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Portuguese Pages [111]
DELÍCIAS DO CRIME
Coleção Capa Preta Volume 1
História Social do Romance Policial
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mandei, M239d
Ernest,
ERNEST MANDEL
1923-
Delícias do crime: história social policial/Ernest Mandei; tradução de Nilton São Paulo: Busca Vida, 1988. (Capa Preta; V.I)
do romance Goldmann. -
Tradução
Bibliografia.
Nilton Goldmann
1. Ficção policial e de mistério - História e crítica I. Título. lI. Título: História social do romance policial. III. Série.
Revisão Técnica Carlos
CDD-809.30872
88-0318
índices para catálogo sistemático: I. Ficção policial e de mistério: História e crítica 809.30872 2. Ficção policial e de mistério: Perspectiva marxista: História e crítica 809.30872 ISBN85-7126-00I-X
Antonio
Machado
Ernest MandeI
Copyright Título original:
Delightful Murder
A History of the Crime Story
Preparação: Sônia Maria de Amorim Revisão: Serena Pignatari, Fernando B. Gião e Sílvio Neves Ferreira Montagem: Paulo Rogério Akio Kato Capa: Isabel Carballo
Direitos adquiridos pela EDITORA BUSCA VIDA Rua dos Pinheiros, 928 05422 - São Paulo-SP Te!.: 815-2311
1988 Publicado
no Brasil
Em memória de Gisela (20 de junho de 1935 - 14 de fevereiro de 1982), que me deu dezesseis anos de amor e companheirismo e para quem a espontaneidade e a generosidade em relação a todos os seres humanos ocorriam tão naturalmente quanto a respiração.
Sumário
Prefácio/9
OBRAS DO AUTOR PUBLICADAS EM PORTUGUÊS Capitalismo tardio (Abril Cultural) Introdução ao marxismo (Ed. Movimento) O lugar do marxismo na história (Ed. Aparte) A teoria leninista da organização (Ed. Aparte) A formação do pensamento econômico de Karl Marx (Zahar) Marxismo revolucionário atual (Zahar) Trotsky - um estudo da dinâmica de seu pensamento (Zahar)
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15.
De herói a vilão/15 De vilão a heróil31 Das ruas para a sala de visitas/45 De volta às ruas/57 A ideologia do romance policial/69 Do crime organizado à detecção organizada/87 Do crime organizado ao crime estatal/97 Produção em massa e consumo em massa/107 Diversificação externa/119 Diversificação interna/133 Violência: explosão e implosão/145 Do crime aos negócios/155 Dos negócios ao crime/167 Estado, negócios e crime/l77 De uma função integrativa a uma função desintegrativa do romance policial/189 16. Fechando o círculo?/203 Bibliografia1213
Prefácio
PARA INÍCIO DE CONVERSA, devo confessar que gosto de ler romances policiais. Antigamente achava que eram simplesmente diversões escapistas: enquanto os lemos não estamos pensando em outras coisas; quando terminamos sua leitura não pensamos mais neles e pronto. Porém, este pequeno estudo constitui, por si só, uma prova de que este raciocínio é, no mínimo, impreciso. É claro que quando acabamos de ler qualquer romance policial deixamos de nos fascinar por ele, da mesma forma que eu, por exemplo, não posso deixar de ficar fascinado pelo grande sucesso do romance policial como gênero literário. Trata-se obviamente, portanto, de um fenômeno social: milhões de pessoas em dezenas de países, em todos os continentes, lêem romances policiais. Inúmeros autores e um grande número de editores capitalistas se tornaram milionários produzindo este tipo de artigo, intuindo com precisão as necessidades que o gênero satisfaz como uso-benefício - ou, para colocar em linguagem corrente, a exatidão com que os editores aferiram a curva da demanda. E por quê? Qual a origem dessas necessidades? Como se modificaram através dos anos e como se relacionam com a estrutura geral da sociedade burguesa? Estas são algumas das perguntas que tentarei responder. Meu enfoque é o método dialético clássico como foi desenvolvido por Hegel e Marx. A seguir, transcrevo a descrição de Hegel sobre o tratamento dado a um problema semelhante:
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Ao encararmos a totalidade da nossa existência, encontramos na nossa consciência comum a maior variedade de interesses e as formas de satisfazê-los. Em primeiro lugar, a grande área das necessidades físicas; os grandes mundos das profissões (e dos produtos manufaturados) em seus amplos empreendimentos e inter-relações, assim como o comércio, a navegação e as artes técnicas, e a classe operária (para satisfazer essas necessidades). Além disso (encontramos), o domínio do direito e das leis, da vida familiar, da divisão dos Estados, de todo o campo abrangente do país. Mais além (encontramos), a necessidade de religião, que pode ser detectada em todos os corações e que recebe lenitivo na vida religiosa. E, finalmente, (existe) o exercício da ciência, ela própria subdividida em inúmeros ramos interligados, isto é, a totalidade do conhecimento e da compreensão que tudo abrange. E, quando surge uma nova ciência, questiona-se a necessidade intrínseca de tal carência em relação às outras áreas da vida e do mundo. À primeira vista, pois, não podemos fazer qualquer coisa a não ser registrar a existência desta nova necessidade, nem podemos explicá-Ia imediatamente, pois tal explicação acarretaria uma análise mais detalhada. O que a ciência (nos) pede é a compreensão sobre a essencial relação íntima (da nova carência para o resto da vida) e suas mútuas necessidades (p. 137 e ss., tradução do autor, inclusive as linhas grifadas). Muito bem. Não serei eu mais do que uma vítima da ideologia burguesa sendo tragado no turbilhão, junto com milhões de outros infelizes, construindo uma elaborada racionalização para um simples vício idiossincrático? A experiência pessoal e a negativa em me sentir culpado por me entregar a um prazer proscrito pelos fariseus (pois a revolução como a religião possui seus tartufos) me levaram a interrogar profundamente o mais difícil e complexo enigma da teoria social: como as leis da psicologia individual
cruzam as grandes curvas da ideologia social e da evolução social como um todo? Por ter tratado a história do romance policial como um dado social e não literário, ignorei deliberadamente pelo menos uma importante dimensão: a personalidade, caráter e vida da maior parte dos autores, pois na verdade são inúmeros. Portanto, considerar o lado oferta do romance junto com o lado demanda tornaria a tarefa intransponível. Apenas em alguns casos, desviei-me dessa rota e me detive na psicologia individual do escritor policial. Porém, existe outra razão para ignorar as personalidades, além das idéias dos autores. Em grande parte esse gênero pertence àquela parcela da produção literária que os alemães chamam Trivialliteratur, que implica um grande volume de "escrita mecânica", na qual os autores compõem, decompõem e recompõem fios do enredo e personagens como se estivessem numa esteira rolante. A personalidade dos autores, nesses casos, só é relevante na medida em que isso os torna capazes e propensos a escreverem de tal forma. Aos que consideram frívolo para um marxista perder tempo analisando romances policiais, só me resta oferecer esta desculpa final: o materialismo histórico pode - e deve - se concentrar em todos os fenômenos sociais. Nenhum deles é, por natureza, menos digno de ser estudado do que os outros. A grandeza dessa teoria - e a prova da sua validade - repousa precisamente na sua capacidade de poder explicá-los.
De herói a vilão
o MODERNO ROMANCE POLICIAL deriva da literatura popular sobre "os bons bandidos": de Robin Hood e Til Eulenspiegel, passando por Fra Diavolo, até Rinaldo Rinaldini, de Vulpius, e Die Rãuber (Os bandoleiros) e Verbrecher aus verlorener Ehre (O criminoso da honra perdida), de Schiller. Porém, nisso houve um salto mortal dialético. O herói bandido do passado se tornou o vilão de hoje, e o representante da autoridade vilã do passado, o herói dos nossos dias. A tradição das histórias dos bandidos é venerada no mundo ocidental, começando com os movimentos sociais que contestavam os regimes feudais e recebendo um poderoso ímpeto com o início da decadência do feudalismo e o surgimento do capitalismo no século XVI. Em Rebeldes primitivos (1959) e Bandidos (1969), Eric Hobsbawn mostrou que os "bandidos sociais" são ladrões de uma categoria especial a quem o Estado (e as classes dominantes) encara como fora-da-lei, embora permaneçam dentro dos limites da ordem moral da comunidade camponesa. Porém, essa tradição literária é, no mínimo, ambígua. Anton Block convincentemente demonstrou que esses rebeldes eram na realidade tudo, menos beneméritos, além de serem capazes de explorar, com perversidade, os camponeses se aliando aos proprietários locais contra o poder central. É óbvio que é mais fácil para um camponês lidar com este tipo de bandido do que com nobres e mercadores, razão pela qual os camponeses não apoiavam as autoridades contra estes antigos rebeldes.
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Nathan Weinstock, por outro lado, demonstrou que esses bandidos não eram arautos da revolução democrático-burguesa, e nem mesmo reformistas agrários. Eram, sim, lumpen pré-proletários empobrecidos e assaltantes nômades, cujas qualidades e defeitos eram bastante diversos dos dos membros da burguesia ou dos assalariados. Incorporavam uma rebelião populista, pequeno-burguesa, contra o feudalismo e o capitalismo emergente. Esta é uma das razões pelas quais a tradição dos contos e dramas sobre os rebeldes e os bandidos é tão extensa dentro da literatura mundial, não se limitando apenas à sociedade ocidental. No modo de produção da Ásia, deu margem à obra-prima do épico chinês do século XIII: Shuihu-Zhuan (Na margem do rio)". Porém, é significativo que a Espanha, país que considerou a história dos bandidos como um gênero literário - o romance picaresco -, tenha sido o lugar em que a decadência do feudalismo foi mais profunda e o processo de declínio mais protelado, deixando a sociedade num impasse durante séculos. (A literatura italiana refletiu uma estagnação semelhante, embora menos pronunciada.) Do outro lado do Atlântico - onde não existia uma ordem social feudal, mas onde o absolutismo inglês reinava com todas as suas arbitrariedades - a revolta populista com "os bons bandidos" também surgiu na vida real: Peter Kerrivan era um menino irlandês que em meados do século XVIII tinha ficado impressionado com a marinha inglesa, onde fora tratado tão cruelmente como escravo. Fugiu do navio do Novo Continente e se tornou chefe de um bando de proscritos irI. Shi Nai'an e Luo Guanzhong, Outlaws of the marsh, Indiana University Press, Bloomington, Ind., 1981. Robert van Gulik (Willow pattern, 1965), diplomata holandês que se tornou autor de romances policiais, criou um ficcional juiz chinês do século XVII, Jen-Dieh Dee, que alguns críticos erroneamente pensaram se tratar de uma figura histórica. Entretanto, apesar de o juiz ser um personagem de ficção, os enredos de van Gulik são baseados em registros judiciários verdadeiros. Não se trata, portanto, aqui de "clássicos" romances policiais, uma vez que a tradição que van Gulik descreve se desenvolve em torno da oposição do domínio arbitrário dos mandarins ou de outros opressores, mais do que com a solução dos mistérios.
landeses, oriundos, eles próprios, dos pelotões navais ou dos empregados contratados para as colônias, seqüestrados na Irlanda e vendidos como animais aos ricos mercadores ingleses nas costas do continente recém -desco berto. Passaram a ser conhecidos como os Homens Sem Patrão ... os ingleses enviaram diversas expedições navais para capturá-los, mas inevitavelmente essas incursões terminavam em pântanos ou matagais, ao lado de caminhos forjados para eles pelos homens de Kerrivan. É interessante observar que Sigmund Freud demonstrava grande preferência por boas histórias de bandidos e, segundo Peter Brückner (Freuds Privatlektüre, Kõln, 1975), traçou um paralelo entre a psicanálise e o romance picaresco, comparando-o com um espelho da sociedade visto por baixo, arrastando-se pelas ruas. Porém, embora "o bom bandido" expressasse uma revolta populista e não-burguesa contra a ordem feudal, a burguesia revolucionária poderia não obstante compartilhar o sentimento de injustiça do bandido, diante das formas extremas do governo tirânico e arbitrário. Em grande parte da Europa e da América Latina, a luta contra o espírito da Inquisição e contra a tortura tornou-se a quintessência do combate liberal pelos direitos humanos. A perpétua luta do liberal italiano Alessandro Manzoni contra a tortura, já no século XIX, é, com justiça, reconhecida. Menos comentado é o horror da justiça semifeudal nos primórdios do século XIX até na Alemanha Ocidental, nas margens do Baixo Reno. O decreto que se segue, por exemplo, promulgado em 1803, emprega uma linguagem que prenuncia a terminologia nazista: Considerando havermos constatado que os povos ciganos acima mencionados, apesar de todos os esforços e precauções, ainda não foram exterminados, mas conseguiram se disseminar de um lugar para outro em bandos pequenos ou grandes, além de che-
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garem a ponto de resistir à prisão, é chegado portanu o momento de realizar seu total extermínio. Assim que um deles for apanhado pela primeir vez cometendo uma má ação ou ainda não tendo sid estigmatizado com a letra "M" nas costas, uma reir cidência irremediavelmente acarretará sua conduçê ao patíbulo. Um cigano estigmatizado, uma vez reconhecic indubitavelmente como tal, deverá deixar o territór dentro de quatorze dias (que lhe serão concedidos p ra partir), sob pena de enforcamento caso o estign tenha sido aplicado neste território ou em outra loc lidade. Caso o referido cigano volte a este territór após ter partido, deverá então ser enforcado. Estes decretos também se aplicarão às mulhen ciganas e aos jovens que atingirem a idade de 18 ano. uma vez que se ligam imprudentemente aos acim mencionados bandos, seguindo-os e vivendo de assa tos a mão armada e roubo. De forma geral, todos os nômades, entre eles de vendo-se incluir também os músicos e atores ambu lantes, assim como os mendigos semitas e todos o mendigos estrangeiros, deverão deixar o territórir dentro de quatro semanas a partir da publicação d: presente decreto. Não é ilógico, portanto, que os autores burgueses li berais ou revolucionários devessem se identificar com desculpar a revolta do valoroso bandido contra a lei e a ar dem desumanas, apoiadas por um sistema que eles próprio: desejavam subverter. Esses autores não podiam, é claro justificar os ataques à propriedade particular ou o assassi nato dos donos das propriedades (embora o assassinatc dos tiranos fosse uma outra história), mas podiam muite bem compreender que atos de desespero nasciam de ums ordem social injusta e de instituições políticas irracionais. Uma vez extirpados estes problemas, a Razão regeria a sociedade e o crime desapareceria para sempre. A munição deveria ser concentrada sobre o Sistema e não sobre aque-
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les que o desafiavam, embora romanticamente e, em última análise, de maneira ineficaz. A tradição de protesto social e rebelião expressa nas histórias dos bandoleiros emergiu de uma história mitificada e perdurou nos contos folclóricos, canções e formas de conhecimento oral. Porém, foi consolidada na literatura por autores da classe média, da burguesia e até da aristocracia: Cervantes, Fielding, LeSage, Defoe, Schiller, Byron e Shelley. As obras destes autores foram escritas essencialmente para o público da classe alta - obviamente a única capaz de comprar livros naquela época. Ao lado dos romances desses autores, contudo, surgiu uma atividade literária de maior apelo popular: os volantes lidos e vendidos nos mercados, o famoso Images d'Epinal; as grandes tiragens dos complaintes; as crônicas populares como o Newgate Calendar e o melodrama popular, que atingiu seu auge nos teatros de Paris do Boulevard du Temple. Estas crônicas diferem das histórias dos bandoleiros, uma vez que refletem uma sociedade pré-capitalista baseada na pequena produção de bens com uma ideologia ainda semifeudal, cujo modelo tácito é uma sociedade cristã integrada, onde, como enfatizou Stephen King, os malfeitores são proscritos que se recusam a executar um trabalho honesto numa comunidade honesta. Esses bandidos, porém, podem ser redimidos se abraçarem os valores cristãos fundamentais e o castigo que recebem nestas diversas histórias representa um apelo para que a comunidade se conforme com esses valores. U ma sociedade como esta ainda pode lidar com seus malfeitores sem especialistas - ou pelo menos é o que acham os ideólogos. Não há necessidade de um herói policial ou de um detetive nestes enredos, apenas uma boa lição de caridade cristã no epílogo. No século XVIII, é claro, isso já estava se tornando rapidamente anacrônico e algumas das histórias do Newgate Calendar já começavam a demonstrar os primeiros desvios desses padrões. No século XIX, o Boulevard du Temple era chamado o Boulevard du Crime. A maioria dos mais populares melodramas se preocupava com o crime e não é difícil adivinhar por quê. Durante dois séculos, o Estado semifeudal
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impediu o desenvolvimento do teatro popular. Neste Ínterim, a imprensa do século XVIII fez o que pôde para esconder do grande público a realidade sobre o crescimento do crime nas ruas da capital francesa. No final do século, Sébastien Mercier escreveria: "As ruas de Paris são seguras, noite e dia, excetuando-se alguns incidentes". Porém, acrescentou: "Escondem-se ou suprimem-se toda a delinqüência escandalosa e os crimes que possam assustar as pessoas e apontar para a falta de vigilância daqueles que são responsáveis pela segurança da capital". Theodore Zeldin, que cita este trecho, conclui que um século mais tarde a situação era exatamente oposta. A imprensa de Paris noticiava 143 assaltos noturnos só no mês de outubro de 1880; em 1882, a população se tornou tão apreensiva que os cafés foram proibidos de continuar abertos depois da meia-noite e meia. Entretanto, esta dissipação do sentimento de segurança ocorreu entre a pequena burguesia e as camadas alfabetizadas da classe trabalhadora muito antes de surgir entre as classes mais altas e a alta sociedade. Enquanto os bairros ricos permaneciam relativamente seguros, durante os primeiros anos do século, os pobres se encontravam quase ao desamparo. O número de pessoas condenadas por crimes em Paris se elevou de 237 por 100.000 habitantes em 1835para 375, em 1847, e 444, em 1868. No início do século XIX, criminosos profissionais, até então desconhecidos no século passado, se tornaram uma realidade. Balzac calculou que durante a Restauração existiam cerca de 20.000 criminosos profissionais em Paris (dentro de uma população total de 1,25 milhão), enfrentando um contingente militar de aproximadamente o mesmo tamanho. O escritor relacionou o aparecimento dos criminosos profissionais com o surgimento do capitalismo e a conseqüente emergência do desemprego. "Todas as manhãs", escreveu ele em Code des gens honnêtes, "mais de vinte mil pessoas (em Paris) despertam sem noção de como vão se alimentar ao meio-dia." Não era de surpreender, acrescentou ele, que essas circunstâncias acarretassem a emergência de uma classe de criminosos profissionais. Verdadeiramente, já em 1840, o escritor H. A. Fregier ficou tão comovido
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com a aglomeração de uma miserável massa de mendigos, nas cercanias de Paris, que publicou um livro intitulado Des classes dangereuses de Ia population dans les grandes vil/es. O crescimento do crime nas ruas não podia mais ser ignorado. O aumento da liberdade de imprensa tornou gradativamente impossível suprimir este fato, sendo que alguns setores da burguesia não desejavam, de forma alguma, fazê-Io. O novo teatro popular e a imprensa popular eram, afinal de contas, negócios e, desta forma,por que não deveriam tentar aumentar os lucros e acumular capital, suprindo o gosto do público com histórias de arrepiar os cabelos sobre assassinatos, reais ou imaginários? Desta maneira, foi assim que Paris viu proliferar não só melodramas sobre assassinatos como também o maior sensacionalismo possível na imprensa marrom sobre crimes verdadeiros como o da viúva Chardon e seu filho, assassinados em dezembro de 1834 por Lacenaire, que seria imortalizado, após a Segunda Guerra Mundial, no filme O bulevar do crime. Às vezes até ocorria um encontro dramático entre o fato e a ficção, como quando Mme. Sénépart, viúva de um ex-diretor do Théâtre de l' Ambigu, foi assassinada em 1835, no seu apartamento, no número 24 do Boulevard du Temple, por um estudante de medicina. A crescente preocupação com o crime é mais bem exemplificada por Thomas De Quincey em Do assassinato como uma das Belas Artes, que surgiu em 1827 (com um pós-escrito acrescentado em 1854). De Quincey tinha sido editor da Westmoreland Gazette em 1818 e 1819, enchendo as colunas com histórias sobre assassinatos e julgamentos de criminosos. No ensaio de 1827, ele de fato insistiu nas delícias do assassinato,e da especulação sobre a descoberta de quem teria cometido o crime entre "amadores e diletantes", abrindo desta forma o caminho para Edgar Allan Poe, Gaboriau e Conan Doyle. De Quincey também iniciou a ligação entre o jornalismo popular e a narrativa sobre o assassinato como o fariam Dickens, Poe, Conan Doyle e tantos outros autores de romances policiais, chegando até Dashiell Hammett, E. Stanley Gardner e outros contemporâneos.
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trodução da aventura e do drama na vida cotidiana. O cenário romântico e bucólico das antigas histórias dos bandoleiros se tornou paulatinamente sem sentido dentro desse contexto. Aquilo que Jules Janin disse sobre o melodrama parisiense se aplica igualmente bem ao romance policial: "Ele (o governo) tolera estas pequenas peças para o divertimento do povo". Esta literatura também é estimulada por uma ansiedade muito mais profundamente arraigada: uma contradição entre os impulsos biológicos e os freios sociais que a sociedade burguesa não resolveu e na realidade não poderá resolver. No século XVIII a literatura popular tomou a forma de uma contradição entre a natureza e uma ordem social irracional. Agora, se tornou uma contradição entre a natureza e a - racional - sociedade burguesa. E, acima de tudo, o espaço crescente dos romances policiais na literatura popular corresponde a uma necessidade objetiva da classe burguesa de reconciliar a consciência do "destino biológico" da humanidade, da violência das paixões, da inevitabilidade do crime com a defesa e a justificação da ordem social vigente. A revolta contra a propriedade privada se torna individualizada. Com a motivação deixando de ser social, o rebelde se torna ladrão e assassino. A criminalização dos ataques sobre a propriedade privada torna possível transformar esses próprios ataques em apoios ideológicos da propriedade privada. Seria contraditório insistir em que a necessidade de se distrair da monotonia jaz no âmago da popularidade do romance policial e que, simultaneamente, uma profunda ansiedade está contida nessa necessidade? Acho que não. Num brilhante rasgo de intuição, Walter Benjamin, observou certa vez que "um viajante lendo, num trem, um romance policial está, temporariamente, substituindo uma ansiedade por outra". Os viajantes temem as incertezas da viagem, a chegada ao destino, a incógnita sobre o que acontecerá quando a viagem tiver acabado. Portanto, temporariamente suprimem (e desta forma esquecem) esses medos envolvendo-se nos inocentes temores ligados ao crime e aos criminosos que, eles bem o sabem, não guardam qualquer relação com suas vidas
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pessoais (Kriminalromane
auf Reisen, voI. 10, pp. 381-82).
Mais fundamentalmente, Erich Fromm demonstrou que a sensação de tédio, monotonia e enfado nada mais é do que manifestação de uma ansiedade mais profunda. Existem duas formas de se combater o tédio: se tornar produtivo e conseqüentemente realizado ou fugir das suas manifestações. Esta última saída é o método característico do homem contemporâneo normal, que busca incessantemente diversões e distrações sob as mais diversas formas. Os sentimentos de depressão e tédio se tornam mais agudos quando se está sozinho ou ao lado dos mais íntimos. Todas as nossas diversões têm a função de escapar ao tédio através das várias fugas à nossa frente. Especificando melhor, Fromm escreveu: Milhões de pessoas ficam fascinadas com as reportagens sobre assassinatos e pelos romances policiais. Correm aos cinemas para assistirem a filmes eujos dois temas principais são: o assassinato e o infortúnio. Este interesse e este fascínio não são apenas expressões de mau gosto e anseio pelo escândalo, mas correspondem a um profundo desejo pela dramatização da última instância da vida humana, isto é, a vida e a morte, através do crime e do castigo, da luta entre o homem com a natureza (pp. 142-43,194, traduzido do alemão). A dramatização do assassinato, que tão inocentemente agita os nervos das pessoas alienadas, pode ser usada com o propósito de defender a propriedade privada, uma vez que essa defesa assim se forma de uma maneira impensada.ê As pessoas não lêem romances policiais para 2. A atual literatura popular digestiva (Trivial/iteratur) possui dois componentes: o romance policial (e seu precursor, "as histórias sobre o Oeste' ') e a literatura feminina romântica. As edições destes dois gêneros são semelhantes, basta comparar os números citados na pág. 110 deste livro com os números de cópias vendidas pela "rainha" e pelo "rei" da literatura romântica (Barbara Cartland: 100 milhões; Harold Robbins: 200 milhões). O autor alemão Johannes Mario Simmel oscilou
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melhorar o intelecto ou para refletir sobre a natureza da sociedade ou da condição humana, mas simplesmente como diversão. É assim perfeitamente possível que leitores críticos da sociedade ou mesmo leitores socialmente revolucionários gostem de romances policiais, sem com isto alterarem seus pontos de vistas básicos) Porém a "massa" de leitores não será levada a buscar a mudança do status quo social lendo romances policiais, embora esses romances retratem conflitos entre indivíduos e a sociedade. A criminalização destes conflitos os torna compatíveis com a defesa da "lei" e da "ordem" burguesas. Eis aí, em suma, o significado objetivo para a ascensão do romance policial em meados do século XIX, num determinado ponto do desenvolvimento do capitalismo, da mendicância, da criminalidade e da primitiva revolta social contra a sociedade burguesa. E também numa determinada etapa da evolução da literatura. O romance policial popular ,que atende a grandes porções da classe média e camadas mais altas e letradas da classe operária,conseguiu algo que o romance burguês, com seu restrito público, nunca obteve. Com a crescente necessidade 'da burguesia de defender e não de atacar a ordem social, o bom bandido foi transformado no criminoso cruel. Ninguém menos do que Karl Marx observou:
de um gênero a outro, vendendo um total de 55 milhões de exemplares de suas obras, um número espetacular para um autor de língua alemã. Contudo, trata-se de um homem excepcional, cujo último romance policial, Bitte laSSI die Blumen leben (Não matem as flores, 1983), cruzou o umbral da literatura séria, além de conter também uma mensagem progressista. 3. Segundo Lôwy (Die Weltgeschichte ist das Weltgericht), Bukhárin era um fanático leitor de romances policiais, que chegava atrasado para importantes reuniões do partido porque não conseguia largar o romance que estivesse lendo na ocasião. De fato, em 1924, Bukhárin chegou a escrever um artigo no Pravda sobre a utilidade de se lançarem romances policiais na URSS, propondo a utilização desse gênero literário popular como meio para a educação de massa. Um primeiro romance (ou melhor, uma série), com o título de Mess Mend, foi publicado naquele mesmo ano e difundido em larga escala. Escrito por uma mulher, Marietta Staginjan, tinha ilustrações do grande pintor Malevitch.
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Um filósofo produz idéias, um poeta poemas, um padre sermões, um professor compêndios, e assim por diante. Um criminoso produz crimes. Se olharmos mais de perto para a ligação entre este último segmento da produção e da sociedade como um todo, nos livraremos de muitos preconceitos. O criminoso não só produz crimes como o direito penal e com isto, também, o professor que dá aulas sobre o direito penal, e, além disso, o inevitável compêndio pelo qual esse mesmo professor deposita tais aulas no mercado geral como "produtos". Isto acarreta o aumento da riqueza nacional, sem contar com a satisfação pessoal que - segundo uma testemunha competente como o Sr. Professor Roscher nos informa - o manuscrito do compêndio leva ao seu próprio criador. O criminoso, além do mais, produz toda a polícia e a justiça criminal, guardas, juízes, carrascos, jurados etc. e todas aquelas diferentes variantes dos negócios que formam igualmente as diversas categorias da divisão social do trabalho, desenvolvem as diferentes capacidades do espírito humano, criam novas necessidades e novas formas de satisfazê-Ias. A tortura, por exemplo, deu margem ao aparecimento das mais engenhosas invenções mecânicas, empregando diversos artífices honestos na produção desses instrumentos. O criminoso produz uma impressão, parcialmente moral e parcialmente trágica, conforme o caso, e, dessa forma, presta um "serviço" estimulando os sentimentos morais e estéticos do público. Produz não só os compêndios de direito penal, não só os códigos penais como os legisladores desta matéria e também a arte, a literatura, os romances e até as tragédias, como não só Schu/d de Müllner e Die Rãuber de Schiller demonstram, mas também Édipo e Ricardo lI/. O criminoso quebra a monotonia e a segurança cotidiana da vida burguesa. Desta forma impede a estagnação e dá margem àquela tensão e agilidade incômoda sem a qual até o atrito da competição seria anulado. Desta maneira, o criminoso dá um estímulo
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às forças produtivas. Enquanto o crime ocupa uma parte desta população. Assim, o criminoso surge como e assim reduz a competição entre os trabalhadores até certo ponto impedindo que os salários caiam abaixo do mínimo -, a luta contra o crime absorve outra parte desta população. Assim, o criminoso surge como um daqueles "contrapesos" naturais que acarretam um equilíbrio correto e abrem toda uma perspectiva de ocupações úteis (Teorias sobre a mais-valia, Parte I).
De vilão a herói
o ARQUÉTIPO DA FIGURA DO POLICIAL da moderna literatura é baseado num dos primeiros policiais mais conhecidos da História: o amigo inseparável de Fouché, Vidocq. Tratava-se de um bandido, ex-presidiário, que forçou diversos criminosos a servirem de informantes para o Ministério do Interior de Napoleão, um homem que forjou sua própria lenda, não só através da sua pragmática vilania (que virtualmente desconhecia limites), mas também através das suas mentirosas Memórias, publicadas em 1828. O Bibi-Lupin, de Balzac, e o inspetor Javert, de Victor Hugo, foram obviamente baseados nessa ilusória e atemorizante figura cujas ações e mentalidade frutificaram, um dia, em variadas, embora insípidas, personagens como J. Edgar Hoover, Heinrich Himmler e Beria. Na primeira parte do século XIX, a grande maioria da classe média e da intelectualidade era essencialmente hostil à polícia. Na maior parte dos países ocidentais, o aparato do Estado era ainda, anacronicamente, semifeudaI; uma instituição contra a qual a classe burguesa tinha que lutar (embora inconscientemente) em seus esforços para consolidar seu poder econômico e social. Onde o Estado já era aburguesado - Inglaterra, França, Bélgica, Holanda e no jovem Estados Unidos -, a burguesia liberal preferia que continuasse fraco, confiante em que as leis do mercado seriam suficientes para perpetuar seu domínio. O gasto do Estado era considerado um desperdício, uma dedução improdutiva da mais-valia que não faria outra coisa a não ser reduzir o volume de capital que poderia ser acu-
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mulado. A força policial era tida como um mal necessário dedicada à usurpação do direito e das liberdades do indivíduo; quanto mais fraca, melhor. De qualquer maneira, existia um motivo muito mais prático para a hostilidade em relação à polícia. A Lei das Falências, pelo menos na Inglaterra, ainda considerava a insolvência como uma ofensa criminosa. O número de devedores entre a população carcerária ultrapassava de muito os assassinos ou mesmo os ladrões. Juízes, policiais e carcereiros lidavam com dívidas, títulos bancários e contas muito mais do que com crimes violentos. As principais vítimas eram, conseqüentemente, comerciantes de classe média e seus refinados clientes, como Dickens retratou tão inesquecivelmente na imortal figura do Sr. Micawber e no seu romance Bleak house.! A disciplina industrial ainda não havia incutido com firmeza nos cidadãos a idéia de que não tinham o direito de gastar 21 xelins, quando sua renda era de apenas 20. O crédito ao consumidor ainda não tinha possibilitado as vendas a prazo, de forma que não era de surpreender que a classe média tendesse a ser hostil em relação a todo o sistema legal e à sua execução. Tudo isso começou a mudar entre 1830 e 1848. Foram os anos do início da revolta da classe trabalhadora contra a pobreza e a exploração capitalista: a revolta dos tecelões de seda de La Croix-Rousse em Lyon, na França, e dos tecelões de algodão da Silésia, na Prússia; a sublevaçã? do movimento cartista na Inglaterra; o surgimento da msurreição de Paris em junho de 1848. A violência e o ímpeto destas rebeliões instauraram o medo na burguesia pela primeira vez: talvez o poder não se reproduzisse eternamente apenas através da operação das leis do mercado. Um Estado mais forte e uma força policial correspondentemente mais poderosa eram necessários para manter uma vigilância sobre as camadas inferiores, sobre as classes eternamente descontentes, periodicamente rebeldes e portanto criminosas, sob o ponto de vista burguês. .. 1: Diversos outros livros de Dickens são uma espécie de romances policiais, entre eles Barnaby Rudge e, é claro, o inacabado Mystery of Edwin Drood.
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Num trabalho divisor de águas, Classes laborieuses et classes dangereuses, o historiador francês Louis Chevalier escreveu: Desde os últimos dias da Restauração até esses primeiros anos do Segundo Império, durante os quais uma Paris monumental se ergueu das ruínas da velha cidade, o crime foi um dos maiores temas de tudo que foi escrito em Paris e sobre Paris, uma cidade cuja criminalidade sobrepuja a tudo o mais por causa do lugar proeminente que o crime ocupa nas preocupações diárias do povo. O medo que vem do crime é constante, apesar de atingir o seu mais alto grau durante alguns frios e desoladores invernos. Muito mais importante do que o medo do crime, porém, é o interesse do público por ele e tudo que lhe diz respeito. Além desses casos de terror e medo, entretanto, a curiosidade sobre o crime é uma das formas de cultura popular dessa época, como também das próprias idéias do povo, suas imagens e palavras, crenças, níveis de consciência e maneira de falar e de se comportar (pp. 36-37). Outra mudança ocorreu nessa mesma época: o crime se tornou gradativamente um empreendimento capitalista. Em 1850, a maior parte das acusações criminais feitas na França ainda era por causa do roubo, porém, em 1860, a fraude se tornou o delito mais comum. Entre 1830e 1880, o número de roubos registrados se elevou 2386,10,de fraudes 3236,10e de contos-do-vigário 630% (Zeldin, p. 165). Pequenos comerciantes, artesãos, professores, funcionários públicos menos categorizados e camponeses sem dúvida esperavam não serem presos, embora estivessem igualmente dispostos a ver, atrás das grades, aqueles que os tentaram enganar, roubando-lhes as parcas economias ou os pequenos salários. À medida que as prisões eram lentamente evacuadas pelos devedores e preenchidas por uma população carcerária de malfeitores, ladrões, assaltantes, capangas e assassinos, elevou-se correspondente mente o status social dos
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agentes da lei. Entretanto, nos países anglo-saxões em especial, a burguesia se sentia suficientemente autoconfiante para não elogiar a polícia, cujos membros não eram mais vilões, uma vez que haviam deixado de ser apenas uma necessidade, passando dessa forma a serem encarados como benfeitores. A polícia podia manter a ordem e lidar com eficiência em relação aos crimes rotineiros. Ao contrário de um conceito errôneo, bastante difundido, os policiais nos primeiros romances policiais - desde Edgar Allan Poe passando por Arthur Conan Doyle até Mary Roberts Rinehart - não se assemelhavam àqueles cômicos guardas do cinema mudo ou palhaços de circo, mas a diligentes andarilhos que geralmente triunfavam no final da história e apenas em casos excepcionalmente difíceis eram enganados pelos bandidos. Estes policiais não eram ricos empresários ou descendentes da nobreza; não faziam parte da classe dominante, mas em geral pertenciam à baixa classe média, ou então àquela que buscava a almejada mas dificilmente atingível ilusão burguesa, à permanentemente integrada camada superior da classe trabalhadora. A arrogante burguesia não via razão para elogiar as superiores qualidades intelectuais da baixa classe média ou dos elementos do alto proletariado, especialmente na Inglaterra, onde todos deveriam conhecer seus respectivos lugares e onde, como nos estados do sul dos Estados Unidos (antes e após a Reconstrução), os "arrogantes" membros das classes mais baixas eram considerados não só suspeitos, como definitivamente subversivos. O verdadeiro herói do romance policial, portanto, tinha que ser um brilhante investigador oriundo da classe alta e não um esforçado policial. Eis a razão das origens de Dupin e Sherlock Holmes, Dr. Thorndike e Arséne Lupin, como também do inspetor Lecoq de E. Gaboriau, inspirado e orientado pelo barão Moser, portanto bastante diferente do policial comum. A própria noção de "ser mais esperto" do que um criminoso, caso isto possua algum fascínio, implica a existência de um criminoso de inteligência superior e de um detetive de ainda maior astúcia para enfrentar esse excepcional malfeitor. A primeira dessas implicações ficava e ainda
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permanece bastante distante da realidade. A esmagadora maioria dos crimes, especialmente os violentos, cometidos de fato durante o século XIX na Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos (sem mencionar a Itália, Espanha, Bélgica, Holanda, Suécia e Suíça), não demonstra qualquer esforço de ocultação assombrosamente arquitetado ou maquinações contra inocentes bodes expiatórios. E se houvesse quaisquer protótipos agraciados com essa curiosa combinação de conhecimento, sofisticação, inteligência e imaginação típica dos primeiros superinvestigadores, estes deviam estar ocupados com questões mais desafiadoras e satisfatórias do que perseguir criminosos. Os primeiros romances policiais, portanto, eram altamente formalizados e muito distantes do realismo e do naturalismo literário; mais do que isso, não se preocupavam, verdadeiramente, com o crime "em si". O crime era o arcabouço para um problema a ser solucionado, um quebra-cabeças para ser montado. Em muitos casos, o crime ocorre mesmo antes do começo da história; os ocasionais crimes posteriores, cometidos à medida que a trama se desenrola, são quase casuais, com o propósito de estimular a .investigação do primeiro assassinato ou para fornecer pistas suplementares para a identificação do assassino. Raramente se trata de atos independentes de violência homicida com o propósito de estimular ódio, paixão pelo castigo ou uma sensação de vingança. Portanto, o verdadeiro tema dos primeiros romances policiais não é o crime ou o assassinato, mas o enigma. O problema é analítico e não social ou jurídico. Como o professor Dove enfatizou, o padrão clássico do romance policial é uma seqüência de sete passos criada pela primeira vez por Poe e Conan Doyle: o problema, a solução inicial, a complicação, o estágio de confusão, as primeiras luzes, a solução e a explicação (p. 11). Em "As Vinte Regras do Romance Policial" ·(The American Magazine, setembro de 1928), S. S. Van Dine também salienta o que chama de "jogar limpo" com o leitor, uma das regras fundamentais do bom autor de um romance policial. "A luta de intelectos", em outras palavras, se desenrola simultaneamente em dois níveis: entre o grande detetive e o criminoso e entre
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o autor e o leitor. Nessas duas lutas, o mistério é a identidade do culpado para o qual tanto o detetive quanto o leitor devem ser conduzidos através de um sistemático exame das pistas. Entretanto, enquanto o herói do romance sempre sai vencedor, o leitor não deve de forma alguma suplantar o autor, pois desta forma a necessidade psicológica à qual o romance policial deveria corresponder não será mitigada: não haverá tensão, "suspense", uma solução surpreendente ou uma catarse. A arte do romance policial é atingir estas metas sem recorrer a truques baratos. As pistas devem estar todas presentes. Substituição secreta de um gêmeo idêntico por outro não é permitida, ou passagens secretas para escapar de quartos fechados por dentro. O leitor deve se surpreender ao saber a identidade do assassino e isto sem transgredir o "jogo limpo". Surpreender sem enganar é demonstrar uma genuína maestria do gênero. Agatha Christie é, por isso, adequadamente, chamada "a rainha da impostura", pois, na verdade, praticar a arte da impostura enquanto se "joga limpo" ao mesmo tempo é a quintessência da ideologia da classe dominante inglesa. A natureza dos primeiros romances policiais está, portanto, relacionada igualmente às funções da literatura popular e às forças mais profundas que operam sob a superfície da sociedade burguesa. A transformação do crime, se não dos próprios problemas humanos em "mistérios" que possam ser solucionados, representa uma tendência comportamental e ideológica típica do capitalismo. No mercado, os proprietários de bens se relacionam entre si somente através da troca. Desta forma suas relações se tornam alienadas e materializadas; tornam-se apenas relações entre coisas - que se refletem até na linguagem. Uma garçonete, certa vez, me disse em Nova York: "Você é o do rosbife com repolho, não é?" Portanto, todas as relações humanas na sociedade burguesa tendem a se tornar quantificadas, mensuráveis e empiricamente previsíveis. São divididas em componentes e estudadas como se estivessem sob um microscópio (ou através de um computador), como se fossem substâncias físicas como um pedaço de metal ou uma matéria química, ou fenômenos
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objetivos como as flutuações do preço das ações de uma companhia no mercado. A mente analítica tem domínio sobre a mente sintética. Nenhum equilíbrio dialético entre análise e síntese é sequer considerado. E o que é o romance policial senão a apoteose do pensamento analítico na sua forma mais pura? Os maiores triunfos da inteligência analítica foram conquistados nas ciências naturais, em especial nas suas aplicações na tecnologia e construção de artefatos mecânicos. A interação entre a inteligência analítica, o progresso científico, o desenvolvimento da indústria moderna e dos transportes, de um lado, e o surgimento do método capitalista de produção e distribuição, do outro, foi tantas vezes descrita que já se tornou um lugar-comum. Encontramos uma interação paralela na origem e nos primórdios do romance policial. O trabalho policial contemporâneo se baseou em primitivas mas poderosas inovações técnicas tais como a generalização dos registros de endereços e nomes dos cidadãos (geralmente diante da grande resistência encontrada ao objetivo inicial de transformar indivíduos em números) e num crescente emprego de relatórios de delatores sobre possíveis criminosos. Em Sp/endeurs et misêres des courtisanes Balzac declara: "A polícia possui fichas quase sempre precisas sobre todas as famílias e indivíduos cujas vidas são suspeitas e cujas ações são censuráveis. Nenhum deslize lhe escapa. O ubíquo caderno de apontamentos, balancete das consciências, é tão meticulosamente mantido como as contas do Banco da França. Assim como o banco anota o menor atraso, avalia todos os créditos, taxa os capitalistas, examina as operações com rigor, da mesma forma a polícia mantém a vigilância sobre a honestidade dos cidadãos. Neste particular, como no tribunal, o inocente nada tem a temer, pois só tomam medidas contra os infratores. Não importa quão bem situada seja uma família, esta não poderá escapar dessa providência social. A discrição deste poder, além do mais, é tão grande
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quanto sua extensão. Esta imensa quantidade de registros nas delegacias - de relatórios, anotações, fichas -, este oceano de informações dorme sem se mover, profundo e calmo como o mar. Estas fichas, nas quais os antecedentes são analisados, não são mais do que pedaços de informação que morrem dentro das paredes do Ministério; a Justiça não consegue fazer uso legal deles, mas encontra o caminho através da própria luz e desta forma os emprega - nada mais" (p. 377). Porém, o mesmo Balzac faz seu herói Jacques Collin vociferar bruscamente contra um promotor: "O senhor se vinga diariamente ou pensa desagravar a sociedade e ainda assim me pede para não me vingar!" (p. 586). Uma verdadeira brecha ocorreu por volta de 1840 com a invenção e imediata difusão da fotografia. Registros de criminosos e de pistas podiam ser tirados, mantidos e estocados para uso futuro. Não demorou muito para que seguissem a coleta e o registro das impressões digitais. Portanto, não foi por acaso, disse Walter Benjamin, que existiu uma correspondência cronológica entre a descoberta da fotografia e a origem do romance policial. C. L. Ragghianti demonstrou que a invenção da fotografia prejudicou o realismo e o naturalismo na pintura durante muito tempo. Pierre Francastel lembra como o pintor francês Gustave Courbet, precursor dos impressionistas, começou a destruir o "tema da pintura", representando aparências óticas em vez de objetos identificáveis. Deveria ser acrescentado que também tiveram seus efeitos o desenvolvimento das ferrovias e as mudanças que isto acarretou na percepção das paisagens e no movimento das imagens. O romance policial é para a "grande" literatura o que a fotografia é para a "grande" pintura. O romance policial está proximamente ligado à maquinaria, assim como a inteligência analítica aperfeiçoada, uma vez que o romance policial clássico é um quebra-cabeças formalizado, um mecanismo que pode ser composto e decomposto, enrolado e desenrolado outra vez como as engrenagens de um relógio,
que nada mais é do que o clássico protótipo da máquina moderna. Do ponto de vista técnico, esse novo gênero literário integrava três elementos: a "história ao contrário" (rêcit à rebours) desenvolvida por Godwin (Caleb Williams, 1794); a técnica da adivinhação-dedução, originária da Pérsia, e introduzida na literatura contemporânea por Voltaire (Zadig), e o coup de théatre emprestado do melodrama.ê Godwin, ideólogo político e precursor do anarquismo criou em Ca/eb Williams uma espécie transicional de romance que, segundo a observação de Stephen Knight, não corresponde à ideologia orgânica cristã (semifeudal, pequena produção de bens) ou à ideologia individualista burguesa do romance policial. Demonstra, porém, uma radical ideologia pequeno-burguesa (semijacobina): o autor anseia por uma pequena comunidade composta de indivíduos honestos, amigáveis e basicamente iguais, isto é, pequenos proprietários. Os primeiros grandes escritores de romances policiais foram Edgar AlIan Poe, Emile Gaboriau, William Wilkie Collins, Arthur Conan Doyle, R. Austin Freeman, Mary Roberts Rinehart, Gaston Leroux e Maurice Leblanc, embora possa ser acrescentado a esta lista um grande número de autores contemporâneos ingleses e franceses. Os crimes da rua Morgue, de Edgar AlIan Poe, é considerado o primeiro romance policial propriamente dito. Isto sem dúvida é verdade, uma vez que Auguste Dupin, o protótipo do detetive amador, soluciona o mistério através de pura técnica analítica. A idéia de um "orangotango" como assassino, contudo, poderia no mínimo ser considerada insólita. Pessoalmente, prefiro duas outras pequenas obras-primas de Poe: Thou art the man (1844), que é a primeira história policial com um "verdadeiro" assassino no sentido clássico da palavra, e A carta roubada (1845), que não trata de um assassinato e sim de um furto. 2. Veja a interessante discussão sobre a "história ao contrár!o" ou "construção de trás para diante e a arte do 'suspense' " em Denms Porter, The pursuit of crime, Yale UniversityPress, 1981, pp. 24ss.
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No inspetor Lecoq, Emile Gaboriau criou um detetive que alia os poderes dedutivos de Dupin com a cuidadosa investigação das pistas (Le crime d'Orcival, 1867). Os fran~e~espodem}ustificadamente protestar que o romance pohCI~1e de ongem francesa e não inglesa, uma vez que GabO~lau, ex~secretário do folhetinista Paul Feval, foi o primeiro a cnar uma verdadeira série de romances policiais. Devemos também notar que os problemas sociais e polítiC?S~ã~ muito mais acentuados nos seus livros do que nas histórias de Poe ou Conan Doyle, especialmente no tocante ao conflito entre proprietários rurais, monarquistas conservadores, e burgueses liberais. Um dos mais famosos romances policiais de todos os tempos - The moonstone, de William Wilkie Collin surgiu em 1868 em Ali the year round, uma revista editada por Charles Dickens. Collins, para citar Benvenuti e Rizzoni, "concebeu a idéia de escolher o criminoso entre o menos suspeito dos personagens, retratando nos seus livros _ detalhes de procedimentos médicos, legais e policiais com absoluta precisão" . ' Devemos observar também que a expressão "romance policial" (detective story) foi empregada pela primeira vez em 1878 pela romancista americana Anna Katharina Greene, no seu livro The Leavenworth Case. Porém o verdadeiro pai do romance policial, ou pelos menos o homem m~is, responsável pela enorme popularidade desse gênero, fOI, e claro, Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes (Um estudo em vermelho, 1887; As aventuras de Sherlock Holmes, 1892; As memórias de Sherlock Holmes, 1894). Com efeito, o próprio Conan Doyle fez uma descrição clássica sobre a tentativa de transformar a criminologia numa ciência exata em Um estudo em vermelho: Como todas as outras artes, a ciência da Dedução e da Análise só pode ser conquistada através de um demorado e paciente estudo. Antes de se voltar para os aspectos morais e mentais do problema, que apresentam as maiores dificuldades, deixe o investigador começar a dominar problemas mais elementares. Deixe que ele, ao encontrar um ser humano, saiba
num relance discriminar a história do homem e a ocupação ou profissão que exerce. Apesar de esse exercício parecer pueril, aguça as faculdades de observação e ensina ao indivíduo onde e o que deve buscar. Através das unhas de um homem, da manga do seu casaco, das suas botas, das suas calças, da calosidade do seu indicador e polegar, da sua expressão, dos punhos da sua camisa - através de cada um destes detalhes - se revela claramente a tendência deste homem. Se acrescentarmos que Conan Doyle estudou medicina na Universidade de Edimburgo sob a orientação do Prof. John Bell - defensor da teoria da metodologia dedutiva na diagnose das doenças, um homem que nunca se cansava de repetir aos alunos para que empregassem os olhos, ouvidos, mãos, cérebro, intuição e, acima de tudo, todas as suas faculdades dedutivas -, então indubitavelmente se destaca o nexo da base do romance policial com a triunfante sociedade burguesa, sua maquinaria, sua ciência natural e a coisificação das relações humanas burguesas. Este pensamento foi resumido pelos Goncourts no seu Journal (16 de julho de 1856): "Ele (Edgar Allan Poe) inova na literatura científica e analítica onde as coisas desempenham um papel mais importante do que as pessoas" . Boileau e Narcejac expressariam a mesma opinião um século mais tarde, argumentando que o romance policial trata primordialmente de "homens como objetos" dominados pelo destino (p. 125). Em The red thumb mark (1907), R. Austin Freeman, citado por Boileau e Narcejac como o criador do romance policial científico, desenvolve ainda mais a tentativa de tornar a criminologia uma ciência exata. E aquilo que os Goncourts disseram sobre Poe se aplica igualmente a ele: o autor trata mais com fatos do que com pessoas. O mesmo não pode ser dito sobre Mary Roberts Rinehart (The circular staircase; The great mistake), que solucionava seus enigmas através do estudo da atmosfera e da psicologia e não através de uma elaborada reunião de pistas. Mesmo assim, seus casos eram essencialmente jogos de inteligência dedutiva. Rouletabille, o herói de Gaston
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Leroux, se apóia exclusivamente, muito mais do que Sherlock Holmes, na sua inteligência analítica, desconfiando das provas que acredita serem sempre enganosas (Le mystêre de Ia chambre jaune, 1912). Rouletabille, inspirado em parte em Arséne Lupin, criado por Maurice Leblanc (L'Arrestation d'Arsêne Lupin, 1905; Arsêne Lupin, gentleman cabriouleur, 1907), é ainda o mais popular herói dos romances policiais depois de Sherlock Holmes. Filho de uma mãe aristocrata, Arsene Lupin é uma estranha reencarnação do velho "bandido nobre", acrescido das qualidades do Grande Detetive. Suas façanhas misturam a exaltação da habilidade analítica e da racionalidade do romance policial com a ação trepidante e as metamorfoses de identidade do folhetim. Ele rouba dos ricos e dá aos pobres, enquanto defende viúvas, órfãos e os espoliados. Um mestre do disfarce e da fuga, Lupin não rouba por dinheiro, mas, como Benvenuti e Rizzoni observam, "por satisfação psicológica, pelo prazer de desafiar a sociedade, para ridicularizar suas instituições mais antigas e para chamar atenção contra os costumes repressivos". Suas vítimas prediletas são os agiotas, os bancos, as companhias de seguro, as igrejas, o Tesouro, os milionários e até o Kaiser Wilhelm lI, assim como ladrões, assassinos, chantagistas e espiões.
Das ruas para a sala de visitas
o PERÍODO ENTRE GUERRAS constituiu a idade de ouro do romance policial. É verdade que alguns dos melhores trabalhos foram escritos na década de 40 e que alguns precursores de Agatha Christie já publicavam seus livros antes de 1914. Porém a Primeira Guerra Mundial pode ser considerada como um divisor de águas entre o tipo de histórias escritas por Conan Doyle e Gaston Leroux e os grandes clássicos das décadas de 20 e 30. Não é fácil enumerar os autores mais representantivos dessa idade de ouro. Alguns serão deixados de lado, por enquanto, uma vez que serão mais minuciosamente discutidos como desenvolvimentos posteriores do romance policial: os criadores dos heróis inspetores de polícia e das histórias de espionagem. Outroscomo Sax Rohmer, O. Philip Oppenheimer e Nick Carter - pertencem ao tipo de literatura colportage. Outros, ainda, serão omitidos por razões subjetivas: aqueles que, segundo minha opinião, não possuem a habilidade de construir a trama e criar "suspense", não sendo, portanto, suficientemente representativos. Em resumo, admito francamente que a seleção está aberta a qualquer desafio. Dois livros representam a transição pré-Primeira Guerra Mundial, situando-se entre os pioneiros e a idade de ouro: Trent's last case (1913), de E. C. Bentley, e At the Villa Rose (1910), de A. E. W. Mason, o primeiro superior ao segundo (pelo menos na minha opinião, que não é compartilhada por especialistas como Julian Symons). Estes dois romances possuem todos os ingredientes dos clássicos
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da idade de ouro, exceto ritmo e o estilo de tensão ininterrupta. Teria o stacatto da metralhadora da Primeira Guerra Mundial algo a ver com essa modificação? Enumeraríamos os representantes clássicos da idade de ouro do romance policial na seguinte ordem: Agatha Christie, G. K. Chesterton, Anthony Berkeley (Francis Iles), Dorothy Sayers, Earl D. Biggers, J. Dickson Carr, S. S. Van Dine, ElIery Queen, Margery Allingham, Rex Stout, Erle Stanley Gardner, Mignon B. Eberhard, NichoIas Blake, Raymond Postgate e Frances e Richard Lockridge. Edgar WalIace é um caso fronteiriço entre a literatura colportage e um verdadeiro espírito criativo (afinal de contas foi o criador de King Kong). Stanislaw-André Steeman Ngaio Marsh e Josephine Tey fazem a ponte entre esses clássicos e as histórias centradas no inspetor de polícia, embora a natureza dos seus temas os situem na idade de ouro. Não é fácil resumir as contribuições destes autores ao romance policial. Com certa relutância faríamos os seguintes comentários: Agatha Christie, cujos melhores livros incluem O assassinato de Roger Ackroyd (1926), Assassinato no Expresso Oriente (1934) e Os crimes ABC (1936), assim como Assassinato na casa do pastor (1930) - o primeiro da série com Miss Marple - foi uma mestra na criação e manutenção do "suspense". G. K. Chesterton (The incredulity of Father Brown, 1936; The scandal of Father Brown, 1935), essencialmente um autor de contos do gênero policial, possui o mérito de haver introduzido a meta física no romance policial. Seu detetive, padre Brown, é um sacerdote que se fundamenta na "compreensão do pecado" e na teologia católica em geral para provar que as coisas não são exatamente o que parecem ser. Anthony Berkeley (Francis Iles) é um mestre da dedução lógica, especialmente exemplificado em The poisoned chocolate case (1929). . Do.rothy Sayers, com seu herói Lord Peter Wimsey, introduziu o esnobismo e o senso de humor no romance policial (Unnatural death, 1927; Murder must advertise 1933). '
49 Earl D. Biggers inventou Charlie Chan, um detetive chinês que atua em Honolulu (The chinese parrot, 1926; Charlie Chan carries on, 1930). S. S. Van Dine (pseudônimo de Willard Huntington Wright) foi o mais erudito autor de romances policiais, e esta sua erudição transformou seu herói, Philo Vance, num personagem intolerável (The canary murder case, 1927). J. Dickson Carr tentou racionalizar o aparentemente sobrenatural, especialmente nas suas histórias com Gideon FalI (The Emperor's snuff box, 1942). Um dos seus melhores romances com Sir Henry Merivale como herói é The Plague court murders (1934). Ellery Queen (pseudônimo literário de dois primos, Manfred D. Lee e Frederick Dannay) foi talvez o mais hábil escritor deste grupo. Entretanto, uma imaginação sem rédeas e falta de autocrítica foram tornando seu trabalho mais e mais bizarro, com situações que prejudicavam a verossimilhança (The French powder mystery ; 1930; The devil to pay, 1938; Calamity town, 1946; The origin of evil, 1951) . Margery AlIingham foi a criadora de Albert Campion, protótipo do detetive particular que esconde sua inteligência atrás de uma máscara de vazia imbecilidade (Death of a ghost, 1934; Flowers for the Judge, 1936). Rex Stout, um mestre da narrativa, se inclinava para a motivação puramente dedutiva representada por seu herói Nero Wolfe (Too many cooks, 1938; Might as well be dead, 1956; The doorbell rang, 1965). Erle Stanley Gardner, um advogado criminalista, mudou o cenário do romance policial, passando-o para os tribunais no seriado com Perry Mason (The case of the shoplifter's shoe, 1938). Top of lhe heap (1952) é uma das melhores histórias com Donald Lam como herói, escritas por Gardner sob o pseudônimo de A. A. Fair. A sócia de Lam, Bertha Cool, é uma das primeiras mulheres detetives que trabalha no ramo com o fim explícito de ganhar o máximo de dinheiro possível, investindo-o em seguida em diamantes. Mignon B. Eberhard foi um imitador americano de
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Ngaio Marsh (Overtures to Tey, autores ingleses, tentaram aplicar as técnicas do romance policial para desvendar mistérios históricos: seria o Rei Ricardo III realmente culpado pelos crimes da Torre? (The daughters of Time, 1951). Frances e Richard Lockridge introduziram o casal na detecção do crime (The Norths meet murder, 1940). Stanislaw-André Steeman, um talentoso belga de origem polonesa, criou o delegado Wenceslav Vorobeitchek, inspetor de polícia de origem idêntica. Seu livro L 'Assassin habite au 21 (1940) utiliza com eficácia uma técnica já empregada por Christie em Assassinato no Expresso Oriente: um grupo de assassinos que se fornecem álibis mutuamente. Raymond Postgate é famoso pelo seu livro Verdict of Twelve (1940). Nicholas Blake é o criador do detetive Nigel Strangeways. O que caracteriza os clássicos do romance policial e os destaca dos seus precursores tanto quanto dos autores posteriores é o caráter extremamente convencional e formalizado das suas tramas. Em grande escala, marca a volta da famosa regra de Aristóteles em relação ao drama: unidade de tempo, lugar e ação. Em todos esses romances são observadas algumas regras comuns. O número de personagens é pequeno e todos estão presentes na cena do crimeou melhor ainda, permanecem lá durante o romance. Na mais pura das representações dos clássicos, o espaço de tempo é curto. O verdadeiro arcabouço temporal é o período durante o qual os suspeitos permanecem juntos e durante o qual o crime é cometido, embora acontecimentos passados possam fornecer a chave da motivação do criminoso. O assassinato inicial é o cerne da ação, ocorrendo no princípio da trama, às vezes mesmo antes do começo da história. O assassino é um único indivíduo, embora possa ter cúmplices, sem contudo fazer parte de conspirações, à maneira de Sax Rohmer, Edgar Wallace ou mesmo Fantomas, ou arquivilões como o famoso adversário de Sherlock Holmes, o Professor Moriarty ou Fu-Manchu. O culpado é sempre um único indivíduo e deve ser descoberto pelo leitor (geralmente partindo do princípio de que o culpado é Agatha
Christie,
enquanto
death, 1948) e Josephine
aquele em que recaem menos suspeitas), embora possa ser desmascarado pelo detetive. Na maioria das vezes, a personalidade desse indivíduo é formalizada e convencionalizada, geralmente incorporando um único impulso ou paixão que motiva o crime. O número de paixões é bastante limitado: ganância, vingança, ciúme (ou amor ou ódio frustrado), sendo que a ganância burguesa significativamente supera os outros impulsos. O herói do romance policial clássico, como o de seus predecessores, confronta argúcia analítica com astúcia criminal. Os assassinos fazem o que é possível para cobrir seus rastros e o "suspense" reina até que sejam descobertos e a prova da culpa seja apresentada. A chave para este sistema convencionalizado de crime e castigo não é ética, piedade ou compreensão, mas uma prova formal da culpa que deverá, por sua vez, conduzir a um veredicto de "culpado" pelo júri. O caráter abstrato e racional da trama, o crime e o desmascaramento do assassino tornam o romance policial clássico, muito mais do que seus precursores, o auge da racionalidade burguesa dentro da literatura. A lógica formal reina acima de tudo. O crime e o desmascaramento são como oferta e procura no mercado: leis abstratas absolutas quase completamente alienadas dos verdadeiros seres humanos e dos conflitos das paixões reais dos homens. Isto é o que diferencia o romance policial da literatura "não-trivial" que se ocupa do crime. Não é o mistério do ato criminoso (quem matou quem?), mas a trágica ambigüidade da motivação humana e do destino que se situa no âmago de obras como Der Fali Deruga de Ricarda Huch ou Crime e castigo de Dostoiévski, sem citar "Macbeth " e "Édipo Rei". A verdadeira literatura, como a verdadeira arte, reflete a sociedade através do "espelho quebrado" da subjetividade do autor, repetindo uma fórmula de Trotsky, reiterada por Terry Eagleton. Na Trivialliteratur esta subjetividade está ausente e a sociedade está "refletida" apenas para servir, com fins comerciais, a algumas prováveis necessidades dos leitores. Entretanto, aqui cessa a semelhança entre o romance policial clássico e seus originais antepassados. Existem im-
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portantes diferenças entre Sherlock Holmes, inspetor Lecoq ou Dr. Thorndyke, de um lado, e Hercule Poirot, Lord Peter Wimsey e Albert Campion, do outro. No seu esforço para conseguir unidade de tempo, lugar e ação, o romance policial clássico abandona as ruas cobertas de neblina de Londres e os contrastes da Paris metropolitana em favor da sala de visitas e da casa de campo inglesa. A Londres de Conan Doyle ou a Paris de Gaston Leroux (sem mencionar Arsêne Lupin) refletiam (embora de uma forma crescentemente convencional e simplificada) a verdadeira luta que o burguês industrial, o lojista e o banqueiro tinham que travar para conquistar seus lugares na competição universal da civilização burguesa emergente. Na casa de campo inglesa de Agatha Christie ou nas mansões da classe alta americana de Ellery Queen ou Rex Stout, vemos não uma burguesia conquistadora, mas uma classe estabilizada, na qual os rentiers* - e não os empresários - é que dão as cartas. Na verdade, o confinamento do cenário do romance policial clássico para a própria estabilidade da classe alta freqüentemente se torna formalizado como acontece nos romances de Rex Stout: Nero Wolfe cobra preços astronômicos, de forma que os mistérios a serem resolvidos geralmente dizem respeito aos ricos burgueses. A descrição do ambiente da classe alta é às vezes apimentada com humor e ironia, como nos livros de Dorothy Sayers e Rex Stout e parcialmente nas obras de Anthony Berkeley e A. A. Fair. Porém, o domínio do ambiente e dos valores da classe alta é óbvio demais para deixar de ser ignorado. Embora o romance policial clássico seja um gênero altamente formalizado, a conexão estrutural deste formalismo com a essência da sociedade burguesa não é em si formal, mas profundamente enraizada e forte. Os crimes das salas de visitas, casas de campo, mansões de milionários e salas de reunião de diretoria são marginais na sociedade, exceções e não regras. Os assassinos dos primeiros roman* Pessoas que vivem de rendas - aluguéis, juros, ganhos com títulos financeiros -, sem desenvolver atividade produtiva (em francês no original). (N. do T.)
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ces policiais ainda tinham alguma relação com os verdadeiros criminosos, com as cIases "perigosas" ou "criminosas", com crimes reais cometidos nos bairros pobres e nas zonas de bordéis. Os crimes do romance policial clássico, por outro lado, se tornaram obscuros, abstratos e fictícios. É precisamente pelo fato de o universo do romance policial clássico ser o do latifundiário bem-sucedido, classe dominante do período pré e pós 1914, nos países anglo-saxões (e numa escala menor na França; nos outros países imperialistas a espécie desapareceu após a Primeira Guerra Mundial), que o tratamento do crime pôde se tornar tão altamente esquematizado, convencional e artificial. Na realidade não seria um exagero despropositado sustentar que o verdadeiro problema do romance policial clássico não é, de forma alguma, o crime - e certamente não é a violência ou o assassinato como tal. É a morte e o mistério, com pronunciada ênfase no segundo. Pois este é o único fator irracional que a racionalidade burguesa não consegue eliminar: o mistério das próprias origens, o mistério das próprias leis do movimento e, acima de tudo, o mistério da destinação final. A autoconfiante burguesia anglo-saxônica das décadas de 10, 20 ou mesmo em 1935 (apesar da Depressão), como incorporada na inabalável segurança de um Philo Vance ou no infalível intelecto de um Ellery Queen, incansavelmente procura resolver o Mistério Maior, descascando camada após camada de falsas impressões, pistas ilusórias ou falsas. A vida e a sociedade são pergaminhos que ninguém, a não ser a Inteligência Superior, se atreve a procurar ler. Não é isto, afinal, o que a ciência moderna, surgindo com a burguesia, procura conquistar? Porém, o mistério sempre volta. Cada herói tem que passar repetidamente por idênticos movimentos, uma vez que cada ano traz em seu bojo um novo arsenal de enigmas - cada trimestre ou semestre, para os escritores mais prolixos. O herói de Dickson Carr, Gideon Fell, chega a se especializar em mistérios nos quais o que parece ser sobrenatural acaba sendo, no fim, perfeitamente natural, justificado por explicações lógicas e científicas. No romance policial clássico, a burguesia triunfante
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celebra a vitória da sua "classe" sobre as forças da obscuridade; porém a vitória nunca é final ou completa, pois outro assassino, outro conjunto de pistas contraditórias está à espreita. Como Lord Peter Wimsey, o detetive de Dorothy Sayers, exclamou em Unnatural death (1927): "Assassinatos solucionados são assassinatos malsucedidos. Os assassinatos realmente bem-sucedidos são aqueles que permanecem um mistério". (Segundo Sayers, na Inglaterra da década de 20 apenas cerca de 600,10dos responsáveis por mortes supostamente causadas por estratagemas ardilosos foram levados a julgamento por assassinato.) Por fim, a maioria dos heróis famosos dos romances policiais clássicos fazia parte das classes altas: Lord Peter Wimsey, Sir Henry Merivale (que diziam ter sido baseado fisicamente em ninguém menos que Winston Churchill, embora não na época em que este gozava sua maior fama), Albert Campion e Roderick Alleyn - todos membros da aristocracia. Philo Vance, Ellery Queen, Nigel Strangeways, Hercule Poirot e Nero Wolfe são ricos excêntricos e refinados burgueses; como também o são Perry Mason, a maior parte dos heróis de Anthony Berkeley e o Sr. e Sra. North. Na realidade, examinando toda a relação de heróis dos clássicos romances policiais, a única exceção seria Charlie Chan, uma vez que não se poderia esperar que um inspetor chinês, na década de 20, pudesse fazer parte da classe dominante. 1 Na verdade, esses detetives, na maioria, são burgueses diletantes e não capitalistas funcionais, para empregarmos a terminologia de Marx, mas isso também é típico da sociedade burguesa que se baseia numa divisão funcional do trabalho dentro da classe dominante. Ganhar dinheiro, afinal de contas, é um trabalho de horário integral na competitiva atmosfera do capitalismo, e aqueles que se especializam nisso têm pouco tempo livre para outros afazeres. O trabalho de tentar descobrir o mistério total - como a ta1. Monsenhor Ronald A. Knox, ensaísta inglês e apologista da religião, escreveu diversos romances policiais, assim como Ten Commandments of Detection (Apresentação de The Best Detective Stories, Londres, 1929), onde diz claramente: "Nenhum chinês deve aparecer no romance ... "
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refa de conduzir os negócios de Estado ou administrar os povos coloniais - é comodamente entregue a outros, aos setores inferiores da classe, pelo menos enquanto a situação se mantém razoavelmente estável. Robert Graves e Alan Hodge escreveram: A literatura menor foi agora dominada pelo romance policial. Um grande número de escritores obtiveram bons lucros desta maneira, criando então uma estranha situação. Na Inglaterra, embora algumas dezenas de assassinatos e vultosos roubos ocorram anualmente, não mais do que dois ou três destes casos possuem as mínimas características de interesse aos criminologistas, no que diz respeito a motivação ou procedimento; nem em qualquer desses casos um detetive particular desempenhou um papel decisivo na condução do culpado a julgamento - estas ações foram realizadas através do competente procedimento rotineiro da Scotland Yard. Entretanto, de meados da década de 20 em diante, alguns milhares de romances policiais foram publicados anualmente, todos se ocupando de crimes extraordinários e desconcertantes, dos quais apenas alguns poucos davam à polícia o mínimo de crédito para a solução do mistério. Esses livros não tinham o intuito de fornecer narrativas realistas sobre o crime e sim de servir como enigmas para testar a acuidade dos leitores no acompanhamento de pistas encobertas. Podemos afirmar sem susto que nenenhum deles, entre cem, revelava qualquer conhecimento de primeira mão sobre os elementos compreendidos como: organização policial, instituto médico-legal, impressões digitais, armas de fogo, veneno, leis da probabilidade - e sequer um, entre mil, tinha qualquer preocupação com verossimilhança. Os mais fantasiosos romances amadores (do ponto de vista criminológico) se tornaram os mais populares. Esses romances policiais, contudo, não têm a intenção de serem julgados através de parâmetros realistas, da mesma forma que não julgaríamos os pastores e as
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pastoras de Watteau em termos modernos de criação de ovelhas (pp. 300-03). Em resumo, este é o problema. A literatura' 'trivial" convencionalizada e formalizada, como todas as formas de arte convencionalizadas e formalizadas, não deve refletir de forma alguma a realidade. São criadas para satisfazer necessidades subjetivas, desempenhando assim uma função objetiva: reconciliar o perturbado, aborrecido e ansioso indivíduo da classe média com a inevitabilidade e permanência da sociedade burguesa. A necessidade subjetiva a ser preenchida pelo romance policial clássico nos anos entre guerras foi a nostalgia. Para a massa da pequena burguesia dos países anglosaxões e da maior parte da Europa, assim como para partes das camadas mais amadurecidas da classe dominante, a Primeira Guerra Mundial marcou um divisor de águas e uma correspondência com o Paraíso Perdido: o fim da estabilidade, a liberdade de gozar a vida num ritmo sossegado, a um custo aceitável, a crença num futuro assegurado e num progresso sem limites. A guerra e sua destruição, os milhões de mortos, as revoluções resultantes e a inflação, as sublevações econômicas e as crises significaram o final irrevogável daquela doucer de vivre que autores burgueses sérios, tão diversificados entre si, como Marcel Proust, Stefan Zweig, John Galsworthy e Scott Fitzgerald, expressaram com tanta sensibilidade. Quando terminou a guerra, a estabilidade não retomou à pequena burguesia, ainda essencialmente conservadora, que foi tomada pela nostalgia. A administração republicana nos Estados Unidos, o governo conservador de Baldwin na Inglaterra, Poincaré na França, Stresemann e Brüning na Alemanha se apoiaram politicamente neste sentimento. O romance policial clássico representou essa nostalgia no campo da literatura' 'trivial" . A casa de campo e a sala de visitas, cenários dos romances, como os pastores de Watteau, não eram reflexos da vida contemporânea, mas uma reminiscência do Paraíso Perdido. Através delas, a "Boa Vida" dos dias anteriores à guerra podia ser revivida - na imaginação, já que não podia ser na realidade.
De volta às ruas
A EVOLUÇÃO DO ROMANCE POLICIAL reflete a própria história do crime. Com a Lei Seca nos Estados Unidos, o crime atingiu sua maioridade, se expandindo das margens da sociedade burguesa até o âmago de todas as atividades. Seqüestros e guerras entre quadrilhas não faziam mais parte apenas da literatura popular, devorada pelos leitores com pitadas de excitação e medo; diariamente estavam diante de um grande número de cidadãos. Entretanto, a expansão do crime na América, que teve seu início na década de 20, embora tenha sido desencadeada pela Lei Seca, não estava de forma alguma limitada a violações da lei que proibia a fabricação e venda de bebidas alcoólicas. E, com a chegada da Depressão, ocorreu um novo e assustador impulso a todo tipo de crime - assaltos a bancos e assassinatos cometidos durante esses assaltos são os exemplos mais marcantes. Com a expansão quantitativa do crime, ocorreu sua transformação qualitativa, com o conseqüente domínio do crime organizado. Existe um fascinante paralelo entre as leis que regem a concentração e a centralização do capital no seu todo e a lógica do controle total do crime organizado sobre o contrabando de bebidas, a prostituição, o jogo, as loterias e sua predominância em cidades como Las Vegas, Havana e Hong Kong. Com a expansão das atividades, mais capital se fazia necessário para o investimento em caminhões, armas, assassinos, capangas, subornos para a polícia e para os políticos, exploração de fontes estrangeiras de abastecimento (exportação de capital). Quanto mais
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capital disponível, mais altos lucros e, portanto, as possibilidades de reinvestimento. Daí a extensão organizacional e a difusão geográfica. Os peixões devoram os peixinhos, e as grandes organizações facilmente sobrepujam os empresários individuais, seja entre quadrilhas criminosas seja entre fabricantes de aço. Até as regras do jogo, os procedimentos, são surpreendentemente semelhantes: uma competição acirrada, seguida de uma cautelosa consulta (como as famosas convenções das quadrilhas em maio de 1929 em Atlantic City, e em setembro de 1931, em Chicago) que conduz aos cartéis (sindicatos), os quais organizam a divisão dos territórios e mercados, e as fusões de fato (incorporações). Superchefes (os mais anônimos possíveis) impõem disciplina e, quando há uma mudança no relacionamento de forças, o:o!"re .uma ~enovaç~o ?a competição. Meyer Lansky, o gemo financeiro do sindicato do crime, é citado pelos autores franceses Jean-Michel Charlier e Jean Marcilly como te?do sido inspirado pelo livro Making profits, do econorrusta de Harvard, William Taussig. O crime organizado, é claro, antecede a Lei Seca. Jornalistas corajosos haviam desmascarado redes de suborno e corrupção, ligando a construção civil e os empresários de obras públicas com políticos locais e estaduais em diversas regiões dos Estados Unidos durante o período que sucedeu a Guerra Civil. Friedrich Engels estava apenas expressando uma opinião gradualmente compartilhada pela média dos cidadãos americanos quando escreveu que o sistema bipartidário nada mais era que o meio pelo qual duas quadrilhas de ladrões competiam na pilhagem do público: É bastante conhecida a forma pela qual os americanos vêm, há trinta anos, tentando se livrar dessa brincadeira que se tornou intolerável e do modo como, apesar de tudo, continuam a se afundar cada vez mais nesse mar de corrupção. É precisamente na América que melhor vemos como ocorre este processo de o poder estatal se tornar independente em relação à sociedade, da qual, segundo o projeto original, ele deveria ser um mero instrumento. Aqui não exis-
tem dinastia, nobreza, nem exército permanente, além de alguns homens mantendo guarda sobre os índios; nada de burocracia com postos permanentes ou direito à aposentadoria. E, mesmo assim, encontramos aqui duas grandes quadrilhas de especuladores políticos que ocupam alternadamente o poder estatal e o exploram através dos métodos mais corruptos e com os fins mais corruptos - e a nação fica impotente diante destes dois cartéis de políticos que são ostensivamente seus empregados, mas que na realidade a dominam e a pilham. (vol. 2, pp. 483-84) A importância do suborno para os políticos e delegados de polícia pode ser aferida pelos milhões de dólares envolvidos. Dizem que em 1924 o chefe da polícia de Nova York, Joseph A. Warren, recebia 20 mil dólares por semana, ao passo que seu sucessor, Grover A. Whalen, passou a receber, a partir de 1926, 50 mil dólares. Centenas, se não milhares de policiais menos graduados, recebiam, é claro, somas menores (ver Charlier e Marcilly, p. 75). Dizem que um policial graduado de Hong Kong chegou a receber até 9 mil libras mensais em subornos (equivalente a 150 mil dólares anuais); dizem também que um detetive, durante doze anos de serviço na polícia de Hong Kong, chegou a acumular uma fortuna de 40 milhões de dólares locais (equivalente a 7 milhões de dólares americanos) só em subornos (ver O'Callaghan, pp. 82-5). A própria Máfia - originária de uma luta política legítima: resistir à tomada e à pilhagem da Sicília pelos Bourbons - gradualmente se expandiu em importação e fabricação, imigração ilegal, contrabando etc. É interessante notar que as Triades, a sociedade secreta chinesa, teve uma origem política semelhante no século XVII, na luta contra a conquista da China pela dinastia Manchu. A organização chinesa, como a italiana, foi transplantada para a América através da imigração, no final do século XIX e início do século XX. As Triades nunca conseguiram organizar o crime nos Estados Unidos numa escala semimonopolista, por não terem conquistado o controle do mercado de massa do álcool proibido e produtos afins durante a década de 20.
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Mais tarde, conseguiram uma certa autonomia através do tráfico de drogas. Embora a Máfia mantivesse sua posição de força dominante no submundo americano até o final da década de 20, nunca conseguiu estabelecer o monopólio do contrabando das bebidas. O mercado era por demais amplo, e a organização e o capital necessários muito grandes para serem controlados por um grupo etnicamentecentrado e dotado de base restrita como a Máfia siciliana. Era necessária portanto uma maior amalgamação que foi obtida através da liderança de Lucky Luciano e incluía não só a Máfia como todo os Estados Unidos, além de ter se expandido pelo exterior. Foi a constituição do sindicato do crime que marcou a verdadeira maioridade do crime organizado na sociedade burguesa. O sindicato do crime nos Estados Unidos _ adeq,u~damente chamado A Organização - é apenas o pro~OtlPOe não, de maneira alguma, o único exemplo. O Japao, . a França, a Inglaterra, a Alemanha , o Brasil , a Argentma e a Turquia - para citar apenas alguns países _ possuem, cada um, uma estrutura equivalente. Embora as Triades nunca tenham obtido um determinado status nos E~t~dos Unidos, conseguiram-no na China pré-revolucionana, pelo menos nas cidades maiores como Xangai, e agora parec~ que estão conquistando em Hong Kong, Cingapura e Taiwan. Pouco se sabe no Ocidente sobre o sindicato do crime japonês chamado Yakuza que, segundo c~nst~, .r~nde anualmente alguns bilhões de dólares que sao divididos entre duas facções inimigas, o Sumiyoshi Rengo, que parece dominar o crime em Tóquio e o Yamugushi Rengo, que aparentemente controla grande parte do cnme no Japão ocidental (Atlanta Journal and Constitution, 8 de janeiro de 1948). . A maioridade do crime organizado colocou um ponto final no romance policial ambientado numa sala de visitas. E impossível se imaginar Hercule Poirot, sem falar em Lord Peter Wimsey ou Padre Brown, lutando contra a Máfia. Até o terrível Nero Wolfe se assusta ao ter de confrontar Zeck, o misterioso personagem do crime organizado. Isto não quer dizer que os romances policiais começaram a se ocupar com o sindicato desde o início da década de 30',
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isto ocorreria mais tarde. Porém, a conscientização das massas sobre a natureza das atividades criminosas tinha despertado, bastante cedo e violentamente, a ponto de fazer parecerem crescentemente atípicos, senão improváveis, os assassinatos ocorridos nas salas de visitas. A conscientização das massas veio à tona pela primeira vez com as chamadas revistas de mistério, que foram crescendo simultaneamente com o aumento do crime organizado. O protótipo delas era a série Black Mask, fundada em 1920 por dois conhecidos intelectuais americanos: H. L. Mencken e George Jean Nathan, numa tentativa de levantar dinheiro para financiar sua cara e sofisticada revista Smart Set. Diversos colaboradores de Black Mask mais tarde se tornaram famosos, como Erle Stanley Gardner e Dashiell Hammett. O termo roman noir geralmente tem sido aplicado à literatura pós-guerra das décadas de 40 e 50, iniciada, segundo dizem, pela série noire dos romances policiais de Marcel Huhamel. Isto não é verdade: o roman noir nasceu verdadeiramente na década de 30 e cresceu dentro da tradição da Black Mask. Foi então que ocorreu a primeira grande revolução no romance policial. As duas figuras predominantes desta revolução foram Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Três outros nomes proeminentes talvez devessem ser acrescentados: o belga Georges Simenon, o francês Léon Mallet e o canadense Ross Macdonald. Entretanto, o herói de Simenon, o Inspetor Maigret, já representa mais uma outra etapa: a polícia retoma o lugar ocupado pelo detetive particular. E embora o personagem de Ross Macdonald, Lew Archer, ainda seja um detetive particular, mesmo assim chegou tarde demais para ser considerado um participante da mudança ocorrida na década de 30. Nestor Burma, o herói de Léon Mallet, é o que mais se aproxima do padrão Hammett -Chandler. Em seu ensaio "The Simple Art of Murder", Chamdler, na realidade, teorizou sobre esta mudança, datando-a como iniciada com a obra de Hammett. Foi uma quebra abrupta da delicadeza do romance policial clássico, especialmente do crime baseado em razões psicológicas indivi-
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duais como a avareza e a vingança. A corrupção social, especialmente entre os ricos, tornou-se então o tema central, junto com a brutalidade, um reflexo não só da mudança dos valores burgueses provenientes da Primeira Guerra Mundial, como do impacto do banditismo organizado. Entretanto, embora a mudança de local e de atmosfera seja bastante real, ainda persiste uma inconfundível continuidade com os detetives particulares do tipo tradicional: Sherlock Holmes, Lord Peter Wimsey, Albert Campion, Philo Vance, Ellery Queen e Nero Wolfe. Isto é, a romântica busca da verdade e da justiça pelo que elas representam em si. Sam Spade, Philip Marlowe, Nestor Burma e Lew Archer podem parecer personagens durões, cinicamente desprovidos de quaisquer ilusões quanto à ordem social vigente, porém, no fundo, ainda são sentimentais, otários diante de moças em perigo e diante de fracos em confronto com os fortes. Num trecho clássico de "The Simple Art of Murder", o próprio Chandler descreve esta mistura de cinismo com romantismo: Por estas ruas sórdidas deve passar um homem que não tem mácula ou medo. O detetive deste gênero de história deve ser um homem assim. É o herói, é tudo. Deve ser um homem completo e um homem normal e também um homem extraordinário. Deve ser, para empregar um lugar comum, um homem honrado por instinto, por inevitabilidade, sem se preocupar com isso e certamente sem fazer qualquer alusão a isso. Não é difícil perceber a ingenuidade deste retrato. A idéia de um confronto individual com o crime organizado, à Dom Quixote, tem uma certa dose de fantasia adolescente no seu conteúdo e nenhuma relação com a realidade social das décadas de 20 ou 30. Para que as aventuras de Sam Spade, Philip Marlowe e Lew Archer possuam credibilidade, estes homens devem enfrentar, em última análise, criminosos menores. O culpado pode ser um milionário local, um astro de Hollywood ou um rico aventureiro, em vez de
um patético mordo mo numa casa de campo inglesa ou um jovem cafajeste querendo se apossar de uma herança antes que o tio mude o testamento, mas, ainda assim, um criminoso que possua apenas um poder limitado - e não um poderoso líder estilo Máfia, nem mesmo uma grande empresa. Este detetive particular duro, cínico e sentimental perseguirá os criminosos através de obstinados interrogatórios e mudanças constantes de cenário, e não através da cansativa análise de pistas e da encadeada motivação analítica. A ênfase neste processo de "perseguição" é em si uma pista sobre a mudança de valores burgueses refletida na "revolução" do romance policial clássico. Está ligada a uma outra mudança: os calejados detetives particulares, embora ainda sejam individualistas par excellence, não são mais excêntricos ou ricos diletantes; são profissionais da investigação e vivem disso, embora modestamente. Não trabalham em casa, mas num escritório, e geralmente são auxiliados por uma incipiente organização, ou um sócio, e às vezes uma secretária; estes homens marcam uma etapa transicional entre a investigação como uma arte refinada e como uma profissão organizada em grande escala. Raymond Chandler (O sono eterno, 1939; Adeus minha adorada, 1940) não deve ser julgado unicamente sob o prisma de seu itinerário pessoal: de uma escola pública inglesa para o funcionalismo público, daí para o comércio do petróleo americano, passando à literatura crítica social, para em seguida ir para Hollywood até a rendição diante do macarthismo. Sua contribuição criativa para a literatura em geral e para o romance policial em particular não pode ser ignorada. Entretanto, como sua obra é motivada pelo desprezo à corrupção da grande cidade, ,sua inclinação ideológica é geralmente mal interpretada. E sempre a estrutura do poder local que é denunciada nos livros de Chandler e nunca a estrutura nacional. (O mesmo não é verdade, por falar nisso, nos trabalhos socialmente mais críticos de John MacDonald, como por exemplo seu romance Condominium, 1977.) Portanto, a ideologia de Chandler é ainda basicamente burguesa, como enfatizou corretamente Stephen Knight:
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67 Em todos os seus romances é bastante óbvio que o cenário domina a estrutura; o herói não se encaixa numa seqüência predeterminada de acontecimentos, como ocorre na obra de Christie, que trabalha partindo do final da trama. O própriocostume de ~ha?dler de escrever em meias folhas de papel tinha o mtuito de aguçar o enfoque em pequena escala, tornando as conexões globais menos evidentes, capacitando-o a se concentrar no ato de reescrever o texto em maiores detalhes e não na revisão da trama. Chandler observou, meio de brincadeira, que quando tinha alguma dúvida fazia um homem entrar pela porta empunhando um revólver. As cenas são controladas pelo crivo de Marlowe em relação aos personagens e não pelos personagens em SI; e a necessIdade do detetive de reagir com total e det~lhada negatividade em relação aos outros é que abnl~a~ta as cenas. Chandler não estava disposto a restringir esta evolução em favor de uma trama bem feita, uma vez que o tipo de desenvolvimento era o ponto central da sua filosofia: estava escrevendo as aventuras pessoais de um herói e não tramas que criavam um problema penetrantemente enfocado ou um padrão de realidade social. (p.129 - o grifo é nosso.)
A realidade social e a crítica são muito mais fortes no di~cípulo de Chandler, o mais prolixo representante dos cnadores de detetives particulares: Ross Macdonald, um canadense educado em seu próprio país (The moving target, ~949; Thechill, 1964; Thefarsideofthedollar, 1965), e mais abertamente anticapitalista do que Chandler embora seu herói, Lew Archer, seja um sujeito mais suave do qu~ o Philip Marlowe de Raymond Chandler: "Sou um detet~ve. ,uma espécie de sociólogo dos pobres". "Aquele vale l~teIro espalhado lá embaixo pode parecer a terra prometida. Pode ser que seja para alguns. Só que, para cada uma des.sas fazendas com ar condicionado, piscina e pista d.e aternssagem particular, existem dúzias de barracos de ZInCO e trailers arrebentados, onde vivem tribos perdidas de trabalhadores imigrantes."
O calejado Lew Archer, de Ross Macdonald, quase fecha o círculo. É quase inteiramente um "produto dos acontecimentos". A maioria dos seus casos envolve desaparecimentos e, ao perseguir os culpados, o faz impelido pelas circunstâncias mais do que por uma iniciativa pessoal. A revolução no cenário e no modus operandi foi seguida por uma revolução de tom e de linguagem. O vagaroso e, às vezes, até relaxado estilo de Agatha Christie e o humor arrogante de Dorothy Sayers ou S. S. Van Dine, com suas anedotas elitistas e sua pseudo-sofisticação, dão lugar a uma parcimônia de recursos. Os diálogos diretos e vigorosos passam a ser considerados como realmente engenhosos, seu tratamento atingindo, às vezes, toques de maestria. Um vencedor do Prêmio Nobel, André Gide, escreveu o seguinte, nos seus Diários (16 de março de 1943), sobre Dashiell Hammett, comparando-o a dois outros escritores premiados com o Nobel: Li com interesse bastante aguçado (e por que não dizer admiração) O falcão maltês (1930), de Dashiell Hammett, de quem já havia lido, no verão passado, embora numa tradução, o surpreendente Safra vermelha (1929), muito superior ao Falcão, ao A ceia dos acusados (1934) e a um quarto romance, obviamente escrito em série, cujo nome agora me escapa. Em inglês, ou pelo menos em inglês-americano, muitas sutilezas me fogem, mas em Safra vermelha os diálogos, escritos de forma magistral, chegam a superar os de Hemingway ou até de Faulkner, enquanto a narrativa está organizada com perícia e um implacável cinismo. Neste gênero específico, acredito, é o livro mais extraordinário que já li. Dois precursores devem ser citados: Donald Henderson Clarke (Louis Beretti: The story of a gunman, 1929) e William Riley Burnett (Little Caesar, 1929), ambos inspirados em histórias de gângsteres reais. Um livro posterior de Burnett, High sierra, que segundo Javier Coma (p. 43) foi inspirado no caso Dillinger, contém o que poderia muito
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bem ser considerada a filosofia de um gângster (uma motivação do que apareceria muito mais tarde em O poderoso chefão, de Mario Puzo): "Ouça, neste país só uns poucos têm muita grana. Milhões não têm o que comer, não porque não exista comida, mas porque não têm grana pra comprar. Outros têm. Muito bem. Então por que os que não têm não se juntam e põem a mão nesta grana?" (Traduzido a partir do livro de Coma, citado em espanhol.) Porém o gângster Roy Erle, o herói do livro de Burnett, é a favor de uma expropriação individual e não coletiva. Isto não muda o sistema dos que têm e dos que não têm; muda apenas a lista dos que têm. No romance policial com o calejado detetive particular, a revolução de trama, cenário, estilo e solução também remonta às inovações tecnológicas: o que a fotografia e as estradas de ferro foram para os antigos romances policiais, o cinema e o automóvel são para o roman noir. Perseguindo criminosos em vez de examinar pistas, substituindo uma seqüência de cenas por uma trama bem construída, movimentando-se mais e mais rapidamente de cena para cena, o que é o roman noir senão o cinema explodindo em literatura popular, como mais tarde o policial explodiu primeiro no cinema através dos filmes sobre gângsteres e mais tarde com os filmes de suspense? George Raft conduz a Philip Marlowe, que nos conduzirá a Humphrey Bogart e a Hitchcock. Como Mary McCarthy escreveu na resenha literária do New York Times (abril, 1984) sobre a escritora Joan Didion: Como a câmera, este dispositivo mental não pensa, mas projeta imagens bastante fantasmagóricas e perturbadoras em sua maioria, precisamente por serem mudas. Mesmo quando sonorizadas, como é o caso aqui, permanecem caladas e de certa forma assustadoras em sua espantosa aversão ao pensamento.
A ideologia do romance policial,
A PREOCUPAÇÃO COM A MORTE é tão antiga quanto a humanidade. A morte, como o trabalho, é a nossa sina inevitável, apesar de ser uma fatalidade natural mediada por condições sociais determinadas por estruturas específicas. As causas da morte e seu momento dependem em grande escala das condições sociais. A mortalidade infantil e a expectativa de vida têm variado grandemente através da história, assim como as noções relativas à morte. A história social da morte é uma preciosa fonte de informação sobre a história social da vida. O desenvolvimento da produção de bens e a emergência generalizada da produção de bens, ou o capitalismo, alteraram profundamente a postura em relação à morte. Nas sociedades primitivas e de classe, ainda baseadas· essencialmente na produção de "uso-valor" , a morte é vista como uma conseqüência da natureza, como alguma coisa para a qual as pessoas precisam se preparar, ajudadas pela atenção de suas famílias e dos grupos sociais nos quais estão integradas. Daí o respeito aos velhos e à cultura dos antepassados, que é parte de uma tentativa de aceitar a morte como um fim natural da vida. Nas sociedades baseadas na produção e na circulação de valores de troca, reina, acima de tudo, a competição entre os indivíduos. As pessoas são julgadas, não pela maturidade de suas experiências ou por sua força de caráter, mas pelo seu desempenho na competição desenfreada. As : pessoas mais velhas são, portanto, consideradas um fardo, gradativamente inúteis, uma vez que não trabalham ou ga-
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nham dinheiro. A proteção aos idosos torna-se mais e mais despersonalizada, anônima e controlada por organismos burocráticos. Por causa da mudança do destino dos idosos, da transformação do relacionamento entre o indivíduo e a comunidade e da absoluta supremacia da mais-valia e do dinheiro, do capital e da riqueza, o ser alienado, na sociedade burguesa,torna-se obcecado pela integridade do corpo, instrumento indispensável para o trabalho e para a renda, e conseqüentemente muito mais obcecado com a morte. Daí vem a imagem de que a morte é um acidente catastrófico e não uma inevitável conclusão da vida. Na verdade, estatisticarnente-os acidentes são mais e mais as maiores causas da morte: desastres nas estradas, guerras, e "doenças da civilização" . A morte acidental assumiu o lugar da morte ontológica na consciência burguesa da morte e certamente n~ sua ideologi~. I. • Boileau e Narcejac insistem em que o medo é a raiz ideológica do romance policial. Entretanto, o medo, especialmente o medo da morte, é tão antigo quanto a humanidade. Não se consegue explicar por que o romance policial não se originou no quinto século a.C. ou durante a Renascença. O romance policial necessita de um tipo específico de medo da morte, que tenha suas raízes nas condições da sociedade burguesa. A obsessão com a morte, vista como um acidente, conduz à obsessão com a morte violenta e portanto, à obsessão com o assassinato e com o crime. Tradicionalmente, a preocupação com a morte é tratada como uma questão antropológica (magia, teologia, filosofia) ou uma tragédia individual (religião institucionalizada, literatura, psicologia). Com o advento do romance policial como um gênero literário específico,ocorre um significativo corte nesta tradição. A morte - e mais especialmente o assassinato - se situa no centro do romance poli1. Um amigo suíço, Marc Perrenoud, elaborou a primeira tentativa de uma análise marxista sobre a relação da humanidade com a morte (Marx: Ia mort et les autres, manuscrito mimeografado). Em relação à história social da morte, ver dois livros recentes de Michael Vovelle: La mort et l'Occident de 1300 à nos jours (Paris) e O homem diante da morte (Paris, 1977) de Phillipe Ariés.
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cial; dificilmente encontramos um que não contenha uma morte violenta (os romances policiais de Paul Erdman são uma interessante exceção). Entretanto, a morte no roman-! ce policial não é tratada como um destino dos homens ou uma tragédia, e sim como objeto de indagação. Não é vivida, sofrida, temida ou combatida, mas torna-se um cadáver a ser dissecado, algo a ser analisado. A coisificação da morte se encontra no âmago do romance policial. Este fenômeno da coisificação da morte no romance policial equivale à troca da preocupação com o ~est.ino humano pela preocupação com o cnme e, como ja disse antes, esta é a linha que divide os assassinatos ocorridos nas grandes obras - desde Sófocles até Shakespeare, Stendhal, Goethe, Dostoiévski, Dreiser - dos crimes nos romances policiais. A preocupação com o crime, contudo, é uma preocupação com algumas regras objetivas, com a lei e a ordem, com a segurança individual, a segurança pelo destino de alguém (ou de alguma família), numa limitada porção da vida (por definição, assuntos como guerras, revoluções e recessões extrapolam o campo de ação deste tipo de segurança). A preocupação com o crime e a segurança pessoal conduz inevitavelmente a uma polarização maniqueísta. A segurança pessoal é, por definição, um bem; um ataque contra ela é, pela própria natureza, um mal. A análise psicológica, a complexidade e ambigüidade das motivações e do comportamento humano não têm lugar dentro deste maniqueísmo. O romance policial está baseado na mecânica da divisão formal dos personagens em dois campos: os maus (os criminosos) e os bons (o detetive e, de certa forma, a ineficaz polícia). Contudo, a extrema polarização do universo do romance policial é acompanhada por uma despersonalização do bem e do mal, que é a parte essencial da desumanização da morte. O bem e o mal não estão incorporados nos verdadeiros seres humanos, nas personalidades verdadeiramente complexas. Não há uma luta de paixões e vontades, apenas um embate de espíritos analíticos em oposição à inteligência preventiva. As pistas têm que ser descobertas, uma vez que os rastros foram encobertos. Em vez de conflito humano, existe uma competição entre inteligências
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abstratas, uma competição semelhante a um mercado onde o que está em jogo é uma luta entre preços de custo e preços de venda, e não entre seres humanos complexos. Esta coisificação do conflito reflete a coisificação da morte como u}TIacoisifícação do destino humano. E clar~ que essa coisificação não é puramente negativ~. Nas sociedades feudais e despóticas, a tortura é o principal método de "provar" os crimes e desmascarar os criminosos. Inocentes morriam sob tortura em meio a dores horríveis. Através da formalização do processo de coleta de provas, submetido às regras baseadas nos princípios dos valores burgueses, a justiça criminal do século XIX representou um avanço histórico no desenvolvimento da liberdade humana, embora este avanço tenha sido limitado e contraditório. Caracterizar este avanço como hipocrisia é fechar o,s olho~ ao fato evidente de que a eliminação da to~t~ra e uma Importante conquista da revolução democ~atlco-burguesa,. que os socialistas não rejeitam, mas precisam defender e integrar à revolução socialista e à construção do socialismo. Ao substituir disputas acadêmicas por coleta de provas no processo de detecção de um crime, ao substituir confissões extraídas sob tortura por provas formalizadas a~~eit~sno tribunal como base de um veredicto de culpa, a c~encI~, pelo menos parcialmente, suplanta a magia; a racíonalídade, pelo menos parcialmente, suplanta a irracionalidade. Neste sentido, como enfatizou Ernst Bloch o romance policial reflete e resume o progresso histórico vencido pela burguesia revolucionária por motivos óbvios de autodefesa e auto-interesse. Porém, racionalidade e racionalismo não são idênti~os. A. racionalidade coísífícada é incompleta e portanto m~uficlentem.ente racional. Não consegue apreender ou exphcar a condição humana em sua totalidade mas a divide artificialmente em compartimentos separado~: econômico político (cidadão), cultural, sexual, moral, psicológico ~ religioso, O~.criminosos são produtos dos próprios impulsos, os heróis produtos da busca de justiça (ou ordem). Dentro de um contexto tão formalizado,é impossível compreender, ou até colocar, a forma pela qual tanto o crirni-
noso quanto o detetive, o crime e a justiça, a prisão e a propriedade, são produtos da mesma sociedade, de uma etapa específica do desenvolvimento social. O crime e sua detecção não são apenas coisificados, mas também banalizados e desprovidos de quaisquer problemas. São aceitos como verdade fora do contexto específico social e do concreto desenvolvimento histórico que os criou. O racionalismo burguês é sempre uma combinação de racionalidade e irracionalidade e produz uma crescente tendência em direção à total irracionalidade. Por isso o romance policial, enquanto coloca a inteligência analític~ e a coleta de pistas científicas no cerne da detecção do cnme, geralmente recorre a paixões cegas, tramas loucas e referências à mágica, se não à loucura clínica, para "explicar" por que os criminosos cometem crimes. O próprio Conan Doyle simboliza esta contradição com sua crescente preocupação com o sobrenatural, que o levou, quase no fim da .vida , a escrever um livro provando a existência das fadas. . Mesmo se a paixão individual fosse o motivo dommante para o crime, ainda existiria o problema de por que um determinado contexto social produz mais e mais loucura, enquanto outros não - um problema nunca levantado pelo romance policial clássico. A própria estrutura do romance policial clássico reflete esta combinação. Como o professor Dresden salientou no seu trabalho Marionettenspel met de Dood, escrito em holandês, esse romance se movimenta em dois níveis simultâneos de realidade. Por um lado, tudo deve parecer tão real e corriqueiro quanto possível. A hora exata é sempre mencionada e são sempre fornecidos os locais exatos, às vezes até detalhados com mapas e outros esboços. As ações dos personagens são descritas nos mínimos detalhes, assim como roupas e aparência física. Ao mesmo tempo, tudo é envolto em ambigüidade e mistério: sombras sinistras expreitam ao fundo; as pessoas não são o que parecem ser; a irrealidade constantemente assume o lugar da realidade. Simenon enfatiza este contraste - e combinação em duas frases perspicazes: "Maigret observou os transeuntes e disse para si mesmo que Paris estava povoada por seres misteriosos e ilusórios, com quem raramente cruza-
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mos durante o curso de alguma tragédia"; e "Era bom voltar para a voz da Sra. Maigret, para o odor do apartamento com os móveis e os objetos em seus devidos lugares" . A desordem reconduzida à ordem e esta voltando à desordem; a irracionalidade perturbando a racionalidade; a racionalidade restaurada após as sublevações irracionais: aí está o cem e da ideologia do romance policial. Não é por acaso que o romance policial clássico se desenvolveu praticamente nos países anglo-saxões. Uma das características centrais da ideologia predominante na Inglaterra e Estados Unidos, durante a segunda metade do século XIX e os primeiros anos do século XX, foi a ausência, ou pelo menos a extrema fraqueza, dos conceitos de luta de classes como instrumentos para a interpretação dos fenômenos sociais. (Na Inglaterra, isso representava uma regressão, quando comparado aos períodos anteriores. ) Isso refletia a estabilidade da sociedade burguesa e a autoconfiança da classe dominante. A intelectualidade em geral e os autores de livros em particular, fossem eles socialmente críticos ou conservadores, interpretavam essa estabilidade como um fato consumado. Nessas circunstâncias, era natural que esses autores associassem a revolta contra a ordem social a uma atividade criminosa, para identificar o proletariado rebelde com as "classes criminosas" (uma expressão que aparece repetidamente nos romances policiais populares anglo-saxões). O que começou como natural logo adquiriu uma função social que rapidamente se tornou eficaz. Na França, ao contrário, embora intelectuais que escrevessem para uma platéia exclusivamente burguesa pudessem empregar tal expressão, as classes médias baixas e os trabalhadores letrados,' que perfaziam a massa leitora do romance policial, certamente não aceitariam tais idéias após experiências como a revolução de 1848 e a Comuna de Paris. Apenas porque a luta de classes era mais pronunciada e mais politizada na França do que nos países anglo-saxões, foi muito mais dificil, muito menos eficaz - e, portanto, menos abertamente praticado - criminalizar o conflito de classes ou subordiná-lo a conflitos individuais. É interessante notar que, na Alemanha e no Japão,
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os romances policiais "sérios" começaram a firmar raízes nacionais apenas depois da Segunda Guerra Mundial (com autores como Hansjórg Martin, Thomas Andresen, Friedhelm Werremaier, Richard Hey, Irêne Rodrian e Ky), embora J. D. H. Temme houvesse escrito muitos romances policiais na década de 1860.2 Somente neste momento a ideologia burguesa, no seu sentido mais puro, se tornou totalmente difundida. Mas, em ambos os casos, sublevações sociais significativas - guerra, derrota, ocupação estrangeira e subseqüente expansão econômica espetacular tornavam impossível escrever histórias com uma atmosfera de ordem e normalidade seculares. O contexto do crime é a riqueza e os negócios, às vezes com uma dimensão social modestamente crítica. Significativamente, os criminosos, na maior parte desses romances, são empresários ou gerentes de grandes empresas. Seus motivos, quase sempre, são a cobiça ou a pressão exercida pelas dificuldades financeiras. Uma antologia substancial de romances policiais da América Latina, editada por Donald Yates, Latin blood: The best crime and detective stories of South America, foi publicada em 1972. O autor holandês Erik Lankester duplicou esta coletânea em seu Zuidamerikaanse Misdaadverhalen (1982), incluindo famosos escritores que se ocuparam com romances policiais, como Borges, Cortázar, Gabriel García Márquez e Ben Traven. Embora a criminalização das classes mais baixas seja uma característica particular dos romances policiais anglosaxões mais "triviais", não é raro se encontrarem assassinos da classe média e até das classes altas nos romances policiais clássicos das década de 20 e de 30 (os romances de 2. O romance policial japonês teve origem com Edogawa Rampo na década de 20: Nisen doka (A moeda de cobre de dois-sen, 1923), mas na realidade se desenvolveu após a Segunda Guerra Mundial: 14 milhões de exemplares foram vendidos em meados da década de 60, 20 milhões em meados da década de 70. Além de Rampo, os principais autores são Seicho Matsumoto, Masahi Yokomizo (O caso de Honjin, 1947), Yoh Sano e Shizuko Natsuki (A morte passada). Todas estas referências vêm de Ellery Queen: Japanese Golden Dozen: The detective story world in Japan, Charles E. Tuttle, Tóquio, 1972.
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Agatha Christie, por exemplo). 3 O ponto crucial não é a origem econômica do assassino, mas sua apresentação como um desajustado social, um "grosseirão" que infringe as normas da classe dominante e que por este motivo deve ser punido. Da mesma maneira, é apenas parcialmente correto assemelhar as tradições inglesas e americanas do romance policial. Na Inglaterra, o capitalismo emergente estava integrado num Estado consolidado, produto de um prolongado desenvolvimento histórico, e unido, em relação à superestrutura social, a diversos remanescentes da superestrutura feudal. Daí a atmosfera geral das divisões de classe aceita por consenso no romance policial clássico inglês, uma aceitação expressa até no nível da linguagem. A violência, ausente do centro do cenário social, é empurrada para a periferia (as colônias, a Irlanda, os cortiços das classes operárias). O Estado é relativamente fraco, a polícia londrina desarmada por causa da aparente estabilidade da sociedade. De certa forma, tratava-se de uma falsa impressão, mas que determinou a maneira pela qual a ideologia dominante refletia a realidade inglesa e, conseqüentemente, o arcabouço dentro do qual se desenvolveria o romance policial na Inglaterra. 3. Sobre a psicopatologia da violência, atentem para esta passagem do romance de aventuras de Jack Higgins, Solo (Pan, Londres 198ücl): ' - Regras do jogo. Eles não eram o alvo. - O jogo? disse Morgan. - E que jogo seria este? . - .você ~everia saber. Já ve!ll jogando há muito tempo. O mais excitante Jogo do mundo, onde sua própria vida é a derradeira aposta. Você pode honestamente me dizer que já fez alguma outra coisa que te desse tanto élan? - Você está louco, disse Morgan. Mikali pareceu um tanto surpreso. - Por quê? Eu costumava fazer a mesma coisa quando usava uniforme e ainda por cima ganhava medalhas! Exatamente a posição que você está ocupando agora. Quando olha no espelho, é a mim que você está vendo. Mikali. é um famo~,? solista ?e ~oncertos ~ um assassino patológi-
C? Morg~ ~ um alto oficial do exercito e tambem uma espécie de assassino patológico,
Quando o centro do mundo capitalista transferiu-se da Inglaterra para os Estados Unidos, o sistema internacional já havia cessado sua expansão, iniciando seu declinio, embora o capitalismo americano continuasse a crescer. O desenvolvimento do capitalismo americano vinha portanto acompanhado pela fé decrescente nos valores burgueses, embora até 1929, se não 1945, esses valores permanecessem mais abertamente aceitos na sociedade americana do que nos países capitalistas menos estáveis e ricos. Entretanto, este declínio estava combinado com uma tradição histórica diferente, uma forma diferente de integração da ordem capitalista e do Estado burguês. Apenas porque o capitalismo norte-americano era o "mais puro" do mundo (uma vez abolida a escravidão), sem resquícios semifeudais e sem ordem hierárquica de origem pré-capitalista, os valores sociais predominantes estavam menos profundamente ancorados na tradição e menos completamente interiorizados pela população. A burguesia era muito menos reverente em relação ao seu próprio Estado. A corrupção, a violência e o crime encontravam-se em evidência, não apenas na periferia da sociedade americana, mas no seu próprio âmago. Enquanto o serviço público inglês era um verdadeiro empregado da sociedade burguesa e o político inglês bem-sucedido considerado um sábio notório, o funcionário público norte-americano era encarado, no século XIX, como virtualmente inútil, e os políticos bem-sucedidos apenas como vigaristas. A partir das origens, então, o romance policial norte-americano apresentou o crime como sendo muito mais integrado na sociedade como um todo do que entre os ingleses. O tema é ainda a luta entre os interesses individuais e as paixões, embora os acontecimentos dos romances sejam menos artificiais, menos tangenciais à ordem burguesa como um todo, do que nos romances policiais ingleses. A paixão, a cobiça, o poder, a inveja, o ciúme e a propriedade não colocam apenas o indivíduo contra o indivíduo, mas crescentemente acarretam conflitos entre homens e grupos ou famílias, chegando até a revoltas contra o conformismo de classe. O crime torna-se um meio pelo qual se galga a escada social ou uma forma de se continuar a ser
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um capitalista apesar dos desastres financeiros. É a estrada q~e conduz do inferno ameaçado até a reconquista do paraiso. E o pesadelo que persegue o sonho americano como a sombra persegue o corpo. As diferenças entre Dashiell Hammett, Rayrnond Chandler, Ross Macdonald e até Ellery Queen de um lado, e Agatha Christie, Dorothy Sayers, Anthony Berkeley e John Dickson Carr do outro, são provenientes desta especificidade da sociedade burguesa dos Estados Unidos. Mesmo assim, a ideologia comum do romance policial original e clássico na Inglaterra, Estados Unidos e países continentais europeus permanece essencialmente burguesa. Morte coisificada, detecção criminal formalizada, aceita nos tribunais de justiça, que operam segundo regras estritamente definidas; a perseguição do criminoso pelo herói descrita como uma batalha de cérebros; seres humanos reduzidos à "pura" inteligência analítica; racionalidade parcialmente fragmentada elevada ao status de um absoluto princípio diretor do comportamento humano; conflitos individuais empregados como um substituto generalizado para conflitos entre grupos e camadas sociaistudo isso é ideologia burguesa par excellence, uma síntese impressionante da alienação humana dentro da sociedade burguesa. Isto desempenha um poderoso papel integrativo para todos, menos para uma parcela extremamente crítica e sofisticada de leitores. Sugere paixões individuais, impulsos e ganância, e a própria ordem social - a sociedade burguesa - tem que ser aceita como tal, não importando suas deficiências e injustiças. Sugere também que aqueles que prendem os criminosos e os entregam às delegacias, aos tribunais, às prisões ou à cadeira elétrica estão servindo aos interesses da grande maioria dos cidadãos. A natureza de classe do Estado, da propriedade, da lei e da justiça permanece completamente obscura. A total irracionalidade aliada à racionalidade parcial, expressão condensada da alienação burguesa, impera absoluta. O romance policial é o império do final feliz - onde o criminoso é sempre apanhado, a justiça é sempre feita, o crime não compensa e no final a legalidade, os valores, a sociedade burguesa sempre
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triunfam. É uma literatura reconfortante, socialmente integrante, apesar da preocupação com o crime, a violência e o assassinato. S. Vestdijk chamou a atenção para as semelhanças e diferenças do romance policial com o jogo de xadrez. Em ambos os casos, temos um número limitado de jogadores e regras estritamente convencionais, que por natureza são mecânicas e puramente racionais; ambos são deterministas, cada movimento previsto pelo anterior e conduzindo ao próximo. Entretanto, as diferenças não são menos surpreendentes. No xadrez, o vencedor é aquele que realmente demonstra uma superior habilidade racional e memória (embora a capacidade de concentração e ausência de reações nervosas e de ansiedade também sejam um fator importante para determinar o vencedor). Por outro lado, no romance policial clássico,o vencedor é predeterminado pelo autor. Como uma raposa caçada, o criminoso jamais escapa, não sendo portanto um jogo limpo e sim um jogo sujo sob a capa de uma falsa legalidade. É um jogo com dados viciados. A racionalidade burguesa é a racionalidade do trapaceiro. Não é o "melhor homem" quem vence, e sim o mais rico. A propriedade privada, a lei e a ordem devem triunfar sem tomar conhecimento do preço que isso poderá custar em vidas e sofrimento. Para que "a sobrevivência do mais apto" (isto é, do mais rico) possa ser escamoteada como um "jogo limpo", o detetive deve ser um supercérebro e o vencedor predeterminado deve demonstrar ser o melhor jogador. Muitos autores de romances policiais começaram como "escritores mecânicos", fabricando material em troca de ínfimas quantias pagas pelas revistas de mistério. Porém, o impulso secreto que os impelia podia ser tudo, menos mecânico. Na biografia sobre o criador de Sherlock Holmes, Portrait of an artist: Conan Doyle, Julian Symons enfatiza que o decente, ordeiro, patriótico e tipicamente burguês vitoriano, Conan Doyle, inventou um herói com uma personalidade totalmente oposta: um homem cerebral, boêmio, um violinista viciado em drogas. Symons sugere que na realidade existiam dois Conan Doyles: "Por trás do rosto robusto e dos exuberantes bigodes,seocultava
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um outro homem, sensível, perplexo e constrangido". Os primeiros trabalhos de Edgar Allan Poe eram dominados pela sua atormentada ansiedade e por alucinações que o impediam de levar uma vida normal, como também de ganh~r seu sustento. De repente, obteve um emprego como editor do Graham's, um jornal popular da Filadélfia. Pela primeira vez na vida se viu em melhor situação e desesperadamente tentou manter o emprego. Teria sido este impulso que transformou seus escritos gótico-românticos no puro racionalismo de Os crimes da rua Morgue? Pelo menos é a hipótese do historiador literário Howard Haycraft em The life and times of the detective story, Vemos o paralelo com u!ll autor mais velho como Thomas De Quincey, cujas alucmações foram torcidas em lógica razoável e zombaria na sua obra intitulada Do assassinato como uma das Belas Artes. Na biografia de Dorothy Sayers, escrita por James Brabazon, descobrimos que uma mulher obviamente frustrada, incapaz de ter um relacionamento normal com. um homem do mesmo padrão intelectual e moral , projeta-se em seus livros na personagem da Srta. Harriet e do fantasioso "companheiro ideal", Lord Peter Wimsey. O caso de Georges Simenon é ainda mais óbvio. Segundo suas próprias palavras, foi muito religioso até a idade de treze anos, a ponto de querer se tornar padre. Porém, após seu primeiro contato sexual, "Percebi que toda aquela história de culpa e pecado era bobagem. Descobri que todos aqueles pecados de que havia ouvido falar não eram pecados coisa alguma". (Entrevista ao jornal The Sunday Times, 16 de maio de 1982.) Ao lermos sua comovente autobiografia, Mémoires intimes, encontramos um h?mem profundamente infeliz e atormentado pela culpa. Simenon se jacta de ter ido para a cama com dez mil mulheres, oito mil delas prostitutas, uma vez que obviamente não conseguia estabelecer um relacionamento humano real com mulher alguma. ("Quanto mais vulgar a mulher, mais podemos considerá-Ia uma 'mulher' e o ato adquire maior sisnífícado.") Ele tem consciência de ter tornado a família profund~mente infeliz com suas extravagâncias, bebedeiras e eg.o~s~os, sentindo que de certa forma contribuiu para o suicidio da filha Marie-Jo.
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No entanto, o Inspetor Maigret é um dos cidadãos mais banais entre todos os pequenos-burgueses, feliz em voltar para a esposa depois de um dia normal de trabalho, recebendo um salário condizente, um homem que nunca sonharia em visitar sequer uma prostituta, quanto mais milhares. A vida que o autor acredita que gostaria de ter vivido está em seus livros. Entretanto, não sabemos se isso seria realmente verdade, uma vez que, após ter conseguido algum dinheiro (não necessariamente milhões), Simenon passa a ter um certo livre-arbítrio. No entanto, mostrou-se bastante fraco e acabou fazendo a escolha errada, não só do ponto de vista da moralidade social, como também do ponto de vista da felicidade pessoal. Como ele próprio ~xplicou ao jornal Le Monde (15 de novembro de 1981): "E a vida que me mantém vivo ... já vi a miséria de perto em todos os cortiços do mundo. Conheço de perto os ricos e participei com eles de diversas orgias." Isso tudo seria perfeitamente dispensável na realidade? Foi o resultado de impulsos descontrolados, que ele não deixou de sentir, embora com profunda culpa, e que tentou sublimar através de seus livros. O escritor mais consciente dos motivos que o levam a escrever é Graham Greene. Como enfatizou o reacionário historiador alemão Joachim Fest tFrankfurter Allgemeine Zeitung, 10 de abril de 1982), por trás de seus livros encontra-se "a necessidade de fugir do tédio da vida, da monotonia sofrida como uma dor, fugindo dela através da experiência do medo e do extremo perigo". Aqui encontramos a literatura escapista que auxilia o autor a suportar os males da sociedade burguesa, correspondentes à própria necessidade do autor, não só através de sua vida (suas viagens e aventuras de espionagem), como através de suas obras. Na sua autobiografia, Pontos de fuga , Greene escreveu: "Às vezes me pergunto como toda essa gente que não escreve, compõe ou pinta é capaz de escapar do absl!rdo, da tristeza e do medo pânico que caracteriza a condição humana" . Adam Hall transforma seu herói Quiller, o espião tecnocrata num trabalhador anônimo, igual aos empregados de urna grande empresa, instituição ou governo. É um
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quadro de total alienação. Lendo sua exposição para um recruta em potencial, ficamos com uma pergunta: será este apena~ o. universo de QuilIer ou estamos vendo o reflexo do propno desespero interno do autor? . Você tem que aprender a cruzar a linha e viver a ~Ida f?ra ~a sociedade[!J, se afastar das pessoas, se Isolar inteiramente. Aqui, os valores são diferentes. aso um ~om:m demonstre alguma amizade em relaçao a voce, de-lhe as costas, duvide dele, desconfie d~l~ e nove entre dez vezes você estará errado, mas é a décima vez que fará você escapar de uma morte imunda, num hotel vagabundo, por ter aberto a porta para um ~home~ que. você pensou ser seu amigo. Lá fora voce. estara sozinho, e não terá ninguém em quem c~>nfIar, nem sequer nas pessoas que mandam em voce: Nem mesmo em mim. Se você cometer um erro f~IO n~ hora errada, no lugar errado, e parecer que esta traindo a missão ou ameaçando o Aparelho eles acabam com você. E eu também. '
c:.
, Muita água rolou sob a ponte desde os tempos da f?rmul~ ?~ Raymond Chandler sobre a qualidade do detetive sohtano perambulando pelas ruas. l!I?berto Eco, que passou a se interessar pelo romance POhCI~1 at:avés da semiótica, tentou elucidar melhor seus motivos Interiores ao escrever seu famoso romance O nome da rosa. Ele sug~re que foi motivado pelo desejo de matar um monge, desejo que o acometeu precisamente (I) e!ll março ~e 1978. Na verdade, se fosse fácil psicanalisar'a s~ mesmo, ISSOacarretaria a falência de toda uma profissao. Jack ~on?on é um dos casos mais fascinantes e comoventes. As vesperas do seu trágico suicídio, em 1916, tinha quase acabado de escrever um dos mais surpreendentes romances policiais de todos os tempos. Assassination Bu~e,!uLtd., e a única história policial verdadeiramente fiIosófica, uma luta de intelectos entre dois homens que repre?en.tam correntes opostas em filosofia e em movimentos radícaís. Um representa a tentativa de eliminar o mal so-
cial, através do assassinato de homens maus; o outro procura uma solução para o problema social através da autoorganização e auto-emancipação do oprimido. London parte do debate elementar entre o organizador nietzscheano da Agência de Assassinatos e seu inimigo marxista (que é também o amante da filha do assassino), e passa a retirar, através de uma sutil análise, camada por camada do problema. O chefe da Agência de Assassinatos caçoa da ineficiência dos tradicionais anarcoterroristas, tentando verdadeiramente construir uma "organização perfeita", e assim fazendo chega assustadoramente perto de se tornar um precursor zinovievista ideológico de Stálin. Alguns dos seus assassinos-filósofos aderem a rígidos princípios morais, que se recusam a infringir, mesmo ao custo das próprias vidas; mas, ao mesmo tempo, assassinam por dinheiro. O herói marxista, por outro lado, é de certa forma um anti-herói - um individualista rico que acaba destruindo o chefe da Agência de Assassinatos enquanto tenta desesperadamente salvá-lo. É um homem incapaz de deduzir ou ver além dos próprios motivos, exceto o respeito geral à santidade da vida humana, embora isso não o impeça de eliminar uma dúzia de pessoas. Porém, mais que o assassino fanaticamente íntegro, ele é o verdadeiro idealista, completamente desinteressado por dinheiro. Todos os debates, aventuras e crescente "suspense" deste significativo romance ocorreram contra o pano de fundo da premonição de Jack London sobre o declínio do capitalismo em barbárie, o ódio contra a exploração e a injustiça, o horror à guerra e sua identificação com as "pessoas do abismo", o que o torna, aos olhos de Trotsky, um dos maiores pensadores revolucionários deste século. Porém, estas dolorosas reavaliações também refletem o tormento de London que, por fim, levou-o ao suicídio. Foi um homem incapaz de se decidir por um curso de ação política; não conseguiu viver de acordo com as próprias convicções e sua desesperada busca pela felicidade pessoal, que tão comoventemente projetou nos diversos heróis de seus livros, também acabou redundando em fracasso.
Do crime organizado à detecção organizada
COM O ADVENTO do crime organizado em larga escala, ocorreu, na vida real, uma mudança proporcional na detecção e no combate ao crime. Na década de 30 cresceu maciçamente, pelo mundo ocidental, o sistema de sanções na aplicação da lei. Um desenvolvimento semelhante na literatura ligada ao crime foi, portanto, uma conseqüência inevitável. No final da década de 30 e início dos anos 40, o detetive particular passa a entrar em declínio, sendo eclipsado pelo agente de polícia, que possui o apoio de uma organização de amplo raio de ação. Um novo tipo de romance policial nasceu então: o "romance processual" Charlie Chan, inspetor Maigret e Ellery Queen são típicas figuras de transição. Embora pertença à polícia havaiana, Charlie Chan recebe pouco ou quase nenhum apoio dos seus superiores. Na verdade, trava sozinho uma luta intelectual contra o assassino. Embora o inspetor Maigret receba algum auxílio da sua divisão, isso ainda está muito distante de uma organização que se apóia numa extensiva habilitação técnica. Ellery Queen coopera com o pai, um inspetor de polícia, conseguindo desta maneira, às vezes, requisitar alguns recursos policiais, embora ainda seja essencialmente um analista solitário, típico do detetive particular dos clássicos romances policiais. O verdadeiro sintoma da ascensão da polícia no romance policial é a substituição da análise individual pelos recursos organizacionais como principais meios de apanhar o criminoso. Os detetives de polícia conseguiam se tornar os heróis dos romances policiais por causa da mudança ocorrida nos
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v.alores burgueses que está refletida naquele gênero literáno. O período pós-Primeira Guerra Mundial com a intensificação da luta de classes, assistiu a uma mudança na atitude da classe dominante em relação ao aparelho permanente do Estado, ao qual tinha se mantido hostil durante o sé~u~oXIX. Não m~is considerada um mal necessário, a pohCI~passou a ser VIsta, a?s olhos da burguesia, como a pers?mfIcação do bem social. Desta forma, os policiais po?laII? ~e to:nar os heróis dos romances, uma vez passado o inevitável intervalo entre causa e efeito. A transição dos policiais, de objetos de ligeiro desprezo para heróis, foi também auxiliada pelo fato de que nem todos os detetives da polícia são plebeus; alguns podem ser egressos da classe alta e até da nobreza como exemplificado por Roderick Alleyn, criação de' Ngaio Mars~. Esta .mudança de local de recrutamento ocorreu tambe~ !Ia vida real, um reflexo do crescimento do aparelho POhClal,da sua crescente estrutura hierárquica e da nece~sldad~ da hierarquia policial se adaptar à própria hierarquia social. Uma explicação adicional para a ascensão da polícia no romance policial é a necessidade de legitimá-Ia aos olhos do públ!co. O detetive policial não é mais apenas o defenso~_da lei e da ordem, num sentido mais vulgar, e sim o guardião da propriedade privada como instituição que ameaçada pela guerra, pela crise e pela revolução, não ~ mais reproduzida automaticamente pelas forças do mercado, mas deve ser preservada por um permanente aparelho de repressão. Por fim, ~s dimensões assumidas pelo crime organizado tornaram rrnperatrva a criação de novos métodos de sanções legais, não só na realidade, como na literatura. Não é possível um único gênio resolver simultaneamente cinqüenta assassinatos, como um mestre de xadrez, jogando, ~o mesmo tempo, contra cinqüenta amadores. Como não e possível se vencer a Máfia somente através do intelec~o; são ne~ess.ários a sistematização e o aumento progreSSIVOS de maqumas de detectar o crime, empregando-se todas as técnicas da ciência contemporânea e da administração organizada.
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Estas técnicas estão dispostas em seções autônomas do departamento policial, combinando vantagens da divisão do trabalho e a centralização dos resultados deste trabalho. A medicina legal, mais e mais sofisticada, facilita a determinação da causa e da hora da morte. Os laboratórios se especializam em identificar suspeitos, através da análise de manchas de sangue, partículas de poeira ou fios de cabelos encontrados nas vítimas ou mesmo em suas roupas. No seu romance O primeiro círculo, Soljenítsin mostra prisioneiros habilitados, trabalhando num projeto do NKVD de identificação de vozes humanas e codificação da informação, assim como o sistema Bertillon identifica as impressões digitais, capacitando a polícia a centralizar informações sobre dezenas de milhões de indivíduos pelo mundo afora. O governo francês sob Giscard d'Estaing iniciou um plano para estabelecer tais registros computadorizados, de forma que qualquer habitante do país possuísse uma ficha centralizando informações que iam da data do seu nascimento, passando pela escola, registro do exército, endereços sucessivos, pagamento do imposto de renda, prisões etc. Além dessa massa de recursos científicos, existe a obstinada rotina, investigando centenas e até milhares; policiais, prontos a dispor de infinita paciência, além de suportar um infinito tédio em seguir suspeitos, perseguir pistas, localizar situações comprometedoras, sem mencionar os aparelhos de escuta eletrônicos legais ou pseudolegais. Amostras embrionárias destas técnicas, é claro, podem ser encontradas nas atividades de Sherlock Holmes e nos romances de R. Austin Freeman - mas elas são, necessariamente, embrionárias, secundárias e casuais. Tratase de ferramentas de trabalho caseiras, saídas não das divisões de uma moderna fábrica. Quando um detetive de polícia, com a força de uma organização policial inteira, suplanta o herói prima donna do romance policial clássico, a detecção do crime atinge sua maioridade como um moderno negócio empresarial científico, assim como o crime contemporâneo atinge a maioridade quando sindicatos do crime semelhantes a grandes empresas suplantam criminosos individuais e pequenas quadrilhas de rua. Toda uma varie-
92 dade de inspetores policiais emerge como heróis com um to~tur~~e espectro de idiossincrasias, gostos e i~clinações pSlcologlcas. O v~rd~deiro precursor é provavelmente o inspetor French, cnaçao de Freeman Wills Crofts, que trouxe todos os recursos .de detecção policial para a literatura. Junto co~ ~ supermtc:ndente Henry Wilson, de G. D. H. Cole, e d~ JUIZ Bencohn e do superintendente Hadley, de John I?Icks~n Carr, Crofts antecipa, ligeiramente, a clássica séne de inspetores policiais c?mo heróis que incluem, acima de tl!d~,. o inspetor Rodenck Alleyn, de Ngaio Marsh; o cormssano Wenceslav Vorobeitcheck, de Stanislaw-André Steeman; o comissário Belot, de Claude Aveline; o inspetor Napoleon Bonaparte, de Arthur W. Upfield; o inspetor-chefe Reginald We~ford, de Ruth Bendell; o inspetor Alan Grant, de Josephine Tey; o inspetor Roger West e o co~~n?ante Gaeorge Gi~eon, de John Creasey; a equipe de POhClaIS da 87. Del~gaCla, de Ed McBain; o inspetor Ghote, de H '. R. F. ~e~tmg; Virgil Tibbs, de John Ball; o capitão-d~tetIv~.brasIlelro Jo~é d~ Silva, de R. L. Fisk; o inspetor SUI~OBarlach, de Fnednch Dürrenmatt; o comissário holande~ Van der Valk e mais tarde sua esposa de NichoIas Freehng; ..o cO,missário de polícia de Estocol~o, de sjowall e Waho, alem dos tiras do Harlem, de Chester Himes: ~d Johnson Coffin e Grave Jones. Recentemente, ~ esta. hsta podemos acrescentar o chefe dos detetives novaiorquíno Edward Delaney, de Lawrence Sanders, e o inspetor da Scotland Yard Adam Dalgliesh, de P. D. James, sendo que estes últimos, ao que parece, foram criados baseando-se em figuras reais. . Cada um desses personagens levou o romance policial para uma determinada posição. Roderick Alleyn e ~Ian Grant são os que mais se aproximam dos heróis clásSICOS '. Embora gozem do apoio fornecido pela polícia, sua maneira de o~erar não se diferencia muito de, por exemplo, um Charlie Chan, um Philo Vance, um Ellery Queen ou mesmo de Perry Mason e Nero Wolfe. . Van ~er ~al.k, Martin Beck, Wenceslas e Bãrlach se sItu~m mais proximos de Maigret. Na verdade, são mais apoiados por uma infra-estrutura do que o herói de Sime-
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non, mas no fim agem segundo ambiente e do que sabem sobre crime. A intuição e o sentimento, pretação das pistas, os levam às
a análise psicológica do as pessoas envolvidas no mais do que a fria intersoluções.
Os inspetores Ghote, West e Gideon, Tibbs, da Silva, o comandante Adam Dalgliesh e, acima de tudo, a equipe da 87 ~ Delegacia e o delegado Delaney parecem mais próximos dos detetives verdadeiros, concentrando-se em inquéritos rotineiros, interpretação de pistas e emprego de recursos científicos - suplementados por palpites, teorias e às vezes preconceitos. Um autor muito pouco valorizado desse gênero é Janwillem van de Wetering, cujo retrato de Amsterdam é muito mais realista do que o de Nicholas Freeling, e cujos detetives Grijpstra e de Gier são muito mais humanos do que o Inspetor Van der Valk. Alguns dos seus romances (como O cadáver no dique, 1976 contêm verdadeiro "suspense", uma solução inesperada e evidenciam uma atitude geral em relação à vida, à sociedade, ao crime, aos criminosos e à lei muito mais próxima do ceticismo normal contemporâneo do que os daltônicos defensores da lei e da ordem. Sjõwall e Wahõ são os autores mais criticamente intelectuais dos romances desse gênero; criticam a sociedade burguesa, assim como a polícia. Em The laughing policeman, o controle burguês dos meios de comunicação, empregado para suprimir verdades desagradáveis, é desmascarado de forma impressionante. Os detetives do Harlem de Chester Himes (A rage in Har/em, 1957; Cotton comes to Harlem, 1968) são um caso à parte. Esses violentos personagens operam principalmente contra os negros, apoiando a lei dos brancos. Cumprem seu dever por estarem convencidos de que os escroques, gângsteres e assassinos negros que perseguem tornam a vida ainda pior para os moradores do Harlem. E como odeiam isso tudo! Himes traça um retrato convincente do mundo, às vezes cômico, às vezes grotesco, do Harlem, cujo fundo trágico - a injustiça, a humilhação e o sofrimento - está sempre presente. Seus livros, às vezes, parecem
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ser romances realistas, até naturalistas, mascarados em romances policiais. Podemos reconhecer este realismo básico sem esquecer o lamentável reformismo, que claramente demonstra não haver uma saída fundamental para a maioria dos negros oprimidos. Chester Himes, por acaso, é a prova viva da capacidade que um homem tem para compreender um ambiente sem jamais ter vivido nele. Na realidade, nunca pôs os pés no Harlem. Quando jovem, em Missouri, passou sete anos e meio na prisão por assalto a mão armada. Esta horrível experiência e a traumática auto consciência do contato cotidiano com o racismo contra os negros dos Estados Unidos vêm permeando todos os seus livros, que não se restringem aos romances policiais. (Ver, por exemplo, suas autobiografias The quality of hurt, 1972, e My life of absurdity, 1976.) Steven F. Miliken escreveu um interessante livro sobre este autor. Segundo nossa opinião, de longe o melhor romance pol~cial desse gênero é La nuit du grand boss (1979), dos italianos Fruttero e Lucentini. (Esses dois autores haviam escrito previamente uma poderosa sátira sobre a alta classe de Turim: La donna della domenica, 1972) Em La nuit são abandonadas quase todas as convenções do gênero. Não existe um herói individual. O comissário Santamaria nada mais é que um coordenador de uma equipe na qual uma obscura secretária feminista acidentalmente descobre uma pista-chave que desmascara dois assassinos. Ao mesmo tempo, é a mais contundente denúncia sobre a sociedade burguesa jamais escrita, muito mais penetrante do que qualquer obra de Simenon, Dürrenmatt ou Sjõwall e Wah.o. Fruttero e Lucentini não usam um excêntrico bilionáno que corrompe as autoridades ou um empresário lunático disp~sto a conquistar o domínio do mundo. Expõem o verdadeI~o poder do presidente de uma multinacional (no caso, a Fiat) que domina a cidade de Turim através de uma impenetrável rede, na qual um segmento das autoridades da Igreja, da Democracia Cristã, da Máfia local e da equipe de futebol local, desempenham seus papéis. Não se trata de um chefe tentando dominar o ambiente, mas sim da sua quase indiferença em relação a ele. O retrato é bastante ve-
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rossímil- e muito mais eficaz na sua denúncia sobre o status quo - do que as histórias de horror que encontramos nos romances policiais contemporâneos. Além do mais, o estilo - especialmente o diálogoé brilhante, fazendo parecer insípidos os diálogos de autores como Hammett, Chandler, Ross Macdonald e Herningway. O diálogo, realista, representa a alienação básica da sociedade burguesa, à medida que as pessoas tentam, desesperadamente, romper a solidão se comunicando, mas nunca conseguindo, falando em sentenças sincopadas e quebradas como as mostradas abaixo. -
Mamãe, por favor, descobrimos uma coisa
que ... - Não, desculpe, ouça aqui. Você consegue ser levada para a delegacia como uma ladra ou sabe Deus o quê, fica lá a tarde inteira praticamente presa, enquanto eu ficou chorando no ombro do sr. Salle, estragando o sábado dele também ... e ele... - Mamãe, quando telefonei a senhora não estava lá! - Estava a caminho. Assim que Pietra me disse que você tinha sido presa de novo, chamei um táxi e corri para ... - Mamãe, eu não fui presa. Veja, estou aqui. E Graziano ... - Então o que você está fazendo aqui? Não me diga que é uma coincidência. - Mas é uma coincidência. Já disse ao delegado que Graziano ... - Ah! - exclamou a sra. Guidi -, foi ele quem encontrou minha filhinha desaparecida! Deve ter sabido e queria me fazer uma surpresa. - Não, ele não sabia de nada e quando me encontrou sentada aqui na escada ... - Onde ele está agora? Não entendo ... que escada? - Ele foi lá para cima também, com Graziano. - Esqueça este Graziano. Ele estava com você? - Não, já estava lá em cima. Esperei um pouco
96 por ele no carro e depois entrei também e fiquei sentada na escada ... - Não entendo, esqueça esta história da escada. Só quero que me diga por que, enquanto estou correndo por toda Turim, como uma idiota, procurando por você, você me traz esta maravilhosa surpresa de ... (pp. 174-75) Há exemplos até melhores como: - Todos começaram a falar ao mesmo tempo. - Extraordinário. É uma verdadeira ... (Picco) - Absolum. fant. (P. Bono). - Depois de O elixir, o melhor livrinho que jamais ... (o famoso D. P.). Melhor do que O elixir (P. Bono). - O senhor devia ingressar nos DIGOS, professor. .. (Cuoco, Fiora). Não? Seria maravilhoso se o senhor estivesse com ... (P. Bono). - Falando sério, professor, caso o senhor resolva ... (Picco). - Talvez o senhor pudesse nos ajudar com os topos ... (S. Maria). - Claro! Tenho certeza de que ... (P. Bono). - Mas, professor Gabarino... (Picco). - Parabéns, professor. Se nós ... (Fiora, Guadagni, Rappa). - Não? .. (P. Bono). Mas professor Gabarino? O senhor já contou para ele sobre o seu excepcional (Picco). - Que diabo tenho a ver com isso? (Monguzzi). (pp. 247-48)
Do crime organizado ao crime estatal
COM A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL e o período entre guerras, o grande público passou a tomar conhecimento de uma nova espécie de "crime", desta vez dirigido não contra a vida dos indivíduos e a propriedade, mas contra o Estado. Os infratores não eram indivíduos agindo em beneficio próprio, mas "agentes" de outros governos ou países. Este interesse crescente pelo crime estatal - a espionagem acima de tudo - gerou um ramo do romance policial: o romance de espionagem. Mais uma vez, a história do crime é a chave para a história dos romances policiais. É claro que a espionagem antecede a Primeira Guerra Mundial e os ascendentes literários do romance de espionagem têm seus primórdios no século XIX. Entretanto, este gênero literário, relativamente jovem, atingiu sua maioridade com bastante rapidez após 1944, cruzando a fronteira entre a literatura "vulgar" e "trivial" de um lado, e a "verdadeira" literatura do outro. Um dos motivos é que muitos representantes famosos da intelectualidade foram recrutados pelos serviços secretos inglês e americano durante as duas guerras mundiais. Somerset Maugham é um exemplo, assim como mais tarde Graham Greene, entre outros. Julian Symons localiza a origem do romance de espionagem no livro The spy (1821), de James Fenimore Cooper, no qual significativamente o espião, e não seu oponente, é o verdadeiro herói. (O paralelo com o "bom bandido" é óbvio.) Symons cita em seguida William Le Queux, também ex-agente secreto, autor de England's pe-
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ril (1899) e The Invasion of 1910 (1910); Erskine Childers (The riddle of the sands, 1903); Joseph Conrad (O agente secreto, 1907), escritor cujas qualidades literárias o situam numa categoria diversa; John Buchan (39 degraus, 1915) e "Sapper" (Bulldog Drummond, 1920). O romance de espionagem atinge sua maioridade com as histórias de Ashenden de Somerset Maugham (1928) e os romances de Eric Ambler anteriores à guerra (A máscara de Dimitrios, 1938). Porém, foi especialmente após a Segunda Guerra Mundial que o gênero frutificou com autores como: John Le Carré (O espião que veio do frio, 1963), Len Deighton (The Ipcress File, 1963), os romances mais pobremente construídos dos escritores franceses Jean Bruce (OSS 117N'est Pas Mort, 1953) e Dominique (Le Gorille Vous Salue Bien, 1955), e o alemão Johannes Mario Simmel, cujas estórias estão permeadas de bastante humor (Nem só de caviar vive o homem, 1960). Graham Greene, um caso à parte, será estudado mais tarde. Uma história detalhada do romance policial poderia perfeitamente começar com uma crônica sobre as vicissitudes da política externa norte-americana, através dos anos da guerra fria e da détente, com as conseqüentes mudanças das identidades dos principais vilões: dos russos, aos chineses, aos cubanos, aos terroristas, aos xeques árabes do petróleo, aos anônimos bilionários loucos com seus exércitos particulares, situados em pequenas ilhas (como Gabriel em um dos romances de Modesty Blaise), voltando para os russos, que atualmente financiam, na maior parte das vezes, os terroristas internacionais. A trama do romance policial é geralmente baseada numa conspiração do "inimigo" , que é impedida - sempre no último minuto pela bem-sucedida contramanobra dos "nossos aliados" contra o inimigo em seu próprio campo de batalha. Embora as probabilidades estejam totalmente contra ele, o herói-espião triunfa no final, através de uma combinação de maior aptidão física, aparato tecnológico superior, melhor organização e inteligência mais arguta. O paralelo com o supercérebro do romance policial clássico é óbvio. Existe, é claro, uma dose maciça de fanta-
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sia juvenil no estilo James Bond de superespião e~ suas peripécias fisicas, sexuais e tecnológicas, como tambem .havia nos heróis clássicos: Sherlock Holmes, Rouletabille, Arsêne Lupin. Entretanto, os heróis de Somerset Maugham, Graham Greene e Eric Ambler não possue~, de forma alguma, estas características. Os sup~r-herOls devem galgar um nível mais alto c~m o desenvolvlment? geral da sociedade burguesa: mecanização crescente, maior d~senvolvimento tecnológico, inclusive das forças p~odutIvas, maior diversificação da produção de bens, nascimento da sociedade de consumo, maior alienação do indivíd~o e as novas e imprevistas dimensões desta alienação. Obviamente um superespião não poderá vencer, armado apenas com u~ supercérebro analítico, o que aliá,s ~ão se espera dele durante a Terceira Revolução Tecnológica. . . . . No romance de espionag~m, ao contr~~o.do pol~cIaI, o vilão é facilmente reconhecido bem no irncio do hvro, embora ocasionalmente esta identificação seja um dos elementos da trama: é um a~ent~ ~~ principal inimigo do Estado. O problema não é ídentificá-lo e SIm des~a~~tar ~uas maquinações. Mesmo assim, ? elemento. ~e místeno ainda persiste para o leitor. Os ahad,os, aUXlI~a~es, formas de operação, as táticas em geral, ate os proPOSltO~ ~o ~ntag.?nista permanecem ocultos. A con~~iraçã