Desejo e prazer na idade moderna 8526803387

Esse livro rastreia no interior da história moderna um filão que, partindo de Hobbes, chega até Condillac e que foi resp

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Portuguese Pages 234 [236] Year 1995

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Desejo e prazer na idade moderna
 8526803387

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EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS UNICAMP Reitor: José Martins Filho Coordenador Geral da Universidade: André Villalobos Conselho Editorial: Alfredo Miguel Ozorio de Almeida, Antonio Carlos Bannwart, César Francisco Ciacco {Presidente), Eduardo Guimarães, Hermógenes de Freitas Leitão Filho, Hugo Horácio Torriani, Jayme Antunes Maciel Júnior, Luiz Roberto Monzani, Paulo José Samcnho Moran D iretor Executivo: Eduardo Guimarães

L U IZ ROBERTO M ONZANI

DESEJO E PRAZER NA ID AD E MODERNA

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL - UNICAMP M769d

Monzani, Luiz Roberto Desejo e prazer na idade moderna / Luiz Roberto Monzani. - - Campinas, SP: Edilora da UNICAMP, 1995. (Coleção Repertórios) l. Filosofia moderna. 2. Materialismo. 3. Desejo. I. Título.

ISBN 85-268-0338-7 índices para Catálogo Sistemático: 1. Filosofia moderna 190 2. Materialismo 146.3 3. Desejo 152.4 Coleção Repertórios Copyright © by Luiz Roberto Monzani Projeto Gráfico Camila Cesarino Costa Eliana Kestenbaum Coordenação Editorial Carmen Silvia P. Teixeira Produção Editorial Sandra Vieira Alves Preparação de originais Paula M. Senatore Revisão Vera Luciana Morandim Rosa Dalva V. do Nascimento Tradução das citações Carlos Alberto Ribeiro de Moura Composição e Fotolitos Trianon Editora S/C LTDA. 1995 Edilora da Unicamp Caixa Postal 6074 Cidade Universitária - Barão Geraldo CEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil Tel.: (0192) 39.8412 Fax: (0192) 39.3157

20. CDD - 190 -146.3 -152.4

Agradecimentos

Ao CNPq, que me conferiu, por dois anos, uma bolsa para que desenvolvesse esta pesquisa; A Josette, minha mulher, que teve a paciência de decifrar meus garranchos e fazer a primeira versão datilografada; Dos amigos, aos quais devo muito, gostaria de agradecer espe­ cialmente a Moacyr Nunes de Oliveira e Adalberto Tripicchio, o primeiro por ter me auxiliado muito na bibliografia e o segundo por suas fórmulas mágicas. Por último, aos professores Michel Debrun, Fausto Castilho, Marilena Chaui, Bento Prado e Arley R. Moreno, primeiros leitores deste texto. Foi, para mim, um privilégio escutar suas observações sempre pertinentes. Que eles encontrem aqui a expressão de meu respeito, admiração e amizade.

Para Josette: Tant ai en liferm assis mon corage Qu’ailleurs ne pens, et Diex m'en lait joïr! C’onques Tristanz, qui but le beverage, Plus loiaument n'ama sans repentir; Quar g’i met tout, cuer et cors et désir, Force et pooir, ne sai se faiz folage; Encor me dout qu’en trestout mon eage Ne puisse assez li et s’amour servir. (Le Châtelain de Coucy) e Para Juliana, J. Marcelo e Luiz Henrique

I

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................11 I. LUXO...................................................................................................17 II. DESEJO.............................................................................................63 III. INQUIETUDE..............................................................................115 IV. PRAZER.........................................................................................163 CONCLUSÃO....................................................................................223 BIBLIOGRAFIA................................................................................ 228

INTRODUÇÃO

O trabalho que o leitor tem em mãos é fruto de uma suspeita e resulta numa hesitação. Por isso, talvez seja melhor retraçar rapida­ mente o itinerário que resultou na sua confecção, para que se possa ter uma idéia mais clara de suas reais dimensões. Há poucos anos, mais precisamente quando caíram em minhas mãos os primeiros volumes da recente reedição das obras completas de Sade pela editora Pauvert,1propus a mim mesmo uma leitura mais sis­ temática desse autor um tanto quanto esquisito. Já conhecia, há tem­ pos, boa parte de sua obra. Mas, minhas leituras foram sempre esparsas, desorganizadas e sem nenhuma finalidade precisa, a não ser a curiosidade e a impressão de que esse autor havia produzido uma obra única, incomparável e demolidora. Por outro lado, meu conheci­ mento lacunar — não tinha tido acesso, por exemplo, até então, à Histoire de Juliette — impedia-me de formar qualquer opinião que pudesse julgar solidamente estabelecida. Depois dessa leitura, agora mais metodicamente elaborada, e pas­ sado o impacto que a obra do Marquês traz inevitavelmente, procurei examiná-la mais friamente, e nasceu a suspeita não só de que Sade dependia muito, nas suas concepções, de certas matrizes de pensa­ mento do século XVIII, como também, sob muitos aspectos, ele era a realização completa e acabada dessas mesmas matrizes. Conhecia, é claro, a tese de Horkheimer e Adorno sobre Sade. Mas, nunca pude concordar com suas premissas. Curiosamente, con­ cordava com algumas de suas conclusões. Nasceu em mim, então, a 11

suspeita de que era necessário encontrar o solo real do qual o discurso de Sade brotava. De qualquer maneira, resolvi abandonar, provisoria­ mente, a idéia tão difundida — sobretudo pelos próprios estudiosos de Sade na sua grande maioria2 — de que sua obra seria uma exceção monstruosa e única, e passei a trabalhar com a idéia de que talvez Sade apenas tivesse levado às últimas conseqüências, no plano moral, certas premissas de pensamento estabelecidas na idade modema. Indícios sobre isso não faltavam, mas sentia a falta de um fio condutor. Meus primeiros passos, realizados um pouco instintivamente, foram os de examinar um pouco a literatura libertina da época e aqueles autores — na sua maioria filósofos — que Sade insistentemente faz questão de afirmar que constituem o estofo e o fundamento de seu pensamento. No primeiro caso, o exame da literatura libertina foi praticamente inútil, a não ser para reforçar minha convicção de que Sade, no seu gênero, é realmente um escritor de excepcional qualidade e que uma grande edi­ tora nada mais fez que um ato de justiça ao incluí-lo entre os clássicos. No segundo caso, as coisas passaram-se de forma ligeiramente diferente. O referencial imediato de Sade — no plano filosófico — são os materialistas franceses. Particularmente, La Mettríe, Helvétius e Holbach. Sade seguramente conhecia muito bem esses autores, de alguns dos quais pilha páginas e páginas.3 No caso desses pensadores, a filiação realmente era inegável. Nem sempre da forma colocada pelo próprio Sade. Ele faz questão de afirmar, por exemplo, que as bases do que denomina “seu sistema” estão, basicamente, nos textos de Holbach. Isso é verdade, no que concerne às linhas gerais, isto é, à idéia de uma matéria em eterno movimento produzindo e destruindo incessantemente novas formas, o ateísmo integral etc. Mas, com relação ao problema ético,4 Sade é, na verdade, um profundo devedor com relação a La Mettrie. Se se quer achar os antecedentes imediatos das concepções de Sade, elas estão seguramente muito mais no AntiSêneca, do que no Sistema da Natureza. O que impressiona profundamente o leitor é o fato de que, em La Mettrie, encontramos praticamente as mesmas teses de Sade, com a diferença de que não são desenvolvidas com a crueza cirúrgica do Marquês, mas sim no calmo plano das idéias abstratas. Aproveitandome de uma fórmula de Foucault, podemos dizer que La Mettrie é o lado aveludado de Sade. Não se trata aqui de mostrar essa semelhança, o que implicaria escrever um trabalho de proporções mais ou menos iguais ao deste, 12

mas sim de apontar para aquilo que acabou ficando claro nesse primeiro momento. Por um lado, isso reforçava a suspeita de que Sade não era uma estrela solitária, a não ser pelo modo como escolheu para expor, mas não por certos esquemas de pensamento. Por outro lado, isso fazia adiantar muito pouco o tratamento da questão. Pode ser inte­ ressante constatar fortes convergências nas teses de dois autores mas isso apenas mostra que ambos trabalham sobre um estofo conceituai, um certo universo mental já constituído, do qual ambos se nutrem. Ora, a questão particularmente mais instigante era exatamente ten­ tar explicar quais eram as linhas mestras dessa concepção. E, sobre esse ponto, as obscuridades eram muito fortes e as idéias que tinha, muito vagas.5 Refletindo sobre isso, não foi difícil concluir que o que estava provavelmente norteando tudo isso era uma concepção sobre os funda­ mentos da vida passional que pouco ou nada tinha a ver com a con­ cepção clássica. Era preciso, de uma certa maneira, operar um recuo ainda maior e questionar onde, na modernidade, poder-se-ia encontrar os primeiros indícios dessa concepção. Tudo levava a crer que isso de­ veria ser buscado no século XVII, mais particularmente em T. Hobbes. Acreditei, então, poder isolar, dizendo as coisas de forma muito rude, um bloco conceituai que ia de Hobbes até os denominados mate­ rialistas franceses. Houve um trabalho intenso na tentativa de isolar certos conceitos capitais, certas noções-chaves e ir vendo, por assim dizer, como se mantinham ou se transformavam no decorrer do tempo. Esse projeto, durante um certo tempo, revelou-se frutífero, e parecia, de fato, que se poderia isolar um conjunto de conceitos que se per­ filavam de forma a indicar que uma nova concepção da vida passional delineava-se na modernidade. Mas, um estudo mais atento dos textos revelou que estava tratando, como uma unidade algo que não possuía esse atributo. Considerações mais cuidadosas acabaram mostrando que dever-se-ia considerar duas grandes mutações — operadas, no entanto, sobre uma mesma matriz — uma em Hobbes e a outra, surpreendentemente, no Traité des Sensations de Condillac. Esse intervalo, tudo levava a crer, estava recheado de interrogações e hesitações. Percebi também, nesse meio tempo, que um autor que não tinha cogitado de início exercia um papel fundamental: Malebranche. Ao mesmo tempo que esse trabalho desenrolava-se nessa linha, um pouco por acaso, no início, deparei-me com a famosa “querela do luxo”. Estudando-a com mais atenção percebi que ela refletia de forma 13

exemplar, embora vaga, esse conjunto de novas concepções, o que aumentou a convicção sobre o caminho que havia escolhido. Daí, por diante, fazendo uma espécie de jogo de vai-e-vem, procurei ir pro­ gressivamente isolando os temas centrais que funcionavam como pólo — muitas vezes distantes — de orientação na “querela do luxo” e ir examinando como essas mesmas concepções se articulavam de forma mais clara e fundamentada em certos textos centrais. Gostaria, no entanto, de prevenir o leitor de que as coisas não se passam de forma cristalina como esse quadro esquemático que acabo de traçar pode dar a entender. Neste terreno pode-se achar correspondências mas nunca a tal ponto que de um conjunto a outro a relação seja biunívoca. Elas funcionam muito mais como quadros orientadores. A partir disso, este trabalho ordenou-se de forma mais ou menos natural. Parti de uma exposição sobre os problemas conceituais envolvidos na “querela do luxo” — querela longa e multifacetada. Em seguida, procurei isolar um grupo de conceitos que articulam peia primeira vez na modernidade uma nova concepção da vida passional. Depois tratei desse período intermediário — que aos meus olhos aparece como muito hesitante e embrulhado conceitualmente. Por fim, tentei examinar como esses conceitos, de uma certa forma, rearticulam-se na segunda metade do século XVIII. Uma palavra quanto ao título deste estudo. Como percebi que o que estava no horizonte de minhas inquietações eram os fundamentos da vida passional na idade moderna, meu primeiro impulso foi assim intitulá-lo. Mas, logo percebi a enorme pretensão aí contida, e a que, nem de longe, este trabalho faz jus. Procurei um título mais modesto que indicasse melhor o seu conteúdo, Cheguei a este, mas confesso que ainda não estou satisfeito. Ele reflete muito mal a limitação do campo de estudo. Infelizmente não encontrei outro melhor e espero que esta introdução possa contribuir para dissipar possíveis mal-entendidos. Afirmei que este texto nasceu de uma suspeita e que acaba numa hesitação. A primeira já explicitei. Com relação à segunda, embora considere, levando em conta meu ponto de partida, que tenha avança­ do razoavelmente, hesito muito sobre o valor e o alcance do que aqui é afirmado. Tendo, na verdade, a conferir um peso muito relativo e, embora considere esta pesquisa suficientemente autônoma, tenho consciência de que nada mais é que uma etapa e que precisa ir mais longe. Por essa razão evitei, no final, extrair algumas conclusões que considero apressadas. 14

Quanto ao modo de tratamento, resolvi, em primeiro lugar, que era melhor, na medida do possível, deixar que os próprios textos falassem por si mesmos. Tenho freqüentemente a impressão de que muito comentário acaba, às vezes, por obscurecer. Não que tenha me eximi­ do da tarefa. Quando julguei necessário, o fiz. Mas procurei reduzir ao que considero razoável. Isso tem sua contrapartida: em alguns momen­ tos há um excesso de citações. Foi o preço a pagar. Por fim, gostaria de salientar dois ou três pontos que, talvez, chamem a atenção do leitor. Em primeiro lugar, constatar-se-á isso facilmente, evitei cuidadosamente certas generalizações no decorrer do trabalho. Generalizações que, talvez, sejam válidas mas a respeito das quais não estou totalmente seguro. Não procurei, enfim, reconsti­ tuir epistemés de diferentes épocas. Em segundo lugar, esta pesquisa não teve a pretensão de ser exaustiva. Não foi minha intenção arrolar e analisar todos os autores que, na época, trataram do tema. Procurei seguir um filão, como já indiquei, trabalhando retroativamente, como um detetive que reconstrói uma história. História parcial, sem dúvida mas que, nos seus limites, parece-me correta. Por último, não preten­ di também, nas análises positivas que procuro realizar, esgotar um tema num determinado autor. Salientei apenas aquilo que julguei per­ tinente para esclarecer a trama de uma problemática. Assim, o espe­ cialista neste ou naquele autor poderá sentir-se decepcionado com o tratamento a eles conferido. Tenho consciência dessa limitação, mas é a conseqüência de inserir um autor ou texto numa determinada questão que se desenrola historicamente.

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NOTAS

1 Sade, Oeuvres Completes, Paris, Pauvert, 1986. Até agora foram publicados, ao que me consta, quinze volumes. 2 Uma honrosa exceção é J. Deprun que tem realizado estudos notáveis sobre o enraizamento de Sade no século XVIII. Veja-se, por exemplo, seu estudo “Sade et la Philosophie Biologique de son Temps” in Le Marquis de Sade, Paris, Armand Colin, 1968, p. 189 e seg. 3 Assim, por exemplo, todo o longo discurso de Delbène no início da Histoire de Julielte é uma cópia do Le Bon Sens du Cure Meslier de Holbach. Foi Deprun o primeiro a apontar isso. 4 Que, é bom não esquecer, é o núcleo do pensamento dos materialistas franceses, como mostrou Cassirer no seu A Filosofia do Iluminismo, Campinas, Editora da Unicamp, 1992, p. 103. 5 Para não criar falsas expectativas, como o leitor verá logo mais, não temos a preten­ são de ter elucidado totalmente essa questão. Podemos dizer que, agora, elas não são tão vagas para nós.

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LUXO

1. Como fio condutor de nossa análise seguiremos uma sugestão de R, Hubert, contida no seu clássico Les Sciences Sociales dans l’Encyclopédie, onde ele afirma: “O problema do luxo é um daqueles onde a evolução das idéias, no decorrer do século XVIII, é a mais característica”.1 De fato, o exame da chamada “querela do luxo” mostra-se exemplar para se tentar compreender o conjunto das trans­ formações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o sécu­ lo XVIII, pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes direta, às vezes indiretamente, a lenta mutação e constituição das novas concepções (sobre o desejo e o prazer). 2. Em 1736 Voltaire publica um poema, com mais ou menos uma centena e meia de versos, intitulado Le Mondain. Enviou aos amigos com a recomendação expressa de que não se desse publicidade, o que não aconteceu e acabou redundando num exílio rápido do autor na Holanda. Nesse meio tempo, escreve um outro poema: Défense du Mondain ou Apologie du Luxe.2Examinemos, o mais rapidamente pos­ sível, os conteúdos e os problemas levantados. Em linhas gerais, o Le Mondain obedece mais ou menos ao seguinte esquema: os v. 1-4 tentam mostrar que é inútil pensar que os tempos antigos (austeros e rústicos) foram melhores que os tempos atuais; os v. 5-10 realizam uma apologia dos tempos modernos (“Eu agradeço à Natureza sábia / Que, para meu bem, me fez nascer nesta 19

época / Tão difamada por nossos pobres doutores: / Esta época profana é perfeita para meus costumes / Amo o luxo e até mesmo a volúpia, / Todos os prazeres, as artes de toda espécie / O asseio, o paladar, os ornamentos: / Todo homem de bem tem tais sentimentos'’). Os v. 1112 constituem a defesa dos efeitos da abundância; os v. 30-60, uma contraposição do estado de natureza e o de sociedade. Os v. 22-30 e 61-112 mostram que o luxo é responsável pelo incremento do comér­ cio, sendo, portanto, vantajoso para o desenvolvimento e a riqueza da.s sociedades. O final do poema é uma crítica ao Telêmaco de Fénelon. 3. A primeira coisa a se destacar é que esses textos representam uma reviravolta nas posições de Voltaire. No poema épico Henriade (1713-18), publicado nos anos 20, ele tinha uma concepção diferente sobre o assunto. No canto VI (v. 26-7), dizia o seguinte: “O luxo, sempre nascido das misérias públicas Prepara com brilho estes estados tirânicos".' Nesse momento Voltaire ainda exprime uma mentalidade que logo será ultrapassada pelos espíritos mais sensíveis às mudanças. Nesse meio tempo, é bom não esquecer, Voltaire realizou sua viagem à Inglaterra, importantíssima na moldagem de suas concepções. Depois de 1736, Voltaire ainda modificará um pouco suas concepções, mas não substancialmente. Em segundo lugar, o poema evoca uma discussão que já vem do século XVII, aquela que se denominou a questão dos antigos e dos mo­ dernos, que consistia em se saber se os antigos ou os modemos eram superiores nos diferentes campos (civilização, costumes, saber, ciência etc.). No ponto que nos interessa, as posições eram claras e inconci­ liáveis. Havia os que defendiam a pureza, a frugalidade, a austeridade e a virtude dos antigos, em contraposição ao amolecimento geral dos cos­ tumes nas sociedades modemas, sofisticadas, fúteis, efeminadas e dissi­ padoras. Os partidários da posição contrária procuravam mostrar que esse refinamento e essa sofisticação não implicavam nada disso. Fénelon e Fontenelle foram, respectivamente, os representantes típicos dessas posições: o primeiro, predominantemente no plano moral, e o segundo, 20

no intelectual. Exemplos não faltavam de ambos os lados. Esparta e Roma eram os exemplos preferidos dos primeiros. As comodidades e o bem-estar alcançados nos tempos modernos eram os dos segundos. Em terceiro lugar, os imensos e inegáveis avanços científicos e tecnológicos realizados na formação dos tempos modernos também colocavam problemas pois, segundo uns, acabavam levando a um des­ perdício que era fatal às sociedades, enquanto outros (aí incluído Voltaire, é claro) afirmavam e defendiam vivamente que a criação e a circulação maciça de bens, possibilitada por esses avanços, consti­ tuíam uma contribuição inestimável para o enriquecimento das nações e para o seu desenvolvimento. Assim, em quarto lugar, por trás dessa discussão antigos/moder­ nos, está uma discussão, muito confusamente vislumbrada, de caráter econômico que, exatamente por ser apenas entrevista, acabou assumin­ do um aspecto moral. O problema, de fato, foi colocado em termos de virtude/vício: qual das cidades oferece melhores condições para o desenvolvimento das virtudes morais dos sujeitos: aquela antiga, rústi­ ca, que só fornecia o necessário, ou a moderna, mais sofisticada tecno­ logicamente que, além do necessário, oferece também a possibilidade do supérfluo e, portanto, condições à aparição e manutenção do luxo? Em quinto lugar, todo o peso da tradição cristã — mais especifi­ camente católica — vem embaralhar um pouco mais a discussão. Principalmente em dois níveis. De um lado, toda tradição ascética, de desprezo aos bens terrenos é mobilizada em contraposição à superio­ ridade dos bens espirituais. Basta relembrar a Dissertação sobre a Honra, de Bossuet. De fato, em boa lógica, os apologistas da moder­ nidade, cedo ou tarde, entram em rota de colisão com a moral cristã, na medida em que (veremos isso mais claramente) defendem um mundo regulado pelo conforto dos bens materiais, concepção que está ancora­ da numa concepção egoísta dos seres humanos. Já Mersenne, tão pouco interessado em questões morais, marca essa oposição numa de suas obras, tratando do amor a Deus. E certo, afirma, que cada um busca seu próprio bem e que encontrar-se-á “... sempre esta verdade se examinamo-nos geometricamente” e mesmo quando muitos querem persuadir “que eles amam seus amigos apenas para o bem destes, e de um amor de simples benevolência, sem dele desejar nem pretender nenhum benefício, todavia eles se enganam, como confessarão inge­ nuamente se se examinam como é preciso, pois eles acharão sempre que o amor de si mesmo, que é chamado de amor próprio, é a fonte e 21

a origem de tudo aquilo que nós fazemos”. Isso é tão certo, continua Mersenne, que esse amor próprio é proposto como protótipo daquele que devemos conceder ao próximo.4 Mas, a verdadeira dificuldade está, nos diz o autor, em saber se podemos amar Deus de forma pura, já que, nesse caso, essa é a única forma de amor admissível. E isso nos é concedido.-1Eis aqui o ponto limite onde o cristão não pode transigir. Por outro lado, no interior dessa ótica, um outro problema emer­ girá cedo ou tarde. A apologia do luxo está intrinsecamente ligada à apologia da sociedade moderna, na medida em que foi ela a possibi­ litá-lo. E isso tem como contrapartida uma crítica às sociedades arcaicas, o que, no limite, implica a condenação das primeiras sociedades e do estado de natureza, o que, aos olhos da Igreja, signifi­ cava desvalorizar a vida tão perfeita de Adão e Eva no paraíso. Nada mais inadmissível. Mas Voltaire não hesitou em seu poema: ‘Meu caro Adão, meu lambão, meu bom pai Que fazias nos recantos do Éden Trabalhavas para esse tolo gênero humano? Acariciavas madame Eva, minha mãe? Contem-me o que tinham vocês dois As unhas longas, um pouco negras e sujas A cabeleira mal ordenada Sem limpeza, o amor mais feliz Não é mais amor: é uma necessidade vergonhosa Eis o estado de pura natureza” .6 4. Coloquemos um pouco de ordem nessa discussão. O fato de, em 1736, o poema de Voltaire ter tido tanta repercussão, mostra que a dis­ cussão sobre o assunto estava extremamente acirrada. Delineemos mais claramente os argumentos, conforme eles vão se apresentando, nas suas linhas gerais.7 O partido dos adversários do luxo subdividiase em duas facções: a Igreja, que sempre condenou o luxo, pelo menos retoricamente; e um certo número de autores que ainda estavam presos a valores mundanos já caducos, representantes do neo-estoicismo, onde a glória, a honra, a prudência, bem dosadas e na hora certa, cons22

tituíam os parâmetros principais. Já os apologistas vêm sobretudo das camadas mais intelectualizadas e são difíceis de ser classificados, representando, na verdade, tendências muito diversificadas. No início têm, pelo menos, dois traços comuns: uma certa dose de ceticismo e uma boa tintura de empirismo. Gostaríamos de assinalar que essa discussão acompanha uma série enorme e maciça de transformações materiais pela qual passou a socie­ dade ocidental nessa época. Todos os historiadores estão de acordo, nos parece, que nossa sociedade foi, até os primórdios da modernidade, uma sociedade na qual se pode bem aplicar o conceito, utilizado por um filósofo contemporâneo, de rareza. De fato, tomada globalmente, a sociedade ocidental viveu, até essa época, sob o regime da raridade dos bens. Desde os gregos até meados do século XVI a produção dos bens esteve regulada pelas necessidades, quando não esteve abaixo delas. Nesse tipo de economia, o luxo sempre guardou um caráter figurativo e simbólico. Ele basicamente existiu sobre essa forma, salvo em algu­ mas épocas e para algumas camadas da população. Tapeçarias, jóias, vestuários e utensílios suntuosos eram signos de uma condição e uti­ lizados em certas circunstâncias e ocasiões: festas, aparições públicas da realeza, procissões da Igreja etc. O luxo funcionou mais como uma marca de respeito do que como um objeto de desejo. Ele era requerido, no ciclo da vida social, de tempos em tempos e, neste ponto, diferia pouco dos cerimoniais dos povos primitivos. O cotidiano das pessoas, no entanto, é de um nível de vida, em geral, baixo. O dia-a-dia de um nobre medieval não faria muita inveja a um burguês do século XVIII. Foi só com o ciclo das descobertas marítimas e tecnológicas, e a con­ seqüente circulação cada vez maior do dinheiro, que foi possível começar a passar da economia de rareza para uma economia da abundância, onde os artefatos, os utensílios (as comodidades da vida) puderam começar a se expandir tanto no sentido horizontal (consomese cada vez mais e diversificadamente no interior de uma camada social), como no vertical (muito lentamente, outras começam a ter acesso a bens até então inacessíveis). É por essa época que se inicia o ataque ao luxo, não como algo extraordinário, mas como algo que começa a fazer parte do cotidiano da vida das pessoas. Tomemos, em primeiro, o ataque oriundo da Igreja, tomando como figura exemplar Fénelon e, depois, a versão laica dessa crítica, através de La Bruyère. 23

5. Fénelon, arcebispo de Cambray, foi nomeado preceptor do delfim, ocasião que utilizou para escrever, para deleite e educação do mesmo, um texto denominado As Aventuras de Telêmaco. O livro tem um cardápio variado mas, em dois momentos, descreve duas sociedades (Bética e Salento), que figuram como modelos onde impera a frugalidade e o rigorismo dos costumes é a regra. São utopias, não restam dúvidas. Mas todo leitor da época (e o livro foi o que hoje denominamos um best-seller) sabia muito bem que. por contraste, Fénelon estava criticando os desmandos administrativos e financeiros de Luís XIV, que ao construir Versailles drenou literalmente os cofres públicos deixando uma França ainda mais combalida economicamente e com uma alta taxa de pobreza e miséria. Fénelon prega uma ordem rígida, uma sociedade regrada segundo a norma do bem comum onde não tem lugar nem o luxo nem a miséria. Condena o desperdício e mostra que, além de provocar a pobreza, o luxo é corruptor. Elogia ardorosamente a frugalidade (tópico comum nos escritores antigos) e toma como modelo a virtude espartana ou a austeridade da Roma Republicana. Ele trabalha por oposição: ao mesmo tempo que descreve a simplicidade de Bética, por exemplo, a opõe claramente aos Estados onde reina o fasto e a suntuosidade: “Quando lhes faiamos dos povos que têm a arte de fazer construções soberbas, móveis de ouro e prata, tecidos ornados com bordados e pedras preciosas, perfumes maravilhosos, iguarias deliciosas, instrumentos cuja harmonia encanta, eles respondem nestes termos: Esses povos são muito infelizes por ter empregado tanto tra­ balho e indústria para corromper-se a si mesmos! Esse supérfluo enfraquece, inebria e atormenta aqueles que o possuem; ele tenta aqueles que dele são privados a que­ rer adquiri-lo pela injustiça e pela violência. Pode-se chamar de bem um supérfluo que só serve para tomar os homens maus? Os homens desses países são mais sãos e mais robustos do que vós? Vivem mais tempo? São mais unidos entre si? Levam uma vida mais livre, mais tranqüila, mais alegre? Ao contrário, eles devem ser invejosos uns dos outros, corroídos por um temor, pela avareza, incapazes dos prazeres puros e simples, 24

visto que eles são escravos de tantas falsas necessidades das quais fazem depender toda a sua felicidade” .s A campanha de Fénelon é sistemática. O luxo é, para ele, um dos maiores males e o soberano tem a obrigação de reprimi-lo, assim como de deter a inconstância das modas. A disseminação do luxo e do gosto pelo supérfluo é o princípio da indolência: “Se vós colocais (...) os povos na abundância, eles não trabalharão mais, tornar-se-ão arrogantes, indóceis, e estarão sempre prestes a se revoltarem...” ? O luxo e a autoridade injusta são as duas coisas mais perniciosas para um governo e, instaurados, é muito difícil achar os bons remédios.10Mais: o luxo é como a peste. Alastra-se por todo tecido social, infecciona-o, cor­ rói tudo nas suas mínimas partes e leva fatalmente ao desastre: "... o luxo envenena toda uma nação. Dizem que este luxo serve para alimentar os pobres às expensas dos ricos; como se os pobres não pudessem ganhar sua vida mais utilmente, multiplicando os frutos da terra, sem enfraque­ cer os ricos por refinamentos de volúpia. Toda uma nação acostuma-se a ver as coisas as mais supérfluas como as necessidades da vida: todos os dias inventam-se novas necessidades, e não se pode mais passar-se de coisas que não se conhecia trinta anos antes... Este vício, que atrai tantos outros, é louvado como uma virtude: ele dissemina seu contágio desde o rei até o último da ralé do povo. Os parentes próximos do rei querem imitar sua magnificência; os grandes, aquela dos parentes do rei; as pessoas medíocres querem igualar-se aos grandes; ... os pequenos querem passar por medíocres; todo mundo faz mais do que pode; uns por ostentação, ... outros por má vergonha e para esconder sua pobreza... Toda uma nação arruína-se, todas as condições confundem-se” .“ 25

Através dessa crítica delineiam*se os contornos da verdadeira, boa e saudável sociedade: aquela onde os homens “vivem simplesmente”, con­ tentam-se em satisfazer suas “verdadeiras necessidades”, vida esta que constitui a fonte da “abundância, alegria, paz e união”.12 Daqui à reva­ lorização da cidade e dos costumes antigos, o passo é imediato. “Nada é mais amável”, diz o autor, “que essa vida dos primeiros homens”, que viviam segundo a razão e amavam a virtude, e que é incomparável ao luxo vão e ruinoso de nossos tempos.13 É, de fato, essa “amável simpli­ cidade do mundo nascente: essa simplicidade dos costumes, tão distante do luxo”.14E, para ele não existe nenhuma hesitação possível: “Prefiro cem vezes a pobre Itaca de Vlysses a uma cidade brilhante graças a uma magnificência tão odiosa” Trata-se agora, para os tempos atuais, de empreender uma gigan­ tesca reforma dos costumes para ver se é possível deter essa praga que está disseminada pela sociedade. É preciso reformar o governo, criar leis suntuárias rigorosas,1'' incentivar o trabalho que produz o necessário, eliminar o supérfluo em todos os níveis imagináveis, desde o fasto público até os costumes dos jovens. Assim, no seu tratado sobre a educação das jovens aconselha “o gosto de uma verdadeira mode­ ração”, onde não apareça no exterior “nenhuma afetação”: “E preciso fazer entender a esta jovem pessoa que é o luxo que confunde todas as condições, que eleva as pes­ soas de baixo nascimento e enriquecidas depressa por meios odiosos, acima das pessoas de condição a mais distinguida; que é esta desordem que corrompe os cos­ tumes de uma nação, que excita a avidez, que habitua às intrigas e às baixezas, e que pouco a pouco sapa todos os fundamentos da probidade. Ela deve compreender também que uma mulher, por maiores que sejam os bens que esta traga a uma casa, logo a arruina se introduz ali o luxo, com o qual nenhum bem pode ser suficiente” n

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As teses de Fénelon são bem claras. Elas apontam também para certas características da natureza humana às quais nosso autor prendese firmemente: um ideal estrito de predomínio da razão, que deve dominar as paixões e conduzir a vida do sujeito, a qual deve ser regra­ da e produtora do útil necessário. A inquietude não deve fazer parte da vida humana. Deve ser banida: ‘‘Uma vida sóbria, moderada, simples, isenta de inquietudes e de paixões, regrada e laboriosa, retém a viva juventude nos membros de um homem sábio..." Um outro ponto a salientar é a idéia presente em Fénelon de que houve, no decorrer dos séculos, uma espécie de desvio, de desvio patológico entre as inclinações naturais do indivíduo e as que viciosa­ mente adquiriu, mas que não fazem parte de sua natureza. O luxo não é uma inclinação natural, é um desvio. Num de seus diálogos,19um dos interlocutores recrimina o outro pelas suas excessivas despesas nos banquetes, ao qual ele responde que assim o faz por vergonha de pas­ sar por avaro: os “pródigos tomam sempre a frugalidade por uma avareza infame”. “Não devias fazer isso”, retruca o crítico, “pois não é essa a nossa inclinação”. Vida calma e regrada, da qual a inquietude deve ser banida, e com­ bate feroz ao desvio com relação ao supérfluo, já que este não faz parte de nossas inclinações naturais, tais são os fundamentos da análise de Fénelon e que serão impiedosamente demolidos pelos seus críticos. 6. A vertente mundana ou laica da crítica do luxo teve muito menos importânòia e extensão. La Bruyère é um de seus melhores representantes. Seii universo é bem distante do de Fénelon, embora chegue a conclusões muito semelhantes. Trata-se de um mundo da honra, da coragem, da glória pelos grandes feitos e da simplicidade dos costumes oferecidos pela vida rústica, da qual a cidade aparece como o contraponto negativo. Seu universo é o das “coisas rurais e campestres”,2" que verdadeiramente admira. E nada mais distante desse ideal do que o habitante das grandes cidades pelo qual La Bruyère tem verdadeira alergia. Esse “vil rábula”, 27

por exemplo, “do fundo de seu estudo sombrio e esfumaçado”, ocupa­ do das mais “negras chicanas”, acha-se não só superior ao homem que labora a terra, goza o céu aberto e bem semeia como “se alguma vez ele escuta falar dos primeiros homens ou dos patriarcas, de sua vida campestre e de sua economia, ele se espanta de que se tenha podido viver em tais épocas onde ainda não havia nem escritórios, nem comissões, nem presidentes, nem procuradores; ele não compreende que alguma vez se tenha podido passar-se do cartório, do ministério público e do botequim" .21 Seu desprezo por esse tipo de gente acresce-se ainda mais pela sua “molesse”, desconhecida dos antigos, nos quais não se os via, quando saíam de um jantar, montarem numa carruagem, já que estavam persuadidos de que os “homens têm pernas para andar e eles andavam”/ 2 Seus costumes eram austeros, cuidando de seus próprios negócios: “Em todas as coisas eles contavam consigo mesmos”.2-1Sua “despesa era proporcional à sua receita” e tudo era medido segundo suas rendas e sua condição e assim “passavam de uma vida moderada à uma morte tranqüila”2'1: “Eles tinham menos do que nós e tinham o suficiente, mais ricos por sua economia e por sua modéstia do que por seus rendimentos e por seus domínios. Enfim, esta­ va-se então penetrado por esta máxima de que aquilo que nos grandes é esplendor, suntuosidade, magnificên­ cia, no particular é dissipação, loucura, inépcia” P É essa visão que conduz La Bruyère a valorizar o mundo antigo na sua frugalidade e simplicidade. Foi preciso que escoasse o tempo para que os homens percebessem que tanto nas ciências quanto nas artes o melhor era retomar às origens, ao gosto dos antigos, e “retomar enfim o simples e o natural”.26 E por isso que lhe seduz tanto “a vida simples dos atenienses” quanto a vida dos “primeiros homens”, grandes por

eles mesmos. Ao fim e ao cabo, toda essa miríade de invenções poste­ riores vieram apenas: “talvez para substituir essa verdadeira grandeza que não existe mais”.27 Nesses homens, a natureza mostrava-se em toda sua pureza e sua dignidade, “não estava ainda manchada pela vaidade, pelo luxo e pela tola ambição”28 e o homem não era honrado sobre a face da terra senão “pela sua força e virtude”.29Não era rico em função de cargos ou pensões mas “por seu campo, por sua manada, suas crian­ ças e servidores”, e sua alimentação era sã e natural.3" Vê-se bem que toda crítica de La Bruyère é aquela feita por um homem que já não pertence mais ao seu tempo. O estofo de sua análise é uma nostalgia que a atravessa de ponta a ponta e que faz com que expresse com azedume o mundo que vê ao seu redor. 7. A resposta a essas análises não demorou. E veio de uma das inteligências mais profundas e mais polêmicas da época: P. Bayle. A crítica de Bayle é executada em regra: ataca tanto a posição laica, quanto a inspirada na religião. Ambas, é fácil de perceber, têm um ponto em comum: um certo saudosismo, quando realizam a apologia dos costumes antigos mais puros e virtuosos. Outro ponto comum é a denúncia do relaxamento geral dos costumes do presente. E exata­ mente sobre esse dois pontos que Bayle inicia sua análise. Um dos inúmeros méritos de Bayle foi começar a colocar em questão (o que não tinha sido feito seriamente até então) o mito da frugalidade e da simplicidade dos antigos. Lança a suspeita de que, na verdade, trata-se de uma construção retroativa elaborada com fins específicos e nem sempre confessáveis. O que ele quer dizer é, por exemplo, que essa Esparta, rústica, austera, simples, frugal, honesta, dotada enfim de todas a&aualidades cívicas e morais, teria muito menos a ver com a Esparta histórica do que com a projeção retroativa de um conjunto de valores qui pouco ou nada teriam a ver com ela. O mesmo pode-se dizèr-da-Roma Republicana. E sabemos o quanto Bayle foi mestre na crítica histórica. Sabia e mostrava que as reconstruções de um Tito Lívio ou um Comélio Nepos eram falsas. Podiam estar repletas de intenções morais (e não negava as vantagens resultantes disso) mas não tinham a menor validade histórica. O que Bayle mostra, de forma cristalina, é que, se os antigos viveram na frugalidade, isso não se deveu a nenhuma escolha de ordem moral, mas a uma coação natural. Em outros termos: as sociedades antigas eram pobres. E não é muito

honesto transformar uma necessidade numa virtude: “Não é um grande mérito renunciar... ao luxo quando se é pobre”.31 A austeridade só deve ser elogiada no campo moral quando, na presença de um bem, opta-se por renunciai- a ele. Não há nenhum mérito no caso daquele que, além de não ter escolha, nem sequer saber que ele existe: "Quanto a essa frugalidade tão elogiada, ela não era uma supressão das coisas supérfluas, ou uma abstinên­ cia voluntária das agradáveis, mas um uso grosseiro daquilo que se tinha entre as mãos. Não se desejava as riquezas que não se conheciam: contentavam-se com pouco por não imaginar nada a mais; passavam-se dos prazeres dos quais não tinham idéia”.32 Mas a própria ótica cristã na análise do problema é colocada em questão por Bayle. E aqui o alvo é, sem dúvida, Fénelon. E não se pode negar: toda a análise de Fénelon com relação ao luxo e o pro­ blema que instaura estão elaborados por um pensador que, no essen­ cial, é fiel à tradição do ascetismo cristão. A problemática dele insere-se na ótica de condutor (ou conselheiro) real, de um preceptor espiritual do futuro rei, no qual quer inculcar esses princípios contra o que pensava serem as perversões engendradas pela busca do con­ forto e do prazer. O que significa dizer, aos olhos de Bayle, que a questão, por princípio, está decidida. O retrato que ele nos traça do cristão deixa isso muito claro: "Os verdadeiros Cristãos, parece-me, consideravam-se na terra como viajantes e peregrinos que se dirigem ao Céu, sua verdadeira pátria. Eles veriam o mundo como um lugar de banimento, afastariam dele seu coração, lutariam sem fim e sem cessar com sua própria natureza para impedir-se de tomar gosto pela vida mortal, sem­ pre atentos em mortificar sua carne e suas cobiças, em reprimir o amor pelas riquezas, pelas dignidades e pelos prazeres corporais, e em domar este orgulho que torna as injúrias tão pouco suportáveis" .33 30

Mas Bayle não se contenta em simplesmente elaborar uma crítica. Engaja-se claramente na nova mentalidade e faz-se apologista de novos valores nascentes. Liberal, um pouco “avant la lettre”, já declara sua pouca preocupação com os problemas morais, deixando-os para o futuro, e incita à inserção nas novas práticas e concepções: “Conservai à avareza e à ambição toda a sua vivacidade... Prometei uma pensão àqueles que inventarão novas manufaturas e novos meios de ampliar o comércio” M E se isso, um dia, configurar-se como problemático: “Vbjjoi descendentes cuidarão disso; então, como agora, deixai o cuidado com o futuro a quem este per­ tencerá, pensai na opulência do tempo presente...” .35 8. O contra-ataque de Bayle era de um enorme peso e tudo levava a crer que pouca coisa mais poder-se-ia dizer sobre o assunto, quando aparece uma verdadeira bomba: a Fable o f Bees de B. Mandeville. Originalmente (1705) apareceu na forma de um pequeno poema intitu­ lado The Grumbling Hive: or Knaves Turn’d Honest e a ele deu-se pouca atenção. Reaparece com o título pelo qual é conhecido, consi­ deravelmente aumentado, em 1714, e desde então chama a atenção e a ira.3* Por fim, em 1729, aparece um volume suplementar contendo seis diálogos. Eis a história sucinta do texto. O'poema inicial, germe de todos os desenvolvimentos posterio­ res, diz basicamente o seguinte. Trata-se de uma colméia, espelho da sociedade tmmana (o poema é uma alegoria), onde reina livremente a desonestidade e o egoísmo e se vive em plena prosperidade. Num determinado momento, ela experimenta a nostalgia da virtude e pede aos deuses esse dom, no que é atendida. Satisfeito o desejo da colméia ela passa a ser o lugar onde reinam irrestritamente a virtude e a justiça. Mas, coisa extraordinária, essa perfeição moral alcançada pelos indivíduos acaba por engendrar a ruína do conjunto que se toma imóvel, congelado e estéril. Desaparece a atividade, a prosperidade se 31

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esvanece, e começa a imperar a pobreza e o tédio numa população cada vez mais reduzida. Todos os analistas de Mandeville concordam muito pouco entre si, a não ser num ponto: seu pensamento é extremamente complicado, complexo, praticamente impossível de ser resumido mesmo se ficamos com as poucas páginas do poema inicial. Quando se aborda a obra toda, então, a questão complica-se ainda mais. Seu pensamento movese quase sempre em torno de paradoxos, de sinuosidades, de distinções extremamente difíceis de serem captadas. A começar pelo próprio sub­ título da obra: “Vícios Privados, Benefícios Públicos”, fórmula que pode ser entendida de várias maneiras e o foi. Tomemos, como hipótese, a idéia de que o poema inicial foi, de fato, a semente original a partir da qual a obra foi brotando. Se é assim, o sentido original encontra-se exatamente aí. Os desenvolvimentos pos­ teriores são o “commentaire raisonné” dessa intuição original. Partindo dessa hipótese, já podemos fazer uma constatação. Se Bayle foi extremamente perspicaz ao perceber e denunciar as fraquezas das críti­ cas elaboradas contra o luxo, não teve, no entanto, a mesma perspicá­ cia para perceber que a apologia do luxo deveria se basear numa nova escala de valores, numa reavaliação global à qual Mandeville foi sen­ sível. O termo sensível está sendo usado aqui intencionalmente. Estamos querendo dizer que Mandeville percebeu muita coisa, vislum­ brou coisas novas, mas nem sempre exprimiu isso com a clareza necessária. Mas não sejamos anacrônicos. Não imputemos falhas a um pensador que, esboçando uma nova cartografia conceituai, deixou-a ainda um pouco embaralhada. Embaralhada para nós, que sabemos o rumo posterior das idéias. Mandeville foi um pensador, não um profe­ ta. Talvez a melhor grade para se ler Mandeville seja aquela que seguem seus predecessores (sobretudo Hobbes e La Rochefoucauld): na consti­ tuição lenta, mas progressiva, de uma antropologia laica que vê o motor fundamental das ações humanas no egoísmo. Essa tese é uma constante na obra de Mandeville e Hutcheson dispendeu anos, cursos e livros para tentar desmontá-la.’7 É provavelmente através desse operador que con­ seguiremos reagrupar algumas articulações fundamentais. Dessa perspectiva, uma primeira linha de interpretação impõe-se. O que, à primeira vista, aparece como um paradoxo — afinal de contas, por que a retitude moral é incompatível com a pTOsperidade? — pode começar a se resolver se pensarmos que Mandeville pensa o par vício/virtude numa acepção estritamente rigorosa e ascética. Conferindo 32

um sentido rigoroso aos termos, ele consegue colocar em evidência que estamos, de fato, frente a uma dupla escala de valores que são incom­ patíveis. Aponta, de forma clara, para o fato de que a moral da perfeição individual (lembremos o quadro pintado por Bayle, citado há pouco) não é compatível com a moral que é exigida pelo interesse social. Entendendo-se por moral, norma de comportamento. Aponta-se, então, para uma irredutível separação entre os preceitos da pureza, moral indi­ vidual e os imperativos exigidos para o desenvolvimento material da sociedade. Separação que supõe, vimos, o caráter inconciliável de ambas as posturas, se se quiser mantê-las simultaneamente. Em segundo lugar, os diferentes sujeitos são colocados frente a uma opção: ou a busca da salvação pessoal e a conseqüente estagnação e dete­ rioração da sociedade, ou a atitude inversa. Ora, o sentido e o tom do poema de Mandeville — sobretudo o seu final — não podem deixar muita dúvida com relação à posição ou à sua tese. Ele afirma claramente que o vício é tão necessário ao Estado quanto é a fome para comer, e percebe muito bem que seus contemporâneos já escolheram a segunda via.38 Podemos raciocinar de maneira ligeiramente diferente e chegare­ mos à mesma conclusão: um rigorista moral, absolutamente convenci­ do da veracidade de sua doutrina, como Fénelon, não teria hesitado frente a esse quadro: se é assim, é preciso abandonar esse falso rumo tomado pela sociedade e reconduzi-la ao bom caminho, reeditando várias Espartas modernas. Ora, já vimos, a crítica de Bayle apontava claramente o ponto fraco dessa argumentação. Mas pode-se inverter o raciocínio de Bayle: qual seja, os antigos tinham um tipo de vida deter­ minado pela necessidade e não pela virtude. Mas nós, modernos, que temos diante dos nossos olhos as duas opções, temos também o direito de escolha e podemos perfeitamente optar, com conhecimento de caüsa, pelo rigor e a frugalidade, se esse é o preço de nossa salvação ou/ pelo menos, de nossa retitude moral. Fica claro, portanto, que o paradoxo de Mandeville só pode instaurar-se como tal numa sociedade que produz bens no regime de abundância e que sabe que há outra opção possível, a famosa “opção zero” de um político eminente. É sintomático, no entanto, que essas possibilidades nunca apareçam seriamente no texto de Mandeville. Essa volta para trás é, evidentemente, uma impossibilidade aos seus olhos, e isso por uma razão muito simples: sua concepção da natureza humana. A nota domi­ nante do pensamento de Mandeville é a de que o móvel central das ações humanas é o egoísmo: 33

“Nada existe na terra tão universalmente sincero como o amor que todas as criaturas, capazes de senti-lo, se pro­ fessam a si mesmas; e como não há amor que não desvele o cuidado de conservar o objeto amado, nada há mais sincero, em qualquer criatura, que sua vontade, seu desejo e seu empenho de conservar-se a si mesma. É lei da Natureza que todos os apetites ou paixões da criatura tendam diretamente ou indiretamente à preser­ vação tanto de si como de sua espécie” .w E, na medida em que esse egoísmo é a tônica dominante, oni­ presente em toda obra, isso faz com que seja “impossível que o homem possa ter melhores desejos para com os demais do que para consigo mesmo”.40Esse egoísmo nos leva a tender a satisfazer todas as nossas paixões e desejos, variáveis em cada um, e que constituem seu bem, seu prazer.41 Diante desse quadro, como pensar numa volta para trás? É por isso que, se isso é impossível, o melhor caminho é a reformu­ lação do nosso código de valores. Isso significou aos olhos de Mandeville abandonar ostensivamente os cânones da moral tradicional? Não. Ele apenas aponta que a vida cotidiana, comum e material dos homens, implica regras de conduta internas, próprias à sua esfera. Mandeville pode não ter partido o cristal que mantinha a unidade do moral e do econômico, ou melhor, a unidade que fazia com que o segundo fosse julgado pelo primeiro, mas intro­ duziu uma enorme rachadura. É como se ele dissesse: cada um quê opte, é seu direito (já que não existe “summum bonum”). Mas sabe muito bem, de antemão, o resultado, já que cada um, segundo Virgílio, “Trahit sua quenque voluptas”.42A história lhe deu razão. Assim, assistimos não à pulverização da moral tradicional, mas sua dissociação da esfera material. Se os sujeitos só cometessem ações vir­ tuosas, isto é, desinteressadas, sabemos que cessariam o comércio, as artes (técnicas) e a maioria das profissões perderiam seu sentido, na medida em que existem para satisfazer apetites sensíveis (e, na maioria das vezes, supérfluos). Só as ações interessadas, portanto, dizem respeito à esfera do social enquanto social. Ou seja, só as ações que, desse ponto de vista, obedeçam a um critério utilitário, isto é, que sejam úteis, boas e benéficas para a sociedade enquanto tal e os indivíduos que a compõem, enquanto componentes do social. A utilidade deve ser 34

II

o critério, já que é ela quem contribui para a prosperidade e a felici­ dade de seus membros. É nesse nível, portanto, que encontramos a razão de ser da ação social: ações interessadas, produtoras de benefícios e bens que satis­ façam os desejos humanos e lhes tragam bem-estar. É na produção e sobretudo no consumo dos bens materiais que encontramos a razão de ser do mecanismo social, já que os outros pertencem a outra esfera. Neste ponto, Dumont percebeu agudamente que Mandeville teve um papel central na constituição da ideologia modema, pois foi um dos primeiros (senão o primeiro) a mostrar que as relações entre os homens e as coisas é que são primárias e não as relações entre os homens.43 Posta a questão nesses termos, o problema do luxo coloca-se, na perspectiva de Mandeville, de maneira relativamente simples. Se é a ordem da utilidade social que impera, basta inclinar-se diante dos fatos: uma civilização nova está nascendo e oferece, aos indivíduos, um número cada vez maior de bens, dos quais os outros séculos não faziam a menor idéia. E a função da sociedade é produzir esses bens, fazer com que circulem e, sobretudo, que sejam consumidos, pois é para isso que existem. Eles são o motor da sociedade e, nesse sentido, benéficos. Devem ser progressivamente incrementados. Quanto maior o número de bens, maior o número de beneficiários e benefícios, não importando nem a qualidade, nem sua origem, dada a extinção da idéia de “summum bonum”. O luxo é algo perfeitamente natural e normal. Mais ainda: deve ser estimulado, já que no círculo das necessidades estritamente naturais, uma sociedade pode subsistir, mas só se desen­ volve e floresce, quando penetra e explora o domínio do supérfluo. E é inútil argumentar que o luxo corrompe, amolece e afemina os cos­ tumes. Os bens que acarretam são bem maiores que os males. E isso é o que interessa. Os famosos exemplos do incêndio de Londres e o da fabricação de bebidas são evidentemente provocativos, mas significa­ tivos da lógica de Mandeville. Em 1732, Berkeley, no Alcyphron, reproduz de forma perfeita o argumento de Mandeville através de um dos personagens (Lisicles) do diálogo com relação à bebida: “A embriaguez, por exemplo, é considerada por vossos sábios moralistas um vício funesto, mas isso se deve à falta de consideração dos bons efeitos que dela.provêm. Porque, em primeiro lugar, aumenta a arrecadação do imposto da 35

cerveja, um dos principais artigos do fisco de sua majes­ tade, e, por conseguinte, promove a segurança, o poder e a glória da nação. Em segundo lugar, fornece emprego a um grande número de trabalhadores: cervejeiros, fabri­ cantes de malte, trabalhadores, carpinteiros, fabricantes de latão, junto com os demais artesãos necessários para subministrar aos mencionados seus respectivos instrumen­ tos e utensílios. Todos esses benefícios são produzidos pela embriaguêz vulgar, da cerveja forte” .44 Esse é o sentido principal da fórmula: “vícios privados, benefícios públicos” e, realizando essa operação, Mandeville já começa a afirmar a separação entre bondade e felicidade, algo incompreensível para a tradição predominante desde a Grécia clássica. De agora em diante, está aberta a possibilidade de se pensar esses dois conceitos em esferas dife­ rentes, embora, em Mandeville, eles ainda não tenham uma tópica clara­ mente definida. Será na Crítica da Razão Prática que isso se instaurará definitivamente e onde o campo da moralidade não se confundirá mais com o campo da felicidade. Quer dizer, Mandeville, de uma forma ainda enevoada, prenuncia a distinção kantiana que, através do imperativo categórico, instalará o campo da moralidade de forma completamente independente dos fatos e mostrará que a felicidade é um simples ideal da imaginação, restrita ao campo empírico, fatual. Não deixa de ser sur­ preendente essa abertura contida principalmente na Fábula das Abelhas?* Uma operação importante realizada por Mandeville foi a relativização do conceito de luxo: “Se determinamos as origens das nações mais prósperas, encontraremos que, nos remotos princípios de todas as sociedades, os homens então mais ricos e considerados foram privados durante longo tempo de muitas das comodidades de que agora desfrutam os mais humildes e miseráveis; de modo que muitas coisas que em outros tempos consideravam-se uma invenção do luxo estão agora ao alcance de pobres tão indigentes que vivem da caridade pública e conceituam-se tão necessárias que nos parece impossível que algum ser humano possa estar desprovido delas”46. 36

É impossível considerar essas noções tendo como marco um ponto absoluto. Riqueza e pobreza, necessário e supérfluo, desperdício o frugalidade são noções relativas: o que é privilégio de aJguns numa época toma-se, com o decorrer do tempo, objeto de consumo corrente. É muito difícil, em primeiro lugar, dizer quando começa o luxo. Voltaire, no Dicionário Filosófico, afirma: “Num país onde todos andam descalços, o que fez o primeiro par de sapatos tinha luxo? Não era um homem muito sensato e muito industrioso? Isso não vale também para quem fez a primeira camisa? Quem a fez esbran­ quiçar foi um gênio pleno de recursos capaz de governar um Estado. Entretanto, aqueles que não estavam acostu­ mados a vestir camisas o tomaram por um rico efeminado que corrompia a nação” .47 Da mesma forma, como não se sabe quando começa, é difícil detectar também quando termina ou quando passa a ser nocivo: “Se há de chamar-se de luxo (como deveria estritamente ser chamada) cada coisa que não seja imediatamente necessária para permitir ao homem subsistir como criatura vivente que é, não há outra coisa que exista no mundo, nem sequer entre os selvagens nus, dos quais é improvável que haja alguns que nessa época não tenham melhorado em alguma coisa sua maneira de viver, seja na preparação de seus alimentos, na distribuição de suas choças ou, pelo menos, adicionando algo ao que, em ou­ tros tempos, consideraram suficiente. Todos dirão que esta definição é demasiado rigorosa; sou da mesma opinião, mas se vamos mitigar, por mínimo que seja, esta severidade, temo que já não saberemos onde deter-nos” ,48 Trata-se de um conceito vago, indefinido, onde nunca se sabe exata­ mente como demarcar o território. Quando as pessoas dizem que apenas 37

querem estar limpas e apresentáveis, por exemplo, diz Mandeville, nunca se sabe direito o que estão querendo dizer com isso. Mas, esses “pequenos adjetivos são tão extensos, especialmente no dialeto de algu­ mas damas que ninguém pode suspeitar de seu alcance”.41' A réplica con­ tinental não demorou muito: “O que é, com efeito, o luxo? É uma palavra sem idéia precisa, mais ou menos como quando dizemos os cli­ mas do oriente e do ocidente: não existe, com efeito, oriente e ocidente. Não há ponto onde a terra se le­ vanta ou se deita, ou, se querem, cada ponto é oriente e ocidente. Dá-se o mesmo com o luxo: ou não existe ou está em todo lugar" ,w 9. Voltaire, mesmo amenizando um pouco as fórmulas provocati­ vas do Le Mondain, nunca deixou de ser um apologista ferrenho do luxo mostrando sempre que ele é um dos grandes benefícios que a ci­ vilização nos trouxe. Ele é o resultado da indústria e do gênio e avança com os progressos da primeira. E esse avanço da indústria faz com que, progressivamente, os produtos se barateiem.31 Mesmo essa fru­ galidade e essa pureza dos costumes, tão decantada nos antigos, além de falsa, como mostram Bayle e Mandeville, não produziram, ao que parece, grande coisa para a humanidade. Só uma miopia histórica pode fazer alguém preferir Esparta a Atenas: “Citam a Lacedemônia... Que bem Esparta fez à Grécia? Teve ela Demóstenes, Sófocles, Apeles, Fídias? O luxo de Atenas produziu grandes homens".52 Voltaire, como é fácil de ver, pode ter provocado grande ebulição quando publicou o Le Mondain. Mas, nem nesse texto, nem na grande maioria dos que escreveu posteriormente foi, propriamente, um ino­ vador. Retoma quase sempre os argumentos de Bayle e, sobretudo, de Mandeville. Colore-os, embeleza-os, dá a eles sua tintura particular, produzindo textos brilhantes e inigualáveis. Mas não vai muito mais 38

longe. Exceto em dois pontos, onde seu papel parece ter sido decisivo, lixaminemos o primeiro. Num desses giros muito característicos de Voltaire, ele acaba fazendo o feitiço virar contra o feiticeiro e é, não sobre a noção de supérfluo que joga sua atenção, mas sim sobre a de excesso. Foi esse o grande golpe de gênio de Voltaire, quando acaba por inverter as posições e passa do papel de advogado de defesa ao de acusador. Trata-se de um momento importante e delicado nessa longa c intrincada disputa sobre o luxo e, de agora em diante, serão os próprios apologistas da frugalidade que se vêm na obrigação de dar explicações. Isso tudo, Voltaire conseguiu com uma simples frase: “Se por luxo entendem o excesso, sabe-se que o excesso é pernicioso em todo gênero: na abstinência como na glutoneria, na economia como na liberalidade" .53 Esse argumento já andava difuso e representou uma verdadeira viragem na questão do luxo. O que se defende agora é que, bem dosado e usado com bom espírito, ele realmente constitui um bem precioso da civilização. Por outro lado, já vimos, atingido esse ponto, que os rigoristas ficam numa posição verdadeiramente incômoda. Aquilo mesmo que apontavam como a raiz dos males do luxo não só agora é negado como se volta contra eles mesmos. A partir desse momento a causa está perdida. Tratava-se de uma realidade que era preciso aceitar e conferir direito de cidadania teórica. Como comenta, com humor, P. Hazard: “Quem abordava a questão do luxo estava perdido; qual­ quer incompetente se julgava com direito a pegar na pena, compondo uma apologia ou um requisitório; um não acabar de disparates, ‘inesgotável mina de tolices’. O luxo não era perigoso em si, o luxo só se tornava perigoso nos estados mal governados. Havia dois luxos, um culpa­ do e outro virtuoso. Dois luxos ainda, um aristocrático e outro popular. E ainda dois outros, um no início, que era legítimo; o outro que se tornava ilegítimo a partir do momento em que o desejo de brilhar leva o indivíduo a adquirir atavios acima de suas posses. Concluíam outros 39

que bem vão era discutir sobre o luxo, posto ser este uma realidade: boa ou má, era necessário aceitá-la" .5i Foi esta última opinião que acabou prevalecendo. A tese de Mandeville, deixando de lado seus exageros e seus exemplos bombás­ ticos, é, em linhas gerais, aceita e, afora os ultratradicionalistas e duas honrosas e poderosas exceções (Rousseau e Condillac), trata-se agora de uma questão de ajuste, de nível e de enquadramento. É o que vão fazer os textos de Hume, de um lado, e o verbete “Luxo” na Enciclopédia, de outro. 10. A abordagem de Hume foi discreta, mas nem por isso deixou de ser importante: "Luxo, afirma ele, é uma palavra de significação incerta e pode ser tomada tanto no bom quanto no mau sentido. Em geral, significa grande refinamento na satisfação dos sentidos e em qualquer grau pode ser inocente ou culpá­ vel, conforme a idade, país ou condição da pessoa... Imaginar que a satisfação de qualquer dos sentidos, ou a adoção de qualquer requinte em carnes, bebidas ou ornamentos seja por si um vício só poderá ocorrer a uma mente desorganizada pelo furor do entusiasmo” .5S Sua posição é ao mesmo tempo clara e nuançada. Clara porque, nas pegadas de Mandeville e Voltaire, considera o luxo como algo que per­ tence à classe do consumo produtivo e, portanto, em geral, benéfica. Nuan­ çada porque realiza a distinção entre um luxo inocente e outro vicioso. O que entende por luxo vicioso deixa apenas entrever num exemplo: “Ocupar-se inteiramente com o luxo à mesa, por exemplo, sem nenhum gosto pelos prazeres da ambição, do estudo ou da conversação, é sinal de estupidez, e é incompatível com qualquer força de temperamento ou de gênio. 40

Dedicar as despesas inteiramente a tal satisfação, sem consideração para com os amigos ou a família, indica um coração destituído de humanidade ou benevolência; mas se um homem reserva tempo suficiente para todos os fins generosos, está livre de qualquer sombra de culpa ou reprovação”.56 O que ele chama luxo vicioso parece ser o que entendemos por monomania ou idéia fixa. Não deixa de lembrar também Luís XIV e Versailles. A idéia que nos vem, por exemplo, é a de um jogador cuja paixão foi levada a tal ponto que absorve toda sua vida e drena todos os seus bens. Mas, nem nesses casos, Hume considera o luxo como “o pior dos males da sociedade política”.57 A análise de Hume centraliza-se num ponto de vista socioeconômico. Os homens, desde que deixaram o estado selvagem onde viviam principalmente da caça e da pesca, dedicaram-se à agricultura, que de início ocupou a parte mais numerosa da sociedade. Mas, o aper­ feiçoamento da técnica levou ao estado em que bem poucos homens, proporcionalmente, são necessários para garantir a subsistência dessa mesma sociedade. Todo o problema, diz Hume, está em o que fazer com esse excedente de mão-de-obra da agricultura. Pode-se usá-lo ou para o engrandecimento e o poder do Estado (exércitos, frotas) e o aumento de seus domínios, ou pode-se usá-lo para a produção de ma­ nufaturas e objetos mais refinados. Alguns Estados antigos preferiram a primeira via e só se tomaram poderosos exatamente pela “ausência do comércio e do luxo”.58 Mas esses casos são excepcionais e não instau­ ram uma regra e, neste caso, podemos seguramente dizer que “a políti­ ca antiga era violenta e contrária ao curso natural e comum das coisas”.59 Já que tudo no mundo é “adquirido pelo trabalho”, causado pelas nossas paixões, e é natural que toda pessoa goze “dos frutos de seu trabalho, em plena posse de todo o necessário e de muitas das comodidades da vida”.60 E esse é o “curso comum das coisas humanas” e a boa política consiste em “concordar com a inclinação comum da humanidade e dar-lhe todos os melhoramentos de que é suscetível” e, conforme o “curso natural das coisas, a indústria, as artes e os negócios aumentam tanto o poder do soberano quanto a felicidade dos súditos e é política violenta aquela que engrandece o público à custa da pobreza dos indivíduos”.61 É sob essa ótica que os indivíduos conseguem 41

realizar sua felicidade pois os homens, quando a indústria e a técnica florescem “mantêm-se em ocupação constante e desfrutam da própria ocupação como sua recompensa, bem como dos prazeres que são o fruto do seu trabalho”.62As vantagens de se seguir as inclinações natu­ rais dos homens são múltiplas: quanto mais se requintam no prazer, menos se abandonam ao excesso de qualquer tipo.63 Essa produção e consumo desses artigos ornamentam a vida multiplicando as satisfações inocentes, e são úteis também à sociedade porque produzem não só um excesso, que pode ser estocado em caso de necessidade futura, como também mantém uma mão-de-obra potencial disponível ao Estado, caso ele venha precisar dela, já que ela não produz o essencial.64 Distribui melhor a riqueza no interior da sociedade, e “onde as riquezas estão na mão de poucos”, estes detêm todo o poder e, inevitavelmente, conspirarão para deixar todos os encargos aos pobres.65 E falso, enfim, pensar numa opção frente ao problema de excedente provocado pelo excesso de refinamento da agricultura. E mais: mesmo nos estados onde o Estado era o valor único e primeiro, não foi o luxo o causador de suas desordens. Este “não possui a tendência natural de acarretar a venalidade e a corrupção”.06 Suas desordens procederam de um “governo mal formado e da extensão ilimitada de suas conquistas”.67 Essa é a fonte de seus males e é por isso que o luxo, mesmo vicioso, não é o pior dos males num Estado. De nada adianta combater o luxo. Ele por si só é geralmente beneficioso ou, pelo menos, inócuo. De um só golpe Hume praticamente inocenta o luxo, insere-o na cadeia natural dos eventos sociais (econômicos, seria melhor) e desloca o acento das neces­ sidades do Estado para as necessidades do indivíduo. O luxo agora é a conseqüência natural das matrizes passionais do ser humano — desejo de ação, de prazer, e de consumo — e insere-se no plano econômico, ligado ao desenvolvimento da indústria e do comércio. Ele é um dos ele­ mentos essenciais do desenvolvimento do corpo produtivo. Dupla ação, portanto, alocação do luxo como um problema econômico (e desliga­ mento da esfera moral), que deve ser tratado como tal, e sinalização de que os males do Estado têm por causa — não o luxo — mas algo que está na esfera do político. Se ainda pode-se dizer com Hume que o “luxo” é uma palavra polissêmica e que se trata, portanto, de uma questão de delimitação, ninguém melhor que Hume até então realizou esta operação de precisão do conceito. Pode-se argüir indefinidamente sobre onde o luxo começa e onde acaba, argumentai- sobre a relatividade geográfica e histórica; o 42

fato c que seu único ponto sólido de ancoragem é o econômico, susten­ tado por uma teoria do valor baseada em constantes da natureza humana. 11. Depois da abordagem humeana, ao que parece, assistimos a uma espécie de calmaria nessa discussão que só será realmente reavivada nos anos 70. Nesse ínterim, Montesquieu dedica-se em vários pontos do Espírito das Leis ao problema, sobretudo no livro VII. Mas o tom já é bem outro que o das Canas Persas. Não que condene o luxo, ao contrário. Mas a apologia é mais que discreta.68Vincula estreitamente, no entanto, o luxo e a Monarquia.6'' Uma outra observação de Montesquieu é interessante: “O luxo está sempre em proporção com a desigualdade das fortunas. Se em um Estado as riquezas são igual­ mente partilhadas, ali não haverá luxo; pois ele só está fundado nas comodidades que as pessoas se dão pelo trabalho dos outros” Desde M andeville, tem-se clara consciência da distinção de classes e sua necessidade, num regime econômico baseado em novas premissas. M as nenhum dos autores parecia m uito preocupado com isso, e nem com o destino das classes m enos favorecidas. N a verdade, propugnavase que se deveriam m anter no seu lugar e sob rigorosa e estrita vigilân­ cia. M ontesquieu m esm o não emite nenhum juízo de valor. Quem, prim eiro, ao que parece, foi m ais longe nessa questão (no âm bito dos defensores do luxo) parece, para variar, ter sido Voltaire, que extrai um a das conseqüências fundam entais para a abordagem de um nível da questão (e aqui está o segundo ponto onde é original):

“Se entendemos por luxo tudo aquilo que é além do necessário, o luxo é uma conseqüência natural dos pro­ gressos da espécie humana; e para raciocinar conse­ qüentemente, todo inimigo do luxo deve crer, com Rousseau, que o estado de felicidade e de virtude para o homem é aquele, não de Selvagem,n mas de orangotango. Sentimos que seria absurdo ver como um mal comodi­ dades das quais todos os homens desfrutariam; por isso, em geral, só se dá o nome de luxo às superfluidades das 43

quais apenas um pequeno número de indivíduos pode des­ frutar. Neste sentido o luxo é uma decorrência necessária da propriedade, sem a qual nenhuma sociedade pode sub­ sistir, e de uma grande desigualdade entre as fortunas, que é a conseqüência não do direito de propriedade, mas de más leis. São portanto as más leis que fazem nascer o luxo, e são as boas leis que podem destruí-lo. Os moralis­ tas devem dirigir seus sermões aos legisladores, e não aos particulares, porque está na ordem das coisas possíveis que um homem virtuoso e esclarecido tenha o poder de fazer leis razoáveis, e porque não é da natureza humana que todos os ricos de um país renunciem, por virtude, a obter a preço de dinheiro desfrutes de prazer e vaidade” .72 Esse texto é revelador, em primeiro lugar, da distância que foi per­ corrida nessa discussão e que Voltaire espelha tão bem. Uma certa acepção do termo luxo já não se discute mais: sua bondade, sua utili­ dade e seu caráter natural à espécie humana. Em segundo lugar, se há um sentido em que o luxo pode ser condenado (“Neste sentido...") é aquele supérfluo, que é o privilégio de uma minoria rica. Mas isso diz respeito, diretamente, à legislação e não à moral privada. Trata-se de um problema de política, não de ética: da boa gestão e distribuição dos bens que são gerados e produzidos na sociedade. Essa espécie de luxo condenável nem é má em si mesma, como veremos, já que é um efeito e, mesmo como efeito, nem sempre é condenável. 12. Isso ficará claro no extenso verbete “Luxo” da Enciclopédia.73 St.-Lambert parte de uma definição mínima de luxo: “Ele é o uso que se faz das riquezas e da indústria para . se conseguir uma existência agradável” .1A Em seguida, realiza um longo exame dos argumentos que foram arrolados pró e contra o luxo. Não vale a pena deter-se neste ponto na medida em que não apresenta novidade em relação ao que já discuti­ mos. A primeira coisa interessante a constatar é a conclusão que 44

extraí após esse balanço: tanto os elogios como as censuras que se fazem ao luxo não são contraditos pela história. O que significa dizer que a história não é um bom “topos” para se trabalhar a questão. É preciso encará-la sob outro ângulo. E a maneira como ele a coloca pode ser expressa da seguinte forma: se os apologistas do luxo vêem neíe o motor dos progressos das nações, enquanto que seus detratores vêem nele o motor de sua decadência, e como ambas as coisas podem ser constatadas no plano histórico, não se estaria tomando como causa e como efeito algo que não é nem uma coisa nem outra?” E, logo em seguida, afirma: “O interesse pessoal, sem que ele se tenha tornado amor pelas riquezas e pelos prazeres, enfim, se tornado estas paixões que levam ao luxo, já não produziu, seja junto aos magistrados, seja junto ao soberano ou ao povo, mudanças na constituição do Estado que o corrompe­ ram? Ou este interesse pessoal, o hábito, os prejuízos impediram de fazer mudanças que as circunstâncias ti­ nham tornado necessárias? Enfim, na constituição, na administração, não existem defeitos, imperfeições que, muito independentemente do luxo levaram à corrupção dos governos e à decadência dos impérios?” ,76 Percebe-se através desse texto (e é interessante acompanhar os exemplos históricos que St.-Lambert fornece) qual a mudança, a guina­ da que ele está operando: em vez de considerar o luxo como um motor fundamental, seja para o bem, seja para o mal, como se tinha feito até então, coloca a questão nos seguintes termos: não haveria, por trás desse motor aparente, um outro primordial, este sim, responsável pelos bens e pelos males dos homens, isso que denominamos o interesse pessoaP. E essa produção do supérfluo (tão elogiada ou denegrida) não é um efeito concomitante? Operação dupla: desvincula-se o luxo como causa e simultaneamente o enraíza em algo mais originário da natureza humana. Começa a se explicitar de forma clara algo que, na verdade, já está presente em Mandeville: que existe um núcleo originário, algo que habita as entranhas dos homens e que, este sim, deve ser considerado. Tomemos um outro texto de St.-Lambert: 45

“O luxo tem como causa primeira este descontentamento com nosso estado; este desejo de ser melhor, que existe e deve existir em todos os homens. Nestes, ele é a causa de suas paixões, de suas virtudes e de seus vícios. Este desejo deve necessariamente fazê-los amar e procurar as riquezas; portanto, o desejo de enriquecer-se deve contar entre os motivos de todo governo que não é fun­ dado na igualdade e na comunidade dos bens; ora, o objeto principal deste desejo deve ser o luxo; portanto, existe luxo em todos os Estados, em todas as sociedades: o selvagem tem sua rede, que ele compra por peles de animais; o Europeu tem seu canapé, seu leito; nossas mulheres usam azul e contas de vidro" .77 Esse texto, precioso, e ao qual teremos de voltar, mostra clara­ mente que existe um desejo natural de produzir e gozar dos bens, das comodidades, o que excita a produção das artes e indústrias. É esse desejo que conduz os homens a instalarem-se no luxo e, num governo onde a propriedade está instalada, esses desenvolvimentos acontecerão inevitavelmente. Como a sociedade igualitária é uma utopia e algo contra essas inclinações naturais, elas até podem cristalizar-se historicamente, mas estão condenadas ao fracasso, porque não seguem o curso natural. St.-Lambert leu Hume, que é citado7“ e soube aproveitar as lições do filósofo. Os homens podem produzir um excesso e querem usufruir dele. Nada mais natural. O importante, nos avisa, é, de agora em diante, não confundir mais as coisas. Sc há uma raiz dos males e dos benefícios, esta se encontra na noção chave de interesse próprio e, para bem administrá-lo — sendo fiel discípulo de Shaftesbury e seu tradutor, Diderot79 — basta subordiná-lo ao “espírito de comunidade que torna o luxo benéfico e indefinido temporalmente”. Deve-se também ligá-lo às outras paixões, formando assim um todo, uma cadeia coerente, coesa e funcional. Como diz Hubert: “Saint-Lambert vangloria-se de ter demonstrado que o luxo contribui para a grandeza e a força dos estados, e que é preciso encorajá-lo, esclarecê-lo, mas também 46

dirigi-lo. O luxo desenfreado leva a sobrecarregar os campos de impostos, e despovoá-los, a exagerar a desigualdade das riquezas. O luxo moderado enriquece o estado, desenvolve-o e sustenta-o. Este não é ameaça­ do enquanto as paixões que conduzem ao luxo per­ manecem subordinadas ao espírito de comunidade” .8n Assim, são os estados mal administrados que conduzem esse efeito concomitante do social — o luxo — aos descaminhos, assim como os bens administrados farão com que ele só produza efeitos benéficos. Nos primeiros ele se torna excessivo todas as vezes que os particulares sacrificam, absolutamente, ao seu fasto e às suas comodi­ dades e fantasias, os seus deveres para com os interesses da comu­ nidade. Mas é preciso ter consciência de que, nestes casos, os particu­ lares assim conduzem porque há um grave defeito na constituição do Estado. Agora, o luxo está inocentado: “Visto que o desejo de enriquecer e ode desfrutar de suas riquezas estão na natureza humana desde que ela está em sociedade; visto que estes desejos sustentam, enri­ quecem, vivificam todas as grandes sociedades; visto que o luxo é um bem, e que por si mesmo ele não faz nenhum mal, não se deve portanto, nem como filósofo nem como soberano, atacar o luxo em si mesmo” O texto de St.-Lambert enfeixa numa unidade admirável um con­ junto de teses que estavam mais ou menos esparsas entre os autores que analisamos até agora. Praticamente recupera todas e essa síntese pode ser esquematizada nos seguintes pontos principais: 1Ele opera um deslocamento da questão mostrando que o luxo enquanto tal é um efeito concomitante de causas mais profundas e que, dependendo da ação dessas causas, pode produzir efeitos benéfi­ cos ou não; 47

2- O luxo, enquanto tal, é inerente ao estado de sociedade e, enquanto esta existir, ele a acompanhará, a não ser nos casos de exceção, não naturais; 3- Quando produz efeitos nocivos, não é por si mesmo, mas em conseqüência da má administração do Estado, que não está sabendo guiar, canalizar bem o interesse próprio;*2 4- Mostra que o luxo é o resultado de certos desejos oriundos de uma particular disposição da natureza humana, a qual ele vem exata­ mente preencher.*'

13. Partimos de uma sugestão de R. Hubert84que dizia que o desen volvimento da questão do luxo era uma das mais características para se compreender a transformação das idéias no século XVIII. Chegou o momento de verificarmos se ela é correta ou não. E, ao que tudo indi­ ca, a aposta valeu a pena. O exame da “querela do luxo” fornece-nos um conjunto precioso de indicações que, num primeiro momento, con­ figuram-se ou, pelo menos, apontam para um conjunto de interrogações cujas respostas não brotam ao simplesmente serem formuladas. Em primeiro lugar, é interessante notar que essa questão perdurou por mais de um século. A lentidão é impressionante. Na verdade ela não terminou por volta do início do último terço do século XVIII. Ela conti­ nuará por longo tempo.” E, vez por outra, ela reaparece periodicamente. Quando falamos em lentidão não estamos nos referindo ao tempo que foi necessário para resolver a questão. Esse é um dos problemas que provavelmente subsistirá enquanto o mesmo fizer a humanidade e depende, na escolha que o sujeito fez, de um conjunto de opções prévias radicais no plano filosófico. Assim, quando falamos em lentidão, esta­ mos nos referindo a uma outra coisa. O que foi extremamente lento foi o tempo necessário para que os apologistas do luxo pudessem formar um corpo coerente de argumentos que tornasse sustentáveis suas teses. Poder-se-ia utilizar o operador “resistência” para tentar explicar o fenômeno. De fato, a “Resistência das Mentalidades” ao novo, essa viscosidade que nos liga fortemente ao já conhecido, essa inércia na­ tural a que estamos submetidos tem muito a ver com tudo isso. Mas,

no caso, pensando bem, isso só serve realmente para recuarmos o problema, não para resolvê-lo. O que estamos querendo saber é exata­ mente porque a explicitação dos argumentos que sustentam os defen­ sores do luxo levou tanto tempo para se articular de forma coerente, e já estamos dando por suposta essa resistência. Estamos mais interessa­ dos em suas razões. Foi de uma forma trabalhosa que se conseguiu perceber algo que para nós é uma verdade elementar: a produção e consumo do supérfluo é um fenômeno econômico que tem implicações morais e não vice-versa. Por outro lado, e aqui talvez esteja realmente um dos focos centrais do problema, o desenrolar da análise da questão vai progressivamente apontando para o fato de que existe algo, algu­ ma coisa, uma espécie de atributo da natureza na qual esse fenômeno está incrustado. Isso foi a duras penas aceito.86 Já vimos que foi St.-Lambert, ao que tudo indica, o primeiro a mostrar, de forma coerente e sistemática, que esse gosto pelo supérfluo é uma inclinação natural do ser humano, que determina seus desejos e paixões. Mandeville, no entanto, ainda sob uma ótica um pouco racionalista, já afirma que o progresso dos conhecimentos humanos leva inevitavelmente à explicitação progressiva e indefinida de nossas necessidades: “A medida que (os homens) aumentam seus conhecimen­ tos, os desejos também aumentam, multiplicando suas necessidades e seus apetites...” .“7 E um pouco mais à frente: "... enquanto nos aplicamos em cobrir a infinita va­ riedade de nossas necessidades que sempre se multipli­ cam na medida em que se amplia nosso conhecimento e aumentam nossos desejos” Assim, a natureza humana tem um impulso natural, uma incli­ nação pelo luxo, esse gosto pelo supérfluo que parece ser inerente à sua essência. Daí porque não ser correto falar em homens não luxuo­ 49

sos: isso só acontece em condições excepcionais ou anormais. O exemplo de Ferguson, já citado89, onde evoca “os fantásticos adornos de plumas dos selvagens” é dos mais significativos. Mas, mais impor­ tante, é a conclusão que Ferguson extrai: “Devemos buscar os caracteres dos homens nas quali­ dades da mente, não na espécie de alimentação ou na forma de se vestir’’ Trata-se, portanto, de um móvel, de uma mola que é inerente ao homem, que está agindo continuamente, em progressão geométrica tem­ poral, na medida em que seus conhecimentos vão avançando. Estes pos­ sibilitam a antevisão, pela imaginação, de bens dos quais o sujeito pode gozar os prazeres, ter cada vez mais novos prazeres. O luxo é o efeito dessa inclinação natural que os homem têm de antecipar, pela imagi­ nação, através daquilo que a razão lhe trouxe de novo no seu plano, bens que até agora haviam lhe escapado. Ela é uma conseqüência da nossa capacidade de fantasiar. Voltaire percebeu isso com muita clareza: "... é a fantasia dos homens que dá valor a essas coisas frívolas; é esta fantasia que faz viver cem operários que emprego; é ela que me dá uma bela casa, uma carrua­ gem cômoda, cavalos; é ela que excita a indústria, sus­ tenta o gosto, a circulação e a abundância” 14. Chegamos, assim, a alguns pontos centrais que, no entanto, são ainda extremamente obscuros. A análise da “querela do luxo” aponta para determinados atributos do desejo, da imaginação, da fan­ tasia que se enlaçam para formar a idéia de um processo que não tem fim, indefinido, ilimitado, que nunca estanca e sempre avança. E difi­ cilmente nos textos considerados clássicos sobre o assunto encon­ traremos alguma luz. Tomemos, por exemplo, o tema da imaginação: de Locke a Holbach, ele é sempre definido como o poder do espírito de reproduzir sensivelmente na mente objetos ausentes. O que desco­ brimos, no entanto, a respeito da mesma faculdade, quando Holbach 50

faz seu requisitório contra o luxo? Que é insaciável, ilimitada, inces­ santemente inquieta: “Todos os homens têm o desejo de imitar, de igualar e ultrapassar àqueles a quem supõem ter grandeza, poder, bem-estar. O pobre imagina sempre que aquele que ele vê soberbamente vestido, levado por uma carruagem ele­ gante, rodeado de um grande número de criados, deve ser um homem feliz; ele despreza a si mesmo e se estima muito infeliz por ser obrigado a trabalhar para viver; ele não duvida de que aqueles que, sem fazer nada, podem satisfazer amplamente todas as necessidades da vida sejam seres a cuja felicidade nada deve faltar. Desde então ele fica descontente com sua sorte, ele deseja ser rico, persuadido de que basta sê-lo para desfrutar de uma felicidade completa. Os desejos, primeiramente limita­ dos, são perpetuamente atiçados pela imaginação, pela emulação, pela comparação que ele faz entre seu estado e aquele dos outros; eles terminam por não conhecer mais limites; e pouco a pouco vereis que o homem, que no começo só aspirava a uma fortuna módica, ainda não está satisfeito no seio das riquezas as mais enormes, porque sempre vê alguém que crê mais opulento e mais feliz do que ele".92 É exatamente essa ilimitação, essa insaciabilidade, essa incessante inquietude, que faz com que se busque cada vez mais o gozo de novos prazeres, que devemos interrogar mais de perto. Como na verdade se ca­ racterizaram e se articularam esses elementos no transcorrer do século XVin? E claro que a caracterização mais comum e correta da Ilustração é a de que foi a época da emancipação da razão de suas inúmeras tutelas. Época, por excelência, do exercício crítico da razão contra os pré-juízos que habitam a mente dos homens em todos os campos: religião, política, falsa moral ascética etc. etc. Sem dúvida o Iluminismo foi o tempo dessa prática. Mas, como toda época, teve duas faces. Luzes, mas também som­ bras. O que deve nos chamar a atenção aqui é muito mais esse outro lado da época. Tentar desenterrar e desentranhar esse outro lado do século 51

XVm, até agora pouco explicitado, onde o imaginário, a fantasia e o desejo governam subterraneamente o discurso dos homens. Há um aves­ so do século XVIII do qual Sade, sem dúvida, é uma das expressões. Essa inquietude do desejo, estimulada pelo imaginário, tem segu­ ramente como tela de fundo, ou melhor, como alicerce, uma certa con­ cepção do homem, da natureza humana, uma antropologia, digamos, que tem como um de seus eixos centrais a idéia de uma certa inade­ quação entre dois campos. Supõe uma certa necessidade indetermina­ da e o campo da satisfação. O ponto é que, ao que parece, não se trata nunca da natureza determinada de uma necessidade, mas muito mais de uma indeterminação, que leva sempre à insatisfação. Insatisfação que se caracteriza, por seu lado, exatamente na medida em que se ma­ nifesta como necessidade do novo. Assim, devemos distinguir duas séries para evitar qualquer con­ fusão. Há, em primeiro lugar, a série necessidade — desejo — satisfação. Série cíclica, repetitiva, monótona, que se espelha no campo vital. Mas há, em segundo lugar, uma outra série, que é a que está chamando a atenção, que evidentemente não se coloca no ciclo biológico das chamadas necessidades vitais. É exatamente esta última que parece ser uma conquista do homem, não negando a primeira, mas instaurando uma outra, superposta e suplementar; fazendo com que, nesse nível agora, essa adequação quase perfeita que existe nos animais entre necessidade e satisfação seja rompida e se instaure um novo tipo de ciclo, na forma de uma espiral indefinida de desejos e insatisfações fugazes, que provo­ cam novos desejos e assim indefinidamente. Chegamos assim a uma fór­ mula mais complexa: ... desejo — necessidade indetenninada — elabo­ ração imaginária — concretização do objeto — satisfação fugaz — dese­ jo... É esse ciclo aberto, por assim dizer, que chama a atenção. E é aqui que parece estar a ruptura do especificamente humano. Retomemos, então, a questão: a análise do problema do luxo nos aponta para esses indicadores. Sendo assim, que concepção da natureza humana está sendo arquitetada aqui? Quais são as estruturas fundamentais do desejo, da imaginação, da fantasia etc., para que eles se caracterizem dessa forma? 15. Uma primeira tentativa de resposta a essas questões, ou, pelo menos um esboço, estaria nas seguintes considerações. Já que estamos tratando de ciclos naturais (ciclos biológicos, característicos dos animais, mesmo os que vivem em associação, como as abelhas) e ciclos não-na52

turais, característicos dos homens (já que não se pode conceber a vida humana sem eles, a não ser em condições patológicas, como vimos), a grande oposição estaria portanto (e não é nisso que se insiste tanto nessa discussão sobre o luxo?) entre o natural e o artificial. Mas, poder-se-ia questionar: não se trata, em última análise, de uma falsa oposição, no caso em questão? Foi o partido que tomou Ferguson no seu Ensaio sobre a História da Sociedade Civil. A arte, segundo Ferguson (não se esque­ cendo de tomar esse termo na acepção que ainda tem no século XVIII de artes mecânicas, tecnologia, além de arte, propriamente dita, mais co­ nhecida como belas-artes), estaria incrustada na natureza humana, faz parte integrante dela, de modo que não há o menor motivo para espanto ao se detectar essa diferença básica entre homens e animais: “Falamos de arte corno algo distinto da natureza, mas a arte é em si mesma natural ao homem. Ele é, em certa medida, o artífice de seu próprio ambiente como também de sua fortuna e está destinado, desde sua época mais jovem, a inventar e idear. O homem aplica o mesmo talento a uma variedade de propósitos e atua quase da mesma forma em situações muito diferentes. O homem sempre estará progredindo nessa matéria e leva sua intenção a qualquer lugar que vá, seja através das ruas de uma cidade populosa ou nos meandros de um bosque. Enquanto parece igualmente preparado para cada situa­ ção é, pela mesma razão, incapaz de permanecer em uma. E, ao mesmo tempo, obstinado e volúvel, queixa-se das inovações e nunca se sacia com a novidade; está eternamente ocupado em reformar e continuamente atado aos seus erros. Se vive numa cova, trocará por uma casa e se já a edificou, trocará por uma maior... Seu sím­ bolo é a corrente de um riacho não um lago estancado” A idéia de Ferguson é evidentemente engenhosa. Insere, encapsula, o artifício nas malhas da estrutura da natureza humana e, assim fazendo, faz com que o problema se dissolva. É inútil fazer a apologia ou a con­ denação do luxo: trata-se de um dado da natureza humana sobre o qual qualquer discurso, laudatório ou não, é vão. Sem dúvida, operando desse 53

modo, Ferguson ajunta mais água ao moinho dos defensores do luxo, retirando a questão do plano teológico-moral e laicizando-a. Trans­ forma-a numa questão de fato. Mas, com relação à questão colocada, isso nos faz avançar muito pouco; quer dizer, afirmar que a capacidade técnica é algo inerente à natureza humana não parece levar à resposta que se procura. Basta que pensemos nos clássicos exemplos que vêm de longe mas que abundam no século XVIII, sobretudo na tradição liberti­ na,94 dos animais que vivem em associação (abelhas, castores etc.). Eles, sem dúvida, possuem um nível de arte (em muitos casos bastante inve­ jável sob um determinado ponto de vista) que também está inserido, que faz parte de sua própria natureza. Mas, nem por isso, nota-se neles essa inquietude (esse conceito é capital, como veremos mais adiante), essa insaciabilidade, essa insatisfação permanente do desejo e do imaginário, característica do ser humano, como apontamos acima. Na verdade, se damos a devida atenção ao texto de Ferguson, percebe-se que seu problema não era bem o que estamos tratando; que, para ele, este aparece como secundário. Ele não está procurando responder: por que o desejo e o imaginário se configuram de tal forma? Mas sim esta outra: os homens têm meios para satisfazer seus desejos? E sua resposta é: faz parte, como componente da natureza humana, a posse desses meios para suprir suas insatisfações. A mobilidade dos seus desejos encontra sempre meios para a satisfação dos mesmos. O que não o preocupa é a indagação do porquê o ser humano se carac­ teriza dessa forma. Sem dúvida, fornece um indicador importante e inegável ao fundir a capacidade técnica na natureza humana. Mas isso é o requisito para se trabalhar a questão, não a solução. Na verdade, ao que tudo indica, para se tentar não responder mas esclarecer um pouco melhor essa questão — e não pretendemos mais que isso — será necessário operarmos um recuo no tempo e empreen­ der a mobilização de um material muito diversificado, o que não deixa de ser assustador. E que, essa é a nossa impressão, para uma com­ preensão mais clara desse problema, teremos que abordar não uma (como se é levado a pensar), mas duas enormes mutações conceituais que ocorreram (se se quer dar vazão à irresistível mania de datação): a primeira, basicamente a partir da segunda metade do século XVII; e a segunda, no interior do próprio século XVIII. Nunca, talvez, mudanças de tal envergadura ocorreram em tão pouco espaço de tempo, arrui­ nando uma visão milenar das coisas e reestruturando todo o campo perceptivo e mental dos homens. A rigor, sabemos muito pouco a 54

respeito disso tudo (quando se trata dos “porquês”), e o pouco que sabemos está permeado por dúvidas. As linhas gerais do processo co­ nhecemos. Trata-se dessa lenta mas inexorável laicização do pensa­ mento acidentai — sem implicar um retomo aos antigos — que afetou, no âmago, nossa compreensão do mundo e dos homens. O que é extremamente embaraçoso, após tantos e tantos trabalhos, é o estado de ignorância em que nos encontramos frente a questões, às vezes, ele­ mentares. Não pretendemos, é claro, realizar nenhuma abordagem ino­ vadora, mas apenas, com a maior economia possível, enquadrar os problemas em função de nossas preocupações.

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NOTAS

1 R. Hubert, Les Sciences Socialedans i Encyclopédie, Genève, Slaktine Reprints, 1970 (reimpressão da edição de Paris, 1923), p. 305-6. 2 Voltaire, Oeuvres Comptâtes, Paris, Garnier Frères, 1883-1885, 52 vols.; vol. X, p. 83-87 e 90-93, respectivamente. Todas as citações de Voltaire, salvo menção em con­ trário, reenviam a essa edição. 3 Ibid., vol. VIII, p. 152. 4 M. Mersenne, Questions Inouyes, Paris, Fayard, 1985, questão XII, p. 39. 5 ibid., p. 39-40. 6 Versos 30 e scg. 7 Não 6 nosso propósito aqui, c claro, acompanhar todas as peripécias dessa intrinca­ da e complicada história. Para isso, o leitor pode consultar o livro de A. Morize, L’Apologie du Luxe au XVIII' Siècle, Paris, 1909, que cobre bem o terreno francês. 8 Fénelon, Les Aventures de Téicmaque, Paris, Éditions R. Simon, s.d., livro VII, p. 118. Um poueo mais adiante diz: “Por força de querer parecer grande, haveis pen­ sado em arruinar vossa verdadeira grandeza. Apressai-vos em reparar esses erros, suspendei todas as vossas grandes obras, renunciai a esses faustos que arruinariam vossa nova cidade...” (X, p. 160). Comparar com a carta que Fénelon escreveu a Luís XIV, onde afirma; “Elevaram-vos até o céu por 1er apagado, diziam, a grandeza de todos os vossos predecessores, quer dizer, por ter empobrecido a França inteira a fim de introduzir na corte um luxo monstruoso e incurável” (“Lettre à Louis XIV"), in De l’Existence et des Attributs de Dieu et autres textes, Paris, 1861, p. 560. 9 Ibid.. XI, p. 190. 10 Ibid., XVII, p. 298: “Recordai-vos, oh Telemaco, que existem duas coisas perni­ ciosas no governo dos povos, às quais quase nunca se traz algum remédio: a primeira é uma autoridade injusta e muito violenta nos reis; a segunda é o luxo, que corrompe os costumes”. 11 Ibid., XVII, p. 299. 12 Ibid., V, p, 69. 56

13 Id., “Lettre à M. Dacier sur l’Occupation de l’Académie”, in Dialogues sur l’Élo­ quence, Paris, Gamier, s.d., § X, p. 165. 14 Id., “Lettre sur les Anciens et les Modems" (à La Motte) in De l’Existence et des Attributs de Dieu, ed. cit., p. 549. 15 Id., “Lettre à M. Dacier...”, in ed. cit. (nota 13), § X, p. J68. 16 Id., “Plan de Gouvernement”, § 7. Citado por Kaye, F. B. em sua “Introdução” à Fábula das Abelhas de Mandeville, México, FCE, 1982, p. LVI. 17 Id., “De l’Éducation des Filles”, in Dialogues sur l'Éloquence, ed. cit., p. 259-60. 18 Id., Les Aventures de Télémaque, ed. cit., VIII, p. 181-82. O grifo é nosso. 19 Id., “Dialogue des Morts”, in Dialogues sur l'Éloquence, ed. cit., p. 407. 20 La Bruyère, Les Caractères, Paris, Hachette, 1950, VII, § 21, p. 142. 21 Ibid. 22 Ibid., VII, § 22. 23 Ibid. 24 Ibid. 25 Ibid. Daí esse “extravio de certos particulares que, ricos graças aos negócios de seus pais, dos quais acabam de receber a herança, moldam-se pelos principes para seu guarda-roupas e para sua equipagem, excitam, por uma despesa excessiva e por um fausto ridícuio, a verve e a zombaria de toda uma cidade que acreditam deslumbrar, e assim arruínam-se por se fazer caçoar!” (VII, § 11). 26 Ibid., I, § 15, p. 37. 27 Ibid., “Discours sur Théophraste”, p. 24. 28 Ibid. 29 Ibid., p. 29. 30 Ibid. 31 Como não tivemos acesso direto aos textos de Bayle, todas as referências são indi­ retas. Pedimos, desde já, desculpas ao leitor. Nossas principais fontes foram a intro­ dução de Kaye à Fábula das Abelhas (cf. nota 15) e o texto de A. Morize, citado na nota 7. O texto de Bayle, acima citado, está em Réponses aux Questions d’un Provincial, cap. 7, obs. III, apud Morize, p. 46-7. 32 Bayle, Réflexions sur les Divers Génies du Peuple Romain dans les Diverses Temps de la Republique, Oeuvres I, p. 157, apud Morize, p. 53. 33 Bayle, Continuations des Pensées Diverses, § 124, apud Kaye, p. 282. 34 Bayle, op. cit., p. 365-66, apud Morize, p. 67. 35 Ibid. 36 Kaye, no texto citado, nota 15, faz uma história detalhada do texto, assim como de seus antecedentes e sua influência. É interessante lembrar que, se Mandeville foi objeto de tanta atenção, isso não nos deve fazer esquecer a quase profética carta 106 das Lettres Persanes de Montesquieu, que antecipa, com delicadeza e sutileza, grande parte dos argumentos que estão por vir nessa longa e tumultuada história. Mas o texto é de 1721 e, no que respeita Mandeville, só pode tê-lo influenciado nas edições posteriores, sobretudo a de 1729, e o essencial de seus argumentos já estava estabelecido nessa edição de 1714. 37 Tomo essa informação de L. Dumont, no seu livro Homo Aequalis, Paris, Gallimard, 1977, p. 85, ao qual expresso desde já minha dívida com relação à interpretação de Mandeville. 38 Mandeville, op. cit., p. 21. 57

39 Ibid., p. 129; Quanto à afirmação final do texto (“como de sua espécie”), as exten­ sas análises de Mandeville mostram, inequivocadamente, que devem ser reconduzi* das ao egoísmo e ao interesse próprio. Cf. Kaye, p. XXVI e seg. 40 Ibid.. p. 84. 41 Ibid., p. 94. 42 Ibid. 43 L. Dumont, op. cit., p. 89. Basta agora que, numa operação relativamente simples, insira-se o corpo dentro dessa esfera dos bens úteis para se compreender que esse deve ter sido um dos fatores da explosão da sexualidade na modernidade, apontada por Foucault, em contraste com o rigor e o cuidado com que era tratada entre os antigos. Neste ponto também Sadc nada mais fez que extrair as últimas conseqüências dessa posição. Quem não se lembra de sua cclebre frase, na Histoire de Juliette: “Ofereceime a parte de vosso corpo que pode me satisfazer por um momento e desfrutai, se isso vas agrada, daquela do meu que pode ser-vos agradável”; Paris, Tchou, VIII, 71. É preciso lembrar aqui a célebre frase de A. Smith: “Dê-me aquilo que eu quero e você terá isto aqui que você quer — esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que neces­ sitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que espe­ ramos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu interesse próprio. Dirigimo-nos não à sua humanidade mas ao seu egoísmo..."; Smith, A. Recherches sur la Nature et les Causes de la Richesse des Nations, Paris, Gallimard, 1976, p. 48. 44 Berkeley, Alcyphron, Madrid, Ed. Paulinas, 1978, p. 107. A critica de Berkeley está nas p. 113 e scg. 45 Por outro lado, já que felicidade e bondade não coincidem, começa-se a vislumbrar, delinear e se desenhar vagamente os personagens de Sade que, no fundo, também podem ser lidos como encarnações dessa tese. Justine, a ultravirtuosa Justine, no sentido ascético do termo, e cuja existência é um mar de infelicidades. Justine, boa c infeliz, Do outro lado, Juliette, essa verdadeira caixa dc Pandora ambulante, esse poço de todos os vícios imagináveis e, no entanto, feliz. Feliz, do começo ao fim. Sob esse Angulo, muito antes de ser uma “exceção monstruosa”, Sade é o acaba­ mento, no plano moral, dessa tendência (assim como A, Smith o é no plano econômi­ co). Esta leitura, se tem alguma validade, com relação à Sade, embora chegue a con­ clusões semelhantes, parte dc premissas bem diferentes das de Horkheimer e Adomo na Dialética do Uuminismo. B. Aires, SUR, 1971, p. 102 £ seg. 46 Mandeville, op. cit., in Observações; obs. P, no início, p. 108. 47 Voltaire, op. cit., sec. I, vol. XX, p, 45. 48 Mandeville, op. cit., obs. L, p. 67, no início. 49 Ibid. 50 Voltaire, Observações sobre 0 Comércio, o Luxo, a Moeda e os Impostos, XXII, p. 363-4. 51 Id., Le Siècle de Louis XIV. O exemplo que Voltaire dá é o da indústria de espelhos: vol. XIV, p. 530-1. Comparar com o Essai sur les Moeurs, II, p. 54 e segs. 52 Id., Dicionário Filosófico, in Oeuvres XX, sec. II, p. 47. 53 Ibid., vol. XX, p. 47. O argumento se baseia, é claro, em Aristóteles, e reaparece fre­ qüentemente na Antigüidade, sobretudo em Sêneca. Ele já está delineado nas Obseiyations..., cit. na nota 50. A mesma idéia aparece no poema “Sur 1‘Usage de la Vie”, X, 94-6: 58

“Saibam, meus amigos Que falando de abundância Eu cantei os prazeres Aqueles puros e permitidos E jamais a intemperança Eu não quero ensinar-lhes A arte pouco conhecida de ser feliz. Esse estado que tudo deve abarcar Está em moderar seus desejos”. 54 Hazard, P., O Pensamento Europeu no Século XVII!, Lisboa, Presença, s.d., vol. II, p. 212-13. 55 Hume, “Sobre o Refinamento das Artes” in Pelty Hume, Quesnay, São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 193. 56 Ibid.,p. 193. 57 A idéia repete-se no fim do ensaio: “Nenhuma satisfação, ainda que sensual pode ser, por si só, considerada viciosa. Uma satisfação só é viciosa quando monopoliza toda a despesa de um homem...'' (p. 198). O par vício/virtude está em Hume mais enraizado no econômico do que no mora!, propriamente diío. A citação do texto está na página 194. 58 Hume, “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 186-7. 59 Ibid., p. 188. 60 lbid., p. 191. 61 Ibid., p. 188. 62 Hume, “Sobre o Refinamento...”, ed. cit., p. 194. 63 Ibid., p. 195. 64 Id., “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 188-9. 65 lbid., p. 191. 66 Id., “Sobre o Refinamento...”, ed. cit., p. 197. 67 Ibid. 68 O que não fez com que escapasse de críticas pesadas, bem mais tarde, por parte de D. de Tracy no seu Commentaire sur l'Esprit des Lois de Montesquieu (Genève, Slaktine Reprints, 1970), publicado originalmente em 1811 nos Estados Unidos mas que, segundo o testemunho do autor, já circulava desde 1807. A critica de Tracy encontra-se nas páginas 79 e segs. 69 Montesquieu, “De 1’Esprit des Lois", in Oeuvres Completes, Paris, Plêiade, vol. II, Livro VII, cap. IV, p. 436-7. O que servirá para Holbach elaborar duras críticas ao luxo (cf. nota 86). 70 Ibid., L. VII, cap. I, p. 332. 71 Voltaire já tinha lido o Ensaio sobre a História da Sociedade Civil de Ferguson? A menção do selvagem leva a suspeitar. Com efeito, lemos no texto de Ferguson que é inúti! dizer que o cidadão civilizado é débil por alguma parte de sua equipagem, a vestimenta, por exemplo. Isso revela-se também no: “índio por seus fantásticos adornos de plumas, suas conchas, suas peles de várias cores" e pelo tempo que passa arrumando-se (Ferguson, obra citada, Madrid, IEP, 1974, p. 311). 72 Voltaire, Dictionnaire Philosophique, ed. cit., v. XX, p. 48, nota 1. O grifo é nosso. 73 O verbete está no volume IX da Enciclopédie. Durante muito tempo esse texto foi atribuído a Diderot. Recentemente um autor (Gusdorf, Les Príncipes de la Pensée 59

au S iècle d e s L um ières, P aris, P ayot, 1976) ainda lhe atribui a p aternidade. O texto, na v erd ad e, é de auto ria de S t.-L am bert. Sobre isso ver R. H ubert, op. cit., p. 305 e seg., e o tex to de J. P ro u st, D id erot e t VEnciclopédie, P aris, A. C oiin, 1967, p. 538, n. 122. O texto co n sta, ainda, d a e dição das obras de D iderot de B rière (18213) e da de A ssezat-T o u m eau x (1875-77), no vol. XV. Por razões de com odidade pesso al, citarem o s o te x to d a e d iç ã o d e B rière. vol. X V II, p. 235-76. N esse m eio tem po, H elv étiu s trato u do p roblem a do luxo (no cap. III do liv ro 1) no seu livro D e VE sp rit (Paris, M arabout, 1973, p. 30 e seg.). V oltarem os a este ponto quando tratarm os d esse autor. 74 S aint-L am bert, Verbete, “L u x e”, ed. cit., p. 235. 75 Ib id ., p. 241, in fin e . 76 Ibid., p. 242. O prim eiro g rifo é nosso. 77 Ib id ., p. 235. 78 Ibid., p. 240. 79 Shaftesbury, “A n Inquiry C oncening Virtuc or M erit”, in British M oralista, Oxford, 1969, vol. I, p. 175 e seg.; D iderot, “Essai sur le M érit et la Vertu”, in O euvres de D id ero t, Paris, Brière, 1821, vol. I, p. 43 e seg. 80 R. H ubert, op. cit., p. 307. 81 S l.-L am bert, op. cit., p. 273. X2 Ibid.'. “ O ra, cm todas as partes o nde se v ê o despotism o, por que procurar outras c ausas de corrupção?” (p. 242). 83 D aqui por diante, do ponto de vista q ue nos interessa, pouco se adiantará n essa dis­ cussão. Beccaria, no Tratado do s D eütos e das P enas (R io de Janeiro, Ed. Ouro, s.d.), havia distinguido (o texto é de 1764) entre “ luxo de ostentação” e “luxo de c om odidade” (distinção que fez m oda), defendendo o segundo e condenando o prim eiro. H elvétius que, de um a concepção que pendia para o negativo no seu De I'Esprit (cf. n o ta 7 3 ), retom a a distinção de B eccaria (o qual se dizia discípulo de H elvétius) e produz, na sua segunda g rande obra, D e 1'Homme, um a longa d iscussão sobre o tema. Nesse texto, centraliza m uito sua discussão na relação entre luxo e d espotism o, m ostrando que 6 neste últim o que está a origem dos males e que, nele, o luxo acaba sendo um paliativo, na m edida em que, nessa sociedade injusta e mal adm inistrada, oferece serviços aos m enos favorecidos. “É a m agnificência dos G randes que d iariam ente transfere o dinheiro e a vida para a classe inferior dos cidadãos” (D e 1'H om m e, Paris, F ayard, 1989, vol. II, p. 583). D e resto, com uma exceção q ue apontarem os logo m ais, não nos parece que chegue a nada original sobre o assunto e quando afirm a q ue “O luxo, por conseguinte, n ã o é em si m esm o um m al” (ed. cit., p. 588), só faz repetir o j á sacram entado. U m a frase, no entanto, faz com que se p erceba com o Helvétius captou um dos aspectos d o problem a:

“ O am o r p elo s su pérfluos foi, em todas as épocas, o m otor d o hom em ” (ed. cit., p. 587).

O único texto que deve se r levado em consideração, parece-nos, é o de D iderot (“Salon de 1767” , in O euvres C o m p lètes, ed. cit., IX , p. 137-53). O texto é difícil, cheio de nuan ces e, sobretudo, sua co m preensão é em baraçosa porque, em bora seu objeto explí-

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cito seja a relação das b elas-artes com o luxo, Diderot trabalha em vários níveis. Uma coisa é certa: D iderot m o stra m uito claram ente que o bom luxo (o luxo de c om odidade) é perfeitamente p en sáv el fo ra dos q uadros da prem issa do consum o cada v e z m aior e mais rápido. A qui D iderot e H um e estão longe um d o outro. R etom ando um título famoso, para D id ero t o d esenvolvim ento do luxo e d o capitalism o não são sinônim os. É perfeitamente possível p en sá-lo n u m a o rd em estritam ente fisiocrática que, aliás, é a p re ­ missa da sua análise. P ara nossos p ropósitos, a im portância do texto e stá p rincipalm ente aí. Mas ele bem m erece um a análise detalhada. 84 Ver o tex to referido na nota 1. 85 Basta lem brar a crítica d e D. d e Tracy, m encionada anteriorm ente. 86 D c q ualquer m aneira é sintom ático q ue d epois d e aproxim adam ente 1770 (colocamos

a data apenas p ara fixar as idéias), m esm o os críticos d o luxo já aceitam a idéia de que o luxo é u m a inclinação natural do ser hum ano. H olbach, p or exem plo, um crítico fer­ renho do luxo, q ue propunha leis rigorosas contra sua expansão, afirm a n a Ethocracie (G. Olms, 1973, cap. VIII, p. 134), num determ inado m om ento, o seguinte:

“L u tar con tra o lu x o introduzido em um povo é com bater um a paixão ineren te à n atu reza h u m a n a " (grifo nosso).

A mesma idéia já está p resente no Systèm e S o c ia l (G, Olms), 1969, vol. III, p. 63-65). Mesmo Tracy (op. cit., nota 68), esse ultra entre os ultras, acaba reconhecendo, às meias, esse fato:

M... o luxo, isto é, o gosto das despesas supérfluas é, até um certo ponto, o efeito de uma inclinação natural do homem para procurar incessan­ temente prazeres novos...” (ed. cit., p. 95).

O luxo, agora, para esses autores, tem o mesmo estatuto d o sexo: uma inclinação natu­ ral que deve ser reprimida. 87 88 89 90 91 92 93 94

Mandeville, op. cit., p. 133. Ibid., p. 246. C f. n o ta 71. Ferguson, op. cit., p. 311. V oltaire, L e M o n d e com m e il Va, XXI, p. 9. H o lbach, Systèm e Social, G . O lm s, 1969, T. m , p. 64-5. Ferguson, op. cit., p. 9-10. P o r exem plo, no tex to anônim o, L ’A m e M aterielle , Rouen, s.d., p. 80. Devo à amab ilidade d o Prof. R ob erto R om an o o conhecim ento d esse texto capital. Que ele enco n tre aqui m eu s agradecim entos.

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DESEJO

1. As mudanças operadas no universo mental dos homens na m o­ dernidade foram de tal monta que até hoje ainda tentamos entendê-las. Até os fins da Idade Média — salvo exceções — a representação do cosmos era hierárquica. De Platão até o século XV, aproximadamente — a obra monumental de Duhem o m ostra1— elaborou-se e sofisti­ cou-se um a concepção do m undo que perdurou por séculos. Concepção geocêntrica, de um universo esférico, que supunha uma divisão entre o mundo sublunar e supralunar, ambos submetidos a ordens diferentes, onde a noção de “lugar natural” ocupa um posto central e, em conseqüência disso, a noção de movimento retilíneo sem­ pre aponta para um a “desordem cósmica”, uma “ruptura de equi­ líbrio”2 e deve sempre ser passageira. Cosmos ordenado, fechado, hie­ rarquizado, onde cada objeto tem seu lugar determinado. Essa visão desmoronou-se em pouco espaço de tempo. Unifica-se o espaço, instaura-se o heliocentrismo e — sobretudo — a física matematiza-se com uma velocidade prodigiosa. Os sábios começam a pensar o universo em termos atômicos. Partículas que percorrem um espaço e um tempo determinados. Já não se pensa mais com as cate­ gorias da Escola. E, entre a Escolástica e o Mecanicismo, instala-se um naturalismo confuso e vago no Renascimento que, apoiado num a biocosmologia, estranha para nós, pensa o mundo em termos, por exem­ plo, de simpatias, antipatias, analogias, influências do supralunar sobre o sublunar. O mecanicismo, como mostrou Lenoble3, terá que enfrentar duramente esse adversário antes de triunfar.

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O espaço geometriza-se pouco a pouco, o movimento emancipa-se, o cosmos desmembra-se4 de um lado, e de outro unifica-se, porque não há um acima e um abaixo, regulado por normas diferentes. O universo homogeneiza-se. Perguntemo-nos, diz um autor, o que aconteceu quan­ do se passou a pensar em termos mecânicos coisas que até então eram representadas de forma teleológica; “quando as explicações teleológicas — explicações baseadas no conceito de utilidade e Bem — abandonamse definitivamente em favor da noção que as verdadeiras explicações do homem e de seu espírito, assim como as demais coisas, devem ser em termos de suas partes mais simples; o que ocorreu entre 1500 e 1700 para que pudesse cumprir-se essa revolução’7 As respostas não são fáceis de serem obtidas e até hoje tenta-se encontrá-las. M as não foi só com relação à representação do mundo físico que as coisas m udaram radicalm ente. O universo antigo é ordenado, fixo e hierarquizado, não apenas desse ponto de vista, mas de outros também . Sobretudo um que nos interessa particularm ente. Se exce­ tuamos o epicurism o, a antigüidade sempre teve uma concepção similar, com relação ao universo, do ponto de vista ético.'1 Há va­ lores objetivos aos quais os diferentes sujeitos devem se subordinar. O Bem é um a estrutura objetiva que está incrustada na realidade, e à qual os sujeitos devem se regular. Há uma hierarquia objetiva dos valores, que culm ina na noção de “summum bonum ”, que se m an­ tém através dos séculos. Isso im plicou um a certa com preensão do mundo ético que inci­ diu diretam ente sobre a concepção clássica das paixões, que é o ponto que nos interessa nesse debate. Se há um Bem objetivo, ao qual o sujeito deve aspirar, é a esse mesmo Bem que ele deve tender para realizar sua perfeição ética. Esse Bem deve ser conhecido pelo sujeito e, através desse ato inaugural, ele tenderá irresistivelm ente à posse desse Bem. O ato subseqüente é a atração irresistível que esse objeto deve exercer no sujeito. Conhecendo-o, ele o amará. E esse am or ao Bem é que deverá guiar toda a dinâmica de suas paixões. O fim de todas as suas ações deve para aí tender. Existe um a estrutura teleológica objetiva à qual os sujeitos devem se submeter. Assim, em Santo Tomás, a felicidade hum ana está na contemplação de Deus, bem supremo por excelência.7E, nessa estrutura, um a certa ordem das paixões se im põe onde o am or deve predom inar, vindo em segui­ da o desejo e, por fim, a delectação, segundo a ordem da consecução (e não da intenção):

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“E, por isso, segundo essa ordem, o amor precede ao desejo e este à delectação” *

Santo Tomás, num certo sentido, nada mais faz que codificar aqui uma idéia que vem desde a antigüidade e que perdurará ainda por muitos séculos. Essa hierarquia das paixões supõe, portanto, três pares fundamentais, que se ordenam assim:

1. amor ódio 2. desejo aversão 3. prazer desprazer

O objeto apreendido é, em primeiro lugar, amado (ou odiado) e, em virtude desse ato passional primordial primário, passa a ser deseja­ do (ou não) e sua posse levará à delectação (ou não). A época moderna, praticamente em nada modificará essa lista. O que ela fará, isso sim, é modificar progressivamente a sua ordem hierárquica. Em linhas gerais, duas grandes mutações ocorrerão. A par­ tir de meados do século XVII o par 2 assumirá o primeiro lugar na ordem e, no século XVIII, será a vez do par 3. Essas modificações acarretarão uma tal reviravolta nas concepções que, como já dissemos, até hoje ainda não absorvemos bem suas conseqüências. Quem apon­ tou, com muita clareza, essa prim eira grande mutação (preeminência do par 2) foi A. Matheron:

“Com efeito, todos os filósofos da vida moral trabalham, nessa época (século XVII), sobre um material idêntico: junto a todos, com poucas variantes, a lista de paixões é a mesma, e para eles a originalidade só pode consistir no modo como combinam os elementos. M as esta própria combinação tem regras; a maior parte dos autores concordam, particularm ente, em considerar como primitivos três pares de sentimentos fundamentais: amor e raiva, desejo e aversão, alegria e tristeza (ou prazer e dor), dos quais todos os outros seriam mais ou

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menos derivados. A questão que se coloca a partir de então, e que determina as grandes clivagens, é a de saber a qual desses três pares cabe a prioridade ” .9 A corrente tradicional que tem, e terá por muito tempo, um enorme peso continua defendendo essa “antropologia de inspiração finalista”, segundo a qual o homem está orientado para um Bem obje­ tivo e transcendente. E essa imantação exercida pelo Bem que consti­ tui a mola do ser humano e dá inteligibilidade à sua conduta ética. Aqui, o privilégio está no amor, “raiz primeira de todas as paixões”.10 Produzida essa relação originária, essa paixão suscita o movimento apetitivo (desejo) de se apossar realmente do objeto e, tendo isso sendo atingido, o resultado é o repouso alegre, a satisfação do desejo." Essa tradição, forte, ainda perdura no coração do século XVII. B asta abrirmos o Traité de VUsage des Passions de Sénault, publica­ do em 1641. Ele é típico e exemplar. O conhecimento deve preceder e governar as paixões;

“ ... é preciso recordar que a Razão é a soberana das paixões e que a condução destas é uma de suas p rin ­ cipais funções, e que ela é obrigada a vigiar particu­ larm ente aquelas que arrebatam as outras p o r seu m ovim ento” .'2

E é exatamente por isso que não se deve esquecer nunca que:

“... o amor e o ódio, que são as duas primeiras fontes de nossas Paixões” .'3

É esse amor, não só a primeira das paixões, como também fonte e raiz de todas as outras:

“...a esperança e o temor, a dor e a alegria são os m ovi­ mentos ou as propriedades do am or”

É o am or que empresta força e vivacidade a todas as outras paixões. Todas levam sua marca e é na sua regulação que consiste toda a técnica de regulação das paixões:

"... pois como nós reconhecemos só uma paixão, que é o amor; e como todas as outras são apenas efeitos que esta produz, somos obrigados a confessar que elas tomam de empréstimo todas as suas forças de sua causa, e que elas não têm outra violência do que a desta. Ele é um soberano que imprime suas qualidades aos seus súditos; ele é um Capitão que partilha sua coragem com seus soldados, e ele é um prim eiro móbil que arrebata todos os outros Céus po r sua impetuosi­ dade; de form a que a M oral só deve trabalhar para a condução do amor: pois quando essa paixão fo r bem regrada, todas as outras a im itarão, e o homem que souber bem amar não terá maus desafios nem vãs esperanças a moderar" .15

Essa teoria, longa e pacientemente montada, sofrerá um golpe mortal no século XVII, primeiramente através de Th. H obbes.16 Procuremos examinar isso mais de perto.

2.a) Hobbes é um pensador sistemático. U ma das coisas que mais impressiona o leitor de sua obra é o geometrismo implacável de suas deduções. D aí a necessidade de explicitar, mesmo que seja em linhas gerais, o seu projeto e sua concepção metodológica, coisa que qualquer leitor razoavelmente culto já conhece, para daí centralizar a atenção em sua antropologia e, sobretudo, em sua teoria das paixões, que é o ponto que realmente nos interessa. O problema original e central de Hobbes parece ter sido o de saber qual o fundamento (ou fundamentos) sobre o qual se assentam as sociedades políticas. Não está preocupado com outros tipos de associa­ ções ou sociedades naturais, isto é, aquelas que se estabelecem natural, necessária e universalmente, como, por exemplo, aquela que se consti­ tui entre a mãe e sua prole.

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Para isso, coloca em ação uma concepção metodológica que con­ siste em decompor um determinado problema em seus elementos cons­ tituintes. Atingidos esses elementos, procede-se à sua análise, e a de suas inter-relações, até chegar progressivamente a reconstituir o todo do qual se partiu. Trata-se de um processo resolutivo-compositivo que dilui o todo em seus elementos constituintes para, a partir deles, recons­ truir e recompor esse mesmo todo do qual se partiu. No De Cive, Hobbes explica essa idéia num texto que funciona quase como um pro­ grama, não só de seu modo de proceder, mas, de maneira geral, de como se abordarão as questões no decorrer do seu século e do seguinte:

“No que concerne ao meu m étodo, pensei, que não me bastava usar um estilo claro e evidente, mas que era necessário com eçar pela própria matéria do governo civil, depois tratar de sua form a e geração, e da prim eira origem da justiça. Pois todas as coisas são mais bem entendidas através de suas causas constitu­ tivas. Pois assim como em um relógio, ou em qualquer outra máquina autôm ata, não podem os conhecer bem a m atéria, a fig u ra e o m ovim ento das roldanas senão se o desm ontam os; assim, na investigação dos direitos dos estados e dos deveres dos súditos é necessário, eu digo, não romper o estado, m as considerá-lo como se ele estivesse dissolvido, quer dizer, é preciso entender qual é o natural dos homens, o que é que os torna próprios ou incapazes d efo rm a r estados, e como é que devem estar dispostos aqueles que querem se reunir em um estado bem fund a d o ” .17

N a verdade, no caso específico de H obbes, o que ele tem em m ente é m uito menos um a decom posição seguida de um a inspeção e um a posterior recom posição, do que um a verdadeira reconstrução do objeto, um a gênese dele a partir desses elem entos. A inspiração é, evidentem ente, aqui, a geom etria euclidiana que Hobbes pre­ tende estender m etodologicam ente aos dom ínios da ética e da política. V ários textos seus são taxativos sobre esse ponto, como este do D e C orpore:

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“Mas para aqueles que buscam a ciência indefinida­ mente, que consiste no conhecimento das causas de todas as coisas, o tanto quanto este possa ser alcança­ do (e as causas das coisas singulares são compostas pelas causas das coisas universais ou sim ples) é necessário que eles conheçam as causas das coisas uni­ versais, ou de tais acidentes enquanto eles são comuns a todos os corpos, isto é, a toda matéria, antes de poderem conhecer as causas das coisas singulares, quer dizer, daqueles acidentes pelos quais uma coisa é distin­ guida de outra. E, novamente, eles precisam conhecer o que são essas coisas universais, antes de poderem conhecer suas causas. Além disso, visto que as coisas universais estão contidas na natureza dds coisas singu­ lares, seu conhecimento deve ser adquirido pela razão, isto é, por resolução. Por exemplo, se é proposta a con­ cepção ou idéia de alguma coisa singular, como de um quadrado, este quadrado deve ser resolvido em um pla­ no, terminado por um certo número de linhas retas e iguais, e ângulos retos. Pois por essa resolução nós obtemos estas coisas universais ou comuns a toda matéria, a saber, linha, plano (que contém superfície), terminado, ângulo, retidão, retitude e igualdade; e se podem os encontrar as causas destas, podem os compôlas todas juntas na causa de um quadrado (segue-se um exemplo similar no plano da física: a resolução dos ele­ mentos componentes do ouro). E dessa maneira, resol­ vendo continuamente, podem os chegar a conhecer o que são essas coisas, (como o ouro, por exemplo), cujas causas sendo conhecidas separadamente, e depois com­ postas, levam-nos ao conhecimento das coisas singu­ lares. Eu concluo, por conseguinte, que o método de obter o conhecimento universal das coisas é puramente analítico” .'8

Esse m étodo resolutivo-com positivo visa, portanto, não a definição descritiva e estática do objeto em questão (por exemplo, dizer que o círculo é a figura onde todos os pontos são eqüidistantes de

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um outro central), mas sim tomar um ou vários elementos e a partir daí reconstruir geneticamente o objeto. Nas Six Lessons... Hobbes nos parece ainda mais claro:

“M as aqui eu preciso convencê-lo de que a geometria, sendo uma ciência, e todas as ciências procedendo a partir do conhecimento prévio das causas, a definição de uma esfera, e também de um círculo, por sua gera­ ção, quer dizer, pelo movimento, é melhor do que pela igualdade de distância de um ponto interior" .w

A geometria tem esse rigor demonstrativo e pode justamente ser denom inada ciência, no sentido forte, porque podemos conhecer, com absoluta clareza, a causa geradora do objeto, na medida em que é o próprio sujeito que cria esse objeto e, portanto, tem perfeita e total sapiência da sua causa geradora. Já o mesmo não acontece com os objetos da natureza, que não são criados por nós, mas oferecidos aos nossos sentidos. A física não tem, e não pode ter, o rigor da geometria, por essa razão.20Suas demonstrações sempre padecerão de um resíduo irredutível e serão, quase sempre, a posteriori. O mesmo já não acon­ tece com a ética e a política, pela simples razão de que elas, assim como a geometria, são obra do próprio sujeito. As regras do justo e do injusto, da eqüidade etc. são feitas pelos próprios homens que, portan­ to, as conhecem tão bem quanto as formas que constroem na geome­ tria. E pode ser uma ciência demonstrada a priori:

“Além disso, a política e a ética, isto é, a ciência do justo e do injusto, do eqüitável e do iníquo, pode ser demons­ trada a priori; com efeito, os princípios pelos quais sabe-se que as coisas são o justo e o eqüitável, o injus­ to e o iníquo, isto é, a causa da justiça, as leis e as con­ venções são coisas que fizem os nós mesmos..." .21

b) Esse método, Hobbes aplicará nos domínios de suas investi­ gações. Em primeiro lugar, para explicar a formação das sociedades

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políticas, “dissolve” o Estado em seus elementos constituintes — os homens. E, mais ainda, para saber o que são esses homens — qual a sua natureza — resolve decompô-los em seus elementos constituintes. Mas aqui esbarra-se com uma dificuldade. Como não somos nós os autores de nossas faculdades — elas nos são dadas, por assim dizer — podemos decompô-las, mas nem sempre achamos a causa geradora. Já no primeiro caso — a passagem dos homens à sociedade política — a transparência deve ser total e o método genético deve poder ser aplicado na íntegra. E foi o que Hobbes fez, tanto nos Elements ofL aw e no Leviathan, quanto no De Cive. E, com respeito à querela de se saber se, operada essa dis­ solução, o que Hobbes encontra são homens civilizados ou não, na ver­ dade, a questão nem se coloca. O objetivo de Hobbes é responder à questão: o que são os homens, quando são dissolvidos hipoteticamente todos os liames políticos? O que implica pensá-los distribuídos num determinado espaço, sem nenhuma forma de soberania ou poder político, jurídico etc. E, nessa hipótese, é evidente que, tanto faz pensar numa tribo da época das cavernas, como numa cidade inglesa do século XVII. É por isso que Hobbes pode pensar em ambas situações e que no De Cive os exemplos sejam extraídos de homens já civilizados.22 Como a hipótese é atemporal, o problema nem se põe. Da mesma forma, essa reconstrução da sociedade política não tem como alvo descrever como, de fato, as sociedades se formaram, mas sim, como se pode pensar a sua formação. Exigência do método, aliás. As definições genéticas, nota o autor, indicam como é possível engendrar uma coisa (da rotação do semi-círculo à esfera), e não como a coisa foi efetivamente engendrada (provavel­ mente nenhuma esfera real teve essa gênese).23 Hobbes, portanto, está descrevendo a condição natural do homem em geral (civilizado ou não), e sua gênese é uma gênese possível, e não necessariamente real.

c) “A natureza do homem é a soma de seus poderes e faculdades naturais, como as faculdades de nutrição, movimento, geração, sentido, razão etc. Nós devemos unanimemente chamar esses poderes de naturais, e eles estão contidos na definição de homem sob estas palavras: animal e racional. D e acordo com as duas partes principais do homem, eu divido suas faculdades em duas espé­ cies , faculdades do corpo efaculdades da alma” .24

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As faculdades da alma dividem-se em poder cognitivo, imaginati­ vo ou conceptivo e poder volitivo ou afetivo. Com relação ao primeiro ponto, Hobbes considera digno de observação o fato de que, se prestar­ mos atenção, perceberemos que existem continuamente em nossas mentes certas imagens ou concepções das coisas que estão fora de nós. Essas imagens ou concepções, até certo ponto, têm uma consistência intrínseca pois a hipótese da aniquilação de todos os objetos — exce­ to o sujeito — não implica a aniquilação dessas imagens.25 São essas imagens ou representações que podemos denominar, indiferentemente, cognição, imaginação, idéia, noção, conhecimento e pelas quais exercemos nosso poder cognitivo ou de conceber as coisas. Conceber uma coisa é ter uma imagem dessa mesma coisa. Conhecer, no plano elementar, é ter um a imagem. Dada essa estrutura do nosso conhecimento, o sujeito é levado a um certo número de crenças naturais que é necessário afastar. Por exemplo, como na visão a imagem é o conhecimento que temos do objeto, segundo o que nos revela esse sentido, não é difícil para os homens acreditarem que “cor” é um a qualidade do próprio objeto, pro­ priedade intrínseca dele. Para Hobbes, cujo mecanicismo é integral, isso é puro contra-senso, na medida em que no universo só existe m atéria em movimento ou matéria e força, onde, portanto, falar em qualidades não tem o menor sentido. Daí Hobbes estabelecer quatro proposições fundamentais nesse campo:

1) Que o sujeito, onde cor e imagem são inerentes, não possui equivalente no objeto ou na coisa vista;

2) Que não existe nada, fora de nós, que realmente possa se denom inar imagem ou cor;

3) Que essa imagem ou cor não é senão um a aparência que chega até nós em virtude do movimento, agitação ou alteração que o objeto produz no cérebro, sobre os espíritos (animais) ou em alguma subs­ tância contida em nossa cabeça;

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4) Assim como na visão, em todas as outras concepções oriundas dos outros sentidos, o sujeito de sua inerência não é o objeto ou a coisa, mas o ser que sente.26 A conseqüência dessas teses é evidente: todos os acidentes ou qualidades que nossos sentidos nos mostram como existindo no mundo não estão realmente nele, mas devem ser encarados como aparências. Nada há, de fato e realmente, no mundo externo, senão movimentos pelos quais essas aparências são produzidas. Produzidas, diga-se de passagem, também segundo as leis do movimento. Assim, é nesse espírito que Hobbes define, por exemplo, a imaginação:

“Assim como a água posta em movimento pelo choque de uma pedra ou por um a ventania não perde presente­ mente o movimento logo que o vento cessa ou a pedra afunda, da mesma maneira, quando o objeto agiu sobre o cérebro o efeito não cessa tão logo os órgãos são desviados e o objeto cessa de agir; isso quer dizer que ainda que a sensação seja passada, a imagem ou con­ cepção permanece; mas mais obscura enquanto estamos despertos, porque um objeto ou outro continuamente reclama e solicita nossos olhos e ouvidos, mantendo a mente em um movimento mais forte, enquanto que o movimento mais fraco não aparece facilm ente. E esta concepção obscura é aquilo que chamamos de fantasia ou imaginação; a imaginação sendo, para defini-la, um a concepção remanescente e pouco a pouco se enfra­ quecendo a partir e depois do ato de sensação.27

Temos assim sensações que fornecem concepções fortes, vivas e diferenciadas e concepções que advêm da imaginação, mais fracas, mais apagadas e menos diferenciadas. Quando acontece um a sucessão de concepções na mente, suas ligações podem ser casuais e incoeren­ tes (sonho, delírio, por exemplo), ou pode ser ordenada, quando, por exemplo, um primeiro pensamento conduz a um segundo e assim sucessivamente até formar um a longa cadeia que denominamos dis­ curso. O que produz a coerência ou conseqüência de um discurso é a

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prim eira coerência ou conseqüência, no momento em que se formou, que se produziu nos ou pelos sentidos. Trata-se do discurso mental.26 Essa cadeia pode ser livre (sem desígnio, errante) como quando acon­ tece com um a cadeia que não tem um pensamento-meta para dirigir e governar os outros. Ela pode também ser regulada por um desígnio ou desejo. Nesse caso acontece o seguinte: há um desejo inicial, dele surge o pensamento de algum meio para realizá-lo por meio de algo que vimos produzir um efeito semelhante. Do pensamento desse meio, chegamos a outro que, por sua vez, será um meio para atingir o primeiro, transformado agora em fim, e assim sucessivamente, até chegarmos a um ponto dessa corrente onde algo esteja ao nosso alcance e possa desencadear o processo. Desse modo, fica claro que estabelecer um discurso encadeado é ligar concepções (imagens) entre si de modo que sirvam a algum propósi­ to. Essa finalidade ou propósito é sempre ditada por um desejo, uma paixão. São estes que tecem a malha do discurso, ordenam e encadeiam as imagens de modo que, se possível, levem à realização do desejo.

d) Ressaltadas, em linhas gerais, as características principais do nosso poder cognoscitivo ou conceptivo, e tendo assinalado sua estri­ ta dependência com relação aos desejos e paixões,29 passemos agora à análise desses últimos fatores. Esse segundo conjunto pode ser abordado através da noção hobbesiana. de faculdade motriz. Aqui é preciso cuidado. O que Hobbes denomina faculdade motriz do espírito difere da faculdade motriz do corpo. Neste último, essa faculdade é o poder que o sujeito tem de mover outros corpos assim como seu próprio e se denom ina/orça. Já a faculdade motriz do espírito é o poder que ele tem de imprimir o movi­ mento animal no corpo no qual ele existe. Os atos desse corpo são denominados afetos ou paixões. A abertufa do capítulo VI do Leviathan é mais clara quanto a esse ponto:

“Nos animais existem dois tipos de Movimentos que lhes são peculiares. Um deles é chamado de Vital; começa na geração e continua sem interrupção durante toda a sua vida; deste tipo são a circulação do sangue, o pulso, a res­ piração, a digestão, a nutrição, a excreção etc.; para esses

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movimentos não é necessária a ajuda da imaginação. 0 outro tipo é o d o movimento animal, também chamado de movimento voluntário, como andar, falar, mover qualquer um dos nossos membros, da maneira como anteriormente ele fo i imaginado em nossas mentes. Pois a sensação é o movimento nos órgãos e partes interiores do corpo humano, causado pela ação das coisas que nós vemos, ouvimos etc. E a imaginação é apenas o resíduo do mesmo movimento, permanecendo após as sensações, como já fo i dito no primeiro e segundo capítulos. E como andar, falar e os outros movimentos voluntários dependem sempre de um pensamento precedente de como, qual caminho e o quê, é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários” .M

Assim, existem movimentos que são responsáveis pela circulação, respiração e congêneres, que começam com a geração do sujeito e ter­ minam com sua morte; que são automáticos e, mais especificamente, não dependem das faculdades da mente, em espécie, da imaginação. Já os outros que dependem desta última são denominados voluntários (andar, falar etc.) e pressupõem o ato da imaginação como antecedente. Temos assim, primeiro, um movimento no interior da mente que, por uma série de transmissões culminam num movimento corporal. Estamos aqui no cerne, no núcleo da teoria hobbesiana das paixões e, portanto, procuremos nos mover lentamente e com cuidado. Isso é necessário, antes de tudo, porque o pensamento de Hobbes, neste ponto, é difícil de ser percebido e aclarado e, em segundo lugar, porque levou alguns analistas, como veremos, a uma leitura, no mínimo, estranha. Alguns autores, de fato, foram levados a pensar que o fenômeno primeiro nessa lógica das paixões seriam as afecções prazer e dor, a par­ tir das quais os outros pares de afecções se desdobrariam. Encontramos essa posição em Gadave,31 em Malherbe.32 Um outro, Magri,33 identifica, sem mais delongas, prazer e desejo, o que, literalmente, é falso. Retomemos essa idéia de movimento animal. Já vimos que, do ponto de vista interno, há um movimento no campo da imaginação que precede e é a origem interna dos movimentos externos. Esse movimento microscópico, capilar, esse início de movimento no interior do corpo, antes que se manifeste objetivamente, é o que Hobbes denomina esforço:

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“E embora os homens sem instrução não concebam ne­ nhum movimento ali onde a coisa movida é invisível, ou quando o espaço onde ela é movida (por sua pequenez) é insensível, não obstante esses movimentos existem. Pois um espaço nunca é tão pequeno que aquilo que seja movido em um espaço maior, do qual o espaço pequeno fa z parte, não deva primeiro ser movido neste último. Esses pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem, antes de aparecerem no andar, na fa la , na luta, são comumente chamados de esforço”

Esse núcleo da faculdade motriz, o “conatus”, caracteriza-se, então, pensando no vetor sujeito-objeto, como aquilo que vai em direção a algo que o provoca. É isso que se denomina apetite ou dese­ jo , sendo o segundo termo preferível, já que o primeiro é mais fre­ qüentemente utilizado quando esse desejo toma a forma específica do desejo de nutrição. Quando sucede o movimento inverso (aquilo que se afasta de algo), o de evitamento, temos então a aversão:

“Este esforço, quando ele é dirigido a algo que o causa, é chamado de apetite ou desejo, o último sendo o nome mais geral; (...) E quando o esforço vai no sentido de evitar algo, ele é geralmente chamado de aversão” ,-,s

Assim, sem sombra de dúvida, o elemento fundamental, o motor primário, para Hobbes, de todo jogo passional, está nesse fato elemen­ tar do esforço, do “conatus”, do desejo para se atingir algo. É exata­ mente nesse mom ento que Hobbes provoca uma reviravolta completa na compreensão das afecções. O “conatus” é um fato primário, irre­ dutível a qualquer outra instância passional e, ao contrário, é ele quem vai dar conta destas últimas. Não só a hierarquia secular da preem i­ nência do amor/ódio se vê desmoronada, como também seu correlato: o primado gnoseológico que a acompanhou sempre. A máxima socrático-platônica, de que o conhecimento implica necessariamente a práti­ ca do melhor, esboroa-se, e a fam osa m áxima ovidiana (“videor meliora”...) deixa de ter conotações negativas, na medida em que já não vai

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se tratar mais do império da Razão sobre a paixão, mas do exatamente inverso. Ela agora será um instrumento para satisfazer as paixões e nc> limites da “condição natural dos hom ens” não sofre restrições. Mas voltemos um pouco. A trama passional do ser humano tem sw raiz no desejo, no “conatus”. Mas, “conatus” de quê? Nessa multiplici­ dade e nessa miríade de nossos desejos, desses que atravessam nosa vida, existe algum irredutível e fundamental, a partir do qual os outros e esclarecem, adquirem inteligibilidade? Sobre este ponto Hobbes é taxati­ vo. Esse “conatus” é original e primordialmente desejo de conservação de si,% bde autoconservação, assim como a aversão primeva é a destruiçò de si, a morte. O móvel fundamental de todo sujeito, em espécie, o homem, é a afirmação na existência. O “conatus”, portanto, nada maisé do que esse movimento que prefigura a apropriação daquilo que é úil para a conservação e também a prefiguração da fuga, do afastamenb frente a tudo que possa ameaçar essa conservação. Em termos biológico;, embora, como veremos, a questão não se reduza a isso em Hobbes,o “conatus” é esse desejo primordial pela vida e o temor absoluto da morií. Desejo de conservação e aversão à destruição: um ou dois “contus”? A resposta de Hobbes parece ser: um só. E o mesmo “conatus', já que a aversão é reconduzida ao apetite. Assim:

“Dos apetites e aversões, algumas nasceram com o homem; como o apetite pela comida, o apetite de excreção e exoneração (que também podem, e mais pro­ priamente, ser chamados de aversões a algo que se sente dentro do corpo)" ^

Não há nenhum dualismo original em Hobbes, como se podeia ser levado a pensar: existe um a única tendência, que nos inclina a cor­ tas coisas, e nos leva a repudiar outras. É o mesmo desejo que >e especifica em aproximação ou distanciamento, conforme o caso. Desejo de auto-conservação. Avancemos um pouco mais. O desejo subdivide-se em deseps inatos (fome, sede, sexualidade), que não são muito numerosos,38e;>s restantes, que “procedem da experiência” e que são desejos de coias particulares.39 O desejo supõe sempre a “ausência do objeto”,40 o momento algum estão na dependência da instituição e do uso dos sig­ nos. Estamos já, como é fácil observar, num nível razoavelmente com-

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plexo das operações intelectuais, e a linguagem não interveio para explicar a gênese desses fenômenos. Na verdade, Condillac está recon­ duzindo sistematicamente essas operações a um princípio que já está presente no Essai, mas de forma razoavelmente discreta, conforme avisamos. Trata-se do princípio das nossas necessidades, que é o grande motor que guia esse conjunto de operações: “Todas as vezes em que está mal ou menos bem, ela se recorda das sensações passadas; ela as compara com aquilo que ela é, e sente ser-lhe importante voltar a ser aquilo que foi. Daqui nasce a necessidade ou o co­ nhecimento de um bem, do qual ela julga que o des­ frute lhe é necessário” Por outro lado, assim como no Essai, a diferença entre memória e imaginação é uma diferença de grau e não de natureza. Isso, no entan­ to, está muito mais enfatizado no Traité, que insiste no fato de que, quando uma sensação se retraça tão vivamente que funciona como se o próprio órgão estivesse sendo acionado, temos a imaginação; e quan­ do se trata de um retraçar ligeiro, sem muita força, temos a memória. Trata-se, na verdade, de uma só e mesma faculdade que funciona segundo dois graus diferentes. O mais fraco a faz sentir na forma do passado, e o mais intenso como se estivesse presente: “Portanto, ela conserva o nome de memória quando ape­ nas recorda as coisas como passadas, e toma o nome de imaginação quando as retraça com tanta força que estas parecem presentes; portanto, a imaginação tem lugar em nossa estátua, assim como a memória; e as duas fa ­ culdades só diferem quanto ao mais e ao menos” 5.d) Introduzindo a imaginação, Condillac coloca, ao mesmo tempo, um terceiro tipo de atenção. Além daquela que se exerce sobre a sensação e sobre a memória, existe a que se desenvolve com relação à imaginação e cujo caráter é “deter as impressões dos sentidos para aí

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substituir um sentimento independente da ação dos objetos exte­ riores”.61A imaginação tem, por assim dizer, sob certas circunstâncias, o poder de se substituir à ação dos sentidos. Mas, é bom lembrar que a estátua, ela mesma, não tem condições de distinguir a real diferença entre imaginar e ter a sensação. Em virtude de ser determinada, em condições normais, pelo princípio de suas necessidades, ela, ao procurar aquelas impressões que satisfazem as mesmas, pode perceber que elas podem estar em algum ponto distante da cadeia associativa. Para conseguir esse fim, a imaginação freqüentemente rompe a ordem natural e originária da cadeia, passando, por exemplo, rapidamente pelas intermediárias, mudando mesmo a ordem para atingir esse fim e, assim, acaba crian­ do uma nova cadeia que pode manipular com mais facilidade. “Portanto, freqüentemente a imaginação é obrigada a passar rapidamente por cima das idéias intermediárias. Ela aproxima as mais distanciadas, muda a ordem que elas tinham na memória, e forma com elas uma cadeia inteiramente nova” Nesse caso, portanto, a ligação das idéias, o grande princípio de nossos conhecünentos, não segue a mesma ordem nas diferentes facul­ dades. E, quanto mais a seqüência constituída pela imaginação prevale­ cer, menos ela conservará aquela que lhe foi originalmente oferecida pela memória. Através disso, também, as idéias passam a ligar-se através de uma multiplicidade de maneiras diferentes e, na maioria dos casos, será a ordem constituída pela imaginação que prevalecerá, isto é, aquela através da qual o sujeito alcança seus próprios desígnios. Vê-se claramente que o espírito, por assim dizer, assenhorear-se de si mesmo, toma-se mestre do percurso das idéias, pressionado única e exclusiva­ mente por suas necessidades, sem nenhum recurso à linguagem, que era a grande responsável por esse fenômeno no Essai. 5.e) Partindo do dado elementar da impressão sensível fomos vendo como, pouco a pouco, a alma foi se elevando insensivelmente até as operações as mais complexas:

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“Concluamos que ela contraiu vários hábitos: um hábito de dirigir sua atenção, um outro de recordar-se, um ter­ ceiro de comparar, um quarto de julgar, um quinto de imaginar, e um último de reconhecer” Ressaltemos que se, de fato, por um lado, os objetos de conheci­ mento da estátua são fortemente restritos, na medida em que não co­ nhece senão odores e as relações entre eles, de outro lado, as principais operações do espírito humano já estão presentes, aberto esse primeiro canal: ela é capaz de atenção, memória, juízo, imaginação etc. Ressaltemos também que aquele que é o grande princípio do conheci­ mento humano — o da ligação das idéias — tinha no Essai, como condição básica de seu funcionamento, a ligação das impressões com os signos e, portanto, a instituição da linguagem. Já no Traité essa função está diretamente ligada à imaginação. E na potência do imaginário que se centraliza, agora, a grande distinção entre os animais e os seres humanos. Não que a linguagem perca toda sua importância, como ve­ remos mais à frente. Apenas, Condillac aponta que existe um solo mais originário que a linguagem e que será inclusive o suporte para ela. 5.f) Acabamos de ver, a partir da sensação, o desenvolvimento progressivo de nossas diferentes faculdades. Voltemos nossa atenção agora para a outra face do problema, isto é, de que conhecimentos tomou-se efetivamente capaz a estátua, supondo-se ainda apenas aber­ to o canal odorífero? Em primeiro lugar, passando por diversos estados que lhe fornecem sucessivamente sensações diferentes, a estátua passa por esta­ dos sucessivos de contentamento e descontentamento, conforme essas sensações lhe sejam agradáveis ou não, com o desenrolar do tempo: “Portanto, ela conserva em sua memória as idéias de contentamento e de descontentamento, comuns a várias maneiras de ser; e ela só precisa considerar suas sen­ sações sob esses dois aspectos para delas formar duas classes, onde aprenderá a distinguir nuanças, na pro­ porção em que mais se exercitar nisso”.64

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Essa operação implica que a estátua isolou, como sendo comum a um determinado grupo de estados, a idéia de contentamento, e de outro grupo, a idéia de descontentamento. E, se abstrair “é separar uma idéia de uma outra”,65 então é preciso convir que ela não só adquire a capaci­ dade de abstração como também adquire, por esse caminho, idéias abstratas que são idéias gerais relativamente ao ponto do qual se par­ tiu. Da mesma forma, quando experimenta, sucessiva ou alternada­ mente, um mesmo odor, sua atenção, fixando-se nesses diferentes traços de memória, forma a representação de um determinado odor, isto é, forma uma idéia particular,66 Dessa mesma idéia de contentamento, na medida em que é fruto de uma experiência agradável (como o inverso, o descontentamento, é fruto de uma experiência desagradável), ela adquire a idéia de prazer (e desprazer) que se toma um de seus principais objetivos.67 Da mesma forma, como distingue os diferentes estados pelos quais passa, adquire algumas idéias, ainda que vagas, a respeito dos números, desde que não excedam algo em torno de três ou quatro. De qualquer maneira, a idéia de unidade firma-se no seu espírito. Mas, sem o recurso dos signos, aqui, não pode ir muito longe,68 a não ser pela aquisição da idéia de multidão, que nada mais é do que a idéia de uma quantidade indefinida: “Podemos concluir portanto que nossa estátua só abar­ cará distintamente até três de suas maneiras de ser. Para além disso só verá uma multidão, que será para ela aquilo que a pretensa noção de infinito é para nós. Ela será até mesmo muito mais desculpável por enga­ nar-se sobre isso, pois é incapaz das reflexões que pode­ riam tirá-la do erro" .69 Por outro lado, se, como vimos, ela possui idéias particulares e idéias gerais, conhece também duas espécies de verdades. Os odores singulares são, para ela, idéias particulares. Mas vimos tam­ bém que possui idéias abstratas, como descontentamento e seu inverso. Conhece, portanto, também, verdades gerais. Sabe, em geral, que algumas modificações provocam descontentamento, ou­ tras contentamento.70

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Adquirirá também, ainda que de forma vaga, a idéia de possibili­ dade, na medida em que, habituando-se a estar num determinado estado, passa para um outro, para depois voltar ao primeiro, e assim, sucessiva­ mente, adquire a idéia de que poderá estar num determinado estado.71 Pelo mesmo princípio de mudança de estado, alternada ou contínua, a estátua pode adquirir um conhecimento de uma duração passada, de outro porvir, de uma duração presente e mesmo de duração indefinida.72 6.a) A lição mais interessante que Condillac extrai desse longo inventário de como o espírito vai desenvolvendo suas faculdades, assim como adquirindo conhecimentos, é o fato de que, com relação ao desenvolvimento das operações, aquilo que viemos examinando praticamente esgota as possibilidades do espírito e, portanto, pudemos ver o nascimento de quase todas suas faculdades pela simples abertu­ ra de um canal sensível: “Tendo provado que nossa estátua é capaz de prestar atenção, de recordar-se, de comparar, de julgar, de dis­ cernir, de imaginar; que ela tem noções abstratas, idéias de número e de duração; ... que ela é capaz de espe­ rança, de temor e de espanto, e que enfim ela contrai hábitos, devemos concluir que com um só dos sentidos o entendimento tem tantas faculdades quanto com os cinco reunidos. Veremos que aquelas que parecem sernos particulares são apenas essas mesmas faculdades que, aplicando-se a um maior número de objetos, desen­ volvem-se mais” .73 Esta última cláusula é importante pois coloca claramente que o que poderíamos pensar que fosse o desenvolvimento de outras fa­ culdades nada mais é que a aplicação das mesmas a um maior número de objetos que as faz desenvolver mais. Praticamente a única exceção neste caso, o leitor já deve ter advertido, diz respeito à reflexão que Condillac faz depender diretamente do sentido do tato que, incidindo diretamente sobre a constituição da objetividade, tom a possível a reflexão:

essa atenção que combina as sensações, que delas faz todos no exterior, e que, refletindo, por assim dizer, de um objeto a um outro, compara-os sob diferentes aspec­ tos, é aquilo que eu chamo de reflexão”.74 Nesse nível da análise temos, portanto, de um lado, o sistema de nossas faculdades praticamente desenvolvido- A abertura dos outros canais e, sobretudo, seu comércio mútuo, fará com que essas mesmas faculdades se refinem e se sofistiquem ao extremo. Mas, no geral, tudo já está dito e o próprio Condiliac reconhece isso:

“Quase tudo o que eu disse sobre as faculdades da alma, tratando do olfato, teria podido dizê-lo começando por qualquer outro dos sentidos: é fácil fazer-lhes a apli­ cação. Só me resta examinar aquilo que é mais particu­ lar a cada um deles” .li 6.b) Assim, o exame subseqüente dos outros sentidos servirá muito mais para Condiliac mostrar em que, especificamente, nossos conheci­ mentos dependem, quanto ao seu conteúdo, dos diferentes materiais oferecidos pelas diversas classes de percepções. Não se trata, em virtude de nossos problemas e de nossos propósitos de acompanhar Condiliac nessa longa mas fascinante jornada intelectual, na abertura dos outros diferentes canais, Os diferentes sentidos vão sucessivamente aumentando o estoque de nossas idéias e complexificando nosso conhecimento. Analisando cada um em particular, e depois em conjunto, sucessiva­ mente, Condiliac vai nos mostrando como o conhecimento é um verda­ deiro aprendizado, como os sentidos se ajudam e se educam mutuamente, para formar progressivamente essa trama complexa do nosso saber. Nem se trata aqui, pelos mesmos motivos, de seguir passo a passo sua magistral análise do sentido do tato que, além de ser uma fonte quase indefinida de nossas idéias,76 será o responsável pela catalisação da idéia de existência exterior, constituindo assim a idéia de objeto e objetividade, do mesmo modo que, simultaneamente, configura-se, com maior clareza e distinção, a idéia de sujeito.77 É nesses textos que percebemos o quanto, literalmente, objetividade e subjetividade são

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construções para Condillac. A partir de uma massa indiferenciada e ini­ cial de impressões vai se elevando progressivamente, se constituindo e se construindo uma unidade espiritual complexa e estruturada que tem como correlato um mundo, ele também, complexo e estruturado. 7.a) Esse conjunto de análises elaboradas por Condillac mostra também, além da tese da sensação transformada, duas outras não menos importantes. A primeira delas é a de que ver, ouvir etc. cons­ tituem um aprendizado. Que os sentidos, para exercerem-se na sua plenitude, precisam ser educados. Essa é, aliás, uma das críticas explícitas que Condillac endereça a Locke: “Ele (Locke) não reconheceu o quanto nós pre­ cisamos aprender a tocar, a ver, ouvir etc.” .78 De fato, não nos lembramos, na falta de um referencial preciso, visto estarmos frente a um tempo inaugural, que houve uma época onde, embora afetados sensivelmente, ainda não sabíamos ver, ouvir etc.: “Não imaginamos como teria havido um tempo em que teríamos aberto os olhos sem ver como vemos” Apesar de paradoxal à primeira vista, aprendemos a usar nossos sentidos. Tendemos a pensar que a natureza, ao colocar-nos no mundo, forneceu também o uso completo e acabado, não da faculdade de sentir, essa sim inata, mas da capacidade de um exercício pleno. Para nós o que é um ato banal e imediato hoje não se revestiu dessas características ontem. Pode parecer extraordinário dizer que o olho é, por si mesmo, incapaz de ver um espaço que se localiza fora. Adquirimos há tanto tempo esse hábito, e ele está de tal forma enraizado em nós, que não con­ seguimos imaginar que houve uma época em que as coisas não se deram assim. O “primeiro momento em que nossos olhos se abriram à luz” 80 não nos forneceu nem a idéia de espaço, nem a de figura. Pois, “como os olhos, cuja visão não se estende além das pupilas”,8’ poderiam ver

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algo fora de si? Na realidade, “nossos olhos aprendem a ver” o espaço, as figuras etc., quando aprendemos a noção de uma existência externa, idéia esta que nos é oferecida pelo tato, e não pela visão. Aí, então, esta­ mos em condições de “perceber” que há um espaço, que as coisas estão nesse espaço etc. Que esse “azul” que me afeta subjetivamente acaba por se relacionar com um objeto externo, cuja noção nos é fornecida pelo sentido do tato, mais especificamente, através do manuseio: “A mão diz de alguma maneira à vista: o azul está em cada parte que percorro; e a vista, por força de repe­ tir esse juízo, faz deste um hábito tão grande que chega a sentir o azul ali onde ela o julgou” Há, portanto, um verdadeiro aprendizado dos sentidos, e sobretu­ do um aprendizado recíproco, através do qual se constitui e se constrói o objeto da percepção. Há uma espécie de construtivismo em Condillac para o qual, até hoje, parece ter-se dado pouca atenção. 7.b) A segunda tese que emerge das análises de Condillac é a respeito da noção de objetividade. O desafio lançado por Diderot con­ sistia em indicar que ou essa objetividade deveria coincidir com a existência de um mundo exterior ou estaríamos em pleno idealismo à la Berkeley. Vimos que um dos motivos que levaram Condillac a escrever o Traité foi o de responder a esse desafio. Ora, que noções de objetividade e de existência externa nos fornece o Traité? Retomemos os dados do problema. A análise inicial dos quatro sen­ tidos (olfato, audição, gosto e visão) não nos faz dar um passo em direção seja da objetividade, seja da noção de existência externa. Sabemos que as “nossas sensações não são qualidades dos objetos” e nada mais são que “modificações de nossa alma". Percebemos apenas nós mesmos através dessas modificações83 sensíveis. O problema é claro: “Agora, o mais difícil teria sido imaginar como nós con­ traímos o hábito de relacionar ao exterior sensações que estão em nós”

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Foi o tato, sabemos, que tomou possível a passagem desse con­ junto de impressões subjetivas a algo que não é propriamente o sujeito receptivo, mas a algo que é referido como exterior ao próprio sujeito. Através do tato o sujeito aprende a transpor um conjunto de qualidades sensíveis (esse odor particular, essa forma específica, essa cor aver­ melhada etc.) para um algo, alguma coisa, que é um objeto sensível que passa a ser agora o suporte desses mesmos atributos e ao qual damos um nome: rosa: “Mas atualmente que ela acostumou-se a tomar suas sen­ sações por qualidades dos objetos sensíveis, quer dizer, por qualidades que existem fora dela..." *} Assim, a estátua, que originalmente foi, ela mesma, som, sabor, odor, cor etc., aprendeu e acostumou-se a relacionar essas sensações a um “fora”. Mas há, nos próprios objetos, sons, sabores, odores ou cores? “Quem pode assegurar?”.86 Isso tudo foi conseguido, sabemos, porque a estátua “contraiu o hábito de julgar segundo o testemunho do tato”.87 Podemos, pelo menos, dizer que existe uma “extensão” que nos é revelada por esse último sentido? “Mas quando ela tem o sentimento do tato, o que apercebe senão ainda suas próprias modificações? Portanto, o tato não é mais crível do que os outros sen­ tidos; e visto que reconhecemos que os sons, os sabores, os odores e as cores não existem nos objetos, poderia ocorrer que a extensão também não existisse ali” .8K Rigorosamente, portanto, sabemos que as qualidades sensíveis que atribuímos aos corpos não são propriamente deles. Nem estamos certos de que existe algo, fora de nós, que denominamos “extensão”. O que denominamos corpo é na verdade um “isso”89 desconhecido, ao qual os filósofos atrelaram o nome pomposo de substância, mas do qual não sabemos nada, a não ser que é sobre esse fundo desconheci­ do que nos habituamos a reportar as qualidades pelas quais somos afe­

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tados. Unificamos e projetamos nossas sensações sobre algo de natureza absolutamente desconhecida: “Sinto apenas a mim, e é aquilo que sinto em mim que vejo no exterior, ou antes, não vejo no exterior; mas habituei-me a certos juízos que transportam minhas sen­ sações para onde elas não estão.”90 Assim, a noção de existência externa é em Condillac apenas o pressuposto incontornável, a partir do qual se constitui a noção de objetividade, que tem com ela somente esse elo de ligação. O con­ ceito de objetividade que se delineia em Condillac tem muitos pon­ tos em comum com certas noções mais modernas. Com uma enorme diferença: todo o mecanismo explicativo é psicológico, e não transcendental. 8. Avancemos um pouco mais. Fizemos questão de ir ressaltando que existe uma progressiva evacuação da potência da linguagem no transcorrer do Traité. Isso foi uma conseqüência inevitável de seu pressuposto metodológico. O rigor no método impede — pela própria hipótese inicial, a da estátua — de se supor o comércio entre os ho­ mens, condição fundamental para se pensar a instituição da lin­ guagem articulada.1'1 Isso seria introduzir um elemento exógeno que necessariamente contaminaria a pureza dessa dedução genética, a qual só supõe como dado originário, significativo e inaugural a afecção sensível, da qual procurará tudo o mais derivar. Em nome desse rigor, patente no texto, deve-se repensar a tese da quaseonipotência do signo tal qual era exposta no Essai. Começamos a compreender a frase de Condillac: “concedi em demasia ao signo”.92 Ainda voltaremos a falar sobre isso. Na realidade trata-se, para Con­ dillac, de ir em direção a uma camada mais elementar e fundante. Uma camada pré-lingüística, pré-semiótica que constituirá o alicerce do teórico e do lingüístico. .Trata-se, no Traité, de mostrar que a cadeia dos signos não é fundante mais sim derivada. O signo, enquan­ to tal, não é inaugural, mas sim um efeito que reproduz, ao seu nível, uma energia mais velha e original que advém da necessidade (besoin), da paixão e que está orientada para a ação/ No Traité o teórico subor­

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dina-se ao prático, ao conhecimento prático e é nesse sentido que ele pode ser entendido como a arqueologia do E ssai. Atrás do signo está a necessidade prática que é fundante em relação a ele. 9.a) E sobre o conceito de necessidade que irá girar a análise de Condillac. Mas, ao invés de ser um conceito posto, ele será deduzido a partir da situação original da estátua. Será preciso, portanto, que voltemos, mais uma vez nossa atenção, a esse momento inaugural onde o canal do olfato é aberto. Sua abertura provoca, na verdade, dois fenômenos simultâneos. O primeiro, que já vimos, é o fato de que, nesse instante, a estátua recebe uma impressão sensível, um determinado conteúdo, um quê, por assim dizer. Por exemplo, este odor particular de rosa. Nesse momento, a estátua nada mais é do que esse odor; ela identifica-se com essa mo­ dificação. Concomitantemente a esse fenômeno existe um outro tam­ bém original, isto é, o modo como essa impressão incide na estátua. Esse modo pode ser de duas espécies. Ou a estátua é afetada agrada­ velmente pela impressão ou ela é desagradavelmente afetada. Assim, desde esse impacto original, ela é também simultaneamente afetada pelo gozo ou pelo sofrimento: "A partir deste instante ela começa a gozar ou a sofrer; pois se a capacidade de sentir dedica-se inteira a um odor agradável, ela é gozo; e se dedica-se inteira a um odor desagradável, ela é sofrimento” Como, por hipótese, ela, nesse momento, não tem e nem pode ter nenhuma idéia das mudanças que podem lhe advir, isso significa dizer que ela pode estar bem, sem desejar estar melhor, ou estar mal, sem desejar estar bem.94O seu sofrimento atual não pode fazer com que deseje um bem que não conhece, nem o gozo, o temor de um mal que lhe pode acontecer. Assim, por mais desagradável que seja essa afecção original, mesmo que leve ao ponto de “lesar o órgão”,95 o dese­ jo de sair desse estado não tem como se instaurar porque:

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“A dor só ocasiona em nós este desejo porque esse esta­ do já nos é conhecido. 0 hábito que contraímos de olhála como uma coisa sem a qual nós fomos, e sem a qual nós ainda podemos ser, faz com que não possamos mais sofrer, e que logo nós desejemos não sofrer" O sofrimento, assim, não lhe faz desejar um bem que não co­ nhece e nem o gozo lhe faz temer um mal o qual não conhece tam ­ bém. E é isso que torna a estátua incapaz de desejar. Indicação pre­ ciosa porque a análise genética está mostrando que seu estado ori­ ginal (dor/prazer) não contém, nele mesmo, analiticamente, por assim dizer, o desejo. Este não só é outra coisa, como também é algo derivado e supõe, portanto, não só esse mesmo estado original, como também, para que haja sua emergência, um conjunto outro de condições que é preciso examinar e explicar conforme formos detectando-as. 9.b) Conjunto de condições na verdade complexo, pois supõe que a estátua tenha desenvolvido, mesmo que minimamente, um conjunto de atividades que podemos, em prol da clareza e numa primeira apro­ ximação, subdividir nos seguintes momentos, supondo desnecessária, porque já o fizemos anteriormente, a explicitação das operações que estão em questão: 1) Supõe-se, primeiramente, como acabamos de ver, um estado original de dor ou prazer; 2) Supõe-se, em segundo lugar, uma sucessão de estados repetidos e alternados desses dois modos; 3) Supõe-se, em terceiro lugar, o registro na memória desses dife­ rentes estados (o que já supõe a ação anterior da atenção como sua condição, como já foi visto). Aqui, dado um determinado estado, a estátua tem o poder de ativar a lembrança de um outro, neutro ou opos­ to. Suponhamos que seja o oposto; 4) Supõe-se, em quarto lugar, para que a operação tenha seqüên­ cia, que a estátua seja capaz de elaborar a comparação entre esses esta­ dos sucessivos; 5) A combinação dessas diferentes noções e operações (memória, sucessão e comparação) produz as idéias de ter sido, de ser agora e poder voltar a ser,

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6) Atinge-se também a noção de diferença entre o estado atual e o passado (isto é, ter existido de outra maneira) e o poder existir de forma anterior. Preenchido esse conjunto de requisitos, pode-se falar então em desejo, que nada mais é que o movimento em direção a algo operado pelas faculdades. Isso numa primeira aproximação. 9.c) Mas, antes de examinar a constituição do desejo mais de perto, retenhamos um pouco nossa atenção sobre esse fenômeno ele­ mentar do prazer e da dor. Falamos, há pouco, referindo-nos a esses estados, de um possível estado neutro. Algo como um estado de indife­ rença estética. Rigorosamente falando, isso não é correto. E, esse ponto é importante, como veremos. Os prazeres e as dores são, segun­ do Condillac, de duas espécies: corporais ou espirituais.97 Os primei­ ros são também denominados sensíveis e os segundos, intelectuais. Mas, na verdade, trata-se de uma diferença relativa porque, num certo sentido, todos são espirituais, já que é sempre a alma quem sente. Noutro sentido, todos são sensíveis, porque é através dos sentidos — e só deles — que chegamos a perceber o prazer e a dor. Por outro lado, o prazer e a dor estão sujeitos ao aumento e à diminuição.qs No caso do prazer, quando há diminuição, ele tende a extinguir-se ou esvanecer-se com a própria sensação. Se há aumen­ to pode acontecer que se atinja um limiar onde ele se transforma em dor porque “a impressão torna-se muito forte para o órgão”.99 Assim, há dois limiares do prazer: aquele que é o ponto de surgi­ mento determinado por uma fraca sensação, uma sensação tênue, e o mais forte, onde qualquer incremento quantitativo faz com que se transforme em dor. Da mesma forma, a dor pode aumentar ou diminuir.100No primeiro caso, tende à destruição do organismo. No segundo caso, no entanto, não tende, como o prazer, ao nada, mas sim, ao transpor determinado limiar, seu término é sentido como algo agradável. Entre esses diferentes graus não pode existir, em si, um estado neutro ou indiferente porque este seria sinônimo de ausência de sen­ sações e sentimentos. Desde o momento em que há sensação, a estátua necessariamente está em estado de gozo ou sofrimento:

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“Entre esses diferentes graus, não é possível encontrar um estado indiferente: à primeira sensação, por mais fraca que ela seja, necessariamente a estátua está bem ou mal” .1CI O que denominamos estados neutros ou indiferentes só têm senti­ do quando a estátua, tendo sucessivamente experimentado as mais vivas dores e os maiores prazeres, acaba por julgar indiferentes (ou deixa de encarar como agradáveis ou desagradáveis) as sensações mais fracas quando comparadas com aquelas mais fortes.102O estado de neu­ tralidade ou indiferença não constitui algo real mas sim um hábito in­ telectual que nos leva a encarar como tais fenômenos que, em si mes­ mos, são sempre prazerosos ou desprazerosos.103 9.d) Feitas essas pontuações sobre as noções de prazer e dor, retomemos o fio de nosso raciocínio. A constituição da memória é uma condição essencial para que as operações intelectuais deslanchem pois, sem elas, não lhes restaria nenhum vestígio de suas sucessivas modificações e assim: “... a cada vez ela acreditaria sentir pela primeira: anos inteiros viriam perder-se a cada momento presente. Portanto, limitando sempre sua atenção a uma única • maneira de ser; ela jamais compararia duas delas em conjunto, jamais julgaria sobre suas relações...” ,1(M Mas, a pura e simples inscrição — como traços de memória — por si só não é suficiente para que a estátua realize suas operações. Se as impressões que a estátua recebe fossem absolutamente neutras — isto é, se não diferissem entre si a não ser pelo seu conteúdo re­ presentativo — ela ver-se-ia frente a um desfiladeiro de imagens que sucessivamente iriam sendo focalizadas pela atenção, que se inscreveriam na memória e através das quais seria possível conhecer ou reconhecer tal ou tal impressão. Mas não haveria motivo algum para que evocasse tal ou tal imagem particular. A estátua seria como

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que um receptor neutro, um puro espelho por onde desfilariam inces­ santemente as imagens. Ou melhor, seria como um aparelho fotográ­ fico que registraria indiferentemente toda a seqüência das impressões. Faz-se necessário, portanto, que algo desperte seu inte­ resse nessa sucessão contínua. Algo, enfim, que introduza nessa cadeia contínua um ponto de inflexão de tal forma que algumas retenham mais sua atenção que outras, despertem mais seu interesse que outras. É exatamente o par prazer/dor que vai ser o grande responsável pela introdução dessa diferenciação que se constituirá como um primeiro ato de avaliação: “Se o homem não tivesse nenhum interesse em ocupar-se de suas sensações, as impressões que os objetos fariam sobre ele passariam como sombras, e não deixariam rastros. Após vários anos, ele seria como no primeiro instante, sem ter adquirido nenhum conhecimento, e sem ter outras faculdades além do sentimento. Mas a natureza de suas sensações não lhe permite permanecer adormecido nesta letargia. Como elas são necessaria­ mente agradáveis ou desagradáveis, ele está interessado em procurar umas e em furtar-se às outras; e quanto mais o contraste entre prazeres e dores tem vivacidade, mais ele ocasiona ação na alma” .m O texto acima deixa muito claro que o motor fundamental que, em última análise, aciona toda e qualquer operação do espírito — na medi­ da em que o “interesse” deve estar presente em todos os níveis — é, na sua raiz, o par prazer/dor. Mas, para que adquira esse estatuto, para que funcione dessa maneira, é preciso que se ligue às operações das facul­ dades porque, por exemplo, se o estado de sofrimento é, em nós, atual­ mente, acompanhado do desejo de sair dele, a razão está, como vimos,106 em que não só esse outro estado já nos é conhecido, como também o seu oposto. Ora, a dedução genética não pode supor isso, mas sim chegar a isso. O que significa, por outras vias, chegar à mesma con­ clusão que chegamos há pouco: há um par de operadores fundamentais (prazer/dor) que em ação conjunta com as operações elementares do espírito faz nascer o desejo de permanecer ou sair de um estado.

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9.e) O desejo, assim, não só é um conceito derivado mas supõe, para que se instaure, a sua soldagem ao campo representativo. Ele é sempre desejo de ... algo. Instaurado o circuito do desejo, aí então, e só aí, o prazer e a dor passarão a funcionar como o “único princípio” que determina todas as operações da alma: “Assim que ela tiver observado que pode cessar de ser aquilo que é para voltar a ser aquilo que foi, veremos esses desejos nascerem de um estado de dor, que ela comparará a um estado de prazer que a memória lhe recordará. É por este artifício que o prazer e a dor são o único princípio que, determinando todas as operações de sua alma, deve elevá-la gradualmente a todos os co­ nhecimentos de que ela é capaz" 9.f) Chegamos, agora, a uma determinação mais clara e precisa daqueles que são os elementos básicos e fundamentais de toda a análise elaborada por Condillac. São dois e ambos contidos no ato original de ser afetado por uma impressão — na sensação — : o primeiro, enquanto conteúdo, e o segundo, enquanto modo. Toda sen­ sação contém, em primeiro lugar, algo que ela transmite (uma cor, um odor, um sabor etc.) e, em segundo lugar, o modo como esse conteúdo afeta a estátua: agradável ou desagradavelmente. É da combinação concreta desses dois elementos que vai se erigir todo esse edifício complexo que denominamos o espírito humano, tanto em relação à sua matéria, como em relação à sua forma. O que significa dizer, para acentuar o ponto que estamos tentando colocar em relevo, que, se excetuamos o conteúdo sobre o qual erige-se nosso espírito, tudo o mais depende da ação contínua do par prazer/dor: “O princípio que determina o desenvolvimento de suas faculdades (da alma) é simples; as próprias sensações o encerram: pois todas sendo necessariamente agra­ dáveis ou desagradáveis, a estátua está interessada em fruir umas e em furtar-se às outras. Ora, nós nos con­ venceremos de que basta esse interesse para dar lugar

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às operações do entendimento e da vontade. O juízo, a reflexão, os desejos, as paixões etc. são a própria sen­ sação que se transform a diferentemente. Foi por isso que pareceu-nos inútil supor que a alma recebe direta­ mente da natureza todas as faculdades de que é dotada. A natureza nos dá órgãos para advertir-nos, pelo prazer, daquilo que devemos procurar, e pela dor, daquilo de que devemos nos afastar. M as ela se detém ali; e deixa à experiência o zelo de fazer-nos contrair hábitos, e de acabar a obra que ela com eçou”.m 9.g) Esse par prazer/dor funcionará assim , respeitadas as condições já apontadas acim a, em todos os níveis, e será, num certo sentido, fundante e constituinte. Desde o nível o mais elem entar — o da atenção'09 — , passando pela com paração,110 pela constituição da mem ória ativa,111 pela im aginação,"2 até o nível mais sofisticado que a estátua pode atingir,"3 será ele e sempre ele que estará operando na construção tanto do cam po do saber como do próprio sujeito. Ele é “o princípio que determ ina o desenvolvimento das faculdades”.1'4 É “o único princípio que determina todas as operações da alm a”."5É “o prim eiro m óvel”116e “determ ina sempre a ação de suas faculdades”.117 N ós somos, assim, sempre-movidos pelo prazer e pela dor.1'8 Inútil multiplicar as referências: essa idéia de que na medida em que não há sensação indiferente então o prazer e a dor constituem a “lei segundo a qual o gérmen de tudo isso que somos desenvolveu-se para produzir todas nossas faculdades”"y é absolutamente onipresente no texto do Traité. O próprio Condillac é explícito sobre isso: “É sobretudo na primeira parte (da obra) que dedicamonos a demonstrar a influência dos prazeres e das dores. Não perdemos de vista esse princípio no decorrer da obra, e nunca supomos nenhuma operação na alma da estátua, nenhum movimento de seu corpo, sem indicar o motivo que a determina" .m Condillac oferece, por outro lado, vários exemplos onde a exceção vem confirmar a regra. Tomemos, por exemplo, o caso dos

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sonhos. Nesse estado psíquico, segundo Condillac, o espírito não fun­ ciona segundo as condições normais. Ele opõe-se tanto ao estado de sono completo como ao de vigília. No estado de sonho, algumas fa­ culdades ainda operam no sujeito mas à sua revelia completa e apenas “sobre uma parte das idéias adquiridas”.121 Nesse caso. a ação do espírito — ela mesma limitada — perfaz-se sobre um material incom­ pleto e vários anéis da cadeia associativa são interceptados por essa deficiência e a ordem das idéias no sonho não pode ser a mesma que a do estado de vigília. E, no sonho, “o prazer não será mais a única causa que determina a imaginação”.122 9.h) Assim, esse princípio funciona em três níveis básicos: 1) na estruturação progressiva de nossas faculdades: 2) no próprio encadeamento de nossas idéias — de nosso co­ nhecimento, portanto. A memória e a imaginação suprem, no Traité, o papel dos signos na ligação das idéias que continuam sendo o princípio de nossos conhecimentos. É através dela que as seqüências de idéias são estabelecidas e nosso saber se instaura. Mas, a ordem da seqüência — se excetuamos a seqüência original — é, no entanto, detenninada pelos motivos e interesses — e, em última instância, portanto, pelo par aprazer/dor — que acaba por — abreviando, condensando, estendendo — criar várias seqüências paralelas, laterais, subcadeias etc. que intro­ duzem a teleologia no processo. Não só este último ponto como tam­ bém, através disso, a possibilidade de domínio, de senhorio do proces­ so, é possibilitado pela evitação da dor e a busca do prazer; 3) por fim, o conjunto de nossas ações é também determinado por esse princípio. Todos nossos atos — desde o mais elementar movi­ mento é regido por esse princípio: “Sem o prazer, nossa estátua nunca teria a vontade de mover-se, sem a dor, ela se transportaria com segu­ rança e infalivelmente morreria. Portanto, é preciso que ela sempre esteja exposta a sensações agradáveis ou desagradáveis. Eis o princípio e a regra de todos os seus movimentos. O prazer a liga aos objetos, a engaja a prestar-lhes toda a atenção da qual ela é capaz, e a form ar-se idéias m ais exatas desses objetos. A dor afas­ ta-a de tudo aquilo que pode fazer-lhe mal, torna-a

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mais sensível ainda ao prazer, faz com que ela discirna os meios de desfrutá-lo sem perigo, e lhe dá lições de indústria; em uma palavra, o prazer e a dor são seus únicos mestres” .m É sempre a partir desse núcleo originário e constitutivo que Condillac pensa a modelagem do espírito humano nas suas diferentes dimensões. É também a partir daí que ele poderá redefinir com maior precisão o papel e a função das noções de necessidade e desejo. 9.i) Por outro lado, não é difícil perceber que, embora possa-se falar, por uma licença de linguagem, num primado do prazer, na busca do prazer em Condillac, o fato é que, nesse par prazer/dor, o elemento ori­ ginariamente ativo é a dor em todas as suas nuances quantitativas.124 E ela (a “mais importuna das sensações”, como dizia Locke) que constitui o verdadeiro motor que atua incessantemente na estátua. E verdade que, em condições normais, ela só pode atuar se houver — como contrapon­ to — um outro pólo — o estado de ausência de dor ou o estado de pra­ zer — que funcione como foco de atração. E isso só pode acontecer porque a estátua representa esse outro pólo como algo onde deve chegar. Esse “objeto de representação” que atua teleologicamente parece ser a condição para que o estado desagradável atue de maneira eficaz. Repetimos: normalmente é assim que as coisas se passam. Mas nem sempre esse pólo representacional está presente. Aliás, originalmente não está. Foi por não terem dado a devida atenção a esse ponto que alguns autores, como veremos, puderam falar num primado do entendi­ mento sobre a vontade em Condillac. Basta, no entanto, que tomemos a experiência paradigmática da fome, tal como aparece no Traité, para que nos convençamos do contrário. Retomemos essa análise. 10. Embora o sentido do paladar seja aquele que menos precise ser educado, na medida em que é absolutamente necessário para nossa conservação,125 ele é, no entanto, sob um certo ângulo, fruto de um aprendizado já que “quando a estátua experimenta pela primeira vez o sentimento da fome, esta não pode ainda ter objeto determinado”,126na medida em que desconhece os meios para satisfazê-la. Nesse estado,

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portanto, não quer nada absolutamente determinado. Sente apenas o impulso de não permanecer no estado em que está.127 É neste instante que podemos captar o conceito de necessidade (.b esoin) no seu estado puro e original. Ele refere-se basicamente a esse estado de mal-estar que provoca no sujeito o impulso de sair daí, de afastar-se. Ela é esse impulso causado pelo mal-estar. No caso que estamos analisando, esse estado de mal-estar espalha-se por todo corpo e, logo em seguida, concentra-se mais fortemente nos lábios e na boca da estátua.128Aí, então: “... ela leva os dentes a tudo aquilo que se lhe apresen­ ta, morde as pedras, a erva e sua primeira escolha é alimentar-se das coisas que menos resistem aos seus esforços. Contente com uma alimentação que a satis­ fez, não pensa em procurar uma melhor. Ela ainda não conhece outro prazer em comer do que aquele de dis­ sipar sua fom e" .m É nesse momento, portanto, que a necessidade, aguilhoada pela dor, encontra o objeto que a satisfaz, que faz extinguir o conjunto das sensações desagradáveis. Mas isso significa dizer que esse objeto, encontrado através da experiência, só a partir desse momento entra na cadeia representativa e passa a funcionar como representação-meta à qual todo o circuito associativo se liga e, aí então, lhe fornece sentido, o perfaz e fecha esse campo. Só aí então pode-se fazer dele aquilo para o que tende a estátua. Pode enfim nascer o desejo: “Agora sua fome não é mais, como antes, um sentimento que não tem objeto determinado; mas ela dirige todas as faculdades para obter o gozo de tudo aquilo que pode dissipar sua fom e”.130 A contraprova de que esse estado original de dor ou mal-estar é o motor de toda atividade — psíquica ou motora — está nas seguintes considerações que Condillac elabora na parte final do Traité:

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“Se nós imaginamos que a natureza dispõe as coisas de modo a prever todas as necessidades de nossa estátua, querendo comovê-la com as precauções de uma mãe, que teme ferir seus filhos... este estado nos parecerá talvez digno de inveja. Todavia, o que seria um homem dessa espécie? Um animal adormecido em uma profun­ da letargia. Ele existe, mas permanece como é... Incapaz de observar os objetos que o circundam, incapaz de observar aquilo que se passa nele mesmo, sua alma se divide indiferentemente entre todas as percepções às quais seus sentidos dão passagem. Semelhante de algu­ ma maneira a um espelho, sem cessar ele recebe novas imagens, e nunca conserva alguma delas" .m Esse estado, portanto, é inútil e inaproveitável do ponto de vista do desenvolvimento espiritual do sujeito. Nesse caso não há motivo para ela ocupar-se com o que quer que seja: nem consigo mesma, nem com outra coisa. Por hipótese, a natureza provê tudo para a estátua e prevê todas as suas necessidades. Sendo assim, nada mais distante que o malestar e a dor1’2e não há nenhum motivo para que ela realize qualquer ato. Mesmo a hipótese, levantada logo a seguir por Condillac, de uma situação onde a necessidade e o desejo aparecem mas não são imedia­ tamente satisfeitos conduz também às mesmas conclusões prece­ dentes. Portanto, estado também inaproveitável, já que não conduz a nenhum aprendizado. Basta, no entanto, que se introduza um certo hiato, entre o apare­ cimento do mal-estar e sua possível satisfação, para que as condições do desenvolvimento se instaurem: “Mudemos a cena, e suponhamos que a estátua tenha obstáculos a ultrapassar para obter a posse daquilo que deseja. Agora as necessidades subsistem por muito tempo antes de serem satisfeitas. O mal-estar, fraco em sua origem, torna-se insensivelmente mais vivo; ele se transforma em inquietude, por vezes termina em dor. Enquanto a inquietude é leve, o desejo tem pouca força, a estátua sente-se pouco pressionada a gozar: uma sen­

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sação viva pode distraí-la e suspender sua dor. Mas com a inquietude o desejo aumenta; chega um momento em que ele age com tanta violência, que só se encontra remédio no gozo: ele se transforma em paixão" .,34 11. Estamos agora, por outro lado, em condições de entender me­ lhor as idéias de necessidade, desejo, paixão e vontade. Originalmente a necessidade nada mais é que o estado conseqüente do de mal-estar e pode ter variações quantitativas. Mais tarde, quando, pela experiência, a estátua aprendeu qual o objeto que satisfaz a necessidade — elimi­ nando o mal-estar — por extensão, usa-se o termo necessidade refe­ rindo-se aos próprios objetos que a satisfazem.135 Mas, com precisão, esse último fenômeno refere-se ao desejo que é a necessidade já liga­ da à representação do objeto que a satisfaz e que induz à ação. Ou me­ lhor, é a ação de nossas faculdades que se determinam em direção a esse objeto.136A paixão é o hábito ou o costume de desejar.137Por fim, a vontade é a fixidez e a unilateralidade do desejo. Ela nada mais é que um desejo que passou a ser dominante.138 12. Essas concepções de Condillac deram margem a duas grandes linhas de interpretação. A primeira, que se pode denominar voluntarista tem, talvez, em Cassirer, seu maior representante. A segunda, mais difundida e, recentemente, defendida por J. Deprun, pode ser nomeada de intelectualista. A argumentação de Cassirer131’ pode ser enunciada como se segue. Na medida em que o estado ori­ ginal da estátua é determinado pelo mal-estar, o motor originário do espírito não se encontra na representação, mas no desejo ou esforço de sair desse estado.140 Nesse sentido a vontade deixa de ser causada pela representação passando esta, na verdade, a ser causada por aque­ la.141 Seguindo essa linha de raciocínio, Condillac seria o primeiro pensador a postular uma atitude “voluntarista”, cujos rastros podem ser seguidos até a filosofia de Schopenhauer.142 Já J. Deprun,143 pre­ cedido aqui por F. Alquié,144 argumenta que se, para Condillac, o desejo nasce do mal-estar e este último nada mais é que a privação de um objeto primeiramente julgado agradável, então é o juízo — e, portanto, o campo da representação — que é primordial. Nesse sen­ tido, Condillac seria ainda um bom herdeiro da postura intelectua-

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lista e seria melhor “inverter a fórmula de Cassirer e dizer que, em Condillac, a vontade é causada pela representação”.145 A questão é delicada e não parece fácil tomar um partido. Podemos arriscar uma hipótese que, talvez, reconcilie ambas as posições. Ela consiste, basicamente, em distinguir dois níveis da questão. Num primeiro nível, respeitando estritamente a ordem genética (que, afinal, é a do Traité), o mal-estar e o esforço são real­ mente originários. A análise do fenômeno da fome nos provou cabalmente isso. Não existe, originalmente, um objeto representado, na falta do qual o sujeito orientaria seu desejo e sua ação. O próprio desejo, como vimos, é constituído através da experiência. Além do que, essa postura coaduna-se bem melhor com a tese de Condillac sobre o primado absoluto do prazer e da dor na constituição do dese­ jo do sujeito: “O prazer e a dor, únicos princípios de meus desejos" .l4r> O termo princípio, aqui, como quase sempre acontece no Traité, reenvia ao componente geneticamente originário. Mas, se consideramos, agora, a questão num segundo nível, supondo-se já instaurado o circuito da necessidade e do desejo, quer dizer, que já tenha havido a ligação ao campo representacional ade­ quado, então, e só aí então, a representação do objeto passa a funcionar como o pólo que aciona tanto a necessidade quanto o desejo. A consti­ tuição completa do circuito como algo teleologicamente orientado é simultânea à introdução do campo representacional como aquilo que agora exerce o primado. Mas, o importante é não esquecer que esse campo é construído e derivado. Ele superpõe-se a um solo mais ori­ ginário onde o campo representacional é instaurado e não instaurador. Nesse sentido, a solução de Cassirer parece-nos mais próxima da intenção última de Condillac. 13.a) Retomemos agora nossa atenção para esse fenômeno do mal-estar. Sendo determinado pelo par prazer/dor ele está, como vimos, também sujeito a variações quantitativas. Ele representa, na verdade, o grau mais baixo da escala:

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“Eu chamo de mal-estar ou leve descontentamento o sen­ timento que ela experimenta: agora a ação de suas fa ­ culdades e seus desejos são mais fracos” ,'47 Na medida em que o sentimento desagradável torna-se mais vivo e intenso temos a inquietude ou tormento.148Nessa situação seus dese­ jos e a ação de suas faculdades são também mais intensos. Assim, do prazer e da dor, mas sobretudo desta última, nasce o mal-estar cujo grau máximo é a inquietude que, por sua vez, atiça em grau máximo o desejo. Sendo essa a verdadeira ordem é preciso, portanto, retificar a tese de Locke que, neste particular, viu mal as coisas. Ele confundiu aquilo que produz o desejo — a inquietude — com o próprio desejo: “... mas querendo definir o desejo, ele (Locke) o confundiu com a causa que o produz. A inquietude, diz ele, que um homem sente em si mesmo pela ausência de uma coisa que lhe daria prazer se ela estivesse presente é aquilo que chamamos de desejo. Logo seremos convencidos de que o desejo é outra coisa que essa inquietude” .m Condillac inverte, assim, a ordem estabelecida por Locke. A inquietude é, geneticamente, primordial, e é também o princípio que aciona a educação dos diferentes sentidos.150 Essa montagem concei­ tuai de Condillac parece ser mais coerente e harmoniosa que a elabo­ rada por Locke além de, ao que tudo indica, dar conta melhor dos fenô­ menos. Isso ele consegue escalonando de forma diferente os fenô­ menos. A ordem real, segundo Condillac, seria a seguinte: prazer/dor — inquietude — necessidade — desejo — satisfação. 13.b) O leitor já deve ter percebido que, após essa caminhada, estamos de novo frente ao fenômeno que viemos analisando desde seu aparecimento no texto de T. Hobbes:'5' esse movimento incessante que caracteriza a vida humana, denominado metaforicamente de “corrida” por este último, “inquietude” por Malebranche, e focalizado através do par “uneasíness/desíre” por Locke.

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Apesar de criticar Locke na leitura do fenômeno, num ponto Condillac está de acordo com ele: a inquietude não é algo que trans­ parece no decorrer do movimento do próprio sujeito nessa constante corrida através de inumeráveis objetos que apenas satisfazem momen­ taneamente seu desejo. Neste ponto Condillac também critica a conceituação malebranchista, e de forma explícita: “Os sentimentos que nos são os mais familiares são por vezes aqueles que temos mais trabalho para explicar. Aquilo que chamamos de desejo é um exemplo disso. Malebranche o define como o movimento da alma, e nisso ele fala como todo o mundo” Neste ponto, Locke e Condillac estão de acordo: a inquietude não emerge na passagem contínua de um objeto para outro, mas está con­ tida no próprio movimento em direção ao objeto singular. Mas isso não deve nos fazer esquecer de que há um profundo desacordo entre ambos na conceituação do fenômeno cujo alcance é bem maior do que se possa pensar à primeira vista. De fato, ao realizar essa análise, Condillac produz um novo enquadramento conceituai da questão con­ cernente aos fundamentos da vida passional provocando a segunda grande mutação neste campo. A primeira, lembremo-nos, foi realiza­ da por Hobbes. Agora, tendo distinguido a inquietude do desejo e mostrado que é a primeira que está muito próxima — se é que não se confunde — da “uneasiness”, enquanto que o segundo é alguma coisa de ordem diferente, Condillac faz com que o par prazer/desprazer acabe por ocupar o lugar fundamental e primeiro na genealogia e na hierarquia das paixões. Retomemos, dos vários, um texto onde essa mudança fica clara: “A partir do momento em que nela há gozo, sofrimento, necessidade, desejo, paixão, há também amor e ódio. Pois ela ama um odor agradável do qual goza ou que deseja. Ela odeia um odor desagradável que a faz sofrer. .153

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A inversão da escaia é, agora, completa. Lembramo-nos de que partimos da escala tradicional, assim estruturada: Amor — Ódio Desejo — Aversão Prazer — Desprazer Com Hobbes ela se modifica substancialmente e o par desejo/aversão é que passa a ser originário: Prazer — Desprazer

Desejo — Aversão

Amor — ódio

Agora, com Condillac, temos: Prazer — Desprazer Desejo — Aversão Amor — Ódio Tendo isso em mente, podemos compreender melhor o ver­ dadeiro alcance e profundidade de uma afirmação do Traité que seguramente pode passar por pretensiosa, sobretudo para aqueles que insistem em ver em Condillac um mero discípulo, ligeiramente indis­ ciplinado, de Locke: ‘Este objeto é novo, e ele mostra toda a simplicidade das vias do autor da natureza. Pode-se não admirar que só tenha sido preciso tornar o homem sensível ao prazer e à dor para fazer nascer nele idéias, desejo, hábitos e ta­ lentos de toda espécie?” 154 Se realizarmos alguns recuos temporais percebemos que, de fato, a mudança conceituai operada por Condillac no Traité não foi de pouca monta. Em primeiro lugar, com relação ao próprio Essai publicado em 1746, a mudança jã é significativa. Nesse texto, é verdade, afirmava-se que o princípio motor atuante deveria estar referido, em última análise,

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ao conceito de necessidade, como vimos. Mas, no texto, não é difícil notar que esse conceito é amplo, vago e mal definido. Ele é muito mais apontado e referido do que propriamente definido. Lembremo-nos tam­ bém, como procuramos mostrar na primeira parte deste trabalho, de que o conceito de necessidade está sofrendo, desde particularmente a segun­ da década do século XVIII uma séria mutação semântica na qual é sobretudo alargado em demasia e ameaça mesmo ficar embaralhado. A análise da “querela do luxo” mostra inequivocamente que esse, como muitos outros conceitos, embora tenha passado a ser capital, necessita de um trabalho de redefinição conceituai que o delimitasse claramente assim como oferecesse suas bases conceituais. Mesmo num texto relati­ vamente bem equilibrado como o de St.-Lambert, percebe-se a necessi­ dade de se explicitar e fundamentar essa nova concepção que, na maio­ ria das vezes, está meramente indicada nos textos. Trabalho árduo e complicado que implica dar precisão a noções que estão emergindo com um novo significado e como fundamentais. Tal é o caso da noção de desejo, necessidade, insaciabilidade, potência do imaginário etc. Esse trabalho teve, seguramente, seu início com T. Hobbes e terá seu acaba­ mento no Traité des Sensations porque aqui, ao contrário do Essai, adquirir-se-á uma grande precisão. Se levarmos em conta as conceituações já explicitadas anterior­ mente, o raciocínio de Condillac encadeia-se de forma cristalina, for­ mando um todo coerente e harmonioso: “Mas assim como sem experiência não haveria conheci­ mentos, não haveria experiência sem as necessidades, e não haveria necessidades sem a alternativa dos prazeres e das dores. Portanto, tudo é fruto do princípio que estabelecemos desde o início desta obra” .155 Sem necessidade não há experiência, no sentido positivo do termo. Sem a ação do princípio prazer/dor não se pode conceber a idéia de necessidade. Assim, o solo originário e constitutivo da própria experiência é esse princípio fundamental, que está na base, o que denominamos o princípio do prazer, respeitadas as reservas feitas ante­ riormente. Não é por acaso que Condillac afirma que ele está agindo incessantemente no desenrolar de toda a obra.156

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Mas, se (Operamos um recuo temporal maior, aí então, como já apontamos, percebemos a verdadeira reviravolta operada por Condillac. C om ele, o pressuposto central da filosofia clássica vem abaixo. Deixasse definitivamente de se pensar na preexistência de um bem objetivo