT pulverizou as verbas publicitárias do governo passando de 500 para 9.000 veículos — entre jornais, emissoras de TV e rádio, blogs e sites de notícias. Sob o argumento de ampliar a voz da imprensa, os favoráveis à situação foram os mais beneficiados. Em certa altura, também houve a ameaça de corte de publicidade àqueles que apoiavam as manifestações pelo impeachment da presidenta. Na era Bolsonaro, a prática ganhou contornos ainda mais perturbadores. A verba da Secretaria de Comunicação do governo passou a ser distribuída por meio do programa Google Adsense, que paga um valor ao site a cada vez que um usuário clica na
publicidade ou apenas visualiza o anúncio. Com isso, é possível entregar dinheiro público a canais da base de apoiadores do presidente sem passar pelo controle de gastos do governo. Investigações do Tribunal de Contas da União e dados reunidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito que apura a disseminação de fake news por parte do governo apontaram faltar critérios técnicos para a distribuição do dinheiro. Um relatório da Polícia Federal indicou que verbas do governo federal podem ter abastecido sites bolsonaristas responsáveis por desinformação, propagação de discurso de ódio e mensagens contra a estabilidade democrática. Plataformas como Facebook, Twitter e YouTube passaram a excluir contas daqueles considerados polos de disseminação de desinformação. Mas a investida dos sites amigos do presidente ainda é grande. Em 2021, o Brasil caiu quatro posições no ranking de liberdade de imprensa elaborado pela organização Repórteres sem Fronteiras. O país foi incluído, pela primeira vez, na lista de “predadores da liberdade de imprensa” ao lado do Afeganistão, Emirados Árabes Unidos e Guatemala. Nesse dia, não houve qualquer menção ao fato nos sites alinhados ao governo. LEIA MAIS
LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. CAMPOS, P. M. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2020. EMPOLI, G. da. Os engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar. Tradução: Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2019. CONFIRA
FAKE NEWS MÍDIA PÓS-VERDADE
* Jornalista, trabalhou na Folha de S.Paulo, foi editora das revistas Veja e Piauí e diretora de redação da revista Época. Faz mestrado na Universidade Nova de Lisboa
INTERNET Carolina Parreiras *
E
m 2019, em artigo publicado no New York Times, Tim BernersLee, mundialmente conhecido por ser o criador da internet e hoje o diretor da World Wide Web Foundation, comentava sobre suas propostas para a web, dizendo que seu maior desejo, desde sempre, foi que ela trouxesse impactos positivos para a humanidade. Aparentemente utópico, o comentário fazia referência à complexidade atingida pela internet e pelas relações, vivências e possibilidades abertas por seu uso cada vez mais difundido e cotidiano. Dizia também dos desafios colocados frente ao crescimento de casos de preconceito, violência e desinformação, ausência de regulação de conteúdo, falta de clareza nas políticas de dados, plataformização da vida e formação de conglomerados de empresas de tecnologia, como Google, Facebook, Apple e Microsoft, para citar apenas algumas. No discurso do senso comum, a internet aparece como um ente coerente, uniforme e unificado — seria “A Internet”. Visões como essa tendem a obscurecer a variedade de sentidos e usos atribuídos a esse ente. Quer dizer, não existe uma só internet, pois são muitas as internets, assim como são também múltiplas suas narrativas de origem e as escritas de suas histórias. Essas múltiplas internets são feitas e forjadas na prática, não só de usuárias e usuários, mas também de pessoas sempre em fluxo. No mito de origem mais conhecido, 1989 é considerado o ano de nascimento da internet, ainda que ela só fosse se tornar comercial e mais acessível ao público em geral em meados dos anos 1990. Os estudos sobre a história da internet chamam a atenção, no entanto, para o fato de que essa história não tem uma origem única e seria uma simplificação partir de 1989, bem como desconsiderar desenvolvimentos próprios em diferentes partes do mundo. Do mesmo modo, muitas das narrativas que envolvem a internet
apostam na idealização das histórias de seus criadores, considerados heróis de garagens de cidades universitárias que sempre chegam a uma grande revelação ou descoberta. Isso acontece, por exemplo, com as trajetórias de personagens como Steve Jobs (Apple), Mark Zuckerberg (Facebook), Bill Gates (Microsoft) e Jeff Bezos (Amazon), considerados casos de sucesso e baluartes das promessas de enriquecimento e oportunidade para todos, trazidas pela internet. No entanto, esses mesmos personagens estão no centro de contenciosos contemporâneos, exercendo, por meio de suas empresas, plataformas e serviços, um controle e uma vigilância sem precedentes (e dificilmente regulados) sobre a vida, as relações, as escolhas, as formas de consumo e os dados das pessoas. Assim, já 20 anos antes de 1989, foram iniciadas as pesquisas que deram origem à web. Elas datam, portanto, do período da Guerra Fria, sendo que questões militares e de segurança nacional estão entre seus principais interesses. A busca era por uma tecnologia que, em caso de ataques nucleares, conseguisse resistir e garantir a continuidade das comunicações. É daí, então, que surgem protótipos do que hoje se conhece como a internet, sendo o mais importante a chamada Arpanet — Advanced Research Projects Agency Network, iniciada em 1969. Foi a partir da Arpanet que se deu, na Universidade da Califórnia, a primeira conexão entre computadores e também o desenvolvimento dos primeiros protocolos, que são os estruturantes da transmissão de dados e informações em redes digitais. Nos anos seguintes, uma série de iniciativas se desenvolveram, sendo comum a troca entre pesquisadores situados em diferentes países, bem como a competição entre eles. Em 1989, ainda pesquisador do CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), Tim Berners-Lee chega ao protocolo — o HTTP ou protocolo de transferência de hipertexto — que, somado a outros achados, tornou possível o acesso à web e a navegação com transferência de dados entre computadores conectados em rede, bem como fez com que isso ganhasse escala e pudesse ser
comercializado. Nessa lógica, é possível dizer que o hipertexto, entendido como textos computacionais que estão ligados a outros textos por meio de hiperlinks, está na base da conformação da internet, tornando simples tanto a publicação de dados quanto a navegação e o compartilhamento. Nessas narrativas de origem da internet, chama a atenção o quanto há uma junção de interesses militares e de defesa e das pesquisas científicas realizadas em universidades e centros de estudos mundo afora. No último caso, a busca era de encontrar um modo mais simplificado e ágil de troca de informações entre pesquisadoras/es situadas/os, muitas vezes, temporal e geograficamente distantes. Em sua origem, a internet esteve vinculada a posturas cientificistas e a centros de produção e disseminação de conhecimento. Claramente, estes primeiros objetivos foram superados, na medida em que faz sentido pensar hoje em uma internet que não só media, mas que produz formas e possibilidades de vida que estão muito além da mera troca de informações. Ainda, muitas das discussões contemporâneas sobre a internet têm suas origens nos primeiros tempos de seu uso, momento em que, em meio a visões utópicas e distópicas de futuros mediados e controlados pela tecnologia e pelas redes de conexão, forjava-se um novo vocabulário — técnico, analítico e de uso cotidiano —, imaginações e possibilidades de interpretação dos novos fenômenos da vida experienciada com e por meio de computadores, modens e acesso à web. Desse modo, a internet contemporânea é plural e deve ser pensada desta forma. Visões holísticas não dão conta de explicar as múltiplas operações que ela hoje proporciona e nem mesmo as muitas relações que possibilita. Nessa lógica, algumas características ajudam a explicar como se deu o desenvolvimento da web nos últimos 30 anos, tanto em termos estruturais quanto a partir das relações sociotécnicas. O primeiro ponto diz respeito ao caráter cotidiano da internet. Hoje, é possível dizer que o acesso à internet é algo que faz parte do nível
mais comum e ordinário da vida de milhões de pessoas. Isso significa também, para além do montante de pessoas conectadas, que a internet se torna peça fundamental das atividades do dia a dia, atravessando as diferentes esferas da vida, como educação, sociabilidade, trabalho, consumo, informação, comunicação, e com impactos políticos, econômicos e sociais bastante relevantes. Diretamente associada a esse primeiro ponto, a internet pode ser caracterizada como um meio/artefato altamente desigual. Seus primeiros teóricos defendiam a ideia de que a internet seria um veículo importante para o enfrentamento e apagamento das diferenças. No entanto, ao contrário, vê-se que ela se tornou cada vez mais um lugar das desigualdades, algumas delas que espelham desigualdades sociais mais amplas e outras que se traduzem em formas específicas de desigualdades digitais. Assim, marcadores sociais da diferença, como raça, classe social, gênero, sexualidade e idade, por exemplo, são fundamentais para compreender as experiências contemporâneas possibilitadas pela internet. A terceira característica se refere à capacidade de gerar escala. A partir da sua configuração algorítmica, a internet funciona como um artefato que garante reverberação e espalhamento rápido de todo tipo de informação ou dados. Com o advento da chamada social media, cujo maior representante são as redes sociais, essa capacidade de amplificação atinge outros patamares, por meio da combinação de moderação de conteúdo insuficiente; processo de plataformização, em que todas as operações e atividades são concentradas dentro de uma mesma plataforma; e programação algorítmica, que, a partir de modelos computacionais, direciona conteúdos, delimita o alcance e os tipos de informação acessíveis a cada pessoa, funcionando como verdadeiros filtros. O somatório desses fatores, juntamente com a dificuldade de regular plataformas e corporações, cria ambientes cada vez mais discriminatórios, violentos e com fácil propagação de todo tipo de mensagem, especialmente aquelas que podem ser caracterizadas como desinformação, cujo maior exemplo são as fake news (e nas quais se enquadram as posturas anticiência).
Adicione-se a isso a possibilidade de criação e manipulação de códigos para formatação de personagens digitais como os bots, que são perfis codificados e automatizados que disseminam posturas de ódio, perseguições e notícias, e informações específicas. Ainda que certamente a internet tenha trazido inumeráveis benesses, ela também faz parte de debates e contenciosos em diferentes esferas, sendo necessário repensar seus modos de organização, estruturação e suas políticas de dados e de usos. LEIA MAIS
ABBATE, J. Inventing the internet. Cambridge: The MIT Press, 1999. BERNERS-LEE, T. “I invented the world wide web. Here’s how we can fix it.”The New York Times, 24 nov. 2019. Opinion. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. PAlOQUE-BERGÈS; C.; SCHAFER, V. “Arpanet (1969 — 2019).” Internet Histories. v. 3, n. 1, p. 1-14, 16 jan. 2019. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
FAKE NEWS PÓS-VERDADE TECNOLOGIA
* Pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP)
LAWFARE Alexandre da Maia *
L
awfare é um neologismo formado pelas palavras “law”, entendida aqui como “direito”, e “warfare” (guerra). Em síntese, o lawfare é um mecanismo de utilização do direito como arma ou máquina de guerra — o que demonstra desde já a feição militarista desse conceito. Na primeira menção que se faz à expressão lawfare, em artigo publicado por Carlson e Yeomans em 1975, os autores indicam que, com o lawfare, o duelo acontece pela utilização das palavras, e não de espadas. Em um sentido complementar, para Martins e Valim, o lawfare configura-se como uma forma de utilização estratégica dos procedimentos jurídicos para fins políticos, geopolíticos ou econômicos, com o objetivo de perseguir um inimigo de forma deliberada. Orde Kittrie enumera duas características do lawfare: I) uso do direito para gerar efeitos semelhantes ao que se busca alcançar em operações militares; II) esse uso tem por objetivo atingir alguém (pessoas ou instituições) de maneira destrutiva. Porém, nem sempre foi esse o entendimento. O termo já foi utilizado pelo coronel da Força Aérea dos Estados Unidos Charles Dunlap com o intuito de criticar o uso estratégico dos Direitos Humanos como ponto de partida para questionamentos acerca da legitimidade de ações militares dos Estados Unidos e de Israel. Neste caso, o conceito de lawfare ganharia uma dimensão de pretensa neutralidade, com potencialidades de concretização de práticas tanto legítimas quanto ilegítimas, sob o argumento de que o lawfare seria preferível às guerras sangrentas, destruidoras e custosas do século 20. Por esse entendimento, sendo o direito uma “arma”, ele não seria necessariamente “bom” ou “mau”, já que o seu uso poderia gerar efeitos positivos ou negativos. Não se abre mão de uma “lógica da guerra”, típica dessa visão militarista. O que acontece é uma atualização dessa perspectiva ao admitir novos
meios para se atingir determinado resultado danoso ao inimigo. A despeito dessa pretensa neutralidade, o conceito de lawfare não admite essa relativização. Afinal, um dos pressupostos do lawfare — pensar o direito como uma arma — já é submeter a ordem jurídica a uma dinâmica “amigo/inimigo” de observação da realidade, o que mostra desde já a incompatibilidade entre o lawfare e o próprio Estado de Direito — em todas as dimensões e sentidos possíveis. Portanto, o conceito de lawfare sempre envolve o aspecto negativo da destruição do adversário. Zanin, Martins e Valim apontam que o lawfare “é a própria negação do direito e dos direitos” por inserir a lógica da guerra no Estado de Direito. O fato de se utilizar o direito como arma de perseguição de inimigos é incompatível com o Estado de Direito, especialmente o Estado de Direito que se configura como uma democracia. Afinal, uma das premissas do Estado de Direito é o dissenso quanto às formas de agir e de vivenciar o mundo, e esse dissenso é absorvido pelo direito e pelo sistema político por meio dos procedimentos estabelecidos por regras. O Estado Democrático de Direito envolve uma dinâmica entre consensos e dissensos, na qual há consenso quanto aos procedimentos e dissenso quanto aos conteúdos, envolvendo as incertezas próprias das tomadas de decisão a partir dos procedimentos jurídicos. Quando alguma pessoa propõe uma ação judicial, o processo segue o caminho fixado pelos procedimentos estabelecidos pelo direito para uma futura tomada de decisão sobre se aquela pessoa tem ou não o direito alegado na petição inicial. Por isso sempre há um grau de incerteza quanto ao conteúdo dessa decisão. Afinal, pelo princípio do contraditório as decisões devem ser tomadas sopesando os argumentos das partes envolvidas no processo e as determinações do direito atinentes àquela matéria em debate na ação judicial. E os argumentos apontam para as divergências e dissensos que há entre as partes sobre o direito em discussão. Se há argumentos distintos que levam a resultados diferentes na decisão, os procedimentos do sistema jurídico fornecem apenas o
caminho que a ação judicial deve percorrer para que a decisão seja tomada, não a definição do conteúdo ou do mérito da decisão sobre o direito alegado pela parte. Se o resultado já está definido de antemão, como é o caso do lawfare, não há contraditório, tampouco ampla defesa. Outra forma de compreensão do lawfare como negacionismo do direito envolve a utilização dos procedimentos do direito de forma ritual. À semelhança do procedimento, o ritual também envolve etapas que se concretizam de forma sucessiva. Porém, ao contrário dos procedimentos, os rituais não estão abertos às incertezas quanto aos resultados. Muito ao contrário. No ritual sabe-se tudo que vai acontecer de antemão, das etapas aos resultados. No procedimento conhecemos as etapas, nunca os resultados. No caso do sistema jurídico, as incertezas quanto ao mérito das decisões são fundamentais para que os argumentos trazidos ao processo pelas partes em litígio sejam levados a sério e considerados quando da tomada de decisão pelos órgãos competentes. O lawfare acontece quando a incerteza é eliminada em nome de um “objetivo maior”, que no caso é diminuir ou aniquilar o inimigo, e o lawfare é o mecanismo utilizado para esse objetivo, mas sem abrir mão do uso ritualístico da linguagem do direito e dos direitos. Com a utilização dos procedimentos jurídicos numa dinâmica ritualística, nega-se o direito às pessoas. O inimigo não tem direitos. Os textos e as argumentações da defesa funcionam de forma simbólica, a fim de atestar o cumprimento burocrático das etapas daquele ritual. O resultado já está previamente estabelecido. Buscase por dentro de argumentos aparentemente jurídicos — muito embora motivados por interesses outros — encontrar a linha de raciocínio que sirva para atingir aquele resultado sob a forma de decisão. Essa ritualização dos procedimentos jurídicos não acontece apenas no âmbito do Poder Judiciário. É possível vislumbrá-lo
também em espaços institucionais de deliberação política, como aconteceu no caso do impeachment da ex-presidenta da República Dilma Rousseff. Daí a tese de que o impeachment de Dilma foi um golpe parlamentar. Afinal, a “ampla defesa” e o “contraditório” serviram tão somente como cumprimento formal de etapa naquela ritualística disfarçada de procedimento jurídico. Parece claro que é possível perceber situações de lawfare para além dos espaços de deliberação estritamente jurídicos — temos lawfare quando se usa o direito como arma de destruição do inimigo para fins políticos, econômicos ou geopolíticos, e essa situação envolve uma complexidade que não se limita ao estreito campo do direito. É possível afirmar que as situações de lawfare configuram um déficit democrático, pois os espaços de escuta das múltiplas vozes dissonantes da sociedade são fechados a fim de direcionar a máquina do direito para fazer concretizar objetivos que passam por cima dos direitos e das garantias do inimigo. Num contexto social e político em que há “inimigos” e “amigos”, não há democracia. As regras do jogo num contexto democrático devem ser claras e aplicáveis de forma generalizada, a fim de poder cumprir a função do direito em um contexto social tão complexo: generalizar as expectativas normativas da sociedade de maneira congruente — em tese, o fato de uma pessoa não ter dinheiro, por exemplo, não significa dizer que ela não tem direitos. Portanto, a generalização congruente de expectativas normativas do sistema jurídico não admite a dinâmica “amigo/inimigo”, pois se assim fosse teríamos uma incongruência na generalização de expectativas, em que uma pessoa teria direitos por ser amiga dos detentores do poder ou por ser rica e outra nada teria por ser “inimiga do regime” ou “inimiga do governo” do momento. O lawfare hierarquiza expectativas que não podem ser hierarquizadas, o que também configura, em face do déficit democrático, uma forma de negacionismo do direito. LEIA MAIS
CARLSON, J.; YEOMANS, N. “Whither Goeth the law: humanity or barbarity.” In: SMITH, M.; CROSSLEY, D. The Way Out: radical
alternatives in Australia. Melbourne: Lansdowne Press, 1975. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. KITTRIE, O. F. Lawfare: law as a weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. ZANIN, C.; MARTINS, V.; VALIM, R. Lawfare: uma introdução. São Paulo: Contracorrente, 2019. CONFIRA
CONSTITUCIONALISMO PÓS-VERDADE TECNOLOGIA
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
MASCULINIDADE Aline Passos * Ana Letícia de Fiori ** Ana Paula Portella ***
Q
uando falamos de gênero, frequentemente, entende-se que falamos de mulheres. Isso acontece porque atribui-se aos homens o universal, o humano. Para citar a escritora portuguesa Grada Kilomba, de um homem, dizemos que é uma pessoa. Quem é identificada pelo gênero é a mulher. Por isso, nossa proposta aqui é debater masculinidades. Em particular, os modos de masculinidade que, por diferentes dispositivos, produzem nos sujeitos compreensões de mundo e formas de agir negacionistas. O desafio é indicar como são relacionados certos dispositivos de masculinidade e diferentes manifestações de negacionismos, a partir de suas cinco características gerais identificadas pelo médico e pesquisador em saúde coletiva, Kenneth Camargo: I) identificação de conspirações; II) uso de falsos experts; III) seletividade, focalizando em artigos isolados que contrariam o consenso científico (cherry-picking); IV) criação de expectativas impossíveis para a pesquisa; e V) uso de deturpações ou falácias lógicas. Em outras palavras, vamos falar de traços ou características de sujeitos bastante comuns nos eventos de família, no WhatsApp e outras redes sociais, no trabalho, na vizinhança. Afinal, todo mundo já deve ter ouvido que “a China fabricou o vírus da covid-19 para vender a vacina” ou que existe uma coisa chamada ideologia de gênero que pretende instituir aulas de sexo nas escolas. Existem, nas diferentes sociedades e culturas, diversas formas de expressar masculinidades, mas nem todas levariam a expressar negacionismo. Entretanto, as formas mais hegemônicas de masculinidade, que fazem parte do processo de socialização das crianças e que estão presentes nos meios de comunicação e no
senso comum, exprimem um modo de existir ao qual se relacionam características como agressividade, força, inteligência, credibilidade, honra, virilidade, entre outras, valoradas de forma positiva. Ou seja, distribuem-se características e hierarquizam-se as pessoas de acordo com o gênero. Nessa hierarquização, o masculino corresponde ao domínio da razão como uma habilidade inata e incontestável, sem levar em consideração as formas pelas quais um determinado raciocínio, compreensão ou opinião são formados. É ao mesmo tempo um privilégio e um dever dos homens — o que é denominado em inglês de entitlement — saberem das coisas e estarem certos, mesmo quando não dispõem de conhecimentos, recursos ou mesmo vontade de se informarem sobre determinado assunto. Esse entitlement é acentuado ao interseccionar-se com elementos de classe, raça, origem, atuação profissional, entre outros marcadores sociais de diferença e hierarquia. Nas interações sociais cotidianas, isso leva a situações como explicações excessivas e não solicitadas por parte de homens, interrupções da fala de interlocutoras, dificuldades em admitir ignorância ou solicitar informações e, diante de assuntos sobre os quais não tem familiaridade, buscar atalhos explicativos e teorias que corroborem opiniões simplistas, como forma de não perder a face pública da racionalidade. É possível afirmar que dentre as várias dimensões do negacionismo está o monopólio masculino da veridicção, que opera por captura e em detrimento de saberes produzidos por sujeitos subalternos. Pegamos como exemplo o caso do pastor que viralizou nas redes sociais ensinando as pessoas a fazerem gargarejo com bicarbonato de sódio, água morna e limão para tratamento da covid19. Segundo ele, a orientação teria vindo de um irmão que mora nos EUA que, por sua vez, recebeu a receita de um amigo judeu. Para reforçar o argumento, dizia o pastor, que Israel havia controlado satisfatoriamente a pandemia. Nesse caso, observamos que há a captura de uma terapêutica transmitida intergeracionalmente no âmbito doméstico, especialmente por mulheres encarregadas dos cuidados com a saúde e a alimentação das famílias. Embora seja
um pastor e sua palavra goze de credibilidade a partir desse lugar específico, é curioso como, na sua versão negacionista, ele procurou se apoiar na autoridade de um conhecimento tradicionalmente feminino, cuja eficácia é amplamente reconhecida para aliviar inflamações na garganta, mas se dissocia da experiência concreta e cotidiana que fundamenta esse conhecimento para amparar-se apenas no status da autoridade do enunciador. Esse movimento de captura, além de funcionar como reforço da autoridade no discurso do pastor, ao mesmo tempo coloca em descrédito esses saberes de sujeitos subalternos que passam, então, a serem chamados de crendice quando o discurso científico refuta o negacionismo. Arvorando-se a autoridade de triar quais são os discursos e saberes científicos válidos (aqueles que corroboram sua opinião), mimetizando o modo de produção e apresentação desses conhecimentos (com farto uso de falácias, deturpações, meias verdades) e reivindicando-se como portadores de informações e saberes privilegiados, aos quais sujeitos subalternos não têm acesso, performances de veridicção masculinas produzem todo tipo de negacionismos históricos e científicos. Um dos aspectos mais sensíveis da produção generificada de negacionismos é a ocorrência de diferentes modos de invisibilizações e, nos instrumentos de mensuração do poder público ou outros órgãos de diagnóstico e controle social, subnotificações. Negacionismos de eventos históricos, como o Holocausto e as diferentes violências ocorridas em contextos ditatoriais ou democráticos no Brasil, produzem apagamentos de vidas e mesmo de populações marcadas por estas experiências, assim desqualificadas e desconsideradas. Negacionismos de ameaças presentes, como foi o caso de diferentes acidentes nucleares em décadas recentes, ou de epidemias como a de HIV/aids (ignorada pelo poder público e posteriormente tratada como “câncer gay”) e a atual pandemia de covid-19, levam a comportamentos de riscos, descuidos, desmonte de políticas de contenção, desinformação generalizada do público, em certos casos vitimando
desproporcionalmente um ou outro gênero. Esse negacionismo pode levar a níveis de silenciamento em que os próprios sujeitos são incapazes de nomear suas experiências, dissociando-se de aspectos fundantes de suas psiquês, e, consequentemente, de fazer o trabalho de reelaboração de traumas, do luto e de dimensionamento da própria responsabilidade. O negacionismo generificado, portanto, associado a essa masculinidade viril que se arvora o monopólio da capacidade de dizer o que é verdadeiro e válido, ampara-se ao mesmo tempo em um positivismo ingênuo e em um processo de dissonância cognitiva, em que o raciocínio e o processamento de informações são interrompidos e capturados quando ameaçam as exigências de tal masculinidade e sua autoridade. Seus efeitos se dão em nível dos processos de subjetivação e construção de identidades, das interações sociais, das comunicações na esfera pública e da tomada de decisões políticas e governança, em seus aspectos de atribuição de poder e responsabilidades, uma vez que negacionismos interferem na percepção de correlações e causalidades, isentando certos sujeitos ao mesmo tempo em que produzem impressões de liderança e proatividade. Considerando que o negacionismo se faz possível por meio de uma série de hierarquias sociais e desigualdades na distribuição de possibilidades de enunciação e veridicção, é essencial sua compreensão por meio de uma das chaves mais basilares de estruturação social de diferenças: o gênero e sua produção de assimetrias. CONFIRA
ANTIGÊNERO DESIGUALDADE E INTERSECCIONALIDADE GENOCÍDIO
* Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) ** Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Acre (UFAC) ***
Doutora
em
Pernambuco (UFPE)
Sociologia
pela
Universidade
Federal
de
MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS Marcos Pedrosa * Michelle Fernandez **
D
urante grande parte da sua história, a técnica e a prática da medicina estavam baseadas na intuição, na experiência clínica pessoal assistemática e no raciocínio fisiopatológico. Eram transmitidos enquanto ofício por meio de aprendizagem prática e de textos clássicos de médicos greco-romanos como Hipócrates e Galeno. Nessa perspectiva, pode-se olhar a história milenar da medicina e perceber que as evidências científicas reconhecidas atualmente são algo relativamente recente. De forma crescente, a partir do século 20, a medicina passou a investir nas ciências experimentais — o laboratório como parâmetro das ações. Novas descobertas em fisiologia, microbiologia, patologia e bioquímica foram aceitas como explicações para os fenômenos que ocorriam no corpo humano, num contexto em que teorias antigas de causalidade de doença baseadas em crenças religiosas e na geração espontânea foram refutadas. Esse período foi marcado pela reorientação de conceitos científicos e pela criação e difusão de novos campos do saber. Nesse sentido, a expressão “Medicina Baseada em Evidências” (MBE) tem antecedentes que remontam ao desenvolvimento das ciências médicas e biológicas ao longo do século 19. Porém é a partir do início da década de 1990 que o conceito terá grande difusão, enquanto novo paradigma para o ensino da medicina e para a tomada de decisão por profissionais de saúde. A MBE pode ser compreendida como o uso criterioso das melhores evidências disponíveis na tomada de decisões sobre o cuidado com as pessoas. A difusão de métodos de análise crítica das evidências da pesquisa científica ao redor do mundo nas últimas décadas traduzia
o exercício de uma medicina efetivamente baseada em evidências científicas na competência de identificar as evidências de investigações clínicas que apontem para benefícios, riscos e custos. Sob essa perspectiva, é retirada a ênfase hegemônica nos séculos anteriores da prática médica focada na intuição, na experiência clínica pessoal assistemática como base suficiente para a tomada de decisão clínica. Portanto, a medicina baseada em evidências é a arte de aplicar o conhecimento científico na prática clínica. Ela integra a experiência clínica com a capacidade de analisar criticamente informações científicas para que se entregue a melhor qualidade assistencial possível. Nesse contexto, a experiência médica não é descartada, mas isoladamente é mais fraca que o conjunto de dados que sustentam determinada conduta. Os três princípios que regem a medicina baseada em evidências são: I) a busca da verdade é mais bem cumprida ao examinarmos a totalidade das evidências; II) nem toda evidência é igual, um conjunto de princípios pode identificar evidências mais confiáveis; e III) apenas evidências não são suficientes, sendo assim os tomadores de decisões devem avaliar riscos e benefícios de estratégias alternativas de manejo no contexto dos valores e preferências dos pacientes. Assim, pode-se dizer que no século 21 o exercício da boa medicina passa atualmente pela adoção da MBE enquanto diretriz para apoiar sua tomada de decisões terapêuticas no cuidado com os pacientes. As evidências extraídas das publicações científicas para adoção na prática médica devem ser assumidas criticamente, considerando sempre a qualidade dos artigos científicos, o que passa pela sua hierarquização a partir do rigor metodológico — envolvendo o desenho do projeto, a coleta e a análise de dados — utilizado para alcançá-las. No entanto, ainda que tenhamos avançado significativamente na produção científica, na construção de evidências de qualidade e na difusão dos princípios da MBE por universidades e diversas publicações de organismos científicos internacionais e revistas
científicas ao redor do mundo, a medicina baseada em evidências não é a regra na prática médica. Na medicina e em outras profissões de saúde, há os que insistem em basear sua prática em suas preferências, suas crenças e em sua própria experiência, propondo intervenções (tratamentos, medicamentos etc.) baseadas nelas ou em conhecimentos já superados pela ciência atual. Convivemos aí não apenas com os problemas decorrentes dos atrasos na incorporação tecnológica, mas com graves problemas bioéticos ao se assumir uma prática médica apartada do que há de melhor entre o conhecimento disponível sobre problemas de saúde. Nesse sentido, a medicina baseada em evidências dá lugar ao negacionismo científico, uma vez que evidências consolidadas não são consideradas na prática médica. Porém, é importante salientar que essas práticas que desconsideram as evidências não podem ser consideradas questionamentos científicos propriamente ditos. Esses profissionais não desconsideram a ciência de forma ampla, mas escolhem as evidências que serão consideradas na sua prática médica. Observamos, assim, que há uma investida na desconstrução da credibilidade científica de forma seletiva. Essa escolha por evidência pode estar pautada por posições econômicas, políticas ou até religiosas próprias. Portanto, a tentativa de trazer ao debate o método científico nesse contexto é inócua. Para fomentar a consolidação do uso de evidências científicas na prática médica é fundamental construir uma cultura que valorize o conhecimento científico. Isso passa por levar esse tipo de debate para dentro das escolas que formam os médicos, e os demais profissionais de saúde. Além disso, é importante tornar o conhecimento científico acessível para a população em geral. Para isso é necessário fomentar o processo de tradução de conhecimento. Aproximar as evidências científicas e a população também é uma forma de incentivar o uso da ciência pelos profissionais de saúde no cuidado das pessoas. Portanto, a validação do conhecimento mostra-se importante para criar soluções eficazes frente aos novos desafios que se apresentam no cuidado médico.
É contraditório que, em plena era da informação e em um momento histórico que está marcado pelo avanço acelerado da ciência, os cuidados em saúde ainda desprezem as evidências científicas. A desconfiança e o desprezo pelo pensamento científico são cada vez mais presentes no senso comum, respaldados pelos discursos anticientíficos que ganham amplificação nas arenas públicas digitais. O negacionismo, inclusive no meio médico, frente a temas como a eficácia das vacinas, eficácia de medicamentos e tratamentos, entre outros, são exemplos de como crenças e convicções pessoais passam a ter mais importância que as evidências de qualidade apresentadas pela ciência. Tanto entre profissionais de saúde quanto na população em geral há os que ainda não reconhecem a real importância das evidências científicas na tomada de decisão médica e no cuidado em saúde. Esse fato ganhou relevância durante a pandemia da covid-19, quando nos deparamos com profissionais e parte da sociedade negando evidências consolidadas em prol de condutas médicas duvidosas. No Brasil, tal fenômeno ganhou ainda mais relevância durante a crise de saúde publica provocada pela pandemia de covid-19, pois negacionismo científico, pseudociência e teorias da conspiração estiveram persistentemente na pauta do debate público brasileiro. O populismo medico adotado nesse contexto nega a importância das abordagens não farmacológicas de prevenção da doença e promove como milagrosos medicamentos e tratamentos que em realidade são ineficazes, perigosos ou proscritos. O uso de medicamentos sem eficácia comprovada, o rechaço às vacinas e, inclusive, o menosprezo pelas medidas não farmacológicas são alguns dos exemplos da concretização do negacionismo vinculado à prática médica no Brasil nos dias de hoje. Devemos salientar que esse fenômeno não é algo novo e não está vinculado somente ao contexto da pandemia da covid-19 no país. O negacionismo científico é um fenômeno que ainda sobrevive no Brasil, apesar do avanço da ciência nas últimas décadas, e que ganhou holofotes durante a atual crise sanitária. A medicina baseada em evidências é fundamental na prática
médica, uma vez que ela oferece informações precisas de várias fontes, sugere as informações mais validadas e identifica aquelas consideradas prejudiciais. Ela serve como respaldo para o cumprimento do princípio fundamental e mais básico que norteia a medicina, o princípio da não maleficência, reforçando o juramento que todos fizeram de evitar riscos, custos e danos desnecessários à vida dos pacientes. Nesse sentido, o negacionismo científico coloca em xeque a melhor assistência médica possível e, portanto, coloca em risco a vida. As evidências científicas de qualidade devem ser levadas em consideração por profissionais de saúde, tanto da área assistencial como de cargos de liderança e administração, para respaldar o cuidado de qualidade a partir de práticas baseadas em evidência. Portanto, é urgente que no Brasil as evidências científicas sejam consideradas no processo de tomada de decisão em saúde e na prática médica cotidianamente. LEIA MAIS
BORNSTEIN, B. H.; EMlER, S. A. C. “Rationality in medical decision making: a review of the literature on doctors’ decision-making biases.” Journal of Evaluation in Clinical Practice, [S. l.], v. 7, n. 2, p. 97-107, 2001. CASARÕES, G.; MAGALHÃES, D. “A aliança da hidroxicloroquina: como líderes de extrema direita e pregadores da ciência alternativa se reuniram para promover uma droga milagrosa.” Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 55, n. 1, p. 197-214, 19 fev. 2021. GUYATT, G. et al. “Evidence-based medicine: a new approach to teaching the practice of medicine.” JAMA, [s. l.], v. 268, n. 17, p. 2420-2425, 1992. SHERIDAN, D. J.; JULIAN, D. G. “Achievements and limitations of evidence-based medicine.” Journal of the American College of
Cardiology, Washington, DC,v. 68, n. 2, p. 204-213, jul. 2016. CONFIRA
FIOCRUZ POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS POPULISMO SANITÁRIO
* Médico, mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ** Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB)
MERITOCRACIA Beatriz Lacerda Ratton * José Luiz Ratton **
O termo meritocracia foi cunhado por Michael Young, que escreveu
The Rise of the Meritocracy. no final dos anos 1950. Longe de considerá-la sinônimo de justiça ou de igualdade, o sociólogo britânico tratava o argumento meritocrático como profundamente distópico e advertia para suas consequências: arrogância e soberba dos bem-sucedidos e desmoralização daqueles que não fossem capazes de ascender. A meritocracia é a forma mais frequente de validação, no plano simbólico e moral, das supostas virtudes do capitalismo contemporâneo. O argumento meritocrático, como o nome sugere, propõe um tipo de sociedade em que as pessoas são julgadas pelo mérito do seu trabalho, através de indicadores como seu nível de esforço, habilidade, determinação ou vontade. Em tese, em um sistema meritocrático, as “melhores” pessoas seriam escolhidas para posições disputadas em escolas, universidades, empregos etc. Um sistema baseado no mérito, totalmente refratário a quaisquer critérios vinculados a privilégios: identidade de gênero, sexualidade, raça, etnia, nacionalidade e classe social seriam irrelevantes para os resultados na vida. Em outras palavras, o destino de um indivíduo não seria definido por nenhuma das características listadas acima, e seu “sucesso” seria determinado única e exclusivamente pela própria pessoa. Em tese, teríamos igualdade e justiça. No entanto, é difícil argumentar que nas sociedades contemporâneas essa seja a realidade em que vivemos. A desigualdade nos pontos de partida dos indivíduos e a existência de “condições e regras” que reforçam tais inequidades afetam as chances de participação equânime dos indivíduos na obtenção de
benefícios, bem como a qualidade de vida das pessoas. Os “vencedores” têm, em média, uma vida melhor, e os “perdedores” passam por distintos tipos de dificuldades que podem transformar suas existências em mera busca pela sobrevivência. Se olhamos com uma lente analítica interseccional, quanto mais características destituídas de marcadores sociais vantajosos e não escolhidos o indivíduo tiver, mais difícil sua vida será. A ideia meritocrática apresenta uma proposta por natureza paradoxal: enquanto se diz que as pessoas que estão e continuam em posição de poder e influência ali estão por seu mérito e esforço, continua-se a promover pessoas por motivos exatamente opostos: conexões familiares, dinheiro, entre outras vantagens sociais. Ignora-se que todos não começam a corrida do mesmo ponto de partida; em grande parte das situações, nem na mesma corrida estão. Esse ponto merece ser desenvolvido seguindo as três objeções à meritocracia propostas por Michael J. Sandel. Em primeiro lugar, ter os talentos que me permitem progredir não é fruto do meu trabalho ou esforço; é mera sorte. Se todos começarem a corrida no mesmo ponto de partida, o que é duvidoso, e se todos tiverem igual acesso a bons treinadores, instalações de treinamento, tênis de corrida, dietas saudáveis e assim por diante, os corredores mais talentosos têm maior probabilidade de ganhar. Mas ser talentoso é pura questão de sorte. Portanto, fica difícil sustentar que os vencedores podem reivindicar que merecem moralmente as recompensas que a sociedade lhes concede. Um segundo ponto é aquele que mostra que ter determinado tipo de talento em um determinado tipo de sociedade é, também, mera questão de sorte. A demanda do mercado por um tipo de talento — como ter todos os atributos para jogar basquete de forma desproporcionalmente superior à média de seus contemporâneos — torna indivíduos excepcionalmente preparados para jogar basquete aptos a serem muitíssimo bem-sucedidos apenas em sociedades e épocas em que o basquete é extremamente popular e as
recompensas disponíveis associadas a esse esporte são muito elevadas. O terceiro ponto proposto por Sandel é, em nossa opinião, subestimado no debate sobre meritocracia e desigualdade. Trata-se de compreender as consequências das atitudes em relação ao sucesso que as sociedades supostamente meritocráticas promovem. Os indivíduos que estão ou chegam ao topo das sociedades capitalistas contemporâneas passam a acreditar que seu sucesso é fruto exclusivo de seu próprio trabalho e esforço, constituindo a forma adequada de medir e avaliar seu mérito, e que aqueles que não conseguiram resultados positivos são merecedores da posição que ocupam e das desvantagens associadas a tais posições. Em suma, do seu destino. Esse tipo de raciocínio nos mostra um lado menos virtuoso da concepção meritocrática de realização e sucesso. Sandel a nomeia como “arrogância meritocrática” — a tendência dos bem-sucedidos de desfrutar profundamente de seu sucesso e de desprezar os menos bemsucedidos do que eles. Essa arrogância não seria apenas moralmente desinteressante, mas aprofundaria a divisão entre vencedores e perdedores e tornaria-se absolutamente corrosiva para qualquer ideal de bem comum. A tentativa de nivelar o campo de jogo, para que todos tenham chances razoavelmente equânimes de vencer não desfaz as desigualdades de estima e reconhecimento que as meritocracias produzem. A equalização das chances de sucesso não impediria a persistência da divisão entre vencedores e perdedores. O problema estaria na concepção da vida social como uma corrida competitiva — em que os bem-sucedidos acreditam, e têm motivos para acreditar, que conquistaram seu sucesso e os benefícios que daí advêm. O paradoxo da meritocracia passa a existir e ser visível da forma mais cruel: mesmo que sejamos capazes de produzir sociedades em que exista algo próximo da igualdade de oportunidades, tanto aqueles que têm sucesso quanto os que lutam para obtê-lo acreditam igualmente que os bem-sucedidos são merecedores incontestes de suas realizações e das recompensas
associadas a elas. Finalizando, nos parece claro que o argumento meritocrático, no Brasil e alhures, é uma forma racionalizadora e justificadora, se seguirmos Thomas Piketty ou Branko Milanovic, de negação das inúmeras e persistentes desigualdades que constituem a estrutura das sociedades contemporâneas e, especialmente, da sociedade brasileira. Lamentável observar que nos últimos cinco anos temos observado a ascensão política e social de grupos que, de forma avassaladora, vêm destruindo as modestas e significativas conquistas que vinham favorecendo os “perdedores” de sempre (pobres, negros, mulheres, indígenas, populações LGBTQI+). Seja no plano político ou no plano moral, trata-se da mesma retórica que nega as desigualdades e afirma o mérito individual como valor, constituindo um “movimento” negacionista de qualquer projeto igualitário e democrático de nação. LEIA MAIS
Sandel, Michael J. “How Meritocracy Fuels Inequality-Part I — The Tyranny of Merit: An Overview”, American Journal of Law and Inequality, Issue 1, 2021. Piketty, Thomas. Capital et Idéologie — Seuil, Paris, 2019, 1200 p. Milanovic, Branko. Capitalism Alone: The Future of the System That Rules the World. Harvard University Press. 2019. CONFIRA
DESIGUALDADE DESIGUALDADE E INTERSECCIONALIDADE NEGACIONISMO
* Cientista política e mestra em Migration Studies pela Universidade de Sussex, Reino Unido ** Professor e pesquisador do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
MÍDIA Camila Mont’Alverne *
O termo
mídia é frequentemente utilizado em debates públicos e em alguns círculos acadêmicos de forma excessivamente ampla, de modo a abranger produtos midiáticos provenientes do jornalismo tradicional, do entretenimento, da publicidade ou, mais recentemente, conteúdo disseminado pelas mídias sociais. Uma definição mais enxuta do termo pode ser mais útil neste verbete. Sempre que se referir à mídia, trata-se basicamente de organizações jornalísticas cuja finalidade declarada é informar o público utilizando plataformas tradicionais ou digitais de comunicação. O ambiente midiático brasileiro é alvo de diversas críticas. Elas podem ser divididas entre as críticas com relação a deficiências estruturais e em relação ao conteúdo da cobertura. Em termos estruturais, a concentração das principais empresas nas mãos de poucos grupos e indivíduos costuma ser a mais frequente. Há, além disso, conflitos de interesse em relação à propriedade das empresas: de acordo com levantamento do Media Ownership Monitor, 32 deputados federais e 8 senadores da 55ª legislatura (2015-2019) eram proprietários de emissoras de rádio e TV — algo expressamente vedado pela legislação federal. Em relação às críticas ao conteúdo, parte significativa das organizações jornalísticas brasileiras demonstra um histórico hesitante com a democracia, aliado a déficits em pluralidade de perspectivas retratadas tanto na cobertura como entre as empresas que compõem o sistema midiático no Brasil. Apesar das limitações, a mídia opera como um dos principais agentes de fiscalização do governo Bolsonaro. Em um cenário de oposição parlamentar fragmentada e com dificuldade em impor derrotas ao governo, as principais revelações e investigações com potencial de desgaste acontecem por meio das organizações
jornalísticas. Aliado a esse ponto, a mídia brasileira conta, comparativamente, com níveis razoáveis de confiança junto à população. Em 2020, 51% diziam que é possível confiar nas notícias na maior parte do tempo, colocando o Brasil como quinto país, dentre os 40 pesquisados pelo Reuters Institute for the Study of Journalism, no qual as pessoas mais confiam nas notícias. É com esse pano de fundo que chegamos à pandemia de coronavírus e à disseminação do discurso negacionista em larga escala. Em outras circunstâncias, o papel da mídia durante uma emergência de saúde pública seria amplificar as orientações do governo e fiscalizar se as medidas adequadas estavam sendo seguidas pelos governantes. No caso da pandemia da covid-19, as organizações jornalísticas tradicionais assumiram o papel de guiar a população em muitos momentos. Diante da ausência de orientações por parte do governo federal ou, mesmo, frente à recusa do presidente e de seu gabinete em seguir protocolos da Organização Mundial da Saúde, tal papel informativo foi reforçado. Houve, ainda, movimentação ativa para garantir acesso a dados que seriam facilmente disponibilizados em outras situações. Exemplo disso é a iniciativa do consórcio entre alguns dos principais veículos jornalísticos para atualizar o número de casos e de óbitos após a dificuldade criada pelo governo federal. Ademais, o cenário de hostilidade aos jornalistas é mais um traço do bolsonarismo, com repetições frequentes protagonizadas por apoiadores do presidente. Tais acontecimentos, junto à calamidade da condução da pandemia no Brasil, empurraram as empresas jornalísticas para uma posição de reafirmar a valorização das liberdades democráticas e da atuação baseada em critérios científicos. O papel da mídia brasileira na pandemia é reconhecido pela população. Relatório recente do Reuters Institute, publicado em maio de 2021, revelou uma significativa diferença a respeito de quem a população acredita que a ajudou a entender sobre vacinas: 60% dos entrevistados disseram que as organizações midiáticas fizeram isso, enquanto 39% declararam que o governo o fez. O
resultado indicou a importância do jornalismo durante a crise pandêmica, mas também evidenciou o impacto do discurso negacionista do governo federal. O relatório também indicou que brasileiros que acompanham as notícias tendem a acreditar menos em desinformação sobre a vacina padrão igualmente encontrado em outros países estudados. Se, em geral, o trabalho desempenhado pela mídia em relação à pandemia tem oferecido um serviço público fundamental, há deficiências. Houve críticas a uma alegada falta de atenção aos protestos massivos contra o governo Bolsonaro em fins de maio de 2021. De fato, as manifestações não figuraram nas capas de alguns dos principais jornais no dia seguinte. Tal omissão não condiz com uma das ideias que norteia o jornalismo profissional: a de que fatos de grande magnitude devem receber mais destaque. Ao mesmo tempo, os protestos receberam cobertura em portais, telejornais e, no caso de Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, editoriais de endosso. Por vezes, o jornalismo oferece também espaço a discursos negacionistas ou trata como controvérsias questões amplamente consensuadas do ponto de vista científico. Mesmo que a intenção, em boa parte destes casos, seja corrigir as informações, a cobertura é uma forma de disseminá-las. Esse não é um fenômeno localizado na mídia brasileira, tendo acometido outros lugares, especialmente em contextos nos quais as principais autoridades são negacionistas. De todo modo, trata-se de uma fragilidade a ser observada e mitigada. Diversos levantamentos já demonstraram que o tráfego de publicações especializadas na disseminação de desinformação é baixo, embora seja frequente a percepção de estar cercado por grande quantidade delas. Assim, em muitos casos, a mídia tradicional colabora para tal disseminação, mesmo quando a intenção é contradizê-la ou, pior, quando repercute declarações com informações falsas de autoridades sem a devida ressalva. No caso da pandemia no Brasil, uma singularidade reside em que boa parte dos responsáveis por cultivar desinformação ocupa
cargos eletivos e de destaque. Exemplo disso pode ser visto nas falas de senadores que defendem a eficácia da hidroxicloroquina durante os trabalhos da CPI da Covid. Assim, há um conflito entre duas lógicas: os critérios de noticiabilidade e o compromisso jornalístico em não servir como disseminador de informações falsas, ainda que involuntariamente. Por um lado, temos os critérios utilizados para determinar quando um evento deve ser noticiado, entre os quais está a autoridade dos envolvidos. Por outro, há casos em que tais autoridades se aproveitam da visibilidade da qual dispõem para confundir o debate público, utilizando-se também do jornalismo. Além disso, veículos abertamente governistas têm aderido à agenda negacionistas do governo, mesmo se isso significa abrir mão de princípios jornalísticos. Diante do negacionismo do governo federal e dos obstáculos por ele impostos à coordenação do combate à pandemia em nível nacional, a mídia brasileira assumiu, ao lado de outras instituições, o papel de orientar a população sobre o assunto. Embora tenha sido uma atuação satisfatória, as limitações de um contexto no qual autoridades são consistentemente fontes de informações pouco confiáveis, junto à atuação politicamente intencionada de parte das empresas, têm simultaneamente aberto espaço para disseminação de desinformação em casos localizados. LEIA MAIS
NIELSEN, R. K.; SCHUlZ, A.; FLETCHER, R. “An ongoing infodemic: how people in eight countries access and rate news and information about coronavirus a year into the pandemic.” In: Reuter Institute Report — May 2021. Oxford: Reuter, Oxford: University of Oxford Press, 27 mai. 2021. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. PINTO, P. A. Brasil e as suas mídias regionais: estudos sobre as
regiões Norte e Sul. Rio de Janeiro: Multifoco, 2017. TSFATI, Y. et al. “Causes and consequences of mainstream media dissemination of fake news: literature review and synthesis.” In: Annals of the International Communication Association, Washington, v. 44, n. 2, p. 157-173, 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
GLOBALISMO INTERNET TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Agência Reuters/University of Oxford
MILÍCIAS Luiz Eduardo Soares *
O escritor britânico China Miéville, em seu livro A cidade e a cidade,
concebeu a superposição espacial de duas cidades. Duas ordens sociais, culturais, econômicas e políticas diferentes convivem e não veem uma à outra. É difícil, nem sempre a invisibilidade recíproca é obedecida integralmente, mas funciona. O segredo está na educação: desde cedo, as crianças aprendem a “desver” o que não deve ser visto. Tudo o que participa da outra cidade tem de ser evitado, fisicamente, e “desvisto”, dos carros às pessoas. Leis, política e economia são diferentes. Claro que os olhos continuam ativos e aptos a enxergar, mas a pedagogia da indiferença é eficaz. Essa paradoxal intimidade com o que não se vê exige, além do treinamento precoce, disciplina e vigilância, leis e repressão. Tudo isso poderia soar delírio de escritor, mas nem tanto assim. Em seu clássico Sistemas políticos da Alta Birmânia, o antropólogo britânico Edmund Leach descreve fenômeno até certo ponto parecido: a duplicidade de modelos sociais e políticos regendo, simultaneamente, a mesma sociedade. Por outro lado, não precisamos ir longe, nem à Birmânia, nem à estrutura de castas da Índia, com seus intocáveis. Aqui mesmo, muita gente pobre e negra permanece invisível para setores sociais com os quais convive. Não é figura de linguagem. Durante vários anos, pesquisei situações desse tipo e escrevi sobre elas. Aliás, o tema da invisibilidade não é novo, de formas distintas vem sendo abordado há décadas, e o exemplo mais célebre é o romance Homem invisível, de Ralph Ellison. Em suma, “desver” é possível e razoavelmente comum, e sempre requer pedagogia e disciplina — não necessariamente conscientes. Os motivos são poderosos — ideológicos, econômicos e políticos, e algumas vezes psíquicos —, porque há realidades insuportáveis e “desver” é uma defesa. Muito embora quem se defenda possa
sucumbir ao trauma justamente pela incapacidade de reconhecer a realidade e elaborá-la. No caso brasileiro, estamos falando de exploração de classe e racismo estrutural. Estamos também falando da culpa de quem enxerga a iniquidade que contraria seus próprios valores e prefere ignorá-la para não ser instado a engajar-se na luta por mudanças ou para não ter de rever sua fé na meritocracia. Não se trata, por óbvio, apenas de uma ortopedia do olhar, porque o processo envolve os afetos e o julgamento que as pessoas fazem do mundo em que vivem. Um dos exemplos mais graves da prática coletiva do “desver” é o negacionismo, que não se confunde com deficiência cognitiva, muito menos com divergência de opinião, nem com o cancelamento do princípio de realidade por força de um colapso psíquico. O negacionismo matricula quem o pratica em uma espécie de clube que oferece vários benefícios a seus membros, a começar pelo sentimento reconfortante de não estar só, de pertencer a um grupo acolhedor, merecer o reconhecimento coletivo, contar com sua lealdade e compartilhar suas crenças e seus valores. Ou seja, nesse tipo de negação, há muita afirmação, e há também a oportunidade de fortalecer vínculos apoio mútuo por meio da experiência do antagonismo a outros grupos, percebidos como as fontes do mal. Nesse sentido, negar corresponde ao uso performativo da linguagem: faz-se muita coisa com a negação. Muito mais do que divergir de asserções evidentes sobre fatos, o negacionista muda de canal, deixa de referir-se à realidade, não disputa a verdade. Opta pela gratificação emocional de sentir-se valorizado, participando de redes que lhe conferem acesso privilegiado a um suposto segredo. Segredo é o que separa os de dentro dos de fora, é a chave que permite aos escolhidos vislumbrar, com exclusividade, um mundo de tramas e conspirações, previsível e pleno de sentido, é a senha para o triunfo sobre o mal, é o poder da aliança que segrega e une. Por outro lado, há também o negacionismo negado, aquele que não aparece porque, estando enraizado no senso comum, escapa à fricção com o bom senso e aos atritos que agregam e dividem. Vamos tratar de ambas as modalidades, refletindo sobre as milícias.
De que forma a existência das milícias decorre e depende do negacionismo? Elas surgiram no Rio de Janeiro no começo de nosso século e primeiro foram definidas como autodefesa comunitária ou um mal menor. Aos poucos, as opiniões se dividiram, inclusive no interior das comunidades. Hoje, prevalece o consenso de que são organizações nocivas e perigosas — embora ainda haja quem as defenda, em geral aliados políticos que lhes devem sua eleição. Entretanto, mesmo a maioria que já reconhece a natureza perniciosa das milícias — inclusive boa parte da chamada opinião progressista — se nega a ver que elas são manifestações de um problema maior e mais grave: a autonomização das polícias em relação aos poderes da República e à autoridade política civil. Milícias são grupos criminosos armados, formados por policiais, ex-policiais e agregados, que se apropriam pela força, ou pela ameaça de empregá-la, da integralidade dos lucros auferidos em negócios sob controle monopolista. Tais negócios vão desde a venda de gás e o serviço de transporte, passando pela provisão de internet e TV a cabo, chegando ao acesso a terras públicas e aos projetos imobiliários. Se apropriam, além disso, de parte dos lucros auferidos por virtualmente todas as atividades econômicas, legais e ilegais, exercidas nas comunidades vulneráveis: do comércio varejista ao serviço de bares e restaurantes, da venda de drogas à compra de votos. O fenômeno não se restringe ao estado do Rio de Janeiro, embora ali tenha alcançado dimensão inaudita, sobretudo por sua infiltração no poder político e por sua expansão acelerada, cooptando facções de traficantes e gerando conflitos pelo domínio territorial. Muitos fatores concorreram para a emergência e a proliferação das milícias. Entre eles cabe destacar a segurança privada informal e, em especial, a licença para matar dada aos policiais. Tal licença se impõe seja pela tolerância à autonomização de esquadrões da morte e scuderies, seja pela adoção da política de “guerra às drogas” na qual se admitem, quando não estimulam, execuções
extrajudiciais. Quando se concede ao policial autorização para matar, concedese-lhe também liberdade para não fazê-lo e negociar a sobrevivência do suspeito. O mercado da vida instaura uma moeda, cujo valor é incalculável e se inflaciona incessantemente. Os acordos logo passam do varejo ao atacado, o escambo se organiza e a economia da corrupção se racionaliza e cresce, degradando a instituição policial, tornando-a sócia, cúmplice e refém do crime. Engana-se quem acredita que liberando as polícias para matar elas serão mais efetivas contra o crime. É justamente o contrário. Aceitar práticas policiais ilegais abre as portas para a ruína institucional e o fortalecimento do crime. Quanto à segurança privada informal e ilegal está em curso um processo metastático protegido e alimentado pela impunidade. Os orçamentos da segurança costumam ser gigantescos, mesmo assim insuficientes para pagar salários decentes à massa policial. Por isso, convém aos governos estaduais, para evitar reivindicações e greves, que os policiais suplementem os salários com os chamados “bicos”. Eles o farão, dedicando seu tempo de folga à segurança privada, o que, salvo exceções, é ilegal, em função do conflito de interesses: quão pior estiver a segurança pública, melhor estará a privada. Os governos fingem que não veem, alegando que a responsabilidade é da Polícia Federal (PF). Isso pode ser mesmo verdade, mas não passa de jogo de cena, porque a PF não tem interesse nem condições de atuar nessa área. Na prática, os governos estaduais e a PF lançam um manto de proteção sobre um conjunto vasto de atividades, as quais incluem desde esforços honestos — embora ilegais — de tantos trabalhadores policiais que apenas buscam oferecer melhores condições às suas famílias, até as milícias. É essencial compreender este ponto: as milícias crescem à sombra dessa negligência sistemática, que atravessa as décadas inalterada. Mas, afinal, por que tantos — inclusive muitos democratas,
progressistas e críticos — “desveem” a realidade das polícias, sem as quais não haveria milícias? Aproximando-nos da segurança pública, encontramos um tipo muito peculiar de negacionismo, até hoje não identificado enquanto tal, cujos efeitos devastadores têm custado milhares de vidas: a negação permanente do genocídio de jovens negros e pobres em territórios vulneráveis. Esse negacionismo se expressa sob a forma de seu avesso: a crença de que as polícias estão orientadas pela legalidade constitucional, comandadas por governadores, sujeitas ao controle externo do Ministério Público, e que os episódios brutais são excessos e desvios de conduta, punidos e corrigidos pelas autoridades competentes. E assim se “desvê” o enclave. O genocídio e o enclave estão ofuscados pelo mesmo negacionismo. Durante a transição política, que culminou na promulgação da Constituição, em 1988, os representantes da ditadura em declínio ainda detinham poder suficiente para impedir que o polo democrático exercesse plena hegemonia. Associados a lideranças corporativistas das categorias policiais, os militares lograram impedir que o campo institucional da segurança pública fosse submetido ao processo de mudança. Impôs-se uma reserva estratégica para mantê-lo intocado. A implicação reside em que o modelo policial forjado pela ditadura, e único no mundo, foi preservado no artigo 144. O congelamento do status quo institucional não significa apenas a manutenção de arranjos funcionais e formalidades. Os organogramas estão carregados de seres humanos que trazem consigo valores, crenças, hábitos, tradições, modos de formação de identidade e de produção de lealdades, rivalidades e preconceitos, regimes próprios de regulação de afetos e das economias subjetivas. Mais ainda, trazem em suas linguagens e repertórios de memória coletiva, o ódio e o desprezo aos supostos inimigos, a confusão entre justiça e vingança, assim como a visão da própria missão como exorcismo do mal que ameaça os “homens de bem”. Os formatos institucionais e as dinâmicas policiais de trabalho não são alheios a essa matéria densa que a história gestou. Pelo
contrário, estão profundamente impregnados dessa profusão de elementos incandescentes, sobretudo quando expostos ao fogo do racismo estrutural e da hiper exploração de classe, em nosso capitalismo autoritário. Todos esses fatores plasmam a atuação cotidiana e são metabolizados nas culturas corporativas das polícias civis e militares. Pois esse amálgama foi consagrado quando a Constituição manteve as polícias tais como se organizavam e funcionavam. Em suma, criou-se um enclave institucional avesso à democracia, ao Estado de direito e refratário à autoridade política, civil e republicana. Tal enclave permanece — embora haja milhares de trabalhadores policiais adeptos dos valores democráticos e ainda que tenha havido esforços verdadeiramente heroicos de reversão da lógica perversa. Prevaleceu a história, que porta a marca de sua origem: a mais recente, a ditadura, e a mais remota, a escravidão — que a ditadura ecoou e que as práticas ainda correntes hoje fazem ressoar. Depois de três décadas, o enclave se cristalizou e fortaleceu, escapando ao escrutínio do Ministério Público (MP) e ao comando dos governadores. O Rio de Janeiro tem sido o exemplo mais nítido de uma realidade nacional. Enclave que perdura porque não é confrontado pelos poderes republicanos. O Ministério Público, cujo dever constitucional é exercer o controle externo da atividade policial, se omite ou é ativamente cúmplice das violações. O Poder Judiciário abençoa a inércia do MP, contribuindo para a naturalização da barbárie. Os governadores bem-intencionados, que ensaiam se rebelar contra a própria impotência, hesitam e recuam, temendo o poder policial de provocar danos políticos. A maioria dos governadores, entretanto, prefere, em aliança com segmentos da mídia e da opinião pública, extrair benefícios demagógicos da liberdade com que agem os policiais “operacionais”, sejam militares ou civis, contra as leis e os tratados internacionais, agrupados em esquadrões da morte, scuderies ou milícias, que são variações da mesma autonomização ilegal, evidenciada na segurança privada informal, todas elas marcas registradas do enclave. O enclave conviveu desde 1988 com a vitalidade da sociedade brasileira que
se democratizava, aos trancos e barrancos, até o golpe parlamentar de 2016 e a chegada ao poder de um presidente identificado, ideologicamente, com o fascismo combinado a uma agenda neoliberal extremada. O enclave está ao nosso lado, convive conosco, mas os poderes republicanos não o veem. Assim como boa parte da sociedade também “desvê” tal enclave, inclusive tantos de nós, críticos. Olhamos para suas engrenagens, observamos seus efeitos brutais, as milícias e o genocídio racista, ignoramos suas raízes estruturais, e só vemos problemas tópicos a serem corrigidos por boa gestão e alguns ajustes. Enquanto isso, a barbárie campeia. LEIA MAIS
ELLISON, R. Homem invisível. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020. LEACH, E. Sistemas políticos da Alta Birmânia: um estudo da estrutura social Kachin. São Paulo: Edusp, 2014. MIÉVILLE, C. A cidade e a cidade. São Paulo: Boitempo, 2014. SOARES, L. E. “Juventude e violência no Brasil contemporâneo.” In: SOARES, L. E. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019. CONFIRA
POLÍTICA TORTURA VIOLAÇÕES DE ESTADO * Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
MÚSICA POPULAR BRASILEIRA Débora Nascimento *
A canção
popular brasileira tem uma forte vocação para narrar, através de suas letras, os acontecimentos de cada época, assumindo um papel de cronista de costumes e fatos. Mesmo antes do primeiro registro fonográfico, Isto é bom (Xisto Bahia), que ocorreu em 1902, na Casa Edison, primeira gravadora instalada no país em 1900, o público brasileiro já exibira sua tendência de gostar de crônicas, como no exemplo de uma quadrinha de domínio público que fazia muito sucesso ao satirizar a venda de títulos de nobreza no reinado de Dom João VI, artifício usado para abastecer os cofres da monarquia: “Quem furta pouco é ladrão / Quem furta muito é barão / Quem mais furta e esconde / Passa de barão a visconde”. A inclinação cronista da música brasileira recebeu forte influência da cançoneta, um formato musical repleto de ironias surgido a partir da chansonnette francesa, que aportou no Brasil em meados do século 19, com o surgimento dos cafés-cantantes e chopes berrantes, estes mais populares. A chacota também estava presente nas canções interpretadas no teatro de revista, trazido ao país pelos portugueses. O teatro de revista ou revista do ano revisitava, em forma de música e números dançantes, os acontecimentos que foram destaques no ano anterior. Os compositores agradavam os ouvintes com histórias jocosas e temas polêmicos que movimentavam os debates da sociedade, como a Revolta da Vacina. Entre o fim do século 19 e início do século 20, o Rio de Janeiro era uma das cidades mais insalubres do mundo, consequência de um desordenado crescimento urbano e da extrema miséria provocada pelo abandono financeiro e social de ex-escravizados. Para tentar amenizar as doenças que se alastravam, em 1903, o médico sanitarista Oswaldo Cruz deu início a uma campanha de vacinação,
que tinha o objetivo de erradicar a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Parte da população rejeitava o imunizante e a negação virou a música A vacina obrigatória: “E os doutores da higiene vão deitando logo a mão / Sem saberem se o sujeito quer levar o ferro ou não”. A má repercussão da discordância foi pretexto para ser deflagrada a Revolta da Vacina, rebelião ocorrida entre 10 e 16 de novembro de 1904, que logo adquiriu ares golpistas para derrubar o presidente Rodrigues Alves. Com a popularização dos registros fonográficos, dos gramofones e do rádio, o alcance da canção brasileira ganhou reforço. Logo surgiram músicas que se tornaram “sucessos na boca do povo”, principalmente as marchinhas. Uma delas tentava exaltar a suposta democracia racial existente no Brasil, mas deixava escapar o inegável racismo da sociedade, O teu cabelo não nega (1931), dos Irmãos Valença e Lamartine Babo: “O teu cabelo não nega, mulata / porque és mulata na cor / Mas como a cor não pega, mulata / Mulata, eu quero o teu amor”. Noel Rosa foi um dos autores bem-humorados que aproveitavam o termômetro das ruas para escrever suas letras. A música Com que roupa? (1930) é uma das amostras de sua caneta afiada. Em plena Era Vargas e no período da Grande Depressão, questionava a inflação e o baixo poder de compra da classe trabalhadora. “Agora eu não ando mais fagueiro / Pois o dinheiro / Não é fácil de ganhar / Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro / Não consigo ter nem pra gastar / Eu já corri de vento em popa / Mas agora com que roupa eu vou / Ao samba que você me convidou”. O samba — forjado nos quintais das tias baianas que migraram, no final do século 19, após o fim da escravidão, para o Rio de Janeiro —, com apoio da divulgação radiofônica, tornou-se um símbolo nacional. Logo a política descobriria o poder que exercia na população o gênero musical — registrado como tal em 1916, com a música Pelo telefone, criação coletiva composta na casa de Tia Ciata. O início irreverente da letra dizia: “O chefe da polícia pelo
telefone manda me avisar / Que na Carioca tem uma roleta para se jogar”. Getúlio Vargas percebeu a relevância dessa onda que se erguia no mercado musical e passou a conduzi-la em seu favor. No contexto da campanha pelo enaltecimento do trabalho, a censura da época, promovida pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), intervia nas músicas que exaltavam a malandragem — comportamento muito em moda, mesmo quando o samba nos terreiros era perseguido pela polícia, que levava sambistas à prisão apenas por portarem violões nas ruas. Uma das amostras da interferência da censura está na letra original de O bonde de São Januário (1940), do irônico Wilson Batista, que dizia: “O bonde de São Januário leva mais um sócio otário / Só eu não vou trabalhar”. Com a censura, o resultado ficou: “O bonde de São Januário leva mais um operário / Sou eu que vou trabalhar”. E arrematava “A boemia não dá camisa a ninguém”. Podemos dizer que esse foi um dos primeiros casos em que uma posição negacionista é tematizada na música brasileira, consequência de uma ação sistematizada para negar a existência de um fato inescapável, o de que havia uma nova geração de brasileiros que simplesmente não queria bater ponto numa fábrica ou num escritório para ganhar uma mísera remuneração ou abraçar qualquer outra profissão considerada oficial pelo establishment. Essas pessoas queriam ser artistas, trabalhar como artistas. A Era Vargas foi o período em que um subgênero do samba ganhou força no mercado musical, o samba-exaltação. Era um exemplo sonoro da negação da realidade do país, ao ignorar aspectos marcantes como pobreza, analfabetismo, fome, falta de moradia, violência, subdesenvolvimento. Duas das músicas mais representativas são de Ary Barroso. Aquarela do Brasil, que exaltava os atributos naturais do país (“fontes murmurantes”, “coqueiro que dá coco”) e a sensualidade do povo miscigenado (“morena sestrosa”, “mulato inzoneiro”), e E isto aqui, o que é?, que exalava otimismo por todos os lados (“Este Brasil que canta e é
feliz, feliz, feliz...”) e novamente a sensualidade dela, a “morena” (“Olha só o remelexo que ela sabe dar”). Mas outras também tiveram suas repercussões, como Brasil pandeiro (1941), de Assis Valente, que foi sumariamente rejeitada por Carmen Miranda, talvez calejada com a vaia que levou no Cassino da Urca, ao cumprimentar a plateia com um good night, no breve retorno ao Rio, em 1940, na pequena pausa de sua carreira de sucesso nos Estados Unidos. A letra ufanista de Valente exagerava na imagem de um Brasil que teria muito a ensinar aos Estados Unidos, mas em termos de tempero e música. Gravada pelo grupo Anjos do Inferno em 1941, a música só teria repercussão maior na regravação feita pelos Novos Baianos no álbum Acabou chorare (1972), por sugestão de João Gilberto, que abrasileirou o grupo de rock. As músicas interpretadas por Carmen Miranda atenderam ao projeto de Getúlio Vargas de vender ao mundo, a partir da campanha de boa vizinhança com os Estados Unidos, a imagem de um Brasil paradisíaco e sem pecados. A persona extravagante, mistura de cigana com a baiana descrita por Dorival Caymmi em O que é que a baiana tem?, montada pela cantora e atriz, virou outro símbolo internacional do país, e acabou por engessá-la, mais à frente, quando quis se libertar dessa personagem que projetava uma imagem deturpada do que seria a mulher brasileira: branca, de olhos claros, exagerada, kitsch, incondicionalmente simpática e passional. Carmen, que bancava a casa, mas, mesmo assim, e talvez por isso, sofria violência doméstica do marido David Sebastian, tinha que negar publicamente o seu sofrimento. Estava sempre disposta a aparecer sorridente para todos, seja nos shows, nas rádios, no cinema, nos eventos públicos e na imprensa. E aqui cabe acrescentar parênteses sobre a recorrente negação dos direitos das mulheres na música brasileira. Nas letras de diversas canções, em épocas diferentes, elas são retratadas como vilãs que destroem a vida dos homens e merecem castigos: Mulher
indigesta (1932), de Noel Rosa (“mas que mulher indigesta, merece um tijolo na testa”); O ébrio (1936), de Vicente Celestino (“Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou”); Ó, seu Oscar (1939), de Wilson Batista (“Cheguei cansado do trabalho / Logo a vizinha me falou / Oh, seu Oscar, está fazendo meia hora / que sua mulher foi embora e um bilhete deixou / o bilhete assim dizia / ‘Não posso mais / eu quero é viver na orgia’”); Silvia (1986), do Camisa de Vênus (“Ô, Silvia, piranha! Todo homem que sabe o que quer / Pega o pau pra bater na mulher”), Trepadeira (2013), de Emicida (“Minha tulipa, a fama dela na favela enquanto eu dava uma ripa / Tru, azeda o caruru / E os mano me falava que essa mina dava mais do que chuchu”). Em 1956, um ano após a morte de Carmen, o anúncio da construção de Brasília movimentou a música popular da época, inspirando mais de 70 composições que abordavam o advento da nova capital do país, situada no “Brasil profundo”. Algumas delas negavam a futura nova capital, a exemplo Não vou para Brasília (1957), de Billy Blanco: “Não vou pra Brasília, não vou, não vou / Eu não sou índio nem nada / nem uso argola pendurada no nariz / Não uso tanga de pena / e a minha pele é morena / do sol da praia / onde nasci e me criei”. Na década de 1950, Luiz Gonzaga havia se estabelecido como um dos maiores nomes da música brasileira, após o estouro no final dos anos 1940, trazendo para a cultura brasileira a realidade do sofrimento, do desemprego, da fome, seca e miséria que existiam no sertão nordestino. Nos anos 1950, o samba-canção fazia sucesso nas boates cariocas, mas depois seria substituído pela Bossa Nova. As letras do movimento musical, que nasceu distante dos morros, trazia temas que fugiam totalmente à realidade, em letras que romantizavam o Rio, o mar, a praia, a natureza, o amor, o sorriso e a flor. Na década de 1960, com a ditadura militar instaurada, as letras da música brasileira não voltaram a ser exatamente aquelas antigas
crônicas dos acontecimentos, como no começo do mercado fonográfico no início do século 20, mas passaram a trazer críticas veladas, munidas de metáforas, contra a ditadura militar. O regime ditatorial passou a pesar a caneta contra os compositores e a enxergar mensagens cifradas em qualquer canção. Em meio a esse ambiente de opressão sobre a arte, uma música liberada com louvor pelos censores foi País tropical (1969), que atualizou parte da fórmula do samba-exaltação e se tornou um fenômeno no Brasil e, paralelamente, virou um verdadeiro presente para os militares que apreciaram a vibração otimista, potencializada pela campanha pré-Copa de 1970. Naquele mesmo 1969, Aquele abraço, canção de despedida de Gilberto Gil para o exílio em Londres, foi entendida como o enaltecimento da imagem do Rio como um lugar paradisíaco e amigável. Mas o departamento de censura costumava liberar canções mediante alterações feitas nas estrofes. Foi assim que Mestre-sala dos mares, em 1974, de João Bosco e Aldir Blanc, ganhou novas e estranhas estrofes. A música que retratava a Revolta da Chibata, ocorrida entre 22 e 26 de novembro de 1910, sofreu algumas alterações que apontavam para uma forma de negacionismo histórico. A censura não admitiu que um rebelde e negro fosse celebrado, numa canção, como membro da Marinha brasileira. Dessa forma, o “Almirante Negro” João Cândido Felisberto transformou-se em um “Navegante negro”. Já a “Figura de um bravo marinheiro” virou “figura de um bravo feiticeiro”. O motim, em 1910, teve início devido aos castigos físicos que os marinheiros negros recebiam. O estopim foram as 250 chibatadas que expuseram as costelas de Marcelino Rodrigues Menezes. Na década de 1980, com a reabertura política e o fim da ditadura militar, o rock nacional deixou as metáforas de lado e investiu nas críticas mais diretas, expondo situações de pobreza, inflação, miséria e desigualdade social. Essas músicas eram lançadas por bandas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Plebe Rude,
Capital Inicial, Ultraje a Rigor e artistas como Cazuza. Uma exceção vergonhosa foi a banda Ira! Em 1986, o grupo gravou a música xenófoba e fascista Pobre paulista, contra a presença de nordestinos que representavam 56% do total de imigrantes daquele estado do Sudeste, no começo da década. “Não quero ver mais essa gente feia / Não quero ver mais os ignorantes / Eu quero ver gente da minha terra / Eu quero ver gente do meu sangue”. Três anos depois, a capital paulista teria a sua primeira prefeita, a paraibana Luiza Erundina. Na década de 1990, assim como no começo do mercado fonográfico no país, as músicas que faziam maior sucesso no Brasil nasciam das camadas mais populares da população, como a axé music, o sertanejo e o funk. Pode-se dizer que no sertanejo, em especial, havia uma ênfase no romantismo. E no funk, surge uma negação da ordem pretendida pelas ações da segurança do poder público, muitas vezes responsável por um combate ao tráfico de drogas que investe menos em vigilância e inteligência e mais em violência e revanchismo. Em 2007, O rap das armas, que, na realidade, é um funk, trazia, na letra original dos MCs Júnior e Leonardo, um pedido de melhoria na qualidade de vida da favela. Em seguida, ganhou uma versão “proibidão”, que está na abertura do filme Tropa de elite (2007) e se tornou um mega hit com direito a vários remixes nas pistas de dança da Europa. Se no primeiro samba registrado, Pelo telefone (1916), havia uma ironia destinada às autoridades policiais, a versão da dupla Cidinho e Doca fez a mais pura negação debochada da “guerra às drogas”: “Morro do Dendê é ruim de invadir / Nós, com os Alemão, vamos se divertir / Porque no Dendê eu vou dizer como é que é / Lá não tem mole, nem pra / Pra subir aqui no morro até o Bope treme / Não tem mole pro Exército Civil nem pra PM / Eu dou o maior conceito para os amigos meus / Mas Morro do Dendê também é terra de Deus”.
Embora existam relações entre formas de negação e de negacionismo na música popular brasileira, esta segue como um dos produtos artísticos nacionais que mais radiografam as almas de suas diversas camadas sociais, principalmente as mais populares. Afinal, desde que o samba é samba é assim: enquanto os ricos se consideravam detentores dos discursos vigentes e buscavam privilegiar o consumo do suposto refinamento cultural oriundo do exterior, a produção musical fervia nas classes oprimidas, que, sem ter o mesmo acesso, criaram, elas mesmas, uma forma diferente e exuberante de enxergar e expressar o Brasil. CONFIRA
ANTI-INTELECTUALISMO CULTURA CINEMA
* Jornalista, trabalhou no Jornal do Commercio e no Diario de Pernambuco, atualmente é repórter especial e colunista da revista Continente
NECROPOLÍTICA André Duarte *
F
ormulado em 2003 pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, o conceito de necropolítica diz respeito à implementação de estratégias políticas que visam à produção de cadáveres (necro) segundo procedimentos sistemáticos e em escala massiva, os quais se valem do emprego constante e abusivo de aparatos de violência destinados a matar ou impor sofrimento. Estratégias necropolíticas requerem a discriminação de populações que devem viver e populações que devem morrer, a morte sendo a condição para a extração de vantagens políticas e econômicas imediatas. O pressuposto de Mbembe é que diversas realidades políticas contemporâneas podem ser entendidas à luz da noção de necropolítica. O conceito é formulado no marco epistemológico dos estudos póscoloniais. Mbembe é um pensador contemporâneo interessado em refletir filosoficamente sobre as estratégias de poder e violência que orientaram diversos projetos coloniais, sobretudo aqueles baseados no sistema de exploração da mão de obra escrava negra nos grandes latifúndios monocultores. Ao refletir sobre o passado colonial e suas violências intrínsecas, Mbembe estabelece um importante jogo de espelhamento reflexivo entre passado e presente. Afinal, as violências inerentes ao sistema colonial e escravocrata não desapareceram com sua abolição e com os processos de descolonização, mas se transformaram em determinações sociais que estruturam e preservam desigualdades e assimetrias simbólicas: populações descendentes daquelas anteriormente colonizadas continuam submetidas a processos crônicos de violência, discriminação e precarização no mundo contemporâneo. De caráter ensaístico, o texto de Mbembe não apresenta uma definição precisa e bem delimitada sobre o conceito de
necropolítica. Por outro lado, delimita um campo teórico de autores e de problematizações a partir dos quais se possa conferir inteligibilidade a um conjunto díspar de fenômenos pretéritos presentes. Mbembe formulou a noção de necropolítica em diálogo com teóricos dedicados a pensar as relações entre Estado, soberania e o emprego da violência política ao longo dos séculos 19 e 20. Dentre eles destacam-se Fanon e a crítica da colonialidade; Hannah Arendt e seus conceitos de imperialismo e terror totalitário; Giorgio Agamben e seus conceitos de estado de exceção e vida nua; Carl Schmitt e seu conceito de soberania e estado de sítio; e, sobretudo, Michel Foucault e seus conceitos de biopolítica e de racismo de Estado. O aspecto interessante e inovador da noção de necropolítica reside em que, com ela, Mbembe pensa não apenas as violências e abusos cometidos contra populações escravizadas e colonizadas no passado, mas também as violências e abusos que acometem os descendentes daquelas mesmas populações no presente. Deste modo, ele expande o alcance e o aporte teóricos dos conceitos de Arendt, Schmitt, Agamben e Foucault. De fato, aqueles conceitos não haviam sido formulados para compreender o processo de colonização ou para analisar os efeitos duradouros de produção de sofrimento e morte que se abatem sobre populações consideradas como supérfluas e descartáveis, passíveis de ser eliminadas. Articulando Schmitt, Agamben e Foucault, Mbembe pensa a necropolítica em associação com os fenômenos políticos da soberania, do estado de exceção e do biopoder. Na esteira de Schmitt, ele pensa a necropolítica como exercício de um poder soberano que se afirma no ato decisório que suspende a legalidade e quaisquer direitos e, assim, instaura o estado de exceção, situação política na qual se concentra e se acentua o poder de matar indiscriminadamente, sem limitações ou sanções jurídicas. Na via de Foucault, Mbembe associa a necropolítica a um poder de matar cujo exercício depende de uma operação que divide a
população segundo o binômio “nós/eles”, “amigo/inimigo”. Essa divisão obedece à lógica do racismo de Estado subjacente à biopolítica, conceito com o qual Foucault pensou uma importante transformação na forma pela qual se exerce e se justifica o poder soberano estatal de dar morte desde finais do século 18 até os dias atuais. Para Foucault, na era da biopolítica o Estado não exerceria seu poder de gládio para proteger a vida do soberano e garantir a lei e a ordem no interior da comunidade política por meio do confisco da vida e dos bens dos súditos. Por outro lado, num contexto biopolítico o poder soberano de dar morte se implementa em associação com um conjunto de estratégias de governamento da vida de indivíduos e de populações, de tal modo que o cuidado e incentivo das condições vitais de uma parcela da população se faz às custas da morte ou do abandono ao risco da morte de outras parcelas da mesma população. Assim, Mbembe entende a necropolítica como o exercício de um poder soberano que discrimina quem deve viver e quem deve morrer, suspendendo limites e proteções jurídicas a fim de atingir diretamente os corpos de determinadas populações, reduzindo-as ao estatuto de mortos-vivos ou de cadáveres ambulantes, com o quê se mantêm privilégios e vantagens econômicas e políticas para uma minoria. O conceito de necropolítica contempla não apenas as violências sistemáticas praticadas por formações estatais, mas também leva em conta ações mortíferas promovidas por agrupamentos não estatais. Como um conjunto de estratégias destinadas a produzir cadáveres em escala de massas, a necropolítica se distingue de manifestações pontuais da violência, mesmo quando eventualmente brutais, entendidas como um meio para obter um fim determinado, visto que seu exercício é constitutivamente abusivo e exagerado, configurando-se como fim em si mesmo. Seguindo essa linha de raciocínio, o Nazismo seria um exemplo premente de necropolítica, embora outros fenômenos também possam ser mencionados, do terror revolucionário francês aos
horrores da Primeira Guerra Mundial. O aspecto mais inovador da reflexão de Mbembe está em enxergar o sistema colonial escravocrata sob a grade conceitual da necropolítica soberana, definindo a plantation como um campo de concentração em estado de exceção permanente. Seguindo de perto a definição arendtiana do processo pelo qual os inimigos do totalitarismo perderam suas casas, seus direitos políticos e seu direito ao próprio corpo, Mbembe considera que essa condição define com exatidão a situação do escravo. A despeito de algumas diferenças quanto a seu modus operandi no passado ou na atualidade, Mbembe observa que regimes coloniais e de apartheid constituem formas necropolíticas por excelência. Nelas, o poder soberano se exerce suspendendo a lei e impondo o terror por meio do assassinato, da destruição de espaços compartilhados, de infraestruturas e de condições mínimas de vida, tendo o racismo como sua justificação. Nas colônias e sob regimes de apartheid a guerra contra o inimigo é constante e não declarada, o que também significa que ela é ilimitada, pois não se reconhecem laços comuns entre dominadores e dominados. De fato, a própria distinção entre guerra e paz perde sentido nessas condições. Finalmente, a necropolítica também designa as condições em que se dão as guerras hipertecnológicas contemporâneas, com sua rapidez cirurgicamente destrutiva e posta em ação em contextos de absoluta desproporção entre o poderio militar das partes envolvidas. Tais ações de guerra não dependem apenas de exércitos regulares, mas também de milícias urbanas e tropas de mercenários sob o comando de líderes locais, além de firmas privadas de segurança. Trata-se de uma miríade de máquinas de guerra cujo caráter polimórfico permite que elas também se acoplem a interesses econômicos extrativistas e predatórios, levando a fixações ou mobilizações populacionais arbitrárias e violentas. A despeito de reconhecer a importância da noção foucaultiana de biopolítica, Mbembe a considera insuficiente para compreender as várias formas em que a política se vincula incondicionalmente ao
assassinato do outro definido como inimigo, ainda que fictício, a ser eliminado. De fato, se a biopolítica apresenta efeitos mortais derivados da divisão da população entre parcelas destinadas a bem viver e parcelas destinadas ao abandono e à morte, quando se trata da necropolítica somos confrontados com ações e estratégias políticas que visam criar mundos letais, nos quais as populações visadas são definidas como já mortas enquanto em vida. Em outras palavras, enquanto a biopolítica pode apresentar índices de letalidade maiores ou menores, a necropolítica sempre produzirá cadáveres de maneira planejada e sistemática. Além de definir algumas das situações de violência sistêmica nas quais o conceito de necropolítica se aplica, Mbembe também nos convida a pensar outras realidades igualmente pertinentes. Se a necropolítica diz respeito à produção de cadáveres em contextos políticos determinados, cabe considerar que esse resultado poderia ser obtido não apenas por meio de ações governamentais, mas também por meio de omissões. Feita essa ressalva, não seria descabido pensar que ações e omissões governamentais inspiradas por teorias e decisões negacionistas teriam levado a resultados necropolíticos no Brasil, no transcurso da pandemia de covid-19 sob o governo Bolsonaro. LEIA MAIS
AGAMBEN, G. Estado de exceção: [Homo Sacer, II, I]. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. Coleção Estado de Sítio. ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução: Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. CONFIRA
CASO AGAMBEN
DITADURA TORTURA
* Professor e pesquisador da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
NEGACIONISMO José Luiz Ratton *
P
ensar o negacionismo para além dos seus aspectos mais óbvios tornou-se tarefa difícil em tempos de fake news, pósverdade, ignorância motivada, teorias da conspiração, Trump, Orban, Bolsonaro etc. Neste verbete, na tentativa de apresentar as dimensões psicossociais do negacionismo contemporâneo, tomarei como ponto de referência uma interpretação pessoal, desigual e combinada das ideias de Kanh-Harris, Bardon e Friedrichs, que me permitem construir uma posição relativamente coerente do negacionismo contemporâneo. Inicialmente, precisamos entender a conexão entre processos de negação individual e processos coletivos de negação, entendidos aqui como negacionismos. Em ambos os casos, encontramos pessoas enganando a si mesmas e a outras pessoas, mas em escalas distintas. No caso da negação, podemos associá-la a processos individuais de recusa da verdade ou do reconhecimento de fraquezas e desejos. Mas quando tratamos do negacionismo estamos falando de realizações coletivas em que práticas de negação transformam-se em formas completamente diferentes de ver o mundo, indo além da recusa da verdade e produzindo outra verdade, que se pretende superior, busca evitar a publicização de desejos secretos, suposta e provavelmente inconfessos para a coletividade, pois incapazes de acomodar diferenças, alteridade, respeito ao outro. Por mais obtuso que o negacionismo nos pareça, é imperativo reconhecer a variedade de negacionismos modernos e contemporâneos e estabelecer uma taxonomia, ao menos provisória para que sejam entendidos, ao menos analiticamente, em seus próprios termos. Negacionismos diversos são coletividades-seitas distintas: existem aqueles que desafiam qualquer conhecimento estabelecido, outros tantos que são engenheiros e operários de
bolhas negacionistas mais ou menos restritas, milhares de consumidores silenciosos de conteúdos e práticas de tais bolhas e, enfim, mas não finalmente, céticos inveterados, que duvidam de tudo, até do seu próprio ceticismo. Kanh-Harris nos propõe — assumo e expando sua interpretação — ver o negacionismo contemporâneo como um fenômeno pósiluminista. Em outros termos, um movimento-acontecimento de recusa a características centrais e comuns, ao menos em termos normativos, das modernidades alternativas vividas em espaçostempos razoavelmente alinhados. Mas é possível afirmar que as diferentes formas de negacionismo constituem uma reação tanto às inconveniências de muitas das descobertas da ciência moderna quanto às inconveniências, percebidas e acentuadas em momento de crise, dos consensos morais que emergem no que se convencionou chamar de alta modernidade ou capitalismo tardio pós-iluminista. Desta forma, o negacionismo é apenas superficialmente bizarro e patológico. Não se trata de uma disfunção exuberante do capitalismo contemporâneo. Mais ainda: não é uma barreira para o reconhecimento de uma base moral comum; é uma barreira para qualquer forma de reconhecimento de diferenças morais. O exercício contrafatual de pensar o fim do negacionismo coloca para as coletividades negacionistas mais diversas uma situação perturbadora: a explicitação das diferenças morais inconvenientes. Exatamente nesse ponto é possível perceber a ruptura qualitativa entre o assim chamado negacionismo convencional e o negacionismo contemporâneo ou pós-negacionismo. O primeiro buscava argumentos, mesmo que inconsistentes, estapafúrdios e não baseados em evidências, para contrapor-se a instituições como a ciência e o Estado e os consensos científicos e morais, advindos de processos sociais de produção de verdade provisória (no caso da ciência) ou de soluções convencionadas, também provisórias, típicas da pretensão do estado democrático de direito (se e quando ocorrem, em seus diferentes graus).
Os negacionismos “preguiçosos” do trumpismo, do bolsonarismo e do olavismo, entre outros tantos, desfrutam da segurança produzida pelo trabalho sujo e insidioso realizado por gerações de negacionistas, que já criaram dúvidas suficientes e persistentes que têm público cativo, agora mais suscetível e crescente, ainda que limitado e contraditório. Tudo o que Bannon, Orban e a família Bolsonaro fazem é sinalizar vagamente em uma direção negadora, para que sejam acompanhados por turbas ressentidas dos mais diversos matizes — médicos antivacina, advogados antiestado de direito, políticos eleitos antidemocracia, lideranças religiosas sem compaixão — que sinalizam, a partir da autoridade que desfrutam para seguidores e coletividades em situação de desesperança, desespero e desorientação frente a um mundo que não conseguem interpretar e explicar com os termos excludentes aos quais se vincularam historicamente, mas que tinham alto custo de explicitação na esfera pública. O que se deseja que o negacionismo convencional busque explicar é apenas e simplesmente asseverado em caixa alta pelo pós-negacionismo do Twitter. Enquanto o negacionismo é meticulosamente pensado, o pós-negacionismo é instintivo e visceral. Enquanto o negacionismo convencional é disciplinado, o pós-negacionismo é anárquico e violento. A obstinação com que as pessoas podem se ater a noções refutadas pode ser corroborada por muita ciência de boa qualidade produzida na sociologia, na antropologia, na ciência política, na psicologia social, na neurociência. Indivíduos não são apenas entidades racionais que desinteressadamente avaliam evidências e argumentos de forma interessada, mas justa e imparcial. Há, por um lado, uma já reconhecida diferença entre a busca pré-consciente por confirmação das visões existentes, feita de forma mais ou menos intensa por qualquer um de nós, dentro de todas as coletividades às quais pertencemos. Por outro, e este é o ponto central do argumento aqui defendido, há uma tentativa deliberada de revestir essa procura de confirmação como uma busca por uma verdade superior e imutável, como fazem as diferentes famílias e gerações de negacionistas. O negacionismo, tradicional ou contemporâneo,
acrescenta e consolida novas camadas de reforço e de defesa de práticas psicológicas de vinculação grupal, amplamente compartilhadas, com o objetivo (nunca totalmente apresentado, nunca totalmente articulado) de prevenir sua explicitação e suas fragilidades. Bardon sugere um vocabulário e uma lógica que permite desenvolver a apropriação que faço do argumento de Kahn-Harris. Trata-se de cognição (mais do que) quente e de formas de raciocinar, compreender e nomear o mundo mais que do motivadas. Isso certamente torna a mudança nas mentes dos negacionistas ainda mais difícil do que qualquer transformação nas mentes do restante da humanidade supostamente teimosa. Os últimos 15 anos não negam: o negacionismo foi transportado das margens para o centro do discurso público, o que pode ser explicado por muitos fatores, dentre os quais as novas tecnologias. Combinando dúvida e credulidade corrosivas, criando ambientes de excitação emocional máxima, exacerbando a suspeita e alimentando rotineiramente o ódio, os negacionismos contemporâneos auxiliam direta e indiretamente a produção de elevados coeficientes de desconfiança nas instituições modernas e ultramodernas, com atenção especial para a ciência e para a democracia. Finalizo, buscando uma forma adicional de compreender os negacionismos (brasileiros ou não) e enfatizando algumas de suas dimensões psicossociais que estão conectadas com formas de racionalidades distintas, por vezes articuladas. Reitero que as ideias, propostas por Bardon, de argumentação (raciocínio) motivada(o) (motivated reasoning) e cognição quente (hot cognition) são fundamentais e úteis para destrinchar analiticamente os mecanismos de formação e produção de tais processos negacionistas em vários níveis, vinculados a respostas individuais às múltiplas filiações/pertencimentos grupais de cada indivíduo e suas oposições (nomeada de forma simplória como polarização):
I) a formação de identidade individual a partir de adesões/recusas
morais e políticas (a ditadura militar, o Brasil, a família, as forças armadas, as polícias, os EUA, o Ocidente são contrapostos ao PT, ao PSOL, à esquerda, aos comunistas, aos abortistas, à “ideologia de gênero”, aos apologistas das drogas, aos ateus, aos apoiadores da China, de Cuba, da Venezuela e da Coreia do Norte); II) a incorporação permanente de crenças disponíveis/valorizadas
no âmbito dos pertencimentos a grupos e coletividades percebidas como de alto prestígio, integradas por antinegacionistas e exconjuradas pelos grupos negacionistas (a ciência, os defensores dos direitos humanos, o sistema de justiça, a universidade pública e os institutos de pesquisa, o ativismo político progressista); III) a recusa obstinada e permanente a ideias que circulem em grupos e coletividades percebidos como inferiores/rivais (a esquerda, os feminismos, os movimentos LGBTQI+, os movimentos negros, os movimentos indígenas, os ambientalistas etc.). A operação combinada de mecanismos aparentemente paradoxais, de natureza racional e irracional, relacionados aos fatores indicados acima, permite a emergência do que Friedrich chama de racionalidade (dis)torcida, que mesclaria conteúdos borrados de intencionalidade e não intencionalidade. Nas sociedades democráticas, o negacionismo não pode e não será derrotado apenas por via legal, pelo desmascaramento lógico ou por meio de tentativas de desacreditar seus proponentes. Isso porque, para seus defensores, a existência do próprio negacionismo é, em si mesma, um triunfo. A tarefa urgente e articulada dos que prezam a democracia, o estado de direito e a ciência exigirá uma compreensão menos óbvia do fenômeno e demandará a construção de movimentos e práticas ativistas de diversas naturezas, em múltiplos planos da sociedade, mediante ação política abrangente e duradoura. LEIA MAIS
Bardon, A. (2020). The Truth About Denial — Bias and Self-
deception in Science, Politics and Religion, Oxford, Oxford University Press. Friedrich, J. (2014). Useful Lies — The twisted rationality of Denial, Philosophical Psychology 27. Keith-Harris, K. (2020). Denial — The Unspeakable Truth, London, Nothing Hill Editions. CONFIRA
NEGACIONISMO CIENTÍFICO REVISIONISMO E CRIMES CONTRA A HISTÓRIA TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
NEGACIONISMO CIENTÍFICO Simone Petraglia Kropf *
E
ste Dicionário é em si uma evidência de como o negacionismo é tema relevante (e perturbador) no debate acadêmico e público nesse início do século 21 tão marcado pelos sentidos e experiências da crise — sanitária, humanitária, econômica, moral, política. Nosso objetivo é apresentar alguns elementos para a caracterização do fenômeno do negacionismo, com a expectativa de contribuir para a compreensão e o enfrentamento das ameaças que ele representa não apenas para a ciência, mas para a vida social. O termo vem do francês négationisme e surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial para caracterizar o discurso dos que negavam o extermínio dos judeus e outros grupos durante o Holocausto. Posteriormente, o termo passaria a abranger outros alvos, não apenas no domínio da história, mas do conhecimento científico de modo geral, como a correlação entre o uso do tabaco e doenças como o câncer, a teoria da evolução, as vacinas, as mudanças climáticas decorrentes de ações humanas. O agravamento da emergência climática, os conflitos políticosideológicos derivados do avanço de pautas e governos conservadores e a eclosão da pandemia de covid-19 alargaram substancialmente a visibilidade e os significados atribuídos às categorias “negacionismo” e “negacionista”. Dimensionar o léxico epistêmico, social e político a partir do qual elas se propagam e se rotinizam em gramáticas cotidianas exige, justamente, o exercício conceitual e político da delimitação. O negacionismo científico não deve ser confundido com a enunciação de dúvidas, incertezas e controvérsias legítimas, posto que estes são ingredientes fundamentais da produção e da certificação do conhecimento científico. O ceticismo, em sua perspectiva crítica de contraposição ao dogmatismo, foi decisivo na
conformação do método experimental a partir do qual a ciência se constituiu historicamente como empreendimento epistêmico, social e institucional específico. O negacionismo científico também não deve ser visto como resultado da ignorância, mas, ao contrário, como responsável por produzi-la de modo deliberado. Não constitui tampouco um conjunto de alegações exóticas e irracionais amplificadas pelas redes sociais. Não se trata de déficit cognitivo ou informacional. Sua definição se dá por seu caráter intencional e articulado para produzir e disseminar desinformações e dúvidas, por meio de estratégias organizadas com o objetivo de contrariar evidências e alegações consensualmente reconhecidas pela comunidade científica. O negacionismo constitui-se como projeto atrelado a interesses extracientíficos. Ainda que dirigido a temas, a teorias ou a ideias específicas, o ataque à autoridade, aos consensos e às instituições científicas que os vocalizam e os sustentam torna o negacionismo ameaça à credibilidade da ciência como um todo. E, como tal, confronta a própria democracia. No livro Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming (ainda sem tradução para o português e referência obrigatória sobre o tema), os historiadores Naomi Oreskes e Erik Conway estampam já no título a caracterização do negacionismo como negócio, cujo principal produto é a dúvida. A formulação foi feita por um dos representantes do poderoso lobby da indústria do tabaco, na década de 1950, para contestar as já robustas evidências de que o hábito de fumar produzia doenças como o câncer de pulmão. Desde então, as táticas conformadoras da “estratégia do tabaco” seriam adotadas por vários outros “mercadores da dúvida”. Uma dessas táticas é produzir e semear desinformações, fake news e rumores nos meios de comunicação em massa, em especial nas mídias sociais, com vistas a desacreditar uma alegação científica. Sob a lógica dos algoritmos, tais conteúdos se retroalimentam nos circuitos particulares de grupos que, por
diversos motivos, não se identificam com os espaços e os atores da ciência. Legitimado por tais grupos como fonte de autoridade e informações ditas “alternativas”, o discurso negacionista fragiliza não apenas as ideias específicas às quais se contrapõem, mas as próprias fronteiras que demarcam a ciência da opinião. Investindo em veículos e formatos de comunicação direta com o público, o negacionismo desqualifica a figura do cientista e suas ideias como inacessíveis ou de difícil apreensão pelas “pessoas comuns”. O negacionismo também atua a partir de espaços e discursos pretensamente científicos, mas que não são aqueles efetivamente reconhecidos e chancelados no mundo acadêmico. É o caso dos think tanks e de publicações que não seguem os critérios de certificação da comunidade científica, como a revisão por pares. Em alguns casos, o discurso negacionista é propagado por cientistas que se valem de suas credenciais para confrontar consensos firmados em áreas do conhecimento nas quais não possuem expertise. Em ambos os casos, tática recorrente é a produção de falsas controvérsias, geralmente encenadas em espaços midiáticos de grande visibilidade, em relação a temas que, na realidade, não são controversos no âmbito acadêmico. Contraexemplos, anomalias, lacunas ou proposições específicas são amplificados com vistas a desacreditar o conjunto de evidências que sustentam a alegação que se quer fragilizar. Sob o pretexto de ouvir “os dois lados” de um suposto debate, são confrontadas posições que, na verdade, não são passíveis de equivalência. Assim, teses negacionistas se apropriam da ideia de “controvérsia” (dimensão legítima da produção do conhecimento) para reivindicar uma credibilidade que não possuem. A falsa simetria tem sido uma prática extremamente danosa não apenas à ciência, mas também à política. A persistente defesa do uso da cloroquina/hidroxicloroquina para tratamento precoce da covid-19, a despeito do amplo consenso científico sobre sua ineficácia, é um trágico exemplo brasileiro de falsas controvérsias alimentadas por interesses políticos, ideológicos e/ou econômicos.
Atributo comum a diversos negacionismos, que lhes permite se retroalimentar mediante o ethos comum da desconfiança, é o recurso a teorias e discursos conspiracionistas, que imputam à ciência interesses e motivações político-ideológicas. A polarização política, que remonta à Guerra Fria e ganha novos contornos com a ascensão de governos autoritários e de extrema direita no século 21, exponencia a lógica conspiratória que se vale de informações falsas ou distorcidas para deslegitimar o conhecimento e os que o produzem. Um dos exemplos mais recentes foram as fake news de que vacinas contra a covid-19 produziriam alterações no DNA, usariam células de fetos abortados ou implantariam microchips para controlar as pessoas. Sob a aparente irracionalidade, propagam-se, de modo eficaz, a insegurança, a desconfiança e o medo. Estes são sentimentos úteis aos dispositivos da negação e dos divisionismos que, como mostra o negacionismo do clima, são efeitos e ao mesmo tempo motores de uma “incompatibilidade de mundos” cada vez mais radical em vários sentidos. O negacionismo que confronta a ciência é fundamentalmente um projeto político, organizado e financiado por grupos que, por motivos diversos, vêem seus interesses contrariados por evidencias e conhecimentos científicos. Tais grupos englobam desde corporações e lobbies empresariais avessos a medidas de regulação que imponham limites a seus respectivos mercados até grupos políticos ou religiosos que recusam orientações ou medidas coletivas que segundo eles “ferem” a liberdade individual. Incontornável nos debates sobre o negacionismo é a pergunta sobre como enfrentá-lo. Muitas pessoas atribuem seu avanço a uma crise generalizada da verdade e, consequentemente, da própria ciência. A assim chamada “pós-verdade”, objeto de discussão nos meios acadêmicos desde fins do século 20, foi eleita palavra do ano em 2016, quando a eleição de Donald Trump parecia levar o mundo à era dos fatos alternativos e das fake news. No Brasil, a dimensão de crise também teve seu marco político com o golpe contra a presidente Dilma Rousseff, perpetrado, vale
dizer, pelos que negavam as verdades que ela fez revelar pela comissão criada para investigar os crimes da ditadura civil- -militar. De lá para cá, o léxico da crise só se ampliou, ganhando dimensão trágica no governo de extrema direita de Jair Bolsonaro. Entretanto, estudos realizados no Brasil e em vários outros países indicam que, a despeito de resistências a ideias ou teorias específicas, a grande maioria das pessoas valoriza a ciência no seu sentido mais geral. Do quê, então, se alimenta o negacionismo? Como vimos, não devemos menosprezar suas estratégias para vender a dúvida, o descrédito, a incerteza. Todavia, até mesmo para não sobrevalorizarmos o sufixo que imputa à negação o caráter de movimento, ou ao menos para contextualizar seu alcance, precisamos refletir sobre aqueles que compram tais produtos, suas motivações e as circunstâncias sob as quais o fazem. Uma sociologia da confiança, no que se refere aos sentidos, valores e práticas pelas quais ela se expressa concretamente na vida das pessoas, certamente contribuirá para dimensionar o “mercado” da negação. Mas por que confiar na ciência? Ao responder à pergunta que dá título a outro livro seu, Oreskes afirma que os motivos para essa confiabilidade resultam não apenas da autoridade epistêmica conferida pelo método científico. Eles derivam sobretudo dos processos institucionais e sociais que garantem o caráter consensual da ciência, como a capacidade de se autoavaliar e se autocorrigir mediante a crítica e a revisão segundo critérios, práticas e espaços regulados pela comunidade científica. Não à toa esses são alvos preferenciais dos negacionistas. A defesa da ciência nesses termos não significa, naturalmente, uma visão ingênua e acrítica que a coloca pretensamente “acima” da sociedade. Ao contrário, implica a valorização de processos sociais, como a diversidade e a inclusão, que permitam balancear e corrigir vieses e assim fortalecer a própria objetividade da ciência. Promover a confiança na ciência implica reforçar seus mecanismos e espaços de legitimidade internos, mas também suas
conexões com a sociedade. A ciência, ainda que demarcada por atributos epistêmicos próprios, é uma atividade e uma instituição da vida social. É nas dinâmicas dessa vida social, em suas conjunturas particulares, que devemos identificar o solo concreto em que se propagam as dúvidas. Para além dos negacionismos específicos, o aprofundamento da crise social e política — e isso fica muito claro no caso brasileiro — tem sido terreno fértil para a conformação de um negacionismo estrutural, cujo produto mais valioso é a própria ideia de negação. Trata-se da negação como ethos e elemento de identidade para os que, por distintos motivos, reagem a um “sistema” ou a visões de mundo dos quais se sentem excluídos ou que percebem como ameaçadores. A despeito de uma percepção pública positiva quanto ao valor da ciência, é nessa arena concreta de disputas, que se contrapõem posições e pertencimentos (sociais, políticos e psíquicoafetivas) diversos, que o conhecimento, os atores e as instituições que representam a ciência são postos em xeque. O anti-intelectualismo nutrido por governos de extrema direita é, nesse sentido, um dos elementos decisivos para a mobilização negacionista que busca recrutar os que se veem como “o outro lado” em formas de vida referidas aos espaços e aos valores do conhecimento. No caso do governo de Jair Bolsonaro, o negacionismo estrutural não só expressa interesses políticos e ideológicos, mas se institucionaliza ele próprio enquanto necropolítica, que instrumentaliza inseguranças e medos para rotinizar o caos e a destruição que lhes servem de sustentáculo. Avançar no entendimento e no enfrentamento do negacionismo científico como projeto que ganha concretude e viabilidade na arena política nos convida a refletir sobre o lugar social dos cientistas e dos distintos grupos para os quais autoridade e os conhecimentos que produzem fazem (ou não) sentido. Devemos refletir ainda sobre o papel decisivo dos especialistas (experts) que fazem a mediação entre a ciência, a sociedade e a vida pública, veiculando informações baseadas em evidências científicas inclusive como
subsídio a tomadas de decisão. O desafio, entretanto, vai muito além de ampliar os circuitos da informação e reforçar a credibilidade pública dos que produzem e falam em nome da ciência. Trata-se de construir novas possibilidades para que as pessoas se engajem efetivamente com o conhecimento enquanto projeto coletivo, identificando-se com seus valores e sentindo-se contempladas com os benefícios reais que ele lhes é capaz de oferecer. O enfrentamento da pandemia da covid19, que imprime à ciência forte apoio e visibilidade pública e desperta elevadas expectativas por parte da sociedade, constitui oportunidade ímpar para a construção de vínculos mais sólidos entre ciência e sociedade e também para a criação de novos mecanismos para tornar a pesquisa científica e o mundo acadêmico mais abertos e responsáveis socialmente. Vale destacar que a sociologia da ciência tem papel fundamental nesse processo, não apenas em seus circuitos acadêmicos, mas na vida pública. Alguns temem que explicitar a dimensão social da ciência e sua relação com a política alimente a tática negacionista de desqualificá-la como “mera opinião”. No entanto, lançar luz sobre a relação entre ciência, política e sociedade é imprescindível para a defesa dos espaços que imprimem institucionalidade e da expertise que garante validade epistemológica aos consensos científicos. A ciência confrontada pela dúvida não é uma ciência “etérea”, mas uma ciência situada, inscrita num tecido de relações sociais do qual ela constitui importante ator. Sua defesa nos conclama à atuação na vida pública. É na articulação entre ciência e sociedade que se deve, mais do que nunca, construir o projeto coletivo que, em combate à negação, afirme a profunda interpendência entre conhecimento e democracia. LEIA MAIS
ORESKES, N.; CONWAY, E. Merchants of Doubt: how a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming. New York: Bloomsburry Press, 2010.
ORESKES, N. Why trust science? Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2019. ROQUE, T. “O negacionismo no poder. Como fazer frente ao ceticismo que atinge a ciência e a política.” Piauí, São Paulo, n. 161, fev. 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
GUERRAS DA CIÊNCIA NEGACIONISMO ESTRUTURAL ORESKES, NAOMI
* Professora e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
NEGACIONISMO CLIMÁTICO Carlos R. S. Milani *
A
o final dos anos 1980, cientistas reunidos no âmbito do International Panel on Climate Change (IPCC) produziram amplo consenso em torno da alta probabilidade de a raiz das mudanças climáticas estar na ação humana. Desde então, convenções e protocolos climáticos foram assinados, políticas nacionais foram definidas, compromissos foram assumidos, cenários de transição energética foram delineados, organizações da sociedade civil e redes de ativismo climático se difundiram nos espaços políticos nacionais e transnacionais. Todo esse movimento veio também acompanhado de uma reação: reforçaram-se as redes e as dinâmicas políticas de obstrução ao reconhecimento das mudanças climáticas como um problema social, econômico e político, do local ao global. A política obstrucionista assume diversos formatos: negacionismo, ceticismo, protelação, difusão de fake news, obscurantismo e políticas de deslegitimação dos métodos científicos, entre outros. Assim, o negacionismo climático pode ser considerado como uma ferramenta política, usada nos âmbitos nacional e transnacional, a fim de deslegitimar a ciência, as políticas de regulação (via legislação ou via mercado), as mudanças de padrões na produção e na circulação e consumo de bens e serviços na economia capitalista. Simultaneamente, esse negacionismo é também uma ruptura com a racionalidade moderna de separação entre os temas religiosos e científicos, entre as esferas da fé individual e da vida coletiva. Por meio do negacionismo climático, movimentos religiosos também produzem suas próprias narrativas e tentativas de explicação sobre o fenômeno das mudanças climáticas e o antropoceno. Do ponto de vista conceitual, é importante esclarecer que negacionismo e ceticismo não são sinônimos. O ceticismo é uma
postura filosófica saudável praticada no mundo científico, mas igualmente por indivíduos que cultivam a dúvida diante das muitas incertezas que nos cercam. Ao tentar explicar as mudanças climáticas não por meio da superstição e de dogmas religiosos, o ceticismo genuíno faz parte do processo criativo da ciência. O ceticismo move cientistas e defensores da razão na busca por evidências, uma vez que o método científico não busca a certeza ou a verdade. O relatório do IPCC de 2007, por exemplo, afirma que há 90% de chance de que as mudanças climáticas sejam antropogênicas, isto é, que tenham raiz na ação humana. É evidente que existem partes obscuras sobre as causas e a trajetória das mudanças climáticas, mas existem muitas outras absolutamente claras e resultantes de convergências científicas. O negacionismo é distinto do ceticismo, uma vez que se recusa a acreditar em algo apesar das provas acumuladas de sua existência. Não se trata de buscar entender o fenômeno, mas de negar suas evidências. O ceticismo faz bem à ciência e à sociedade, o negacionismo não. Enquanto o ceticismo é criativo, o negacionismo silencia ou busca silenciar. Negar pode dar ao sujeito um sentimento de proteção da dor e das dificuldades de ter de confrontar-se com um fenômeno tão complexo como as mudanças climáticas, cujas soluções mobilizam várias escalas e inúmeros agentes. Negar é um mecanismo de defesa, é uma forma de proteção contra algo que pode gerar dor ou sofrimento, mas por quanto tempo? A partir de quando negar pode se tornar uma patologia, no sujeito e na sociedade? O que negam os negacionistas climáticos? Eles negam a tendência de aquecimento global associada às emissões de CO2, negam a causa antropogênica das mudanças climáticas, negam seus impactos (considerando-os mais benéficos do que nefastos), e afirmam que o IPCC é uma fraude científica. Existem basicamente três tipos de postura negacionista, de acordo com Stanley Cohen: o negacionismo literal, afirmando que algo não aconteceu ou não é verdade; o negacionismo de interpretação, dizendo que as mudanças climáticas seriam efeito da natureza, que não haveria
urgência ou que encontraremos facilmente uma solução; e, por fim, o negacionismo de escolha, quando os indivíduos escolhem negar por seus valores, suas crenças ou sua ideologia. Embora tenha suas origens sobretudo nos EUA e no Reino Unido, o negacionismo climático tem-se difundido, sobretudo por meio de think tanks conservadores, em países como Alemanha, Austrália, França, países nórdicos. Mais recentemente, esse negacionismo tem-se disseminado em países em desenvolvimento, inclusive no Brasil. Ao longo dos anos 1980, o campo da política internacional se mobilizou: em 1985, em Viena com uma conferência de experts e com a criação do IPCC, em 1988. Quase concomitantemente, em 1989, criou-se o George Marshall Institute e a Global Climate Coalition, ambas organizações negacionistas. Muitos analistas estudaram as origens do negacionismo no mundo anglo-saxão, a exemplo de Riley Dunlap, Naomi Oreskes e Erik Conway. No Brasil, algumas pesquisas como as de Jean Miguel e Rose Marie Santini apontam para o modo como se constroem os pilares narrativos do negacionismo: “o governo federal vai fazer a Amazônia ser boa de novo”; “o exército é a proteção da Amazônia”; “o Agro protege a Amazônia”; “os incêndios não são tão numerosos”; ou “tudo não passa de uma articulação internacional de interesses escusos” — são algumas das ideias e narrativas empenhadas em difundir o negacionismo climático no país. São inúmeros os efeitos do negacionismo climático sobre a política e as interfaces entre o negacionismo e a ascensão de políticas antidemocráticas em muitos países do Norte e do Sul. O discurso negacionista participa dos modos como a democracia vai-se desconstruindo, atuando principalmente por meio das redes sociais e de blogs na internet. Ele é coadjuvante dos processos de crise da representação e reforça o papel do neoliberalismo como razão moral e política. Como outros negacionismos, o negacionismo climático adota posturas de confrontação e de negação das mudanças climáticas e de sua gravidade. Seus agentes são profissionais da controvérsia, geram e difundem fake news, acreditam em teorias da conspiração. Também mobilizam falsos
especialistas e procuram difundir mensagens que esperam o impossível dos cientistas: a certeza e a verdade. E por que o “negacionismo” persiste? Porque muitos de nós temos medo de que o nosso modo de vida seja insustentável. Porque talvez saibamos que as respostas aos problemas e aos desafios trazidos pelas mudanças climáticas implicam reduzir o crescimento econômico. Porque permite a alguns escapar deste mundo intolerável. Porque coincide com o desejo de alguns de impedir o avanço da regulação pelos estados (taxas, controles sobre emissões, educação ambiental, mudança de padrões de consumo e estilos de vida). Porque boa parte da mídia insiste em tratar todos os temas de sua pauta como se tivessem sempre e apenas dois lados (os que acreditam nas causas antropogênicas das mudanças climáticas e os que as negam), contribuindo assim para transformar as mudanças climáticas em um campo de batalha de muitas falsas controvérsias. LEIA MAIS
COHEN, S. States of denial: knowing about atrocities and suffering. Cambridge, UK: Polity, 2001. DUNlAP, R. “Climate change skepticism and denial: an introduction.” American Behavioral Scientist, [S. l.], v. 57, n. 6, p. 691-698, 22 fev. 2013. ORESKES, N.; CONWAY, E. M. Merchants of doubt. New York: Bloomsbury Publishings, 2019. CONFIRA
ORESKES, NAOMI PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) POLÍTICA
* Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
NEGACIONISMO DEPENDENTE Jean Daudelin * Maria Celina D’Araujo **
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relação do presidente Jair Bolsonaro com os Estados Unidos levou ao paroxismo a condição do Brasil como país periférico não apenas na economia e na academia, mas também na política. Pela primeira vez um presidente da República alinhava-se, sem restrições, ao governo norte-americano representado por um presidente populista e antidemocrático, Donald Trump (2017-2021). Não se tratava de um alinhamento com compensações negociadas, mas apenas a subordinação subserviente a um governo distante das raízes norte-americanas, que cortejava a supremacia racial, incentivava a violência interpessoal e institucional e a polarização política. Trump, como presidente, propunha o conflito radical, até mesmo armado, como regra para o poder. Era, também, porta-voz de um novo tipo de nacionalismo, desta feita denominado antiglobalização de confronto. O confuso projeto trumpista articulou dois negacionismos. O primeiro era uma negação discursiva que ignorava a existência de realidades que não se enquadrassem com sua visão de mundo e com os interesses de seus seguidores. Os fatos eram vistos de forma enviesada, a verdade relativizada, a democracia definida apenas como relação de força, a covid negada assim como a ciência. Essa visão fazia a apologia do racismo e do sexismo, deplorava a declínio demográfico dos brancos, negava a mudança climática e seus impactos no planeta. Ironizava a necessidade de energias limpas e culpava a globalização pela possível desindustrialização norte-americana. Multiculturalismo, questões de gênero, feminismo eram tratados como desvios antiamericanos. Por trás disso, estava a denúncia do declínio dos Estados Unidos como potência em decorrência das armadilhas da China e de uma conspiração comunista internacional. Um tsunami verborrágico para
produzir uma realidade alternativa. O segundo negacionismo era ativo, concreto. Foi acionado para destruir a realidade não desejada e para atuar como se essa realidade não pudesse existir. Daí a corrida armamentista para reverter o que entendia ser o declínio produzido pelos governos fracos que o antecederam, o discurso isolacionista e o protecionismo econômico para combater a anunciada desindustrialização do país. Da mesma forma, descredenciava as normas de proteção ambientais e abandonava o acordo de Paris, reafirmando superficialidade do tema da destruição da natureza. O racismo era emblemático nas propostas concretas para o fechamento das fronteiras e nos ataques aos imigrantes. Os Estados Unidos nasceram como uma nação de imigrantes, vindos de todas as partes do mundo, a quem Trump atribuía o fracasso nacional desde que esses imigrantes deixaram de ser apenas brancos. Isso tudo tinha que ser negado, eliminado da realidade empírica por meio da destruição da interdependência cultural, da negação das vantagens do multiculturalismo da sociedade americana e do embargo à entrada de novos imigrantes e, especialmente, de refugiados. Os dois negacionismos, como retórica e como prática e, em ambos os casos, com exaltação da violência, completavam-se e serviam de paradigma para aprendizes de ditadores focados no anticomunismo e no combate ao marxismo cultural. Somavam um conjunto de medidas que enaltecia um nacionalismo de recorte autoritário e uma reversão de costumes comportamentais visando a valorizar a sociedade machista, supremacista e o uso da violência policial e militar. A biografia política de Bolsonaro comportava muitos dos valores trumpistas e até os exagerava. Ele se notabilizou na política por defender a tortura, a ditadura militar, a misoginia e a intolerância com a diversidade cultural e religiosa. Como presidente, precisava de um líder internacional para referendar sua atualidade e oportunidade. Nesse sentido, Trump era seu alter ego perfeito.
Bolsonaro optou por ser um factotum de Trump com a desvantagem de comandar um país periférico mergulhado em crise fiscal, com altas taxas de desemprego e sem segurança jurídica para investimentos. Aproveitou-se, por certo, do fato de que iria comandar uma democracia excludente, extremamente desigual, com enormes margens de subcidadania, vistas por ele e seus aliados, como ameaça aos que têm o direito a ter direitos. Fez uma campanha política anunciando ser liberal na economia, porque isso agradava aos mercados, mas sem convicção a esse respeito. O mais importante na aliança com Trump era encontrar um argumento de autoridade para o projeto político pessoal antidemocrático e militarista que se propunha a implantar. Trumpismo seria a contraface do bolsonarismo. É preciso ficar claro, entretanto, que não houve uma aliança claramente costurada entre Bolsonaro e Trump. Houve apenas um movimento espontâneo para aderir ao mais importante governo do mundo cujo mandatário impressionava pela riqueza, posições reacionárias e grosserias com as mulheres e cujo duplo negacionismo se encaixava naturalmente com a visão e o projeto que Bolsonaro tinha para o país. Aliança pressupõe acordo entre as partes. Nesse caso houve tão somente uma submissão ou uma servidão voluntária para usarmos a clássica definição de Étienne de La Boétie. Foi a mais expressiva manifestação da dependência do Brasil aos Estados Unidos, ainda que focado em um presidente específico. Bolsonaro viu em Trump um luminar para expressar seu ódio à China, um país de partido único com economia capitalista bem-sucedida, bem como sua desaprovação às mudanças de costumes que desvalorizavam o homem hétero como guia da família tradicional e a mulher “prendada e do lar”. Sintetizando, tentava negar duas mudanças fundamentais no mundo recente: de um lado, possíveis alterações no eixo econômico-político mundial e, de outro, transformações nos valores. As críticas à globalização foram a argamassa inicial a unir os dois presidentes. Lembre-se, contudo, de que nos anos 1990, quando a palavra foi associada ao conceito de internacionalização dos
mercados, as principais resistências a essa nova ordem vieram do campo das esquerdas dos países em desenvolvimento. A globalização foi então entendida como a subordinação dos mercados mundiais aos ditames do “império norte-americano”. No entanto, pela boca de Trump, em 2016, o conceito foi invertido e demonizado: o grande perdedor eram os Estados Unidos. Esse “ente” chamado globalização passou a ser responsável pelas perdas no dinamismo da economia norte-americana e na especificidade cultural do país. O inimigo tinha agora uma cara definida: a China e os imigrantes. Bolsonaro também elege a China como paradigma do mal. É o inimigo principal, o “inimigo comunista” que quer colonizar o Brasil e a América Latina. Mas, ao contrário de Trump, que tinha como lema fazer a América grande de novo, isolando-a do mundo, Bolsonaro é um antiglobalista que queria o Brasil atrelado e dependente da vontade do presidente da maior potência mundial: no seu delírio negacionista, intenta até negar soberania do Brasil. Em toda a história republicana, quando os investimentos internacionais no país se intensificaram e diversificaram, o Brasil, por meio de parte do governo e de setores de intelectuais, sempre se notabilizou pela defesa de princípios nacionalistas — com todas as implicações contraditórias que esse conceito possa ter. Primeiro contra os ingleses, principais investidores na infraestrutura de transportes (trens) e exploração de recursos naturais (ferro, por exemplo). Depois, contra os norte-americanos cuja presença, depois da Primeira Guerra Mundial, se dá por meio de bancos e empresas industriais e de serviços variadas. O tom nacionalista da economia brasileira ganhou força a partir dos anos 1930 mediante várias políticas públicas visando a industrialização por substituição de importações, com grande aporte de capital estatal. A palavra de ordem era soberania, ao contrário da vassalagem deliberada que Bolsonaro buscou junto ao governo Trump. De fato, os Estados Unidos sempre alimentaram parte do imaginário brasileiro como exemplo de um país que soube construir
uma história de poder, riqueza, liberdade e, para alguns, direitos. De outra parte, foram associados ao Tio Sam, homem de péssima aparência pessoal, avarento, mordaz e sem escrúpulos. Foi nesta última acepção que grande parte das abordagens políticas e econômicas os invocaram no cenário político nacional quando se tratava de manifestações de rua em prol da nacionalização da economia nacional. A maior delas foi a campanha “O petróleo é nosso” nos anos 1940/50. Nos anos seguintes os movimentos nacionalistas ganharam mais força entre estudantes, sindicatos e parlamentares tendo na Frente Parlamentar Nacionalista seu grande símbolo. Fora das manifestações de rua, se tomarmos projetos e ideais de políticos e estadistas como Artur Bernardes e Getúlio Vargas veremos a preocupação com a construção de um país soberano com “desenvolvimento autônomo”. Embora não fossem hostis ao capital estrangeiro, ambos tinham apreço declarado pela autonomia do país em suas grandes decisões e em seu alinhamento internacional. Bolsonaro, ao contrário, buscou fazer do Brasil um epifenômeno deliberado das diretrizes de um mandatário norteamericano precariamente respeitado no plano internacional. Nosso passado de movimentos nacionalistas, dentro da lógica bolsonarista, é hoje patrimônio dos comunistas. A boa política econômica e a correta política externa seria, no caso bolsonarista, aquela que fosse um apêndice dos desígnios de um mandatário externo que se propunha a dominar o mundo isolando a China e negando os direitos humanos. Nesse contexto, o Brasil de Bolsonaro seria um país dependente, tutelado politicamente por uma potência estrangeira. Um dominado em posição ideológica confortável, de joelhos aos pés dos mais ricos e mais retrógrados cumprindo seu destino de nação dependente, atrasada, antidemocrática, ditatorial e militarista. A derrota de Trump, em 2021, para o bem do Brasil, foi uma derrota para Bolsonaro em sua política externa e isolou ainda mais o Brasil. Bolsonaro continuou se movendo pelo ódio à democracia e à vida, negando a seriedade da covid-19 e a eficácia das vacinas. Nesse aspecto do negacionismo
virou um pária: nenhum ditador pelo mundo o acompanhou em um projeto genocida tão consistente. Como pária mundial, Bolsonaro segue, no plano interno, justificando seu projeto como freio ao “retorno” do comunismo ateu e imoral com a esperança sebastianista de que o trumpismo ainda triunfará. CONFIRA
NEGACIONISMO NEGACIONISMO ESTRUTURAL
*Professor e pesquisador da Carleton University (Ottawa) ** Professora e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)
NEGACIONISMO ESTATÍSTICO Alexandre de Paiva Rio Camargo *
P
ara compreendermos o negacionismo estatístico como fenômeno historicamente novo e recente, relacionado à desinformação, é preciso primeiro retroceder no tempo e diferenciálo de formas convencionais de desconfiar dos números ou de manipular intencionalmente a contagem da população. Ao lado da padronização dos pesos e medidas e da harmonização do sistema de horários, o século 20 viu nascer a comparação estatística dos diferentes países em um espaço global, permitindo que sequências de atividades humanas fossem sincronizadas no tempo e no espaço. Esse movimento, contudo, não foi pacífico. Os primeiros censos nacionais foram vistos com grande reserva pelos setores populares, temerosos de que a extensão do monitoramento estatal resultasse em aumento de impostos e recrutamento forçado. Um caso limite é o Brasil, onde esse medo deu lugar a insurreições, como a revolta dos marimbondos, de 1851, que impediu a implantação do registro civil e a realização do primeiro censo geral, face aos rumores de que tais iniciativas viabilizariam a reescravização dos libertos. Acostumada a um Estado que tradicionalmente coagia e extorquia recursos de forma hostil, a população se rebelou diversas vezes contra as iniciativas de secularização e racionalização da vida social, como testemunham, entre outras, a revolta de quebra-quilos (1876) e o levante de Canudos (1897). Nesse quadro, a desconfiança da população se dirigia ao Estado, atingindo os números e os censos de forma secundária. À medida que os Estados aumentam sua presença física nos espaços nacionais, e passam a ser amplamente reconhecidos pela sua autoridade para resolver conflitos, distribuir recursos e garantir direitos, a estatística torna-se um meio essencial de construção da
esfera pública. Politicamente, os números alinharam o exercício da autoridade com as crenças e os valores dos cidadãos, fornecendo um contrapeso ao poder discricionário dos governantes, ao obrigar que suas decisões se submetessem a técnicas analíticas e protocolos objetivos. Economicamente, as estatísticas ajudaram a construir o mercado como esfera autônoma em relação ao Estado. De um lado, basearam a regulação das tarifas cambiais e a gestão das moedas nacionais. De outro, permitiram conhecer os efeitos da variação dos preços sobre os comportamentos de vendedores e compradores, orientando a ação econômica e a formação de uma legislação antitruste. Apesar dessa vocação para aumentar o controle público sobre os atos de governo e os abusos à ordem econômica, persistiu entre pequenos grupos uma visão conspiratória, que imputa à estatística a suspeita de ocultar a realidade em benefício dos poderosos. Em parte, esse discurso pressupõe que, por depender do financiamento e da certificação do Estado, censos e estatísticas se tornam reféns de uma “razão de Estado”, com objetivos e finalidades secretos ou confidenciais. A famosa fórmula atribuída a Benjamin Disraeli, “existem três tipos de mentiras: mentiras, mentiras malditas e estatísticas”, assim como a do Marechal Foch em 1918, “as estatísticas ganharam a guerra”, é o preço inevitável pago pela estatística por formar com o Estado um fenômeno de dois lados, as duas faces de Janus, uma numérica, a outra armada. Tal atitude encontra respaldo em precedentes históricos de manipulação sistemática de dados, que, no entanto, constituem episódios específicos, ligados a experiências de regimes autoritários ou totalitários. São conhecidas as situações em que as estatísticas foram utilizadas para restringir a mobilidade e promover o genocídio de populações. Países de independência recente e em guerra civil podem ocultar dos números oficiais a violência praticada contra minorias étnicas. Em Ruanda, centenas de milhares de Tutsis foram massacrados, desaparecendo do registro civil e do censo realizado durante e após o conflito, que nada reportaram sobre o extermínio de 1994, estimado em 10% da população total. Em Burundi, o
genocídio seletivo que matou mais de cem mil Hutus, entre maio e junho de 1972, foi mascarado pelo censo de 1979, que inventou um declínio gradativo no crescimento populacional ao longo do decênio, de modo a tornar os números coerentes com a série histórica. Já na Alemanha do Terceiro Reich, os números não se limitaram a silenciar a eliminação em massa diante da comunidade internacional. Ao contrário, contribuíram para colocar em marcha a engrenagem da “solução final”. O censo de 1939 definiu como judeu toda pessoa que tivesse ao menos três avós “judeus completos” e como “judeu mestiço” toda pessoa que tivesse um ou dois avós assim definidos — um avô sendo considerado judeu se pertencesse à comunidade religiosa judaica. A identificação pela separação entre raça e religião teve por objetivo monitorar a diminuição da população judia, fazendo do censo um meio de avaliação da eficácia das medidas antissemitas. Estes casos emblemáticos apontam para uma primeira forma de negacionismo, que consiste em negar às minorias étnicas, raciais e religiosas o direito à existência e à mobilidade. Mesmo em tempos de paz, os registros administrativos (de delegacias, hospitais, escolas, tribunais) de que dependem os censos e as estatísticas, têm sido usados pelas autoridades governamentais para cercear a liberdade de grupos sociais, como, por exemplo, na China comunista, na África do Sul do apartheid e na Rússia czarista e soviética. Em seu conjunto, as experiências autoritárias demonstram que a manipulação das informações quantitativas por governos interessados em obter vantagens políticas ao custo da confiança pública nas estatísticas e nas instituições deve ser considerada uma ameaça contra a qual as democracias devem se precaver. A história recente mostra que um sistema estatístico em que a população não confia dificilmente tem êxito a longo prazo. Há consenso de que, para gerar a confiança, as autoridades responsáveis precisam: fornecer sigilo aos informantes; proteger seus dados pessoais; respeitar a autonomia dos corpos técnicos; incluir representantes da sociedade civil na decisão sobre o que
contar; e garantir ampla transparência a todo o processo de produção dos números oficiais. Nas democracias contemporâneas, tais medidas permitem contornar os riscos potenciais implicados na coleta de informações delicadas sobre identidade — como religião, sexualidade e etnicidade —, especialmente se as políticas públicas se basearem nesses mesmos dados para mitigar a desigualdade e melhorar as condições de vida de grupos marginalizados. Por isso, o debate atual nas democracias consolidadas passa pela superação das práticas de subcontagem seletiva, através do aumento crescente do volume de dados disponíveis sobre as minorias. Nos Estados Unidos, por exemplo, censos e indicadores ainda dizem pouco sobre a saúde dos agrupamentos indígenas, em aspectos como suicídio, doenças crônicas, alcoolismo e obesidade. Na França, país em que a etnicidade está associada ao problema da migração e não à diversidade cultural, as pressões para visibilizar a discriminação racial, embora redobradas, ainda não surtiram efeito sobre o censo, que permanece fiel à tradição republicana de não “dividir” os cidadãos ao classificá-los pela identidade. Nesses casos, a disputa aberta sobre critérios censitários evidencia os desafios que cercam a efetivação dos direitos de cidadania, historicamente negados a populações periféricas, e a importância da estatística nessa efetivação. Enquanto as democracias liberais são pressionadas pelos movimentos sociais a estender seu peso político pela demonstração de sua grandeza numérica, a ascensão da nova direita global, na esteira da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, trouxe à luz uma nova forma de negacionismo estatístico. Não se trata agora de monitorar o genocídio ou ocultá-lo dos dados oficiais, como na versão totalitária; tampouco de manter a subrepresentação das minorias, ou de intervir nas agências de estatísticas de modo a melhorar artificialmente a performance dos governos. O fenômeno é novo porque a estratégia negacionista consiste precisamente em minar a confiança pública nos números, até então apenas um efeito colateral das tentativas de maquiar as informações sobre a economia e a sociedade.
As agências de estatística são atacadas e deslegitimadas da mesma maneira que a imprensa, a ciência e a academia, enquanto instâncias de formação dos consensos sobre a verdade. A retórica negacionista depende desse alvejamento contínuo para dar validade à realidade fictícia a partir da qual pretende falar, insuflando antagonismos beligerantes e justificando medidas de exceção. Nos Estados Unidos de Trump, tais ataques se somaram às intensas pressões para que o Census Bureau introduzisse uma pergunta sobre cidadania em seu próximo levantamento. Enfraquecida pela imediata reação e derrotada pelo resultado eleitoral, a iniciativa poderia intimidar imigrantes e não cidadãos a responderem ao questionário, levando à subcontagem desses grupos e à consequente redução de sua influência política. Apesar de fracassada, a tentativa tensionou o programa de trabalho da agência nacional, produzindo incerteza sobre a garantia de sigilo e o uso dessas informações com fins persecutórios. No Brasil, uma democracia recente, a ascensão da extrema direita radicalizou ainda mais esse quadro. Desde seu início, o governo Bolsonaro colocou em xeque por diversas vezes tanto o resultado quanto a metodologia das pesquisas do IBGE, atacando diretamente a credibilidade do órgão. Em 2019, quando o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostrou que a taxa de trabalho formal havia alcançado o menor patamar da série histórica, o presidente e o ministério da Economia se basearam no crescimento do mercado informal revelado pela Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar para defender a unificação dos dois indicadores e, assim, solucionar o “atraso” do IBGE. Em 2021, quando o Caged apontou aumento nas vagas com carteira assinada, foi a vez de os dados da PNAD serem ignorados e criticados por revelaram um grande aumento dos desocupados e desalentados, em plena pandemia de covid-19. Ao escolher sistematicamente o número que lhe é conveniente e rejeitar os demais, o bolsonarismo introduz um modelo de governo em que a tomada de decisões prescinde de evidências e dados de qualidade. Diante da inversão da racionalidade moderna, a
estatística não serve mais para orientar a política, mas para fazer a guerra, ancorando a narrativa negacionista de construção do inimigo imaginário e de evocação do perigo constante. O encaminhamento do censo de 2020 e a produção dos números da pandemia são particularmente relevantes a esse respeito. Quanto ao censo, um enxugamento inicial limitou o número de perguntas do questionário, gerando desconforto com a exclusão de tópicos centrais para políticas de habitação e combate à pobreza. A chegada do coronavírus adiou o levantamento, que acabou virtualmente cancelado pelo corte de 97,3% nos recursos estimados para sua realização. Sem o censo, o Fundo de Participação dos Municípios permanece sem correção, os índices de inflação seguem defasados, o resultado dos grandes programas sociais não pode ser conhecido, o equilíbrio federativo fica comprometido. Interpelado por governadores, coube ao Supremo Tribunal Federal obrigar a execução da operação. Um caso histórico de judicialização do censo, em meio à manipulação flagrante dos números na pandemia. Durante a primeira onda de covid-19, o governo modificou o critério de publicação do número diário de óbitos, passando a contabilizar apenas as mortes ocorridas no mesmo dia da divulgação e a excluir aquelas confirmadas tardiamente. Com a crise de confiança precipitada pela falta de transparência e acessibilidade das informações, os grandes grupos de mídia se organizaram para reunir esses dados junto às secretarias de saúde dos governos estaduais. Desde então, os boletins federais foram sistematicamente ignorados pela imprensa e substituídos pelas compilações do consórcio dos veículos de comunicação. Ao mesmo tempo, as pesquisas desenvolvidas pelo IBGE, como a Pnad Contínua e a Pnad Covid-19, não foram utilizadas para estimar o número de pessoas que tiveram perdas significativas de renda após o início das medidas de distanciamento social, tampouco para rastrear sua distribuição pelo território brasileiro. Ao invés disso, o auxílio emergencial foi projetado e implementado sem qualquer recurso às evidências para corrigir excessos e distorções, resultando em um gasto bilionário com quem não se encontrava em
situação de vulnerabilidade, nem se enquadrava nas regras do programa. Se as estatísticas são desconsideradas para monitorar políticas e definir alocações de recursos, os números mantêm seu poder de convencimento como evidência contrafactual no discurso negacionista. Os dados sobre incêndio e desmatamento produzidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por exemplo, foram diversas vezes colocados sob suspeição por revelarem um aumento alarmante nas queimadas florestais. O atual governo tem menosprezado a competência do Inpe e apresentado números fictícios de fontes desconhecidas, cujo único sentido é dar suporte à narrativa bolsonarista de que as Forças Armadas e o agronegócio supostamente protegem a Amazônia. Seu propósito não é produzir uma verdade demonstrável ou uma imagem de eficiência do governo na gestão pública. Com esses ataques e números fictícios, o bolsonarismo visa embaralhar os fatos e os procedimentos objetivos que permitem a sua reconstrução. Em sua forma recente, o negacionismo estatístico coloca em risco os processos racionais e metódicos de prova e inferência, fundamentais para a formação do amplo consenso social. LEIA MAIS
CAMARGO, A. de P. R.; MOTTA, E.; MOURÃO, V. A. “Números emergentes: temporalidade, métrica e estética da pandemia de covid-19.” Mediações — Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 26, n. 2, mai./ago. 2021. KERTZER, D.; AREL, D. (Orgs.). Census and identity: the politics of race, ethnicity and language in national censuses. New York: Cambridge University Press, 2002. KOBHAM, A. The uncounted. Cambridge: Polity Press, 2020. CONFIRA
GUERRAS DA CIÊNCIA
POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS
* Professor e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Cândido Mendes (Iuperj-UCAM)
NEGACIONISMO ESTRUTURAL Christian Edward Cyril Lynch * Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro **
C
om o início da pandemia da covid-19, o termo negacionismo ganhou imensa projeção no debate público brasileiro. Antes relegado a grupos marginais que, atuando em fóruns e outros espaços virtuais, articulavam discursos de negação de fenômenos como o aquecimento global, o Holocausto, o fato de que a terra é redonda, para citarmos apenas alguns exemplos, o tema do negacionismo ganhou projeção internacional em 2016, quando a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos colocou em destaque uma liderança mundial que negava publicamente a agência humana no aquecimento do planeta. Com Trump, o negacionismo deixou o espaço de debates marginais e se tornou um discurso de grande impacto, traduzido até mesmo na condução de parte das políticas do governo americano, como o abandono do acordo de Paris para o combate de mudanças climáticas. A eleição de uma liderança de extrema direita no Brasil colocou o país no mapa mundial dos discursos negacionistas. O presidente Jair Bolsonaro baseou desde sempre uma boa parte de seu discurso na negação das perseguições e mortes promovidas pela Ditadura Militar de 1964. Suas tentativas de prejudicar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade ajudaram a projetá-lo em nível nacional como um dos principais representantes de um discurso que associava a reparação dos crimes da ditadura a uma tentativa da esquerda de perseguir os “heróis” de 1964, que salvaram o país do comunismo. Ao assumir a presidência, o discurso negacionista orientou boa parte dos posicionamentos do governo Bolsonaro. Fala-se muito em negacionismo a respeito da condução da política sanitária pelo
governo federal, mas o fenômeno não se limita a esse ramo da administração. Entendido como técnica de governo destinada a produzir uma realidade fictícia, o negacionismo do governo Bolsonaro é mais amplo, ou seja, é estrutural. Esse negacionismo estrutural pretende criar uma realidade paralela onde vige um sistema diferente de causalidades e responsabilidades daquele do mundo real. Do ponto de vista ideológico, a origem desse negacionismo é tipicamente reacionária porque, almejando recuar para um tempo já desaparecido, começa por ter que negar postulados básicos da racionalidade moderna na descrição do funcionamento do mundo. Para se infiltrar na sociedade, esse discurso precisa atacar a imprensa, a ciência e a academia, que são as instâncias responsáveis pela geração de consensos sociais sobre o que seja a verdade no mundo moderno. A modernidade é orientada pela busca da ampliação da racionalidade como fundamento da justificativa a respeito da verdade/falsidade das decisões. Em sociedades modernas, os discursos de natureza religiosa ou orientados por crenças tradicionais pertenceriam ao nível das particularidades individuais, e não poderiam, por principio, orientar escolhas de natureza pública, que precisam justificar-se com base na racionalidade, ou seja, numa explicação clara e universalmente evidente sobre suas causas e consequências. Em termos políticos, essa racionalidade seria traduzida em discursos públicos capazes de informar a opinião pública, que, assim, tomaria decisões e escolhas baseadas no convencimento racional sobre a veracidade de um tema. Sabemos, contudo, que esse modelo ideal de maximização da racionalidade nas democracias construído ao longo dos séculos 19 e 20 está longe de ser a realidade das democracias liberais nas sociedades modernas. A “opinião pública” é formada por um sem-número de discursos que mobilizam narrativas nem sempre comprometidas com sua justificação racional ou universal. Porém, é possível observar que em períodos de estabilidade, mesmo lideranças políticas muito divergentes em termos sociais e econômicos convergiam em alguns fundamentos da vida democrática moderna,
tais como o valor da racionalidade científica, a importância da preservação de garantias de liberdades públicas, de pluralismo político, da preservação das instituições e de seu funcionamento razoavelmente autônomo. O negacionismo estrutural visa precisamente destruir a busca racional da verdade como fundamento da vida coletiva, tornando impossível o diálogo entre partes diferentes. Ele nega a relativa possibilidade de divergência racional na política e busca dividi-la entre amigos e inimigos inconciliáveis, tendo como horizonte a conquista de maiorias para justamente “regenerar” uma ordem estável perdida com o conflito. Trata-se de pensar a divergência política não como um antagonismo regulado por procedimentos, mas como guerra aberta, que exige suspensão da normalidade democrática e recursos excepcionais de Estado. A produção da verdade passa a ser uma função do Estado, que responsabiliza tudo o que de mal ocorre ao demônio ou a seus inimigos. Quando articuladas em um discurso político cujo objetivo é produzir antagonismo constante no espaço público, o discurso negacionista recusa toda explicação que não seja útil para seu projeto de dominação. Por isso figuras como Trump e Bolsonaro atacam a imprensa, a ciência e a academia. Para que negacionismos sejam convertidos em ganhos políticos, os líderes negacionistas precisam convencer o público de que eles são os agentes da providência, capazes de revelar a falsidade do mundo aparente e indicar o caminho para acessar as verdades ocultas. Essa estratégia retórica negacionista tem traços evidentes do discurso reacionário, para o qual os fundamentos do mundo moderno — a secularização, a relativização dos valores absolutos, o discurso científico, a democratização do acesso à cultura e informação — seriam corruptores da civilização judaico-cristã ocidental, caracterizada como uma sociedade homogênea e hierárquica em termos de valores e traços culturais e marcada pela precedência da autoridade religiosa — e do pai como seu representante nas famílias — sobre a razão. Portanto, negar e acusar o mundo moderno seria uma estratégia fundamental para
“restaurar” os valores autênticos de nossa civilização corrompida. O negacionismo opera por uma lógica de reversão dos valores de uma sociedade democrática. Conquistas democratizantes, que ampliam a proteção de direitos, as liberdades públicas, a participação política de parcelas antes excluídas da população, são convertidas pelo discurso negacionista em manifestações do mal, corruptor da civilização em declínio. Diante dessas ameaças, os negacionistas precisam inverter a lógica da vítima, colocando-se no lugar daqueles que eles pretendem atacar. Assim, o racismo é constantemente negado e, em seu lugar, se manifestaria um “racismo reverso” contra homens brancos, pais de família, ciosos dos valores tradicionais e religiosos. Da mesma forma, a expansão do reconhecimento de direitos e de identidades de gênero é interpretada pelos negacionistas como manifestação de uma “ideologia de gênero”, estratégia de corrupção dos sexos naturais e de sua função na divisão dos papeis sociais e da família. A face oculta do negacionismo é o conspiracionismo, ou seja, a ideia de que aquilo que explica os fenômenos sociais, econômicos e políticos está sempre oculto. Assim, a “verdade” ocultada precisaria ser revelada por aqueles capazes de desvendar os segredos do poder e expô-los ao povo autêntico. O célebre historiador russo radicado na França Léon Poliakov chamava esse tipo de discurso conspiracionista de “causalidade diabólica”. Tal causalidade consistiria num esforço de explicar, a partir de elementos do senso comum observáveis por qualquer cidadão, a totalidade de um fenômeno social cujas causas seriam ocultas e de difícil compreensão para os “não iniciados”. O cenário da crise pandêmica dá bom exemplo da lógica conspiracionista cara ao negacionismo. O fato de que o vírus nasceu na China e de lá se espalhou para o restante do mundo é algo amplamente aceito. Contudo, diante da dúvida científica que ainda paira sobre a explicação das origens do vírus, o discurso conspiracionista oferece uma explicação que não pode ser provada, mas se articula em uma narrativa que parece coerente e
autoevidente para aqueles pretensamente capazes de acessar a “verdade”. Ora, mas se esse discurso não é uma evidência científica, de que tipo de verdade estamos falando? Daquela que é revelada por indivíduos supostamente excepcionais, que seriam capazes de superar os discursos oficiais, comprometidos com os interesses ocultos das ideologias que dominariam o mundo contemporâneo: o “globalismo”, a imaginária conspiração internacional comunista ou a propaganda chinesa. Eis, portanto, a estrutura fundamental do negacionismo: o acesso aos fatos não depende do uso da razão e de seus critérios — a comprovação de uma causalidade —, mas de um suposto compartilhamento de informações não divulgadas pela ciência ou pelos meios correntes de comunicação de massa, somente acessíveis a homens e mulheres que têm a coragem de transpor a falsidade do mundo aparente e acessar o mundo das verdades ocultas. LEIA MAIS
ALMADA, P. E. R. “O negacionismo na oposição de Jair Bolsonaro à comissão nacional da verdade.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Carlos, v. 36, n. 106, 2021. HABERMAS, J. Fé e saber. São Paulo: Unesp, 2013. POLIAKOV, L. A causalidade diabólica I. São Paulo: Perspectiva, 1991. v. 1. CONFIRA
FASCISMO ORESKES, NAOMI REACIONARISMO
* Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) ** Professor e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
NEGACIONISMO HISTÓRICO Marcos Napolitano *
N
o contexto da pandemia de covid-19, a palavra negacionismo passou a circular intensamente na imprensa e na sociedade brasileira. Antes desse contexto, o termo ficava mais reservado aos debates historiográficos, sobretudo entre especialistas na história do Holocausto Judeu da Segunda Guerra. Para analisar esse conceito, partimos de uma premissa famosa, sintetizada por Pierre VidalNaquet: nunca se debate com um negacionista, mas sempre se deve discutir o negacionismo como fenômeno político e cultural. Em primeiro lugar, é preciso que se compreenda o conceito de negacionismo científico e o negacionismo histórico, seu corolário. Podemos entender “negacionismo” como uma estratégia de negação a priori de um consenso científico, a partir de uma ação social organizada de desinformação para encobrir interesses econômicos que causam grande impacto humano, socioambiental, ou encobrir responsabilidades sobre crimes de guerra ou crimes contra a humanidade. Geralmente, a estratégia negacionista é defendida por seitas ideológicas extremistas e grupos de pressão organizados contra narrativas aceitas institucionalmente, visando, paradoxalmente, o reconhecimento destas mesmas instituições, tentando validar o negacionismo como uma polêmica científica legítima. No terreno historiográfico, mais sutil que o negacionismo, existe outra estratégia que podemos nomear como “revisionismo ideológico”. Ele pode ser definido como questionamento de consensos científicos como parte de uma luta político-ideológica, a partir da seleção, manipulação e combinação de dados e hipóteses correntes e aceitas na comunidade científica, mas devidamente descontextualizadas, para construir argumentos que reforcem as polêmicas opiniões e ideologias dos revisionistas.
Assim como o historiador estuda processos de memória, que não se confundem com o conhecimento histórico embora possam dialogar com ele, também deve-se estudar o negacionismo, definido como uma fração da opinião pública, restrita a grupos diretamente envolvidos em temas sensíveis, que nega um fato histórico e suas evidências. Portanto, não se trata de considerar o negacionismo como opinião cientificamente embasada, mas de fenômeno político e social a ser estudado por analistas. Tampouco, o negacionismo deve se confundir com o “direito à memória”, posição subjetiva e identitária de um grupo diante da história, pois grupos e discursos negacionistas se nutrem, antes, da negação das evidências de um acontecimento, normalmente, ligado a crimes contra a humanidade. Nesse sentido, como lembrou Vidal-Nacquet, os negacionistas são “assassinos da memória”. O conceito de negacionismo histórico está intimamente ligado à ação dos grupos organizados, sobretudo de extrema direita e antissemitas, que negam o Holocausto Judeu ocorrido sob o regime nazista de Adolf Hitler. Para esses grupos, em que pesem os consensos e evidências aceitas pela maior parte dos historiadores, não existiu gaseamento em massa de judeus, nem o número de mortos nos campos foi tão alto como alegado pelos vencedores da Segunda Guerra. As mortes de prisioneiros judeus, para os negacionistas, foram fruto das condições de guerra (fome, doenças, trabalho forçado), mas não de uma política sistemática de extermínio conduzida pela cúpula nazista. Para eles, os testemunhos são falsos e estão ligados à visão dos vencedores da Segunda Guerra Mundial e à “indústria do Holocausto” que, supostamente, é fruto do nacionalismo judeu para legitimar o Estado de Israel. O “paramétodo” de análise dos negacionistas do Holocausto e todo aparato de opinião e desinformação que dele se alimenta acabou se tornando um paradigma do negacionismo histórico como um todo, que hoje vai além desse tema específico. Via de regra, o negacionismo e o revisionismo ideológico aplicados a diversos temas históricos estão ligados a estratégias de ação de grupos
extremistas que produzem desinformação sistemática. Portanto, também nesse campo, não se trata de um criticismo legítimo ou de uma opinião que coloca em dúvida os consensos de análise de especialistas, apoiada em outras evidências, mas mantendo uma argumentação lógica. Trata-se de mentira organizada, voltada para encobrir interesses ideológicos extremistas ou mesmo interesses políticos e econômicos dos herdeiros dos perpetradores de violências massivas passadas. Portanto, o revisionismo ideológico no campo da história, assim como em outras áreas científicas, não deve ser confundido com a devida e necessária revisão historiográfica, fruto do avanço do conhecimento, da mudança de perspectivas, de novas perguntas surgidas na sociedade e do surgimento de novas fontes primárias. A revisão historiográfica constante é oxigênio da área de história, mesmo quando remexe em passados sensíveis e desagrada os guardiães de uma determinada memória. Também não se deve exigir do historiador neutralidade absoluta, posto que é um cidadão que tem opiniões e paixões. Entretanto, ele deve conciliar estas paixões com o devido distanciamento crítico e objetividade necessários para analisar o passado à luz de evidências e conceitos explicativos. O revisionista ideológico faz exatamente o contrário. Mesmo quando se apropria de formulações legítimas e cientificamente embasadas, o revisionismo ideológico se pauta por citações fora do contexto, anacronismos, seletividade intencional de fontes primárias, generalizações de casos particulares que servem de exemplo contra uma visão historiográfica dominante. Ambos, tanto o negacionismo como o revisionismo ideológico, têm se manifestado de diversas maneiras no debate brasileiro sobre o passado distante e recente, veiculado por livros de grande sucesso editorial, redes sociais e websites extremistas que procuram convencer os incautos e agregar setores da opinião pública que já se identificam com as posições ideológicas destes grupos. Dentre as estratégias ligadas ao negacionismo e ao revisionismo
ideológico da história, destacamos cinco formas: I) negacionismo raiz (exemplo: “não existiu o Holocausto Judeu ou as câmaras de gás”); II) revisionismo ideológico que camufla posições conservadoras e contra os grupos e movimentos sociais (“nem todos os indígenas resistiram ao colonizador, muitos se aliaram a ele, portanto os indígenas não foram vítimas passivas”) — esse tipo de revisionismo se opõe a uma suposta “história politicamente correta”; III) atualização das teorias conspiratórias da extrema direita (“o comunismo ainda é ativo e quer dominar o mundo, disfarçandose de globalismo”); IV) relativismo historiográfico (“a análise histórica é só uma guerra de narrativas, cada um tem sua verdade”); V) História como utopia regressiva (“a elite brasileira precisa recuperar os exemplos e valores do passado colonial e monárquico para regenerar a política e a sociedade brasileiras”). Embora, no contexto brasileiro e mundial das últimas décadas, o negacionismo histórico seja predominantemente conservador e de extrema direita, é importante que se combata o negacionismo de qualquer orientação ideológica. Todo cidadão comprometido com a democracia, não apenas o cientista ou o historiador, deve se informar corretamente e combater o negacionismo científico e historiográfico. O grande desafio da nossa época pode ser equacionado da seguinte maneira: como conciliar o combate do negacionismo, e suas variáveis, evitando, ao mesmo tempo, o culto cego ao cientificismo, o cerceamento da liberdade de expressão e o direito à dúvida? Na historiografia, isso significa evitar a volta das narrativas factuais absolutas e supostamente neutras, que reproduziam as fontes primárias sem a devida crítica, tomando-as como “provas do fato” e não como visões construídas que funcionam como evidências de que “algo aconteceu”, mas que devem ser analisadas, contextualizadas e interpretadas. Dentre os negacionistas militantes é comum apelar para o direito fundamental à liberdade de expressão para expor suas opiniões disfarçadas de ciência. Muitas vezes, os negacionistas se
aproveitam do direito à opinião divergente, parte da liberdade de pesquisa no mundo moderno, para se colocarem como vozes alegadamente críticas, fingindo-se de céticos. Mas o ceticismo científico, corrente importante para a autocrítica da ciência como conhecimento socialmente válido, não pode desconsiderar questões de método, e as opiniões divergentes devem ser fundamentas em indícios objetivos, em argumentos sólidos, e não em meras opiniões sem base real, como frequentemente são as diversas teorias de conspiração que alimentam negacionistas e simpatizantes. A opinião, mesmo quando é produto de uma mentira deliberada e interesseira, é um direito do indivíduo. Ainda que essa mentira possa causar efeitos sociais adversos, como no caso do negacionismo da covid-19, e a pessoa possa ser responsabilizada legalmente pelos seus efeitos, no combate ao negacionismo não está em jogo a liberdade de opinião. A questão é que a liberdade de opinião, se causar dano individual ou coletivo em alguém, não está isenta de uma resposta legal, mesmo nas democracias mais avançadas. O negacionismo, entretanto, vai além. Como diz VidalNaquet, o “direito que o falsário demanda não deve ser concedido em nome da verdade”. É isso que grupos e discursos negacionistas querem: transformar sua opinião e seus valores ideológicos em verdade científica. Não são poucos os desafios encarados pela comunidade científica, pelos meios de comunicação e pela opinião pública face aos negacionistas científicos, incluindo aqui os negacionismos históricos. O combate à desinformação não deve cercear o direito à dúvida diante de consensos científicos, nem deve significar um culto cego e inquestionável à ciência. A historiografia, bem como a ciência como um todo, é meio fundamental para conhecermos melhor a natureza e a sociedade em que vivemos, para desenvolvermos políticas públicas eficazes e para melhorarmos a vida das pessoas. Mas também pode ser usada como parte de afirmação interesses econômicos e políticos por parte de governos e corporações. Não raro, no passado não muito distante, consensos científicos já foram usados para defender o racismo e o
colonialismo, como no caso da eugenia e da biologia racista eurocêntrica do século 19. Para evitar esse tipo de uso, a ciência pressupõe transparência social e autocrítica constante, feitas de maneira organizada e chancelada pela comunidade científica e pela sociedade em geral. Duas coisas que os negacionistas não defendem, pois sua mentira organizada não quer ampliar o conhecimento, mas destruí-lo. LEIA MAIS
AARENDT, H. “Entre o passado e o futuro.” In: ARENDT, H. Verdade e política. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 282-325. MORAES, L. E. S. de. “O Negacionismo e o problema da legitimidade da escrita sobre o passado.” Anais do XXVI Simpósio Nacional de História — ANPUH, jul. 2011. NAPOL ITANO, M. “O negacionismo e o revisionismo histórico no século XXI: novos desafios para o ensino de história” In: PINSKY, C. et al. (Org). Novos combates pela história. São Paulo: Contexto, 2021. VIDAL-NAQUET, P. Os Assassinos da memória: um Eichman de papel. Campinas: Papirus, 1988. CONFIRA
DITADURA REVISIONISMOS E CRIME CONTRA A HISTÓRIA TORTURA
* Professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP)
NEOLIBERALISMO Tatiana Roque *
H
á diferentes definições de neoliberalismo. Tal como empregada por seus críticos, a palavra remete a uma espécie de fundamentalismo de mercado, cujo funcionamento se dá em escala global desde o fim dos anos 1970. Nessa acepção, privatizações, redução de serviços públicos e um capital financeiro preponderante sobre o setor produtivo são características das políticas neoliberais. Central nesse projeto é a chamada “austeridade fiscal”, imposta por organismos internacionais, como o Fundo Monetário Internacional. Sempre que pediam empréstimos ao órgão, os países endividados eram obrigados a garantir, em contrapartida, uma drástica diminuição dos gastos públicos e do papel do Estado na economia. Por isso, o neoliberalismo é sintetizado, frequentemente, como uma defesa de um Estado mínimo. Nos termos de seus defensores, porém, a definição de neoliberalismo remete a preocupações mais políticas do que econômicas. O conceito surgiu, nesses termos, no seio de movimentos pela renovação do liberalismo, iniciados nos anos 1930. A ordem mundial estava em transformação, ainda sob impacto do fim dos impérios russo, otomano, austro-húngaro e germânico. Somava-se a isso o efeito da grande depressão de 1929, que deixou evidente a interdependência econômica entre nações. A ideia de neoliberalismo apareceu nesse contexto, tendo o Colóquio Walter Lippmann como marco. Realizado em Paris, no ano de 1938, o encontro reuniu economistas, sociólogos, jornalistas e homens de negócios, incluindo nomes conhecidos como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Em 1947, Hayek organizou um outro seminário, no qual foi fundada a Sociedade Mont Pèlerin, germe do que ele próprio denominava um “movimento neoliberal”. Tanto no período entre as duas guerras mundiais quanto no pósguerra, segundo os pensadores do movimento, uma suposta
ameaça precisava ser enfrentada: a expansão da democracia de massas. Na visão daqueles atores, deviam ser criadas condições políticas para garantir a sobrevivência do capitalismo contra esse risco, considerado como trampolim para projetos socialistas. Evidências desse objetivo são exploradas em detalhes por Quinn Slobodian no livro Globalists: the End of Empire and the Birth of Neoliberalism, publicado em 2018. Trata-se de uma síntese de trabalhos históricos e abordagens sociais que vem renovando a concepção de neoliberalismo. Indo além de uma caracterização econômica, o projeto neoliberal passa a ser definido como uma criação institucional e legal singular, erigida com o objetivo de proteger os mercados. Esses por sua vez, ao contrário do ideal que se costuma associar ao liberalismo, não podem ser deixados à própria sorte. Para os neoliberais, a fim de que o capitalismo funcione ao modo desejado, é preciso impor limites constitucionais à democracia e reduzir o Estado de bem-estar social. As organizações globais e as normas jurídicas, erigidas sobretudo após os anos 1970, servem a esse objetivo. Acima de tudo, o ideário neoliberal visava proteger os mercados da vontade popular e da soberania das nações, pois a pressão eleitoral e reivindicatória das massas organizadas, especialmente no pós-guerra, tendia a fazer com que os governos nacionais aumentassem os gastos públicos e a proteção social. A disputa sobre o desenho de instituições para regular o mercado global se acirrou durante os anos 1970. A ordem mundial do pósguerra começou a derreter com o colapso do padrão ouro-dólar em 1971, selando o fim do acordo de Bretton Woods. A partir daí, as moedas perdiam qualquer lastro material e podiam fluir sem contenções, com seu valor ditado pela lógica das finanças. Ao passo que o sistema financeiro adquiria autonomia, organizações extraeconômicas tornavam-se estratégicas para garantir o funcionamento dos mercados e blindá-los contras flutuações das políticas nacionais. Um símbolo de conquista do movimento neoliberal, cuja influência só fez crescer a partir daquele momento, foi a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995.
O aumento de juros tonava-se uma ferramenta para atrair capitais e regular o valor da moeda. Para que isso não desestimulasse o setor produtivo, a receita neoliberal passou a apostar em uma drástica redução dos salários e das garantias dos trabalhadores. Um país estratégico para a experimentação dessas ideias foi o Chile, comandado pelo ditador Augusto Pinochet após o golpe de 1973. Não era fácil vencer resistências, pois o receituário da austeridade gerava perdas consideráveis. Diante disso, um regime autoritário poderia auxiliar a implantação de medidas neoliberais, como as defendidas, naquela época, pelos economistas da Escola de Chicago. No mundo desenvolvido, os governos de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, seguiram a mesma tendência. Assim, os trabalhadores do mundo foram entrando em uma competição negativa, tendo que escolher entre aceitar condições aviltantes ou perder o emprego para trabalhadores de outras regiões, já que muitas empresas se deslocavam em busca de mão de obra barata. Disseminou-se, então, a ideia de que o trabalho estava superprotegido e supervalorizado, o que impulsionou uma financeirização da seguridade social. Quer dizer, os trabalhadores foram levados a assumir a responsabilidade e os riscos da proteção à saúde, da casa própria, dos estudos e da aposentadoria. Desde suas primeiras formulações, as políticas neoliberais visavam garantir e estimular a concorrência em diversas esferas da vida social. Esse aspecto, destacado nas análises de Michel Foucault, é retomado por Pierre Dardot e Christian Laval em A nova razão do mundo. Nesse livro, o Estado é apontado como ator essencial à promoção da concorrência que, ao contrário do que se imagina, nada tem de natural ou típica do comportamento humano. Ao implementar políticas de restrição fiscal e desmontar os serviços públicos, os governos estimularam a competição e o individualismo, alterando os modos de se relacionar e de viver em sociedade. Como Wendy Brown observa, houve uma dissolução dos laços sociais e dos valores da igualdade; e isso abriu caminho para o autoritarismo e a erosão da democracia. A relação entre neoliberalismo e crise da
democracia é um aspecto fundamental para explicar a ascensão da extrema direita e o negacionismo que a acompanha. Segundo Brown, a lógica neoliberal operou uma economicização da política, comprometendo os valores democráticos. Ideias centrais da política foram traduzidas, então, em um idioma econômico e individualista: a inclusão foi transformada em competição; o pertencimento social, em valores familiares; a liberdade, em desregulação dos mercados. A cidadania foi se tornando cada vez mais similar aos “direitos do consumidor”. E o Estado de bem-estar social foi sendo transformado em prestações privadas, transferindo aos indivíduos o ônus de garantir sua própria proteção. Como consequência, os valores públicos e a participação na vida política perderam apelo. O papel das famílias e da religião saiu fortalecido desse processo, cujo efeito foi aproximar o neoliberalismo de um novo tipo de conservadorismo, encerrando a era do “neoliberalismo progressista”, como diria Nancy Fraser. Ao longo de toda a sua história, o projeto neoliberal teve a fragilização dos valores democráticos como contrapartida, de forma mais ou menos intencional. Algumas teorias chegam a defender a criação de órgãos econômicos imunes à influência eleitoral, a fim de limitar o poder do voto. Parte-se da constatação de que governos nacionais tendem a satisfazer seus eleitores, oferecendo benesses que aumentam os gastos públicos. Portanto, para blindar os governos desse “risco”, são necessárias medidas como a autonomia dos bancos centrais. Essas instituições devem seguir critérios supostamente técnicos e afirmá-los como independentes de escolhas políticas. Ganha força, assim, a ideia de que as políticas neoliberais se baseiam em modelos matemáticos, que seriam neutros do ponto de vista político. Em resumo, podemos dizer que o “neo” na palavra neoliberalismo está associado a diferentes tentativas de naturalizar o funcionamento da economia, seja por meio de instituições, de enunciados usados como arma na disputa de narrativas ou de discursos técnicos matematizados. Desde os anos 1980, tornou-se
conhecido o lema enunciado por Thatcher de que “não existe alternativa”. A partir daí, foram muitos slogans a tentar mascarar escolhas políticas por trás de um suposto consenso, reforçando uma espécie de determinismo econômico. É o caso da famosa frase de Bill Clinton: “é a economia, estúpido”. Em 2007, Alain Greenspan, presidente do Sistema de Reserva Federal, o sistema de bancos centrais dos Estados Unidos (FED), foi perguntado sobre sua preferência nas eleições presidenciais. A resposta chegou a surpreender pela sinceridade, pois ele disse que não importava; graças à globalização as decisões políticas teriam sido substituídas por forças de mercado. Um ano depois, uma crise financeira abalaria o mundo, deixando evidente que as forças de mercado só sobreviviam, e seguiriam sobrevivendo, com a ajuda decisiva dos Estados. Em 2008, caía o véu por trás do qual as políticas neoliberais se mantinham disfarçadas como “naturais”, pois os Estados e as instituições globais tiveram que implementar um verdadeiro ativismo monetário para socorrer os mercados. O colapso financeiro de 2008 foi decisivo na ascensão da extrema direita. O livro de Adam Tooze, Crashed, explica essa correlação por uma análise factual detalhada, mostrando como a democracia foi ferida, abrindo caminho para a eleição de Donald Trump. Após a crise, o poder global passou a ser apontado como responsável por decisões econômicas desvantajosas para a maior parte da população (os 99%), garantindo ganhos somente para as grandes corporações, os sistemas financeiros e as elites cosmopolitas. A partir de 2011, diversos protestos buscaram contestar esse receituário por vias progressistas, mas o que aconteceu na Grécia, em 2015, contribuiu para enterrar essa possibilidade. Após um plebiscito organizado pela esquerda no poder, em que a população votou por não adotar as restrições impostas pela União Europeia, o governo recusou e decidiu submeter o país a mais austeridade. Os bancos centrais deixavam explícito seu papel político e disciplinador acima de qualquer outra função. Os Estados, mesmo quando comandados por partidos progressistas, cediam. Ao mesmo tempo, saídas nacionalistas e autoritárias eram preparadas e defendidas
por uma nova direita, que se organizava em escala mundial. Em 2016, seu poder ficava evidente, após vitórias expressivas no Brexit e na eleição de Trump. O negacionismo foi parte da estratégia desta extrema direita para conquistar corações e mentes. Seus líderes sempre questionaram a autoridade dos argumentos técnicos e dos experts que defendiam os preceitos econômicos do neoliberalismo. Não que visassem contrapor as políticas neoliberais como um todo, mas os novos conservadores queriam instrumentalizar a revolta dos perdedores da globalização e transformar o sentimento de frustração em arma contra a democracia. Estava claro que o discurso econômico das últimas décadas escondia interesses e pressupostos políticos, gerando ganhos para uns e perdas para outros. Boa parte daqueles que se sentiam lesados encontrou na extrema direita uma expressão política para sua raiva. Assim, em sua forma autoritária e autocrática, incluindo elementos de fascismo, o poder passou a ser disputado por grupos dispostos a destruir as experiências democráticas da segunda metade do século 20. Agora, sem disfarces. LEIA MAIS
BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. SLOBODIAN, Q. Globalists: the end of empire and the birth of neoliberalism. Cambridge: Harvard University Press, 2018 TOOZE, A. Crashed: how a decade of financial crisis changed the world. New York: Viking, 2018. CONFIRA
AUSTERIDADE ECONOMIA VIOLAÇÕES DE ESTADO
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
NIILISMO Renan Springer de Freitas *
O termo niilismo exprime o ato de rejeitar os valores, as tradições e
as instituições que são característicos do próprio tempo e do meio social em que se vive sob a alegação de serem valores, tradições e instituições já carcomidos e, portanto, prontos para serem destruídos. Esse termo apareceu pela primeira vez nos albores da Revolução Francesa para exprimir a rejeição tanto do ideário revolucionário quanto das reações que este suscitou, e se popularizou após a publicação, em 1862, do romance Pais e filhos, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883). Nesse romance o termo aparece para exprimir a rejeição das tradições peculiares à Rússia czarista e, com igual fervor, das propostas de qualquer matiz ideológico que se apresentavam para substituí-las. Posteriormente o niilismo se radicou na Alemanha, país em que o objeto da rejeição foi nada menos que todo o projeto civilizatório moderno. A versão alemã é, em certos sentidos, uma radicalização da versão russa, e seus vestígios ainda se fazem notar em nosso próprio tempo. Na referida obra de Turguêniev, o termo é empregado para qualificar as excentricidades do protagonista, o jovem médico Bazárov. Este era um niilista por rejeitar tudo o que era exaltado por seus contemporâneos: o interesse pela arte e pela poesia, pela religião, pela filosofia de um modo geral e pelas diferentes correntes do pensamento filosófico em particular, das mais liberais às mais conservadoras, como também pelas utopias socialistas que despontavam no século 19. Para Bazárov, somente era digno de louvor aquilo que podia ser objeto de comprovação segundo os métodos racionais da ciência e, sobretudo, que tivesse uma inequívoca utilidade prática, como era o caso da química do alemão Justus von Liebig. Bazárov desprezava igualmente o modo de ser dos mujiques e dos aristocratas, dos religiosos e dos ateus, dos liberais e dos conservadores, dos populistas e dos socialistas, por
acreditar que a todos faltava a coragem necessária para derrubar as já carcomidas tradições peculiares à Rússia em que viviam. Esse especial apreço pela capacidade de exercitar a coragem reapareceu, de forma radicalizada, em uma Alemanha que se unificou tardiamente, em 1871, sob a liderança de Bismarck, após a Prússia obter três vitórias militares consecutivas, a principal delas contra a França, em um período de apenas sete anos. Dessa sucessão de vitórias resultou um modo peculiarmente alemão de glorificar as virtudes militares e esse modo foi a base da versão do niilismo que prosperou na Alemanha. Essa versão teve o seu apogeu no entreguerras, com a ascensão do nazismo e, embora tenha esmaecido após a derrota alemã, ainda se faz de alguma forma presente em muitos lugares. Em sua versão alemã, o niilismo não rejeita a arte nem a poesia porque entende que ambas são manifestações culturais potencialmente capazes de exprimir a “grandeza” de um povo. Nessa perspectiva, qualquer produto da atividade humana, não somente a arte e a poesia, mas até mesmo um artefato tecnológico, uma mera colher, deve tornar-se objeto de especial apreço e respeito desde que, a exemplo do que é usualmente dito da música e da dança folclórica, exprima, de alguma forma, a alma o modo de ser, ou as raízes de uma coletividade. Assim, em contraste com a versão russa, segundo a qual era a própria “alma russa” que estava apodrecida e precisava ser destruída, a versão alemã apregoava a destruição de qualquer forma institucionalizada de conduta que pudesse de alguma forma macular a lealdade do povo alemão à “alma alemã”. Isso incluiria o louvor à ciência. No caso russo, a ciência era objeto de louvor em razão de ser universalmente aplicável: o químico Liebig era alemão, mas a química de Liebig não tinha nacionalidade. Para o niilismo alemão, essa distinção seria inaceitável; em sua perspectiva, seria inconcebível que qualquer produto da atividade humana não carregasse consigo a marca de suas “raízes”. O conhecimento científico não podia ser uma exceção. Longe disto. Supor que a ciência pudesse produzir um conhecimento que fosse independente de suas raízes nacionais ou
culturais seria se curvar às perniciosas fantasias de universalidade criadas pelo projeto civilizatório moderno, herdado das revoluções inglesa e francesa. Nessa perspectiva, se algum valor especial podia ser atribuído à química de Liebig, isso se devia justamente ao fato de ela ser uma “química alemã”. O mesmo raciocínio se aplicava às regras institucionalizadas de conduta: na versão alemã do niilismo, não seria concebível alguma regra de conduta da qual se pudesse dizer que fosse “universalmente aplicável”. Regras não existiam para ser universalmente aplicáveis, mas para viabilizar a execução de planos nacionais de grandiosidade e a lealdade dos indivíduos às próprias raízes. Assim, o que a versão alemã do niilismo exprimia era, sobretudo, uma rejeição desse modo de vida polido, contido, prudente, pacífico, orientado pelo cálculo utilitário, indiferente a feitos heroicos e sem compromisso com raízes culturais ou nacionais ao qual usualmente chamamos de “civilizado”. De acordo com ela, o modo de vida característico do "homem civilizado" avilta a dignidade humana porque pressupõe uma conduta regida pelo autointeresse e pautada pela busca da felicidade. Não! Nada de autointeresse nem de busca da felicidade! Uma vida verdadeiramente digna de ser vivida é aquela regida pelo senso de dever e pautada pela busca da glória, de feitos heroicos e de realizações perenes. Esse modo repleto de nãos ao senso comum de conceber o que seria uma vida “verdadeiramente” digna de ser vivida despreza qualquer modo de condução da vida que não pressuponha um vigoroso enraizamento nacional e cultural; nesse sentido, ele não pode ter outro sentimento pelo modo moderno de se comportar — para o qual a aplicabilidade universal do conhecimento científico e das regras morais que regem a conduta humana é o principal valor a ser cultivado — senão um profundo desprezo. A obra do filósofo Friedrich Nietzsche é repleta de formulações emblemáticas desse desprezo pelo projeto civilizatório moderno, mas há uma passagem da obra Além do bem e do mal, publicada em 1886, que se destaca. Na seção 253 dessa obra, Nietzsche ressalta que foram os ingleses, “com sua profunda mediocridade”,
que, antes dos franceses, ocasionaram “uma depressão geral do espírito europeu”, e que “isso que chamam de ‘ideias modernas’, de ‘ideias francesas’, isto contra o que o espírito alemão se ergueu com profundo nojo, foi de origem inglesa”. Esse juízo a respeito da “depressão geral do espírito europeu” seria reeditado quase 30 anos mais tarde com a publicação (em 1915) do livro Händler und Helden: Patriotische Besinnungen (Comerciantes e heróis: reflexões patrióticas), de Werner Sombart. Nesse livro, Sombart exprimiu, de forma exemplar, a reação alemã (de “profundo nojo”, como o havia dito Nietzsche) ao modo peculiar de condução da vida apregoado pelo projeto civilizatório moderno. Essa reação consistia em contrapor a (potencial) “grandiosidade” do homem alemão à “mediocridade” do “homem moderno”, a começar pela do inglês, consequência inevitável do fato de a Inglaterra ter se tornado uma terra de lojistas e comerciantes. O comerciante, raciocinava Sombart, é alguém interessado unicamente no que a vida lhe pode oferecer em termos de bens materiais e conforto pessoal. Ele não tem ideais, somente interesses. Um homem sem ideais é, em todos os sentidos, passivo e superficial. De um homem de tal natureza não se pode esperar um compromisso com causas elevadas; menos ainda a disposição para o sacrifício pessoal em nome dessas causas. Na Alemanha, em direto contraste, presumia-se a formação de homens com essa disposição. Ela não era uma nação de comerciantes, mas de heróis; de homens educados para não trocar o compromisso com valores elevados pelo conforto material, mesmo sabendo que esse compromisso poderia significar a própria morte. Nessa perspectiva, não seria admissível que a vida do homem comum fosse dignificada, uma vez que não se pode dignificar um modo de condução da vida que consista em pretender nada além de auferir os próprios lucros em paz e em, ao envelhecer, fazer como um Candido, de Voltaire, que após passar por tudo o que passou se sentiu no direito de poder cuidar, em paz, do próprio jardim. A ideia, caracteristicamente moderna, de que todas as vidas humanas se equivalem em matéria de dignidade, independentemente das aspirações e realizações individuais, seria vista com repugnância;
seria vista como um inequívoco indicador da ausência de “pujança” do homem moderno. Cuidar do próprio jardim, ou do próprio negócio, em paz, não seria uma aspiração digna de um homem (talvez pudesse ser de uma mulher). Aspiração digna de um homem seria a de exercitar a própria coragem: uma virtude militar. Ernst Jünger, destacado filósofo e combatente militar na Primeira Guerra Mundial, que se orgulhava de ter sobrevivido a nada menos que catorze ferimentos, ilustrou de forma exemplar essa aspiração ao afirmar, em seu diário de combatente (publicado no Brasil sob o título Tempestades de aço), que “a guerra, por certo, proporcionaria o imenso, o forte, o solene. Ela nos parecia uma ação máscula, uma divertida peleja de atiradores em prados floridos e orvalhados de sangue” à qual só poderia ter acesso aqueles que estivessem “fundidos em um grande e entusiasmado corpo”. Isso significa que qualquer objetivo de vida que pudesse desviar o homem do caminho de uma “ação máscula”; tudo o que porventura pudesse impedi-lo de experimentar o “imenso”, o “forte” e o “solene’” era deplorado pelo niilismo alemão. Eis, então, do que se trata a versão do niilismo que nos é mais contemporânea: do rompimento com o ideal moderno de conferir dignidade à vida comum, efetuado sob o argumento de que esse ideal conduz a uma vida medíocre e insossa; a uma vida regida por padrões morais muito baixos, não condizentes com o que se espera de um verdadeiro homem. Um padrão mais elevado de moralidade só pode ser atingido na medida em que se estabelece uma cisão irreparável entre o “bom senso” e a “coragem”, a “felicidade” e a “nobreza de espírito” o “autointeresse esclarecido” e o “senso de dever”, a “melhor política” e a “honestidade”, o “interesse privado” e o “interesse comum”; em síntese, entre a “vida comum”, que se limita a exercitar o “bom senso” e a vida do combatente militar, plena de feitos heroicos e realizações perenes. Os termos do lado esquerdo devem ser postos em um plano inferior, rastejante, de dignidade; os do lado direito, em um plano superior, celestial. Entre um plano e outro não se pode admitir a existência de qualquer ponto de contato, pois uma concessão de tal natureza contaminaria os termos do lado direito e
os tornaria tão carcomidos e prontos para a destruição quanto já o são os do lado esquerdo. LEIA MAIS
BERLIN, I. “Pais e filhos: Turgueniev e a crítica situação liberal.” In: BERLIN, I. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. BURUMA, I; AVISHAI, M. Ocidentalismo: o ocidente aos olhos de seus inimigos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. STRAUSS, L. “German nihilism.” Interpretation, New York, v. 26, n. 3, p.353-378, Spring 1999. CONFIRA
POLÍTICA PSEUDOCIÊNCIA RELATIVISMO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
OLAVO DE CARVALHO Georg Wink *
P
rovavelmente, Olavo de Carvalho não teria concordado em ser incluído com um verbete próprio neste volume. Primeiro, porque ele sempre recusou o uso contemporâneo do termo “negacionismo” num sentido mais amplo: não apenas como negacionismo histórico, um conceito cunhado nos anos 1980 para descrever a atitude de negar o Holocausto, mas também a negação de qualquer genocídio que, hoje em dia, poderia incluir as vítimas de uma pandemia por negligência de políticas sanitárias adequadas. Segundo, porque muito mais do que negar a existência de algum fenômeno do mundo, ele afirma fenômenos alternativos, cuja existência, por sua vez, não é de reconhecimento geral. Entre estes fenômenos estaria o assim chamado “marxismo cultural”, no entendimento de Olavo de Carvalho a sutil subversão comunista das ideias que guiam a sociedade e a criação de uma alegada hegemonia ideológica. Quem exercia essa subversão, sendo manipulada ou agindo intencionalmente, seria a intelectualidade, principalmente na academia, na mídia e nas artes. O “marxismo cultural”, uma estratégia mais eficiente do que uma guerra convencional, seria apenas o meio para facilitar a chegada a um fim: a “administração planetária” pelo regime do “globalismo”. Olavo de Carvalho distingue três projetos de dominação do mundo que representariam as três forças básicas (dinheiro, fé e poder) do processo histórico: o projeto dos “metacapitalistas”, bilionários não mais submetidos à competição do livre mercado e que, portanto, buscariam privilégios junto ao Estado intervencionista; o projeto do terrorismo islâmico para implementar um suposto “Califado Universal”; e o projeto dos “neocomunistas inimigos do Ocidente”, oriundos do complexo geopolítico russo-chinês. O último agente histórico seria o mais poderoso, pois controlaria os dois anteriores, e estaria em plena atividade. A prova disso tudo, para ele, seria a
“farsa” da pandemia da covid-19, na qual ele vê uma estratégia de quebrar pelo lockdown as economias, com exceção da chinesa. Para Olavo de Carvalho, não é a negligência da pandemia que provoca um genocídio, mas, antes, o combate à pandemia e as suas consequências. Assim, se torna evidente porque ele precisa negar o caráter negacionista do seu próprio negacionismo: o negacionismo de Olavo de Carvalho é um sistema de análise do mundo que chega a resultados únicos pela negação de todo conhecimento científico, pois este conhecimento é, de saída, desqualificado em sua análise. Isso é assim porque, em seu pensamento, o cientista é supostamente o agente de uma alegada “guerra cultural” e, nela, toda a expertise desta fonte de conhecimento só pode ter a função de uma arma inimiga. Como Olavo de Carvalho estabelece esse sistema de pensamento único que, não só cria pretensos “fatos alternativos”, mas também os blinda contra qualquer objeção? E por que há quem acredite neles? Para entendermos isso, temos que considerar alguns fatores biográficos da sua pessoa e a base filosófica do pensamento olaviano. Segundo relatos próprios, Olavo de Carvalho passou os primeiros sete anos da sua vida acamado em casa, por causa de uma doença crônica, vivendo serenamente no mundo da imaginação. Quando curado, saiu para um mundo no qual todos pareciam entender tudo, menos ele. A compreensível ambição de não só adquirir saber, mas de ir ao fundo do saber, de encontrar a tal “verdade das coisas”, marcou sua vida. Ganhando a vida como jornalista, sempre buscou iluminação como autodidata, primeiro pelo esoterismo, depois pela filosofia e, por último, pela fé católica. Encontrou, pelo menos, meios eficazes para superar esse trauma e inverter subjetivamente a situação. Nesse percurso, rompeu com praticamente todos os produtores e divulgadores de conhecimento que, para ele, se revelaram como “analfabetos funcionais”, “vigaristas” e “doutrinadores marxistas”. Primeiro, em meados dos anos 1990, declarou guerra sem trégua
a toda a classe de cientistas e universitários brasileiros que não tinha valorizado a sua contribuição para a ciência (ou sequer tomou conhecimento dela). Depois, já morando nos Estados Unidos, denunciou toda sua própria categoria profissional de jornalistas por não ter levado a sério seu alerta sobre o suposto significado do Foro de São Paulo — articulação de partidos e organizações latinoamericanos comumente considerados de “esquerda”. Em paralelo às instituições acadêmicas, criou o seu Curso Online de Filosofia. E, mais ainda, ele criou sua própria mídia em jornais online tais como Mídia sem Máscara e Brasil sem Medo, além do seu ciberativismo nas mídias sociais. Todo esse esforço converge para divulgar seu próprio conhecimento, certamente com muito mais sucesso do que ele tinha como jornalista. O êxito do olavismo, a adoção do seu pensamento único e individual, é fruto de uma negação dupla e duplamente conveniente: nega-se tanto a competência da rede de instituições científicas e de ensino para produzir e ensinar conhecimentos, como também é negada a complexidade dos fenômenos do mundo. Novamente, ambas as negações estão relacionadas. Se os cientistas precisam se dedicar coletivamente à compreensão do mundo, acrescentando, em trabalho de formiga, algumas pedrinhas a um ilimitado mosaico, em plena consciência das suas limitações disciplinares e da relatividade e temporalidade do seu saber, e se, ao mesmo tempo, o mundo não pode ser complexo, mas baseado numa verdade única que Olavo de Carvalho quis descobrir desde criança, os cientistas têm de ser incompetentes — formando o “imbecil coletivo”, título de um de seus livros. Para não ser um idiota, para deleite de seus alunos, basta entender o mínimo que Olavo de Carvalho encontrou, convenientemente, num sistema que se destaca pela sua uniformidade, aplicabilidade e estabilidade: o catolicismo, mais precisamente, a doutrina filosófica-teológica legada de Tomás de Aquino, o Tomismo. Este eminente pensador trata, na sua obra, escrita no século 13, de uma fusão das grandes e eternas questões básicas da filosofia e teologia. Nada de errado nisso, se Olavo de Carvalho não inferisse desta
lógica pré-moderna (e de pensadores antimodernos que vieram depois) uma abordagem para explicar o mundo atual e todos os seus fenômenos. A base de seu pensamento é um sistema total e único, baseado na premissa da “unidade metafísica”, que ele entende como o divino “Primeiro Princípio” infinito e eterno, ou como, simplesmente, a verdade de Deus. Por meio de seus inumeráveis reflexos, essa verdade regeria todos os aspectos do mundo ao mesmo tempo material e espiritual, ou seja, em todos os níveis e planos de existência. Porém, o conhecimento dessa verdade seria condicionado pela tomada de consciência individual, a experiência de que os fenômenos necessariamente transcenderiam a dimensão empírica e teriam um sentido espiritual. Essa consciência, em última instância, seria a experiência reveladora da presença de Deus, objetiva e fisicamente, e ofereceria para o iniciado — tal como Olavo de Carvalho — a certeza total da verdade e o emanciparia da necessidade da prova e da lógica. Negar tal “realidade”, tal como fizeram o racionalismo e todos os outros -ismos em decorrência do século do Iluminismo, corresponderia, simplesmente, a uma heresia. Como uma pirâmide de ponta para baixo, o pensamento Olaviano é condicionado por uma premissa apodíctica, isto é, sem evidências que o corroborem. Para ele, o mundo moderno só poderia ser entendido como processo de degeneração, desde a alta idade média. O que colocaria os seres humanos nesse tobogã para o inferno seria a alienação da sua condição ontológica, um vácuo preenchido pelo Estado e suas religiões “civis”, tais como a ciência. Tal antimodernismo inclui necessariamente o anticientificismo e o anti-intelectualismo, com efeitos drásticos sobre o que Olavo de Carvalho chama de sua “crítica social”. Restrito ao próprio “conhecimento por presença” e condenado a sempre refutar conhecimentos contraditórios por serem frutos do “erro”, não há prevenção contra análises e projeções mirabolantes, alimentadas por paranoia e megalomania. As contribuições de correligionários que partem das mesmas premissas e conclusões não exercem satisfatoriamente a função de retorno crítico que possibilitaria o
aprimoramento das próprias pesquisas do mestre. Nesse sentido, torna-se possível entender os pareceres que Olavo de Carvalho, como o único vidente entre cegos, elabora sobre os mais variados assuntos desde o campo da medicina à economia, da análise política à física. O jogo mútuo de negações e afirmações, ditadas pelo seu esquema de abordagem, infalivelmente conduz àquela “verdade” sem permitir margem para erro. Se no povoado do Estado da Virgínia, onde Olavo de Carvalho reside, ele nunca avistou apoiadores do candidato Joe Biden, se, como imagina o olavismo, Biden é agente do comunismo e, ainda, se a mídia supostamente marxista divulgou seu apoio, então a única conclusão possível é que ninguém o apoia — resultado que, não por acaso, corresponde a seu desejo. Se, mesmo assim, o político democrata ganhou as eleições, só pode ter sido por fraude. Torna-se possível também entender a susceptibilidade do olavismo entre milhares de discípulos, indivíduos conectados, em geral, somente no mundo virtual. A autodeclarada “maior autoridade” ou “única autoridade intelectual” oferece para alguns eleitos justamente aquilo que avidamente desejam: um conhecimento monolítico e de fácil compreensão, que todos os outros supostamente desejosos de saber, que labutam para conseguir apenas uma partícula dessa sabedoria, nunca terão como adquirir. Como ironia do destino, Olavo de Carvalho morreu de (ou com) a infeção do coronavírus cuja existência e periculosidade ele sempre tinha refutado. Se essa realidade de alguma forma afeta o sistema blindado do negacionismo olavista é incerto. LEIA MAIS
Puglia, L. Reação conectada: as direitas brasileiras em perspectiva histórica. 2020. Tese (Doutorado), Curso de Ciências Sociais. PUCRJ, Rio de Janeiro, 2020. Rocha, J. C. de C. Guerra cultural e retórica do ódio. Goiânia: Caminhos, 2021. 464p.
Wink, G. Brazil, land of the past: the ideological roots of the new right. Cuernavaca: Bibliotopía, 2021. E-book. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2022. CONFIRA
ANTI-INTELECTUALISMO FASCISMO NEGACIONISMO ESTRUTURAL
* Professor e pesquisador da Universidade de Copenhague
ORESKES, NAOMI José Szwako * Luiz A. Campos **
N
ascida em 1958, Naomi Oreskes é historiadora e geocientista, professora de História da Ciência da Universidade de Harvard. Apesar da variedade de interesses de pesquisa, que vão do papel das mulheres nas ciências até as geociências, a reflexão de Oreskes tem se destacado internacionalmente por sua investigação sobre as origens dos diversos tipos de negacionismo científico. Tanto teórica como politicamente, sua obra vem fazendo frente à negação do caráter antropogênico das mudanças climáticas, isto é, à negação do papel ativamente desempenhado por humanos no aquecimento global, dentre outros temas correlatos. Título incontornável no debate atual sobre o tema é o livro Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming, escrito por ela e por Erik M. Conway. Nessa obra, ambos demonstram diferentes casos históricos de como interesses extracientíficos, em especial de empresas ligadas à indústria do tabaco e do petróleo, articularam-se no sentido de minar a confiança em pesquisas científicas que ameaçavam seus lucros. Caso exemplar disso está no que ambos chamam de “estratégia do tabaco”, através da qual um conjunto de companhias de cigarro contestou a conexão cientificamente comprovada entre fumo e câncer. No centro dessa estratégia, é possível discernir ao menos três traços relevantes. O primeiro deles é a cooptação de cientistas que, mesmo não sendo especialistas em câncer ou aquecimento global, emprestavam seus títulos acadêmicos a iniciativas que semeavam dúvidas quanto às pesquisas consolidadas na área. Uma segunda marca é a reunião desses “especialistas” em organizações da sociedade civil dedicadas à contestação das teorias mais aceitas e à
difusão de interpretações alternativas, os chamados think tanks. Por fim, outro traço comum está na forma como a mídia acabou por legitimar essa pseudociência ao seguir à máxima de “escutar os dois lados” de um debate. Não é incomum que jornais, revistas e, mais recentemente, sites tragam à cena pública nomes antes irrelevantes para os debates especializados. Essa lógica de atuação, no entanto, não se restringe aos males do cigarro ou ao aquecimento global. Com efeito, táticas similares foram adotas em inúmeras outras áreas e questões da vida pública, suscitando perigos expressos em realidades que vão desde a saúde pública, à chuva ácida, ao buraco da camada de ozônio e ao uso indiscriminado de pesticidas. Quer dizer, como a produção acadêmica tem conquistado posição pública central na vocalização dos limites e das consequências advindas de determinados modos de exploração e desenvolvimento econômicos, a reação a ela tem sido articulada e forte. Para ela e seus parceiros de pesquisa, o central nessas estratégias negacionistas não é propriamente a negação frontal à ciência em si, mas o ataque a resultados científicos consolidados a partir de táticas internas à própria ciência que acabam por espraiar a dúvida. Noutros termos, em vez de oporem argumentos anticientíficos às pesquisas que ameaçam seus lucros, essas articulações produzem uma pseudociência alternativa, prenhe de teorias duvidosas ou mesmo equivocadas, mas que “passam” como cientificamente legítimas. Assim a reflexão de Oreskes tem dado uma consistente contribuição ao debate sobre os negacionismos. Longe de ser sinônimo de ignorância, os grupos e discursos negacionistas conformam esforços deliberados para atingir o público, falsificando conhecimentos e consensos, em nome de interesses políticos e materiais. Mais ainda: o negacionismo tem, na visão de Oreskes e Conway, uma relação estreita com uma versão do discurso neoliberal, por eles chamados de “fundamentalismo de mercado”. Essa afinidade tem dupla raiz. Não apenas o pensamento neoliberal
incentiva uma relação cínica com o conhecimento, enfatizando a incapacidade de intervenção científica no mundo, como ele também tende a negar a responsabilidade que atores sociais, políticos e, sobretudo, econômicos têm sobre o mundo em que vivemos. Distribuída em dezenas de artigos, toda essa contribuição não recua diante dos dilemas com os quais as universidades e os cientistas têm de lidar quando enfrentam esses negacionismos. Quais seriam as medidas que cientistas e outros atores sociais poderiam tomar para proteger a ciência desses ataques? A resposta a essa pergunta é esboçada por Oreskes em Why Trust Science?, livro de 2019. Nele, Oreskes viaja pela história dos estudos da ciência ao longo do século 20, para nos mostrar como as tensões entre ciência e sociedade não são recentes. Tais relações marcaram toda história da ciência, com diferentes graus de aproximação e afastamento dela em relação a governos, empresas, políticas públicas ou, em tempos de guerra, em relação às forças armadas. É a partir desse conjunto de relações que emerge não só a confiança, mas também a desconfiança em relação à ciência. Vale destacar, aliás, que a própria ciência não pode ser sacralizada ou tida como imune a erros ou a interesses políticos escusos. A história da ciência moderna está repleta de teorias cuja validade se mostrou falsa com o tempo. Exemplos disso vão das hipóteses eugênicas e racistas do início do século 20 até a recomendação incauta de tratamentos hormonais a mulheres e grávidas a partir da década de 1960 e 1970. Daí a importância, para Oreskes, de uma ciência atenta a sua diversidade interna, não apenas em termos de teorias distintas competindo entre si, mas também dos corpos que produzem a própria ciência. Tal ideia se inspira na extensão crítica feminista aos erros e limites impostos à pesquisa cientifica, em razão de padrões historicamente homogêneos e excludentes de seleção. Em oposição a tais padrões, Oreskes aposta que a ciência pode se enriquecer com corpos socialmente mais diversificados de cientistas e em instituições de pesquisa.
Os fatores pelos quais uma determinada pessoa confia ou não nas pesquisas são muito variados e, argumenta a autora, não se resumem jamais à força epistêmica da ciência. Quer dizer, não basta estar metodologicamente correto e ter uma pesquisa com adequação empírica demonstrada para que se confie na ciência. Se a correção interna da pesquisa é critério fundamental para sua validade, ela não é suficiente para sua tradução e apropriação sociais. Os caminhos para uma aproximação mais fluida entre cientistas e sociedade, para ela, devem ser mais que incentivados e variados, devem também estar abertos a uma discussão ampla e pública que possa abrir a “caixa preta” das ciências. Avessa a modismos e relativismos, e endossando o coro daqueles que almejam cenários mais plurais e democráticos, a obra de Naomi Oreskes é prova de que o comprometimento com a ciência anda de mãos dadas com o compromisso com a sociedade. LEIA MAIS
BAKER, E.; ORESKES, N. “It’s no game: post-truth and the obligations of science studies.” Social Epistemology Review and Reply Collective, [S. l.], v. 6, n. 8, p. 1-10, 2017. ORESKES, N.; CONWAY, E. M. Merchants of doubt: how a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming. New York: Bloomsburry Press, 10 jul. 2010. ORESKES, N. Why trust science? Oxford: Princeton University Press, 2019. CONFIRA
ANTROPOCENO NEGACIONISMO CLIMÁTICO UNIVERSIDADE
* Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) ** Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
PANDEMIA DA COVID-19 Rômulo Paes-Sousa *
O negacionismo
dos aspectos relacionados às pandemias é tão antigo quanto os registros delas. Esses registros tendem a vir acompanhados de explicações ou práticas alternativas de prevenção ou cura. Nas pandemias, são globais tanto a disseminação das doenças como a desinformação que as acompanham. Nesse sentido, nunca fomos tão globalizados. Nos anos de 1918 e 1919, durante a gripe espanhola no Brasil, as autoridades sanitárias acreditaram, inicialmente, que as diferenças climáticas do país em relação àqueles do hemisfério norte seriam uma barreira natural contra o vírus. Quando a doença se espalhou pelas grandes cidades do Brasil, floresceu um lucrativo comércio de medicamentos inúteis para o seu tratamento, incluindo a onipresente cloroquina. Também, vicejaram expedientes religiosos diversos para prevenir ou curar o mal. Assim como na pandemia do covid-19, o enfrentamento da gripe espanhola negligenciou o conhecimento sanitário da época, menosprezou a gravidade da doença, evitou o quanto pôde as medidas quarentenárias com temor de seus impactos econômicos e realizou uma comunicação confusa e contraditória. Na grande pandemia do século 21, o negacionismo tem lugar destacado no inventário de erros cometidos para seu enfrentamento. Conteúdo, forma, interesses, difusores e meios de divulgação são diversos e bastante eficazes ao ponto de interferir em todas as etapas do planejamento e da implementação de políticas de combate à doença. A seguir, apresentamos uma sucinta descrição dos principais conteúdos negacionistas divulgados nos 20 meses de vivência global do covid-19, cotejados com o conhecimento científico acumulado quanto aos temas.
I) Origem natural do vírus — Muitos viram o surgimento da doença como produto de um laboratório chinês que de forma acidental ou proposital liberou o vírus. Nessa hipótese, haveria interesses comerciais, políticos ou militares por traz de uma perversa estratégia geopolítica. Essa abordagem incentivou atitudes xenofóbicas contra pessoas de origem asiática em vários locais do mundo, especialmente nos Estados Unidos da América. A Organização Mundial da Saúde (OMS), apoiada nas informações do governo chinês, sustenta que o vírus saltou a barreira de espécies no final de 2019, partindo possivelmente de um morcego para infectar os humanos por meio de um outro animal. Esse tema, contudo, se mantém de forma indolente, voltando eventualmente à cena, quando instrumentalizado por diplomacias belicosas, como ocorreu com os Estados Unidos, logo após a posse do presidente Biden, no primeiro semestre de 2021. II) Tempo de duração e relevância da pandemia — No Brasil, o negacionismo quanto à severidade e à potencial longa duração da doença obteve um manto de institucionalidade já que o deputado federal e médico, Osmar Terra, afirmou que a pandemia duraria 12 semanas e seria responsável por até 800 óbitos. O deputado buscou ancorar sua afirmação no comportamento de outra pandemia provocada por um vírus relacionado às doenças respiratórias, o H1N1, ocorrida no Brasil em 2009. Ainda que recebida por muitos com desconfiança, as falas do deputado foram repercutidas pelo presidente e seus apoiadores, sempre alertando para a “autoridade científica” do deputado. Entre os meses de março e junho de 2020, o deputado foi ajustando o seu cronograma da pandemia e a expectativa quanto ao número de mortos, sendo progressivamente frustrado pelo agravamento da transmissão da doença e suas consequências. III) Epidemiologia e confiabilidade estatística — O rápido crescimento do número de infectados, de internados e dos óbitos referentes à doença sofreu grande contestação entres os negacionistas. No primeiro semestre de 2020, foi muito difundida a tese que os médicos legistas fraudavam as declarações de óbito,
substituindo a causa real por covid-19. Ocorreu o estímulo à invasão de hospitais para que fossem realizadas gravações de supostas alas vazias reservadas ao tratamento de portadores da doença. Alguns profissionais de saúde, militantes negacionistas, chegaram a fazer gravações de dentro das unidades de saúde sustentando estas narrativas. Em 31 de julho de 2020, o Ministério da Saúde já computava 92.500 óbitos por covid-19, tornando ocioso esse debate. IV) Efetividade das medidas de prevenção — Há mais de 700 anos, mesmo antes de se conhecer os causadores de muitas doenças infecciosas, usam-se formas diversas de redução do contato entre as pessoas (medidas quarentenárias e distanciamento entre pessoas) como forma de prevenção da disseminação de doenças. Mais recentemente, passaram-se a adotar materiais mais eficazes na produção de máscaras que reduzem o contágio e, sobretudo, a transmissão de doenças respiratórias, aumentando o arsenal de tecnologias preventivas. Esse conjunto de procedimentos ficou definido durante a pandemia atual como medidas não farmacológicas. A negação da eficácia dessas medidas atravessou todo o período da pandemia. Os determinantes do negacionismo em relação a essas medidas parecem estar relacionados tanto ao desconforto que elas provocam como a razões de ordem econômica, isto é, a visão de que a suspensão das atividades presenciais nos locais de trabalho, e mesmo o trabalho remoto, provocaria mais danos sociais do que a doença em si. Esses fatores foram explorados politicamente em vários locais do mundo. No Brasil, um dos mais aguerridos opositores das medidas não farmacológicas tem sido o presidente da República, Jair Bolsonaro. V) Limites no tratamento da doença — O uso de medicamentos como forma de prevenir o covid-19 tem sido apresentado no Brasil como método alternativo às medidas não farmacológicas. Os principais medicamentos usados também são prescritos para casos leves da doença. São eles: cloroquina e hidroxicloroquina (usados para tratamento de malária), azitromicina (antibiótico) e invermectina (usado no tratamento de doenças causadas por parasitas). Nenhum
deles mostrou-se eficaz no tratamento do covid-19. Mesmo assim, várias prefeituras e operadoras de planos de saúde distribuíram fartamente esse kit de medicamentos pelo país. Surpreendente, seu uso não foi contestado pelo Conselho Federal de Medicina, que utilizou da narrativa da autonomia do profissional para decidir sobre o tratamento, vindo a ser desaconselhado pelo Ministério da Saúde somente em 14 de julho de 2021. VI) Eficácia das vacinas — A negação da eficácia de vacinas no combate às doenças infecciosas é muito influente em muitos países do hemisfério norte. Há movimentos organizados bastante ativos contra qualquer tipo de vacina. Eles defendem que as vacinas são inseguras e a obrigatoriedade em recebê-las, quando presente, viola os seus direitos civis. O termo em inglês para esse tipo de ativista é “anti-vaxxer”. No Brasil, até a pandemia, o movimento antivacina era pouco organizado, embora haja indícios de que ele tenha contribuído com a queda recente de cobertura de vacinas da infância, como as usadas para a prevenção de sarampo, caxumba e rubéola. Na pandemia, esse movimento ganhou impulso no Brasil. A narrativa apresentada é que as vacinas disponíveis poderiam alterar a estrutura genética dos vacinados ou inserir microchips para a vigilância ou interferência nos hábitos dos vacinados. Essas narrativas contribuíram, no princípio das campanhas de vacinação, com a hesitação vacinal em vários países. Contudo, foram perdendo força com o avanço da imunização e os seus efeitos positivos na redução do contágio e, consequente, redução de internações e óbitos. Os interesses políticos e econômicos estavam vinculados aos vários tipos de negacionismo listados. A militância negacionista global foi sobretudo de direita. Contudo, algumas lideranças políticas de esquerda também combateram nessas trincheiras, como o presidente do México, Andrés López Obrador. Narrativas negacionistas favoreceram a exploração de um amplo comércio de fármacos convencionais e naturais. Movimentos antivacinas financiaram de forma intensiva anúncios em plataformas digitais como Facebook e Twitter, contribuindo decisivamente para o aumento de receita dessas empresas. A disputa das vacinas pelo
ávido mercado consumidor foi favorecida pela hesitação vacinal aumentada pelo negacionismo seletivo contra determinadas vacinas em vários países. Como exemplos: contra a “vacina chinesa” no Brasil ou contra as “vacinas americanas” na França. A estratégia massiva de divulgação dessas teses facilitou a grande convergência entre os que praticam o negacionismo em relação aos temas descritos acima. O uso das plataformas digitais, sobretudo redes de WhatsApp, foram decisivas para difundir o negacionismo, apoiando-se em narrativas que apresentavam explicações ou soluções alternativas ao conhecimento científico acumulado. Nesse esforço, muitas narrativas apoiavam-se na distorção de achados científicos, buscando ironicamente na ciência a validação de seus discursos, ou na pura falsificação de informações pretensamente qualificadas. Os negacionismos em pandemias são, em si, atitudes ligadas à promoção da saúde (nesse caso, funcionando de forma inversa), comprometendo as atitudes e as percepções relacionadas a doenças. A eficaz difusão de narrativas negacionistas interferiu na compreensão da população quanto a gravidade da doença e na adesão da população brasileira às medidas não farmacológicas, incentivou o uso amplo de medicamentos ineficazes, retardou a imunização da população e contribuiu com a percepção internacional negativa sobre o Brasil e seus governantes. Por isso, não seria exagero afirmar que, no Brasil, o negacionismo aos eventos e ações de saúde coletiva nunca havia sido tão efetivo e tão atroz como o foi nos anos em que vivemos na pandemia do covid19. LEIA MAIS
SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. PAES-SOUSA, R. “Brevíssimo inventario dos fracassos no enfrentamento da covid-19 no Brasil.” Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 38, p. 1-5, 2021.
GALHARDI, C. P. et al. “Fato ou Fake? Uma análise da desinformação frente a pandemia da covid-19 no Brasil.” Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, p. 4201-4210, 2020. Suplemento 2. CONFIRA
PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) POLÍTICA PÓS-VERDADE
* Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) Karina Calife * Ethel Leonor Maciel **
P
andemia, substantivo feminino de origem grega representada pela junção dos elementos Pan (todo, tudo) e Demos (povo), traz em si o significado de “todo o povo”. Em sentido literal, trata de uma epidemia de doenças infecciosas e contagiosas com grande número de pessoas contaminadas ao mesmo tempo, que se espalha geograficamente de maneira muito rápida. Pode atingir uma região, um país, um continente, o mundo. No sentido figurado é referência a qualquer coisa que, de forma concreta ou abstrata, se espalhe rapidamente com grande repercussão. Neste momento, vivemos a maior pandemia dos últimos 100 anos. É importante pontuar que pela primeira vez, em uma grande pandemia, estamos enfrentando-a com a presença de agências multilaterais, que foram criadas após a segunda guerra. A pandemia da covid-19, traz essa diferenciação na forma de sua condução, tendo sido decretada pela OMS a situação pandêmica em 11 de março de 2020. Portanto, os desafios da saúde pública na contemporaneidade têm uma perspectiva global. Para entender esse processo, precisamos fazer uma reflexão do que é global: um mundo em que estados nacionais não tenham mais importância? Um mundo mais padronizado, a partir da dominação do capital financeiro? Essa contemporaneidade traz em si também um profundo paradoxo: a grande conectividade e interdependência pessoal que convive, ao mesmo tempo, com um profundo individualismo. Apesar da grande presença de laços sociais pela profunda conectividade, a sociedade está mais pautada numa perspectiva de coerção social do que na solidariedade. Tudo isso nos coloca em um grande desafio de ação e abordagem entre o global e a sua relação com a saúde pública, nos trazendo importantes questionamentos: O que é ser global frente a pandemia
da covid-19? É desse mundo em crise que estamos falando. Entre os desafios da saúde pública na contemporaneidade nessa perspectiva global estão presentes os desafios ambiental e demográfico, com a persistência das desigualdades, os desafios da ciência e das inovações tecnológicas e os desafios relacionados à crise da democracia. Do ponto de vista ambiental, estamos convivendo com importantes mudanças climáticas, com o uso predatório de recursos naturais, com o capitalismo e seu extrativismo descontrolado, com os determinantes ambientais e socioambientais e com a ausência de saneamento em alguns territórios. Esses riscos ambientais foram e são responsáveis por várias mortes possíveis de prevenir. Como desafio demográfico estão as desigualdades de classe, também responsáveis pela piora nos indicadores de saúde. A alta da mortalidade, a diferença da expectativa de vida geral e (pior) entre os 70 anos e mais: vive mais quem tem mais recursos. O cuidado e controle das doenças crônicas também são de acesso desigual. Apesar das novas tecnologias disponíveis de conhecimento e insumos, estes não estão disponíveis para todos. O acesso à educação também é determinante pois, apesar de contarmos com aceleração da população com educação básica, o mesmo não foi garantido em relação ao acesso na educação superior. A persistência de grandes desigualdades, apontadas, por exemplo, pelo Índice de Gini (somos o 7º pior país no mundo em relação às desigualdades), traduz-se em desigualdades que afetam nossa resposta à pandemia de várias formas. No caso do enfrentamento à covid-19, a desigualdade também se dá no acesso a leitos adequados, aos respiradores, EPIs e medicamentos que são ofertados de maneira desigual no país. No Brasil, vulnerabilidade social e políticas públicas acontecem e precisam ser pensadas nesse contexto de desigualdades. A produção científica e a propriedade intelectual são muito desiguais entre os países no mundo, regiões, estados e cidades. Apesar de contarmos com o desenvolvimento de conhecimento e
ampliação da propriedade intelectual em alguns pontos de excelência como o Bio-Manguinhos e o Butantan, laboratórios com condições de trabalhar com a produção das vacinas contra a covid19 e com possibilidade de receber a transferência de tecnologia necessária para sua a produção cem por cento nacional, ainda temos insuficiências nessa questão. Outros desafios referidos à biotecnologia são a produção de medicamentos, vacinas em geral e insumos. Toda a cadeia produtiva do complexo para produção de ciência, tecnologia e inovação no Brasil tem sofrido profundo desfinanciamento relacionadas à Emenda Constitucional 95, que limitou os gastos do estado brasileiro. Do ponto de vista das políticas públicas, especialmente das de saúde e do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de parecer incoerente, a pandemia nos devolve a possibilidade de entendimento de que o Estado precisa voltar a servir a sociedade. O SARS-CoV-2 2019 aparece na China, seguindo rapidamente para o continente asiático e europeu, e chega ao Brasil em fevereiro de 2020. Sua entrada e disseminação deu-se pelas grandes cidades brasileiras a partir dos aeroportos internacionais. A pandemia da covid-19 no Brasil afetou inicialmente as pessoas com mais alta renda, mas seguiu rapidamente para as regiões periféricas das capitais e regiões metropolitanas, marcadas por precárias condições de moradia e alta vulnerabilidade social, e rapidamente seguiu com a interiorização da pandemia, especialmente pelas grandes rodovias nacionais. No Brasil, o enfrentamento à pandemia da covid-19 foi, e tem sido, desastrosa. Houve por aqui a clara intenção de se disseminar o vírus, como política adotada, segundo Ventura. Isso se deu por uma tese negacionista, que ignorou a ciência e suas melhores evidências. Seus defensores tinham como crença e aposta a “imunidade de rebanho” (imunidade coletiva), impossível de ser alcançada sem a política pública adequada para tal: a vacinação em massa da população. Existiram no Brasil responsáveis diretos pelo assustador número de mortes pela covid-19. Somos 2,7% da
população mundial e contamos com 30% das mortes por covid-19 no mundo. Muitas são as evidências construídas a partir de estudos científicos, com previsões e cálculos a partir de modelos matemáticos, entre outras metodologias utilizadas, a demonstrar que um número significativo dessas mortes, aproximadamente uma em cada cinco, poderia ter sido evitado no Brasil. A condução do enfrentamento à pandemia no Brasil não foi apenas pífia, mas intencionalmente realizada sem base na ciência e nas melhores evidências científicas, e com apostas em “tratamentos precoces” ineficazes para uma doença viral como a covid-19, tratamento este banido pela comunidade científica nacional e internacional. Negaram as vacinas, dificultando sua aquisição em tempo oportuno, uma das únicas ações de política pública possível, acrescida das medidas não farmacológicas como distanciamento social, lockdown, uso obrigatório de máscaras e o auxílio emergencial para que as pessoas pudessem cumprir o necessário distanciamento. O governo federal foi equivocado e criminoso na gestão da pandemia. Isso foi determinante para sermos o terceiro país do mundo em número de óbitos absolutos pela covid-19 até aqui e também o país com mais mortes maternas pela covid-19: oito em cada dez mortes maternas pela covid-19 no mundo aconteceram no Brasil. Essa situação deixará uma legião de órfãos da covid-19 em nosso país, que precisarão contar com políticas públicas específicas, complexas e sensíveis. Também se coloca aqui uma questão de gênero, que demonstra que o desastre no enfrentamento a pandemia foi ainda pior para as mulheres brasileiras. Lidamos hoje com a perda de milhares de brasileiras e brasileiros para a doença. O luto passou a ter outro significado: aquilo que não deveria ter acontecido. São amores, amigos, pais, mães e filhos de muitas brasileiras e brasileiros que sofrem e choram com as suas perdas por uma doença para a qual, atualmente, já existem vacinas seguras e eficazes. Algumas
ações
deliberadas
do
governo
federal
foram
determinantes para esse grave quadro: a falta de coordenação nacional que orientasse estados e municípios a seguir uma linha de cuidados e orientações com medidas de proteção não farmacológicas já apontadas. Uma comunicação ambivalente, que confundiu a população com informações erradas e perigosas, porque deixaram as pessoas com uma falsa sensação de uma segurança e, ainda, o pouco investimento e o atraso na compra e a distribuição das vacinas para a população. Em todas essas ações, o eixo principal estava sendo guiado pelo negacionismo científico, tendo como protagonistas as autoridades máximas do Executivo no país. Por outro lado, os profissionais de saúde, cientistas, professores, jornalistas, artistas, entre outros, têm cumprido um importante papel na pandemia, informando à sociedade sobre como se prevenir, orientando quanto ao uso de máscaras, importância do distanciamento social e produzindo dados baseados nas melhores evidências científicas para a orientação dos gestores públicos. Estados, municípios, regiões do país e sociedade civil precisaram compor comitês gestores, com medidas próprias de combate à pandemia, realizaram pesquisas, desenvolveram junto à sociedade civil plataformas voluntárias de cuidado, teleatendimento e atuação direta na linha de frente da assistência às pessoas infectadas pela covid-19. A pandemia no Brasil foi sinônimo do descaso do governo e da desigualdade social, e poderia ter sido muito diferente. Temos no SUS um dos maiores patrimônios de nossa sociedade. Apesar de tudo, a atuação do SUS e de outras instituições da sociedade civil foi um alento no esforço para enfrentar o covid-19 e, com toda a experiência vivida, pode-se acreditar que no enfrentamento a essa e a outras possíveis pandemias. Que possamos nos preparar adequadamente e em tempo efetivo para proteger o que de mais importante existe: a vida das pessoas. LEIA MAIS
Hallal, P. C. SOS “Brazil: science under attack.” The Lancet,
London/New York, v. 397, n. 10272, p. 373-374, jan. 2021. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. REDE FEMINISTA DE GINECOLOGISTAS E OBSTRETAS. Um chamado à ação contra a morte materna por covid-19 no Brasil. Brasília, 7 abr. 2021. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. REDE BRASILEIRA DE MULHERES CIENTISTAS. Manifesto de responsabilização. Jul., 2021. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. VENTURA, D.F.L.; AITH, F.M.A.; REIS, R.R. et al. Relatório elaborado pelo Cepedisa acerca do projeto de pesquisa Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à covid-19 no Brasil, São Paulo, mai. 2021. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
PANDEMIA POLÍTICA SINDEMIA
* Professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo ** Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
PÂNICOS MORAIS Gustavo Gomes da Costa *
N
as últimas décadas, os meios de comunicação de massa têm recorrentemente utilizado o termo pânico moral para descrever episódios de histeria e ansiedade coletivas em torno de questões as mais diversas, desde abuso sexual contra crianças, uso de drogas e seitas satânicas até criminalidade juvenil. Nas ciências sociais, o conceito de pânico moral foi elaborado pela pelo sociólogo Stanley Cohen em sua obra Demônios populares e pânicos morais (Folks Devils and Moral Panics). Cohen desenvolve o conceito a partir da análise dos tumultos ocorridos entre dois grupos de jovens no Reino Unido no verão de 1964, os “Mods” e “Rockers”. Os tumultos ficaram imortalizados no filme Quadrophenia, de 1979, dirigido por Franc Roddam e inspirado no álbum de mesmo nome da banda The Who lançado em 1973. Para Cohen, pânicos morais são episódios nos quais uma condição, acontecimento ou grupo social é caracterizado como uma ameaça a interesses e valores sociais estabelecidos. De maneira geral, os pânicos morais são direcionados a certas coletividades, percebidas como tipos sociais distintos, cujas ações, comportamentos e identidades são considerados como desviantes em relação a padrões e normas predominantes: os chamados demônios populares (folks devils). O autor desenvolve a análise do pânico moral a partir de um modelo de três fases. A primeira fase seria a do “desvio inicial” ou “fase de impacto”, no qual ainda não é possível identificar se um episódio pode se converter em um pânico moral. A segunda fase, intitulada de “inventário”, é aquela na qual os indivíduos envolvidos no episódio formulam interpretações sobre os acontecimentos. É nessa fase que os meios de comunicação assumem papel crucial na conversão de um episódio em pânico moral. Cohen demonstra como a cobertura sensacionalista de vários jornais britânicos foi fundamental na emergência do pânico moral em 1964. Aquilo que
poderia configurar trivial episódio de disputa entre grupos rivais tornou-se um acontecimento de repercussão nacional. Na terceira e última fase do pânico, a reação social, observa-se o engajamento dos chamados empreendedores da moral, que podem ser políticos, membros da polícia e do judiciário, lideranças religiosas, entre outros agentes de controle. Empreendedores morais são indivíduos, grupos ou organizações que se empenham em persuadir a sociedade, ou certos segmentos dela, a aplicar regras que sejam consistentes com suas próprias crenças e valores morais fervorosamente defendidos. São eles que promovem a sensibilização do público, articulando incidentes e eventos desconexos como sintomas de uma mesma forma ameaçadora de desvio social. A inquietação social relacionada ao episódio desencadeador do pânico moral cresce e emergem reinvindicações por leis mais rígidas e por outras medidas de controle e vigilância contra o grupo ou comportamento visto como desviante. O contexto é fundamental para compreender as razões pelas quais certos acontecimentos tornam-se pânicos morais. Os empreendedores da moral, os agentes de controle e a mídia necessitam circunstâncias sociais propícias para a emergência e a disseminação de um pânico moral. Momentos de crise e de intensas transformações sociais são particularmente oportunos para a difusão de pânicos morais. Nas ciências sociais, embora pesquisas sobre pânicos morais tenham se debruçado sobre temas como as teorias conspiratórias ou a criminalidade juvenil, observa-se que muitos dos pânicos morais se ligam a diferentes dimensões da sexualidade. Prostituição, exploração sexual de menores, infecções sexualmente transmissíveis e homossexualidade são alguns dos temas particularmente propensos a envolver grupos sociais em cruzadas moralizadoras em diferentes marcos nacionais e temporais. Isso pode ser explicado pelo fato de a sexualidade ser uma dimensão da vida social altamente regulamentada no Ocidente. Quer dizer, comportamentos sexuais, identidades, práticas e papéis sociais são
intensamente escrutinados e governados por um complexo conjunto de leis e tabus, assim como por percepções e reações emocionais. Da mesma forma, a sexualidade tem sido utilizada como mecanismo de canalização de inquietações sociais oriundas, em muitos casos, de crises e transformações mais amplas. Assim, em momentos de crise e mudança social, são maiores as probabilidades de um evento relacionado à sexualidade converter-se em pânico moral. Com o advento da internet, tem se multiplicado a produção e disseminação de conteúdos midiáticos que contribuem para a emergência e difusão de pânicos morais. Dessa forma, vários grupos e organizações têm sido capazes de agir como “empreendedores da moral”, canalizando as ansiedades sociais para certos episódios do cotidiano, convertendo-os em potenciais pânicos. Segundo o sociólogo Sean Hier, o avanço do neoliberalismo tem se sustentado em ideias de “empreendedorismo” e “meritocracia” que crescentemente não apenas responsabilizam os indivíduos pelos seus destinos sociais, mas principalmente enquadram o fracasso individual como uma “falha de caráter”. Dessa forma, os pânicos tendem a operar no sentido de individualizar responsabilidades pelos problemas sociais. O aumento do desemprego, da miséria e da violência urbana são percebidas como resultado do fracasso individual, ocultando-se suas dimensões estruturais. Mais recentemente, lideranças populistas têm sido particularmente propensas a fazer uso de pânicos morais para mobilizar diversos setores do eleitorado, canalizando suas frustações e descontentamentos em direção à certos grupos sociais tratados como “demônios populares”, a exemplo de feministas, ativistas LGBTQI+, imigrantes etc. Um episódio recente no Brasil converteu-se em um pânico moral com importantes implicações políticas: o cancelamento da exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira em setembro de 2017. Sediada no Espaço Cultural Santander em Porto Alegre (RS), a exposição foi alvo de uma ampla mobilização
na internet capitaneada por ativistas do Movimento Brasil Livre (MBL). A mobilização do grupo não só resultou no cancelamento da exposição pelo Banco Santander, mas deu início a uma espiral de mobilizações por todo o Brasil contra exposições e outras expressões artísticas que abordavam diferentes aspectos da sexualidade. Apenas no mês de setembro, várias manifestações artísticas foram alvos de ataques de empreendedores morais. A primeira delas foi a exposição Cadafalso aberta ao público em junho de 2017 no Museu de Arte Contemporânea (MARCO) de Campo Grande (MS), cujo quadro intitulado A pedofilia, de Alessandra Cunha, foi apreendido pela Polícia Civil após parlamentares da bancada evangélica estadual a acusarem de supostamente promover a pedofilia. A segunda foi a peça O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, da dramaturga Jo Clifford, no Centro Cultural SESC de Jundiaí (SP), que retrata Jesus Cristo na contemporaneidade, na pele de uma mulher transexual. A exibição da peça foi cancelada por um juiz local, que acatou as denúncias de grupos de extrema direita, dentre eles a Tradição, Família e Propriedade (TFP), que alegaram que a peça afrontaria a “dignidade cristã”, supostamente ridicularizando os símbolos católicos. A terceira manifestação artística alvo do pânico moral foi a performance La Bête, realizada pelo coreógrafo Wagner Schwarz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM). Vídeos que exibiam uma menina tocando o corpo nu do coreógrafo foram amplamente divulgados na internet junto a críticas a uma suposta “incitação à pedofilia”. Uma manifestação contrária à performance foi organizada pelo MBL em frente ao MAM, exigindo o cancelamento da performance sob argumentos de utilização indevida de verbas públicas para supostamente promover a “pedofilia” e “atentar contra os valores da sociedade brasileira”. O pânico moral em torno de manifestações culturais estendeu-se até o mês de novembro de 2017, quando a filósofa estadunidense Judith Butler, referência dos estudos de gênero e queer, foi alvo da manifestação de grupos conservadores. Esses grupos acusavam a autora de defender a “ideologia de gênero” nas escolas e de encorajar a pedofilia,
representando um ameaça aos valores da família. Butler foi ainda alvo de violência física proferida por uma ativista ultraconservadora no aeroporto de Congonhas. As mobilizações desencadeadas com o cancelamento da exposição Queermuseu apontam para a importância da sexualidade na emergência de pânicos morais. No Brasil contemporâneo, expressões da sexualidade que rompem com os padrões hegemônicos foram demonizadas a partir da ação dos empreendedores morais. Grupos de extrema direita e lideranças político-religiosas têm interpretado a visibilidade da população LGBTQI+ na esfera pública como sintoma de uma alegada “crise moral”, articulada às crises econômica e política recentes. O pânico moral orientado contra manifestações artísticas articulou, em 2018, diversos grupos em torno da candidatura de Jair Bolsonaro à presidência. Como presidente, ele tem feito uso de retórica ofensiva contra feministas, militantes LGBTQI+ e ativistas contrários a suas agendas. Os pânicos morais servem a Bolsonaro não só para desviar a atenção da opinião pública do negacionismo de sua gestão, mas principalmente para manter mobilizada sua base eleitoral, reforçando sua retórica de cruzada moral. LEIA MAIS
COHEN, S. Folk devils and moral panics. New York: Routledge, 2011. RUBIN, G. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu Editora, 2018. HIER, S. (Org.). Moral panic and the politics of anxiety. New York: Routledge, 2011. CONFIRA
ANTIGÊNERO GUERRAS CULTURAIS REACIONARISMO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
PARTICIPAÇÃO SOCIAL Adrian Gurza Lavalle * Carla de Paiva Bezerra **
1
O termo participação adquire diferentes significados conforme o seu
uso em diferentes âmbitos. Na teoria democrática, constitui uma categoria teórica e um valor fundamental da democracia, em boa medida devido a sua estreita conexão com outros valores democráticos como autodeterminação e igualdade política. No âmbito institucional do Estado, a participação pode ser um procedimento, delimitado legalmente, ao qual se conferem determinados propósitos e as correspondentes atribuições, tal como ocorre com a participação em uma eleição, audiência, conferência nacional de políticas ou em um conselho gestor. Finalmente, a participação é também uma categoria prática da ação dos atores sociais, utilizada para formular diversas reivindicações, em geral, de inclusão política. Assim, participação é a um só tempo valor, procedimento, categoria teórica e categoria prática, com implicações diversas conforme seus usos. Utilizada de forma antagônica à ideia de representação, a participação política, seja como categoria teórica ou prática, tornou-se portadora de uma noção mais radical da democracia, bem como eixo por meio do qual foram articuladas as principais críticas à chamada democracia liberal. Aqui interessa em particular a participação social em políticas públicas, objeto de desinstitucionalização e difamação pelo governo Bolsonaro. A institucionalização da participação social em políticas públicas, no Brasil, gerou um conjunto amplo de instâncias denominadas instituições participativas (IP ), passível de ser organizado em seis grupos que abarcam as experiências mais importantes implementadas no país desde meados dos anos 1980. O primeiro grupo contempla os orçamentos participativos, composto basicamente por experiências municipais realizadas ao longo de mais de três décadas em algo mais de três centenas de municípios.
O segundo compreende instâncias de planejamento urbano municipal ou submunicipal como os planos diretores, os comitês participativos nas Zonas Especiais de Interesse Social. O terceiro é composto por instâncias de gestão de recursos hídricos organizadas com base em regionalização fluvial como os comitês de bacia hidrográfica e consórcios intermunicipais de bacia hidrográfica. O seguinte grupo é integrado por audiências e consultas públicas: as primeiras, exigidas por lei em casos específicos, como nos de grandes empreendimentos com impactos sobre o meio ambiente ou o patrimônio; e as segundas, organizadas discricionariamente pelo poder público sobre assuntos específico como, por exemplo, o Marco Civil da Internet. O quinto contém as conferências nacionais de políticas públicas, que podem ser mandatórias por legislação setorial de nível federal ou convocadas discricionariamente pelo executivo federal para explorar a possibilidade de se gerar acordos sobre mudanças na política em uma determinada comunidade de políticas. Por fim, os conselhos participativos constituem um grupo amplo de instituições de natureza diversa: conselhos comunitários de segurança (Consegs); conselhos de equipamentos urbanos, como os conselhos das Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou conselhos de gestão de parques; conselhos de programas, como o conselho do programa Bolsa Família, por exemplo; conselhos de fundos, como os conselhos do Fundeb; conselhos de políticas não setoriais ou de áreas transversais como aqueles de combate às drogas, do idoso, da mulher, de combate à discriminação, dos direitos da criança e do adolescente; conselhos de políticas setoriais não inscritas em sistemas como os de turismo, trabalho ou meio ambiente; e conselhos de sistemas de políticas ou organizadas propriamente como sistemas, notadamente os de saúde e assistência social e educação. Como instância colegiada composta por diversidade de perspectivas, conhecimentos e expertises, conselhos contribuem aliando inclusão política ao aprimoramento da provisão de políticas públicas. Eles tendem a realizar regularmente funções que, na sua maioria, precisariam ser desempenhadas por
algum órgão da administração pública caso eles não existissem. Assim, conselhos ampliam a representação e complementam as instituições democráticas no país. Como parte das capacidades estatais nos municípios, conselhos ampliam a capilaridade do Estado, geram ganhos cognitivos ao permitir uma relação mais nuançada com aqueles que implementam a política na ponta e por ela são afetados. A diversidade e magnitude das IPs no país é produto histórico da mobilização social, mas não só. Os três grandes partidos do sistema político da pós-transição, (P)MDB, PT e PSDB, guardaram compromisso histórico com a ampliação da participação social e com a inovação institucional participativa. Diferentemente de outras transições latino-americanas, cuja democratização supunha a volta de partidos proscritos com eleitorados com forte identificação partidária, no Brasil, os partidos que reorganizaram o sistema partidário eram novos, criados durante ou logo após a ditadura, associados ao campo democrático e, no contexto das primeiras eleições da pós-transição, empenhados na construção de suas bases eleitorais. Foi o governo peemedebista de Montoro (19831987), no estado de São Paulo, que implementou algumas das primeiras inovações participativas, como os conselhos comunitários de segurança, inicialmente vinculados à pauta dos direitos humanos e de reforma da polícia para adequá-la aos novos tempos democráticos, ou os conselhos de participação e desenvolvimento da comunidade negra e da condição feminina. Nos anos 1990, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso se iniciou o processo de expansão dos conselhos gestores de políticas. O PT, por sua vez, tornou o orçamento participativo proposta distintiva de seus programas para os governos municipais. Progressivamente, o PT logrou fincar a participação como marca registrada de sua oferta programática, aumentando exponencialmente o número, diversidade e cobertura de conselhos e outras IPs como as conferências. Em sentido inverso, o PMDB e o PSDB tenderam a desinvestir nessa seara, quando não se tornaram abertamente antiparticipativos. Após uma trajetória de expansão e consolidação de quase três
décadas das IP , seu papel foi objeto de forte dissenso na classe política no último ano do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. Em maio de 2014, foi instituída por decreto a “Política e o Sistema Nacional de Participação Social”. A oposição no Congresso denunciou tal decreto chamando-o de tentativa “bolivariana” de usurpar o poder legislativo. Mais: a primeira votação no Congresso após a reeleição da presidente impôs uma derrota ao governo, suspendendo os efeitos desse decreto, mas, agora, com o apoio de partidos da base aliada — mais precisamente, com apoio de todos os partidos à exceção de PT, PCdoB e Psol. Tratou-se de uma derrota simbólica imposta pelo legislativo, advertindo a mudança de ânimos face ao poder executivo, uma vez que, para os legisladores, o conteúdo substantivo da derrota era irrelevante. Decisões contrárias ao funcionamento das IPs começaram durante o governo Michel Temer, e essa inflexão foi posteriormente aprofundada por Jair Bolsonaro. Em 2017, mediante o decreto nº 9076, Temer destituiu o ConCidades da atribuição de convocar a conferência nacional do setor. O decreto marcou a inflexão do governo federal em relação às políticas participativas, agora com interesse em sua desinstitucionalização. Por sua vez, e visando desmontar a participação social, Bolsonaro extinguiu e limitou o funcionamento de todos os colegiados da administração pública federal, por meio do Decreto 9.759/2019 e de diversos atos normativos subsequentes. Após quase dois anos de governo, os rastos do empenho destrutivo se avolumam, especialmente em áreas como meio ambiente, direitos humanos (gênero, raça e povos indígenas), educação, ciência e, notadamente, saúde. Dois elementos compõem o quadro do diagnóstico destrutivo de Bolsonaro sobre as IPs. As IPs não só tiveram papel na governança social dos governos do PT como havia nesses espaços a significativa presença de movimentos sociais e organizações da sociedade civil comprometidos com pautas identitárias, progressistas e de defesa de direitos humanos. Apesar das várias décadas como parlamentar, Bolsonaro se apresentou nas eleições de 2018 como o candidato “antissistema”, conservador e em
oposição à suposta “política tradicional”, com especial rechaço ao PT e a pautas associadas à esquerda. Combater o PT significa, também, expulsar de canais institucionalizados a série de atores sociais que definiram a teia dos laços dos governos petistas com a sociedade civil, especialmente os segmentos comprometidos com essas pautas. Não por acaso, o presidente justificou a edição do Decreto por promover redução de gastos e diminuir o suposto “poder das entidades aparelhadas politicamente”. Uma vez que as IPs passaram a ser objeto de destruição mediante Decretos do Poder Executivo, a disputa pela sua defesa estendeuse ao Poder Judiciário. Os efeitos do Decreto 9.759 foram atenuados por duas decisões do STF em diferentes ações. Na ADI 6121, julgada em sede liminar em junho de 2020, a decisão do Tribunal reconheceu de forma unânime a participação social como princípio constitucional e os conselhos como forma de sua concretização. Estabeleceu também que o Executivo não poderia extinguir conselhos mencionados em lei e que a eventual revogação deveria listar expressamente o decreto a ser revogado. A contenção à política de destruição das IPs decorrente da decisão do Supremo produziu adequações táticas do governo Bolsonaro que, por sua vez, geraram nova ativação do Supremo. Bolsonaro passou a editar decretos específicos, ora listando normas a serem revogadas, ora criando novo regramento para conselhos que não poderiam ser extintos, com drástica limitação para seu funcionamento e redução da participação da sociedade civil. Em reação, em março de 2021, o tribunal consolidou entendimento de que: “É inconstitucional norma que, a pretexto de regulamentar, dificulta a participação da sociedade civil em conselhos deliberativos”. Isso ocorreu em novo julgamento, agora da ADPF 622 que versa sobre a nova regulamentação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Decreto 10.003/2019). Os efeitos dessa decisão mais recente sobre o conjunto de normas já editadas pelo Governo ainda não são claros. A despeito das decisões do STF, as ações de Bolsonaro levaram à
extinção ou enfraquecimento de diversos conselhos. Como efeito, foram reduzidas a fiscalização e o controle social sobre as ações do Executivo, comprometendo capacidades estatais construídas ao longo de trinta anos em diversas áreas de políticas. No geral, os efeitos assumem o sentido de abrir caminho para a desregulamentação de políticas públicas e para a regressão de direitos gradualmente consolidados ao longo do recente período democrático. LEIA MAIS
BEZERRA, C. de P. Ideologia e governabilidade: as políticas participativas nos governos do PT. 2020. Tese (Doutorado em Ciência Política) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 4 fev. 2020. GURZA LAVALLE, A. “Participação: valor, utilidade, efeitos e causa.” In: PIRES, R. R. C. Efetividade das instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea, p. 33-42, 2011. LAVALLE, A. G.; BEZERRA, C. de P. “Por que desconstruir a participação social?” Nexo Jornal, [S. l.], 10 fev. 2021. Políticas Públicas. Opinião. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. LAVALLE, A. G.; ISUNZA, E. “A trama da crítica democrática: da participação à representação e à accountability.” Lua Nova Impresso, São Paulo, v. 84, p. 95-140, 2011. CONFIRA
ATIVISMOS (ATAQUES AOS) CONSTITUCIONALISMO POLÍTICA
* Professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) ** Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) 1-
Os autores agradecem o financiamento do Centro de Estudos
da Metrópole (CEM), processo nº 2013/07616-7, e da Fapesp.
PAULO FREIRE Janayna Cavalcante Lima *
P
aulo Freire é o educador brasileiro mais conhecido, mais lido e mais comentado ao longo do século 20, por inúmeras razões que vinculam trajetória, compromissos políticos e uma obra que registra sua dedicação ao tema da educação ao longo de mais de 50 anos. Compõem a bibliografia freireana aproximadamente 40 obras que discutem a construção de uma pedagogia da educação popular, comprometida com a denúncia das relações de opressão e com a democratização fundamental da sociedade. No Brasil e no mundo, Paulo Freire é um dos principais pensadores do campo das pedagogias críticas, assim chamadas por contestarem o papel da educação, da docência e do currículo na manutenção das sociedades capitalistas. As pedagogias críticas analisam os modelos de educação tradicional que reproduzem as relações sociais, políticas e culturais colonialistas, hierárquicas e baseadas no individualismo e na competição. Paulo Freire denominou tais modelos por educação bancária. Nas perspectivas tradicionais de educação, nas quais a conformidade ao mundo é uma das finalidades do trabalho educativo, a educação bancária é aquela que se realiza através da transferência de saberes incontestes dos educadores aos educandos, priorizando a submissão a uma ordem dada. Na perspectiva crítica, parte-se da análise das situações de opressão, exploração e dominação dos sujeitos envolvidos na ação educativa e busca-se chegar à mudança de compreensão, produzindo consciência crítica e mudança de atitude, com o desenvolvimento de projetos coletivos de transformação das situações opressivas. O conhecimento não é apenas uma ferramenta ou conteúdo desvinculado do modo de viver dos povos, ou mesmo uma vantagem a ser adquirida, mas uma experiência constitutiva da relação entre sujeitos e destes com o mundo.
Dessa forma, na pedagogia freireana, o reconhecimento da pluralidade de saberes desafia as hierarquias sobre os saberes populares e saberes científicos típicas das escolarizações tradicionais e propõe arranjos horizontais mais democráticos. Nesse sentido, Freire contrapõe às pedagogias tradicionais a educação como prática da liberdade, também identificada como educação dialógica ou libertadora. Ao sistematizar filosoficamente sua pedagogia crítica, Freire tomou como referência inúmeras experiências vividas junto a grupos populares do campo e das cidades, a exemplo do Movimento de Cultura Popular do Recife, na década de 1960. O conhecido método de alfabetização foi a sistematização de experiências de alfabetização de trabalhadores rurais e urbanos e resultou do reconhecimento de que a experiência do analfabetismo interditava a ampla participação dos sujeitos na vida política nacional. Desse modo, Paulo Freire toma, à esquerda, a palavra no amplo debate sobre o analfabetismo adulto no Brasil do século 20, caracterizando-o como um problema político, profundamente articulado à democratização da sociedade. O método mais importante da obra freireana, no entanto, é um modo de pensamento caracterizado pela perspectiva dialética sobre a educação. Em razão de sua contribuição para pensarmos os problemas da educação na sociedade brasileira, vinculando princípios, métodos e finalidades em um sistema pedagógico apresentado, inicialmente, na obra Pedagogia do oprimido (1968), Paulo Freire foi nomeado patrono da Educação do Brasil no ano de 2012. Ainda hoje não é possível discutir educação no Brasil sem passar por sua obra. Aqueles que negam sua importância, nesse sentido, confirmam resolutamente essa tese. Como em todas as áreas de conhecimento, também a pedagogia como campo reflexivo da educação não mantém uma posição uniforme em torno do seu pensamento e a crítica a Freire é uma das características da tradição de leitura de sua obra; esta tradição crítica é um dos processos que fez seu pensamento ser amplamente conhecido.
O questionamento ao pensamento freireano não é novo nem exclusivo dos enunciados negacionistas em educação, uma vez que o próprio Paulo Freire retoma, ao longo da obra, os princípios, conceitos e compreensões anteriores de seu trabalho, questionando-os e modificando-os a partir de novas leituras e experiências. Desse modo, Freire reafirma como prática os princípios defendidos em sua pedagogia, sobre a dialogicidade, o inacabamento, a ideia de Ser-Mais e, dentre outros, o compromisso com uma abordagem humanista revolucionária, conforme suas próprias palavras. Nesse sentido, há que se distinguir a crítica da mera negação: enquanto o campo da educação teceu continuamente diálogos críticos com o pensamento freireano, o que significa reconhecer e estabelecer diferentes argumentos quanto às suas afirmações, princípios e métodos, o oposicionismo restringe-se à enumeração de slogans antifreireanos e estabelecimento de epítetos fetichistas como “comunista”, “anticientífico” e “esquerdista” e acusações do tipo “responsável pelo atraso na educação brasileira”. Na própria tradição crítica ao freireanismo, as noções de razão, sujeito, consciência, emancipação e desenvolvimento são amplamente questionadas. Fatores que contribuem para a oposição ao seu pensamento são o desconhecimento da obra de Paulo Freire, que se desdobra entre escritos filosófico-pedagógicos, relatos e sistematizações metodológicas de experiências pedagógicas vivenciadas junto a diferentes povos do mundo, reflexões individuais ou compartilhadas com outros pesquisadores a respeito dos inúmeros problemas da educação e inúmeras obras de revisão e reflexão de suas próprias ideias. Além destes fatores, também o desconhecimento da trajetória de Paulo Freire como educador nacional e internacionalmente atuante; suas experiências como assessor para a área de educação em organizações internacionais, nas quais atuou junto a processos educativos em África, Ásia e América Latina; gestor público como secretário de Educação, além de sua experiência como professor universitário e pesquisador. Aos que se dizem conservadores,
políticos ou religiosos, trata-se de analisar cuidadosamente as razões da sua negação a um educador que toma como princípios o amor, o diálogo, a humildade, a esperança e a fé na humanidade como princípios de sua pedagogia. Pode-se considerar a existência de uma relação de fetiche no negacionismo a Paulo Freire, operação através da qual se transforma todo o imenso e complexo problema da escolarização no Brasil em um processo “ideológico” que seria provocado por uma única narrativa pedagógica, evidenciando, como característica dessa negação, um reducionismo pouco eficaz. A alta expectativa sobre o “poder ameaçador” desse pensamento reflete a dificuldade em confrontar os problemas concretos da escolarização brasileira em sua materialidade. Algumas características de sua obra atraem especificamente a narrativa negacionista na atualidade. O ataque à ideia de que a educação é política evidencia um dos pressupostos típicos de grupos e indivíduos ideologicamente orientados, mas inconscientes de que sua posição contrária à Freire é um lugar político, pois expressa pontos de vista e posições na luta pelo poder, inclusive pelo poder de definir o que é ou como deve ser a educação. A oposição à ideia de educação como libertação, através da qual o negacionismo evidencia sua posição pela manutenção das relações sociais vigentes, incluindo a dificuldade de aceitar que uma educação crítica evidenciará essas estruturas, seus funcionamentos e contradições, através da análise dos problemas da realidade e consequentemente de sua desnaturalização. A dificuldade em compreender o saber e a cultura como forças fundamentais para a mudança política, bem como a vinculação do conhecimento a uma pluralidade de possibilidades culturais e a consequente legitimação dessa pluralidade de saberes, desautorizou a expressão de uma única fonte de conhecimentos legitimados em uma sociedade e, portanto, de seus sujeitos e respectivos interesses exclusivos. Importa destacar, ainda, que o negacionismo a Freire reflete também oposições internas ao campo
cristão: a obra de Paulo Freire pode ser considerada articulada à Teologia da Libertação. A Teologia da Libertação representou um campo de disputas em torno da compreensão sobre a ação da Igreja Católica e seus compromissos diante dos povos oprimidos do mundo. Ao ler a oposição ao pensamento e à figura de Paulo Freire, é importante identificar também o papel que essa oposição representa na resistência conservadora à Teologia da Libertação. No discurso do negacionismo, Freire representa a identidade do “inimigo” no campo da educação, uma forma simplista, mas eficaz, de produzir engajamento e formar “seitas” ideológicas: na voz dos negacionistas ele é o comunista responsável pela implantação do “marxismo cultural” no Brasil através das escolas. Essa operação de simplificação binária da educação encontra barreiras enormes para se confirmar, dentre elas o fato de que as escolas brasileiras nunca aplicaram, de forma oficial e sistematizada, os princípios da pedagogia freireana, mantendo uma relação bastante ambígua e mesmo vaga em relação a esses princípios. Em grande medida, a identificação com Paulo Freire se dá por operações afetivas, morais e mesmo idólatras desse pensador. Essas operações podem contribuir mais com a definição de um campo binário de oposições a Freire do que com a defesa consistente de seu legado. Nesse sentido, práticas personalistas em torno a Freire estão sujeitas a se enredar na estratégia negacionista que distrai e desmobiliza as resistências ao processo político avassalador em curso, denominado por neoliberalismo e caracterizado pela mercadorização da educação através da privatização das instituições escolares e da disseminação da formaempresa nas relações entre os sujeitos, práticas pedagógicas e dinâmicas curriculares. Praticar a pedagogia freireana implica em produzir menos seminários e mais círculos de cultura. Desmobilizar as hierarquias e deixar falar os silenciados. Compreender as danças, os jogos, as cantorias e os modos de partilha do alimento e produção do mundo comum. Por último, mas
não menos importante, a imagem do Brasil que Freire desenha e inspira, defende e trabalhou para construir: um Brasil plural que se reconhece inclusive em suas dores coloniais; um país menos silencioso e mais dialógico, com capacidades de reflexão e luta por direitos mais aguçadas e disseminadas, um país de pessoas que desconfiam do status quo, desenvolvem as perguntas e produzem coletivamente as hipóteses sobre por que as coisas são como são. O Brasil de Paulo Freire é, portanto, mais diverso, complexo e marcado pelo reconhecimento das desigualdades que o estruturam, ao mesmo tempo, mais corajoso e mais esperançoso, mais coletivista, menos hierárquico, mais organizado para lidar com os problemas e, portanto, menos suscetível às soluções mágicas oferecidas pelos vícios eleitorais e pelos milicianos da representação popular. Esse Brasil de Paulo Freire é um lugar desagradável para quem lucra com o medo, a falta de prática coletiva transformadora e a ausência de análise crítica da realidade. LEIA MAIS
BEISIEGEL, C. R. Política e educação popular: a teoria e a prática de Paulo Freire no Brasil. 2 ed. São Paulo: Ática, 1992. 303 p. PAIVA, V. História da educação popular no Brasil. 6ed. São Paulo: Edições Loyola, 2003. 527 p. SOUZA, J. F. E a educação popular: ¿¿quê?? Uma pedagogia para fundamentar a educação, inclusive escolar, necessária ao povo brasileiro. Recife: Edições Bagaço, 2007.
*
Professora
e
pesquisadora
Pernambuco (UFPE)
da
Universidade
Federal
de
PENSAMENTO CONSERVADOR Diogo Cunha *
E
xaminar a relação entre pensamento conservador e negacionismo exige algumas precisões conceituais. Proponho uma definição mínima dessas noções. Um pensamento político, em seu sentido estrito, é formado pelo conjunto de obras mais abrangentes, sistemáticas ou abstratas, que comporia os “clássicos” deixados por nossos principais autores (Lynch); conservadorismo pode ser considerado como um posicionamento das forças políticas e sociais que — por meio da ação e do discurso — se colocam contra os diferentes tipos de reformas e transformações progressistas; por negacionismo, enfim, adoto uma acepção mais larga do que aquela que fazia referência especificamente ao Holocausto. Essa noção está hoje ligada à negação de fatos e argumentos, sejam eles políticos e científicos, o que vem impossibilitando a troca racional num processo que Pierre Rosanvallon chamou de “corrupção cognitiva”. O nome que encarnou recentemente e de forma inconteste o negacionismo e o reacionarismo associado à ascensão bolsonarista dos anos 2010 é o de Olavo de Carvalho, em torno do qual orbitaram seguidores mais ou menos conhecidos e verborrágicos em suas denúncias de uma suposta hegemonia cultural da esquerda nas instituições. O negacionismo e o anti-intelectualismo desse grupo rompe, entretanto, com a tradição de um pensamento político conservador cuja erudição é inegável. A história intelectual brasileira é rica em produções de obras políticas escritas por homens de letras. Tanto esses autores quanto suas obras exerceram, ao longo dos séculos 19 e 20, um papel não negligenciável na vida política brasileira. A condição “periférica” do país levou os letrados a assumirem o papel de portadores da “consciência nacional” e de agente natural da construção do Estado. Seja como guias da jovem nação emergente em vistas da
valorização do país no momento da Independência; seja reclamando uma reforma do Estado na luta contra a incapacidade administrativa das elites políticas no momento da instauração da República; ou ainda, graças ao seu saber sociológico, como únicos conhecedores da “realidade brasileira” nos anos 1920; tudo isso os habilitava, assim eles acreditavam, a conduzir os destinos da Nação no mesmo pé de igualdade que os políticos. A vitória de Vargas em 1930 acelerou o encontro entre as elites políticas e intelectuais. Os regimes autoritários do século 20, o Estado Novo (1937-1945) e o regime militar (1964-1979), puderam assim contar com o apoio de uma parte importante dos intelectuais, particularmente na elaboração de suas políticas culturais. O conjunto de obras por eles produzido, por sua vez, tiveram um papel incontornável para a compreensão do país, para seus próprios combates políticos e como contribuição para a implementação de políticas públicas. Uma ruptura clara, portanto, deve ser estabelecida entre Olavo de Carvalho e seus seguidores — representantes de uma nova direita reacionária — e o que estou considerando aqui como o “pensamento conservador”. Este último, sobretudo a sua vertente autoritária e apesar da heterogeneidade dos nomes que o compõem e dos contextos em que escreveram suas obras, tiveram em comum a preocupação com a manutenção da unidade territorial e a construção do Estado forte — seja com o objetivo ou não de construir no futuro uma sociedade liberal. Era uma visão do Estado como instituidor do social e, a esse conjunto de preocupações, vieram se juntar a partir de meados dos anos 1930 um visceral anticomunismo e, em alguns deles, também um antiliberalismo. São nomes que vão do Visconde de Uruguai a Miguel Reale, passando por Alberto Torres, Oliveira Viana e Azevedo Amaral. Assim, pensar a relação entre o pensamento político conservador brasileiro e o negacionismo só é possível sob a condição de ampliar esta última noção para além do seu sentido estritamente anticientífico e anti-intelectual. Em outras palavras, ampliá-lo à negação das condições de possibilidade de uma democracia liberalrepresentativa no Brasil. Nesse sentido, é forçoso constatar que se
estabeleceu desde o final do século 19, uma relação ambígua e conturbada entre pensamento conservador e democracia, indo da rejeição pura e simples desta última a reformulações conceituais que não passavam de uma perversão do ideal democrático. Se o dicionário Bluteau, de 1713, já definia “democrático” como uma forma de governo “monstruosa”, Tomás Antônio Gonzaga, em seu Tratado de direito natural, publicado no fim do século 18, estimava que a democracia era a pior das formas de governo, pois se esperava dos bons governos que agissem com diligência e rapidez: "o tempo que o povo se reúna, que ele vote e que se decida o que se deve fazer o mal teria chegado de uma forma que não haveria mais remédio. Ou seja, da mesma maneira que um doente morre: por falta de deliberação do médico”. No século 19, das duas principais correntes políticas — conservadores e liberais —, a primeira rejeitava categoricamente a democracia. Para conservadores, ela era sinônimo de instabilidade, anacronismo e oposta à aristocracia e, portanto, ao governo dos melhores. Além do mais, tal regime não podia, segundo eles, funcionar em um território tão vasto e povoado de escravos e analfabetos distribuídos de maneira irregular. Os liberais, por sua vez, tinham com a democracia uma relação ambígua. Mais liberais do que democratas, contudo, eles compuseram e se acomodaram com o regime monárquico durante a maior parte do século. Do início dos anos 1870 até o fim do Império, em 1889, o ideal de democracia se ampliou. Até então, ele estava associado ao combate contra a autonomia do poder monárquico e ao apoio à centralização política. Embora esses dois significados tenham persistido até depois da instauração da República, passou-se a associar a democracia com um regime político fundado em eleições e com uma sociedade igualitária. Contudo, os atores políticos mantinham a ambiguidade com relação a essas duas novas dimensões. No que concerne o sufrágio universal, mesmo os radicais não haviam se engajado nesse combate. A ideia de sociedade igualitária, por sua vez, era um argumento que os liberais utilizavam para condenar o “poder pessoal” do Imperador que os afastara do poder em 1868;
além do mais, a necessidade de acabar com a escravidão estava mais associada à urgência de “civilizar” o país e melhorar sua imagem no exterior, do que a uma preocupação democrática. Durante a Primeira República (1889-1930), enquanto protofascistas e nacionalistas começaram a escrever algumas obras clássicas do pensamento conservador autoritário — obras que encontraram uma grande acolhida a partir de 1930, e particularmente no pós-1937 — os liberais se preocuparam mais com as formalidades dos mecanismos de representação quando, na prática, as eleições eram marcadas por enormes irregularidades e o número de eleitores se situava entre 1 e 3,5% da população. No contexto de grande mutação política e intelectual dos anos 1930, o ideal democrático ou passou a ser rejeitado em detrimento de um modelo abertamente fascista — Octávio de Faria clamava por um “Mussolini brasileiro” para colocar ordem no Brasil (Maquiavel e o Brasil, 1931) — ou ganhou novas e diversas conceitualizações: iam da ideia de uma “democracia autêntica” de um Azevedo Amaral (O Estado autoritário e a realidade nacional) à “democracia integral” de Miguel Reale (O Estado moderno). Em todos os casos o ideal democrático era pervertido para ser transformado num modelo de organização corporativa (Miguel Reale) ou ao que hoje chamaríamos de uma democracia iliberal fundada na identificação do líder com as massas e tendo no plebiscito um de seus principais instrumentos (Azevedo Amaral). Eles não foram os únicos. Outros autores — como Francisco Campos, Almir de Andrade e mais intelectuais próximos da ditadura varguista — pensaram nesse mesmo período a reorganização nacional sob moldes autoritários. Apesar da diversidade das abordagens e propostas políticas, três elementos comuns permaneceram no cerne do pensamento conservador brasileiro: o anticomunismo, a demofobia e, entre os autoritários, o antiliberalismo. No pós-1945, dentro do campo conservador, o refluxo do autoritarismo e o avanço do liberalismo encarnado pelo udenismo não significou o fim da ambiguidade com relação à democracia e a
sua aceitação definitiva. O liberalismo-conservador não cessou de colocar em causa a semidemocracia de 1945-1964, pois, na visão de muitos dos seus arautos, Vargas e o varguismo pervertiam o próprio regime democrático. No início dos anos 1960 e no imediato pós-golpe de 1964 emergiu inclusive um conflito entre liberais e autoritários, os últimos acusando os primeiros de ameaçarem a “revolução” com seu “formalismo abstrato”. A obra de um Miguel Reale na década de 1960 ilustra com perfeição essa divisão no interior do campo conservador. Schmittiano defensor da criação de uma nova ordem jurídica a ser imposta pelo soberano que decidiu na situação excepcional, Reale percebeu naquele momento que seu principal inimigo não era a esquerda, derrotada, mas o liberalismo. Ele não cessará de propor, ao longo dos anos 1960 e 1970, a instauração de um modelo de “democracia social”, autoritária, fundada na “segurança e no desenvolvimento”. As décadas de 1970 e 1980 foram um período de grandes mudanças, tanto políticas quanto nas formas de pensar. Era o início do longo processo de abertura política que iria culminar com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição de 1988; intelectualmente, esses anos marcaram a retomada da reflexão sobre a democracia, não mais a “autêntica”, “real”, “social”, “forte” ou “possível”, que vinha sendo elaborada e defendida pelos pensadores conservadores desde a década de 1930, mas sobre democracia tout court, sem adjetivos. O fim do regime militar, o início da construção de uma memória negativa desse período e o entusiasmo de amplos setores da sociedade com a democratização parecia ter colocado fim à ambiguidade entre democracia e conservadorismo. Seria esquecer que a democracia é marcada por uma indeterminação, como nos ensinou Claude Lefort, o que torna esse regime permanentemente propenso se se voltar contra si próprio. A crença de que a democracia havia se “consolidado” no Brasil não passou de uma quimera e de uma ingenuidade compartilhada por amplos setores da sociedade civil e da academia. O negacionismo impulsionado pela ascensão do bolsonarismo é mais ameaçador do que aparenta, sobretudo quando considerado
em seu sentido estritamente anticientífico. É um negacionismo ainda mais ameaçador na medida em que ele reativa uma longa desconfiança com relação das condições de possibilidade de uma democracia no Brasil. CONFIRA
OLAVO DE CARVALHO POPULISMO CIENTÍFICO REACIONARISMO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
POLÍTICA Bruno P. W. Reis *
A recepção
negacionista da política traz consigo uma coleção apreciável de paradoxos. Em tese, o exercício do ceticismo, bem temperado, sempre favorece e ilumina o debate — bem mais que a credulidade. Politicamente, o apelo ao juízo popular é certamente bem-vindo sob a vigência dos ideais democráticos de igualdade política e soberania popular — preocupante apenas onde a base é desprovida da organização autônoma que conformará o necessário pluralismo ao sistema decisório. Por fim, é inegável o que pode haver de socialmente revigorante na desconfiança plebeia, ou mesmo eventualmente numa franca rebelião ante certo elitismo esnobe e semiaristocrático frequentemente exibido por estratos acadêmicos ou tecnocráticos. Mas o negacionismo político contemporâneo, bem mais que cético, é obscurantista. Não pergunta ou duvida: mente e negaceia de maneira ostensiva, cotidiana, com propósitos estratégicos. Não aquece o debate, antes o esvazia pela disseminação deliberada de confusão mediante desinformação sistemática. É desprovido de conexão popular orgânica, antes comunica-se com a população de modo massificado e anônimo, por mídias digitais povoadas de robôs. Assentado sobre tal mapa estratégico, tirando proveito de um esvaziamento das formas usuais de ação popular organizada, o negacionismo político contemporâneo, por detrás do abuso da linguagem coloquial e do bem-vindo apelo aos não instruídos, mal disfarça seu incontornável personalismo vanguardista, profundamente autoritário. O ideal tocquevilleano da “arte da associação”, cuja materialização possibilita um controle democrático, institucionalizado, de governos, a partir da articulação de organizações civis autônomas que atuam tanto em anteparo quanto na habilitação da ação governamental, constituiu-se em meados do século 20, sobretudo no imediato pósguerra, numa variante liberal, burguesa (ou plebeia), do mesmo
elogio aristocrático feito por Montesquieu, 200 anos antes, à importância dos “corpos intermediários” como garantias sociais da liberdade perante a tirania. Embora frequentemente contestada por certo voluntarismo à esquerda, não só a tradição pluralista, mas a própria experiência social-democrática do século corroborou repetidas vezes a tese. No plano teórico, desde o elogio das filiações múltiplas com pertencimentos entrecruzados pela sociologia política norteamericana por David Truman, passando pela alusão um tanto hermética à “indisponibilidade das não elites” por William Kornhauser que assim distinguiria as sociedades pluralistas das “sociedades de massa”, até às elaborações de Robert Putnam em torno do “capital social”, há toda uma tradição intelectual apoiada na proliferação de associações e organizações como recurso incontornável ao exercício de controle democrático sobre o poder político. No terceiro quarto do século, essa fórmula ganhou materialidade na disseminação de regimes democráticos ancorados em partidos fortemente institucionalizados, profundamente enraizados na sociedade em organizações de todo tipo, sobretudo associações civis das quais se convertiam em representantes orgânicos, sejam os sindicatos trabalhistas pela esquerda, sejam as associações empresariais à direita. Embora a contestação mais estridente a esse mapa proviesse até os anos 1970 sobretudo de nichos à esquerda mais propensos à “ação direta”, ironicamente ele se viu em larga medida desmantelado, no último quarto do século passado, pelo fundamentalismo pró-mercados, autoproclamado liberal, que surfou na reestruturação produtiva e na chamada globalização para induzir desregulamentação financeira e esvaziamento de instâncias de mediação de interesses em que tinham assento aquelas associações. A contestação daquele status quo pela direita beneficiou-se de uma interdependência econômica internacional crescente, que gerou dificuldades para o repertório de políticas redistributivas domésticas implementadas até então. Mas, muito além disso (principalmente a partir dos Estados Unidos, com o muito bem
financiado Ronald Reagan), aquele fundamentalismo sequestrou a agenda ideológica, empilhou dificuldades ao expansionismo fiscal também por desregulação financeira perfeitamente evitável e induziu expansão de sigilos bancários que levaram parcela crescente do PIB mundial à rotina da evasão tributária em paraísos fiscais cada vez mais internalizados às economias centrais — para depois cobrar austeridade adicional ao governo de plantão. E a fatura política frequentemente recaiu sobre os social-democratas, pelo simples fato de não terem sabido “dar respostas” a esse jogo viciado. Apesar de sua mistificadora fachada liberal, esses 40 anos de desmanche de instâncias públicas de mediação e barganha deu-se antes sob a égide de uma retórica que melhor descreveríamos como um “hobbesianismo de mercado”. De fato, o sequestro do liberalismo pelo fundamentalismo pró-mercado é a mais bemsucedida mistificação ideológica do último meio século. As derivações do debate mundial corrente em torno da resposta à pandemia são muito sugestivas. Em nome de um indefensável “liberalismo”, muitos saíram em defesa de um alegado direito de cada pessoa à afirmação unilateral de suas inclinações e vontades individuais, independente do que acontecesse às demais. Mesmo a morte, aos milhares. É fácil ver que isso nunca foi liberalismo. A liberdade exercida “no silêncio da lei” não é Locke. É Hobbes. Não é casual que o fundamentalismo pró-mercados esteja sempre confortável sob o autoritarismo. A liberdade dos liberais é a liberdade que pode ser coletivamente usufruída por todos. Em que cada indivíduo é um fim em si mesmo e, portanto, ninguém pode ser unilateralmente instrumentalizado (tiranizado) por terceiros. Como podemos ser todos livres juntos, ao mesmo tempo? A resposta quem deu foi Kant: se cada um de nós age de maneira tal que a máxima que orienta sua ação possa ser convertida em lei universal. E o governo justo é aquele que, externamente, portanto coercitivamente como é intrínseco aos governos, nos obriga a agir tal como agiríamos se seguíssemos, internamente, o imperativo categórico de adotarmos um ponto de
vista universal, ou seja, nos colocássemos no lugar de todos e fizéssemos aquilo que gostaríamos que todos fizessem. Não é possível reivindicar liberalismo ao dar de ombros, indiferente à emergência, enquanto pessoas morrem de maneira evitável, aos milhões, por vírus ou fome. Para além, e muito antes, da calamidade atual, a deriva desregulatória das últimas décadas produziu, em várias partes do globo, aumento de instabilidade e insegurança econômicas, em nome de uma prosperidade que raramente se manifestou sustentadamente, antes em curtas bonanças que pontilharam uma sucessão de vendavais econômicos. Precarização do trabalho, incerteza no acesso coletivo a serviços públicos, compressão do poder aquisitivo do trabalho assalariado, tudo convergindo para um caldo de cultura de medo do futuro, insegurança pessoal, frustrações de toda ordem, num círculo vicioso de desapego ao que está dado, conduzindo a mais desconstrução e deterioração adicional da tessitura do sistema político — e a resultante desafeição popular pela democracia que nos cabe. Até por considerável deslocamento da centralidade política dos sindicatos trabalhistas, outro problema correlato, agravado nas últimas décadas, tem sido a franca deriva do perfil de lideranças da esquerda rumo a certa classe média, sobretudo profissionais liberais urbanos com educação superior, arriscando-se alienar o apoio dos trabalhadores manuais. No Brasil esse efeito é muito mitigado pelo protagonismo de Lula — mas na CUT, por exemplo, braço sindical do PT, o peso dos sindicatos do setor público parece crescente. A significativa redução da base operária fabril tem projetado uma esquerda classe média, que anda mal nas periferias e tem grande dificuldade em conversar com evangélicos. Hillary Clinton e os liberals da Ivy League nos Estados Unidos, a desdenhar de eleitores de Trump (“basket of deplorables”), são o exemplo paradigmático. Mas o perfil se encontra em toda parte. Faz sentido, de fato, que a desconfiança em relação a isso venha manifestar-se na forma de algum antirracionalismo — como foi bem exposto em artigo recente por Renato Pereira na Folha de S.Paulo.
Sob tal enquadramento a internet, mais que produzir, teria dado vazão a esse sentimento. Nas redes revive-se, a custo (e risco) pessoal baixíssimo, a ilusão da ação direta. E elas vão se tornar o receptáculo incontornável, desaguadouro natural daquela frustração. Os jovens de agora parecem propensos a rejeitar mediações. E as próprias elites políticas, por seu turno, tampouco necessitam dispor de organizações de base — certamente não tanto quanto antes. De fato, talvez disponham hoje de liberdade de ação bem maior na falta delas, comunicando-se com um público bem maior (e talvez mais passivo) por intermédio de tecnologias de comunicação digital. Esse esvaziamento dos partidos e dos espaços de representação tendeu num primeiro momento a ser saudado como uma revivescência da promessa de “democracia direta”, mas esse furor resistiu pouco. Já havíamos aprendido, afinal, que um vago fervor compartilhado pode levar multidões às ruas em espasmos efêmeros de mobilização, mas um problema de ação coletiva se imporá cedo ou tarde, nos períodos (muito mais duradouros) em que as pessoas ansiarão pelo retorno a uma rotina “normal” em suas vidas. Em uma paisagem relativamente desprovida de “corpos intermediários”, frouxamente organizada, por mais que as pessoas tenham a sensação de agir livremente, atores com posição mais central nas redes de poder (de modo mais imediato o eventual governo, mas estruturalmente sobretudo os detentores de poder econômico) desfrutarão de maiores graus de liberdade para perseguirem seus propósitos e formatarem a agenda política com menor necessidade de concessões e compromissos. Pois a água corre para o mar, e grupos menos favorecidos dependem da existência de um sistema decisório mais povoado, institucionalizado, que favoreça vetos mútuos e induza barganha. Após 40 anos de certa “terra arrasada”, com desmantelamento de políticas e relativo esvaziamento e desmobilização de instâncias consultivas, não deve surpreender a resultante desafeição popular pela democracia que nos cabe. É sobre esse pano de fundo que fazem sua entrada em cena as novas tecnologias de comunicação digital. Após relativa euforia, na
virada do século, com a perspectiva de diversificação das fontes de discurso, o que se observa a esta altura é antes a corrosão do debate público, por baixo da aparência de sua intensificação: mais do que múltiplas vozes, o que sobressai é a antes inimaginável emergência de múltiplos públicos, com mensagens disparadas para diferentes perfis de destinatários, por máquinas que fazem essa triagem a partir de algoritmos pré-programados, com conteúdos específicos de autoria anônima. Qualquer debate público se dissolve numa cacofonia de vozes em conversas paralelas, simultâneas, mutuamente ininteligíveis, disparadas por todos e por ninguém. Fake news é uma expressão infeliz, não descreve o que se passa. Notícias falsas sempre foram abundantes, a boataria sempre acompanhou a política, mesmo antes da democracia, e intensificouse sempre no ambiente eleitoral. Não é esse o problema. O problema emergente é a erosão do filtro social propiciado pela campanha pública, por uma recepção minimamente unívoca do debate eleitoral, partilhada por todos — e que propicia empatia mesmo sob a divergência e alimenta coesão política. Antes das redes, campanhas negativas, para terem alcance, tinham de contar com a emissão por uma voz autorizada, e que aceitava um risco ao vocalizar a denúncia — introduzindo algum custo, ao menos potencial, na mera difamação. Ao partir para o ataque, uma campanha enfrentava uma decisão estratégica grave: poderia ganhar votos, mas poderia perder também, dependendo da incerta recepção da denúncia no ambiente da campanha e em sua narrativa predominante. Hoje, é possível em tese estimular nos bastidores a emissão vários balões de ensaio múltiplas direções. Importa pouco que seja tudo mera invenção, ou até material contraditório entre si, pois campanha alguma responde pelos conteúdos que circulam nas redes. Tanto mais que conteúdos específicos alcançarão perfis diferentes de eleitores. Campanhas “customizadas” a esse ponto são uma ameaça grave à dinâmica geral do sistema político. Na teoria dos jogos, há um requisito formal para a convergência tácita rumo a equilíbrios em modelos formais de interação estratégica, um mecanismo-chave de
coordenação, que é o common knowledge, o “conhecimento comum” do jogo. Esse requisito supõe não apenas que todas as pessoas envolvidas saibam todo o jogo (ou seja, tenham ciência de todas as demais e suas respectivas preferências), mas também que todas saibam que todas sabem. Ou seja, não basta que todas disponham da mesma informação, completa; mas também que todas saibam que todas dispõem dessa mesma informação. É isso o que viabiliza a antecipação mental da escolha da outra de modo a orientar minha própria escolha e evitar assim a possibilidade de decisões irracionais. Se, porém, eu não sei o que a outra sabe, já não sei antecipar, ou sequer entender, o que ela fará. Como tantas suposições próprias à análise formal, pode-se dizer que o conhecimento comum também é uma “ficção heurística”, que pode parecer irrealista. Ele está, por exemplo, claramente ausente em mercados (cuja apreensão ortodoxa, a propósito, não supõe interação estratégica). Mas sua força pode ser sugestivamente ilustrada por sua presença cotidiana, em escala difusa, no contato visual, olho no olho, que tão claramente facilita coordenação mútua, tácita, entre duas pessoas. Em escala maior, ele se produz em rituais: as pessoas participantes em um rito qualquer, não apenas sabem o que se efetivou ali, mas sabem que todas as demais presentes também o sabem (Chwe, 2001). Não por acaso, eleições são, também, rituais públicos. Não apenas na apuração do resultado, mas principalmente na publicidade de um debate, uma conversa pública, boa ou má, construtiva ou destrutiva, mas vivida por todos, ainda que com inclinações individuais diferentes. Mas talvez o sejam cada vez menos. Nem se trata, portanto, de idealizar as potencialidades, sempre relativamente limitadas, do debate eleitoral em ambiente competitivo e eventualmente conflitivo. A bem do realismo, é preciso conceder de antemão que uma discussão entre milhões nunca é apenas discussão racional — mas também publicidade, marketing. Sempre foi. Mas, à medida que o marketing se pulveriza num plano quase individualizado, ele deixa de ser até mesmo, a rigor, publicidade. Pois vai-se metamorfoseando numa espécie paradoxal
de “publicidade não pública”, segmentada com conteúdos distintos entre diferentes subconjuntos do eleitorado, de maneira quase ininteligível mutuamente. Poderíamos falar agora da indução de uma segregação discursiva: uma erosão da experiência coletiva propiciada pela campanha pública, que vai dissolvendo qualquer perspectiva de uma percepção minimamente unívoca do debate eleitoral, partilhada por todo o eleitorado — e que favoreceria conhecimento comum, propiciando alguma empatia, inteligibilidade mútua e alimentando coesão político-institucional, por debaixo das rivalidades políticas cotidianas. O “terraplanismo” é o exemplo mais pleno da corrosão deste sistema: parece não existir mais conhecimento ou informação que não possa ter sua credibilidade pública suspensa de modo reiterado e ostensivo. Até pela mimetização fraudulenta de discurso com aparência científica. Se se pode combater em público até a proposição de que a Terra é redonda, podemos ter certeza de que haverá dificuldades na fixação das balizas constitucionais que fundamentam o debate público democrático. Daí a metáfora recorrente do deslizamento rumo a um tipo de poço sem fundo. É o chão racionalista que nos falta para orientação e validação do debate democrático. À medida que o debate público entre protagonistas é corroído, ele tem sido substituído não só pela fragmentação de uma ágora repleta de cidadãos emissores, livremente engajados, seja em discussão racional, seja em puro sarcasmo; mas também por algoritmos deliberadamente programados para falsificar maciçamente o debate junto a segmentos variados do público — num processo em que cada grupo vai, progressivamente, estereotipar os demais, reduzi-los a caricaturas em que ninguém se reconhece. Esse é o caminho do inferno: na ridicularização e na desqualificação mútua vai-se embora a tolerância e se insinua a violência política. Uma emergência como uma pandemia, ao propiciar um campo de validação relativamente imediata das teses em disputa, certamente debilita a posição negacionista. Tende a produzir algum refluxo no curto prazo. Mas as condições estruturais que a favorecem permanecem intactas, e
auguram tempos difíceis nas próximas décadas. LEIA MAIS
CHWE, M. S. Rational Ritual: culture, coordination and common knowledge. Princeton: Princeton University Press, 2001. KORNHAUSER, W. The Politics of Mass Society. New York: Free Press, 1959. TRUMAN, D. B. The Governmental Process: political interests and public opinion. New York: Knopf, 1951. CONFIRA
CONSTITUCIONALISMO POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS VIOLAÇÕES DE ESTADO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
POLÍTICA DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA Rafael Dias *
U
ma Política Científica e Tecnológica (Política de C&T) consiste em um conjunto de leis e regras, estratégias, ações e instrumentos de fomento direcionado à promoção do desenvolvimento das capacidades científicas e tecnológicas em um dado território. Mais recentemente, devido ao crescente imbricamento entre as esferas da ciência, da tecnologia e da inovação no mundo contemporâneo, vem sendo chamada também de Política Científica, Tecnológica e de Inovação. Idealmente, a Política de C&T não deve ser compreendida como tendo um fim em si mesma. Afinal, o avanço científico e tecnológico deveria servir a determinados objetivos, tais como a melhoria da condição de vida das pessoas, a preservação ambiental e ao combate às desigualdades e diferentes formas de exclusão. Nesse sentido, a Política de C&T conforma-se como política de caráter transversal. Ou seja, embora seja orientada por objetivos claros e delimitados, ela pode conectar-se a outras políticas, integrando-se no contexto de uma estratégia maior e ampliando seus efeitos sobre a economia, a sociedade e o meio-ambiente. A comunidade científica, isto é, o conjunto heterogêneo de pessoas e instituições envolvidas direta ou indiretamente com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no país, é o ator central da Política de C&T brasileira. Tal comunidade é a principal responsável pela definição da agenda dessa política, na sua interação com a burocracia estatal. Em decorrência de seu caráter transversal e da importância das implicações da ciência e da tecnologia no mundo contemporâneo, o processo de tomada de decisão das políticas dessa área deve envolver um conjunto amplo e diverso de atores. Em vários países, é comum que a formulação, a
implementação e a avaliação dessas políticas envolvam, ao menos em algum nível, não apenas a comunidade científica, mas também representantes de empresas e da sociedade civil. No Brasil, esses arranjos ainda são relativamente pouco desenvolvidos, de modo que as tomadas de decisão em questões relacionadas à ciência e tecnologia ainda são centradas na comunidade de pesquisa, com pouco envolvimento de outros atores. A constituição de capacidades robustas em ciência e tecnologia é reconhecida como elemento fundamental para o desenvolvimento nacional. Tal constituição pode ser viabilizada por esforços coordenados envolvendo diferentes atores, como universidades, institutos de pesquisa, órgãos governamentais, empresas e entidades sociais das mais diversas. A Política de C&T deveria ocupar, portanto, espaço central no âmbito das políticas públicas, mais especialmente, em países nos quais desenvolvimento, democracia e diminuição de desigualdades raramente andam juntos, como é o caso do Brasil. A formação do aparato científico-tecnológico brasileiro se deu de forma relativamente tardia, mesmo em comparação com outros países latino-americanos, como México e Peru. No início do século 20 já existiam por aqui algumas instituições de pesquisa, museus, cursos superiores livres e outros componentes importantes do que viria a constituir o embrião de um complexo nacional de ciência e tecnologia no Brasil. Como exemplos, podemos citar o Instituto Agronômico de Campinas, fundado em 1887, e o Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos, fundado em 1900 como Instituto Soroterápico Federal. O desenvolvimento do tecido industrial, principalmente a partir da década de 1930, demandou novas competências e maior especialização profissional. Foi nesse contexto de importantes transformações que surgiram novas e importantes instituições de ensino superior tais como a Universidade de São Paulo, em 1934, e a Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em 1935. A institucionalização da Política de C&T tem como marco no Brasil
a criação da Campanha Nacional (depois “Coordenação”) de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que à época de sua formação se chamava apenas Conselho Nacional de Pesquisa. Tanto a Capes como o CNPq foram criados em 1951. A criação dessas instituições, fundamentais até hoje para garantir o avanço da ciência e da tecnologia brasileiras, expressou o reconhecimento de que C&T devem ser tratadas como objetos de política pública e de que é função do Estado apoiar o desenvolvimento científico e tecnológico em seu território. Nas décadas seguintes puderam ser observados os resultados da afirmação do compromisso estatal com o apoio ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia. O Brasil afirmou suas competências técnico-científicas em diversas áreas: na agropecuária; nas pesquisas em saúde; nas indústrias petroquímica, metalmecânica, de informática, de defesa; bem como em nichos do setor aeroespacial. O desenvolvimento nessas áreas esteve atrelado a esforços de coordenação e fomento estatal alinhados à ideia de afirmação do Brasil como potência regional em termos econômicos, políticos e militares, tarefa para a qual o avanço da ciência e da tecnologia foi componente fundamental. Essa noção foi sendo gradualmente erodida sobretudo a partir da década de 1990, quando ganha força uma interpretação mais restrita de política de ciência e tecnologia. Nessa nova interpretação, passa-se a reconhecer a competitividade empresarial como o principal objetivo das políticas da área. A “inovação” tornase assim elemento cada vez mais central na concepção da política de C&T. E, desde então, a terminologia mais utilizada passa a ser “Política de CT&I” — ciência, tecnologia e inovação. Desde os anos 1990, perde espaço a concepção de um arranjo de política centrada no Estado, que permitiu o desenvolvimento de consideráveis competências técnico-científicas em setores estratégicos para o desenvolvimento econômico e a garantia da soberania nacional. Tal concepção deu lugar ao projeto neoliberal,
no contexto do qual mecanismos de mercado operam com central importância. Associado ao falacioso discurso de que o aparato institucional público é inchado, lento e ineficiente, essa inflexão contribuiu para que fosse deslegitimada a atuação de instituições públicas responsáveis pelo desenvolvimento científico e tecnológico nacional. Recentemente, o discurso anticientífico e o negacionismo da ciência têm se apresentado como substrato para novos ataques à ciência e à tecnologia. Muito embora esses movimentos não sejam verificados apenas no Brasil, eles encontraram por aqui terreno fértil. Esse cenário constitui novo desafio para a Política de C&T brasileira, que deve direcionar esforços para apoiar a construção de novas estratégias em ciência e tecnologia. Tais estratégias, por sua vez, podem contribuir não só para a reparação das condições sociais e econômicas após a eventual superação da pandemia da covid-19, mas também para criar condições e instituições de valorização da ciência. A história da Política de C&T brasileira reflete uma longa e tortuosa trajetória. Por décadas, esforços significativos foram envidados de modo a permitir a superação dos obstáculos estruturais ao desenvolvimento de capacidades científicotecnológicas comuns aos países periféricos, por um lado, e as frequentes flutuações de recursos às quais esteve sujeita essa política durante sua condução por diferentes governos, por outro. A despeito de todas as dificuldades, foi possível, ao longo de décadas, constituir no Brasil um sistema de C&T relativamente robusto, ainda que heterogêneo em sua estrutura e vulnerável a oscilações dos recursos disponíveis para seu desenvolvimento e sua manutenção. A Política de C&T merece, porém, atenção contínua. Ela constitui, afinal, um terreno de vital resistência contra todas as espécies de negacionismos tão nocivos para nossa sociedade. LEIA MAIS
DAGNINO, R. Ciência e tecnologia no Brasil: o processo decisório e
a comunidade de pesquisa. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. VELHO, L. “Conceitos de ciência e a política científica, tecnológica e de inovação.” Sociologias, Porto Alegre, v. 13, n. 26, p. 128-153, 2011. DIAS, R. Sessenta anos de política científica e tecnológica no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. CONFIRA
ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS POLÍTICA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA
* Professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS Janine Mello * Natália Massaco Koga ** Pedro Palotti ***
N
as últimas décadas a defesa da necessidade de que mais e melhores evidências sejam produzidas como instrumentos capazes de orientar a produção de políticas públicas tem se intensificado. A convicção de que a ciência é capaz de oferecer soluções eficazes e confiáveis aos problemas humanos não é algo novo. Tem suas raízes no Iluminismo, inspiração na medicina baseada em evidências, que trouxe melhorias significativa à saúde das populações, e nos avanços recentes da tecnologia que permitiram saltos quantitativos e qualitativos na produção e uso de informações. Não por acaso, portanto, é cada vez mais presente a expressão Políticas Públicas Baseadas em Evidências (PPBE) — em inglês, evidence-based public policy — nos debates a respeito das decisões dos governos em contextos complexos como temos assistido cotidianamente no caso das medidas preventivas e de tratamento da covid-19. O movimento da PPBE, iniciado no final dos anos 1990 no Reino Unido, sustenta que governos devem embasar suas decisões nas melhores evidências existentes — genericamente entendidas como aqueles recursos informacionais submetidos ao escrutínio científico rigoroso — para subsidiar ou aperfeiçoar sua atuação frente aos problemas públicos. Apesar da forte aposta a seu favor, pesquisas demonstram que os governos nem sempre compreendem ou usam evidências científicas como instrumentos de racionalização das decisões da forma concebida na perspectiva tradicional da PPBE. Nossa proposta é justamente organizar a discussão em torno dessas constatações.
Longe de atribuir às evidências um lugar sacralizado, a produção do conhecimento científico deve ser entendida como parte de processos construídos de compreensão sobre o mundo e por isso mesmo passível de erro e incompletude. E é exatamente por não estarem isentas de vieses e de não constituírem “verdades inquestionáveis” que evidências são objeto de disputa e estão submetidas ao escrutínio de diferentes setores da sociedade, sejam eles diferentes grupos de pesquisadores e experts, formadores de opinião e outros atores da sociedade civil. A própria natureza da ciência, na sua concepção moderna, se constitui por saberes contingentes, passíveis de falsificação empírica e submetidos a critérios de publicidade e replicabilidade que permitam aferir sua validade. Evidências científicas possuem, portanto, atributos capazes de garantir, em alguma medida, transparência aos métodos e teorias que levaram aos resultados dos estudos por meio de sua divulgação pública. A divulgação periódica de estatísticas, relatórios e estudos permite que dados e resultados sobre diversos temas sejam acompanhados e questionados como indicam exemplos da história recente. Dentre outros exemplos, é possível citar os dados sobre desmatamento, formas de mensuração das mortes em decorrência da covid-19 e os resultados sobre desemprego no país. Apesar de todos os argumentos favoráveis ao uso de evidências, seu uso para a formulação e implementação de políticas governamentais é eminentemente uma decisão política. Políticas públicas não são feitas apenas a partir de dados, estatísticas e resultados de pesquisas científicas. Elas estão geralmente permeadas por compromissos, interesses, práticas, valores e maior ou menor adesão a visões de mundo compartilhadas pelos diferentes setores da sociedade. Nesse sentido, a simples profusão de dados e pesquisas e, a defesa de que fontes científicas são melhores que outras fontes informacionais, como as advindas da experiência dos agentes públicos, dos beneficiários das políticas ou mesmo de notícias
falsas, não implicam a adoção automática das evidências científicas pelos governos. Isso pode acontecer por diversas razões. Por falta de consenso científico, pela diferença entre o tempo de produção de evidências e da tomada de decisão do governante, pelo desconhecimento por parte de gestores públicos das pesquisas existentes, pela dificuldade de “tradução” dos resultados de estudos científicos em medidas práticas. Deve-se reconhecer, ainda, que as evidências científicas estão sujeitas a múltiplos usos e apropriações. Tais usos podem assumir um caráter instrumental em que achados científicos são utilizados como instrumento para produzir melhores resultados governamentais. Evidências podem também ser mobilizadas para influenciar outros aspectos das decisões políticas, como a alocação de recursos do orçamento público — a definição de público e territórios prioritários, por exemplo — e a escolha dos instrumentos de políticas públicas que serão utilizados. Ou seja, a mobilização de evidências possui uma natureza política e discursiva, cuja legitimidade se assenta na possibilidade de outros grupos divergentes mobilizarem também suas evidências e criticarem os métodos e os resultados derivados de visões antagônicas. O debate público se enriquece com a mobilização de evidências, o que não diminui o papel da política na produção de consensos e de decisões governamentais. As evidências podem também ser mobilizadas para justificar decisões previamente tomadas. Elas são, muitas vezes, artifício para justificar decisões ou corroborar concepções de mundo defendidas. Há múltiplas formas de se utilizar evidências em políticas públicas. O não uso de evidências pode assumir um caráter estratégico e constituir uma decisão. Evidências podem ainda ser distorcidas ou tomadas isoladamente para defender ações governamentais sem embasamento ou até contrárias ao conhecimento científico disponível. O discurso científico tem tanta legitimidade nas sociedades contemporâneas que vários exemplos de mau uso são
provenientes da pseudociência, como a utilização inadequada do vocabulário científico, a emulação de suas técnicas e a interpretação descontextualizada ou inadequada de resultados de pesquisa científica. Casos explícitos disso ocorrem quando evidências apontam resultados opostos aos interesses ou narrativas adotadas pelos governos sobre determinado tema. Para além desses fatores, é preciso ainda que evidências sejam valorizadas e reconhecidas pelos agentes políticos como elemento importante de compreensão da realidade que nos cerca, capaz de aprimorar o desenho ou a implementação de políticas. Ações direcionadas para o fomento à pesquisa científica, capacitação de agentes públicos, coletas periódicas de dados populacionais, fortalecimento de atividades de gestão de bases de dados e outras estratégias institucionais para incentivo e aprimoramento do uso de fontes científicas são medidas essenciais para a criação de um ambiente mais propício ao uso de evidências pelos governos. Contribuem também para o aprofundamento dos mecanismos de transparência e controle social sobre a ação governamental. A produção de evidências pode ainda se beneficiar da introdução de rotinas de monitoramento e avaliação, da interlocução permanente entre governo e academia e do design de políticas públicas que incorpore a avaliação da ação governamental. Apesar das limitações discutidas, o uso de evidências pode fortalecer a orientação da ação pública de forma republicana e isonômica. Ao serem passíveis de verificação e contraprovação e atenderem requisitos de publicidade e transparência em relação à produção de dados, aos métodos utilizados e aos resultados alcançados, além de resultarem de produções relativamente difusas e descentralizadas, as evidências são potencialmente abertas à multiplicidade de perspectivas e ao debate público. Em sociedades democráticas deveria ser um pressuposto para que cada um de nós possa dispor de um rol de crenças, valores e convicções, que nos auxilie a compreender o mundo que nos cerca e nosso lugar nele. O risco surge, no entanto, quando visões
particulares buscam se tornar totalizantes para restringir ou mesmo impedir o debate público e servir de justificativa para definições de caminhos que desconsiderem a existência de posições, pensamentos e opiniões divergentes na sociedade. Ter clareza tanto das fortalezas como das limitações de uso das evidências para os diferentes contextos e problemas de políticas públicas, assim como da existência de outras fontes concorrentes que possam informálas, torna mais claro que também a decisão dos governos de uso ou não uso das evidências é uma decisão política, assim como o é a adoção de critérios isonômicos para o tratamento de seus cidadãos e dos valores republicanos como eixos orientadores de suas ações. LEIA MAIS
CAIRNEY, P. “Evidence and policy making.” In: BOAZ, A; DAVIES, H.; FRASER, A.; NUTLEY, S. (Eds.). What works now? — Evidenceinformed policy and practice revisited. Bristol: Policy Press, 2019. PARKHUST, J. The politics of evidence: from evidence-based policy to the good governance of evidence. London: Routledge, 2017. PINHEIRO, M.; KOGA, N.; PALOTT, I. P.; MELLO, J. (Orgs.). “Usos de evidências em políticas públicas federais.” Boletim de Análise Político Institucional, Rio de Janeiro, n. 24, nov. 2020. WEISS, C. The many meanings of research utilization. Public Administration Review, v. 39, n. 5, p. 426-31, 1979. CONFIRA
DESINFORMAÇÃO FAKE NEWS PÓS-VERDADE
* Pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) ** Pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) *** Pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Escola Nacional de Administração Pública (Enap)
POPULISMO CIENTÍFICO Thaiane Oliveira *
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or analogia à noção de populismo, o termo populismo científico está relacionado a um conjunto de práticas políticas que se consolida pela contestação ao conhecimento científico movido por sentimentos de desconfiança sobre as elites científicas e o sistema de peritos. De forma geral, o termo está associado às lutas concorrenciais para a demarcação da autoridade epistêmica do campo científico, à questão da desconfiança da população quanto às instituições científicas que se sente desprivilegiada e marginalizada em relação à decisão pública em ciência e às exigências de soberania na participação da população sobre os processos de gestão sobre a produção científica. O termo foi originalmente citado pela primeira vez em 1977, por Helmut Hirsch e Helga Nowotny, na revista Nature, em sua discussão sobre a repercussão das campanhas de construção de usinas de energia nuclear na Áustria, durante a década de 1970, diante de uma disputa partidária sobre o tópico. Segundo os autores, o público manifestou um sentimento de desconfiança em relação aos painéis formados por especialistas, sob a alegação de que estavam sendo financiados pelo lobby nuclear e que eram fantoches de políticos que já haviam se decidido pela construção de usinas no país. Os autores relatam que a população se sentiu ressentida por ter sido desconsiderada do debate, voltando-se contra os cientistas que se posicionavam a favor da energia nuclear e celebravam os cientistas dissidentes como heróis do povo e defensores da ciência à serviço da população. Poucos anos depois, em 1981, o termo voltou a ser citado no debate de especialistas científicos através do relatório do painel de ciência e tecnologia da Comissão Presidencial para uma “Agenda Nacional para os Anos Oitenta”. Tal comissão foi uma força-tarefa ordenada pelo presidente dos Estados Unidos da América na época,
Jimmy Carter, para examinar questões relacionadas à capacidade de governança federal eficaz, o papel das instituições privadas no atendimento às necessidades públicas e as tendências sociais e econômicas que afetavam desafios da política pública norteamericana na década de 1980. O relatório enfatiza a divisão dos integrantes da Comissão Presidencial de Ciência e Tecnologia, em que alguns membros defendiam a necessidade de envolver a população na gestão da ciência e tecnologia para atender as necessidades percebidas do público, entendida por uns como uma medida de populismo científico, enquanto outros davam ênfase na preocupação de como essa política poderia impactar negativamente na regulamentação pública da ciência e da tecnologia para o país. Até meados do século 20, a ciência era vista como a forma definitiva de conhecimento, como instituição legitimada de autoridade epistêmica, consolidada a partir de um sistema de experts. Diferentemente de cientistas, que são especialistas cuja expertise é reconhecida por “certificação” ou grau acadêmico e que contribuem para o debate científico no campo analisado, o grupo dos experts é formado por um conjunto de pessoas, com conhecimentos suficientes, composto por especialistas capazes de fornecer evidências para a tomada de decisão política. No entanto, esse sistema de peritos tem sido contestado, sobretudo, por pesquisadores dos estudos sociais da ciência. Um dos argumentos centrais da crítica é que o sistema de experts e peritos reforça uma tecnocracia que privilegia técnicas e métodos científicos específicos e corrobora com um elitismo sobre o domínio do conhecimento, concedendo aos especialistas o monopólio de opinião sobre seus temas específicos. Tal visão que se proliferou a partir de uma desconstrução da ciência enquanto espaço tecnocrático de elite, se desdobrou a partir de um entendimento de que todo o cidadão seja visto como detentores de direitos iguais quando se trata de conhecimento técnico. Essa noção de que o núcleo epistêmico da produção de conhecimento científico é parte da sociedade colocou em xeque a crença de que apenas a ciência é capaz de fornecer evidências e
fatos necessários para apoiar tomadas de decisão. Por sua vez, estendeu-se também para o campo da governança da ciência, a noção de que é importante engajar o público e ampliar a participação da sociedade civil no processo de tomada de decisão sobre ciência e tecnologia. O discurso em favor de uma inclusão de vozes na gestão científica faz parte de um processo chamado de “virada participativa”. Para autores como Niels Mede e Mike Schäffer, a virada participativa observada no campo político, também passou a ser observada no campo científico, incluindo a implementação da participação do cidadão na tomada de decisão relacionada à ciência, o controle público do trabalho científico, o financiamento coletivo de ciência ou ciência cidadã, sobretudo após os anos 1980. Na América Latina, essa virada participativa na ciência foi desenvolvida de maneira idealizada atrelada a um discurso de democratização do conhecimento científico e ampliação da base social da ciência, colocando a ciência como bem comum. Métodos participativos sobre os modos de fazer pesquisa e sobre a governança das instituições científicas derivaram uma série de propostas metodológicas flexíveis, buscando a integração de saberes locais populares, indígenas, camponeses etc., contestando o saber científico tradicional como o único conhecimento possível e seus métodos rigorosos e limitados para a compreensão sobre realidades sociais complexas. Essa virada participativa veio acompanhada de determinações como a quebra de hierarquias sobre os modos de produzir conhecimento legitimado ou inversão da lógica da demanda social em relação à pesquisa, além da condição de participação de agricultores nos processos de geração e de apropriação de tecnologias agrícolas. Exemplos de participação pública na ciência têm sido relatados por Jalcione Almeida, remontando ao processo de construção de uma nova agricultura no Brasil, desde a década de 1970, em que o conceito de tecnologias alternativas foi incorporado de maneira acrítica adaptado às necessidades e à situação da pequena agricultura de caráter familiar, junto com reivindicações da luta ecologista e
ambientalista e movimentos de contestação à autoridade epistêmica sobre as decisões de políticas agrícolas na região Sul do país. Outro exemplo de participação pública na tomada de decisão em relação à ciência pode ser visto através das ações promovidas pela Action Aid Brazil e Esplar, que organizaram o Tribunal Popular Brasileiro sobre Organismo Geneticamente Modificado (OGM), em Fortaleza, em 2001. O Tribunal foi resultado de um intenso debate público após diversas reivindicações contrárias à aprovação dos transgênicos no país, liderado por Institutos de Defesa dos Consumidores, associações científicas e partidos, que contestaram o parecer técnico de 1998, realizado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). O Tribunal Popular Brasileiro funcionou como um espaço para cidadãos deliberarem sobre OGMs, composto por 11 pequenos produtores e consumidores para avaliação de impactos das modificações genéticas na saúde humana e no meio ambiente, que condenou o uso e comercialização de transgênicos por unanimidade. Para autores como Harry Collins e Robert Evans (2008), a crítica ao sistema científico, junto com a percepção pública sobre a incapacidade da ciência em combater as mazelas da modernidade, tem gerado o que eles entendem por populismo tecnológico e científico. Paradoxalmente, para esses autores, ao criticar os limites do sistema de experts e revelar continuidades entre ciência e política, os estudos sociais da ciência abriram terreno cognitivo não só para aqueles preocupados em aumentar o impacto da política democrática na ciência, mas também para os ataques à legitimidade da perícia científica na tomada de decisões. Essa contestação epistêmica está atrelada a um sentimento antagônico no qual o “povo”, visto como virtuoso, se oporia a uma “elite” científica potencialmente corruptível e à reivindicação de soberania sobre o conhecimento e a verdade. Assim, no registro do populismo científico, a soberania de tomada de decisão deveria ser das “pessoas comuns” que, pretensamente, não seriam influenciadas pelos interesses da elite. Sob alegação de que não há
uma supervisão ou controle público sobre o que é produzido pelas instituições científicas, o conhecimento produzido pelas elites acadêmicas é considerado ilegítimo e como tal a soberania concedida a ela também não é autêntica e por isso refutável. Ao contestar a autoridade científica e clamar pela soberania da tomada de decisões relacionadas à ciência, a parcela da população e lideranças políticas adeptas de um populismo científico, exigem também a soberania de opinar sobre determinados assuntos de interesse público que não os produzidos pelo conhecimento científico, produzindo suas próprias epistemologias alternativas a partir de suas experiências individuais. Seguindo essa linha de argumento, a verdade é produzida pelo próprio povo a partir das experiências do cotidiano e considerado legítima por não estar contaminada por interesses que não sejam o bem da própria sociedade, como é entendido por adeptos desta forma de populismo relacionado à ciência. A compreensão, portanto, sobre o termo populismo científico está relacionada a uma crise epistêmica, em que as instituições responsáveis por produzir ou disseminar conhecimento e informação legitimada, capazes de pautar decisões políticas, são contestadas por lideranças políticas que se utilizam de um sentimento de descrédito em relação ao sistema de peritos por parte da população. Podemos verificar que são três os fundamentos principais para a compreensão dos dilemas do populismo científico relacionados a demandas por: participação dos processos de produção científica, soberania para governança científica e legitimidade para produzir epistemologias. Um dos principais desdobramentos do sentido de populismo científico refere-se à instrumentalização político-partidária da ciência por lideranças ao oferecer soluções rápidas, milagrosas e falsas para problemas sociais complexos, contestando evidências científicas ou recomendações de peritos, contudo utilizando termos e jargões próprios do campo científico, apresentando-as como se fossem de interesse do povo. Ao contestar as instituições responsáveis por produzir e disseminar conhecimento e informação,
esses representantes do populismo científico legitimam leigos, desde que alinhados com valores similares às suas crenças e ideologias, como pretensos experts a serem consultados para a tomada de decisão pública relacionada à ciência e tecnologia. A contestação e legitimação do conhecimento científico que se desdobra a partir da compreensão de populismo científico são utilizadas como estratégias políticas para substituir e retomar o controle sobre as autoridades epistêmicas, que são entendidas como garantidoras de valores democráticos, como defendem Harry Collins e Robert Evans. Se a autoridade epistêmica é o ponto nevrálgico para a contestação à ciência, o que se desdobra como desafio para lidar com os desdobramentos sobre o populismo científico reside em repensar um modo de gestar a ciência e seus atravessamentos sobre a governança. Assim como Harry Collins e Robert Evans anseiam por um processo científico idealizado que produza, se não fatos, pelo menos conclusões razoavelmente incontestáveis no domínio da política, o sistema democrático depende do trabalho coletivo junto às bases que não viram ser cumpridas as promessas de resolver os grandes problemas da humanidade, como justiça social, pobreza e desigualdade, por exemplo. No entanto, a história tem nos mostrado que a participação pública na governança científica implicou em uma mudança cognitiva que levou a ataques à legitimidade da perícia científica na tomada de decisões políticas. Para superar a contestação epistêmica instrumentalizada por representantes políticos, é preciso repensar as estratégias de ação em novos arranjos políticos e científicos que satisfaçam anseios encarnados na compreensão da ciência como bem comum e caminho para o bem-estar. LEIA MAIS
ALMEIDA, J. A construção social de uma nova agricultura: tecnologia agrícola e movimentos sociais no sul do Brasil. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal Do Rio Grande do Sul,
1998. COLLINS, H.; EVANS, R. Repensando a expertise. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. MEDE, N. G.; SCHÄFER, M. S. “Science-related populism: conceptualizing populist demands toward science.” Public Understanding of Science, Zürich, v. 29, n. 5, p. 473-491, jul. 2020. CONFIRA
NEGACIONISMO CIENTÍFICO ORESKES, NAOMI POLÍTICA DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF)
POPULISMO DIGITAL Letícia Cesarino *
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opulismo tem sido um dos termos mais debatidos na mídia, academia e senso comum nos últimos anos. Apesar de ser pensado primariamente como um fenômeno sociopolítico, a dimensão técnica do populismo tem se mostrado especialmente relevante para a compreensão de suas versões contemporâneas, fortemente ancoradas nas redes sociais. A convergência crescente entre a lógica discursiva do populismo e a lógica cibernética das novas mídias tem levado estudiosos do tema a propor conceitos híbridos como populismo digital, populismo 2.0, populismo algorítmico, tecnopopulismo, ciberpopulismo, populismo métrico, dentre outros. Essas noções foram cunhadas a partir de estudos de caso espalhados por todo o espectro político e regiões do globo: da esquerda democrática do Podemos na Espanha à extrema direita na Hungria, passando pelo ambíguo Cinco Estrelas na Itália — para ficarmos apenas no contexto europeu. Porém, está cada vez mais claro que, embora o populismo não seja definível por um conteúdo político-ideológico específico, em sua versão digital esses movimentos têm apresentado maior eficácia eleitoral e de mobilização de massas à direita do espectro político. Os estudos do populismo digital sugerem que, em parte, essas afinidades com as novas direitas advêm de vieses técnicos próprios da atual estrutura de mídia, centrada no modelo da plataformização, economia da atenção e extração e venda de dados pessoais. Há pelo menos quatro dimensões relevantes dessa convergência tecnopolítica recente: a temporalidade; a espacialidade; a performatividade; e sua lógica antiestrutural. A temporalidade do populismo é, por definição, uma temporalidade de crise, na qual estruturas históricas estabelecidas perdem a confiança da base popular, sendo fragilizadas e total ou
parcialmente suspensas. No caso brasileiro recente, por exemplo, as estruturas em crise referem-se ao pacto democrático pós-88 e sua principal polaridade (PT-PSDB), cuja quase totalidade foi hoje ressignificada pela nova direita como pertencendo ao campo da “esquerda”. O líder populista irrompe como aquele que irá superar a crise e devolver o corpo político à ordem e à segurança, por meio da renovação total de um sistema visto como irreversivelmente corrompido por elites autointeressadas. Por isso, ele deve ser uma figura entendida como vindo de fora do establishment político e cultural. No processo de construção do povo, essa gramática agregadora básica vai se replicando por camadas discursivas heterogêneas: no caso da composição bolsonarista, por exemplo, o punitivismo que não vê outra saída senão a eliminação física dos “bandidos”, e o messianismo de base carismática que vê o líder como um novo messias. A temporalidade de crise necessária à ascensão de lideranças populistas é hoje favorecida pela infraestrutura técnica da internet plataformizada. A arquitetura das mídias sociais, em especial, é construída de modo a prender a atenção do usuário em um fluxo constante de eventos, visando à maximização do seu tempo de tela. Como pontuou Wendy Chun, isso resulta num ambiente paradoxal de crise permanente que desencoraja o pensamento reflexivo e enfatiza a cognição automática e mimética (ou imitativa). Os próprios conteúdos que ganham maior circulação on-line, como notícias alarmistas e conspiratórias, ou vídeos de violências e injustiças, podem contribuir para a atmosfera de crise e ameaça: da segurança pública à imoralidade, da insegurança econômica à integridade dos corpos da nação, da família e dos indivíduos. A espacialidade do populismo divide o mundo em dois lados incomensuráveis, mas codependentes: nos termos de Ernesto Laclau, amigo e inimigo. É através desse código elementar que os seguidores do líder populista organizam sua experiência e noções de causalidade e realidade. Esse código segue uma estrutura algorítmica também elementar (“Se... então...”): se está do meu lado (amigo), é verdadeiro e autêntico; se está do outro lado (inimigo), é
falso, hipócrita ou manipulado. Essa linha divisória, contudo, não é linear: na topologia fractal e segmentada das novas mídias, ela vai sendo preenchida com conteúdos múltiplos, ao mesmo tempo em que mantém uma gramática antagonística comum. Isso permite um processo de replicação por mímese (imitação ou cópia) onde os conteúdos gerados pelos usuários vão diversificando e personalizando essa mesma gramática dicotômica de baixo pra cima, a partir de experiências, valores e afetos particulares, conformando uma individuação fractal que parece paradoxal, pois ao mesmo tempo múltipla (centrada nos seguidores) e única (centrada no líder). Novamente, observa-se aqui uma afinidade entre tendências político-identitárias e infraestrutura técnica. Esse modo paradoxal de individuação fractal já foi apontado como característico do modo recursivo e pessoalizado com que os algoritmos constroem identidades no capitalismo de dados e economia da atenção. Além disso, o modelo de negócios das principais plataformas, centrado na venda de dados para anunciantes e outros clientes corporativos, privilegia os algoritmos homofílicos. Quer dizer, privilegia algoritmos que conectam igual com igual — ao invés de, por exemplo, promover conexões aleatórias ou entre igual e diferente. Essa ênfase excessiva na identidade tem, ao que tudo indica, gerado efeitos no sentido de uma radicalização da diferença nos moldes de um binarismo amigo-inimigo. Em casos extremos, essa diferença alcança um grau máximo em formas de mímese inversa. Nesse tipo de oposição, o “outro” (no caso, o inimigo) aparece com a mesma forma do “eu”, porém com conteúdo simetricamente inverso, em dicotomias como bem e mal, ordem e caos etc. Guerras de hashtag como #EleNão versus #EleSim, inversões de acusação (quem é fake news é o outro) e outras táticas de guerrilha virtual podem fazer com que essas oposições binárias ganhem escala, na medida em que as (re)ações de um polo do antagonismo vão, de forma progressiva e circular, reforçando as (re)ações do outro. A arquitetura das plataformas, na interação com usuários reais, acaba conformando um ambiente
político avesso aos pressupostos e procedimentos da esfera pública liberal, e mais próximo a formações contraditórias com a democracia política, como marketing de massa ou desinformação induzida como parte de estratégias de guerra psicológica. Tipicamente, a irrupção populista articula demandas e identidades que se encontravam subdeterminadas na estrutura política anterior. As novas identidades antissistema passam assim a se articular diretamente em torno do líder carismático, com base no apego afetivo a valores fundamentais como a ideais de povo, nação ou Deus. Como no populismo, o modo de produção de sujeitos das novas mídias também é essencialmente performativo e baseado numa lógica da afetividade, cognição corporificada e influência. Elas oferecem um novo ambiente para a reconstrução dinâmica de identidades de forma relacional a outros sujeitos digitais. Sua arquitetura de escolha é projetada com base em princípios de economia comportamental visando a produção dos consumidores influenciáveis do marketing de massa, e não dos cidadãos reflexivos da democracia liberal. Além disso, o caráter participatório das novas mídias, baseadas em conteúdos gerados pelos próprios usuários, ajuda a tornar real — a performar — a equivalência circular entre líder e povo que é a base da eficácia da mobilização do tipo populista. A temporalidade de crise permanente e a copiabilidade do digital favorecem o comportamento mimético, possibilitando processos de replicação que unem tanto seguidores horizontalmente entre si, como estes e o líder carismático, mediante uma experiência alegadamente não mediada. Isso, novamente, deriva de uma arquitetura que induz os usuários a experimentarem a internet como meio transparente que oferece acesso livre e direto à realidade — o que é, naturalmente, um efeito ilusório da invisibilidade das suas mediações algorítmicas. O tipo de causalidade circular ou cibernética prevalente nas plataformas permite às lideranças populistas, ainda, aferirem constantemente suas métricas de engajamento, ajustando-se em tempo real às reações do seu público-em-rede, bem como às dos
seus “inimigos”. O repertório do populista digital é em boa medida coletado, ou crowdsourced, a partir de sua base de fãs. Assim, esse repertório devolve a cada um deles fragmentos especulares de si mesmos, reforçando ainda mais o vínculo afetivo entre líder e seguidor. O resultado é o reforço da experiência de autenticidade e transparência por parte do usuário individual, bem como da forte conexão com o líder, a ponto de ataques a este último serem sentidos pelos seguidores como ataques pessoais a eles próprios. Esse efeito é reforçado, ainda, pela confusão de fronteiras entre os domínios público e privado provocada por esse novo ambiente de mídia. Em suas versões mais radicais, o populismo é uma força antiestrutural que faz vir à tona identidades, valores, afetos e demandas heterogêneas antes silenciados ou subsumidos por uma dada ordem. Daí decorrem as oposições e inversões que tipicamente acompanham a eficácia desse tipo de movimento político, notadamente entre os “de baixo” e os “de cima”, entre “povo” e “elite”. Nesse contexto de inversões, os vícios de um líder populista tornam-se virtudes, o que era tido como verdade se torna erro, autenticidade se transfigura em manipulação, e vice-versa. Daí também as sobreposições comuns do populismo com o pensamento conspiratório e outros tipos de negacionismo, além de formas de messianismo religiosas ou seculares. A arquitetura fragmentada, emergente e em múltiplas camadas das novas mídias favorece essas inversões antiestruturais. O resultado é a emergência de públicos semissubterrâneos que persistem em relação contraditória, embora interdependente, com os públicos em rede das plataformas. Nesses “públicos refratados”, agentes que se sentem excluídos do mainstream encontram espaço para dar vazão às suas insatisfações e interesses, ao mesmo tempo em que gerenciam sua visibilidade relativa com relação à internet de superfície. Assim, não apenas os populismos radicais, mas também as narrativas conspiratórias, ciências alternativas, bem como a circulação de desinformação em geral passam a ocupar essa infraestrutura de mídia de forma sistêmica e persistente, produzindo
novos híbridos e contradições que desestabilizam e deslocam as estruturas do modelo da democracia liberal e da esfera pública a ele associada. LEIA MAIS
BALDWIN-PHILIPPI, J. “The technological performance of populism.” New Media & Society, [S. l.], v. 21, n. 2, p. 376-397, 2019. CESARINO, L. “Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil.” Internet & Sociedade, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 92-120, 2020. GERBAUDO, P. “Social media and populism: an elective affinity?” Media, Culture & Society, [S. l.], v. 8, n. 5, p. 745-753, 2018 CONFIRA
CONSPIRITUALIDADE INTERNET POPULISMO SANITÁRIO
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
POPULISMO SANITÁRIO David Magalhães * Guilherme Casarões **
A pandemia
de covid-19 jogou holofotes sobre lideranças e governos que incorporaram medidas de saúde pública aos seus repertórios de exibicionismo político particular. Ainda que espetacularização da política não seja algo novo, era raro que adentrasse a seara eminentemente técnica das políticas sanitárias. Das vezes que ocorreu, as circunstâncias eram muito específicas, como uma epidemia local ou algum tema propício à politização extrema, como medidas de saúde reprodutiva. Contudo, a confluência entre a onda populista do início deste século e uma pandemia de alcance inédito fez nascer o conceito de populismo médico ou populismo sanitário — expressão que utilizaremos neste verbete. Antes de tudo, é necessário definirmos populismo como a categoria abrangente da qual populismo sanitário é um subtipo novo e relevante. Tendo em vista o caráter polissêmico do conceito, adotaremos a interpretação de Benjamin Moffitt que, em The Global Rise of Populism, define populismo não como ideologia, nem como estratégia, mas como um estilo político. Isto é, o populismo mobiliza um repertório de performances políticas, composto por três pilares fundamentais: I) a mobilização permanente do povo contra as elites estabelecidas; II) o emprego de linguagem e atitudes pautadas por “maus modos” (bad manners), em oposição à expressão tecnocrática da política tradicional; e III) a fabricação, estímulo ou exploração de crises, colapsos e ameaças. Em primeiro lugar, o populista concebe a sociedade dividida em dois grupos homogêneos e antagônicos: o “povo”, pretenso repositório das virtudes morais e da essência da nação, e a “elite”, alegadamente corrompida, artificial e antinacional. No contexto
dessa disputa maniqueísta, o líder populista reivindica ser o Vox Populi, o único porta-voz legítimo dos anseios do povo, em sua batalha contra o sistema ou establishment. As elites, por sua vez, são concebidas como forças que alegadamente desejam desfigurar a concepção originária de povo, seja ao inculcar na sociedade valores estranhos a ela (como o caso de burocratas, jornalistas, acadêmicos, cientistas), seja ao permitir a infiltração e o empoderamento de grupos exógenos a essa construção de povo (como imigrantes e minorias étnico-raciais, religiosas ou sexuais). Em segundo lugar, por “maus modos” entende-se o embrutecimento do discurso e a subversão do politicamente correto como forma de conectar-se com seus interlocutores, desprezando as formas “apropriadas” e “sofisticadas” de performance política. Se muitos consideram a linguagem comedida e formal da política como parte indissociável do pacto civilizatório, o populista ganha seguidores ao denunciá-la como mera hipocrisia. A maneira propositalmente vulgar personificada pelo líder populista tem a finalidade de estabelecer com o “povo” um vínculo de identidade que exalta o “homem comum”, tornando-se árbitro do bom senso e, não raramente, oferecendo soluções simples para problemas complexos. Por fim, em terceiro lugar, o estilo particular do populismo encontra terreno fértil em situações de crise, colapso ou ameaças. O contexto de instabilidade social permite que populistas explorem afetos como medo, ódio e ressentimento e construam, em cima desses sentimentos, um discurso tipicamente divisivo e virulento. Não raramente, o populista age como o próprio elemento desestabilizador, forjando crises e os supostos inimigos (internos ou externos) de acordo com sua conveniência, para que possa recorrer à dramatização performática e, assim, legitimar seus posicionamentos. O conceito de Moffitt é particularmente útil para nossa discussão sobre populismo sanitário porque ele proporciona uma tripla dicotomia: entre povo e elite, entre linguagem popular e linguagem
tecnocrática, entre soluções imediatas/performáticas e soluções gradativas/baseadas em evidências. Diante de uma crise de saúde pública, o populista sanitário tratará como inimigos da nação todos aqueles que o impedirem de tomar decisões rápidas, derradeiras e supostamente eficientes diante do problema. Entre seus inimigos estarão, então, acadêmicos, cientistas, burocratas e médicos que demandam estudos, ensaios clínicos e resultados robustos antes de se implementar qualquer política pública que afete parcelas expressivas da população. Evocando o senso comum, ou a sabedoria popular, populistas sanitários oferecem uma espécie de curandeirismo carismático cujo impacto psicológico coletivo é mais importante que a eficácia terapêutica real. Hostilizam, portanto, o conhecimento especializado, considerado inacessível e hermético, além de frequentemente associado a grandes interesses econômicos como, por exemplo, os da indústria farmacêutica. Rechaçam a linguagem asséptica, racional e fria dos tecnocratas, que parecem não se comover com dramas ou reivindicações particulares, ao contrário do apelo emotivo, apaixonado e supostamente cuidadoso do líder paternalista. Finalmente, tais populistas constroem sua performance a partir do tempo imediatista da política, dos ganhos de curto prazo ou das próximas eleições, desprezando a abordagem gradualista, compassada e estabilizadora típica da tecnocracia médico-científica. Ainda que o fenômeno não seja particularmente novo, essa visão sobre populismo sanitário foi articulada, pela primeira vez, por Gideon Lasco e Nicole Curato, em seu artigo Medical Populism, de 2019. Uma análise comparada de crises sanitárias em contextos locais permitiu que os autores construíssem um fio comum, segundo o qual populistas sanitários, diante de uma crise de saúde pública, concebem as elites como um grupo (geralmente difuso) de médicos, comunidades epistêmicas nacionais ou transnacionais, grandes empresas farmacêuticas ou até mesmo “organismos globalistas”, como a Organização Mundial de Saúde. Na narrativa populista, essas elites são acusadas de serem as responsáveis pelo ingresso da ameaça sanitária representada pelo “outro”, geralmente
estrangeiro, retratado como fonte de contágio e, portanto, nocivo à integridade sanitária daquela população. Exemplo de populista sanitário é o caso do presidente sul-africano Thabo Mbeki, o sucessor escolhido a dedo por Nelson Mandela para comandar a África do Sul entre 1999 e 2008. Quando assumiu como presidente, o surto de HIV/aids no país atingia o seu pico, com aproximadamente 10% da população infectada pelo vírus. Enquanto Mandela tinha uma posição negligente em relação à epidemia, Mbeki escolheu uma estratégia diferente. Confrontou abertamente o establishment médico, afirmando que a doença não era fatal, recomendou tratamentos à base de beterraba, alho ou batata e colocou a culpa nas grandes farmacêuticas ocidentais por supostamente explorar a população sul-africana por meio de coquetéis antirretrovirais com preços exorbitantes. Na XIII Conferência Internacional Sobre a Aids, em 2000, Mbeki rejeitou a declaração assinada por cinco mil especialistas — incluindo um prêmio Nobel e respeitáveis institutos de pesquisa — que atribuía ao vírus HIV a causa da aids, causando revolta na comunidade científica. Embora populistas médicos pertençam geralmente à classe política, eles procuram construir a imagem de outsiders, forasteiros antissistema, desafiando os paradigmas predominantes por meio do senso de praticidade e da ação contundente. Da mesma forma, os maus modos aludidos por Moffitt se manifestam no populismo médico por meio de um discurso simplificador (potencialmente equivocado e, portanto, perigoso) e de uma atitude explicitamente anti-intelectualista. Além disso, crises sanitárias propiciam aos populistas uma narrativa legitimadora para agir imediatamente, de forma excepcional e até improvisada. Ao passo que a abordagem tecnocrática enfatiza respostas ponderadas pela racionalidade, priorizando a evidência sobre a ameaça, os populistas médicos colhem benefícios políticos da linguagem direta e simples com que descrevem os graves problemas de saúde pública. Combinado a
oferta de uma solução fácil com uma narrativa de desconstrução do establishment científico, os populistas médicos arregimentam apoio popular para agir rápida e decisivamente. O paradoxo dessa atitude é patente: embora os populistas tenham mostrado uma tendência a minimizar epidemias em seus estágios iniciais, eles tendem a transformar crises sanitárias em espetáculo usando linguagem conspiratória e beligerante. A esse respeito, vale mencionar o exemplo das Filipinas, cujo governo lançou, em abril de 2016, um programa de vacinação contra a dengue prevendo atender mais de um milhão de alunos de escolas públicas. A Dengvaxia, primeira vacina contra a dengue aprovada comercialmente no mundo, foi considerada um marco de saúde pública em um país com uma estimativa de quase 800 mil episódios anuais de dengue. No entanto, em 2017 a empresa farmacêutica Sanofi-Pasteur anunciou que a vacina carregava um risco maior do que o relatado anteriormente, podendo causar infecção grave entre soronegativos ou entre aqueles que nunca tiveram dengue antes da vacinação. Diante do renovado debate na comunidade médica sobre a segurança e eficácia da vacina, o secretário de Saúde do país suspendeu o programa e buscou a orientação de especialistas para definir o curso de ação adequado. As respostas lideradas pela tecnocracia, no entanto, foram rapidamente substituídas por performances de populismo médico. O Ministério Público filipino abriu sua própria investigação e passou a indiciar criminalmente os supostos responsáveis pelas mortes pósvacina. O processo foi liderado por Persida Acosta, uma conhecida defensora pública filipina, que adotou uma performance populista sanitária baseada em dois pilares. O primeiro consistia em lançar dúvidas sobre a credibilidade das elites médicas, aludindo a um suposto sistema corrupto em que funcionários públicos e multinacionais conspiram para ganhar dinheiro, desta vez com um programa de imunização às custas do povo. A outra lógica operava a partir da pretensão de falar em nome do povo, forjando um vínculo afetivo entre seu gabinete e a população. Acosta participava de aparições públicas coreografadas, com pais enlutados carregando
fotos de seus filhos mortos. Visando simplificar, potencializar e espetacularizar a crise, os líderes adeptos do populismo sanitário travam uma guerra contra a credibilidade da comunidade médico-científica e da tecnocracia. Para isso, recorrem a hipóteses pseudocientíficas sobre as origens de doenças, a métodos não convencionais de erradicação dos problemas sanitários, a terapias e tratamentos exóticos e projeções epidemiológicas sem qualquer fundamentação técnica. Se o populismo é um problema político que vem sendo explorado há gerações por acadêmicos preocupados com seus efeitos sociais e institucionais, o populismo sanitário adquire particular gravidade em tempos de pandemia, colocando em risco não somente a produção de políticas públicas ou a reputação de comunidades científicas, mas um número inestimável de vidas humanas. LEIA MAIS
MMOFFIT, B. The global rise of populism: performance, political style, and representation. Stanford: Stanford University Press, 2016. LASCO, G.; CURATO, N. “Medical populism.” Social Science & Medicine, v. 221, p. 1-8, 2019. LASCO, G. “Medical populism and the covid-19 pandemic.” Global Public Health, v. 15, n. 10, p. 1417-1429, 2020. CONFIRA
BOLSONARISMO NEGACIONISMO ESTRUTURAL PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA)
* Pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP) e da Fundação Álvares Penteado (FAAP) ** Pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
PÓS-VERDADE Ernesto Perini-Santos *
P
ós-verdade não é um tipo de verdade, não mais do que um pato de borracha é um tipo de pato. No conjunto de fenômenos associados a essa expressão, não há mudança alguma no conceito de verdade, no que é verdadeiro, nem no que torna uma asserção ou uma crença verdadeira. O que quer que as pessoas acreditem (ou tenham acreditado, ou venham a acreditar), a terra é um globo, a frase “a terra é um globo” é verdadeira e o fato de a terra ser um globo torna a frase “a terra é um globo” verdadeira. As pessoas não podem tampouco viver em mundo em que a terra seja plana, embora possam viver num mundo em que todos acreditam que a terra é plana. Vamos começar com algumas precisões conceituais. Seguindo o uso corrente em filosofia, o termo crença designa o que as pessoas tomam como verdadeiro, sem qualquer conotação acerca do tema tratado — crenças não se limitam ao domínio religioso. Uma segunda precisão diz respeito ao conceito de verdade: a verdade designa uma relação entre algo que é passível de ser julgado como verdadeiro ou falso, como uma asserção ou uma crença, e um fato. Diremos, enfim, que uma crença tem uma razão epistêmica quando ela é aceita porque a pessoa tem alguma indicação do fato que a torna verdadeira. A expressão pós-verdade designa uma suposta mudança no comportamento das pessoas que, aparentemente, passaram a ter crenças para as quais não têm razões epistêmicas. Essa mudança vale para crenças acerca de fatos corriqueiros, como a afirmação avançada por partidários do ex-presidente estadunidense Donald Trump que havia mais pessoas presentes na sua posse do que na posse do ex-presidente Barack Obama, quando o mero exame das fotos dos dois eventos mostra que se trata de uma afirmação falsa. Por que as pessoas tomam como verdadeira uma afirmação
patentemente falsa? A mudança também vale para o negacionismo científico, do qual a ilustração paradigmática é o terraplanismo, mas que cobre também o movimento antivacinação e o criacionismo e sua contraparte pseudocientífica, a teoria do design inteligente. Acerca do negacionismo científico, a pergunta se coloca de maneira um pouco diferente: por que alguém se atribui a capacidade de avaliar teorias sem ter as ferramentas para fazê-lo? Por que os canais institucionais de produção e divulgação do conhecimento cientifico, como institutos de pesquisa e revistas científicas, são preteridos em favor de veículos que não possuem qualquer filtro epistêmico, como grupos de WhatsApp? A primeira reação é que a mentira e a manipulação sempre existiram, assim como sempre houve negacionismos de diferentes tipos. Não é claro que seja necessário um novo termo para designar esse conjunto de fenômenos. Sobretudo, os vieses cognitivos que explicam o desvio de razões epistêmicas sempre existiram. Esse é o caso, por exemplo, do viés da confirmação, que diminui a exigência evidencial para as crenças que já possuímos e aumenta a exigência para o que vai contra o que já acreditamos. Crenças também sempre tiveram um papel na identificação do pertencimento a um grupo. A coordenação em larga escala exige marcas de pertencimento a grupos e uma maneira de marcar o pertencimento a grupo é o tipo de coisa em que se acredita. Esse funcionamento de crenças não responde a razões epistêmicas. Na medida em que os fenômenos designados pela etiqueta “pós-verdade” se explicam por mecanismos desse tipo, eles não são novos. Parece haver, contudo, um aumento nos fenômenos acima mencionados. O desprezo manifesto pelas diferentes fontes de informação e pela verdade, exemplificado de maneira paradigmática por Trump e, de maneira mais geral, pela extrema direita em todo o mundo, levam a mentira e a manipulação a níveis muito altos, como atestam as diferentes agências de checagem de notícias. O negacionismo científico também cresceu. Antes da pandemia, a OMS já apontava um aumento no movimento antivacinação e parece haver um aumento na adesão a movimentos como o
terraplanismo. Por que isso ocorre? Uma primeira razão para o aumento de crenças sem motivação epistêmica vem do encontro entre tendências estáveis da mente humana e o modo como a informação circula na internet. A difusão desregulada da informação favorece a propagação de crenças que não passam por filtros epistêmicos por duas razões. Inicialmente, há uma diminuição nos custos financeiros e reputacionais da difusão da informação, o que faz com que os veículos que se encontram à margem dos canais reconhecidos de propagação do conhecimento ganhem mais espaço. Qualquer um pode criar um blog para difundir suas ideias, quando a publicação numa revista científica ou numa editora reconhecida é muito mais difícil, ou mesmo impossível. Uma defesa do terraplanismo ou da astrologia não seria aceita numa revista de astronomia. Há um crescimento, em particular, da difusão de crenças que têm um papel identitário. As pessoas para quem crenças desse tipo marcam o pertencimento a um grupo têm uma grande motivação para sua difusão. Se esse tipo de crença sempre existiu, a internet gerou dois efeitos que aumentam sua força. Ao mesmo tempo em que a internet aumenta o público para qualquer tipo de ideia (mais ou menos para qualquer tese, é possível encontrar um público que a aceite), gerando a ilusão de consenso, ela diminui a interação entre grupos com posições opostas — notese que esse efeito de fechamento informacional de grupos não é um filtro epistêmico ou moral. O mesmo tipo de efeito ocorre para a difusão de informações corriqueiras por grupos de WhatsApp: esses grupos, criados por algum tipo de afinidade, não têm qualquer filtro epistêmico e, no entanto, funcionam como mecanismo de difusão de informações. Quando as crenças difundidas são centrais na identidade mesma do grupo, sua correção se torna muito difícil. O funcionamento de crenças como marcadores de identidade, que não respondem a critérios epistêmicos e são muito estáveis para os sujeitos, é reforçada pelo modo como funcionam as redes sociais e, de maneira geral, a internet. O segundo aspecto é que a disputa pela atenção que motiva a oferta informacional na internet favorece conteúdos que não são
tampouco selecionados por seu valor epistêmico. Por um lado, explicações científicas são contraintuitivas, o que torna sua aceitação mais custosa — se alguém quer que sua tese acerca de um determinado fenômeno seja aceita por muitas pessoas e se essa for sua única motivação, sua escolha será por uma tese mais simples, sem as eventuais complexidades resultantes de exigências epistêmicas. Além disso, explicações científicas não respondem ao papel de crenças como marcadores de pertencimento. Por outro lado, na mera disputa pela atenção, conteúdos violentos e que geram o medo ganham de outros tipos de conteúdo. A associação entre a disputa pela atenção e a virtual ausência de filtros aumenta a força de conteúdos que são de mais fácil compreensão, que não se opõem a crenças com um valor identitário e que são mais violentos. O mercado informacional desregulado favorece a difusão de conteúdos que escapam, ao mesmo tempo, de filtros epistêmicos e de filtros morais. O segundo fator que favorece a difusão de crenças sem motivação epistêmica é o fortalecimento da extrema direita que, no mundo todo, se constrói em torno de crenças que não passam por filtros epistêmicos e morais. Por um lado, esse grupo político utiliza discursos racistas ou sexistas que não são aceitos em ambientes mais regulados. O espaço sem filtros morais é também um espaço sem filtros epistêmicos, o que explica a convergência parcial de discursos que não passam por diferentes filtros institucionais. Por outro lado, a adoção de crenças que já têm um papel de identificação para boa parte da população, em especial o criacionismo, leva esse grupo político a atacar instituições científicas que produzem teorias que se opõem a crenças com valor identitário. A busca deste espaço sem filtros morais ou epistêmicos resulta no ataque a todo tipo de instituição que funcione como um filtro epistêmico. O terceiro fator que aumenta a aceitação de informações falsas é o crescimento da desconfiança nas sociedades em razão do aumento da desigualdade. A difusão do conhecimento depende da confiança em instituições que servem como produtoras de
conhecimento. Isso vale, mais uma vez, tanto para fatos corriqueiros quanto para teses científicas, e é um reflexo de um traço central da cultura humana: um grupo sempre sabe mais do que cada um de seus membros, de modo que, para todo mundo, há conteúdos que permanecem opacos e que são aceitos pela confiança. Existe uma correlação direta entre o aumento da desigualdade e o aumento da desconfiança, o que é um fator para o aumento da aceitação de crenças sem valor epistêmico: a recusa de mediadores epistêmicos implica na aceitação de crenças sem evidências adequadas. O crescimento da desigualdade e a difusão desregulada de informações na internet reforçam a extrema direita, que se alimenta de tensões e desconfianças que crescem num mundo cada vez mais desigual e prospera em espaços sem filtros epistêmicos e morais. A expressão “pós-verdade” é enganadora: não há sentido em se falar de um tipo novo de verdade, ou que não exista verdade. Além disso, seres humanos nunca foram máquinas epistêmicas, vieses sempre foram parte de nossas vidas cognitivas. No entanto, estes três fatores conjugados reforçam a difusão de crenças que não respondem a qualquer tipo de razão epistêmica. LEIA MAIS
BRONNER, G. Apocalypse cognitive. Paris: Presses Universitaires de France, 2021. D’ANCONA, M. Pós-verdade — A nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. São Paulo: Faro Editorial. 2018. LEWANDOWSKY, S.; ULLRICH K. H. E.; COOK, J. “Beyond misinformation: understanding and coping with the ‘post-truth era’.” Journal of Applied Research in Memory and Cognition, [S. l.], v. 6, n. 4, p. 353-369, dez. 2017. CONFIRA
NIILISMO
PSEUDOCIÊNCIA RELATIVISMO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
PSEUDOCIÊNCIA Joaquim Toledo Júnior *
N
os primeiros meses da pandemia de covid-19, em 2020, os editores do periódico especializado em doenças infecciosas do grupo inglês The Lancet se viram soterrados por estudos sobre a nova doença. Os artigos, candidatos à publicação na plataforma de preprints da revista, precisavam ser submetidos a uma triagem capaz de detectar, na rapidez exigida pela crise sanitária, fraudes científicas e — nas palavras dos próprios editores — “pseudociência”. Como os estudos publicados pela revista poderiam ser utilizados para orientar condutas clínicas, era necessário garantir que fossem bem fundamentados e que tratamentos comprovadamente ineficazes, por exemplo, não fossem adotados e promovidos por governos e profissionais de saúde. Normalmente considerada o domínio de religiosos, cientistas amadores e curiosos inofensivos — criacionistas cristãos, criptozoólogos caçadores de pés-grande e chupa-cabras, catastrofistas promotores de teorias alternativas da origem do mundo, ufólogos paranoicos e terraplanistas solitários — a pseudociência passou a ser percebida como um risco. No entanto, embora bastante mobilizado no debate contemporâneo, o termo carece de um sentido claro. O termo pseudociência é contemporâneo da própria ideia de ciência. Ambas as expressões surgem na primeira metade do século 19 no contexto da profissionalização da atividade científica. Ao mesmo tempo em que reivindicavam para si o título de cientista, esses profissionais acusavam outros de se fazerem passar por cientistas embora não o fossem. Enquanto o termo cientista é uma marca de distinção social positiva, ninguém assume para si a credencial de pseudocientista. Pelo contrário, pseudociência é uma expressão pejorativa, uma arma mobilizada nas disputas das fronteiras entre ciência e não ciência. Vamos ver como se dão essas
disputas à luz de quatro discussões: o problema da demarcação; o falibilismo popperiano; as críticas e alternativas ao falibilismo; bem como a noção de má ciência. Quando não estão ocupados com seus experimentos e teorias, cientistas se dedicam a vigiar as fronteiras de suas especialidades e, quando a situação exige, a vigiar até mesmo a fronteira que separa a ciência do resto — uma espécie de linha imaginária que delimita o campo do conhecimento fundamentado de todas as demais formas de conhecimento. Assim como os gregos consideravam bárbaros todos os povos que não compartilhavam da língua e da cultura grega, cientistas e filósofos da ciência observam com curiosidade e temor as tribos — alquimistas, astrólogos, defensores da teoria da fusão a frio e da percepção extrasensorial e, dependendo das inclinações do cientista ou filósofo em questão, metafísicos, psicanalistas e marxistas — que habitam as planícies inóspitas da não ciência ou pseudociência. Mas a localização exata dessa fronteira não é clara. Filósofos exploraram o vasto território do conhecimento atrás de um critério capaz de delimitar por vez os reinos da ciência e da não ciência e retornaram de mãos vazias. Como fronteiras delimitadas por rios, as fronteiras da ciência estão sujeitas a deslocamentos bruscos ao longo da história, incluindo em determinado momento algumas disciplinas e especialidades e excluindo-as no momento seguinte. A esse enigma topográfico dá-se tradicionalmente o nome de “problema da demarcação”. Para o filósofo Karl Popper (1902-1994), a tarefa maior da filosofia é estabelecer um critério capaz de distinguir entre ciência e pseudociência. Popper se formou na vibrante Viena da década de 1920, onde socialismo, marxismo, psicanálise, física e filosofia conviviam, embora nem sempre em harmonia. O chamado Círculo de Viena, ativo à época em que Popper era estudante, liderou o movimento filosófico conhecido como empirismo lógico, que dominou a filosofia da ciência na primeira metade do século 20. Para os empiristas lógicos, dados da experiência são a única fonte
confiável de conhecimento do mundo natural. O grande alvo dos empiristas lógicos era a metafísica, uma subdisciplina da filosofia que quer construir conhecimento a priori, isso é, independente dos dados da experiência, sobre o mundo. Nessa perspectiva, a metafísica seria uma pseudociência: pretende oferecer um entendimento do mundo sem fundamentos. Para Popper, a distinção entre ciência e não ciência que os empiristas lógicos procuravam era necessária e urgente, mas o critério insuficiente. Estava claro que a ciência poderia errar e que a pseudociência de vez em quando “tropeçava na verdade”. Mas se tanto ciência como pseudociência podem acertar, como distinguilas? Popper atribuiu sua solução do problema a um evento contemporâneo da história da ciência: em 1919, uma expedição britânica para estudar o fenômeno do eclipse solar resultou em observações que comprovavam uma hipótese derivada da recémformulada teoria geral da relatividade de Albert Einstein. O que surpreendeu Popper foi o risco envolvido: se a observação não fosse compatível com a hipótese, a teoria estaria em risco, e viveríamos em um mundo cientificamente bastante diferente. Popper inspirou seu critério de demarcação entre ciência e pseudociência nesse desafio à refutação: “o critério do status científico de uma teoria é sua falseabilidade, ou refutabilidade, ou testablidade”, escreveria em Ciência: conjecturas e refutações (1963). Uma teoria que não torna explícitas as condições em que seria falsa não é científica, segundo o chamado critério da falseabilidade, ou falibilismo, embora possa parecer científica e eventualmente estar correta: ela é pseudocientífica. O falibilismo de Popper é uma das ideias mais influentes do século 20. Oferece uma solução elegante para o problema da indução, que perseguia a filosofia da ciência moderna desde que o filósofo escocês David Hume (1711-1776) associou empirismo a ceticismo. Para Hume, nem todos os experimentos do mundo podem comprovar a verdade de uma hipótese; resta sempre a possibilidade de que um novo experimento a prove falsa. Popper substituiu a preocupação com a verdade da teoria científica pela preocupação
com a explicitação de suas condições de falseabilidade: não é necessário que uma teoria seja verdadeira para ser científica; ela deve apenas poder ser falsa. Hoje o falibilismo é a característica da ciência mais mencionada por cientistas quando fazem a defesa de seu trabalho. Mas o critério de Popper não é imune a críticas. A primeira crítica, de ordem histórica, é que Popper teria elaborado o critério sob medida para excluir do campo da ciência não apenas a metafísica, mas também a psicanálise e o marxismo, dois rivais intelectuais seus. A segunda crítica, elaborada por Larry Laudan em 1983, é que mesmo os defensores de doutrinas que são sabidamente não científicas podem indicar algum fenômeno, ainda que improvável, que, se observado, os faria abandonar suas crenças. O critério de Popper, assim, não jogaria para a bacia da pseudociência diversas doutrinas que, intuitivamente, sabemos serem não científicas. Para Laudan, o próprio problema da demarcação era um pseudoproblema. O critério de Popper é também considerado binário demais para a sensibilidade história e sociológica da filosofia da ciência contemporânea. Para Popper, ou uma disciplina é ciência ou não é. Mas é possível pensar em termos menos excludentes. Massimo Pigliucci, por exemplo, sugere que uma abordagem em duas dimensões reflete melhor a heterogeneidade da prática científica. A ciência produz conhecimento empírico e compreensão teórica a respeito do mundo natural e social; diferentes ciências enfatizam esses aspectos à sua maneira. A física de partículas, por exemplo, tem produzido ambos em grande escala nas últimas décadas; a astrologia e as teorias que negam a relação entre HIV e a aids, por outro lado, produzem muito pouco de ambos. A maioria das ciências se encontra a meio caminho desses extremos. Não existe, portanto, uma linha clara entre ciência e pseudociência. Existem práticas de conhecimento que expandem mais, ou menos, o nosso entendimento teórico ou o nosso conhecimento empírico do mundo. Michael Gordin oferece uma visão ainda mais radicalmente
histórica, e sugere uma taxonomia de pseudociências, ou ciências “marginais” — isto é, que estão à margem da ciência oficial — composta por três grandes famílias: ciências vestigiais, que foram um dia legítimas; ciências hiperpolitizadas, submetidas a programas ideológico-políticos; ciências contrainstitucionais, que mimetizam a estrutura sociológica da ciência. Na taxonomia de Gordin, a tensão entre ciência e não ciência é dinâmica e multidimensional, e não linear como em Popper. Os últimos anos têm assistido à emergência de teorias pseudocientíficas velhas e novas — 7% dos brasileiros, por exemplo, acreditam que a Terra é plana. O fenômeno tem sido associado a movimentos políticos-religiosos conservadores mundo afora. No entanto, o que conta como pseudociência continua a ser uma questão em aberto, ou em eterna disputa. Algumas teorias assim consideradas são formas vestigiais de teorias antes consideradas legitimamente científicas, como a alquimia. Outras mimetizam em tudo as ciências, com especialistas credenciados, associações de pesquisadores e publicações especializadas, como o criacionismo e a ufologia. Outras parecem ceder espaço excessivo a ideologias políticas, como diversas formas de racismo científico. Seus praticantes vez por outra invertem a acusação e denunciam o establishment científico de incorrer em inúmeros pecados não científicos, como fecharem-se para evidências, priorizarem interesses corporativos, e, em suma, recusarem-se a aceitar a verdade quando contraria seus preconceitos científicos. No entanto, como mostraram Naomi Oreskes e Erik M. Conway, os maiores riscos que enfrentamos hoje não vêm tanto de cientistas amadores ou obsessivos de internet. Os riscos mais preocupantes vêm de cientistas que, patrocinados por empresas ou think tanks, aproveitam-se da incerteza própria da ciência para semear dúvidas em questões sociais urgentes como a mudança climática e os efeitos nocivos do cigarro, dos agrotóxicos e de tratamentos médicos sem comprovação clínica. LEIA MAIS
CLARK, D. J. A terra é plana. Estados Unidos: Delta-v Productions, 2019. Documentário (95 minutos). Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. GARCIA, R. “7% dos brasileiros afirmam que a Terra e plana, mostra pesquisa.” Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 jul. 2019. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2021. POPPER, K. R. Conjecturas e refutações. São Paulo: Edições 70, 2019. CONFIRA
NEGACIONISMO CIENTÍFICO PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) POPULISMO CIENTÍFICO
* Pesquisador do Maria Sibylla Meriann Centre ConvivialityInequality in Latin America (Mecila)
QUEER Gustavo Gomes da Costa *
D
a língua inglesa, o termo queer pode ser traduzido como estranho ou bizarro. A palavra tem sido utilizada como xingamento contra pessoas homossexuais, semelhantemente aos termos bicha e viado no português brasileiro. No âmbito do ativismo de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTQI+) estadunidense, nas décadas de 1980 e 1990, o termo queer foi sendo crescentemente apropriado e ressignificado por críticos dos setores hegemônicos do movimento de lésbicas e gays organizados, em grande medida, a partir da lógica das políticas de identidade. Nessa lógica, a ação política de lésbicas e gays se centraria no reconhecimento social e político da homossexualidade, semelhantemente à estratégia do movimento pelos direitos civis de afrodescendentes e de mulheres. Nas políticas de identidade, busca-se a valorização das identidades de grupos sociais estigmatizados e a garantia de legislação específica que coíba a discriminação, o preconceito e a violência contra esses grupos. Nesse sentido, um dos objetivos centrais do movimento de lésbicas e gays seria garantir a assimilação dessa coletividade à sociedade estadunidense mainstream. A emergência da epidemia de aids na década de 1980 fez ressurgir diversos estigmas contra as homossexualidades, apontando para os limites da estratégia assimilacionista do movimento de lésbicas e gays. Vários grupos e coletivos homossexuais, a exemplo do ACT UP (Aids Coalition to Unleash Power), passaram a adotar uma postura radical de contestação aos valores culturais dominantes, utilizando-se de formas de ação direta tais como ocupações e ações lúdicas. Por meio das formas diretas de ação, visavam chamar atenção da opinião pública para o alto número de mortes entre a comunidade gay e a ausência de respostas governamentais de combate à epidemia.
Já no mundo acadêmico, queer refere-se a uma perspectiva teórica interdisciplinar, desenvolvida originalmente nas ciências humanas anglo-saxãs, principalmente nos EUA, na década de 1990. Suas origens, no entanto, remontam às reflexões de importantes teóricos das décadas anteriores, a saber, de autores pósestruturalistas como Michael Foucault e Jacques Derrida, assim como autoras engajadas nas críticas do feminismo negro e lésbico, a exemplo de Eve Sedgwick, Gayle Rubin, Gloria Anzaldúa e Judith Butler. É difícil estabelecer claramente as características definidoras da teoria queer, visto que seus teóricos rejeitam a delimitação explícita de um marco teórico e de um campo de análise unificados. Contudo, é possível identificar alguns pressupostos comuns aos teóricos queer. O primeiro diz respeito à crítica a visões essencialistas das identidades de gênero e de orientação sexual. A partir das reflexões dos autores pós-estruturalistas, os adeptos da teoria queer enfatizam a natureza socialmente construída (e necessariamente precária e contingente) das identidades sexuais e de gênero. O segundo elemento refere-se à ênfase nos mecanismos sociais, políticos e culturais que constroem a heterossexualidade como a norma social. Para os teóricos queer, a heterossexualidade não é um dado natural e biológico, mas sim uma construção social compulsoriamente estabelecida. A heterossexualidade compulsória seria, dessa forma, a base de toda a ordem social que privilegia os homens que oprimem não só as mulheres, mas também aqueles se relacionam com pessoas do mesmo sexo. Nesse sentido, o sexismo e homofobia seriam parte de um mesmo sistema de opressão heterossexista. Adotar uma postura político-teórica queer é assim contestar a validade e a suposta consistência do discurso que estabelece a heterossexualidade como norma. Um terceiro elemento da teoria queer é a crítica aos binarismos de gênero e orientação sexual. Não haveria, na perspectiva queer, uma vivência das sexualidades heterossexual e homossexual apartada uma da outra. A heterossexualidade e a homossexualidade são parte de um mesmo sistema instável de significação cultural e
linguística. Ademais, a heterossexualidade, para se construir enquanto todo coerente e inteligível, precisa negar e repudiar a homossexualidade, definindo suas práticas e identidades como anormais, abjetas e socialmente ininteligíveis. Dessa forma, a homossexualidade seria o “exterior constitutivo” da heterossexualidade enquanto prática sexual “normal”. Um quarto elemento da teoria queer é a ênfase nos estudos de práticas, performances e identidades que rompem, desconstroem e/ou rejeitam os pressupostos heterossexistas da cultura hegemônica. Exemplos disso são as identidades transgênero, intersexo e a ambiguidade de gênero, a exemplo de pessoas não binárias. Os adeptos da teoria queer defendem, então, a fluidez e a multiplicidade das identidades sexuais e de gênero. A obra da filósofa feminista estadunidense Judith Butler é considerada um importante marco para a perspectiva queer, e tem sido a principal referência para acadêmicos brasileiros engajados nos estudos de gênero e sexualidade. Em seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Judith Butler critica a existência de uma homogeneidade de interesses e de vivências da opressão por todas as mulheres. A autora afirma que a defesa de uma suposta universalidade da opressão patriarcal contra as mulheres ignora as diferentes vivências da opressão de gênero. A ênfase na “irmandade feminina” resultaria na defesa de um sujeito feminino único que, na realidade, refletiria os anseios e interesses de um grupo particular de mulheres (brancas, ocidentais, de classe média e/ou heterossexuais). Assim, as vivências e demandas de outras “mulheres” (negras, da classe trabalhadora, de países do “Sul global”, lésbicas, bissexuais e trans, entre outras) seriam excluídas do movimento feminista. Judith Butler avança em sua crítica à existência de um sexo biológico pré-discursivo ao defender que os discursos de gênero criam a “materialidade do sexo”, instituindo “machos e fêmeas” ou “homens e mulheres”. Nesse sentido, Butler radicaliza o sentido da famosa frase da filósofa francesa Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher”. A teórica queer se utiliza da noção
de performatividade para desconstruir a ideia de um sexo biologicamente dado em contraposição ao gênero culturalmente estabelecido. Para ela, a identidade de gênero seria resultante de um constante e reiterado conjunto de atos (gestos, vestimentas, modos de fala, entre outros) e discursos (leis, tratados científicos), por meio dos quais se cria a “fantasia” da existência de dois sexos biológicos. Esses atos e discursos estabeleceriam uma coerência necessária entre “machos e masculino” e “fêmeas e feminino”. Butler, contudo, não sugere que a identidade de gênero é algo arbitrário e passível de livre escolha. Pelo contrário, tais atos e discursos estão fortemente incrustados em convenções culturais e morais. A performatividade de gênero operaria no sentido de naturalizar aquilo que Butler nomeará de “matriz heterossexual”, entendida como estrutura discursiva que estabelece a congruência necessária entre sexo biológico, identidade de gênero e orientação do desejo sexual. Nessa matriz, indivíduos “machos” ou “fêmeas” assumem obrigatoriamente papéis de gênero masculinos ou femininos endereçando seu desejo sexual conforme padrões heteronormativos. As reflexões de Butler abriram novos caminhos nos estudos de gênero e sexualidade ao reforçar o argumento construcionista social das identidades de gênero e sexuais. Mais ainda, a obra de Butler possibilitou a compreensão de vivências alternativas do gênero e da sexualidade, a exemplo das homossexualidades e das transexualidades, abarcando a fluidez e a contingência das categorias sociais de gênero e sexualidade. A crítica radical ao binarismo de gênero e a dicotomia natureza/cultura tem resultado em importante contribuição para os estudos de gênero e sexualidade, inclusive para os estudos recentes sobre as interseccionalidades de gênero, raça, classe e orientação sexual/identidade de gênero. A análise butleriana do gênero enquanto performatividade tem sido alvo de intensos ataques, particularmente de grupos religiosos cristãos e de extrema direita no Brasil. Tais grupos a acusam de
negar a existência de homens e mulheres e de defender a suposta “sexualização precoce” e a “mudança de gênero” de crianças e adolescentes. Em novembro de 2017, quando da sua participação no seminário “Os fins da democracia”, organizado pelo Sesc Pompeia em São Paulo (SP), Butler foi alvo da manifestação de grupos conservadores. Em seus ataques, estes lhe acusavam de promover a suposta ideologia de gênero nas escolas, de defender a pedofilia e de negar os fatos biológicos, além de representar um ameaça aos valores da família. Os manifestantes ainda queimaram um boneco representando a filósofa aos gritos de “Queimem a bruxa!”. A autora chegou ainda a ser alvo de violência física proferida por uma ativista ultraconservadora no aeroporto de Congonhas quando deixava São Paulo. O ataque contra Butler foi o último episódio de uma sequência de mobilizações contrárias às sexualidades não heterossexuais que se iniciou em setembro de 2017. Nessa ocasião, ativistas do Movimento Brasil Livre (MBL) iniciaram ampla mobilização on-line contra a exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira sediada no Espaço Cultural Santander na cidade de Porto Alegre. A ação do MBL levou ao cancelamento da exposição pelo Banco Santander, dando início a uma espiral de mobilizações por todo o país, atingindo diversas expressões artísticas e culturais que abordavam diferentes aspectos da sexualidade. Entre essas mobilizações estão o cancelamento da peça O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, da dramaturga Jo Clifford, no Centro Cultural Sesc de Jundiaí (SP), que retrata Jesus Cristo na contemporaneidade, na pele de uma mulher transexual, bem como a performance La Bête, realizada pelo coreógrafo Wagner Schwarz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), ambas em setembro de 2017. No primeiro caso, o juiz local suspendeu o espetáculo sob o argumento de que a peça expunha ao ridículo os símbolos cristãos. No segundo caso, vídeos divulgados pelas redes sociais exibiam imagens de uma menina tocando o corpo despido do coreógrafo, que acabou vítima de ameaças por supostamente incitar à pedofilia.
Em comum, esses episódios demonstram como o queer se converteu em alvo privilegiado na “guerra cultural” empunhada por grupos religiosos conservadores e pela extrema direita contra o feminismo, o politicamente correto e os direitos LGBTQI+. Expressões da sexualidade dissonantes dos padrões heteronormativos converteram-se em bodes expiatórios que canalizaram ansiedades coletivas de diversos grupos da sociedade brasileira. Seus pânicos se opõem à maior visibilidade da população LGBTQI+ na esfera pública, dando vazão à insatisfação disseminada nesses grupos com a crise econômica e política, cada vez mais percebida como uma grande crise moral. A histeria coletiva em torno do queer, da pedofilia e da suposta sexualização precoce das crianças foi fartamente utilizada pela campanha de Jair Bolsonaro em 2018 para disseminar na sociedade a ameaça representada pela possível volta do Partido dos Trabalhadores (PT) ao executivo federal. Ademais, a lógica de criação de bodes expiatórios tem sido central não só na retórica agressiva da campanha do candidato de extrema direita, mas também no seu governo, hábil em construir a figura inimigos, voltada especialmente para feministas e militantes LGBTQI+, contra os quais direciona os pânicos e descontentamentos de sua base eleitoral. LEIA MAIS
LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. MISKOLCI, R. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. SALIH, S. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. CONFIRA
ANTIGÊNERO CULTURA
DESIGUALDADE E INTERSECCIONALIDADE
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
QUESTÃO INDÍGENA Ana Flávia Moreira Santos * Mércia Rejane Rangel Batista **
E
m 1987 experimentamos, com uma grande repercussão, a presença de Ailton Krenak na tribuna do Congresso, pintando o rosto com jenipapo, expressando o luto e defendendo a Emenda Popular nº 40 — que, com 45 mil assinaturas, propunha à Assembleia Nacional Constituinte o reconhecimento do direito dos povos indígenas à vida e aos seus territórios. Qual o espaço dos indígenas na sociedade brasileira?, eis a pergunta que atravessava o seu questionamento: “Sr. Presidente, se não formos capazes de reconhecer os direitos à terra, não reconheceremos o direito à vida das populações indígenas. Seriam 12 milhões hoje, neste país. São 220 mil. Se não tivessem sido vítimas do genocídio, seriam uma grande nação, contribuindo com o povo brasileiro. Hoje, são poucos, e os poucos que existem estão com seu direito à vida ameaçado. Faço, pois, um apelo à consciência dos Constituintes, à consciência da sociedade: ‘Não é possível se construir um país democrático sem respeitar o direito das minorias’”. Em 2017, Jair Bolsonaro, pré-candidato à presidência da República, declarou que iria acabar com todas as reservas indígenas e comunidades quilombolas do país caso fosse eleito em 2018. Para o então deputado, tais territórios atrapalhavam a economia: “Onde tem uma terra indígena, tem uma riqueza embaixo dela. Temos que mudar isso daí”. O Governo Bolsonaro tem atuado para cumprir as promessas do candidato: entre o desmonte administrativo e os retrocessos legais que vêm caracterizando a gestão federal entre 2019 e 2021, sobressaem iniciativas voltadas para a negação de direitos territoriais coletivos, em especial os direitos indígenas. Refletindo essa compreensão sobre o não direito das populações tradicionais e
das minorias, assistimos, em 22 de junho de 2021, ao covarde ataque da polícia legislativa a manifestantes e lideranças indígenas que, em Brasília, protestavam contra a aprovação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 490/2007. Enquanto tentavam ser ouvidos pelo Congresso, os indígenas foram agredidos por cerca de uma hora e meia, com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. O projeto 490 — que viria a ser aprovado em primeira votação no dia seguinte, em plena pandemia — propõe que as demarcações das terras indígenas, atualmente executadas e homologadas pelo Poder Executivo, passem a ser efetivadas através de leis submetidas ao Congresso Nacional. Trata-se de formulação que, com graves reflexos nas rotinas administrativas, atinge os pressupostos do direito indígena, ativando toda uma economia simbólica que sustenta, no limite, a própria inviabilidade da existência dos indígenas no mundo contemporâneo. Como compreender uma mudança dessa magnitude entre o final da década de 1980 do século passado e o final da segunda década do século 21? Do ponto de vista das expectativas geradas em 1988, maior sentido faria se pudéssemos inverter as narrativas: perdas e massacres ocorridos no passado sendo substituídos por um pacto civilizacional. Assistimos, entretanto, a um momento que nos leva a perguntar: haverá futuro no nosso país para a existência dos povos indígenas? Haverá futuro para uma sociedade que se pretenda democrática e pluriétnica? No arco histórico que levou ao encerramento e superação da ditadura civil-militar e à construção de uma democracia no Brasil, a formação de uma assembleia constituinte implicou a possibilidade de se expressar pontos de vistas oriundos do movimento indígena, do conhecimento acadêmico e de outros movimentos sociais. Os esforços então realizados para construir a memória de uma dívida histórica com relação aos primeiros habitantes do Brasil geraram uma sensibilização de parte da sociedade, possibilitando desdobramentos em termos da enunciação de direitos inscritos na lei maior do país.
O desenho resultante, expresso sobretudo nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, contém alguns elementos fundamentais: a existência dos povos indígenas não corresponde a uma etapa a ser superada, sendo a eles reconhecidos sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições; o direito dos povos indígenas às terras por eles tradicionalmente ocupadas é originário, ou seja,é anterior ao surgimento e à constituição do Estado-Nação, e como tal independe de lei ou ato administrativo que o instaure; os indígenas são capazes e possuem legitimidade para representarem, por meio de suas organizações, seus próprios interesses. É uma nova ordem — que, reconhecendo a sociedade brasileira como pluriétnica, afirma a existência mesma desses povos no presente e em projeção para o futuro. Em suma, a Constituição estabelece o pleno direito dos povos indígenas à existência como coletividades, a garantia ao usufruto de seus territórios sendo compreendida como condição basilar para a sua reprodução física e cultural. Ao superar o paradigma assimilacionista — que pensa o “índio” como ser pretérito, incapaz, provisório, a ser “integrado à comunhão nacional” —, a Constituição de 1988 propôs uma ruptura com um conjunto de imagens, ideias e sentimentos provenientes de um denso arquivo colonial. Ancorada em matéria simbólica cristalizada em séculos de colonização, a crença na transitoriedade do índio alinhavou, sob o dever moral de cristianizar, justificativas para a escravização de indígenas. Mais recentemente, no período republicano, fundamentou, como bem apontou Souza Lima, o instituto jurídico da tutela e diversas categorizações formais construídas em termos de “graus relativos” de contato com a sociedade nacional — escalas seriadas que supunham, em seu fim, a própria supressão da condição indígena. À noção de transitoriedade se associam ideias e representações genéricas acerca do índio que permanecem enraizadas no imaginário cultural de amplas camadas da sociedade brasileira. Ainda é frequente que pensemos nos povos indígenas em termos de estruturas que os associam a tempos, modos e lugares bastante arbitrários e restritivos: o passado longínquo; costumes primitivos
e/ou exóticos, como o de andarem nus; uma sabedoria ingênua; o lugar distante (a floresta “intocada”) ou de conformação espacial estrita (a “aldeia”). Extraídos de narrativas e conjuntos simbólicos mais ou menos elaborados — presentes, inclusive, nas tradições letradas — esses estereótipos são constantemente acionados, em face dos indígenas reais, como fontes de autenticidade. Deve-se enfatizar que tais operações simbólicas autorizam práticas e produzem efeitos concretos. No passado, o fundamento pedagógico da sedentarização — ensinar aos indígenas o amor pelo trabalho agrícola —, justificou práticas administrativas voltadas para a circunscrição de grupos e coletividades a terras extremamente exíguas, caminho pelo qual se promoveu a liberação de amplos espaços ao avanço das frentes de expansão, em processos extremamente violentos de espoliação territorial. Como propõe Pacheco de Oliveira, a formação da nação brasileira pode ser pensada a partir da noção de fronteira: a incorporação de espaços para a conformação de um povo e um território homogêneos, mediante a destituição de comunidades originárias cuja organização socioespacial conformou, historicamente, zonas de autonomia, e a consequente apropriação de terra, trabalho e natureza por parte de forças econômicas articuladas ao mercado capitalista internacional. Utilizado em muitas regiões do país, o termo “caboclo” reduz processos históricos resultantes de lutas políticas a uma hibridização, denotando, por meio da imagem da “mistura”, o desaparecimento do “índio puro”; mas sempre em favor de uma condição “civilizada” que estabelece a destituição do direito ao território e se concretiza no disciplinamento do corpo pelo trabalho agrícola passível de sujeição. A Constituição Federal de 1988 sem dúvida foi importante para o estabelecimento de um novo “campo de possíveis”, lançando princípios que, instrumentalizados pelas comunidades étnicas locais e por um movimento indígena crescentemente organizado, permitiu avançar em termos da estruturação de órgãos de estado, da implementação de políticas públicas (sobretudo na educação e na saúde) e quanto à demarcação de territórios. Não obstante,
mesmo os contextos mais imediatamente favoráveis à implementação desses direitos, como o da Eco-92, estiveram atravessados por forças e iniciativas anti-indígenas, que resultaram em formas diversas de obstacularização à garantia dos direitos territoriais. Algumas rotinas administrativas se enrijeceram — como a de demarcação de terras indígenas, cujas normatizações implicaram em níveis progressivos de controle e na incorporação cada vez mais precoce do exercício do contraditório. Outras foram sendo adequadas, flexibilizadas, como os licenciamentos ambientais de empreendimentos extrativistas e projetos de infraestrutura, afetando diversos povos indígenas, sobretudo na Amazônia. Houve uma crescente e articulada judicialização dos processos administrativos de demarcação de terras indígenas. Conforme apontam Laschefski & Zhouri, o neoextrativismo e a reprimarização da economia brasileira nas últimas décadas potencializaram a ocorrência de conflitos territoriais, revelando soluções negociais que negligenciaram mesmo os direitos constitucionais formalmente garantidos. Se permanecemos diante de práticas, discursos e ideologias de profundo lastro, constitutivas da questão indígena no Brasil, elas parecem ter alcançado, no contexto do Governo Bolsonaro, um novo patamar de força e legitimidade. Um ponto de inflexão em que o que se destrói é o próprio pacto civilizatório que, no período pós-1988, sustentou um campo de alternativas que nos deixava vislumbrar, ao menos como possibilidade, uma democracia que se reconhecia como multiétnica. Lugar onde a violência não tem freios, a fronteira desvela as imbricações entre o exercício de um poder simbólico e o da força bruta; ilumina as confluências entre a “morte em efígie”, que se faz por decreto, e a produção de condições reais de violência, sujeição e morte. Esse enlace constitutivo da guerra de conquista nunca esteve tão evidenciado quanto no atual momento político. Assistimos, articuladas à omissão do governo federal quanto às medidas de segurança sanitária para os povos indígenas durante a pandemia, a mais de um milhar de mortes de indígenas por covid19; à recusa da extensão da prioridade na vacinação a indígenas
em contexto urbano e em territórios não homologados; assim como à tentativa de subtração da verdade, na supressão do slide do pesquisador com dados demonstrativos da maior letalidade da doença entre esses povos. Ao discurso de “nem mais um centímetro de terra” se associa o desmonte da fiscalização, a permissividade para com desmatadores, garimpeiros, grileiros, em espirais de violência que alcançam concretamente territórios e corpos indígenas. Organizados em movimento, no centro da arena política nacional ou em esferas internacionais, na literatura, no cinema, nas artes, nos circuitos acadêmicos e intelectuais, nas mídias e redes sociais, desde seus lugares e territórios, os indígenas, entretanto, nunca se fizeram tão presentes no cotidiano brasileiro, desafiando, com suas trajetórias múltiplas e complexas, as imagens arbitrárias do arquivo colonial. Não há, aqui, um paradoxo. É ao serem confrontadas pela existência plena dos indígenas que tais imagens se tornam interessantes de serem acionadas para a atribuição de sinais de desconfiança. Aos que se atrevem a enunciar um texto desafiador é que se busca cassar o direito a definirem sua própria existência. Embora constitua mais um item de uma extensa agenda antiindígena, o chamado à pauta do PL 490/2007 nos parece bem expressivo desse contexto histórico, em que se busca naturalizar, a um só tempo, o exercício arbitrário de apontar a existência ou inexistência de limites, identidades e grupos; e a instauração da condição mais concreta para a aniquilação violenta desses mesmos grupos. LEIA MAIS
LASCHEFSKI, K. A.; ZHOURI, A. “Povos indígenas, comunidades tradicionais e meio ambiente: a questão territorial e o novo desenvolvimentismo no Brasil.” Terra Livre, São Paulo, v.1, n. 52, p. 278-322, 2019. OLIVEIRA, J. P. de. “O nascimento do Brasil e outros ensaios:
‘pacificação’, regime tutelar e formação de alteridades.” Contra Capa, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 327-330, 2016. LIMA, A. C. S. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1995. AMADO, L. H. E. Vukápanavo. O despertar do povo terena para os seus direitos: movimento indígena e confronto político. 2019. Tese (Doutorado em Antropologia Social) — Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 11 mar. 2020. CONFIRA
AMAZÔNIA PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) POPULISMO SANITÁRIO
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) ** Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)
RACISMO ESTRUTURAL Cibele Barbosa *
N
os anos após a abolição da escravidão e nos anos iniciais da República brasileira, intelectuais alinhados com as doutrinas raciais pleiteavam o branqueamento da população pela via da mestiçagem; em outras palavras, almejavam a transplantação europeia nos trópicos, tanto pela adoção de modelos culturais do velho mundo quanto pela injeção de imigrantes brancos que pudessem se miscigenar e, assim, fazer desaparecer a predominância negra no país. Nesse sentido, nos tempos de Deodoro, o decreto de proibição da imigração de africanos e asiáticos ao país, em 1890, rezava pela cartilha eugênica de exclusão de não brancos no povoamento do solo nacional. Ao mesmo tempo, o Brasil negro, africano e popular era alvo de discriminação e desprezo por parte de uma elite que queria se mostrar alinhada aos padrões físicos e culturais do hemisfério Norte. Sob outro viés, políticos e formadores de opinião de inspiração culturalista incorporavam o ideário das três raças herdado dos tempos da monarquia, de modo a valorizar a mestiçagem como elemento pacificador e unificador nacional, destacando-o em contraposição ao segregacionismo norte-americano. Esses grupos sustentavam a ideia de uma assimilação dos três “povos fundadores” em uma “raça nacional”. O discurso de uma suposta harmonia racial, a partir da negação de que haveria racismo ou ódios raciais no Brasil, foi tecido e alinhavado por intelectuais, políticos e artistas, chegando a seduzir, inclusive, alguns intelectuais negros brasileiros e norte-americanos que, nos anos 1910 e 1920, acreditavam que o Brasil seria um “paraíso racial” e um contraponto aos Estados Unidos. Em 1921, houve até deputado brasileiro que propôs um projeto de lei que proibisse a vinda de afro-americanos ao Brasil para que esses não influenciassem os negros brasileiros com seu “ódio racial” aos brancos.
As ambivalências e hesitações da nascente República brasileira não paravam por aí. Os principais debates sobre a questão racial e o novo desenho da nação republicana oscilavam, de modo muito suscinto, entre aqueles que que queriam “apagar” as populações negras do país, tanto pela ocultação e minimização do seu legado simbólico e cultural como pela via da miscigenação branqueadora, e aqueles que, sob inspiração culturalista e modernista, defendiam a mestiçagem e a participação dos africanos tanto na composição biológica quanto cultural — por meio da valorização do “folclore” e das “tradições” — de uma raça “brasileira” unificada e mestiça. Em outras palavras, se, juridicamente, a imagem de igualdade fazia parte do slogan governamental, na prática, pululavam imagens, textos e discursos coroados por frágeis teorizações racistas que imputavam às populações não brancas déficits de ordem biológica e civilizacional. Caracteres físicos, especialmente os das populações negras, eram representados de forma negativa e pejorativa, enquanto falhas morais e intelectuais eram atribuídas a características biológicas supostamente “inerentes” às populações negras. O racismo dito científico ainda estava na ordem do dia, persistindo de forma mais ou menos direta, nos escritos de intelectuais, políticos e cientistas. Estes escritos estabeleciam hierarquizações não só de cunho biológico, mas também intelectuais e até culturais entre as raças. Culturas, religiosidades e costumes de povos africanos eram constantemente relacionados à barbárie ou à selvageria. Apesar disso, a narrativa oficial da República, ao negar o racismo sistêmico no Brasil e até mesmo buscar relegar os males herdados da escravidão “ao esquecimento”, isentou o poder público de implantar políticas de inclusão e afirmação de grupos que sofriam as mazelas oriundas dos tempos de cativeiro e os estigmas sociais vivenciados no período pós-abolição. Em linhas gerais, a alforria da escravidão não livrou as populações negras dos grilhões do racismo nem dos entraves à sua ascensão social. A ideia de um Brasil onde imperava o que Menocchi Del Pichia
denominou de “democracia étnica” baseado na “fraternidade” entre as raças, onde a ocorrência de racismo era tida como “pontual” ou até mesmo “cordial”, constituiu-se em um discurso hegemônico que adentrou os anos 1930 e seguiu nos anos 1940 durante o governo Vargas. Na esfera internacional, após a Segunda Guerra Mundial, a Unesco promoveu encontros com especialistas para discutirem a ineficácia do uso científico da raça. A invalidação da raça como categoria científica foi referendada em uma primeira declaração sobre o tema em 1950. Ao mesmo tempo, ainda nos fóruns da Unesco, cientistas sociais como Luiz Costa Pinto e o sociólogo negro Franklin Frazier alertaram que, mesmo não sendo um conceito a ser utilizado do ponto de vista biológico, o termo permanecia válido em algumas culturas de um ponto de vista social e simbólico. Ou seja, eles alertavam que as raças continuavam a existir não como fatos biológicos, mas como construções simbólicas pelas quais diferentes sociedades se viam e se definiam. Em linhas gerais, entender sociologicamente a existência da raça como construção social ajudaria a melhor diagnosticar e identificar os meios de se combater a discriminação. No entanto, o que continuou a vigorar, nos discursos hegemônicos e oficiais dos brasileiros sobre si, foi a sistemática negação das tensões existentes no país com base no critério social de raça. Sob esse viés, nutria-se a compreensão de que o preconceito vigente era de classe, não de raça. Essa versão dava sustentação para a ideia de “democracia racial”, termo que se popularizou em escritos de Gilberto Freyre — embora se tratasse de uma construção intelectual que vinha desde o mito das “três raças” nos tempos do Império. Tal ideia consistia na tese de que o Brasil era um país propenso a assimilar todas as raças e que embates raciais não faziam parte do ethos brasileiro. Segundo essa perspectiva, atitudes visando afirmar politicamente a população negra, por exemplo, seriam uma afronta ao projeto “hibridista” do país e à sua vocação
para a mestiçagem. No entanto, essa defesa de que o Brasil seria harmônico no trato das raças, não implicava a negação total do racismo, porém o considerava como uma distorção, um desvio na real vocação aglutinadora do país. Exemplo é o próprio Freyre, que, na condição de deputado em 1950, fez um discurso contra a discriminação racial após a repercussão de um episódio de racismo sofrido pela artista afro-americana Katherine Dunham, que havia sido proibida de entrar em um hotel em São Paulo. O fato também repercutiu na criação da Lei Afonso Arinos de combate ao preconceito de raça e de cor, assinada em 1951. Motivada, segundo Arinos, por um caso de racismo sofrido por seu motorista negro, a medida punia penalmente a discriminação racial em espaços públicos. A lei foi saudada por Gilberto Freyre, embora este considerasse que campanhas educativas seriam escolhas mais apropriadas do que leis punitivas no combate ao racismo. Abdias do Nascimento, do Teatro Experimental do Negro (TEN), também saudou a lei embora enfatizasse que anos antes, no Manifesto à Nação Brasileira por ele organizado em 1945, já constava a reivindicação de que a Assembleia Constituinte de 1946 incluísse o racismo como crime de lesa-pátria. Nesse mesmo contexto, pesquisadores ligados ao projeto de estudos sobre relações raciais no Brasil patrocinado pela Unesco, como Florestan Fernandes, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira e outros, alertavam que o racismo no Brasil era um fenômeno mais complexo que envolvia exploração econômica e relações de poder. Em outras palavras, contestavam a tese de uma democracia racial como essência das relações sociais no Brasil, afirmando que o critério racial ocupava, de fato, um papel preponderante nas desigualdades do país. As lutas pelas políticas de afirmação e de combate ao racismo continuaram nos anos seguintes, malgrado o negacionismo de Estado — apropriado e difundido nos tempos da ditadura civil-militar — que nutria o mito de uma harmonia racial. Contrariamente a esse
discurso, fatos como a invisibilidade dos conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira nas bancas escolares, os índices de desigualdade educacional e trabalhista, os sistemáticos casos de exclusão aos serviços essenciais e as violências institucionais sofridas por dessa população eram provas de que o racismo não era algo episódico, ligado apenas a uma pessoa ou a um grupo, mas transitava e ocupava todas as esferas sociais e institucionais. Com a redemocratização, coletivos e movimentos negros passaram a sensibilizar e a pressionar os poderes públicos, de forma mais sistemática e contundente, em favor da adoção de políticas afirmativas que ajudassem a dirimir as distorções historicamente imputadas às populações negras no Brasil. As reivindicações dos movimentos negros, a presença importante de mulheres ativistas — como Lélia Gonzales, Petronilha Silva, Luiza Barrios, Nilma Lino Gomes, Sueli Carneiro e outras — a inclusão do racismo como crime inafiançável na Constituição de 1988, a realização da Marcha Zumbi dos Palmares contra a discriminação racial em 1995, a presença importante de mulheres negras na delegação brasileira da Conferência Mundial de Durban contra o Racismo em 2001, a criação da lei 10.639/03 de obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afrobrasileira (modificada pela lei 11.645/08 que incluiu a educação indígena) e a implantação da lei de cotas em 2012 foram avanços institucionais que escancararam o racismo e contribuíram para o seu combate em múltiplas esferas. Nos tempos dos debates sobre a implantação das cotas raciais, a aproximação dos movimentos sociais com a academia e a política ajudaram na melhor compreensão desses setores sobre a importância de políticas afirmativas, inclusive fazendo com que muitos destes setores, outrora reticentes, passassem a apoiar essas medidas. Durante muitos anos, o não reconhecimento de que o modus operandi da sociedade brasileira é racista embaçou a percepção de que a desigualdade racial era sistêmica: a invisibilidade da presença
negra na mídia, nas esferas decisórias, nas empresas, no legislativo, no ensino superior e nas altas esferas jurídicas, por exemplo, não era um problema que dependia somente de ações individuais ou meritocracia para ser sanado, mas de políticas públicas e programas sociais que visassem corrigir e equalizar esse quadro de distorções e déficits sociais imputados às populações negras. As tomadas de consciência, porém, não foram suficientes para inibir a negação do Racismo estrutural, como bem definiu Silvio Almeida. Em seu trabalho sobre Racismo sem racistas, Bonilla-Silva lembra que a “cegueira racial” se sofisticou ao apropriar-se de outras ferramentas de negação. Nos dias atuais, estaríamos presenciando não mais o racismo que afirmava inferioridade biológica ou intelectual como no início da República, mas um racismo guiado pelo discurso da “lógica de desempenho”. Nesse caso, a negação do racismo sistêmico adquire novas táticas e formas de manifestação, desta vez sob o verniz neoliberal da sociedade de mercado. LEIA MAIS
ALMEIDA, S; CARNEIRO, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019. BONILLA-SILVA, E. Racismo sem racistas: o racismo da cegueira de cor e a persistência da desigualdade na América. Prefácio: Silvio Almeida. Tradução: Margarida Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 2020. CARNEIRO, S. “A batalha de Durban.” Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 209-214, 2002. MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. CONFIRA
GENOCÍDIO RACISMO REVERSO VIOLAÇÕES DE ESTADO
* Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj)
RACISMO REVERSO Andreia Sousa de Jesus *
R
acismo reverso é a falsa crença de que uma pessoa percebida como branca pode sofrer racismo. A crença envolve a reivindicação individual por sofrimento social e psíquico causado por violência racial. Aqui, o racismo é incompreendido na sua complexidade estrutural e reduzido a ações individuais como, por exemplo, o fato de uma pessoa considerar que não é racista por ter em seu círculo social a presença de pessoas negras, o que é um equívoco. Expressa-se por meio do desejo da branquitude em ser vítima de um processo histórico-social e, de maneira contraditória, reproduzido por mecanismos construídos por ela própria — ser branco numa sociedade racializada é compreendido como “normal”, “natural”, “universal”, “limpo”, “puro”, “padrão”. Uma pessoa branca não é racializada, ou seja, a pessoa percebida como branca não é questionada quanto à sua raça. Isso quer dizer que a sua cor de pele não remete a ações violentas gratuitas ou injustificadas, ou que a sua humanidade e cidadania sejam reduzidas a de um animal (como exemplo, destaca-se o uso inadequado e racista do termo mulata para se referir à mulher negra, reduzindo a sua existência à de um animal — mula — e, ao longo da história, objetificando como um corpo meramente útil ao trabalho ou ao sexo). Dessa forma, raramente haverá uma puérpera branca com o número de consultas do pré-natal reduzido; ou crianças brancas desaparecidas sem comoção social; ou músico branco baleado, na presença da família, com 80 tiros ao chegar em casa; ou grupo de jovens brancos assassinados pela polícia por serem interpretados como suspeitos; ou chacina em bairros onde os moradores são de maioria branca. Raramente será noticiado que uma mulher branca grávida foi alvejada e morta em uma ação policial; ou que um jovem branco foi morto por portar um guarda-
chuva; ou ter o corpo escondido após ser morto em alguma rede de supermercados; ou que uma criança branca foi baleada ao se deslocar pra escola; ou que uma vereadora branca foi assassinada no exercício de sua função. Raramente existirão situações em que a pele percebida como branca antecipará qualquer evento preconceituoso, discriminatório ou racista. Considerando que as vidas das pessoas brancas não são reduzidas em sua humanidade no decorrer da história, como já mencionado, o racismo reverso é uma forma de negacionismo histórico por individualizar um problema social, coletivo e opressivo. Desconsidera a dinâmica do racismo em organizar as instituições sociais por raças e ignora a perversidade dos efeitos dessa estrutura na vida das pessoas não brancas e da sociedade como um todo. Os processos de colonização e suas consequências, fundamentados nos genocídios e massacres das populações indígena e negra, deslegitima existências humanas que não são lidas a partir da branquitude. Inevitavelmente esse agravo impede, por exemplo, como consequência na vida social, que regimes políticos como a democracia alcancem o seu funcionamento pleno por estar sempre impedindo o exercício da cidadania de determinados grupos. E, como fator determinante desse não funcionamento pleno, evidencia-se a ocupação das pessoas brancas nos espaços de decisão política, de produção científica, de gestão e afins. Por branquitude entende-se a construção da identidade racial branca como o lugar social dos privilégios simbólicos e materiais das pessoas lidas como brancas e, falaciosamente, portadoras de uma superioridade racial. O “topo” na hierarquia racial separa esse grupo de outros grupos racializados, induzindo à compreensão de que o ser branco é homogêneo, fixo ou estático, quando na verdade é disperso, transversal e transitório. Isso quer dizer que a autodefinição do branco enquanto humano é uma declaração presunçosa e oportunista, pois a afirmação é constituída a partir da (in)existência do OUTRO. Porém, este outro reflete a si próprio, dada a heterogeneidade do que é ser branco e isso não ser
suficiente para garantir um padrão de humanidade. O advento tardio das políticas sociais com foco na busca por equidade racial no Brasil só foi possível devido ao reconhecimento da construção racista da história do país e das ações dos movimentos negros, o que alterou a forma de as pessoas percebidas como brancas lerem a realidade, a si mesmas e as suas posições — o que não é satisfatório para serem consideradas antirracistas, em sua maioria. Tal clareza é capaz de gerar enredos, discursos, novas narrativas e ações que remetam a outras formas de produzir privilégios, mesmo que estes sejam infundados cientificamente e pautados em discursos criativos e isolados da realidade, como é a questão do racismo reverso. No Brasil, o racismo se configura como um instrumento de organização da estrutura social capaz de regular instituições e indivíduos, a partir da crença na hierarquia racial. Esta mesma crença quer racializar todos os sujeitos sociais que não são lidos como brancos, pelo menos no Brasil. Os usos políticos da raça como justificativa de intensas relações de exercício de poder e dominação explicam episódios de violência extrema. Como função, o imaginário produzido a partir da raça “autoriza” que essa violência aconteça, permitindo a reprodução dos estigmas sociais pautados em atribuições negativas direcionadas a determinados fenótipos, tais como a cor da pele, a aparência do cabelo, o formato do nariz e outras características que se apresentam no limite do contato entre os grupos em disputa — racializados e não racializados. Limite e excesso, de forma contraditória, também compõem a forma como opera o racismo nas relações sociais: da quantidade expressiva de pessoas brancas em determinados espaços, como em cargos de chefia, de gestão etc., à presença reduzida em outros, como em presídios ou orfanatos. Verifica-se que há extremos que fundamentam a hierarquização racial nas instituições brasileiras e que isso só é possível devido à intensidade dos conflitos raciais nos quais nos inserimos — conscientes ou não. A variedade do repertório das ações que podem ser racistas e
compreendidas como benéficas permite a reprodução inquestionável do racismo, a depender do lugar social em que dada instituição ou pessoa está localizada. Numa reivindicação por racismo reverso, a desigualdade racial é tirada de foco, neutralizando, minimizando e naturalizando os impactos mortíferos do racismo. Quando esse conceito é pautado, por desconhecimento ou busca por manutenção de privilégio, compreende-se a eficácia do racismo em continuar produzindo formas de fazer com que as pessoas brancas, de maneira a serem protagonistas, continuem existindo e se posicionando no mundo. O fenômeno histórico da branquitude e a disseminação de seus valores é a causa da reprodução e existência do racismo. Nesse sentido, tanto o racismo como o racismo reverso são invenções das pessoas brancas. A diferença é que o primeiro nos estrutura e nos (des)organiza, enquanto o segundo não passa de uma alucinação. Racismo reverso não existe. LEIA MAIS
CARDOSO, L. O branco ente a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. 2014. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, 2014. NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016. SCHUCMAN, L. V.. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo": raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. 2012. Tese (Doutorado em Psicologia Social) — Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. CONFIRA
GENOCÍDIO
RACISMO ESTRUTURAL VIOLAÇÕES DE ESTADO
* Pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp)
REACIONARISMO Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro * Christian Edward Cyril Lynch **
A palavra
reação remete de imediato à oposição a algum tipo de processo evolutivo ou transformador no interior de uma sociedade. Em termos políticos, ela pode se referir a ideologias, movimentos e lideranças que buscam fazer regredir processos de democratização, liberalização e secularização que marcaram a modernidade. Não à toa, intelectuais reacionários irão datar o início da “crise” do mundo moderno na Reforma Protestante, quando a interpretação dos textos sagrados se torna independente das autoridades religiosas estabelecidas criando, em sua visão, o “indivíduo moderno”. Em termos históricos, o reacionarismo data, sobretudo, dos esforços contrarrevolucionários durante e após a Revolução Francesa. Naquele contexto, o objetivo maior do reacionarismo era o de reestabelecer a monarquia na França e preservar no restante da Europa continental as monarquias absolutas colocadas em risco com os movimentos revolucionários. Tornou-se célebre a frase do filósofo reacionário saboiano Joseph de Maistre, que afirmava ser a contrarrevolução não apenas a negação da Revolução de 1789, mas uma ação política que faria o contrário da revolução. Ou seja, não se tratava apenas de interromper o processo revolucionário, mas de restaurar uma sociedade hierárquica, cujo topo seria ocupado não pelos monarcas, mas pelo papa, como árbitro das monarquias absolutas. Nesse sentido, o reacionarismo é uma expressão radicalizada do conservadorismo, se distinguindo deste último. No conservadorismo, a sociedade deve preservar suas instituições e valores fundamentais, de modo que, se a mudança social for inevitável, ela deve ser produzida e conduzida “dentro da ordem”, preservando as instituições e evitando rupturas. Já o horizonte do reacionarismo aponta para a possibilidade de regeneração de uma ordem perdida
por meio de uma aceleração da ruptura com a ordem vigente. Assim, ao contrário do conservadorismo, o reacionarismo não pode agir no interior das instituições políticas estabelecidas: mesmo que reacionários participem do jogo eleitoral, seu horizonte de ação tem que ser, constantemente, a negação das instituições vigentes e sua superação por um modelo fiel à ordem política legítima, que fora injustamente destruída por “revolucionários” imaginários ou reais — tanto liberais como socialistas. Por essa razão, reacionários frequentemente se viram parte de uma “revolução conservadora”, ou seja, defensores de um processo de ruptura com o objetivo de restaurar uma mítica ordem perdida, uma “utopia regressiva” cujo ideal está no passado. O reacionarismo, contudo, não é formulado apenas como um discurso histórico e político. Ele pressupõe uma transformação total no modo de existência das sociedades modernas no sentido de um retorno a formas tradicionais e não secularizadas de conhecimento. Por isso, reacionários tenderão a apontar a autonomia do campo científico como um duplo processo de crise. Por um lado, essa autonomização reflete o aprofundamento de uma sociedade secularizada e de indivíduos atomizados. Por outro lado, a independência da racionalidade científica face aos valores morais estabelecidos por tradições torna, aos olhos do reacionarismo, a ciência uma arma potencial para a subversão da ordem social e para o domínio de grupos políticos supostamente capazes de controlar e de financiar a atividade científica. Para pensadores reacionários como René Guenon, por exemplo, a ciência moderna lidaria apenas com relações de quantidade, mensuração, quantificação, convertidas em técnicas de controle sobre a natureza e sobre a vida humana. Essa ciência a serviço da dominação não seria suficiente para formular perguntas acerca da finalidade da vida humana e de sua conexão com o sagrado, o que deveria ser revisto por uma “ciência sacra” dos símbolos, das religiões e dos conhecimentos herméticos de povos antigos. No Brasil, manifestações do pensamento reacionário sempre
existiram, mas foram quase sempre minoritárias ou de menor expressão política. Vivendo constantemente sob o signo da necessidade de modernização econômica, social e política, as principais manifestações das ideologias de direita no Brasil oscilaram principalmente entre conservadorismos estatistas, que acreditavam na precedência do Estado como agente de organização e modernização da sociedade, e o liberalismo econômico, que coloca a ênfase na necessidade de livre desenvolvimento das forças de mercado e de uma sociedade fundada na competição para superar o atraso da nossa formação. Uma terceira via, o conservadorismo culturalista, apologista das especificidades de nossa formação social e cultural, como a mestiçagem ou a sociedade patriarcal, nem sempre se traduziu numa ideologia política clara, sendo mesmo capaz de compor, como no período Vargas, com elementos ideológicos fortemente estatistas. Contudo, a vertente culturalista aproximou-se, em algumas manifestações da cultura política nacional, de ideologias de conteúdo francamente reacionário. O integralismo, movimento fundado no inicio dos anos 1930 e liderado por Plínio Salgado, reuniu em seu imaginário político diversos elementos. Do fascismo europeu, o integralismo assimilou a defesa de uma liderança forte, capaz de organizar um partido de massas disciplinado por um conjunto práticas rituais: o uniforme, os símbolos, a saudação ao líder, entre outros. Ao mesmo tempo, Salgado ofereceu ao integralismo um conteúdo propriamente nacional: a apologia reacionária das raízes católicas do nosso povo e de um passado heroico de conquista da terra e submissão dos elementos bárbaros presentes na sociedade colonial. O imaginário integralista também conviveu com outras expressões de reacionarismo no Brasil, como os monarquistas chamados patrianovistas, que acreditavam na possibilidade de restauração de uma monarquia regeneradora de nossas raízes católicas e tradicionais, bem diferentes da experiência histórica da monarquia constitucional brasileira. Ou, ainda, expressões do laicato católico no Brasil durante os anos 1930, que viam no integralismo uma
ideologia que, caso se submetesse à doutrina da Igreja, poderia ser o movimento político brasileiro mais adequado para integrar a ação política dos católicos. A preservação desse imaginário ideológico tem claras consequências no contexto político contemporâneo: o culto da violência como modo de produzir transformação social; a exploração predatória da natureza; o anti-intelectualismo; o personalismo político de culto ao líder supostamente regenerador etc. Não é estranho ao imaginário político contemporâneo a evocação do presidente Jair Bolsonaro como emissário da vontade providencial do povo, que acreditava ter chegado ao poder para restaurar a velha e boa ordem, identificada imediatamente com o regime militar. Esse ideal civilizatório de inspiração reacionária encontrou expressão brasileira na obra de Olavo de Carvalho, que repudiou a Nova República desde o seu início na metade da década de 1980, e apresentou seus intelectuais como impostores, ignorantes da grande tradição cultural do Ocidente e responsáveis pela decadência da cultura nacional. Mais recentemente, esse discurso teve impacto na administração do Estado, onde discípulos e simpatizantes dessa visão de mundo procuraram traduzir seus valores em termos de políticas públicas. Na política externa, por exemplo, o discurso oficial dos primeiros dois anos de governo Bolsonaro apostava em uma regeneração da ordem mundial que reeditaria um ideal de “civilização judaico-cristã ocidental”, cujo centro organizador seria a Washington de Donald Trump. Para os bolsonaristas, uma política “nacionalista” significa manifestar independência e hostilidade ao que chamam de “globalismo”, subordinando-se, porém, à nova Roma americana, coadjuvando-a em suas cruzadas contra os “novos mouros”, especialmente os chineses. Essa sorte de nacionalismo colonizado dos reacionários, desejosos de libertar a sociedade brasileira de toda regulação estatal, apresenta afinidades estreitas com a visão de mundo da ala neoliberal do governo. Para estes, a função principal da economia brasileira é a de abastecer o mercado das metrópoles
com commodities agrícolas, tal como ocorria no século 19. Daí o ódio comum de ambos os grupos — o dos reacionários e o dos neoliberais — pelo Estado, suas funções reguladoras e redistributivas, a proteção dos trabalhadores, do patrimônio histórico, do meio ambiente, da educação e da cultura, bem como aos seus servidores públicos, todos acusados de serem representantes de uma estrutura estatal aparelhada por “ideologias de esquerda”. Já no campo da saúde pública, a crise da pandemia testemunhou avanços consideráveis no discurso reacionário, apontando a expansão da covid-19 como parte de uma “guerra biológica” da China contra o ocidente livre e cristão. Ao mesmo tempo, os reacionários acusaram agências internacionais como a OMS, ou as políticas mais rigorosas de contenção da pandemia como as da União Europeia, de participar da manipulação ideológica que alegadamente visaria à limitação das liberdades e da autonomia nacional dos países para lidar com o vírus. Em síntese, é possível ver que o discurso reacionário contemporâneo no Brasil assumiu uma feição bem definida: se, como vimos, o reacionarismo era marcado por uma defesa da precedência da autoridade religiosa sobre a autoridade política, aqui a ideia de uma autoridade política emancipada de suas raízes tradicionais foi identificada com o Estado surgido após o processo de redemocratização de 1985. Esse Estado seria o instrumento de ideologias revolucionárias e destruidoras de uma ordem conservadora. Em contraste, ressurge hoje o ideal regressista do Estado autoritário de 1964, supostamente capaz de coordenar autoridade, hierarquia, disciplina social e desenvolvimento econômico. As raízes dessa ordem conservadora teriam permanecido no povo cristão, cultivador da família e das tradições. E, a partir da escolha de um representante autêntico dessas qualidades do povo brasileiro, a reação conservadora deveria começar. E seu objetivo não poderia ser outro senão a destruição da ordem constitucional de 1988. LEIA MAIS
CASSIMIRO, P. H. P. “A revolução conservadora no Brasil: nacionalismo, autoritarismo e fascismo no pensamento político brasileiro dos anos 30.” Revista Política Hoje, Recife, v. 27, n. esp., p.138-161, 2018. LYNCH, C. E. C. “A utopia reacionária do governo Bolsonaro.” Revista Insight Inteligência, Rio de Janeiro, v. 89, abr./jun. 2020. TEITELBAUM, B. Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Tradução: Cintia Costa. Campinas: Unicamp, 2020. CONFIRA
FASCISMO PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) POPULISMO CIENTÍFICO
* Professor e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) ** Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
REDE BRASILEIRA DE MULHERES CIENTISTAS Mariana Miggiolaro Chaguri * Luciana Farias Santana ** Luciana Ferreira Tatagiba ***
A Rede Brasileira de Mulheres Cientistas (RBMC) nasceu em 23 de
abril de 2021, após mobilização de mulheres cientistas de todos os estados do Brasil e de variadas partes do mundo. No momento de criação da Rede, o Brasil ultrapassava a marca de 300 mil mortos pela covid-19, além de alto desemprego, baixo crescimento econômico e uma crise político-institucional permanente. Nesse contexto bastante adverso, a RBMC foi sendo tecida e em pouco mais de três meses, seus fios aglutinaram mais de 3.800 mulheres cientistas, com trajetórias de ensino e pesquisa nas ciências exatas e da terra, nas ciências humanas, sociais e sociais aplicadas, nas ciências biológicas e da saúde e nas artes. São pesquisadoras que atuam em universidades, museus, centros e institutos de pesquisa públicos e privados. Como norte a orientar essa mobilização e a agregar projetos e experiências esteve a percepção de que a vida e o bem-estar de mulheres e meninas eram especialmente vulneráveis no contexto da pandemia de covid-19. Mais ainda, a percepção de que mulheres cientistas, orientadas por uma perspectiva de gênero, teriam condições de reunir expertises em suas áreas de conhecimento tanto para intervir de modo sistemático no debate público, como para fazer avançar agendas de ensino, pesquisa e extensão que orientassem políticas públicas. Para isso, a RBMC elegeu seis grandes temas para organizar sua atuação: saúde; violência; educação; assistência social e segurança alimentar; trabalho e emprego; moradia e mobilidade.
Evidentemente, todas as questões sociais, políticas e científicas derivadas desses temas estão intimamente ligadas aos impactos da pandemia nas possibilidades e condições de bem viver e de bemestar de mulheres e meninas. Estão, ainda, atravessadas por classe e raça, promovendo impactos diferenciais em mulheres indígenas, negras e pobres, especialmente penalizadas pelo crescimento da pobreza e pelo aprofundamento das desigualdades no contexto da pandemia. Enfatizando as diferentes posições e condições sociais, econômicas e políticas das mulheres brasileiras, a RBMC se estrutura em torno de quatro compromissos: a atenção à interseccionalidade de gênero, classe e raça em todas as suas iniciativas; o combate às desigualdades regionais; sensibilidade intergeracional; e a valorização da participação social como forma de construção das políticas públicas. Procuramos, portanto, evitar ideias unitárias e homogeneizadoras sobre quem seriam as mulheres e sobre quais seriam seus desafios. A partir de uma perspectiva de gênero, a rede atua em torno desses temas exigindo responsabilização do Estado pelas crises no presente e, também, pela construção de um futuro comum mais justo e igualitário. Realizamos ações localizadas, assim como mantemos no nosso horizonte propostas de mudanças estruturais e sistêmicas da sociedade e da política no Brasil. Como parte de articulações com outros movimentos e grupos da sociedade, nossos valores se voltam à defesa de propostas econômicas e de políticas públicas focadas na interdependência e na dignidade de cada vida humana. No contexto de ataques generalizados ao conhecimento científico, o esforço da RBMC em produzir conhecimento orientado por uma perspectiva de gênero foi ganhando concretude em diferentes iniciativas. Uma delas é a produção de notas técnicas, dedicadas a orientar agentes públicos e atores políticos em temas como a vacinação de grávidas e puérperas, a necessidade de testagem em massa para controle da pandemia, os alcances e limites do Plano
Nacional de Vacinação, dentre outros. Outra frente de atuação da RBMC está na comunicação pública e divulgação científica de pesquisas e estudos produzidos por suas integrantes em torno dos grandes eixos de atuação da Rede, em parcerias com veículos de imprensa e agências de divulgação científica. Ainda, como modo de aprofundar sua atuação pública e capacidade de influência no debate político, a RBMC reúne de modo sistemático mulheres cientistas, ativistas, jornalistas e parlamentares para debates públicos em torno dos temas centrais da rede. No momento em que o país atingiu a marca de 550 mil mortos na pandemia, a RBMC uma vez mais mobilizou e engajou cientistas e associações científicas com a campanha #responsabilizaçãojá que exige a punição dos responsáveis pelas mortes que poderiam ser evitadas e ações para mudar o trágico cenário da pandemia no país. A campanha ressaltou a importância das evidências produzidas por atores institucionais relevantes, como o Senado, o Supremo Tribunal Federal e diversas organizações científicas e da sociedade civil sobre a irresponsabilidade e o negacionismo do governo federal ante a pandemia. Trata-se, assim, de apontar para a importância de identificar e responsabilizar agentes públicos e privados que, de forma deliberada, dificultaram o acesso da população à vacina e às medidas básicas de segurança, como o distanciamento social e o uso de máscaras; e debocharam das evidências científicas, aumentaram o custo da implementação das medidas de proteção, por meio da utilização dos órgãos governamentais para a difusão de fake news e de propaganda negacionista em relação à pandemia. A campanha também tem buscado sensibilizar a opinião pública sobre as formas pelas quais a associação entre a pandemia e a violência policial tem vitimado, principalmente, os corpos negros. Finalmente, a RBMC também tem se dedicado a jogar luz sobre as especificidades do trabalho científico, buscando aprofundar debates e construir projetos que enfrentem o tema das desigualdades de
gênero na produção científica e intelectual, bem como na gestão do trabalho acadêmico. A RMBC, portanto, atua para auxiliar na promoção da igualdade de gênero — na ciência ou fora dela —, apontando que tal igualdade não pode depender de acordos ou voluntarismos pessoais de homens e mulheres, mas precisa ser parte integrante das políticas públicas. Às mulheres devem ser garantidas as condições de existir plenamente em seus tempos pessoais e sociais, participando ativamente dos espaços no qual as controvérsias públicas — sobre a ciência e sobre a política — são travadas e os imperativos da inovação científica demandados. LEIA MAIS
REDE BRASILEIRA DE MULHERES CIENTISTAS. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. COSTA, A. de O.; BARROSO, C.; SARTI, C. “Pesquisa sobre mulher no Brasil: do limbo ao gueto?” In: HOLLANDA, H. B. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. GAGO, V.; BREDA, T. (Ed.). A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Tradução: Igor Peres. São Paulo: Elefante Editora, 2020. GONZALEZ, L. “Por um feminismo afro-latino-americano.” In: HOLLANDA, H. B. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. CONFIRA
DESIGUALDADE E INTERSECCIONALIDADE POLÍTICA DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA UNIVERSIDADE
* Professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) ** Professora e pesquisadora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) *** Professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
RELATIVISMO Renan Springer de Freitas *
C
onsidere-se a seguinte afirmação: a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo mede 180 . Sabemos que não é possível medir a soma dos ângulos internos de todos os triângulos concebíveis, mas, ainda assim, não é possível contestar seriamente a veracidade dessa afirmação. Da mesma forma, não há desacordo a respeito da razão pela qual não há, nesse caso, espaço para contestação: acreditamos que a referida afirmação é verdadeira porque ela enuncia um teorema já demonstrado. Em que, entretanto, se baseia esse duplo consenso? Por que não há desacordo sobre a veracidade da referida afirmação nem sobre a razão pela qual acreditamos nessa veracidade? Em que se baseia a nossa crença de que o ato de demonstrar o referido teorema nos dispensa de recorrer à ajuda de um transferidor para nos certificarmos de que a soma dos referidos ângulos mede mesmo 180 ? Respostas diferentes podem ser dadas para essas perguntas, e o relativismo é justamente uma delas; em termos mais gerais, o relativismo é uma resposta, dentre outras possíveis, para a seguinte pergunta: em que se baseiam as nossas crenças e os juízos que formulamos e emitimos? Vejamos, em primeiro lugar, que resposta o relativismo não é. Se nos ativermos ao exemplo acima, esta pode ser exposta nos seguintes termos: acreditar que o ato de demonstrar um teorema comprova definitivamente o caráter verdadeiro daquilo que se enuncia por meio dele é uma questão de saber usar devidamente as próprias faculdades mentais; é uma questão de saber raciocinar; de saber acompanhar a linha de raciocínio por meio da qual se demonstra o teorema. De acordo com essa resposta, que podemos chamar de racionalista, por mais que nos deixemos guiar por juízos emitidos pelos outros, é somente em algo que se situa em nós, a saber, as nossas próprias faculdades mentais, que podem se basear
as nossas crenças a respeito da validade desses juízos. Apresentada a resposta racionalista, podemos afirmar que o relativismo se faz presente toda vez que se postula, ou se presume, em contraposição a ela, que nossas crenças se baseiam em algo que se situa fora de nós, a saber, as particularidades da língua que falamos, do meio cultural em que nos formamos, das tradições em que somos socializados e dos grupos a que pertencemos. Nos marcos da perspectiva relativista, sempre que alguém emite algum juízo sobre o que quer que seja, seja sobre a veracidade de uma afirmação como a anteriormente mencionada, seja sobre a aceitabilidade de um costume como, por exemplo, o de decepar cabeças humanas (tal como se vê entre os Ilongotes), o juízo não faz mais que exprimir uma introjeção das referidas particularidades. Nessa perspectiva, não seria a nossa própria capacidade de raciocinar e de formular juízos autonomamente que constitui a base, seja da nossa crença de que não precisamos da ajuda de um transferidor para concluir que a soma dos ângulos internos de um triângulo mede 180 , seja da nossa repulsa a um costume como o de sair de casa à caça de cabeças humanas, mas o fato de termos sido criados para acreditar em demonstração de teoremas e no respeito a cada vida humana; no primeiro caso especificamente, no fato de termos sido socializados em uma tradição especial que poderia, ela própria, ser chamada de “‘racionalista”’. De acordo com o relativismo, se não tivéssemos introjetado as particularidades dessa tradição, jamais poderíamos acreditar na validade da afirmação aqui tomada como exemplo. Quem tem razão? Levemos essa linha de raciocínio mais adiante. Em que se baseia a crença de que a crença no caráter verdadeiro do que é enunciado por meio da demonstração de um teorema se baseia nas particularidades, já introjetadas, de uma tradição racionalista? Nos marcos do racionalismo, a resposta seria a mesma de sempre: na capacidade de raciocinar, um atributo comum a todos os indivíduos em pleno gozo das próprias faculdades mentais. Nos marcos do relativismo, essa resposta não serve; agora seria necessário identificar uma outra base, digamos, as particularidades de um
ambiente cultural que enaltece a referida tradição racionalista. Prossigamos: em que pode se basear a crença de que as particularidades desse mencionado ambiente cultural constituem a base da crença de que as particularidades da referida tradição racionalista constituem a base da nossa crença de que devemos acreditar no que se enuncia por meio da demonstração de um teorema? Mais uma vez, o racionalista manteria a sua resposta e o relativista teria que postular uma nova base. Haverá de chegar o momento em que o relativista terá que se render; em que não lhe será mais possível alegar que existe alguma “linguagem”, “cultura”, “tradição”, “perspectiva”, enfim, algum “nós”, introjetado, formulando o juízo que é emitido na primeira pessoa do singular. Nesse momento, ele terá sido derrotado. Entretanto, enquanto esse momento não chega, ele tem uma importante missão a cumprir: explicar como podem ser dirimidos certos desacordos que, de um ponto de vista racionalista, nem sequer deveriam existir, a respeito da veracidade de certas afirmações, da razoabilidade de certas práticas institucionalizadas (a caça de cabeças, por exemplo) e da pertinência de certos juízos morais, éticos e estéticos. No que se refere ao primeiro item, o que dizer daqueles que negam que os nazistas usaram fornos crematórios, que a terra é esférica e que vacinas imunizam? No que se refere ao segundo, o que dizer daqueles que rejeitam o juízo de que a clitorectomia é uma mutilação abominável sob a alegação de que nos contextos particulares em que essa prática é realizada trata-se apenas de um "ritual de circuncisão feminina"? No que se refere ao terceiro, o que dizer daqueles que enaltecem um atentado suicida como o de 11 de setembro? Há, pelo menos, três respostas concebíveis, e o relativismo, na medida em que é uma resposta para a pergunta mais abrangente: em que se baseiam as nossas crenças e os nossos juízos?, não poderia deixar de ser uma delas. Uma primeira, de matiz racionalista, consiste em postular que desacordos como esses só ocorrem porque há, de um lado, os que utilizam devidamente suas faculdades mentais e, do outro, os que não o fazem e, consequentemente, esses desacordos só poderão
ser dirimidos se aqueles que não o fazem passarem a fazê-lo. Uma segunda, de matiz, por assim dizer, cética, consistiria em postular que a verdade não está ao alcance dos nossos sentidos, nem do nosso raciocínio, nem das tradições em que nos formamos, nem dos grupos a que pertencemos, como também não está a emissão de juízos universalmente válidos sobre quão razoáveis são certos modos de proceder ou sobre quão elevados ou baixos são certos valores, do que se seguiria que não está ao nosso alcance saber se uma afirmação dita por uns verdadeira, e por outros falsa, é verdadeira ou falsa; se um modo de se conduzir dito por uns aceitável, e por outros inaceitável, é aceitável ou inaceitável, e se certos valores por uns exaltados, e por outros repelidos, devem ser exaltados ou repelidos. Tudo o que se pode esperar, nesses casos, é que aqueles cujas visões se chocam a respeito de tudo isso se ignorem mutuamente. A terceira resposta é a relativista. Esta difere das anteriores porque nega a própria ideia de que há algum desacordo genuíno em cada um desses exemplos sob a seguinte alegação: todo juízo emitido sobre o que é verdadeiro ou falso, certo ou errado, bom ou ruim, justo ou injusto, belo ou feio, é sempre formulado nos marcos de alguma perspectiva particular, coexistente com outras perspectivas particulares, e os juízos formulados nos marcos de uma determinada perspectiva só são inteligíveis nos termos dela própria. Nesse sentido, aquilo que a um observador externo soa como um desacordo só pode ser reconhecido como tal nos marcos da própria perspectiva em que ele formula seus juízos. Fora desses marcos, isso que parecia ser um desacordo simplesmente deixa de sê-lo. Mas, há de se objetar, se é assim, o que dizer da incompatibilidade existente entre os juízos emitidos nos marcos de perspectivas diferentes, tais como os exemplificados acima? Como alegar que não há desacordo “genuíno” quando há claramente quem emite o juízo “a” e quem emite um juízo que é o exato oposto de “a”? A resposta relativista seria a de que essa mencionada incompatibilidade é ilusória porque, se toda perspectiva opera segundo a sua própria lógica, os juízos formulados nos marcos de
uma delas não podem ser incompatíveis com os formulados nos marcos de qualquer outra. Consideremos, por exemplo, o preceito: “matar bebês é uma prática abominável”, e a prática, peculiar a algumas etnias indígenas, de sacrificar recém-nascidos em certas circunstâncias. Há incompatibilidade entre o preceito e a prática? A resposta relativista seria “não”, sob o argumento de que a locução “matar bebês” não descreve de forma apropriada o que esses indígenas fazem quando fazem isso que, da “nossa perspectiva”, chamamos de matar bebês. Admitamos que essa linha de raciocínio seja pertinente. Em que mais, senão na capacidade de usar as próprias faculdades mentais, pode alguém se basear para desenvolver o argumento de que o ato de emitir um juízo depreciativo sobre a referida prática indígena exprime uma má compreensão dessa prática? Que linguagem, tradição, perspectiva ou grupo poderia estar falando através da “voz” desse alguém nesse caso? Seria a própria perspectiva relativista? Esta não pode ser, porque alegar que é ela que fala através da voz de quem critica o ato de censurar a referida prática indígena seria alegar, contra a própria perspectiva relativista, que essa crítica só tem pertinência nos marcos dessa perspectiva. Seria como se alguém dissesse a um interlocutor: “minhas alegações são pertinentes apenas aos olhos daqueles que formulam seus juízos nos marcos da minha própria perspectiva” ao mesmo tempo em que precisa admitir que nada há de especial em relação a essa perspectiva que justifique sua recomendação, posto que ela coexiste com outras, cada qual válida ao seu próprio modo. Apesar de o relativismo estar fadado a voltar-se contra si próprio dessa forma em algum momento, paradoxalmente, enquanto esse momento não chega é mais razoável ser relativista; é mais razoável conceder que são aceitáveis os juízos já emitidos nos marcos das mais diferentes perspectivas do que tentar chegar a alguma conclusão por si mesmo. Um homem que mede um metro e setenta é alto ou baixo? Em um caso como esse, não seria mais razoável conceber que um pigmeu teria razão se alegasse que é alto; um holandês, que é baixo, um chileno, que essa estatura é mediana, e
assim por diante, do que procurar dirimir esse desacordo por meio da formulação de um juízo próprio que confrontasse todas essas diferentes perspectivas? Uma vez feito esse recuo, haveria, bem ao gosto do relativismo, tantas verdades quantas fossem as perspectivas em cujos marcos pudessem ser formulados juízos a respeito da estatura do homem em questão. Mas, com tudo isso, não seria difícil recolocar a base das nossas crenças em nossa própria capacidade de emitir juízos por nós mesmos. Poderíamos, por exemplo, nos perguntar o que significa a referida estatura se comparada à estatura média mundial e emitir nosso juízo, por nós mesmos, com base nessa comparação. Entretanto, nos marcos do relativismo, isso não vale, porque ele não pode admitir que emitimos algum juízo por nós mesmos; se o admitisse, relativismo não seria, pois sua missão não é outra senão assegurar que sejam devidamente apresentadas as “perspectivas” à luz das quais as bases das nossas crenças e dos juízos que emitimos pareçam sempre, e necessariamente, se situar fora de nós, mais exatamente, em algum “nós” que falam através da voz de cada um de nós. LEIA MAIS
NAGEL, T. “Introdução” In: NAGEL, T. A última palavra. São Paulo: Unesp, 2001. _________. “Por que não podemos entender de fora o pensamento.” In: NAGEL, T. A última palavra. São Paulo: Unesp, 2001. CONFIRA
NIILISMO PÓS-VERDADE PSEUDOCIÊNCIA
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
RELIGIÃO Rodrigo Toniol *
O
utubro de 2019: reunidos em Roma, líderes da Igreja Católica, religiosos da América Latina, ativistas ambientais e membros da sociedade civil divulgaram o “Sínodo Amazônico”. Nesse extenso documento, eles chamam a atenção para o aquecimento climático, para a vulnerabilidade dos povos indígenas e para a urgência de transformação econômica e de matriz energética de todo o território amazônico. Setembro de 2020: em meio à maior crise sanitária do século 21, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSL) e o então prefeito da capital, o bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella (Republicanos), promulgam um decreto que considera como fundamentais as atividades religiosas. Com isso, ambos autorizam a realização de cultos e outras atividades mesmo durante a pandemia de covid-19. Maio de 2020: trinta e cinco organizações e movimentos evangélicos divulgam o manifesto O governante sem discernimento aumenta as opressões — Um clamor de fé pelo Brasil. No documento pedem que, dada a “gravidade do tempo presente”, igrejas e comunidades religiosas “não promovam cultos presenciais”. Pedem também que se sigam “as recomendações e orientações de instituições de saúde e científicas”, pois reconhecem “a ciência como dom de Deus para cuidar da vida humana e toda a sua criação”. Na sua visão, longe se serem opostas, “fé e a ciência são aliadas, caminham juntas e exaltam o poder divino”. Essas três cenas são emblemáticas da complexidade implicada nas relações entre religião e negacionismo no Brasil e no mundo. O que parece estar em jogo nessas situações não são necessariamente debates teológicos quanto à relação entre ciência e fé. Essas situações e relações mostram, antes, um leque de
questões que, ao longo da última década, têm ganhado intensidade no país nas fronteiras entre política e religião. Se tais fronteiras forem negligenciadas, esse debate pode rapidamente levar a uma leitura equivocada de que haveria uma relação direta ou necessária entre religião e negacionismo. Para compreendê-las adequadamente, é preciso, diante de cada cenário potencialmente controverso, fazer uma distinção entre o posicionamento público de líderes religiosos e a postura assumida por grupos de fiéis sobre essas fronteiras. Em 2015, numa das pesquisas mais amplas e sistemáticas envolvendo temas característicos dos negacionismos, o Pew Research Center correlacionou a filiação religiosa dos entrevistados e suas posições quanto ao reconhecimento de que a ação humana é o principal causador da mudança climática. Realizada apenas nos Estados Unidos, os resultados iniciais mostraram que, enquanto católicos hispânicos e não religiosos confirmam essa correlação na proporção de 77% para os primeiros e 64% para os segundos, entre brancos evangélicos essa taxa cairia para 28%. A divulgação dessa pesquisa teve ampla repercussão mundial e, particularmente no Brasil, mobilizou parte da opinião pública que rapidamente projetou supostas semelhanças com a realidade estadunidense. Já naquele período, foram ensaiadas afirmações sobre uma pretensa disposição negacionista entre evangélicos e pentecostais no país. Poucos meses depois da divulgação inicial, contudo, o Pew Research Center refez os cálculos a partir de controles multifatoriais e identificou que o pertencimento religioso como fator isolado não produz nenhuma tendência estatisticamente válida. De modo interessante, foram identificadas outras dimensões como determinantes, em particular, a de classe social. Ou seja, o que distanciava a posição de católicos hispânicos e brancos evangélicos quanto ao aquecimento climático não era tanto o fator religioso, mas, antes, as classes nas quais esses grupos estão inseridos. Fenômeno similar parece ocorrer no Brasil. Em março de 2021, durante a pandemia de covid, o Instituto DataFolha segmentou pelo pertencimento religioso dos respondentes os resultados de uma
pesquisa nacional que avaliou o medo dos brasileiros com relação à covid-19 e a disposição da população em se vacinar. “Evangélicos têm menos medo de covid e creem menos em vacinas” — com essa manchete estampada na capa do jornal foi divulgado que enquanto 32% dos católicos afirmavam não temerem a pandemia, esse mesmo índice para os evangélicos é de 46%. A distância entre os dois grupos aumentava quando a questão era a decisão por não se vacinar, 6% entre os católicos e 14% entre evangélicos. Mais uma vez, a despeito da ampla divulgação, quando esses dados foram cruzados com outros, tais como o apoio individual ao governo Bolsonaro, a força explicativa do fator pertencimento religioso diminuía, enquanto aumentava a relevância do alinhamento ou não com o atual governo. Em março de 2021, num dos piores momentos da pandemia no país até então, uma pesquisa do DataFolha foi contundente ao demonstrar que o apoio ao governo Bolsonaro é o fator determinante do comportamento e da percepção dos entrevistados sobre a pandemia. Naquele momento, entre os apoiadores de Bolsonaro, 42% diziam que a pandemia estava totalmente ou parcialmente controlada, enquanto nos segmentos que consideravam o governo regular, ruim ou péssimo, apenas 10% viam uma situação controlada, enquanto 90% reconheciam descontrole. Três aspectos dessas pesquisas e de suas repercussões são fundamentais. O primeiro é que não é possível afirmar a existência de uma correlação simples e direta entre filiação religiosa e posicionamentos negacionistas, seja com relação à mudança climática entre estadunidenses, seja sobre a pandemia entre os brasileiros. Essa observação, contudo, raramente recebe a atenção no debate público, que insiste em afirmar correlações fortes entre religião e negacionismo científico. Em segundo lugar, é importante e saudável lembrar que o campo religioso é internamente diverso e segmentado. Quer dizer, mesmo entre as várias denominações “evangélicas”, são diversos e divergentes os posicionamentos e respostas diante da pandemia por
parte das comunidades religiosas. Enquanto parte delas têm atuado no sentido de oferecer “curas milagrosas”, outros grupos articulados em bloco se posicionam publicamente em defesa da ciência e das recomendações técnicas feitas por pesquisadores, instituições e autoridades sanitárias. Por fim, a crescente presença de lideranças religiosas na vida política do país nas últimas décadas cria duas situações potencialmente contraditórias. Por um lado, tais líderes políticoreligiosos falam em nome dos fiéis de suas comunidades, reivindicando para si o lugar de porta-vozes de um grande contingente de fiéis. Por outro lado, as atitudes nas bases dessas comunidades não necessariamente se alinham com a postura de quem se pretende o “porta-voz político-religioso” dessas bases. Em que pese essa discrepância entre bases e lideranças, são os posicionamentos desses líderes que acabam por adquir maior relevo no debate nacional e terminam sendo equivocamente apresentados como representativos absolutos de suas comunidades. Assim, não é possível afirmar a existência de uma relação causal entre religião e negação da ciência. Isso porque a disposição negacionista parece variar com as redes de proximidade e confiança nas quais as pessoas compartilham crenças e identidades, sendo o fator religioso apenas um ao lado de outros fatores operantes nessas redes. Além disso, é preciso compreender as comunidades religiosas tomando como ponto de partida o fato de que elas são absolutamente diversas entre si. Essa diversidade não se expressa apenas em termos teológicos, mas também no espectro politico em relação ao qual os grupos religiosos podem se identificar. Assim como existem evangélicos conservadores, existem também associações de evangélicos progressistas. Mais ainda: assim como o campo católico fomentou movimentos como o Integralismo, ele deu também origem às Católicas pelo Direito de Decidir, que lutam pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Essa diversidade política e teológica do campo religioso no Brasil tem sido invisibilizada devido à presença de alguns de seus líderes na
vida política nacional mais recente, de líderes conservadores, sobretudo. Essas lideranças, que muitas vezes gozam de protagonismo midiático, parlamentar e partidário, embora pretendam falar em nome de suas bases, não necessariamente representam com fidelidade as percepções e as atitudes delas. LEIA MAIS
GIUMBELLI, E. “A noção de crença e suas implicações para a modernidade: um diálogo imaginado entre Bruno Latour e Talal Asad.” Horizontes antropológicos, Porto Alegre, v. 17, n. 35, p. 327356, jan./jun. 2011. Disponível em: . Acesso em: 1 dez. 2021. LATOUR, B. “Os anjos não produzem bons instrumentos científicos.” Debates do NER, Porto Alegre, v. 2, n. 30, p. 11-42, jul./dez. 2016. Disponível em: . Acesso em: 1 dez. 2021. SCOTT, M. W. “The anthropology of ontology (religious science?).” Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 19, n. 4, p. 859-872, dez. 2013. CONFIRA
CULTURA FUNDAMENTALISMOS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
RESSENTIMENTO Daniela Amorim Lisbôa *
C
omo um bando de perdedores, de tendências autoritárias, negacionistas e conspiracionistas podem ascender ao poder e nele permanecer? Tal pergunta, ainda em 1937, era realizada pelo historiador holandês Menno Ter Braak, que refletia sobre a ascensão do Nacional Socialismo na Alemanha e na Holanda. A resposta encontrada pelo historiador ao problema é de que o ressentimento teria levado os perdedores ao poder. O autor avalia que o ressentimento não é característica qualquer e muito menos exclusiva de derrotados; o ressentimento é onipresente e está na raiz das sociedades modernas. Assim, os problemas relacionados com o populismo e o ressentimento não se opõem a ideais democráticos, mas, ao contrário, derivam deles e das ideologias do socialismo, humanismo, liberalismo, fascismo e, em certo sentido, todas as ideologias que buscam progresso e mudança, constituem diferentes expressões de ressentimento. A exemplo do pensamento de Ter Braak, o ressentimento volta hoje a figurar como chave explicativa para a eleição de políticos azarões e autoritários, como Jair Bolsonaro, Donald Trump e outros mundo afora. Ter Braak não elaborou sua reflexão no vácuo. Tal como a grande maioria que escreve sobre ressentimento, ele se inspirou nas ideias do filósofo Friedrich Nietzsche e do filósofo e também sociólogo Max Scheler. As obras que consagram e cristalizam o tema do ressentimento são certamente a Genealogia da moral (1887) e Além do bem e do mal (1886), ambas de Friedrich Nietzsche. Nelas Nietzsche definiu o ressentimento como uma moralidade escrava, bem como o compreendeu como o núcleo do pensamento judaicocristão e, consequentemente, como a moralidade do pensamento ocidental de forma geral. Apesar de não ser o primeiro autor a tratar do tema do ressentimento, nem mesmo na filosofia alemã, Friedrich Nietzsche é certamente o nome mais importante nesse debate.
Parte importante da concepção de Nietzsche foi ancorada em obras do escritor russo Fiódor Dostoiévski, que, na literatura, se dedicou à personalidade e a personagens ressentidas. Dostoiévski escreveu que o ressentido é um “homem-rato”. Nietzsche, por seu lado, vê o ressentimento centrado na classe sacerdotal judaica, compreendendo-os como homens do ressentimento. No entanto, o ressentimento historicamente se emancipa dessa classe e atinge a todos os que participam da cultura moderna cristã-ocidental. E é a partir daqui que ele define o ressentimento como psicologia de um homem doente, cuja consciência reforçada nada esquece, mas que também é impotente e não age. Dessa forma o ressentimento, de maneira abrangente, pode ser compreendido com uma emoção que envolve a repetição de um sentimento. Mais do que mera memória, ele é um não esquecer, não superar, um re-sentir ou reviver, além disso é um sentimento reativo e ao mesmo tempo impotente. O ressentimento pode ser compreendido como uma constelação de afetos e, como tal, é comum vê-lo associado a outros como ódio, inveja, vingança, raiva ou ofensa. Esse sentimento associa-se a uma lembrança de uma injúria particular, mas suas causas podem também ser difusas. Nesse caso, se unida a uma sensação de frustração por impotência, pode se expressar em hostilidade abertamente. Pode ser um sentimento nutrido, ruminado, por um indivíduo ou por um grupo contra outro. Max Scheler, como dizíamos, é reconhecido por ser um dos seguidores mais importantes da filosofia do ressentimento nietzschiana. Scheler popularizou o termo em um sentido mais sociológico, uma vez que o autor conceitua o ressentimento no nível das interações sociais e no seu significado social e político. Assim como Nietzsche, Scheler acreditava na centralidade do ressentimento nas sociedades modernas, o espírito moderno tendo sido moldado pelo ressentimento. Enquanto Nietzsche enxergava na moralidade cristã a fonte do ressentimento, Scheler, por sua vez, compreende que na modernidade existem outras fontes de
ressentimento que não derivam dos valores cristãos, mas, antes, das noções de igualdade moderna. O ressentimento, dessa forma, seria resultado da insatisfação de movimentos políticos e classes sociais que, no interior das democracias formais, não são incluídos na participação política ou acessam ganhos relativos menores. Na visão de Scheler, da incapacidade do Iluminismo de cumprir as promessas dos seus ideais surge um ressentimento inevitável, isto é, a não realização de uma igualdade factual prometida pela sociedade moderna seria a fonte de um ressentimento social. O autor enxergava esse cenário e o compreendia como trágico, porque estes atores sociais, continuamente enredados na realidade da desigualdade das condições sociais, políticas e econômicas, seriam eternos derrotados. Tanto em Nietzsche como em Scheler, o ressentimento tem relação com a mudança social e posições de hierarquia. Nietzsche vê na mudança entre uma aristocracia guerreira para uma aristocracia espiritual parte do problema do surgimento do ressentimento, enquanto Scheler compreende que a não inclusão factual e efetiva nas democracias e os embates políticos sociais são elementos que compreendem o ressentimento. Portanto, o ressentimento é, para além de seu aspecto emocional, componente chave para compreensão de movimentos políticos. Se a luta que Nietzsche enxerga ao falar dos ressentidos da moral é sempre uma luta no mundo normativo, o mesmo ocorre no campo político, cujos embates se dão no âmbito dos valores e das visões. Em um mundo marcado pelas democracias liberais em que apenas as desigualdades materiais são justificadas, qualquer desigualdade de status passa a ser vista como ilegítima. Nesse sentido os diferentes grupos ideológicos que disputam o poder político procuram enquadrar a si mesmos como portadores de uma moral virtuosa. O ressentimento, enquanto sentimento que promove uma reorganização dos valores, dispõe as pessoas entre os desafortunados, que por razão de sua desgraça são tomados como justos, virtuosos e bem-aventurados, e os afortunados, que gozam de status e privilégios tidos como injustos. A disputa política passa
por identificar a si e a seus adversários como partes dessa díade. Os atores, desse modo, reivindicam para si o caráter de “bons”, desafortunados e desprivilegiados, enquanto aos seus adversários é atribuída a maldade e o privilégio. A esse respeito o sociólogo australiano Jack Barbalet escreveu que o ressentimento é o sentimento que julga como indigna a posição que outra pessoa ocupa na hierarquia social, e logo associa essa posição a uma privação de oportunidades ou privilégios que ela mesma poderia desfrutar. Reside aí uma das principais chaves explicativas para analisar os movimentos reativos e regressivos mergulhados em lógicas e demandas ressentidas. O debate contemporâneo tem voltado a pensar o ressentimento como uma dinâmica psicossocial, que desempenha um papel estruturante nas democracias. Dessa forma a disputa política se assenta sobre determinar quem é o ressentido e quem sofre com o ressentimento alheio, quem é o “bom” e quem é o “mau”. No Brasil, o ressentimento tem sido historicamente mobilizado como categoria de acusação. Exemplo disso se nota nas diversas acusações realizadas por militares aos movimentos engajados nas reivindicações de reconhecimento e reparação pelos crimes da ditadura. Vistos como militantes ressentidos, estes homens e mulheres seriam um obstáculo ao devido processo de superação e conciliação necessário à redemocratização. Na narrativa militar, esse sentimento colocaria em risco não só a realização da Constituinte, como da própria reputação das Forças Armadas. Aqui, o ressentimento é utilizado como categoria acusatória, caracterizado pela incapacidade de esquecimento. Simultaneamente, ainda que esses grupos tenham ocupado o poder estatal por décadas, eles enquadram a si mesmos os “bons”, como párias, perseguidos e ostracizados, destituídos dos privilégios de outrora. Seja como for, os anos subsequentes à Constituinte foram marcados por um avanço, ainda que gradual, das políticas de reparação e memória. No entanto, se o ressentimento ocupava função de denúncia no léxico dos defensores da ditadura militar, mais recentemente esse
léxico se configura como chave de mobilização política por movimentos conservadores e reacionários. Nas narrativas que emergem nas últimas duas décadas, as presidências da Nova República, tanto as petistas quanto as psdbistas, seriam pretensamente responsáveis pela depreciação das Forças Armadas, dos valores familiares e da religião cristã. De maneira similar, contudo não simétrica, os militantes de esquerda e progressistas acusam os militares de serem ressentidos e “viúvas” de uma ordem falida há tempos. O ressentimento pode ser onipresente, como sugerem os clássicos dessa discussão, mas ele não tem se mostrado uma força suficiente para manter os perdedores por tempo indeterminado nas posições de poder. Nesse sentido, os casos de Donald Trump e de Jair Bolsonaro podem ser significativos, pois ambos se elegeram por meio de programas políticos que propunham um retorno do conteúdo ressentido que algum inimigo imaginário teria lhes tirado. Contudo, a derrota política por si só não parece ser plataforma suficiente. O slogan make America great again foi enérgico o bastante para a ascensão de Trump, mas não o suficiente para sua reeleição. No Brasil de Bolsonaro, por seu lado, os jornais noticiam mensalmente a diminuição de sua popularidade. Nietzsche observa que o ressentimento não faz distinções ideológicas, nasce entre anarquistas e comunistas, entre judeus e antissemitas. Entretanto, isso não significa que não existem diferenças e modulações na forma como o ressentimento se manifesta. Sendo assim, há de se observar, que os grupos que mais acionam a dicotomia de “bom” e “mau” na tão famigerada “guerra cultural”, ao menos na contemporaneidade, são vindos das extremas direitas. Em grande medida isso é assim pois, como observa a psicanalista Maria Rita Kehl, o ressentido é aquele que deseja a ordem e está habituado a um certo estado de coisas. Daí, então, a sua ligação com o conservadorismo, pois, geralmente, esse estado de coisas reflete a permanência no alegado papel de vítima inocente ou de prejudicado que, por consequência, elege um culpado por sua condição; os males estão sempre no mundo
exterior e oposto. Movidos pelo sentimento de injustiça e a sensação de que tudo que lhes pertence está ruindo ou sendo tomado por imigrantes, mulheres, não brancos, gays e por outras identidades anteriormente marginalizadas, esses grupos reacionários contemporâneos usam o ressentimento como arma contra aqueles que são percebidos como responsáveis pela perda de status e ensejam um desejo de restaurar tal posição. Os potenciais eleitores experimentam essas emoções que são direcionadas contra supostos “inimigos”. Dessa forma, o apelo aberto a conteúdos ressentidos aparece mais do que apenas uma emoção passiva e impotente; acaba por ser uma convocação para a ação ou, nesse caso, para a reação. O ressentimento está, como se vê, no coração da ação política que hoje pede pretensas “mudanças radicais”, vendo-se e vendendo-se como suposta alternativa aos establishments políticos e culturais. LEIA MAIS
KEHL, M. R. Ressentimento. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020. NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SCHELER, M. Da reviravolta dos valores: ensaios e artigos. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2012. TERBRAAK, Mo. “National socialism as a doctrine of rancour — 1937.” Theory, Culture & Society, London, v. 36, n. 3, p. 105-120, 2019. CONFIRA
CASO AGAMBEN GUERRAS CULTURAIS NIILISMO
* Pesquisadora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
REVISIONISMOS E CRIMES CONTRA A HISTÓRIA Cibele Barbosa *
E
m 1944, o escritor britânico George Orwell, em artigo no qual relembrava os fatos da Guerra Civil Espanhola, declarava que, mais do que as bombas, o que de fato o apavorava era a “perspectiva de um mundo onde um líder ou um grupo dominante controla não só o futuro como também o passado”. Esse desejo hegemônico de controlar as narrativas sobre o passado, bem como os projetos de futuro das sociedades, desdenhando do compromisso com a fortuna crítica ou mesmo com o conhecimento científico acumulado, é um fenômeno que adquiriu dimensões dramáticas por meio das ações midiáticas de governos totalitários no século 20. Falsificações do passado para justificar regimes e mobilizar os afetos das massas se transformaram em armas ideológicas de grosso calibre, atingindo em cheio aqueles que buscavam minimamente uma coerência com a veracidade dos fatos. Não à toa, perseguições à comunidade acadêmica estavam na pauta desses regimes. Nos anos subsequentes à Segunda Guerra Mundial, temerosos de que regimes semelhantes impusessem versões históricas inverossímeis, apagassem fontes ou deturpassem narrativas sobre o passado, especialistas se empenharam em colher testemunhos de soldados prisioneiros de guerra e vítimas civis. A memória dos relatos é mobilizada diante da urgência de se escrever uma história que ainda estava à flor da pele. A produção de acervos e estudos em história oral ganhou um grande impulso, pois, afinal, era preciso repertoriar dados, registros, fontes e narrativas de personagens vivos, testemunhas oculares da história. Sob esse cenário, ao longo das últimas décadas, ações legislativas informadas por resoluções obtidas em fóruns
internacionais procuraram estabelecer políticas reparatórias para aqueles que sofreram silenciamentos, sequelas e distorções sociais assentadas em passados coletivos trágicos, como a escravização e tráfico de populações negras, o extermínio dos indígenas nas Américas, o Holocausto, genocídios de minorias como os armênios e os curdos, o neocolonialismo e as ditaduras civis-militares. Nesse sentido, governos foram pressionados a reconhecerem suas dívidas históricas para com as perdas simbólicas, culturais e materiais de grupos ou povos oprimidos ou perseguidos em outras épocas. Essa visibilidade da História e de historiadores e historiadoras no cenário político a partir da segunda metade do século 20, em meio a decisões de tribunais internacionais sobre crimes de massa, despertou reações de viés negacionista. No caso emblemático da Shoah, alguns poucos e contestáveis estudos de cunho neofascista procuraram negar ou até mesmo atenuar o extermínio dos judeus nos campos de concentração. Ancorados em um pressuposto conspiratório, valiam-se da tese de uma suposta grande armação sionista. Contorcendo narrativas e usando fontes duvidosas ou falsificações, estes indivíduos valeram-se do escudo do chamado revisionismo histórico para justificar suas suposições. Porém, essa prática estava longe de ser um revisionismo aos moldes de um trabalho historiográfico. Para a historiadora Deborah Lipstadt, tratava-se, de fato, de um revisionismo ideológico; o que, em outras palavras, pode ser considerado uma versão sofisticada do negacionismo, termo popularizado pelo historiador Henry Rousso. Em linhas gerais, o revisionismo histórico, em seu sentido lato, não é algo novo na historiografia. Debates, refutações hermenêuticas, desconstruções de teorias sempre fizeram parte de uma prática pública, aberta, onde os debates e fontes são publicizados e debatidos sob um guarda-chuva comum: o compromisso com a busca ou o horizonte da veracidade dos fatos. Por outro lado, o negacionismo ou revisionismo ideológico nega ou atenua fatos a partir de concepções fechadas, onde as convicções
valem mais que as provas. Quando há possibilidade de provas, elas são fabricadas, manipuladas e distorcidas sem pudor para serem encaixadas em conceitos preconcebidos, em (pré)conceitos. Em seu livro Negando o Holocausto: o crescente ataque à verdade e à memória, a historiadora Deborah Lipstadt se dedicou a desconstruir as mentiras escritas por um dos negacionistas do Holocausto que se afirmava revisionista, o autor Richard Irving. Adulteração de fontes, erros de tradução e até usos excessivos de imagens descontextualizadas foram apenas algumas das acusações imputadas por Lipstadt aos escritos do autor que queria negar o fato de que câmaras de gás foram empregadas para o extermínio dos judeus. Esses exemplos chamam atenção para um aspecto em nada irrelevante: nem todo negacionismo implica anti-intelectualismo. Nesse caso, os negacionistas emulam o conhecimento histórico, ou melhor, apropriam-se de alguns recursos próprios da pesquisa histórica para supostamente se validarem sob a rubrica de revisionistas. Como observa Henry Rousso, alguns intelectuais e publicistas envolvidos nesses casos de negacionismos se utilizam de procedimentos pseudocientíficos para se furtarem à semiclandestinidade dos seus escritos. Para Lipstadt e para o historiador Pierre Vidal-Naquet, que identificou negacionistas em seu Assassinos da memória, esse tipo de negacionismo de verniz revisionista é um dos mais perigosos por gerar a ilusão de verdade para o público não especializado ou menos familiarizado com os procedimentos críticos da ciência. Nos anos 2000, o negacionismo histórico atingiu outros patamares, transpondo o muro da discussão historiográfica para servir como arma política em diversos países; especialmente, no caso ocidental, por setores e líderes conservadores de extrema direita. Essa etapa também não é nova; ela retoma dispositivos semelhantes aos empregados por governos totalitários anteriores, como bem atestam e sintetizam as palavras de Orwell ao se referir aos regimes nazifascistas em seu texto de 1943: “a teoria nazista nega especificamente a existência de algo denominado ‘a verdade’. Não
existe, por exemplo, algo que se chama a ‘ciência’. Existe a ‘ciência alemã’, a ‘ciência judaica’ etc.” Palavras assustadoras quando transpostas para o cenário contemporâneo. Nos últimos anos, marcados por uma sociedade algorítmica, operada pela comunicação em redes sociais e compartilhamento de dados pessoais, o negacionismo ganhou um terreno fértil alinhandose a uma tática deliberada de agnotologia, expressão cunhada pelo historiador Robert Proctor para ilustrar como algumas corporações e governos têm se beneficiado com a promoção do desconhecimento e a dúvida proposital por meio da apropriação e publicação de dados científicos imprecisos, duvidosos ou enganosos. Em um recente livro, o historiador Antoon de Baets definiu como Crimes contra a História uma série ações sistemáticas de censura, difamação, discursos de ódio, ocultação de documentos, desqualificação da ciência e ataques ao patrimônio praticadas por governos, instituições ou indivíduos. Durante governos totalitários, não é novidade a constatação de que tradições foram inventadas, lugares de memória foram produzidos, versões dos fatos adulteradas de modo ostensivo. Aqueles e aquelas que se opuseram a tais abusos conheceram, em muitos casos, a ponta da lança, o crivo da bala ou o exílio. Praticamente todos esses governos ditatoriais fabricaram histórias ao sabor dos seus desejos de poder: fontes foram alteradas, outras suprimidas e interpretações descompromissadas com argumentos plausíveis compuseram as narrativas oficiais de tais regimes. Nos tempos atuais, em governos de cunho autoritário ou naqueles imersos em uma democracia híbrida, onde liberdade democrática e conservadorismo nos costumes se imiscuem, as táticas de abusos à História — aqui concebida não como história oficial, mas como um espaço de produção coletiva e referendada de conhecimento — são conduzidas a partir do apagamento ou da morte simbólica. A desqualificação da profissionalização da História, na mesma linha do negacionismo científico, é uma dessas estratégias de apagamento. Em tempos de pós-verdade, a fake history é uma
estratégia de produção de desconhecimento para favorecimento político. Privar os indivíduos do direito à história pública é atentar contra os direitos humanos, de acordo com as palavras de Baets. Os usos do conhecimento histórico com a finalidade de provocar danos em grupos ou indivíduos, ou de induzir ao engano partindo de uma intencionalidade perversa da conduta, é uma prática abusiva e uma violação aos direitos fundamentais. Desse modo, a desqualificação do conhecimento histórico, ou mesmo a negação de acontecimentos do passado, por meio de afirmações sem argumentos, provas e debates construtivos, tendo por intenção criar uma espiral de dúvidas sem solução e sem lastro ou compromisso com a busca pela verdade, é danosa ao direito das sociedades de conhecer e acessar o passado de modo seguro (acervos e patrimônio), confiável (metodologias e critérios éticos) e plausível (argumentos referendados pelos pares). Uma história pública, construída coletivamente e comprometida com metodologias e princípios éticos, é um dispositivo de preservação da integridade das memórias e dos registros dos indivíduos no passado, é uma tentativa de assegurar que esses conhecimentos não sejam ocultados, esquecidos ou mesmo usados para linchamento moral ou prejuízo de pessoas e grupos no presente. Quando, por exemplo, uma afirmação negacionista quanto ao sofrimento e à opressão da escravidão é produzida e propagada por representantes do poder público ou de formadores de opinião para atingir, prejudicar, desvalorizar e desqualificar a memória de milhões de africanos e afro-brasileiros que sofreram os horrores dessa tragédia, trata-se de uma estratégia clara para afetar e desestabilizar os que hoje lutam por reconhecimento e afirmação. Essas condutas extirpam o direito ao pensamento analítico, à reflexão e à pluralidade, pois incitam uma guerra de achismos infundados e difamadores cujo fim é a dispersão, a confusão e o engodo. Certamente, em todos os tempos e regimes, os Usos políticos do passado, como nos relembra o título do livro organizado por Jacques Revel e François Hartog, fizeram-se presentes, e, de modo geral, as interpretações do passado foram alvo de disputa e conflito.
Porém, quando o conhecimento histórico é produzido e pautado na deturpação, na falta de verificabilidade, no desejo de atingir, aniquilar ou invalidar o contraditório em um jogo sem regras, onde imperam falácias, não estamos tratando de simples divergências, mas de má-fé e abuso que afetam a liberdade e o direito dos indivíduos. A história pública, as práticas e metodologias científicas, com seus questionamentos e argumentos, são incômodas porque denunciam essas práticas abusivas e autoritárias. Eles geram medo e apreensão nos que querem silenciar o passado e inibir o direito à História. LEIA MAIS
LIPSTADT, D. E. Negação. Tradução: Mauricio Tamboni. São Paulo: Universo dos Livros, 2020. ORWELL, G. Sobre a verdade. Tradução: Claudio Alves Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. VIDAL-NAQUET, P. Os assassinos da memória: um Eichmann de papel e outros ensaios sobre o revisionismo. Campinas: Papirus, 1988. CONFIRA
DITADURA FASCISMO NEGACIONISMO HISTÓRICO
* Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj)
REVOLTA DA VACINA Lilia Moritz Schwarcz *
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stamos nos idos de 1904, momento em que a cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, contava com 800 mil habitantes e já era considerada perigosa. Mas não pelas mesmas razões atuais, digamos assim. O maior problema se concentrava nas epidemias que chegavam nos cargueiros dos navios ou desenvolviam-se de maneira endêmica. Peste bubônica, tuberculose, varíola, tifo, cólera, malária e febre amarela faziam parte do cardápio de enfermidades que mais matavam no começo da Primeira República. Rodrigues Alves, mais conhecido na época pelo revelador apelido de Soneca, era, então, o presidente do país. Para tentar desmentir sua alcunha e buscar melhorar a imagem pública da capital, ele decidiu atuar em duas frentes: tratou de embelezar a cidade e de combater as epidemias que grassavam como erva daninha no solo carioca. O presidente convocou, à época, Pereira Passos que, dentre outras medidas, tratou de expulsar a pobreza para os arredores da cidade. O engenheiro arquitetou e executou um projeto urbano arrojado e de grandes proporções que chamou de “Regeneração”, mas que ficou popularmente conhecido como “bota-abaixo”: destruiu casas populares e em seu lugar criou avenidas largas, onde a elite passeava em parques recém inaugurados e praticava a arte do ver e de ser visto. Convocou também o já celebrado sanitarista Oswaldo Cruz, que escolheu combater as três das doenças que mais acometiam aos brasileiros — a peste bubônica, a varíola e a febre amarela — e passou a idealizar uma espécie de missão saneadora, que implicava, entre outros, uma ampla campanha de vacinação. O cientista apenas se esqueceu de um “pequeno” detalhe: avisar e
instruir a população! Segundo o médico e sua equipe, para combater as doenças, e sobretudo a febre amarela, era preciso invadir o cotidiano dos brasileiros: levantar as saias das moças e erguer a manga dos rapazes. E havia urgência, sem tempo a perder. Foram então formadas “brigadas de mata-mosquitos”, que entravam nas casas com seus borrifadores em punho e matavam insetos onde quer que estivessem. Tais “soldados da saúde”, como eram chamados, desinfetavam, limpavam, demandavam reformas e muitas vezes interditavam moradias. Para se ter uma ideia do tamanho da operação, apenas no segundo semestre de 1904 foram realizadas 110 mil “visitas”. Todavia, apenas conquistar o espaço das casas não era suficiente, e Oswaldo Cruz conhecia bem a história de uma outra campanha de vacinação, empreendida alguns anos antes, sem êxito algum. Desta vez, asseverava ele, era preciso tratar do problema como uma questão mandatória. Um novo projeto foi, assim, elaborado visando tornar a medida obrigatória e sem exceções. No entanto, como a boataria era maior do que a informação, o povo, carente de maiores referências, começou a chamar a medida de “ditadura da vacina”. E a pressão começou a brotar por todos os lados: da parte dos jornais, dos políticos aproveitadores e da população — um abaixoassinado de 110 mil pessoas foi entregue ao “Soneca” que hesitou, mas acabou aprovando o projeto no dia 31 de outubro de 1904. A partir de novembro daquele ano, Oswaldo Cruz recebeu carta branca para atuar: borrifar e vacinar os brasileiros. Ninguém escapava: só era possível casar com atestado de vacina; matrícula em escola agora demandava o mesmo tipo de documento; e até quem quisesse viajar ou se hospedar em hotéis precisava apresentar comprovação médica. Mas o grupo de Oswaldo Cruz não contava com um inesperado. Antes mesmo de o plano ser implementado, uma revolta estourou nas ruas do Rio. No dia 10 de novembro, uma quinta-feira, a agitação tomou conta da capital. Tudo começou com uma passeata
de estudantes que, diante da cavalaria, bradavam valentes: “Morra a polícia”, “Abaixo a vacina”. A partir do dia 12, o movimento se generalizou, com os jornais contabilizando cerca de quatro mil pessoas, de todas as classes sociais, aderindo a uma passeata que tinha como direção o palácio do Catete. No dia 13, bondes foram queimados, barricadas erguidas e uma série de delegacias e quartéis assaltados. As notícias surgiam tal qual enxurrada: comentava-se que as prostitutas da Rua São Jorge haviam aderido à organização; que as colunas de lampiões a gás do Largo de São Joaquim tinham sido quebradas produzindo grandes labaredas. Até mesmo a escola preparatória do Realengo, comandada pelo general e futuro presidente, Hermes da Fonseca, se atiçou. Quando chegou o dia 15 de novembro, data do 15º aniversário da República, ninguém se atreveu a fazer desfile, soltar foguete ou comemorar a ocasião cívica. A revolta popular estava pegando fogo e, esperto, “Soneca” esperou o dia seguinte para acabar com a festa e baixar a repressão. Não teve dúvidas: decretou Estado de Sítio. Ainda assim, agitações e confrontos com a polícia aconteceriam em diversas partes da cidade, como na Tijuca, em Botafogo e Laranjeiras, no Catumbi e no Engenho Novo. Em regiões como Gamboa, Saúde e Santo Cristo, a população chegou a erguer barricadas, enfrentando as tropas do Exército. Surgiria nesse contexto a lenda do Prata Preta, apelido de Horácio José da Silva. Consta que era um estivador e conhecido capoeirista 30 anos. Sua prisão se deu no bairro da Saúde, local em que as barricadas impediam o avanço das tropas e em que membros da polícia foram atacados. Prata Preta foi, então, acusado de ter participado da morte de alguns soldados. Vários jornais fizeram pilhérias e produziram charges sobre Prata Preta, enquanto relatos jornalísticos comentavam sua suposta “fama de homem valente e rixento”. No local onde se deram os últimos confrontos, na atual Praça da Harmonia, hoje existe um antigo batalhão da Polícia Militar. Erguido alguns anos depois do conflito,
simboliza a implantação do território da ordem pública contra a desordem popular. A Revolta da Vacina foi debelada no próprio dia 16 de novembro e deixou um saldo muito negativo para um país que sempre gostou de alardear sua “passividade”: foram 30 mortos, 110 feridos, 945 presos e 461 pessoas deportadas. O quadro traz tintas fortes e revela as perigosas consequências quando se instala uma imensa distância entre o Estado e sua população. É possível dizer que a Revolta da Vacina representou uma espécie de trombada entre várias boas intenções, mas que corriam em direções distintas. Ninguém há de negar que debelar uma doença como essa é tarefa da maior importância. No entanto, também não vale apenas acusar a população de “ignorante”. Nesse caso, tudo é um pouco mais complicado. Em primeiro lugar, é importante não desconhecer a relevância de uma obrigação cívica: informar os cidadãos é medida não só necessária, mas também atitude democrática. Além do mais, a medida sanitária foi tomada de maneira autoritária e provocou o desapontamento de uma população frustrada, que esperava mais igualdade depois da abolição e, a partir da República, imaginava inclusão, mas convivia com a exclusão social. O tamanho da reação foi, portanto, compatível com a força da indignação dos cariocas. A Revolta significou também uma espécie de desforra. Se a maioria dos moradores não tinha direito a voto e pouco participava politicamente, era chegada a hora da política das ruas e barricadas. Assim, a vacina obrigatória serviu de pretexto para arregaçar as mangas, não só para tomar vacina, mas também para reclamar do elitismo da República que sistematicamente desconhecia seu povo. Paradoxalmente, nesse que ficou conhecido como um grande exemplo de negacionismo no Brasil, houve muito pouco de procrastinação — e de todos os lados. As autoridades políticas resolveram mostrar seu poder, em particular, a força da união do
“café com leite”, de Minas com São Paulo, de quem Rodrigues Alves era representante. Os líderes da saúde, por sua vez, puseram em prática seus conhecimentos de ponta. Ao passo que a população usou do espaço cívico: mostrou que não aceitava imposição médica sem explicação. Não por acaso a memória da história das vacinas corre, em todo mundo, paralela ao registro das rebeliões. A vacinação no Brasil não era, porém, prática nova. O uso da vacina contra a varíola fora declarado obrigatório para crianças em 1837 e para adultos em 1846. Entretanto, nenhuma prática havia sido formalizada, até porque a produção em escala industrial só começou em 1884 no Rio de Janeiro. Já no início do século 20 a história seria diferente. A vacinação foi imposta e, para piorar, junto com a falta de informação, correu a notícia de que a vacina contra a varíola, que era composta, justamente, do líquido de pústulas de vacas doentes, deixaria a todos com expressões animalescas. Nada a estranhar; afinal, em pleno século 21, há quem acredite que vacina faz com que as pessoas virem jacarés. O certo é que o medo gerou todo tipo de reação política, ampliou o negacionismo, desestabilizou o governo e foi usada pela oposição — tanto por monarquistas como por republicanos mais radicais. Sabemos bastante sobre a Revolta da Vacina, mas quase nada a respeito de Horácio José da Silva, um dos líderes negros que comandou a resistência e liderou as últimas batalhas. Num depoimento para o jornal A Tribuna, o capoeirista definiu bem o sentimento geral. Segundo ele a força da reação servia para o governo “não andar dizendo que o povo é carneiro”. LEIA MAIS
CHALHOUB, S. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CARVALHO, J. M. de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a
república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. SEVCENKO, N. A Revolta da Vacina. São Paulo: Unesp, 2018. CONFIRA
GRIPE ESPANHOLA PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA)
* Professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e da Princeton University
SBPC — SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA Antonio Augusto Passos Videira *
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ntidade fundada em 8 de julho de 1948 na cidade de São Paulo por um conjunto de cientistas, em sua maioria ligados a instituições paulistanas, mas também por apoiadores amadores da ciência, tinha como meta contribuir com o progresso da ciência no país. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) nasceu de uma reação da comunidade científica a um decreto do governador do estado de São Paulo, Adhemar de Barros, que pretendia transformar o Instituto Butantan, até então um instituto de pesquisa e serviços em áreas das ciências da vida, em centro produtor de soros antiofídicos. Os fundadores da SBPC entendiam que a decisão do governo paulista enfraquecia a ciência. Além da falta dos meios materiais para a sua prática — problema antigo e recorrente —, o grupo, inicialmente liderado por Maurício Rocha e Silva, Paulo Sawaya e José Reis, julgava necessário divulgar a ciência para que a defesa da ciência fosse eficiente. Com o passar dos anos, à causa da promoção do progresso científico somaram-se novos objetivos, vinculados a temas como educação, defesa das riquezas nacionais, apoio à indústria e tecnologia nacionais, preservação do meio ambiente e culturas autóctones. Após três décadas de existência, a SBPC era a principal associação científica brasileira, por seu envolvimento em temas que concerniam à sociedade como um todo. A sua visibilidade é ainda mais expressiva por ser uma instituição que reúne outras sociedades profissionais de diferentes áreas da ciência. Durante anos, as reuniões da SBPC serviram de local para que outras associações científicas promovessem os seus encontros. A defesa do Instituto Butantan, contudo, não foi o único fator que levou à criação da SBPC. Seus primeiros dirigentes, ao orientar
esforços para resolver um problema local, perceberam situações parecidas no território nacional. Em meados do século 20, houve a consolidação da presença das universidades no país. Não mais se colocava em questão a necessidade das universidades, como antes. No entanto, as poucas instituições de ensino superior não recebiam o devido apoio material e institucional do governo, que era visto como a principal base de sustentação desses organismos. Nas décadas de 1930 e 1940, os salários e os orçamentos continuavam aquém das necessidades. Além da questão financeira, havia o problema da inexistência de instrumentos administrativos, a exemplo da dedicação exclusiva, que permitiria não só melhor remuneração, mas também maior tranquilidade para o trabalho de investigação científica. A sociedade brasileira, que contava com significativa taxa de analfabetos e pouca cultura científica, não reconhecia que, naquela altura, sem a ciência, não poderia assegurar real progresso social e econômico para o país. Os cientistas locais tinham, assim, que realizar uma dupla tarefa. De um lado, mostrar à sociedade a importância e a relevância da ciência; de outro, convencer o governo de que valia a pena apoiá-los institucional e financeiramente em suas reivindicações. Por todo o mundo, o modo como havia ocorrido a produção das duas bombas atômicas mostrava que a ciência havia se tornado importante, complexa e cara demais para que os governos nacionais não assumissem a responsabilidade de apoiá-la. Em países com pouca tradição científica não era fácil convencer o governo dessa importância. Além de não apoiarem a ciência, os governantes não eram conscientes de que a Segunda Guerra Mundial significou uma mudança na natureza da atividade científica. Ciência não era mais apenas o conjunto de representações sobre a natureza; ela era, agora, fator de segurança nacional. Tal transformação não passou despercebida aos membros fundadores da SBPC. A Academia Brasileira de Ciências, fundada em 1916, não estava
em condições de dar conta dessas tarefas. Era necessário recorrer a outras instituições, mais ágeis e inclusivas. A própria escolha do termo “sociedade” para sua denominação mostra que a SBPC procurava ser mais aberta e receptiva àqueles que não integravam os ainda restritos mundos do ensino universitário e da pesquisa no país. Era parte da política institucional da SBPC crescer por meio da incorporação de cientistas, professores e amantes da ciência, ou seja, profissionais e amadores eram igualmente acolhidos. O crescimento da SBPC não pode ser explicado apenas pelo aumento quantitativo e qualitativo da ciência brasileira. Acontecimentos políticos estão entre as razões da ampliação das suas ações. Com o regime autoritário, os espaços públicos para a troca de ideias e discussões ficaram restringidos, em especial, entre 1968 e 1978. Um dos poucos locais onde era possível se manifestar e debater eram as reuniões anuais da SBPC. Foi nesse período que a SBPC se tornou conhecida do grande público; seus encontros eram noticiados pela imprensa. O ápice dessa publicidade foi em 1977, quando o governo federal impediu a realização da reunião anual em Fortaleza, obrigando a direção da sociedade a transferi-la para a PUC de São Paulo. As relações da SBPC com os governos militares foram tensas e complexas, indo do apoio discreto a medidas como a reforma universitária ou a criação de um sistema nacional de pós-graduação até à crítica pública de acordos como aquele, envolvendo a construção de usinas nucleares com tecnologia importada da então Alemanha Ocidental. Os primeiros anos do regime autoritário testemunharam tentativas de estabelecer aproximações com a comunidade científica. No entanto, essas relações privilegiavam as reuniões entre membros do governo e cientistas individualmente convidados. Sociedades científicas, como a SBPC, não eram chamadas oficialmente para participar. Os governos militares preferiram tratar com indivíduos, evitando relação oficial e institucional. A SBPC nesse período era uma associação que representava a comunidade científica tradicional atuante em universidades e institutos. Em que pese o tradicionalismo da SBPC
para os planos desenvolvimentistas do regime militar, sua relevância junto aos cientistas era vista com receio pelos governantes. Durante todo o período ditatorial, a SBPC cresceu, reforçando sua capacidade de expressar os anseios e as necessidades dessa comunidade. A rigor, era o único canal público relevante que os cientistas tinham para veicular aquilo que defendiam. Ao longo do processo de redemocratização, a SBPC, percebendo a necessidade de ampliar os seus mecanismos de comunicação com a sociedade e com as esferas governamentais, criou espaços adequados a esses fins. Em 1985, três anos depois da criação da revista de divulgação Ciência Hoje, a SBPC introduziu novidade no universo editorial brasileiro: o Jornal da Ciência — antes chamado de Jornal da Ciência Hoje. Por meio dele, noticiavam-se políticas e decisões governamentais para as áreas de C&T e se disseminavam reações e sugestões da comunidade. Desde a sua fundação, a SBPC manteve-se coerente à sua principal causa: defender a ciência e suas instituições. Raramente, pôde ela contar com contextos políticos favoráveis. Em geral, conviveu com a indiferença por parte de setores do governo e da sociedade. Outras vezes, — os dias de hoje servem como exemplo —, a SBPC enfrentou uma oposição, cujo objetivo não estaria restrito ao seu enfraquecimento, mas confundir-se-ia com a eliminação completa da ciência. À medida que as relações entre ciência, sociedade e governo complexificavam-se, a SBPC se transformou em uma entidade, não apenas interessada no progresso científico e tecnológico, mas igualmente voltada para o desenvolvimento social e cultural. As concepções de ciência e progresso da SBPC abrangem, atualmente, todas as dimensões da existência humana, individual, ambiental e socialmente considerada. O crescimento da SBPC ilustra a sua capacidade de resistência, medida do seu sucesso. LEIA MAIS
FERNANDES, A. M. A construção da ciência no Brasil e a SBPC.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1990. CARVALHO, V. L. de; COSTA, R. V. da (Coords.). Cientistas do Brasil: depoimentos. São Paulo: SBPC, 1998. NADER, H. B; BOLZANI, V.; FERREIRA, J. R. (Orgs.). Ciência para o Brasil — 70 anos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). São Paulo: SBPC, 2019. CONFIRA
FIOCRUZ PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) SINDEMIA
* Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
SINDEMIA Karina Calife *
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indemia (syndemics) é o termo de referência para designar a abordagem sinergística da modelagem de epidemias e pandemias que preconiza o estudo mais abrangente e acurado da interação e coocorrência entre doenças epidêmicas — infecciosas e/ou não comunicáveis — sob o ponto de vista biossocial e socioambiental. O objetivo principal dessa abordagem é alcançar uma melhor compreensão da extensão e da distribuição desigual e/ou estrutural do impacto dessas coocorrências ou sequências de doenças em indivíduos e populações e do agravamento de suas comorbidades e mortalidade enquanto possíveis disparidades de saúde. Pesquisadores a utilizam para melhor entender as causas do fenômeno de agregação sinergística de doenças para indivíduos e populações, tanto nas suas interfaces biológicas entre as doenças quanto nas interfaces sociais, e na estimação do excesso de carga de doença produzido em epidemias ou pandemias. A partir da compreensão alcançada, passa-se à construção mais acurada e eficaz de políticas de saúde baseadas em evidências, fundamentadas no reconhecimento de padrões de agregação de doenças e de adoecimento em seus contextos biossociais e ambientais próprios. Ao incluir a complexidade dos determinantes sociais de doenças na modelagem, a abordagem sindêmica evita o erro da tábula rasa ou da excessiva simplificação de modelos biomédicos. Nesse tipo de simplificação, a doença infecciosa em tela se distribui livremente entre indivíduos de uma população, sem qualquer referência a um contexto prévio biossocial e socioambiental de adoecimento. Essa abordagem, portanto, contribui para expandir a compreensão tradicional do conceito de epidemia e pandemia no entendimento do fenômeno mais amplo dos desfechos de saúde de comorbidade e
mortalidade a partir da integração de causas originadas no “complexo biossocial” em seu modelo de agravos. Historicamente, o termo sindemia aparece no debate científico a partir da inclusão das ciências sociais na reflexão sobre a caracterização e modelagem de epidemias, no início da década de 1990, proposto pelo antropólogo da medicina Merrill Singer, professor da Universidade de Connecticut — muito conhecido por pesquisas por estudos sindêmicos sobre a sinergia entre o adoecimento pelo HIV/aids, violência, e o abuso de substâncias químicas, em um contexto de desigualdades sociais e econômicas. Suas análises foram acrescidas pela agregação de doenças epidêmicas do HIV/aids com a coocorrência de tuberculose. Sua análise é precedida na literatura nos anos 1970, pela consideração central do papel dos determinantes sociais de saúde na Epidemiologia, que levou à emergência do campo de Epidemiologia Social. Sindemia, portanto, enquanto exploração teórica, pode ser compreendida como campo amplo de pesquisa, a partir dessa nova disciplina e seus novos aportes conceituais e metodológicos, e no âmbito das ciências sociais. Uma doença infecciosa de distribuição pandêmica como a covid19, em modelagem sindêmica, será, portanto, descrita na inclusão das interações sinergísticas entre doenças presentes ou alinhadas no tempo em sequência, em resposta a fatores sociais e ambientais, e na determinação de variabilidade do escopo de adoecimentos. Na revisão do conceito e abordagem, Singer et al (2017) redefiniram sindemia como “um modelo de saúde que se concentra no complexo biossocial” onde fatores socioambientais são determinantes para que uma doença possa ser mais rapidamente disseminada ou para que seus efeitos negativos sejam potencializados. Em 2020, artigo publicado na revista Lancet, uma das mais respeitadas na área da saúde por seu editor chefe Richard Horton, alcançou grande repercussão. Seu argumento principal segue a linha sindêmica e defende que a covid-19 não é uma doença infecciosa e altamente contagiosa apenas, mas ela é oportunista, se aproveita da desigualdade social e, portanto, merece
uma abordagem e modelagem mais ampla e complexa. “A covid-19 não é uma pandemia. É uma sindemia. A natureza sindêmica da ameaça que enfrentamos significa ser necessária uma abordagem mais diversificada se quisermos proteger a saúde de nossas comunidades”, aponta Horton. Dessa forma, busca-se hoje o enfrentamento da covid-19 como uma doença infecciosa pandêmica articulada a questões também estruturais de desigualdade social e econômica, ao acesso a bens essenciais, como segurança alimentar, moradia, acesso a serviços de saúde, educação e saneamento. Outras considerações fundamentais dizem respeito à interseccionalidade e ao gênero, raça, idade, classe como fatores estruturais potencialmente vulnerabilizantes. No Brasil, de forma candente, é possível apontar a morte materna altamente elevada, com uma alta predominância de mulheres negras e pobres, para exemplificar uma das dimensões dramática da sindemia em território nacional. As limitações de acesso ao atendimento de saúde para estas grávidas mostra a importância da consideração de fatores de gênero e de racialização do padrão de adoecimento e na distribuição das oportunidades de cuidado na modelagem e desenho de políticas públicas. Entende-se ainda que a abordagem sindêmica proposta requer também entender as consequências biossociais que políticas públicas em epidemias ou pandemias podem gerar. Passa a ser fundamental o entendimento de que o vírus não atua sozinho ou no vácuo. Em particular, o negacionismo em políticas públicas impacta profundamente os desfechos de saúde de indivíduos e populações, na falta de uma representação científica acurada de causalidade de saúde em contexto sindêmico, que contribui para a inadequação no planejamento das políticas de prevenção e tratamento e na a distribuição ineficaz de insumos e recursos. A desinformação negacionista ainda potencializa e afeta o adoecimento de indivíduos e populações com o agravamento de comorbidades e aumento da mortalidade, devido ao aumento da hesitação para o uso das vacinas, ao enfraquecimento das estratégias de controle de contaminação, como na obediência à distância social e ao uso de
máscaras, e à valorização de informações erradas recomendando tratamentos ineficazes e/ou banidos pela Ciência. A Sindemia da covid-19 não é portanto necessariamente global, mas local, sugere Mendenhall, na geração de padrões de adoecimento que dependem do contexto social e ambiental de cada país, bem como de suas políticas públicas. A questão então não é apenas a grave situação que a pandemia da covid-19 traz, mas de como o modelo de acesso e distribuição de bens e serviços, assim como o sistema político, de participação social e acesso à informação, podem aliviar ou agravar as vulnerabilidades das populações afetadas pelo vírus. No Brasil há o agravante da diminuição importante dos recursos aplicados ao SUS desde 2015, reduzindo o acesso universal e aumentando as comorbidades sem tratamento. A desigualdade social funciona então como produtora de debilidades das defesas imunológicas frente às novas ondas virais. Os vírus infectam sobretudo aqueles que, por razões sociais estruturais e etárias, possuem menos defesas naturais: os pretos, pobres, periféricos e idosos. Estudos de soroprevalência realizados no Brasil apontaram que, apesar da doença ter começado nos distritos mais ricos das grandes cidades, foi entre os mais periféricos, com menos acesso a bens e serviços, a leitos de UTI e a necessidade de uso de transporte público, onde concentraram-se a maior parte dos casos e óbitos, produzindo as altas taxas de letalidade no país. A sindemia portanto tem uma distribuição espacial previsível. Ainda assim, foi também nesses distritos mais vulneráveis e com maiores desigualdades que a oferta das vacinas aconteceu de forma surpreendentemente menor. A abordagem sindêmica enquanto esse campo de pesquisa colaborativa multi, inter e transdisciplinar também convida a pensar mais profundamente sobre a questão da justiça sanitária desde a construção desses padrões sinergísticos de adoecimento, a partir do conhecimento epidemiológico acumulado nos últimos 50 anos. A ética surge necessária também na discussão da seleção de modelagens que tirem da invisibilidade tais padrões sinergísticos e estruturais de adoecimento para sua justa e urgente correção mediante políticas de saúde apropriadamente abrangentes. Nesse
sentido, a reflexão ética não se separa do problema técnico da modelagem, mas se insere de forma a salientar a importância da ciência informada por questões de justiça sanitária, desde o desenho científico de modelos, para a transformação e melhoria da saúde dos vulnerados e da sociedade como um todo. LEIA MAIS
CHAN, E. Y. Y. et al. “Bottom-up citizen engagement for health emergency and disaster risk management: directions since covid19.” The Lancet, London, v. 398, n. 10296, p. 19 -196, 4 jun. 2021. KENYON, C. “Syndemic responses to covid-19 should include an ecological dimension.” The Lancet, London, v. 396, n. 10264, p. 1730 — 1731, 27 out. 2020. MENDENHALL, E. “The covid-19 syndemic is not global: context matter.” The Lancet, London, v. 396, n. 10264, p. 1731, 22 out. 2020. LEIA MAIS
PANDEMIA PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) POLÍTICA
* Professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP)
SLEEPING GIANTS Juliano Borges * Arthur Coelho Bezerra **
S
leeping Giants é um movimento cívico de ativismo digital que visa combater a desinformação na internet. Surgido nos Estados Unidos em 2016 como resposta ao crescimento da desinformação durante as eleições presidenciais que elegeram Donald Trump, o movimento alcançou atuação em outros 16 países, incluindo o Brasil, e funciona por meio de células independentes e anônimas, que promovem campanhas de responsabilidade corporativa em redes sociais. Seu objetivo é enfraquecer economicamente sites e canais de vídeo que são reconhecidos, seja pela Justiça ou por agências de verificação, por disseminar discursos negacionistas, intolerantes ou de ódio. Criado inicialmente de forma anônima por Matt Rivitz e Nandini Jammi, o nome Sleeping Giants faz referência ao imaginário político comum no mundo anglo-saxão que remete às Viagens de Gulliver. Trata-se de um clássico da literatura inglesa, de 1726, escrito por Jonathan Swift. A tática do grupo consiste em denunciar a publicidade em sites desinformativos para enfraquecê-los economicamente. Ela explora a contradição entre a intenção das marcas anunciantes de projetar uma autoimagem positiva e a associação dessas marcas com conteúdos perniciosos, ocasionada por deficiências da chamada publicidade programática. A publicidade programática é o sistema que atualmente domina o financiamento de sites e serviços gratuitos da internet, representando a principal fonte de lucro de empresas como Google e Facebook que, juntas, dominam mais da metade do mercado mundial desse tipo de publicidade. Ela consiste em um complexo processo de compra de espaços publicitários por anunciantes
através de um serviço de corretagem prestado por essas e outras plataformas que distribuem anúncios por milhões de websites. Os espaços são negociados automaticamente por um leilão on-line que ocorre a cada vez que uma página da internet é carregada. Em troca da alocação de anúncios, as plataformas cobram uma comissão aos anunciantes pelo serviço de corretagem que é realizado por seus braços publicitários — chamados de adtechs, responsáveis por direcionar certos anúncios na internet para usuários específicos. Quando uma empresa investe em publicidade programática é como se ela estivesse dando lances às adtechs em leilões virtuais pela atenção dos usuários. As adtechs visam, assim, atender às expectativas de compra desses consumidores, com base no conhecimento que as plataformas possuem sobre cada usuário da internet, a partir da extração de seus dados pessoais. No entanto, como a publicidade programática se concentra mais no interesse dos anunciantes em alcançar a atenção de usuários do que em quais páginas da internet os anúncios aparecerão, o resultado, com frequência, produz efeitos indesejados para os próprios anunciantes. O trabalho do marketing busca promover efeito positivo para as marcas construindo uma reputação favorável perante a opinião pública e afirmando que as empresas são inclusivas, sustentáveis e socialmente responsáveis. No entanto, as adtechs permitem que marcas sejam associadas a assuntos que contradizem as expectativas de boa imagem das empresas. Dessa forma, muitas vezes seus anúncios são publicados em sites, blogs e canais do YouTube que promovem conteúdos racistas, misóginos, negacionistas e desinformativos, gerando, ao contrário, prejuízo para a imagem das marcas. Devido à complexidade do sistema de publicidade programática e à sua falta de transparência, sites maliciosos exploram esses problemas produzindo uma variedade de conteúdos apelativos capazes de atrair cliques de usuários. Eles conseguem assim gerar receitas ao mesmo tempo em que disseminam desinformação.
Para atacar esse problema, Sleeping Giants trabalha com duas abordagens. De um lado, a abordagem pedagógica, que tem caráter educativo e é dirigida às marcas anunciantes e ao público em geral. E, de outro lado, a abordagem repreensiva, orientada aos consumidores e se volta contra as plataformas que controlam os fluxos de informações e de pagamento e as alocações de anúncios publicitários na internet. Na abordagem pedagógica, Sleeping Giants notifica empresas associadas a conteúdos virulentos, alertando-as da presença talvez indesejada em sites desinformativos. Dessa forma, ressalta a contradição entre a imagem pública almejada pelas empresas e os conteúdos aos quais se associam e patrocinam. Na prática, a ação consiste em incentivar os usuários a registrar os anúncios de sites desinformativos, por meio de print screens, e então publicá-los em redes sociais como Instagram, Facebook e, em especial, Twitter. A postagem do usuário deve vir acompanhada de uma mensagem educada de questionamento ou alerta à conta da empresa, junto com a marcação de Sleeping Giants, para que o movimento possa ter conhecimento do caso e monitorar futuras respostas das marcas. Quase sempre, a imagem denunciada explicita o tipo de conteúdo ofensivo que é alvo da ação. Exemplos desse tipo de conteúdo são matérias abusivas que o site ou canal tenha publicado, de forma a deixar claro o motivo pelo qual o anúncio pode ser danoso para a reputação da marca. Por sua vez, as empresas que declaram o cancelamento de anúncios são publicamente elogiadas nas redes sociais por Sleeping Giants. Devido a essa tática, o movimento é acusado por seus opositores de promover assédio às marcas e de censura na internet ao expor empresas que financiam, intencionalmente ou não, sites com desinformação. Contudo, as advertências de Sleeping Giants enfatizam a conscientização sobre os problemas do ambiente virtual e seus complexos meios de financiamento. Os alertas visam conscientizar não só patrocinadores, grande parte das vezes inadvertidos de que seus anúncios estão em sites desinformativos,
mas também o próprio público, que a princípio reagia com indignação contra as marcas. Não se trata, portanto, de uma campanha de boicote, mas de uma cobrança aberta de coerência no posicionamento de empresas nos ambientes digitais. Apesar do desconforto de uma notificação pública nas redes sociais, Sleeping Giants não pode ser acusado de assédio às marcas ao flagrá-las financiando discursos de ódio. Com efeito, Sleeping Giants acaba por prestar um serviço às empresas, prevenindo-as de prejuízos à imagem de suas marcas e colaborando para que sejam mais vigilantes sobre onde estão posicionando seus anúncios na internet. No entanto, é nas plataformas, tais como o Facebook e o YouTube, que o movimento encontra a maior resistência política ao combate à desinformação. Embora os termos de compromisso das plataformas afirmem princípios afinados com os valores democráticos, elas não têm interesse em modificar a forma de funcionamento da publicidade programática, pois ela representa a maior parte de suas receitas. Para se ter uma ideia, apenas em 2020, o faturamento do Google alcançou US$ 183,3 bilhões, com o Google Ads representando 80% desse valor total. Já o Facebook Ads garantiu 97,8% (US$ 84,1 bilhões) da receita total da empresa no mesmo ano. Diferentemente das marcas, que são reféns desse modelo, as plataformas funcionam como trustes do comércio de dados, quer dizer, elas concentram o poder de decisão sobre o que é e o que não é tolerável na internet. Nesse sentido, as marcas podem justificar serem vítimas de falhas no sistema de publicidade programática, mas as plataformas não podem alegar o mesmo, sendo diretamente responsáveis quando permitem que sites maliciosos sejam seus parceiros e lucrem com a desinformação. A resistência das plataformas em romper com esses sites levou Sleeping Giants a uma terceira abordagem de caráter acusatório. Se no início o movimento adotou uma aproximação educativa e preferiu não atacar a imagem das marcas, sua postura mudou em relação às
plataformas. Nesses casos, Sleeping Giants evidencia publicamente que as grandes empresas de tecnologia declaram princípios e padrões comunitários rigorosos, mas são tolerantes com violações dos seus termos de serviço quando isso envolve seus interesses econômicos. Ao investir na abordagem de constrangimento, Sleeping Giants reivindica a coerência das empresas, denuncia a falha moral das plataformas e exige que elas se responsabilizem, tomando providências por violações que são expressamente contra sua declaração de princípios, sob o risco de serem boicotadas. Por contar com escassos meios econômicos e de pessoal, o movimento compensa essas fragilidades utilizando o efeito de crowdsourcing e o uso do anonimato na rede. Ao facilitar a participação de potenciais colaboradores através de um conjunto elementar de tarefas, Sleeping Giants se apoia na comunidade virtual para amplificar o efeito das ações e obter maior impacto (crowdsourcing). Isso seria impossível se os poucos administradores dos perfis realizassem todo o trabalho (não remunerado) de notificação e acompanhamento de milhares de marcas de forma isolada. O ganho de escala amplifica seu efeito político, transborda para outras partes da internet e ainda vira notícias com frequência na cobertura jornalística. Junto a isso, os baixos custos de participação permitem que inúmeros usuários da rede colaborem gerando enorme visibilidade. Outro recurso estratégico utilizado pelo movimento no combate à desinformação é o anonimato. Ele permite que os ativistas por trás da iniciativa se protejam profissionalmente, considerando que suas atuações na área de marketing os colocam em uma situação sensível para criticar práticas do mercado, com efeitos potencialmente prejudiciais. Além disso, grupos extremistas, não raro, investem na exposição pública de seus adversários. No caso brasileiro, por exemplo, dois dos fundadores do Sleeping Giants Brasil têm sido alvo de frequentes ameaças pessoais e familiares, além de outras formas de assédio nas redes sociais.
Dessa forma, nas ações, Sleeping Giants consegue combinar as vantagens apontadas do anonimato aos efeitos positivos da replicação de mensagens por usuários não anônimos, que tendem a conferir legitimidade à comunicação. A ausência de informações que identifiquem os coordenadores também sugere um sentido de coletividade desmesurada, à qual os gigantes do nome remetem. Por tudo isso, o movimento trava um combate moral e informacional contra a possibilidade de lucrar com discursos negacionistas e de ódio. Sleeping Giants mira assim no sistema de financiamento desses sites, que, por sua vez, explora a fragilidade das estruturas de publicidade programática como mecanismo que premia e incentiva a produção de desinformação. LEIA MAIS
BEZERRA, A. C.; BORGES, J. “Sleeping giants: a ofensiva moral dos gigantes adormecidos contra o novo regime de desinformação.” Eptic On-Line — UFS, Sergipe, v. 23, p. 178, 2021. BRAUN, J.; EKLUND, J. “Fake news, real money: ad tech platforms, profit-driven hoaxes, and the business of journalism.” Digital Journalism, London, v. 7, n. 1, p. 1-21, 2019. CONFIRA
DESINFORMAÇÃO FAKE NEWS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Professor titular do curso de Comunicação Social do IBMEC-RJ ** Professor e pesquisador do Instituto Brasileiro de Informação em
Ciência e Tecnologia
SUS — SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Monika Dowbor * Maria Gabriela Curubeto Godoy **
O Sistema Único de Saúde (SUS) é de acesso público, embora não
seja exclusivamente estatal, pois ele inclui também o setor privado como seu provedor complementar. O SUS tem ainda caráter universal, ou seja, ele não exclui, por princípio, ninguém. E ele é integral porque abrange todos os tipos de atendimento e cuidados e prevê a participação de usuários e sociedade civil para seu monitoramento. Comparado com outros sistemas universais de saúde no mundo, ele é subfinanciado. E, acima de tudo, o SUS é uma conquista da mobilização da sociedade brasileira, pois contribui para melhorar a vida das cidadãs e cidadãos brasileiros agindo no combate de desigualdades históricas. Sua criação, em 1988, surpreendeu o mundo na medida em que em diversos países os sistemas públicos sucumbiram ao receituário neoliberal, com redução do Estado e de serviços públicos. O SUS foi instituído oficialmente como direito social e dever do Estado na Constituição de 1988. Com efeito, a proposta do SUS nasceu de um longo processo de mobilização do Movimento Sanitário, ator coletivo composto por trabalhadores de saúde, acadêmicos e diversos movimentos sociais. Desde meados dos anos 1970, ainda no regime militar, o Movimento Sanitário esteve engajado em experiências que ampliavam o acesso gratuito à saúde e em ações que culminaram com a criação do SUS. Entre essas, vale lembrar da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, com ampla participação da sociedade, anunciando o desejo da população brasileira pelo acesso universal, integral e gratuito à saúde. Antes do SUS, a garantia do acesso à saúde era apenas para quem o pudesse pagar ou para trabalhadores e trabalhadoras
formais que contribuíssem com o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que em meados dos anos 1980 cobria cerca de 45% da população. Nesse mesmo período, durante a ditadura militar, o poder público subsidiou a fundos perdidos a construção de centenas de hospitais privados que foram posteriormente conveniados ao antigo Inamps, instituto que administrava a assistência à saúde fornecida aos contribuintes do INPS. Os gastos com saúde eram enormes e as fraudes, recorrentes. Era comum o registro de procedimentos mais caros do que os realizados e o alongamento das internações apenas no papel. Além disso, essa assistência era restrita a consultas, exames e internações. Por isso, a mudança trazida pelo SUS foi radical. Foi possível a ampliação da atenção à saúde de todas as pessoas em território nacional, inclusive estrangeiros, e, em especial, daqueles grupos que estavam excluídos — vulneráveis, trabalhadores informais, desempregados, em suma, mais de 50% da população do país. A inclusão dessa população na garantia do acesso universal à saúde tem sido, no entanto, usada para dizer que o SUS é só para os pobres. Ao contrário dessa concepção equívoca, vale lembrar que a população brasileira como um todo utiliza o SUS. Por exemplo, tratamentos de alto custo como transplantes e hemodiálise são feitos pelo SUS, inclusive por quem tem planos ou seguros de saúde. Além disso, o SUS é também o responsável pela Vigilância Epidemiológica, que cuida, por exemplo, do Programa Nacional de Imunizações e outros programas de controle de epidemias. A Vigilância Sanitária, responsável pelo controle da qualidade de alimentos, medicamentos e contaminação por agrotóxicos, dentre outras ações, também está vinculada ao SUS. Percebe-se, então, que algumas das atividades do SUS que visam fortalecer nossa saúde são invisíveis ao cidadão comum, mas se elas não fossem implementadas a saúde da população seria prejudicada. Isso mostra que concepções ampliadas de saúde características do SUS não se limitam à oferta de consultas, exames
e internações. Isso porque é necessário trabalhar com os determinantes sociais e a promoção da saúde, de maneira a estimular as condições que protegem e reduzir aquelas prejudicam a saúde. As ações de promoção à saúde implicam uma complexa articulação intersetorial, pois muitos dos determinantes em saúde dependem de ações em outras áreas, como educação, habitação, trabalho e renda, assistência social, dentre outros. Ou seja, dependem de uma gama de políticas públicas que possam garantir uma qualidade de vida digna para a população. Se é verdade que o SUS é um sistema público, não é verdade que ele seja estatal ou estatizado ou ainda comunista, como insinuam alguns. Em 1987, na Constituinte, chegou-se a um acordo entre os defensores do setor público na saúde e o setor privado, que tinha se expandido no regime militar e queria liberdade para sua atuação. E mais: aceitou-se a atuação do setor privado como provedor complementar ao setor público de saúde. Embora essa convivência entre o privado e o público pudesse juntar todos esses atores na luta por um maior financiamento do sistema público de saúde, as tendências observadas mostram as distorções. Áreas essenciais, que implicam em grandes gastos, como a rede de urgência e emergência, são frequentemente utilizadas em serviços do SUS por contribuintes de planos e seguros de saúde. Embora legalmente esteja prevista a devolução de gastos realizados no SUS pelas empresas proprietárias desses planos, elas, em geral, questionam tal pagamento e judicializam os casos para tentar obter a isenção de pagamento, acumulando dívidas de cerca de R$ 2,9 bilhões de reais. O SUS como sistema de acesso universal precisa dessa verba, bem como de fontes adicionais de recursos. Como exemplo, observa-se que em países de capitalismo desenvolvido que dispõem de sistemas públicos e de acesso universal à saúde, o percentual do orçamento público nacional investido em saúde é grande: Alemanha (20%); Canadá (19,5%), Reino Unido (19,2%), Espanha (15,2%), França (14,8%). Na América Latina temos o
exemplo da Costa Rica, que investe 27,8%. E no Brasil o investimento é de apenas 10,3%, segundo a Organização Mundial da Saúde. Cabe, então, questionar a quem interessa apresentar o SUS como ineficiente quando são mostradas longas filas, demora no atendimento, mortes durante a espera. Essas situações têm mais a ver com a sobrecarga do SUS, decorrente do financiamento insuficiente, o que envolve, inclusive, a devolução de recursos poupados pelo setor privado, como vimos acima. Considerando essas questões, seria, então, melhor substituir o SUS pelo voucher do atual ministro da Economia, Paulo Guedes, ou um por um suposto “plano popular” de saúde? Como vimos, a saúde não depende apenas de consulta médica. E um voucher não será capaz de dar conta de uma série de ações que o SUS desempenha na vida das cidadãs e cidadãos — ações são invisíveis ainda que essenciais para a sociedade. Tentar desmontar o SUS para fazer da saúde uma mercadoria oferecida a mais de 200 milhões de habitantes do Brasil é negar o papel fundamental do SUS em nosso país. Do mesmo modo, afirmar que o setor privado “supre melhor as necessidades do cliente” significa invisibilizar a realidade das desigualdades sociais no país. Além disso, o Brasil já teve um modelo regido pela lógica dos interesses privados, através do Inamps, que se mostrou injusto, ineficiente, caro e problemático. Grande parte dos ataques mais recentes ao SUS provém, portanto, dos grupos que tratam a saúde como um filão do mercado. Essa é a diferença fundamental de duas concepções antagônicas: saúde como direito versus saúde como mercadoria. E, como temos visto durante a pandemia de covid-19, o SUS tem sido imprescindível. Sem ele, a mortalidade estaria ainda pior no Brasil. O SUS é uma conquista e uma construção democrática da sociedade brasileira. É resultado de um pacto de justiça social que visa à saúde de toda a população. E os princípios do SUS, pautados pela Universalidade, a Equidade, a Integralidade e a Participação são propulsores de novos patamares civilizatórios baseados na
solidariedade coletiva. Defender o SUS é, portanto, defender a saúde como direito e a construção de uma vida digna para todas e todos. LEIA MAIS
DA SILVA, M. W. D. Arte da institucionalização: estratégias de mobilização dos sanitaristas (1974-2006). 2012. Tese (Doutorado em Ciências Política) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. PAIM, J. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. WORLD HEALTH ORGANIZATION. World health statistics 2021: monitoring health for the SDGs, sustainable development goals. Geneva: WHO, 2021. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
FIOCRUZ POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS SBPC
* Professora e pesquisadora da Unisinos ** Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
TECNOLOGIA Bruno Cardoso *
A
o longo da última década, movimentos de extrema direita de viés antidemocrático e conspiracionista vêm surgindo e ganhando espaço em diversos países. A escala e a heterogeneidade contextual desse fenômeno não podem ser compreendidas sem levar em consideração o papel central de determinados dispositivos tecnológicos cada vez mais onipresentes. Um de seus principais efeitos consiste na “subjetivação fascista”, ou seja, no processo de formar indivíduos com afetos e atitudes autoritárias, intolerantes e violentas. O contexto brasileiro, sob o governo de Jair Bolsonaro, é exemplo trágico de como se dá a relação entre tecnologia e afetos fascistas. Mesmo antes da eleição presidencial de 2018, já era possível perceber o surgimento de pautas e discursos que hoje são inequivocamente associadas ao bolsonarismo. Esses sinais foram subestimados, diante da suposição de que a fração do eleitorado de viés autoritário e antidemocrático não passaria de 20% dos eleitores. O que sustentava essa ideia era a compreensão equívoca das subjetividades como algo estável e coerente. Essas pautas e discursos que já apareciam eram os primeiros efeitos de um sistema tecnológico de formação de subjetividades que estava sendo construído e posto em funcionamento, de modo não planejado e inicialmente descentralizado. A partir desse sistema, indivíduos eram submetidos massivamente a mensagens de um certo tipo, que iam “fabricando” os sujeitos propensos a concordar, acreditar, compartilhar e defender essas mensagens. A imbricação dessas tecnologias na vida cotidiana levou a dois efeitos complementares: uma exposição contínua e direcionada a conteúdo informacional desinformativo e uma “subjetivação fascista”, que constrói um público ávido por informações que reafirmem sua visão de mundo.
No entanto, a tecnologia não determina por si só a realidade. Os dispositivos tecnológicos estão sempre ligados aos usos, apropriações e ressignificações que lhes dão sentido. Mas do que falamos ao tratar de tecnologia? De forma simplificada, pode se dizer que uma tecnologia é um arranjo entre materiais, técnicas e conhecimentos diversos. Sempre mutável, tal arranjo permite que ações, comportamentos e relações se transformem ao passar por ele e se desenvolvam segundo certo padrão. São então produzidos determinados efeitos, previstos ou não, decorrentes das novas atividades e relações que podem ser criadas, transformadas ou rotinizadas ao passar por uma determinada tecnologia. Exemplo adequado da relação entre tecnologia e negacionismos contemporâneos pode ser visto em um dispositivo específico, o smartphone, que concentra e organiza diversas tecnologias: internet, aplicativos, câmera, GPS, sensores biométricos, processadores, algoritmos etc. Ele combina hardwares com grande capacidade de processamento e incontáveis aplicativos que “rodam” sobre o sistema operacional, tornando-se um instrumento que funciona como computador, GPS, câmera, relógio, calculadora, tocador de música, televisão, gravador e até telefone. Ao mesmo tempo que em seu corpo estão embutidas muitas tecnologias, ele também passa a substituir, ao menos parcialmente, todos esses aparelhos, ao concentrar suas principais funções. O smartphone ocupa posição de grande destaque entre os dispositivos tecnológicos digitais que integram nosso dia a dia. O smartphone também tem centralidade no processo de produção de determinado tipo de subjetividade devido à sua tendência a se tornar uma extensão integrada aos nossos corpos e cognição. Além de sua presença quase constante nos bolsos, bolsas ou no campo de visão, muitas atividades cotidianas passam a ser mediadas pelo smartphone. Comunicação, trabalho, flerte, alimentação, transporte, consumo, e informação são algumas das atividades adaptadas e recriadas ao passar pelo smartphone e seus aplicativos. Essa utilização contínua e incontornável retroalimenta um ciclo de extração de dados e sutil direcionamento dos desejos e
comportamentos. Outro ponto que faz do smartphone um dispositivo estratégico para compreender nossos descaminhos atuais tem relação com sua arquitetura informacional. Dada a sua mobilidade, esse dispositivo se insere em todas as brechas das atividades diárias, inclusive deslocamentos e momentos de espera. Com isso, são ampliados o volume e o consumo de informação circulante, de maneira a se multiplicarem os “produtores de conteúdo”, amadores ou profissionais. Quer dizer, ao contrário do modelo de autoridade do conhecimento que marca a modernidade, a diferenciação entre informação e desinformação cabe ao próprio usuário. Com isso, ocorre um deslocamento dos principais produtores ou certificadores de discursos, em especial a imprensa e as ciências. Estas fontes produtoras de conhecimento perdem relativamente proeminência diante da cacofonia de discursos concorrentes. Com o abalo significativo da hierarquia de discursos que costumava estruturar o espaço público, a diferença entre informação e desinformação se esvai. Junto da proliferação descontrolada de conteúdo, vão se desenvolvendo estratégias de otimização da circulação de mensagens, “viralização” de conteúdo e produção de confiança/influência. Essas estratégias, quando bem-sucedidas, são replicadas, com adaptações, através dos diferentes aplicativos de comunicação. Nesse caso, algumas das tecnologias concentradas no smartphone permitem a construção de caminhos fáceis e relativamente estáveis capazes de levar qualquer tipo de conteúdo até olhos, ouvidos e mentes de cada vez mais usuários. No entanto, para que esse sistema de envio de mensagens se torne ainda mais eficiente, a amplitude da circulação das informações deve ser propositalmente limitada pela necessidade de que cheguem, preferencialmente, apenas àqueles que tendam a concordar com elas, ou simplesmente que não as desacreditem imediatamente. Como parte desse mesmo processo, em conjunto com experimentos que também vinham sendo realizados com
usuários de internet, não apenas essas mensagens passaram a chegar corretamente para esse público preferencial, mas esse público foi sendo ampliado pela conversão de cada vez mais indivíduos ao autoritarismo conspiracionista, intolerante e violento do processo de subjetivação fascista. Os smartphones também ampliam enormemente as possibilidades de produção de dados sobre cada usuário não só pela mobilidade, mas também pela compulsividade recorrente entre seus usuários. A partir desses dados, são postas em funcionamento técnicas de influência/manipulação individualizadas, chamadas de microtargeting. Seu baixíssimo custo relativo faz com que seja aplicada modo constante para todos os usuários. Com esse intuito, o smartphone e todas as tecnologias que concentra e organiza são desenhados como máquinas de instigar desejos e comportamentos, com significativos níveis de precisão e sucesso. Smartphone, algoritmos e aplicativos são projetados para captar atenção de seus usuários, e deles extrair mais dados e metadados, alimentando o capitalismo de vigilância, modelo de negócios dominante na economia das Big Techs. Entretanto, o microtargeting não pretende atingir cada usuário com conteúdo exclusivo. Dados de usuários são extraídos e estatisticamente correlacionados com uma imensa massa de outros dados de usuários, tendo como resultado desse processo a criação de perfis relativamente genéricos. A classificação em perfis, ou profiling (perfilamento), visa definir o conteúdo ao qual cada usuário terá acesso em suas buscas e navegação por sites, aplicativos e redes sociais, além das notificações que receberá. A classificação dentro desses perfis não é fixa, variando de acordo com os dados que produzimos cada vez que usamos o smartphone ou acionamos seus sensores. Nosso conteúdo direcionado vai se transformando, ou se aprofundando, na medida em que alteramos ou reafirmamos nossos hábitos, que por sua vez estão sendo influenciados pelas sugestões algorítmicas. Com a crescente precisão dos dados, estratégias cada vez mais
agressivas de engajamento da atenção e indução de comportamentos, a realização incessante desse processo tem o efeito de fazer com que os sujeitos se pareçam cada vez mais com os perfis nos quais são classificados. Embora não se possa dizer que esse fenômeno seja planejado, o perfilamento fabrica indivíduos mais suscetíveis às técnicas de manipulação ou indução de afetos e comportamentos, por se enquadrarem de forma cada vez mais precisa nos perfis para os quais as estratégias são pensadas e direcionadas, sendo por elas mais afetados. Em cenário marcado pelo excesso de estímulos e informações, a disputa acirrada pela atenção e pelo engajamento se torna essencial para o capitalismo de vigilância. Conteúdos sensacionalistas e que provocam indignação e sentimento de injustiça tendem a obter mais engajamento e visibilidade do que aqueles em tom mais sóbrio. Com isso, o perfilamento acaba por alimentar um processo de radicalização de subjetividades, sustentado pelo ódio decorrente desses sentimentos de indignação e injustiça provocados pelo conteúdo continuamente direcionado. O conspiracionismo é também um ingrediente importante, já que o descrédito dos discursos autorizados pelas ciências e pela imprensa é uma estratégia fundamental na produção de indignação e ódio. Por fim, toda essa cadeia de radicalização torna-se automática e invisível, sendo incorporada aos algoritmos de recomendação por mecanismos de machine learning que, com frequência, escapam ao conhecimento e controle dos programadores. Essas estratégias de modificação comportamental e de indução de afetos, inicialmente postas em funcionamento visando à extração de dados para publicidade e consumo, rapidamente passaram a ser utilizadas em cenários bem diversos. Com a expansão da internet móvel, dos smartphones e aplicativos de mensagens, como WhatsApp e Telegram, esses processos mudam de escala e intensidade. A captação de dados e metadados e os estímulos e direcionamentos passam a acompanhar usuários por seus percursos e momentos mais diversos do cotidiano, afetando-os muito mais significativamente.
Embora os mecanismos de microtargeting não sejam aqueles mais importantes para compreender os efeitos dos aplicativos de mensagens, o conteúdo que passou a circular em grupos de afinidade (como, por exemplo, de família ou de vizinhança) encontra indivíduos cuja subjetividade, ao menos parcialmente, vem sendo submetida aos efeitos das estratégias perfilamento. São, então, sujeitos já propensos a serem afetados pela desinformação de extrema direita que recebem, ao alcance da mão e dos olhos, o dia inteiro. Esse conteúdo não precisa mais ser mediado por algoritmos e pode ter sua circulação capilarizada e orgânica. A cada polêmica ou acontecimento político e social relevante, imediatamente uma narrativa criada pode chegar a cada um dos membros dos grupos e tornar-se uma versão supostamente oficial, que com frequência se contrapõe às evidências, à imprensa, à ciência, ao bom senso e à razão. Como toda tecnologia que ganha importância, seja a pólvora, a máquina a vapor, a imprensa, as armas nucleares ou os smartphones, as disputas em torno de sua apropriação e das possibilidades que trazem são fundamentais para a definição e os rumos do mundo em que habitamos. Por um lado, os usos do smartphone têm lhe dado uma evidente afinidade com discursos negacionistas e de extrema direita. Por outro lado, no entanto, esse processo nunca é definitivo e seus resultados nunca estão garantidos de antemão. LEIA MAIS
CESARINO, L. “Identidade e representação no bolsonarismo: corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal.” Revista de Antropologia, USP, São Paulo, v. 62 n. 3, p. 530557, 2019. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. LATOUR, B. “Technology is Society Made Durable.” The Sociological
Review. v. 38, n. 1 Especial, p. 103-131, 1 mai. 1990. ZUBOF, S. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021. CONFIRA
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* Professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO Simone Magalhães Brito *
A noção de teoria da conspiração busca estabelecer uma fronteira
entre o que é legítimo e ilegítimo, racional e irracional. Qualificar um argumento de teoria da conspiração é um alerta de perigo: incapacidade intelectual, delírio ou fuga do que é conhecido e aceitável. Contudo, a má fama das teorias da conspiração não é suficiente para detê-las. Ao contrário, os diagnósticos de que seriam uma espécie de patologia da vida política não impediram que, nas últimas décadas, esse modo de argumentar tenha se tornado muito popular. É possível imaginar que, no mundo desencantado dos especialistas, as teorias da conspiração produzem uma espécie de excitação e seduzem por sua capacidade de desafiar consensos. Em meio a muitas definições, uma explicação rápida pode ser que as teorias da conspiração são uma trama (fantasiosa ou possível) que combina um segredo, pessoas poderosas e intencionalidade. Outra definição bem conhecida diz que as variadas fórmulas conspiratórias estão baseadas em três ideias: não existe acaso, tudo está interconectado e as coisas são diferentes do que parecem ser. Na composição de uma teoria conspiratória, esses elementos costumam estar organizados em uma fórmula ou ritualização na qual o suposto inimigo, mesmo que possa ser real, é caracterizado de modo excepcional: possuindo superpoderes e uma inteligência demoníaca direcionada para algum plano grandioso de conquista do poder. Ainda que conspirações possam ocorrer em qualquer encontro com pelo menos três indivíduos, as teorias da conspiração tratam sempre de eventos excepcionais. Os membros dos sectos que conspiram contra as pessoas honestas e normais apresentam uma enorme capacidade de organização. Por sua vez, aqueles que são capazes de perceber a trama maldosa adquirem atributos de herói solitário, capazes de suportar o ridículo e o descrédito devido a suas qualidades morais superiores. A certeza de que mentiras e
segredos são formas comuns da vida social é utilizada para a produção sistemática de explicações sobre a organização do mundo que não se submetem às interpretações “oficiais”. Enquanto a percepção de complôs ou traições sempre esteve presente na história, as teorias da conspiração são um arranjo particular cuja ascensão e consolidação no mercado das ideias se deu a partir da segunda metade do século 20. Um fenômeno social da família dos escândalos, do pânico e das cruzadas morais, a produção de teorias conspiratórias também foi potencializada com a expansão das tecnologias da informação, e com elas compartilha capacidades importantes para a organização da política contemporânea: manipular a ansiedade coletiva, alinhar atores sociais em torno de valores e desequilibrar relações de poder. A grande variedade das teorias da conspiração permitiu o crescimento de uma bibliografia vasta e que precisa explicar fenômenos que vão desde a (razoável) suspeita sobre as políticas estatais para minorias até a crença de que grandes répteis extraterrestres dominam a política internacional, ou de que as vacinas são um disfarce para a implantação de chips de controle em pessoas comuns. De modo geral, a racionalidade e os efeitos práticos de tais teorias são analisados de três modos principais: como psicopatologia individual, como resposta racional a um mundo em que o risco se amplia e como um problema epistemológico. Uma das mais influentes tentativas de compreender a intensificação na produção e o engajamento em teorias da conspiração veio do historiador estadunidense Richard Hofstadter (1916-1970) que, inspirado nas pesquisas sobre a personalidade autoritária, reconheceu o fortalecimento do tipo de indivíduo paranoide na política americana. Para ele, o tipo clínico e o tipo político da paranoia compartilham de algumas características: alta agressividade, desconfiança constante, simpatias pelo grandioso e apocalíptico, desprezo pelos acordos e paixão por soluções extremas. A diferença fundamental seria que o tipo clínico sente que a hostilidade do mundo é dirigida especificamente contra ele,
enquanto o tipo do paranoico da política acha que o complô é dirigido contra a nação ou um modo de vida. Numa formulação que se tornou central para a tipificação dos indivíduos mais suscetíveis a teorias conspiratórias, Hofstadter afirma: “por perceber um mal que não o afeta sozinho, mas ameaça milhões, o paranoico se percebe como um altruísta — estando, portanto, sempre disposto a intensificar seu sentimento de indignação”. Apesar da relevância do estilo paranoico para a compreensão da permanência das formas conspiratórias, as críticas contemporâneas destacam que a patologização dos indivíduos não explica completamente a continuidade do fenômeno. Por isso, muitos estudos se voltaram para tentar entender o que é atrativo no estilo de pensamento conspiratório. As fórmulas conspiratórias respondem a que necessidades ou experiências? Em meio a uma grande variedade de perspectivas analíticas, há que se destacar uma tendência à interpretação dos modos e estilos conspiratórios como traço da cultura globalizada — os sentidos e interações permitidos pelas teorias da conspiração e modos de organização das redes conspiracionistas ajudariam na compreensão do funcionamento de sociedades altamente complexas. Num mundo em que os indivíduos estão perdendo garantias fundamentais e a insegurança se torna a experiência mais recorrente, as teorias da conspiração permitem organizar sentidos para lidar com o medo e a ansiedade. Nessa perspectiva, estaríamos diante de formas coletivas de resolver problemas e dar sentido a um mundo que parece hostil. Compartilhar um inimigo ou um bode expiatório é uma condição que permite elaborar relações significativas. Uma vez que compreender os fundamentos da organização social e participar dos rituais da democracia exigem processos cada vez mais complexos, a produção de teorias conspiratórias possibilita um atalho para as práticas de realização de um mundo mais justo, onde o mal será eliminado. Esses estudos não estão validando as teorias da conspiração, mas apenas indicando que sua continuidade precisa ser compreendida no contexto das afinidades que o fenômeno possui com a produção da cultura sob o capitalismo.
As discussões sobre o tipo de conhecimento representado pelas teorias da conspiração envolvem a questão da plausibilidade de teorias particulares ou a verificação do modo como estas se adequam aos fatos. Por isso, alguns autores defendem a necessidade de que quaisquer teorias sejam submetidas à investigação e, portanto, as teorias da conspiração precisariam ser testadas, além de percebidas como geradoras de hipóteses. Todavia, o principal problema é que a retórica da teoria da conspiração, por ser uma dogmática ou hipermetafísica, é uma composição refratária aos procedimentos científicos. As teorias da conspiração são um jogo com regras distintas do jogo da ciência. Como obedecem à linguagem do desejo, são como formalizações de uma vontade de potência que, para se adequar ao espírito do tempo, mimetizam a estética da ciência, mas não se submetem aos procedimentos de verificação da racionalidade científica. Um problema importante para o analista contemporâneo é que, muitas vezes, formas de conhecimento não hegemônicas, hipóteses racionais sobre articulações e interesses de grupos de elite ou, de modo geral, teorias que confrontam a ordem de poder tradicional também são chamadas de teorias conspiratórias. Nesse caso, só à luz de uma economia política do conhecimento se pode fazer as distinções necessárias entre as lógicas de interesse em disputa. Entretanto, é importante destacar que uma maneira de reconhecer uma teoria conspiratória é observar seu modo de produção. Assim como as fake news, a transformação das teorias da conspiração em dispositivos de implosão dos jogos democráticos também é possibilitada pela sua massificação: a produção e distribuição de acordo com avançada tecnologia de dados e cultura algorítmica. Há um problema no fato de que, muitas vezes, se presta mais atenção ao elemento “teoria” da expressão. O estilo de produção e usos contemporâneos indicam que deveríamos focar mais no segundo termo, especialmente se entendemos que nomear uma conspiração envolve uma sensibilidade sobre relações de poder e um posicionamento em embates políticos. As teorias da conspiração são mais do que tentativas de explicação ou insights sobre a
realidade, são lógicas de enquadramento do discurso e modos de articular valores que desestabilizam a construção de acordos sobre o conhecimento. Para fins didáticos, pode-se imaginar as teorias da conspiração como um duplo ou gêmeo mal do ideal de ciência: o exercício da dúvida é empregado para estabelecer dogmas, os experimentos sempre provam o que já se sabia, a autonomia intelectual se transforma no direito de escolher inimigos/bodes expiatórios. Na política brasileira recente, as teorias da conspiração assumiram um papel central na produção de valores, traduzindo e, ao mesmo tempo, intensificando insatisfações e ataques ao regime democrático. Nesse sentido, por exemplo, o trabalho de justificação do bolsonarismo é fortemente dependente da referência a complôs internacionais. Há muitas ameaças sendo apresentadas, mas o enredo principal é que o Brasil estaria sob o risco de dominação total por uma elite globalista, comunista e, principalmente, anticristã. Por meio de vacinas e tecnologias de controle da mente, poderosas organizações de esquerda trabalhariam para eliminar os valores cristãos e fundar uma nova religião que, de acordo com um exministro, estaria baseada em conceitos que estariam sendo “extrapolados”: direitos humanos, tolerância, meio ambiente. O presidente seria o mártir nacional, doando-se em sacrifício para salvar o país. Além de simular uma interpretação da economia política mundial, mimetizando (ao mesmo tempo em que desqualifica) a linguagem das ciências humanas, essa teoria permite o delineamento de distinções entre amigos e inimigos, vítimas e culpados. Sua inspiração messiânica leva o debate para o plano moral e religioso, gerando desconfiança por movimentos sociais e instituições, bem como pelos processos de argumentação e contraposição de dados. É interessante notar que as imagens que organizam essas teorias da conspiração não são novas ou únicas: combinam a ansiedade produzida pela ideia da ascensão de uma Nova Ordem Mundial com chavões do discurso autoritário nacional. Contudo, dois aspectos se apresentam como novos desafios trazidos por essa produção
recente de teorias da conspiração no Brasil: sua lógica de produção, o grande aparato tecnológico usado para difundi-las, e a substituição das esferas de debate político pelo engajamento em cruzadas morais. Uma vez que percebemos que as teorias da conspiração não são apenas argumentações falhas, mas um dispositivo produzido para implodir os próprios fundamentos do debate racional, não adianta simplesmente acusá-las de serem conspiratórias. O que mais preocupa no fortalecimento e na disseminação das teorias da conspiração é que só um processo amplo de formação intelectual crítica poderá confrontá-lo. LEIA MAIS
ADORNO, T. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Unesp, 2020. LEWANDOWSKY, S.; COOK, J. O manual das teorias da conspiração. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
DESINFORMAÇÃO PÂNICOS MORAIS REVISIONISMOS E CRIME CONTRA A HISTÓRIA
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
TERRAPLANISMO Ana Carolina Marsicano * Vitor Tavares Bahia **
T
erraplanismo (TP) pode ser compreendido como uma doutrina pseudocientífica que se estabelece em oposição à ciência estabelecida que afirma sobre a esfericidade da Terra, e/ou como um fenômeno social contemporâneo, um estilo de pensamento que circula coletivamente e que, apesar das diferenças internas, possui características próprias, partindo da crença comum de que “a Terra é plana”. As grandes transformações nas visões em relação à Terra ocorreram a partir do século 20, relacionadas mais com as formas de mapeamento do que com a visão do formato esférico ou plano da Terra. Estudiosos na antiguidade desenvolveram um modelo esférico muito claro da Terra e dos céus, incluindo Aristóteles (384322 a.C.) e importantes comentaristas romanos, como Plínio, o Velho (23-79 d.C.), Pompônio Mela (primeiro século d.C.) e Macróbio (quarto século d.C.). Isidoro de Sevilha (570-636) é um autor medieval cujo trabalho às vezes é interpretado para demonstrar a crença em um formato de disco ao invés de esférico. No entanto, muito de sua física e astronomia só pode ser entendida com o pressuposto de uma Terra esférica. Como ícone da tese da planicidade da Terra, temos Cristóvão Colombo. No entanto, de acordo com os seus próprios diários de navegação, não há praticamente nenhuma evidência para sustentar a tese que os medievais acreditavam que a Terra era plana. Como aspecto social contemporâneo, alguns associam o terraplanismo ao fenômeno da pós-verdade, às teorias da conspiração, às fake news e aos mitos sobre ciência e religião. Aqui, cabe estabelecer os elementos que o constituem enquanto manifestação da crescente tendência anticientífica e negacionista que acompanhamos recentemente. O movimento TP defende, essencialmente, que “a Terra é plana”, e nesse sentido nega todo
conhecimento estabelecido pela comunidade científica a respeito do formato do planeta, do movimento da Terra, sua posição relativa, e outros aspectos físicos e astronômicos. Apesar de se tratar de um movimento que vem adquirindo notoriedade mundial, há um protagonismo da Flat Earth Society (“Sociedade da Terra Plana”), representação sediada nos Estados Unidos que diz haver um interesse político e ideológico sistemático por trás da afirmação de que a Terra é um globo. Dentre as características que emergem do discurso terraplanista, a primeira delas é se tratar de um estilo de pensamento compartilhado por uma comunidade denominada de “globulistas” (defensores da tese central do TP), orientados por um discurso do tipo “nós contra eles”, que defendem a busca por uma verdade escondida por um “sistema” e que devemos crer no que podemos observar e medir por nós mesmos. O apelo à experiência pessoal como critério de verificação incontestável e o apelo à experiência direta são os principais recurso utilizados pelos terraplanistas para afirmarem que aqueles que creem na esfericidade da Terra (ciência com comprovação) somente creem por não conseguirmos vê-la de cima da Terra, caso contrário, constatariam (experiência pessoal) sua planicidade. A segunda característica é que o TP estabelece uma relação antagônica ao conhecimento científico, associando-o ao “sistema”, manipulador e doutrinador (e, portanto, avesso à liberdade individual de crer no que quiser, ainda que contrário àquilo que é comprovado), afirmando que esse deve ser criticado e deixado de lado, tratando os cientistas profissionais como intolerantes e dogmáticos. Segundo os terraplanistas, o TP é uma teoria simplificada e de fácil compreensão, o que seria uma vantagem em relação ao ensino de ciências. No entanto, apesar da crítica ao conhecimento científico, o TP utiliza a ciência como referência e valoriza, em certa medida, a realização de experimentos na busca por evidências de que a Terra é plana. A terceira característica diz respeito ao uso particular que o TP faz de termos e conceitos da ciência, descontextualizando conceitos científicos e apropriando-se de seus termos para a produção de
conclusões diversas daquelas produzidas pelas teorias aceitas pela Ciência. Tal uso, que descontextualiza e interpreta de forma equivocada resultados de experimentos, não se limita a questionar a própria Ciência, mas, antes, expressa um desconhecimento sobre o que diz o campo científico. O desvio produzido pelo TP do significado de conceitos e resultados de experimentos faz com que termos e expressões próprias ao campo científico adquiram um novo significado, e que, mobilizados de forma reiterada, visam convencer as pessoas sobre a veracidade de sua tese principal sobre a planicidade da Terra. A quarta característica, relacionada à terceira, diz respeito ao uso seletivo que os terraplanistas fazem de dados e informações. Como exemplo temos a negativa da ida do ser humano à Lua, com a qual afirmam tratar-se de montagem gráfica ou edição digital, e que a Nasa e outras agências espaciais mentem ao mundo. A quinta característica do terraplanismo, ainda que não seja consensual entre os “globulistas”, é o vínculo que se estabelece entre o estilo de pensamento terraplanista com questões de natureza religiosa, não sendo incomum a utilização de referências bíblicas, em especial com ênfase no livro do Gênesis. Aqui, atribuise centralidade ao homem como criação divina que deve situar-se no centro do Universo, afirmando que teses científicas como a do Big Bang e o evolucionismo são perspectivas que negam a existência de Deus e geram destruição, guerras e desgraças. Como sexta e última característica, que não aparece tão explicitamente quanto os outros aspectos, temos a crítica à escola e ao ensino da Ciência como parte de um “sistema” que possui caráter doutrinador e busca alienar e manter todos na mentira. Em relação ao criacionismo, outra teoria alternativa à Ciência, o TP é ainda mais radical, já que faz afirmações sobre o atual estado do mundo, afirmando que a esfericidade da Terra pode ser refutada por observação direta, enquanto o criacionismo simplesmente oferece uma explicação alternativa para como o mundo surgiu, contestando as alegações evolucionistas. O terraplanismo, além de sustentar que a Terra é plana, afirma que o limite externo ao disco da Terra é uma grande parede de gelo e que ninguém sabe o que
está além dela. Do ponto de vista de sua organização social, os membros do TP provêm de diversos setores da sociedade, e, ao se articularem em torno da ideia de que “a Terra é plana”, carregam elementos (pensamentos) de outros coletivos sociais de que participam. É provavelmente significativo que o movimento social formado por adeptos dessa visão, embora já exista por várias décadas, teve um aumento no recrutamento desde a eleição de Donald Trump. A crença de que a Terra é plana vem crescendo em alguns países como o Brasil, onde figuras públicas e políticas vocalizam a tese da TP, associando-a com a crítica ao “globalismo”, como referência pejorativa às instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU). De acordo com pesquisa do Instituto Datafolha publicada em julho de 2019, 90% dos brasileiros consideram que o formato do planeta Terra é redondo, 7% plano (representando cerca de 11 milhões de brasileiros) e o restante diz não saber. Hoje o Brasil já tem mais adeptos do terraplanismo do que o próprio Estados Unidos, e em 2019 sediou a primeira edição da FlatCon Brasil, a Convenção Nacional da Terra Plana. Segundo o organizador do evento, apesar do TP ser tratado por muitos como teoria da conspiração, ele é uma ciência que mostra através de estudos e provas empíricas que não vivemos em um globo, e que o objetivo dos terraplanistas é questionar o que é tomado como verdade absoluta e ensinado nas escolas. O principal meio de divulgação do TP é a internet, com ênfase em canais no YouTube que divulgam vídeos explicando problemas com a curvatura da Terra e a linha do horizonte, vindo a produzir experimentos empíricos, como, por exemplo, a utilização de uma régua para limitar a linha do horizonte acima do mar como forma de comprovar a planicidade da Terra. LEIA MAIS
MARTINS, A. F. P. “Terraplanismo, Ludwik Fleck e o mito de Prometeu.” Caderno Brasileiro de Ensino de Física. v. 37. n.3. p. 1193-1216, dez. 2020. SMITH, J. E. H. Irrationality: a history of the dark side of reason.
New Jersey: Princeton University Press, 2019. CONFIRA
DESINFORMAÇÃO FAKE NEWS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
* Pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ** Pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
TORTURA Luciano Oliveira *
E
m 1874, Victor Hugo disse uma frase célebre: “a tortura deixou de existir.” Em 1958, Jean-Paul Sartre escreveu outra igualmente conhecida: “a tortura é uma praga que infecta toda nossa era.” As duas frases assinalam dois fenômenos históricos conhecidos: de um lado, a abolição da tortura, de direito e de fato, em todos os países europeus entre o final do século 18 e as primeiras décadas do século 20; de outro, o seu reaparecimento — não de direito, mas de fato — como prática que muitos desses mesmos países adotaram em diversos momentos de sua história no século passado. Os historiadores são unânimes: entre fins do século 18 e o aparecimento dos estados totalitários depois da Primeira Guerra Mundial, a tortura tinha cessado de existir na Europa. Passado pouco mais de um século da sua abolição, porém, ela foi trazida de volta pelo comunismo e pelo nazismo, que fizeram da tortura um instrumento de combate aos respectivos “inimigos internos”. Após a Segunda Guerra Mundial, os dois maiores países da Europa ocidental saídos vencedores do conflito, a França e a Inglaterra, depois de promoverem junto com a URSS e os EUA o Julgamento de Nuremberg, caíram nas décadas seguintes na mesma tentação de empregar métodos pelos quais condenaram os vencidos da véspera: os franceses nas guerras de libertação nacional na Indochina e na Argélia, já nos anos 1950, e, nos anos 1960, os ingleses na Irlanda do Norte. Mais recentemente, já em pleno século 21, os Estados Unidos valeram-se da tortura aplicada por seus experts em prisões instaladas fora do território americano nas guerras que promoveu depois dos ataques terroristas de setembro de 2001. Assim, em vez de falar do seu reaparecimento, talvez seja mais correto falar do aparecimento de uma nova modalidade de tortura: a antiga era oficial, sua prática era regulamentada em leis, e sua
aplicação era determinada por juízes para extrair confissões em processos criminais. Era uma tortura judicial. A tortura moderna não é oficial, seus códigos são secretos e geralmente cifrados, e é aplicada por aparelhos do estado visando à obtenção de informações contra seus oponentes. É uma tortura política — que não ousa dizer seu nome. Com efeito, a negação da tortura pelas próprias autoridades que a organizam ou dão o sinal verde aos torturadores ou, mais comodamente, apenas nada querem saber do que se passa nos porões do regime, embora exijam resultados, é uma das características mais marcantes da tortura contemporânea. A sua “indizibilidade” é de regra. Mesmo os sistemas totalitários que desdenharam, seja em nome de uma classe (comunismo), seja em nome de uma raça (nazismo), do humanismo penal do século 18 não tiveram a ousadia de assumir a tortura publicamente e chamá-la pelo nome. Em 1942, uma ordem proveniente de Himmler autorizava a tortura, embora esta fosse designada pelo termo “terceiro grau”, expressão de origem americana com o significado de métodos mais duros de interrogatório. O stalinismo também produziu suas pérolas. O famoso Relatório de Khruschev de 1956, denunciando os crimes da era stalinista, cita uma ordem secreta de Stálin endereçada aos órgãos de segurança, datada de 1939, na qual se diz que “o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética explica que a aplicação dos métodos de pressão física praticados pela NKDV [polícia política] é permitida desde 1937”. No caso de países periféricos como o Brasil, submetidos à influência cultural europeia no momento da sua independência, ela foi também oficialmente abolida. A Constituição do Império, de 1824, aboliu, junto com as penas cruéis, a tortura. Aqui, todavia, essa abolição foi quase sempre um ato meramente de fachada, ou, em todo caso, válida apenas para os bem-nascidos, enquanto a massa de desprivilegiados continuou, como sempre — e até os dias de hoje —, submetida ao arbítrio policial e seu arsenal de maus-tratos e torturas de todos conhecido. Pode-se, nesse caso, falar de uma tortura policial comum, com a qual sociedades como a brasileira
convivem sem maiores sobressaltos. Outro é o caso, pelas repercussões e consequências, quando, em períodos de exceção, as classes médias e mesmo altas perdem momentaneamente suas imunidades sociais e caem no rol das “classes torturáveis” — para usar uma expressão do escritor inglês Graham Greene em Nosso homem em Havana. Foi o que aconteceu na ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas, e foi o que voltou a acontecer durante a ditadura instalada pelos militares em 1964 e radicalizada em 1968, quando, após a edição do AI-5, a tortura passou a fazer parte do arsenal “normal” do regime para combater seus opositores — tenham eles aderido à luta armada, ou não. Da mesma forma que na Alemanha de Hitler, na União Soviética de Stálin, na França durante a guerra da Argélia etc., também no Brasil dos chamados anos de chumbo (tal como no Chile de Pinochet, na Argentina de Videla e no Paraguai de Stroessner), a prática da tortura foi sempre um segredo de estado, negada pelas autoridades e, quando referida em documentos oficiais, escondida atrás de eufemismos, a exemplo da “guerra ao terror” nos EUA. Quando, passada a ditadura, já não é possível censurar os fatos, e os responsáveis pela institucionalização da tortura têm de se haver com as cobranças das vítimas que sobreviveram e dos familiares dos mortos e desaparecidos, raras são as autoridades que vêm a público reconhecer que se torturou. Quando o fazem, lembram insistentemente que havia uma guerra em curso, e que violências foram praticadas dos dois lados. Alguns reconhecem que houve “excessos”, mas consideram que foram casos isolados e atribuem sua responsabilidade aos baixos escalões que os praticaram. Negam, veementemente, que se tratou de uma política de estado adotada pelos altos escalões. Um bom exemplo disso é o depoimento do general Leônidas Pires Gonçalves, que foi ministro do Exército no governo José Sarney, em depoimento ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, nos anos 1990. “Houve tortura? Houve” — ele reconhece. Mas emenda: “Quem pode controlar uma pessoa na ponta de linha que não teve uma educação moral perfeita?”. E é peremptório quanto à inocência dos altos escalões: “Agora, uma
coisa eu [...] asseguro historicamente: nunca foi política, nem ordem, nem norma torturar ninguém”. A fala do general não se sustenta. Em 1995, um documento “confidencial” do Gabinete do Ministro do Exército datado dos “anos de chumbo”, que estava no Dops do Paraná e foi parar no Arquivo Público daquele estado, foi divulgado pela grande imprensa (Jornal do Brasil, 23/04/95). O documento, intitulado Interrogatório, ilustra claramente ser política, e não judicial: “o objetivo de um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a Justiça Criminal processá-los; seu objetivo real é obter o máximo possível de informações.” Da mesma forma, ilustra também a “indizibilidade” da tortura, pois o seu redator, depois de reconhecer que “para conseguir isso, será necessário, frequentemente, recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência”, exercita adiante o seguinte contorcionismo para negá-la: “Ainda que algumas das técnicas constituam violência perante a lei, nenhuma delas envolve torturas ou tratamento inadequado”. Talvez o melhor exemplo desse negacionismo seja dado pelo coronel Brilhante Ustra, comandante do DOI-Codi paulista entre 1970 e 1974, o qual, depois de ter sido homenageado pelo então deputado Jair Bolsonaro na votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, tornou-se o símbolo maior dos “excessos” do regime militar. Alçado à notoriedade já nos anos 1980, Ustra, para defender-se, escreveu desde então dois livros: Rompendo o silêncio, de 1987, e A verdade sufocada, de 2006. Escreveu-os, como diz no primeiro, “em respeito a mim mesmo, no momento em que sou caluniado, achincalhado, vilipendiado, chamado de monstro”. Em ambos, as torturas, assassinatos e desaparecimentos são classificados de “mitos, farsas e mentiras divulgadas para manipular a opinião pública”. O autor chega a escrever: “É necessário explicar que não se consegue combater o terrorismo amparado nas leis normais, eficientes para um cidadão comum. Os terroristas não eram cidadãos comuns”. Mas como eram então tratados esses cidadãos incomuns? O relato de Ustra sobre o que acontecia durante o “interrogatório” é decepcionante: “Os presos, ao
serem interrogados, iam ‘entregando’, isto é, iam contando tudo a respeito de suas organizações”, escreveu no primeiro. No segundo, também parece disposto a desvelar a verdade, ao enunciar que “em nenhum lugar do mundo, terrorismo se combate com flores”. Mas ao relatar o que acontecia com os capturados, Ustra aferra-se a repetidas elipses: fulano e sicrano, “interrogados, entregaram o esquema”; beltrano, “quando interrogado, forneceu o endereço” — e assim por diante. Por que tais recusas obsessivas em admitir o que todo mundo sabe? Por que essa discrição envergonhada que de um modo geral recobre a prática da tortura? Apenas a tradicional homenagem que o vício presta à virtude? Ou haveria algo mais? Aparentemente, sim, a levar-se em conta o que escreveu o próprio autor do documento confidencial do Exército acima citado, ao alertar para algumas consequências negativas do seu uso, entre elas “um certo alheamento do povo, por vergonha, medo ou até nojo”. É reconhecer que, ao menos no mundo moderno, mesmos os torturadores têm consciência de que seus atos vão além do que uma certa sensibilidade pública aceita como os limites da guerra. Afinal, em relação a outras formas de violência, a tortura é como que um caso especial não comparável às demais, pois ela junta, num mesmo ato, o máximo da covardia — amarrar um corpo — e o máximo da crueldade — aplicar-lhe dores insuportáveis. A bem refletir, os torturadores que negam a tortura não são simplesmente pessoas sem vergonha; são, antes, pessoas envergonhadas de sua verdade. LEIA MAIS
MELLOR, A. La torture: son histoire, son abolition, sa reapparition au XXeme Siecle. Paris: Les Horizons Litteraires, 1949. OL IVEIRA, L. Do nunca mais ao eterno retorno: uma reflexão sobre a tortura. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 2009. PETERS, E. Tortura. São Paulo: Ática, 1989.
CONFIRA
DITADURA NEGACIONISMO HISTÓRICO REVISIONISMOS E CRIME CONTRA A HISTÓRIA
* Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
TRATAMENTO PRECOCE Karina Calife *
O tratamento
precoce é aquele que se dá o mais cedo possível após uma doença já ter sido contraída por uma pessoa. Ele é comumente preconizado para evitar o escalar de uma doença em toda a sua gravidade, e faz parte do repertório rotineiro da Clínica Médica. No contexto da pandemia de covid-19, o tratamento precoce surgiu inicialmente como tentativa heroica de atendimento dos doentes o mais cedo possível, quando não se podia ainda oferecer prevenção da doença em face das limitações na implementação de medidas de prevenção de contágio. Entretanto, se esse tratamento precoce não contar com medicações seguras e eficazes, trará também riscos adicionais de saúde para os doentes e pode também criar um falso senso de segurança, contribuindo para minimizar a percepção da necessidade de se vacinar e de risco à saúde. A ênfase no tratamento precoce, nesse sentido, pode impactar negativamente a estratégia mais eficaz conhecida para a prevenção de doenças na história da medicina: a vacinação. No enfrentamento à pandemia da covid-19 no Brasil o governo federal adotou o tratamento precoce como estratégia basilar de saúde pública, e não buscou em um primeiro momento a vacinação como prioridade. Mesmo com o consenso mundial e suporte internacional para oferecer prevenção da doença através das vacinas já disponíveis desde dezembro de 2020, o governo federal, segundo dados da CPI da covid-19 do Senado Brasileiro, teria negligenciado as ofertas vacinais e desestimulado o seu uso. Uma possível explicação para esse estado de coisas, segundo pesquisa coordenada por Dayse Ventura, teria sido o investimento em uma política de saúde baseada no objetivo de atingir imunidade de rebanho (imunidade coletiva) via contágio direto e assim evitar a vacinação em massa da população brasileira. Essa imunidade seria então supostamente atingida pela contaminação e/ou adoecimento
direto da população brasileira. Portanto, o uso do tratamento precoce, nesse contexto, poderia ser interpretado como política de tratamento para contaminados sintomáticos no processo de imunidade de rebanho, e desse modo, alcançaria supostamente evitar a vacinação da população em geral. Além da crítica ao tratamento precoce enquanto política de saúde associada à imunidade de rebanho em uma população não vacinada, emergiu também uma crítica adicional à qualidade do tratamento precoce em si, do kit covid, como ficou conhecido, que incluía a cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina. Esses medicamentos foram apontados como ineficazes pelos organismos médicos especializados nacional e internacionalmente. Especialmente a cloroquina e hidroxicloroquina foram objeto de múltiplos estudos para a produção técnica de diretrizes clínicas baseadas em evidência. Esses estudos e análises de integração de evidências e manejo de conhecimento científico apontam a ineficácia desses medicamentos para o tratamento de casos leves e graves de covid-19. Desde o primeiro semestre de 2020, as orientações de entidades médico-científicas apontam para o banimento da adoção destes medicamentos no tratamento de pacientes da covid-19. Nesse sentido, a polêmica sobre o uso do kit covid-19, o governo federal tem defendido a autoridade da autonomia médica para sua prescrição para doentes, independentemente das diretrizes da Associação Médica Brasileira e das associações de especialidade que baniram o seu uso. Entretanto, a autonomia profissional médica é limitada pela sua autorregulação que implica o uso virtuoso das diretrizes — sobretudo no respeito ao banimento de tratamentos sem eficácia que possam também prejudicar a saúde dos doentes — especialmente aqueles portadores de comorbidades. A prática médica, que, em si, não é apenas ciência, deve estar pautada sempre na ciência para a tomada de decisão e escolha do tipo de tratamento que possa produzir um cuidado de qualidade. De modo geral, o Ministério da Saúde não adotou o uso preconizado de protocolos clínicos baseados em evidências científicas das
sociedades médicas de especialidades ou Organização Mundial da Saúde, no decorrer da pandemia da covid-19, nem seguiu os trâmites administrativos que determinam que qualquer tratamento para ser aprovado para o SUS deve passar por análise do Conselho Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) para avaliação da eficácia, segurança e custo-efetividade do tratamento precoce. Sem essa análise e recomendação técnica, o governo federal, entretanto, recomendou diretamente ao público o “tratamento precoce” com cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina por meio da nota informativa nº 17/2020 — SE/GAB/SE/MS. Apenas em julho de 2021, nova nota técnica foi publicada pelo MS, onde reconheceram a ineficácia do tratamento precoce e contraindicaram sua utilização para o tratamento da covid-19. Isso aconteceu com mais de um ano de atraso do que propôs a Anvisa, a comunidade científica nacional e a internacional. Um terceiro agravante da política de priorização do tratamento precoce do kit covid foi como esse investimento teria se contraposto à compra das vacinas em tempo oportuno para a proteção da população. Em 2020, quando surgiu a oportunidade de adquirir vacinas pelo consórcio internacional CovaxFacility da OMS, as autoridades federais optaram por fazer a compra do menor percentual possível, contando apenas com a oferta de vacina aos grupos de risco. O mesmo pela Pfizer, que teria a maior capacidade de escala. A aquisição das várias vacinas contra o covid-19 por empresas intermediárias atravessadoras está também em investigação pela CPI do Senado em respeito às denúncias de superfaturamento, prevaricação e fraudes para sua aquisição. Em contraste, a dificuldade na aquisição das vacinas em tempo hábil, que seria essencial, juntamente com medidas não farmacológicas (distanciamento social, lockdown, uso obrigatório de máscaras e auxílio emergencial para quem tem direito), deixou em segundo plano a política pública mais importante e efetiva, que poderia ter nos levado a um cenário nacional pandêmico mais favorável, bem como reduzido o risco do surgimento de variantes do vírus, associado ao crescimento livre do vírus inicial (Alpha).
Todos esses fatores contribuíram para uma perda estratégica da eficácia no combate ao covid-19, e para a triste realidade de que o Brasil tenha hoje uma das piores performances do mundo no enfrentamento da pandemia da covid-19 com mais de 530 mil óbitos, mesmo contando com um dos melhores sistemas universais de saúde do mundo — o SUS (Sistema Único de Saúde). Estima-se ainda que importante parcela dos óbitos no Brasil — aproximadamente um em cada cinco — poderia ter sido evitada se as políticas públicas tivessem privilegiado as medidas preventivas, ao invés de sua ênfase no tratamento precoce, e consequente lentificação da vacinação LEIA MAIS
“Associação Médica Brasileira diz que uso de cloroquina e outros remédios sem eficácia contra covid-19 deve ser banido.” G1, Rio de Janeiro, 23 mar. 2021. Bem Estar. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. HALLAL, P. C. “SOS Brazil: science under attack.” The Lancet, London, v. 397, n. 10272, p. 373-374, 30 jan. 2021. ROSENBERG, E. S.; DUFORT, E. M., UDO, T., et al. “Association of treatment with hydroxychloroquine or azithromycin with in-hospital mortality in patients with covid-19 in New York State.” JAMA, [S. l.], v. 323, n. 24, p. 2493-2502, 11 mai. 2020. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2766117. Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
FIOCRUZ PANDEMIA
SINDEMIA
* Professora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP)
TWITTER Isabele Batista Mitozo *
O Twitter
é uma rede social digital em formato de microblog por meio da qual os usuários podem postar mensagens de até 280 caracteres, com a possibilidade de inserção de imagem, vídeo, gif e links, que podem receber interações de outros usuários em formato de curtida, comentário e compartilhamento de postagem. A rede existe desde 2006 e possui mais de 330 milhões de usuários ativos no mundo, mais de 10 milhões deles no Brasil, de acordo com dados de junho de 2021. Foi uma das últimas redes a adotar o uso dos algoritmos, programação que permite a oferta de conteúdo personalizado aos usuários, a partir da coleta de suas preferências na rede. A Application Programming Interface (API) do Twitter, ou seja, sua interface de programação, é a mais aberta e acessível dentre os sites de redes sociais. Por essa razão, ele é o espaço mais propício para o desenvolvimento de robôs, que, muitas vezes, se comportam de forma semelhante a perfis humanos, interagindo com estes — os chamados bots sociais. Estima-se que em torno de 10% dos perfis nesse microblog no mundo sejam bots. Os problemas que podem advir da utilização de robôs no Twitter são diversos, mas consistem, sobretudo, na possibilidade de formação de climas de opinião on-line. Levando em consideração que todo o conteúdo que circula no Twitter pode alcançar maior visibilidade e engajamento por meio do uso de hashtags, isto é, palavras ou termos precedidos pelo símbolo de jogo da velha (#), os bots podem compartilhar conteúdo em grande volume geralmente sem necessitar de ação humana. Eles se utilizam desse recurso para promover destaque e viralização de temas em um determinado período na rede. Isso pode gerar o fenômeno chamado astroturfing, que consiste na proliferação de tweets acerca de um tópico, gerando a falsa impressão de que uma ideia defendida teria apoio
de grande parte do público. A proporção de usuários e as características da rede acima elencadas têm atraído cada vez mais figuras públicas, sobretudo, líderes políticos populistas. Tais líderes veem o Twitter como um espaço propício para alcançar sua audiência, assim como praticar certos controles de climas de opinião, ou seja, utilizarem-se de bots sociais para causar a impressão de que suas postagens têm enorme aderência. Além disso, esses atores políticos vêm se utilizando de redes sociais em geral, mas, sobretudo, do Twitter para driblar a barreira dos gatekeepers do jornalismo tradicional. Líderes populistas de extrema direita, em particular, se apropriam dessa rede e tornam seus perfis nela seu principal canal de comunicação, levando-lhes a atingir um status de plataforma oficial de comunicação governamental. Esse foi o caso do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, que foi condenado pela Suprema Corte daquela nação a desbloquear diversos jornalistas. Isso porque, ao usar sua conta pessoal no Twitter, o gestor público fazia declarações oficiais e se comunicava com líderes internacionais, logo, ela deveria ser considerada uma conta governamental, pública. No Brasil, o presidente eleito no pleito de 2018, Jair Bolsonaro, tem também o Twitter como um de seus principais meios de comunicação. Como resultado, acaba por pautar fortemente os media tradicionais, uma vez que esse representante, não raro, se nega a dar entrevistas para a maioria dos veículos de comunicação. Nesse âmbito, tweets são cobertos porque se encaixam nos critérios de noticiabilidade e, no caso de líderes como Bolsonaro, atendem a uma espécie de “apelo pelo escândalo”, inclusive os próprios conflitos constantemente travados com as instituições jornalísticas. Deve-se destacar, ainda, que seu perfil na referida plataforma online tem servido de vocalizador para a descredibilização no jornalismo tradicional e a aplicação de vieses e enquadramentos pessoais a fatos. Isso, por sua vez, leva os bots de apoio ao presidente a replicarem suas mensagens e emplacarem temas destacados na rede, como as hashtags em apoio a sua candidatura
à reeleição. Utilizar enquadramentos próprios, co- mo o fazem no Twitter os líderes mencionados, contribui para uma difusão de pensamentos particulares, que, muitas vezes, não condizem com a realidade e, inclusive, com as descobertas científicas. Pode-se perceber, portanto, que essa abertura do Twitter dá espaço também à desinformação, pois enquadramentos pessoais nem sempre são opiniões: podem ser visões de mundo deturpadas, negacionistas e anticientíficas. Assim, a desinformação tem sido uma das armas políticas utilizadas por indivíduos que acreditam em teorias da conspiração, assim como tem reforçado movimentos antidemocráticos e racistas, como aqueles que negam a existência do Holocausto ou mesmo defendem que o nazismo se originou num partido de esquerda alemão. A deflagração da pandemia de covid-19, em 2020, reforçou essas visões deturpadas e anticientíficas da realidade. Nesse contexto, percebeu-se o Twitter como um campo de batalha entre dois campos. De um lado, estão aqueles que estimavam os danos advindos da crise sanitária e tinham as vacinas como o único mecanismo eficaz para erradicar o vírus. E, de outro, aqueles que negavam comprovações científicas e continuavam defendendo o uso de medicamentos para outras enfermidades, mas sem comprovação contra o SARS-Cov-2. Esse comportamento se torna ainda mais danoso quando a desinformação parte de fontes oficiais, como deputados, senadores e o próprio presidente da República, no caso brasileiro. Desse modo, justamente pelo embate inevitável nesse espaço, o Twitter não foi a principal rede pela qual se difundiram as ideias negacionistas no contexto da pandemia. No Brasil, não foi sequer possível levantar hashtags de apoio a ideias anticientíficas, provavelmente devido ao maior monitoramento acerca de robôs na ferramenta, identificado por mecanismos como o perfil @botsentinel, que acusa anormalidades em postagens virais e nas contas que as compartilharam. Essa atividade tem levado à identificação e ao
banimento de vários perfis falsos e também de possíveis empresas que criavam “exércitos” dessas contas com o intuito de compartilhar massivamente fake news na rede. Nesse contexto, um questionamento que pode ser suscitado a partir de ações recentes da rede Twitter é a responsabilização por conteúdos anticientíficos, antidemocráticos, dentre outros. Até janeiro de 2021, antes do banimento da conta de Donald Trump, a ferramenta nunca havia realizado a ação de reprimir representantes políticos por conteúdo abusivo ou fake news. Por outro lado, essas atitudes põem em questionamento os limites da liberdade de expressão e a autoridade dessas plataformas, que podem atribuir para si o poder de legislar sobre situações distintas e banir conteúdos que não seriam nocivos, como protestos de grupos minoritários. Nesse sentido, há uma discussão profícua entre pesquisadores de redes sociais sobre o que seria moderação e o que pode ser considerado censura nesse tipo de rede social digital. Como se vê, o Twitter é uma rede para alcance direto de audiência, com diversas apropriações possíveis, e, portanto, atrai atores públicos, empresas e indivíduos, que veem nessa rede um espaço para se comunicar com um público sem constrangimentos que poderiam enfrentar em outros ambientes, como por meio dos media tradicionais. É certo que a possibilidade de apagamento de mensagens postadas é outro atrativo, uma vez que, à menor ameaça legal contra determinadas atitudes expressas em postagens, o usuário pode excluir o conteúdo ou a sua conta na rede, na tentativa de evitar responsabilização posterior. Todavia, o grande campo de batalha que a rede se tornou fez com que se proliferassem perfis dedicados à vigilância de outros, sobretudo de políticos, a fim de salvar conteúdos polêmicos para expor e criticar seus autores a médio ou longo prazo. Logo, o Twitter tanto pode ser uma rede por meio da qual é fácil movimentar opiniões, seja criando climas de opinião artificiais ou alimentando polêmicas, ou um campo de embates que inibem comportamentos nocivos à esfera pública, como a negação da ciência e das realidades por ela diagnosticadas, tal como a pandemia de covid-19 e as formas de superá-la.
LEIA MAIS
MITOZO, I. B.; COSTA, G. da; RODRIGUES, C. “Como os media incorporam declarações de atores políticos nas redes? Uma análise do enquadramento dos tweets de Jair Bolsonaro pelo jornalismo impresso brasileiro.” Brazilian Journalism Research, Brasília, v. 16, n. 1, abr. 2020. STIEGLITZ, S.; ROSS, B.; PILZ L.; CABRERA, B.; BRACHTEN, F.; NEUBAUM, G. “Are social bots a real threat? An agent-based model of the spiral of silence to analyse the impact of manipulative actors in social networks.” European Journal of Information Systems, London, v. 28, n. 4, p. 394-412, 2019. CONFIRA
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* Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)
UNIVERSIDADE Maria Caramez Carlotto *
D
o latim Universitas, o termo Universidade designava, na Baixa Idade Média, uma corporação de ofício de natureza eclesiástica que gozava de relativa autonomia. Como instituição, desenvolveu-se na Europa a partir do século 13, assumindo no século 19 sua forma moderna: uma instituição de caráter público e autônomo, marcada pela indissociabilidade entre ensino e pesquisa. No Brasil, apesar de o ensino superior ter surgido no começo século 19, as instituições propriamente universitárias foram fundadas apenas um século depois. Embora exista um debate historiográfico sobre qual seria a primeira universidade brasileira, é consenso que o modelo universitário que se difundiu no país foi aquele representado pela Universidade de São Paulo, criada em 1934, e pela Universidade do Brasil, criada em 1937. Ambas formadas a partir da reunião de escolas isoladas, voltadas para o ensino profissional, e de novas faculdades de filosofia, ciências e letras, voltadas à pesquisa e à formação de pesquisadores. Desde então, as universidades, especialmente as públicas, se afirmaram como o locus privilegiado da pesquisa e da formação profissional de ponta no país, justamente por gozar de autonomia e associar de modo intrínseco ensino e pesquisa. Esses dois princípios, definidores da universidade como instituição moderna, foram incorporados pela Constituição Federal de 1988 que, no seu artigo 207, estabelece que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Desde a promulgação da Constituição 1988, a rede de universidades públicas do país vem se expandindo, ainda que em ritmo diferente ao longo do tempo. Segundo dados do Inep, entre
1988 e 2018, as matrículas em universidades públicas saltaram de 770.240, para 1.735.000, sendo 1.123.600 dessas em universidades federais. Considerando o número de instituições, o aumento também foi expressivo: em 1988, eram 52 universidades públicas no país, sendo 35 delas universidades federais. Trinta anos depois, em 2018, eram 107 universidades públicas, 63 delas federais. É importante notar que esses números representam uma parcela muito pequena do total de instituições e matrículas de ensino superior do país, fortemente marcado pelo caráter privado e não universitário. Mas, apesar de representarem apenas 4% das instituições de ensino superior do país, as universidades públicas concentram praticamente toda a atividade de pesquisa nacional, sendo, por isso, responsáveis pela contratação de 60% dos docentes com doutorado e atuando em dedicação exclusiva ao ensino e à pesquisa do país. Como parâmetro de comparação, em 2018, enquanto nas universidades públicas 88,3% dos professores atuavam em dedicação exclusiva e 71,3% tinham doutorado, nas instituições privadas não universitárias, que representam a maioria das instituições de ensino superior do país, apenas 23,3% dos professores atuavam em dedicação exclusiva e somente 22,1% tinham doutorado. Esses dados ajudam a explicar por que as universidades públicas brasileiras são responsáveis por 95% da produção científica brasileira publicada em bases internacionais, segundo estudo feito pela Clarivate Analytics por iniciativa da Capes. Ajudam a explicar, também, por que elas são alvo prioritário do negacionismo que reivindica novas fontes de autoridade intelectual. Os ataques são de natureza material e simbólica, e vêm se intensificando especialmente a partir da eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Os principais tipos de ataques são: a propagação de informações falsas; o corte de verbas; a intervenção na nomeação de reitores; bem como a destruição da carreira docente. Vejamos cada um desses. Uma das facetas mais importantes do ataque às universidades
públicas é a propagação de informações falsas que visam corroer a sua legitimidade e abrir espaço para uma série de políticas de destruição. Exemplo dessa tática foi a atuação do primeiro ministro da Educação do governo Bolsonaro, Ricardo Vélez Rodríguez, que se notabilizou, à época, por defender a “revolução cultural” do conservadorismo representada pelo novo governo. Ao anunciar sua política, o então ministro destacou, como prioridade, o combate a um suposto “marxismo cultural, hoje presente em instituições de ensino básico e superior. Trata-se de uma ideologia materialista, alheia aos nossos mais caros valores de patriotismo e de visão religiosa do mundo”. Seu diagnóstico era, em suma, que as universidades públicas experimentavam um desvio de função, atuando sob o signo da ideologia, servindo a um alegado projeto de poder global orientado pelo “marxismo cultural”. A versão não encontra respaldo nos fatos, mas dá a tônica da política do governo Bolsonaro para as universidades públicas desde então. A propagação de informações falsas também foi constante na gestão do economista Abraham Weintraub, que assumiu o Ministério da Educação em abril de 2019, notabilizando-se pela verborragia contra as universidades. Em uma das suas falas mais polêmicas, ele as acusou de promover “balbúrdia”, incluindo supostas “plantações extensivas de maconha” e “produção de metanfetamina em laboratórios públicos”. A tentativa de associar as universidades ao tráfico de drogas tinha o objetivo claro de minar sua credibilidade. O substituto de Weintraub, o pastor e ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Milton Ribeiro, embora mais discreto que seus antecessores, compartilha com eles a visão de que as universidades públicas são excessivamente ideológicas. Assim, depois de sugerir que olharia pessoalmente as questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), resolveu dar um passo atrás e instituir, na verdade, um controverso comitê para avaliar a existência de questões subjetivas que não atentassem a alegados valores morais. O Enem é, hoje, a principal forma de ingresso nas universidades públicas do país.
Mas não foram só os ministros da Educação que se dedicaram a atacar as universidades públicas. Em entrevista à Rádio Jovem Pan em 8 de abril de 2019, instado a comentar o corte de 43% no orçamento do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, o presidente da República afirmou que das “68 universidades que gastam metade do orçamento, poucas têm pesquisa, e dessas poucas, a grande parte está na iniciativa privada, como a Mackenzie, em São Paulo”. Essa informação, sob qualquer perspectiva, é falsa, já que as universidades públicas respondem por praticamente toda a pesquisa realizada no país, considerando-se diferentes indicadores como artigos publicados, teses e dissertações defendidas, profissionais em dedicação exclusiva, entre outros. Em dezembro de 2019, em um evento no Tocantins, o presidente tornou a acusar as universidades públicas, dizendo que seus alunos fazem “tudo, menos estudar”. De novo, a afirmação é totalmente descolada da realidade, mas isso importa pouco porque a função desses discursos não depende da sua veracidade. Como seu objetivo é difundir a ideia de que as universidades públicas consomem recursos e não cumprem seus principais objetivos, mais importante é sua reverberação. Com a difusão dessas visões distorcidas, abre-se o caminho para a implementação de políticas que visam à sua destruição. Uma das principais expressões disso são os cortes de verbas. Segundo dados da Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o orçamento das universidades federais destinado a gastos discricionários — que não inclui o pagamento de salários, benefícios e aposentadorias — vem caindo sistematicamente desde 2015, quando atingiu o pico de R$ 7,8 bilhões de reais. Em 2021, esse orçamento caiu ao seu patamar mais baixo em mais de uma década: R$ 4,5 bilhões. O valor é menor do que o orçamento de 2010 e quase metade do de 2015. Além disso, não inclui a correção da inflação, que revelaria perdas ainda maiores. Se tomarmos como parâmetro de comparação o primeiro ano do governo Temer, 2016, o orçamento atual é 38%
menor, para um alunado que, mantido o padrão de crescimento até 2019, é, hoje, 14% maior. Tomando como parâmetro de comparação o primeiro ano do governo Bolsonaro, a queda é de mais de 25%, considerando apenas o orçamento das universidades federais junto ao MEC. Quando consideramos os cortes orçamentários das agências de fomento à pesquisa como a Capes e o CNPq, os cortes foram ainda maiores, atingindo patamares maiores do que 40% de queda, em média, nos últimos três anos. Assim, embora a crise econômica brasileira possa ter cumprido um papel da restrição orçamentária das universidades públicas e das agências de fomento à pesquisa, se destaca, para além da crise, um projeto de sufocamento orçamentário que faz com que, em 2021, universidades tradicionais não tenham orçamento suficiente para custear suas atividades ao longo do ano. Outra política contrária às universidades é a fragilização da sua autonomia administrativa, através da intervenção explícita no processo de nomeação de reitores. O objetivo é colocar, na direção dessas instituições, nomes comprometidos com agendas negacionistas. Para termos uma ideia, segundo a Andifes, até janeiro de 2021, aproximadamente um terço das universidades federais do país estava sob intervenção. Na prática, isso significa que o reitor escolhido pelo presidente da República ou não era o eleito pela comunidade universitária ou sequer integrava a lista tríplice enviada, pelas instituições, ao MEC. O ataque à autonomia universitária não se dá apenas sob a forma de intervenções político-administrativas. Outro pilar fundamental da autonomia das universidades é uma carreira docente estruturada, que garanta o desenvolvimento atividades de ensino, pesquisa e extensão sem intervenções de ordem política e econômica. Por isso, a desconstrução dessas carreiras é parte central do ataque contemporâneo às universidades públicas. A desconstrução assume diferentes facetas que nem sempre aparecem como negacionismo puro, embora contribuam para ele. São exemplos disso, políticas como o congelamento de salários; a redução de cargos e funções gratificadas; a tentativa de suspensão de progressões e promoções;
o congelamento de novos concursos; a fragilização da aposentadoria; a abertura de sindicâncias e processos de natureza política; o incentivo ao registro e à delação, por parte de estudantes, de “atos de doutrinação ideológica”. Essas e outras iniciativas atacam o estatuto da carreira universitária enquanto carreira de Estado, ou seja, com salário capaz de manter a dedicação exclusiva à função com garantias de autonomia e estabilidade. Por esse conjunto de políticas de destruição, Bolsonaro enfrentou muitas resistências, incluindo manifestações massivas contra os cortes no orçamento das universidades federais ao longo de 2019. Foi no contexto desses protestos de rua que o governo lançou, em julho daquele ano, o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras, batizado com o nome fantasia de Future-se. Apesar de ser parte de uma estratégia para sair da defensiva na área da educação, o Future-se foi a única política propositiva do novo governo para as universidades públicas. Ainda assim, pode ser considerado um projeto natimorto. Pelo fato de almejar, sem nenhum respaldo de dados ou estudos técnicos, uma reestruturação completa do funcionamento universidades públicas, o projeto foi unanimemente condenado pela comunidade universitária do país, pela imprensa e por experts. Chegou a ser encaminhado para o Congresso Nacional pouco antes da demissão do ministro Abraham Weintraub, mas atualmente ninguém acredita que será pautado. As universidades públicas, pelo seu caráter autônomo e pela indissociabilidade entre ensino e pesquisa, são espaços privilegiados para a produção de conhecimento científico e formação de pesquisadores. Por isso, são hoje alvos prioritários de uma agenda negacionista que visa à sua destruição material e simbólica. LEIA MAIS
CHARLE, C.; VERGER, J. História das universidades. São Paulo: Unesp, 1996. MARTINS, C. B. “A formação de um sistema de ensino superior de
massa.” Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 48, p. 197-213, 2002. CARLOTTO, M. C. “Guerra em campo aberto: as disputas pela mudança estrutural do espaço intelectual brasileiro.” In: CASSIO, F. (Org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo Editorial, p. 121-132, 2019. CONFIRA
ANTI-INTELECTUALISMO BOLSONARISMO NEOLIBERALISMO
* Professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC (UFABC)
VACINAÇÃO Marcia Thereza Couto *
D
esde a descoberta da estratégia de imunização ativa, atribuída a Edward Jenner em 1796, as vacinas vêm sendo utilizadas para prevenção de doenças infecciosas em todo o mundo, com importante impacto sobre a saúde populacional. Edward Jenner, considerado o pai da imunologia, observou que fazendeiros que contraíam a varíola da vaca (mais branda e também chamada de vacínia) ficavam protegidos contra a varíola humana (comumente fatal). Partindo dessas observações, Jenner infectou pessoas com a varíola da vaca e, após algum tempo, infectou essas mesmas pessoas com a varíola humana. A constatação de que tais indivíduos não ficavam doentes como aqueles que não eram infectados pela varíola da vaca anteriormente o levou a criar a primeira vacina. Vacinas são constituídas por patógenos — causadores de doenças conhecidos — enfraquecidos (atenuados), mortos (inativados) ou fragmentos deles (subunidades), que, ao serem introduzidos no organismo, simulam a infecção natural (processo chamado de imunização ativa). Como marcos importantes do impacto da vacinação, destacam-se a erradicação mundial da varíola em 1980, a eliminação da poliomielite em vários países, inclusive o Brasil, e a drástica redução da incidência de doenças como a difteria, o tétano, o sarampo e a rubéola. A vacinação é uma ferramenta preventiva dada para a proteção do indivíduo, mas ela tem também outra função: a imunidade coletiva, uma proteção da comunidade por meio da chamada imunidade de rebanho. Assim, quando as coberturas vacinais são adequadas e homogêneas, indivíduos imunes vacinados protegem indiretamente também os não vacinados, qualidade esta de grande importância para a Saúde Pública. Assim, o sucesso da vacinação depende diretamente da sua ampla aceitação pela população e sua
efetividade depende de adoção sustentada, necessária para manter o efeito de imunidade de rebanho e bloquear a circulação do agente infeccioso na população. Entre 1960 e 1980, o Brasil se destacou pela consolidação de uma “cultura da imunização”, aflorada pela criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI) em 1973 e pelo sucesso de campanhas nacionais antivariólicas e contra a poliomielite. As estratégias de coordenação federal, mobilização social para vacinação em massa, utilização de meios de comunicação — num país de dimensão continental e em plena ditadura militar — revelaram, ao assistir o controle de doenças que assombravam a humanidade, grande adesão popular às vacinas e às políticas públicas de vacinação. Apesar de o PNI ser anterior ao Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988 pela Constituição Federal, foi o estabelecimento do SUS que possibilitou a descentralização das salas de vacinação Brasil afora e concretizou a oferta universal e gratuita de um dos calendários vacinais mais vastos do mundo. O sucesso e o alcance do PNI possibilitaram que um calendário vacinal unificado ganhasse adesão popular e, consequentemente, que o país alcançasse gradativamente altas taxas de cobertura vacinal. Porém, sabe-se que nem sempre a relação de indivíduos e grupos com as vacinas foi pacífica. Reações sociais contrárias às vacinas ou ao processo de vacinação coexistem com a própria história destas, variando enormemente em origem (local, tempo e grupos sociais), magnitude, razões e impactos. Manifestações de grandes proporções contra a vacinação antivariólica eclodiram em várias partes do mundo no século 19 e início do século 20, como na Inglaterra e Estados Unidos da América, culminando em respostas populares e criação de ligas e sociedades antivacinação. Tais ligas adotavam a argumentação de “proteger nossas crianças” do mal e se posicionavam contrariamente às medidas compulsórias da vacinação, vistas como violação ao direito de liberdade.
O Brasil, palco da Revolta da Vacina em 1904 na cidade do Rio de Janeiro, tem nesse episódio histórico a presença de intensa participação popular, atos violentos e repressão estatal. Nesse evento, merece destaque os usos “oficializantes” dessa história, em que o discurso da “revolta popular” esconde o fato de ter sido uma narrativa contada por uma elite branca, uniformizando e emudecendo a pluralidade dos pontos de vista dos rebeldes, pobres, negros e detidos. O movimento antivacinação contemporâneo se amplificou no Norte Global no final da década de 1990 e tem como marco a publicação, em 1998, do artigo fraudulento do médico inglês Andrew Jeremy Wakefield, na renomada revista The Lancet. Tal artigo divulgava uma possível associação entre a vacina contra sarampo-caxumbarubéola (a chamada vacina tríplice viral) e o autismo. Esse trabalho alcançou grande repercussão nos meios de comunicação em massa, especialmente em países do Norte Global. A despeito de ser considerado uma das maiores fraudes na ciência de todos os tempos, apesar da comprovação da não causalidade entre a vacina tríplice viral e o autismo, embora Wakefield tenha sido desmascarado e perdido a licença de praticar a medicina na Inglaterra e a despeito da retratação do artigo pela revista (12 anos depois), grupos contrários à vacinação se tornaram visíveis e perpetuam suas expressões por meio da internet e das mídias sociais, numa velocidade e alcance global inéditos. Surtos de sarampos passaram a ser frequentes desde os anos 2000 em diferentes partes do mundo e narrativas sobre essa suposta associação ainda permanecem vivas em grupos contrários às vacinas. O questionamento das vacinas e o crescimento de grupos antivacinas também decorrem, paradoxalmente, do próprio sucesso dos programas de imunização: o controle das doenças imunopreveníveis provoca uma sensação de segurança, de que as doenças não existem mais, ou de que o risco dos efeitos adversos das vacinas é superior ao risco da doença. Nesse cenário, há um descompasso entre o risco validado pela ciência e o risco subjetivo,
com alteração da percepção de segurança e benefícios das vacinas e susceptibilidade e gravidade das doenças imunopreveníveis. Enquanto fenômeno multicausal, atitudes antivacina têm em sua gênese diversas crenças, questionamentos e receios. Estudos de diversos países e continentes apontam que algumas dessas dúvidas e crenças estão presentes tanto em países desenvolvidos quanto subdesenvolvidos, como: I) crenças religiosas; II) crença de que a imunidade induzida pela infecção natural é mais benéfica para o indivíduo; III) o medo de efeitos adversos, inclusive a longo prazo — como o receio de que as vacinas sejam as responsáveis pelo aumento de doenças autoimunes; IV) desconfiança acerca dos ganhos financeiros e interesses comerciais da indústria farmacêutica; V) suspeitas sobre a composição das vacinas e o seu mecanismo de ação. Esse fenômeno global também expressa uma deterioração da confiança pública na ciência, na biomedicina e, particularmente, no desenvolvimento e produção das vacinas. Tal fenômeno é amplificado pelo negacionismo científico e pela desinformação na internet e nas redes sociais sobre a segurança das vacinas, sua eficácia e sua efetividade. Fatores socioculturais e econômicos relacionados ao fenômeno mostram a necessária problematização da relação entre acessibilidade e aceitabilidade das vacinas, que reflete a complexidade da relação indivíduo-sociedade: onde há dificuldade de acesso a insumos e serviços de saúde, prevalece a desigualdade e o prejuízo aos mais pobres; nos lugares em que o acesso foi garantido, esbarra-se na aceitabilidade das vacinas, entre aqueles com maior renda e escolaridade. A complexidade que envolve o binômio vacina-vacinação também solicita reflexões críticas às tradicionais posições universalista, reducionista, polarizada e triunfalista das vacinas-vacinação. Nessa visão tradicional, atribui-se à resistência de indivíduos e grupos sociais uma conotação puramente negativa, sem considerar as múltiplas facetas e o aspecto relacional entre as práticas de saúde e ações sociais. Nesse direção, a Organização Mundial de Saúde
(OMS) constituiu um grupo de experts em imunização que, a partir de 2012, cunhou e tem abordado o fenômeno a partir da expressão “hesitação vacinal”. Essa expressão resulta em consenso ao qual se chegou após bastante debate, sendo definida como o atraso em aceitar ou a recusa às vacinas, apesar da disponibilidade dos serviços de vacinação. Não obstante os esforços em compreender e intervir nesse fenômeno complexo e global, a OMS elevou a “hesitação vacinal” como uma das dez ameaças à saúde global em 2019. No Brasil, o cenário contemporâneo no tocante às vacinas e à vacinação como medida de saúde pública é muito diferente do início do século 20, palco de revoltas contra o autoritarismo da vacinação em massa compulsória, como a Revolta da Vacina em 1904. Difere também das circunstâncias das décadas de 1960, 1970 e 1980, em que os resultados da redução das doenças imunopreveníveis eram visíveis, resultando na “cultura da imunização”. No atual contexto da pandemia covid-19, a disseminação de (des)informação que cerca o binômio vacinas-vacinação, a atuação dos grupos antivacinação e as medidas de enfrentamento da questão pelo Ministério da Saúde têm sido alvo de grande preocupação e debate. Se, por um lado, a pandemia da covid-19 trouxe certo resgate da confiança na ciência como o melhor caminho para as respostas (destacando-se o desenvolvimento de vacinas) de enfrentamento da crise sanitária; por outro, reacende o medo do “novo”, a desinformação e as correntes negacionistas em relação à vacinação. Em boa medida, o que se assiste contemporaneamente vem sendo gestado há pelo menos três décadas: conflitos entre os êxitos da ciência e da medicina, que permitiram a rapidez na produção de vacinas versus a desconfiança crescente, por parte de setores da população, das práticas de saúde, dos profissionais e do conhecimento médico. Também nesse contexto vale lembrar que as representações sobre as vacinas sofrem grande influência da publicização do desenvolvimento de estudos da ciência. De forma sem precedentes, a múltipla colaboração internacional entre cientistas e instituições de pesquisa permitiram em tempo recorde o
desenvolvimento de uma gama expressiva de vacinas; porém, é a primeira vez na história, em meio à pandemia, que temos vacinas de procedência, tecnologias, eficácia, esquemas de dose e intervalos distintos sendo disponíveis ao mesmo tempo para a mesma doença. Dentre as lições apreendidas ao longo da história do PNI, em seus quase 50 anos de existência, tem-se que os valores simbólicos positivos atrelados à vacinação resultam de ações bem coordenadas e com boa comunicação. No momento atual da vacinação contra a covid-19 no Brasil, a ineficiência do governo federal nas contratações de vacinas, a ausência de coordenação para um plano nacional, a antipropaganda e o negacionismo do presidente Bolsonaro, trazem prejuízos à credibilidade das vacinas e do PNI, um programa exitoso e de reconhecimento mundial. Ainda não se sabe os potenciais efeitos deletérios da hesitação vacinal envolvendo a vacinação contra a covid-19 sobre a rotina de imunização, o que possivelmente impactará na queda das coberturas vacinais e no descrédito e renúncia de parte da população às ações de imunização. Afinal, a tomada de decisão sobre (não) vacinar, embora centrada nos indivíduos, é conformada por pertencimentos sociais e atravessada por desigualdades sociais, que irão refletir na susceptibilidade ao adoecimento e no acesso aos serviços de saúde, podendo perpetuar conhecidas inequidades sociais e de saúde. LEIA MAIS
HOCHMAN G. “Vacinação, varíola e uma cultura da imunização no Brasil.” Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 375– 86, 2011. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. MOULIN A. “A hipótese vacinal: por uma abordagem crítica e antropológica de um fenômeno histórico.” História, Ciência, SaúdeManguinhos, v. 10, p. 499-517, 2013. Suplemento 2. Disponível em:
. Acesso em: 27 set. 2021. WOLFE, R. M.; SHARP, L. K. “Anti-vaccinationistis past and present.” BMJ, London, v. 325, n. 7361, p. 430-432, 2002. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. CONFIRA
CLÍNICA MÉDICA MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS POLÍTICAS PÚBLICAS BASEADAS EM EVIDÊNCIAS
* Professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP)
VIOLAÇÕES DE ESTADO Diogo Lyra * Lucas Pedretti **
“B
andido bom é bandido morto” é uma daquelas máximas que opera entre o senso comum popular, jurídico e político como uma espécie de subtítulo oculto do lema “Ordem e Progresso” de nossa bandeira nacional. Apenas no ano de 2020, 5.560 pessoas foram mortas pelas polícias no Brasil. Desse total, 1.239 morreram somente pelas mãos das polícias do Rio de Janeiro. As forças policiais deste estado ocupam um papel de destaque no contexto nacional e, não à toa, o bordão que abre esse texto nasceu em terras cariocas. Segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro (RJ), as polícias civil e militar mataram mais de 20.000 pessoas desde 1998, ano em que os registros começaram a ser compilados. A esses números assombrosos há de se acrescentar, ainda, as cifras ocultas dos mortos por ação de grupos de extermínio, cuja prática é historicamente associada a agentes estatais que se valem de sua posição para agir à revelia da lei. Também não é coincidência o fato de que o Rio de Janeiro pariu Jair Bolsonaro, cuja carreira política se confunde com o próprio tempo de vigência da chamada Constituição Cidadã, promulgada em 1988 com a promessa de promover o respeito aos direitos humanos. Das 1.239 pessoas mortas pela polícia do Rio de Janeiro em 2020, 86% eram negros. Essa violência promovida de forma ilegal e ilegítima por agentes do Estado possui uma história longeva. Nos termos de uma temporalidade mais longa, dois marcos fundamentais são a escravização de homens e mulheres africanos e o período do pós-abolição. É no contexto da necessidade de criar instrumentos para garantir o controle social sobre os negros escravizados que as primeiras instituições policiais e repressivas surgem no país, ainda no Império. Contudo, é justamente no
período republicano que o arbítrio e brutalidade policial ganham maior impulso, no intuito de reprimir os negros, agora libertos e jogados à sua própria sorte, sem trabalho, moradia e alimento. A criminalização da capoeira e da vadiagem, por exemplo, assinalava já nesse tempo a nuance policial de punir um certo perfil social e não propriamente um crime. Já na perspectiva dos processos de média temporalidade, os marcos fundamentais são as duas ditaduras vivenciadas pelo Brasil em sua história republicana: o Estado Novo (1937-1946) e a Ditadura Militar (1964-1985). “Eu sou favorável à tortura, tu sabe disso”, enfatizou Jair Bolsonaro em uma entrevista no ano de 1999, corroborando uma prática corrente nos porões das delegacias, batalhões de polícia e presídios em todo o Brasil ainda hoje. Torturas e assassinatos como prática policial se institucionalizaram e se modernizaram com a Polícia Especial, criada em 1933 por Getúlio Vargas. A Polícia Especial teve atuação de destaque durante o Estado Novo, perseguindo, torturando e assassinando opositores políticos, mas também os vadios, mendigos, prostitutas e ladrões. Anos mais tarde, alguns de seus policiais passaram a integrar, em 1958, um grupo de elite da polícia chamado Serviço de Diligências Especiais. O SDE, como também era conhecido, foi criado pelo Chefe de Polícia do Distrito Federal, o então coronel Amaury Kruel, para responder a uma demanda da Associação Comercial do Rio de Janeiro, que pressionava para que o Estado coibisse os assaltos na cidade. Demanda atendida, se preciso fosse, com “o extermínio puro e simples dos malfeitores”, como declarou à época o coronel. Os assassinatos de autoria desse grupo de policiais lhes renderam um sugestivo apelido dado pela imprensa: Esquadrão da Morte. Seus dias de atuação terminaram no ano seguinte, em 1959. Então dispersos, alguns dos policiais mais violentos do SDE passaram a integrar uma nova força especial, conhecida como Invernada de Olaria, criada em 1962 pelo governador Carlos Lacerda. Sob o comando do coronel Gustavo Borges, os membros da Invernada de Olaria não só executavam suspeitos de crimes, como também aterrorizavam moradores do subúrbio e da Baixada Fluminense,
com emprego de espancamentos, tortura, extorsões e assassinatos. Muitas das execuções tinham como alvo moradores de rua, que eram afogados nos rios Guarda e Guandu. Os assassinatos sistemáticos desse grupo motivaram a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito em 1963 que, por sua vez, resultou na expulsão de dois detetives e na abertura de uma investigação contra o coronel. O então secretário de Segurança Pública, coronel Gustavo Borges, no entanto, escapou a uma possível punição graças à conspiração entre empresários, políticos e militares que culminaria no golpe de Estado de 1º de abril de 1964. A ditadura teve um papel fundamental na conformação de uma arquitetura institucional das forças policiais no país, por conta da influência da Doutrina de Segurança Nacional. Mas é sobretudo à margem da lei que essa influência se torna ainda mais potente, em especial no que tange à formação de grupos de extermínio. Com a chancela dos generais, esses grupos foram formados por policiais da ativa e agiam no controle informal da criminalidade “limpando”, como diziam, a cidade por meio de execuções. O Esquadrão da Morte é o mais emblemático exemplo dessa associação. Em 1968, membros desse grupo de extermínio afirmaram em um manifesto publicado pelo jornal Última Hora que “sempre que contamos com o apoio de um secretário de Segurança que quer ver a cidade livre do crime, nós trabalhamos como agora. Foi assim na época do general Kruel, do Gustavo Borges, e está sendo agora com o general França. Esperamos que o distinto público da Guanabara compreenda nossas intenções”. Em 1968, o Esquadrão da Morte matou cerca de 250 pessoas. “Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo”. Lá se iam quase duas décadas desde a redemocratização quando Bolsonaro pronunciou essas palavras em agosto de 2003, no plenário da Câmara de Deputados. À época, assim como agora, o extermínio nunca deixou de se fazer presente, seja como prática policial nas operações oficiais das forças de segurança, seja promovido por grupos paramilitares formados por agentes de Estado
na ativa, aposentados ou expulsos. A ação desses grupos contou, ao longo da história, com o suporte de autoridades políticas, quando não com sua participação ativa. Esse foi o caso, por exemplo, da Chacina de Vigário Geral, quando 21 trabalhadores foram assassinados em 1993. A chacina foi promovida pelo grupo de extermínio Cavalos Corredores, composto por policiais do 9º BPM e comandado por um ex-integrante do Serviço de Diligências Especiais e da Invernada de Olaria, Emir Laranjeiras — à época, deputado estadual no Rio de Janeiro pelo PSDB. Um de seus colegas de tribuna era o deputado estadual José Guilherme Godinho Sivuca Ferreira, ou apenas “Sivuca”, integrante da Polícia Especial de Vargas, eleito em 1986 com o bordão “bandido bom é bandido morto”. Também em 1986, Bolsonaro foi expulso do exército após um plano frustrado para realizar um atentado à bomba no Rio de Janeiro. Dois anos depois era eleito vereador por essa cidade. Embora a pena de morte não tenha sido legalizada, a execução ilegal de “bandidos” e a defesa pública de tais execuções continuaram ao longo de toda redemocratização, graças aos diversos incentivos criados pelo governo do estado para que sua prática corresse livremente entre policiais e matadores de aluguel no Rio de Janeiro. Sem muita surpresa, foi um general do Exército de nome Nilton Cerqueira um dos maiores patronos das execuções extrajudiciais no estado. Secretário de Segurança Pública do governo Marcelo Alencar (PSDB), Nilton Cerqueira criou, em 1995, a chamada “gratificação por bravura” que abonava policiais autores de homicídios em serviço com ganhos que iam de 50% a 150% sobre o valor de seus salários. Esse foi o ano, por sinal, da Chacina de Nova Brasília, quando policiais militares mataram 13 pessoas, com claros sinais de execução — além de práticas de tortura contra moradores e estupro de menores que residiam na favela. No entendimento do Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro, foi uma operação legal. Já no entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Ministério Público se omitiu gravemente, ensejando, em 2015, a primeira condenação do Brasil na referida
Corte. Guardião da legalidade desde 1988, o Ministério Público tem sido o principal parceiro das polícias do Rio de Janeiro nas execuções de pobres e pretos. Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre o fluxo processual dos inquéritos sobre mortes de autoria policial demonstra que em 99,2% dos casos o próprio Ministério Público solicita o arquivamento do processo — como se o MP e PM fossem o reflexo de um espelho. “Vamos fuzilar a petralhada”, disse o candidato Jair em plena campanha eleitoral para a presidência da República, em outubro de 2018. Embora fosse dirigida a suas bases eleitorais, essa afirmação poderia ser entendida também como um aceno ao grupo de milicianos que, alguns meses antes, havia encomendado a um vizinho do atual presidente o assassinato da vereadora Marielle Franco (Psol). A execução ocorreu sob a égide de uma intervenção militar no Rio de Janeiro, aos cuidados do general Braga Neto, mas nem seus tanques de guerra nem suas botinas pisaram em território miliciano. Seria precipitado atribuir tal lacuna ao elo histórico entre militares e grupos de extermínio no estado, mas a simbiose entre matadores, insígnias e agentes políticos é fundamental para a compreensão do inquietante crescimento das milícias. Atualmente, elas dominam 57% do território da cidade e são vitais para a eleição de políticos simpáticos ao extermínio. Ao longo de sua trajetória, Bolsonaro agiu como um dos principais porta-vozes da “ética do justiçamento” que legitimou historicamente as violações de Estado. Ao longo da Nova República, suas falas — aqui brevemente recuperadas — contrastavam com discursos públicos de defesa da democracia e dos direitos humanos que ganhavam mais espaço, no contexto de vigência da Constituição cidadã. Para aqueles que estivessem pouco atentos, então, o deputado federal do baixo clero poderia soar como algo caricato ou anacrônico. Porém, as expressivas votações de Bolsonaro e de seus filhos mostravam que os afetos expressos pelo clã eram conectados com sentimentos profundos de amplas parcelas da sociedade. Na verdade, esse é o núcleo de seu projeto político — portanto, é também ponto fundamental do fenômeno de extrema
direita que tem sido chamado de “bolsonarismo”: colocar de pé um país fundado na tortura, na morte, no extermínio e no fuzilamento. Tanto do “bandido” — que representa os indesejáveis sociais, e que sempre remeterá à figura de um jovem negro morador de uma favela ou periferia — quanto da “petralhada” — epíteto para o opositor político, o que pensa de forma diferente. Em seu lastro histórico, esse projeto é uma demanda evocada quase sempre como um horizonte ainda a ser alcançado; como um projeto político ainda a ser empreendido; como uma tecnologia ainda a ser recuperada em algum ponto do tempo situado entre o chicote do feitor e o pau-de-arara dos generais. Jogando a seu favor, Bolsonaro e o bolsonarismo têm o fato de que as violações de Estado neste país nunca arrefeceram, quando muito se metamorfosearam. No Brasil, “bandido bom” sempre foi o “bandido morto”. O tipo de negacionismo que essa frase expressa carrega suas diferenças com outros negacionismos que fundamentam ideologicamente o bolsonarismo hoje — como o climático, o das vacinas contra a covid-19 e aquela relativo à ditadura militar. Tratase, aqui, da negação dos direitos humanos mais básicos, de qualquer perspectiva racional sobre como resolver os problemas da segurança pública, da própria humanidade do outro. Essa negação é a base político-ideológica que permite à exceção se tornar uma regra assentada, sobre a qual novas exceções ganham contorno e força. É assim que alguns soldados fuzilam um pai de família com 80 tiros em uma democracia. É assim que um presidente da República pode comemorar, à luz do dia, mais alguns “CPFs cancelados”. LEIA MAIS
MISSE, M., et al. Quando a polícia mata: homicídios por autos de resistência no Rio de Janeiro (2002-2011). Rio de Janeiro: Booklink, 2013. MANSO, B. P. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.
SOARES, L. E. Meu casaco de general: quinhentos dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CONFIRA
DITADURA REVISIONISMOS E CRIME CONTRA A HISTÓRIA TORTURA
* Pesquisador da Universidade Federal Fluminense (UFF) ** Pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
WHATSAPP João Guilherme Bastos dos Santos *
E
m 2014, no dia anterior às eleições presidenciais, celulares do país inteiro receberam por WhatsApp a foto de uma tela com o site G1 adulterado. Em destaque aparecia a manchete falsa de que Alberto Youssef havia sido envenenado na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. A viralização recorrente de informações no WhatsApp em eleições nacionais não havia sido analisada como possibilidade até então, uma vez que o aplicativo não tinha algoritmos de visibilidade ou metadados com informações sociais sobre a mensagem para indicar popularidade e incentivar envios. A combinação entre distribuição de conteúdo fora do controle do aplicativo, viralização recorrente, dificuldade no rastreamento e a não possibilidade de resposta direcionada às audiências atingidas — ou mesmo mensuração precisa dessa audiência — marcaram as tentativas de respostas de autoridades em defesa da lisura da eleição. O amadurecimento das estratégias utilizadas em 2014 e o aumento na utilização de smartphones para se informar marcaram a eleição presidencial de 2018. Juntamente a essas mudanças, 2018 foi marcado, paralelamente, pelo crescimento do WhatsApp, impulsionado em parte pela não cobrança de dados móveis, fazendo com que grupos sem acesso à navegação na internet pudessem ter acesso gratuito ao uso do aplicativo. Desde então, o WhatsApp é muitas vezes apontado como fonte das chamadas fake news no país, associadas à difusão do negacionismo histórico e do negacionismo científico. Antes de pensar sobre as consequências desse cenário, cabe perguntar: como ocorre a viralização nas condições oferecidas pelo WhatsApp? Quase todas as plataformas voltadas para interação social oferecem serviços de mensagens privadas: Messenger no Facebook, Direct no Twitter, chats no Instagram etc. Esses serviços
também foram utilizados de modo indevido, a exemplo das ameaças a jornalistas por mensagens privadas a seus perfis públicos nessas redes. Mas não representaram um problema para informações falsas como o WhatsApp. Por um lado, a criptografia, muitas vezes utilizada como justificativa, pode ser uma explicação interessante para os produtores de informações falsas investirem no aplicativo. Por outro lado, uma vez que a viralização depende de uma rede de suporte orgânica, cabe questionar a improvável premissa de que cidadãos comuns levam a criptografia em consideração ao selecionar o aplicativo em que vão ter conversas com seus pares. Embora esse e outros fatores tenham seu papel para compreensão do WhatsApp, são nitidamente insuficientes para compreensão do fenômeno social que marcou nossas eleições de 2018. Uma diferença fundamental entre WhatsApp e todos os outros serviços citados ganha destaque no exemplo a seguir. Enquanto no Facebook um arquivo postado em uma timeline e compartilhado por 65 mil pessoas pode ser excluído em sua fonte, no caso dos encaminhamentos do WhatsApp seria necessário excluir um arquivo replicado 65 mil vezes, em 65 mil celulares diferentes. Cada um desses celulares possui uma réplica e é capaz de inseri-la novamente em outras plataformas, incluindo o Facebook, a qualquer momento. Ao armazenar o conteúdo em sua plataforma, o Facebook centraliza a fonte original dos compartilhamentos e pode apagá-la, ou consultá-la em casos específicos, gerando uma estrutura de links e não uma dinâmica de replicação de cópias independentes, tal como ocorre no WhatsApp. Tal dinâmica de replicação torna o WhatsApp um aplicativo estratégico a ser utilizado de modo integrado a outras plataformas, garantindo a sobrevida de campanhas com informações falsas no Facebook, circulação de vídeos excluídos do YouTube, prints já não disponíveis no Instagram, entre outros. O WhatsApp, no entanto, não é sinônimo simples e direto de desinformação. Ele é, antes, uma peça fundamental em uma arma composta por diferentes plataformas interconectadas em campanhas de informações falsas: sem essa peça, a arma perderia
boa parte de seu potencial e principalmente sua sobrevida. Mas quem tem apenas uma peça não possui o potencial destrutivo de uma arma completa. Se boa parte dos links para WhatsApp levam as pessoas ao YouTube e, ainda, se a distribuição de ativistas em grupos do aplicativo muitas vezes é coordenada por grupos no Telegram — com milhares de membros e recursos automatizados —, o que um candidato sem entrada nessas duas plataformas em 2018 iria fazer em sua campanha nacional no WhatsApp além de listas de transmissão? É preciso ressaltar que rumores como o chamado “kit gay” no Brasil ou o QAnon nos Estados Unidos se tornaram questões relevantes em cenários em que cerca de cinco por cento do eleitorado pode definir o resultado de uma disputa nacional, e grupos susceptíveis a esse tipo de informação falsa — mesmo sendo minoritário em seus países — podem definir o resultado da votação. Portanto, não se tornaram questões de debate público por ser determinante para “a maioria” da população ou mesmo “dos evangélicos”, mas por sua alta recepção dentro de grupos específicos e mais susceptíveis em cenários polarizados — o que casa com a lógica de segmentação interpessoal. Essa é a chave para que informações falsas segmentadas como kit gay, até então associadas aos apoiadores das bancadas da Bíblia e da bala no Poder Legislativo brasileiro (em que o foco das campanhas são segmentos específicos e não a maioria absoluta) pudessem invadir a campanha presidencial de 2018 impulsionadas pelo cenário de polarização política e abstenção eleitoral. Bem compreendida, a dimensão segmentada das informações falsas leva ao caráter igualmente segmentado da sociedade em que seus alvos se encontram. As campanhas de desinformação e as chamadas fake news precisam ser entendidas em suas relações com o lastro cultural de cada segmento específico, para além de definições genéricas como “os evangélicos” ou “os conservadores”. Isto é, precisam ser entendidas juntamente com diversas subdivisões sociais, elementos culturais e históricos determinantes para que alguns públicos sejam mais susceptíveis a campanhas
direcionadas. Quer dizer, a pluralidade de segmentos envolvidos em uma campanha nos impede de tratar as fakes news como algo homogêneo e genérico, crível por seu suposto poder de persuasão generalizado ou simplesmente por “aparecerem demais” em plataformas on-line. Diferentemente de meios em que a relevância de alguns temas é quantificada em busca daquilo que “mais aparece”, no WhatsApp esse tipo de análise tende a inverter a lógica segmentada do aplicativo, valorizando informações não segmentadas (tópicos genéricos que circulam em todos os grupos) em detrimento de informações segmentadas (relevantes para as sensibilidades de cada grupo específico). A quantificação simples de conteúdo faz com que as diversas informações segmentadas preponderantes em cada grupo fiquem, na quantificação final, em segundo plano frente às numerosas informações genéricas. Para além do conteúdo, a estrutura de grupos interconectados e com limite de participantes é um elemento importante. A polêmica em torno da abertura de igrejas e escolas durante a atual pandemia é um exemplo pertinente para explicar a rede de grupos interconectados no aplicativo. Imaginemos um conjunto de escolas e seus estudantes. Na família de cada um deles, pode haver pessoas de diferentes religiões e igrejas; esses últimos, por sua vez, podem ter em seus encontros religiosos pessoas que estudam em diferentes escolas. Um fiel infectado pode atingir outros fiéis que, em suas casas, possuem estudantes que levarão o mesmo vírus a diferentes escolas, em que pessoas de outras religiões e igrejas poderão ser infectados, em sucessivos e expansivos ciclos de contaminação. Essa dinâmica de contágio traz à tona uma rede de conexões indiretas entre grupos que podem não saber o quanto estão próximos ou mesmo da existência um do outro. Evidentemente, há fatores secundários (como a renda, em que podemos esperar que escolas caras estejam mais conectadas a igrejas com fiéis de perfil similar) que fazem com que alguns grupos estejam em posições
centrais em seus nichos graças à conexão a atores influentes, enquanto outros, com poucas conexões mesmo no nicho ao qual pertencem, ficam na periferia dessa rede. As informações que circulam em cada nicho mudam de acordo com variações no interesse e susceptibilidade de seus membros para o compartilhamento de informações específicas, seus repertórios, limiares à participação e traços de personalidade individuais. Pessoas atuando como conexões indiretas entre igrejas e escolas criam uma rede capilarizada, que ganha ainda mais capilaridade se adicionarmos outros segmentos (condomínios, grupos profissionais, grupos de amigos, família etc.). Graças ao perfil da utilização do WhatsApp no Brasil, em que grupos do aplicativo assumem função operacional relevante nas dinâmicas sociais de cada uma das instituições citadas no parágrafo anterior, uma rede de grupos de WhatsApp interconectados por participantes em comum é um desdobramento inevitável. A entrada de uma informação em cada novo grupo aumenta subitamente a quantidade de pontes para outros grupos que essa informação pode alcançar, viabilizando a rápida viralização de conteúdos no aplicativo. Cada pessoa atingida não é apenas uma “visualizadora”, mas uma ponte para entrada daquele conteúdo em uma diversos outros grupos de WhatsApp aos quais essa pessoa tem acesso, alcançando seus grupos sociais (que também não serão compostos por “visualizadores”) na medida da propensão dessa pessoa a compartilhar o conteúdo em questão. Organizações estruturadas em seções nacionais, estaduais e municipais (como grandes igrejas ou associações esportivas) são particularmente úteis para ampliar essa dinâmica, com atores de diferentes estados em grupos nacionais transferindo informações para seus respectivos locais em grupos de escalas menores (estaduais, municipais, de bairro). Como o WhatsApp não possui algoritmos de visibilidade que limitem a visualização de conteúdo aos interessados no assunto, todos os membros do grupo são expostos às informações repassadas, independente de quão ruim tenha sido sua reação prévia a esse tipo de conteúdo. Mais importante, cada um deles
replica o conteúdo em seus celulares caso acessem arquivos. Ao sair de um grupo para não ver mais conteúdos indesejados, o membro de um grupo leva consigo as pontes que possui para outros grupos em que está, interferindo nos caminhos possíveis para a informação nessa rede. Portanto, as dinâmicas cotidianas de cada grupo influenciam a permanência de participantes, e a permanência ou saída interferem diretamente sobre a estrutura da rede de grupos, com efeitos sobre novas dinâmicas de circulação de conteúdo possíveis nesse novo cenário. Isso faz com que análises longitudinais precisem levar em consideração a renovação constante de grupos e transições de grupos antigos para novos. Um grupo capaz de receber informações rapidamente e torná-las virais pode se tornar, em poucas semanas, um grupo em que olhamos conversas de 50 radicais sem impacto nenhum em redes de grupos mais amplas. Por fim, a circulação de conteúdo nessa rede de grupos temáticos depende de encaminhamentos feitos por membros. Passa, portanto, pela curadoria coletiva de cada grupo, que garante dinâmica segmentada mesmo sem nenhum algoritmo de visibilidade. Grupos em posições centrais recebem a informação diversas vezes e têm contato com ela nas primeiras vezes em que ela aparece, com capacidade para espalhar essa informação por toda a rede, enquanto grupos na periferia da rede a recebem tardiamente, menos vezes e sem capacidade de enviar informação ao restante dos grupos com a mesma facilidade. Numericamente, grupos na periferia da rede são muito mais frequentes do que os centrais, levando a um cenário em que, novamente, o foco na quantidade de grupos analisados — desconsiderando seu tipo/centralidade — conduz a distorções na atribuição de relevância aos resultados encontrados. Olhar os grupos na periferia da rede é perceber os processos apenas depois da viralização, quando eles estão perto dos confins da rede e misturados a diferentes tipos de ruído. Nesse sentido, é a centralidade de grupos observados, e não sua quantidade, que indica a capacidade para impacto político através da viralização de
informações. Dividimos assim a viralização proposital de informações no WhatsApp em três etapas: I) envio direcionado e segmentado, II) viralização em grupos centrais interessados em política ou feitos por equipes de campanha e III) encaminhamentos com auxílio orgânico alcançando grupos periféricos (caso a viralização seja bem-sucedida). Em suma, o cenário descrito traz algumas especificidades que caracterizam o uso político do WhatsApp: replicação no armazenamento, relevância associada a centralidade, segmentação tanto na estrutura quanto na dinâmica de viralização, e variação estrutural ao longo do tempo. LEIA MAIS
INTERNETLAB; REDE CONHECIMENTO SOCIAL. Os vetores da comunicação política em aplicativos de mensagens: hábitos e percepções do brasileiro em 2020. São Paulo, 2021. CHAGAS, Viktor; MITOZO, Isabele; BARROS, Samuel; SANTOS, João Guilherme; & AZEVEDO, Dilvan. The ‘new age’ of political participation? WhatsApp and call to action on the Brazilian senate’s consultations on the e-cidadania portal, Journal of Information Technology & Politics, v. 19, p. 1-16, 2021. SANTOS, João Guilherme; FREITAS, Miguel; ALDÉ, Alessandra; SANTOS, Karina; CUNHA, Vanessa. WhatsApp, política mobile e desinformação: a hidra nas eleições presidenciais de 2018. Metodista, v. 41, n.2, 2019. CONFIRA
INTERNET YOUTUBE TECNOLOGIA
* Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD)
YOUTUBE João Guilherme Bastos dos Santos *
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m uma transmissão de vídeo em março de 2019, o atirador Brenton Tarrant diz “se inscrevam no PewDiePie” imediatamente antes de perpetrar o atentado que matou 51 pessoas em duas mesquitas de Christchurch na Nova Zelândia. O canal em questão era o mais influente do YouTube, com 89 milhões de seguidores na época e mais de 110 milhões em junho de 2021. Para termos uma comparação, o canal de Jair Bolsonaro na plataforma possui cerca de 3,4 milhões na mesma data e o de Olavo de Carvalho 1 milhão. Criado em 2005 para ser uma plataforma de distribuição de conteúdo audiovisual não profissional, o YouTube foi vendido para a Google em 2006 e, atualmente, é o segundo buscador de conteúdo da internet, atrás somente do gigante que é seu proprietário. O Brasil aparece há anos entre os países com mais acessos, em geral atrás apenas dos Estados Unidos. A audiência nacional da plataforma supera 100 milhões de usuários e o tempo gasto aumentou consideravelmente durante a pandemia, fazendo com que apenas a TV Globo possa competir com o YouTube em termos de share de vídeos (outras emissoras não chegam à metade do share de vídeos assistidos na plataforma). A frase dita pelo atirador era um slogan de campanha para PewDiePie não perder a liderança na plataforma para o canal indiano em rápido crescimento T-Series. Antes deste atentado, o “gaming YouTuber” por trás do canal (Felix Kjellberg) já havia sido duramente criticado em ao menos dois episódios. Em um deles, por oferecer pagamento em um site de freelancers a quem segurasse a placa “Death to all Jews” (morte a todos os judeus) como parte de uma “piada”. Em outro episódio, foi criticado por indicar um site supremacista branco como fonte de comentários sobre mangás e jogos, em um vídeo que alcançou 7 milhões de visualizações em
apenas 7 horas. Em ambos, Kjellberg se disse arrependido, negou ser um supremacista e disse não ter percebido as referências ao nazismo no canal que indicou para seus inscritos. Além de uma audiência maior do que muitos veículos especializados que o criticavam, estima-se que Kjellberg ganhou cerca de 15,5 milhões de dólares em 2018. A despeito do fato de ser o canal mais influente de uma rede que conta com mais de 2 bilhões de usuários conectados, que assistem a mais de um bilhão de horas de vídeo a cada dia em mais de 90 países, Kjellberg continuava sendo (salvo em notícias estadunidenses sobre suas piadas antissemitas) um ponto pouco explorado por analistas políticos. Em entrevistas, ele se diz chocado e muito constrangido por ter sido citado antes do atentado. A plataforma de vídeos conta, no entanto, com uma rede de canais ligados às extremas direitas (alt-right e alt-light), considerados essenciais para a ascensão de Donald Trump à presidência. Enquanto alt-right expressa a nova extrema direita estadunidense, a chamada alt-light é composta pela militância de digital influencers libertários que compuseram a face socialmente apresentável e deram aparência de razoabilidade em seu apoio a pautas de Trump no YouTube. Há similaridades entre esse cenário e a dinâmica encontrada no Brasil, relacionada à influência direta de atores estadunidenses alinhados com a direita e extrema direita sobre ativistas brasileiros como Olavo de Carvalho. No início de seu mandato presidencial, Jair Bolsonaro elencou em falas para seus apoiadores quais seriam as fontes de informações confiáveis e alternativas ao jornalismo tradicional. Tais fontes seriam canais de YouTube de direita, alinhados à pautas da direita estadunidense ou simplesmente dedicados ao apoio ao governo. Há também similaridade na formação de uma juventude com identificação recente com o campo da extrema direita, contrária à chamada “mídia mainstream”, associando a oposição ao “politicamente correto da esquerda” e se afirmando como novos transgressores, defensores do “é proibido proibir” — particularmente semelhante a alt-right e alt-light norteamericanas. No Brasil, a complementação entre WhatsApp e
YouTube para circulação de vídeos em nichos segmentados tende a unir ambientes menos monitorados à face pública do bolsonarismo. No entanto, seria um erro considerar o YouTube simplesmente como alternativa a veículos de imprensa e suas versões de divulgação tradicionais. Figuras como Olavo de Carvalho e Kim Kataguiri tinham colunas em jornais como O Globo e Folha de S. Paulo, e sua legitimação como comentaristas políticos passa por essa certificação tradicional. Há, no entanto, diversos grupos excluídos desses meios — grupos antivacina, terraplanistas, religiosos radicais — que conseguiram constituir seus próprios ecossistemas informativos em torno do YouTube. Por sua vez, o YouTube segue os chamados quatro Rs para combater conteúdos nocivos, que seriam Remoção (de conteúdo impróprio), Recomendação (de conteúdos confiáveis), Redução (de acessos de conteúdo impróprio) e Recompensa (ao conteúdo de qualidade). O sucesso dessa estratégia é objeto de debates constantes, bem como supostos vieses nos resultados de busca na plataforma. Quando o Facebook retirou centenas de páginas brasileiras relacionadas a divulgação de conteúdo falso em 2018, o ambiente aparentemente menos controlado do YouTube fez com que parte destes grupos investissem ainda mais na rede de canais alimentada pelo antipetismo. Usuários na plataforma podem chegar aos vídeos pelos mecanismos de busca internos, por recomendações ao assistir a um vídeo, por notificações de canais em que se está inscrito, por notificações com sugestões de vídeos que possam interessar e por links diretos para vídeos e canais, que circulam em outras plataformas. Cada um desses tipos de contato levanta discussões específicas: a variação dos resultados de busca do YouTube ao longo do tempo e que vídeos são beneficiados nas primeiras colocações da lista; as redes de recomendações criando circuitos personalizados em que usuários podem passar horas em vídeos com perspectivas similares, ignorando outras posições ou perspectivas; a audiências fiéis inscritas em canais que se tornam
alternativas a meios informativos “tradicionais” como empresas jornalísticas; e campanhas centradas em links e baseadas em outras plataformas para aumentar popularidade de vídeos em nichos específicos no YouTube, potencialmente interferindo na aferição de relevância dos algoritmos da plataforma com vantagem sobre outros conteúdos. As estratégias de adaptação ao algoritmo de visibilidade para que vídeos obtenham vantagens sobre os outros é chamada de SEO (search engine optimization), sendo um ponto estudado exaustivamente por especialistas que assessoram canais profissionais. Nesse ponto, vale pensar no exemplo de mecanismos como trending topics (contagem de tópicos mais populares): muitos atores moldam suas ações e utilizam automatização on-line (robôs) para aparecer no trending topics. Se atores radicais são bem-sucedidos, não é porque “a contagem do que mais aparece é um mecanismo viciado”, mas porque os dados que alimentam a contagem foram propositalmente distorcidos. Saber que se trata de uma contagem não nos dá pistas sobre quem está por trás da utilização de robôs. Esse é um ponto relevante para a comparação. Esforços de canais para divulgar seus vídeos e o acesso por meio de links ou compartilhamento fazem com que os algoritmos de recomendação do YouTube funcionem a partir de estímulos oriundos de outras plataformas. Para compreender distorções nos resultados, portanto, não basta entender como o algoritmo do YouTube funciona. É preciso pensar quais são os estímulos que ele recebe. Nesse cenário, saber que tempo assistido, likes e dislikes têm alguma função na atribuição de relevância por parte dos algoritmos de recomendação não explica essa dinâmica se não considerarmos campanhas de likes e dislikes feitas pelo WhatsApp mirando a plataforma, por exemplo. Essa dificuldade na aferição de fatores que afetam visibilidade em casos específicos se torna particularmente problemática em períodos eleitorais: a legislação brasileira coibindo impulsionamentos on-line por terceiros para garantir isonomia na exposição de vídeos na rede não se encaixa bem nesse cenário, uma vez que influenciadores digitais têm sua visibilidade inflada
graças aos algoritmos de ordenação de resultados e composição da página inicial, e não necessariamente por impulsionamento pago. Embora haja uma quantidade crescente de conteúdo no YouTube, essa dinâmica de nicho nas recomendações — seja a alimentada pelo buscador personalizado ou pelo acesso através de links presentes em outros aplicativos — faz com que cada grupo tenha acesso a um YouTube peculiar, em que diversos vídeos podem tratar de um assunto (a pandemia, por exemplo) seguindo uma ótica específica. Nos casos em que a audiência e as horas assistidas sejam grandes, um canal no YouTube pode começar a ser uma fonte de renda para o grupo, financiando a produção de conteúdo com aquela perspectiva caso haja audiência para isso. Há retorno econômico direto para vídeos que conseguem se adaptar ao algoritmo de recomendações — que consequentemente conseguem mais acessos e visualizações — o que faz com que canais sejam proativos em estratégias para otimizar sua aparição nas buscas e recomendações. Essa lógiva faz com que canais possam ser fontes de financiamento de grupos políticos, e não necessariamente um custo para eles. Os estímulos para adesão a posicionamentos políticos em voga possuem, portanto, um viés econômico caso as audiências garantam visualizações e engajamento. Nesse sentido, canais podem caminhar para exposição de conteúdo extremista (em suas respectivas conjunturas políticas) por incentivos financeiros ligados à lógica de remuneração da plataforma, não necessariamente por crença ideológica. A remuneração é feita pelo serviço de publicidade AdSense, da Google, que centraliza a publicidade programática no YouTube. Quer dizer, ele faz a mediação entre anunciantes e os vídeos em que o vídeo irá aparecer, de acordo com segmentações próprias. Muitas vezes a publicidade programática beneficia canais e sites com grandes audiências, mas envolvidos na produção de informações falsas, sem que as empresas financiadoras que
terceirizaram a distribuição de sua publicidade estejam cientes de que isso ocorre. Esse é o ponto central de grupos voltados para denúncia pública como, por exemplo, Sleeping Giants, levando marcas a bloquearem o direcionamento de seus anúncios a estes canais e potencialmente interferindo em seu financiamento. Há questionamentos constantes sobre a tendência a comportamentos extremistas dentro do YouTube, muitas vezes atribuídos ao funcionamento de seus algoritmos. Vale lembrar, no entanto, que os grupos de WhatsApp não possuem nenhum algoritmo de visibilidade e estão no centro da discussão sobre discursos negacionistas no país. A resposta a essa pergunta passa pelo reconhecimento de que os algoritmos por si só não “radicalizam” pessoas supostamente indefesas, principalmente nos casos em que há algum padrão demográfico entre os ditos radicalizados. Se estadunidenses brancos de classe média identificados com gamers são forte componente da alt-right, cabe analisar por que esse grupo encontrou no funcionamento do YouTube uma gama de canais propícios a sua radicalização. E, inversamente, por que outros grupos não o são (lembrando sempre que a segmentação segue padrões para sua entrega de conteúdo). A resposta, portanto, passa necessariamente pelas culturas e susceptibilidades dos usuários, e não se esgota no conteúdo da plataforma nem em seus algoritmos. LEIA MAIS
RIEDER, B.; MATAMOROS-FERNÁNDEZ, A.; COROMINA, Ò. “From ranking algorithms to ‘ranking cultures’: investigating the modulation of visibility in YouTube search results.” Convergence: The International Journal of Research into New Media Technologies, London, v. 24, n. 1 esp., p. 50-68, 2018. SAMPAIO, R. C., NICHOLS, B. W., KLEINA, N. C. M., & MARIOTO, D. J. F. “A produção científica brasileira sobre o YouTube na área de internet & política (2005-2019).” E-Compós, Brasília, 2020. Ahead of
print. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. SANTOS, J. G. B. dos. “Algoritmos de rede aplicados à análise e mapeando de canais conservadores no YouTube.” II Congresso do INCT.DD, Salvador, set. 2019. CONFIRA
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* Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT-DD)
ZIKA Layla Pedreira Carvalho * José Szwako **
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ntre novembro de 2015 e maio de 2017 o Brasil viveu uma emergência de saúde pública de importância nacional: a epidemia do vírus zika. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2016 e 2019, houve o registro de aproximadamente 383 mil casos de infecção pelo zika. Entre fevereiro e novembro de 2016, a OMS reconheceu se tratar também de uma emergência de saúde pública de importância internacional. O quadro de infecção por esse vírus assemelha-se a outras doenças causadas por arbovírus e não causaria maior comoção não fosse o efeito que a contaminação por zika tem para a formação fetal. A síndrome congênita do zika vírus (SCZ) produz impactos significativos de ordem do desenvolvimento físico, motor e intelectual das pessoas afetadas por ela, sendo microcefalia e calcificações do sistema nervoso as condições mais comumente relatadas. Entre 2015 e 2019, foram registrados quase 3.500 casos confirmados de pessoas nascidas com a SCZ, de acordo com dados do Ministério da Saúde. A epidemia atingiu de maneira mais relevante a região Nordeste, que concentra aproximadamente 63% dos casos. Entre os casos confirmados em que há registro de raça/cor há uma sobrerrepresentação da população negra: 77% dos casos com essa informação correspondem a pessoas pretas e pardas. A SCZ tem também implicações relevantes nos arranjos familiares, não só para a renda das famílias, mas também quanto ao tempo dedicado ao cuidado das crianças por ela afetadas. Em parte dos casos, essas crianças precisam de cuidados intensivos, ofertados em geral pelas mulheres. Esse quadro é ainda agravado pela virtual inexistência de políticas de saúde específicas de atendimento às pessoas afetadas pela epidemia, embora haja respostas limitadas no âmbito das políticas de assistência social,
como a Lei Federal 13.985, de 7 de abril de 2020, que institui pensão às crianças com a síndrome e nascidas até 2019. Do ponto de vista epidemiológico, mulheres negras e moradoras de áreas sem saneamento básico e com acesso irregular à água potável conformaram o grupo mais afetado pela dinâmica da epidemia e seus efeitos, tanto ao redor de 2015 como posteriormente. Foram afetadas durante a epidemia porque a contaminação pelo zika vírus possui desdobramentos relevantes para a saúde reprodutiva das mulheres. Tais desdobramentos se devem à conexão entre o desenvolvimento da Síndrome Congênita do Zika e a infecção de gestantes, quer por meio da picada do mosquito aedes aegypti, quer por relações sexuais desprotegidas. Seguindo os achados de pesquisa sobre o zika vírus na Polinésia Francesa, tal conexão foi reafirmada por outras pesquisas como, por exemplo, Zika Virus infection in pregnant women in Rio de Janeiro, publicado por Patricia Brasil e colaboradores no New England Journal of Medicine, em 2016. Em diferentes países latino-americanos, tais como Colômbia, El Salvador e Brasil, uma das medidas aconselhadas por autoridades de saúde durante a Emergência de Saúde Pública Importância (Espin e a EspII) era de que as mulheres adiassem quaisquer planos de gravidez. Essa medida reconhecia que, os respectivos governos e autoridades sanitárias não podiam garantir a não contaminação das gestantes. No período pós-epidêmico, o impacto relaciona-se ao exercício do cuidado das crianças com a SCZ sem o devido suporte de políticas públicas, tendo em vista que há dificuldades de acesso aos tratamentos de estimulação precoce, tanto pelas dificuldades relacionadas ao acesso a esses serviços quanto pelo abandono de atividades laborais e educacionais, como forma de garantir os cuidados necessários às crianças, que produz um ciclo vicioso de empobrecimento das famílias, dada a restrição do acesso à renda conjugada à necessidade permanente e premente de cuidado das crianças afetadas pela SCZ. Frente à explosão de casos em 2015 e 2016, a Associação
Nacional das Defensoras e Defensores Públicos protocolou, em agosto de 2016, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.581 junto ao Superior Tribunal Federal. Por meio dessa ADI, a Associação visava ampliar a responsabilidade do Estado brasileiro com relação à proteção das famílias, mulheres e crianças afetadas pela epidemia. Dentre outras questões, a Anadep demandava a facilitação e a ampliação das condições de acesso ao chamado Benefício de Prestação Continuada, bem como o aumento das campanhas públicas de informação sobre as formas de transmissão do vírus e os efeitos delas advindos. No que diz respeito aos direitos reprodutivos das mulheres afetadas, a ADI solicitava não só a distribuição de métodos contraceptivos de longa duração, mas também a garantia de que aquelas mulheres pudessem optar pela interrupção da gravidez, em favor de sua saúde mental dada, entre outras razões, a conexão entre zika vírus e microcefalia. Ao longo dos três anos seguintes, quase duas dezenas de organizações da sociedade civil se ofereceram como amicus curiae no âmbito do STF colocando-se dos dois lados do espectro da restrição ou garantia dos direitos reprodutivos das pessoas afetadas pelo zika. Em meados de 2020, a corte do STF fechou o caso sem discutir substantivamente o direito de escolha pela interrupção da gravidez, de modo a enfatizar que não caberia a uma associação como a Anadep uma demanda de tal natureza. Na grande mídia, duas abordagens predominantes marcaram o debate desenrolado no STF a respeito das consequências do zika vírus. Por vezes, destacam-se casos de pessoas adultas ou jovens com microcefalia, não relacionadas ao zika vírus, com trajetórias e estilo de vida considerados satisfatórios, por contarem com acesso a emprego e ao ensino superior. Outro tipo de abordagem tendeu a uma certa idealização materna, ao destacar a dedicação e a superação individual de mulheres em arranjos familiares com recém-nascidos com microcefalia. A epidemia do zika vírus no Brasil em 2015 guarda fortes paralelos com a pandemia de 2020, em especial, no âmbito da circulação de informação e desinformação. Desafiada por uma emergência
epidemiológica, a comunidade científica tinha poucas certezas imediatas a oferecer, ao mesmo tempo em que proliferavam discursos ao redor das suas formas de contágio e efeitos. Entre 2016 e 2017, foram inúmeros os anúncios pelos quais autoridades sanitárias, a exemplo da Organização Mundial da Saúde, do Ministério da Saúde e da Fiocruz, vieram a público trazer informação cientificamente embasada com vistas a esclarecer a população. À época, um dos meios mais utilizados para propagar desinformação foi o Facebook, no qual rumores conspiratórios se aliavam à difusão de pânicos locais. Entretanto, essas correntes de opinião fomentadas por boatos que circularam de forma mais ou menos indistinta não se confundem com o negacionismo sistemático então empreendido por grupos conservadores. Na esteira de movimentos antivacina comuns em outros países, jornalistas e lideranças reacionárias tentaram estabelecer uma relação da má-formação fetal com vacinas alegadamente deterioradas, mais especificamente, com um suposto lote de vacinas contra rubéola. Parte desses grupos questionou a tese admitida pelo Ministério da Saúde e por outras autoridades sanitárias, sustentando falsas ideias de que não existiria conexão cientificamente observada entre o zika vírus e microcefalia. Com efeito, esses grupos tentaram argumentar que o Brasil estaria passando por uma suposta guerra biológica que envolveria desde a manipulação genética de mosquitos ao uso de larvicidas na água. Nessa guerra imaginada, organizações civis de cunho progressista teriam feito alianças com corporações internacionais em defesa da ampliação do aborto legal. Se são fortes os paralelos entre a crise pandêmica atual e a epidemia de zika, as diferenças entre uma e outra são igualmente importantes. A dimensão global e o alto grau de contaminação da covid-19 são incomparáveis com a dinâmica epidemiológica anterior. De modo mais grave, à diferença do que vem ocorrendo ultimamente, a postura das autoridades governamentais frente à epidemia de zika não foi de oposição aos consensos da comunidade científica, ao contrário: em maio de 2015 foi constituída por portaria
a Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças Correlatas (Renezika), formada por especialistas de diferentes países e instituições com o objetivo de informar as ações do Ministério da Saúde; e, em 2016, foram instituídas as salas de situação compostas por ações executadas por ONGs com financiamento do UNFPA e de órgãos do governo como a Secretaria de Políticas para as Mulheres e voltadas para o acompanhamento das comunidades atingidas pelo zika. Em linhas gerais, em que pese a limitação das soluções, a resposta oferecida pelo Estado foi capaz de não endossar o negacionismo e a relegá-lo a uma parte menor da sociedade. LEIA MAIS
BARRETO, P.; AMORIM, L.; GARCIA, M.; ALMEIDA, C. “Zika e microcefalia no Facebook da Fiocruz: a busca pelo diálogo com a população e a ação contra os boatos sobre a epidemia.” Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 18-33, 2020. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. DINIZ, D.; BRITO, L. “Epidemia provocada pelo vírus Zika: informação e conhecimento.” Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 1-5, 2016. Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2021. GARCIA, M. P. Disseram por aí: deu zika na rede! Boatos e produção de sentidos sobre a epidemia de zika e microcefalia nas redes sociais. 2017. Dissertação (Mestrado em Informação Científica e Tecnológica em Saúde) — Fiocruz, Instituto de
Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Rio de Janeiro, 2017. CONFIRA
FIOCRUZ PANDEMIA NO BRASIL (GESTÃO DA) VACINAÇÃO
* Professora e pesquisadora da Unilab ** Professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ)
AGRADECIMENTOS
U
m dicionário como este é fruto de um esforço coletivo para o qual convergiram inúmeros apoios que foram fundamentais para sua realização. Deixamos aqui expresso nosso reconhecimento àquelas e a aqueles que fizeram parte deste projeto, tão necessário em nossos dias. Agradecemos, antes de tudo, a cada autora e autor dos verbetes deste livro. Em meio ao caos da pandemia, cada pessoa que faz parte deste Dicionário conseguiu um precioso tempo para a confecção, sob encomenda, dos termos aqui discutidos. A todos, nosso agradecimento sincero. No Rio de Janeiro e no Recife, agradecemos a nossos colegas e amigos do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da ( )e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia ( ) da . Em Curitiba, o apoio inicial de João Rickli, Maiumi Oishi e Vilma Aguiar foi fundamental. No Recife, ou em torno do Recife, Maria Eduarda Belém, Jean Daudelin, Artur Perrusi, Luciano Oliveira, Raphael Nascimento, Ricardo Melo e Diogo Guedes foram interlocutores importantes antes, durante e depois da construção deste livro. As leituras de Lilia Schwarcz e Letícia Carvalho, bem como as contribuições e indicações de Gilberto Hochman, Lívia Reis, Maria Eduarda Belém, Karina Calife, Daniela Pinheiro e Fabio Kerche mostraram-se imprescindíveis. É digno de nota e reconhecimento o fato de que a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) acolheu nossa proposta com o entusiasmo, o mesmo espírito democrático que nos anima. Agradecemos o apoio de Ricardo Leitão, de toda a equipe da Cepe Editora e, em especial, de Ricardo Melo pela atenção, paciência, acompanhamento e profissionalismo como coordenador editorial
desta publicação. Sem as contribuições e o empenho de Ricardo Melo, este Dicionário não existiria. Paulinho no Rio, Bia em Londres e Duda no Recife, foram, afetiva e intelectualmente verdadeiros, um porto seguro para os organizadores e editores deste livro. O Dicionário dos negacionismos no Brasil busca, humildemente, ser uma contribuição para a defesa das ciências e contra a barbárie que assola o Brasil e o mundo. A elas, dedicamos nosso Dicionário. Recife/Rio de Janeiro 1º de março de 2022
© 2022 José Szwako e José Luiz Ratton (Organizadores) Direitos reservados à Companhia Editora de Pernambuco – Cepe Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro CEP 50100-140 – Recife – PE Fone: (81) 3183-2700 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dicionário dos negacionismos no Brasil [livro eletrônico] / [organização José Szwako, José Luiz Ratton]. –– Recife : Cepe, 2022. ePub ISBN 978-85-7858-934-9 1. Ciências sociais 2. Ensaios brasileiros – Coletâneas 3. Ensaios – História e crítica 4. Negacionismo I. Szwako, José. II. Ratton, José Luiz. 22-105819
CDD-080
Índices para catálogo sistemático: 1. Ensaios : Coletâneas : Literatura 080 Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB-8/7964
Governo do Estado de Pernambuco Governador: Paulo Henrique Saraiva Câmara Vice-Governadora: Luciana Barbosa de Oliveira Santos Secretário da Casa Civil: José Francisco de Melo Cavalcanti Neto Companhia Editora de Pernambuco Presidente: Ricardo Leitão Diretor de Produção e Edição: Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro: Bráulio Mendonça Meneses Conselho Editorial: Sidney Rocha Brenda Carlos de Andrade Luiz Arraes Marcelo Pereira Maria Alice Amorim Editor: Diogo Guedes Editora Assistente: Mariza Pontes Direção de Arte: Luiz Arrais Projeto gráfico, capa e diagramação: Ricardo Melo Tratamento de imagem: Sebastião Corrêa Revisão: Maria Lúcia Teixeira de Melo Revisão (referências bibliográficas): Mariana Brasileiro
Supervisão de mídias digitais e UI/UX design: Rodolfo Galvão UI/UX design: Renato Costa
Olinda no coração: história afetiva da cidadehumanidade Coelho, Germano 9788578585846 180 páginas
Compre agora e leia Escrito pelo homem que lutou para dar a Olinda o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, Olinda no Coração: História afetiva da Cidade-Humanidade, de Germano Coelho, é uma carta de amor à cidade que já teve sua história contada pelos mais diversos olhares. Fugindo das abordagens tradicionais, Germano traz em seu livro uma Olinda real, um registro histórico em prosa e poesia do lugar onde fincou suas raízes. Compre agora e leia
História da revolução de Pernambuco em 1817 Tavares, Francisco Muniz 9788578588656 552 páginas
Compre agora e leia A História da Revolução de Pernambuco em 1817 surgiu originalmente em 1840, numa edição patrocinada pelo próprio autor. A redação do livro fora iniciada por Muniz Tavares em 1832, após uma longa temporada em Roma, onde desempenhou funções na legação diplomática brasileira junto à Santa Sé. O Império do Brasil enfrentava tempos agitados. Em 1831, a abdicação de Pedro I (1798-1834) levara a formação de regências eleitas – um intermezzo republicano entre os dois reinados – para cuidar dos assuntos de Estado durante a menoridade do herdeiro do trono, aclamado quando contava apenas cinco anos de idade. Compre agora e leia
Meus queridos amigos Rozowykwiat, Tereza 9788578584177 454 páginas
Compre agora e leia "Meus queridos amigos". Era com essa frase que Dom Helder Camara abria o programa Um olhar sobre a Cidade, por ele apresentado de segunda-feira a sábado, entre os anos de 1974 e 1983, na Rádio Olinda, emissora católica sediada na antiga capital de Pernambuco. A frase agora foi utilizada para batizar um livro que reúne 200 das 2.549 crônicas lidas por Dom Helder durante os nove anos que durou o programa. Dividido em seis capítulos, Meus queridos amigos – As crônicas de Dom Helder Camara, segundo a organizadora, busca contemplar a diversidade de temas abordados pelo arcebispo, conhecido, pelos admiradores, como "Dom da paz" e, pelos militares e os setores mais conservadores da sociedade e do próprio clero, como "Bispo vermelho. Compre agora e leia
Ruas sobre as águas: as pontes do Recife Menezes, José Luiz Mota 9788578584245 61 páginas
Compre agora e leia Neste livro as pontes recifenses estão em foco pela sua importância histórica. A construção de pontes sempre esteve presente quando era preciso expandir a cidade, conectar lugares ou urbanizar. Recife cresceu com as pontes. Por ser cortada por vários rios, a presença delas foi essencial para o desenvolvimento da original vila. Em Ruas sobre as águas encontram-se histórias sobre esse ícone da capital. Compre agora e leia
DiAnimal Revoredo, Alexandre 9786586616187 40 páginas
Compre agora e leia Cadê o bicho que estava aqui? Estimule a imaginação das crianças em um livro de descobertas e aprendizado, brincando com as rimas e o dia dos animais, conheça novas formas de ler e se divertir vivendo um diAnimal. Inclui interações, narração de áudio e jogos. Mas também seduz a garotada pelo formato lúdico que permite ler o livro na ordem que o leitor desejar. Isto porque as páginas vêm em formato de cartão, possibilitando uma maior interação entre pais e filhos. "É semelhante a um baralho, e no fim da leitura, as páginas se transformam em peças de um quebra-cabeças oculto e um jogo da memória". Ao todo são 24 animais, 12 que aparecem durante o dia e outros 12 noturnos, ou seja, um animal para cada hora do dia. Compre agora e leia