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Portuguese Pages [317] Year 2001
[1865-1914] FILOSOFIA - HISTÓRIA ENGENHARIA SOCIAL
O
DARWIN EM PORTUGAL Filosofia. História. Engenharia Social (1865 — 1914)
ANA LEONOR PEREIRA Prof. da Faculdade de Letras
e Coordenadora Científica do Grupo de História e Sociologia da Ciência (GHSC) do CEIS 20 da Universidade de Coimbra
DARWIN EM PORTUGAL Filosofia. História. Engenharia Social (1865 — 1914)
EA
ALMEDINA
TÍTULO:
DARWIN EM PORTUGAL
AUTOR:
ANA LEONOR DIAS DA CONCEIÇÃO PEREIRA
EDITOR:
LIVRARIA ALMEDINA —- COIMBRA
LIVRARIAS:
LIVRARIA ALMEDINA ARCO DE ALMEDINA, 15 TELEF. 239851900 FAX 239851901 3004-509 COIMBRA —- PORTUGAL LIVRARIA ALMEDINA - PORTO R. DE CEUTA, 79 TELEF. 222059773 FAX 222039497 4050-191 PORTO —- PORTUGAL EDIÇÕES GLOBO, LDA. R.S. FILIPE NERY, 37-A (ÃO RATO) TELEF. 213857619 FAX 21 3844661 1250-225 LISBOA - PORTUGAL
FILOSOFIA. HISTÓRIA. ENGENHARIA SOCIAL-- (1865-1914)
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NOVEMBRO,2001
DEPÓSITO LEGAL:
173338/01
Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infractor.
“Light will be thrown on the origin of man and his history” CHARLES DARWIN, On the origin of species... “Psychology will be based on a new foundation” CHARLES DARWIN, On the origin of species... “Man may be excused for feeling some pride at having risen, though not through his own exertions, to the very summit of the organic scale” CHARLES DARWIN, The descent of man...
CHARLES e EMMA DARWIN em Down House. (Reproduzido de Anna Sproule, Charles Darwin)
“Judging from the hideous ornaments, and the equally hideous music admired by most savages, it might be urged that their asthetic faculty was not so highly developed as in certain animais, for instance, as in birds. Obviously no animal would be capable of admiring such scenesas the heavensat night, a beautiful land-scape,or refined music; but such high tastes are acquired through culture, and depend on complex associations; they are not enjoyed by barbarians or by uneducated persons” CHARLES DARWIN, The descent of man...
“Est-ce que les êtres humains sont, comme le pensait Darwin, totalement partie de la nature?(...) Un être qui peut explorer les confins des galaxies, altérer sa propre constitution génétique et, par des choix conscients, détruire "environnement terrestre qui le fait vivre, lui et tous les autres êtres vivants, est plus qu'un caprice de la nature ou un 'accident chanceux”, selon les termes de Stephen Gould” Jogmn C. GREENE, La révolution darwinienne dans la science et
la vision du monde
Para Adão e Eva
“Mas não sei se vos felicite, oh Pais veneráveis! Outros irmãos vossosficaram na espessura das árvores — e a sua vida é doce.
Mas, enfim, desde que nosso Pai venerável não teve a previdência ou a abnegação de declinar a grande supremacia — continuemos a reinar sobre a Criação e a ser sublimes... Sobretudo continuemos a usar, insaciavelmente, do dom melhor que Deus nos concedeu entre todos os dons, o mais puro, o único genuinamente grande, o dom de O amar — pois que não nos concedeu também o dom de O compreender. E não esqueçamos que (...) à melhor maneira de O amar é que uns aos outros nos amemos, € que amemos toda a Sua obra, mesmo o verme, e a rocha dura, € a raíz venenosa,e até esses vastos seres que não parecem necessitar o nosso amor, esses sóis, esses mundos, essas esparsas nebulosas, que, inicialmente fechadas, como nós, na mão de Deus, e feitas da nossa substância, nem decerto nos amam — nem talvez nos conhecem. Eça DE QUEIRÓS, Adão e Eva no Paraíso
Dissertação de Doutoramento em História da Cultura apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e aprovada por unanimidade com distinção e louvor em 14.1.1998
PREFÁCIO Entre 1990 e 1994, com o apoio inicial do ex-I.N.LC. e, posteriormente, da J.N.LC.T., fizemos uma pesquisa criteriosa das fontes para a história do darwinismo em Portugal, até aos anos vinte do nosso século. À luz dos resultados obtidos, ficámos, de facto, cientes de que o estudo do
darwinismo em Portugal não era objecto que uma dissertação normal de doutoramento pudesse esgotar. No entanto, não foi apenas a abundância e a diversidade de documentos que nos obrigaram a delimitar o tema, sob os pontos de vista cronológico e disciplinar. É que, a historiografia internacional do darwinismo ensina-nos que os representantes de Darwin são “uma espécie politípica” (Antonello La Vergata) e, por isso, impunha-se o estudo caso a caso, pelo menos, no que respeita aos grandes autores, sob pena de se esbater e recalcar aquilo que faz a riqueza cultural do darwinismo: a individualização das suas variantes. É inegável que, entre as décadas finais do século XIX e as primeiras décadas do século XX, o darwinismo converteu-se numa espécie de Zeitgeist que impregnou a cultura europeia científica e humanística, a julgar pelos estudos de Claude Blanckaert, Benoit Massin, Pierre Thuiller e tantos outros. As ciências teológicas não foram, de modo algum, indiferentes à teoria de Darwin e ao cientismo darwinista. Mas, em consciência, decidimos não tratar este campo, por muitas razões, entre as quais, porque esse estudo exige uma mudança de contextualização, porque Ernst Heckel e não Darwin teria de ser chamado para primeiro plano, porque, enfim, como diria Patrick Tort, esse tema é outra coisa: o anti-darwinismo. Ora,
o anti-darwinismo em Portugal merece ser objecto de um tratamento em
profundidade, no quadro dos contextos internacional e nacional adequa-
dos, conforme também nos fez notar o nosso orientador, Prof. Doutor Manuel Augusto Rodrigues. Em 1996 é publicado o primeiro Dicionário do darwinismo e da evolução (cerca de 5.000 páginas) dirigido pelo historiador Patrick Tort, e nele vários historiadores apresentam sínteses de diversos darwinismos: o
Darwin em Portugal
alemão, o espanhol, o francês, o italiano, o nórdico, o russo, o anglo-saxónico, o japonês, o árabe e o cubano. Nas restantes comunidades, os
estudos históricos sobre o darwinismo ainda não possibilitaram as grandes sínteses. Razão tinha o Prof. Doutor Fernando Catroga quando,no início da
década de oitenta do século XX, apontava o estudo do darwinismo em
Portugal como um dos temas prioritários no campo da história das ideias.
Em 1985, na revista Preto, o zoólogo € estudioso do darwinismo nas ciências naturais em Portugal, o Prof. Doutor Germano da Fonseca Sacarrão,
apelava aos historiadores para que se fizesse a história do darwinismo na cultura humanística portuguesa. Mais tarde, em finais da década de oitenta, também o Prof. Doutor João Montezuma de Carvalho tornava pública a mesma preocupação. Em Junho de 1991, a Profº Doutora Yvette Conry, historiadora de renomeinternacional do darwinismo francês, aconselhou-nos a
continuar a investigação global das fontes, mas a restringir o estudo analítico às disciplinas humanísticas que acusavam reflexos mais acentuadose, sobretudo, mais originais, da teoria darwiniana. Idêntico parecer nos foi
dado em Abril de 1992, pelo Prof. Doutor Germano da Fonseca Sacarrão. É nos campos da filosofia e das teorias da história e da sociedade,
entre 1865 e 1914, que procuraremos configurar a originalidade da cultura portuguesa quanto à interpretação e ao acolhimento da teoria darwiniana. Pelos estudoshistóricos a nível internacional, sabemos que a naturalização darwinista do homem, da sociedade e da história assumiu modos de ser peculiares nas culturas nacionais. Julgamos que o nosso estudo prova que Portugal não foi uma excepção à regra. As balizas cronológicas, indicadas no rosto da nossa dissertação, justificam-se plenamente. A data de 1865 é o marco inaugural da história de Darwin em Portugal com a publicação pioneira de Júlio Augusto Henriques. A data de 1914 representa um vértice no darwinismo português com a teoria da história de Augusto Coelho, um exemplo ímpar de cientismo biologista. Os marcos apontados são interiores à história do darwinismo português e é enquanto tal que os consideramos, apesar da sua coincidência com datas consagradas na história da cultura portuguesa: a célebre “Questão Coimbrã” por um lado, e em 1914 o lançamento da revista integralista A Nação Portuguesa, e a criação pessoana do seu heterónimo Alberto Caeiro, por outro lado. Na introdução do nosso estudo visámos definir o nosso referente, a
teoria da evolução darwiniana e as suas relações privilegiadas com os evolucionismos de Herbert Spencer e de Ernst Hackel, para sabermos
exactamente o que é que íamos procurar na cultura portuguesa e para podermos caracterizar o tipo de acolhimento que a filosofia, as diversas
Prefácio
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teorias da história e da sociedade fizeram do darwinismo. Além disso,
procurámostransmitir uma ideia propedêutica da recepção do darwinismo em Portugal; por um lado, através das suas incidências nas ciências natu-
rais e, por outro lado, tomando como barómetro os artigos e as notícias
que se publicaram, expressamente, para homenagear o sábio inglês, por ocasião da sua morte, em 1882, e aquando do quinquagésimo aniversário
da Origem das espécies, em 1909,
O nosso estudo divide-se em três partes, correspondentes a três domínios(filosofia, história e engenharia social) que ordenámos segundo o critério clássico do grau de abstracção. Embora distintas, as três partes estão unidas por uma comunidade problemática que, tomada globalmente, consiste em determinar o valor que nos referidos campos foi atribuído à teoria darwiniana. Consoante as particularidades das fontes, aquela problemática comum diversifica-se em múltiplas questões. Entreestas, refira-se, nomeadamente, a averiguação e o exame das formas de apropriação e de uso que as teorias da história e da sociedade fizeram da lógica evolucionária de Darwin, entre 1865 e 1914. Naprimeira parte, analisamososefeitos produzidos pelo darwinismo na reflexão filosófica anteriana. Se o poeta filósofo não é toda a filosofia portuguesa, entre 1865 e 1914, a verdade é que ele foi o único que lutou pela salvação filosófica da ciência, em particular, da teoria científica da
evolução. Antero, “o Só”, como foi identificado por Manuel Laranjeira,
concebeu uma metafísica evolucionista que valorizava a teoria darwiniana
da evolução, mas que também via na Weltanschauung cientista um sinal dos tempos. Assim, embora Antero recuse o estatuto de filosofia ao monismo hackeliano, atribui-lhe o mérito de mostrar que a verdadeira filosofia não podia ser construída à margem do progresso científico. O esforço
único e criativo que Antero desenvolveu para conciliar a metafísica com a
ciência impôs que lhe tivessemos dado um tratamentode distinção. Na segunda parte do nosso estudo, analisamos o impacto do darwi-
nismo na história, e especialmente, na teoria teofiliana da história, nas
posições doscríticos de Teófilo Braga, na “teoria da história universal” de
Oliveira Martins, nos estudos de Ramalho Ortigão e, finalmente, na teoria
da história da Augusto Coelho. Conformese verificará, os modos como os referidos autores enquadram e utilizam os enunciados darwinianos da “preservação das raças favorecidas na luta pela vida” ou, selecção natural,
da luta inter-racial, da hereditariedade, do evolver imprevisível, etc., acusam diferenças que, em última análise, traduzem variações do cha-
Mmado “mito ariano” (Léon Poliakov) que, na época considerada, recebeu a cobertura da lógica darwinista da história.
sigo
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Darwin em Portugal
A terceira parte do nosso estudo intitula-se engenharia social e nela abordamos a construção sociológica teofiliana, o modelo-zénite de Júlio de Matos, a apropriação do darwinismo pela teoria-prática anarquista e os reflexos da eugenia em Portugal, no período histórico em causa. O ideário acrata, com a sua fundamentação cientista, é aquele que melhor permite provar que o darwinismo se converteu num Zeitgeist; por outro lado, é o testemunho mais perturbador de que a lógica darwiniana da história serviu ideários sociais que, em rigor, estavam completamente fora dos horizontes do sábio inglês. O nosso estudo termina com o consenso alargado da elite pensante, sobretudo médica, em torno das implicações eugénicas do darwinismo. A moderação das propostas eugénicas avançadas, entre 1865 e 1914, a prudência jurídica nesta delicada matéria, aliadas a outros indica-
tivos da época, revelam a profunda “paixão” de Portugal pela França. E *
%
Agora, à distância, quando tantos anos são volvidos, mas talvez não
exactamente por isso, vemos melhor o que devemos e a quem devemos.
É com profundo respeito e saudade que manifestamos o nosso agradecimento aos Profs. Doutores Yvette Conry e Germano da Fonseca Sacarrão, por todo o apoio que periodicamente nos foram dando. Para lá
da Alma Mater Conimbrigensis, ambos foram, em diversas fases desta
caminhada, os nossos interlocutores privilegiados. * *
*
Ao nosso orientador, Prof. Doutor Manuel Augusto Rodrigues, dese-
jamos manifestar o mais vivo reconhecimento por todo o incentivo que nos foi transmitindo, especialmente quanto à busca de fontes inéditas e quanto ao estabelecimento de contactos com especialistas estrangeiros. Além disso, com o seu espírito de tolerância, nunca censurou os nossos desvios e, exigiu sempre — non multa sed multum. x *
x
Desde há muito, beneficiamos do privilégio intelectual de termos como mestres os Profs. Doutores Amadeu Carvalho Homem e Fernando Catroga e de revisitarmos continuadamente as suas obras em curso, tão distintas e personalizadas como igualmente rigorosas e ricas em substân-
Prefácio
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cia ideativa. Ambas têm muitos outros atributos, justamente reconhecidos.
Contudo, cabe-nos tornar público que, utilizando uma metáfora arqueológica, sem as escavações que os referidos historiadores fizeram antes de nós chegarmos ao terreno, muita terra teriamos de revolver até encontrarmos o primeiro osso darwínico. Por isso, se nos é permitido, dedicamos,
especialmente, os nossos capítulos sobre Antero de Quental e Oliveira
Martins ao Prof. Doutor Fernando Catroga e os capítulos sobre Teófilo
Braga e Ramalho Ortigão ao Prof. Doutor Amadeu Carvalho Homem. * *
*
Ao Prof. Doutor João Rui Pita, que tem sido o nosso mestre nos domínios da história das ciências da saúde e da cultura higienista, manifestamos a nossa mais sincera gratidão, por colaborar connosco na feitura de artigos, desde que o Prof. Doutor Luís Reis Torgal nos incumbiu de fazer o
capítulo “Ciências”, do volume Vda História de Portugal, dirigida por José
Mattoso e publicada em 1993. E, para nós, um privilégio colaborar com o Prof. Doutor João Rui Pita, pois, além de ter uma formação científica diversificada (botânica, microbiologia, química, etc.) que recebeu no seu curso de Farmácia, é o protótipo do “perfeito historiador” que descobre documentos onde menos se espera, decifra com perícia os manuscritos, e está continuamente a par das últimas novidades bibliográficas. Na verdade,
é justo reconhecer que temos aprendido muito com a sua competência e saber. *
*
Estamos igualmente gratos a todos aqueles que nos têm oferecido oportunidades de publicar os resultados das nossas investigações, especialmente aos Profs. Doutores Luís Reis Torgal, João Rui Pita, Fernando Catroga, J.A. Zagalo Cardoso, Manuel Viegas Abreu e João Montezuma
de Carvalho. Ao Prof. Doutor Luís Reis Torgal devemos ainda a nossa integração
no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20) que, em boa hora, arquitectou e activou. *
*
Endereçamos também um cumprimento amigo e grato à Faculdade de Letras — Comissão Científica de História — Instituto de História e
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Darwin em Portugal
Teoria das Ideias, pelas óptimas condições de trabalho que nos têm proporcionado. Não esquecemos a palavra certa, no momento inadiável, que nos foi dirigida pelo Director do Instituto de História e Teoria das Ideias, Prof. Doutor António Resende de Oliveira. * *
*
INTRODUÇÃO
Para o Dr. Alexandre Libório Pereira, fica a promessa de, breve-
mente, retribuirmosa leitura do presente trabalho com leitura da sua dissertação em curso. O interesse pelo tema e os comentários perspicazes que, oportunamente, nos foram transmitidos pelos Drs. Alexandre Libório Pereira, André Gonçalo Pereira e Ana Luísa Riquito, justificam plenamente o nosso reconhecimento. Ao Prof. António Pedro Pereira, pelo con-
forto que a sua vigilância amiga nos deu, e à cardiologista Dr.* Eva Rosa Pereira, por todo o bem que tem feito ao nosso coração, aqui fica o nosso agradecimento.
1. O ESTATUTO DA TEORIA DARWINIANA A lógica da vida exposta por Charles Darwin, em 1859, na obra, On the origin ofspecies by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life, fez do seu autor o “Newton
da biologia”(!), no sentido em que o “longo argumento”(2) da sua teoria da “mutabilidade das espécies”"(?) revolucionou a ciência dos seres
vivos. Com estas palavras de abertura, aparentemente dogmáticas, limita-
mo-nos a admitir o estatuto de revolução científica(?) que as grandes Last but not least... Quando um dia descobri a mala de viagem cheia de rascunhos inúteis, que eu deitava no cesto dos papéis, fiquei estupefacta. E tu respondeste: Mãe, eu tinha medo que tu deitasses fora alguma coisa boa... Deus seja louvado por todas as provas de dedicação que me dás. O amor dos Filhos é a maior riqueza dos Pais e vice-versa. Oxalá, eu saiba corresponder enquanto Mãe e enquanto Filha.
(1) Julian Huxley, O pensamento vivo de Darwin. Trad. e notas Paulo Sawaya. São Paulo, Livraria Martins, 1940, p. 20. Vide também: Michael Ruse, “Darwinism fleunit!”, Isis; Chicago, 88(1) 1997, pp. 111-117; François Jacob; André Langaney, “Genêse et actualité de la théorie de Vévolution”, La Recherche, Paris, 296, 1997, pp. 18-25. (2) “...this whole volumeis one long argument...”, Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. (A reprint of the first editon). With a foreword by Dr. €. D. Darlington. London, Watts & Co., 1950, p. 389. () “the mutability of species”, Idem,ibidem, p. 409. Ou: “the theory of descent with modification”, ibidem, p. 147; “the theory ofnatural selection”, ibidem, p. 167; “the
doctrine of the modification of species”, ibidem, p. 409.
(4) Nalguns casos o termo revolução consta do título de trabalhos capitais neste domínio. Vide, entre outros, Gertrude Himmelfarb, Darwin and the darwinian revolution, London, Chatto & Windus, 1959; John C. Greene, “O paradigma kuhniano e a revolução darwinista na história natural”. In: História e Prática das Ciências, Lisboa, A Regra do
Jogo Edições, 1979, pp. 117-150; John C. Greene, “La révolution darwinienne dans la science et la vision du monde”. In: Nature, Histoire, Société. Essais en hommage à
Jacques Roger, s.l., Klincksieck, 1995, pp. 79-97; Michael Ruse, La revolución darwinista (La ciencia al rojo vivo). Versión espafiola de Carlos Castrodeza. Madrid, Alianza Editorial, 1983; D. R. Oldroyd, Darwinian impacis. An introduction to the darwinian revolution, Milton Keynes, The Open University Press, 1980; Denis Buican, La révolution
de Pévolution. L'évolution de VP évolutionnisme, Paris, P.U.F., 1989; Patrick Tort, “La seconde révolution darwinienne”. In: Darwinismeet société. Direction de Patrick Tort, Paris,
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Darwin em Portugal
autoridades do domínio da história e da epistemologia da biologia atribuem à teoria darwiniana. A justificação actual deste estatuto baseia-se, em primeiro lugar, no poder unificador da teoria, no seu “unificatory pattern”(!), um critério que foi apresentado pelo próprio naturalista
Introdução
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vivos, irredutível ao mecanicismo(!), ainda que a descendência com
inglês, desde 1868, nos seguintes termos: “I believe in the truth of the theory, because it collects, under one point of view, and gives a rational
modificações se processe através de um mecanismo chave: a selecção natural. Mas, a selecção natural(2), que preserva as variações individuais favoráveis ao processo adaptativo e elimina as variações nocivas, é um poder criador sem projecto apriorístico(2) que “trabalha sobre variações não orientadas e muda a população, conferindo maior êxito
nalidade teórica é uma evidência incontroversa. Neste sentido, François Jacob, num livro marcante e inesgotável, dá corpo ao argumento segundo
râneo(”) traduziram-na metaforicamente. “A selecção natural [é] comparada a um compositor por Dobzhansky; a um poeta por Simpson; a um escultor por Mayr; e precisamente ao Sr. Shakespeare por Julian Huxley”(*). Por seu turno, Stephen Jay Gould, o conceituado paleontólogo americano e historiador da teoria da evolução, co-autor do evolucionismo pontualista (punctuated equilibria)(”), sublinha a justeza das
explanation of many apparently independent classes of facts”(2), tais como, a sucessão geológica dos seres organizados, a sua distribuição nos tempos passados e nos actuais, as suas afinidades mútuas e as suas homologias(). Por outro lado, a defesa do estatuto de revolução científica da teoria darwiniana supõe a sua demarcação do transformismo lamarckiano, já que, relativamente ao fixismo essencialista, a sua origi-
o qual a teoria darwiniana, textualmente, “n'est pas simplement le prolongement d'une pensée transformiste qui aurait commencé à s'exprimer avec Buffon et Lamarck. C'est Veffet d'un changement dans la maniêre même de considérer les objects, le résultat d'une attitude radicalement nouvelle qui apparaít au milieu du XIX* siêcle”(4). Darwin inaugurou um novo código de leitura da complexidade e da historicidade dos organismos
Presses Universitaires de France, 1992, pp. 1-7; B. Continenza, “La teoria darwiniana tra
evoluzione e rivoluzione”. In: Guido Cimino; Bernardino Fantani, Le rivoluzioni nelle scienze della vita, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1995, pp. 109-126; Antonelio La
Vergata, “Che rivoluzione fu la rivoluzione darwiniana?”. In: Guido Cimino; Bernardino Fantini, Le rivoluzioni nelle scienze della vita, ob. cit., pp. 101-108.
(1) Vide: Arthur L. Caplan, “The nature of darwinian explanation: is darwinian evolutionary theory scientific?”, in: Laurie Rohde Godfrey, What Darwin began. Modern darwinian and non-darwinian perspectives on evolution. Edited by Laurie Rohde Godfrey. Boston e outras, Aliyn and Bacon, 1985, pp. 24-35. À pergunta formulada, o autor responde positivamente: “when a theory manifests a unificatory pattern as powerful as that found in Darwinian theory's struggle for existence and natural selection, then scientists will go to great lengths (in the case of Darwinism a sustained effort of 125 years thus far) to preserve and defend the soundness of that basic pattern of explanation against apparent counter-examples, puzzles, and even empirical refutations”, ibidem, p. 35. Sublinhado nosso. (2) Charles Darwin, The variation of animais and plants under domestication. (A reprint of the second editon, London, John Murray, 1885). Delhi, Daya Publishing House, 1989, vol. 1, pp. 13-14.
() Vide: Idem, ibidem, vol. 1,p. 8ess. (4) François Jacob, La logique du vivant. Une histoire de V'hérédite, Paris, Éditions Gallimard, 1970, p. 190.
reprodutivo às variantes vantajosas” (2). Para acentuar a criatividade
da selecção natural, os fundadores do neo-darwinismo contempo-
referidas metáforas. À semelhança do músico, do poeta ou do escul-
tor que dão forma às notas, às palavras e à pedra, também a selecção natural trabalha a partir de uma matéria prima, a variação individual,
(1) Vide: Marcello Cini, “Sciences galiléennes et sciences darwiniennes”. In: Les pouvoirs de la science. Un siêcle de prise de conscience, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1987, pp. 67-82. (2) A definição dada em 1859 é a seguinte: “this preservation of favorable variations and the rejection of injurious variations 1 call Natural Selection”, Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. (A reprint of the first editon), ob. cit., p. 70. Na edição definitiva lê-se: “this preservation of favorable individual differences and variations, and the destruc-
tion of those which are injurious, I have called Natural Selection, or the Survival of the Fittest”, Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions and
corrections. London, John Murray, 1873, p. 63.
(2) Vide o diagrama da árvore da vida construído por Charles Darwin, On the origin'of species... (A reprint of the first editon), ob. cit., pp. 87-113. () Stephen Jay Gould, O polegar do panda. Reflexões sobre história natural, Lisboa, Gradiva, s. d., p. 87, sublinhado do Autor; vide também Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon), ob. cit., pp. 38-51. (5) Vide: Daniel Dreuil, “Néo-darwinisme. Neo-Darwinism”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 2 (Dir. Patrick Tort), Paris, Presses Universitaires de
France, 1996, pp. 3165-3184. (9) Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, Lisboa, Editorial Presença, 1988, p. 36. (7) Vide: Ana Leonor Pereira, “[Recensão crítica de] Stephen Jay Gould, O polegar do panda. Reflexões sobre história natural. Lisboa, Gradiva, s. d., 370 p.”, Revista de
História das Ideias, Coimbra, 12, 1990, pp. 471-476.
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Darwin em Portugal
Introdução
favorecendo a conservação e a disseminação das variações úteis e eli-
da vida. Assim sendo, a teoria da descendência com modificações por
minando as nocivas(!).
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selecção natural demarca-se também dosteleologismosvitalistas, quer das teorias transformistas anteriores, quer do fixismo essencialista tradicional. No dizer de François Jacob “a concepção darwiniana tem, por isso, uma
consequência fatal: o mundo vivo actual, tal como o vemos à nossa volta, é apenas um entre muitos possíveis. (...) Poderia muito bem ser diferente. Poderia mesmo não existir(1!). Por seu turno, Stephen Jay Gould argu-
menta que a contingência é o selo da teoria darwiniana e não apenas uma consequência ou um corolário(2) da mesma.
2. COMO EXPLICAR A REVOLUÇÃO DARWINIANA? A problemática da emergência da teoria darwiniana, em 1859, é um
vasto assunto que compete aos epistemólogos tratar, nomeadamente no quadro dos modelos explicativos que se propõem ultrapassar a clássica distinção entre história (internalista e externalista) da ciência e filosofia da ciência(). Limitar-nos-emos a indicar, de modo sumário, alguns dos problemas fundamentais que a teoria darwiniana, entendida enquanto revolução científica, tem vindo a suscitar.
Fig. 2 — Diagramada árvore da vida construído por Darwin. (Reproduzido de Charles Darwin, The origin of species... Sixth edition [edição definitiva], 1873).
A matéria prima não é só joeirada. Como acentuou François Jacob, as variações são integradas e dispostas “em conjuntos adaptativamente coerentes, ajustados durante milhões de anos e milhões de gerações, em resposta ao desafio do meio ambiente. É a selecção natural que[...] lentamente, progressivamente, elabora estruturas cada vez mais complexas,
órgãos novos, espécies novas”(2). Na “bricolagem da evolução”(2), os factores decisivos são a aleatoriedade das variações e a constante interacção dos organismos com o meio; o seu enunciado é simples, mas eles encerram os “atalhos sinuosos da contingência”(*) que marcam toda a história (1) Cf. Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, ob. cit. p. 36e ss. (2) François Jacob, O jogo dos possíveis. Ensaio sobre a diversidade do mundo
vivo, Lisboa, Gradiva, 1985, p. 34. (3) Vide: Idem, ibidem, pp. 57-97. (4) Stephen Jay Gould, A vida é bela, Lisboa, Gradiva, s. d., p. 287.
De acordo com Marjorie Grene(?), a biografia de Darwin é insuficiente para explicar a revolução científica que o naturalista inglês operou, mesmo que ela seja iluminada por múltiplos factores, desde os geográfi-
cos aos sociais, além dos culturais e científicos. Todavia, como bem demonstrou Michael Ruse, a contextualização do autor e da sua obra tem o mérito de combater o mito do génio criador, isolado da comunidade
científica do seu tempo(”), concepção alimentada, sobretudo, pela perspectiva indutivista da criatividade científica. O levantamento dos contex-
tos, intra e extra científicos, conduz à reavaliação da célebre viagem do
(1) François Jacob, O jogo dos possíveis. Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, ob.cit., pp. 34-35. (2) Vide: Stephen Jay Gould, A vida é bela, ob. cit., sobretudo p.308. (2) Vide: a recente proposta de João Maria André, “Da história das ciências à filosofia da ciência. Elementos para um modelo ecológico do progresso científico”, Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, 10, 1996, pp. 315-359. (4) Vide: Marjorie Grene, “Recent biographies of Darwin: the complexity of context”, Perspectives on Science, Chicago, 1 (4), 1993, pp. 659-675. (é) Vide: Michael Ruse, La revolución darwinista (La ciencia al rojo vivo), ob. cit.,
pp. 53-58.
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Introdução
Darwin em Portugal
Beagle, tradicionalmente vista como a condição sine qua non da emergência da teoria darwiniana. Terá sido a viagem de circum-navegação feita por Darwin, a bordo do navio Beagle comandado pelo capitão Fitzroy, entre 1831 e 1836()), o acontecimento que decidiu a carreira de Darwin e o futuro das ciências da vida e do homem? Durante 5 anos, Darwin fez pesquisas geológicas,
coleccionou, sem restrições, volumes impressionantes de dados paleon-
tológicos, botânicos, zoológicos e outros. Terá sido a observação desses factos, nomeadamente dos ossos dos mamíferos fósseis gigantes da América do Sul, das tartarugas e dos tentilhões das Galápagos, da fauna marsupial da Austrália, etc., que gradualmente despertou o seu espírito para a ideia de descendência com modificações, como advoga, entre outros, Jorge Enrique Adoum(2)? É indiscutível que a viagem do Beagle foi crucial e que tanto o contacto directo com a natureza, como a observação comparativa dos inúmeros testemunhos colectados impuseram no seu espírito a dúvida relativamente ao fixismo e, como argumenta Stephen Jay
Gould, “destruiram a fé de Darwin na imutabilidade das espécies”(2). De
facto, data de finais da década de trinta do século XIX, o chamado “intervalo decisivo”(4) ou o tempo de gestação da inovadoralógica da vida. Em 1839, Darwin redigiu as primeiras notas da futura teoria da descendência com modificações e nelas estabelecia já o paralelo entre selecção natural e selecção artificial(). Posteriormente, em 1842(9), Darwin faz o primeiro
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esboço da sua teoria e, em 1844(!), escreve um longo manuscrito, cujo
plano é praticamente idêntico à estrutura da obra de 1859.
No entanto, as mais recentes investigações sobre a revolução darwiniana combatem a sobrevalorização, quer da viagem do Beagle, quer da
interacção directa do cientista com a natureza, alimentada pelo próprio
Darwin(2), e trazem para primeiro plano os factores contextuais, sobretudo, intra-científicos. Assim, defende-se que foi o extraordinário desenvolvimento da biologia() entre 1838 e 1859 (estudos embriológicos, estudos das estruturas orgânicas, do registo fóssil, da distribuição geográfica é outros) que possibilitou a emergência do novo paradigma(?). Neste sentido, também Daniel Becquemont valoriza a investigação científica em
curso na época, feita no quadro do fixismo,e desvaloriza a ideia dos pre-
cursores de Darwin, especialmente Erasmo Darwin e Lamarck. De acordo como autor, “Darwin doit bien plus aux recherches de ses contemporains “fixistes” (anatomie comparée, embryologie, paléontologie, classification, distribution géographique) qu'aux premiers évolutionnistes que sont ELamarck et Erasmus Darwin”(º). Na verdade, perguntamos nós, como é que as especulações transformistas do médico, poeta e botânico Erasmus
Darwin(º) (avô paterno de Charles Darwin) e de Lamarck, na sua (1) Apenas pudemos consultar a recente edição francesa, Charles Darwin, Ébauche
de Vorigine des espêces (Essai de 1844), ob. cit.. (2) Vide: Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon),
ob.cit. pp: 1-5; Idem, The variation ofanimals and plants under domestication. (A reprint
(1) Vide: Charles Darwin, The voyage of the “Beagle”. Journal of researches into the natural history and geology of the countries visited during the voyage round the world ofH.M. 8. “Beagle” , London, The Amalgamated Press, 1905; Charles Darwin, Viagem de um naturalista ao redor do mundo. Trad. J. Carvalho. Rio de Janeiro, Cia. Brasil Editora, 1937, Jean Marc Drouin, “De Linné à Darwin: les voyageurs naturalistes”. Ih:
Michel Serres, Eléments d"histoire des sciences, Paris, Bordas, 1989, pp. 321-335; Alan Moorehead, Darwin. La expedición en el Beagle (1831-1836), Barcelona, Ediciones del Serbal, 1989. (?) Vide: Jorge Enrique Adoum, “Les Galapagos. L'origine de Vorigine”, Le Courrier de "Unesco, Paris, 35 (5) Maio 1982, pp. 24-28. (3) Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, ob. cit. p. 17. (4) Vide: Germano da Fonseca Sacarrão, “Apontamentos sobre o darwinismo”, Naturália, Lisboa, nov. sér., (2) Jan. 1982, pp. 30-32; (3) Maio 1982, p. 29.
(*) Vide: Daniel Becquemont, “Introduction”. In: Charles Darwin, Ébauche de Vorigine des espéces (Essai de 1844). Traduction de Charles Lameere, revue, complétée et annotée par Daniel Becquemont. Lille, Presses Universitaires de Lille, 1992,p. 7. (9) Vide: Charles Darwin, The foundations of the origin of species, a sketch written in 1842. Edited by his son Francis Darwin. Cambridge, Printed at the University Press, 1909.
of the second editon, London, John Murray, 1885), ob. cit., vol. 1,p. 9ess. (3) Recorde-se que o termo biologia foi criado simultaneamente por Lamarck em França e por Treviranus na Alemanha em 1802. Vide Maurice Caullery, Les étapes de la biologie. Nouvelle édition par le Dr. Jean Torlais. Paris, Presses Universitaires de France,
1964, p: 43.
(9). Vide: Dov Ospovat, The development of Darwin's theory. Natural history, natural theology, and natural selection, 1838-1859, Cambridge, University Press, 1995. (5) Daniel Becquemont, Darwin, darwinisme, évolutionnisme, Paris, Ed. Kimé, 1992, p. 12. Vide também Thomas S. Kuhn, A tensão essencial, Lisboa, Edições 70, 1989, p:180 ss. (6) A influência da Zoonomia (1794-1796) de Erasmus Darwin no transformismo lamarckiano e na teoria da descendência com modificações de Charles Darwin é admissível, mas difícil de precisar como informa Pietro Omodeo no artigo “Darwin, Erasmus 1731-1802”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit., pp. 812-815. Algumas obras capitais de Erasmus Darwin foram traduzidas para português. Por exemplo: O jardim botanico de Darwin. Ou a economia da vegetação, poema com notas filosoficas, traduzido do inglez por Vicente Pedro Nolasco da Cunha, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1803-1804. Na Academia das Ciências de Lisboa existem os seguintes
manuscritos: Phytologia, ou philosophia da agricultura e horticultura, ou compendio de
Darwin em Portugal
Introdução
Philosophie Zoologique (1809X!), pressupondo a harmonia do universo, podiam servir de fonte inspiradora de um modelo no qual essa harmonia é irreconhecível? Nateoria lamarckiana, os organismos são detentores de uma capacidade de adaptação ao meio que garante a regularidade da progressão dos mesmos, em harmonia com as condições mesológicas(2). Pelo contrário,
mundo vivo não traz as marcas da necessidade e da harmonia perfectibilista(!), mas da aleatoriedade, da contingência, da imprevisibilidade, da imperfeição e do improviso(2). Conforme argumenta Stephen Jay Gould, “Darwin reconheceu que a perfeição não pode fazer prova da evolução, porque a optimização oculta os trilhos da história”). A optimização ou perfeita adaptação, (como no caso da perfeição aerodinâmica de uma pena) tem um poder demonstrativo da descendência com modificações muito limitado. Pelo contrário, as imperfeições, como o improvisado “polegar” do panda gigante que se desenvolveu a partir do osso sesamóide radial do pulso(?), as estruturas vestigiais ou rudimentares, os
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Darwin constata a luta dos seres vivos entre si, pelo território, pelo ali-
mento, pela descendência, sendo a sobrevivência dos mais aptos (selecção natural), isto é, daqueles que apresentam variações úteis e vantajosas, o alicerce da diferenciação genealógica por divergência e isolamento(?). Na teoria lamarckiana, a progressão é contínua e harmoniosa e não se baseia em qualquer conflitualidade. Segundo François Jacob, “il n'y a jamais de crise entre les êtres et la nature, aucun combat pour la conquête d'un territoire entre les êtres eux-mêmes”(4). Também Stephen Jay Gould concluiu que, em Lamarck, “a variação é dirigida automaticamente para a adaptação e nenhuma segunda força como a selecção natural é necessária”(6). Em duas palavras, dizemos com François Jacob, que, na perspectiva lamarckiana, “le monde vivant n'est pas seulement le meilleur, mais le seul possible”(º). Pelo contrário, no paradigma darwiniano, o geurgia e phyturgia philosophicas, por Erasmo Darwin, doutor em medicina, e da Sociedade Real de Londres, etc., em 1800. Traduzida em portuguez [por Felix Avellar Brotero], 3 vols. (142, 248, 175 pp.). Ms. 361-363; Zoonomia ou as leis da vida organica. Traduzida do original inglez em portuguez. Terceira edição corrigida. Derby, 1805
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remanescentes, como o apêndice humano, etc., constituem argumentos
excelentes da teoria darwiniana. No dizer de Stephen Jay Gould: “Darwin reconheceu que a prova irrefutável da evolução deve ser procurada nos desvios, nas estranhezas e nas imperfeições que jazem nos trilhos da história”(*). Por isso, Darwin concluiu: “the wonder indeed is, on the
theory of natural selection, that more cases of the want of absolute perfec-
tion have not been observed”(9).
Meio século depois da Philosphie Zoologique de Lamarck, a ideia da contingência da vida revoluciona tanto o criacionismo essencialista como o transformismo lamarckiano. Essa ideia não era um dogma apriorístico do naturalista inglês. Neste sentido, François Jacob sublinha que “des documents paléontologiques, la distribution géographique des espêces, le développement des embryons, les phénomênes de divergence des caractéres à partir d'un ancêtre commum, [extension de certains groupes et la
— Manuscrito de 147 pp. Ms. 379.
(!) Consultámosa seguinte edição: Jean Baptiste Lamarck, Philosophie zoologique ou exposition des considérations relatives à Dhistoire naturelle des animaux. (...). Nouvelle édition revue et précédée d'une introduction biographique par Charles Martins. Paris, Librairie F. Savy, 1873, 2 vols.. Sobre a teoria lamarckiana, vide, nomeadamente: A. de Quatrefages, Charles Darwin et ses précurseurs français. Etude sur le transformisme, Paris, Germer Bailliêre, 1870, pp. 42-59; M.J.S. Hodge, “Lamarck: un grand changement de cadre conceptuel”. In: Nature, Histoire, Société. Essais en hommage à Jacques Roger, s.1., Klincksieck, 1995, pp. 229-239. (2) Vide: Jean Baptiste Lamarck, Philosophie zoologigue... ob. cit. vol. 1, sobretudo pp. 71-347. Idem, Articles d'histoire naturelle, Paris, Éditions Belin, 1991, pp. 78-88. (3) Vide: Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon),
ob.cit., sobretudo pp. 87 e ss.
(4) François Jacob, La logique du vivant. Une histoire de Vhérédite, ob. cit., p. 165. Vide também André Langaney, “Fugue à deux voix pour unethéorie”, Les cahiers de science & vie, Paris, 6, 1991, pp. 6-18. (5) Stephen Jay Gould, O polegar do panda. Reflexões sobre história natural,
ob. cit., pp. 88-89.
(9) François Jacob, La logique du vivant. Une histoire de 'hérédite, ob. cit., p. 165.
(!) Esta é também a conclusão a que chegou a especialista Yvette Conry, como é notório neste resumo condensado: “la biologie darwinienne ne définit plus la vie par une tendance à la progression par la différenciation, mais par une capacité aux variations supportées par des organismes dont la spécificité réside précisément dans une différence aléatoire, celle-ci ne se typifiant à échelle de générations que par I'écart croissant dá à 1'accumulation des minima différentiels et à Véviction des déshérités”, in: L'introduction du darwinisme en France au XIX* siêcle, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1974, p. 218.
(2) Vide: François Jacob, La logigue du vivant. Une histoire de V'hérédité, ob. cit., sobretudo p. 190. Vide, também, Goulven Laurent, “Darwin ou Vhéritage refusé”, Les
cahiers de science & vie, Paris, 6, 1991, pp. 34-50.
() Stephen Jay Gould, A vida é bela, ob. cit., p. 308.
(4) Vide: Ana Leonor Pereira, “[Recensão crítica de] Stephen Jay Gould, O polegar do panda. Reflexões sobre história natural. Lisboa, Gradiva, s. d., 370 p.”, art. cit.,
pp. 471-476. (º) Stephen Jay Gould, A vida é bela, ob. cit., p. 308.
(º) Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon), ob. cit., p. 400. Vide também Idem,ibidem, pp. 147-177.
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Darwin em Portugal
disparition de certains autres, tout concourt à montrer la contingence des êtres vivants et de leur formation”(!). Deste modo, foram os progressos
realizados pelas ciências da terra e da vida, na primeira metade do século XIX, que possibilitaram “a revolução bem sucedida de Darwin”, e que permitem compreender a “revolução falhada de Lamarck “(2), para utilizar as expressões de John Greene. Mas, estes factores intra-científicos não explicam tudo. 3. O GÉNIO DE DARWIN: A INTELECÇÃO DO ESGOTAMENTO DO PARADIGMA ESTÁTICO DA HISTORIA NATURAL Apesar dos avanços da geologia e de várias disciplinas biológicas,
nas décadas de 30, 40 e 50 do século XIX, a comunidade científica inter-
nacional não mostrava sinais de uma “psicologia de crise”(2), relativamente ao denominado paradigmaestático da história natural(?). No termo da década de cinquenta do século XIX, os naturalistas europeus “são quase todos mais ou menos criacionistas”(º). É sintomático que o único naturalista britânico que antes de Darwin publicou uma teoria geral de tipo evolucionista, o tenha feito anonimamente. Com efeito, o naturalista e editor escocês, Robert Chambers(*) publicou em Londres, em 1844, uma
obra intitulada Vestiges of the natural history of Creation, alicerçada em grande parte no evolucionismo cósmico da Naturphilosophie germã-
p. 183.
(1) François Jacob, La logique du vivant. Une histoire de I'hérédité, ob. cit.,
(2) Jobn C. Greene, “O paradigma kuhniano e a revolução darwinista na história natural”, art. cit., p. 136. Sublinhado do Autor.
(3) Idem,ibidem, p. 141.
(4) Vide: Idem, ibidem, sobretudo p. 131 e ss. Houve, no entanto, algumas controvérsias, como o famoso debate em França entre Étienne Geoffroy Saint-Hilaire e Georges Cuvier em 1830 na Academia Real das Ciências. Sobre o assunto, vide, Hervé
Le Guyader, “Geoffroy Saint-Hilaire, Étienne 1772-1844, et Cuvier, Georges 1769-1832. Débat”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 2, ob. cit., pp. 1867-1883;
Paul Pelseneer, “Os primeiros tempos da idea evolucionista: Lamarck, Geoffroy
Saint-Hilaire e Cuvier”, Jornal de Sciencias Naturaes, Lisboa, 2 (1) Jan.-Mar. 1922,
pp. i-l11. (5) Émile Nóel, O Darwinismo hoje, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1981, p. ll. (º) Vide: Mario Di Gregorio, “Chambers, Robert 1802-1871”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit., pp. 5660-567.
Introdução
31
nica(l) e no transformismo de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire(?). Esta
ôbra foi alvo de críticas reprovatórias, quer por parte da opinião pública letrada, quer por parte dos especialistas, e não conseguiu abrir alguma brecha consistente no paradigma estático da história natural. A reacção
negativa da comunidade científica internacional à obra de R. Chambers reforçou a prudência de Darwin. De facto, em 1844, data da publicação dé Chambers, a teoria da descendência com modificações encontrava-se
perfeitamente esboçada; mas, só seria publicada quinze anos depois(), sob o efeito do stress provocado pela leitura do trabalho inédito que, em
1858, o naturalista A. R. Wallace enviara a Darwin do arquipélago
malásio, onde fazia explorações desde 1854, continuadas até 1862(). O trabalho de Walllace intitulava-se On the tendency of varieties to depart indefinitely from the original type () e nele Darwin viu estampada uma teoria semelhante à sua teoria da descendência com modificações por selecção natural. No seu estudo bem fundamentado, Gerhard Wichler concluiu que, até 1859, a hipótese da criação das espécies, da constância e imutabilidade das mesmas, estava firmemente instalada, sendo Cuvier a grande autoridade de referência(é). Fundador da paleontologia dos vertebrados(”) e (1) Recorde-se que a Naturphilosophie foi inaugurada por J.W. von Goethe, o filósofo Schelling e os cientistas Oken e Kielmeyer, entre outros, em fins do século XVII e princípio do século XIX. Vide “Naturphilosophie”, in: MacMillan dictionary of the histoHyof science. Edited by W. F. Bynum, E. J. Browne, Roy Porter. London-Basingstoke, MacMillan Reference Books, 1983, pp. 292-293; Erik Nordenskióld, The history of biology. A survey, London, Kegan Paul, Trench, Trubner & Co., 1929, pp. 273 e ss. (2) Sobre o transformismo de Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, vide A. de Quatrefages, Charles Darwin et ses précurseurs français. Étude sur le transformisme, ob.cit., p.60ess. (3) Vide: Michael Ruse, La revolución darwinista (La ciencia al rojo vivo), ob. cit., pp:234-239; Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, ob. cit., pp. 17-22. (4) Vide: Gérard Molina, “Wallace, Alfred Russel 1823-1913”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 3, ob. cit., pp. 4565-4586. (*) Este texto foi publicado no Journal of the Proceedings of the Linnean Society, Agosto de 1858 e reproduzido em The Darwin-Wallace celebration held on thursday, Ist July, 1908, London, Linnean Society of London, 1908, pp. 98-107. Foi divulgado em francês, nomeadamente na colectânea de Alfred Russell Wallace, La sélection naturelle.
Essais. Traduits de "anglais sur la deuxiême édition avec Vautorisation de Pauteur par Lucien de Candolle. Paris, C. Reinwald et Cie., Libraires-Éditeurs, 1872, pp. 28-44. (6) Vide: Gerhard Wichler, Charles Darwin. The founder of the theory of evolution and natural selection, Oxford e outras, Pergamon Press, 1961, pp. 69-77. (7 A obra de Georges Cuvier, Recherches sur les ossemens fossiles de
Quadrupêdes, publicada em 1812, é considerada como sendo fundadora da paleontologia
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Introdução
Darwin em Portugal
autoridade máxima em anatomia comparada, Cuvier deu a conhecer mais de cento e cinquenta espécies fósseis de vertebrados(!), entre as quais monstros célebres como o megatherium, o ichthyosaurus e o plesiosaurus. Na verdade, Cuvier sabia decifrar os esqueletos a partir de um único fragmento ósseo. Na base do princípio da correlação das formas nos seres organizados e de outras regras, Cuvier dominava a arte “de reconnaítre un genre, et de distinguer une espéce par un seul fragment d'os”(2). De acordo com a sua leitura catastrofista da história da terra conjugada com o fixismo das espécies, Cuvier defendia que os seres que se sucederam na superfície do globo no decurso dos tempos geológicos, não apresentavam entre si qualquer relação de descendência. De cada vez que o globo terrestre sofreu uma revolução súbita e instantânea, os seres vivos que nele habitavam extinguiram-se por destruição. Por isso, em seu entender, “les
espêces perdues ne sont pas des variétés des espêces vivantes”(2). A cada revolução do globo correspondia a destruição das espécies então existentes, tendo a última revolução ocorrido há cinco ou seis mil anos(4). Por
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de Darwin, o geólogo Charles Lyell, os botanistas Joseph Hooker e Asa
Gray e o zoólogo Thomas A. Huxley(!).
No entanto, Charles Lyeil, nos seus Principles of geology (1830-
-1832), defendia a doutrina das “causas actuais”, actualismo ou uniformi-
tárismo, segundo a qual as causas que hoje produzem mudanças mínimas, regulares e contínuas na superfície da terra são as mesmas que provocaram as mudanças outrora ocorridas(2). A história da terra nãoé feita de “catas-
trophes subites, violentes et générales”(?) como pretendia Cuvier.
O tempo geológico é uniforme e a evolução lenta e progressiva da face da terra resulta da acção de constantes agentes naturais que, em todos os períodos geológicos, produzem efeitos idênticos(4). Apesar do seu uniformitarismo geológico, Lyell não aceitava a teoria transformista no mundo
orgânico, tendo permanecido fixista até à revolução darwiniana em 1859.
Nos seus Principles of geology, a teoria lamarckiana era longamente
exposta e refutada(”), o que pode ser tomado como um indicativo seguro
da vigência do paradigmaestático até 1859(9).
isso, nos arquivos daterra faltavam as formas intermediárias, isto é, teste-
munhos fósseis de modificações graduais. Com este argumento perturbador(”), Cuvier desautorizava o anti-catastrofismo e o transformismo de
Lamarck. De facto, o paradigma estático da história natural era acolhido
pela comunidade científica internacional, inclusive pelos maiores amigos
dos vertebrados. Vide: Goulven Laurent, “Paléontologie (Darwin et la), Palacontology (Darwin and)”. In: Dictionnaire du darwinisme et de V'évolution, vol. 3, ob. cit., pp. 3329-
-3335.
(1) Vide: Georges Cuvier, Discours sur les révolutions du globe. Avec des notes et un appendice d'aprês les travaux récents de Mm. De Humboldt, Flourens, Lyell, Lindley, etc. rédigés par le Dr. Hoefer, Paris, Librairie de Firmin Didot Frêres, Fils et Ci., 1867, sobretudo p. 40 e ss; p. 70. O Discours, publicado pela primeira vez em 1812 como introdução a Recherches sur les ossemens fossiles (...) foi trazido em português: Discurso sobre as revoluções da superficie do globo e sobre as mudanças que ellas occasionaram no reino animal. Traduzida da sexta edição franceza em 1832 por Francisco Ferreira de Abreu. Lisboa, Imprensa Nacional, 1872. (2) Georges Cuvier, Discours sur les révolutions du globe, ob. cit., p. 3.
() Idem, ibidem, p. 77. (4) Idem, ibidem, pp. 177-178.
(!) Vide: Gerhard Wichler, Charles Darwin. The founder of the theory of evolution and natural selection, ob. cit., p. 204 e ss. Depois de 1859, Thomas Huxley tornou-se o grande defensor público de Darwin e Asa Gray foi o pioneiro da teoria da descendência na América. Joseph Hooker e Charles Lyell também adoptaram o evolucionismo biológico. Mas é de salientar que cada um destes grandes cientistas construiu a sua versão da nova teoria. (2) Sobre o uniformitarismo de Charles Lyeil, vide Geof Bowker, “Les origines de Vuniformitarisme de Lyell: pour une nouvelle géologie”. In: Michel Serres, Éléments dºhistoire des sciences. Paris, Bordas, 1989, pp. 3877-405. (3) Charles Lyell, Principes de géologie ou illustrations de cette science empruntées aux changements modernes que la terre et ses habitants ont subis. Ouvrage traduit de Fanglais sur la sixiême édition, et sous les auspices de M. Arago, par Mme Tullia Meulien. Paris, Langlois et Leclercg, 1843, vol. 1, p. XVI; sobre a refutação das revoluções súbitas na história da terra, vide, Idem, ibidem, p. 445 e ss.
(4) Vide: Geof Bowker, “Les origines de luniformitarisme de Lyell: pour une nouvelle géologie”, art. cit., pp. 387-405; R. Furon, “La géologie”. In: Histoire générale des sciences. Publiée sousla direction de René Taton. Tome II. vol, 1 — Le XIXsiêcle.
Paris, Presses Universitaires de France, 1981, pp. 371-392.
(*) Charles Lyell, Principes de géologie... ob. cit., vol. 1, 1843, pp. 360-415; Idem,
ibidem, vol. 4, 1848, pp. 1-130.
(5) Atente-se no (sempre actual) argumento de Cuvier: “Pourquoi les entrailles de la terre nºont-elles point conservé les monuments d'une généalogie si curieuse, si ce n'est parce que les espêces d'autrefois étaient aussi constantes que les nôtres, ou du moinsparce que la catastrophe quiles a détruites ne leur a paslaissé le temps dese livrer à leurs varia-
(5) Nas edições dos Principles of geology posteriores a 1859, Lyell expõe a teoria darwiniana, sem discordar dos seus traços fundamentais. Consultámos Charles Lyell, Príncipes de géologie ou illustrations de cette science empruntées aux changements modernes de la terre et de ses habitants. Ouvrage traduit sur la derniêre édition
sing link”, MacMillan dictionary of the history of science, ob. cit., p. 272.
vol. 2, pp. 403-418.
tions”, Discours sur les révolutions du globe, ob. cit., p. 78. Vide também artigo “mis-
anglaise, entigrement refondue, (...), par M. J. Ginestou. Paris, Garnier Frêres, 1873,
34
Darwin em Portugal
A geologia de Lyell foi uma peça fundamental na elaboração da teoria darwiniana, o que é notório na Origem das Espécies e foi reconhecido pelo próprio Darwin na sua autobiografia(!). De resto, a construção da teoria da descendência com modificações seria impensável se Darwin não possuísse um bom nível de conhecimentos geológicos. Na Universidade de Edimburgo, que frequentou entre 1825 e 1827, e onde era suposto estudar medicina, por decisão paterna, Darwin dedicou-se à geologia e o mesmo ocorreu na Universidade de Cambridge entre 1828 e 1831 onde alcançou o diploma de “Bachelor of Arts”. Pode dizer-se que, em Cambridge, em vez de estudar teologia como lhe determinara o conside-
rado médico Robert Waring Darwin, seu pai, o jovem Charles dava livre curso à sua vocação genuína(2). Durante a viagem do Beagle (1831-1836), Darwin leu e estudou os Principles of geology de Lyell(?) o que,a par das pesquisas feitas no terreno, de geologia(?), biogeografia e ecologia, foi, talvez, determinante da emergência da teoria da descendência com modificações. Talvez, porque a relação entre o uniformitarismo geológico e o evolucionismo biológico não era necessária como demonstrou Reyer Hooykaas(*), o que acentua o carácter inovador da teoria de Darwin(º)e, acima de tudo, revela a sua consciência da inadequação do paradigma estático da biologia aos múltiplos dados científicos, avançados a partir dos anos trinta do século XIX.
(1) Charles Darwin, Memorias y epistolario íntimo. Mi vida —- Recuerdos del hijo — Correspondencia selecta. Prólogo de Alberto Palcos. Buenos Aires, Editorial Elevación, 1946, p. 165 e ss.; vide também Michael Ruse, La revolución darwinista (La ciencia al rojo vivo), ob. cit., pp. 73-82. (2) Vide: James A. Secord, “The discovery of a vocation: Darwin's early geology”, The British Journalfor the History of Science, London, 24 (2-81) Jun. 1991, pp. 133-157. Frank H. T. Rodhes, “Darwin's search for a theory of the earth; symmetry, simplicity and speculation”, The British Jounal for the History of Science, London, 24 (2-81) Jun. 1991, pp. 193-229. () Vide: Michael T. Ghiselin, “Darwin, Charles Robert 1809-1882”. In:
Dictionnaire du darwinisme et de ['évolution, vol. 1, ob. cit., sobretudo p. 774. (4) Vide: Sandra Herbert, “Charles Darwin as a prospective geological author”, The British Journal for the History of Science, London, 24 (2-81) Jun. 1991, pp. 159-192. (*) Reyer Hooykaas, “The parallel between the history of the earth and thehistory of the animal world”; “Geological uniformitarianism and evolution”. In: Selected studies in history of science, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1983, respectivamente pp. 447-466; pp. 467-488. (6) Está fora de questão, como escreveu Reyer Hooykaas, que “Darwin borrowed from Lyell the idea of slow and imperceptibly small changes adding up to larger transformations in the course of very long periods”, “Catastrophism in geology, its scientific
Introdução
35
4.0 SUCESSO DA ORIGEM E A SOMBRA DE MALTHUS É facto que a Origem das espécies alcançou um êxito editorial imediato. Darwin reflectiu sobre o surpreendente sucesso da sua obra: 1.250 exemplares esgotados em 24 de Novembro de 1859; mais 3.000 exem-
plares em 1860, na segunda edição; até 1876, só em Inglaterra, havia 16.000 exemplares vendidos(!). Para Darwin, tratava-se de um enigma
pois entendia que a comunidade científica não estava preparada para aceitar a sua teoria e, por outro lado, não lhe parecia que o público em geral esperasse a queda do criacionismo fixista(?). No entanto, Darwin apontava uma razão simples: tratava-se de um volume pequeno (cerca de
420 páginas) escrito em 13 meses e 10 dias que abreviava selectivamente
um longo manuscrito começado em 1856(*). Recorde-se que, para assegurar a Darwin os direitos de prioridade na descoberta da teoria seleccionista, Lyell e Hooker apresentaram em 1 de Julho de 1858 à Linnean
Society of Londono artigo de Wallace, já referido, precedido de excertos
de manuscritos de Darwin datados de 1844 e de 1857(4). Compreende-se que, pela força destas circunstâncias, a Origem dasespécies tinha de vir a lume, quanto antes. Porém, a explicação de Darwin sobre o sucesso da sua obra; pouco adianta, mesmo que se acrescente que, em 1859, o naturalista inglês já era conhecido do público, sobretudo pelas suas publicações respeitantes às pesquisas realizadas na viagem do Beagle; além disso,
character in relation to actualism and uniformitarianism”. In: Selected studies in history ofscience, ob. cit., p. 556. (1) Cf. Charles Darwin, Memorias y epistolario íntimo... ob. cit., p. 84. Os números referidos coincidem com os dados da investigação de R. B. Freeman, The works of Charles Darwin: An annotated bibliographical handiist. Second edition revised and enlarged. Folkestone-Hamden, Dawson-Archon Books, 1977, pp. 84-87. Comparando com as tiragens de algumas obras literárias, os números referidos não são muito elevados. Mas, tratando-se de uma obra científica, a tiragem foi, de facto, excepcional. Vide: Gertrude Himmelfarb, Darwin and the darwinian revolution, ob. cit., p. 209. (2) Vide: Charles Darwin, Memorias y epistolario íntimo... ob. cit., p. 85 e ss.
(). Vide: Idem, ibidem, p. 82 e ss.
(4) Os textos originais de Darwin e de Wallace foram reeditados em The Darwin-
“Wallace celebration held on thursday, Ist July, 1908, London, Linnean Society of London, 1908, pp. 87-107. Devido ao excepcional carácter, tanto de Darwin como de Wallace, o seu relacionamento continuou a ser bom, independentemente das posteriores divergências teóricas. Vide o elucidativo artigo de Ralph Colp, ““T will gladly do my best”.
How Charles Darwin obtained a civil list pension for Alfred Russel Wallace”, Isis, Philadelphia, 83 (1) Mar. 1992, pp. 3-26.
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Darwin em Portugal
também gozava de algum prestígio no seio da comunidade científica internacional, nas áreas de geologia e de sistemática zoológica(!). Poder-se-á explicar o sucesso da Origem das espécies recorrendo ao argumento de Marx e Engels, segundo o qual a obra espelhava a lógica
económica e social da Inglaterra vitoriana? Com efeito, em carta dirigida a Engels, datada de 18 de Junho de 1862, Marx avaliou a teoria darwi-
niana nestes termos: “(...) Darwin reconnaít chez les animaux et les plantes sa propre société anglaise, avec sa division du travail, sa concurrence, ses ouvertures de nouveaux marchés, ses “inventions” et sa malthu-
sienne “lutte pourla vie”. C'est le bellum omnium contra omnes de Hobbes (..(2). A mesmainterpretação da teoria darwiniana enquanto doutrina “burguesa” é emitida posteriormente, tanto por Marx (carta a Laura e Paul
Lafargue, Londres, 15 de Fevereiro de 1869) como por Engels (carta a
Piotr Lavrov, Londres 12-17 de Novembro de 1875)(?). Sem dúvida, qualquer teoria científica ou outra é construída num contexto histórico e é ela mesmahistórica(*). Mas, em que medida os contextos explicam texto e, como no caso da Origem das espécies, O seu sucesso?
De algum modo, quer a teoria da selecção natural, quer a sua afirmação pública tornam-se mais compreensíveis à luz do ambiente familiar e social, bem como da trajectória intelectual do seu autor. Darwin cresceu
num nicho familiar marcado pela conjugação do espírito liberal tendencialmente agnóstico(º), do lado do pai e do avô paterno, com o espírito
industrialista do lado materno, afirmado de modo singular na cerâmica, a
famosa faiança artística de Wedgwood(*). Além da cultura e da fortuna (!) Vide: Michael Ruse, La revolución darwinista (La ciencia al rojo vivo),0b. cit., p.315ess. (2) Karl Marx; Friedrich Engels, Leitres sur les sciences de la nature (et les mathematiques). Traduction et introduction de Jean-Pierre Lefebvre. Paris, Éditions Sociales,
1974, p. 21. () Cf. Idem, ibidem, p. 70 e p. 85, respectivamente. (4) Sobre as implicações deste enunciado pacífico vide Gérard Fourez, La construction des sciences. Les logiques des inventions scientifiques. Introduction à la philosophie et à V'éthique des sciences. Deuxiême édition revue,s. 1., De Boeck Université, 1992; Georges Canguilhem, Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, Lisboa,
Edições 70, s. d., sobretudo pp. 11-42; Pietro Redondi, “Sciences”. In: André Burguigre,
Dictionnaire des sciences historiques, Paris, Presses Universitaires de France, 1986,
pp. 623-630.
p. 10.
(º) Vide: Gertrude Himmelfarb, Darwin and the darwinian revolution, ob. cit.,
(9) Vide, entre outros, Alberto Candeias, A vida e a obra de Darwin, Lisboa, Cosmos, 1941, sobretudo pp. 5-37. Anna Sproule, Charles Darwin. A importância da teo-
Introdução
37
herdadas, também é inegável que Charles Darwin leu, a título de distração do seu labor científico, algumas obras de economia e de demografia no-verão de 1838, designadamente de A. Smith(!) e, sobretudo, de Malthus(2). Mas, em que medida a leitura darwiniana do Essay on the
principle ofpopulation (1798) de Malthus contribuiu para a estruturação lógica da teoria da selecção natural? Poder-se-á afirmar, sem reservas, que
o princípio malthusiano da população serviu de fundamentoà ideia de luta
pela vida nos reinos animal e vegetal?
Darwin estendeu o princípio da população a todos os seres viventes
na terra(?), mas o seu quadro problemático é muito distinto do objecto do
economista inglês, Thomas Malthus. Este cuidou de equacionar o pro-
blema do progresso social, da felicidade e da perfectibilidade do homem à luz das dificuldades resultantes do desequilíbrio entre o poder reprodutivo da espécie humana e o poder da terra de produzir alimentos. Segundo os
postulados malthusianos: “Primeiro: a comida é necessária à existência do homem. Segundo: a paixão entre os sexos é necessária e manter-se-á aproximadamente no seu estado actua “(4), conforme a regra de todos os
tempos, pois, acrescenta Malthus, “no sentido da extinção da paixão entre os sexos, ainda não se registou o mínimo progresso. Parece existir com tanta intensidade no presente como há dois ou quatro mil anos”(>), donde resulta que “o poder da população é infinitamente maior que o da Terra para produzir a subsistência do homem”(*). Essa diferença de grandeza é matematizada na célebre fórmula do princípio malthusiano da população:
ria da evolução de Darwin na compreensão do mundo biológico, Lisboa, Editora Replicação, 1991, p. 15 e ss.; Jonathan Howard, Darwin, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1982, p. 17 e ss.; Giuseppe Montalenti, Charles Darwin, Lisboa, Edições 70, 1984, pp. 9-19. (1) Vide: Syluan S. Schweber, “Facteurs idéologiques et intellectuels dans la genêse de la théorie de la sélection naturelle”. In: De Darwin au darwinisme: science et idéologie. Congrês International pour le Centenaire de la mort de Darwin. Paris“Chantilly 13-16 Septembre 1982. Edition préparée par Yvette Conry. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1983, sobretudo p. 130 e ss. (2) Vide: Michael T. Ghiselin, “Darwin, Charles Robert 1809-1882”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit., pp. 1/7-I78. () Vide: Pierre Lantz, “Malthus-Sismondi-Darwin. Populations et concurrence vitale”, Les Études Philosophiques, Paris, 3, Jul.-Set. 1984, pp. 385-398. (*) Thomas Robert Malthus, Ensaio sobre o princípio da população, Trad. Eduardo
Saló, Mem Martins, Europa-América, s. d., p. 26. (é) Idem, ibidem.
(9) Idem, ibidem.
Darwin em Portugal
Introdução
“a população, quando não controlada, aumenta em razão geométrica, enquanto a subsistência aumenta apenas em razãoaritmética”(1). Ora, enquanto o pastor anglicano era um reformista social(?), defen-
É sabido que Darwin conta na sua Autobiografia, escrita em 1876, que, após a viagem à volta do mundo a bordo do Beagle (1831-1836),
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sor do voluntarismo moral (moral restraint), Darwin era um investigador,
por conta própria, da economia da natureza, empenhado na construção da lógica evolucionária da vida. As referências que Darwin faz nas suas obras capitais ao princípio malthusiano da população também não implicam a fundamentação teológica que Malthus atribuiu ao seu princípio, nem as medidas de controlo demográfico propostas pelo reverendo(?). Assim sendo, será absolutamente seguro afirmar que o ensaio malthusiano
exerceu a função de “catalisador”(4) da teoria evolucionária por selecção natural concebida ao mesmo tempo mas, independentemente, por Darwin |
e Wallace()?
(1) Idem, ibidem.
(2) Malthus era membro do partido Whig. Vide: William Peterson, “La postérité de Malthus”. In: Malthus, le premier anti-malthusien, Paris, Dunod-Bordas, 1980, pp. 230-235. (3) Vide: Paul Crook, Darwinism, war and history, Cambridge, University Press, 1994, p. 17 ess. (4) Termo de William Peterson, “La postérité de Malthus”, art. cit., p. 213 e ss. (5) Veja-se o testemunho do próprio A. R. Wallace: “both Darwin and myself, at the critical period when our minds were freshly stored with a considerable body of personal observation and reflection bearing upon the problem to be solved, had ourattention directed to the system of positive checks as expounded by Malthus in his “Principles of Population”. The effect of this was analogous to that of friction upon the specially-prepared match, producing that flash of insight which led us immediately to the simple but universal law of the “survival of the fittest”, as the longsought effective cause of the continuous modification and adaptation of living things”, The Darwin-Wallace celebration held on thursday, 1st July, 1908, ob. cit., p. 9. É de notar que esta obra comemorativa do quinquagésimo aniversário da comunicação conjunta de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, “On the Tendency of Species to form Varieties; and on the Perpetuation of Varieties and Species by Natural Means of Selection”, inclui uma selecção de textos do Essay de Malthusfeita e apresentada por Wallace na cerimónia. Em seu entender, aquelas passagens da obra malthusiana teriam sugerido tanto a ele próprio como a Darwin a ideia de selecção natural. Vide: The Darwin-Wallace ceiebration held on thursday, Ist July, 1908, ob. cit., pp. 111-118. Este documento que está esquecido é do maior interesse para uma abordagem epistemológica da génese da teoria científica em causa. Atente-se, no entanto, que, já em 1858, Wallace e Darwin não sustentavam rigorosamente o mesmo modelo. Sobre este assunto, vide, entre outros, Georges Canguilhem, “Charles Darwin. 1. - Les concepts de “lutte pour "existence" et de “selection naturelle” en 1858: Charles Darwin et Alfred Russel Wallace”. In: Études d”histoire et de philosophie des sciences. Troisiême édition. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1975, pp. 99-111.
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começou a desenvolver um trabalho imenso de ordenação de todos os factos de algum modo relativos às variações dos animais e das plantas, quer
em estado doméstico, quer em estado de liberdade selvagem e que não
tardou a compreender que “la selección era la clave del éxito que ha
encontrado el hombre para crear razas útiles de animales y de plantas”(!). Mas, via-se confrontado com um problema: “cómo podía ser aplicada la
selección a organismos vivientes en estado natural? He aquí lo que consti-
tuyó para mí un misterio durante algún tiempo. En octubre de 1838, es decir quince meses después de comenzada mi encuesta sistemática, me acaeció leer sólo por vía de entretenimiento, el libro de Malthus sobre la
Población. Yo estaba bien preparado, por haber observado prolongada y continuamente los hábitos de los animales y de las plantas, para apreciar la lucha por la existencia que se encuentra en todas partes; y entonces se me ocurrió la idea de que en tales circunstancias, las variaciones favo-
rables tenderían a ser preservadas, mientras otras menos felices serían destruídas”(2). Ressalta desta exposição darwiniana da génese da sua teoria que o princípio malthusiano da população substancializa a causa da luta pela existência, mas não explica a sobrevivência de uns indivíduos e a
eliminação de outros, nada adianta quanto à problemática da transformação das espécies, que Darwin procurava equacionar a partir da noção de luta, mas também das noções igualmente capitais de variação e de selecção. Por isso, perguntamos: a leitura da obra de Malthus terá contribuído de modo significativo para a formulação científica da sua hipótese capital? Deverá o epistemólogo limitar-se a reproduzir a explicação que o próprio Darwin deu(?) sobre o nascimento da suateoria?
Por outro lado, a referência que Darwin fez ao ensaio malthusiano na
Origem das espécies(*) estabelece um vínculo lógico entre o princípio da população e o princípio da luta pela vida, válido para todas as espécies.
Mas, para se demarcar da inspiração malthusiana, Darwin sublinha que o
princípio da população se aplica com mais intensidade ao mundo animal e vegetal do que à espécie humana. É que, no caso dasplantas e dos animais, em estado de natureza, textualmente, “there can beno artificial increase of (1) Charles Darwin, Memorias y epistolario íntimo... ob. cit., p. 81.
(2) Idem, ibidem.
(2) Sobre a pertinência desta questão vide Georges Canguilhem, Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, ob. cit., p. 18e ss. (*) Vide: Charles Darwin, The origin of species... Sixth edition, ob. cit., p. 50,
Darwin em Portugal
Introdução
food no prudential restraint from marriage”(!). No entanto, esta nota não significava qualquer reserva darwiniana quanto à aplicação da teoria da luta e da selecção à espécie humana. Assim, em The descent of man (1871) no capítulo II “On the manner of development of man from some lower form”, Darwin, ao tratar o tópico “rate of increase”, remete o leitor para a obra malthusiana(?). Ora, em termos de estratégia epistemológica é de sublinhar que o tópico “rate of increase” é precedido pela problemática da variabilidade do corpo e do espírito do homem, da variação e das suas leis no homem e nos animais
inevitável: luta entre indivíduos da mesma espécie, luta entre indivíduos
inferiores, da acção directa das condições existenciais, dos efeitos do uso
das partes, enfim da questão crucial da hereditariedade; e, é sucedido pelo tópico da selecção natural. Situada entre o problema da variação e a defesa da hipótese da selecção natural, enquanto mecanismo evolucionário, a abordagem do crescimento demográfico à luz do princípio malthusiano serve, apenas, para justificar a inevitabilidade da luta pela existência. Tanto na obra The descent of man como em Theorigin of speciesQ), a lógica argumentativa é a mesma: da variação para a luta e da luta para a selecção. É no momento da luta que o princípio da população funciona e parece-nos que Darwin o valoriza porque ele se inscreve no quadro do modelo matemático de cientificidade que era justamente um modelo bastante creditado na época. Darwin refere-se também ao princípio da população na obra The variation of animals and plants under domestication (1868?) a propósito da fauna e da flora do arquipélago das Galápagos e, de novo, se constata que a taxa geométrica de crescimento intraespecífico, necessariamente, determina a luta pelo alimento, pelo território e (paradoxalmente) pela reprodução. Em suma: na teoria darwiniana, as espécies animais e vegetais reproduzem-se tão rápida e abundantemente(”) que a luta pela vida é (1) Idem, ibidem.
(2) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, 0b. cit., p. 44, nota 57: “See the ever memorable * Essay on the Principle of Population *, by the Rev. T. Malthus”. (3) Atente-se na sequência dos capítulos da obra The origin ofspecies: “IL — Variation under Domestication; II — Variation under Nature; HI — Struggle for Existence; IV — Natural Selection; or the Survival of the Fittest”, Sixth edition, ob. cit., pp. V-VL (4) Vide: Charles Darwin, The variation of animais and plants under domestication, vol. 1, ob. cit., p. 10.
() No impressivo texto darwiniano: “all organic beings, without exception, tend to increase at so high a ratio, that no district, no station, not even the whole surface of
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de espécies diferentes e luta com as condiçõesfísicas da vida. É o poder
de multiplicação das espécies que gera a luta donde resulta a sobrevivência dos mais aptos e a eliminação dos menos aptos, ou seja, a selecção natural. das variações vantajosas e consequentemente a evolução adaptativa.
A luta é fundamental mas a matéria prima sobre a qual opera a selecção natural é a variação. À luz do exposto, parece-nosser algo controverso que a leitura do ensaio malthusiano tenha sido a fonte inspiradora da arti-
culação lógica entre variação, luta e selecção natural, embora tenha per-
mitido fundamentar a ideia de luta no princípio da população. Mas, mesmo que se admita essa versão do nascimento da teoria darwiniana, será defen-
sável que Darwin se limitou a transferir o espírito de competição reinante
na economia política britânica (Adam Smith, Malthus, Ricardo) para a
biologia? Será esta leitura sociologista da teoria darwiniana aquela que
melhor dá conta do êxito da Origem das espécies ? Seguramente, as razões contextuais, biográficas e científicas, cultutais: e. economico-sociais, não esgotam o assunto. Recentemente, Ilse Bulhof(!) procurou a chave do sucesso da obra na sua dimensãoliterária e verificou que a Origem das espécies está escrita num excepcional estilo
literário-retórico-poético. Quer isto dizer que a obra apresenta estratégias de comunicação, quer dos argumentos lógicos, quer das experiências sistemáticas, que não se situam no plano estritamente informativo. De facto,
a obra é uma pesquisa da validade da hipótese da selecção natural frente a
um imenso caudal de factos da natureza, e nessa busca há umaespécie de
dança contínua entre argumentos e contra-argumentos, a qual imprime à sua hipótese uma vigorosa força persuasiva. Darwin, ora defende e logo ataca a sua hipótese e esse jogo argumentativo, que se salda na reivindicação do carácter científico da sua hipótese(2), desenrola-se num estilo literário ímpar. Por isso, Ilse Bulhof concluiu que “Darwin's principal sucess was due to his performance as a writer(?). Sem dúvida, a obra agarra o leitor e essa qualidade deve ser tida em conta.
the land or the whole ocean, would hold the progeny of a single pair after a certain number of generations”, Idem, ibidem, vol. 1, pp. 5-6. (!)-Vide: Ilse N. Bulhof, The language of science. A study of the Relationship
between literature and science in the perspective of a hermeneutical ontology with a case siudy of Darwin's The origin of species, Leiden, E.J. Brill, 1992.
(2) Vide, por exemplo, Charles Darwin, The variation of animals and planis under domestication, vol. 1, ob. cit. p. 8ess. (3) Ilse N. Bulhof The language of science... ob. cit., p. 89.
stone
40
42
Darwin em Portugal
Por outro lado, importa ter sempre presente que a obra darwiniana apresentava uma hipótese inovadora, que demorou cerca de vinte anos(1!) a ser testada e convertida em modelo teórico (1839 -1859). Era normalque ela despertasse o interesse da comunidade cientí fica e a curiosidade do público leitor. François Russo admite que nada há de extraordinário no sucesso da obra darwiniana pois uma revoluçãocientíf ica, ou “le saut dans la nouveauté est souvent offert par une publicatio n qui fait sensation”(2). A Origem das espécies não é uma excepção à regra( ?). Também ela teve um longo tempo de maturação para poderdar“o salto na novidade” de que fala François Russo. Darwin contava trinta anos quando começou a conceber a teoria da descendência com modificaçõ es por selecção natural. Aos cinquenta anos de idade dá à estampa a sua obra magna que se difundiu por todo o mundo em onze línguas até à morte de Darwin em 1882, e num total de vinte e nove línguas até 1977(4 ). Nenhuma outra obra de Darwin alcançou semelhante êxito. A Origem do homem(1871) e À expressão das emoções (1872), obras que desen volvem o “longo argumento” de 1859(º), particularmente em relação à espécie humana, ficaram um pouco aquém da Origem das espécies, conforme se pode verificar nos quadros anexos.
Introdução
43
5. DARWINISMO: A TEORIA DARWINIANA E AS SUAS VARIANTES Desde os primeiros anos da década de sessenta do século eao
ria darwiniana foi difundida por Thomas H. Huxley e A. Russel
ace
sob a denominação de darwinismo(!). Mas, não havia, de facto, uma i em tidade teorética absoluta entre as versões daqueles dentistas e menos ainda, entre cada uma delas e a teoria darwiniana. Thomas
Ux o não
aceitava o princípio da selecção natural, enquanto Wallace não O aplic sa à evolução da espécie humana(?). De qualquer modo, o princípio a descendência das espécies a partir de um antepassado comum, segun o um processo de divergência, ligava a teoria darwiniana às a p ne heterogéneas versões, designadamente de Th. Huxley, a Aee, vel, Hooker, Asa Gray, Fritz Miiller e E. Hckel( ). Pode, então, a mar gue a ideia de evolução por meios naturais era uma constante no credo dos darwinistas. Para além deste enunciado, entramos no terreno das divergências e, se bem compreendemos, é esta a razão que justifica a ausência de-um verbete intitulado simplesmente darwinismo no monumenta Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution. O que aqui encontramos é um conjunto de múltiplos darwinismos(*) em que cada darwinista é um o De facto, a conclusão que se retira dos estudos já efectuados sobre o darwinismo, em diversas comunidades científicas, pode resumir-seneste
enunciado: “in pratica, Homo Darwinianus & una specie politipica (). No mesmo sentido, o especialista Jean Gayon faz esta advertência: Tout his(!) Vinte anos é o tempo médio de maturação das grandes obras científicas é filosóficas. Vide: Paul Scheurer, Révolutions de la scienc e et permanence du réel, ob.cit., sobretudo p. 7.
(2) Franço
is Russo, Nature et méthode de Vhistoire de scienc es, Paris, Librairie Scientifique et Technique Albert Blanchard, 1983, p. 99. () Na história das ciências, algumas obras são marcos de viragem, sinalizam a emergência de novos paradigmas: “par exemple la publication des “Principia” de Newton en 1687, de 1º “Origine des espêces” en 1859 par Darwin, de la Communication à PAcadémie de Berlin en Décembre 1900 de Planck qui introduisait la notion de quanta, du mémoire d"Einstein en 1905 surla relatitvité”, Franço is Russo, Nature et méthode de Phistoire de sciences, ob. cit., p. 99. (4) Vide: R. B. Freeman, The works of Charles Darwi n. An annotated biblio-
graphical handlist, ob. cit., p. 83.
(5) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit., pp. 1-4; Idem, The expression of the emotio ns in man and animals. With a preface by Konrad Lorenz. Chicago-London, The Univer sity of Chicago Press, 1965, sobretudo,
pp. 347-366.
torien dont Vintention serait d'embrasser la totalité des manifestations his-
(1) Vide: Emst Mayr, Darwin et la pensée moderne de ['évolution. Traduit de Vanglais (États-Unis) par René Lambert. Paris, Editions Odile Jacob, 1993, p. 7.
(2) Vide: Idem, ibidem, p. 127 e ss. Daniel Becquemont, Darwin, darwinisme, évolutionnisme, ob. cit., p. 193 e ss.
.
o
(3) Vide: Ermst Mayr, Darwin et la pensée moderne de Vévolution, ob. cit.,
p-127 (s)S referido dicionário trata os seguin tes darwinismos: alemão, anglosaxónico; árabe, cubano, espanhol, francês, italiano, japonês, nórdico, russo, tendo peautores,
? respectivamente, Britta Rupp-Eisenreich, Mario di Gregorio, Mohammed no na Pedro M. Pruna, Diego Núfez, Gérard Molina, Giovanni Landucci, ritta ur -Eisenreich, Philippe Janvier, Vasilij Babkov. Vide: Dictionnaire du darwinisme et de Févolution, vol. 1, ob. cit., pp. 822-1108. . o. o
o o “antonello La Vergata, “Che rivoluzione fu la rivoluzione darwiniana?”, art.
cit, p. 105.
44
Darwin em Portugal
Introdução
toriques du “darwinisme” devrait d'abord faire face à Iextrême hétérogéneité de celles-ci”(!). E nósacrescentamos: todo o historiador que tome como ponto de partida uma definição ideal de darwinismo,identificado com teoria de Darwin, chega necessariamente a resultados perturbadores. Em nosso entender, foi o que aconteceu na análise que Yvette Conry fez do darwinismo francês. A sua definição de darwinismo(?) comporta e articula todos os elementoscapitais da teoria darwinianae, por isso
Não seria lógico que a comunidade científica oferecesse alguma resistência à selecção natural e, ignorando a distinção elementar entre
mesmo, no final do seu excelente trabalho, Yvette Conry teve de concluir que, até ao final do século XIX, o darwinismo não foi introduzido em
França: “nous déclarons avoir vainement cherché un darwiniste”(?). Sem perder de vista a definição ideal de darwinismo, parece-nos ser legítimo adoptar um critério menos radical, atendendo à flexibilidade relativa da própria teoria darwiniana. Julgamos que essaflexibilidaderesultou de difi-
culdades interiores à teoria da selecção natural, mas também do interesse
de Darwin em que a sua teoria fosse secundada por um número crescente de cientistas. O problema interno fundamental residia no desconhecimento das leis da hereditariedade, o que foi inteiramente assumido por Darwin, desde a primeira edição da Origem das espécies: “the laws governing inheritance are quite unknown”(*). Ora, se o problema das variações e da sua transmissão à descendência não estava resolvido, é óbvio que,tratando-se de um pré-requisito da selecção natural, esta apresentava alguma fragilidade. Ou, em termos mais simples: como pensar a selecção natural sem conhecer as leis da hereditariedade, já que estas encerram a chave do mecanismo da descendência com modificações? Sem umaciência experimental da variação e da hereditariedade(*), como fundar a hipótese da selecção natural? (!) Jean Gayon, Darwin et V'aprês-Darwin. Une histoire de 1 “hypothêse de sélec-
tion naturelle, Paris, Éditions Kimé, 1992, p. 4.
(2) Segundo Yvette Conry: “le darwinisme est une étiologie de 1 évolution (en quoi il intêgre une doctrine de la spéciacion) à partir d'une problématique de Vadaptation, par la norme conceptuelie de la sélection (qui engage un contexte écologique) et le présupposé de la variation”, L'introduction du darwinisme en France au XIX* siêcle, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1974, p. 425.
() Idem, ibidem.
(4) Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon), ob. cit., p. 11; na edição definitiva, escreve: “the laws governing inheritance are for the most
part unknown”, The origin of species... Sixth edition, ob. cit., p. 10.
(5) Recorde-se que, praticamente, só a partir de 1920, com a genética das popu-
lações, na sequência da redescoberta de Mendel em 1900, se começa a formular a teoria
matemática da selecção natural. É a genética das populações que vem construir o campo
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soma e germen(!), recuperasse o princípio lamarckiano da hereditarie-
dade dos caracteres adquiridos que, de modo algum, punha em causa o fundamental, isto é, a evolução por vias naturais? E perfeitamente
compreensível que até às décadas detrinta e de quarenta do século XX,o
darwinismo não apresente como característica fixa a selecção natural >, embora esta constituisse o núcleo duro(?) (apesar da sua vulnerabilidade) da teoria darwiniana. De resto, o próprio Darwin, sem jamais abdicar da selecção natural das variações úteis, em termos de adaptação ao meio,teve
necessidade de construir umateoria provisória da hereditariedade, naqual,
justamente, incorpora alguns factores lamarckianos, como a acção directa do meio (alimentação, clima, etc.) e a actividade do organismo (uso ou não uso dos órgãos), na origem das variações transmissíveis à descendência. É que, das numerosascríticas feitas na década de sessenta à Origem das espécies, algumas incidiam especialmente sobre a questão das varia-
çõese da sua transmissão(*) e, por isso, não admira que, em 1868, Darwin
desenvolva e torne pública a sua hipótese da pangénese, na obra The variation of animals and plants under domestication. Em termos muito sumários, Darwin supõe que todas as células do corpo, em todasas etapas da vida, produzem gémulas que percorrem todo o corpo e se reunem às células sexuais. Ora, sob a influência do meio e da actividade do organismo,as células podiam sofrer alterações e transmitir essas alterações às conceptual adequado e os meios de controlo experimental da hipótese da selecção natural. Vide: Jean Gayon, Darwin et 'aprês-Darwin. Une histoire de Vhypothêse de sélection naturelle, ob. cit., p. 334 e ss.
(!) Comoé sabido, a separação entre germen e soma foi introduzida por Weismann eiitre 1883 e 1892, na sua teoria do plasma germinativo que vibrou um golpe muito duro no princípio lamarckiano da hereditariedade dos caracteres adquiridos. Se as variações do organismo (o soma) não produzem efeitos sobre o germen,é lógico que a hereditariedade do adquirido é insustentável. Vide: Charles Lenay, La découverte des lois de Phérédité (1862-1900). Une anthologie, s.l., Presses Pocket, 1990, p. 163 e ss. (2) Vide: Ernst Mayr, Una larga controversia: Darwin y el darwinismo, Barcelona,
Crítica, 1992, p. 143 e ss.
() Vide: Emst Mayr, Darwin et la pensée moderne de Pévolution, ob. cit., pil7ess. (4) É de salientar a crítica de Fleeming Jenkin feita em 1867. O autor observava que as variações, mesmo muito vantajosas, se diluiriam na descendência pois, à luz da crença generalizada na hereditariedade por mistura, cada novo indivíduo apresentaria
caracteres intermédios relativamente aos seus progenitores. Vide: Jean Gayon, Darwin et aprês-Darwin. Une histoire de Phypothêse de sélection naturelle, ob. cit., pp. 95-112.
46
Darwin em Portugal
gémulas que, por seu turno, as comunicavam às células sexuais e estas transmitiam-nas à descendência(!).
Admitir a hereditariedade dos caracteres adquiridos pelo soma, sob a
acção directa do meio e do uso ou não uso dos órgãos, equivalia a aceitar o mecanismo transformista lamarckiano, embora sem renunciar ao estatuto que, desde 1859, atruibuia à selecção natural. A permeabilidade da teoria darwiniana aos factores lamarckianos é também notória na edição definitiva da Origem das espécies. Ao resumir o volume, Darwin escreveu: “(...) species have been modified, during a long course of descent. This has been effected chiefly through the natural selection of numerous successive, slight, favourable variations; aided in an important manner by the inherited effects of the use and disuse of parts; and(...) by the direct action of external conditions(...)(2). A selecção natural continua a ser o mecanismo chave da evolução, mas não é o único. Muitos cientistas
acabaram por valorizar excessivamente os factores lamarckianos, tendo mesmo excluído a selecção natural das suas versões da teoria da descendência com modificações. Pode dizer-se que não eram anti-darwinistas, no sentido em que os mecanismos evolutivos que defendiam tinham um carácter rigorosamente natural, 6. A TEORIA DE DARWIN E O EVOLUCIONISMO FILOSÓFICO DE HERBERT SPENCER A problemática da definição do darwinismo não se esgota nos termos sumariamente expostos. Com efeito, desde 1860, Huxley apresentava o
darwinismo como sinónimo de evolucionismo(). Ora, na verdade, Darwin
evitou o termo evolução(*), porque ele era usado pelos embriologistas, desde o século XVIII, num sentido preformacionista ou no sentido epi-
(1) Vide: Charles Darwin, “Provisional hypothesis of pangenesis”, The variation of animals and plants under domestication, vol. 2, ob. cit., pp. 349-399. (2) Charles Darwin, The origin of species... Sixth edition, ob. cit., p. 421. Darwin
reafirma a não exclusividade da selecção natural na obra The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit., por exemplo, p. 61. (3) Vide: Daniel Becquemont, Darwin, darwinisme, évolutionnisme, ob. cit.,
pp. 165-167.
(4) Na primeira edição da sua obra magna aparece uma única vez o termo “evolved”. É precisamente a última palavra do livro. Vide: Charles Darwin, On the origin of species (A reprint of the first editon), ob. cit., p. 415.
Introdução
47
genético()). Por outro lado, Darwin pretendia demarcar a sua teoria do o transformismo lamarckiano que, desde 1832, Lyell tinha difundido sob obra da edição primeira na 1871, em É (?). evolução nome de teoria da The descent of man, que o substantivo evolução surge pela primeira vez(). A: descendência com modificações torna-se sinónimo de evolução conradúal(4). Depois, em 1872, na sexta edição da Origem das espécies, Evidente . vezes(*) cinco siderada definitiva, o termo evolução aparece s variaçõe de natural mente que a teoria da evolução gradual, por selecção
aleatórias, inovava a carga semântica do termo evolução, especialmente
em relação ao sentido que H. Spencer generalizou desde 1852(º), a partir
da lei do desenvolvimento embrionário (epigénese) de Von Baer. Segundo esta lei, o desenvolvimento embrionário consiste na passagem duma homogeneidade primordial a um estado terminal de heterogeneidade, através dumadiferenciação progressiva(?). Spencer aplicoua lei do desen-
volvimento epigenético a todos os níveis da realidade, transformando essa
lei numa fórmula filosófica universal(?): a lei da evolução da homogenei(1) O embriologista Karl Ernst von Baer (1792-1876) usou o termo latino “evoluepitio” conjugado com o termo alemão “Entwicklung' para definir o desenvolvimento genético. Vide: “evolution”, in: MacMillan dictionary of the history of science., ob. cit., p. 131; Robert J. Richards, The meaning ofevolution. The morphological construction and ideológical reconstruction of Darwin's theory, Chicago, The University of Chicago Press, 1993,p. 167 ess.. (2) Vide: artigo “evolution”, in: MacMillan dictionary of the history of science, obscit p. 131. (3) Vide: R. B. Freeman, The works of Charles Darwin. An annotated biblio-
graphical handlist, ob. cit., p. 79; p. 129.
(4) Vide: “the principle of gradual evolution”, Charles Darwin, The descent ofman,
and selection in relation to sex, ob. cit., p. 2.
(5) Vide: R. B. Freeman, The works of Charles Darwin, An annotated bibliographical handilist, ob. cit., p. 80. (5) Referimo-nos ao artigo de Herbert Spencer “The development hypothesis” (1852) reproduzido, por exemplo, em Essays: scientific, political, and speculative. London, Williams and Norgate, 1868, vol. E, pp. 377-383. (7) Vide: Georges Canguilhem, Du développement à Pévolution au XIX* siêcle, Paris, Presses Universitaires de France, 1985, p. 25. (8) Vide: além do ensaio de 1852, o ensaio de 1857, “Progress: its law and cause” reproduzido, nomeadamente, em Essays: scientific, political, and speculative, vol. I, ob. cit., pp. 1-60. O enunciado definitivo da lei da evolução traz a marca do modelo embriológico-
“epigenético, do princípio da conservação da matéria (Lavoisier, 1789) e do princípio físico
da “persistência da força”(Julius Robert Mayer, 1842). Esse enunciado foi apresentado na primeira edição de First principles, em 1862. Vide: Patrick Tort, “Spencer, Herbert 1820-
-1903”. In: Dictionnaire du darwinisme et de U'évolution, vol. 3, ob. cit., pp. 4080-4113.
Darwin em Portugal
Introdução
dade simples, indefinida e incoerente para a heterogeneidade complexa, definida e coerente. Em 1852, Spencer lançava a hipótese da evolução das espécies a partir da mais simples mónada, (a homogeneidade dum ovo comum, única matriz de todos os viventes), tomando como base de reflexão o desenvolvimento embriológico(!). A teoria da evolução, “the Theory of Evolution”(2) defendida por Herbert Spencer, desde 1852, era muito diferente da teoria da descendência com modificações publicada por Darwin em 1859. Como concluiu Georges Canguilhem, no seu especializado estudo, Darwin nunca viu “dans Vhistoire des espêces la simple transposition, à Péchelle des générations et des siécles, d'une épigenêse de style embryologique”(2). Com efeito, como também demonstrou Stephen Jay Gould, na teoria darwiniana, “a alteração orgânica conduzia apenas a uma adaptação crescente entre os organismos e os seus ambientes, e não a um ideal abstracto de progresso, definido por uma complexidade estrutural ou por uma heterogeneidade cada vez maior”(4), como postulava Herbert Spencer. Ora, Darwin tinha a perfeita consciência de que a sua Origem das espécies introduzia uma nova lógica evolucionária da vida. É por isso que, na notícia histórica sobre a ideia da mutabilidade das espécies antes de 1859, que incluiu na sexta edição da Origem das espécies, nenhum dos trinta e quatro autores referidos é considerado por Darwin como sendo precursor da sua teoria da evolução(). Nem Lamarck, nem Herbert Spencer(º). Mas, se a teoria darwiniana dá um novo sentido ao termo evolução, o facto é que os equívocos eram inevitáveis. Talvez a equiparação que Darwin faz entre a selecção natural e a expressão spenceriana “the survival of the fittest”, tenha sido, de algum
modo, responsável pelo compromisso histórico entre o darwinismo e O
48
(!) Para ilustrar a nossa afirmação, transcrevemosa seguinte passagem: “Surely if a single cell may, when subjected to certain influences, become a man in the space of twenty years; there is nothing absurd in the hypothesis that under certain other influences, a cell may in the course of millions of years give origin to the human race”, Herbert Spencer, “The development hypothesis”. In: Essays: scientific, political, and speculative, vol. 1, ob. cit., p. 382. (2) Herbert Spencer, “The development hypothesis”, art. cit., p. 377. (é) Georges Canguilhem e outros, Du développementà V'évolution au XIXº siêcle, ob. cit., p. 34. Vide o testemunho do próprio Darwin, The origin of species, Sixth edition,
ob.cit., especialmente p. 82. (*) Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, ob. cit., pp. 30-31. -XXI.
(º) Vide: Charles Darwin, The origin of species... Sixth edition, ob. cit., pp. XHI-
(9) Vide: Idem, ibidem, respectivamente, p. XIV e p. XIX.
49
evolucionismo spenceriano. Com efeito, a partir da 5º edição da Origem
das espécies (1869), Darwin introduziu a expressão spenceriana “the survival of the fittest"(1), não só no texto, como notítulo do capítulo IV, que é o seguinte: “natural selection; or the survival of the fittest"(2). E, Darwin
justificava O recurso à expressão spenceriana, “a sobrevivência do mais apto”, como sinónimo da selecção natural, dizendo textualmente: | the expression often used by Mr. Herbert Spencer of the Survival of the Fittest
is more accurate, and is sometimes equally convenient”(2). No entanto,foi Herbert Spencer, nos seus Principles of biology (1864-1867), quem tomou a iniciativa de identificar o seu princípio da “sobrevivência dos mais
aptos” com a selecção natural darwiniana: “S 165. This survival of the
fittest, which I have here sought to express in mechanical terms, is that which Mr. Darwin has called natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life”(4). Em termos muito sumários, para o engenheiro-filósofo, a evolução orgânica resultava de dois processos simultâneos(*): a adaptação (ou em termos mecânicos, a equilibração directa do organismo com o meio) e a selecção natural, ou em termos mecânicos, a equilibração indirecta. Esta era definida nestes termos: “a process by which an equilibration between the organism and its environment is effected, not immediately but mediately, through the continuous intercourse between the species as a whole and the environment”(6). A defesa da conjugação e da simultaneidade dos dois processos
equivalia a estabelecer uma paridade funcional entre os factores lamar-
ckianos da mutabilidade dos espécies (influência directa do meio; uso €
não uso daspartes; hereditariedade doscaracteres adquiridos) e a selecção natural(?). Mas, a evolução orgânica spenceriana conserva um sentido pré-darwiniano, de tendência para a optimização perfectibilista, fundada no determinismo fisicalista (matéria, movimento, força). Em suma: no
(1) R. B. Freeman, The works of Charles Darwin. An annotated bibliographical handilist, ob. cit., p. 79. (2) Vide: Charles Darwin, The origin of species... Sixth edition, ob. cit., p. vL (3) Idem, ibidem,p. 49. (4) Herbert Spencer, The principles of biology, London, Williams and Norgate, 1880, vol. 1, pp. 444-445.
(5) Vide: Idem, ibidem, sobretudo p. 464 e ss. (9) Idem, ibidem, p. 462.
(7) Vide: Idem, ibidem, especialmente p. 449; Idem, The principles of biology,
vol. 2, ob. cit., pp. 497-500.
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Darwin em Portugal
Introdução
sistema filosófico spenceriano, a mecanização da selecção natural diminui o seu estatuto de criadora da evolução orgânica. A selecção natural deixa
Logo na primeira lição da sua Natiirliche Schópfungsgeschichte (1868), Hackel defende que a teoria da evolução de Darwin confirma a concepção unitária do universo e autoriza a edificação de uma teoria universal da evolução, isto é, de uma filosofia continuísta do ser, fundada no princípio da unidade da natureza orgânica e inorgânica. É certo, escreve Hackel, que “a teoria da história natural(...), teoria designada pela curta denominação do darwinismo, não passa de um fragmento de outra doutrina mais compreensível(...) a teoria universal da evolução“(!). Mas, dado que o darwinismo abrange toda a evolução orgânica, a evolução paleontológica oufilogenia, a evolução embriológica ou ontogenia, a evolução
de ser, como em Darwin, “a power incessantly ready for action (...) as
immeasurably superior to man's feeble efforts, as the works of Nature are to those of Art(!). Darwin limitou-se a aceitar a identificação, proposta por Herbert Spencer, entre a expressão deste, “the survival of the fittest”, e a darwiniana “natural selection”, o que, embora cause alguma
perplexidade, leva-nos a admitir que se tratou de uma medida que visava alargar a projecção da sua obra para lá da comunidade científica especializada nas diversas áreas da biologia.
O certo é que, desde finais da década de setenta do século XIX, assiste-se a um entrosamento do darwinismo com o spencerianismo, uma
aliança entre dois universos ideativos com estatutos diferentes. Étienne Gilson considera que foi Th. Huxley, em 1878, quem gravou o “certificado de nascimento” do evolucionismo enquanto “mito científico-filosófico”(2), pelo qual a teoria darwiniana recebeu a cobertura filosófica do sistema spenceriano. 7. A TEORIA DE DARWIN E O MONISMO EVOLUCIONISTA DE ERNST HACKEL
Paralelamente, desde 1860(), Ernst Hackel, o grande apóstolo
da teoria darwiniana na Alemanha e em toda a Europa continental(*), contribuiu decisivamente para a difusão da teoria da descendência com modificações sob o nome de teoria da evolução. Além disso, tomou-a como base científica duma concepção filosófica do mundo: o monismo ou o evolucionismo monista. (1) Charles Darwin, The origin of species... Sixth edition, ob. cit., p. 49. (2) Vide: Étienne Gilson, D'Aristote a Darwin et retour. Essai sur quelques constantes de la biophilosophie, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1971, pp. 119-120, O autor reproduz, parcialmente, o artigo “Evolution” (Encyclopaedia Britannica, New York, 1878, vol. II, pp. 744-751) para provar que Th. Huxley, no referido artigo, institucionalizou a relação entre darwinismo e spencerianismo. (3) Vide: Jacques Roger, “Darwin, Hackel et les français”. In: De Darwin au darwinisme: science et idéologie. Congrês International pour le Centenaire de la mort de Darwin. Paris-Chantilly 13-16 Septembre 1982. Édition préparée par Yvette Conry. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1983, p. 149 e ss. (4) Vide: The Darwin-Wallace celebration heid on thursday, Ist July, 1908, ob.cit., pp. 16-17.
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do homem em todas as dimensões (anatómica, psicológica, social, histó-
rica, etc.), compreende-se o seu valor capital para o monismo hackeliano. Por isso, o zoólogo alemão acrescenta: “graças à teoria da descendência,
pode-se estatuir a doutrina da unidade da natureza”(2), ou seja, “o modo
de ver monístico ou unitário por oposição à teoria dualística implicitamente contida em toda a explicação teleológica do mundo”(?). Este intuito filosófico preside à estrutura da sua História da criação que termina com a “Parte Antropogenética”, na qual Haeckel se antecipa à obra darwiniana de 1871, The descent of man and selection in relation to sex, ao defender a origem do homem de uma forma animal inferior e extinta. A conclusão de Hackel estava implícita na Origem das espécies de Darwin, porém o naturalista alemão explicitou-a em moldes que transgrediam a prudência científica darwiniana.
Com efeito, Hackel construiu a série dos ancestrais animais do
homem (invertebrados, vertebrados) até aos “homens dotados da palavra”(4). Defendeu que “o género humano é um ramúsculo do grupo dos catarríneos; desenvolveu-se no velho mundo e proveio de macacos desde há muito extintos neste grupo”(É). A exposição do autor é ilustrada com as suas famosas árvores genealógicas e com os seus minuciosos quadros taxinómicos. A teoria da descendência com modificações aplicada ao homem ganha uma aparente precisão concreta na “árvore genealógica dos macacos abrangendo o homem”(*), no “esboço hipo(1 Emst Haeckel, História da criação dos seres organizados segundo as leis
naturais. Tradução de Eduardo Pimenta, Porto, Lello & Irmão, 1961, p. 1. (2) Idem, ibidem, p. 17. (é) Idem, ibidem, p. 15. Sublinhado do Autor.
(4) Vide: Idem, ibidem, p. 511. (5) Idem, ibidem, p. 495. Sublinhado do Autor. (6) Vide: Idem, ibidem, p. 493.
53
Darwin em Portugal
Introdução
tético da origem monofilética da distribuição das doze espécies humanas na Terra a partir do tronco lemuriano”(!), segundo o qual foi na Lemúria (continente tropical a leste da Índia, posteriormente submergido pelo Índico) que se deu a transformação gradual dos macacoscatarríneos em homens pitecóides durante a era terciária da terra; no “quadro
qual, “a história da evolução individual ou ontogenia é uma repetição
52
taxinómico das doze espécies e das trinta e seis raças humanas”, na
resumida, rápida, uma recapitulação da história evolutiva, paleontológica
ou da filogenia, conforme com as leis da hereditariedade e da adaptação aos meios"(!). Heeckel construiu a história da evolução humana na base da correlação entre as duas evoluções (onto e filo), admitindo que “la phylogénêse est la cause mécanique de Pontogénêse”(2), ou seja, que a
“árvore genealógica das doze espécies humanas”(2), na “árvore genealógica das raças semíticas”, na “árvore genealógica das raças indo-
-europeias”(?), etc.
Fic. 3 — Esqueleto do homem e dos quatro géneros antropóides. (Reproduzido de Ermst Hackel, Anthropogénie ou histoire de Pévolution humaine, 1877).
oa mod
A reconstituição haeckeliana da história da vida, desde as móneras ao
homem, segundo o critério continuista filogenético, funda-se na “lei biogenética fundamental” ou “lei geral da evolução orgânica”(4), segundo a
(1) Idem,ibidem, p. 566.
(2) Vide: Idem, ibidem, pp. 522-523. () Vide: Idem,ibidem, pp. 539-540.
(4) Vide: Idem, ibidem, sobretudo p. 228 e ss.
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E
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No Núbia
Fic. 4 — Segundo lei hackeliana, a ontogenia
é umarecapitulação abreviada e imperfeita da filogenia. (Reproduzido de Ernst Heckel, Anthropogénie ou histoire de Pévolution humaine, 1877).
(1) Idem,ibidem, p. 8. (2) Ernst Hackel, Anthropogénie ou histoire de Pévolution humaine. Leçons familiêres sur les principes de "embryologie et de la phylogénie humaines. Traduit de Valle-
mand sur la deuxiême édition par le Dr. Ch. Letoumeau. Paris, €. Reinwald et C'S,, Eibraires-Éditeurs, 1877, p.5.
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Introdução
Darwin em Portugal
longa evolução da espécie, de acordo com as leis da hereditariedade e da adaptação, determinaa série de formas pelas quais passa O organismo individual desde a célula primordial até ao seu pleno desenvolvimento. A filogénese esclerece a ontogénese do homem e vice-versa e ambas demonstram as “duas grandesleis do desenvolvimento humano, chamadas lei de divergência e lei do progresso”(!) que, acrescenta o autor, “dependem unicamente de causas mecânicas; são o resultado necessário da selecção natural na guerra para a existência”(2) e traduzem-se exclusivamente nos moldes do determinismo físico-químico(?). A dupla lei da evolução (divergência e progresso) que abrange a evolução do homem a todos os níveis, desde o anátomo-fisiológico ao social, é idêntica à lei da evolução de Herbert Spencer e, de facto, inspira-se também na embriologia de Von Baer(*), razão pela qual o evolucionismo hackeliano é visto como uma filosofia do desenvolvimento pré-determinado(”) que não salvaguarda o fundamental da teoria darwiniana, a saber, a imprevisibilidade do aparecimento de novas formas
vivas. Tal como no sistema de Herbert Spencer, também na filosofia de Ernst Heckel, a teoria darwiniana da descendência com modificações é utilizada como “instrumento da unificação monística”(6) de todo o real e é incorporada numa onto-gnoseologia evolucionista, fundada, em última instância, na lei da conservação e da evolução da substância. Na sua obra,
Der Monismus (1892), Hackel deixou bem vincado que a noção de substância traduzia a consistência físico-química de todoo real(?)e legitimava (3 Ernst Hackel, História da criação... ob. cit., p. 206. (2) Idem, ibidem,p. 208. (3) Idem, ibidem, sobretudo pp. 129-205. De acordo com o seu monismo mecanicista, também “a história dos povos, que se chama história universal, deve explicar-se pela selecção natural; deve ser em definitivo, um fenómeno físico-químico, dependendo da acção combinada da adaptação e da hereditariedade na luta pela existência” (Idem, ibidem,p. 125). (4) Vide: Idem, ibidem, p. 215 e ss.; Jacques Roger, “Darwin, Hackel et les
55
a redução das leis da matéria viva ao mecanicismofísico-químico (força e matéria). Por isso, a sua filosofia diz-se “monistique ou mécanique”(!).
Ela entende que “partout les phénomênes de la vie humaine sont, comme ceux du reste de la nature, régis par des lois fixes et immuables, que partoutil y a entre les phénomeênesun lien étiologique,et que parsuite tout
Funivers (...) forme un tout unitaire, un monon. Cette philosophie prétend encore que tous les phénomênes sont dus à des cau-ses mécaniques
(causae eficientes) et nullement à des causes visant un but (causae
finales”(2), opondo-se à metafísica dualista e teleológica que Hackel combatia ardentemente. Tendo em conta a forte projecção do cientismo hackeliano na cultura europeia, em finais do século XIX,é lícito afirmar que o zoólogo alemão foi tão responsável como Herbert Spencer pela vinculação da teoria darwiniana ao evolucionismo monista, ou seja, pela subordinação da teoria científica da evolução dos seres vivos a uma concepção filosófica do universo de matriz determinista que sacrificava a inovadora ideia darwiniana da contingência na história da vida(?). Darwin não se pronunciou sobre as repercussões filosóficas da sua revolução científica, mas também não censurou os evolucionismos monistas de Spencer e de Hackel. Ao apresentar a sua obra, The descent of man (1871), Darwin distinguiu e elogiou a obra de Hackel, dentre os diversos trabalhos sobre a ascendência animal do homem, publicados depois da sua Origem das espécies de 1859, designadamente os de Wallace, Th. Huxley, Lyell, Vogt, Lubbock, Biichner, Rolle, etc.(4). Com efeito,as palavras que Darwin dedica à obra de Hackel e, particularmente, à sua Natiirliche Schópfungsgeschichte (1868), sugerem uma perfeita comunhão ideativa entre o naturalista inglês e o naturalista-filósofo
alemão. Referindo-se ao trabalho hckeliano, de 1868, Darwin afirma: “Tf
this work had appeared before my essay had been written, I should probably never have completed it. Almost all the conclusions at which I have
français”, art. cit., sobretudo, pp. 156-158.
(5) Vide: Georges Canguilhem, Du développement à Pévolution au XIX€ siêcle, ob. cit., pp. 40-44. No dizer do autor: “Dans "embryologie préformationniste, la miniature individuelle contenait à V avance son développementfutur. Or iln'y a pas de futur pour un organisme dontla formation est préformée. Dans "embryologie heckelienne, la miniature individuelle reflétait aprês coup, le développementpassé de sa lignée. Mais il n'y a pas de futur pour un organisme récapitulatif(Idem, ibidem, p. 44). (6) Patrick Tort, La pensée hiérarchique et Pévolution, Paris, Aubier Montaigne, 1983, p. 267 e ss.. Vide, também, Emst Heckel, Anthropogénie... ob. cit., p. 607. (7) Neste sentido, escreve: “a lei fundamental física da conservação da força [R. Meyer; Helmholtz] e a lei fundamental química da conservação da matéria [Lavoisier],
podemo-las reunir num conceito filosófico, a lei da conservação da substância”, Ernst Hackel, O monismo. Laço entre a religião e a ciência (Profissão de fé de um naturalista).
3º edição. Tradução de Fonseca Cardoso. Porto, Livraria Lello & Irmão, 1947, p. 23. (1) Ernst Heckel, Anthropogénie... ob. cit., p. 623.
(2) Idem, ibidem, p. 623. Sublinhado do Autor. (3) Vide: Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon), ob. cit., sobretudo pp. 87-113; pp. 389-415. (9) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex.,
ob. cit., pp. 2-3.
Introdução
arrived 1 find confirmed by this naturalist, whose knowledge on many points is much fuller than mine. Wherever I have added any fact or view from Prof. Háckel's writings, I give his authority in the text; other statements 1 leave as they originally stood in my manuscript, occasionally giving in the foot-notes references to his works, as a confirmation of the more doubtful or interesting points”(!). Darwin dá a entender que a sua
Arbre génealogique de Vhomme Hommes
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árvores genealógicas de Heckel(?), ela mostra-se cautelosa quanto à lei biogenética fundamental(*) e a todas as restantes leis da autoria do naturalista alemão, como sejam,a lei da evolução (divergência e progresso), as leis da hereditariedade e da adaptação, etc. Quer isto dizer que, mesmo
Petromyzontes
The descent of man, não coincide exactamente com a Natiirliche Schópfungsgeschichte de Haeckel.O que separa Darwin de Hackel não é apenas o intento filosófico do naturalista alemão, mas é também distân-
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no campo das induções e das deduções científicas, a obra de Darwin,
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perfilhado por Hackel, nem particularmente sobre o valor filosófico e político que Heckel atribuia à sua naturalização mecanicista do homem e da sua história. Por outro lado, se a obra darwiniana de 1871 remete o leitor para as
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determinismo monista-evolucionista do universo, da terra e da vida,
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cia entre a teoria original de Darwin e a versão hxckeliana da mesma,
ainda que esta não questionasse a selecção natural, enquanto mecanismo capital da evolução orgânica.
(1) Idem, ibidem, p. 3. (2) No texto darwiniano lê-se: “Prof. Haeckel was the only author who(...)
had discussed the subject of sexual selection, and had seen its full importance, since the
publication of the “Origin”; and this he did in a very able manner in his various works”, Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit., p.3, nota 2. (é) Vide: Idem, ibidem, p. 158. (*) Vide: Jean Gayon, “Le concept de récapitulation à Vépreuve de la théorie darwinienne de Pévolution”. In: Histoire du concept de récapitulation. Ontogenêse et phylogenese en biologie et sciences humaines, Coordonné par Paul Mengal, Paris, Masson,
1993, pp. 79-92.
M +mnmahlia.
.
obra, The descent of man, and selection in relation to sex, nada traz de ino-
vadorrelativamente à hackeliana Natiirliche Schópfungsgeschichte, nem mesmo quanto à temática da selecção sexual que, após 1859, apenas fora compreendida e abordada pelo zoólogo alemão, segundo o parecer autorizado de Darwin(2). Mas, sintomaticamente, Darwin nada diz sobre o
omeen NRO RRDR RA aa a
Darwin em Portugal
Metazoa evertebrata
56
IMP. BECQUET PARIS
Fig. 5 — Árvore genealógica do homem, segundo Heeckel (Reproduzido de Ernst Haeckel Anthropogéênie ou histoire de Vévolution humaine, 1877).
58
Introdução
Darwin em Portugal
8. A HISTÓRIA E A SOCIEDADE NA TEORIA BIOLÓGICA DE DARWIN O núcleo doutrinal que dá unidade à obra de Darwin e sustenta a sua leitura da história da espécie humana, explanada em 1871, na obra The descent of man(!), é a teoria da evolução por selecção natural, tendo esta o sentido de “preservação das raças favorecidas” ou de “sobrevivência dos mais aptos”, na luta pela vida. Este enunciado, aparentemente pacífico, está longe de reunir o consenso dos darwinólogos. A especialista Yvette Conry considera que a teoria antropo-histórica e social de Darwin, exposta na Origem do homem, rompe com a teoria biológica de 1859(2). Em linhas muito sumárias, a autora advoga que, na Origem das espécies, Darwin operou uma revolução científica, mas em 1871, o conceito chave de selecção natural passou a fun-
cionar enquanto lei do progresso, o que transfigurou a evolução darwiniana. Além disso, esta revestiu-se da malha ideológica típica da burguesia triunfante. Naleitura de Yvette Conry, a história do homem não é apresentada em moldes rigorosamente naturalistas já que a obra de 1871 veicula um conjunto de normas ideológicas correntes nas obras de Spencer, Bagehot, Galton e outros, como sejam, o critério tecnológico para avaliar o grau de civilização, a legitimação da propriedade, os mitos colonizadores, a hierarquização das raças humanas,o universalismo cultural de matriz europeia, a superioridade da civilização europeia, etc. Para Yvette Conry, um dos melhores indicadores do carácter não científico da obra de 1871 é a falta de rigor na distinção dos conceitos de nação, raça e população. Não há dúvida que a obra de 1871 traz marcas muito acentuadas do enraizamento socio-cultural do seu autor. A nosso ver, não seria de esperar outra coisa, pois a objectivação biológica do homem, enquanto espécie natural e histórica, não é axiologicamente neutra, e o mesmose diga das demais teorias da história e da sociedade(?). Mas, Yvette Conry faz uma distinção radical entre ciência e ideologia e entende que, a partir da teoria científica de 1859, Darwin podia ter construído, textualmente, “une bio-
(1) Vide: Idem, ibidem, especialmente pp. 65-206; 606-619. (?) Vide: Yvette Conry, “Le statut de La descendance de hommeet la sélection sexuelle”. In: De Darwin au darwinisme: science et idéologie, ob. cit. pp. 167-186. () Sobre esta temática, vide Paul Ricoeur, “Science et idéologie”, Revue Philosophigue de Louvain, Louvain, 72, 1974, pp. 328-356; Claude Blanckaert, “La science de I"homme entre humanité et inhumanité”. In: Des sciences contre "homme,
Paris, Éditions Autrement, 1993, vol. 1, pp. 14-45.
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ce”(), isto thropologie de la différence, du pluralisme et de lacontingen nto, das. é, um darwinismo bio-antropo-histórico-social científico. Parata aos princípios+ e tava que o naturalista inglês se tivesse conservado fiel man é uma 0 ra 185902). Como, segundo a autora, The descent of mente, concluiu “ideológica, e não o prolongamento da obra de 1859, logica uiu foi uma constr n Darwi que O que O darwinismo social não existe(?).
aproxima do “teoria ideológica da sociedade e da história que a autora
eles indivievolucionismo social de Herbert Spencer e similares, sejam reflecte 1871 de dualistas ou holistas. É inegável que a obra darwiniana
lo, a superioridade estereótipos etnocentristas(*) e classistas (por exemp
tal como bio-moral da burguesia), mas o que para nós é decisivo é que,
criador da na obra de 1859, a selecção natural continua a ser o poder o . evolução, poder que, em 1871, é reforçado pela selecção sexual k Patric mólogo episte iadorhistor o Conry, Diferentemente de Yvette evoluismosdarwin dos cou demar se Tort advoga que Darwin sempre
nismo social cionismos, tanto do spenceriano, referente-padrão do darwi
rindividualista, como dos holistas ou racialistas e dos eugenistas. Nainte
pretação de Patrick Tort, a teoria darwiniana é científica, tanto em 1859
que, como em 1871, e não tem qualquer relação com uma série de ismos O smo, berali desde finais do século XIX, se reclamam dela: o neo-li sua a racismo, o eugenismo, o seleccionismo social, etc.. Para sustentar (1) Yvette Conry, “Le statut de La descendance de Vhomme et la sélection
”
it.,
p. 178.
lité o Assim no dizer de Yvette Conry “la souveraineté accordée à Vindividua préserver de biologique, c'est-a-dire le rôle dévolu à la variation quasi illimitée, eut dá para la toute tentation de typologie raciale ou nationale; le concept d adaptation défini me schématis au progrês le nt radicaleme soustraire pu eut ielle seulé viabilité circonstant local et oriênté d'un développement; le relativisme écologique traduit dans le réseau
mouvant de niches provisoires et de territoires diversifiés eut dá abolir le globalisme bio-
) no logico:culturel”, Idem, ibidem, p. 178. (3) Vide: Yvette Conry, “Le darwinisme social existe-t-l?”, Raison Présente,
Paris, 66, 1983, pp. 17-40.
o
(4) É útil ter presente que a consciência dos preconceitos etnocentristas nas clén-
cias do homem se afirmou, apenas, depois da Segunda Grande Guerra. Essaafirmação, actualmente ainda imperfeita, tem vindo a crescer desde 1950, sendo muito vasta e pluridisciplinar a bibliografia que a ilustra, desde a publicação de Le. Dunn, Race et biológie, Paris, Unesco, 1951; Amold M. Rose, L origine des préjugés, Paris, Unesco, by 1951; passando por Leo Kuper (Ed.), Race, science and society. Edited and introduced obra a até 1975, Ltd, Unwin & Allen rge Press-Geo Leo Kuper. Paris-London, The Unesco
de Piérre-André Taguieff, La force du préjugé. Essai sur le racisme et ses doubles, Paris,
Éditions La Découverte, 1988, entre outras.
Darwin em Portugal
Introdução
leitura, Patrick Tort duplicou a revolução darwiniana. Assim, na sequência duma primeira revolução científica em 1859, que inaugurou uma nova
através da categoria de torção, procura não atingir a selecção natural, mas ela muda de figura, como se pode confirmar textualmente: “la sélection
60
lógica da historicidade de todos os seres vivos, Darwin operou uma
segunda revolução científica(!) em 1871, na obra, The descent of man,
61
naturelle s'est trouvée, dans le cours de sa propre évolution, soumise elleméme à sa propre loi — sa forme nouvellement sélectionée, qui favorise
qui s'oppose à la sélection naturelle”(4). Este paradoxo aparente não põe
la. protection des “faibles”, Vemportant parce qgu'avantageuse, sur sa forme ancienne, qui prévilégiait leur élimination”(!). Esta leitura de Patrick Tort é perfeitamente compreensível, como o é também a interpretação de Yvette Conry. Nos dois casos, tanto o trabalho hermenêutico desenvolvido, como o conhecimento de Darwin por dentro, são excelentes. Em nenhum deles há a menor falta de coerência e ambos são fortemente persuasivos. No entanto, embora sejamos muito sensíveis às interpretações sumariamente expostas, julgamos que os textos darwinianos de 1859 e de 1871 nos autorizam uma interpretação diferente. A nosso ver, a selecção natural é a mesma em 1859 e em 1871. A teoria da evolução biológica de todos os seres vivos (1859) prolongou-se na teoria bio-antropo-socio-historiológica de 1871, que Darwin anunciou desde 1859, com estas palavras bem expressivas: “light will be thrown on the origin of man and his history”(2). E esta ideia é reforçada nas edições seguintes: “Much light will be thrown on theorigin of man and his history”(2).
temólogo francês, a revolução antropo-historiológica de Darwin não insti-
descende de uma formainferior no planofísico e mental(2) e que a sua genealogia não está pontuada de rupturas com mudanças súbitas, mas process
and selection in relation to sex. Em termos muito sintéticos, Tort defende que, na obra de 1871, Darwin fundou uma antropologia, uma moral e
uma socio-política das solidariedades: “une socio-politique des solidari-
tés"(2), absolutamente distinta do evolucionismoliberal spenceriano e de
todas as doutrinas sociais e políticas assentes na competição em desigual-
dade de condições ou no seleccionismo coercitivo. A defesa da segunda
revolução darwiniana é sustentada pelo chamado “efeito reversivo da evolução”(). Com esta expressão, Patrick Tort pretende dizer que, no
curso da história humana, segundo Darwin, a selecção natural vai dando lugar à educação e o conflito é substituído pela cooperação e pela pro-
tecção dos “fracos”, já que estas práticas se revelam vantajosas para a evolução civilizacional da espécie humana. Assim, na história humana, a
selecção natural selecciona os valores e os comportamentos sociais anti-
seleccionistas. Trata-se de um paradoxo, “le paradoxe éthico-civilisa-
tionel” segundo o qual, “la sélection naturelle sélectionne la civilisation,
em causa a primeira revolução darwiniana, nem fragiliza a segunda revolução, operada pelo naturalista inglês. É que, na perspectiva do epistuiu uma ruptura com a selecção natural, nem com a unidade biológica entre o homem e os animais inferiores. Ela introduziu na continui-
dade evolutiva, “non une rupture, mais une torsion, un renversement qui
s“inscrit contre la continuité simple des sociobiologies, et qui permet enfin
Com efeito, em 1871, Darwin procurou demonstrar que o homem
ou-se com passos lentos, curtos e sucessivos. “Natura non facit saltum”, segundo o cânon defendido em 1859() pois, “as natural selection acts
solely by accumulating slight, successive, favourable variations, it can produce no great or sudden modification; it can act only by very short and slow
de penser en termes généalogiquesle rapport si délicat de la morale et de
(!) Vide: Patrick Tort, “La seconde révolution darwinienne”, art. cit., pp. 1-7.
(2) Idem, ibidem, p. 6. Sublinhado do Autor.
(é) Vide: Patrick Tort, “Effet réversif de Vévolution”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 1, ob. cit., pp. 1334-1335; Idem, “L'effet réversif de Pévolu-
tion. Fondements de Panthropologie darwinienne”. In: Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, pp. 13-46. (4) Patrick Tort, “L'effet réversif de I'évolution. Fondements de Fanthropologie
darwinienne”, art. cit., p. 26. Vide também artigo “Effet réversif de Vévolution”, art. cit.,
p. 1334. Sublinhado do Autor. () Patrick Tort, “La seconde révolution darwinienne”, art. cit., p. 5. Subli-
nhado do Autor. Sobre a categoria epistemológica de torção, introduzida por Patrick Tort,
vide: “L”effet réversif de "évolution. Fondements de Vanthropologie darwinienne”, art. eit., sobretudo pp. 14-16. (i) Patrick Tor, “L'effet réversif de Vévolution. art. cit., p. 1335. Sublinhado do Autor. (2) Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon), obucit., p. 414. Sublinhado nosso. (*) Charles Darwin, The origin of species... Sixth edition, ob. cit., p. 428. Sublinhado nosso. Sobre os elementos míticos dessa “luz”, vide: Wiktor Stoczkowski, “La fable de | Homme”, Sciences et avenir, Paris, 111, Jul.-Acu 1997, pp. 42-47. (*) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex,
ob.cit., pp. 5-165; p. 606 e ss.
(é) Vide: Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon),
ob..cit., p. 399.
ovas
Pévolution sans sortir du matérialisme scientifique”(*). Patrick Tort,
Darwin em Portugal
Introdução
steps"(b. A originalidade darwiniana reside, sobretudo, no mecanismo
faculdades mentais, afectivas e morais do homem: “Psychology will be
62
evolucionário defendido, pois, a hipótese segundo a qual o homem é o descendente modificado de uma longa série de ancestrais, ou melhor, o co-des-
cendente de alguma forma orgânica antiga, inferiore extinta, embora estivesse implícita na Origem das espécies, foi assumida publicamente por vários naturalistas(2) entre 1859 e 1871. Noentanto, a obra darwiniana The descent of man foi decisiva quanto à fundamentação desta hipótese científica. Ao terminar a obra de 1871, Darwin sublinhava que o homem ainda conserva marcas da sua ínfima origem: “Man still bears in his bodily frame the indelible stamp of his lowly origin”(). Por exemplo, alguns órgãos inúteis, como a cauda rudimentar(4), mas também no plano psicológico abundavam provas da ascendência animal do homem. Já na Origem das espécies, Darwin tinha anunciado a plena naturalização das
(!) Idem, ibidem, p. 399.
(2) Sobretudo Carl Vogt, Th. Huxley, Ch. Lyell, Ludwig Biichner e Ernst Heckel,
respectivamente desde 1862-63, 1863, 1863, 1866 e 1868. Consultámos as seguintes
edições: Carl Vogt, Leçons sur Phomme. Sa place dans la création et dans [histoire de la terre. Traduction française de J. - J. Moulinié. Deuxiême édition revue par M. Edmond Barbier. Paris, C. Reinwald et Cis,, Libraires-Éditeurs, 1878; Th. Huxley, La place de "homme dans la nature. Avec une préface de I'auteur pour Védition française, Paris, Librairie J. - B. Bailliêre et Fils, 1891; Ch. Lyell, L'ancienneté de Phomme prouvée par la géologie et remarques sur les théories relatives a Vorigine des espêces par variation. Traduit avec le consentement et le concours de Vauteur par Mr. M. Chaper. Deuxiême édition. Paris, J. - B. Bailliêre et Fils, 1870; Ludwig Biichner, Conferences sur la théorie darwinienne de la transmutation des espêces et de la apparition du monde organique. Application de cette théorie à "homme. Ses rapports avec la doctrine du progrês et avec la philosophie materialiste du passé et du présent. Traduit de Vallemand
d'aprês la second ed. par A. Jacquot. Leipzig, Theodore Thomas, Libraire-éditeur, 1869;
Ernst Hackel, História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais. Tradução de Eduardo Pimenta, Porto, Lello & Irmão, 1961. (3) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit.;
p. 619. (4) Antecipando-se ao naturalista inglês, Hackel expõe em 1868, com entusiasmo
monista, a prova dos órgãos rudimentares. Quanto à “cauda”, diz o seguinte: “O rudimento de cauda [é] representado no homem pelas terceira, quarta e quinta vértebras caudais, rudimento muito visível durante os dois primeiros meses da vida intra-uterina. Atrofia-se mais tarde a cauda, e completamente. Ora essa cauda humanaatrofiadaatesta, por maneira incontestável, que o homem descende de ancestrais com cauda. Na mulher essa cauda embrionária tem uma vértebra a mais. Notemos que no homem ainda há
músculos destinados outrora a mover essa cauda”, in: História da criação dos seres orga-
nizados segundo as leis naturais, ob. cit., p. 212. Vide também Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit., sobretudo p. 609,
63
based on a new foundation, that of the necessary acquirement of each mental power and capacity by gradation”( 1). Uma parte significativa da obra de 1871 trata precisamente da comparação das faculdades mentais e “morais do homem com as dos animais inferiores(2) e Darwin conclui que a sua natureza é a mesma, embora no homem elas tenham alcançado um grau muito elevado, o que era explicado pelo mecanismo da selecção natural das variações úteis, coadjuvado pela acção da selecção sexual e pelos efeitos hereditários do uso do cérebro. As células nervosas do cérebro de todos os vertebrados derivaram das células nervosas do antepassado comum desse reino(?) e, porisso, não admira que, mesmoo sentimento do
belo e os padrões de beleza desses animais “generally coincides with
"our own standard”(4). Na obra de 1872, A expressão das emoções,
que completa a Origem do homem, Darwin defendeu a universalidade da linguagem corporal das diversas emoções, a sua aquisição gradual pela
longa série dos ancestrais do homem e, portanto, o seu carácter inato e
instintivo().
Em suma: além de afirmar a ascendência comum do homem e dos restantes vertebrados e o estreito parentesco físico e psicológico entre os mamíferos superiores e o ser humano, Darwin conservava-se fiel ao mecanismo evolucionário defendido em 1859. De facto, julgamos ser “exacta esta conclusão de John Greene: “sous tous ses aspects (physiques, "*mentaux, moraux, esthétiques, religieux), "humanité devait être considérée commele résultat de processus similaires — variation aléatoire, lutte
pour existence, sélection naturelle secondée par la sélection sexuelle et les effets hérités de Nusage des facultés psychiques — à ceux qui avaient
(!) Charles Darwin, On the origin of species... (A reprint of the first editon),
ob.cit., pp. 413-414.
(2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit., sobretudo pp. 65-145; James Rachels, Createdfrom animals: The moral implications of Darwinism, Oxford, Oxford University Press, 1991. () “The early progenitor of all the Vertebrata must have been an aquatic animal, provided with branchiae with the two sexes united in the same individual (...). This animal seems to have been more like the larvae of the existing marine Ascidians”, Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit., p. 609. (4) Idem, ibidem, p. 617. Vide também, Idem, ibidem, pp. 92-93.
(9) Vide: Charles Darwin, The expression of the emotions in man and animals, ob. Cit. especialmente pp. 347-366; Lewis Petrinovich, “Darwin and the representative expression of reality”. In: Paul Ekman, Darwin andfacial expression. New York e outras, Academic Press, 1973, pp. 223-256.
produit les autres êtres vivants”(!). Foi esta a luz que iluminou leitura darwiniana da origem do homem e da sua história. Quer isto dizer que O motor da história da humanidade é exactamente aquele que possibilitou é determinou toda a história natural, ou seja, o mecanismo da evolução
orgânica, mental e social é um só e o mesmo: a selecção natural dos mais aptos (raças ou indivíduos) na luta pela existência. A versão darwiniana do darwinismohistórico e social foi sintetizada pelo naturalista inglês nos parágrafos finais da sua Origem do homem, donde extraímos esta passagem fundamental: “Man,like every other animal, has no doubt advanced to his present high condition through a strúggle for existence consequent on his rapid multiplication; and if he isto . advance still higher, it is to be feared that he must remain subject to a severe struggle. Otherwise he would sink into indolence, and the more gifted men would not be more successful in the battle of life than the less — gifted(...) There should be open competition for all men”(2). O que elevou o homem à condição de ser social civilizado foi a luta pela existência, a qual não deve ser anulada, pois, sem competição, a selecção natural não pode actuar no sentido da preservação dos mais aptos, “the fittest”. Isto . significa, no plano da engenharia social, que os estados devem evitar todas as medidas que impeçam o funcionamento do mecanismo natural da evolução. No entanto, o poder das leis feitas pelos homens não é absó-
luto. Para Darwin, nenhuma medida proteccionista dos fracos, “the weak”, foi, é ou será suficientemente eficaz e duradoura para substituir as leis da natureza. Em 1872, numa carta dirigida a Heinrich Fick, professor de
Direito na Universidade de Zurique, o naturalista inglês expressava claramente o seu optimismo seleccionista: “I fear that Cooperative Societies,
65
Introdução
Darwin em Portugal
64
iveladoras de todos os indivíduos, “the good and bad, the strong and
weak”()).
|
A política económicae social que melhor se harmoniza com as leis da
atureza, não nos parece que seja, como pretende Patrick Tort, “une socio-
s “politique des solidarités”(2). Em matéria de engenharia social, julgamo em Tendo ano(?). spenceri smo liberali do o ue Darwin está muito próxim
era “vista “the advancement of the welfare of mankind”(4), o fundamental
“garantir o sucesso dos melhores (“the most able”; “the fittest”), o que acon-
“teceria por si mesmo, desde que o homem imprudente--inferior ( reckless“inferior”) não beneficiasse de uma solidariedade pública e privada(”) superio“estimuladora da sua multiplicação e, portanto, agravante da sua
número “idade numérica. Em todo o caso, Darwin não teme que O maior
“desqualificado (a quantidade) ponha em causa a preservação histórica das
elites (a qualidade). Para que estas fossem verdadeiras, O acesso à cultura o superior, científica, artística, religiosa, moral, etc. não devia ser apenas
“privilégio de alguns pela sua condição económica e tradição familiar, mas
“uma conquista dos mais dotados intelectualmente. Não quer isto dizer que
Darwin secundasse o princípio da igualdade de condições e de oportu“nidades para todosos indivíduos, porque essa igualdade era insustentável à
“luz do seu núcleo doutrinal: variação ou desigualdade inter-individual, luta
e selecção. Em regra, aqueles que são portadores das variações de ca-
racteres mais vantajosas acabam portriunfar porque a selecção natural é o último juíz, um juíz infalível que premeia “the fittest”.
Em última análise, o que alimenta o optimismo histórico e social de
Darwin é a sua fé na selecção natural(º). Não foi pela providencial graça
which many look at as the main hope for the future, likewise exclude com-
petition. This seems to me a great evil for the future progress of mankind. — Nevertheless under any system, temperate and frugal workmen will have an advantage and leave more offspring than the drunken and reckless”(?). Nesta carta, Darwin reafirma a sua fé na selecção natural é
pronuncia-se contra as organizações económicas e as condutas sociais
(1) Idem, ibidem.
(2) Vide: Patrick Tort, “La seconde révolution darwinienne”, art. cit. p. 6; Ana Leonor Pereira, “O darwinismo em dicionário”, Revista de História das Ideias, Coimbra, 18, 1996; sobretudo p. 538 e ss. () Vide também John W. Bennett, “[Recensão crítica de] Richard Hofstadter, Social darwinism in american though, 1860-1915. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1944. 191 p.”, American Anthropologist, Menasha, nov. sér., 47, 1945,
pp. 447-451; Michael Lôwy, “L'affinité élective entre social-darwinisme et libéralisme.
(1) John C. Greene, “La révolution darwinienne dans la science et la vision du
[exemple des Etats-Unis à la fin du XIXsicle”. In: Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992,pp. 161-167.
(2) Charles Darwin, The descent of man and selection in relation to sex, ob. cit,
p 618.
monde”, art. cit., p. 89.
p. 618.
() Richard Weikart, “A recently discovered Darwin letter on social darwinism”, Isis, Chicago, 86, 1995, p. 61.
(4) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit.,
(º) Idem, ibidem.
(6) Vide também Paul Crook, Darwinism, war and history, ob. cit., sobretudo
pp. 20-28.
66
Darwin em Portugal
de Deus, nem pelo ilusório livre-arbítrio do homem(!) que algumas raças humanas alcançaram elevados níveis de civilização. Ao desenvolver o tópico “Natural selection as affecting Civilised Nations”(2), Darwin defendeu que as selecções artificiais praticadas ao longo do processo histórico (como, por exemplo, a eliminação dos melhores na guerra) não se sobrepuseram ao poder da selecção natural. Compreende-se, portanto, que no plano da engenharia social, Darwin não tenha sustentado algum fundamentalismo eugénico, o que de modo algum significa que o naturalista inglês reprovasse a eugenia positiva(?), pois acreditava nas suas vantagens civilizacionais. Em resumo: a leitura darwiniana da história e da sociedade faz parte integrante da sua teoria biológica. Se esta conheceu tantas variantes quantos os seus autores, aquela também não coincide exactamente com os
múltiplos darwinismoshistóricose sociais(*), cultivados a partir da década de sessenta(”) do século XIX. Darwin é o nosso referente e é em função
dos seus postulados (desigualdade-variação-hereditariedade; luta interracial e inter-individual, selecção e evolução) que analisaremos o darwinismo histórico e social na cultura portuguesa, entre finais da década de sessenta do século XIX e inícios do século XX. 9. DARWIN EM PORTUGAL: BOTÂNICA, ZOOLOGIA E ANTROPOLOGIA No domínio das ciências naturais, a teoria darwiniana conheceu, entre nós, dificuldades de implantação, em larga medida porque a botãnica e a zoologia portuguesas encontravam-se na fase de inventariação, descrição, identificação e classificação das espécies, segundo os moldes 1) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit., p. 619. (2) Vide: Idem, ibidem, sobretudo, pp. 133-143. (3) Vide: Idem, ibidem, especialmente p. 134; pp. 617-619. (4) Vide: Donald MacRae, “Darwinism and the social sciences”. In: S. A. Barnett, A century of Darwin. London e outras, Heinemann, 1958, pp. 296-312; Patrick Tort e outros, Darwinisme et société, Paris, Presses Universitaires de France, 1992.
(5) Recorde-se que, entre a Origem das espécies(1859) e a Origem do homem
(1871), vários autores, além de Herbert Spencer e de Ernst Hasckel, estenderam a teoria
biológica de Darwin, ou melhor, as suas interpretações dela, à história e à sociedade. Por exemplo, em França, Clémence Royer publicou Origine de "hommeet des sociétés, Paris, Guillaumin et Cie.Victor Masson et Fils, 1870.
Introdução
67
estáticos de Lineu e de Cuvier e, portanto, à margem dos problemas genealógicos (origens, afinidades, filiação, etc.) do código evolucionista(!).
Germano Sacarrão, no seu autorizado estudo, concluiu que o darwinismo
enquanto modelo unificador e orientador da investigação científica botánica e zoológica não penetrou na Universidade portuguesa. Neste sentido, afirma que “em Portugal nunca se deu importância à realidade fundamental da evolução biológica, nunca se tomou a sério o facto de que nada em biologia faz sentido a não ser à luz da história evolutiva, de uma problemática de mudança e de adaptação”(2). Se, entre nós, não existiu uma
tradição darwínica nas ciências naturais, até às décadas mais recentes do
século XX, como afirma Germano Sacarrão, é inegável que nem todos os cientistas foram alheios à revolução darwiniana. É justo reconhecer que a defesa consistente da teoria biológica de Darwin foi inaugurada por Júlio Augusto Henriques em 1865, na sua dissertação para o acto de conclusões magnas, apresentada à Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra(?). Em 1866, na suadissertação de concurso para a mesma Faculdade(?), Júlio Augusto Henriques, antecipando-se em cinco anos ao naturalista inglês, aplica a teoria da evolução (1) Vide: Ana Leonor Pereira; João Rui Pita, “Ciências”. In: História de Portugal. Direcção de José Mattoso. vol. 5 - O liberalismo (1807-1890). Coordenação de Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 656-658. Sobre o estado da história natural, entre nós, por volta de 1880 e de 1890, vide, respectivamente: A. J. Ferreira da Silva, “Exposição de historia natural, Discurso d'abertura do Presidente da Secção de Sciencias Physiologico-Naturaes, pronunciado no dia 16 de Outubro”, Revista da Sociedade de Instrucção do Porto, Porto, 1 (11) 1 Nov. 1881, pp. 343-357; Júlio Augusto Henriques, “Universidade de Coimbra. Faculdade de Philosophia. 1879-
-18922, O Instituto, Coimbra, 41 (1) Jul. 1893, pp. 29-49.
(2) Germano da Fonseca Sacarrão, “O darwinismo em Portugal”, Prelo, Lisboa, (1, Abr.-Jun. 1985, p. 10. Vide, também, Idem, “Pedagogia da evolução e museus de história natural. O caso português”, Prelo, Lisboa, (16), Jul.-Set. 1987, sobretudo p. 19; Idem; Biologia e sociedade 1. Crítica da razão dogmática, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1989, pp. 282-286. () Vide: Júlio Augusto Henriques, As espécies são mudáveis?, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1865; Abílio Fernandes, “História da Botânica em Portugal até finais do século XIX”. In: História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. 1 Colóquio — até ao século: XX, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1986, vol. 2, sobretudo pp. 234-235. (4) Vide: Júlio Augusto Henriques, Antiguidade do homem, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1866; Ana Leonor Pereira, “O espírito científico contemporâneo na Universidade de Coimbra. Júlio Augusto Henriques”. In: Universidade(s) — História. Memória. Perspectivas. Actas do Congresso “História da Universidade” (No 7º Centenário da sua fundação), Coimbra, Comissão Organizadora do Congresso “História da Universidade”, 1991, vol. 1, pp. 347-365.
68
Darwin em Portugal
por selecção natural à espécie humana. Nestes dois trabalhos excepcionais, o futuro director do Jardim Botânico analisa todas as provas da teoria darwiniana: as provas geológicas, paleontológicas e biogeográficas, as provas da anatomia comparada, da morfologia e da embriologia disponíveis na época; as ilações tiradas da selecção artificial e do hibridismo, etc. Também revela que inteligiu fielmente a ideia darwiniana de evolução, não a confundindo com a ideia de progresso necessário e teleológico, nem vendo no seu mecanismo — a selecção natural — algum demiurgo com intentos pré-determinados. Na sua Antiguidade do homem (1866), escreve: “Nenhum acontecimento notável, nenhuma circunstância extraordinária acompanhou a aparição do homem. Já a maior parte da flora actual existia, bem como muitos dos animais, que hoje se conhecem. Não foi necessária nenhuma dessas grandes revoluções que a geologia imagina. No decorrer do tempo, num momento da vida da terra, apareceu ele como milhares de seres que o tinham precedido, para talvez desaparecer, como desapareceram muitos animais seus contemporâneos nos primeiros tempos, e como muitos que hoje vão desaparecendo”(!). O homem é um servivo entre os demais seres vivos, animais ou plantas, e, como eles, não tem algum “des-
tino”, mas uma existência precária ameaçada por múltiplas contingências. Pioneiro foi também Jaime Batalha Reis que, em 1866(2), sustentou a doutrina darwiniana da descendência com modificações, embora de
(1) Júlio Augusto Henriques, Antiguidade do homem,ob. cit., p. 27. (2) Vide: Jaime Batalha Reis, A vinha e o vinho. Dissertação e theses, apresentadas ao Instituto Geral de Agricultura, para serem sustentadas no acto final do Curso de Agronomia. Lisboa, 1866 (Manuscrito — Instituto Superior de Agronomia, Lisboa). Vide, também, na Biblioteca Nacional de Lisboa, Espólio Jaime Batalha Reis, Esp. 4, Caixa 45, pasta 78.Carta de Jaime Batalha Reis a Pedro Batalha Reis, seu sobrinho, datada de 9 de Outubro de 1930 (Manuscrito). Vide, também, o artigo de João Carlos Garcia, “Jaime Batalha Reis, geógrafo esquecido”, Finisterra, Lisboa, 20 (40), 1985, pp. 300-314. Em 1871, Jaime Batalha Reis invoca a autoridade de Darwin para condenar a proibição das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense. Vide: Jaime Batalha Reis, “Eu sou socialista”. In: João Medina, As conferências do Casino e o socialismo em Portugal, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1894, pp. 86-90. Trata-se de um excerto da “Carta ao Exmo, Sr. Marquês de Ávila e Bolama, Porto, Tipografia Comercial, Belmonte, 1871,
12 p.”. Em 1894 e 1895 Jaime Batalha Reis inaugurou os estudos de geografia científica em Portugal, com os seguintes trabalhos: “As leis naturais do mundo. O organismo-terra” (artigo publicado em O Comércio do Porto, 20 Jan. 1894); “On the definition of Geography asa science and on the conception and description ofthe earth as an organism” (apresentado no Sixth International Geographical Congress, London, 1895). Artigos reproduzidos em, Jaime Batalha Reis, Estudos geográficos e históricos, Lisboa, Agência
Geral das Colónias, 1941, respectivamente, pp. 147-168; pp. 169-195.
Introdução
69
forma hábil e superficial, nas suas teses manuscritas apresentadas ao,
então, Instituto Geral de Agricultura.
Por outro lado, tanto quanto pudemos averiguar, foi precisamente um iovem naturalista, auto-didacta e adepto convicto da teoria darwiniana, Arruda Furtado, o único português a travar correspondência com Charles Darwin(!). O sábio inglês, então, com setenta e dois anos, propusera ao jovem açoreano um plano de estudos da fauna e da flora do arquipélago dos Açores. Morto prematuramente de tuberculose, com 33 anos, em
1887, Francisco de Arruda Furtado ainda publicou vários artigos sobre
malacologia açoriana(?) e deixou um manuscrito intitulado “Programa de
explorações malacológicas nos mares dos Açores” que, até hoje, não
foi cumprido(?).
Outros cientistas da natureza(?) pronunciaram-se sobre o darwinismo, enquanto teoria da evolução orgânica, sendo justo salientar o bem informado trabalho manuscrito do naturalista botânico, Luís Wittnich
Carrisso(”), datado de 1910, o compêndio de Bernardo Aires de 1911(9), e o qualificado estudo de Armando Cortesão, A teoria da mutação e o (1) Vide: Carlos das Neves Tavares, “Quatro cartas inéditas de Charles Darwin para: Francisco dºArruda Furtado”, Revista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 2º sér., C - Ciências Naturais, Lisboa, 5 (2), 1957, pp. 277-305; Germano da Fonseca Sacarrão, “Sobre o método em Darwin e a episódica relação com Arruda Furtado”, Preio, Lisboa, (11), Abr. Jun. 1986, pp. 81-88; Manuel Cadafaz de Matos, “Arruda Furtado correspondente de Darwin”, Prelo, Lisboa, (11) Abr.-Jun. 1986,
pp. 89-93.
(2) Vide, por exemplo: Arruda Furtado, “Pequenas contribuições para o estudo da origem das especies malacologicas terrestres das ilhas dos Açores”, Era Nova, Lisboa, 1, 1880-1881, pp. 548-552. () Vide: António M. de Frias Martins, “Arruda Furtado na malacologia açoriana”, '* Açoreana, Ponta Delgada, 7 (1), 1989, pp. 9-16. (*) Nomeadamente, Albino Augusto Giraldes, Questões de philosophia natural (Notas e apontamentos): H - O darwinismo ou a origem das especies. Conferencia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1878; João Gualberto de Barros e Cunha,As ultimas theorias biologicas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892. (*). Vide: Luís Wittnich Carrisso, Hereditariedade. Coimbra, Edição do A., 1910. 13], 236 fl. — Dissertação manuscrita para o acto de licenciatura na Secção de Sciencias Historico-Naturais da Faculdade de Philosophia, apresentada em 14 de Março de 1910 (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra). (6) Vide: Bernardo Aires, Principios de biologia. Protozoarios, Coimbra, Imprensa “da Universidade, 1911,, sobretudo pp. 312-377. Em 1892, defendia nas suas teses: “Botânica I — Sustentamos a identidade filogenética dos vegetais e animais”, “Zoologia H = Negamos a hereditariedade das mutilações(Weismann)”, Bernardo Aires, Theses de philosophia natural que (...) se propõe defender na Universidade de Coimbra
70
Darwin em Portugal
Introdução
7a
melhoramento das plantas: (Estudo trematológico), publicado em 1913(1).
o fermento darwiniano para as escolas de Lisboa e do Porto, futuras
Faculdades de Ciências.
Nos domínios da paleoantropologia e da arqueologia pré-histórica em Portugal, 1865 é uma data memorável pois, nesse ano, Pereira da Costa
publica um estudo pioneiro(!), ao qual se seguiram outros trabalhos do mesmo autor(2), bem como de Nery Delgado e de Carlos Ribeiro, rea-
lizados no âmbito da Segunda Comissão Geológica de Portugal). Com efeito, os trabalhos de prospecção e levantamento geológico do país estão directamente ligados ao nascimento daquelas disciplinas científicas entre nós. A paixão pela descoberta de restos humanos fósseis e de outros vestígios da sua existência em depósitos antigos da era quaternária da terra, foi concretizada por Carlos Ribeiro para lá das expectativas mais serenas. Convicto de que um conjunto de peças líticas, que encontrou em camadas
da era terciária nos vales do Tejo e do Sado, constituíam uma prova da
altíssima antiguidade do homem, lançou-as para o debate internacional, entre 1871 e 1880(º) e conseguiu que o IX Congresso Internacional de
(1) Vide: F. A. Pereira da Costa, Da existência do homem em epochas remotas no vallesdo Tejo. Primeiro opusculo. Noticia sobre os esqueletos humanos descobertos no cabeço da Arruda, Lisboa, Imprensa Nacional, 1865 (com uma versão em francês). (2) Vide: F. A. Pereira da Costa, Noções sobre o estado prehistorico da terra e do homem seguidas da descripção de alguns dolmins ou antas de Portugal, Com a traducção franceza. de M. Dalhunty. Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias,
Fic. 6 — Charles Darwin na fachada da Biblioteca Geral da Universidade. de Coimbra, num baixo-relevo da autoria de Angélico. Foto de João Rui Pita.
Esta amostra não nos autoriza a refutar a tese da ausência de uma tradição darwínica nas ciências naturais, mas convida-nos a suspender o nosso juízo nesta matéria, aguardando que a reconstituição da história da geologia, da botânica e da zoologia, desde meadosdo século XIX, ao nível interno das problemáticas e dos conceitos, esclareça qual o efectivo valor que a revolução darwiniana teve para as referidas ciências, em Portugal. Em todo o caso, é bom não esquecer que Júlio Augusto Henriques formou mais de 45 gerações e que alguns dos seus melhores discípulos levaram
nos dias 22 e 23 de Junho de 1892 para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892, p. 17. (1) Armando Cortesão, A teoria da mutação e o melhoramento das plantas:(Estudo trematológico). Porto, “Renascença Portuguesa”, 1913.
1868.
3) Vide: Paul Choffat, “La
géologi
rtugaise
et
de Nery
Delgado”,
OEMI6 CE Ny estro é porugáise BOBs ades ora Pau Portugaise Bulletin()de Vide: la Société Sciences Naturelles, Lisbonne, 3, supl. 1, 1909, sobretudo pp. 15-33; M. Teles Antunes, “Sobre a história da paleontologia em Portugal”. In: História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. [ Colóquio — até ao século XX, Lisboa; Academia das Ciências de Lisboa, 1986, vol. 2, sobretudo, p. 793 e ss. (4) Vide: Carlos Ribeiro, Relatorio ácerca da sexta reunião do Congresso de — Anihropologia e de Archeologia Prehistorica verificada na cidade de Bruxellas em Agosto
de 1872, 1isboa, Imprensa Nacional, 1873, pp. 7-8; Gabriel Mortillet, Adrien de Mortillet,
* Musée préhistorique. Album de 105 planches. Photogravure €. Ruckert. Deuxiême édition teyue et complétée. Paris, Librairie C. Reinwald, 1903, (Planche HD. A defesa da existên-
cia do-“homem terciário” não representava uma ousadia pessoal de Carlos Ribeiro. Entre óutros; pronunciaram-se a favor desta hipótese, Correia Barata: “Sustentamosa existência
do homem terciário (mioceno, plioceno)”, Theses de philosophia natural que (...) se propõe defender na Universidade de Coimbra para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1872, p. 15; José Diogo Arroio: “Foi durante o período terCiário que a evolução duma forma pitecóide superior produziu o homem”, Theses de * philósophia natural que (...) se propõe defender na Universidade de Coimbra para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1880, p. 19; Bernardo Aires: “O homem terciário existiu no Ocidente da Europa”, Theses de philosophia natural que
72
Antropologia e de Arqueologia Pré-Histórica tivesse lugar em Lisboa no ano de 1880. Calorosamente defendeu que aqueles “eólitos” tinham sido talhados intencionalmente por um ser muito antigo, de baixa estatura(!). O sábio antropo-arqueólogo Gabriel de Mortillet, impressionado, precipitou-se e baptizou esse hipotético homem-macaco, do qual “nem um dente se conhece”(2), com o nome de “Homo simius Ribeiroii” ou “anthropopithecus Ribeiroii”(?). Vários estudiosos internacionais é nacionais mostraram reservas quanto às provas da existência do referido homem terciário, nomeadamente, Nery Delgado(*), mas nenhuma escrita gravou um juízo mais certeiro daquelasciências tão novas e tão ávidas de dogmas e de mitos(º), como o traço firme e sugestivo de Rafael Bordalo
Pinheiro(*).
(...) se propõe defender na Universidade de Coimbra nos dias 22 e 23 de Junho de 1892 para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892, p. 21. Sublinhado
do Autor. Também o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, João
José Mendonça Cortez, em 1876, admitia a existência do “homem terciário”. Vide: Códice 9759, Estudos geológicos e antropológicos da Península Ibérica. Documentos autógrafos do A. 4 maços. Maço 1. Manuscritos existentes na B.N.L., devidamente referenciados na nossa Bibliografia. (1) Vide: Carlos Ribeiro, “L'homme tertiaire en Portugal”. In: Congrês Internas tional d'Anthropologie et d'Archéologie Préhistoriques — Compte rendu, Lisbonne, Typographie de 1 Académie Royale des Sciences 1884, pp. 81-92. (2) Mendes Correia, Homo: (Os modernos estudos sobre a origem do homem). 2º edição inteiramente refundida, Coimbra, “Atlantida” Livraria Editora, 1926, p. 131. (*) Vide: Ricardo Severo, “Carlos Ribeiro”, Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes, Porto, 5, 1898, pp. 169-170; Ricardo Jorge, Hygiene social applicada á Nação Portugueza. Conferenciasfeitas no Porto, Porto, Livraria Civilisação de Eduardo da Costa Santos-Editor, 1885, p. 93. Vide, também: Alexandre da Conceição, “O sr. Carlos Ribeiro e a questão do homem terciario”, O Seculo, Lisboa, 2 (592) 14 Dez. 1882, p. 1; António Augusto Mendes Correia, “O homem terciário em Portugal”, Lusitania, Lisboa, 3(9) 1926, pp. 1-16; António Carlos Silva, “A questão do “homem terciário” portugões”, História,
Lisboa, (21) Jul. 1980, pp. 50-60.
(4) Vide: Joaquim Filipe Nery Delgado, Relatorio ácerca da decima sessão do Congresso Internacional de Anthropologia e Archeologia Prehistoricas, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1890, pp. 33-35.
Introdução
Darwin em Portugal
(5) Vide: Hermann Schaaffhausen, “L'homme préhistorique”. In: Congrês International d'Anthropologie et d'Archéologie Préhistoriques — Compte rendu., Lisbonne, Typographie de 1' Académie Royale des Sciences 1884, pp. 140-150. (6) Vide: Rafael Bordalo Pinheiro, “Abertura dos congressos” [e seguintes], O Antonio Maria, Lisboa, 2(69) 23 de Setembro de 1880, pp. 309-316; 2(70) 30 de Setembro de 1880, pp. 317-324.
73
Arelação entre a paleoantropologia, a pré-história e o darwinismo
ão é uma evidência(!) nos trabalhos de campo dos cultores portugueses
as referidas disciplinas. Mas, dado que o seu referente teórico fundamen| era a obra de Charles Lyell, sobretudo, The geological evidences of the ntiquity of man (1863)(2), traduzida para francês em 1864,na qual o geógo escocês expunhaa teoria de Darwin e aplicava-a à espécie humana(),
ícito afirmar que, pelo menos, indirectamente, a revolução darwiniana
percutiu-se nas pesquisas de campo paleoantropológicas em Portugal.
Degrande alcance (embora não directamente em termos de impacto
arwínico) foi a criação da cadeira de “Antropologia, Paleontologia umana e Arqueologia Pré-histórica” em 1885, por Bernardino achâdo, na Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra(*). É
rto que Bernardino Machado não invoca a autoridade de Darwin para stificar a necessidade de institucionalização dos estudos antropológis(?) e que as obras darwinianas de 1859, 1871 e de 1872 não constam
a lista dos manuais que recomendou aos alunos(*). Está igualmente ovado que, sob a orientação de Bernardino Machado, os alunos dedi-
vam=se sobretudo à antropologia física, tendo elaborado trabalhos de
craniometria e de osteometria desde 1885(7). No entanto, o sábio profes(!) Sobre esta temática a nível europeu, vide: Claude Masset, “Darwinisme et préhistoire?”. In: Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, pp. 651-655; Bruce G. Trigger, À history ofarchaeological thought, Cambridge e outras, Cambridge University Press, 1989. (2). Vide: F.A. Pereira da Costa, Da existência do homem em epochas remotas no valle do Tejo. Primeiro opusculo. Noticia sobre os esqueletos humanos descobertos no cabeço da Arruda, ob. cit., p. 3. : (3). Vide: Charles Lyell, L'ancienneté de Phomme prouvée par la géologie et remarques sur les théories relatives a Porigine des espêces par variation. Traduit avec le consentement et le concours de Vauteur par Mr. M. Chaper. Deuxiême édition. Paris,
3. - B:Baillitre et Fils, 1870, pp. 451-559.
(2). Vide: Cem anos de antropologia em Coimbra 1885-1985, Coimbra, Museu e Laboratório Antropológico, 1985, p. 13 e ss. Vide também, Manuel Laranjeira Rodrigues Areia; M. A. Tavares da Rocha; M. Arminda Miranda, “O Museu e Laboratório Antropológico da Universidade de Coimbra”. In: Universidade(s) - Historia. Memória. Perspectivas. Actas do Congresso “História da Universidade” (No 7º Centenário da sua
fundação), ob. cit., vol. 2, pp. 87-105.
(5). Vide: Bernardino Machado, A Universidade de Coimbra. Segunda edição. Lisboa, Ed. do A., 1908, pp. 45-49. (6) Vide: Cem anos de antropologia em Coimbra 1885-1985, ob. cit. p. 15: (7) Vide: Aula de Antropologia da Universidade de Coimbra — Trabalhos de alum-
hos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1902. Compreende doze estudos antropométricos
75
Darwin em Portugal
Introdução
sor e político tinha defendido em 1876, nas suas Theses de philosophia, a seguinte proposição: “a variabilidade e a hereditariedade, nas condições de luta para a existência, produzem a selecção natural”(!). E mesmo que este enunciado (defendido na Secção de “Zoologia e Geologia”) não seja propriamente darwínico, pois falta nele algo de essencial, a saber,:a descendência com modificações ou evolução, julgamos que Bernarding Machado não foi indiferente à revolução darwiniana. Para provar istó
Quem, na verdade, fora de qualquer enquadramento institucional, escreveu o primeiro tratado de Antropologia evolucionista foi Oliveira Martins que se revelou um tratadista genial, porque simultaneamente expositivo e crítico. A primeira edição dos seus Elementos de antropologia foi
74
mesmo, transcrevemos as palavras que dedicou à memória do naturalista inglês, curiosamente num discurso comemorativo do centenário da morte
do Marquês de Pombal, onde se lê: “um Darwin, por exemplo. Se lidou
esse! lidou constantemente; e assim, alento a alento, tirou de si a obra assombrosa da teoria das transformações orgânicas, ou, como para lhe
perpetuar o nome melhor se diz, o darwinismo: tirou-o de si a poder do engenho e com a paciência com que o oceano — explicou ele — floreja à superfície os colossais recifes coralinos feitos de animalculos quase invisíveis. Para sempre seja bendita a tua memória, adorável sábio!"(2). Embora não tenha escrito algum tratado, não duvidamos que Bernardino Machado e os seus sucessores estavam perfeitamente ao corrente da antropologia darwínica mais ou menos ortodoxa. Tenhamos sempre presente que Júlio Augusto Henriques abriu o caminho aos seus discípulos, o que, a par do interesse de cada um pelo novo, permite-nos admitir que teses como as de Meireles Garrido(?) ou de Silva Basto(?) não eram
excepções.
publicada em 1880(1), no ano em que decorreu o IX Congresso Internacio-
nal de Antropologia e de Arqueologia Pré-histórica, em Lisboa. Igualmente em 1880 começa a ser estampada a História naturalilustrada de Júlio de Matos(2), uma das obras em que o autor se afirma como um dos representantes mais completos e genuínos do darwinismo em Portugal.
10. DARWIN EM PORTUGAL: COMEMORAÇÕES DE 1882 E DE 1909 A cultura portuguesa não podia passar ao lado de “umateoria tão pode-
tosa como a de Darwin”(*), mas foi, sobretudo, enquanto teoria antropo-
histórica e social que ela se reflectiu entre nós. As duas últimas partes da nossa dissertação destinam-se, precisamente, a provar este enunciado. Tem algum significado o facto da obra darwiniana de 1871 ter sido traduzida antes da obra capital de 1859. A tradução da primeira foi publi-
cada em 1910(4) e a da segunda em 19130). Tardiamente, sem dúvida, Coimbra no dia 8 de Junho de 1878 para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1878, p. 15. Sublinhado do Autor.
(índice cefálico, índice nasal dos portugueses,etc.) feitos pelos alunos: João Gualberto de Barros e Cunha, Álvaro José da Silva Basto, José Cardoso de Meneses, António Aurélio
da Costa Ferreira, João Salema, Alexandre Alberto de Sousa Pinto, Agostinho Viegas da Cunha Lucas, João Ernesto Mascarenhas de Melo, Vasco Nogueira de Oliveira, Abílio Augusto da Silva Barreiro, Álvaro R. Machado. Por outro lado, dos nove trabalhos manus-
critos, existentes no Cofre do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, apresentados entre 1897 e 1907, cinco abordam temas de antropologia física e apenas um reflecte a influência do evolucionismo mais lamarckista do que darwiniano. É o trabalho de José de Oliveira Ferreira Dinis, devidamente referenciado na nossa Bibliografia, tal como osrestantes. (1) Bernardino Machado, Theses de philosophia natural que (...) se propõe defender na Universidade de Coimbra no dia 9 de Junho de 1876 para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1876, p. 13. (2) Bernardino Machado, Discurso commemorativo do Marquez de Pombal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1882, p. 6.
() “o darwinismo explica a origem natural do homem”, António de Meireles Garrido, Theses de philosophia natural que (...) se propõe defender na Universidade de
(4) “Consideramos o Pithecanthropus erectus de Dubois como o precursor do homem”, Álvaro José da Silva Basto, Theses de philosophia natural que (...) se propõe defender na Universidade de Coimbra, nos dias 9 e 10 de Julho de 1 897, para obter o grau de:doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1897, p. 17. Sublinhado do Autor.
(1) Vide: Oliveira Martins, Elementos de antropologia: (Historia natural do homem), Lisboa, Livraria Bertrand, 1880. (2) Júlio de Matos, Historia natural ilustrada. Compilação feita sobre os mais auctorisados trabalhos zoologicos, Porto, Livraria Universal, [1880-1882], 6 vols.. (3) François Jacob, O jogo dos possíveis. Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo; 0b. cit., p. 49.
(4) Vide: Charles Darwin, A origem do homem. A selecção natural e a sexual. Traducção de Oldemiro Cesar [jornalista, tradutor]. Porto, J. Ferreira dos Santos-Editor, 1910, Z'vols.; Idem, A origem do homem. Traducção synthetisada de João Corrêa d'Oliveira [escritor é-tradutor]. Porto, Magalhães & Moniz-Editores, 1910(7). Nestas duas versões, a segunda
parte da obra darwiniana (a selecção sexual) foi completamente omitida. No entanto, em português, o público tinha acesso a longas passagens da segunda parte da obra darwiniana de 1871, num livro de Arruda Furtado, O macho e a femea no reino animal, Lisboa,
David Corazzi Editor, 1886. A obra de E. Denoy, Descendemos do macaco? (Trad. Moraes
Darwin em Portugal
Introdução
mas não esqueçamos o “francesismo”(!) português da época que dispunha das primeiras traduções francesas das obras de 1859 e de 1871, desde 1862 e de 1872, respectivamente(?). À volta de 1910, houve um surto de pequenos artigos e notícias de difusão do darwinismo antropos
permite-nos constatar se, também neste registo, foi a dimensão antropo-
76
-histórico para o grande público(?), mas, como veremos, as letras
7
“histórica e social do darwinismo, aquela que mais ecos produziu na
cultura portuguesa.
Darwin morre em 19 de Abril de 1882 e foi enterrado na abadia de
“Westminster em 26 de Abril de 1882(1). Praticamente um mês antes da
portuguesas, com Teófilo Braga, Oliveira Martins e outros, já tinham
“morte do naturalista inglês, Júlio Augusto Henriques, o eminente botânico
finais da década de setenta do século XIX. Juigamos que tem interesse fazer uma ideia do que foi escrito em Portugal, com o objectivo de prestar homenagem ao naturalista inglês, por ocasião da sua morte em 1882, e para celebrar o cinquentenário da Origem das espécies, em 1909. Saber quem escreveu e o quê, a esses títulos, é um indicativo muito falível dos representantes de Darwin em Portugal. Mas,
“artigo intitulado “Carlos Darwin”(2). Nele, o fundador da Sociedade
assimilado, com originalidade, a revolução darwiniana, claramente, desde
que em 1866 se antecipara à obra darwiniana de 1871, publica no Porto um
Broteriana (1879)e do seu Boletim (1882) celebra a vida e a obra do sábio
“inglês. O retrato de Darwin ilustra a primeira página do artigo:
Rosa. Lisboa, Livraria Internacional, 1910) inclui nas pp. 100-139 uma antologia da obra darwiniana de 1871. Um pequeno “extracto de Charles Darwin — A procedencia do homem” foi publicado na rubrica “Variedades”, O Zoophilo, Lisboa, 1 (1) 14 Jan. 1877, p. 4. (5) Vide: Charles Darwin, Origem das espécies. Trad. Joaquim Dá Mesquita Paúl, Imédico e professor]. Porto, Livraria Chardron, 1913. (1) Vide: Eça de Queirós, “O “Francezismo” “. In: Eça de Queirós, Ultimas paginas (Manuscriptos ineditos), Porto-Lisboa, Livraria Lello & Irmão Editores-Aillaud &
Fic. 7 — Charles Darwin. (Reproduzido de Júlio Augusto Henriques, “Carlos Darwin”, Jornal de Horticultura Pratica, Porto, 13 (3) Mar. 1882) A
(1) Vide: Michael T. Ghiselin, “Charles Robert Darwin 1809-1882”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit., pp. 772-198. (2) Júlio Augusto Henriques, “Carlos Darwin”, Jornal de Horticultura Pratica.,
Porto, 13 (3) Mar. 1882, pp. 41-44. O mais provável é que o jornal andasse atrasado.
PEAEA
Lellos, s.d., pp. 397-425. No mesmo sentido, vide a dissertação apresentada à Faculdade de Medicina do Porto, por Alberto Ferreira de Lemos, A França como factor principal da Sciencia, Porto, Typographia Artes e Lettras, 1912. (2) Vide: Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIX* siêcle; ob. cit., p. 438. (2) Vide, entre outros: “Origem e patria primitiva da humanidade”, “Idade e origem dos homens”, Almanach Encyclopedico Ilustrado para 1908, Coordenado pelo professor Agostinho Fortes, Lisboa, 1908, respectivamente, pp. 73-79 e pp. 235-246; “O homem do futuro”, Almanach Ilustrado d'O Seculo , Lisboa, 13, 1909, p. 150; “O correr do cabelo. Curiosidade da raça humana”, Almanach Encyclopedico Ilustrado pará 1909. Coordenado pelo Professor Agostinho Fortes, Lisboa, 1909, pp. 167-169; Cacilda de Castro, “O riso”, Ilustração Portugueza, Lisboa, 2º sér., 195, 15 Nov. 1909, pp. 623-629; “Estudos da fisionomia e do gesto”, Almanach Ilustrado dº O Seculo , Lisboa, 13; 1909, p. 114; Lino de Macedo, “A edade humana”, Vanguarda, Lisboa, 12 (4516) 6 Ago: 1909, p. 1; Idem, “A edade da terra”,Vanguarda, Lisboa, 12 (4522) 12 Ago. 1909, p. 1; “Os antepassados do homem”, Almanach Ilustrado d' O Seculo, Lisboa, 14, 1910, pp. 91-95. Anteriormente, merecem especial destaque, pela sua força irónica, os seguintes documentos: Rafael Bordalo Pinheiro, “A teoria de Darwin”, Pontos nos ii, Lisboa, 2 (63) 17 Jul. 1886, pp. 500-501; Folheto (Folha) volante na colecção particular do Arquivo da Universidade — Colecção Jardim de Vilhena — AU.C.-VI-3º-1-2-27. Reproduzido em anexo. Posteriormente, não podemos omitir, entre outras lições darwinistas proferidas no Curso de educação popular da Universidade Livre, a lição de Rui Teles Palhinha; O homem como ser animal, Lisboa, Universidade Livre, 1912.
78
Introdução
Darwin em Portugal
Na sua exposição da teoria darwiniana, Júlio Henriques sublinha uma diferença muito importante entre a selecção natural e a selecção artificial praticada pelo horticultor e pelo criador de raças animais. Se esta é intencional, a primeira não tem em vista algum fim preconcebido, apenas significa a sobrevivência dos membros de uma espécie que, na luta pela vida, apresentam as variações mais vantajosas em função do meio. Foi também Júlio Augusto Henriques quem prestou culto à memória de Darwin em O Tastituto, tendo, para o efeito, traduzido um notável traba-
lho do naturalista-botânico francês Alphonse de Candolle(!). Em homenagem ao sábio inglês, Teófilo Braga, o grande doutrinador da sociologia positiva, publicou(2) uma síntese da teoria darwiniana, do darwinismo antropológico de Ernst Hackel e do darwinismo social de Herbert Spencer, apoiando-se em Th. Huxley(?) e, curiosamente, não se socorrendo da leitura lamarckisante de Darwin produzida em França, especialmente por Clémence Royer(?). Nas páginas da revista O Positivismo, a notícia da morte de Darwin foi escrita por Júlio de Matos(”), mas quem homenageou Darwin foi Arruda Furtado, igualmente discípulo e correspondente(”) de Teófilo Braga, com um artigo intitulado
“Embryologia”().
No referido artigo, o jovem naturalista expunha uma das provas capitais da teoria evolucionista, recorrendo, entre outras obras, à edição definitiva da Origem das espécies, no original inglês. No entanto, uma (!) Vide: A. de Candolle, “C. Darwin: Causas do successo de seus trabalhos e importancia d'elles”. O Instituto, Coimbra, 30 (8) Fev. 1883, pp. 344-364; Júlio Augusto Henriques, “Affonso de Candole”, Boletim da Sociedade Broteriana, Coimbra, 11, 1893, pp. 3-6. (2) Vide: Teófilo Braga, “Carlos Darwin”, O Occidente, Lisboa, 5 (123) 21 Maio 1882, p. 118. () Th. Huxley, Les sciences naturelles et les problêmes qu'elles font surgir, Paris, Librairie J. -B. Bailliêre et Fils, 1877. (4) Vide: Charles Darwin, De Vorigine des espêces par sélection naturelle ou des lois de transformation des êtres organisés. Traduction de Mme Clémence Royer avec préface et notes du traducteur. Nouvelle édition revue d'aprês I'édition stéréotype anglaise, avec les additions de Pauteur. Paris, Librairie Marpon & Flammarion, s. d., 4º edição [1882]. () Vide: Júlio de Matos, “Carlos Darwin”, O Positivismo, Porto, 4, 1882, p. 180.
(6) Vide: Francisco de Arruda Furtado, [4 Cartas para Teófilo Braga datadas de 13 de Novembro de 1882: 29 de Dezembro de 1882: 3 de Maio de 1883; 11 de Dezembro de 1883]. In: Teófilo Braga, Quarenta amnos de vida litteraria (1860-1900), Lisboa, Typographia Lusitana - Editora Arthur Brandão, 1902, pp. 162-172. (7) Vide: Francisco de Arruda Furtado, “Embryologia”, O Positivismo, Porto, 4, 1882, pp. 121-163.
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parte do artigo é reservada para combater a teologia, a metafísica ea religião, na sequência do que havia feito no ano anterior(!). Foi também Artuda Furtado quem, em 1882, divulgou a vida e a obra de Darwin, nas
colunas dos jornais O Século(?) e A voz do operario(?). Assumindo-se
“como um “humilde discípulo”(4) do sábio naturalista, Arruda Furtado
o apresenta Darwin como o “Newton da biologia”, mas também como
criador de uma filosofia redentora da humanidade, fundada na suposta verdadeira esperança, a esperança científica: “Cristo propôs-se regenerar um ente miserável, decaído do seu primitivo explendor por causa dos seus pecados; Darwin estimula a humanidade na senda dum progresso inces-
sante e partindo, ao contrário, duma origem obscura e bestial. A diferença
é profunda”(*). Que a teoria da descendência com modificações pode consolar o homem, disse-o Darwin com estas palavras: “Man may be excused for feeling some pride at having risen, though not through his own exertions, to the very summit of the organic scale; and the fact of his having thus risen, instead of having been aboriginally placed there, may give him hope fora still higher destiny in the distant future”(9). No entanto;-o- naturalista inglês nunca ousou contrapor O darwinismo ao cristianismo, como fez Arruda Furtado. Igualmente correspondente de Teófilo Braga(”) e colaborador em O Positivismo, Augusto Rocha publicou, em 1882, nas páginas da revista que dirigia, Coimbra Médica, um rigoroso artigo(?) que dá conta dos traços essenciais da vida do sábio inglês, apresenta uma súmula cronoló-
(1) Vide: Francisco de Arruda Furtado, O homem e o macaco (uma questão pura-
de] mente local), Ponta Delgada, s. ed., 1881; Joaguim dos Reis, “[Recensão crítica Nova, Furtado, Francisco d' Arruda - O homem e o macaco. Ponta Delgada, 1881”, Era
Lisboa, 1, 1880-1881, pp. 476-479.
(2) Vide: Francisco de Arruda Furtado, “Carlos Darwin”, O Seculo, Lisboa, 2 (433)
9-Jun. 1882, pp. 1-2; 2 (434) 10 Jun. 1882, p. 12 (435) 11 Jun. 1882, p. À. (3) Vide: Francisco de Arruda Furtado, “A memoria de Charles Darwin”, À Voz do Operário, Lisboa, 6 (140) 18 Jun. 1882, pp. 3-4. (4) Francisco de Arruda Furtado, “Á memoria de Charles Darwin”, art. cit., p. 4. (5) Francisco de Arruda Furtado, “Carlos Darwin”, art. cit. 2(433) 9 Jun. 1882, pl. (5) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, ob. cit.
. 619. (7) Vide: Augusto Rocha, [Cartas para Teófilo Braga: 30 Mar. 1879; 1 Jul. º 1879]. In: Teófilo Braga, Quarenta annos de vida litteraria (1860-1900), ob. cit., pp. 150-151, (8) Vide: Augusto Rocha, “Carlos Roberto Darwin”, Coimbra Medica, Coimbra,
2 (10) 15 Maio 1882, pp. 161-164.
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Darwin em Portugal
Introdução
gica da sua obra e resume de forma brilhante a teoria da selecção natural. Sem qualquer reserva, afirma que o darwinismo, “sendo já a doutrina dominante”(1), alcançará o triunfo universal nos domínios das ciências da vida e das ciências do homem, desde a antropologia e a psicologia à sociologia, pela mãos dos numerosos discípulos espalhados por todo o
omo os ministros da Suécia e América fazem parte desta comissão, o que
á à subscrição um carácter internacional”(1).
o
O ano do quinquagésimo aniversário da publicação da obra darwijana, Origem dasespécies (1859-1909) coincidiu com o ano do centenário o nascimento de Darwin (1809-1909) e ainda do centenário da publicação a obra capital de Lamarck, a Filosofia zoológica (1809-1909). Esta tripla oincidência era uma excelente ocasião para se repensar a história do evolu-
mundo.
À Sociedade de Geografia de Lisboa, por iniciativa de J.V. Barbosa du Bocage, limitou-se a lançar em acta um voto unânime de sentimento pela morte de Darwin e de reconhecimento do valorcientífico da sua obra científica(?). Barbosa du Bocage, o fundador do Museu de História Natural da Escola Politécnica de Lisboa em 1859, embora tenha desenvolvido uma obra fundamental no domínio da zoologia descritiva e sistemática e da geografia zoológica(?) não foi um representante da teoria darwiniana em Portugal(4).
ionismo natural e o seu valor na cultura científica e humanística. Nas
comemorações realizadas na Universidade de Cambridge em 22-23-24 de
Junho, muitas Universidades e sociedades científicasde todo o mundo fize-
“ram-se representar, desde a América ao Japão, da Índia à Austrália, passando pela Europa. Portugal teve como representantes, Egas F. Pinto Basto pela Universidade de Coimbra, em substituição de Júlio Augusto Henriques, delegado nomeado pela Universidade; Aarão Ferreira de Lacerda, pela Academia Politécnica do Porto e o médico Francisco Silva Teles pela Sociedade de Geografia de Lisboa e pelo Curso Superior de Letras(2). Francisco Silva Teles, o futuro defensor da racionalidade darwiniana na geografia) resumiu a dupla celebração de Darwin em Cambridge, na sessão de 20 de Janeiro de 1910 da Sociedade portuguesa de ciências naturais(*), constituída largamente por médicos(”). Por seu
Posteriormente, em Agosto de 1882, a revista semanal ilustrada
Ciencia para todos publicavaa seguinte notícia: “A cidade de Londres vai erigir uma estátua à memória do naturalista Darwin, glória da Inglaterra e um dos sábios mais distintos do nosso tempo. A estátua será de mármore e colocar-se-á na maior sala do museu britânico”(>). No ano seguinte, lia-
se na revista científica e literária O Instituto: “Está já formada em Londres uma comissão para elevar umaestátua a Darwin e para criar um fundo destinado a promover o desenvolvimento das ciências biológicas. São membros desta comissão os arcebispos de Canterbury e de York, o bispo de
turno, Aarão Ferreira de Lacerda, doutor pela Faculdade de Filosofia da Universidade e médico pela Escola Médico-Cirúrgica do Porto, relatou
minuciosamente os eventos comemorativos realizados pela Universidade
Exeter, o deão de Westminster, de S. Paulo e de Christchurch, os duques
de Cambridge(9), dando especial relevo aos discursos científicos e ao
de Argyll, Devonshire e Northumberland, o marquez de Salisburg, os con-
des de Derby, Ducis, Granville, Spencer, muitos pares de Inglaterra, muitos membros da Câmara dos Comuns, os chefes das universidades
principais dos três reinos, e umas quarenta pessoas notáveis nas ciências físicas ou naturais. Os embaixadores de Alemanha, França Itália, assim (1) Idem, ibidem, p. 164.
(2) Vide: “LActa da sessão de 15 de Maio de 1882 durante a qual foi referida a morte de Darwin)”, Actas das Sessões da Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa, 2, 1882, pp. 31-50. (3) Vide: Carlos França, “Le Professeur Barbosa du Bocage. 1823-1907. Éloge historique prononcé à la séance solennelle du 2 Mai 1908”, Bulletin de la Société Portuguaise des Sciences Naturelles, Lisbonne, 2 (1-2) Nov. 1908, pp. 141-194. (4) Vide: Germano da Fonseca Sacarrão, “O darwinismo em Portugal”, Prelo, art. cit., pp. 13-15. (5) “À memoria de Darwin”, Sciencia para Todos , Lisboa, 1 (30) 5 Ago. 1882, p. 238.
81
|
(1) A. de Candolle, “C. Darwin: Causas do successo de seus trabalhos e importancia d'elles”, art. cit., p. 360, nota €. (2) Vide: Júlio Augusto Henriques, “Celebração do centenario do nascimento de Charles Darwin”, Boletim da Sociedade Broteriana, Coimbra, 24, 1908-1909, pp. 245-246; Idem, “Carlos Darwin 1809-1909”, Boletim da Sociedade Broteriana, Coimbra, 24, 1908-1909, pp. 5-6. (3) Vide: Francisco Silva Teles, “O conceito scientifico da geografia”, Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra,4, 1915, pp. 109-136. (4) Vide: “Centenario de Darwin”, Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. II, 13(5) 30 Jan. 1910, p. 37. (é) Vide: Joaquim da Silva Tavares, “A Sociedade Portugueza de Sciencias Naturais”, Broteria, Lisboa, 6 - 3º parte (sér., Vulgarização Scientifica), 1907, pp. 127-134. (6) Vide: Aarão Ferreira de Lacerda, “A commemoração darwineana celebrada pela Universidade de Cambridge”, Annais Scientificos da Academia Polytechnica do Poório, Porto, 5 (3), 1910; P.L., “Literatura medica. Aarão de Lacerda, A commemoração darwineana celebrada pela Universidade de Cambridge (22-24 de Junho de 1909), Gazeta dos Hospitais do Porto, Porto, 4 (18) 15 Set. 1910, pp. 280-281.
82
Darwin em Portugal
Introdução
83
lançamento da publicação por Francis Darwin do esboço da doutrina darwiniana, escrito em 1842(1). No breve historial da teoria da evolução que completa o seu artigo, Aarão Ferreira de Lacerda valorizou Lamarck enquanto precursor de Darwin e sublinhou que a inauguração do monumento a Lamarck no Museu de História Natural de Paris, em 13 de Junho de 1909, simbolizava a justa consagração da memória do naturalista francês. No entanto, defendeu que a mudança de paradigma da história natural foi operada pela Origem das espécies (1859) e não pela Filosofia zoológica (1809), de Lamarck. Curiosamente, quem nesse ano memorável de 1909 trouxe a figura e a obra de Lamarck para primeiro plano na história do evolucionismo natural foi Raúl Proença, nas colunas do jornal À Republica(?). Neste sen-
tido, após a exposição da filosofia lamarckiana da natureza, concluiu: “Foi só com Darwin que a teoria da evolução venceu o fixismo e se impôs a todo o mundo, mas o pai da doutrina, o génio formidável que a concebeu — foi o grande biologista francês”(). O “insucesso” de Lamarck é justificado por três razões fundamentais: o criacionismo dominante, sus-
tentado pelos maiores naturalistas; a influência da grande autoridade de Cuvier, defensor do fixismo das espécies, e a insuficiente base de dados factuais e experimentais, disponíveis no princípio do século XIX. Cinquenta anos mais tarde, com Darwin, já não era possível impedir a falência do modelo criacionista na história natural. No entanto, para Raúl Proença, o pioneiro genial fora Lamarck, razão pela qual não concorda que, com o triunfo de Darwin, o evolucionismo passasse a denominar-se “Darwinismo duma maneira tão injusta como falsa”(4). E o combativo jornalista acrescentava: “Deram ao mundo novo descoberto por Lamarck o nome dum ousado explorador que não o descobriu. (...) É preciso colocar a obra de Lamarck no seu verdadeiro lugar”(). O contributo de Darwin para a teoria da evolução (1) Vide: Charles Darwin, The foundations of the origin of species, a sketch written in 1842. ob. cit.. A Universidade de Cambridge publicou uma obra fundamental: A. C. Seward (ed.), Darwin and modern science. Essays in commemoration of the centenary of. — the birth of Charles Darwin and of the fiftieth anniversary of the publication of The origin of species. Edited, for the Cambridge Philosophical Society and the syndics of the University Press, by A. C. Seward. Cambridge, At The University Press, 1909. (2) Raúl Proença, “Os grandes typos humanos. V-Lamarck”, A Republica, Lisboa,
2(353) 21 () (4) ()
Mai. 1909, pp. 1-2; 2(354) 22 Mai. 1909, pp. 1-2. Idem, ibidem, 2(353) 21 Mai. 1909, p. 2. Idem, ibidem. Sublinhado do Autor. Idem, ibidem.
Fic. 8 — Jean Baptiste de Lamarck. (Reproduzido de Robert J. Richards, The meaning of evolution. The morphological construction and ideological reconstruction of Darwin's theory, 1993).
era situado, apenas, ao nível do factual, do empírico, e era válido porque
demonstrava o mecanismo evolucionário lamarckiano. Na óptica de Raúl Proença, foi Lamarck quem construiu “toda a teoria da evolução: formação de caracteres novos pela influência do hábito, em relação íntima como meio; transmissão desses caracteres adquiridos pelo mecanismo
da hereditariedade: evolução individual, evolução das espécies”(1). Igualmente, “a teoria de que o homem descende do macaco, cuja priori-
(1) Idem, ibidem. Sublinhado do Autor.
85
Darwin em Portugal
Introdução
dade se atribui a Darwin, pertence-lhe”(1). Por fim, a teoria lamarckiana da evolução naturaliza o homem sem o desumanizar, pela fundamentação científica da “apologia mais fervorosa do esforço”(2). Pelo contrário, na teoria de Darwin, o esforço, a vontade e o querer do homem pouco ou nada valem face à selecção natural, e esta não dá garantias de progresso ético €
fica ao problema do mecanismo evolucionário dos organismos vivos(!).
84
social. Assim, Darwin deve ser lido lamarckianamente, isto é, no quadro
da ideia teleológica de evolução enquanto progresso(?), a única que torna possível e previsível a realização da virtude, da justiça e da solidariedade social. Inteligentemente, Raúl Proença compreendeu que a teoria evolucionária de Darwin não podia caucionar a defesa do progresso em direcção aos valores socio-políticos referidos. Por seu turno, também, Miguel Bombarda revelou-se crítico da substância essencial da teoria darwiniana, isto é, da selecção natural. Na
sessão de 19 de Fevereiro de 1909, da Academia das Ciências de Lisboa(*), valorizou a obra revolucionária de Darwin nas ciências naturais € humanas, mas fez notar que “a noção da transformação das espécies penetrou rapidamente todos os espíritos mercê de um erro — a selecção natural, que hoje se demonstrou não ser tanto quanto Darwin supunha a alavanca do transformismo”(º). A notícia desta intervenção de Miguel Bombarda foi publicada em A Medicina Contemporaneae aí reafirma-se que a teoria da evolução penetrou toda a cultura científica e humanística através de uma “alavanca falsa”: a selecção natural. O valor da revolução darwiniana era inquestionável, mas “as ideias lamarckianas dominam à ciência em toda a doutrina do transformismo”(*). Na conferência que
Pot isso, persistiam divergências intra-científicas quanto ao modo como se
processa a evolução orgânica, mas o fundamental é que elas não retiravam solidez à filosofia científica do universo: o monismo materialista“evolucionista, sistematizado pelo expoente do darwinismo alemão, Ernst Hackel(?). Inevitavelmente, dado o perfil psicológico e político de Miguel Bombarda, a sua homenagem ao sábio naturalista inglês, converteu-se
numa acção de combate anti-clerical e anti-teológico. O nome de Darwin seria também usado com idênticos objectivos político-culturais por livre
pensadores operários, como o socialista Guedes Quinhones(?). Resumindo: em 1882, exceptuando o artigo de Júlio Augusto Henriques, todos os restantes, mesmo o de Arruda Furtado, acentuam a pro-
jecção de Darwin na cultura humanística, partindo da leitura biológica do
ser histórico e social do homem feita pelo naturalista inglês. Em 1909, reflecte-se vivamente,entre nós, a competição entre a Inglaterra e a França pela paternidade da “revolução copernicana” nas ciências da vida e do homem. Mas, independentemente dos méritos atribuídos a Lamarck e a Darwin, o que ganhou uma força significativa em Portugal foi o uso da teoria biológica da evolução enquanto arma científica na luta político“cultural. Veremos que, entre nós, o darwinismo, ora mais ora menos
lamarckista, foi chamado a fundamentar teses raciológicas distintas, e adaptou-se a um leque de valores sociais muito diferentes entre si.
realizou na Academia de Estudos Livres, em Julho de 1909(7), Miguel
Bombarda volta a sublinhar que a selecção natural não é a resposta cientí(!) Idem, ibidem. (2) Idem, ibidem. Sublinhado do Autor.
(3) Vide: Raúl Proença, “Factos-A proposito do centenario de Darwin. O principio de Malthus-contradições dum sabio do paiz da democracia real”, A Republica, Lisboa,
2(362) 1 Jun. 1909, p. 1.
(4) Miguel Bombarda, “[Intervenção na sessão de 19 de Fevereiro de 1909 da Aca-
demia das Sciencias de Lisboa a propósito do centenário de Darwin]”, Actas das Sessões dá
Primeira Classe. Academia das Sciencias de Lisboa, Lisboa, 2, 1905-1910, pp. 118-119.
(*) Idem, ibidem,p. 118.
(9) “Academia Real das Sciencias. Sessão de 19 de Fevereiro de 1909”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. II, 12 (9) 28 de Fev. 1909, p. 71. (7) “Na Academia de Estudos Livres. Na proxima segunda-feira, pelas 9 horas da noite, realiza o sr. Dr. Miguel Bombarda uma conferencia comemorativa do centenário de Darwin”, O Mundo, Lisboa, 9 (3111) 2 Jul. 1909, p. 2.
(1) Vide, também, “Conferencia do sr. dr. Miguel Bombarda”, O Mundo, Lisboa, 9 G115)6 Jul. 1909, p. 3. (2) Vide: “No centenario de Darwin. Brilhante conferencia do sr. Dr. Miguel Bombarda”, A Vanguarda, Lisboa, 12 (19) 6 Jul. 1909, p. 1. (3) Vide: “Conferencia”, A Voz do Operario, Lisboa, 30 (1559) Set. 1909, p. 1; Guedes Quinhones, “Darwin”, A Voz do Operario, Lisboa, 30 (1559) Set. 1909, p. 1.
PARTE I FILOSOFIA 2e O SENTIDO DO DARWINISMO NA CA(UJSA DE ANTERODE QUENTAL
CAPÍTULO 1 A busca do lugar da evolução natural no diálogo possível entre a autêntica reflexão filosófica e os seus simulacros “.. a falar verdade, acho-me só: a metafísica é hoje repelida universalmente da Filosofia da Natureza. Não importa. Irei de encontro à onda dos positivistas, materialistas, empíricos e tutti quanti, convencido de que não se passará muito tempo sem que, constituída a metafísica positiva, a Filosofia da Natureza entre no
caminho verdadeiro”(!)
“Fle será (...) o Só — o Homem”(2)
Foi no decurso de uma “espécie de revolução intelectual e moral”(?) ue Antero experimentou, sensivelmente por toda a década de sesenta, que o poeta-filósofo percebeu, claramente, o que, para a grande maioria dos “16 a 20 rapazes”(4) da geração de 65, não era objecto que inspirasse um sério cuidado reflexivo. Referimo-nos, exactamente, ao problema que o positivismo e o cientismo estavam abrindo na cultura “ocidental, a saber: a dificuldade ou, mesmo, impossibilidade do diálogo
“entre a ciência e filosofia, entre o positum Ôntico da ciência e o Ser da (1). Antero de Quental, “Carta a Oliveira Martins, Ponta Delgada, 26 de Dezembro
[de 18737”. In: Obras completas. CartasI [1852]-1881; 1! 1881-1891. Organização, introdução e notas de Ana Maria Almeida Martins. Lisboa, Editorial Comunicação, 1989,
vol. |, carta n.º 122,pp. 231-232.
(2) Manuel Laranjeira, “Antero de Quental” (1902). In: Obras de Manuel Laran-
eira. vol. 2. Organização, prefácio e notas introdutórias de José Carlos Seabra Pereira, Lisboa, Edições Asa, 1993, p. 327. (3) Antero de Quental, “Carta a Wilheim Storck, Ponta Delgada 14 de Maio de 1887". In: Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta n.º 524, p. 833.
(4) Idem, ibidem, p. 835.
Parte 1 — Capítulo 1
Darwin em Portugal
90 £
metafísica. Ora, é na percepção deste divórcio entre a ciência e a metafísica(l) que se enraíza todo o trabalhofilosófico anteriano, na esperança de ultrapassar o absurdo da incomunicabilidade entre as duas potências mais elevadas do pensamento e que, no fundo, eram obra do mesmo espírito humano. A partir, pelo menos, de 1866(2) e por toda a década de setenta, acentua-se, na consciência filosófica anteriana, a necessidade de abordar este magno problema. Mas, de facto, só em 1885, Antero atinge a plena inteligibilidade do caminho da conciliação da ciência com a metafísica.
91
“Hommage de Vauteur”(!). Ora, o opúsculo de Antero não é, propriamente; uma recensão da obra com observações críticas sobre aspectos com onsiderados polémicos. Mas é, em primeiro lugar, a afirmação —
m traço firme e uma cadência especulativa já madura — do que não é a losofia.
Eo que ela não é — na reflexão anteriana — é precisamente a
filosofia da natureza de Hackel que Viana de Lima perfilhava. E porquê?
Neste sentido, dirá a Jaime Batalha Reis, em carta datada de 24 de
esde logo porque, na óptica anteriana, o espírito científico, por si mesmo, impotente para desencadear a reflexão filosófica. Esta tem de processar-se no quadro “das ideias últimas e fundamentais da razão (substância,
cesso racional, tem sido afinal o trabalho da minha vida. Creio que cheguei
Mas, se Antero postula que “sem metafísica não há filosofia” (2),
Dezembro de 1885: “Extrair do pessimismo o optimismo, por um pro-
ao termo e dou a minha Filosofia por completa e acabada. Agora trata-se de a expor lucidamente, e é a isso que me quero consagrar...(2). Antero estava decidido a ultrapassar o vazio da Weltanschauung dos cientistas, pelo que, não admira que, no ano seguinte, dê à estampa um valioso trabalho no qual assenta as bases do seu projecto de harmonização da verdadeirafilosofia com a verdadeira ciência, pois a sua inquietude filosófica levou-o sempre a procurar “... a Verdade, a verdade pura, estreme,
absoluta...”(4).
Com efeito, o original de A filosofia da natureza dos naturalistas saiu a lume no diário portuense A Província, na Primavera de 1886. Trata-se de um conjunto de artigos escritos a propósito da obra de Artur Viana de Lima, Exposé sommaire des théories transformistes de Lamarck,
Darwin et Heeckel, dada à estampa em Paris, “pelos começos de 18867(º). A julgar pelas indicações do Catálogo da livraria de Antero de Quental, esta obra de Viana de Lima fora-lhe oferecida com a dedicatória
ausa; fim"O).
mbém considera que sem ciência não há filosofia. Por isso, não faria sen-
do erguer umafilosofia à margem das aquisições científicas do tempo,
mormente dos princípios transformistas estabelecidos por Lamarck,
arwin e Heckel no plano do mundo vivo. Ora, justamente,o livro de Viana de Lima é uma exposição da teoria ansformista que põe em relevo o confronto das provas de várias discilinas científicas envolvidas (paleontologia, embriologia, anatomia comarada, osteologia, etc.) com os argumentos criacionistas — finalistas inda protagonizados por Agassiz(*) e por outros representantes, cada vez jais isolados, na comunidade científica internacional. Estes procuravam,
e certo modo, perpetuar o fixismo de Georges Cuvier que tinha domiado à história natural na primeira metade do século XIX, apesar da oetânea oposição transformista de Lamarck, Geoffroy de Saint-Hilaire e oethe. Por seu turno, a intenção de Viana de Limaera, precisamente, dar golpe de misericórdia no teleologismo naturalista que se esforçava por orescer em áreas do saber extra-científicas, muito em especial na cultura losófica alemã e, sobretudo, pela voz de Eduard von Hartmann.
(1) Vide: Georges Gusdorf, “Le divorce de la science et de la philosophie: du positivisme au scientisme”, Introduction aux sciences humaines. Essai critique sur leurs ori: gines et leur développement. Paris, Ed. Ophrys, 1974, pp. 343-364. (2) Vide: Fernando Catroga, “A metafísica indutiva de Antero de Quental”, Biblos, Coimbra, 61, 1985, p. 4/3 ess. (3) Antero de Quental, Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta n.º 476, p.761. (4) Antero de Quental, “Carta de Vila do Conde a Carolina Michaelis de Vasconcelos, 7 de Agosto de [1885]” Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta
n.º 465, p. 748.
(5) Joel Serrão, “Anotações e comentários”. In: Antero de Quental, Obras completas. Filosofia. Organização, Introdução e notas de Joel Serrão. Lisboa, Editorial Comunicação, 1991, p. 205.
Portanto, compreende-se que Viana de Lima, para levar a cabo o seu scopo,tinha de sair da esfera propriamente científica e entrar no território
(1) Catalogo da Livraria de Anthero de Quental. Legada á bibliotheca publica e Pontá Delgada, Lisboa, Ulmeiro, 1993, p. 142. () Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com-
tetas, Filosofia, ob. cit., p. 95. Sublinhado de Antero. () Idem,ibidem,p. 95. (4) Vide: artigo “special creation”, MacMillan dictionary of the history of science. idited by W. F. Bynum, E. J. Browne, Roy Porter. London-Basingstoke, MacMiillan
teference Books, 1983. Reimpressão de 1988, p. 395.
93
Darwin em Portugal
Parte 1 — Capítulo 1
filosófico, tanto mais que, considerava o autor, o teleologismo naturalista,
ja naquele período(!). Em segundo lugar, porque Antero não podia ubsumir a sua filosofia no plano da inteligibilidade científica nem cienista do real. Por paradoxal que possa parecer, a obra de Viana de Lima eio reforçar a firme e reflectida convicção de Antero de que filosofia,
92
cientificamente quase extinto, estava a ser alimentado pela filosofia hartmanniana sob a máscara de um monismo panteista que, por assim dizer, colocava uma nova figura — o inconsciente — no lugar do espírito absoluto de Hegel ou da vontade de Schopenhauer. Tão bizarro era este modo de sobreviver e de existir do teleologismo pré-darwiniano que, segundo Viana de Lima, praticamente não conservava traços remanescentes da sua ascendência: o criacionismo fixista e finalista. Por isso, Viana de Lima segue o seu propósito de desmascarar o teleologismo — que, em última análise, considera providencialista — com um processo metodológico que denomina “réduction à Vabsurde du cause — finalisme”(1). Não se pode dizer que o cientista
ela qual o século XIX ansiava, tinha de se erguer na fronteira entre a
metafísica e a ciência, ou seja, no lugar de convergência problemática da acionalidade científica e da racionalidade propriamentefilosófica. É que,
Viana de Lima, ao desautorizar a filosofia alemã tão cara a Antero(?2) e ao
azé-lo em nome do darwinismo, reduzindo-a a um absurdo anacrónico,
eio dar razão ao sentimento anteriano segundo o qual era imperativo dar
orpo a umafilosofia oitocentista superadora da sua própria negatividade,
al como ela aparecia plasmada na obra de Viana de Lima.
brasileiro, doutor em ciências por uma Universidade alemã, ambicionasse
o estatuto de filósofo ou pretendesse erguer uma filosofia fundada nasleis darwinianas do processo evolucionário da natureza viva, como ajuizou Antero. Se Viana de Lima se pronunciou sobre a filosofia de Éd. von Hartmann, foi com o objectivo de sublinhar a sua incompatibilidade e o seu absurdo relativamente à nova teoria científica que tinha eliminado do seu campo problemático a causalidade final e todas as categorias metafísicas deduzidas “ex analogia hominis et non pas ex analogia uni-
versi”(?).
Antero não podia ser indiferente a esta obra, por dois motivos fortes. Primeiro, porque estava decidido a construir uma filosofia(?) que não sacrificasse as novas teorias científicas e a obra de Viana de Lima abordava-as de uma forma profunda e actualizada como o próprio Antero logo reconhece na abertura(4) das suas reflexões. A este título, a sua leitura seria profícua, embora Antero estivesse, desde o período do Programa para os trabalhos da geração nova (1871-75), familiarizado com as teorias ali expostas, conforme se depreende de alguma da sua correspondên(1) Artur Viana de Lima, Exposé sommaire des théories transformistes de Lamarck, Darwin et Haeckel. Paris, Librairie Ch. Delagrave, 1885, p. 467. Sublinhado
nosso.
(2) Idem, ibidem, p. 471. Sublinhado do autor. Sobre a incompatibilidade entre à “cosmologia darwiniana” e a “cosmologia desenvolvimental”, vide Stanley N. Salthe, Development and evolution. Complexity and change in biology, Cambridge, The MTE Press, 1993, p. 248 e ss. (3) Vide: Joel Serrão, “Em busca do contexto do último escrito filosófico de Antero”, Revista de História das Ideias, Coimbra, 13, 1991, pp. 78 e 80. (4) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com: pletas. Filosofia, ob. cit., p. 93.
(1) Na “Carta a Oliveira Martins, 26 de Setembro de [1873]”, Antero escreve: “... propósito de Evolução, dir-lhe-ei que vou no meu livro no capítulo “O Cosmos e a Evolução” tendo terminado o capítulo *A Ordem” em que pus toda a minha metafísica (...). É conveniente não dar a última demão no meu capítulo, sem ver o que há de mais palpiante na ciência”. Por isso, acrescenta Antero, “.... como vejo anunciado nas capas duma ecente publicação da Bibliothêque de Philosophie Contemporaine um livro de L. Dumont, ntitulado Heeckelet la théorie de [Evolution en Allemagne, peço-lhe que veja se já saiu e m tal caso mo envie”, Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 1, carta n.º 117, p. 218. rês meses maistarde, ainda de Ponta Delgada, Antero diz a Oliveira Martins; “.... recebi agradeço o livro sobre a Evolução segundo Haeckel. Eu conhecia já tudo aquilo, afinal, or artigos das Revistas dos Dois Mundos e dos Cursos Científicos, de sorte que nada me disse de novo, a não serem miudezas científicas especiais, que pouco me interessam” (ibiem, carta n.º 122, p. 230). De facto, em 1873, é dada à estampa a referida obra de Léon Dumont, filósofo francês e especialista de estética. Vide: Patrick Tort, “Dumont, Léon 37-1876”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, (Dir. Patrick Tort). ?aris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 1299. Entretanto, Léon Dumont publicara ários artigos na Revue Scientifique de la France et de ['Étranger, a Revista dos Cursos Científicos de que fala Antero, entre os quais se destacam os seguintes: “La théorie de 'évolution en Allemagne. La classification généalogique des êtres vivants d'aprês Haeckel”, Revue Scientifique de la France et de | "Etranger, Paris, 2º sér., 2 (38) 22 Mar. 873, pp. 885-899; “La théorie de Vévolution en Allemagne. Les doctrines de Haeckel”, 2 30) 25 Jan. 1873, pp. 694-703; “La théorie de Pévolution en Allemagne. La filiation des aces himaines d'aprês Hackel”, 2 (4) 5 Abr. 1873, pp. 934-940; “Le transformisme en Angleterre. L'expression des sentiments chez "homme et les animaux, d'aprês Darwin”, E
(44).3 Maio. 1873, pp. 1033-1042. O livro de Léon Dumont, Hecckel et la théorie de evolution en Allemagne, Paris, Librairie Germer Baillitre, 1873, consta no Catalogo da
ivrária de Anthero de Quental, ob. cit., p. 141. (2) Vide: Fernando Catroga, “A ideia de evolução em Antero de Quental”, Biblos,
imbra, 56, 1980, pp. 357-388; “A metafísica indutiva de Antero de Quental”, art. cit., p. 472-507. Joaquim de Carvalho, “Antero de Quental e filosofia de Eduardo de Hartmann”. : Obra completa, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1978, vol.1, pp. 409-431.
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Darwin em Portugal
Parte I — Capítulo 1
O filosofar anteriano tinha, pois, como tarefa propedêutica estabelecer as “duas séries convergentes” (metafísica e ciência) para determinar a sua confluência, “o ponto onde se encontram”(!), isto é, o lugar próprio do exercício da autêntica especulação filosófica. O livro de Lima, de certo modo,foi o acidente de percurso que entusiasmou Antero a firmar por escrito o seu sistema, onze anos após a destruição(2) do seu Programa para os trabalhos da geração nova. Foi, sem dúvida, o motivo desencadeante da aproximação de Antero desse ponto de encontro da metafísica com a ciência, ou seja, desse lugar meta-científico e meta-metafísico que traduzia espiritualmente a condição radical de possibilidade do filosofar anteriano. Neste sentido, impõe-se perguntar: o que é que aos olhos de Antero | era pertinente reter da dinâmica científica do tempo e, em particular, da teoria científica da natureza viva ou transformismo, para figurar como pólo ou tese na construção dialética a que aspirava? Qual é essa positividade científica que terá de ser avaliada e recriada | pela razão especulativa? A resposta anteriana, fruto de uma séria e prolongada reflexão, é a seguinte: “Creio com Hackel, assim como com
histórica, etc.. Sem dúvida alguma, Antero dominava, com muita segutrança, a realidade da implantação da ideia de evolução em diversas áreas da cultura científica e das humanidades(!), no decurso do século XIX. E com: uma singular clarividência percebeu que a ideia de evolução se instalou visceralmente no quadro geral do saber oitocentista, tendo, por isso, assumido a função estruturante de inteligibilidade dos objectos de cada uma das disciplinas apontadas. A figura chave da episteme oitocentista, o evolver no tempo, conheceu diversas e substanciais variações ou diferenças, o que não escapou, de modo algum,à reflexão anteriana. Pelo contrário, essa percepção das variações da mesma ideia foi capital na decisão anteriana de eleger como objecto nuclear do seu pensamento a ideia-de evolução, justamente para lá das multimodas formas que a evolução assumia na geologia, na zoologia, na antropologia, na sociologia,
Schelling, Hegel, Hartmann, Comte e Spencer, que é no terreno da |
evolução que essa grande síntese tem de ser construída, e que, depois do século XVHI e depois de Kant, já não é possível uma filosofia que não seja essencialmente uma teoria geral do desenvolvimento, isto é, uma filosofia da evolução. Mas creio também que a organização da ideia de evolução nessa teoria geral do desenvolvimento é problema que excede muito a capacidade especial das ciências da natureza, quero dizer, a esfera teórica dessas ciências, porque excede os limites e alcance do puro espírito científico”(). A filosofia autêntica, que se impõe construir, tem de se
exercer sobre esta matéria-prima que é a teoria da evolução, ainda que a natureza positiva e científica desta teoria não seja válida para toda a fenomenalidade, nomeadamente para os fenómenos físicos. Mas, nem por isso, lembrava Antero, a sua extensão se circunscreve
às ciências da natureza. A evolução não é apenas biológica. É também,e com determinações diversas, evolução astronómica, geológica,linguística, (1) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com pletas.Filosofia , ob. cit. p. 95. (2) Vide: Joel Serrão, “Anotações e comentários”. In: Antero de Quental, Obras completas. Filosofia, ob. cit. p. 195. (3) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com pletas. Filosofia, ob. cit., p. 112. Sublinhado nosso.
eic..
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Se Antero compreendeu que o sentido último e irredutível de corpos
teóricos. tão distintos como os das disciplinas apontadas radicava no
evolver.ou no devir dos seus objectos, então impunha-se interrogar a ideia de evolução. E foi, justamente, porque Antero dominava o quadro geral do saber oitocentista que a sua aspiração filosófica não podia restringir-se a uma reflexão sobre a concepção evolutiva de qualquer domínio científico particular, fosse evolução da terra, evolução das espécies, evolução do homem, evolução da língua ou da sociedade.
Antero não buscava uma epistemologia regional. Por outro lado, não reconhecia a objectivação da universalidade filosófica (substância, causa, fim) nos sistemas de Comte ou de Spencer. E, a grande síntese de Hegel, que se impregnou nos arcanos da sua mente(2), não satisfazia o seu espí-
rito filosófico, na medida em que Antero defendia que a filosofia não
podia substituir a ciência. Conforme declara em carta a Oliveira Martins,
“Hegel, enquanto formulou metafisicamente a lei do devenir na Natureza,
ou Evolução, fez uma obra sólida e que há-de, entendo eu, ficar para sempre. Mas, em vez de parar aqui, começou a fazer ciência a priori, e a deduzir leis para esferas particulares de fenómenos, leis que só à ciência (É): CE. Idem, ibidem, p. 103. (2º) Em “Carta a Wilhelm Storck, Ponta Delgada 14 de Maio de 1887”, Antero
escreve: “... o Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações filosóficas, e
posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evolução intelectual”, Obras com-
etas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta n.º 524, p. 834. Este passo da correspondência de Antero, juntamente com outros, confirmaa ideia que se depreende da leitura da sua obra
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Parte 1 — Capítulo 1
Darwin em Portugal
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experimental cabe induzir(1). Ao lado do elevado valor filosófico atribuído ao sistema hegeliano, encontra-se o reconhecimento das limitações |
mas às outras muitas teorias que são mais ou menos do domínio comum aFilosofia moderna”(!), conforme expunha a Jaime Batalha Reis em
ao nível da mais austera radicalidade. Assim sendo, como podia Antero adaptar-se a qualquer um dos modelos filosóficos evolutivos sistematizados pelo positivismo inglês, francês ou alemão ? A teoria da evolução “entrevista”(2) por Antero e que Fernando . Catroga (re)construiu pari passu não pretendia ser mais uma filosofia para figurar ao lado de outras filosofias como as de Hackel, Schelling, Hegel, Hartmannn, Comte, Spencer — para nomearmos apenas os autores invocados por Antero no excerto acima transcrito. A ideia anteriana de evolução tinha de, hegelianamente, integrar e superar cada um dos modos de ser assumidos por ela, tanto nos sistemas filosóficos modernos como nas teorias científicas propriamente ditas. Apesar do fio condutor que a monadologia de Leibniz(?) lhe proporcionava para levar a cabo o seu projecto filosófico; apesar de ter definido três tópicos(*) fundamentais que “são por assim dizer o grude com que ligo
o seu-sistema, a ideia de evolução meta-científica e, por assim dizer, metametafísica não se deixou prender pela escrita filosófica anteriana. Os sinais que dela nos ficaram, por vezes, indicam que a ideia cien-
do mesmo sistema. Na verdade, a reflexão filosófica de Antero situava-se .
(1) Antero de Quental, “Carta dirigida a Oliveira Martins, Ponta Delgada, 26 dé Dezembro [de 1873]”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit. vol. 1, carta n.º 122, p. 231. Sublinhado de Antero. (2) O termo é do próprio Antero. Em “Carta a Wilhelm Storck, Ponta Delgada 14 de Maio de 1887”, posterior à publicação de A filosofia da natureza dos naturalistas, Antero confidencia-lhe: “Não sei se poderei realizar, como tenho desejo, a exposição
dogmática das minhas ideias filosóficas. Quisera concentrar nessa obra suprema toda 'a actividade dos anos que me restam a viver. Desconfio, porém, que não o conseguirei (...):
Morrerei, porém, com a satisfação de ter entrevisto a direcção definitiva do pensamento
europeu, o Norte para onde se inclina a divina bússola do espírito humano(...)”, Obras
completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta n.º 524, p. 839. (é) Vide: Fernando Catroga, “A ideia de evolução em Antero de Quental”, art. cit. p. 364 e ss. Na “Carta dirigida a Jaime Batalha Reis, Porto, 24 de Dezembro [de 1885], Antero de Quental, explicita : “A dita minha Filosofia não é original. É antes uma fusão (não uma amalgama) do Hegelianismo com a monadologia do Leibniz”, Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta n.º 476, p. 761. Na “Carta de Ponta Delgada a Wilhelm Storck de 14 de Maio de 1887”, reafirma, neste sentido, o seu projecto filosófico: “A monadologia de Leibniz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista”, Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta n.º 524, p. 838. Sublinhado de Antero. (4) “O que há de original no meu trabalho são apenas três coisas: 1.º — uma teoria
885: apesar, portanto, de uma ciarividência metodológica e da antevisão
cade evolução, tal como Darwin a definiu, teria de ser sacrificada, por er absolutamente incompatível com o teleologismoidealista-espiritualista
místico do génio anteriano. É possível que o conhecimento científico anteriano(?) tenha fun* ionado como um travão mental à sistematização do seu projecto, pois o oeta-filósofo estava decidido a construir uma filosofia que levasse em nha:de conta a obra da razão científica e esta não estava aberta a uma onciliação superadora. Daí que a filosofia de E. von Hartmann o tenha
ativado e tenha exercido uma poderosa influência no seu pensar, sem que
to signifique que Antero se identificasse com filosofia do neo-kantiano, autor de Wahrheit und Irrthum im Darwinismus (1875)É). O próprio Antero cuidou de se demarcar de Hartmann: “O meu sistema está numa linha paralela ao do Hartmann, distinguindo-se dele no método e numa maior dose de realismo, e parecendo-se com ele nas tendências gerais e
nas conclusões morais”(4).
Jaime Batalha Reis, Porto, 24 de Dezembro [de 1885]”. In: Obras completas. Cartas ... ob. citi;vol. 1, carta n.º 476, p. 762. o (1) Antero de Quental, “Carta dirigida a Jaime Batalha Reis, Porto, 24 de Dezembro [de 1885)”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta n.º 476, p. 762. (2) Não admira que seja “significativo o número e a qualidade de livros sobre as ciências da Natureza e de história das ciências físico-naturais existentes na sua livraria. A maiorparte foram editados pelos anos de 1875-1886”, Joaquim de Carvalho, “Evolução espiritual de Antero”. In: Obra completa, ob. cit., vol. 2, p. 689. De facto, assim é. Vide: Catalogo da Livraria de Anthero de Quental, ob. cit., sobretudo pp. 131-151. (2) Título completo: Wahrheit und Irrthum im Darwinismus. Eine kritische
Darsteliung der organischen Entwickelungstheorie (Verdade e erro no darwinismo. Uma
apresentação crítica da teoria da evolução orgânica), Berlin, C. Duncker, 1875. Indicação colhida em Antonello La Vergata, art. “Eduard von Hartmann, 1842-1906”, Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, ob. cit., vol. 2, p. 2136. Consultámos a 5º edição da tradução francesa: Le darwinisme. Ce qu'il y a de vrai et de faux dans cette théorie. Traduit de Vallemand par Georges Guéroult. Cinqguiême édition. Paris, Félix Alcan, Éditeur, 1894. À primeira edição francesa data de 1877. Antero possuía a terceira edição francesa (1880).
do conhecimento, que é o preliminar lógico do meu sistema: 2.º a análise da ideia de
Vide: Catalogo da Livraria de Anthero de Quental, ob. cit. sobretudo p. 141.
a da esfera da inteligência para a de conscência”, Antero de Quental, “Carta dirigida à
Pp. 762.
matéria (...) 3.º a análise da ideia de Absoluto, que reduzo à de Liberdade, transportando:
(2) Antero de Quental, Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta n.º 476,
98
Darwin em Portugal
Na óptica anteriana, a ideia de evolução, sendo a ideia chave da
epistéme moderna, exigia um trabalho filosófico que a objectivasse positivamente, incluíndo, mas superando, a sua definição no plano estritamente científico. O cuidado especulativo que a ideia de evolução requeria — argumentava Antero — justificava-se tanto mais quanto essa mesma ideia não nasceu, de raíz, da observação factual e do indutivismo cientí-
fico. Para tal, “bastará mostrar comoa teoria geral da evolução, hoje com
tanto vigor e brilho formulada por Hackel e seus concorrentes ou discípulos, longe de ser, como vulgarmente se imagina, uma descoberta das ciên-
cias naturais e um resultado directo da análise científica, é, pelo contrário
uma verdadeira hipótese filosófica, que, produto da elaboração especulativa de perto de três séculos, acabou por se manifestar no domínio das ciências”(!). É como se Antero dissesse que aquilo que há de significativo na ciência não é científico mas filosófico. Portanto, aquilo que o filósofo . deve procurar na substância científica é a ideia multissecular de evolução que, hegelianamente, pela força da sua necessidade interna, se objectivou nas ciências da natureza. O facto de a ideia de evolução, intrínseca e | necessariamente teleológica, se ter objectivado na teoria darwiniana em moldes anti-finalistas, não tinha de ser problema para Antero. Podiatratar: -se de uma contradição necessária, própria da dialéctica do ser e do saber, a caminho da sua inteligibilidade metafísica suprema. Masnão será que, à revelia da sua intenção dialéctica, Antero acaba por reduzir a ideia científica de evolução, ou transformismo, à ideia de progresso? Em determinado momento da sua exposição, Antero estabelece uma relação de identidade entre a evolução e o progresso: “Quem diz evolução diz progresso”(2). Ora, justamente, esta identificação apaga O resultado fulcral da revolução darwiniana e, portanto, anula a consistência original da ideia de evolução natural cultivada pelas ciências da vida. O que aos olhos de Antero devia ser uma integração-superação (Aufhebung), não será apenas uma operação especulativa que subsume o evolver, cientificamente considerado, na ideia metafísica de pro-
gresso?
(1) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras cont pletas. Filosofia , ob. cit., pp. 110-111. Sublinhado de Antero.
(2) Idem, ibidem, p. 106.
CAPÍTULO 2 A radicalidade do perguntar anteriano: distinção entre a evolução dosfilósofos, o evolver darwiniano e a Weltanschauung cientista
“une vraie philosophie, bien que consciente de se distinguerdela science, se lie en même temps sansréserve à la science. Jamais elle ne se permet d'ignorer une réalité connaissable. Ce qui est réel et connaissable de maniêre cogente, elle veut le savoir sans limites et le faire agir sur le développement de sa conscience d'être”(!)
Antero não só dominava a teoria transformista como explicitou a ferença radical que distinguia este evolver científico do progresso metafísico: “... a evolução,isto é, o movimento como hierarquia ou desenvolvimento, implicando a ideia de um tipo, que as formas, evolvendo,tendem a realizar, implica por isso mesmo uma finalidade(...). Quem diz
evolução diz progresso. Ora, progresso que não tende para cousa alguma,
que não tem um tipo e um fim, não se compreende. Se não há tipo, não há “medida ou termo de comparação na série, não há por conseguinte hierar“quia: há variedade de formas paralelas e equivalentes, mas não desenvolvimento. No meio dessa multidão de formas inexpressivas, tudo será gualmente perfeito ou imperfeito: haverá ainda transformismo, mas não haverá evolução progressiva”(2). É exactamente isto. A ideia natural de evolução ou descendência com modificações não comporta a ideia de “tipo” paradigmático, em função do qual as formas concretas se dispõem hierarquicamente. Na variabilidade indeterminada do mundo vivo, a
(1) Karl Jaspers, “Essence et valeur de la science”, Revue Philosophique de la France.etde 1 "Étranger, Paris, 127, Jan.-Jun. 1939, p. 12. (2) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com-
pletas. Filosofia, ob. cit., pp. 106-107. Sublinhado nosso.
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Darwin em Portugal
Parte 1 -— Capítulo 2
relação entre os diversos seres que se torna significativa, na perspectiva darwiniana, é a relação de parentesco, de ascendência e de descendência, sendoeste o critério básico que Darwin estabelece para classificar os seres
ue Hackel não dominavaa filosofia por dentro e portanto não detinha os meios especulativos necessários para caminhar até âquele ponto de inte-
vivos. À taxonomia evolucionista, isto é, filogenética, esboçada por vários
discípulos de Darwin e, em especial, por Hackel que, na sua Generelle Morphologie der Organismen (18661), construiu árvores genealógicas hipotéticas para representar as relações taxonómicas existentes entre os grupos orgânicos, não tem um sentido progressivo, obedecendo estruturalmente ao princípio da filiação dos grupos entre si. Nada disto era estranho a Antero, nem o seu trabalho filosófico acusa
em qualquer momento alguma hesitação entre aceitar ou recusar a teoria evolucionista do mundo vivo, em virtude de esta excluir a ideia de finali-
dade da lógica da vida. Portanto, o fundamental a reter é que, também no excerto acima transcrito, Antero apresenta a sua ideia capital, aquela que continuamente é retomada ao longo de A filosofia da natureza dos naturalistas, a saber::a sua filosofia não será uma filosofia monoparental, tendo como progenitor único a ciência, apesar do valor cultural e civilizacional que o poeta-filósofo reconhece ao sabercientífico. Umafilosofia que fosse produzida pelo espírito científico, sem o concurso do espírito filosófico com toda a sua
consistência histórica, seria, inevitavelmente, uma “pseudo-filosofia”(2)
como, entre outras, era o caso do materialismo monista que se vinha desenhando na obra de Ernst Hasckel, em particular na História natural da
criação (Natiirliche Schópfungs-Geschichte, 1868) e na Antropogenia oú história da evolução do Homem, embriogenia e filogenia (Anthropogenie oder Entwickelungsgeschichte des Menschen. Keimes-und Stammes: -Geschichte, 18742). Antero não duvidava que o zoólogo alemão pretendia impor na cultura ocidental uma “pseudo-filosofia”, uma Weltanschauung totalitária que havia de se arvorar em única e legítima herdeira e fiel intérprete da revolução darwiniana(?). Mas, via nitidamente
101
igibilidade em que a ciência e a metafísica se abraçam.
Para Antero, este enlace era fulcral, incontornável e decisivo. Sem le, não era possível criar uma filosofia verdadeira para um mundo que dolatrava a racionalidade científica. Além de que, o poder do pensamento ilosófico sobre a ciência, que se objectivou na assunção da ideia filoófica de evolução pelas ciências da natureza, tinha uma substância istórica que seria vão pretender anular. Apesar da vontade que Antero “manifesta de incorporar a ciência, e em especial a ideia científica de evolução, no seu projecto filosófico, apesar do seu sólido conhecimento das diferenças que distinguem a ciência da filosofia, temos de reconhecer
que, afinal, aquilo que Antero encontrava de valor nas ciências naturais era da'autoria do espírito filosófico.
Com efeito, analisando a obra de Hackel, o representante do darwinismo mais difundido em todo o mundo, Antero separa duas noções fundamentais: monismo e evolução. No pensar anteriano, esta distinção equivalia a separar o trigo (evolução) do joio (monismo) para salvar a semente científica — teoria da evolução — dos efeitos nefastos da “pseudo-filosofia” — o materialismo monista — do zoólogo alemão. O sistema ontológico materialista-monista de Hackel e seus discípulos é a negação da filosofia verdadeira porque, na óptica anteriana, comete o erro capital de não salvaguardar a espontaneidade(!) da matéria, que é a condição radical e causa primeira de si mesma, sendo a sua imanente capacidade de ser-devir. Traduzindo a consistência da substância-mater num fisicalismo
mecanicista (átomo e força), o monismo omite o fundamental. Pois, como
expõe Antero, “se o movimento A se reduz a uma simples transformação do movimento B que o condiciona, e não é por isso espontâneo, o movimento B está para com o movimento €, que por seu turno o condiciona, exactamente na mesma relação, assim como o movimento € para com o
(1) Vide: “classification”, MacMillan dictionary of the history of science, ob. cit., pp. 68-71. (2) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com pletas. Filosofia , ob. cit. , p. 96. (3) Vide: Georg Uschmann, “Haeckel, Ernst Heinrich Philipp August”. In: Dictionary of scientific biography. New York, Charles Scribner's Sons, 1981, vol. 6, pp. 6-11. (4) Sobretudoa partir do início da década de noventa do séc. XIX, nomeadamente na obra Der Monismus ais Band Zwischen Religion und Wissenschaft (1892). Vide: Patrick Tort, “Haeckel, Ernst Heinrich 1834-1919”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 2 (Dir. Patrick Tort), ob. cit., p. 21l8 ess.
movimento D, o movimento D para com o movimento E, e assim indefinidamente — de sorte que em parte alguma se encontra movimento espontâneo”(2). Este reducionismo é inaceitável para Antero que persiste (1) Conceito trabalhado por Antero já na década de sessenta, inspirando-se basica-
mente em Vico, Hegel, Michelet, Renan e Proudhon. Vide: Antero de Quental, “Espontaneidade”, O Instituto, Coimbra, 13, 1866, pp. 185-188. (2) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com-
Bletas. Filosofia, ob. cit. p. 100. Sublinhado nosso.
Darwin em Portugal
102
na defesa da autonomia da reflexão filosófica, da sua legitimidade e necessidade. Pelo contrário, o materialismo mecanicista de Ernst Hackel, de Louis Bichner e outros era assumidamente teometafisicófobo. O seu “modo de ver monístico ou unitário”(1) condenava à morte todasas categorias do pensamento que não fossem radicalmente físico-químicas. Esse seria o destino dos postulados da força vital (vis vitalis ), da espontanei-
Parte I — Capítulo 2
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Ora, na óptica anteriana, a ciência não tinha nem teria poder episteológico para substituir a Filosofia, o pensamento daraíz doser, operando
om três conceitos nucleares: substância, causa, fim. “Se o conjunto das iências não pode, como todos os verdadeiros pensadores reconhecem, uprir a filosofia ou substituir-se a ela, é justamente porque o conjunto das
deias gerais das ciências não inclui em si a totalidade dos elementos
acionais da compreensão do universo, mas apenas o conjunto desses ele-
dade, da causa final (causa finalis) e do princípio de um Deus criador. Em vez de os considerar como objectos (distintos) de reflexão filosófica, o monismo confunde-os sob a denominação comum de “dualismo teleo-
“mentos no ponto de vista da fenomenalidade. Ora o monismo, atribuindo
incognoscível dos modernos “agnósticos”, não é outra coisa senão O
alvez consiga mostrar ainda mais claramente, fazendo crítica da ideia de
lógico”(2) e em todos eles via “a mesma aberração do antropomorfismo”(). Assim, como escrevia Biichner, “o famoso *Unknowable”, O
antigo “Bom Deus”, querido dos teólogos, que já se viu aparecer na história da filosofia sob tantos disfarces diversos. Quer lhe chamem “Vontade” (Wille), “Inconsciente” (Unbewusste), “Coisa em si” (Ding an sich), “Alma universal” (Allseele), Razão do Mundo” ou “Incognoscível”, isso não faz diferença”(*). Nesta óptica, a filosofia dualista (seja espiritualista, idealista ou outra) seria eliminada pela filosofia monista que se
identificava com a pura religião da ciência. A verdade científica é toda à verdade como a natureza é tudo. Abusivamente, creditava-se o materia-
lismo monista pela invocação de Goethe: “Natur ist weder kern noch Schaale,
Allesist sie mit Einemmale”(*).
o ponto de vista das ciências físicas um carácter absoluto, arvorando as ideias gerais dum grupo de ciências em ideias últimas e irredutíveis, exorbitou-da ciência sem ao mesmo tempo fazer acto de filosofia. E o que evolução segundo os monistas”(1). O isolamento da ideia de evolução foi ma operação decisiva pois, Antero, ao mesmo tempo que respeitava o seu compromisso especulativo de valorara ciência, podia regressar às águas do vasto oceano metafísico e talvez encaminhar para lá o crescente caudal das positividades fenoménicas construídas pelo espírito científico do tempo, como era seu máximo desejo filosófico. É bem de ver que, para ser levado a cabo por um só protagonista, se tratava de um empreendimento titânico. E não esqueçamos que, no caso de Antero, a razão filosófica sobrevivia ameaçada pela força incomensurável do poeta(2), cuja voz Antero extin-
guiu ditatorialmente. Apesar disso, o documento epistolar em que nos é
revelada essa decisão irreversível, designadamente a carta de Vila do Conde dirigida a Jaime de Magalhães Lima a 13 de Outubro de 1886 é,
bem, mais um monumento poético de rara beleza e de extraordinária (1) Emst Hackel, História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais. Tradução de Eduardo Pimenta, Porto, Lello & Irmão, 1961, p. 15, sublinhado do
Autor. Título original da obra: Natiirliche Schópfungsgeschichte, Berlin, 1868. Dados
colhidos em Patrick Tort, “Heckel, Ernst Heirich 1834-1914”, art. cit., p. 2115. (2) Vide: Ernst Heckel, História da criação dos seres organizados segundo as leis
naturais, ob. cit., pp. 15-17.
() Ludwig Biichner, Força e matéria ou princípios da ordem natural ao alcance de todos. Com uma notícia biobibliográfica à décima sétima edição alemã por Vítor Dave.
Versão de Jaime Filinto. Porto, Lello & Irmão-Editores, 1958, p. 428. Título original desta obra do médico e filósofo materialista alemão, L. Bichner, Kraft und Stoff, 1855. Dados colhidos no artigo de Britta Rupp-Eisenreich e de Patrick Tort, “Biichner, Ludwig 1824-1899”. In: Dictionnaire du darwinisme et de V' évolution, vol. 1, ob. cit., p. 450. (*) Ludwig Biichner, Força e matéria ou princípios da ordem natural ao alcance
de todos, ob. cit., p. 428.
(5) “A natureza não é nem casca nem caroço, é tudo de umaassentada”; citado por Ludwig Biichner, Força e matéria ou princípios da ordem natural ao alcance de todos. ob. cit., p. 65. Também Hackel se socorre de Goethe. Veja-se, sobretudo, o texto de Goethe intitulado Natureza que abre a Historia da criação de Haxckel, ob. cit., pp. V-VL
comunhão de sentidos imanentes ao “conflito, guerra civil, luta interior” que Antero travou consigo próprio(?). Esta indizível experiência anteriana era, em si e por si mesma,a refutação viva, a pura negação do monismo darwinista à Hackel, a prova inconcussa da impotência do materialismo cientista para ver e traduzir o que há para além da mecânica causa-efeito.
(') Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras completas: Filosofia , ob. cit. p. 101. () Vide: Francisco Adolfo Coelho, “A constituição poetica em Antero de Quental”. In: hn memoriam -Anthero de Quental, Porto, Mathieu Lugan, Editor, 1896, pp-37-51. () Antero de Quental, Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 498, p. 791: Vide, também: “Carta de Vila do Conde a Carolina Michaelis de Vasconcelos, datada de 7 de Agosto de [1885]”, ibidem , carta nº 465, pp. 747- 749; e, evidentemente, à “Carta de Ponta Delgada a Wilhelm Storck de 14 de Maio de 1887”, ibidem, carta nº:524, pp. 833-840.
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Darwin em Portugal
Parte [ — Capítulo 2
Vejamos, então, o trabalhoda razão filosófica anteriana, sabendo que esta se abriga na certeza interior da sua espontaneidade, mas consciente dos condicionalismos diversos, embora extrínsecos, que a limitam. Recorde-se que, desde finais da década de sessenta(!), Antero vinha.
assumindo uma posiçãocrítica face a todas as filosofias fisicalistas, isto é, cientistas, como as de Comte, Spencer e Hackel, que começavam a
exercer uma espécie de fascínio mental sobre a maior parte dos membros | da elite vanguardista(?) do seu tempo. O que Antero questionava nos posi-
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Acesta luz, torna-se muito significativo que, mais tarde, em 1894, o entista Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro(!) venha publicamente conhecer o valor do pensamento anteriano quanto à não-vocação filosóa daciência. Sem propriamente rebater ou corroborar a identificação teriana da filosofia com a metafísica, aceita que o conhecimento cientío não é o único nem talvez o último conhecimento possível do real. à claro que Eugénio Canto e Castro se propunha avisar o leitor da necesdade de distinguir duas realidades diferentes: a interpretação anteriana da
tivismos era, justamente, a falta de um horizonte metafísico pelo qual
oria evolucionista do mundo vivo e essa mesma teoria. O evolucionismo iológico, ou transformismo, não era uma doutrina hipotética mas o mais
reencontra em 1886 plasmadas na obra de Viana de Lima, hackeliano
rações que enchiam os anais da história natural e que com Darwin cederam à plena cientificidade. Como vimos, Antero também não ques-
pudessem abrir-se à espontaneidade e ultrapassar os limites cognitivos é onto-éticos impostos pela sua seiva científica. As mesmas limitações
confesso, de modo que a obra do cientista brasileiro não inaugurava um diálogo criador entre a filosofia e a ciência, nem, portanto, dava resposta às legítimas preocupaçõesfilosóficas de Antero. Facea estas considerações, não há dúvida que Afilosofia da natureza dos naturalistas foi um trabalho fundamental para abrir o problema dos . limites epistemológicos da ciência, numa época dominada por uma razão científica com tendências totalitárias e com pretensões a auto-representar-se e a impor-se, tanto no quadro geral do saber oitocentista, como no imaginário social, como a voz exclusiva(?) da verdade.
(1) Fernando Catroga, “A metafísica indutiva de Antero de Quental”, art cit, p.álless. (2) Vide: Amadeu Carvalho Homem, “Antero de Quental e Teófilo Braga, um exer: cício comparativo”, Insvlana, Ponta Delgada, 47, 1991, pp. 129-144. Do mesmo autor, À | ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, Coimbra, Livraria Minerva
1989, pp. 91-219. De Fernando Catroga, “Os inícios do positivismo em Portugal: O seu
significado político-social”. Revista de História das Ideias, Coimbra,
1, 197%,
pp. 287-395; “Os caminhos polémicos da geração nova”. In: História de Portugál. Direcção de José Mattoso. Vol. 5 — O liberalismo (1807-1890). [Lisboa], Círculo de Leitores, [1993], pp. 569-582; A militância laica e a descristianização da morte em Portugal 1865-1911. Coimbra, Ed. do Autor, 1988, vol. 1, pp. 87-279. (3) Neste sentido, atente-se na seguinte declaração de Hackel: “ le monisme;la théorie universelle de Vévolution, ou la théorie moniste de la progenêse, est la seule .&t unique théorie scientifique qui présente une explication rationnelle de Vunivers et satisfasse notre besoin rationnel de causalité, en tant qu'elle rattache par un enchainement de causes mécaniques tous les phénomeênesde la nature commeles parties d'un grand proces: sus évolutif unique”, Les preuves du transformisme. Réponse a Virchow. Traduit de Valle mand et précédé d'un préface par Jules Soury. Paris, Librairie Germer Bailliêre et €., 1879, pp. 18-19. Sublinhado do autor. Note-se que também Éd. Hartmann denunciou a pobreza filosófica do monismo hackeliano. Vide: Mario di Gregorio, “Entre Méphis-
ólido título de glória que resultava de todas as investigações e obser-
jonava o estatuto científico do transformismo. Mas, porque a crítica antejana ão monismo haeckeliano era demolidora, Canto e Castro tinha de
ublinhar a positividade do transformismo. E tinha de acrescentar que a evolução darwiniana colocou em causa todo o metafisicismo filosófico, elo qte não era surpreendente que vozes de cientistas, como a de Haeckel,
ivessem a pretensão de suprimir a filosofia dos filósofos e de esterilizar a adicalidade do seu perguntar, substituindo-a por uma Weltanschauung sultante da coordenação e generalização das leis científicas. Afinal, já em 1886, Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro, comarando as investigações e os resultados alcançados por diversos membros a comunidade científica internacional, elege Hackel como sendo aquele “que, depois de Darwin, viu mais longe em questões capitais, para o desenvolvimento científico, como a questão da classificação natural dos seres “organizados e o problema da posição da espécie humana no quadro taxo“Nhómico natural. Neste sentido, o autor firma a sua posição, escrevendo: “Só da combinação da estrutura dum animal com a sua embriologia e com sua história nos tempos geológicos se podem inferir elementos seguros “para a determinação do seu lugar na natureza. Tudo quanto se afaste deste Princípio não merece, pois, o nome de classificação natural. A árvore encalógica do reino animal, traçada por este processo, é não só a única “dasclassificações aceitáveis como o meio mais adequado para peremptotophéles et Luter: Ernst Hackel et la réforme de Punivers”. In: Darwinisme et société. “Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, p. 267. . (!): Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro, “Explicação previa”. In: Antero de “Quental, A philosophia da natureza dos naturalistas, Ponta Delgada, Typographia Editora O Campeão Popular, 1894, pp. I-XHH.
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Parte 1 — Capítulo 2
Darwin em Portugal
riamente se perceberem as relações de todas as ordensentre os animais, Efectivamente, que relações mais naturais que as de consanguinidade? Este enorme progresso introduzido por Hackel na Taxonomia é sem dúvida a mais brilhante das aplicações da teoria da geração. Admitida à doutrina da selecção natural e banida, conseguintemente, a noção de espé-
cie, como tipo absoluto e imutável, todo o sistema de classificação devia .
naturalmente reduzir-se a uma mera genealogia das diferentes formas orgânicas”(!), incluindo a espécie humana. Seguindo de perto os trabalhos de Darwin e de Hackel, Canto e Castro sublinha a natureza zoológica do homem, lembrando observações e experiências significativas nesta matéria das quais se induziu queas faculdades intelectuais, a religiosidade e a moralidade não eram traçosdistintivos do homem. Para o darwinismo, estas características nem eram exclusivas do ser humano nem, por outro lado, eram observáveis em todos os homens, não sendo, por isso, sequer, atributos universais da espécie humana(?). Assim, Canto e Castro nega a . existência de um reino humano apartado do mundo animal. Afirma 0. parentesco (o que é diferente de identidade) verificado entre o homem e q animal, em todos os planos, incluíndo o intelectual, o moral e o religioso, tal como outros naturalistas coevos europeus e americanos, na esteira de duas obras fundamentais de Darwin: The descent of man, and selection in | relation to sex (1871) e The expression of the emotions in man and animals (1872). Ao perfilhar o darwinismo haxckeliano, Canto e Castro é levado à considerar o parentesco físico e mental entre o homem e o animal(?), como (!) Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro, “Do lugar do homem na natureza” O Instituto, Coimbra, 33 (11) Maio 1886,p. 585. Não admira que Canto e Castro considere que Hackel é o “ novo Linneu dos modernos tempos”, ibidem. (2) Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro, “Do lugar do homem na natureza”, art. cit., pp. 86-96.
107
sendo.o princípio máximo de inteligibilidade do ser humano, pelo que não e exime de acrescentar: “De nada, por certo, valerão amanhã as fúteis
reocupações dos moralistas ou as invectivas dos filósofos para infirmar
ste corolário, tão rigorosamente deduzido das omnímodas afirmativas da
mbriologia, da Paleontologia e da Anatomia”(!).
Perante esta profissão de fé zoologista de Canto e Castro, comreende-se que na sua “explicação prévia” de A filosofia da natureza dos aturalistas, teria de afirmar a legitimidade do transformismo e sublinhar
que o seu valor cognitivo era reconhecido mesmo pela especulação
etafísica (no sentido mais nobre da expressão), como a de Antero. Não há dúvida que Antero respeitava o trabalho científico e não questionava as
leis formuladas pelas diversas disciplinas científicas do seu tempo. Era,
sobretudo, este tópico que Canto e Castro fazia questão de realçar. Uma
vez que,para o cientista, o fundamental saía ileso dacrítica anteriana,isto é, posto que o transformismo não era problematizado, Canto e Castro,
rende-se perante a majestade ideativa do ensaio anteriano(?). E, quanto ao
problemafilosófico de Antero, a saber, o problema da conjugação dialécica da evolução darwiniana com a evolução metafísica de inspiração
hegeliana, Canto e Castro, efectivamente, não se pronuncia. O silêncio do
cientista a respeito desta problemática era, por certo, a resposta que Antero
gostaria de ter ouvido se a esperança não o tivesse abandonado,deixando-o livre para a morte que, entretanto, Antero chamara a st. Ou, talvez, a espe-
nça o tenha sempre acompanhado, como nos diz A. Carvalho Homem: Antero regressou à sua húmida Ilha, com o fardo das angústias da sua rturada alma, para nela morrer, escolhendo talvez para seu epitáfio o dístico de um lugar onde se destacava a palavra ESPERANÇA.A ter sido ssim, quase poderia dizer-se que a dúvida metafísica almejava prosseguir, ost-mortem, a sua inacabada e inquieta indagação”(?). É bem possível. ntero não considerou vã(*) a sua busca da verdade e a sua morte foi
(3) Este parentesco é tratado por Hackel em moldes tipicamente etnocêntricos
e racistas pois, embora postule que “as faculdades intelectuais dos homens são pura € simplesmente a expansão gradual das dos mamíferos superiores”, adianta que é cien ficamente legítimo traçar uma fronteira nesta comunidade de parentesco. Essa linha divisória não separa o animal do humano mas divide a humanidade em raças humanas superiores e raças humanas inferiores, ficando estas reunidas aos animais. E, algumas dessas raças humanas ditas inferiores são consideradas relativamente aos animais, espé
cialmente aos animais domésticos, como sendo menos desenvolvidas intelectual, moral é
religiosamente. Vide: Ernst Hackel, História da criação dos seres organizados segundo.
as leis naturais, ob. cit., p. 560 e ss. A passagem citada encontra-se na p. 562. Vide, também, Artur Viana de Lima, L' Homme selon le transformisme, Paris, Félix Alcan, 1888, pp. 121-205. Antero conhecia esta obra. Vide: Catalogo da Livraria de Anthero de Quental, ob. cit., pp. 141-142.
(1) Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro, “Do lugar do homem na natureza”,
art. cit.; p:29. Sublinhado nosso.
: (2) Neste sentido, Eugénio Vaz Pacheco do Canto e Castro escreve: “... não se sabe tual mais admirar, se a beleza incomparável de forma,se a genial pujança e superioridade O pensamento que anima aquela sólida construção especulativa, comunicandohe a máxima potência de sugestão e de interesse”, “Explicação previa”. In: Antero de Juental; A philosophia da natureza dos naturalistas, Ponta Delgada, Typographia Editora o Campeão Popular, 1894, p.XI. (3): Amadeu Carvalho Homem, “Antero de Quental e Teófilo Braga, um exercício omparativo”, art. cit., p. 144.
(*) Antero de Quental, “Carta de Vila do Conde a Carolina Michaelis de
Darwin em Portugal
108
“o acto lógico da mais intensiva vontade”(!), isto é, foi um acto filosófico, a assunção plena da “dramaticidade estóica do intelectual ético “(. É imperativo acrescentar que o suicídio de Antero foi um acto de liberdade) e a sua obra poética, filosófica e social uma criação genial. A morte de Antero não foi o culminar dum processo patológico. A sua obra não é a exteriorização de um conjunto de sintomas psicopáticos; não é o espelho da evolução duma doença mental hereditária. Esta é a ilação fundamental que se retira dos argumentos médicos de Augusto Rocha(4), Jaime Cortesão(>) e A.A. Mendes Correia(é) expendidos contra a infeliz homenagem de Sousa Martins a Antero de Quental, estampada no In Memoriam(?). Augusto Rocha num dos seusbrilhantes comentários, põe a
Parte TI — Capítulo 2
109
ú o absurdo da nosografia de Sousa Martins: Antero “amava dedicada-
mente os seus amigos? Pantófobo. Amava idealmente os olhos negros da
oura? Pantófobo. Amava a sua terra natal (...); Amava o operário faminto explorado e por ele sacrifica a fortuna e saúde? Pantófobo. Amava a nfância (...). Ama a terra pátria, reforma a sualiteratura; (...). Ama as transcendentes lucubrações da cerebração; (...) repassa pelo entendimento pujante as leis da metafísica? Pantófobo”( 1). Nós entendemos que
drama anteriano é perfeitamente compreensível fora dos quadros psicoatológicos. É essa a maior lição que extraímos dosestudos anterianos de emando Catroga(?).
Vasconcelos, 7 de Agosto de [1885]”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit. vol. 2, carta
nº 465, p. 749.
(1) Manuel Laranjeira, “Carta a Manuel Luís de Almeida, Espinho 10 de Agosto de 1903”, Obras, ob. cit. vol. 1, p. 337. Vide, também, Idem, ibidem, “Carta a Miguel de Unamuno, Espinho 28 de Outubro de 1908”, pp. 466-468. (2) Fernando Catroga, “Ética e Sociocracia — O exemplo de Herculano na geração de 70”, Studium Generale/Estudos Contemporâneos, Porto,4, 1982, p. 67. Sublinhado do Autor. (3) Antero não foi uma vítima exemplar do cientismo como defendeu D. Manuel Gonçalves Cerejeira in À Igreja e o pensamento contemporâneo. Quarta edição actualizada e ampliada com notas inéditas. Coimbra, Coimbra Editora, 1944. Vide, sobretudo
“as conclusões Aomicidas do cientismo” (sublinhado do Autor), p. 215 e ss.; pp. 224-225.
(4) Vide: Augusto Rocha, “Anthero de Quental — Perfil psychico”, Coimbrá
Médica, Coimbra, 21, Jul. 1900, pp. 321-326; 22, Ago. 1900, pp. 337-342; 23, Ago. 1900, pp. 353-358; 24, Ago. 1900,pp. 369-375.
(5) Vide: Jaime Cortesão, 4 arte e a medecina. Antero de Quental e Sousa Martinz, Coimbra, Tipografia França Amado, 1910. O suicídio de Antero foi uma decisão livre, um acto moral, “um alto dever e a maneira única de ser compatível com umavida, toda'de
nobre actividade em vista dum Ideal a realizar”, ibidem, p. 160.
(9) Vide: A.A. Mendes Correia, O genio e o talento na pathologia (Esboçocritico>;
Porto, Imprensa Portugueza, 1911.
(7) Vide: Sousa Martins, “Nosographia de Anthero”, art. cit., pp. 219-314; Segundo Sousa Martins, o nosso poeta-filósofo era um “degenerado-hereditário” (p. 240. Sublinhado do Autor), “nevropata de raiz” (p. 240. Sublinhado do Autor) com “5 séculos de... profundidade” (p. 245), “histero-neurasténico” (p. 270) com “ginofobia” (p. 264), “antropofobia” (p. 264) e outras fobias que fizeram cair o “degenerado-nato” numa “pantofobia” (p. 269). E “desta fobia universal se derivaram, como troncos da mesma árvore, o pessimismo do poeta, o psiquismo do filósofo e o suicídio do desvairado”(p. 269: Sublinhado do Autor). Acresce ainda a “lesão da vontade” (p. 270. Sublinhado do Autor),
etc., etc., a “psicopatia da dúvida” (p. 284) reflectida na obra poéticae filosófica e a “Jou-.
cura moral” (p. 300) biofóbica determinante do suicídio. Do lado de Sousa Martins
estavam, entre outros, o médico José de Lacerda com os trabalhos Os neurasthenicos:
“sboço d'um estudo medico e philosophico. Prefaciado pelo Professor Sousa Martins. boa, M. Gomes, Livreiro-Editor, 1895; Esboços de pathologia social e ideas sobre dagogia geral, Lisboa, Livraria de José A. Rodrigues, 1901, sobretudo p. 62 e ss. O méo-professor Bettencourt Raposo também secundou a ultrajante leitura de Sousa Martins no Parecer apresentado ao Conselho da Escola Médica de Lisboa para julgamento da tese Jaime Cortesão. Vide: Pedro António Bettencourt Raposo, “A arte e a medicina”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. II, 14 (3) 1 Jan. 1911, pp. 18-21, 14 (4) 22 Jan. 11, pp. 28-30. Contra Jaime Cortesão, Bettencourt Raposo argumentava que a “luta pela rte” é alheia à consciência e à vontade e concluía que “achar mau o viver, aspirar à rte, matar-se, constituem portanto aberrações”(p. 29). (1) Augusto Rocha, “Anthero de Quental — Perfil psychico”, art. cit., pp. 3712. Sublinhado do Autor. E, Augusto Rocha acrescenta: contra “essa teoria mesquinha etrógrada [a teoria da degenerescência] que os impele [os homens superiores] raivosante para a loucura”(p. 375) é preciso dizer firmemente que “Antero não foi um degen-
do, não: Foi um espírito sem mancha e um poeta glorioso, inimitável! !!” (ibidem, p.
5. Sublinhado do Autor). Fora da classe médica é de sublinhar a refutação da suposta generescência atávica, física e psicológica (escandinavismo) do poeta, feita por Adolfo elho, “O supposto scandinavismo de Anthero de Quental (Para o estudo da herediiedade ethnica)”, Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes, Porto, 5, 1898, pp. 57-121.
(2) Vide, especialmente, Fernando Catroga, “Ética e Sociocracia — O exemplo de ulano na geração de 70”, art. cit., pp. 9-68.
CAPÍTULO 3 A luta filosofal de Antero pela eticização da lógica natural da vida “à la fameuse dialectique hasard et nécessité
il manque un terme. Ce terme, c'est nous-mêmes prenant en main notre propre destin”(!)
Das certezas anterianas já sabemos que, no plano programático, o
nosso poeta-filósofo atribuía à ciência e à metafísica a mesma consistên-
“cia, o mesmo valor, o mesmo poder fundadorda filosofia por vir. Mas, isto “não quer dizer que uma sem a outra pudesse tornar viável o nascimento da “verdadeira filosofia. Por isso, a filosofia da natureza dos naturalistas, “como de Hackel, era uma falsa filosofia. Na verdade, não se atinge o ful-
ro da “metafísica indutiva”(2) de Antero a não ser através duma equidade “de tratamento dos dois polos sobre os quais assenta a especulação filosóa anteriana: a ciência e a metafísica. Como bem captou Fernando “Catroga, entre estes dois polos, Antero visava estabelecer “uma relação de convergência (e não de oposição ou de subordinação) e a via demonstra“tiva estaria em partir-se dos resultados da primeira (dialéctica ascendente) para se chegar à intuição originária”(?). A consecução deste projecto ilosófico não podia sacrificar nenhum dos dois polos envolvidos, isto é, não podia subordinara ciência à metafísica e vice-versa, nem podia tratáas como se fossem saberes contrários, opostos e antagónicos, no sentido e inconciliáveis. Aparentemente, não era um ideal filosófico inacessível. (1): Albert Jacquard, “Hasard et génétique dezs populations”. In: Le hasard aujour“hui, Paris, Éditions du Seuil, 1991, p. 151.
(2) -A expressão é de Fernando Catroga, designadamente no estudo “A metafísica indutiva de Antero de Quental”, art. cit., pp. 472-507. . (3). Fernando Catroga , “A ideia de evolução em Antero de Quental”, ari. cit.,
Pp. 360-361.
Darwin em Portugal
112
Mas, compreender-se-ão melhor as dificuldades que um tal
empreendimento teria de vencer, se tivermos presente que, a filosofia cien-
tista da natureza, designadamente o materialismo monista,rejeitava do seu
Parte I — Capítulo 3
113
filosófico repousava num fundo de sentido essencialmente ético. Assim, O reconhecimento e a igual valoração de todas as formas assumidas pela ideia de evolução era algo de inquestionável para Antero. E, precisamente
Antero, a metafísica, nomeadamente o espiritualismo de Cousin,
por isso é que todo o ser — todo o saber encontrava a sua plenitude sintética no Bem enquanto suprema realidade e máximo ideato.
winiana vinha abrindo à filosofia, o que causava alguma estranheza a
tas é a do estatuto ontológico, epistemológico e ético, tanto do conheci-
campo as noções capitais da metafísica tradicional. Por sua vez, segundo
prosseguia o seu caminho à margem dos problemas que a revolução dar-
Antero: “o que é uma filosofia que se concentra toda no estudo do homem
moral e numa ontologia de mitos e abstracções realizadas, Deus, a alma, 6
finito, o infinito? Dir-se-ia que para tais filósofos não existiam corpos, nem natureza, nem leis naturais”(!). Quer isto dizer que o campofilosófico em curso na época apresentava uma desorientação de fundo relativamente ao problemacrucial que devia ser objecto de reflexão filosófica(?). Com efeito, aos olhos de Antero o que era necessário problematizar e sistematizar era a possibilidade de um diálogo entre a ideia culminante da história da filosofia — a ideia de evolução — e a ideia científica mais fecunda da época — a ideia de evolução. Ora, Antero não queria, apenas, construir umafilosofia conciliadora da dimensão filosófica e da dimensão científica da evolução. Em parte, por causa da sua formação hegeliana, Antero reservava o estatuto de verdadeira filosofia para aquela que objectivasse a relação entre a filosofia e a ciência para lá do nível da conciliação, isto é, no plano da convergência superadora dos limites de ambas as partes, através da sua abertura ao Ser supremo, identificado com a ideia de
Bem(?). Chegados a este ponto, torna-se evidente, para nós, que a preocupação anteriana de integrar a teoria científica da vida no seu projecto (1) Vide Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX”. In: Obras completas. Filosofia, ob. cit., p. 138. A primeira publicação deste trabalho data de 1890 e saíu na Revista de Portugal, Porto, 2, 1890, pp. 5-20; 149-171;
281-306. Na grafia da época: “Tendencias geraes da philosophia na segunda metade do seculo XIX”.
(2) Apesar desta avaliação anteriana deve notar-se que as filosofias da época, tanto
espiritualistas como positivistas e materialistas não foram, de modo algum,indiferentes à revolução darwiniana. Para o caso francês, vide: Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIXº siêcle, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1974, pp. 407-422.
Esta preocupação não surpreende pois, como explana a autora, “une double tradition positiviste et néo-kantienne inscrit la philosophie dans une liaison constitutive avec les problêmes scientifiques contemporains (...) Si diversifiée qu'elle soit dans le criticisme d'un Renouvier ou d'un Cournot, dans la fidélité comtienne d'un Laffite ou Phétérodoxie d'un Littré (...)”. Idem, ibidem, p. 407. (2) Vide: Fernando Catroga, “A metafísica indutiva de Antero de Quental”, art. cit.,
sobretudo pp. 506-507.
No fundo, a grande questão de A filosofia da natureza dos naturalis-
mento científico, como do conhecimento filosófico. E nos seguintes
termos que esta questão ressalta do texto anteriano: “O conhecimento científico constitui apenas a região média do conhecimento, entre o senso comum, dum lado, e o conhecimento metafísico, do outro. É pois a razão
que tem, em última instância, de se pronunciar sobre o valor e o lugar , na
compreensão total do universo, dos dados quer do senso comum quer da
ciência. Essa compreensão total é que é a filosofia : edifício sempre em construção, sempre renovado nos seus materiais (que o progresso dos conhecimentos positivos lhe vai fornecendo dia a dia), sempre instável e ao mesmo tempo sempre de pé”(!). Porquea filosofia verdadeira nasce no lugar mais alto a que humanamente é possível ascender e porque só aí se entra, ou se pode entrar, em comunicação com o Absoluto ontológico, gnoseológico e ético, todo o saber humano, seja empírico, seja científico, deve assumir os seus limites e abrir-se ao supremo sentido do Bem. Assim, é a razão filosófica que hierarquiza o conhecimento humano, “éelaa única instância que tem legitimidade para se pronunciar sobre os limites dos conhecimentos humanos, para indagar o porquê da evolução já que opera com as ideias metafísicas de substância , causa € finalidade. Portanto,é a razão filosófica que tem autoridade para determinar o sentido do próprio conhecimento científico. Mas, esta razão filosófica não éa razão científica sistematizadora e generalizadora dos dados da ciência como pretendia Heeckel. Não é elevando o espírito científico para o topo da hierarquia das faculdades cognitivas do homem que se resolvem pro“blemas que são, por natureza, diferentes das questõescientíficas. Por isso, Antero acrescenta: “Os naturalistas, desprezando ou ignorandoas ideias, ignoram metade das cousas e a sua filosofia é só meia filosofia(...) Matéria e espírito, determinismo e liberdade, evolução e finalidade, não são ideias contraditórias senão na aparência: de facto, são só duasesferas diferentes da compreensão, tese e antítese, cuja síntese é a razão(2). (1) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com-
pletas: Filosofia , ob. cit., pp. 107-108. Sublinhado nosso.
(2)-Idem, ibidem, p. 108. Sublinhado nosso.
114
Darwin em Portugal
Parte I — Capítulo 3
Hegelianamente, nada mais claro. E, não há dúvida que o projecto filosófico anteriano se torna ininteligível fora da lógica dialéctica hegeliana: A esta luz compreende-se que a ideia de evolução se apresente filosoficamente com sentido teleológico e cientificamente não comporte esse mesmo sentido. A harmonia entre estes dois modos de ser da mesmaideia; tão distintos, estabelece-se na e pela superação dialéctica. Todas as provas disteleológicas(!) da evolução natural exibidas por Heckel e por Viana de Lima na esteira de Darwin, como é o caso, por exemplo, da não conformidade dos orgãos rudimentares a qualquer fim, em lugar de perturbar a construção anteriana, fazem parte dela, sendo necessárias à emergência do sentido teleológico imanente a toda a existência. É certo que este sentido não se dá a ver através do mecanismo natural da evolução, mas a linguagem verdadeiramente filosófica (que pode assumir a forma poética, como veremos adiante) entrevê-o e pode conhecê-lo. Em virtude do exposto, pode concluir-se que a demonstração da cumplicidade entre o teleologismo, o fixismo e o providencialismo, feita
dadeira razão filosófica, o paupérrimo finalismo naturalista à Heckel não podia identificar-se com o sentido superior da teleologia que é aquele que
por Viana de Lima, era abusiva. O autor revelava desconhecer as formas
filosóficas do teleologismo evolucionário imanentista que não postula figuras transcendentes, protagonizado, entre outros, por E. Hartmann(?). No mesmo sentido, a associação que Hackel e seus discípulos faziam, invariavelmente, entre o teleologismo e o transcendentalismo(?) era injus-
ta e errada em muitos casos, incluindo, paradoxalmente, o próprio monismo hzeckeliano, como muito bem viu Antero. Com efeito, em A filosofia da natureza dos naturalistas, Antero
denunciava a cumplicidade do monismo materialista de Heeckel com uma
15
aponta para a ideia de Bem e sua realização. O finalismo naturalista imprimia no mecanismo evolucionário uma “intencionalidade que não se traduzia na comunhão Ôntica de todos os seres elevados espiritualmente e
humanizados pela razão e pela vontade humanas. A causalidade final no
monismo materialista era conflitual, aparentemente de acordo com as leis
darwinianas da concorrência vital, da luta pela vida e da implacável
selecção natural. Necessariamente, a tradução social, ética e política( ) da metafísica de Haeckel tinha de obedecer aos cânones do mecanicismo anti-
humanista.
É que, o monismo materialista “implica uma extensão abusiva da indução científica e ilegítima generalização duma hipótese, que,se é per-
“feitamente fundada no terreno de determinadas ciências, só aí € nesse
“ponto de vista tem autoridade científica”(2). Donde resulta que a doutrina da evolução formulada por Hackel e seus discípulos não é de modo algum, como se pretende, uma doutrina positiva, fundada nas ciências e “saindo delas como sua natural consequência.(...). A doutrina monista da evolução tem pois, em despeito das suas pretensões de positividade, um “carácter especulativo e é propriamente um sistema, uma construção filosófica, em que o a priori representa um papel preeminente”(2). Com efeito, a subordinação da teoria científica da evolução ao monismo hackeliano
convertia a sua essência — a imprevisibilidade(*) — numa forma de pro-
gressismo finalista. Ora, dada a projecção de Hasckel e seus discípulos na
época, não admira que fosse corrente assimilar o darwinismo ao cientismo
metafísica unívoca, linear e, afinal, igualmente teleológica(?). Para a ver(1) Vide: Artur Viana de Lima, Exposé sommaire des théories transformistes de
Lamarck, Darwin et Haeckel, ob. cit., pp. 465-523. De Ernst Heckel vide:Les preuves di transformisme. Réponse a Virchow, ob. cit., pp. 25-44; História da criação dosseres organizados segundo as leis naturais, ob. cit., pp. 537-565; Anthropogénie ou histoire de "évoz lution humaine. Leçons familiêres sur les principes de Pembryologie et de la phylogénie humaines. Traduit de Pallemand sur la deuxiême édition par le Dr. Ch. Letourneau. Paris, €. Reinwald et Cie, Libraires-Éditeurs, 1877, p. ess.
(2) Vide Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit., p. 107. Édouard de Hartmann, Le darwinisme. Ce qu'ilya de vrai et de faux dans cette théorie, ob. cit., pp. 144-171. (3) Vide, de Ernst Hackel, por exemplo, Les preuves du transformisme. Réponse à Virchow, ob. cit., pp. 15-24. (4) Independentemente de ser ou não ser do conhecimento de Antero, é justo lembrar que, na década de setenta, Rodrigues de Freitas desmascarou com muita perspicácia
a pré-determinação e o teleologismo da teoria da evolução hackeliana. Vide: J.J. Rodrigues de Freitas, “Páginas soltas. 1”, A Renascença, Porto, (1), Jan. 1878, pp. 12-13. (!) Vide: Antero de Quental, “Carta dirigida a Oliveira Martins, Ponta Delgada, 26 de Dezembro [de 1873)”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 1, carta nº 122,
pp. 231-232.
(2) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit., p. 104.
(2) Idem, ibidem. Sublinhado de Antero.
(4) Nasíntese de Dampier: “Aceptada en toda su amplitud, la selección natural es la négación radical de la teleología. No hay objetivos a la vista : no hay más que constantes cambios casuales, individuales y ambientales, entre los cuales salta de vez em vez la chispa de la armonía por casualidad ; ello puede dar de momento cierta impresión pasajera y apatente de finalidad”, William Cecil Dampier, Historia de la ciencia y sus relaciones conla filosofia y la religion, Madrid, Editorial Tecnos, [1972], p. 344.
Darwin em Portugal
fi Parte I — Capítulo 3
e imputar-lhe umavisão perfectibilista da vida(!) que, na verdade, não está explícita nem implícita na obra darwiniana. Antero viu mais longe. Percebeu claramente as diferenças entre 6 darwinismocientífico e o monismo hackeliano(2). Compreendeu a ausência de sentido na evoluçãonatural; aceitou a cientificidade da teoria e, por isso mesmo, defendeu que nada de substancial se podia extrair da redução da existência à fórmula struggle for life, pois esta é apenas “o sistema
orática(l), e intuia perfeitamente os efeitos histórico-culturais e
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exterior, a lei das aparências e a fenomenologia do Ser”(2), conforme reafirmará, mais tarde, na carta bio-bibliográfica a Wilhelm Storck. Em
suma: Antero mostrou como é que a construção de Hackel deixava de ser científica sem poder afirmar-se como filosófica; explanou como é quea generalização das leis do mundo orgânico e a sua aplicação ao universo
histórico-social se resolvia numa “pseudo-filosofia”, isto é, numa ideolo-
gia teórica. A matriz científica da sua totalizante Weltanschauung saía distorcida dessa lógica ilegítima(*) que nem respeitava a especificidade do método e do objecto das ciências da vida orgânica(”), nem salvaguardava a possibilidade da verdadeira filosofia. Já em 1873, Antero expunha, com toda a clareza, este problema a
Oliveira Martins: “O erro de Heckelé (...) colocar-se numa ciência só para concluir para todas. É um erro de método. A Evolução é umalei universal: mas o seu modus operandi é diferente em cada série (...). Entendo que só metafisicamente se pode dar a fórmula universal da Evolução, precisamente porque só a metafísica é universal”(º). Para Antero, impunha-se encontrar essa fórmula pois não duvidava que o sabercientífico estava a ser absolutizado(”), tanto no plano epistemológico, como no plano da razão (1) Vide: Fernando Catroga, A militância laica e a descristianização da morte em Portugal: 1865-1911, ob. cit, vol. 1, pp. 245-279; Amadeu Carvalho Homem, A ideiá republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., pp. 91-169. (2) Antero de Quental, “Carta de Ponta Delgada a Oliveira Martins, 26 de Dezembro de [1873]”. Ih: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 1, carta nº 122, p. 230: (*) Antero de Quental, “Carta de Ponta Delgada a Wilhelm Storck de 14 de Maio de 1887”. In: Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta nº 524, p. 838. (4) Vide: Patrick Tort, La pensée hiérarchique et [Pévolution, Paris, Aubier
Montaigne, 1983, pp. 266-328.
(º) Vide: Michael Ruse, La revolución darwinista (La ciencia al rojo vivo). Versión espafiola de Carlos Castrodeza. Madrid, Alianza Editorial, 1983, pp. 293-299. (6) Antero de Quental, “Carta de Ponta Delgada dirigida a Oliveira Martins, 26 dê Dezembro de [1873]”. In: Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 1, carta nº 122, p. 231. Sublinhado de Antero. (7) Patrick Tort concluiu que, para Hackel, filosofia é o lugar de convergênciae de unificação das ciências, pelo que o monismo de Hackel é também epistemoló-
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. ivilizacionais da sacralização da ciência. século do metade segunda Nas Tendências gerais da filosofia na IX, Antero prossegue o seu intento de abrir o caminho para a filosofia da tureza entrar no campo da verdadeira filosofia. Contrariando as preten-
des dos cientismos da época e, em particular, do cientismo de Hackel, Antero afirma que a filosofia jamais se extinguirá pois tem capacidade de e reproduzir — no sentido de recriação ou de renovamento 7 a qual side na sua própria imperfeição. “Como todas as coisas vivas”, a filosofia, sendo, revela uma “incurável imperfeição”. Ela jamais cristalizará numa: forma definitiva e no “seu fieri incessante”, buscando a verdade, contra os seus próprios limites: “o segredo sublime das coisas gagueado numa linguagem deficiente e bárbara, cheia de lacunas e obscuri-
dades”: Por ser defeituosa — e não, apesar disso — é que ela caminha
sempre, pois, a “sua incurável imperfeição é justamente a condiçãoda sua indestrutível vitalidade, da sua fecunda e incansável actividade”(*). Isto equivale a dizer que a Filosofia é porque mantém (passado, presente e uturo)-em aberto o perguntar, a interrogação, a dúvida. “E pela dúvida que a filosofia concebe, é a dúvida que a torna fecunda e a sua relatividade afinal, toda a sua razão de ser”(?). De gestação em gestação, a Filosofia é, renascendo sempre diferente, “desenvolvendo-se como todas as coisas o vivas”(4) e permanecendo sempre igual a si mesma. Dizer a filosofia nestes termos, isto é, afirmá-la pela sua Aistori-
cidade; por aquilo que ela tem em comum com todo o mundo vivo, não significa explicar o “superior” pelo “inferior”, senão na medida em que, O inferior”, de algum modo,participa do “superior”. Com efeito, não é possível tomar à letra as imagens biológicas e a linguagem naturalista que sico, Em síntese, eis o estatuto monista dafilosofia : “Elle est la science elle-même se pensant sous la catégorie de la totalité”, sublinhado do Autor. In: La pensée hirarchique et
[évolution, ob. cit., p. 279.
(1) Neste sentido, Viana de Lima afirmava: “Quant au biologiste, le but vers lequel
il tend et dont il approche est non pas seulement celui de comnaítre et de décrire , mais
aussi de diriger les manifestations des phénomênes de la vie”, Exposé sommaire des ihéoriestransformistes de Lamarck, Darwin et Haeckel, ob. cit., p. 158. Sublinhado do Autor. (2) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do Século XIX”. In: Antero de Quental, Filosofia , ob. cit. p. 115. Todas as expressões entre aspas são-da autoria de Antero.
() Idem, ibidem. Sublinhado nosso.
(*) Idem, ibidem.
118
Darwin em Portugal
Antero usa, com todo o requinte, para tentar agarrar a “deusa esquiva”(!). É que, não estamos perante qualquer espécie de bio-filosofia como a de Heckel(2). Antero, comose viu, demarcou-se dos biologismos da época, em especial do fisicalismo biologista de Hackel, com a mais firm relutância, mas não sem reter a positividade daquela “pseudo-filosofia” como veremos adiante. Portanto, sem pretender desmetafisicalizar o pensamento anteriano o que seria vão e temerário, sugerimos que se atente no modo com Antero, por fim, apresenta filosofia: ela é “a adaptação possível em cad. momento histórico (da história da ciência e do pensamento) dos facto: conhecidos às ideias directoras da razão, e a definição correlativa dessa
ideias, não por esses factos, mas em vista deles”(?). É surpreendente como o autor faz funcionar uma categoria-chave da história natural, que. é precisamente a adaptação. No sentido biológico: adaptação do ser vivo. ao meio, independentemente da complexidade de ambos os termos envolvidos. Assim sendo, parece-nos legítimo perguntar: qual a posição que a lógica darwiniana da vida ocupa na construção filosófica anteriana? Ela adapta-se às ideias de átomo-mónada, força, espírito, substância, causa
fim, absoluto, unidade, espontaneidade, liberdade, beatitude, Bem? Essa
adaptação não tem de ser perfeita, pela definição de Antero, pois, o poeta-filósofo acrescenta o adjectivo possível à adaptação: “O que é então a filosofia? (...): a adaptação possível ...”(4).
(1) A expressão “deusa esquiva” é de Eça de Queirós no célebre texto “ Um genió que era um santo” do In Memoriam - Anthero de Quental , Porto, Mathieu Lugan, Editor, 1896, pp. 481-522. Também publicado in Notas Contemporâneas, Lisboa, Edição “Livros do Brasil”, s. d., pp. 251-288. A expressão em causa encontra-se na p. 274. (2) Vide: Patrick Tort , La pensée hiérarchique et "évolution, ob. cit., p. 269 e ss. (*) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX”. In:Obras completas, Filosofia , ob. cit., p. 117.
(4) Idem, ibidem. Sublinhado nosso.
CAPÍTULO 4 O vínculo entre a historicidade do Absoluto
e a necessária adaptação criativa da filosofia ao progresso do conhecimento científico “o darwinismo é uma grande fonte de consolação filosófica”(!)
O enunciado anteriano que fecha o capítulo anterior, obriga-nos a
aprofundar o pensamento do poeta-filósofo, para ver se O darwinismo
científico se adapta ao corpo ideativo da razão filosófica, ouse é um
daqueles factos que não cabem no possível, acabando na exclusão, apesar
da vontade anteriana de construir umafilosofia em diálogo com ciência. “Assim, Antero parte para a indagação das tendências filosóficas da se-
gunda metade do século XIX, com um vasto capital ideativo, resultante de
“uma longa e profunda reflexão sobre as problemáticas-chave da filosofia, “no decurso da sua história. Atenta, em particular, no fieri do pensamento filosófico, nos últimos quatro séculos, e vê nele “a existência dum substratum de noções metafísicas”(2) que imprimiram a sua marca em todos os sistemas filosóficos, teorias científicas e demais “criações espirituais dos povos modernos”(?). Esse “substratum” metafísico da modernidade é constituído por quatro ideias que se foram estruturando desde a Renas“cençae que traduzem “a maior revolução intelectual da humanidade (3). Por ela, o pensamento moderno evidencia-se como distinto e mesmo antitético relativamente ao pensamento antigo. “Essas noções capitais (1) Antero de Quental, “Carta a Germano Meireles, [Lisboa, Primavera de 1877)”. Ih: Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 1, carta nº 209, p. 374. (2) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do Século XIX”. In:Obras completas, Filosofia , ob. cit., p. 121. Sublinhado do autor.
(3) Idem, ibidem. (4) Idem, ibidem.
121
Darwin em Portugal
4 Ip Parte T — Capítulo
são as de força , de lei, de imanência ou espontaneidade e de desenvolvi:
quadro ideativo da O triunfo da ideia de desenvolvimento vem rematar O dinâmica, te modernidade que, uma vez completo, ganha uma nova se da sua p ua ue endo; com Kant, Schelling e Hegel, a aproximar-
120
mento”(1): ideias que triunfaram porque se objectivaram, tanto no plano
científico, como no plano filosófico, ou melhor, porque a ciência ea
filosofia se fecundaram mutuamente e caminharam ambas no sentido da possível convergência pela sua adaptação recíproca. Com efeito, o “substratum” ideativo da modernidade tem uma consistência científica e filosófica que se foi definindo no decurso dos
séculos XVI, XVII, XVII e XIX. Por isso, a ordem pela qual Antero
enuncia as quatro grandes noções não é arbitrária, mas tem um sentido lógico e histórico. A revolução operada pelo pensamento moderno processou-se num tempo multissecular pela acumulação de pequenas e grandes descontinuidades científicas e filosóficas que dialecticamente foram superando o quadro providencialista-estático e dualista do pensar “antigo”. Assim, do século XVI ao século XVIII, emergem astrês primeiras ideias: as de força, lei e imanência que, tanto pelas construçõesfilosóficas como pelas científicas, superaram a cosmovisão “antiga”. Com o pensar moderno o universo “alarga-se e adquire estabilidade: alarga-se com Espinosa, comoinfinito e imanência: com Galileu, Kepler e Newton, com Descartes, Leibniz e Bacon, torna-se estável como força e lei . A natureza aparecia: -lhes já quase como a nós aparece. Quase: a fecundá-la, a dar-lhe plasticidade e vida, faltava ainda alguma cousa à concepção do século XVII: faltava-lhe a ideia de desenvolvimento. Trouxe-a O grande século revolu= cionário, o século XVIIP(2). A última ideia do “substratum” metafísico da modernidade é a ideia de desenvolvimento. Logicamente, pois ela “é à consequência e o complemento natural das ideias de força e imanên: cia"(2). Em função do nosso escopo, é importante sublinhar que também à ideia de desenvolvimento foi cultivada, quer pela filosofia, quer pela ciên= cia. Antero reconhece, mesmo, a sua implantação por toda a malha cultural, desde o iluminismo: “Esta sublime ideia rebenta por todos os lados, do
chão fecundo do espírito moderno, na segunda metade do século XVIIE Ela inspira o naturalismo de Diderot, o panteísmo de Lessing, o idealismo de Vico, o deísmo de Herder(...). Por outro lado, sai naturalmente dascién:
cias que então se criam ou recebem forma nova: na química, na geologia,
na botânica, na zoologia, a ideia de desenvolvimento evidencia-se por tal
modo, que se impõe irresistivelmente às suas teorias fundamentais”(4). (!) Idem, ibidem. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, pp. 124-125. Sublinhado do Autor.
(3) Idem, ibidem, pp. 125. Sublinhado do Autor.
(4) Idem, ibidem, pp. 126-127. Sublinhado do Autor.
das múltip nto-epistémica, num plano supra científico e para lá Õ
turais que ia assumindo.
o.
a ditícitareia a dica anteriana, coube ao espírito crítico de Kant
Hegelà i elade e abrir o campo do idealismo onde, sob a autoridadede je eum ro esenvolvimento receberá uma nova fundamentação eant fico ho filosó statuto definitivamente metafísico. Por isso, O trabal ésio manif mente não é redutível a um cepticismo, o que se torna clara
Kant, se ron a nando se aborda a tendência filosófica que, partindo de 2 espint É “com Fichte, Schelling e, sobretudo, com Hegel. Já em Kant a “o verdadeiro noumenon , O espíritoé o ser tipo, medid
etodo os
o ser e o con eee &te seres”(D), e é esta afirmação da identidade entre
is “funda a possibilidade de elevar “as ideias fundamenta
do
esp
aco moderno, as ideias de força, de imanência, e de desenvolvimento, s norro mo enqua máximo grau de condensação” (2). Schelling e Hegel, a oac ou á a do “idealismo realista”, “fundaram definitivamente domine à e evolução, e fundaram-na na mais altaregião das ideias, donde se. to. todo:o pensamento do nosso século"( >. Definitivamente, o Quer isto dizer que a ideia anteriana de evolução é concê aa —* que uto o al o espírit do olução desenv to tro dologos hegeliano, enquan eúo dialecticamente sai de si e devem espírito objectivo (rca u caso a ident à bung), rização) para retornar activamente a si (Aufhe Tm no dizer, isto Quer consigo mesmo, numa palavra à absolutidade? na ] : a, naturez da s que o processo evolucionário advogado pelas ciência tora porst, ó sua versão lamarckiana, seja aquela que Darwin criou,s conum sistema de inteligibilidade metatísica, como o hegeliano, não tem ológica e ontológica ' istênci
s, e em espePor dalado, Antero considera que os filósofos alemãe a expressão, máxim sua à ica filosóf lação especu a cial Hegel, elevaram
apriorS * mas reconhece que as suas construções se tornaram dogmáticas e taças eu cujos ico, científ o trabalh o ticas, incapazes de dialogar com ógico o meto rigor do base na positivos se avolumaram a partir de 1830,
eaç o da observação, da indução e do experimentalismo, isto é, da ven Anter embora das hipóteses formuladas pela razão. Por outro lado, (!) Idem, ibidem, p. 127. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, p. 127. Sublinhado do Autor.
(3) Idem, ibidem, p. 128. Sublinhado nosso.
122
Darwin em Portugal
conservasse fiel à metafísica, enquanto única esfera do pensamento que
tinha acesso às verdades últimas, não aceitava que a ciência fosse inteli
gida como “serva” da filosofia, justamente como tinha sido no sistema
hegeliano. Releia-se: “Schelling e Hegel fundaram definitivamente a dou-. trina da evolução”(!). A fundação é que é definitiva. Não as doutrinas daqueles filósofos alemães. Antero escreve em finais do século XIX. Hegel, como é sabido, deixara de escrever por volta de 1830. Negar esta distância histórica. significava negar a própria filosofia que Antero, hegelianamente, iden-. tifica com a história da filosofia. Antero, porque era profundamente hegeliano, não podia repousar no Absoluto de Hegel. Então, a superação anteriana do sistema hegeliano abre a possibilidade de umafilosofia que talvez não dilua a evolução científica num dinamismo metafísico, neces sariamente teleológico. É o que vamos confirmar ou infirmar. Parte de Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX é significativamente dedicada à exposição da emergência da ideia de evolução em diversas disciplinas científicas, sobretudo nas ciências da terra, da vida e do homem. O poder epistemológico da ideia de O evolução surpreende-se imediatamente. Por toda a segunda metade: do
século XIX, as ciências da terra, da vida e do homem transformam-se
em ciências da evolução da terra, da evolução da vida e da evolução do | homem. A ideia de evolução atravessa-as e simultaneamente liga-as entre si. Deste modo, por exemplo, transita-se da geologia para a antropologia através da paleontologia. Em todas as disciplinas científicas de oitocentos “a ideia de evolução ia provocar a mais fecunda das revoluções”(2) protagonizada por Darwin na esteira de Lamarck e de Geoffroy Saint-Hilaire. Neste trabalho filosófico de Antero, a revolução darwiniana é con-
siderada “fecunda” a vários títulos: o transformismo aboliu as fronteiras entre as ciências da vida e as ciências do homem; abriu o caminho à conversão da antropologia “numa verdadeira ciência natural”(2); presidiu à transformação de outras disciplinas em ciências da evolução natural dos seus objectos como é o caso, entre outros, da linguística que se renovou com o estudo da evolução natural das línguas. O florescimento destas ciências, na segunda metade do século XIX, deve-se basicamente à operatividade da hipótese evolucionista adentro do experimentalismo científico e da sua lógica indutiva. Em termos globais, (1) Idem,ibidem,p. 128. (2) Idem, ibidem, p. 133. (3) Idem, ibidem.
Parte 1 — Capítulo 4
123
o ntero sublinha a importância do sabercientífico neste período, dizend
rou ue nele impera a inteligibilidade científica-positiva e que esta procu medida, isto é, de ornar-se culturalmente hegemónica moldando à sua ico. Por isso; ordóô com os seus quadros mentais, o pensamento filosót ica tenham científ razão da s alista imperi o surpreende que as tendências da nato” so, univer do icas esencadeado a irrupção de filosofias científ
de za é da humanidade, todas elas tendo como espinha dorsal a ideia
diferenças proolução. Embora esta ideia conhecesse cambiantes e até
cientistas, a nciadas, o certo é que, segundo Antero, nessas construções do mecanismo ideia de evolução se conservou fiel à lógica científica o inista. co do orgâni so proces um por que como “saíu vo EEste filosofar positi adulta idade sua à o chegad ico científ o esmo desenvolvimento do espírit das con omándo plena consciência de si mesmo. Brotou assim, do chão o oo relaçã essa causad por cias, como seu espontâneo produto...”(!) e, ado do result O ica. lical, jamais se libertou da lógica da razão científ exo ao compl do o filosofismocientista, isto é, da sistematização por reduçã
na simples e do superior ao inferior traduzia-se, aos olhos de Antero,
poeta, desnaturação do autêntico pensarfilosófico. Portanto, para 0 nosso uma a concepção mecânica da evolução estava longe de esgotar o serde ão. evoluç de ideia comoa idades virtual de ideia tão fecunda e cheia Mas,seria faltar gravementa à verdade, supor que Antero deprecia os o na cientismos de oitocentos, designadamente aquele que foi protagonizad ia filosof a , Antero último o Para . pátria de Hegel pelo zoólogo E. Hackel
ar ou º evolucionista dos cientistas não é o erro a eliminar, o mal a irradic igeneral à saber, a — inimigo a abater; ou melhor, “o erro de Heckel"(2)
o zação e a universalização onto-epistémica dum processo evolucionári que em a próprio do domínio particular da biologia — é positivo, na medid funciona como antítese no fieri dialéctico do pensar. Este entendimento do cientismo hackeliano denota uma acentuação do hegelianismo de Antero na fase da sua plena maturidade filosófica.
seu O modo anteriano de compreender o cientismo, sendo eco do
fundo hegeliano, projecta o seu pensar para a via que lhe dará acesso à almejada convergência activa entre a doutrina da evolução natural e a ideia
de evolução propriamente filosófica. Chegados a este ponto, podemos 5 Idem, ibidem, p. 143. 26 (o Vide: Antero te Quental, “Carta a Oliveira Martins, Ponta Delgada, de Dezembro [de 18737". In: Obras completas. Cartas... ob. cit. vol. 1, carta nº 122,
pp. 231-232.
Darwin em Portugal
124
assentar, com fundamento, que Antero avalia positivamente todos:os
modos de ser da ideia de evolução, tanto na sua forma filosófica, como na
sua expressão científica e ainda na sua objectivação cientista proposta por Hesckel. Ora, essa avaliação positiva significava a possibilidade sine qua non da própria filosofia anteriana. No caso dos evolucionismosdas ciências da
terra, da vida e do homem natural, Antero simplesmente constata-os é
aceita-os. Não sendo cientista e confiando, sem o mínimo despeito, nos
resultados do trabalho científico, o nosso filósofo não os questiona, mas
procura interpretá-los. Por outro lado, a doutrina “filosófica” evolucionista dos cientistas, como Hackel, é vista comoo sintoma culminante das aspi-
rações da filosofia no seu fieri dialéctico e, nessa medida, o monismo hackeliano torna evidente, aos olhos de Antero, que, após meio século de
intenso e profícuo laborcientífico, nenhumafilosofia mereceria esse nome
se não se deixasse fecundar pelo indutivismo científico. O que fica exposto ainda não nos permite deduzir o lugar que o dar-
winismo ocupa na filosofia anteriana nem, por outro lado, nos incita à
reformular a pergunta que inicialmente colocámos à sua obra filosófica.
Prossigamos, pois, na busca da resposta anteriana à nossa questão: o dar-
winismocientífico adapta-se ao corpo ideativo daquela que é, para Antero, a autêntica razão filosófica em finais do século XIX? Antero reconhecia o valor do trabalho científico, entusiasmando-se mesmo com o poder cognoscente da razão indutiva, mas conservava a autonomia da sua consciência filosófica face à religião da ciência que ganhava cada vez mais fiéis à medida que o final do século se aproximava. À distância de Antero do culto frio da ciência, do “gélido fatalismo soprado pela ciência sobre o coração do homem”(1), não era indiferença mas, exactamente, o seu contrário: era diferença, a diferença entre a sua consciência filosófica e a inconsciência do mecanicismo determinista que se saldava no “mórbido pessimismo”(2) da época, nessa miséria espiritual que bem revelava o quão pouco do ser era inteligido pela razão científica. Portanto, se a ciência tinha avançado muito na exploração cognitiva do real, mais e mais real sobrava e sobrava sempre para a autêntica especulação filosófica detentora de uma metodologia tão legítima como o experimentalismo indutivista das ciências naturais. (!) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit. p. 146.
(2) Idem, ibidem.
4 ap Parte I — Capítulo
125
A crítica formulada por Antero à “filosofia da natureza dos naturastas”- não visava hostilizar o seu reducionismo mecanicista, mas com-
positiva reendê-la como “uma verdade fundamental, mas circunscrita, limientro dos seus limites, mas incompleta na medida da estreiteza desse
s"(1). É que, a construção filosófica dos cientistas se erguia à margem do
undo das ideias de substância, causa e fim, “que é o mistério do que na
onsciência está para além da sensibilidade”(2). Ancorada no mundo noménico dos dados empíricos, a razão científica não tem acesso à veradeira consistência ontológica do universo, da natureza e da vida. Mas a ua visão do mundo nãoé falsa. O determinismo mecanicista e, portanto, o
onismo evolucionista “sendo a fórmula definitiva da experiência, é ver-
adeiro, e verdade alguma superior pode prescindir dos dados positivos
or ele fornecidos. Tal como é, representa um resultado enorme: a síntese
o espírito moderno no terreno do conhecimento científico“ ). Assim, por tudo o que fica exposto, não surpreenderá que possamos onsiderar Antero um darwiniano, na medida em que é hegeliano. Se, na
oncepção anteriana, o verdadeiro espírito filosófico, em finais de oito-
entos; aspira a uma síntese superior, resultante da convergência dialéctica do polo-metafísico e do polo científico, mesmo que, nesta operação suprea, O evolucionismo naturalista não possa comunicar com as ideias de ausa, substância e fim e, portanto, de certa maneira, aparente ficar de ora, mesmo assim, isso jamais significaria a condenação da evolucão
atural-e dos seus mecanismos estabelecidos pela revolução darwiniana. Antero é muito claro sobre este tópico capital. Ainda que o evoluionismo natural pareça a negação da sua metafísica indutiva, ou ainda que pareça que ele não pode ser contemplado na síntese filosófica, tudo isso não passa de ilusão. A teoria darwiniana havia de, necessariamente, parcipar numa síntese concebida à luz da lógica hegeliana. Além disso, ntero não apresenta essa mesma síntese como sendo definitiva, nem
ogmática(). Com efeito, a síntese que Antero ambicionava dar ao seu
empo era vista, por ele mesmo, como o ponto de chegada das linhas ten-
enciais da segunda metade do século XIX e, simultaneamente, como
onto de partida para novas sínteses. A filosofia é a sua história. A ciênia é a sua história. Ambas são evolução e ambas “descobriram” que a
evolução é o ser. E, enquanto a ciência conhece a camada superficial do (Idem, ibidem, p. 147. (2) Idem, ibidem,p. 146. (*) Idem, ibidem, p. 148. Sublinhado nosso. (3) Vide: Idem, ibidem, pp. 169-172.
126
Darwin em Portugal
ser, a filosofia concebe a essência mesma do ser. Portanto, seria absurdo
dizer que Antero é anti-darwiniano e anti-hackeliano. O filósofo com-
preende e explica a ciência. Compreende a causalidade mecânica e expli ca-a pela causalidade final. Antero não nega que o cientista possa compreender o mundo das ideias metafísicas mas, o que ele não podeé fazer filosofia “com os dedos mais do que ensopados em química”(!). Seo verdadeiro filósofo não faz ciência, todavia ele é o único que tem poder espiritual para a interpretar, dado que a perspectiva do lugar onde a identidade do ser e do conheceratinge a sua máxima plenitude. O filósofo vê o porquê e o para quê, capta a autêntica realidade substancial da matéria, enquanto o cientista constroi a matemática do como, a cadeia mecânica
que liga os factos entre si. O sentido do como escapa à ciência, mas está
Parte 1 — Capítulo 4
127
ontradictoires Pidée de mécanisme et celle de téléologie, puisque Fune
enferme Vautre”(1). É que, desde logo,
déja le mot de mécanisme,
st-à-dire un appareil de réalisation, un systême de moyens, manifeste immanence d'un but”(2) e portanto, “la matiêre dans laquelle la fin se peuvent éalise et les moyens mécaniques par lesquels elle se réalise, ne une comme que dire c'est-àtre conçus que comme un mécanisme, la termes, d'autres En es. omme de forces de 1º activité des lois naturell
tui comme, éléologie suppose le mécanisme, elle est impossible sans ). A finaliie”( ersement, le mécanisme est impossible sans la téléolog é umà ade não é, pois, uma ideia exterior à lógicada natureza, não
riori que o filósofo inculca à causalidade mecânica, masé, antes, a razão e ser-do próprio mecanismo, aquela ideia que o torna superiormente
na matéria como dado originário e, é por isso que o materialismo prova e testemunha o espiritualismo(?), isto é, a espontaneidade da força que reside no cerne de todo o ser, embora em grausdiferentes. À comunicação entre o como do ser (determinismo científico) e a . sua causa final (teleologia metafísica), sendo necessária, é mais do que possível, pois todo o ser é, pela afirmação da sua natureza espontânea.
ído a nteligível, isto é, que dá sentido ao determinismo científico, constru
alternativa (contrária) ao espiritualismo, masé a determinação material do | espírito. Esta é a questão capital da filosofia anteriana porque é exactamente o problema da possibilidade da “metafísica indutiva” que Antero procurava fundar. A sua argumentação está muito próxima dos moldes do filosofar hartmanniano quanto à relação, ou melhor, quanto à correlação entre o mecanismoe a teleologia. Para Hartmann, que Antero conhecia, é em parte tomava como fonte inspiradora da suafilosofia(?), a causalidade mecânica não era incompatível com a causalidade final. Pelo contrário,
al é especulativo, tomando o ser na sua unidade, da qual o espírito só arbi-
Portanto, o materialismo não é para a consciênciafilosófica anteriana uma
desde finais dos anos sessenta, o filósofo e psicólogo alemão vinha cons-
truindo um sistema em que demonstrava que a ideia teleológica integrava a ideia de mecanismo: “il faut renoncer à présenter comme absolument
(!) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras com-
pletas. Filosofia , ob. cit., p. 95.
(2) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do
século XIX”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit. p. 152.
(3) Vide : Antero de Quental, “Carta dirigida a Jaime Batalha Reis, Porto, 24 dé Dezembro [de 18857”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 476, p.762. Vide, também, Joaquim de Carvalho, “Antero de Quental e a filosofia de Eduardo de Hartmann”. In: Obra completa, ob. cit., vol.1, pp. 409-431.
|Jásabemos que, o campo problemático da filosofiafinissecular, para ntero, tem de se desenhar com duas esferas bem distintas e, aparenteente; incomunicáveis, que são a metafísica e a ciência. Só esses dois
írculos concêntricos”(4) abrem o caminho “do verdadeiro realismo: ele
onstitui o saber total, ao mesmo tempo positivo e metafísico,experimen-
rária e violentamente pode ser amputado, e na ordem de desenvolvimeno dos seus momentos, dos quais o espírito é o superior e típico (º). ostulando que o espírito é a força-tipo de todas as forças do universo, a ilosofia anteriana podeultrapassar todos os dualismos, todos os antago“nismos, todos os dilemas (aparentemente) manifestados pelo conjunto das filosofias do seu tempo e estabelecer a sua tendência convergente, asin-
ese do saber total do real total. Ambos, saber e ser, resolvem-se, finalmente, numa só e mesma substância. Ou melhor, são essa substância, a um
empo ideia e coisa em si: espontaneidade. “Palpita em tudo uma vontade própria, a vontade de realizar o próprio fim. Há pois alguma coisa de “espontâneo e um acordo do ser com a sua verdade profunda e com a sua infinita virtualidade ainda nos fenómenos mais elementares da matéria, “onde o determinismo mecânico parece triunfar. Ainda aí se mantém (1) Édouard de Hartmann, Le darwinisme. Ce qu'ilya de vrai et de faux dans cette
* Méorie, ob. cit., p. 152. (2) Idem, ibidem.
(2) Idem,ibidem, p. 154. Sublinhado do autor.
(4) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do “ século XDC”. In: Obras completas, Filosofia , ob. cit. p. 158.
(5) Idem, ibidem, p. 158. Sublinhado do Autor.
128
Darwin em Portugal
aquela comunicação do acto com a virtualidade e, no grau ínfimo do ser. se entrevê a ideia e o fim soberano”(1). Tudo o que é é, em si mesmo causa de si. Todo o ser é necessariamente livre, toda a força é intrinseca mente espontânea. Mas, não de igual modo. No ser supremo, que é Deus a liberdade é um determinismo absoluto, porque Deus, auto-determinan-
do-se, é necessária e absolutamente livre. E se todo o universo particip
da espontaneidade, apenas ao homem é dado conviver conscientement com ela, tomando-a na sua expressão máxima ou divina, como ideal perseguir: “Só pela razão somos verdadeiramente. Por ela se nos toin patente o mistério da nossa íntima actividade e nos conhecemos com força simples, espontânea e criadora das próprias determinações. Na ple nitude dessa espontaneidade reconhecemos o nosso verdadeiro fim:ele s substitui, como motivo interno, último e absoluto motivo, aos motivo:
exteriores”(2). É no horizonte da máxima expressão da espontaneidad que se processa a inteligibilidade suprema do homem e de todos os sere vivos e inertes, numa palavra, de toda a existência. O homem,através da consciência do ideal da força espontânea,está menosdistante da perfeição moral, ou liberdade. Pode inteligi-la racional. mente, pode fixar-se nela, pode, com o esforço persistente da sua vontade entrar no caminho sobre-humano que o conduzirá ao ideal absoluto de si mesmo. Nesse processo não há, propriamente, recalcamento do sujeito natural pela sobreposição de um eu superior, isto é, de um sujeito moral. Aquele é superado, o que não significa que tenha sido apagado e substituído pelo eu moral. Pelo contrário: “O indivíduo natural subsiste ainda, mas subsiste apenas como o ponto em que se dá este processo espititual”(3). Entre o homem natural subjugado à fatalidade mecânica das leis
naturais, como o demonstram as disciplinas científicas do tempo,tia esteira da revolução darwiniana, e o homem moral, que, no limite, devem
“um outro eu, impessoal, absoluto, todo razão e vontade pura”(4), há uma diferença de ser. Mas essa diferença não significa incomensurabilidade. Eis-nos chegados àquele ponto decisivo a partir do qual se toma impossível negar que o determinismo natural e, em particular, a lógica darwiniana da vida tem, para Antero, valor filosófico. Já sabíamos que à teoria transformista era reconhecida enquanto quadro de inteligibilidade científica da evolução do mundo vivo. (!) Idem, ibidem, p. 159. Sublinhado nosso. (2) Idem, ibidem, p. 161. Sublinhado de Antero. () Idem, ibidem, p. 165.
(*) Idem, ibidem, p. 161. Sublinhado de Antero.
fi Parte I — Capítulo 4
129
Agora, postulada a comensurabilidade da dinâmica do espíritocom a inâmica da matéria, fica aberta a possibilidade da adaptação da ciência à
etafísica, do ser natural ao ser moral, da força mecânica à força esponAnea, ou melhor, do mecanismo da força à sua espontaneidadeintrínseca.
ão estamos a dizer que Antero acabe por atribuir ao darwinismo um statuto supra-científico, isto é, filosófico, tanto mais que foi esse deslo-
amento de território epistemológico e ontológico que Antero denunciou
m A filosofia da natureza dos naturalistas. Mas, afirmamos, fundamen-
adamente, que o darwinismo não é excluído do verdadeiro campo pro-
lemático da síntese filosófica anteriana. Antes, faz parte integrante desse
ampo, mas sem mudar de estatuto. Figura nele enquanto matéria-prima or meio da qual a razão filosófica se dá a conhecer a si mesma,na sua
bsolutidade, sempre, irrecusavelmente, histórica. A teoria científica da
volução está, pois, dentro do campofilosófico mas, não é uma filosofia.
ste facto não lhe retira valor filosófico, visto que, sem esta nova matéria-
-prima, não seria possível pensar uma nova filosofia. Isto equivale a
afirmar que a metafísica de Antero é radicalmente indutiva, o que nos
“conduz a sublinhar que, sem o determinismo naturalista não era possível
“equacionar, sequer, a possibilidade e a necessidade de uma novasíntese
filosófica. Abreviando: o determinismocientífico não é uma filosofia, mas é a possibilidade material da filosofia finissecular, a sua ca(u)sa, a sua
“razão de ser renovada, o pensamento a pensar superiormente, sem o qual “não haveria verdadeira filosofia possível. Verdadeira, não porque a auten-
ticidade da reflexão filosófica dependesse do estabelecimento científico das leis naturais do mundo vivo, mas porque toda a filosofia, para ser verdadeira, tinha de ser absoluta,isto é, absolutamente histórica.
CAPÍTULO 5 A fulguração imperfeita do eu, testemunho-heterónimo da evolução natural “Hoje o Homem sabe qual é o lugar que deve ocupar na natureza e sabe que o não ocupa ainda”(!)
Se apenas é autêntica a filosofia que se casa com o seu tempo, então, primeiro traço da sua autenticidade consiste no reconhecimento do seu mpo. E, se o seu tempo era o tempo do cientismo, do império mental e
jaterial do determinismo mecanicista, então, era esse solo que tinha de ser
avado. pela razão filosófica e revelar a sua comensurabilidade com
spontaneidade do espírito. “Assim, pois, a distância que vai da vaga ontaneidade da molécula, que vibra na atracção ou repulsão doutra lécula, à liberdade do homem que se determina pela razão, não é comensurável: ela é a medida exacta da distância que vai do momento erior do ser ao superior, da força elementar e abstracta à força complexa ompleta. A todaselas, elementares ou complexas, conscientes ou inconsientes, uma mesma vontade as anima: transpor o limite fatal, ascender jais um grau na grande escala da realização da sua infinita virtuali-
ade”(2). Através da reflexão filosófica, toda a existência, e portanto, todo
undo vivo, se apresenta com uma dignidade ontológica e ética que só arentemente é redutível à fatalidade do mecanicismo fisicalista enundo pela ciência. Para lá do conhecimento científico da causalidade ciente da dinâmica do ser, o filósofo encontra o porquê último dessa
âmica na universalidade de uma causa final que denomina liberdade, (1) Manuel Laranjeira, “O nirvana (Interpretação psicopatológica dum dogma)” 1993, p. 111. (2) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do
1906) “In: Obras, vol. 2, ob. cit.,
ulo XIX”. In: Obras completas, Filosofia , ob. cit., p. 162.
132
Darwin em Portugal £
potência espiritual espontânea que é, simultaneamente, ideal paradigmático de todo o ser, força imanente a si mesmo que, em última ins
tância, o move.
Assim, a evolução do universo e da vida processa-se realmente a partir do seu interior, feito de espontaneidade, em maior ou menor grau, mas,
em todo o caso,virtualmente infinita, tendendo para a sua realização e não
pode reduzir-se àquilo que resulta das relações mecânicas e casuais entre os seres. Muito expressivamente, escreve Antero: “Uma ideia instintiva lateja surdamente, como uma pulsação de vida, nesse universo que a ciên
cia mede e pesa, mas não explica: é a aspiração profundadeliberdade, que
abala as moles estelares como agita cada uma das suas moléculas, que
anima o protoplasma indeciso como dirige a vontade dos seres cons-. cientes. É esse fim soberano, realizado em esferas cada vez mais largas que torna efectiva a evolução das coisas"(!). Todavia, o filósofo não alcança a raíz do ser divorciando-se da inteligibilidade científica do fenoménico e entregando-se à pura intuição racional, pois esta não lhe revelaria mais do que o nada, quando ele buscava o ser pleno de ser, habitante do mundo corpóreo como do mundo paradigmático da ideia. E, sé o ser enquanto ideia exteriorizava as suas potencialidades infinitas, através duma dinâmica evolutiva de polos correlativos, num mundo cuja riqueza e diversidade eram empobrecidas pelo logos mecânico da ciência, então, o filósofo teria de afirmar a espontaneidade do ser, partindo do reconhecimento dos limites hermenêuticos da ciência perante a irredutível força espiritual do ser que, justamente, não se deixava apresar pelas leis científicas. O trabalho do filósofo situava-se para lá da ciência mas não contra ela, nem independentemente dela. Por isso é que o campo problemático da filosofia anteriana é dominado pela ideia de evolução. Se as ciências da época tinham elevado a ideia de evolução a princípio de inteligibilidade dos seus objectos que, assim, eram substantivados historicamente, então a
filosofia era chamada a interpretar superiormente a ideia de evolução, de acordo com os cânones da mais pura metafísica. Compreende-se, por conseguinte, que na óptica anteriana “a evolução só será perfeitamente compreendida definindo-se como a espiritualização gradual e sistemática do universo”(2) que, partindo dos mais ínfimosseres culmina no ser humano, enquanto humanidade histórica e, finalmente, enquanto consciência indi-
Parte I — Capítulo 5
dual. Mas isto não quer dizer que o inferior explique o superior. Pelo ntrário, é o fim para o qual todo o universo tende, o fim último e único é atrai a espiral dos seres, a verdadeira causa de toda a evolução. espontaneidade da força procura realizar-se em todo o existente, mas só ravés da consciência humanaé que a seiva de toda a evolução se dá a ver. ntão, o homem é o único ser que pode querer realizar o ideal de esponneidade imanente a toda a evolução. Esse ideal ético não se cumpre ecanicamente. Tem de ser reconhecido, assumido, desejado e conquisdo com o esforço da vontade que se volverá, por fim, “em atracção pura,
ro amor"(1) da perfeição espiritual.
O processo evolutivo culmina na consciência individual, o que signi-
a que a evolução atinge a sua própria essência espiritual na singulari-
de daquele eu consciente, radicalmente ético que, através da “verdadeira
nia transcendental(...), a única verdadeiramente filosófica, humana,
perior”(2), ultrapassou os seus próprios limites, unindo-se ao ideal de
erdade interior, identificada com a beatitude: “... a liberdade é em si esma uma realidade superior, e a verdadeira realidade, não negativa, por nseguinte, mas essencialmente afirmativa. De quê? De si mesma,isto é,
a essência última do Ser, dificílima de definir, é verdade, pelas nossas
rmulas metafísicas, mas clara e perceptível ao sentimento moral, que é a
à manifestação adequada, a sua realização. (...). O Ser fez-nos para a atitude”(2). Este estado de consciência, absolutamente transparente a si esma e ao mundo, é quase sobre-humano para um ser que não foi, nem obra do Criador, a julgar pelos dados científicos avançados na segunda etade-do século XIX, como se lê, por exemplo, no soneto “Homo”: “Nenhum de vós ao certo me conhece, Astros do espaço, ramos do arvoredo, Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum interpretou a minha prece...
Ninguém sabe quem sou... e mais, parece Que há dez mil anos já, neste degredo
Me vê passar o mar, vê-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvorece... (!): Idem, ibidem, p.165. Sublinhado nosso.
(1) Idem, ibidem, p.162.
(2) Idem,ibidem, p.163.
3
(2) Antero de Quental, “Carta a Oliveira Martins, Ponta Delgada, 30 de Maio [de
87]. In: Obras completas. Cartas... ob. cit.vol. 2, carta nº 525, p. 841. () Idem, ibidem. Sublinhado nosso.
134
Parte TI — Capítulo 5
Darwin em Portugal
Sou um parto da Terra monstruoso; Do húmusprimitivo e tenebroso Geração casual, sem pai nem mãe... Misto infeliz de trevas e de brilho, Soutalvez Satanás; — talvez um filho
Bastardo de Jeová; — talvez ninguém!”(1) Embora o homem possa assemelhar-se a Deus, “se Deus fosse possível"(2), as multisseculares raízes que o prendem à vida natural, àquela que não conhece o bem, nem o mal, âquela que é, numa palavra, “o struggle for life, o horror duma luta universal no meio da cegueira universal”"(2), quase asfixiam a sua mais íntima e inalienável aspiração à liberdade — santidade. “A liberdade, em despeito do determinismo inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade”(4). Para se compreender como é difícil à consciência alcançar o estado místico de beatitude e, portanto, conviver com o Bem, tem de se
considerar o esforço racional que o indivíduo se propõe desenvolver para atingir a plenitude de si mesmoe, através desta plenitude, inteligir a substância espiritual de todo o ser. Tem de se considerar, ainda, a perseverança que a consciência individual, voluntariamente, está disposta a cultivar, para se conservar nesse estado anímico, livre de influências estranhas à sua
vontade de conhecero sentido último de toda a existência. Para aquele que chega a habitar a sua consciência, por dentro, e encontra nela a espontaneidade da essência moral de si, e de todo o ser, caminho de liberdade,
135
e vós (...)/ Astros do espaço, ramos (...),/ (...)/ Nenhum interpretou a inha prece... “. Antero não chama pela transcendência, nem procura
gir para o sobrenatural. Antes, encontrou a plenitude de sentido pos-
ível do princípio abstracto de Protágoras (o homem é a medida de todas as coisas), que permaneceu por largos séculos ilegível(!), como umacarta
chada.
O estádio último da evolução universal não está ao alcance de todos os homens: “Só quem, dissolvendo a própria vontade na vontade absoluta
» identificando-se com ela, renuncia ao eu limitado e a tudo quanto é dele
o seu egoismo, as suas paixões, o seu erro profundo e a sua inenarrável miséria — só esse alcançou a vida eterna”(2). No topo do evolver dá-se a plenitude feita de puro amor, pela coincidência do ser com o nada: nirvana. Atingir o cume é libertar-se. Assim o diz a razão poética anteriana em
“Mors-Amor” e “Mots-Liberatrix”().
O momento culminante do processo evolutivo é absolutamente
complexo e diferenciado e, por isso, teria de realizar-se através duma
consciência individual, isto é, singular e única. Com efeito, no plano da
consciência social, a realização da liberdade não ultrapassa o limiar do formalismo jurídico, por mais significativos que sejam os seus progressos. É certo que a história da humanidade representa uma etapa do processo evolucionário, qualitativamente superior em relação ao mundo animal. Mas, como afirma Antero, “o direito, devemos supô-lo, é já a aspiração inconsciente do animal”(*). E, por outro lado, se o ser social está muito
longe da animalidade, está igualmente, sempre, muito próximo dela. Na iz da humanidade, enquanto ser social, jurídico e ético-espiritual, está
isto é, de compreensão do Bem, “... o mundo cessou de ser um cárcere : ele é pelo contrário o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o Universo sabe para que existe : só ele realiza o fim do Universo”(*). Ou, poeticamente, como se lê no soneto Homo , “Nenhum
O jugo das paixões e dos instintos da “pura animalidade”, segundo a “expressão de Antero. Esta poderá sempre emergir se a voz da consciência
(1) Antero de Quental, Sonetos completos. Prefácio de Oliveira Martins. Porto, Editora Nova Crítica, 1980, p. 105. Edição original: Os Sonetos completos de Anthero de Quental. Publ. por J. P. Oliveira Martins. Porto, Liv. Portuense de Lopes & C* Editores, 1886. (2) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade dó século XIX”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit. p. 160. Sublinhado nosso. () Antero de Quental, “Carta de Ponta Delgada a Wilhelm Storck de 14 de Maio de 1887”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit.. vol. 2, carta nº 524, p. 838. Sublinhado de Antero.
* medida, com que alcance e que futuro. Mais de 100 anos antes de Platão já Protágoras dizia: “O homem é a medida de todas as coisas”, o grande princípio que há-de fecundar Nico, e Kant e Hegel, e todos nós: mas que tirou disso o mundo antigo? nada: uma curiosidade, um brinco de sofistas”, Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 1, p. 217. Carta nº 117. Sublinhado de Antero. (2) Antero de Quental, “ Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit. pp. 165-166. Sublinhado de Antero. () Vide: Antero de Quental, Sonetos completos, ob. cit., soneto “Mors-Amor” (A Luiz de Magalhães), p.110. O soneto “Mors-Liberatrix” (A Bulhão Pato), p. 108. (*) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit. p. 164.
() Em “Carta de Ponta Delgada dirigida a Oliveira Martins, 26 de Setembro de
[1873]”, Antero escreve: “.... a história do pensamento grego ilude: como se acham fór-
“mulas para tudo, supõe-se que houve ali de tudo: houve, é certo, masresta saber em que
(4) Idem, ibidem. (5) Idem, ibidem. Sublinhado nosso.
Darwin em Portugal
Parte I — Capítulo 5
racional não tiver energia bastante para se sobrepor a ela. Textualmente; “sem o esforço sempre renovado do pensamento para a razão, da vontade para a justiça, de todo o ser social para o ideal e a liberdade, o caminho andado escorrega debaixo dos pés e a animalidade toma outra vez posse do terreno onde o espírito, adormecendo, não soube manter-se”(!). É que,
ediata”(1). Por outro lado, a sistematização da filosofia não seria um objectivo secundário perante o magno problema de natureza prática que ntero colocava à consciência europeia de então? Poder-se-á entender
136
como se lê no soneto Homo, o ser humano é feito “do húmus primitivo.
e tenebroso”; ele nasceu do mesmo barro e é feito da mesma matétia. que todas as formas inferiores. Imperfeito como todas elas, por isso é
apesar disso, ele pode levar mais longe a aspiração universal à perfeição que, sendo inconsciente nos demais seres, se torna consciente no eu racional.
Por tudo o que fica dito, consideramos que o soneto anteriano intitu
lado Evolução(2) substitui o tratado filosófico que Antero não quis legar aos vindouros, para ser fiel ao génio anteriano, ou à vontade de um talento superior na selecção social, como diria Manuel Laranjeira(?). Alguma, verdade reside na prosa queirosiana ao dizer-nos que Antero entendia qu a sistematização em forma de tratado não era a mais adequada à sua filosofia. Com efeito, Eça afirma que Antero a “... não queria desenrolar num tratado, mas (como ele dizia rindo) num catecismo, muito claro.
muito simples, todo em aforismos, de quinze ou vinte páginas, que 5 encadernasse em marroquim, se trouxesse na algibeira como um viático d razão pura...” (4). Também é certo que Antero, em Vila do Conde, a 6 d
Junho de 1885, escreveu a António de Azevedo Castelo Branco, confes sando que “preferia ser Sócrates a Platão “ e, portanto, nesse sentido, acres: centava: “O que a mim me convinha era encontrar um discípulo”(*). Mas, estes testemunhos não chegam para compreender as resistências interiores de Antero e, finalmente, a sua recusa quanto à objectivação sistemática d sua filosofia. Possivelmente, como julgou Adolfo Coelho, “o seu espírito, mais poético que filosófico, mas intuitivo (no sentido mais elevado: d. palavra) do que demonstrativo, aspirava à visão da verdade por intuiçã () Idem, ibidem.
(2) Antero de Quental, “Evolução”, A Ilustração, Paris, 2 (20) 20 Out. 1885
137
ste modo a sua confissão a Jaime Magalhães Lima? — “... é muito certo
que pão são os sistemas que nos salvam e nos põem no bom caminho”(2).
Seja como for, Antero sentia com muita intensidade a questão prática
da realização do Bem e da Justiça(?). Este ideal abraçado em uníssono pela sua consciência e pelo seu coração é o largo e longo caminho que eríamos de percorrer, ao menos racionalmente, para chegar um pouco
mais perto da recusa anteriana de apresentar a sua filosofia de forma istemática. Mas, se Antero não escreveu um tratado filosófico, legou-nos, além de profícuos textos em prosa, magníficos sonetos filosóficos, entre os quais destacamos o soneto Evolução, por ser aquele que melhor responde à problemática da relação entre a filosofia e a teoria científica do mundo
vivo ou darwinismo científico. Vendo bem, a forma poética do seu filosofar acaba por ser vantajosa para a sua própria filosofia, atendendo a que a
expressão verdadeiramente poética, como é o caso, é de sua natureza ines-
gotável, perpetua-se no tempo, conservando-se sempreintacta € actual. No dizer de Antero: “Os sistemas caem: os cultos desfazem-se: só os poemas
parecem cada vez mais jovens e mais belos sob os beijos fatais do tempo”(). E, se toda a cultura, de certa maneira, participa do atemporal
(embora manifeste à superfície inequívocas marcas do seu tempo, do polissémico contexto histórico que, a seu modo, colabora na sua gestação, mas não a explica), a poesia é aquela forma de expressão de sentido, que o tempo, com as suas potencialidades infinitas, em lugar de corromper, consagra. E, como não havia de consagrar, se a autêntica linguagem poética diz o indizível, o inefável, o que, de outro modo, não se deixa pressentir! Como não havia de consagrar, no caso de Antero, se os seus
(1!) Adoifo Coelho, “O supposto scandinavismo de Anthero de Quental (Para
O estudo da hereditariedade ethnica)”, Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes, Porto,
p. 308. O soneto acha-se datado de Março de 1882.
5, 1898, p. 93. (2) Antero de Quental, “Carta de Vila do Conde a Jaime de Magalhães Lima,
Editora, 1958, pp. 241-245.
p. 804. : () Vide: Fernando Catroga, “Política, história e revolução em Antero de Quental”. Revista de História das Ideias, Coimbra, 13, 1991, pp. 7-55.
(3) Vide: Manuel Laranjeira, “Os homens superiores na selecção social”(1910): In Prosas perdidas. Selecção, introdução e notas de Alberto de Serpa. Lisboa, Portugáli (4) Eça de Queirós, “Um genio que era um santo”, Notas Contemporâneas
ob.cit., p. 277. p. 741.
(*) Antero de Quental, Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 461
de 14 de Novembro de 1886”. In: Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta nº 504,
(%) Antero de Quental, “Arte e Verdade”. In: Antero de Quental, Obras completas. Filosofia , ob. cit. p. 38.
Parte 1 — Capítulo 5
Darwin em Portugal
138
sonetos(!) brotam da aliança espontânea e criadora do poeta com o fil
sofo! Eça diria: “Eu só conheço um homem, uma excepção, em que 6
sumo génio poético se alia à suma razão filosófica. É o nosso Antero Quental (...) cada soneto é o resumo poético duma agonia filosófica: E por isso que a Alemanha (...) os fixou religiosamente na sua literatur, como uma cousa rara e sem precedentes, uma pérola fenomenal de criaçã desconhecida, única no grande tesouro da Poesia Universal”(?). É imp rioso ouvir o soneto: O e Cote ,
FE ret, em Ee peca memo TO
GU ubguitoperatoo ar aa da
Ele ta, 6femea, qua bra ola credo adia
SP remete aguia imimgoo nro meme
7” = Ms, fer Lita, Pica cam sto quatoo a teriam rndoa eg Pu Comtrar, qine E. mmrerho fimom,
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Ligo o infiniee, Lo quase, o: Lhas, cri imcto ca mar (ao
f
.
==
ei E raro
/ eteaves da (PP
O que imediatamente salta à vista, nesta composição poética ante-
a(!), é que ela não se intitula A Evolução, mas, Evolução. Sem artigo inido, à evolução parece não ter princípio nem fim, parece excluir o
blema metafísico da causalidade final e, de certa maneira, corresponder
imprevisibilidade do processo evolucionário, tal como Darwin o cebeu. Mas, percorrendo o soneto, compreende-se que se trata de o mais denso: o título Evolução, sem artigo definido, e sem artigo
efinido, diz que não se trata de determinada ou indeterminada evoão, mas de toda a evolução. Ela é objectivada a partir do eu (“Fui ha... Rugi...”), já que é a consciência individual que tem acesso ao
nhecimento de todo o ser e, só nessa medida, é dado ao homem exprir o caminho teleológico da dialéctica evolucionária. Por se tratar de
olução no sentido universal, absoluto e sintético (no sentido hegeliano) ue as formas verbais se apresentam no pretérito passado e no presente. ndo que, o presente é aberto ao futuro, como no terceiro verso do se-
ndo terceto: “E aspiro unicamente à liberdade”. O eu projecta-se no uro é este enraiza-se no presente-passado através da partícula conjun-
a “E”. Assim, a consciência filosófica, objectivada no e pelo eu anteno, sabe que foi “rocha”, “tronco”, “fera”, “monstro primitivo”; sabe
ejá não é tudo aquilo porque, entretanto, se fez homem : “Hoje sou mem e na sombra enorme / Vejo, a meus pés, a escada multiforme,/
ue desce, em espirais, na imensidade...”. Vendo o longo devir do ser
di ge” Eee md ma drfra exorrama—
Le egos em aufiraso ma
139
Va Ra,
io
U Ler acto
=
Afio dó Dee
(b Em “Carta a Fernando Leal, Vila do Conde, 12 de Novembro [de1886]”, Anter confirma a forma poética da sua filosofia: “Meti neles o melhor da minha Filosofia.
mano, a consciência filosófica compreende que o homem ainda é o que mas já não é, dado que, “sem o esforço sempre renovado do pensanto para a razão, da vontade para a justiça, de todo o ser social para o al e a liberdade, o caminho andado escorrega debaixo dos pése a anilidade toma outra vez posse do terreno onde o espírito, adormecendo, o soube manter-se”(2). Deste modo, a evolução da espécie humana entro da dialéctica ascendente do Ser, que envolve a humanização do que a tomada de consmem no decurso da história, não é mecânica,já 2. » =
.
4
: ncia do quese foi, se é e se pode ser, é um momento decisivo do proso evolucionário. Ora, essa consciência do passado, do presente e do uro que, sendo uma consciência histórica, não se esgota nela, porqueé,
teticamente, uma consciência metafísica, não decorre automaticamente
(Antero de Quental, “Evolução”, A Ilustração, Paris, 2 (20) 20 Out.1885,
Obras completas. Cartas ... ob. cit., vol. 2, carta nº 503, p. 802.
508.
tos), Porto-Lisboa, Livraria Leilo & Irmão Editores-Aillaud & Lellos, s.d., pp. 421-422
tio XIX”In: Obras completas. Filosofia , ob. cit., p.164.
(2) Eça de Queirós, “O “Francezismo” “. In: Ultimas paginas (Manuscriptos inedi
(2) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do
140
Darwin em Portugal
duma relação fisicalista entre uma causa e um efeito. É pela sua vontade racional de ser livre, cuja força se manifesta com umaintensidade pro:
gressiva no curso dialéctico da história e, portanto, na desenvolução do Ser, que o homem toma consciência do seu lugar no Ser enquanto sendo. Se “o simples facto da história prova (com uma força probante sui generis mas invencível para quem se reconhece homem) a identidade da vida moral e do princípio do universo”(1), o certo é que essa identidade se sub, tancializa no momento dialéctico em que a vontade inconsciente de liberdade se torna consciente, pois só então o Ser toma consciência de si. A verdade do homem, enquanto espécie, enquanto humanidade é enquanto indivíduo, coincide com a verdade do Ser universal e esta não s desvelará enquanto o homem, no seu devir, não se tornar a medida d todas as coisas. Por isso, no primeiro terceto da composição poéticofilosófica Evolução , Antero diz que o homem nem sempre foi homem,e.
que, se ele, hoje, já é homem, simultaneamente, é apenas homem, alguém
que pode querer ultrapassar a sua imperfeição, indo conscientemente ag: encontro da essência do seu ser, que é também a “essência última do
Ser(2), isto é, a Liberdade.
Toda a “metafísica indutiva” de Antero está contemplada neste soneto que “esconde tanto quanto revela”(2) o caminho do determinism (Darwin, mas também Hackel) à liberdade, traçado dialecticamente em obediência à certeza onto-metodológica que alcançou através do seu pai bilidade de se pensar e de se querer a liberdade; o determinismo não sinónimo de fatalismo, perante o qual o homem se rendesse impotente e ele se entregasse, como se ainda fosse rocha, peixe, réptil, ave, ou qual
(1) Antero de Quental, “Carta de Vila do Conde a Jaime de Magalhães Lima, de. 14 de Novembro de 1886”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 504. p. 804. Sublinhado de Antero. (2) Idem, “Carta a Oliveira Martins, Ponta Delgada,30 de Maio [de 18877”, ibidem
carta nº 525, p. 841.
Parte 1 — Capítulo 5
141
uer bicho, tanto mais que, mesmo nos níveis inferiores de organização da
atéria, isto é, de manifestação do Espírito, a consciência filosófica recohece sinais absolutamente inconscientes, ténues e incipientes, da vontade le liberdade: “Um espírito habita a imensidade: / Uma ânsia cruel de liberade:/ Agita e abala as formas fugitivas”(1). Ainda queo objecto central
a nossareflexão não seja a metafísica anteriana, gostaríamos de sugerir a
ercepção da suacintilante densidade através do confronto entre o soneto
anteriano Evolução e o poema de Guerra Junqueiro Ideal Moderno 1889)(2). No seu longo poema, Guerra Junqueiro interroga a cadeia evontiva da matéria, inculcando-lhe uma força anímica pela qual os níveis nferiores de organização da matéria aspiram a um grau superior. Assim, a ocha: deseja ser lama, a lama ambiciona transformar-se em verme, O
erme aspira a ser peixe, O peixe deseja ser réptil, o réptil sonha com a asa para O vôo e a mão para a conquista”, o quadrumano tem como ideal homem. E o homem? “Que é que desejas, diz ! Prometeu fulminado /
Qual a tua ambição, teu ideal incoercível?/ E ser ou lodo inerte ou ochedo impassível!”. Se bem julgamos, entre a aspiração da consciência nteriana à liberdade e este ideal nadificante da vontade auto-superadora , o homem existe uma distância abissal. No entanto, o monismo dialéctico de Antero não exclui, nem é
ndiferente à hipótese científica da continuidade natural noprocesso
volutivo dos seres vivos. Não exclui, nem é indiferente ao fisicalismo
monista de Heeckel, ao afirmar implicitamente a inexistência de ruptura ntre o inorgânico e o orgânico: “Fui rocha...”. Mas, ultrapassa-os, interando-os no campo do verdadeiro pensamento filosófico, o único que
ode compreender o homem, enquanto medida de todas as coisas, Com
feito, o homem do transformismo(?) é, para Antero, um homem inaabado, um pré-homem, um homem não-humano, porque insciente de ue, pela faculdade de interpretar toda a existência, se aparta dela. Não ara a hostilizar, não para estabelecer fronteiras entre si e os demais eres, não para narcisisticamente se deificar, mas para humanizar toda a
() dem, “Carta a Carolina Michaélis de Vasconcelos, Vila do Conde, 7 de Agost
[de 1885)”, ibidem, carta nº 465, p. 748.
(4) Vide: Idem, ibidem. Com efeito, na carta que escreve a Carolina Michaélis di
Vasconcelos, em 7 de Agosto [de 1885], Antero volta a reconhecer que foi Hegel que des
pertou nele o pensador, o filósofo “que por muito tempo só se exprimiu pela boca d poeta”, E, Antero esclarece: “... a linguagem abstrusa, o formalismo, a extraordinári abstracção de Hegel não me assustavam nem repeliam; pelo contrário: internava-me com audácia aventureira pelos meandros e sombras daquela floresta formidável de ideias (... Era uma grande ilusão (...) mas essa ilusão (...) para quê encobrir esta minha velha e inive terada pretensão? — fez de mim um Filósofo!” (p. 748).
(1) Antero de Quental, “Carta a Joaquim de Araújo, Vila do Conde, Junho de1882”, Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 387, p. 637. É o primeiro terceto do
oneto “Pampsiquismo”, publicado com o título “ Redenção 1“, nos Sonetos Completos,
ob. cit. p. 141.
o
.
(2) Vide: Guerra Junqueiro, “Ideal Moderno. Resposta aos pessimistas ,
À Ilustração, Paris, 6 (15) 5 Ago. 1889, p. 234. Também publicado na Revista de Portugal, Porto, 1, 1889, pp. 64-66, onde traz a data de 17-12-88. (3) Vide: Artur Viana de Lima, L'homme selon le transformisme, ob. cit.. :
142
Darwin em Portugal
existência, aproximando-a mais de si. Não para instrumentalizar: a natureza, o que também é seu poder, mas para a fazer comungar do Bem,
tanto quanto isso é possível, e é-o, unicamente, através da consciência
meta-científica do homem. Assim, Antero humaniza a natureza, sem
desnaturalizar toda a existência, incluindo a espécie humana, enquanto que os naturalistas animalizam o homem, entificando a natureza e elevando-a à medida de todas as coisas. Estes, permanecendo fiéis aos seus princípios
CAPÍTULO 6
científicos, jamais poderão alcançar a Liberdade, “A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência”(!). Se aceitassem que esta é a verdade do Ser, uma
A salvação filosófica da ciência ou a anteriana “teia de Penélope”?
vez que explicam o superior pelo inferior, teriam de admitir uma ruptura entre o natural e o espiritual, o que logicamente conduziria à postulação do dualismo ontológico, e, portanto, à negação dos resultados do seu próprio
“Abandonnée à elle-même, la science dégénere. (...) ella a besoin d'un guide.
trabalho científico.
est décisif de savoir d'oà ce guide vient et quel sens il donne à la science”(1!)
Por ter compreendidoo vazio ético-filosófico inerente a toda a explicação científica do real, especialmente preocupante no caso do darwinismo antropológico, e não apenas em virtude da matriz hegeliana do seu pensar, é que Antero, para salvarfilosoficamente a ciência, concebe que o “espírito moderno” tende para o “pampsiquismo”: “Parece-me que é esta a tendência do espírito moderno que, dada a sua direcção e os seus pontos de partida, não pode sair do naturalismo, cada vez em maior estado de
“bancarrota, senão por esta porta do psicodinamismo ou pampsi“quismo”(2). Entenda-se: “sair do naturalismo”, permanecendo nele. Já “em Junho de 18820), Antero tinha dado corpo poético ao seu pam- psiquismofilosófico:
(1) Karl Jaspers, “Essence et valeur de la science”, art. cit., pp. 8-9. (2) Antero de Quental, “Carta a Wilhelm Storck, Ponta Delgada 14 de Maio de 1887”, Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 524, p. 839.
(1) É o primeiro verso do último terceto do soneto VIII “A Ideia”, Sonetos com-
pletos. ob. cit., p. 92.
(3) Antero de Quental, soneto inserto na “Carta a Joaquim de Araújo, Vila do
Conde, Junho de 1882”, Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 387, pp. 636-
-637:
Darwin em Portugal
Pampsiquismo
— À Exº Sr” D. Celeste Cinatti Batalha Reis — Vozes do mar, das árvores, do vento! Quando às vezes, num sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso, Eu julgo igual ao meu vosso tormento... Verbo crespucular e íntimo alento
Das coisas mudas; salmo misterioso; Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento? Um espírito habita a imensidade: Uma ânsia cruel de liberdade Agita e abala as formas fugitivas. E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha... Almas irmãs da minha, almas cativas!
À aspiração à liberdade não implica ruptura com a natureza, mas a adaptação desta à sua verdadeira força motriz, à causa-fim espiritual de
todo o universo, que “só se revela aos homense às nações / No céu incor-
ruptível da Consciência”(!). Em virtude da unidade Ôntica espiritual e da continuidade existente entre todos os graus do Ser, o pan-materialismo |
científico, cheio de tempo cronológico, mas vazio de tempo real e,
portanto, de ser, volve-se num pampsiquismo, através da consciência | filosófica, única instância capaz de o reconhecer e validar comotal,
A consciência individual, elevando-se acima de todos os condi-
cionalismos, eleva consigo todo o universo com o qual faz corpo e realiza O fim para o qual se dirige a espiral dos seres, desde o mais simplese ínfimo até ao mais complexo e sublime. Esta visão optimista é o ponto de chegada da peregrinação filosófica anteriana, impondo-se à sua consciência como necessária, sob o ponto de vista lógico, ontológico e ético, isto é,
Parte 1 — Capítulo 6
145
das as suas formas , é um absurdo”(!), o que, sendo pensável, não é,
da; de modo algum,o alfa e o ómega da consciência filosófica que se
ntifica com a ideia de liberdade(?). A consciência individual é o lugar r excelência onde se concretiza absolutamente (no sentido hegeliano) o
m imanente a todo o processo evolucionário, na medida em que ela, ndo uma consciência total, isto é, cósmica, natural, histórica, social e
olítica(?), coincide com a consciência universal. Por mais rigoroso que seja o tempo geológico dos naturalistas, por — ais exacta queseja a explicação científica da evolução, a ciência não tem esso ao tempo real que é imanente ao tempo cronológico do devir e lhe á o sentido teleológico, porque esse tempo,que é o da aspiração ao Bem, ntificado com a Liberdade, não se pode medir nem pesar. Nasua essênirrédutivelmente metafísica, ele não deixa sinais ou remanescentes da a passagem, possíveis de objectivar mediante operações algébricas ou ométricas. Mas que ele existe, prova-o toda a história (a história da
atéria, da vida, da humanidade, do indivíduo) interpretada superiormente
ela consciência ética do verdadeiro filósofo, que é aquele que pensa o Ser . uz dos resultados alcançados pelo espírito científico do seu tempo. e à construíss se que ar finissecul filosofia a Para Antero, toda jargem das revoluções científicas do século e, em particular, da revolução
larwiniana(?), seria como um ribeiro(?) correndo para parte alguma, sem (1): Antero de Quental, “Carta de Vila do Conde a Jaime de Magalhães Lima, de 14 de Novembro de 1886”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 504, p. 803. (2) Vide: Antero de Quental, “Carta a Jaime Batalha Reis, Porto, 24 de Dezembro 1885]. In: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2, carta nº 476, p. 762. (9) Fernando Catroga afirma, com razão, que é “verdade inconcussa que a teoria a prática políticas de Antero serão mal compreendidas se não forem interpretadas à uz da sua metafísica”, in “Política, história e revolução em Antero de Quental”, art. cit.,
91, po7. o Vide: Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do éculo XIX”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit. pp. 133-134. (é) Estamos, de certo modo,a parafrasear a imagem que Antero nos dá de todas as filosofias: gregas que não afluiam àquela Filosofia que verdadeiramente interpretou o seu impo é que fecundou todaa filosofia ocidental: “A grande corrente do pensamento grego, nica que teve suite , que não foi mero brinco dialéctico, é a que saindo de Parménides Anaxágoras, se estreita em Sócrates, se alarga e alteia em Platão, e vem a ser vasto lago
a
144
metafísico. Quedar-se no pessimismo significaria aceitar que “o Ser, sob
Aristóteles, ao qual, realmente, todos vão beber, neo-platónicos — alexandrinos, estóiS, € Iuri quanti (...): o resto eram ribeiros caprichosos, muito belos e sussurrantes, mas
( Dois últimos versos do segundo terceto do soneto VIII de “A Ideia”, Sonetos
pósito fundo “, Antero de Quental, “Carta dirigida a Oliveira Martins, 26 de Setembro
rrendo à toa, perdendo-se aqui num deserto areento, ali num charco, sem darem um só
completos, ob. cit., p. 92.
[1873P. In: Obras completas. Cartas... ob. cit.., vol. 1, carta nº 117, p. 217.
146
Darwin em Portugal
Parte l — Capítulo 6
destino e à deriva. Ela traria a marca do inactualismo e seria reconhecida como uma sobrevivência de outras épocas, fechada ao presente: é ao futuro, e, portanto, inadaptada, que o mesmo é dizer, condenada à extinção.
Assim sendo, para salvar a metafísica, Anterotinha de salvar a ciên-
cia. Tratava-se de algo, lógica e historicamente necessário, atendendo às
relações existentes entre ambas, na modernidade pós-renascentista: “De facto,a filosofia e a ciência dos modernos têm caminhado sempre de mãos dadas, apoiando-se, inspirando-se e corrigindo-se mutuamente: cada passo para diante no terreno da especulação provoca logo no campo dasciências uma remodelação das suas teorias gerais, assim como a fundação de mais uma ciência, ou simplesmente o levantamento de mais uma secção no
edifício de qualquer delas, propondo à especulação um mundo novo de factos, obriga filosofia, que tem de os interpretar superiormente, a aprofundar ou definir melhor os seus princípios”(!). Portanto, a “Metafísica indutiva” de Antero, inscrevendo-se na modernatradição dialógica entre a ciência e a filosofia, aceitava o princípio científico segundo o qual não existia uma barreira entre o homem e a “escada multiforme” que lhe levou tantos milénios a subir, no meio de tantos combates. Se o passado do homem não era ultrapassado, cabia à filosofia verdadeira tomar consciência do vazio ético do mecanicismo naturalista, assumir a “virtualidad ilimitada”(2) da vontadee levar para diante a aspiração do homem à liber dade. Caso contrário, a humanidade permaneceria no estado de Adão e Eva no paraíso(), segundo a expressão que, ironicamente,intitula o belo
conto queirosiano da aventura da espécie humana na terra: uma aventura
ficcionada a partir do código darwiniano mas que, simultaneamente, escapa ao determinismo natural, sendo por isso, também, uma história (da busca) da liberdade. Sob o título Tendências ... no plural, o que Antero buscava era à 4
tendência unificadora, a confluência sintética, isto é, integradora
(1) Antero de Quental, “ Tendências gerais da filosofia na segunda metade d século XIX”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit. p. 123.
147
peradora, tanto do conhecimento científico, como da leitura cientista da
ência, a sua convergência numa problematicidade radicalmente filosóca, isto é, metafísica: “concebo que sem sair do naturalismo (quero dizer ir para o sobrenaturalismo) se pode, pela aprofundação da natureza mana (e, por analogia invencível, de toda a natureza), chegar ao mais mpleto espiritualismo, a um pampsiquismo que se acomoda perfeitaente; ou antes, harmoniza necessariamente com o determinismo, e ainda
aterialismo das ciências naturais e a concepção do mundo natural que las sai”(!). Eis, em síntese, a resposta à pergunta que inicialmente forulámosà filosofia anteriana. À sua escrita é clara e precisa. Antero, neste nso resumo filosófico, escrito em 1886, tem, mais uma vez, o cuidado distinguir ciência e cientismo e de não excluir da sua síntese metafíca aquelas formas de expressão do pensamento que considera “pseudolosóficas”, como o cientismo de Hackel. As falsas filosofias também ham uma função a desempenhar no todo dialéctico onto-epistémico.
as significavam que não era mais possível fazer filosofia à margem da
ência. E se a ciência invadia o campo filosófico(Z) e, para Antero,
crificava a verdadeira filosofia, identificando-a com uma longa e mulsecular tradição de ilusões e erros da razão humana, isso denotava uma
ise(?) na cultura ocidental que teria de se ultrapassar dialecticamente la harmonização das três potências envolvidas. Para tanto, o caminho ontado por Antero era o da “aprofundação da natureza humana”, isto é, toda a natureza, dada a “analogia invencível” entre ambas. Assim, conquanto Antero em A Filosofia da Natureza dos aturalistas denuncie os limites do monismo de Hackel e afirme o valor lativo do mecanicismo evolucionário de Darwin, parte do reconheci-
ento dosresultados científicos e dos cientismos para alcançar o conheciento da substância autêntica do ser, na sua plenitude. Tal como o fruto si mesmo, no seu interior, contém a semente, também a ciência e as
ncepções do mundo, que gravitam na sua sombra, guardam a verdadeira osofia.- Inconscientemente, escondem-na e protegem-na, salvaguar-
Publicado inicialmente no Almanach Encyclopedico para 1896 e para 1897, Lisbo
(H): Antero de Quental, “Carta de Vila do Conde a Jaime de Magalhães Lima, 14 de vembro de 1886”. In: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 2. Carta nº 504, p. 803. blinhado de Antero. Q).Vide: H. Hóffding, “The influence of the conception of evolution on modern osophy”. In: A. C. Seward (ed), Darwin and modern science, Cambridge, At the
(coordenação inedita por concluir), Lisboa, Parceria A.M. Pereira-Livraria Editora, 190) pp. 299-351.
(O termo crise não é usado com qualquer sentido de morbidez, degeneresficia ou crepúsculo, mas enquanto conflito dialógico entre a ciência e a metafísica.
(2) Idem, ibidem, p. 155.
(3) Vide: Eça de Queirós, “Adão e Eva no paraíso”. In: Contos. Fixação do texto
notas de Helena Cidade Moura. Lisboa, Edição “ Livros do Brasil”, s.d., pp. 119-15
Livraria António Maria Pereira, 1895 e 1896. Reproduzido in Diccionario de Milagre.
iversity Press, 1909, pp. 446-464.
150
Darwin em Portugal
Parte 1 — Capítulo 6
pena de se negar a si mesma, o que equivaleria a desumanizar-se. Assim, a filosofia anteriana não se propõe travar o livre curso da razão indutiva e experimental, nem orientá-la em determinado sentido, mas, pelo contrário, incitá-la na prossecução das suas investigações e do estabelecimento das | leis fenoménicas de todo o Universo. Portanto, ela não visa limitar o saber.
eja no grau inferior de luta pela vida, seja no grau máximo deluta “esponânea” e consciente da vontade pelo Bem, toda a luta, na aparência da egatividade da dor e do sofrimento, é positiva. À luta, embora intrinseamente seja sempre igual a si mesma, manifesta-se de modosdistintos. A
científico, em nome de imperativos formais ou de um dever-ser sobre
humano, o que provocaria artificialmente a infelicidade da consciência. Por tudo o que ficou exposto, compreende-se que Antero tenh; sustentado, de forma original, que “o darwinismo é uma grande fonte: ds consolação filosófica” (1). Enquanto expressão material fenoménica do
151
uta pela vida, enunciada pela ciência darwiniana é Ôntica e epistemologi4
amente diferente da luta pela verdade que é o batalhar sem fim da
ilosofia. No plano da inteligibilidade suprema, elas não são incomensu-
áveis(!), mas isto não significa que a ciência seja subsumível na filosofia vice-versa.
“drama do ser”(2), a luta pela vida, enunciada pela razão científica, é, par
o “materialismo idealista”(2) de Antero, “o melhor argumento do espiri tualismo”(4). A luta pela vida é a prova “...de quanto é vão / O bem que ao
Mundo e à Sorte se disputa”(º) e, simultaneamente, de quanto toda a luta
é plena de sentido, seja no plano natural, histórico-social ou espiritual(º) Inconscientemente, é lutando “... que a poeira movediça / De astros e-sói e mundos permanece”("). É lutando quea Ideia, através da razão cientí-
fica, dá existência à matéria(*). No nível supremo de inteligibilidade, é
pela luta consciente da razão filosófica “... que a virtude prevalece”(?), abrindo o caminho da libertação do homem de todos os determinismos
(1) Antero de Quental, “Carta a Germano Meireles, [Lisboa, Primavera de 1877]. In: Obras completas. Cartas... ob. cit., vol. 1, carta nº 209, p. 374. Sublinhado nosso. (2) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX”. In: Obras completas. Filosofia , ob. cit. p. 167. (3) Antero de Quental, “A filosofia da natureza dos naturalistas”. In: Obras .completas. Filosofia , ob. cit. , p.113. Sublinhado de Antero. (4) Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX”. In: ob. cit., p.152. (5) Antero de Quental, “Transcendentalismo” (A J.P. Oliveira Martins), Sonetos completos. ob. cit., p. 131. Primeiro quarteto. Soneto também reeditado na Revista Angrense (Angra do Heroísmo,1 (1) 4 Ago. 1887, p.3), portanto, entre a publicação-de 4 filosofia da natureza dos naturalistas e de Tendências gerais da filosofia na segun metade do século XIX. (9) Vide: Fernando Catroga, “Política, história e revolução em Antero de Quenta art. cit., pp. 7-55. . (7) Antero de Quental, “Hinoà razão”, Sonetos completos. ob. cit. p. 101. Segundo quarteto. Vide o mesmo soneto “Hymno á razão” publicado em A Voz do Proletári Lisboa, 1 (1) 10 Jan.1897, p. 3. (8) Vide: Antero de Quental, “Tendências gerais dafilosofia na segunda metade
século XIX”. In: Obras completas. Filosofia, ob. cit., p. 154.
(º) Antero de Quental, “Hino à razão”, Sonetos completos. ob. cit., p. 101. Segun
quarteto.
(!) Vide: Antero de Quental, “Tendências gerais da filosofia na segunda metade
culo XIX”. In: Obras completas. Filosofia, ob. cit., pp. 161-162.
Ro no
PARTE 2
DARWINISMOE HISTORIA
Ro
O E E
NO
seg
CAPÍTULO 1 A lógica teofiliana da história
1. História universal: um naturalismo historiológico de tipo darwinista? Em 1878, na sua Historia universal: Esboço de sociologia descripiva(!), Teófilo Braga, sem abdicar da matriz filosófica do seu pensamento — o positivismo comtiano(2) — reavalia a dependência ontognoseológica da história relativamente à biologia. Neste sentido, entende que “nada se pode compreender da marcha e destino das sociedades se abstraíftmos do conhecimento da natureza humana, não o conhecimento lusório das psicologias subjectivas ou dos dogmas teológicos, mas o sonhecimento directo, provado e demonstrado pela verificação experimental de todas as ciências concretas que constituem o campo da Biologia”(2). Este primeiro postulado, segundo o qual a inteligibilidade da dinâmica ocial pressupõe o conhecimento bio-antropológico, reflecte, sem dúvida, a fidelidade teofiliana à estrutura lógico-formal do sistema comtiano. Mas, “ao exigir que o conhecimento biológico do homem resulte do contributo de todas as ciências da vida experimentais e concretas, o autor não fica
(1) Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, Lisboa, “Nova Livraria Internacional, 1878-1882, 2 vols. Note-se o subtítulo. Ele está de acordo coma classificação comtiana das ciências. Com efeito, a História não tem um estatuto
“Autónomo no quadro hierárquico das ciências, concebido pelo matemático e filósofo francês. Vide: Ana Leonor Pereira, “No rasto de problemas actuais da história”, Revista de
História das Ideias, Coimbra, 11, 1989, sobretudo p. 607 e ss. (2) Sobre a ortodoxia e a heterodoxia do positivismo teofiliano, vide: Amadeu “Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga,
0b. cit.; sobretudo, pp. 91-219.
(3) Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit.,
vol. 1; p. 9.
156
Darwin em Portugal
condicionado pela dogmática anatomista de Comte(!). Antes, envered pelo caminho do pan-biologismo(?2) e, nessa medida, não admira que o autor tenha, desde logo, precisado que a condição de possibilidade de cientificação da história residia na “subordinação do facto social ao facto biológico”(?), no sentido em que a “História social da Humanidade estava inscrita na “História natural da Humanidade”(2). Portanto, impor tava prosseguir a objectivação científica da dinâmica social (Comte
morrera em 1857), atendendo à obra de reformulação da história natura
que, com Darwine, a partir dele, se estava operando desde 1859. Assim sendo, Teófilo postula que “a elevação milagrosa da espécie tornou-se uma consequência natural da lei da evolução”(*), o que signi-
fica que o evolver natural, cientificamente determinado, além de possibi-
litar o curso histórico que se traduz na lei dostrês estados, constitui o'seu subsolo positivo. As leis naturais da vida e, em especial, a norma evolu-
cionária, formam o referente último e radical de inteligibilidade do pro-
cesso histórico. Necessariamente, o “grande drama a História”(º) torna-se incompreensível sem a explicitação dos modos de relacionamento: do homem com o meio, considerado na sua amplitude cósmica e compreendendo os planos(”) astronómico,físico, químico, biológico e sociológico,
(1) Vide: Georges Canguilhem e outros, Du développement à V'évolution au XIXº siêcle, Paris, Presses Universitaires de France, 1985, pp. 23-25. (2) Vide: Amadeu Carvalho Homem,A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., pp. 314-315. (*) Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit. vol. 1,p. 9.
Parte II — Capítulo 1
157
gundo uma ordem de crescente complexidade, de acordo com a lógica
mtiana. Entre o biológico e o sociológico há uma relação de dependência recta que se substancializa na condição humana enquanto ser subornado a quatro agentes biológicos: “1º a Idade, influindo nas capacides sexuais, mentais e morais; o Temperamento, influindo na estrutura
gânica pela selecção, no cruzamento das raças, e portanto na sua vida
stórica; 3º a Hereditariedade, exercendo-se nos hábitos, nos vícios ngénitos, na transmissão dos progressos ou qualidades adquiridas pela ientação celular, e na constituição étnica da raça; 4º a Sexualidade, moti-
ando:a organização do par social na família pela agregação da prole, de
fância morosíssima”(!). Todos os agentes biológicos convergem para a lecção sexual e, por isso, o autor defende que “a sexualidade é um ctor biológico, que actuando sobre as diversas aptidões e caracteres que
ferenciam o par, se torna um dos principais modificadores sociolócos”(2). Assim, Teófilo, ao colocar a selecção sexual no âmago da nâmica- social, constrói a possibilidade de afirmar um naturalismo
stórico fiel aos princípios darwinianos().
Com efeito, o lugar deste tema na economia darwiniana é enunciado f François Jacob nos seguintes termos: “A luta pela existência é portanto tes de tudo uma luta pela reprodução. É na sua capacidade de se multiicar em dadas condições de existência, é no seu poder de engendrar scendência capaz de ocupar certos territórios, que os indivíduos são nstante e automaticamente postos à prova. A selecção penetra até aos nómenos de sexualidade”(*). Ora, no texto teofiliano a selecção sexual neretizada na família monogâmica é o substracto natural das sociedades
(4) Idem, ibidem, p. 10. Sublinhado do Autor. (5) Idem, ibidem, p. 11. Sublinhado do Autor.
(9) Idem, ibidem,p. 14.
(7 Na observação selectiva e algo diletante de Ramalho Ortigão “a História aparece-nos pela primeira vez em Portugal com carácter científico” na História Universal de Teófilo Braga. Vide: Ramalho Ortigão, Theophilo Braga. Esboço biographico, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1879, p. 12. Vide também a demonstração da “cientificidade” da obra teofiliana, ibidem, pp. 12-17, O esforço titânico de Teófilo para renovar a História à luz da ciência é expresso nestes termos singulares: “É o trabalho de uma geração inteira empreendido no cérebro de um só homem. É a tarefa de uma universidade ou de uma academia provida de todos os instrumentos de trabalho, — os gabinetes de física; 'os laboratórios químicos, os observatórios astronómicos, os gabinetes de fisiologia experimental, os teatros anatómicos, as colecções mineralógicas e zoológicas, os museus, arqueológicos e etnológicos e arquivos históricos — tarefa extremamente complexa,feita. por um só trabalhador isolado, sobre os seuslivros, no fundo do seu gabinete” (Idem, ibidem, p. 12). Entre outros méritos deste texto é de realçar que, a nosso ver, ele encerra uma
finição de cientismo, pela clareza com que expõe a atitude mental cientista, o seu “todo e os resultados ideológicos a que chega. Sobre esta questão, vide: Georges nguilhem, Ideologia e racionalidade nas ciências da vida, Lisboa, Edições 70, s.d.,
. 31-42; Fernando Catroga, A militância laica e a descristianização da morte em riugal 1865-1911, ob. cit, sobretudo pp. 245-256. (8) Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit.,
À. 1, p. 20. Sublinhado do Autor.
'
Idem, ibidem, p. 46. Sublinhado do Autor.
(*)-Vide: Yvette Conry, “Le statut de La Descendance de Vhomme etla sélection uelle?, De Darwin au darwinisme:science et idéologie. Congrês International pour le nienaire de la mort de Darwin. Paris-Chantilly 13-16 Septembre 1982. Édition “parée par Yvette Conry. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1983, pp. 167-186. (4) François Jacob, A lógica da vida, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1985,
170. Sublinhado nosso. Vide, também, pp. 13-27.
158
Parte II — Capítulo 1
Darwin em Portugal
históricas: “a sexualidade dirigida pelo sentimento da selecção e a long
infância da prole motivaram a constituição da Família, foco de todo «
progresso moral realizado pelo homem desde que se disciplinou. n; monogamia”(1). Teófilo valoriza a selecção sexual em moldes muito pró
ximos da teoria darwiniana, mas enquadra o tema na moldura filo
sófica do comtismo(?), através das noções correlativas de perfectibilidade moral da espécie humana e de progresso histórico. Na espécie humana há vários modos de selecção sexual que se plas: mam nos diversos tipos de casamento, de natureza monogâmica ou
poligâmica. Ora, Teófilo constrói uma leitura iluminista-positivista da diferenças entre a poligamia e a monogamia, fazendo corresponder
primeira a um estado de sociabilidade reprodutiva inferior, e elevando é
segunda à categoria de norma civilizadora ou de fonte capital do pro: gresso histórico. Graças à monogamia “a mulher, que ficou uma escrave ou uma prostituta para as raças turaniana e semita, para Os árias tornou-se um móvel de progresso, um princípio de altruísmo, um ideal e um culto”(3). O casamento monogâmico é o testemunho da superiorida das raças áricas(*) e, simultaneamente, a base de sustentação do: pr gresso(*), a caminho da universalização civilizacional positivista.
(1) Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva; ob. é vol. 1, p.49. Sublinhado do Autor.
(2) Vide: Idem,ibidem, pp. 47-49.
() Idem, ibidem,, p.49. (4) Sobre a origem filológica do chamado mito da existência de uma “raça ariana , vide: Julian Huxley, Nous européens, Paris, Editions de Minuit, 1947, p. 166 e ss. Foi Max Miiller (1823-1900) que, na década de cinquenta do século XIX, fez corresponder
língua ariana e raça ariana, uma ideia que rapidamente se converteu num mito: bi -antropo-histórico que conheceu várias versões nacionalistas. Em 1888, Max Miiller c rigiu publicamente a sua posição, afirmando que os árias são aqueles que falam língu cuja gramática é ariana, independentemente dos seus traços anatómicos (cor, cabel
forma do crânio, estatura, etc.) e características antropo-etnológicas. O erudito filólo,
denunciou o seu equívoco e alertou os etnólogos e os historiadores, designadamen nestes termos: “Pour moi, un ethnologue qui parle d'une race aryenne, de sang aryé d'yeux et de cheveux aryens, est aussi coupable qu'un linguiste qui parle d'un dictionnai dolichocéphale ou d'une grammaire brachycéphale” (citado por Julian Huxley, ob. € pp. 170-171). Como é sabido, os mitos não se desfazem com auto-críticas, nem à 5 construção é imputável a um único autor. (*) Vide: Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva,0 cit., vol. 1, pp. 51-60. A mesma ideia é reafirmada in Systema de sociologia, Port Livraria Chardron, 1908, p.122 e ss.
159
De acordo com o etnocentrismo(!) da cultura cientista da época e, articularmente, com a “teoria da distribuição das raças de Heeckel”(2), a ça ariana é colocada no topoda hierarquia das raças(2). À luz deste prenceito, podia deduzir-se que ela elevará a história à máxima perfectibi-
ade universal, pois, “esta raça conhecida pelo nome de Indo-europeia, é ue pelas suas condições de ubiquidade, que lhe dá a ciência e o poder,
bsistirá como única na terra”(4). Todavia, historicamente, a hegemonia
raça ariana foi precedida pela hegemonia da raça semítica, o que a
osofia positivista permite compreender(º), pela lei dos três estados. Foi
aça semítica a protagonista principal do estado mítico e teológico do
pírito humano, em virtude da sua natureza sentimental que lhe possibi-
ou alcançar o sentimento contemplativo superior monoteísta(º). Mas, a ntemplação relígiosa semítica culminou na apatia profética, tendo sido perada pela especulação filosófica, poética e científica dos árias. Raça mítica e raça árica são “as duas raças superiores do grupo humano”(”), s protagonizam as “duas grandes concepções que têm dirigido a manidade, a Religião e a Ciência”(8). E, se o estadocientífico, de acor-
com a lei dos três estados mentais-temporais, triunfa sobre os (!) Este etnocentrismo não está ausente em Darwin, The descent of man, and selecin relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented. on, John Murray, 1875. Vide, sobretudo, os capítulos V, VII e XXI, respectivamente 27-145; pp. 166-206; pp. 606-619. Como provou Yvette Conry, os estereótipos etnoistas da mentalidade burguesa de oitocentos formam, em parte, o “sous-texte” desta darwiniana; Cf, Yvette Conry, “Le statut de La Descendance de Phomme et la sélecexuelle”:, De Darwin au darwinisme: science et idéologie. Congrês International le Centenaire de la mort de Darwin. Paris-Chantilly 13-16 Septembre 1982, ob.cit, ialmente, p. 170. (2) Vide: Teófilo Braga, “Sciencia pre-historica por A. d' Andrade”, Revista de
udos Livres, Lisboa, 1, 1883-1884, p. 140.
(º) Vide: Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nalismos;: São Paulo, Editora Perspectiva-Editora da Universidade de São Paulo, “sobretudo. o capítulo 10, intitulado “A Era Ariana”. Vide também: Ana Leonor
à, Raças e história: imagensnas décadas finais de oitocentos”, Revista de História
deias, Coimbra, vol. 14, 1992, pp. 347-364. 8 o Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit.,
-D
5.
5) Vide: Georges Canguilhem, “Histoire de Phomme et nature des choses, selon ste Comte”, Les Études Philosophiques, Paris, 3, Jul.-Set., 1974, pp. 293-297. $) Vide: Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, vol. 2,p. 11.
?) Idem,ibidem,p. 10. * Idem, ibidem, p. 10. Sublinhado do Autor.
160
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 1
is o desenvolvimento da ordem comporta apenas uma possibilidade de
estados teológico e metafísico, nem por isso estes foram e são mengo
necessários. É que,a síntese objectiva (positiva-científica) tem de se sub jectivar para atingir a unidade do espírito humano e, assim, corporizar. sentido universalista da história. Com efeito, a religião da humanidade não é uma religião racista, n sentido em que nela a hierarquia das raças é apenas a tradução lógica d ordem de sucessão do protagonismo histórico das raças. O ariano sucede
vir. Mas, O futuro, embora seja unívoco, não é automático, na medida
4 que não resulta mecanicamente do desenvolvimento da ordem no mpo passado-presente. Em termos positivistas, o futuro sociocrático
pende da universalização do estado de positividade alcançado na o ropa. Se o progresso do espírito científico culminou na cientificação de
do 0 real, com a constituição da sociologia(!), é preciso queele se comu-
ao semita como a ciência sucedeu à religião. Mas, nem a ciência elimine;
o sentimento religioso do processo da história universal, nem astaç semítica se extinguiu. No último estádio do processo histórico, a espéci humana terá consciência da sua unidade na diversidade étnica. O ariano a ter compreendido, desde o milagre grego, “que a verdade é uma só, — Ciência (...) por ela se elevou à hegemonia perpétua da humanidade”(d), seu triunfo não resultou de qualquer circunstância ou acidente exterior, sua natureza orgânica, detentora de elevadas capacidades de adaptaçã racional ao meio geo-histórico, porque a lógica do processo civilizaciona
não comporta o factor acaso(?).
A fidelidade teofiliana ao cientismo de A. Comte() atravessa | dimensão naturalista pós-romântica da sua historiologia. Assim, com
preende-se a suarejeição do factor acaso na lógica da história. É inegáve
161
que às “concepções morais, políticas, jurídicas e económicas”(2) e, só tão, o futuro positivista objectivará o sentido solidário da história uni-
rsal.- Conforme se lê, textualmente, então, “a Europa realizará pela
primeira vez na história uma confederação destinada à regularidade e
nsciência do progresso. Desta grande liga resultará uma nova confraterdade moral, uma outra necessidade artística, uma identidade de direitos, ma reforma mais racionale digna para a autoridade e até a unificação da ça humana em um tipo superior"), resultante dos tipos anteriores que o continham em estado potencial. Este nível superior de civilização não se lcança espontaneamente, no sentido em que depende do cumprimento de
uma axiologia laica da combatividade, da luta e do esforço(?), o que, de
que esta recusa pode significar que, em certa medida, o seu naturalismc
historiológico, embora comporte traços darwinianos à superfície, .p
(1) Vide: Auguste Comte, Oeuvres d'Auguste Comte. Tome IV-Cours de philophie positive. Quatriême volume-Partie dogmatique de la philosophie sociale, Paris, itions: Anthropos, 1969 — Reimpressão da 5º edição (Paris, Au Sitge de la Société sitiviste, 1893). Sobretudo da 47º lição à 51º lição. Vide também: Amadeu Carvalho omem, A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., pp. 22132: Do mesmo autor, “Ilusões do cientismo nos primórdios da sociologia portuesa”. In: XII Encontro de Professores de História da Zona Centro, Coimbra, 1994,
manecefiel à lógica da vida pré-darwiniana(?) de tipo préformista, come
em A. Comte. Na verdade, Teófilo não questiona o postulado comtiano. segundo o qual, o progresso é o desenvolvimento da ordem e, por isso
todos os factos históricos obedecem a uma causalidade teleológica, aind
que, por vezes, pareçam casuais. Deste modo, na teoria teofiliana di
história, o futuro não está em aberto, como no genuíno darwinismo(?) :
(!) Idem, ibidem, p. 313.
.
(2) Vide: Teófilo Braga, “[Recensão crítica de] Coumot, M. — Considérations sur la marche des idées et des événements dans les temps modemes, Paris, Librair Hachette, 1872, 2 vols.”, Bibliographia Critica de Historia e Litteratura, Porto; (=
1873-1875, pp. 148-151; Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob: cif. vol. 1, pp. 56-57. (É) O cientismo comtiano é considerado paradigmático pelo MacMillan dictionary
ofthe history ofscience. Edited by W. F. Bynum,E. J. Browne, Roy Porter, ob.cit., p: 38 (4) Vide: Georges Canguilhem e outros, Du développement à Vévolution au XIXº siêcle, ob. cit., pp. 22-25. (º) Vide: Stephen Jay Gould, A vida é bela. Tradução de Ana Maria Pires et:al.
Revisão de Carlos Marques da Silva. Lisboa, Gradiva, s. d., sobretudo p. 286 e ss.
«101-118.
(2) Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit.,
L |, p.63.
É) Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit, L1,p: 63. Sublinhado nosso. Vide: Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal. Daformação ao 5 de Outubro de 1910, Coimbra, Faculdade de Letras, 1991, vol. 2, sobredo pp: 449-464, (4) Primacialmente, a luta pela reorganização do ensino e da educação à luz da . ilosofia positivista com o fim de unificar a consciência social no máximo grau de
racionalidade, ou seja, de acordo com o espírito científico, “normal *, “positivo” e 'defini-
tivo! da humanidade. Vide: Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit., vol1, pp. 5- 11 (sobre o “conflito das três educações”, teológica, metafísica e positiva). Do mesmoautor, vide Systema de sociologia, ob. cit., pp. 497-514. ide tâmbém: Fernando Catroga, A militância laica e a descristianização da morte em ortugal 1865-1911, ob. cit., vol. 1, sobretudo pp. 87-385.
162
Parte Il — Capítulo 1
Darwin em Portugal
modo algum, é estranho à lógica da vida natural(!). Mas a afirmação da luta não significa que o Futuro obedeça ao jogo dos possíveis, inscrito no “struggle for life”. As noções de imprevisibilidade, acaso, indeterminação, não têm lugar(2) na teoria teofiliana da história. Não obstante, a fidelidade teofiliana ao espírito positivista não impediu o autor de, na sua História universal, alargar a sua reflexão à
análise do factor rácico no evolver civilizacional, em termos que se distanciam do metafisicismo romântico, embora não reproduzam, de todo em todo, os axiomas do darwinismo. Neste sentido, como vimos, Teófilo
defende que a raça semita, em tempos hegemónica no mundo, sobretudo através dascivilizações fenícia, hebraica e árabe, foi ultrapassada pela raça ariana, justamente por não possuir a capacidade intelectiva e criativa necessária para levar mais longe o progresso civilizacional(). Fundamentalmente contemplativa, sentimental e nómada, a raça semítica desenvolveu o sentimento religioso que lhe deu unidade étnica e coesão social. Ela cumpriu a sua missão histórica, “pelo seu génio cosmopolita é
propagandista”(4), mas faltava-lhe o poder especulativo(”), trunfo incom-
parável pelo qual a raça árica se havia de impor e selar o evolver civilizacional. Assim, Teófilo Braga considera que a obra de emancipação mental encetada pelas civilizações árico-helénicas, e continuada pelas civilizações árico-românicas, árico-germânicas e árico-eslavas, culminou no pleno triunfo do espírito científico sobre o espírito religioso, nos séculos XVII e XIX. Logicamente, o autor conclui que a potência especulativa da raça ariana é a fonte originária, ou melhor, o solo biológico, que alimenta e garante o domínio perpétuo do futuro(º), pelo seu poder de alcançar a objectividade científica solidária-sociocrática e de à (!) Vide: Antonello La Vergata, “La lutte et effort”. In: Nature, Histoire, Société. Essais en hommage à Jacques Roger, s.1., Klincksieck, 1995, pp. 241-252 (2) Quando muito, poder-se-ia dizer que Teófilo não nega que os Grandes Homens; actores-autores de primeiro plano no curso histórico, sejam fruto de uma boa here: ditariedade e, de algum modo, de um acaso feliz na “selecção biológica” (Systema de sociologia, ob. cit., p. 155). Vide também Idem, “[Recensão crítica de] M. Cournot, Considérations sur la marche des idées et des événements dans les temps modemes, Paris;
Librairie Hachette, 1872. 2 vol.”, art. cit., pp. 148-151. (*) Vide: Teófilo Braga, Historia universal: Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit., vol.2, p. VI.
(4) Vide: Idem,ibidem, p. VI. (*) Idem, ibidem, p. 10 e ss.
(5) Vide: Idem,ibidem, pp. 312-313.
163
consumar subjectivamente na religião científica da história universal da humanidade. A valorização da raça ariana e, portanto, do seu lugar na história universal, não era um argumento original nas décadas finisseculares de oitocentos, mas o certo é que ele ganhou um novo alento sob o impulso das investigações darwinistas-cientistas(!). Assim sendo, cumpre-nos aprofundar o pensamento teofiliano nesta matéria, para podermos ajuizar com segurança se o seu naturalismo histórico era de tipo darwinista. À semelhança do que acontecia na sua História universal, também no seu Systema de sociologia, dado à estampa dois anos depois, Teófilo Braga colocou como problema central, na compreensão científica da
história, a análise dos dados obtidos pelas pesquisas antropo-etnológicas sobre as raças humanas, propondo uma “classificação das civilizações
segundo os caracteres das raças”(2). Com efeito, o autor concebe uma teo-
ria racialista da história, segundo a qual, “nenhuma civilização histórica pode ser compreendida nem explicada sem o estudo étnico da raça”(9). Esta abordagem étnica não se reduzia ao critério físico-morfológico de distinção das raças, mas também não o excluía. Pelo contrário, sem ter em conta a noção biológica de raça, não se podia objectivar cientificamente a noção de raças históricas ou “sociológicas”(4), dada a sua ligação estrutural. Essa impossibilidade de definir a noção de raça histórica à margem da noção de raça biológica decorria do princípio comtiano do continuísmo hierárquico do real e consequente subordinação onto-lógica do superior ao inferior. Mas, este preceito positivista não era incompatível com uma formulação de tipo darwinista da relação de dependência das raças históricas relativamente às raças biológicas. Se Teófilo releva as diferenças raciais nos planos linguístico, religioso e sócio-político, cuida quase obsessivamente de salvaguardar a identidade bio-antropológica de cada raça, não em moldes estáticos, mas inscrita na realidade histórica dos cruzamentos bio-étnicos em diferentes condições mesológicas. Por isso, como sublinha o autor, “um grande (1) Vide: Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos
nacionalismos, ob. cit., p. 282 e ss..
o
(2) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., pp.159 e ss. Esta edição é igual à primeira edição ( Lisboa, Typ. de Castro Irmão, 1884). . o () Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p.136. | (+) “Raças sociológicas” é a denominação aplicada por Teófilo Braga in 'O que são raças sociológicas”(1908), in Fran Paxeco, Portugal não é ibérico, Lisboa, Livraria
Rodrigues, 1932, pp.187-189.
164
Darwin em Portugal
número de fenómenos históricos particulares e até especiais só podem se bem compreendidos procurando-lhe as suas origens orgânicas”(1), já qu a inteligibilidade científica da dinâmica histórica tem de repousar na ló gica natural orgânica da vida. Por isso, o autor interroga afirmativamente “o que é O antagonismo das raças, produzindo o fenómeno esplêndido da, nacionalidades, senão uma forma superior de perfectibilidade realizad. pela concorrência vital e pela selecção da espécie na ordem biolá gica?(2). E, no mesmo sentido, reafirmando a sua posição, Teófilo acres centa: “O que é a tradição, a persistência e recorrência do costume, fonte
de todas as criações poéticas e depósito das descobertas morais, senão uma continuação do mesmofacto biológico do atavismo, que é na espécie uma causa de aperfeiçoamento dos cruzamentos?"(2). É evidente que Teófilo não pode equacionar o problema fora das noções de progresso e de per-
fectibilidade substancializadas em moldes comtianos, o que não é, de
forma alguma,original, pois todas as construçõescientistas(4) desta época comportavam uma moldura filosófica. Ela servia para dar unidade às proposições científicas em jogo mas, ao fazê-lo, por regra, alterava o sentido que essas proposições, leis ou enunciados tinham no seu campo científico originário. No caso do cientismo teofiliano, embora as raças não existam em
estado puro, pois a mestiçagem é um facto de longa data(Ê), cientifica-
mente provado, o certo é que o autor postula que os cruzamentos não
modificaram o tipo antropológico de cada uma. Ora, defender a permanência do tipo antropológico e, simultaneamente, recorrer à lógica darwiniana da descendência com modificações significa usar abusivamente os elementos científicos, como é característica do cientismo(f).
Mas, como provou Yvette Conry, nas décadasfinisseculares de oitocentos,
não havia condições para ser de outro modo, atendendo sobretudo à inexistência de umateoria científica da hereditariedade(”). (1) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 117, (2) Idem,ibidem, p. 117. Sublinhado do Autor. () Idem, ibidem, pp. 117-118. Sublinhado do Autor.
() Vide: Amadeu Carvalho Homem,”Ilusões do cientismo nos primórdios da
sociologia portuguesa”. In: XII Encontro de Professores de História da Zona Centro. ob. cit., pp. 101-118. () Vide: Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 170 e ss. (6) Vide: Tom Sorell, Scientism. Philosophy and the infatuation with science, London and New York, Routledge, International Library of Philosophy, 1994. (7) Vide: Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIX* siêcle, Paris, Librairie Philosophigue J. Vrin, 1974, p. 126 e ss. Vide também F. Jacob, A lógica
Parte II — Capítulo 1
165
A partir do postulado da permanência do tipo antropológico, o autor
funda a possibilidade de construir uma teoria racialista da história, acaute-
lada-dos desvios racistas pela religião da humanidade. Assim sendo, o desenvolvimento daquele postulado explicita-se na afirmação de que as relações, influências mútuas e cruzamentos entre as duas grandes raças, a
semítica e a árica, desde os tempos ante-históricos mais longínquos, não afectaram a constituição orgânica-mental de cada uma. Textualmente: “o aparecimento da raça dos Árias na história é o fenómeno do desenvolvi-
mento e elevação da espécie humana não só enquanto à perfectibilidade da sua constituição física, como enquanto à sua capacidade moral ou psicológica, para um progresso sucessivo. As raças que iniciaram as civilizações
metalurgistas e industriais, como os mongolóides e melanóides, represen-
tam um grau ainda relativamente inferior da humanidade, os próprios mitas que assimilaram e propagaram esses resultados (...) têm (...) esse carácter de inferioridade de que não puderam desfazer-se apesardo contacto com os ramos mais desenvolvidos dos Árias”(!). A hierarquização dasraças humanas e, particularmente, na “raça branca” o postulado da inferioridade do semita em relação ao ariano, não procede directamente da obra de Darwin(2), mas a partir da revolução darwiniana, institui-se uma ciência racial) que dá cobertura a esta fórmula judicativa, corrente nas teorias raciais da história, a partir dos anos oitenta do século XIX, sensivelmente. Foi, sobretudo, numa obra de 1885, O povo português nos seus cosumes; crenças e tradições(*), que Teófilo Braga expôs os fundamentos da vida, ob. cit., pp. 170-175. Sobre a proliferação de teorias particulares de hereditariedade de 1880 a 1900, vide Y. Delage; M. Goldsmith, As teorias da evolução. Trad. Armando Cortesão. Lisboa e outras; Aillaud e Bertrand — Liv. Francisco Alves, 1914(7), (') Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., pp. 171-172. (2): Vide : Léon Poliakov, Histoire de Vantisémitisme. 2. L'âge de la science, Paris, Calman-Lévy, 1981. E também do mesmo autor “Spéculations aryennes sur Punivers (1809-1945)”, Le Genre Humain, Paris, 12, 1985, pp. 247-263. Neste artigo Poliakov
fende que “il faut attendre les années 1840 pour voir deux auteurs proclamer, indépen-
damment Yun de autre, la supériorité des Aryens sur les sémites (...); ce sont Ernst Renan
en France, et Vindianiste Christian Lassen en Allemagne”, art. cit., p. 248. : (3) Nomeadamente com Wallace, Broca, Virchow, Gumplowicz, Heckel, Otto Ammon e outros. Vide: Pierre Thuillier, Darwin & Cº. , Bruxelles, Editions Complexe, 1981, pp. 123-129; Jacques Ruffié, De la biologie a la culture, Paris, Flammarion, 1983, VOL 2, pp. 166-189; Benoit Massin, “Lutte des classes, lutte des races”. In: Des sciences
contre "homme, Paris, Éditions Autrement, 1993, vol. 1, pp. 123-129. (*) Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, Lisboa, Livraria Ferreira-Editora, 1885, vol.t, pp. 1-67.
166
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 1
167
Ra
científicos da sua etnohistória ou da sua “Demótica”. Esta compreendia “a Paleontologia humana, tal como a têm desenvolvido os geólogos e:os antropologistas (Lyell, Broca, Quatrefages, Hamy, Huxley); e a Etnografia dos costumes, instituições e formas de actividade (Lubbock, Tylor)”(1)
etc., na primeira parte; seguiam-se uma “Demopsicologia” e outras disciplinas científicas afins, concebidas segundo “o critério científico moderno,
ampliando as leis cosmológicas e biológicas aos fenómenos sociais”(2). Do vasto acervo de considerações teórico-programáticas elaboradas pelo autor, importa registar a sua concepção antropo-etnológica e sociológica de hereditariedade. Segundo Teófilo Braga, a transmissão hereditária compreende três formas de interesse crucial para a sua “Demótica”. São elas: a persistên cia, a recorrência e a sobrevivência, três modelos de atavismo, pelos quais
o passado nunca é ultrapassado: “assim como nos organismos mais: pérfeitos os biologistas vão encontrar certos orgãos sem destino, que não correspondem a nenhuma função actual, mas que subsistem como última dependência de uma fase morfológica que passou, também nas sociedades se conservam manifestações automáticas em antinomia com a situação actual das consciências”(2). Por isso, as sociedades têm uma “idade natural” e uma “idade civilizada”(4) que coexistem e, é a objectivação científica da primeira que possibilita o conhecimento da segunda.
A persistência étnica verifica-se em variados costumes, hábitos e
valores ideativos que, sob a acção mesológica, se tornam automáticos . e são observáveis em todas as raças. Assim, “nas raças inferiores esta persistência quase que se confunde com a estabilidade improgressiva do instinto animal”(). Neste sentido, Teófilo apresenta vários exemplos, entre os quais, a construção da casa segundo moldes estáticos, exacta-
mente como a construção do ninho por muitas espécies de aves. À per-
sistência étnica tem uma raíz orgânica e, por isso, Teófilo encontra formas
comportamentais e ideativas que se conservam imutáveis, embora o seu conteúdo possa variar. Este fenómeno biológico, “de conservação dos moldes de actividade ou costumes que já não condizem com o estado moral ou mesmo com as ideias dominantes de uma época”(º), verifica-se (!) Idem, ibidem, vol.l, p. 26 ess. (2) Idem, ibidem, vol.1, p.26.
() Idem, ibidem, vol.1, p. 5.
(4) Idem, ibidem, voll,p.5Sess..
(5) Idem, ibidem, vol.l, p. 11. (9) Idem, ibidem, vol.l, p. 9.
em todas as raças humanas, independentemente do seu nível civilizacional. Por exemplo, Teófilo constata que no seu tempo “muitas das pessoas que praticam actos cultuais já não crêem e têm opiniões fisi-
cistas”(1). Igualmente exemplar da persistência étnica é o duelo, pois
trata-se de um modelo de resolução de discórdias individuais que já não está em sintonia com os valores hegemónicos das sociedadesliberais oitocentistas. Além disso, o seu caracter atávico torna-se ainda mais evidente por ser praticado por muitos indivíduos que perfilham ideários, ou reformistas, ou revolucionários da sociedade e que, portanto, em consciência, não se identificam com os mais significativos valorese práticas do passado e mesmo do seu tempo. Teófilo ilustra também o fenómeno hereditário da persistência étnica no plano dasrelações internacionais. Assim, sublinha que, os conflitos internacionais, ainda em finais do século XIX, eram resolvidos automaticamente, segundo o modelo arcaico da guerra e das regras impostas pelo vencedor (a razão do mais forte), como foi o caso da guerra franco-prussiana(?) que se saldou na submissão da França aos interesses expansionistas alemães. Em regra, na óptica do autor, os caracteres das raças, tanto físicos como mentais, obedecem à lei da persistência, de modo que não há diferenças significativas entre os caracteres que as raças apresentam no curso civilizacional. Por exemplo: o germano primitivo tal como Tácito o descreveu, aproxima-se do alemão do século XIX. Para Teófilo, uns e outros correspondem ao protótipo físico-mental traçado por Taine: “corpulentos e brancos, fleumáticos, com os olhos azuis espantados e os cabelos
de um louro ruivo, estômagos vorazes, repletos de carne e de queijo, aquecidos porlicores fortes; um temperamento frio e tardio para o amor, o gosto pelo lar doméstico,e a tendência para a embriaguez brutal; etc.”(2). Teófilo sublinha que a hereditariedade sob a forma de persistência é simultanea-
mente uma regra mental que se plasma nos valores e nos costumes e um
fenómeno físico, anatómico e fisiológico, resultante do determinismo orgânico. Assim, cumpria o seu objectivo de dar consistência biológica à sua teoria racialista da história, de modo a poder afirmar que “a história da Europa está implícita nesta lei de persistência étnica”(4). Por outro lado, Teófilo reforçava o seu biologismo considerando a recorrência como uma forma de hereditariedade que se traduzia na (1) (2) (*) (4)
Idem, ibidem, vol.1, p. 13. Sublinhado nosso. Idem, ibidem, vol.1, pp. 13-14. Citado por Idem, ibidem, vol.l, pp. 15-16. Idem, ibidem, vol, p. 16.
168
Darwin em Portugal
Parte H — Capítulo 1
regressão de um povo a uma fase étnica anterior, comportando: a revivescência de “costumes atrasados'”(!) ou “costumes de carácter inferior”(2). Por regra, esta forma de hereditariedade verificava-se aquando dó confronto e do cruzamento de dois ou mais ramos da mesma raça em diferentes níveis étnicos. Ela explica, por exemplo, a queda do Império Romano, embora Teófilo não pretendesse esgotar o complexo causal e condicional presente no curso da história numa omnipotente causalidade orgânica. O certo é que além da persistência e da recorrência, a teoria da hereditariedade histórica de Teófilo comportava ainda uma outra forma de
da pelo facto de Teófilo invocar algumas autoridades na matéria e de se
transmissão, denominada sobrevivência. Segundo o autor, a sobrevivência
“é o facto capital da etnogenia, pela circunstância de resultar da elaboração social no seu conjunto, ou como transformação inconsciente da colectivi-
dade”(3). Por exemplo, nas superstições sobrevivem estados mentais extintos ou mesmo religiões de outrora. Também “um jogo, uma dança popular são quase sempre o último vestígio de um culto extinto já desconhecido”(4). Do mesmo modo “na etimologia das palavras sobrevivem as concepções primitivas, como nos nomes de indivíduos sobrevivem as reminiscências das sobreposições de raças em um mesmoterritório. Todos empregamos a palavra auspício, mas já ninguém consulta as aves (avis
spicium) para conhecer o futuro”(?).
Estas formas de hereditariedade histórica têm uma carga semântica. ambígua. Por um lado, pretendem ser noções elaboradas com base em dados oriundos dos estudos biológicos e antropológicos do tempo, quando a comunidade científica afirmava desconhecer as leis da heredi-
169
apoiar na teoria dos tipos estruturais irredutíveis(!) do antropólogo e mé-
dico francês Paul Broca. Com efeito, Paul Broca, fundador da Sociedade
de Antropologia de Paris em 1859 e de uma escola de antropologia de orientação transformista ou evolucionária(?), contribuiu para a estrutu-
ração, em termos fisicalistas(?) da teoria hierárquica dos tipos raciais(4) com os seus estudos antropométricos e craniométricos.
Compreende-se que, para legitimar a sua teoria da hereditariedade histórica, Teófilo tivesse recorrido à ideia antropológica da permanência do tipo orgânico. Deste modo, a sua teoria da hereditariedade podia fun-
damentar a defesa do sentido claramente arianocêntrico da história universal. Postulando à partida a superioridade física e mental do ariano, é lógico que os modos de transmissão hereditária enunciados garantiam a sua persistência. Assim, “basta contemplar a perfeição plástica do tipo antropológico do Ária (...) e deduzir dessa superioridade orgânica o extra-
ordinário desenvolvimento das suas faculdades morais e intelectuais, que
o: colocam no ápice da evolução humana. As suturas cranianas do ária raramente se soldam, o que permite um desenvolvimento ininterrupto da massa encefálica, e consequentemente um progresso no ser individual em todas as idades. É por isso que a raça árica se distingue mentalmente por um extraordinário poder de abstracção, que se revela na sua expressão linguística, na sua representação mitológica, na sua generalização experimental, enfim nos móveis ideais que estimularam sempre a sua activi-
tariedade(9). Por outro lado, Teófilo recobre-as com postulados comtianos;
como por exemplo, o célebre axioma de que “os mortos governam sem:
:
»
o.
os
.
pre, e de cada vez mais os vivos” (7). Essa ambiguidade não ficava resolvi:
(1) Vide: Idem, ibidem, vol.1, p. 14.
(2) Vide: Idem, ibidem, vol.1, p. 14. (2) Idem, ibidem, vol.1, p. 22. (4) Idem, ibidem, vol.1, p. 22.
(5) Idem, ibidem, vol.1, p. 23.
(9) Os mais sérios cientistas reconheciam com Darwin que “not only are the laws of inheritance extremely complex, but so are the causes which induce and govem varias bility. The variations thus induced are preserved and accumulated by sexual selection, which is in itself an extremely complex affair”, Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 240. (7) Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, ob. cit. vol.l,p. 2.
D)
O
Vide: Idem, ibidem, voll,
Vi
Vide
P
p. 39 e ss.. Teófilo desenvolve este tema em
APatria Portugueza. O territorio e a raça, Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1894, p. 65 e ss.. (2) Paul Topinard, L'homme dans la nature, ob. cit., p. 8. Vide também M. Caullery; A Tétry, “Les théories explicatives de Vévolution”. In: Histoire générale des
sciences. Publiée sous la direction de René Taton. Tome Il. vol. I — Le XIXesiêcle, Paris, Presses Universitaires de France, 1981, p. 547. (3) Vide: Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIXsiêcle, ob.cit,p. 62ess. (*) Michael Banton, A ideia de raça, ob. cit., p. 67. Vide também Stephen Jay Gould, O polegar do panda. Reflexões sobre história natural. Tradução de Carlos Brito e Jorge Branco. Revisão de Carlos Henriques de Jesus. Lisboa, Gradiva,s. d., pp. 163-170. Como afirma Jay Gould, Broca foi “o maior craniómetro, ou seja, medidor de cabeças do mundo” nas décadas de sessenta e de setenta (p. 163). Através do estudo dos crânios e dos cérebros (medidas cranianas, peso do cérebro e suas circunvoluções), Broca esperava
Objectivar rigorosamente as diferenças mentais das várias raças humanas para justificar cientificamente a sua hierarquização.
170
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 1
17
A
dade”(!). Note-se que Teófilo deduz a superioridade morale intelectual do ária da superioridade do seu tipo orgânico, anátomo-fisiológico. E, esta
suposta perfeição orgânica é concebida como um dado originário que se. perpetuou no decurso das gerações, desde os tempos imemoriais ante-. “históricos. Portanto, é a instância biológica que decide o protagonismo.
histórico das raças. Sendo ela decisiva, como é claro no texto acimatrans-
crito, resta saber qual o lugar da lógica darwiniana da vida na dinâmica
histórica, que se pauta pela lei comtiana dos três estados. Em primeiro lugar, Teófilo considera que o progresso histórico não pode ser explicado pela acção providencial de Deus, nem pelo recurso a entidades ditas metafísicas, como o acaso, mas tem de ser explicada “pelas leis naturais da evolução”(2), uma vez que a objectividade científica-positiva(?) erafiel à “natureza das coisas”(4). Queristo dizer que a lei dos. três estados se cumpre em obediência às leis naturais da luta pela vida, da selecção natural, secundada pela selecção sexual, e dos efeitos heredi tários do exercício moral e mental? Se Teófilo aceita que a selecção natural é o principal agente do progresso da humanidade, isto é, se postula
que as raças com melhores dotes corporais e mentais e superior capacidade
de adaptação mesológica-histórica são sempre seleccionadas no evolver civilizacional(”), então, será ousado afirmar que o seu naturalismo histó rico é de tipo darwinista? Ao apresentar a renovação introduzida por Teófilo na teoria da história, o seu discípulo, Teixeira Bastos, afirma que, substancialmente, o
seu mestre defendia a naturalização da história em moldes darwinistas à . maneira de Hackel. Importa averiguar textualmente: “A história universal dascivilizações e dos povos, que se seguem uns aos outros evolutivamente como as camadas geológicas da terra, a história geral das sociedades é unia parte da sociologia concreta, e portanto está sujeita como esta aos métodos severos das ciências naturais. E tanto não podia formar-se uma concepção positiva da história antes da constituição definitiva da biologia, e ainda mais, dos seus últimos progressos, que Hackel diz que “a história dos
(1) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 172. Sublinhado nosso. (2) Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., p. 30. (3) Tal como um discípulo de Teófilo, o médico Júlio de Matos, a expôs in
“A noção do objectivo”, O Positivismo, Lisboa, 2, 1879-1880, pp. 390-393.
(*) Georges Canguilhem, “Histoire de | hommeet nature des choses, selon Auguste Comte”, art. cit., pp. 293-297. (º) Vide: John C. Greene, “La révolution darwinienne dansla science et la vision du monde”. In: Nature, Histoire, Société. Essais en hommage à Jacques Roger, s.k; Klincksieck, 1995, p. 89 e ss.
povos devetexplicar-se pela selecção natural; deve ser definitivamente um fenómeno físico-químico dependendo da acção combinada da adaptação e da hereditariedade na luta pela existência”. Esta teoria, como todos
sabem, é muito moderna; apresentada por Lamarck no princípio deste século, foi desenvolvida mais tarde por Darwin no seu magnífico livro —
Origem das Espécies. Teófilo Braga está de acordo com Hackel sobre a no aplicação desta teoria à história”(!). Na verdade, o zoólogo alemão defendia que toda a história da
humanidade provava a teoria darwiniana da luta pela vida(?) e da selecção
natural). Mas,a nosso ver, a novaideia de história(4) que Teófilo constrói não é compatível com o espírito ultraseleccionista e eugenista(”) do darwinismo histórico da filosofia monista de Hackel; embora, como
demonstrou Amadeu Carvalho Homem, o pensamento de Teófilo seja tributário, numa medidasignificativa, do materialismo monista(”).
Como temos vindo a expor, não há dúvida que, a teoria da história
teofiliana se alimenta da problemática das raças humanas, da selecção (!) Francisco José Teixeira Bastos, Theophilo Braga e a sua obra. Estudo complementar das modernas ideias na litteratura portugueza, Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1892, pp. 306-307. Sublinhado nosso. (2) Emst Heckel no artigo “Darwin, Goethe et Lamarck”, Revue Scientifique de la Franice et de VÉtranger, Paris, 3º sér., 3 (23) 2 Dez. 1882, pp. 705-716 escreve: “Quant au combat pour Vexistence, qui est 'élément essentiel du darwinisme, on n'a pas besoin d'en chercher une démonstration particuliêre. Toute l'histoire de V'humanité n'est pas autre chose”, p. 706. Sublinhado nosso.
(3) O texto de Hackel transcrito por Teixeira Bastos sem indicação de proveniência pertence à obra de Heckel: Natiirliche Schôpfungs-Geschichte, Berlim 1868 (Vide: Georg Uschmann, “Haeckel, Ernst Heinrich Philip August”. In: Dictionary of scientific biography, art. cit., pp. 9-10). Das várias traduções na época importa destacar a francesa em 1874, a inglesa em 1876 e a espanhola em 1878. Não sabemos qual terá sido a fonte de-Teixeira Bastos. Apenas em 1911 é dada à estampa a primeira tradução portuguesa a partir da 7º edição alemã, 1879: Emst Hackel, Historia da creação dos seres organisados segundo as leis naturaes, Traducção de Eduardo Pimenta. Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão Editores, 1911. A mesmaeditora fez uma reimpressão desta obra em 1961 que utilizamos. Assim, o excerto em causa encontra-se na página 125 e a indicação das várias traduções na p. IX do Prefácio de Hackel. (4) Ideia corroborada por Teixeira Bastos no artigo “A historia transformada pela sciencia”, Sciencias, Artes e Lettras., Lisboa, 1 (1) 15 Jan. 1887, pp. 3-4. (5) Vide: Jacques Roger, “L'eugenisme. 1850-1950”. In: L'ordre des caracteres. Aspect de Vhérédité dans Vhistoire des sciences de Phomme, Paris, Sciences en Situation, 1992, p. 124 e ss.. (6) Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., pp. 91-132.
172
Darwin em Portugal
sexual e da selecção natural. Ora, esta problemática é capital tanto na obr
de Darwin como na obra de Hackel. A selecção sexual e a selecção
natural constituem a substância da revolução darwiniana. Por outro lado a questão das raças humanas (sua origem, filiação, classificação, dis tribuição geográfica e seu protagonismo histórico) foi remodelada à luz do
critério evolucionista; não apenas por Darwin em The descent of man; and
selection in relation to sex (1871), mas por vários cientistas, ao longo da década de sessenta, inspirados no paradigma evolucionário da obra On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life(1859). Nesta matéria, de certo modo,algunscientistas anteciparam-se a Darwin, especialmente Hackel, mas também Spencer, Lubbock, Tylor e Broca, autores que ocupam uma | posiçãosignificativa, tanto na economia da obra darwiniana de 1871 como. na teoria teofiliana da história.
2. À estética da luta: a demora da “Humanitude”
Toda a produção intelectual teofiliana é obra de militância político-cultural, ética e estética, enformada pelos cânones filosóficos do positivismo comtiano, desde finais da década de sessenta(!). Por isso, a história universal é também a epopeia da humanidade, ou seja, a síntese objectiva completa-se na síntese subjectiva, enquanto trabalho poético. Nos anos de 1894-95, Teófilo dá à estampa, a par de A Patria Portugueza, a edição integral de Visão dos Tempos: epopéa da humanidade(?), obra que conheceu várias reformulações e alargamentos no sentido de poder corresponder à síntese poética que, à luz da filosofia positiva, “deve ligar através dos séculos e das lutas dos povos o drama objectivo da História”(3). É que, “essa Filosofia, dando a suprema preponderância. à parte afectiva, não podia deixar de sugerir à imaginação o grande quadro do triunfo da Humanidade, revelado no lirismo do sentimento, no drama do conflito dos interesses e ideias, e na Epopeia da sua inesgotável activi() Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., p. 93 e ss. Vide também: Fernando Catroga, “Os inícios do positivismo em Portugal: O seu significado político-social”, art. cit., pp. 287-395. (2) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade. Edição integral, Porto, Ernesto Chardron, 1894-1895, 4 vols. (3) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopéa da humanidade, ob. cit., vol. 1,
p. XH.
Parte II — Capítulo 1
173
N
dade”(1). Foi Teófilo Braga, “neste ponto exíguo do Ocidente”(2) que, de 1864 a 1894, completou o sistema positivista-comtiano com a “idealização poética da Humanidade”(?) e, portanto, “ a edição integral da Visão dos Tempos desvendou o plano completo da Epopeia da Humanidade, como
Síntese poética da Concepção positiva do mundo e do império do homem”(%). A poética teofiliana pretendia ser a tradução subjectiva da objectividade científica, a conversão em imagens poéticas das “conclusões mais abstractas da Razão, levando-as pela emoção à unanimidade do
Sentimento”(>). Trata-se de um trabalho poético adaptado ao espírito cien-
tífico do tempo e, era precisamente essetraço original que, no dizer de "Teixeira Bastos, garantia o valor da obra. A luz de um critério de valoração
de tipo darwinista(é), afirmava que a obra poética teofiliana tinha capaci-
dade de sobreviver e de se perpetuar no tempo(?), porque, em concorrência com as demais epopeias, detinha a vantagem de corresponder às novas exigências do tempo, assumidas pelo espírito positivo. Assim,a Visão dos Tempos é considerada pelo discípulo de Teófilo Braga como um modelo bem sucedido de “epopeia naturalista da humanidade”(É) que, enquanto tal, ultapassava os moldesteológicos e metafísicos da poeticidade, sem Os anular, antes consagrando o seu valor e sentido históricos. Com efeito, na versão definitiva de Visão dos Tempos, o metafisicismo romântico do
jovem Teófilo converte-se num positivismo afectivo, em virtude do tra-
balho de coordenação e de reordenamento da sua obra poética, segundo a arquitectura filosófica de Auguste Comte. Mas, na síntese poética do positivismo elaborada por Teófilo, a história é naturalizada em conformidade com as investigações científicas, sobretudo, paleo-antropológicas e pré-históricas da época.
() Idem, ibidem, vol.l, p. XI. (2) Teófilo Braga, Quarenta annos de vida litteraria (1860-1900). Com um prologo: Autobiographia mental de um pensadorisolado, Lisboa, Typographia Lusitana — Editora Arthur Brandão, 1902, p. XXIX. () Idem, ibidem, p. KKIX. (4) Idem, ibidem, p. XXIX.
(5) Idem, ibidem, p. XXIX.
no
(6) Vide: Amadeu Carvalho Homem, “Ilusões do cientismo nos primórdios da
sociologia portuguesa”. In: XIZ Encontro de Professores de História da Zona Centro,
ob. cit., p. 118.
(7) Francisco José Teixeira Bastos, Theophilo Braga e a sua obra. Estudo complementar das modernas ideias na literatura portugueza, ob. cit., p. 26.
(8) Idem, ibidem,p. 31.
175
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 1
Dos três ciclos que compõem a versão definitiva da epopeia, em harmonia com os “estádios da marcha histórica da Humanidade”(!) o primeiro é dedicado aos tempos pré-históricos(2) e intitula-se “Cyclo da
“histórico. Teófilo.evoca e simultaneamente consagra a história humana.
174
x
Fatalidade”. Tal como a sua leitura cientista, também a sua compreensão
poética da história enraizava o processo histórico no tempo ante-histórico, o que estava de acordo com a nova ontologia do tempo e da vida construída por Lyell, Darwin e Hackel. Com efeito, considerando que, depois da revolução darwiniana a história ganha inteligibilidade à luz da pré-história, era crucial imprimir-lhe a marca do determinismo naturalista, recuando até “esse período de inconsciência, em que a espécie desconhece a imutabilidade das leis naturais e é suplantada por elas”(?). O Ciclo da Fatalidade compreende todo o passado pré-histórico, entendido enquanto passado-presente, pois ele “continua nas populações e raças inferiores e nas persistências das grandes Civilizações”(*). O canto primeiro do Ciclo | da Fatalidade abre com A Trindade natural. Consiste na idealização dos três elementos naturais: a Terra, o Espaço e o Homem(Ê) enquanto constitutivos de uma unidade ontológica que apenas é possível à ciência conhecer, embora o reconhecimento dessa unidade esteja, de algum modo, . implícito nas representações religiosas e metafísicas dos três elementos. Essa unidade ontológica é atravessada pela historicidade. A terra tem uma pré-história e uma história que fazem parte integrante do texto histórico da humanidade. O espaço tem, igualmente, uma pré-história e uma história. As histórias destes elementos inter-relacionam-se, de modo que a
história humana ganha um sentido cósmico ao compreender o espaço é à terra como sujeitos históricos da e na sua história. Por isso, em 4 Pattia Portugueza lê-se: “as descobertas geológicas vieram-nos revelar que à terra é também uma das páginas mais antigas e verídicas da história do homem”(º). Assim o entendeu Darwin(”) e o darwinismo antropo(1) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade. ob. cit., vold, p. 94.
(2) Francisco José Teixeira Bastos, “As epopeias da humanidade na poesia — portugueza contemporanea”, Revista de Estudos Livres, Lisboa, 2, 1885-1886, pp. 493. —
-517.
(3) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade, ob. cit., volt,
p. 94.
(4) Idem, ibidem, vol. 1, p. 94. () Idem, ibidem, vol.l, p. 109.
(9) Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., pp. 29-30. (9 J. W. Judd, “Darwin and geology”. In: A. €. Seward (ed.), Darwin and modern science, Cambridge, At The University Press, 1909, pp. 337-384.
Por um lado, enraíza-a na profundidade astronómica do Tempo e na bestialidade originária do homem: “O Tempo! o Tempo, o Tempo, o Tempo nunca exausto,
Éesteo demiurgo, o Prometeu, o Fausto,
Que vagaroso fez o telúrico berço Donde o Homem surgiu, no animal imerso”(1).
Por outro lado, apresenta-a como o desenraizamento progressivo do homem relativamente “àsleis brutas na Natureza”(2) até à consumação do seu podere da sualiberdade, pelo triunfo do espírito científico “ao fim de
tantos séculos de luta”(2). Todavia, como se verá, essa consumação não significa o fim da História, nem o termo da luta, pois esta manifestar-se-á em níveis ontológicos da mais elevada heterogeneidade, assumindo
formas de expressão mais complexas. O Canto Segundo versa “Os Séculos mudos”(*) que correspondem, para o autor, à primeira época glaciária no começo dos tempos quaternários. É o período da luta pela vida no sentido de luta pela sobrevivência física do homem e de luta pela sua descendência, não ainda em termos expansionistas, mas enquanto afirmação da espécie. Nesta imensidão ani-
mal “o homem troglodita em luta de resistência contra a natureza cósmica,
chega ao conhecimento da necessidade de cooperação para assegurar a estabilidade da espécie”(*). Teófilo não toma posição relativamente ao monogenismo e ao poligenismo(º) e apenas afirma que neste período se processa “a diferenciação das raças pela acção dos vários meios em que habitam e pela forma da sua actividade”(7), conforme os ensinamentos da
(!) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade, ob, cit., vol.i, p. 185. (2) Idem, ibidem, voll, p. 13.
() Idem, ibidem, vol.1, p. 50.
(*) Idem,ibidem, vol.1, p. 180.
(*) Idem, ibidem, vol.1, p. 180.
(6) Teófilo manifesta reservas quanto à questão do monogenismo (Hackel), do poligenismo (Broca) e do oligogenismo (Darwin). Vide, sobre este assunto, Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIX e siêcle, ob. cit., pp. 64-65. Já na sua Historia Universal tinha defendido que “a questão da origem das raças humanas sob o àspecto poligenista ou monogenista não pertence ainda à ciência da história, sem primeiramente ser resolvida pela biologia”, Historia universal; Esboço de sociologia descriptiva, ob. cit. vol. 1, p. 53. (7) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopéa da humanidade, ob. cit., vol.1, p. 180.
176
Darwin em Portugal
Parte H — Capítulo 1
paleoantropologia e da pré-história. A cooperação biológica ao nível da selecção sexual não se repercute noutros planos da existência pois, deste período, datam “os ódios implacáveis”(!) e os conflitosinter-raciais que se
tuação biológica do troglodita (1). A sua vida sem fala era um duro combate com as feras, com o gelo, com todos os obstáculos naturais. A este lutar veio juntar-se ainda o embate entre bandos de diferentes raças humanas.
perpetuam “até às mais adiantadas épocashistóricas”(2). A luta ou a con-
flitualidade que acompanha esse mínimo de solidariedade reprodutiva
persistirá no evolver dos tempos. Toda a história é luta, até na afirmação
do poder da ciência que aspira traduzir-se em harmonia e paz (amor, ordem e progresso)(?). Vejamos a épica teofiliana da luta pela vida, nos “séculos mudos”: “Oh Terra! Mãe primeira, ubérrima placenta,
(...) Sim, és a bíblia aberta, a de augusta verdade. (...) “Quando o homem se ergueu sobre a face da terra,
E do primata bruto audacíssimo aberra, Não era a Terra então sonhado Eden do mito! Ja um combate atroz — da existência o conflito €..) A vida era o lutar contra a fatalidade, Tinha o lugar ao sol maior ferocidade,
Mas do bruto vencia aquele mais ladino! . (...) Quando o homem saiu do antropóide bruto, Na vital concorrência achou-se o mais astuto: Não deixa o ódio mais que uma coisa se esqueça. — Mal! torna-te o meu bem! — a divisa foi essa, Que dirigiu o braço ao homem primitivo. E o Homem foi quebrando os grilhões de cativo Que o jungiam ainda à bestialidade, Quando o nexo encontrou da sociabilidade”(4).
177
“Que luta desvairada entre os bandosse trava! (..) Nunca mais se há-de ver fraternal harmonia”(2).
A epopeia da vida pré-histórica é um combate da espécie com outras
espécies animais, uma luta intra-específica pela diferenciação rácica, no contexto de uma luta, não menos fatal, a luta adaptativa às condições
mesológicas, desfavoráveis para todos. No decurso dessa luta contínua,
sucedeu um “Cataclismo”(?) que afundou os continentes da Atlântida e da
Lemúria, enquanto outros continentes emergiam e adquiriam os seus con-
tornos(4). Então, toda a fauna e flora se renovam, ao mesmo tempo que os
progressos do homem o confrontam com novas lutas, ainda que tenha
adquirido a consciência da necessidade de conviver solidariamente. Mas,
a sua consciência mítica e religiosa era impotente para superar as rivalidadestribais e dulcificar os conflitos intra e inter-raciais. “Mas uma sombra imensa envolveu o passado; Do homem Religiões tinham-se apoderado,
Como um pólipo interno, em ramos absorventes,
Fizeram da união a confusão das gentes,
Do abraço de irmãos feroz rivalidade! (..) “Cada raça procura alçar-se mais sangrenta”
(.)
“A Ira de Deus torna o homem lobo do homem”
(...)
Evidentemente que, nestes “séculos mudos”, a sociabilidade que
emerge com a descoberta e a recriação do fogo está ainda muito próxima da relação animal, pois decorre do instinto de sobrevivência e de perpe(1) Idem, ibidem, vol.1, p. 180. (2) Idem, ibidem, vol.1, p. 180.
(é) Idem, ibidem, vol.1, pp. 13; 50; 56. (*) Idem,ibidem, vol.1, pp. 184-189.
(1) Idem, ibidem, vol.1, pp. 188-198. (2) Idem, ibidem, vol.1, p. 198. (3) Idem, ibidem, vol.l, pp. 199-212.
(4) Embora se refira à Lemúria, Teófilo não perfilha explicitamente a teoria de Hackel da origem lemuriana do homem. Vide: Ernst Hackel. História da criação dos seres organizados segundo asleis naturais, ob. cit., estampa XV, p. 567. E a ilustração do “Esboço hipotético da origem monofilética da distribuição das doze espécies humanas na Terra a partir do tronco lemuriano”.
178
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 1
“Entre as raças o ódio é eterno! Atroz vingança! Um combate sem trégua, em que nenhuma cansa; Pela alucinação da Quimera divina
“O que traz o Germano? Irrompe em violência
No impulso de audaz, fero individualismo;
Derruba a Autoridade, e nesse cataclismo Consigo os germens traz da nova independência”(1).
Esse rancor de irmãos mais cruel desatina,
Quando a sacerdotal tradição foi escrita,
E raça a raça atira o estigma de — maldita”(1). No processo evolutivo do homem,se é certo que se institui uma dis-
tância progressiva relativamente à sua ascendência animal, não é menos verdade que os recursos que ele vai conquistando e desenvolvendo (como a comunicação linguística, a escrita, as religiões, a agricultura, a domesti-
cação dos animais, etc.) lhe abrem um horizonte existencial regido pela fatalidade da luta. Este postulado não é válido apenas para o período da hegeminia semita da história da humanidade. Com efeito, a migração do ária para Ocidente deu um impulso decisivo à história universal. Esta ganha uma nova dinâmica com a civilização grega pela qual o ária se revela “como a alta floração da Humanidade”(2). E, ainda que o espírito científico tenha emergido e se tenha firmado na cultura grega, dominada pelo teocratismo politeista, nem por isso se pronuncia a cessação da conflitualidade. Ao invés, a luta conhece novas formas de expressão, diversificando-se e, simultaneamente, complexificando-se à medida que, no processo histórico, se sucedem os diferentes contributos do grego, do romano, do celta e do germano(?). A Grécia legou à humanidade o sentimento do Belo e introduziu o espírito científico; Roma criou a ideia de Justiça; o Celta deu corpo ao sentimento de Amor; e o Germano trouxe o espírito do Individualismo. “Que vem trazer o Celta? Amor e esperança, À suave ilusão da imortalidade, Que inspira para vida e morte uma aliança No conflito vital — fraterna heroicidade
(...)
(1) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopéêa da humanidade, ob. cit., vol;
p. 212-219. (2) Idem, ibidem, vol.1, p. 181. (º) Idem, ibidem, vol.1, pp. 241- 242.
179
Teófilo considera o grego, o romano, o celta e o germano como sendo aqueles ramos do tronco ariano que abriram o processo histórico à sua possível universalidade, mediante a progressiva complexificação da
juta pelos ideais do Belo, da Justiça, do Amore da Liberdade. Inicialmente
confinada ao sentido biológico, a luta acaba por conhecer novas formas de expressão, em todos os níveis da existência, afectando, de modo peculiar,
o universo dos valores enunciados. Assim, a epopeia da história da humanidade não se limita à idea-
lização dos três elementos naturais, a Terra, o Espaço e o Homem. Compreende também, à luz da ontologia comtiana, a “ Trindade Social,
que na sua sucessão, Família, Pátria e Humanidade, encerra os elementos
completos da harmonia humana”(2). Esta é entendida dinamicamente, enquanto aspiração universalista da história, que eleva a luta à expressão
suprema de militância sociocrática pelo Amor da Humanidade(?) na
Ordem e no Progresso. Deste modo, o ciclo da Fatalidade dá lugar ao ciclo da Luta e, por fim, ao ciclo da Liberdade. Com efeito, o segundo ciclo da epopeia da história versa fundamentalmente a luta pelo conhecimento das leis da natureza,travada pelo espírito científico contra os dogmas teológicos e socorrendo-se do criticismo metafísico. Por este combate progressivo, o espírito ocidental entrou em luta com o espírito oriental. É que “o mundo oriental imobiliza-se na Teocracia; o mundo ocidental fortalece-se com o critério científico e
avança na escala sociológica até à previsão da Sociocracia”(4), efectuada pelo espírito céltico de A. Comte. Ora, de acordo com a perspectiva comtiana, a criação da sociologia
inscrevia-se no processo histórico de cientificação do real, como sendo o seu alfa e o seu ómega.E, se a sociologia legitimava a institucionalização (!) Idem, ibidem, vol.t, p. 242. (2) Idem, ibidem, vol.1, p. 288. (3) Vide: Idem, ibidem, vol.1, pp. 288-355. Na epopeia teofiliana, o Amor da Humanidade traduz-se especialmente na idealização do amor altruísta simbolizado pela mulher Esposa, Filha e Mãe, no quadro da família monogâmica. (4) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade, ob. cit., vol. 2,
p.6.
Darwin em Portugal
fi Parte II — Capítulo 1
científica do ideal de Humanidade, o certo é queeste ideal se vinha reve-:
poder espiritual da Ciência”(!). E a luta não termina. Antes prossegue em busca do sentido disciplinar do crescente poder da Ciência. O combate que
180
lando desde os primeiros embates entre o sentimento e a razão, ou melhor,
entre o espírito oriental e o espírito ocidental. Foi nessa luta entre o sentimento e a razão que emergiram os primeirossinais da unidade ontológica do subjectivo e do objectivo. Esses sinais corporizaram-se nos universalismos helénico e romano, plasmados no ideal do Belo(!) e no ideal da Justiça(?), respectivamente. Apesar deste ciclo se desenrolar também “na. confusão e tropel das raças e das nações, em luta sedenta de egoismos, no furor intolerante das crenças e das religiões, na avidez dos interesses individuais”(2), foi ele que preparou o advento de formas de luta superiores,
como a militância sociocrática ao serviço do ideal de Humanidade, que
conheceu os seus primeiros contornos com o legado clássico grecoromano. Depois, no decurso da Idade Média, o conflito multissecular entre “a cidade de Deus” e a “cidade humana”, entre a “Graça” e a “Natureza”, ou seja, entre a “Verdade teológica “ e a “Verdade filosófica”, resolveu-se em moldes vantajosos para a humanidade, pois veio a “prevalecer definitivamente na época da Renascençao critério experimental da Ciência”(4), sem o qual o ciclo da liberdade não teria razão de ser. Noterceiro ciclo prossegue-se a luta com os condicionalismos natu-
rais de toda a ordem, com os obstáculos mentaise, designadamente, com
os dogmas herdados dos tempos medievais. É a luta do Ocidente pela emancipação da sua consciência, à procura da harmonia possível do objectivo com o subjectivo, do egoismo com altruísmo, o que à luz dafilosofia comtiana era organicamente possível(). É a luta pelo caminho da solidariedade, que darwinisticamente tem, como raíz profunda, a cooperação reprodutiva do troglodita. Este ciclo, preparado pela dissolução do regime católico-feudal, é um tempo de conflitualidades em todos os planos, desde o nível estético ao espiritual, do jurídico ao científico, do geográfico ao económico, tendo como fonte dinamizadora a racionalidade científica. Portanto, “o conflito que ao findar a Idade média se dá entre a Teologia e a Filosofia, entre o tradicionalismo dos Dogmase as descobertas do Livre:
-Exame, da Verdade revelada contra a Verdade demonstrada, continua-se
pela dissolução do Poder espiritual da Igreja e esboço espontâneo do novo (!) Idem, ibidem, vol. 2, pp. 215-310, (2) Idem, ibidem, vol. 2, pp. 311-389.
(2) Idem, ibidem, vol. 2, p. 8. (*) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade, ob. cit., vol. 3, p. 6. (º) Vide: Ana Leonor Pereira, “No rasto de problemas actuais da história”, art. cit., p.6i2ess..
181
se trava no ciclo da Liberdade não é uma luta contra asleis naturais da vida
e da existência social; é a luta pela consciencialização da verdade “em que o indivíduo se sente tanto mais livre quanto se abstem de lutar ou procurar intervir na marcha das leis naturais”(2). É que a razão científica
demonstrou o carácter de necessidade das leis naturais. Todos os aciden-
tes de percurso congregados não teriam poder para desviar a história da sua rota determinada pelas leis da natureza. Portanto, a liberdade
significa, em primeiro lugar, a emancipação da história do espírito religioso e do espírito metafísico dissolvente, através da luta pela hegemonia do espírito científico, preparada pela consumação positivista do edifício hierárquico das ciências. Assim,a liberdade é a fatalidade assumida conscientemente e, nessa medida, volve-se em determinismo. O ciclo da liberdade prepara o advento do estado normal de acordo com a filosofia comtiana. Com efeito, Augusto Comte compreendeu “a mútua dependência da unidade mental, da unidade afectiva e da unidade
activa, constitutivas da Síntese suprema que levarão o homem ao estado normal a que há tanto aspira”(2), porque ao contrário de outros filósofos
criticistas e metafísicos, seus contemporâneos, Comte aceitou o determinismo natural da história, ainda que em moldes pré-darwinianos, e não
vacilou perante as ilusões oníricas das utopias oitocentistas. Nociclo da liberdade, a luta não acaba: “Assim caminha errante a Humanidade; Na ingente caravana da existência, Sem saber para onde, vai levada
Na corrente vital por entre dores, Misérias, decepções, lutas e morte;
Tenta em vão descobrir donde partira, Quer desvendar um horizonte infindo A.
(1) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade, ob. cit., vol. 4, p. 7. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, vol. 4, p. 156. (3) Idem, ibidem, vol. 4, p. 157. (4) Idem, ibidem, vol. 4, p. 161.
182
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 1
As “miragens”(!) da religião, em lugar de tranquilizarem a humanidade, alimentaram a luta pela conquista da verdade. E foi a dúvida controlada metodicamente que preparou o terreno para o triunfo do espírito científico. É certo que este objectivou asleis da natureza, como sejam,
Humanidade. Então, a própria história consagrar-se-á enquanto Imortalidade pela ressurreição do passado (potência) diante do actual
intemporal que perpetua o conflito originário entre caos e cosmos; a lei da conservação da matéria; a lei da evolução da natureza; a lei do progresso histórico; mas nem por isso a Guerra deu lugar à Paz. O ciclo da liberdade que se prolongou por toda a modernidade é q tempo da mais complexa espessura conflitual no plano da luta ideativa, social e política. Com efeito, trata-se do tempoda anarquia revolucionária, da “Epopeia da Revolução”(2), que havia de culminar na “Parada sinistra”(2) da comunade Paris. O paradigma histórico destes conflitos radicais e indisciplinados é, justamente, a revolução francesa de 1789, com 0
life”()):
a lei do conflito universal, enquanto luta, simultaneamente, histórica e
“sacrifício inútil dos representantes da Ciência, da Filosofia e da Poesia, Lavoisier, Condorcet e André Chénier, sob a ditadura sanguinária de
(acto). A mentalidade aristotélica sobrevive na épica teofiliana mas,
apesar disso, Teófilo soube adaptar a lógica darwinista da vida à essência da filosofia positivista. Vejamos alguns versos do poema “Struggle for
“STRUGGLE FOR LIFE
(Poema) Napoleão avançando sobre o Reno, Intenta subjugar toda a Alemanha Numafinal campanha!
Numa marcha veloz, como um aceno,
Irresistível, de ímpetos titânicos, Já desnorteia os príncipes germanicos”.
Robespierre”(*). Neste ciclo, o conflito entre a acção regressiva e a acção progressiva atinge a sua máxima expressão. Assim, “os vultos de Byrón, Goethe e Victor Hugo são as estrofes da revolta contra uma acção regres-
em venceu nesse horrendo e atroz conflito Dedisputada glória ?
sentimentos, os pensamentos e os actos”(). Goethe, como cientista, atento à “luta científica entre Geoffroy Saint-Hilaire e Cuvier”(9), con tribuiu positivamente paraa síntese naturalista de Darwin. “Struggle forlife”(7) é o título reservado, especialmente, para o con flito franco-prussiano que é considerado o conflito culminante do ciclo da liberdade. Ele simboliza a própria Humanidade em luta pela sua existên cia normal na desejada República sociocrática do Ocidente, concebida por A. Comte. “Struggle for life” representa o canto do cisne da fase metafí
O queserá da liberdade humana?”(2).
siva; como poetas eles sentem e exprimem todas as antinomias entre os
sica, isto é, da liberdade indisciplinada, e prenuncia o porvir da liberdade
autêntica, pela assunção do determinismo natural. Então, a história será plenamente universal pela solidariedade dos ciclos entresi; então, realizars -se-á a unidade da história e simultaneamente a plenitude do sentido da (1) Idem, ibidem, vol. 4, p. 161.
(2) Idem, ibidem, vol. 4, p. 174. (*) Idem, ibidem, vol. 4,p. 178. (*) Idem, ibidem, vol. 4, p. 167.
(*) Idem, ibidem, vol. 4, pp. 178-179. (9) Idem, ibidem,vol. 4, p. 179.
(7) Idem, ibidem, vol. 4, p. 180.
183
(...)
Foi derrotada a França ...
Particularmente com a revolução de 1789, a França desempenhou um papel decisivo na constituição e na difusão do ideal de Humanidade. Na epopeia teofiliana, o “Tribunal das Nações”(?) atribui à França a autoria dos ideais de liberdade, nacionalidade, humanidade e cosmopolitismo. Em suma,o “Tribunal das nações” reconhece a supremacia ético-científica da França. Assim se pronuncia, por exemplo, a América:
“A AMÉRICA: Quando lutava pela Liberdade,
A França deu-me apoio e amizade, Paladino de quanto é justo e bom! Por isso Jefferson, (1) O poemaestende-se da página 447 à página 472. | (2) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêta da humanidade, ob. cit., vol. 4, pp. 447-453.
(3) Idem, ibidem, vol. 4, p. 460 e ss..
Darwin em Portugal
1
Proclamou: Tem todo o homem duas Pátrias,
Aquela onde nasceu e foi criança, E em seguida a França. A ambas idolatre-as. Através do azar bruto da violência Tem sempre a França o império da consciencia”(1). Ora, a própria Alemanha, no fundo, também reconhece e cobiça a
superioridade francesa(2). Por isso, a Alemanha procura sobrepor-se à França, justificando a sua pretensão, pela lógica darwinista da vida. Na epopeia teofiliana, é a América que retrata a Alemanha, qualificando de “triste erro”(?) a defesa que os cientistas, filósofos e ideólogos alemães faziam dum princípio de soberania, fundado no conflito reduzido à sua expressãofísica e bélica; segundo os sábios alemães, a nação soberana é à mais forte sob o ponto de vista físico e militar. Aquela que venceu a guerra demonstrou a sua superioridade e, portanto, é aquela que reune as aptidões necessárias para governar o mundo. Eis a argumentação alemã: “A vida é um combate; a Natureza Nosestá revelando queo triunfo Ão mais forte compete; ela, impassível
Desamparando os fracos, os inermes,
Opera a selecção dos organismos
Mais resistentes no conflito activo,
Com que vai transmitindo as energias! Esse o impulso das Nações, das Raças
Nos seus ódios, e nas desigualdades
Com que se invadem e se devastam cruas! O império do mundo, a omnipotência Ao mais forte compete! Seja o molde Da Ordem humanaa lei da Natureza: Bem o declara o Chanceler de Ferro: La Force prime le Droit!..”(4). (1) Idem, ibidem, vol. 4, p. 468. (2) Concordamos com leitura de Amadeu Carvalho Homem: “Não é ousado pen: sar que a superação do germanismo e a aceitação da ocidentalidade, mais do que isso, da latinidade, é o necessário correlato de um pensamento que trocou a metafísica de Hegel pelo positivismo de Comte”. In: À ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo
Braga, ob. cit., p. 214.
(2) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade, ob. cit., vol. 4, p. 469:
(4) Idem, ibidem, vol. 4, p. 469.
Parte II — Capítulo 1
185
A esta ofensiva ideológica de tipo militarista, protagonizada por Bismarck, o poeta responde pela voz sapiente da França, identificada com a voz da Humanidade: “Se a Natureza sacrifica e oprime Osfracos que suplanta, Diante delaleio um Homem se(1). alevanta Faz dessa crime”
A França não ignora as leis da natureza e, porisso, luta contra uma
“lei que pretende ser absoluta, dominar e anular outras leis da natureza, igualmente científicas. O Amor não é um ideato imaginário ou um de Mo
mas é a própria substância da universalidade da história. O amor
da
“Família, da Pátria e da Humanidade pode vir a ser a norma da história. E
o . “essa a razão daluta do poeta. potência única a como surge França a “normal”, idade da Nolimiar Ê
“capaz de harmonizar os interesses de todo o Ocidente, conjugando num todo solidário, a mentalidade de acção anglo-saxónica, o espírito ideativo abstracto do alemão, a sensibilidade estético-emotiva do italiano e o temperamento autonomista da Espanha(2). O advento do homem livre en-
“quanto humanidadeé, portanto, obra do espírito de concórdia universal de
Amor e de Esperança protagonizado pela nação francesa. Todavia, a história termina no poema intitulado “Struggle for life”. Ele simboliza o “tempo presente, o tempo da transição para a sociocracia do amor € do = altruismo solidário, bem como do progresso na ordem. — eo life for “Struggle — presente o entre relação alguma Haverá décimo Canto no idealizado é que , futuro positivista da Humanidade terceiro, intitulado, “Idealização da existência normal: afectiva, contemplativa e prática, tanto colectiva como individual"É)? Nesta construção cientista, há ainda lugar para o conflito selectivo? Poderá a Alemanha protagonizar o seu ultradarwinismo político-militar e étnico? A resposta é, em princípio, negativa. O futuro deve ser a harmonia universal pela religião laica da humanidade, prevista pela ciência de A. Comte e, portanto, “constitui por ora uma utopia, que à Arte compete representar"(º).
(!) Idem, ibidem, vol. 4, p. 469. (2) Cf. Idem, ibidem, vol. 4, pp. 469-472.
(*) Idem, ibidem, vol. 4, pp. 473-504. (4) Idem, ibidem, vol. 4, p. 474.
186
Darwin em Portugal
O poeta sabe que o “sentimento da solidariedade da espécie”(!) não é inato e, portanto, é preciso lutar pela sua fixação e transmissão, pois só por ele “a concórdia se tornará efectiva na Humanidade”(2). Isto significa a possibilidade de persistência da luta, tanto mais que a idealização do futuro é feita a partir da experiência histórica e sem romper com ela. E, embora a fraternidade tenha vindo a ganhar corpo, sobretudo ideativo, no curso histórico, o certo é que a sua tradução, em termos de sentimento orgânico, coloca em jogo a capacidade criadora da humanidade. Mais uma razão para o poeta se empenhar na sua missão de idealizar o futuro, em vez de tombar desalentado. “Paz e Verdade! Eis as criações do Homem,
Do Templo universal firmes Colunas, A síntese consciente da existência”(2)
Mesmo que o futuro tarde ou não chegue, as colunas do Templo estão erguidas. Entretanto, o que tem sido a história da natureza e da espécie humana? O poeta prossegue: “Diante do espectáculo assombroso Da evolução da Natureza inteira Sempre a luta implacável! Desde as plantas Revestidas de espinhos como dardos, Vertendo sucos cáusticos, venenos
Que inebriam e matam repentino, Até aos monstros animais, cobertos
De escamas por couraça impenetrável, De anavalhados dentes para a briga
De uma sanhainstintiva e destruidora,
Vê-se que a Natureza em seu intuito Chamou osseres vegetais, e vivos
Parte
— Capítulo 1
187
Herdaram tais rancores, esses ódios Quefizeram do homem lobo do homem; Dostrês irmãos a luta que enche a História!”(!)
Após esta visão darwinista da natureza e da história, Teófilo justifica o ideal de Humanidade fraterna, recorrendo à figura da metamorfose natural:
“Como desta crisálida terrível Surgiu a borboleta áurea, impalpável, A boa nova, o venturoso agouro
Que despertou no mundo o sentimento
Da Paz, do bem, da confraternidade!”(2) É como se o passado-presente tivesse de sofrer uma metamorfose para devir futuro. Tal como na natureza, a transformação da lagarta em borboleta não se dá mediante a intervenção de uma causalidade transcendente, também a transformação do presente no futuro é um processo natural, imanente à própria história. O presente continua no futuro e, apesar das suas diferenças morfológicas, eles não estão separados por uma ruptura estrutural, mas estão ligados por uma transformação orgânica. Ora, sendo a capacidade de lutar pela vida e, portanto, pela história superior no ariano, pois é “a grande raça eleita”(2) pela selecção natural, não admira que o conceito universalista e cosmopolita de Humanidade seja eurocêntrico. O homem ocidental tem uma origem tão inferior como o homem oriental(?), provavelmente a mesma origem, embora Teófilo não opte explicitamente pelo monogenismo. Mas, diz o poeta, o oriental “a Morte como um bem aceita!”(º), enquanto o ocidental, sabendo que tem de “viver com várias verdades biológicas desagradáveis, sendo a morte a mais inegável e inelutável"(9), luta pela imortalidade que o seu êxito histórico substancializa.
Para um tremendo circo, em que a existência
É combate sangrento,atroz, sem tréguas!
Devoram-se, atassalham-se, destroem-se;
E certo foi que as primitivas raças
(1) Idem, ibidem, vol. 4, p. 475. (2) Idem, ibidem, vol. 4, p. 475. (2) Idem, ibidem, vol. 4, p. 496.
(1) Idem, ibidem, vol. 4, p. 496. (2) Idem, ibidem, vol. 4, p. 496. (3) Idem, ibidem, vol. 1, p. VHL
(4) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., pp. 5-26, correspondentes ao capítulo 1, intitulado “The Evidence of the Descent of Man from some Lower Form”. (*) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopéa da humanidade, ob. cit., vol. 1, p. VHL. ($) Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, Lisboa, Editorial Presença,
1988, p. 225. Sublinhado nosso.
188
Darwin em Portugal
O futuro surge aos olhos do poeta como uma “esplêndida Utopia”(!) decorrente da metamorfose do presente. O “homem novo”(2), concebid pelo espírito científico e idealizado pelo poeta, inscreve-se nas leis d natureza como um possível biológico. “Dos abismos do bruto, donde emerge, E o cimo onde busca destacar-se
A marcha ascensional para o futuro (.)
E sabe acaso o Homem porque luta?”(3). Sabe-o o homem ocidental, através do seu espírito científico e, par-
ticularmente, desde a constituição do sistema comtiano, enriquecido, posteriormente, pelo evolucionismo antropológico. A ciência diz que o novo homem é possível e, mesmo, necessário. Não obstante, a metamorfose completa do homem, enquanto ser da natureza-obreiro da história, permanece “um sublime ideal”(4). Por um
lado, os progressos do homem ocidental colocam-no no limiar do futuro anunciado pelo poeta mas, por outro lado, a selecção natural histórica não
é, em absoluto e sempre, favorável aos homens melhor dotados.
Com efeito, através do poema “O masthodonte”(*), Teófilo mostra-
-ROS que esse mamífero, dito contemporâneo do nascimento do homem, na
transição daera terciária para a era quaternária, surpreendentemente, não se
revelou tão apto na luta pela vida como outros seres, de facto, mais expos-
tos aos riscos da existência. O poeta faz ver “como os seres fracos é que venceram na luta da natureza, ficando suplantados os organismos potentes e descomunais”(º), à semelhança do próprio mastodonte. A figura deste
mamífero funciona como um aviso à humanidade. Ele “ameaça 0 homem,
de que, se ele soubetriunfar dos grandes monstrose dosterríveis cataclismos,talvez se não saiba defender dos inimigosinvisíveis, como os dogmas, (!) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade, ob. cit., vol. 1, pp. XX-XXI (2) Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910, ob. cit., vol. 2, pp. 458 e ss. (3) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopéa da humanidade, ob, cit., vol. 2 p. ll. (*) Idem, ibidem, vol. 1, p. XX. (5) Idem, ibidem, vol. 2, pp. 72-77.
(º) Idem, ibidem, vol. 2, p. 63.
Parte HH — Capítulo 1
189
s preconceitos, as superstições, do teologismo abstracto”(!), e como o criicismo dissolvente da anarquia metafísica. Se o espírito científico é, por sua atureza, o mais favorecido na luta pela vida e,portanto, o mais apto para
irigir o presente-futuro, importa ter consciência da capacidade de sobrevivência e de reprodução do espírito teológico e do espírito metafísico. Diz o Mastodonte num diálogo com a Pirâmide: “Eu fui vencido por um ser bem fraco Que as Pirâmides soube erguer um dia! ...) So imperceptíveis seres resistiram Às convulsões do globo outrora, — hoje Hão-de as Superstições, o Fanatismo, Mil absurdos de um crédulo passado Resistir mais tenazes aos impulsos Em que se eleva a Consciência humana! (...) Ah, se o mundo geológico e orgânico Degigantescas lutas não deriva Despe então esse orgulho, porque o Homem E as criações sublimes que alardeia, De imperceptíveis rudimentos vieram!”(2). O mastodonte simboliza também a contingência, enquanto figura interior à lógica natural da vida(?) e, portanto, enquanto limite interno do determinismo teleológico da teoria da história teofiliana. Assim, pode afirmar-se que a luta pelo futuro ideal não é imune à presença activa do aleatório, em particular dos “acasos do meio”(*) e das contingências adaptativas às exigências do evolver. Portanto, se é verdade que Teófilo recusa o factor acaso, enquanto causalidade metafísica, julgamos que, pelo
(') Idem, ibidem, vol. 2, p. 63.
(2) Idem, ibidem,vol. 2, p. 75.
(2) Vide: Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions and
corrections, ob. cit., pp. 106-167; The descent of man, and selection in relation to sex.
Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., pp. 62-64; 127-145;
vide, ainda, Stephen Jay Gould, A vida é bela, ob. cit., p. 307 e ss..
o
(4) Georges Canguilhem e outros, Du développement à Vévolution au XIXº siêcle,
ob. cit. p. 33.
190
Darwin em Portugal
Parte Il — Capítulo 1
menos na sua poética da história(!), há lugar para a noção naturalista de acaso, enquanto aleatoriedade, embora o seu estatuto na economia geral da sua sistemática seja deveras secundário. A alusão à aleatoriedade evolucionária e a frequência de expressões na epopeia comoa “luta pela vida”, “conflito vital”, “luta ardente”, “conflito da vida” e outras, não perturbam sistemática positivista, designadamente lei dos três estados e a classificação hierárquica das ciências. Mas, de algum modo, significam que o positivismo se adaptou à nova lógica da
ível geo-bio-etnológico,isto é, no plano da sua causalidade profunda, à uz da qual o processo político-militar, social e cultural(!) se tornava supe-
vida e não foi suplantado na concorrência ideativa finissecular. Essa adap-
tação não implicava uma metamorfose dos princípios básicos da filosofia comtiana e, em especial, do Amor. É que, se historicamente a consistência ontológica do Amor da Humanidade se reduzia ao estatuto de sentimento frustrâneo ou, como diz o poeta, de “suave ilusão (...) no conflito vital”"(2), nem porisso asleis da natureza o condenavam a uma existência imaginária. Darwin tinha, justamente, observado que a era da simpatia universal() não estava fora dos horizontes da selecção natural. 3. A geração de Portugal: hereditariedade recorrente e salvaguarda do múltiplo
O valor historiológico que, já nalguns dos primeiros trabalhosteofi-
lianos, das décadas de sessenta e de setenta(4), era atribuído à raça e
respectivos poderes bio-etnológicos é firmemente mantido para o caso português. Assim, a existência de Portugal tinha de ser compreendida ao
(1) As noções de contingência e de luta são fulcrais para se compreender à pessoa de Teófilo Braga, comoficou provado na magnífica biografia de Teófilo traçada por Amadeu Carvalho Homem na sua dissertação de doutoramento. Vide: Amadeu Carvalho Homem A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., pp. 1-89. (2) Teófilo Braga, Visão dos tempos: epopêa da humanidade, ob. cit., vol:l,
p. 242.
(3) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., sobretudo pp. 122:
-123; p. 145. Vide também Paul Crook, Darwinism, war and history, ob. cit., pp. 20-28.
Nainterpretação de Paul Crook é legítimo concluir que “darwin”s speculative bio-history of humanity, although dark and violent in its account of genesis and tribal warfare, was ultimately predicated within a language of social optimism”, ibidem,p. 28. (4) Vide: Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o cons tributo de Teófilo Braga, ob. cit., p. 50 e ss.
191
iormente inteligível. A formação da nacionalidade foi, na sua óptica, um
rocesso constitucional, intrinsecamente orgânico(2), cujas raízes tinham e ser procuradas nos tempos pré-históricos e proto-históricos, de acordo “com as investigações científicas paleontológicas em curso, na época. É que, a suposta individualidade rácica nacional não se definiu num passado “mais ou menos recente, mas vinha do fundo dos tempos paleolíticos, peolíticos, eneolíticos, da época do bronze e da época do ferro. Neste último período, já proto-histórico, que se estendeu aproximadamente de 1000 a. €. até ao domínio romano, a Península Ibérica, habitada pelos
iberos, foi colonizada por fenícios (século XII a.C.), gregos (século VII a.C.) e cartagineses (século VI a.C.), invadida por ondas sucessivas de
celtas (séculos VIII-VI a.C.) que se cruzaram com osiberos, originando os
celtiberos e, entre estes, os lusitanos, na parte ocidental da Península,
Apesar de reconhecer a complexidade do problema da ascendência dos iberos e dos lusitanos como era norma em alguma literatura da época(?), Teófilo Braga defende que o elemento ibérico-lusitânico se perpetuou ao longo dos tempos, não se tendo desfigurado sob o ponto de vista antro-
pológico com o domínio romano e com as invasões germânicas. Poste-
riormente, a ocupação muçulmana possibilitou a actualização do fundo rácico ibérico, pelo processo da revivescência. É este o fio condutor da sinuosa exposição que se estende pelas trezentas páginas da obra A Patria Portugueza (1894). Assim, Teófilo Braga advoga a recorrência do elemento primitivo de tipo ibérico, a sua persistência, apesar dos cruzamentos sucessivos com elementos áricos no Norte do país (ligúrios, celtas,
(1) Vide: Teófilo Braga, Autobiographia mental de um pensador isolado, pp. XLI ess. In: Teófilo Braga, Quarenta annos de vida litteraria (1860-1900), ob.cit. (7) Era claramente a posição teofiliana em 1880. Vide: Teófilo Braga, “Bibliographia. Historia de Portugal, 2 vol. Por Oliveira Martins. Lisboa, 1879”, O Positivismo,
Porto, 2, 1879-1880, pp. 140-149.
() Vide, por exemplo: As raças historicas na Lusitania, Lisboa, David Corazzi, Editor, 1883, p. l6e ss.. Vide também José Leite de Vasconcelos, Portugal pre-historico, Lisboa, David Corazzi, Editor, 1885, p. 27 e ss.; Augusto Filipe Simões, Introducção á archeologia da Peninsula Iberica, Lisboa, Livraria Ferreira, 1878, p. 143 e ss.; Henri Martin, “Du type ethnique et anthropologique des ibêres. Comment distinguer les ibêres, dont la langue subsiste chez les basques, des autres populations anciennes de VIbérie (Berbêres, ligures, celtes)? Qui est le véritable ibêre?””. In: Congrês International d'Anthropologie et d'Archéologie Préhistoriques — Compte rendu. Lisbonne Typographie de 1Académie Royale des Sciences, 1884, pp. 435-437.
192
Darwin em Portugal
gregos, romanos, germanos [alanos, suevos, vandalos, visigodos) e co
elementos semitas no Sul (fenícios, cartagineses, árabes, judeus).
Teófilo aplica a sua teoria da hereditariedade histórica ao cas
português, sublinhando, com abundantes transcrições das Memoire
d"Anthropologie de Paul Broca, o caracter científico da sua construção Com efeito, a teoria da hereditariedade teofiliana era basicamênt tributária dos estudos de Broca sobre os tipos antropológicos e sobre problema do chamado Aibridismo no género Homo(!) que, no dizer d Yvette Conry, funcionou na época como “seul substitut expérimenta d'une théorie de Phérédite inexistante”(2). Ora, estas investigações sobr o cruzamento das raças humanas, sintomaticamente denominado hibri dismo (e não mestiçagem), como se as raças fossem espécies distintas forneceram argumentos para a defesa do evolucionismo tipo -lógico(?), mas também foram cruciais para o darwinismo(4), na pers pectiva hackeliana.
O próprio Darwin utilizou os trabalhos de Paul Broca e consideray
que o antropólogo francês era “a cautious and philosophical observer”; o seu trabalho traduzido para inglês em 1864, com o título On the Phenomena ofHybridity in the Genus Homo revelava “good evidence tha some races were quite fertile together, but evidence of an opposite nature in regard to other races”(?). Assim sendo, importa dar toda a atenção ao texto de Broca que Teófilo considerou fundamental para construir a sua teoria racialista nacional. Nas suas Mémoires d'Anthropologie, Broca escreveu: “Quando duas raças vivem no mesmo solo e se fusionam,o tipo físico altera-se principalmente na proporção da intensidade do cruzamento, depois a raça mestiçada tende a regressar, na série das gerações, ao tipo da raça mãe como mais numerosa. O tipo físico que resiste ao cruza- . mento com mais ou menos pureza é então o daquela raça que predomina . numericamente(...). Assim, acontece muitas vezes que a raça conquistada
regressa completamente ou quase completamente ao seu tipo primitivo,
(1) Vide: Patrick Tort, “Broca, Paul 1824-1880”. In: Dictionnaire du darwinismeet
de Vévolution, vol. 1 (Dir. Patrick Tort), ob. cit., sobretudo pp. 424-425.
(2) Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIX* siêcle, ob. Cit. p. 130. Sublinhado nosso. (*) Vide: A. de Quatrefages, Charles Darwin et ses précurseurs français. Étude sur le transformisme, ob. cit., pp. 241-265. (*) Vide: Ernst Heckel, História da criação dos seres organizados segundoasleis naturais, ob. cit., p. 156 e ss.. (*) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 170.
Parte Il — Capítulo 1
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“que ela absorve os seus conquistadores, e que não conserva nenhum vestígio do sangue deles, diluído pela série de gerações, continuando contudo “a falar-lhes a língua, porque a extinção dos idiomas nacionais prosseguiu a par e passo com a extinção dos caracteres físicos das raças estrangeiras”()). Para Teófilo, este enunciado de Broca constitui a fórmula do “determinismo antropológico, ou hereditariedade do tipo físico”(2) que lhe permite defender a persistência histórica dum tipo racial originário na população portuguesa. Note-se, em primeiro lugar, que o excerto de Broca se ajusta plenamente ao sentido orgânico da raça que Teófilo pretendia salvaguardar. Este sentido revelava-se em toda a sua irredutibilidade, na medida em que o
determinismo físico se sobrepunha a todas as trocas culturais, designadamente no plano da língua. No texto acimatranscrito é manifesto que Broca usao princípio da transmissibilidade das línguas dumas raças para outras e o princípio da substituição da língua materna por um idioma estrangeiro. Ora, estes princípios eram precisamente aqueles que convinham a Teófilo porque lhe permitiam colocar os argumentoslinguísticos ao serviço da sua perspectiva biologista. Na verdade, a pesquisa teofiliana da identidade do tipo antropológico português distanciava-se da confusão romântica entre raças. € línguas) e não se submetia à “tirania dos linguistas”(4), de acordo com a lição de Broca. Mas,se é claro, em A Patria Portugueza, que a história da raça portuguesa e a história da língua portuguesa são distintas; não havendo entre ambas um paralelismo evolucionário, já é menos
evidente que Teófilo tenha alcançado o seu intento de objectivar o “sangue” da raça portuguesa, como se verá. O enunciado de Broca permite a Teófilo defender que “a persistência do tipo ibérico é um fenómeno explicável pela antropologia”(*). Assim,no
(i) Citado por Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., pp. 65-66. Sublinhado nosso. Sobre as resistências lamarckianas de Broca ao seleccioúismo darwiniano, vide: Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIXº
siêcle, ob. cit., pp. 51-65. A primeira exposição da teoria darwiniana feita por Broca data
de 1862 e é anterior à primeira tradução da Origem das espécies por Clémence Royer. Vide: Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIX* siêcle, ob. cit., p. 436. (2) Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit, p. 65. Sublinhado nosso. (3) Vide: Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., p. Í7l e ss..
(4) Vide: Idem, ibidem, pp. 241-248.
(é) Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., p. 255. Em 1880, a posição teofiliana valorativa do elemento ibérico (contra a secundarização que
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Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 1
período do cruzamento do ibero com o celta, o primeiro, sendo numeri.
não foi senão a elaboração íntima da sociedade e da civilização moderna”(!). Os “bárbaros” não revelaram dotes especiais. Vieram tarde, e o undamental, isto é, o futuro sangue português já estava decidido, em vir-
camente superior, suplantou o tipo físico do segundo(!), embora a cultura do celta tenha triunfado, de modo que, “os celtas desaparecem
e tornam-se quase uma ficção, mas os lugares conservam através: dos
séculos nomes com radicais célticos, alguns deuses, a ponto dos linguistas da península se iludirem querendo que a existência dos iberos seja um mito, por falta de documentos linguísticos, e que os celtas sejam uma raça com realidade histórica”(2). O retomo ao tipo ibérico acentuou-se na sequência do cruzamento da população celtibérica com as populações
mauritanas e líbio-fenícias, sem afectar a dominância cultural céltica(ê).
O domínio romano da península “em nada influiu no tipo físico”(4), embora o latim tenha dominadoo celta, o que tem de se compreender à luz do darwinismo linguístico, sem cair no erro romântico de deduzir à história das raças a partir da história das línguas(”). Asinvasões das raças germânicas não contrariaram, antes “favoreciam a persistência do tipo
físico do ibero”(*), devido à presença detriboscitas, alanose outros, entre os visigodos,isto é, de tribos de raíz, “proto-árias, Alófilos, ou Mongo
lóides”(7), como os iberos.
Neste processo, o tipo linguístico que prevaleceu foi o latim, ser vindo ao germano de instrumento de domínio e de meio de assimilação. cultural. Mas, note-se que “foi preciso um longo e difícil esforço para que essas tribos bárbaras reconhecessem o alto valor da cultura latina (...);
custou séculos a sua lenta assimilação, que se realizou no decurso desse período de energia psicológica chamado a Idade Média, que outra coisa
Oliveira Martins fazia do mesmo elemento), também era afirmada, sobretudo, em nome da
antropologia. Vide: Teófilo Braga, “Bibliographia. Historia da civilisação iberica por J: P. Oliveira Martins. Lisboa, 1879”, O Positivismo, Porto, 1, 1878-1879, pp. 385-392. (1) Vide: Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit. p. 131.
(2) Idem, ibidem, p. 67. () Vide: Idem, ibidem, pp. 151-152.
(*) Idem,ibidem,p. 67. () Vide: Idem, ibidem, p. 68 e ss. Vide também sobre esta questão, Charles Lyell, L'ancienneté de "homme prouvée par la géologie et remarques sur les théories relatives a Vorigine des espêces par variation, ob. cit., pp. 500-517; Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., pp. 88-92. (9) Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., p. 68. Sublinhado do Autor.
(7) Idem, ibidem, p. 187. Sublinhado do Autor.
195
ude da lei da recorrência biológica. Com o domínio muçulmano, desde o
éculo VIII até ao fim do século XI, desenvolve-se uma raça — a
moçarabe — resultante dos cruzamentos de berberes, mouros e outros
“colonizadores trazidos de África pelos árabes, com as populações cristãs hispano-romano-góticas portadoras do elemento chave ibérico-lusitano.
“Os berberes “tinham a preponderância pelo seu número”(2) e “os ter“ritórios da Lusitânia tinham sido ocupados especialmente por uma população de egípcios e berberes”(2). A relação dos berberes e mouros com os “cristãos moçarabes não foi conflituosa, nem no plano dosinteresses mate-
“riais, nem, sobretudo,ao nível do cruzamento rácico. Compreendia-se que
“assim fosse, pois as duas populações em causa partilhavam um mesmo “fundo biológico. É que,na óptica teofiliana, o moçarabe não era simples“mente aquele que vivia segundo a maneira árabe; não era exactamente aquela “população hispano-goda que se conservou sob o domínio árabe observando o seu culto cristão”(4); moçarabe também não tinha um significado estritamente demográfico e social, de “numerosa classe social
nova, formada pelo cruzamento dos hispano-godos com as colónias agrícolas de berberes e mouros”(?). É certo que, para o autor, o moçarabe, incorporando não só as populações berberes e mouras mas também os estratos populares cristãos, formava o povo agrícola e sedentário; muito “diferentemente, o árabe puro “constituia uma aristocracia isolada, cuja educação tendia a completar-se algum tempo no deserto, para não adquirirem os hábitos da sociedade sedentária”(*). O que Teófilo pretendia defender com esta argumentação era, justamente, a consistência orgânica
do moçarabe; sendo uma raça, então o seu valor era irredutível a uma (1) Idem, ibidem, pp. 256-257. Para acentuar o carácter científico da sua leitura da
história, acrescenta: “Os historiadores metafísicos, seguindo as ideias de Hegel, e do chauvinismo germânico, quiseram considerar como providenciais as invasões germânicas, vindo implantar as formas de uma nova civilização que traziam em germen,sobre o esgotamento e inanidade do Império romano. Mas a barbárie não pode dar mais do que tem, a brutalidade impetuosa”, ibidem, p. 257. Um desses historiadores visados era Oliveira
Martins. (2) Idem, ibidem, p. 294. (*) Idem, ibidem,p. 295.
(*) Idem, ibidem, p. 291. (*) Idem, ibidem, pp. 301-302.
(9) Idem, ibidem, p. 296.
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Darwin em Portugal
categoria social. Mas, além de ser uma raça, era aquela raça que perpetuava o tipo antropológico que sobreviveu a todos os cruzamentos Textualmente: “o Moçarabe, por efeito de uma recorrência étnica, consti tui no rigoroso valor da palavra uma raça, em que se conserva o tipo. antropológico”(!). É que, os berberes eram dolicocéfalos(2) como os iberos e, segundo julgava o autor, os iberos não eram autóctones da.
Península, mas também tinham entrado na Europa pelo Sul, vindo através
da África. “A mais antiga das raças históricas que ocuparam a Península pertence ao ramo alófilo do tronco branco, designação vaga que substitui o nome de turaniano ; esta raça entrou no sul da Europa, vindo da Ásia, tendo estacionado na África, onde ainda subsiste o Berbere, cujo criizamento com o árabe veio a produzir o tipo mauresco”(3). Pela mesma
lógica, “os cruzamentos entre cristãos e árabes limitam-se a uma natura-
lização do elemento berbere, fácil não só pelos antecedentes étnicos (1), como pela similaridade dos seus hábitos agrícolas e sedentários”(4). O moçarabe era, à luz das leis teofilianas da hereditariedade, uma
raça que se constituiu pelo processo biológico da recorrência étnica, isto é, em concreto, pelo processo de regressão ao tipo ibérico, cujo fundo cons-
titucional era o mesmo do tipo berbere da África(). Assim, Teófilo con-
sidera que “a raça ibérica não pode pois ser bem conhecida sem se estabe-
Parte II — Capítulo 1
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lecer a relação étnica com tipo berbere da África”(!). Como estabelecer
esta relação? Em termos teofilianos, é significativo que tanto o ibero na Europa como o berbere na Africa tenham oferecido idêntica resistência às
mesmas invasões: “O berbere resiste à invasão dos Fenícios, dos Gregos,
dos Romanos, dos Vandalos, dos Bizantinos, dos Árabes, dos Judeus e dos Tuícos, acantonando-se com o Atlas; o ibero resiste a pressões ainda mais
fortes, ajuntando às já citadas os Ligures, os Celtas e os Visigodos, for-
talecendo-se com os Pirinéus. O estudo do tipo berbere torna-se indispen-
sável para uma verdadeira etnologia da Península, por isso que ele vem a
influir em fenómenos de recorrência étnica pela ocasião da invasão dos Árabes”(2). Apesar da problemática ser comum a toda a Península Ibérica, a argumentação de Teófilo dirige-se no sentido de provar a singularidade do fundo rácico-étnico no território português. Esse fundo está contido no * moçarabe e, como se viu, é legitimado antropologicamente pelo recurso à figura biológica da “dupla recorrência”(É). Postulandoo princípio da diferenciação étnica peninsular, em termos antropológicos, a questão reduz-se às proporções dos cruzamentos de três sangues: um sangue primordial (o ibero); o sangue semita e o sangue árico: “Na sucessão das diferentes raças que ocuparam a península hispânica deu-se a preponderância ora do elemento ibérico, ora do elemento semita, ora do elemento árico, e as combinações do ibero-semita e ibero-
(1) Idem, ibidem, p. 296. (2) Idem, ibidem, p. 296.
() Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, ob. cit., vol.l, p. 52. Sublinhado do Autor. (%) Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., p. 296. (*) Vide: Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., p. 55 e ss. Seria o ibero árico? mongolóide? semita? Questão colocada por Teófilo Braga, mas não resolvida. Vide: Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit.
p. 56 ss. A verdade é que, perante o estado da questão na época, era prematurotirar conclusões. Vide: Mendes Correia, Raça e nacionalidade, Porto, Renascença Portuguesa,
1919, p. 64 e ss. Não obstante, sobre as contradições e os paradoxos de A Patria Portugueza. O territorio e a raça, vide a obra do advogado brasileiro, Sílvio Romero, com o mesmotítulo: À Patria Portugueza. O territorio e a raça. Apreciação do livro de igual titulo de Theophilo Braga, Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira & Ca; 1906. É de elementar Justiça acrescentar que Amadeu Carvalho Homem, sobretudo, in A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, deixou bem demonstradá “a coerência doutrinal e a força sistemática” (ibidem, p. 89) do pensamento teofiliano.
A esta luz, não faz sentido esmigalhar a teoria racialista da história de Teófilo, argumen-
tando com efectivas ou supostas contradições textuais, como faz Sílvio Romero. Sobre os dois pensadores vide: Sílvio Romero e Teófilo Braga. Actas do HI Colóquio Tobias Barreto, Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1996.
-árico bastam para estabelecer diversidades étnicas capazes de se conservatem por qualquer circunstância”(*). Na raça portuguesa predomina o elemento árico e na raça espanhola é o elemento semita que tem a dominância(”), embora ambas partilhem o mesmo fundo ibérico. É pela tendência natural do elemento semita para o isolamento que Teófilo explica a tardia unificação política da Espanha(*). Mas essa mesma “tendência separatista do nomadismo semita” explica a formação da pátria portuguesa(”). Portanto, é este factor rácico natural — o elemento semita — mais acentuado na raça espanhola do que na raça portuguesa
(') Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., p. 90. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, p. 91. Sublinhado do Autor. (3) Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, 0b. cit., vol. 1, p. 55. Sublinhado nosso.
(4) Idem, ibidem, vol. 1, p. 66. (5) Idem, ibidem, vol. 1, p. 64.
(9) Vide: Idem, ibidem, vol. 1, p. 64.
(7) Teófilo Braga, Systema de sociologia , ob. cit., p. 250.
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Parte Il — Capítulo 1
Darwin em Portugal
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que, simultaneamente, as une e as separa. Por isso, o moçarabe serviu-lh
tiona a raça, em sentido biológico(!), enquanto causalidade estrutural do
e, ao mesmo tempo,para legitimar a defesa da federação dos povos peni sulares. Apesar das raças peninsulares partilharem os mesmo sangues,a raç portuguesa recebeu o seu traço distintivo a partir do elemento céltie -árico, ou mesmo de elementos proto-arianos, conforme a suposição d autor. Assim sendo, não admira que no seu Plano para a história d Portugal, Teófilo sublinhe a base orgânica de Portugal identificada com tipo luso: “Pelos modernos estudos antropológicos, caracteriza-se a raç
mológica dominante na época que conjugava a herança do romantismo historiológico com as repercussões antropológicas do paradigma darwi-
processo histórico, o que estava de acordo com a matriz cultural-episte-
de argumento chave para justificar a inviabilidade natural da união ibéric
niano. Mas, Teófilo reclamava-se do registo estritamente naturalista; por
isso, distinguiu a história das raças da história das línguas; por isso, não trabalhou com a distinção entre “raças antropológicas” e “raças históricas”(2) embora, em 1908, se tenha ocupado da noção de “raças sociológicas”(). Na verdade, Teófilo não podia, em coerência, fazer questão de distinguir a categoria antropológica de raça da noção de raça histórica porque isso significaria admitir que, na expressão de Henri Berr, “les hommes échappent à cette chrysalide: la race”(4). Ora, se no curso histórico, os homens se libertassem do determinismo biológico, tornar-se-ia absurdo defender umahistoriologia naturalista(?). E não esqueçamos que, para Teófilo, mesmo a ética do altruismo que será norma nos tempos
portuguesa, no seu tipo luso, e a sua persistência, no território da vertent ocidental da península Hispânica. Desde que se demonstra o individu. lismo dessa raça, deduz-se a razão da sua autonomia, e a compreensão d. marcha histórica em que se afirmou o organismo da nacionalidade”(!
Ora, o problemaresidia precisamente em demonstrar a natureza única,sin;
gular, individual da raça portuguesa, como ressalta da inconsistência dos argumentos teofilianos atrás expostos. O problema consistia justamente em objectivar cientificamente o “filão genético do lusismo”(2), segundo a própria expressão do autor. Todavia, o arqueólogo da Pátria nunca ques-
históricos futuros, está inscrita no sangue celta da raça francesa, conforme
está explícito em Visão dos tempos. Sem dúvida, a elaboração de um código naturalista de leitura da história e sua aplicação à história portuguesa, incluindo a história da cultura e da literatura, foi uma das primeiras preocupações do pensamento
(!) Teófilo Braga, “Plano para a história de Portugal” (1908), in Fran Paxeco, Portugal não éibérico, Lisboa, Livraria Rodrigues, 1932, p. 6. | (2) Idem, ibidem, p. 9. Sublinhado do autor. Era o seu lusismo de fundo ibero iden:
tificado com o fundo ligúrico (ariano e pré-céltico)? Vide: A Patria Portugueza. Oterri-
alcançando o seu nível de elaboração mais complexo em A Patria por-
Abr. 1882, pp. 184-190; 1 (6) Jun. 1882, pp. 294-305; 1 (7) Jul. 1882, pp. 359-372. Teófilo
(i) Vide também a sua Autobiographia mental de um pensador isolado, pp. XXXIX e ss. In: Teófilo Braga, Quarenta annos de vida litteraria (1860-1900), ob.cit., 1902. (2) Vide: Henri Berr, “Avant-Propos”. In: Eugêne Pittard, Les raceset [histoire. Introduction ethnologique à Vhistoire, Paris, La Renaissance du Livre, 1924, p. XVII. 6) Vide: Teófilo Braga, “O que são raças sociológicas”(1908), in Fran Paxeco, Portugal não é iberico, Lisboa, Livraria Rodrigues, 1932, pp. 187-189. (4) Vide: Henri Berr, “Avant-Propos”, in Eugêne Pittard, Les races et ['histoire. Introduction ethnologique à Phistoire, Paris, La Renaissance du Livre, 1924, p. XVI Sublinhado nosso. (*) Questão que Teófilo já colocava com toda a nitidez no estudo crítico que fez da História de Portugal de Oliveira Martins. Nesse trabalho, Teófilo recusava a distinção Martiniana entre “nacionalidades naturais” e “nacionalidades de consciência” porque esta distinção pressupunha o dualismo metafísico natureza-espírito, incompatível com a sua perspectiva naturalista. Vide: Teófilo Braga, “Bibliographia. Historia de Portugal, 2 vol. Por Oliveira Martins. Lisboa, 1879”, art. cit., sobretudo p. 144 e ss.
iugueza, publicada em 1894.
torio e a raça, ob. cit., p. 132 e ss. Esta hipótese teofiliana inspira-se, em parte, nos. tra: balhos de Francisco Martins Sarmento, entre outros estudos, em “Os celtas na Lusitania”, Revista Scientifica, Porto, 1 (2) Fev. 1882, pp. 75-83; 1 (3) Mar. 1882, pp. 128-139;1 (4)
admirava a defesa do ligurismo feita pelo arqueólogo Martins Sarmento. Por outro lado, não reconhecia autoridade científica a Francisco Adolfo Coelho que também se prontn: ciou sobre a questão, nomeadamente em “Questões ethnogenicas. Lusitanos, ligures é celtas”, Revista Archeologica e Historica, Lisboa, 3 (9) Set. 1889, pp. 129-144; 3 (11) Nov. 1889, pp. 163-177; 4 (7) Jul. 1890, pp. 153-161. Adolfo Coelho era um opositór da tese de Martins Sarmento e, naturalmente, privilegiava os argumentos da linguística e da glotologia. Além disso, Adolfo Coelho era um dos autores que, desde a década de setenta, vinham desautorizando publicamente o trabalho científico de Teófilo Braga. Veja-se, por
exemplo, a crítica negativa de Adolfo Coelho à teoria teofiliana do moçarabismo, in:
“[Recensão crítica de] Teófilo Braga, Historia da literatura portugueza — Introducção. Porto, Impr. Portugueza, 1870, 356 pp.; Theoria da historia da litteratura portugueza. Dissertação para o concurso da 3º cadeira (Litteratura Moderna e especialmente. à Litteratura Portugueza) do Curso Superior de Letras. Porto, Imprensa Portugueza, 1872, 102 p.”, Bibliographia Critica de Historia e Litteratura, Porto, (7-8), 1873-1875, pp. 129-
-148.
=
* O — |
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Ora, no trabalho intitulado Epopéas da raça mosárabe, o futur professor do Curso Superior de Letras advogava uma consistência mai, germanista da raça moçarabe, de acordo com “um exagerado germanism, na evolução histórica”(!) que, então, perfilhava. Compreende-se que assim fosse, pois, Teófilo estava “profundamente influenciado, ao tempo, po
tudo Henri Martin) a sua melhor expressão, ao apresentarem a vocação
Hegel e sobretudo,neste contexto, por Schlegel”(2), um dosrepresentante;
mais influentes do romantismo historiológico que, no dizer de Léo
Poliakov, “era todavia o contrário de um extremista germanomaníaço”(3)
A perspectiva do jovem Teófilo Braga nas Epopéas da raça mosárab, consistia essencialmente no seguinte: a nacionalidade portuguesa compor tava dois elementos distintos em termos biológicos e sociais. Por um lado o moçarabe resultante da fusão do godo-lite com o árabe e, por outro lado o gótico-romano, elemento igualmente germânico que, pela sua romaniza. ção, se desvirtuou. Estes dois elementos eram considerados antagónicos:
primeiro era popular-plebeu; o segundo era aristocrático-nobre(*)
Historicamente, foi o segundo que triunfou. À sua dominância correspon-
deu o recalcamento do verdadeiro espírito do povo português, espírito germânico que resistiu à romanização jurídico-cultural e à arabização biológica(”). A partir desta construção, cuja consistência é ainda tributária do romantismo historiológico, Teófilo podia legitimar o preconceito polí tico segundo o qual a decadência de Portugal provinha do domínio socio -cultural e político do elemento gótico-romano, aquele que reprimiu o génio popular moçarabe, sustentando a monarquia e o catolicismo durante oito séculos(*). É inevitável não ver que, como escreveu Fernando Catroga, “o intelectual republicano adaptava à realidade portuguesaa céle:
bre “querela das duas raças”, que há muito dividia a intelectualidade francesa, e que teve nos historiadores românticos (Thierry, Guizot e sobre-
201
democrática dos “galo-romanos” em oposição à aristocracia “francogermânica”, tendo os primeiros somente emergido como vitoriosos a par-
ir da Revolução Francesa”(1). É igualmente claro que este quadro já anunciava o republicanismo laico demo-liberal de Teófilo, mas é significativo
verificar que a posterior desgermanização da raça portuguesa serve O mesmo intuito. É significativo na medida em que testemunha o funcionamento ideológico do cientismo(?). A teoria racialista da história elaborada
por Teófilo tinha como escopo socio-político condenar à extinção a
monarquia e o catolicismo e, neste sentido, foi relativamente bem sucedida. Para garantir a sua pretensa cientificidade, Teófilo apoia-se em
grandes autoridades do evolucionismo da época, como Hamy, Bertillon,
Lubbock, Spencer, Tylor e, particularmente, Paul Broca. Mas também
recorre aos estudos de antropologia pré-histórica, em língua portuguesa, de Estácio da Veiga, Anselmo de Andrade, João Bonança e, sobretudo, de Martins Sarmento. Não há dúvida que, na obra teofiliana,a história é compreendida “pelas leis naturais da evolução”(2) e, de modo particular, pelas “Jeis da hereditariedade que concebeu a partir dos estudos de Broca(). As “escavações paleontológicas, pré-históricas e etnogénicas que percorrem a sua obra conduziram à determinação da substância da raça portuguesa. Teófilo não se perdeu no seu labirinto paleoantropoló-gico e concluiu que “Portugal é umapátria porque é uma raça (*). E, se, conforme julgamos, “Teófilo deixou a sua obra inconclusa nesta matéria é porque tinha consciência do carácter subjectivo da sua bio-história, o que não implicava que (1) Fernando Catroga, “Política, história e revolução em Antero de Quental”, art. cit., p. 12. Vide, também: Benoit Massin, “Lutte des classes, lutte des races”. In: Des
sciences contre Vhomme, ob.cit., vol. 1, sobretudo pp. 128-133. (1) Teófilo Braga, Quarenta annos de vida litteraria (1860-1900). Com. um, prologo: Autobiographia mental de um pensador isolado, ob. cit., pp. LXVILXVII. Sublinhado do Autor. Vide também Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana. em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., pp. 213-214. (2) Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o contributo de — Teófilo Braga, ob. cit., p. 54. (*) Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e-dos . nacionalismos, ob. cit., p. 169. Schlegel não era anti-semita e por isso foi acusado pela cultura nazi de “falta de instinto racial” (Cf. Idem, ibidem). (4) Vide: Teófilo Braga, Epopéas da raça mosárabe, Porto, Imprensa Portuguesas -Editora, 1871,p. 2 ess. (5) Vide: Idem, ibidem, p. 25 ss.
(9) Idem,ibidem, p. VI.
(2) Vide: Fernando Catroga, A militância laica e a descristianização da morte em Portugal 1865-1911, ob. cit., vol. 1, sobretudo pp. 87-219. (3) Teófilo Braga, A Patria Portugueza. O territorio e a raça, ob. cit., p. 30.
(4) A julgar pela utilização que Darwin faz dos estudos de Broca, dificilmente Teófilo poderia encontrar melhor fonte na época,já que se ignorou a revolução de Mendel até-1900. Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., pp. 192 e ss. Vide,
também, Charles Lenay, La découverte des lois de Phérédité (1862-1900). Une antholo-
gie, sl., Presses Pocket, 1990, p. 239 e ss. (5) Igual perspectiva é difundida pela Biblioteca do Povo e das Escolas. Vide: As raças historicas na Lusitania, ob. cit., 1883. Nesta obra editada para um público alargado lê-se: “O que produziu a nossa nacionalidade, tão distintamente manifestada no século XI,
foram a nossa posição especial, as primeiras raças lusitanas, e essas diferentes revoluções operadas no nosso sangue primitivo”, p. 63.
Darwin em Portugal
t 1 Parte II — Capítulo
o autor estivesse a par das dificuldades que o desconhecimento dos mecanismose dasleis da hereditariedade(!) colocava aos biólogos e antropólogos evolucionistas.
histórica?!) Se assim é, impõe-se concluir que Teófilo viu mais e mais longe do que algumas autoridades da antropologia portuguesa do seu
202
A consciência da falta de solidez das suas conclusões era alimentada
pela observação empírica do país real. Nestes termos: “quando se observam os traços variadíssimos da fisionomia do povo português, quando nas exposições de retratos das oficinas fotográficas se contemplam um sem número de caras, quase se podia escolher uma amostra bem característica de tipos antropológicos os mais preponderantes e bem acentuados da humanidade. Há caras com um prognatismo singular, e com depressões frontais, que lembram o homem pré-histórico; outras têm proeminências malares e disposição oblíqua das pálpebras, que lembram a raça mongólica; outras o traço fino e perfeito do ária, já com os cabelos pretos e olhos castanhos, já com os olhos azuis e cabelos louros; uns são enxutos de carnes, com o cabelo crespo ou curto e negro, com barba lampinha, lem-. brando o tipo berbere; às vezes a cor da pele toma uma cambiante bronzeada clara do tipo fula; um tem a estatura alentada dos homens do norte como o antigo germano, outro a obesidade do turco, outro a estatura nieã
203
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-
2.
Que lição colhia, por exemplo, Rocha Peixoto, da extraordinária
tempo.
variabilidade física e mental dos portugueses? Em contraste com O optimismo teofiliano, é umatriste lição quenos é transmitida em termos como estes: “a cruel heterogeneidade dum povo, sem traço algum decisivo que o marque fundo e forte, que o revele por assinaladas tendências sob qualquer aspecto de actividade inteligente ou astuciosa, que o denuncie enfim por um carácter dominante, original, todo seu, iniludível e irrefragável: =
nós somos isto!"(2). Esta interpretação do múltiplo acusa uma obsessão pelo uno, pelo protótipo, por um modelo antropológico unívoco dos portugueses. Tratava-se de uma preocupação científica da época que também
não foi estranha a Teófilo Braga mas, em última análise, o nosso autor exorcizou esse problema sem sair do naturalismo histórico, na medida em
que soube converter a miscigenação num trunfo biológico e civilizacional. Esta fecunda originalidade doutrinal tornar-se-á mais nítida perante os seus contraditores.
do mouro, outro a cor ruiva dos cabelos e barba como o alano ou q cita. Parece-nos uma feira dos diferentes povos da terra”(2). À luz deste valioso testemunho somoslevados a afirmar que o reconhecimento teofiliano da diversidade física e psicológica da população portuguesa foi um dos factores impeditivos da transformação da sua teoria racialista da
história numateoria racista da história(?). Que “maniqueismo racial”(4)
poderia ser sustentado perante a evidência daquela diversidade que Teófilo encara como fonte benéfica de possibilidades de progresso histórico? Quer isto dizer que Teófilo compreendeu que o alargamento do capital genético pelo cruzamento inter-racial é vantajoso() para a dinâmica (!) Esse desconhecimento é mesmo afirmado por Hzckel apesar do seu dogmatismo monista-fisicalista. Vide: Ernst Hackel, História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais, ob. cit., pp. 150-167. (2) Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes, crenças e tradições, ob. cit., vol. 1, pp. 39-40. (é) Vide: Pierre-André Taguieff, La force du préjugé. Essai sur le racisme et ses doubles, ob. cit., p. 122 e ss. (4) Cf. Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., p. 260. () Vide: Ana Leonor Pereira, “Raças e história: imagens nas décadas finais
de oitocentos”, Revista de História das Ideias, Coimbra, vol. 14, 1992, sobretudo pp. 347-350.
(1) Recorde-se que, nos seus Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, Teófilo sustenta a seguinte tese: “a importância histórica das raças está na razão do seu cruzamento”, ob. cit., p. 215. (2) Rocha Peixoto, “A anthropologia, o caracter e o futuro nacional”, Revista de Portugal, Porto, 3, 1890, p. 689. Sublinhado do Autor.
CAPÍTULO 2 Teses racialistas críticas das posições teofilianas
1: A defesa radical da arianidade latina peninsular, por Júlio de Vilhena Um doscríticos do germanismo do jovem Teófilo que desenvolveu um trabalho muito significativo, em função do nosso escopo, foi o seu contemporâneo Júlio de Vilhena. Em 1873, com 27 anos, dá à estampa um estudo intitulado As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no direito portuguez(!). Nele defende quea civilização peninsular foi obra das raças arianas que se fixaram no seu solo, tendo sido decisivo, nesse processo, o período de romanização da Península. O autor subscreve o arianismo europeu e peninsular, mas postula que a raça latina se sobrepôs a todas as restantes raças arianas que se instalaram na Península, tanto em períodos anteriores como posteriores ao domínio romano. Em primeiro lugar, Júlio de Vilhena procura coordenar argumentos multidisciplinares para “dar o primado da povoação da península à raça ariana, e negá-lo à raça semítica”(2). Assim, recorre às investigações em curso em diversas disciplinas científicas, julgando que o seu confronto e articulação constituiriam a melhor defesa do seu arianismo peninsular. Este procedimento não era original na época. Pelo contrário, como o caso de Teófilo o ilustra paradigmaticamente, a coordenação selectiva de materiais multidisciplinares era uma norma epistemológica do tempo, cultivada mesmo por aqueles cientistas(?) que tiveram alguma consciência da (1) Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no direito portuguez, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1873.
(2) Idem, ibidem,p. 47.
(3) Vejam-se os casos de Lyell, L'ancienneté de "homme prouvée par la géologie et remarques sur les théories relatives a Vorigine des espêces par variation. Traduit avec le consentement et le concours de 1 auteur par Mr. M. Chaper. Deuxiême édition. ob. cit.,
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Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 2
necessidade de salvaguardar a autonomia dos objectos das diversas disciplinas e, em especial, da Linguística, da História e da Antroplogia. Neste sentido, o autor chama à colação um leque muito alargado de disciplinas científicas: “a geografia, a geologia, a paleontologia, a etnografia, a lin-
O trabalho argumentativo de Júlio de Vilhena desenvolve-se no horizonte do evolucionismo oitocentista que assumia a herança do optimismo perfectibilista das luzes, substancializado na noção filosófica e histórica de Progresso. Não queristo dizer que, por toda a obra, não haja
clopédia humana”(!), como a historiografia, o direito e as suas fontes históricas, pois esta era a área de formação académica de Júlio de Vilhena.
contrário, este opera a um nível subterrâneo, na camada mais profunda da
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guística, o estudo das mitologias comparadas, e outros ramos da enci-
Não admira, pois, que ao lado de autoridades das ciências naturais e
antropológicas como Lyell, Darwin, Quatrefages, L. Figuier, J. Lubbock é Correia Barata, figurem nomes de historiadores como Quinet e Alexandre Herculano, o filólogo e mitólogo Max Miller, o médico-filósofo. E.
Littré(2) e outros.
pp. 500-517; T. H. Huxley, La place de "homme dans la nature. Avec une préface de
Vauteur pour Védition française, ob. cit., particularmente pp. 303-358; Paul Topinard, L'homme dans la nature, ob. cit., sobretudo pp. 1-148. Em certa medida, também Max Miiller, após o termo militar do conflito franco-prussiano, embora o influente professor de
linguística e literatura em Oxford (juntamente com outros linguistas e historiadores é, especialmente, Emst Renan), tenha solidificado a confusão entre língua, povo e raça;'Ou melhor, entre história das línguas arianas, história dos povos e história das raças ditas arianas, confusão que se revelou política e culturalmente operativa até ao fim da 2º Guerra Mundial. Vide: Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., sobretudo pp. 179-195; Idem, “Spéculations aryennes sur "univers (1899-1945)”, art. cit., pp. 247-263; Claude Liauzu, Race et civilisation. L'Autre dans la culture occidentale. Anthologie historique, ob. cit., sobretudo pp. 226-247. (1) Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no direito portuguez, ob.cit., p. 9. (2) E. Littré no Dictionnaire de la langue française (1863-1872) dava esta definição de ariano: “Aryen: non donné à "ensemble des peuples qui parlent sanscrit, persan, grec, latin, allemand, slave et celtique. Les langues aryennes, dites aussi langues japétiques, langues indo-européennes...” Citado por Claude Liauzu, Race et civilisation. L'Autre dans la culture occidentale. Anthologie historique, ob. cit., sobretudo pp. 226-227. Note-se O duplo sentido do termo que decorre da utilização abusiva da Linguística pela História, pela Etnologia e pela Antropologia e vice-versa, passando por cima dos princípios elementares da transmissibilidade, da extinção e da evolução (ou descendência com modificações) das línguas. Assim, a simples hipótese linguística da existência de uma língua-mãe (o arianá primitivo) acaba por se converter numaidentidade histórica (povos arianos) e numa verdade biológica (raças arianas). Sobre a história da então chamada “questão ariana” vejam-se às fontes da época e, fundamentalmente, Ch. Lyell, L'ancienneté de "homme prouvée parla géologie et remarques sur les théories relatives a Vorigine des espêces par variation, ob. cit., pp. 500-517; T.H. Huxley, La place de "homme dans la nature. Avec une préface de Vauteur pour V'édition française, ob. cit., pp. 303-358; Paul Topinard, L'homme dans:la nature, ob. cit., pp. 1-148; G. de Vasconcelos Abreu, Investigações sobre o caracter dá civilisação árya-hindu, Lisboa, Imprensa Nacional, 1878.
traços do modelo darwiniano da descendência com modificações. Pelo historicidade, embora compatibilizado com a ideia de progresso.
Na perspectiva de Júlio de Vilhena, o primeiro elementoariano que se estabeleceu na Península foi o ibero(!), aquando da suposta migração ariana procedente da Ásia(?). Segundo o autor, as arqueologias antropológica e linguística provavam que o ibero não tinha uma origem africana, nem era autóctone da Península. Embora reconhecesse que a ciência do tempo não podia avaliar a influência dos iberos na constituição física e mental das populações futuras da Península, mantinha a ideia segundo a qual “a migração ariana é um facto atestado a todas as luzes, que dessa migração fizeram parte os iberos, e que a Espanha, bafejada no berço pelo espírito ariano, recebeu com ele o germen das instituições futuras”), tanto mais quanto este substracto foi reforçado com a chegada à Península de outros elementos procedentes do mesmo tronco ariano: os celtas que se fundiram com os iberos. Posteriormente os gregos e, depois, os romanos. O domínio bio-civilizacional romano foi decisivo para purificar o sangue ariano peninsular que tinha contactado com o sangue semita por duas vezes: aquando da colonização fenícia e, mais tarde, no século HI a.C., no período da invasão cartaginesa. Textualmente: “o elemento ariano depurava-se da sua mistura semítica, fundindo-se com o
elemento latino, e recobravaa sua antiga pureza”(*). Portanto, na perspectiva de Júlio de Vilhena, foi o domínio latino que cimentou o arianismo peninsular na sua dimensão biológica e, ao mesmo tempo,foi a civilização romana que marcou, em definitivo, a identidade linguística-jurídica-cultural(>) da Península. E, na óptica romanista de Júlio de Vilhena, o
(1) Vide: Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no direito portuguez, ob. cit., pp. 36-47. (2) Esta hipótese foi largamente discutida na época por naturalistas e linguistase, designadamente, por Charles Lyell, L'ancienneté de "homme prouvée par la géologie et remarques sur les théories relatives a Vorigine des espêces par variation, ob. cit., pp. 500-
-S17. Esta tradução francesa é umadas fontes privilegiadas de Júlio de Vilhena.
(3) Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no direito portuguez, ob.cit., p. 47. (*) Idem,ibidem,p. 64.
(é) Vide: Idem, ibidem, p. 51.
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Parte II — Capítulo 2
elemento latino foi particularmente determinante na formação da
era, da França, contra todos aqueles que, como “os naturalistas alemães proclamam a superioridade da raça germânica sobre a raça latina, queendo usurpar a esta o primado da civilização da Europa”(!). O autor irecta e explicitamente visado é Teófilo Braga pela sua negação da nfluência orgânica do elemento romano na população peninsular.
jurisprudência peninsular(!).
Para legitimar cientificamente o seu latinismo, o autor enuncia um princípio,dito etnológico, com o qual explica a supremacia romana sobre todos os elementos arianos e, em especial, sobre os bárbaros germanos. Segundo este princípio, “quando dois povos de diversa civilização coexistem em um mesmo meio, o povo menoscivilizado é sempre atraído pelo mais civilizado. Se este facto se realiza ainda entre povos de diversa raça, não é para admirar que os bárbaros se acostumassem depressa à civilização dos romanos”(2), já que ambos pertenciam à mesma “árvore genealógica”(*). Se os bárbaros deram continuidade à civilização romana, isso não provava a superioridade dos seus dotes mentais, mas a elevada consistência civilizacional do romano. Com efeito, o autor põe em relevo o capital jurídico, linguístico e político do romano e, simultaneamente, desvaloriza a capacidade germana de assimilar e de transformar esse capital. Na verdade, a lei etnológica de Júlio de Vilhena é manifestamente arbitrária. Apesar de defender a sua cientificidade, ela não passa de uma espécie de cosmética retórica que sustenta o seu arianismo romanista. É que, Júlio de Vilhenatinha decidido entrar no combate científico que prolongou a guerra franco-prussiana, para lá do seu termo militar. Assumiã O seu trabalho como uma arma de defesa dos “direitos da raça latina”(4), isto (!) Vide: Idem, ibidem, p. 65 e ss. Igual posição é sustentada por António Cândido nas suas Theses selectas de direito as quaes(...) na Universidade de Coimbra se propõe defender para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1878. Na
secção “Da História do Direito Português, Romano e Canónico” defende: “No desen-
volvimento histórico do Direito Português o tradicionalismo latino prevaleceu sobre O génio da raça germânica”, p. 9. (2) Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no direito portuguez, ob. cit., p. 69. Sublinhado do Autor. (3) Vide: a “Árvore genealógica das raças indo-europeias” de Ernst Hackel; História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais, ob. cit., p. 540. O critério haeckeliano de classificação das raças apoia-se emduas frentes. Por um lado; à filologia comparada de A. Schleicher, entre outros linguistas evolucionários. Por outro lado, a anatomia comparada (principalmente o cabelo e secundariamente a forma do crânio e a forma das mandíbulas). Vide, também, Léon Dumont, “La théorie de Vévoluz tion en Allemagne. Lafiliation des races humaines d'aprês Haeckel”, art. cit., pp. 934-940. (*) Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no direito portuguez, ob. cit., [p. 7]. A ideia de raça latina andava associada à ideia de cesarismo (IIº Império). Por isso, François Lieber, entre outros, julgava que a melhor forma de servir a França era acabar com as raças dentro da Europa mental e, portanto, não
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Para defender a tese do arianismolatino peninsular, Júlio de Vilhena
“constrói uma leitura valorativa da Idade Média, argumentando que este
“períodohistórico foi um tempo de progresso político e religioso relativa-
mente à civilização greco-latina, e que esse progresso foi realizado pelo “génio latino alumiado pelo espírito cristão”(2). Em termos sumários, defende que “toda a revolução da idade-média foi operada pelo cristianismo; o elemento bárbaro teve um papel completamente passivo, e o elemento romano auxiliou a Igreja na sua grande obra de transformação social”). Em todos os domínios da organização social da Idade Média, tanto temporal como espiritual, o autor encontrava a submissão das raças germânicas à superioridade civilizacional latina e cristã. Embora latinos e germanos fossem considerados irmãos de sangue ariano, entre ambos
postulava uma diferença de capacidade evolucionária, na qual fundava o seu romanismo, contra as tendências germanófilas de uma importante fracção da elite culta europeia de então, representada, entre nós, pelo
jovem Teófilo Braga.
Na polémica que manteve com Oliveira Martins em 1873, a propósito do lugar e do valor da Idade Média na história da civilização, Júlio de Vilhena reafirma o seu ponto de vista, procurando legitimá-lo cientificamente: “Eu não nego, nem poderia negar, que os povos bárbaros se cruzaram com os romanos, subjugados pela invasão. Neste sentido as migrações germânicas renovaram o sangue romano, renovação tanto mais reconhecer juridicamente a expressão raça latina. Deste modo, poder-se-ia libertar a França do estigma napoleónico e toda a Europa dos nacionalismos retrógrados. Vide François Lieber, “De idée de la race latine et de sa véritable valeur en droit international”, Revue de Droit International et de Législation Comparée, Londres e outras, 3, 1871, pp. 458-463. De facto, as raças não desapareceram da Europa mental. E, se elas viriam a receber certidões de óbito científico e político-cultural e literário com o fim da 2*:Guerra Mundial, o certo é que não se extinguiram. São categorias que renascem das cinzas. Vide, entre outros, Germano Sacarrão, Biologia e sociedade II. O homem indeterminado, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1989, p. 145 e ss. (!) Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no direito portuguez, ob. cit., [p. 5-6].
(2) Idem, ibidem,p. 7. () Idem, ibidem,p. 105.
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Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 2
fácil quanto era favorecida pela origem ariana das duas raças. (...). E então realizou-se uma lei muito vulgar em etnologia. Comonão havia entre os
mitem que o órgão anterior continue a sua evolução e experimente “transformações até ao último dia da vida”(l). Com efeito, a ciência ntropológica do tempo permitiu o revestimento do mito da inferioridade
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vencedorese os vencidos os atritos provenientes da diversidade da origem,
que sempre obstaram à comunicação dos povos latinos com os ramos do tronco semítico, os vencedores aceitaram a civilização dos vencidos, é
assimilando os princípios do meio, formaram com eles a civilização mo-
derna. Nisto não aparece senão a influência activa do elemento romano, é
o semita com argumentos aritméticos e geométricos, possibilitando a sua egitimação em termos de fisicalismo(?), isto é, no plano da cientificidade
máxima, para a época. Ora, Júlio de Vilhena perfilhava manifestamente ste dogma da inferioridade semita e, portanto, era lógico que desse
tão activa que se impôs aos costumes e à individualidade das raças germânicas”(1!). Portanto, o elemento germânico “foi puramente assimi lador e passivo”(2), o que, para O autor, necessariamente, significava qu a matriz da civilização europeia era latina. À luz do exposto, torna-se evidente que Júlio de Vilhena teria d provar também o fraco valor bio-civilizacional da presença histórica d raça semita na Península Ibérica. Para tanto, bastava-lhe advogar o dogm da inferioridade constitucional do semita. É de notar que este preconceit
“postulado deduzisse a fraca influência bio-civilizacional do semita, na “Península Ibérica. Todavia, o autor acrescentava aos argumentos pseudo-
estabelecida pela Antropologia física e biológica, pela Etnologia, pel Linguística e pela História(?). Essa suposta verdade resultava, po
“dos semitas”(2). Arianos e semitas são como duas espécies distintas que,
indutivamente pela sua organização familiar, social, religiosa, política cultural. Ora, o argumento anátomo-fisiológico era infalível, para o noss autor. Comparando os traços da raça semita com os traços da raça ariana Júlio de Vilhena retem as diferenças que passamos a transcrever, sem trun;
“no hipotético cruzamento dos arianos com os semitas, a infertilidade
se apresentava no cientismo oitocentista como uma verdade científica
dedução, da estrutura anátomo-fisiológica do semita e era confirmad.
-científicos expostos, anátomo-fisiológicos e ontogénicos, o testemunho
“da própria história peninsular. Assim, defende que os elementos semitas
— o fenício, o cartaginês e o árabe — que entraram em contacto com o “fundo ariano da Península não o marcaram biologicamente. Prescinde da “hipótese, inspirada formalmente na lógica darwiniana da vida, da luta
“entre os caracteres arianos e os caracteres semitas, considerada favorável
“aos primeiros, e, simplesmente, postula a “incomunicabilidade fisiológica
“naturalmente, não têm tendência para o cruzamento e, sendo constrangidas “a fazê-lo, não geram uma descendência fértil. Mas acresce dizer que,
provinha da rigidez semítica.
vado, os lábios salientes e carnudos, as extremidades grossas e os pé chatos, o semita cresce rapidamente. Aos quinze ou dezasseis anos O se corpo está completamente desenvolvido; nesta idade as peças anteriore do seu crânio, onde estão alojados os órgãos da inteligência, acham-se j
Além desta especulação biologista, o autor advoga que, também em eas fundamentais da cultura, a raça gótica-romana da Península, nada de “decisivo podia receber do contacto com o árabe, porque “o carácter intelectual dos semitas é de todo negativo sem aptidão para as concepções “gerais e abstractas (...). A raça semítica não tem literatura porque não tem “imaginação; não tem filosofia, porque não tem metafísica, não tem religião, porqueé intolerante”(4). A suainferioridade anátomo-fisiológica-
idade o semita não progride mais: toda a sua elaboração intelectual fic
é religiosa, mas também jurídica, razão pela qual no plano do
car o excerto: “Com os cabelos encrespados, o nariz grandemente recur
solidamente engrenadas e, muitas vezes, soldadas entre si. Desde est
estacionária. Na raça ariana, pelo contrário, os ossos do crânio, conser
mental espelhava-se nafalta de elevação da sua cultura filosófica,literária
“direito civil, a influência árabe é considerada nula.
vando sempre uma espécie de mobilidade em relação uns aos outros, per
(1) A Edade-Média na historia da civilisação. Polemica entre Antero de Quental,
J. P. Oliveira Martins e Dr. Julio de Vilhena. Prefaciado e anotado por Francisco d'Assi
d'Oliveira Martins. Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira, 1925, p. 141. Sublinhado d Autor. (2) Idem, ibidem, p. 139. Sublinhado do Autor. : (3) Cf. Léon Poliakov, Histoire de Pantisémitisme. 2. L'âge de la science, Paris Calman-Lévy, 1981, sobretudo, pp. 263-356.
(!) Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no “direito portuguez, ob. cit, pp. 126-127 (2) Vide: Claude Liauzu, Raceet civilisation. L'Autre dans la culture occidentale. *Anihologie historique, ob. cit., sobretudo pp. 87-157; Michael Banton, A ideia de raça. Lisboa, Edições 70, 1977, sobretudo pp. 104-116. (2) Júlio de Vilhena, As raças historicas da Peninsula Iberica e a sua influencia no
ireito portuguez, ob. cit., p. 137. Sublinhado nosso.
(4) Idem, ibidem, pp. 126-127.
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Darwin em Portugal
Pelo contrário, a superioridade linguístico-jurídico-cultural da raça ariana, em especial do seu elemento romano, gravou-se para sempre na história peninsular. “A Espanha era essencialmente ariana. Os iberos, os celtas, os gregos, os romanos, e por fim, as invasões germânicas na sua justaposição no território ibérico, tinham formado um corpo, em quecirculava o sangue dessa raça predestinada pelas leis providenciais da história a guiar a humanidade no eterno labor da civilização. Superior a todos, o elemento romano com a sua linguagem rica, polida e elegante, majestosa na epopeia (...) e com a sua jurisprudência verdadeiramente colossal, inoculou-se no coração da Ibéria”(!). Pelo que fica transcrito conclui-se que o seu arianismo romanista, alicerçado, sobretudo, em . inconsistentes argumentos bio-antropológicos e linguístico-culturais, apresenta-se como uma unidade fechada e dogmática à semelhaça do mito(2). Podemos, pois, afirmar que Júlio de Vilhena cultivou exemplarmente o
mito da raça ariana-latina e, deste modo, contribuiu para manter acesa a
guerra mental entre as raças latina, germânica e eslava(?), ao mesmo tempo que reclamava um lugar para a Península Ibérica no quadro das civilizações progressivas da Europa, defendendo a sua arianidade latina e refutando a sua miscigenação com o suposto improgressivo e incomunicante sangue semita. Assim sendo, perguntamos: será legítimo considerar racista(4) esta | leitura do processo histórico peninsular? Se se considerar epistemologicamente ilegítimo aplicar um termo novecentista() a um trabalho oitocentista, a resposta é negativa. Além disso, é de sublinhar que o estudo de (1) Idem, ibidem, pp. 137-138. Sublinhado nosso. (2) François Jacob, O jogo dos possíveis. Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo. Tradução revista por: Luís J. Archer. Lisboa, Gradiva, 1985, pp. 15-53. () Entre outros subscritores juristas deste combate mental, encontra-se António Cândido, que nas suas Theses selectas de direito (1878), na secção “Dos princípios fundamentais de Filosofia do Direito, e do Direito Público em geral especialmente do Português”, sustenta: “Reputando grandes perigos para o Ocidente as modernas tendências pangermanistas e panslavistas, entendemos que deve opor-se-lhes desde já: 1º a mais apertada aliança dos povos neo-latinos; 2º a reforma do seu estado militar, no sentido do serviço obrigatório e da mais rápida mobilização dos seus exércitos”, António Cândido, Theses selectas de direito as quaes (...) na Universidade de Coimbra se propõe defender para obter o grau de doutor, ob. cit., p. 11. (4) Vide: François Jacob, “Biologie — Racisme — Hiérarchie”. In: Le racisme: mythes et science. Sous la direction de Maurice Olender. Bruxelles, Editions Complexe,
1981, pp. 107-109.
(6) Vide: Pierre-André Taguieff, La force du préjugé. Essai sur le racisme et sés doubles, Paris, Éditions La Découverte, 1988, pp. 122-132.
Parte
— Capítulo 2
213
Júlio de Vilhena não é, de modo algum, marginal, relativamente às certezas fundamentais da sua época(!) e, por isso, não podemos julgá-lo racista sem, ao mesmo tempo, denunciar toda a antropologia de oitocentos e, especialmente, a antropologia pós-darwiniana, como bem observou
Claude Blanckaert(?).
Para concluir, importa acrescentar que, na obra teofiliana encontrá-
"mos uma preocupação de apresentar os argumentos naturalistas que “melhor se ajustavam à defesa da consistência rácica do povo português.
No-caso de Júlio de Vilhena, o recurso aos enunciados, ditos científicos,
“não é tão elaborado e, quanto às leis fundamentais que invoca não há ' mesmo o cuidado de indicar a sua proveniência ou autoria. Esta cons-
tatação não significa que asteses teofilianas sejam mais científicas do que
as teses de Júlio de Vilhena. São teses políticas de sentidos distintos e, também por isso, são peças de grande valor histórico, perfeitamente sintonizadas com a inspiração darwínica da cultura europeia finissecular. Salvaguarde-se, no entanto, que, em finais do século XIX, não é exacta(i) Neste contexto, merece especial menção um pequenoartigo dado à estampa em 1862 e assinado por J.J. de Melo (Jerónimo José de Melo). Vide: Manuel Augusto Rodrigues, Memoria professorum Universitatis Conimbrigensis 1772-1937, Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1992 — vol. 2, p. 216. Neste artigo, o autor defende uma posição heterodoxa e absolutamente marginal relativamente à cultura científica da época, que estava impregnada de valores ideológicos, como o preconceito da hierarquia física e mental das raças humanas. Jerónimo José de Melo, o médico-higienista, autor da Memoria Filosofica sobre a Megalanthropogenesia, ou arte de aperfeiçoar a especie humana, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1822, mostra-se adversário da ideia de superioridade da raça latina e, em lugar de argumentar a favor da raça germânica, eslava ou anglo-saxónica, como era corrente nos anos sessenta, recusa a hierarquização racial, condena a distinção das raças em superiores e inferiores e, descendo à raíz do problema, questiona a existência de raças humanas. Assim, escreve: “A ideia de supremacia de raças têmo-la até por muito perigosa (...) Quiseramos, no estado actual das ciências, ver desaparecer das discussões a distinção de raças, e até de espécies. Tanto uma como outraideia São puramente subjectivas, criadas pelo homem para facilitar o estudo dos seres organizados; por que a realidade só no indivíduo se acha na ideia objectiva. Não tem havido até quem sustente, e com muito boas razões, um único centro de criação animal, e as dife-
renças individuais, e colectivas devidas a transformações filhas da selecção natural e artificial”, J.J. de Melo, “Panlatinismo”, O Instituto, Coimbra, 11(4) Jul. 1862, p. 94.
Súblinhado nosso. Poreste excerto se vê que o autor invoca por um lado, o monogenismo €&, por outro lado, a selecção natural e artificial como justificação da variabilidade humana. Portanto, a ideia central na tese darwiniana de 1859 — a selecção natural, (sendo o indivíduo a unidade de selecção) — é usada para fundamentar cientificamente a ilegitimidade ta perigosidade da noção de raças humanas e sua classificação hierárquica. (2) Vide: Claude Blanckaert, “La science de "homme entre humanité et inhumanite”. In: Des sciences contre Uhomme, Paris, Éditions Autrement, 1993, vol. 1, pp. 14-45.
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Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 2
mente a interpretação racialista da história que é inédita(!). O que é novo é a sua inspiração circum-darwinista, seja ela assumida explicitamente ou
identidade racial da Península Ibérica significava observar a questão em
não. Novo, é o entrosamento de velhos mitos com os novos saberes antro-
pogénicos e raciológicos, cuja fragilidade era especialmente vincada no domínio capital da hereditariedade. 2. O veredicto de um cientista da natureza: Correia Barata e a maquilhagem darwinista da arianização da Península Ibérica Vejamos agora como é que um cientista da natureza, declaradamente darwinista(?) aborda a problemática da identidade rácica da Península Ibérica. Evidentemente que é em nome do autêntico conhecimento científico que Correia Barata se propõe defender a tese do arianismo histórico peninsular e rebater a tese do moçarabismo teofiliano. A argumentação do autor, no opúsculo intitulado As raças historicas da Peninsula Iberica(?), é tipicamente darwinista, o que, desde logo, significa que a história da humanidade (ou qualquer fracção particular dela) é reduzida à história natural da espécie humana e que, portanto, a expressão “raças históricas” tem um sentido naturalista(?) e nele se esgota. A noção legítima de raça é zoológica e determina-se, basicamente, pelos caracteres anatómicos. Por isso, o autor afirma que: “uma raça sem caracteres físicos, determina-
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À luz dos postulados enunciados, torna-se claro que, determinar a
conformidade com o quadro darwiniano de inteligibilidade da evolução de
toda e qualquer população de seres vivos, incluindo a espécie humana. Esse quadro comportava as noções capitais de descendência, miscigenação, variação, meio e transmissão hereditária dos caracteres adquiridos(!). A articulação destas noções definia a própria lógica da vida, a sua normatividade, as suas leis: “These laws, taken in the largest sense, being
Growth with Reproduction; Inheritance which is almost implied by repro-
duction; Variability from the indirect and direct action of conditions oflife,
and from use and disuse: a Ratio of Increase so high as to lead to a Struggle for Life, and as a consequence of Natural Selection, entailing Divergence of Character and the Extinction of less-improved forms”(2). Ora, Correia Barata, embora cite a Origem das espécies, não nos dá indicações que nos permitam concluir que utilizou a sexta edição inglesa, justamente aquela em que Darwin recupera o lamarckismo e que, só no ano de 1872, conheceu cinco reimpressões em língua inglesa(?). O mais provável é que o naturalista português tenha consultado uma das traduções francesas, sobretudo a tradução de Mile Clémence-Auguste Royer que, em 1872, já contava com três edições (1862; 1866; 1870)(4). E, embora esta tradução se reportasse à primeira edição inglesa, o certo é que a tradutora, nas sucessivas edições da sua versão francesa, foi introduzindo no texto
tivos do seu tipo característico, é um mito”(º). As raças têm história,
uma história natural que se processa na longa duração, segundo as leis
darwinianas da descendência com modificações; assim sendo, a história
científica deve colocar-se no registo da exactidão zooantropológica para objectivar o processo histórico no plano da sua autenticidade de raíz. (1) Vide: Miguel: Baptista Pereira, “Modernidade, racismo e ética pós-convens cional”, Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, 2(3) Mar. 1993, pp. 3-64; (2) Nas suas Theses de philosophia natural, na secção “De zoologia”, lê-se: “HI Sustentamos a origem simiana do homem,IV. E a teoria da transmutação das espécies por selecção natural”. Vide: Francisco Augusto Correia Barata, Theses de philosophia natural que (...) se propõe defender na Universidade de Coimbra para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1872,p. 14. (3) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1872. Também parcialmente publicado in O Ins tituto, Coimbra, 16(6), 1873, pp. 121-130. (4) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica, ob. cit., pp. 40-43.
() Idem, ibidem, p. 28.
(1) O princípio da hereditariedade dos caracteres adquiridos, retomado de Lamarck,
e estruturante do lamarckismo, é secundarizado por Darwin nas primeiras
cinco edições da Origem das espécies (1º ed. — 1859; 2? ed. — 1860; 3º ed. — 1861; 4º ed. — 1866; 5º ed. — 1869) e em todas as dezanove reimpressões (tiragens com ligeiras diferenças) dessas cinco edições. Vide R. B. Freeman, The works of Charles Darwin. An annotated bibliographical handlist. Second edition revised and enlarged. Folkestone“Hamden, Dawson-Archon Books, 1977, pp. 84-86. Darwin teve necessidade de hipervalorizar a selecção natural enquanto mecanismo evolucionário, para afirmar a originalidade e incomensurabilidade da sua teoria. Mas, a partir da primeira impressão da 6º edição (1872), o princípio lamarckiano é incorporado por Darwin na lógica da selecção natural.
Vide: Ch. Darwin, The origin ofspecies by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions and corrections.
London, John Murray, 1873, pp. 106-132; 421 e ss..
(2) Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the Preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions and Corrections, ob.cit., p. 429. () Vide: R. B. Freeman, The works of Charles Darwin. An annotated bibliographical handilist. ob. cit., p. 86.
(4) Vide: Idem, ibidem, p. 102.
217
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 2
darwiniano algumas correcções e acrescentos(!) para que os factores lamarckianos do transformismo das espécies figurassem em pé de igual-
dos caracteres de toda a ordem”(!) é assegurada, mas apenas ganham sentido evolucionário aqueles caracteres que se ajustam às condições do meio. Toda a argumentação do autor se desenvolve em torno da heredi== tariedade e das suasleis. Correia Barata perfilha explicitamente as leis da hereditariedade
216
dade ao lado da selecção natural(?).
Seja comofor, o certo é que Correia Barata estava familiarizado com o transformismo continental, isto é, aquele que com Hackel e Bichnet na
Alemanha, C. Vogt na Suiça e Clémence Royer, Broca e Quatrefages em
França, entre outros, não atribuía um valor absoluto à selecção natural e introduzia na teoria darwiniana os factores lamarckianos, em particular, a.
hereditariedade dos caracteres adquiridos(?). Portanto, não admira que Correia Barata se tenha apoiado num ecletismo teorético, de tipo darwinista, para fundamentar a sua perspectiva biologista da história. O autor começa por afirmar o seguinte: “a ciência demonstra de facto que, quando diferentes raças se acham em presença, todas elas tendem invariavel e. infalivelmente para a mistura, produzindo raças mistas ou mestiças (...). As leis da mistura são: 1º A afinidade das raças, 2º A hereditariedade, 3º As condições do meio”(4), tanto do meio geográfico, como do meio social, em sentido amplo, desde o económico ao moral. Quanto maior for
a afinidade rácica em termos biológicos, menor é o tempo geracional necessário para se observar a fusão de caracteres, sendo, ainda assim, um tempo multissecular. Graças ao poder da hereditariedade, “a transmissão .
(!) Vide: Charles Darwin. De V'origine des espêces par sélection naturelle ou des lois de transformation des êtres organisés. Traduction de Mme Clémence Royer aves
préface et notes du traducteur. Nouvelle édition revue d'aprês Védition stércotype
anglaise, avec les additions de Pauteur. Paris, Librairie Marpon & Flammarion,s. d. = 4º edição [1882], fundamentalmente pp. 576-641. (2) Darwin mostrou o seu descontentamento relativamente à tradução francesa de Clémence-Royer, embora a considerasse “one of the cleverest and oddest women in Europe”, vide: R. B. Freeman, The works of Charles Darwin. An annotated bibliographical handlist, ob. cit., p. 84. () Vide: Lamarck, Philosophie zoologique ou exposition des considérations
relatives à "histoire naturelle des animauz.(...). Nouvelle édition revue-et précédée d'une
introduction biographique par Charles Martins. Paris, Librairie F. Savy, 1873, vol. 1,
pp. 220-265. Vide, também, Shelley R. Saunders, “The inheritance of acquired characte-
ristios: a concept that will not die”, in Laurie Rohde Godfrey, What Darwin began. Modern darwinian and non-darwinian perspectives on evolution. Edited by Laurie Rohde Godfrey. Boston e outras, Allyn and Bacon, 1985, p. 148 e ss.; M.J.S. Hodge, “Lamarck un grand changement de cadre conceptuel”. In: Nature, Histoire, Societé. Essais en hommage à Jacques Roger, s1., Klincksieck, 1995, pp. 229-239. (*) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica, ob. cit., p. 10. Sublinhado do autor.
construídas pelo zoólogo alemão E. Hackel e divulgadas por Biichner(?).
Essas leis realçavam o princípio lamarckiano da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos, no interior do mecanismo da selecção natural, contra o ultraseleccionismo de Wallace(?). Em termos mais específicos, as
leis da hereditariedade que o naturalista português apresenta são, nitida-
mente, uma forma abreviada do enunciado biichneriano. Por seu turno, o enunciado de Biichner é um resumodas leis da hereditariedade de Hackel, avançadas na sua História da Criação(1868), com o estatuto de leis provisórias e com o intuito de dar conta, em moldes sistemáticos, do estado
daquestão na época(*), sem escamotear as dificuldades do problema. É certo que Correia Barata conhecia a imprecisão dos resultados científicos nesta matéria e não podia ser indiferente ao seu défice cognitivo, assumido pelo próprio Darwin na Origem das espécies(?), mas não tinha melhor alternativa para destruir o moçarabe teofiliano. Assim, o naturalista português enuncia as seguintes leis: “1º Cada organismo lega aos seus descendentes além das propriedades que lhe foram transmitidas, as adquiridas; por isso há uma transmisão conservadora e outra progressiva. 2º A mudança de geração é um caso de atavismo de ordem muito intensa. 3º Os caracteres adquiridos são duma transmissão tanto mais fácil e permanente quanto a modificação se exerce por mais tempo e
(1) Idem, ibidem, p. 11.
(2) Vide: Ludwig Biichner, Conferences sur la théorie darwinienne de la trasmutation des espêces et de la apparition du monde organique. Application de cette théorie à 'homme. Ses rapports avec la doctrine du progrês et avec la philosophie materialiste du passé et du présent. Traduit de Fallemand d"aprês la second ed. par A. Jacquot. Leipzig, Theodore Thomas, Libraire-éditeur, 1869, pp. 46 e ss. Esta tradução é uma das principais fontes inspiradoras da naturalização da história ensaiada por Correia Barata. (3) Vide: Alfred Russell Wallace, La sélection naturelle. Essais. Traduits de Fanglais sur la deuxiême édition avec Vautorisation de Vauteur par Lucien de Candolle. Paris, C. Reinwald et Cie., Libraires-Editeurs, 1872. - (9) Vide: Ernst Hackel, História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais, ob. cit., pp. 151-167. (5) Vide: Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. (A reprint of the first editon). With a foreword by Dr. €. D. Darlington. London, Watts & Co., 1950, pp. 6-51; 114-146.
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Darwin em Portugal
Parte H — Capítulo 2
por maior número de gerações. Sem a primeira lei a fixação selectiva dos caracteres é impossível; e não podiam constituir-se raças nem determinar-se a sua evolução progressiva. A segunda não é de facto aplicável à antropologia; mas citamo-la, por que encerra uma ideia importantíssima — a de atavismo”(!). Nesta base, o autor precisa, em moldes lamarckianos-hackelianos, que “a hereditariedade abrange as propriedades orgânicas, já normais já patológicas, os costumes, os instintos, os dotes do espírito e até mesmoos hábitos”(2). Portanto, os descendentes recebem dos seus progenitores as características que estes transportam por herança e aquelas que
“tos. O retorno atávico é muito raro no cruzamento de indivíduos da mesma “raça, mas é frequente no cruzamento de indivíduos de raças diferentes. Ora, na luta que os caracteres de raças distintas travam entre si “o caso normal são as reproduçõesatávicas, ainda mesmo que já se achem constituídos alguns caracteres novos. Muitas vezes observa-se também a transmissão unilateral”(!). Importa acrescentar que a mestiçagem e a
exigida pela necessidade de sobreviver na luta pela vida. Daí que,a hereditariedade seja simultaneamente conservadora e inovadora. O seu lado
conjunto de observações feitas sobre a descendência de mestiços € de
eles mesmos adquiriram, voluntariamente, com toda a determinação
inovador prende-se, sobretudo, com a transmissão dos caracteres adquiri-
dos e com a possibilidade de variações espontâneas, cuja fixação selectiva, em obediência às condições mesológicas, ocorre no decurso de uma cadeia geracional muitíssimo longa. A hereditariedade processa-se também segundo o chamado atavismo pelo qual, bruscamente, emergem nos descendentes caracteres que pertenceram a ascendentes seus, muito remo-
(1) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica,
ob. cit., p. 29. Sublinhado do Autor. Estas leis correspondem à segunda,à terceirae à sexta leis do resumo de Biichner: “1º Chaque organisme lêgue à ses descendants, outre les pro-
priétés qui lui ont été transmises, une partie de celles qu'il a acguises durant sa vie: de
sorte qu'il y a une transmission conservatrice et une transmission progressive. 3º Lê changement de génération n'est qu'un cas de atavisme ou de retour, d'un ordre três intense. 6º Les caractêres acquis sont d'une transmission d'autant plus facile et plus pet: sistente, que la modification a été exercée plus longtempset sur un plus grand nombre de générations, commecela se produit dansla culture des fruits, | amendation des fleurs etc”, Ludwig Btichner, Conferences sur ia théorie darwinienne de la transmutation des espêces et de la apparition du monde organique. Application de cette théorie à "homme. Ses rapports avec la doctrine du progrês et avec la philosophie materialiste du passé et-du présent. Traduit de Vallemand d'aprês la second ed. par A. Jacquot. Leipzig, Theodore Thomas, Libraire-éditeur, 1869, p. 46. Sublinhado do Autor. Note-se que Correia Barata. exclui a “geração heterogénea”, isto é, a teoria de Kôlliker segundo a qual novas espécies podem formar-se por um processo de modificação brusca do germe do indivíduo. Vide: Édouard de Hartmann,Le darwinisme. Ce qu'il y a de vrai et de faux dans cette théorie, ob. cit., pp. 25-51. (2) Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica, ob. cit, p. 29. A exposição de Correia Barata não está, no plano formal, muito distante dos termos dar: winianos expostos desde 1859. Vide: Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. (A
reprint ofthefirst editon). With a foreword by Dr. €. D. Darlington, ob. cit., pp. 114-146.
219
da hibridez eram fenómenos da maior complexidade, conforme se deduz ). época( da stas naturali dos s trabalho dos e ana exposição darwini
Todavia, o carácter ideológico da construção do naturalista português torna-se claro perante as conclusões de Darwin. Com efeito, a partir de um híbridos dos reinos vegetal e animal, Darwin demonstrou a afinidade sis-
temática entre espécie e variedades e, portanto, refutou a distinção entre
espécie e raças ou variedades. Mais ainda, no caso dos animais, concluiu
que “the laws of resemblance of the child to its parents are the same,
whether the two parents differ much or little from each other, namely, in
the union of individuals of the same variety, or of different varieties, or of
distinct species”(2). Além disso, deixando em aberto a questão da fertilidade, afirmou que “there is a close general resemblance between hybrids and mongrels"(4). Na sexta edição da obra, o autor precisaria: “Independently of the question of fertility, in all other respects there is the closest general resemblance between hybrids and mongrels, — in their variability, in their power of absorbing each other by repeated crosses, and in their inheritance of characters from both parent-forms”(º). Como se deduz destes enunciados, à luz da teoria darwiniana, não era fácil defender que o cruzamento de duas raças diferentes não dava origem à emergên-
cia de uma terceira raça. No entanto, Correia Barata apresentou três leis da
hereditariedade para fundamentar a refutação da raça moçarabee, simultaneamente, legitimar o arianismo peninsular. (1) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica, ob. cit., p. 30.
.
(2) Vide, por exemplo, A. de Quatrefages, Charles Darwin et ses précurseurs français. Étude sur le transformisme, Paris, Germer Baillitre, 1870, pp. 215-265. (3) Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle forlife. (A reprint of the first editon). With a foreword by Dr. C€. D. Darlington, ob. cit., p. 235.
(4) Idem, ibidem, p. 237.
(5) Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions and corrections, ob. cit., p. 263.
2 Parte H -— Capítulo í
Darwin em Portugal
220
221
Vejamos, pois, como é que o naturalista universitário aborda história das diferentes raças que habitaram a Península Ibérica. Remontando à idade do bronze, Correia Barata afirmaa existência d
calidade da inter-penetração rácica extravasou a queda do império romano o Ocidente. Mas, o que importa relevar é que, para o autor, aquela mistura oi perfeita, atendendo à afinidade racial, às leis da hereditariedade e às
greco-fenício por um espaço de tempo de, pelo menos, doze séculos, entre o século XV e o séculoII antes de Cristo(!). Tratou-se de um processo de miscigenação complicado, dado que as raças envolvidas não partilhavam a mesma genealogia(2). Mas, os dois “sangues” distintos, envolvidos na
ador, assimilou o elemento hispânico, sobretudo no decurso dos primeiros
um fundo peninsular ariano celto-ibero que se irá cruzar com o sangue
luta pelo sucesso bio-histórico, o ariano e o semita (sobretudo o fenício)
ondições do meio. Correia Barata defende que o elemento latino, domi-
cinco séculos, e desta fusão resultou uma raça superiormente dotada nos
planos intelectual e civilizacional. Além da pertença das duas frentes rácicas à mesma “família”(1), o autor chama, em defesa da sua perspectiva, o argumento antropológico segundo o qual a mistura éperfeita quando duas
acabaram por se fundir, justamente porque o seu contacto perdurou por doze séculos. No entender do autor, “a fusão foi completa”(?). Dela não cabe duvidar, considerando os dados históricos estabelecidos pela auto dade de Alexandre Herculano que Correia Barata invoca, não para subordinar a sua perspectiva bio-antropológica à leitura herculaniana mas, pelo
raças firmemente constituídas se encontram num meio isolado que as pre-
“na filosofia natural se encontram as grandes leis da história”(4). Por isso, à antropologia biológica cabia explicitar o significado da fusão do sangue celto-ibero com o sangue greco-púnico-fenício. Este fusionamento não era sinónimo de transformação de dois elementos diferentes num elemento único e novo. De acordo com o princípio da hereditariedade por atavismo, e com as exigências da adaptação ao meio(”), em toda a sua complexidade, desde o plano geo-físico ao nível sócio-moral, aconteceu que o sangue semita, originariamente, dito estranho ao solo peninsular, foi assimilado pelo sangue ariano celto-ibero. Houve, portanto, assimilação do semita pelo ariano, mas a semitização do ariano não afectou a pureza deste. Foi este fundo ariano que se confrontou com o elemento romano conquistador e dominador da Península Ibérica nos sete séculos seguintes.
cia superior(?). Em circunstâncias bio-ecológicas tão favoráveis, sobretudo,
contrário, para chamar a história a testemunhara sua tese, segundo a qual
Assim, de 220 a.C. até 476 d.C., a Península Ibérica foi palco do cruza-
mento entre duas raças, basicamente arianas: a celto-ibero e a latina. Claro que as referidas balizas cronológicas são de algum modo artificiais, pois a
serve do contacto reprodutivo com outras raças. Se as populações do império se concentravam nas cidades, isso significava, para o olhar naturalista de Correia Barata, que elas viviam em “verdadeiras ilhas”(2). As cidades romanas constituíam além do meio ideal de possibilidade de cruzamento, o meio que fatalmente determinava a gestação de uma descendên-
estando realizada a condição chave do isolamento geográfico, como Darwin tinha demonstrado(*), era lógico que, ao cabo de cinco séculos, grosso modo, a raça ariana hispano-latina se tivesse consolidado. Ela encontrava-se em plena maturidade biológica quando se processou a escalada triunfante de novos invasores que buscavam o seu Lebensraum no território ibérico. Ora, o sangue ariano-germânico dos vandalos, dos alanos,
dos-suevos e dos visigodos não ofereceu resistência à fusão com o sangue
latino, igualmente ariano. Por isso, Correia Barata considera que bastaram
dois séculos (262-476) para se abrir o processo de constituição de uma nova raça, superior às suas progenitoras: a raça gótico-romana que, natural-
mente, se iria definir no decurso da conquista e do domínio da Península
pelos visigodos, entre o século v e as invasões muçulmanas de 711-714. O autor considera que nada há de singular neste processo histórico que não possa ser explicado pelo mecanismo darwiniano da luta pela vida e da selecção natural, englobando a selecção sexual(*). O confronto das (1) Idem, ibidem,p. 11.
(!) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica,
obscit., p. 16.
(2) Vide: Ernst Heckel, História da criação dos seres organizados segundo asleis naturais, ob. cit., pp. 539-540. (*) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Ibericã, ob.cit., p. 9.
(4) Idem, ibidem, p. 19. Sublinhado nosso. (É) Idem, ibidem, p. 10 e ss.
(2) Idem, ibidem, p. 13. (2) Idem, ibidem, p. 13.
(4) Vide: Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. (A reprint of the first editon).
With a foreword by Dr. C. D. Darlington, ob. cit., pp. 87- 95.
(*) Vide: Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, orthe preservation offavoured races in the struggle for life. (A reprint of the first editon). With a foreword by Dr. €. D. Darlington, ob. cit., 1950, pp. 75-77.
222
Darwin em Portugal
raças germânicas com a raça hispano-romana foi positivo para ambasa:
partes; o seu cruzamento, além de inevitável, era favorecido pela partilh: do mesmo fundo ariano. Daí que, pelo mecanismo da selecção natural, sé tenha constituído a raça gótico-romana que triunfará na Península, ape de, posteriormente, no período da ocupação muçulmana, ter entrado
contacto com o sangue semita.
Nos termos inequívocos de Correia Barata: “Isto é uma dei d; história. É a grande lei da transformação, descoberta por Darwin, que s verifica. É que as nações têm uma vida limitada assim como as espécies Nada é perpétuo: o próprio globo se transmuta constantemente (...). N: filosofia natural se encontram as grandesleis da história. Tal é a razão po)
que as suas espantosas descobertas, fazendo dela a filosofia do séculc
XIX, hão-de determinar certamente uma grande reforma social e moral ná seio das gerações futuras”(!). Assim, a história processa-se segundo é lógica darwiniana da descendência com modificações que, uma vez objectivada, deverá, a título de imperativo da razão científica, servir de norma
reguladora do futuro social e moral da espécie humana. Esta lei que rege a evolução natural das espécies, comanda igualmente a evolução histórica das nações. O autor, mais do que fazer uma aproximação conceptual entre nação e espécie, estabelece uma coincidência entre os dois termos, através da redução do primeiro ao segundo. Não há dúvida que estamos perante uma interpretação cientista-darwinista da história, onde, implícita € explicitamente, abundam referências à teoria darwiniana, tanto da obra de
antropologia zoológica de Darwin, como, e mais acentuadamente, da obra inaugural de Darwin, enquanto botânico e zoólogo. Assim sendo, para Correia Barata, o único código abalizado de le
tura do acontecer histórico, em toda a sua extensão temporal — passado, presente e futuro — era o mecanicismo evolucionário darwinista-hackeliano e, através dele, o nosso autor visava atingir dois alvos em simultãneo. Ao mesmo tempo que defendia a sólida essência ariana das raças peninsulares, denunciava o abuso que Teófilo Braga fazia da teoria evolu-
Parte II — Capítulo 2
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or isso, não deixava passar impunemente, o não reconhecimento, por
arte de Teófilo, do valor orgânico do elemento romano(!), na definição a“identidade rácica peninsular. Igualmente, reprovava a raça moçárabe ofiliana(2). No entender de Correia Barata,a leitura teofiliana da história eturpava os mais elementares princípios da descendência com modifiões. : Ora, segundo a argumentação do naturalista, a raça gótica-romana, ós três séculos de consolidação, atingiu aquele ponto de estagnação que
oderia precipitá-la na decadência orgânica, se o seu isolamento reprodu-
ivo não fosse quebrado. Tal decadência não sucedeu, pois, praticamente esde meados da segunda década do século oitavo, a raça gótica-romana
defrontou-se com um enorme desafio bio-histórico que, segundo o autor, veio reacender a força constitucional do seu arianismo. “Desta vez todos os elementos entram em luta aberta, tudo é antagónico: raça, instituições, ligião, língua e tradições”(2), já que, no mesmo solo, cohabitam arianos e semitas. À partida, biologicamente, não há vencidos nem vencedores. A união sexual inter-racial era inevitável. Mas, dela não resultou a emergência de uma nova raça, nem sequer a formação de uma raça mestiça: “não se formava uma raça nova, nem mesmo umaraça mista”(4). A luta que os “caracteres orgânicos” de ambas as partes envolvidas travaram entre si,
para se fazerem representar na descendência, foi muito dura. Mas, a supe-
rioridade ariana acabou por se impor. É que “o semita excluía o indoeuropeu. São duas organizações antipáticas. São dois grandes troncos do género humano; não são raças do mesmo tronco ou da mesma família. Quando asdiferenças dos elementos que se cruzam são originais, o cruzamento é excessivamente difícil; mas quanto mais próximo é o parentesco das raças tanto mais fácil se torna”(). É manifesto que o autor hierarquiza as raças de acordo com o preconceito cientista da desigualdade dos dotes físicos e mentais das raças, o qual, sintomaticamente, Darwin evitou
reflectir na sua obra(”). Além disso, expõe o problema da miscigenação em termos de hibridez e responsabiliza a selecção natural pela impossibi-
cionária da natureza; abuso porque, ignorando o darwinismo, em boa
medida, escudava-se nele para validar os seus argumentos(2). Enquanto naturalista, Correia Barata não se conformava com o suposto mau uso que Teófilo fazia do bom nome da ciência, do elevado crédito e autoridade que esta procurava firmar, sobretudo na sequência da revolução darwiniana. (1) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica, ob. cit., p. 19. Sublinhado do autor.
(2) Cf. Idem, ibidem, pp. 33-47.
(1) Cf. Idem, ibidem, pp. 5-8. (2) Cf. Idem,ibidem,, p. 24.
() Idem, ibidem,p. 21. (*) Idem, ibidem,p. 28. (é) Idem, ibidem, p. 26. Sublinhado nosso.
(6) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented. London, John Murray, 1875, Pp. 166-206.
224
Darwin em Portugal
Parte 1 — Capítulo 2
lidade da mistura dos caracteres, na medida em que na cadeia geracionalà sobreposição dos caracteres é acompanhada pela tendência à eliminação dos caracteres menos aptos. Assim, do cruzamento do semita com o ariano não podia resultar o moçarabe. “Porquê? Porque todasas influências da selecção natural cooperaram para estabelecer aquelas diferenças”(!) entr o semita € O ariano e era nesse sentido que a sua acção se exercia: Qu dizer: um capital hereditário que levou um tempo multissecular a acum lar-se e a definir-se pelo mecanismo da selecção natural não se transfo mava no espaço curto de algumas gerações, quando, ao nível reprodutiy tinha de competir com outro capital igualmente sólido. Para o auto era precisamente esta situação que se verificava no cruzamento do home ariano com a mulher semita e do homem semita com a mulh ariana. Portanto, o que ocorreu foi que o ariano, favorecido na luta pela vida, em virtude da sua superioridade adaptativa, triunfou sobre o semit Ora, é verdade que Darwin tinha afirmado que, no cruzamento de du espécies ou mesmo de duas variedades da mesma espécie de plantas, O produto híbrido ou mestiço assemelhava-se mais a um dos progenitores do. que ao outro, o que significava que os caracteres de um se sobrepunham aos caracteres do outro. “When two species are crossed, one has som times a prepotent power of impressing its likeness on the hybrid; and só
ut-that the prepotency runs more strongly in the male ass than in the emale, so that the mule, which is the offspring of the male ass and mare, s more like an ass thanis the hinny which is the offspring of the female ss-and stallion”(1). Perante esta complexidade do problema, é evidente ue a teoria darwiniana não oferecia argumentos sólidos que o naturalista português pudesse aplicar à abordagem das raças históricas da Península e, em especial, à determinação do produto resultante do cruzamento do “ariano com o semita. Assim sendo, para recusar o estatuto de raça ao moçarabe, Correia Barata tinha de postular o cruzamento entre o ariano e o semita, no plano da hibridez, aplicar-lhe uma suposta lei da hereditariedade (o retorno ao tipo dito superior) e excluir o problema da fecundidade dos produtos híbridos. Eram estes argumentoscientíficos, manifestamente frágeis e desapropriados, que serviam de fundamento à defesa do
cruzamentos sucessivos dos mestiços ou híbridos com indivíduos da raça ou da espécie dos pais, podia verificar-se o retorno ao tipo de um ou de outro. Mais rigorosamente: “Both hybrids and mongreis can be reduced to either pure parent-form, by repeated crosses in successive generations with either parent”(2). Mas, no caso dos animais, a questão complicava-se porque, no cruzamento de uma raça com outra ou de uma espécie. com outra, um dos sexos tinha quase sempre uma predisposiçãomais acentuada do que o outro para legar os seus caracteres ao produto comum era o que acontecia no cruzamento da espécie burro com a espécie cavalo o burro predominava sobre o cavalo. Textualmente: “I think those authors are right who maintain that the ass has a prepotent power over the horse, so that both the mule and the hinny more resemble the ass than the horse;
mais violenta é uma ocasião de cruzamento”(2). Portanto, o cruzamento entre o elemento ariano e o elemento semita ocorreu, de facto, mas não
believe it to be with varieties of plants”(2). E, admitindo uma série de
(!) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica, ob. cit., p. 26. Sublinhado do Autor. (2) Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the. preservation offavoured racesin the struggle for life. (A reprint ofthe first editon). With a foreword by Dr. €. D. Darlington, ob. cit., p. 234. () Idem, ibidem, p. 234.
225
triunfo completo do ariano sobre o semita.
No plano decisivo que, para o autor, era o plano orgânico, a descendência dos cruzamentos entre arianos e semitas não apresentava
caracteres físicos e mentais novos, nem mesmo caracteres mistos. Todavia,
era impossível duvidar da realidade da união reprodutiva que, ter-se-ia dado, como assevera o autor, “ainda mesmo que o conquistador fosse dotado da dureza do selvagem, e sancionasse todos os seus actos com
sangue. Até a brutalidade produz uniões, diz Quatrefages; e a conquista
gerou nenhum exemplar moçarabe, antes estimulou a dominância dos caracteres arianos. A excelência dos dotes arianos plasmou-se muito para lá do nível biológico. Conservando-se gótica-romana no sangue, nos traços físicos e mentais, e mantendo a sua alma fiel ao cristianismo, a raça peninsular soube assimilar a ciência e a indústria dos árabes(?) e, com elas, elevou o
seu-nível civilizacional. O contacto com o semita, sendo naturalmente conflituoso, pôs à prova a força bio-moral da raça gótica-romanae o resultado foi que todos os seus caracteres físicos, mentais e civilizacionais
sairam reforçados. Para Correia Barata, esta interpretação era a única que estava ao abrigo dos subjectivismos, pois era aquela que permitia compreender a história pela sua causalidade natural, no quadro de uma lógica (1) Idem, ibidem, p. 234. (2) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica,
ob: cit., p. 26. (3) Cf. Idem, ibidem,p. 36.
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Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 2
darwinista da vida, que não se compadecia com obstáculos epistemológicos de tipo filosófico, político ou religioso. Nãose pense, todavia, que o trabalho de Correia Barata, por ser obra de um cientista, é mais credível do que a construção teofiliana. A este propósito, é muito sugestivo notar o modo de funcionamento da selecção natural, na obra do professor da Faculdade de Filosofia. É este princípio evolucionário — a selecção natural — que explica a impossibilidade da mistura de caracteres de raças diferentes. Recorde-se que, na argumentação de Correia Barata, o sangue ariano-celto-ibero assimilou e dominou o sangue semita-fenício. Apesar de o autor postular a sua incompatibili-
vários títulos: 1º na força com que se reproduziam na descendência; 2º no
sangue ariano sobre o sangue semita, pelo facto de o cruzamento interracial se ter processado no decurso de uma larga dezena de séculos. Posteriormente, no período do cruzamento do sangue ariano-gótico-romano com o sangue semita-árabe, a selecção natural opera no mesmo sentido, porque no cruzamento de “troncos” distintos, como o ariano eq semita, “a fusão das suas propriedades incompatíveis não pode ter lugar"(1). Significa isto que o mecanismo da evolução — a selecção
os autores que praticaram o naturalismo histórico depois da revolução
pré-darwiniano? Onde está a descendência com modificações (Darwin), se toda:a argumentação de Correia Barata se orienta no sentido de provar a descendência sem modificações? Compreende-se que o naturalista por-
encontraram uma cobertura supostamente científica. É que,as ideologias não são obra, apenas,de literatos. O cientista que faz ciência, também podecair no cientismo(*). Por isso, é pertinente recordar o seguinte: sendo ponto assente que as interpretações racialistas da história seriam cultivadas mesmo que a revolução darwiniana nãose tivesse efectuado(4), o certo é que essasleituras do processo histórico não podiam prescindir de um fundamento científico, num tempo dominado pela razão
dade, afirma que a selecção natural tornou possível a dominância do
natural — é colocada ao serviço de uma mentalidade essencialista de tipo
tuguês, para salvaguardar a consistência da sua tese do arianismo penin-
sular(2), tenha recorrido ao princípio da transmissão de caracteres por atavismo, pelo qual, julgava poder sustentar a impossibilidade da fusão do sangue gótico romano com o sangue árabe. Todavia, tratando-se de um cientista, não podemosdeixar de afirmar
que a obra de Darwin não autorizava as conclusões do naturalista por tuguês. Segundo estas, os caracteres arianos revelavam-se superiores a
(1) Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Peninsula Iberica, ob. cit., p. 30. Sublinhado do Autor. A tese da incomunicabilidade do semita foi criticadá por Adolfo Coelho, mas não foi refutada com argumentos naturalistas. Vide: Francisco Adolfo Coelho, “[Recensão crítica de] Francisco Augusto Correia Barata, As raças historicas da Península Iberica. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1872, 47 p”
Bibliographia Critica de Historia e Litteratura, Porto, (7-8), 1873-1875, pp. 211-215. (2) Em 1873, esta tese será reforçada nos seus fundamentos pela defesa do arianismo europeu desde os tempos paleolíticos. Vide, Correia Barata, Origens anthropolo: gicas da Europa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1873, sobretudo p. 77 e ss.
poder da sua resistência conservadora à mistura e, 3º na dominação dos
caracteres semitas. Talvez não seja ousado acrescentar que estas con-
clusões não respeitavam a norma de prudência científica numa matéria tão complexa como a hereditariedadee, sobre a qual, Darwin(!) havia, insistentemente, confessado a sua ignorância. O que constitui o objecto do nosso cuidado não é determinar o grau de fidelidade desta leitura naturalista da história ao conhecimento científico do mundo vivo e, em especial, aos princípios formais da história natural, estabelecidos por Darwin. Desde logo, porque uma tal fidelidade era muito improvável, não só no caso de Correia Barata, como em todos darwiniana. Se, por um lado, a história humana extravasa a lógica evolu-
cionária da vida e revela ser irredutível às leis da história das plantas e dos
animais, por outro lado, desde a década de 60, os darwinismos multi-
plicaram-se e muitos nem conservavam da teoria de Darwin o tópico
nuclear da sua revolução científica(?), isto é, a selecção natural. Como
vimos, não é este o caso de Correia Barata. Mas, na sua obra, à sombra da teoria darwiniana, certos preconceitos racialistas, como O anti-semitismo,
(1) Vide: Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle forlife. (A reprint of thefirst editon). With a foreword by Dr. C. D. Darlington, ob. cit. entre outras, pp. 6-51. 4 (2) No dizer de Ernst Mayr, o que torna difícil a história do darwinismo é “que tant d'évolutionnistes du XIX€ siêcle pussent se considérer comme darwinistes alors même
qu'ils avaient adopté des mécanismes explicatifs fort différents de la sélection naturelle de
Darwin”, Emst Mayr, Darwin et la pensée moderne de Vévolution. Traduit de Vanglais (États-Unis) par René Lambert. Paris, Éditions Odile Jacob, 1993, p. 129. (3) Vide: Tom Sorell, Scientism. Philosophy and the infatuation with science, London and New York, Routledge, International Library of Philosophy, 1994, pp. 151-175. (4) Claude Liauzu, Race et civilisation. L'Autre dans la culture occidentale.
Anthologie historique, ob. cit., pp. 205-247. Jean Boissel, Victor Courtet (1813-1867),
premier théoricien de la hiérarchie des races. Contribution à Phistroire de la philosophie
politique du romantisme, Paris, Presses Universitaires de France, 1972. Léon Poliakov,
O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., 1974.
228
Darwin em Portugal
mecanicista, indutiva, experimental e comparatista. Se não há dúvida que a obra de Darwin se pauta pela prudência, e, em regra, pela suspensão de juízos afirmativos da desigualdade e da hierarquia das raças humanas, por outro lado, é incontroverso que Darwin, desde a primeira hora(!), não excluiu a espécie humana do mundo vivo e que, portanto,as leis da histori= cidade deste se aplicam também à humanidade. Se Darwin nada podia contra o uso e abuso da sua teoria pela dinâmica cultural cientista da sua época, por outro lado, também não podia demarcar-se dela, pois, de facto, nem mesmo podia argumentar que as leis do mundo vivo não contemplavam a espécie humana e o seu devir histórico, sob pena de arruinar a sua obra: Por tudo isto, a naturalização da história da humanidade, em moldes
darwinistas, era inevitável e não surpreeende que este reducionismo, de insofismável pobreza de sentido, tenha sido praticado, de forma mais radi-
cal, por cientistas da natureza do que por outros agentes culturais ligados a áreas diversas das humanidades e das ciências sociais. Mas se é verdade que os autores com formação científica podiam fazer uma hermenêutica naturalista da história mais sofisticada e hermética, aparentemente mais científica, como no caso vertente, também é verosímil que isso não os impedia de
desenvolver uma consciência crítica relativamente à transposição do código
darwinista de leitura da história natural para a história humana. Mas, se o fizessem seriam marginalizados. Pelo menos, os cientistas que enveredaram
por esse caminho, foram, em regra(2), marginalizados pelos seus pares.
Resta-nos, pois, registar que, Correia Barata, em perfeita sintonia
com os preconceitos racialistas da comunidade científica da época, contribuiu para a racialização da história, sustentando a inferioridade do semita e alimentando o “mito ariano”. Mas já que o faz enquanto cientista e fiel intérprete de Darwin, ousamos comentar em linguagem novecentista: quando muito, a obra de Darwin permitir-lhe-ia concluir que o cruzamento sucessivo de tantas variedades da espécie humana no solo peninsular, necessariamente, se traduzia no alargamento do capital genético(?) peninsular e na multiplicação das possibilidades de recombinação génica.
(1) Vide: Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. (A reprint ofthe first editon). With a foreword by Dr. €. D. Darlington, ob. cit, p. 414: “Light will be thrown on the origin of man and his history”. (2) Vide: Claude Blanckaert, “La science de "homme entre humanité et inhuma2 nité - In: Des sciences contre "homme, ob. cit., vol. 1, pp. 14-45. (é) Vide: “gene” e “genetics” in MacMillan dictionary of the history of science., ob. cit., respectivamente, p. 162 e p. 165.
CAPÍTULO 3 A lógica martiniana da história 1. Traços naturalistas da teoria “filosófica” da história martiniana A obra de Oliveira Martins continua a ser objecto de interpretações divergentes, o que, só por si, testemunha a sua complexidade(!). Mas, as diferentes perspectivas que ela inspira, só na aparência são inconciliáveis. É o que, a nosso ver, se torna claro no recente estudo de Fernando Catroga(?), no qual o autor, tomando em consideração a obra martiniana e os contributos dos seus intérpretes(?), elabora uma leitura multifacetada e coesa da historiologia martiniana que espelha a harmonia ideativa do
pensamento de Oliveira Martins.
O nosso objectivo consiste apenas em determinar qual o lugar do
darwinismo na vertente historiológica da obra martiniana. Para tanto, em vez de uma abordagem sistemática, entendemosser preferível fazer um es-
tudo analítico tomando como guia a ordem cronológica das publicações mais elucidativas do tema em causa e também dos trabalhos críticos que elas foram suscitando. Este caminho, sendo o mais fácil, também nos
parece ser o mais seguro, mas isso não significa que os nossos resultados sejam menos controversos. Se decidimos isolar o filão naturalista na historiologia martiniana foi porque a leitura prévia da sua obra nos convidou a trazer para primeiro plano a camada mais subterrânea da história.
(') Vide: Actas do Congresso Internacional Oliveira Martins, realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra de 28 a 30 de Abril de 1995 (no prelo). (2) Vide: Fernando Catroga, “História e Ciências Sociais em Oliveira Martins”. In: Luís Reis Torgal; José Maria Amado Mendes; Fernando Catroga, História da história em
Portugal. Sécs. XIX-XX, s.1., Círculo de Leitores, 1996, pp. 117-159. (3) Fernando Catroga valoriza também os resultados alcançados na década de noventa por Eduardo Lourenço, Norberto Cunha, Augusto Santos Silva, António Machado Pires, Carlos Manuel Coelho Maurício, Sérgio Campos Matos e outros.
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Parte II — Capítulo 3
Darwin em Portugal
Tomamos como ponto de partida do nosso estudo uma distinção
capital feita por Antero de Quental, num texto datado de 9 de Maio de 1872(1), a propósito da, então, recém-publicada obra de Oliveira Martins,
Os Lusiadas(2). Com efeito, em 1872, Antero distingue a teoria marti-
niana da história, que diz ser “social e histórica — a única, talvez, a que
propriamente se devera dar o nome de filosófica”(2) da teoria cultivada por
Teófilo Braga que denomina de “etnológica”. Segundo Antero, a compreensão martiniana de Os Lusíadas no seu contexto histórico, político, social e psicológico, inaugurava, entre nós, uma nova leitura da história,
em geral, e da história da literatura, em particular. Esta teoria filosófica da
história pretendia ultrapassar os limites hermenêuticos do reducionismo naturalista praticado, entre outros, por Teófilo Braga. Assim, para a “escola social e histórica” ou “filosófica”, a cultura de um povo e, em especial, a sua literatura é, nas palavras de Antero, “a expressão do seu espírito nacional, determinado não por tal ou tal elemento primitivo e, por assiim dizer, fisiológico, mas pelos elementos complexos, uns fatais outros livres, uns criados outros herdados, cuja síntese constitui a ideia da sua nacionalidade”(4). A distinção entre as duas leituras da história em causa residia nos seus fundamentos. Na óptica de Antero, a leitura martiniana da história
repousava na ontologia hegeliana, pois operava com a categoria chave do sistema de Hegel — a ideia — no quadro de uma argumentação dialéctica, comportando elementos antitéticos e complementares — fatal/livre; criado/herdado -— que se resolviam numa síntese ideativa. Antero acentuava as diferenças entre a perspectiva filosófica e a perspectiva etnológica sustentando que “não só houve uma nacionalidade portuguesa, mas essa nacionalidade, superior aos impulsos cegos da raça e à fatalidade da geografia, produziu-se como uma obra do esforço e da vontade, não resultado de obscurosinstintos primitivos, como um facto político e moral, não
como um facto etnológico”(*). Quer dizer: a realidade nacional portuguesa, particularmente substancial no tempo de Camões, foi uma obra (1!) Antero de Quental, Oliveira Martins. O crítico litterario — O economista — o historiador — o publicista — O politico, Lisboa, Typographia da Companhia Nacional Editora, 1894, pp. 5-17. (2) Oliveira Martins, Os Lusiadas. Ensaio sobre Camões e a sua obra, em relação à sociedade portugueza e ao movimento da Renascença, Porto, Imprensa Portugueza, Editora, 1872. (3) Antero de Quental, Oliveira Martins. O crítico litterario — O economista — o historiador — o publicista — O politico, ob.cit., p. 5. (4) Idem, ibidem, pp. 5-6. Sublinhado do Autor. (*) Idem, ibidem, p. 7. Sublinhado nosso.
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política e moral e não o efeito mecânico dos seus elementos constitutivos naturais, isto é, a raça e o território. Mas, Antero não diz que a realidade nacional portuguesa se afirmou, independentemente, contra, ou apesar da raça e da geografia. Pelo contrário, a ideia de nacionalidade é a síntese de todos estes elementos: “raça, instituições, religião, tradição histórica e vocação política e económica no meio dos outros povos”(!). A nacionalidade tem existência enquanto síntese, isto é, enquanto superação dialética dos componentes antitéticos envolvidos e, por isso, a sua decadência é a decadência do “espírito nacional”, da “ideia de nacionalidade”; é a
decadência do “sentimento comum e como que orgânico”(2), mas não, propriamente, do elemento natural raça. Assim sendo, podemos, desde já, sublinhar o princípio capital que norteia a perspectiva filosófica e que consiste em afirmar a irredutibilidade do histórico ao natural e, portanto, da realidade nacional à raça. É este princípio que importa reter, independentemente da originalidade anteriana(), que prosseguirá no sentido da sobredeterminação metafísica da ordem da natureza. Sendo certo que Oliveira Martins, no seu ensaio de 1872, segue uma orientação teórica de inspiração hegeliana, que não subsume o superior (a nação) no inferior (a raça), cabe-nos indagar se, então, a prosa martiniana já acusa alguma sensibilidade ao determinismo naturalista na construção da história e, portanto, das nações. Está fora de questão que, nesta obra martiniana, a individualidade portuguesa não se alicerça em razões etnológicas de tipo rácico. Mas, o autor também não afirma que Portugal deve a sua singularidade histórica e, em especial, a sua afirmação nacional no período dos descobrimentos, à vontade moral dos homens, isto é, à assunção consciente dum dever ser, para lá dos condicionalismos naturais, fossem eles positivos ou negativos. Com efeito, a nação portuguesa impôs-se mediante um heroísmo instintivo-animal, aquele heroísmo que tende para a “morte triste”. O seu triunfo não se alicerçou numa força moral autêntica pois, se asssim fosse, essa vontade teria
conduzido Portugal para uma “morte alegre”. É que, “os grandes actos heróicos humanitários, como as descobertas portuguesas do século XVI, não têm sido actos da consciência, mas sim do instinto, morais, mas sim
animais, e por isso, como em todos os análogos, neste o exagero de tensão dado à força nacional, o heroísmo, acarretou consigo a morte, não a morte (!) Idem, ibidem, p. 6. (2) Cf. Idem, ibidem, p.15. (2) Vide Fernando Catroga, “Política, história e revolução em Antero de Quental”,
art. cit., pp. 11-26.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
com que se contava, a morte alegre, mas a morte imprevista, a morte feia, a morte triste” (1), tal como a epopeia camoniana a anunciava. O heroísmo, nesta obra martiniana, é um conceito que tem uma textura semântica naturalista, inequivocamente, pois, é imanente ao ins: tinto animal, não substancializa a liberdade superadora da alienação instintiva. Portanto, não foi a consciência moral, a intenção de agir de acordo com a finalidade, assumida livremente, de cumprir uma etapa fundamental da história universal; não foi em consciência, no sentido ético do termo, que os portugueses se lançaram à conquista do mundo. O que os moveu foi a força inconsciente do instinto, o que não quer dizer que tenha sido uma força negativa, nem que seja incompatível com a autenticidade das virtudes, designadamente da honra e da valentia, de homens superiores como Afonso de Albuquerque ou D. João de Castro; o que não quer dizer, ainda, que não se traduzisse cultural e espiritualmente. Pelo contrário,foi nesse contexto de heroísmo animal que a nação portuguesa alcançou o mais elevado nível de expressão poética, justamente, com Camões. Mas, se o heroísmo portuguêstivesse sido verdadeiramente ético, nem Portugal nem Camões teriam sido atingidos por aquela “morte triste “ que, por assim dizer, os colheu a ambos no mesmo golpe. Por outro lado, Oliveira Martins, já em 1872, estava convicto de que; no fundo, o drama de Portugal repousava na falta de uma identidade racial distinta da composição antropológica do resto da Península Ibérica: O drama de Portugal é não representar “nenhum grupo especial de raça no meio da Espanha”(2), nem beneficiar de uma posição de autonomia territorial, relativamente à geografia da Península. Com efeito, é verdade que a posição geográfica de Portugal impôs ao povo um carácter necessariamente marítimo: “marítimo, não como a Grécia em que o mar pequeno e
de si a vastidão imensa do oceano a tentar-lhes a imaginação, a audácia”(1). Mas, este factor natural não determinava a constituição de uma nação autónoma. O território português teria feito “deste grupo de espanhóis, ainda quando se não chamassem portugueses, os descobridores do século XVI”(2). Portanto, o drama de Portugal é ser, ou melhor, é ter sido
insinuando-se por entre as ilhas, as baías e os canais, produz o instinto da
curta navegação, da cabotagem, mas sim larga e aventureiramente marítimo porque, apertados numa facha de terra, os portugueses tinham diante (!) Oliveira Martins, Os Lusiadas. Ensaio sobre Camões e a sua obra, em relação à sociedade portugueza e ao movimento da Renascença, ob. cit., p. 101. Sublinhado do
Autor. Os termos “instinto” e “animais” foram sublinhados por nós. Como é sabido,na sua
História de Portugal, Oliveira Martins irá defender que Portugal atingiu o seu expoente máximo nos séculos XV e XVI, imortalizou-se com Camões, ao mesmo tempo que com ele se finou: “Os Lusíadas são um epitáfio”. Vide: Oliveira Martins, Historia de Portugal, 11º ed., Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira, 1927, vol. 1, p. 10. A 1º edição data de
1879. Lisboa, Livraria Bertrand, 2 vol. — Bibliotheca das Sciencias Sociaes, 2. (2) Oliveira Martins, Os Lusiadas. Ensaio sobre Camões e a sua obra, em relação à sociedade portugueza e ao movimento da Renascença, ob. cit., p. 201.
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nação, na ausência de dois factores naturais chave: a raça e o território.
A filosofia da história martiniana terá de compreender, e compreendeu, a nação portuguesa, recorrendo a outros factores, mas isso não significava que aquela falta estrutural tivesse sido suprida ou que os elementosnatu-
rais (raça e território) pudessem ser substituídos, com ou sem vantagem,
por outros factores estranhos à ordem da natureza. É indiscutível que a teoria martiniana da história defende uma inteligibilidade de tipo político para o caso da nação portuguesa. Mas, se o factor político explica Portugal, nunca teve poder para resolver o seu drama. Os acontecimentos políticos que foram sustentando a existência histórica de Portugal têm um carácter acidental, ao contrário dosalicerces
naturais que, se fossem distintos, imprimiriam o carácter de necessidade à nação portuguesa. Se a Europa central, sobretudo a França e a Inglaterra, sempre tiveram interesse em alimentar a existência da nação portuguesa, já que ela funcionava na Península como “o calcanhar de Aquiles da Espanha”(?), isso não significa que o transcorrer dos séculos tenha ultrapassado a causalidade estrutural do drama de Portugal. Por isso, segundo Oliveira Martins, o argumento mais frágil que se pode invocar para defender a consistência da nação portuguesa é, justamente, o argumento histórico. Retenhamos o esencial: a nação portuguesa não pode ser compreendida e explicada à luz da “lógica natural” da história. Foi em função de interesses vários e de necessidades diversas inerentes à estratégia política da história da Europa central, estratégia que decorria em larga medida da força da sua constituição natural, que “com o tempo chegamos a formar contra-naturam um corpo híbrido distinto da Espanha”(*). Naperspectiva martiniana, Portugal existe “contra a lógica natural”(>) da história, isto é, sem uma base antropológica própria, única garantia da consistência ontológica (natural-moral) das nações, única raíz que as protege dos (1) Idem, ibidem, pp. 202-203. (2) Idem, ibidem, pp. 203. Sublinhado nosso. (3) Idem, ibidem, pp. 203.
(4) Idem, ibidem, p. 203.
(*) Idem, ibidem, p. 206.
sia
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Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
efeitos provocados pelos acidentes e pelos imprevistos que se verificam à superfície da crosta da história. Se usamos uma imagem geológica é exclusivamente por uma questão de fidelidade ao texto martiniano. Com efeito, Oliveira Martins, já em 1872, recorre, sintomaticamente, à geologia para elucidar tópicos fundamentais da sua teoria da história. Em Os Lusiadas é justamente a ideia de um corpo tão substancial e estratificado como a terra que o autor invoca para defender a fragilidade de Portugal, enquanto nação, embora o faça em nome de uma perspectiva que, como Antero, classifica de filosófica. Mas, não será um tanto paradoxal ou, pelo menos, surpreendente, que a elaboração de uma teoria filosófica da história passe pela incorporação
Sem raízes naturais que sustentem a sua diferença, Portugal nada ganha em perseverar no seu isolamento do resto da Península, por onde, necessariamente (caso ultrapassasse o seu complexo histórico) receberia estímulos de progresso europeizante(!). Por isso, Oliveira Martins acrescentará este juízo final: ou o país abre-se à Espanha e ambos ultrapassam o seu “passado exausto”, para participar no “movimento europeu de unificação das raças”, ou Portugal fecha-se em si, “fazendo errar a lógica pela força de coesão nacional”(2), arrastando o drama que o consome desde o berço e o conduz a passos largos para um estado catatónico de “emudecimento completo”(?). Perante este quadro, como é possível não constatar
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de um léxico estranho a toda filosofia e que, significativamente, pertence às ciências da terra e da vida?
Assim, embora Portugal não caiba na lógica natural da história,
Oliveira Martins interpreta-o no quadro dum naturalismo geológico, à luz do princípio segundo o qual “a estabilidade das nações pode comparar-se à estabilidade das camadas que formam a crusta sólida do globo”(!). Diferentemente da Alemanha, da Hungria, da Itália, da Rússia e da
Espanha, nações que têm um substrato racial distinto (embora partilhem o mesmo fundo ariano) e diferentemente da Inglaterra, da França, da Dinamarca e da Suécia, que têm a máxima consistência natural possível, isto é, rácica e geográfica, Portugal (como a Holanda, a Grécia, a Áustria,
a Bélgica, etc.), está exposto ao jogo dos interesses europeus, ou na linguagem martiniana, está sujeito às “comoções” do “organismo nacional da Europa”(2). Para a sua filosofia da história, a nação verdadeira ou autêntica, é aquela que corresponde a uma raça. Acima desta está a nação mais verdadeira e, simultaneamente, mais perfeita, que se forma “quando uma
raça na sua fixação consegue abraçar um trato de terreno naturalmente
delimitado, convenientemente cortado pelos rios e pelos vales, aberto ao
mar para poder vasar a força de expansão, separado do vizinho para não perder a força de coesão”(*). Uma tal nação, é “um fenómeno natural e moral [que] reproduz as camadas primitivas e fundamentais do granito eterno”(4). Assim sendo, Portugal não é uma nação autêntica e, menos ainda, perfeita.
(!) Idem, ibidem,p. 207.
(2) Idem, ibidem, p. 207.
(2) Idem, ibidem, p. 207. (4) Idem, ibidem, p. 207-208.
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que é a valorização do natural, neste caso, a sua ausência, que dá sentido
à inteligibilidade martiniana da história de Portugal, enquanto nação? Pelo que fica dito, julgamos que, sem pôr em causa a distinção anteriana entre a escola etnológica e a escola filosófica, o ensaio martiniano diz explicitamente que há uma lógica da história e que essa lógica é natural e não metafísica. As nações devem ser interpretadas à luz de três factores: a raça, O território e a política em sentido amplo. Desde as nações sólidas como o granito “até às formaçõestransitórias e factícias formadas pela política e que duram um dia na história, às formações recentes e movediças como as aluviões, pode formar-se a escala inteira de correlação entre as constituições geológicas e as constituições nacionais”(*). Nada mais claro. Se Oliveira Martins compreende a nação portuguesa basicamente em função da história dos interesses políticos da França e da Inglaterra, tem de postular a suafragilidadee, portanto, não hesita em afirmar: “da mesma forma quea filosofia da história ordenava que o vassalo [Afonso Henriques] sublevado se submetesse, da mesma forma a filosofia da história ordena que esta, como todas as nações formadas contra a natureza, desapareçam para ceder o lugar às constituições, aos organismos normais, naturais dos corpos definitivos, que têm como alma o fundo da raça, como esqueleto a configuração geográfica, como nervos, como sangue, como vasos, como músculos, a unidade de interesses, de aspi-
rações, a unidade superior e que resulta das variedades locais”(). Em duas palavras: a existência de Portugal é, no mínimo, problemática. No passado, como no presente, Portugal tem sido uma nação sem razões (1) (2) (3) (4) (5)
Cf. Idem, ibidem, pp. 209-210. Idem, ibidem, p. 210. Sublinhado nosso. Idem, ibidem, p. 210. Sublinhado nosso. Idem, ibidem, p. 208. Idem, ibidem, pp. 208-209. Sublinhado nosso.
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Parte HI — Capítulo 3
naturais para existir. E porque é que a falta dessas razões (a raça e o território) é problema? Porquea filosofia da história martiniana é estruturalmente naturalista, embora não deixe de ser umafilosofia. É inegável que a epopeia dos descobrimentos foi obra dos portugueses, masteria sido obra de qualquer “grupo de espanhóis” residentes nesta frente para o mar. Toda a história de Portugal, e mormente o seu valioso contributo para o evolver da história universal, com a epopeia dos descobrimentos, não substancializa a sua existência, porque o único corpo nacional aproblemático é aquele que se funda na singularidade das raízes naturais. Ora, Portugal, na óptica martiniana, tanto na geografia como na raça, simplesmente, não difere do resto da Península Ibérica. Assim sendo, se Oliveira Martins, na sua denominada perspectiva filosófica, explica a dinâmica histórica da nação portuguesa por uma causalidade de superfície, como é o interesse político, e, se define esta
mento martiniano está fortemente marcado pela episteme naturalista da época. Podemos, então, concluir que, Antero, profundamente mergulhado no hegelianismo, não deu conta da ânsia mental de Oliveira Martins que o levava a entrar pelos caminhos do naturalismo historiológico, sem abandonar os cânones da metafísica romântica? À luz do quefica exposto, compreende-se quea crítica martiniana ao moçarabismo de Teófilo Braga não significava a rejeição do factor raça no processo histórico. Pelo contrário, ainda que esse factor esteja ausente no caso de Portugal, isso não significa que este “grupo de espanhóis”,
causalidade como sendo contrária à lógica natural da história, que é uma
lógica determinista (a raça; o território), teremos de concluir que,já neste ensaio, a filosofia martiniana da história comporta uma vertente geo-biologista, não necessariamente romântica. Ou, dizendo de outro modo: afirmar que Portugal é a negação da lógica natural da história, pressupõe o referente de uma inteligibilidade da história fundada na relação estrutural entre o elemento natural raça e a realidade da nação. Ao colocar a questão nestes termos limitamo-nos a ir ao encontro da estratégia argumentativa desenvolvida pelo autor. Com efeito, Oliveira Martins procura responder à questão, formulada nestes termos inequívocos: “Como consegue Portugal fugir à lógica da história?”(1) que, em termos paradigmáticos, é uma lógica naturalista-geológica. O preço que Portugal, após a epopeia os descobrimentos, começou a pagar por ser, sem poder ser, diz bem o valor que Oliveira Martins já atribuía ao determinismo natural no devir histórico. Retenhamoso essencial, em função do nosso escopo: a filosofia mar-
tiniana da história que subjaz ao seu ensaio, intitulado Os Lusíadas, ainda
não incorpora explicitamente o naturalismo darwiniano, como será manifesto em artigos e obras dos anos oitenta, na sequência do aprofundamento dos seus conhecimentos das ciências da terra e da vida, donde resultou, em primeiro lugar, a publicação da obra Elementos de anthropologia em 1880(2). Mas, sem dúvida, em Os Lusiadas, é manifesto que o pensa(!) Idem, ibidem, p. 8. Sublinhado nosso.
(2) Oliveira Martins, Elementos de anthropologia. (Historia natural do homem). Lisboa, Livraria Bertrand, 1880.
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enquanto indo-europeus-arianos, não tenha recebido do substrato bioló-
gico a força necessária para levar por diante a missão dos descobrimentos, decisiva em termos de história universal. Com efeito, no seu estudo intitulado A teoria do mosarabismo (cri-
tica da historia da litteratura portuguesa do Sr. Th. Braga), escrito em
1872-1873(2), Oliveira Martins refuta a teoria etnológica da história portuguesa concebida por Teófilo. Mas esse exame crítico não é feito num registo epistémico que exclui o problema do determinismo racial.Por isso, Oliveira Martins recusa a ideia segundo a qual a romanização da Península fora apenas “exterior”, administrativa e fiscal, como pretendia Teófilo, e
defende que a romanização foi orgânica, no sentido em que formou a consciência colectiva das sociedades peninsulares, a partir dos “instintos, temperamentos, caracteres sui generis”), que estas apresentavam. Se também refuta o caracter de independência dos germanos e, portanto, a tese teofiliana segundo a qual, no processo de germanização da Península Ibérica, essa qualidade se conservou intacta nos lites, isto é, no povo, con-
trapõe-lhe outros “mui fecundos caracteres da raça germânica”(*). Toda a sua argumentação se desenvolve no interior de uma inteligibilidade de tipo antropológico-etnológico, e daí a sua preocupação com o fundo etnológico peninsular: “cumpriria pois, parece-me, investigar cientificamente se a sociedade peninsular existia já como pessoa histórica, e descoberto que (1) Oliveira Martins, “A teoria do mosarabismo de Teófilo Braga (Inédito)”, Biblos, Coimbra, 28, 1952, p. 139-177. Sep. com uma “Nótula explicativa” de A. da Costa Pimpão. Também publicado in Política e história. Lisboa, Guimarães & Cº Editores, 1957. Vol1: 1868-1878, pp. 137-179. Sobre a polémica entre Oliveira Martins e Teófilo Braga, vide Amadeu Carvalho Homem,A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit.,p. 53 ess. (2) Cf. Oliveira Martins, “A teoria do mosarabismo de Teófilo Braga (Inédito)”, art. cit., p. 9.
(3) Oliveira Martins, Política e história, ob. cit., vol. 1, p. 153. (4) Idem, ibidem, vol. 1, p. 150.
Darwin em Portugal
Parte IT — Capítulo 3
sim (como em França ou na Itália, os gauleses, os etruscos, etc.) deter-
Oliveira Martins não contrapõe à raça moçarabe de Teófilo Braga uma outra raça, como fundamento etnológico do corpo nacional português: “efectivamente não podemos descobrir razão de ser natural à nacionalidade portuguesa. Como raça, a não ser a moçárabe, e essa é pelo menos
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minar os caracteres dessa sociedade, para ver depois qual a influência que exerceu sobre ela, Roma primeiro, depois os bárbaros, depois os árabes; etc.”(1). Por isso, a sua teoria da história não é insensível à possibilidade
ou impossibilidade de se aprofundar o conhecimento antropológico dos iberos(2). Também, adianta o autor, seria vantajoso que se pudesse determinar, fundamentadamente, o nível social alcançado por todas as raças (nomeadamente os celtas) que se fixaram neste território até à romani= zação, para poder avaliar a própria romanização. No fundo, o que Oliveira Martins nos diz é que a paleoantropologia e a pré-história portuguesas não forneciam dados bastantes para se
poder, cientificamente, avaliar o fundo rácico nacional, e o seu nível
civilizacional, sobretudo pré-romano, o que só por si revela a sua atitude epistemológica perante o problema. Não há dúvida que o autor tem preocupações etnológicas e procura objectivá-las em moldes positivos, de acordo com os cânones científicos da sua época, embora não seja nítida a sua demarcação dos termos metafísicos do romantismo etnológico. Mas, o que é decisivo, em função da nossa problemática, é que Oliveira Martins não questiona o modelo etnológico, enquanto código de inteligibilidade histórica, apesar do seu hegelianismo, ou à revelia deste: Porisso, não admira que tenha refutado a hipótese teofiliana do moçárabe;
à luz do determinismo natural. O que significa afirmar que o lite se apresenta “omnipotente perante a influência romana, submisso perante a árabe”(2)? Teófilo conheceria bem as leis naturais? Se o lite tivesse resis-
tido à romanização orgânica, então, ele “dar-nos-ia assim um tipo de Jiber-
dade humana, de personalidade independente, de livre arbítrio superior à fatalidade natural, que é uma verdadeira descoberta maravilhosa da psicologia histórica! Moçarabiza-se; eis aí a nação portuguesa a nascer no horizonte”(4). A observância da causalidade natural deve ser seguida de forma coerente e não pode ser distorcida. O relacionamento inter-racial obedece a regras naturais e, por isso, não é legítimo inventar uma raça, quando a insuficiência dos dados científicos disponíveis não permite determinar que tipo de relacionamento se operou. E a questão torna-se tanto mais complexa quanto, na óptica martiniana, Portugal não existia naturalmente, isto é, não possuía um fundo étnico singular. Assim, (!) Idem, ibidem, vol. 1, p. 152. Sublinhado do Autor. (2) Vide: Idem, ibidem, vol. 1, p. 152. (*) Idem, ibidem, vol. 1, p. 154. (4) Idem, ibidem, vol. 1, p. 154. Sublinhado nosso.
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suspeita, não vemos qualseja”(1).
Porque é que Oliveira Martins não concluiu que a ausência duma identidade rácica no território português era um problema antropológico do qual não dependia a compreensão de Portugal enquanto nação? Porque é que o nosso autor não pôs em causa o quadro epistémico naturalista que valoriza a raça e o território? Em vez disso, revelou uma sensibilidade
muito apurada quanto ao problema da relação entre os elementos naturais e as sociedades históricas. Assim, compreende-se que, em termos marti-
nianos, “o subsídio mais valioso para a fiel interpretação da História de um povo”(2) consiste em objectivar todos os “caracteres primitivos, investigar os sintomas, aferir as auroras do génio de uma raça, os movimentos do
instinto pelos quais se prevê o modo porque hão-de formular-se as criações da consciência”(2). Salvaguardando a distinção entre a camada dos ele-
mentos naturais instintivos e o nível superior da consciência, o certo é que
o autor dá a entender que, pelo conhecimento do “instinto”da raça se pode “prever” o seu comportamento histórico. Será ousado concluir que Oliveira Martins está no trilho certo que o conduzirá à construção dum naturalismo histórico, moldado pela lógica darwiniana da vida? Com razão, Antero, num texto de 1873(4), analisando a “Theoria do socialismo” de Oliveira Martins, acusa a tendência martiniana para acentuar o determinismo natural, designadamente ao ver “nas invasões
bárbaras só um fenómeno etnológico e como que uma fatalidade natural”(*). Aos olhos de Antero, esta sedução martiniana pela causalidade natural era responsável pela ideia limitada e redutora que o seu amigo fazia da Idade Média. Na crítica anteriana, eram os preconceitos naturalis-
tas que levavam Oliveira Martins a afirmar que a Idade Média constituía um retrocesso face ao nível alcançado pela civilização greco-romana.
(1) Idem, ibidem, vol. 1, p.177. Sublinhado nosso. (2) Idem, ibidem, vol. 1, p.176. Sublinhado nosso. (3) Idem, ibidem, vol. 1, p.176. Sublinhado do autor. (4) Antero de Quental, “Theoria do socialismo, evolução politica e economica das sociedades da Europa: por J. P. de Oliveira Martins. Lisboa, 1872”. In: Oliveira Martins. O crítico litterario — O economista — o historiador — o publicista — O político, ob, cit., pp. 18-38. () Idem, ibidem, p. 22.
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Darwin em Portugal
Ora, a crítica de Antero, em nosso entender, produziu um efeito con-
trário àquele que era suposto desencadear, porque o poeta-filósofo criticava a tendência naturalista de Oliveira Martins, com uma argumentação típica do naturalismo radical ou científico, isto é, darwiniano. Com efeito;
a crítica anteriana permitiu que Oliveira Martins acentuasse o valor dos elementos naturais no curso histórico, em lugar de os secundarizar pela revalorização da ideia metafísica de evolução que partilhava com Antero. O nosso poeta-filósofo argumentava que, tomando “a Evolução como lei primeira da Civilização”(!), e considerando o desenvolvimento como sendo a sua essência, não se podia interpretar um determinado período da história e, designadamente, a Idade Média, como “um retrocesso geral e atrofia dos elementos evolutivos”(2). Para Antero, era neces:
sário interpretar a Idade Média à luz dum conceito de evolução que, sem perder a sua identidade hegeliana-metafísica, incorporasse “umadas ideias
fundamentais das ciências da organização, a ideia de crise”(2). Tomando a
história como um organismo, ainda que se tratasse de “uma forma orgãnica superior e transcendente”(4), a Idade Média representava na evolução histórica uma crise orgânica. O conceito de crise não punha em causa a essência do processo evolucionário, pois não era sinónimo de anomalia, mas de desenvolvimento diferenciado das forças constituintes do organismo-história. Sendo essas forças convergentes e solidárias, a crise instalou-se, visto que o seu progresso em virtude de vários factores, não se processou ao mesmo ritmo. A perspectiva original de Antero, quanto à interpretação da Idade Média, passava pela renovação do sentido iluminista e romântico da sua ideia de evolução, mas não propriamente pelo seu questionamento radical. Assim, o autor retem do modelo científico de evolução paleontológica, alguns dados, entre os quais, os seguintes: “o sábio paleontologista G. de Saporta (Origens da vida sobre o globo), comparando a evolução solidária dos reinos animal e vegetal nas idades primitivas, nos mostra o primeiro, depois de ter percorrido sucessivamente uma série ascendente de tipos, estacionar durante muitos milhares de anos, à espera que o segundo, cujo desenvolvimento, por causas em parte desconhecidas, fôra mais demorado,atingisse aquele termo de ascensão, sem se realizar o qual não podia
(1) Idem,ibidem, p. 23. Sublinhado nosso.
(2) Idem, ibidem,p. 24.
(3) Idem,ibidem, p. 24. Sublinhado do Autor.
(4) Idem, ibidem,p. 24.
Parte II — Capítulo 3
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o reino animal continuar o seu progresso específico”(1). E, para reafirmar a ideia de que a descontinuidade evolutiva dos reinos animal e vegetal no curso filogenético se prendia com a solidariedade orgânica entre ambos,
apoia-se nas autoridades máximas de Darwin e Hackel. “Se considerar-
mos (como depois dos trabalhos de Darwin e Heckel não podemos deixar de considerar) que os chamados reinos animal e vegetal não são somente paralelos mas solidários, e constituem realmente um só mundo orgânico,
teremos um facto considerável, que a paleontologia nos aponta, o exemplo de uma imensa e prolongadíssima crise, que esse mundo atravessou, a maior porventura que ele tem atravessado”(2). Essa crise está para a história natural como a Idade Média está para a história da Humanidade: “é exactamente uma crise análoga que eu sustento ter sofrido a sociedade da Europa durante o período da Idade-média”(2). A partir desta semelhança estrutural e funcional, Antero afirma que o “reino social e político” esteve para o “reino moral, através das várias espécies do cristianismo e da filosofia escolástica”(4), como o reino animal esteve para o reino vegetal. Antero sublinha justamente os termos reino e espécie, não porque quisesse postular uma identidade, sem reservas, entre a sua ideia de evolução e o modelo de evolver paleontológico, mas porque pretendia acentuar a operatividade hermenêutica da analogia entre a história da natureza e a história da humanidade, na medida em que tanto a natureza como a humanidade obedeciam, nos seus traços largos, à mesma lógica evolucionária supra-natural e supra-histórica, embora imanente a ambas. Assim, O conceito naturalista de crise adequava-se à interpretação da Idade Média. Sendo certo que “a evolução abrange todas as séries do desenvolvimento no universo, cosmológico, geológico, orgânico, etc., e
por isso inclui a humanidade”(º), todavia, Antero salvaguarda a distinção do evolver histórico, denominando-o de progresso. O autor mantinha-se,
portanto, fiel à ideia filosófica de historicidade da tradição iluminista-romântica, o que não estava, de modo algum, fora dos horizontes da
época, visto que os optimismos idealistas, positivistas e materialistas do século XIX, cultivaram, segundo moldes próprios, distintos e inovadores, a ideia de evolução enquanto progresso.
(!) Idem, ibidem, p. 25. Sublinhado do Autor.
(2) Idem, ibidem, p. 25. Sublinhado nosso. () Idem, ibidem, p. 26.
(4) Idem, ibidem, p. 26. Sublinhado de Antero. (É) Idem, ibidem, p. 31.
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
Ora, é muito significativo que Oliveira Martins tenha utilizado a analogia anteriana para refundamentar a sua opinião, segundo a qual, a
condição de possibilidade, justamente, a nova realidade rácica formada a partir das invasões bárbaras. Quer dizer: Oliveira Martins continua a valo-
moral(!). É que, justamente, o conceito de crise orgânica proposto por Antero para classificar a Idade Média, no quadro evolutivo da história da humanidade, implicava a ideia de uma paragem evolutiva do reino social e político, isto é, a interrupção do seu desenvolvimento. Oliveira Martins dinamiza esta interrupção, considerando-a “uma retroacção de movir mento”(2) que, em lugar de infirmar, “confirma a lei da evolução que rege a vida de tudo quanto há criado”). Embora o texto martiniano conceba as noções de paragem, interrupção e retrocesso como imanentes ao pro-
tese, segundo a qual, “determina a idade-média o facto da entrada no mundo culto de duas ou três raças em graus diferentes de civilização; dessa reunião do mundo civilizado ao mundo bárbaro resulta um nível médio de civilização, inferior sim, mas mais extenso”(1). Esta inferioridade era inevitável, atendendo, sobretudo, ao nível civilizacional dos bárbarose, nesta medida, o autor procura demonstrá-la, designadamente, com “a substituição das leis bárbaras ao direito romano,a instituição do feudalismo”(2) e outros dados da organização temporal e espiritual da Idade Média. Mas, em virtude do contacto do “génio peculiar natural”(?) dos germanos com “o génio dos povos latinos”(4), no decurso de oito ou nove séculos, resultou que, “a civilização moderna desde a renascença apresen-
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Idade Média é um retrocesso civilizacional nos planos político, social:e
cesso evolucionário, ele não põe de lado o sentido metafísico da evolução,
na medida em que postula a sua direcção para um fim,a saber: a realização da ideia socialista. Que o sentido teleológico da ideia de evolução martiniana seja hipostasiado a priori ou, como pretende o autor, seja deduzido a posteriori, é irrelevante e apenas nos diz que a ideia martiniana de evolução extravasa o puro naturalismo evolucionário. Mas, o que temos de sublinhar é que este imanentismo teleológico comporta a valorização dos factores naturais no evolver histórico. Com efeito, na medida em que a sua obra, Teoria do socialismo, pre-
tendia ser “um livro de ciência social e política”(?), tinha de alicerçar a compreensão do evolver histórico nos seus elementos naturais estrutu-
rantes, isto é, o território e a raça. Por isso, na óptica martiniana, O retro-
cesso de intensidade civilizacional é correlativo do “desenvolvimento de extensão”(º) civilizacional. Ora, é muito sintomático que Oliveira Martins
valorize a Idade Média no plano do extensivo. Como escreve o autor, “a idade média é, quanto a mim, filosoficamente inferior à antiguidade;
mas é-lhe historicamente superior; porque ao passo que nas idades antigas a civilização é um fenómeno local e nacional, nas idades modernas ela adquire o carácter, não direi universal, mas pelo menos europeu”(*). O contributo decisivo da Idade Média para a história universal consistiu no alargamento civilizacional em extensão. Este alargamento teve como
rizar o elemento natural denominado raça e, assim, compreende-se a sua
ta uma variedade harmónica de tons, eminentemente sua, desconhecida à
antiguidade e tão superior à Grécia como a Roma”(?). Esta superioridade traduziu-se na emergência do novo, isto é, de uma novasíntese, mais vasta
em termos territoriais e antropológicos e mais intensa no plano civilizacional. Por isso, Oliveira Martins não toma partido pelo latinismo ou pelo germanismo,já que tanto o elemento latino como o elemento germânico tinham sido activos no ricorso medieval. Ora, sintomaticamente, o autor evidencia que, na raíz da superio-
ridade moderna está a obra de alargamento civilizacional realizada no decurso da Idade Média. Assim, se esta é um regresso, é também um progresso, ou a sua condição absoluta de possibilidade, na medida em que comporta uma nova realidade ao nível dos factores naturais (a raça e o ter-
ritório). Como dirá o autor em resposta às críticas de Júlio de Vilhena:”a
edade média foi a condição necessária de um progresso, que consiste no alargamento da civilização a novas raças, até ali bárbaras”(*). Portanto,a positividade dos longos tempos medievos não decorre prioritariamente da sua elevação temporal e espiritual, relativamente ao mundo greco-romano, mas da superioridade numérica das diversas raças envolvidas e do alargamento do seu espaço territorial.
(1) Vide: A Edade-Média na historia da civilisação. Polemica entre Antero de
Quental, J. P. Oliveira Martins e Dr. Julio de Vilhena. Prefaciado e anotado por Francisco
d' Assis d'Oliveira Martins. Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira, 1925, pp. 33-35.
(2) Idem, ibidem, p. 26. (3) Idem, ibidem, p. 27. Sublinhado nosso. (4) Idem, ibidem,p. 26.
(é) Idem, ibidem, p. 27. Sublinhado do Autor, (6) Idem, ibidem, p. 27.
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(1) Idem, ibidem, p. 27. Sublinhado nosso.
(2) Idem, ibidem, p. 33. Sublinhado do Autor.
(3) Idem, ibidem, p. 124.
(4) Idem, ibidem, p. 124.
(5) Idem, ibidem,p. 28.
(9) Idem, ibidem, p. 133. Sublinhado do Autor.
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
Todavia, Oliveira Martins reconhece que lógica fisicalista não objectiva a evolução histórica no que ela tem de irredutível à extensão. Por isso, calculando a objecção anteriana, Oliveira Martins antecipa a sua resposta: “dir-me-ia V. que reduzo a civilização às proporções de um problema geográfico e aritmético? Pois não é assim”(!). Não há dúvida que o referente filosófico (Vico, Michelet, Hegel, entre outros) do pensamento martiniano lhe impedia a assunção acrítica do determinismo naturalista. Ainda que os
Braga, passando pela polémica com Antero de Quental e Júlio de Vilhena
244
factores naturais sejam valorizados, conforme temos vindo a constatar, à
história da humanidade está longe de ser concebida como a história natiural da espécie humana, modelada pelas leis que regem toda a natureza viva. Em 1873, aquando da amistosa polémica que travou com Júlio de Vilhena, a ideia martiniana de evolução histórica afirmava a causalidade natural num eclético quadro filosófico que adaptava a ideia de repetição-recapitulação(corso/ricorso) de Vico a um fundo dialéctico de inspiração hegeliana(2). Embora o seu modelo de evolver histórico seja, no fundo, perfectibilista e teleológico, como em Hegel, ele não apresenta qualquer obstaculizante rigidez formal e processual. Pelo menos, não encontrámos impedimentos absolutos a uma possível abertura da lógica martiniana da história ao mecanismo evolucionário darwiniano, em obras de plena maturidade do nosso autor. 2. A universalização ariana da história pela “lei zoológica da selecção” “Quem lhe disse que no homem histórico, no homem actual; não há um assunto de antropologia”(à polog “pois até o mais sublime dos filósofos obedece a motivos étnicos: motivos antropológicos e etnológicos”(4)
Como vimos, o pensamento martiniano, desde a década de setenta, em estudos vários, como Os Lusiadas, A teoria do mosarabismo de Teófilo (1) Idem, ibidem,p. 28. (2) Vide: Idem, ibidem,p. 133.
() Oliveira Martins, “Resposta do autor às censuras dos críticos”(1893). In: As raças humanas e a civilização primitiva, 5º ed., Lisboa, Guimarães & Cº Editores, 1955, vol. 2, p. 269.
(*) Idem, ibidem, pp. 272-273.
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sobre a Idade Média em 1873, revela uma abertura significativa ao natu-
ralismo historiologico, embora a sua ideia de evolver histórico não seja tributária da noção chave, explicativa da historicidade do mundo vivo em
termos darwinistas, isto é, da selecção natural. Ora, a composição de Elementos de anthropologia (18801), de As raças humanas e a civili-
sação primitiva (1881)(2) e de Quadro das instituições primitivas
(1883)(*), tornou mais sólido o conhecimento martiniano da revolução
operada por Darwin nos domínios das ciências da natureza, incluindo as
ciências palecantropológicas. Já em 1879, ao apresentar o esquema da Biblioteca das ciências sociais que se propunha construir, o autor chamava à colação nomes de naturalistas, internacionalmente consagrados, como Lubbock, Lyell,
Darwin, Broca, Quatrefages, entre outros(*). Mas, basta percorrer as três obras referidas de 1880, 1881 e 1883 para constatar o trabalho genial de auto-didactismo que Oliveira Martins desenvolveu na década de setenta, e
cujosresultados sistemáticos vieram a público, nos anosoitenta. As fontes utilizadas por Oliveira Martins naquelas obras incluem os estudos de geologia, paleontologia, antropologia e pré-história mais bem sucedidos na época,da autoria de cientistas, como sejam, além de Lyell e de Darwin, T. Huxley, Heckel, Vogt, Tylor, Lubbock, Hamy, Broca, Quatrefages, Topinard, e outros, sem esquecer o contributo peninsular-ibérico nesta área, com Carlos Ribeiro, F. A. Pereira da Costa, Nery Delgado, A. Filipe Simões, F. M. Tubino, J. Vilanova, M. de Gongora, e outros.
O nosso autor atribui aos seus Elementos de anthropologia (história natural do homem) o estatuto de “prólogo da vasta obra da Biblioteca das Ciências Sociais”(º), o que se prende, sem dúvida, com a problemática da ordenação sistemática dos temas projectados para a sua biblioteca. Assim
sendo, Oliveira Martins fazia preceder a história social do homem da história natural do homem e, por isso, a sua Biblioteca das ciências (!) Oliveira Martins, Elementos de anthropologia (Historia natural do homem), ob. cit..
, (2) Oliveira Martins, As raças humanas e a civilisação primitiva, Lisboa, Livraria
Bertrand, 1881, 2 vols. () Oliveira Martins, Quadro dasinstituições primitivas, Lisboa, Livraria Bertrand,
iss3.
(4) Oliveira Martins, “Bibliotheca das Sciencias Sociais”. In: Oliveira Martins,
Historia da civilisação iberica, Lisboa, Livraria Bertrand, 1879, [p. 2].
() Oliveira Martins, Elementos de antropoplogia (Historia natural do homem);
8º ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1987, p. 16.
246
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
sociais, compreendia quatro partes: a pré-história; a história; a civilização peninsular; as sociedades contemporâneas(!). Esta ordem não traduzia um condicionamento epistemológico, porque a história, propriamente dita;
compreende-se que em 1881, Oliveira Martins insista em se demarcar do teleologismo providencialista, dos idealismos metafísicos (Bossuet, Herder, Hegel, etc.)(!), bem como dos positivismos de Comte e de Spencer(2). A operatividade interpretativa das teorias da história dos referidos autores é refutada e o nosso autor propõe-se avançar por um caminho novo(?) assente, em parte, nos princípios capitais das ciências da vida, enunciados por Darwin. Recorde-se que o próprio Darwin, a par dos seus intérpretes(*), lançou pistas para a construção do darwinismo histórico (e social) em The descent ofman, and selection in relation to sex (1871), conjugando as suas observações com dados estabelecidos em áreas afins por estudiosos emi-
não era redutível a um efeito da natureza animal do homem, ou seja, não
era um epifenómeno orgânico específico onde se realizava, apenas, a mesma lógica evolucionária que regulava toda a historicidade natural. À luz da sua exposição, em Elementos de anthropologia, não é lícito concluir que a história social seja o prolongamento da história natural da espécie humana, mas as leis que regem o nível natural continuam operativas no
nível social, o que, todavia, não significa que as sociedades humanas
sejam sociedades animais, como as colmeias ou outras: “todos os princípios anteriores subsistem nasesferas ulteriores; não há substituição exclu= siva de forças, há porém adições. É o aparecimento dos princípios activos; anteriormente ausentes, que determina a formação dos novostipos e não à eliminação de princípios anteriores e substituição por princípios ulterio= res”(2). A preocupação fundamental de Oliveira Martins, tanto neste volume, como em As raças humanase a civilisação primitiva e no Quadro
das instituições primitivas, consiste em fazer distinções e demarcar, com a
máxima nitidez possível, os territórios e os objectos da Antropologia, da Etnologia e da História. Porquê? Se bem julgamos, porque o autor queria
evitar o reducionismo naturalista, mas o certo é que o darwinismo hacke-
liano, que é a sua fonte privilegiada, veio a revelar-se operativo, enquanto código de inteligibilidade do processo histórico universal. Não há dúvida que, aquando da construção da sua Teoria da história universal(2), Oliveira Martins dominava com toda a segurança o código científico de inteligibilidade da história da vida e distinguia-o nitidamente dos corolários ideológicos que H. Spencer(?) pretendia retirar dele. Assim, (*) Oliveira Martins, “Bibliotheca das Sciencias Sociais”, In: Historia da civilisação iberica, ob. cit., [p. 3]. (2) Oliveira Martins, Elementos de antropologia (Historia natural do homem), 8º ed., ob. cit., pp. 166-167. (é) “Introducção [Theoria da historia universal)”. In: Oliveira Martins, Taboas de chronologia e geographia historica, Livraria de Antonio Maria Pereira, 1884, pp. V"XLII. Este texto foi reeditado nas Obras Completas in Política e história, ob. cit., vol. 2,
pp. 1-44. Utilizamosesta edição.
(*) Oliveira Martins não confundia Darwin com Spencer (uma confusão corrente na literatura sociológica da época) nem aceitava que o darwinismo individualista da linha spenceriana fosse o fiel e legítimo intérprete das implicações ideopolíticas da teoria evolucionária darwiniana. É o que se pode confirmar mesmo em textos anteriores a 1884, como por exemplo: Oliveira Martins, “Socialismo e democracia” (1874). In: Política e história, ob. cit., vol. 1, pp. 181-216; Idem, “Os povos peninsulares e a civilização moderna”
247
nentes na época, como sejam Quatrefages, Galton, Lyell, Broca, Morgan, Lubbock, Huxley, Tylor, Bagehot, etc.(>). E, se Oliveira Martins conhecia
a obra darwiniana, bem como muitas das obras dos autores apontados(º), isto é, uma parte significativa das fontes darwinianas, não admira que a sua original teoria da história integre a lógica evolucionária da concor-
rência selectiva, sem, todavia, reduzir a complexidade da história da
humanidade ao exclusivo determinismo biológico. O nosso intento consiste apenas em objectivar o valor que Oliveira Martinsatribui às leis darwinianas na economia epistémico-ontológica da sua teoria da história universal, o que, se bem ajuizamos, não requer uma (1875), Política e história, ob. cit., vol. 1, pp. 217-246; Idem, “O socialismo contemporao neo”, O Instituto, Coimbra, 31 (6) Dez. 1883, pp. 257-267.
(!) De acordo com a exposição feita em As raças humanas e a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit., vol. 1, pp. 41-43. (2) Posição que reafirmará em 1893 no “Apêndice” da 2º edição aumentada de As raças humanase a civilização primitiva. Lisboa, Livraria de Antonio Maria Pereira —
Editor, vol. 2. Utilizamos a 5º edição, vol. 2, p. 281 e ss.
o
(3) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. it, p.5ess. oP (8 Vide: Paul Crook, Darwinism, war and history, ob. cit., sobretudo pp. 6-62. (5) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., fundamentalmente, == capítulos V, VIL e XXI (5) Nos Elementos de anthropologia (Historia natural do homem), ob. cit., Oliveira Martins refere a primeira edição inglesa da obra de Charles Darwin, 7he descent of man and selection in relation to sex, Londres, 1871. 2 vols.. Na obra O Brasil eas colónias portuguesas (1º ed., Lisboa, Livraria Bertrand, 1880), refere também de Darwin, Voyage d'un naturaliste, Paris, 1875 (Trad. Barbier). Utilizamos a 7 edição, Lisboa, Guimarães & Cº Editores, 1978, p. 265. Vide, ainda, a lista bibliográfica inclusa em As raças humanase a civilisação primitiva (2º edição augmentada), ob. cit., vol. 2, pp. 257-259.
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
exposição sistemática de todos os elementos filosóficos e científicos que ela incorpora. Sintomaticamente, a analogia(!) entre as sociedades animais e as sociedades humanas, nos planos estático e dinâmico, é o tópico que abre a reflexão martiniana e que se mantém sempre aberto ao longo de todo o texto. Em si mesmas, no seu desenvolvimento individual, enquanto orga-
entre as diversas sociedades humanas que a teoria da história tem de encontrar, para estabelecer a lei do dinamismo histórico. Esta lei é substancializada na categoria de relação conflitual. Assim, denunciando os limites da analogia, o autor salvaguarda a diferença específica do seu objecto, ao mesmo tempo que se aproxima da lógica darwiniana. O que dá consistência à historicidade é a relação conflitual, pois é “em virtude dos choques determinados pela concorrência internacional"(!) que a dinâmica histórica ocorre ou, por outras palavras, que a evolução se processa.
248
nismos isolados, as sociedades humanas são idênticas às sociedades de outras espécies zoológicas. “Pois são assim, como as colmeias, as socie-
dades humanas sucessivamente dispersas sobre a terra: obedecem no seu desenvolvimento particular orgânico a um tipo que reveste várias formas, e tem no seu conjunto apenas aquela unidade natural que provém do facto de formarmos uma espécie comum. É isso que dá lugar à constância do tipo social-humano, como entre as abelhas à constância do tipo das colmeias”(2). Nesta medida, a zoologia é chamada a participar positiva-
mente na construção de uma teoria científica da história. Mas, a sua con-
tribuição parece cingir-se ao domínio da estática social que trata as sociedades enquanto organismosisolados. O problema que desde logo se levanta é que a história não é propriamente uma coexistência sincrónica e uma sucessão cronológica de sociedades independentes, obedecendoàs leis que regem todasas espécies zoológicas. Em termos martinianos “História: é o dinamismo dos corpos sociais”(). É este dinamismo, constitutivo da sua onticidade específica,
que extravasa os limites da analogia entre as sociedades humanas e as sociedades animais. A dinâmica histórica pressupõe uma estrutura estática da sociedade composta por dois elementos, a saber, “a capacidade constitucional da raça, e a propriedade do lugar escolhido para o seu estabelecimento”(*), isto é, abreviando: a raça e o território. Se, do ponto de vista estático, estes dois elementos são constitutivos tanto das sociedades humanas como das sociedades animais, a verdade é que, “nenhum zoó-
logo pensou jamais em estabelecer um nexo de continuidade e dependência entre as inúmeras colmeias sucessivamente fundadas sobre a face da terra”(*). Ora, é precisamente a lógica da relação sincrónica e diacrónica (!) Trata-se de uma analogia capital corrente naliteratura histórico-social de inspi-
Por outro lado, se as sociedades humanas isoladas, tal como as
sociedades animais, não têm propriamente história, isso não quer dizer a mesma coisa para ambas. No caso das sociedades humanas, a ausência de contactos entre si mantém em estado virtual a sua capacidade de evolver historicamente. Essa virtualidade é algo que escapa à analogia zoológica. O facto de as “colmeias humanas”(2) serem “abstractamente progressivas ou inventivas”(2) é o dado primordial que fundamenta a necessidade de se pensar a própria estática social para lá da objectivação zoológica, mas não contra esta. Portanto, para o autor, as sociedades humanas são potencial ou efectivamente progressivas-inovadoras e não mecanicamente repetitivas como julgava serem as sociedades animais, dado que, os homens são “dotados de instintos racionais”(4). Mas, a razão é uma potência instintiva, animal; é a animalidade superior do homem e não uma faculdade ontologicamente distinta do corpo, como advogava a tradição metafísica dualista. Assim, se o ser humano possui o instinto denominado razão , “nem por isso o homem deixa de ser animal e, como animal, de obedecer a leis comuns a
todas as espécies zoológicas(...) uma dessas é a propagação, outra é a apropriação: de ambas resulta a concorrência entre as diferentes colmeias humanas -- isso a que chamamos guerras, conquistas, invasões; isso que forma o que dizemos dinamismo histórico”().
Se é em função da capacidade ideativa do ser humano que se impõe
a construção de umaciência da história, irredutível a um capítulo da zoolo-
gia, isto não significa que a marcha histórica se paute por uma normatividade distinta das leis naturais da vida. Pelo contrário, sem as noções
ração darwiniana. Vide: Donald G. MacRae, “Darwinism and the social sciences”. In: S.
A. Bamett, À century of Darwin. London e outras, Heinemann, 1958, pp. 296-312. (2) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 5-6.
(!) Idem, ibidem, p. 1. Sublinhado nosso. (2) Idem, ibidem, p. 5.
(3) Idem, ibidem, p. 1. Sublinhado do Autor.
() Idem, ibidem, p. 6.
(5) Idem,ibidem, p. 5.
(*) Idem, ibidem, p. 7. Sublinhado nosso.
(4) Idem, ibidem,p. 1.
249
(*) Idem, ibidem,p. 6.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
darwinianas de luta pela vida ou concorrência vital e de sobrevivência do mais apto (propagação e apropriação) não se estabelece a inteligibilidade mínima do processo histórico. Assim, a luta pela vida aplicada à história significa luta pela vida
listas e metafísicos, o que, em certa medida, respondia às preocupações de Oliveira Martins, insatisfeito com as teorias finalistas(!) da história. Na verdade, Oliveira Martins tem plena consciência da complexi-
expansão reprodutiva; luta pela conservação e expansão territorial; mas também luta mental, já que “todos os homens constroem, como alguns animais, a casa e o túmulo, todos enceleiram; porém os homens inventam deuses, criam mitos, redigem leis a que obedecem"(1). A luta pela vida'e a sobrevivência do mais apto não se confinam à reprodução biológica e à adaptação ao meio, entendido em sentido estritamente naturalista. O conceito de luta aplica-se a todos os níveis da existência humana,tanto âqueles níveis que são comuns a todas as espécies zoológicas, como ao nível da existência racional, propriamente humano. Portanto, no plano da razão ou do “instinto racional”, o único que as sociedades animais não partilham com o homem,a luta pela criação de cultura, pela sua conservaçãoe reprodução-recriação, pela sua propagação, também obedece ao princípio da selecção natural. De facto, a lógica darwinista da vida surge, no texto martiniano, como uma base explicativa da dinâmica histórica. Mas, nota-se em todo o curso textual uma espécie de fuga de sentido, porque este código científico não permitia elucidar a natureza singular da historicidade(?). Em causa estavam os limites do mecanicismo darwiniano que se traduziam na impossibilidade de prever uma dimensão capital do tempo histórico: o futuro. No entanto, esta limitação do código darwiniano é vista por Oliveira Martins como um trunfo teórico relativamente aos
a sistema”, da “desordem no dinamismo das sociedades humanas”(2). Como diria Darwin, “natural selection acts only tentatively. Individuals and races may have acquired certain indisputable advantages, and yet have
250
física do corpo social, isto é, pela sua conservação e descendência ou
códigos filosóficos da história, de matriz metafísica(?). Com efeito; a
teorização darwiniana, ao introduzir a noção de imprevisibilidade(*) no devir natural, afirmava um princípio epistémico inovador, demarcando-se, quer do mecanicismo absoluto, quer dos teleologismos providencia-
(1) Idem, ibidem, p. 6. Sublinhado nosso.
2) O próprio Darwin deparou-se com os limites explicativos da selecção natural-sexual aplicada à história, Vide o desenvolvimento do tópico “Natural selection as affecting Civilised Nations”, in Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit.
pp. 133-143.
,
(3) Cf. Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., pp. 7-8. (4) Vide: François Jacob, A lógica da vida, ob. cit., pp. 160-175.
251
dade do seu objecto, das “estranhezas da história”, dos “casos irredutíveis
perished from failing in other characters”(3). É, para nós, significativo, que
Oliveira Martins, perante a complexidade do problema, não tenha postulado a existência de um quid indizível e incognoscível no processo da historicidade. Antes, reafirma a fecundidade do código naturalista aplicado à história, salvaguardando os limites do paralelismo entre a história
natural e a história da civilização. Tal como os estudos de zoologia apontavam no sentido do reconhe-
cimento de que num “conjunto de colmeias há um sistema, uma sucessão, uma história comum”(4), também, dentro de determinados limites
cronológicos e geográficos, era possível estabelecer a inteligibilidade sistemática da história. Em termos martinianos “é o que acontece com as colmeias humanas estabelecidas em eras remotas em torno do Mediterrá-
neo, na África e na Europa. Evidentemente há um nexo de continuidade
e relação na história dos assírios e dos egípcios, e depois quando os arianos chegando à Europa entraram em contacto com as civilizações
hamito-semitas, entre elas e a dos indo-europeus; há maior nexo ainda nas
relações dos gregos e latinos e por fim uma fusão completa dentro do império romano, do qual saem as nações modernas”(º). Apesar de sublinhar que a noção de história universal não se reduz à “história das campanhas e vitórias sucessivas do ária, desde que assentou na Europa, até que conquistou para si quase toda a Ásia, parte da África e a América e a Oceânia inteiras”(*), o autor considerava a civilização ariana comoa “civi-
(1!) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 7. (2) Idem, ibidem, p. 8. (2) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 141.
(4) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit, p. 9.
(º) Idem, ibidem, p. 9.
(9) Idem, ibidem, pp. 11-12,
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
lização tipo”(!); não por um preconceito etnocentrista, mas explicitamente em função das leis científicas da propagação e da apropriação territorial,
teoria darwiniana à história universal, ao acrescentar que a selecção não pode deixar de realizar-se no dinamismo histórico. O curso textual martiniano é claro. Não é necessário interrogar o implícito para detectar a presença e a assunção do código de leitura darwinista, transposto da história natural para a dinâmica histórica da humanidade. Em função desse código, o problema do lugar das civilizações extra-europeias, na história universal, resolve-se automaticamente e deixa de constituir um obstáculo à determinação do sentido da história universal. Se a dinâmica
252
económica, cultural, etc. Ora, isto significa que o darwinismo é usado para
fundamentar a selecção da história da raça ariana europeia, enquanto protagonista da história universal. Simultaneamente, o mesmo código legitima a exclusão(2) das histórias de todas as restantes raças do globo do processo histórico universal, até ao seu confronto com o ariano. E se esté for exterminador, automaticamente finda a presença da raça exterminada no curso histórico. Com efeito, esta operação metodológica constitui uma prova inconcussa relativamente ao uso que Oliveira Martins faz da lógica darwiniana da vida. Para justificar a eliminação de tantas raças do quadro da história
universal, e elevar a raça ariana a primeira e, afinal, única autora(?) da
civilização universal, Oliveira Martins argumenta longamente, nestes ter-
mos: “As colmeias ou sociedades humanas expansivas e absorventes, ao
mesmo tempo que se desenvolvem organicamente, chocam-se, penetram:
-se, entredevoram-se; e no fundo de todas as aparentes desordens: da história, como resultado da concorrência vital internacional, encontra-se
realizada (nem podia deixar de encontrar-se) a lei zoológica da selecção. Observa-se em cada grupo de sociedades que a mais bem dotada a todos os respeitos acaba por submeter a si as vizinhas pelas assimilar ou destruir, substituindo-se-lhes. Observa-se que esta raça ariana a que pertencemos, eminente entre todas, foi confiscando para si as conquistas dos povos que encontrou no seu caminho épico, impondo o seu domínio por toda a parte onde a levou o destino de uma expansão que já hoje abraça o globo inteiro”(*). O que se lê é, exactamente, ponto por ponto, em termos conceptuais e lógicos, a cadeia argumentativa do princípio darwiniano dá selecção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida(”). Deresto, Oliveira Martins faz questão de sublinhar a aplicação da (1) Oliveira Martins, As raças humanas e a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit.,
vol.1, p. 195. Sublinhado nosso.
(2) Vide: Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., pp. 10-16. (3) Vide: Fernando Catroga, “Política, história e revolução em Antero de Quental”,
art. cit., pp. 19-21; Ana Leonor Pereira, “Raças e história: imagens nas décadasfinais de oitocentos”, art. cit., pp. 350-354.
(4) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 11. Sublinhado nosso. (º) Vide: Charles Darwin, The descent ofman, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., especialmente, pp. 181-192.
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histórica obedece às leis darwinianas do triunfo dos mais aptos, isto é, na
leitura martiniana, daquela raça que é portadora dos recursos mentais superiores(!), sobretudo ao nível do “instinto racional” e inventivo, então as raças extra-europeias terão garantido o seu lugar na história universal, justamente em função do seu relacionamento com a raça ariana europeia. O seu contributo para a história universal só tem propriamente sentido enquanto durar a relação conflitual que é o motor da dinâmica histórica. Elevando o conceito de relação a princípio supremo de inteligibilidade do processo histórico universal, e substancializando-o em termos de conflitualidade entre forças desiguais, a qual se resolve pelo domínio da força superior sobre a força inferior, Oliveira Martins não recusa propria-
mente o eurocentrismo histórico, tal como ele era objectivado, em parti-
cular, pela filosofia da história hegeliana. Mas, alarga-o, imprime-lhe uma dinâmica inequivocamente universalista que tende para a realização dum cosmopolitismo ariano, indo-europeu. Neste sentido, escreve: “...se já hoje o Atlântico é para nós como o Mediterrâneo foi para os romanos, um mar interior, um mar nosso, no futuro, o mar interno e o mar por excelência
civilizado, será outra vez o das Índias... Dado o imenso giro da terra, a sua civilização voltará com os arianos às paragens donde eles, ao que se supõe, originariamente partiram”(2). Assim, em Oliveira Martins, a história uni(:) Também no texto de Darwin, a superioridade racial não reside na corporeidade física tout court. No progresso civilizacional “corporeal structure appears to have little influence, except so far as vigour of body leads to vigour of mind”, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 140.
(2) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 16. Sublinhado do Autor. Oliveira Martins faz uma alusão nítida à hipótese de Heckel do berço lemuriano do género humano, defendida pelo zoólogo alemão na sua História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais, ob. cit., p. 532 e ss. Esta obra de Hackel é uma das fontes principais dos Elementos de anthropologia: (Historia natural do homem), ob.cit., e Oliveira Martins refere na bibliografia uma edição alemã: Natiúrliche Schópjfungsgeschichte, Berlim, 1873.
Darwin em Portugal
Parte IT — Capítulo 3
versal concretiza-se, não (apenas) em termos de integração superadora à maneira de Hegel, mas de acordo com a lógica da selecção natural, na história daquela raça que numerica e territorialmente se foi expandindo, sem colocar em risco a sua identidade base bio-cultural. Portanto, no que concerne às raças extra-europeias, Oliveira Martins tem de concluir: “as histórias dos povos não arianos só nos interessam e só são dignas da nossa atenção, quando a sorte põe qualquer deles em contacto com essa civilização soberana que os há-de submeter ou exterminar. Que valor, que interesse tem a história particular do Egipto, tão grave nas eras remotas, depois que o helenismo o invade, e impondo-lhe a sua cul-
verdade que Oliveira Martins soube assimilar a nova lógica da vida, também é evidente que ele soube recriá-la com um elevado sentido estético-literário, retratando a dinâmica conflitual e selectiva da história com expressões, ora sublimes e quase oníricas, ora ásperas e implacáveis(!). Pelas primeiras, o autor contribui para refazer o “mito ariano”(2), e pelas segundas condena à insignificância histórica todas as raças não arianas. O excerto acima transcrito é absolutamente inequívoco e, de modo algum,
254
tura prepara a vitória do domínio ariano? O mesmo que dizemos do Egipto
podemos aplicá-lo a todos os demais povos, salvo à China, quase intacta, e o único império que resta ainda independente do nosso poder. Soberanos e fortes, ou procedemos exterminando os povos que não podem vir aumentar o pecúlio da nossa riqueza material e moral, ou, absorvendo-os, apropriamo-nos dos resultados adquiridos por eles, fazendo nossas as conquistas ganhas pelas civilizações submetidas”(!). Esta projecção da selecção natural no curso deveniente da história não é um programa político. Resulta da constatação de que a história universal obedece à lógica da submissão, da absorção e do extermínio dos mais fracos pelos mais fortes, isto é, pauta-se pela lei do conflito vital que, segundo Darwin, regeas relações intra e inter específicas, tanto sincrónica como diacronicamente(?). A história revela a constância da superioridade do instinto assimilador,
recriador e dominador da raça araina, pelo menos, desde que os primeiros arianos, em estado bárbaro, (gregos, italos, celtas) chegaram ao Mediter-
râneo e contactaram com asricas civilizações hamitas e semitas do Egipto e da Fenícia. Ainda que se possa sempre defender que, na obra martiniana, a darwinização da história não é absoluta e, portanto, mesmo que todo o seu horizonte de problematicidade não se subsuma na lógica seleccionista da extinção e da inovação, o certo é que a sua teoria da história universal é de uma radicalidade naturalista, sem paralelo, o que está em perfeita consonância com o espírito de positividade cientista da época(?). Mas, se é (!) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 12. (2) Vide: Denis Buican, La révolution de Vévolution. L'evolution de Pévolution-
nisme, Paris, P.U.F., 1989, pp. 137-140.
(3) Vide: Claude Blanckaert, “La science de !'homme entre humanité et inhumanité”. In: Des sciences contre ["homme, 0b.cit., vol. 1, pp. 14-45.
255
pode ser lido com reservas, pois não se trata de um daqueles momentos
singulares de fuga literária que pontuam a prosacientífica do autor. Aliás, todo este ensaio de 1884 é percorrido por uma linguagem tão imediatamente naturalista que por ela se desenha o sentido de que o dinamismo histórico, à semelhança da evolução natural, se processa âquem ou além do bem e do mal. Mas, isto não quer dizer que não reconheçamosnalinguagem martiniana a marca de uma imaginação poderosa, ou que a ética, como o direito, a religião e outros códigos da razão humana sejam exterio-
res à dinâmica dos “corpos sociais”. Pelo contrário, eles inscrevem-se no
nível vital primário, isto é, são imanentes à conservação e à reprodução da espécie. Ou, em termos martinianos: “no fundo alicerce do edifício mental
humano, está o instinto da conservação da espécie”().
(1) Discordamos da interpretação de Manuel Viegas Guerreiro feita em Temas de antropologia em Oliveira Martins, Lisboa, Ministério da Educação e Cultura — Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1986. O autor defende que Oliveira Martins leva “o racismo às últimas consequências”, e atraiçoa o pensamento de Darwin. Ibidem, pp. 60-63; p. 106 e ss. Como é possível ser racista se não interpreta e classifica os acontecimentos históricos no quadro das categorias de bem e mal? Exemplificando: o comércio de escravos da África para a América não foi bem nem mal. A escravatura foi um modo de actuação da mente ariana, como muitos outros modos de submissão
das raças menos aptas na luta pela existência histórica. Por exemplo: a cruel submissão da Península Ibérica pelos romanos. Vide: O Brasil e as colónias portuguesas, 7º ed., ob. cit., pp. 55 e ss.. Além disto, estes modos de actuação não têm o caracter de necessidade absoluta, isto é, não têm de ocorrer fatalmente. Ao reflectir sobre a escravatura “um facto que ainda hoje pesa como chumbo sobre o Brasil”, Oliveira Martins afirma que o cruzamento do português com o índio teria sido benéfico: “o sangue índio, aclimatado, preservaria o europeu; o europeu infundiria no índio a exuberância de força, de arrojo, de audácia, de educação. Não foi assim”. In: “Os povos peninsulares e a civilização moderna” (1875), Política e história, ob. cit., vol. 1, p. 233. Sublinhado
nosso.
(2) Vide: Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob.cit. (3) Oliveira Martins, As raças humanas e a civilização primitiva. 5º ed., ob. cit., vol. 2, p. 25. Sublinhado nosso.
Parte II — Capítulo 3
Darwin em Portugal
Assim sendo, nas palavras do autor, “o indo-europeu assimila, absorve e mata”(!), tanto no plano material como a nível espiritual. Foi obedecendo à sua natureza superior que, pela lógica cruel da vida, “reduziu ao silêncio o génio dos hamitas e semitas desde que tomou para a sua língua, para o seu pensamento, as fórmulas ideais definidas por esses povos, transformando-as e combinando-as com o seu génio próprio”(2). É que,o ariano “era um duro soldado e um homem piedoso, quandoveio: os seus instintos desabrocharam, as suas ideias afinaram-se, a sua capaci-
dade excitou-se, e, despojando os vizinhos, fez suas todas as artes e todo
o saber deles. Mirrou-os ou matou-os desta forma”(2). Todo o curso da
história confirma que o ariano foi e é o “dominador da concorrência vital dos povos”(*), seja através da exterminação por métodos vários, no caso de confronto com populações selvagens, seja mediante uma estratégia de
domínio, assimilativa e recriadora, no caso de afrontamento com povos
civilizados. Se, na primeira situação, o desequilíbrio relacional, entre forças incomensuráveis, condena à extinção os menos favorecidos na luta pela vida, no segundo caso, a superioridade física e mental do ariano condena todas as raças e civilizações não arianas à posição de vencidas e ultrapassadas no curso universal da história. 3. “Lebenskraft” e “Lebensraum”: a expansão numérica e geográfica da raça ariana, umanecessidade ingénita favorecida pelas “estranhezas da história”
na teoria científica da evolução, pelo menos desde a composição de Elementos de anthropologia (Historia natural do homem). E, se bem
julgamos, Oliveira Martins viu claramente que a construção darwiniana
atribuía um estatuto autónomo e fecundo(2), na economia natural, a um factor imponderável, denominado acaso. Por outro lado, a valorização do
acaso resultou também daleitura de Coumot (2), cuja filosofia, modelada
pelo cálculo das probabilidades(?) e pela biologia, aceitava um darwinismo minimal(*). Seja como for, o certo é que Oliveira Martinsresistiu à tentação de moldar o seu darwinismo histórico à lógica rigorosamente mecanicista que distingue o cientismo, designadamente o de Herbert
Spencer(9).
Neste sentido, o futuro é calculado à luz da força civilizacional ariana, concretizada no passado e no presente, mas não afirmado dogmaticamente. Se “os latinos, os gregos, os celtas, fizeram na Europa remota O mesmo que nós espanhóis e portugueses fizemos modernamente no Brasil e nas Antilhas, o mesmo que os anglo-germânicos fazem em nossos dias na América e na Austrália”(7), então há fortes possibilidades de um devir histórico absolutamente dominado pelo ariano. Se assim for, realizar-se-á a plenitude do sentido da expressão “história universal”, que integrará todas as histórias particulares e finitas de todas as raças, não por aquilo que elas valem em si mesmas, mas pelo que significaram para a grande (1) Oliveira Martins, Elementos de antropologia: (Historia natural do homem), 8:ed.,ob.cit.,p.54e ss. (2) Cf. Yvette Conry, L' introduction du darwinisme en France au XIX" siecle,
A teoria martiniana da história contempla todas as dimensões da historicidade (passado/presente/futuro), mas não deduz do presente-passado,
ob. cit. p. 348 e ss.
perguntar se o anti-teleologismo da teoria da descendência com modificações(*) terá, de algum modo,influenciado a ideia martiniana de futuro. É provável, na medida em queo autor se preocupou com o lugar do acaso
º
em termos mecanicistas, um futuro absoluto. Por isso, somos levados a
(1) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 13
(2) Idem, ibidem,p. 13.
(*) Idem, ibidem, p. 14.
(4) Idem, ibidem, p. 15.
() Vide: Denis Buican, Darwin e à darwinismo. Tradução: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990, p. 50 e ss.; Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, ob. cit., pp. 28-31.
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(3) Como expressamente afirmará em 1893, no “Apêndice” da 2º edição aumentada de As raças humanas e a civilisação primitiva, ob. cit.. Na Sº ed., ob. cit., vol. 2, p. 264;
. 288.
(4) Vide: Dominique Dubarle, “De Laplace a Cournot: philosophie des probabilités
et philosophie du hasard”, In: 4. Cournot. Études pour le centenaire de sa mort (1877-
-1977) — Actes de la table ronde (Dijon-Gray, 21 -23 avril 1977), Paris, Economica, 1978,
pp. 106-118.
(5) Vide: A.A. Cournot, Oeuvres complêtes. Tome IV — Considérations sur la marche des idées et des événements dans les temps modernes. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1973, pp. 376-390; Idem, Oeuvres completes. Tome V— Matérialisme, vitalisme, rationalisme. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1987, pp. 92-96; Yvette Conry, L” introduction du darwinisme en France au XIXe siêcle, ob. cit., p. 123 ess;p.407ess. (6) Vide: Daniel Becquemont, Darwin, darwinisme, évolutionnisme, Paris, Ed.
Kimé, 1992, p. 214 e ss. (7 Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 14.
esto
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Darwin em Portugal
raça ariana. É que, se o ariano não mundializar a sua civilização, de acordo com a tendência orgânica do presente, as probabilidades de consumar a história universal ficam reduzidas ao estado de latência. As capacidades arianas de adaptação, de inovação e de domínio, que lhe deram a vitória sobre quase todas as demais raças do globo, são incomparáveis aos dotes das outras raças, por mais geniais que estas se afigurem ao historiador. Se o ariano triunfou sobre o semita “ inconvertível”, que “morreu chorando a sua miséria”, sobre o hamita “silencioso”, que “desapareceu na
sua mudez”(!), sobre todas aquelas raças inferiores, “que não eram
dignas”(2) de ocupar a terra que habitavam, como todos os indígenas selvagens da Europa e das Américas, então ele também poderá sair vitorioso do confronto com o mongólio, a única raça que falta extirpar para que o ariano impere universalmente. “Podemos, devemos supor que em poucos séculos a China dividida (entre os Estados Unidos, a Rússia e a Inglaterra?) estará submetida a um regime de ocupação e trabalho forçado, como os demais países mongólicos e malaios”(2). Apesar da força numérica dos chineses, a sua civilização estacionária denuncia os limites da capacidade ingénita da raça e, na verdade, adianta o autor, “nada temosa aprender com a China”(4). Porisso, o ariano poderá inventar e avançar com umaestratégia de despopulação e de “escravização” do mongólio. Só por esta dinámica relacional é que a China entrará na história universal, até ser definiti-
vamente suplantada pela raça ariana, em todos os níveis, sobretudo no plano reprodutivo, pois este é o único capaz de ameaçar a universalização ariana da história. Portanto,a história da China ganhará sentido no plano da história universal apenas no período em que ela tiver de enfrentar a ofen-
siva expansionista do ariano. Então, cumprir-se-á, mais uma vez, a lei da
selecção natural, e resolvido este quadro conflitual, ultrapassadas as resistências mongólicas e reafirmada a superioridade civilizacional do ariano, outras lutas ascenderão ao primeiro plano da história. Já não conflitos entre raças sem afinidade de parentesco, mas lutas no interior do arianismo universal, lutas permanentes que podem assumir variadas formas de expressão, e nas quais continuará a radicar a substância da historicidade. O texto martiniano é explícito: “a mesma lei de concorrência vital que entre as grandes divisões da família humana deu já, seguramente, a (1) Cf. Idem, ibidem,p. 15. (2) Cf. Idem, ibidem,p. 14.
() Idem, ibidem,p. 15. (4) Idem, ibidem, p. 15.
Parte II — Capítulo 3
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vitória à estirpe ariana, essa mesma lei determina a luta entre os vários ramos dela. O ramo grego foi vencido pelo latino, depois o latino pelo germânico: que destino prepara o futuro a cada uma das nações indo-europeias? Diversamente dotadas, mas por um modo que as torna proximamente equivalentes, quase igualmente civilizadas também, não parece ser a guerra que haja de decidir a contenda, mas sim principalmente a faculdade de propagação e o génio político”(!). A liderança do processo histórico universal pertencerá àqueles ramos da raça ariana que souberem alcançar um maior sucesso reprodutivo e revelarem a mais sólida capacidade de diálogo e de negociação no plano político interno e externo: dois predicados aparentemente distintos, mas que procedem da mesma força mental. De acordo com este critério, Oliveira Martins é levado a calcular que “o futuro parece pertencer ao eslavo e ao anglo-saxónico, que por diversos modos se estendem numérica e geograficamente”(2). Afinal, Antero não se enganou ao acusar as inclinações naturalistas de Oliveira Martins, cerca de dez anos antes, aquando da polémica acerca da Idade
Média e do seu lugar na história da civilização. Sem dúvida, a civilização universal ariana, na historiologia, desta fase de plena maturidade, de Oliveira Martins, é “um problema geográfico e aritmético”(2), para reto-
mar as palavras que, então, Oliveira Martins dirigia ao seu interlocutor privilegiado. A argumentação martiniana realça o valor da selecção sexual no quadro da selecção natural, dando a entender que, tal como na obra de Darwin, ela é irredutível à reprodução mecanisticamente considerada.
Com efeito, há no texto martiniano ecos da teoria darwiniana(?) da selecção sexual, enquanto trabalho “político” na economia da natureza,
que põe em jogo todas as capacidades instintivas e mentais dos indivíduos de uma espécie. Neste sentido, a “faculdade de propagação”é de uma complexidade superior, tanto mais quanto mais elevado for o instinto da espécie(”). Se já nas sociedades animais, propriamente ditas, o sucesso reprodutivo não é automático, antes depende do êxito individual, alcançado numa série de provas eliminatórias e selectivas e nos rituais de (1) Idem, ibidem, p. 18. Sublinhado nosso.
(2) Idem, ibidem, p. 19. Sublinhado nosso.
(3) A Edade-Média na historia da civilisação. Polemica entre Antero de Quental, J.P. Oliveira Martins e Dr. Julio de Vilhena,ob. cit., p. 28. (4) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., pp. 557-619. (5) Cf. Oliveira Martins, Elementos de antropologia: (História natural do homem), 8º ed., ob. cit., p. 100 e ss.
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Parte II — Capítulo 3
acasalamento, então, na espécie humana, em que o instinto se volve razão, compreende-se melhor a natureza “política” do problema. Por isso, a luta
raça ariana. Muito diferentemente, nesta etapa do processo civilizacional, qualquer acidente ou circunstância que precipite os povosarianos, irmãos de sangue, em guerrasfratricidas pode mudar substancialmente o sentido natural do curso histórico. Dizemos sentido natural, justamente por uma questão de fidelidade à ideia martiniana da superior constituição mental ingénita da raça ariana, relativamente a todas as restantes raças, especialmente a semita e a mongólica. Por isso, apesar dos indicadores naturais mostrarem que o russo e o anglo-americano caminham na linha da frente,
por uma numerosa e qualificada descendência é a prova mais segura do
“génio político” de uma raça. Evidentemente, Oliveira Martins não afirma que o “génio político” do eslavo e do anglo-saxónico se esgota no seu
sucesso reprodutivo; mas, entendendo a faculdade de propagação no quadro do darwinismo, atribui à selecção sexual um valor decisivo no processo de universalização ariana da história.
Deste modo, para o autor, a realização histórica das leis naturais da
propagação e da apropriação territorial não implica necessariamente um afrontamento bélico entre a raça ariana e a raça mongólica e, sobretudo, finalmente, entre os diversos ramosda raça ariana. É pelos seus dotes biomentais e políticos que o ariano poderá conquistar todo o mundo. Esses dotes não se traduzem preferencialmente em termos de poder militar, mas podem assumir outras formas de luta, como a higiene reprodutiva, plasmam-se noutras expressões de domínio, porventura mais eficazes do que a guerra, propriamente dita. Por outro lado, se a argumentação martiniana tem no horizonte a defesa da ideia da profunda solidariedade constitucional da árvore histórica da raça ariana(!), todavia, o autor continua a sublinhar que é o critério
do número e do território que decide, em última instância, a posição de vantagem ou desvantagem dos ramos arianos entre si. Tal como em Darwin: “it is very difficult to say why one civilised nation rises, become more powerful, and spreads more widely, than another, or why the same nation progresses more quickly at one time that at another. We can only say that it depends on an increasein the actual number ofthe population, on the number of the men endowed with high intellectual and moral faculties, as well as on their standard of excellence”(2). A superioridade numérica (lei da propagação) e a ocupação efectiva das áreas geográficas
da terra, mais favoráveis ao desenvolvimento civilizacional (lei da apro-
priação), alcançadas tanto pelo eslavo, “ainda juvenil"(2), como pelo anglo-saxónico, não implicam a morte histórica dos restantes ramos da (!) Vide: “quadro etnogénico das nações actuais da Europa”, tendo presente que ele
“é mais um processo de orientar o espírito e guiar o estudo, do que um meio de fixar conclusões absolutas e nítidas”, As raças humanas e a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit.,
vol. 1, pp. 313-314.
(2) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 140. Sublinhado nosso. (3) Como dirá o autor em As raças humanas e a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit., vol. 1, p. 301. Vide também,ibidem, pp. 301-313.
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a solidariedade subterrânea, de raíz biológica, entre todos os povos indo-
europeus e americanos, é a incontornável condição de sucesso do univer-
salismo histórico da raça ariana. No dizer do autor, “nenhum outro ramo
da família ariana apresenta um domínio comparável numérica e geografi-
camente, ao russo e ao inglês. Mas depois deles estamos nós, senhores das costas fronteiras, ocidentais da Europa e África, orientais na América aus-
tral, abraçando nos seus dois extremos o Oceano Índico pela África oriental e pela América do Pacífico — nós hispano-portugueses, colonizadores e descobridores de outros tempos. Somos vinte milhões apenas na Europa,
somos o dobro na América, e, se numericamente aparecemos muito infe-
riores ao russo e anglo-saxónico, também geograficamente, apesar da vastidão dos nossos domínios, a sorte não nos foi propícia dando-nos em partilha essa metade austral do mundo — a menos adequada para a propagação da raça indo-europeia e acaso até da própria espécie humana”(!). Se o ramo hispano-português não é lider do processo de universalização da história, isso não resulta de qualquer défice da sua capacidade de propagação e de apropriação, relativamente aos dotes do anglo-saxónico e do eslavo. É que “a sorte não nosfoi propícia...” e, embora todos os ramos da família ariana sejam igualmente aptos para conduzir a dinâmica dahistória universal, o certo é que o acaso conduziu o ramo hispano-português para o hemisfério sul onde as circunstâncias geográficas e mesológicas limitam as suas potencialidades. Neste ensaio martiniano nada nos autoriza a afirmar que o autor tem uma concepção hierarquizada dos ramos da raça ariana, o que significa que, através do factor acaso, o pensamento martiniano se distanciou da classificação hierárquica dos diversos ramos da raça ariana, defendida, especialmente, por Heckel(2). Masesta distância, que testemunha a independência (1) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história,
ob. cit., pp. 20-21.
(2) Vide: Ernst Heckel, História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais, ob. cit., p. 523; pp. 531-536; p. 540.
Darwin em Portugal
Parte H — Capítulo 3
mental de Oliveira Martins, não põe em causa a sua proximidade relativa-
raças humanas(!) e as sociedades estão sujeitas à extinção, que, num caso como nos outros, é igualmente imprevisível. A evolução não é exacta-
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mente à lógica darwiniana da vida. Pelo contrário, como resulta da nossa
exposição, a teoria martiniana da história é mais concordante com o texto darwiniano do que com a versão “ultradarwinista”(!) do evolucionismo, construída por Hackel. É que, Oliveira Martins, além de entrar em linha de
conta com o factor acaso, salvaguardando a natureza imprevisível da
história, qual eco da história natural darwiniana, coloca na base do sucesso
expansivo do arianismo as leis naturais da propagação e da apropriação.
Atendendo ao escopo do nosso trabalho, tem de se sublinhar que, também a
tendência hegemónica do protagonismo russo e inglês na dinâmica da história universal se funda num critério rigorosamente naturalista, e não em
considerações de tipo metafísico, preferências culturais ou opções políticas.
Porisso, Oliveira Martins cuidou de precisar a sua ideia de dinâmica
histórica. Deixou claro que a sua ideia de evolver não coincidia com a evolução dialéctica hegeliana; nem com a evolução positivista de Comte; nem com a evolução fisicalista de Spencer. E, embora não se identifique com o darwinismo tout court (2), O certo é que a sua ideia de evolução ganha contornos no quadro do paralelismo entre a concepção evolucionária da história da terra e da vida e da história do homem. Numa como noutra, “a evolução resulta de uma sucessão de revoluções mais ou menos aparentes”(). O autor explicita esta ideia da estrutura aparentemente revolucionária da evolução, recorrendo, como é regra na sua obra,à analogia com os modos pelos quais se processa o evolver natural. Assim, “a sublevação ou submersão dos terrenos efectua-se ordinariamente por um modo inapreciável para os nossos meios de observação, como os ponteiros de um relógio que adiantam parecendo imóveis (...). Da mesma forma, uma sociedade pode progredir natural e normalmente desenvolvendo a sua riqueza, melhorandoas suas leis, aumentando em área e número; mas também surgem muitas vezes, como terramotos, as revoluções, as invasões de
inimigos, determinando agora saltos rápidos, sublevações diríamos, no progredir, outras vezes quedas, digamos submersões parciais ou totais, O definhamento e a morte”(4). Tal como as espécies animais, também as
(1) Vide: Miguel Angel Puig-Samper, Darwinismo y Antropologia en el siglo XIX, Madrid, Ediciones Akal, S.A., 1992, p. 43 e ss. (2) Vide: Oliveira Martins, Elementos de antropologia: (História natural do homem), 8º ed., ob. cit., pp. 33-35. () Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 21.
(4) Idem, ibidem, pp. 21-22.
263
mente concebida em termos de desenvolvimento essencialista, segundo
um plano pré-estabelecido, na medida em que ela implica a ideia de inovação, de emergência do novo, que, aparentemente, resulta de acidentes catastróficos, mas, de facto, é o efeito duma acumulação regular de variações. Para além disto, o autor ressalva que, sob a aparência algo
caótica do curso civilizacional, resultante da acção de factores acidentais,
a evolução é estruturalmente assegurada pela capacidade ingénita das raças: capacidade de propagação e de apropriação, tanto mais evolucionária quanto mais criativa for a raça. Deste modo, os acidentes diversos, de proveniência vária, mas
sempre imanente aos elementos constitutivos da dinâmica social, desempenham um papel insubstituível no processo histórico, no sentido em
que, ao colocarem as raças em situações, muitas vezes, limite, suscitam a emergência do seu génio criador. Este, constituindo o factor chave de
diferenciação das raças que entraram no registo histórico, numa escala que vai da razão mínima de alguns povos extra-europeus, com histórias
particulares, à máxima potência racional do ariano, é a instância que ver-
dadeiramente potencia e realiza a superação do carácter indefinido que, na aparência, marca o evolver da historicidade. Por isso, no caso da raça ariana, o poder do acidente, quer ele seja positivo ou negativo, não é absoluto, mas é correlativo da sua força racional que o interpreta para o dominar vantajosamente, isto é, em função do seu instinto expansionista, pelo qual vai tomando corpo sentido dahistória universal. O não cumprimento do telos universalista da história, se tal for o caso, é, em última análise,
imputado à plasticidade racional do ariano, ou melhor, aos seus limites, na medida em que eles condicionam os resultados da selecção natural. O acidente é também denominado, significativamente, acaso, isto é,
um factor, em absoluto, imanente à ordem natural da vida histórica. Não é lícito aproximar a ideia martiniana de acaso da ideia de arbítrio providencialista. Nesta perspectiva teo-historiológica, o divino e omnipotente Criador, espontaneamente, pode colocar à prova de acidentes dramáticos e imprevisíveis, mesmo que afortunados, a capacidade de resistência histórica e de aperfeiçoamento das suas criaturas. O acaso martiniano, em certa medida, é tributário da ideia de Cournot, que o entende enquanto combi-
(1) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob, cit., pp. 181-192.
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Parte II — Capítulo 3
Darwin em Portugal
nação ou confluência de séries causais independentes, num horizonte aberto, incompatível com o teleologismo hegeliano(!). O que significa, então, afirmar que o acaso é um factor constitutivo da ideia martiniana de evolução histórica? Fundamentalmente, equivale a dizer que a historicidade se desenha através do conflito entre a contingência evolucionária e a necessidade de evolver imanente às raças humanas progressivas. Esta necessidade mais não é do que o imperativo biológico de expansão reprodutiva e territorial, o qual não se pode determinar aprioristicamente, pois depende de factores externose, sobretudo, da sua capacidade mental, igualmente sujeita à lei da variação(2). Assim sendo,torna-se claro em que medida o acaso é constitutivo da historicidade. Quer contrarie, quer beneficie o instinto de conservação e de expansão das raças progressivas, ele exerce uma pressão selectiva, abrindo a necessidade da acção.
Mas, a acção, propriamente dita, depende do “instinto racional” da raça que, apenas naraça ariana, é suficientemente plástico para poder universalizar o processo histórico. A raça ariana deu provas históricas de que é capaz de construir o novo, de avançar para formas civilizacionais superiores, sobretudo quando o acaso surpreende o curso regular da história,
revolucionando-o,isto é, quando o processo implica “sublevações” e “submersões”, resultantes de “choques ou encontros entre colmeias humanas em momentos diversos de desenvolvimento orgânico”, como aconteceu na fase agónica do império romano,entre “os povos germânicos, bárbaros, no estado de espontaneidade heróica e poética e os povos latinos unificados sob o império romano”(2). O acaso dessas convulsões no interior do arianismo,isto é, entre raças consanguíneas, foi decisivo para o evolver da
história universal(*). Sem o choque positivo(”) entre o latino e o germã(!) Vide: Jacques d'Hondt, “Hegel dans Coumot”. In: A. Cournot. Études pour le centenaire de sa mort (1877-1977) — Actes de la table ronde (Dijon-Gray, 21-23 avril 1977), Paris, Economica, 1978, p. 167 e ss.
(2) Posição que será reforçada na 2º edição aumentada de As raças humanas e a civilisação primitiva, ob. cit.. Na 5º ed., ob. cit. vol. 1,p. 45 e ss. (3) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história,
ob.cit. p. 24. (4) Vide: Idem, ibidem, pp. 24-25.
() Em outro lugar, o autor faz questão de sublinhar que através dos termos “choque” e “terramoto” não pretende recuperar “a antiga ideia de um cataclismo teatral que fazia da invasão dos bárbaros um acto dramático (...), supondo em toda a parte destruí-
das com a gente, a língua e as instituições”, As raças humanase a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit., vol. 1, p. 293. O autor nunca põe em causa a profunda unidade dos diversos ramos da família indo-europeia que sucessivamente foram ascendendo a primeiro
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nico, a Europateria estacionado. A ter sido assim, tanto a raça ariana como a raça mongólica teriam idênticas probabilidades de protagonizar O uni-
versalismo histórico. Por isso, o acaso é determinante na renovação do
processo civilizacional. Mas, só o é, desde que a potência mental da raça seja superiormente elevada, ou seja, desde que se trate da raça ariana. À luz da ideia martiniana de evolução histórica, torna-se evidente quea história universal não pode ser cíclica à maneira de Vico(1), porque, em cada novo período, depois do choque e sobre as ruínas do passado, nasce uma forma nova de organismo histórico, tendencialmente superior, desde logo, mais amplo, em termosterritoriais e demográficos. No curso histórico, a raça ariana não se tem pautado pelo modelo de Sísifo. Pelo contrário, para ela todos os choques foram e são motivo de renovamento. É comose osacidentes viessem ao encontro da suaforça ingénita pois, afinal, todas as convulsões, que a história da Europa regista, são positivas. É como se, paradoxalmente, o acaso fosse necessário.
Todavia, o futuro é constitucionalmente imprevisível. Deste modo, não estamos perante uma escalada dialéctica ascendente e teleológica, à
maneira de Hegel. Além disso, a ideia martiniana de evolução não é pos-
tulada a priori, mas é determinada a posteriori, em termos de probabili-
dade tendencial, não sendo, portanto, definida em moldes absolutos. O que podemos afirmar com segurança é que a evolução se substancializa em termos de inovação, e processa-se segundo “as leis da concorrência internacional”(2), que dão a vitória à raça mais apta, segundo os critérios naturalistas da propagação reprodutiva e da expansão territorial. Para demonstrar que a evolução implica sempre inovação, Oliveira Martins percorre a história da Europa, desde a invasão dos bárbaros germânicosaté finais do século XIX, confrontando-a com história de Roma, e salienta as diferenças que as distinguem, e que não se subsumem nas suas semelhanças formais. Assim, por exemplo, a França entre 1789 e plano no evolver histórico. Portanto, o “terramoto” bárbaro que, afinal, demorou três séculos, é, desde logo, sinónimo de miscigenação. Os sangues confundem-se e as populações baralham-se. Cf. Idem, ibidem, p. 297 e ss.
(!) Como o autor explana noutra obra, “na civilização geral não há riccorso, mas sim um progredir constante, embora nem sempre se progrida correlativamente em todos os orgãos e funções sociais”. Também “não há riccorso necessário nas civilizações particulares, embora de facto haja quedas fortuitas”. Fortuitas e não necessárias como advogava Vico. Vide: Oliveira Martins, As raças humanase a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit., vol. 1, p. 52. (2) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob.
cit., p. 26.
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Parte 1 — Capítulo 3
Darwin em Portugal
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1848, exerceu uma influência histórica poderosa porque soube criar “uma república original no seio das monarquias aristocráticas da Europa”(!). Também a supremacia da Alemanha de Bismarck nas décadas finais do século XIX, patente no desfecho vitorioso da guerra franco-prussiana em 1871, assentava numa orgânica socio-político-militar inovadora. “Hoje o socialismo governamental alemão e a organização militar prussiana parece tornarem-se cada dia mais o tipo original que, reproduzido pelas demais nações, dá à iniciadora um papel eminente e um caracter hegemónico”(2). Portanto, a inovação constitui a própria substância do evolver histórico; Sem essa capacidade de introduzir o novo ou, pelo menos, de o reproduzir por imitação e adaptação, as “colmeias humanas” correm o risco de estacionar e de envelhecer precocemente, tornando-se impotentes para resistir
do “instinto mais poderoso dos homens”(!), a saber, o instinto de igualdade, pelo que, em termos martinianos, “o signo do progresso está na equalização crescente das condições dos diferentes membros da comunidade”(2). Assim, à luz do seu modelo, a evolução histórica tende para a democracia social e igualitária. Mas, atingida a etapa do “querer social como o único fundamento da autoridade”(2), não se segue a sua realização automática e mecânica. Diversas possibilidades de devir abrem-se às sociedades, no período democrático. Também a este título, Roma é instrutiva, no sentido em que,
clui, a posteriori, que “uma grande nação é forçosamente uma constituição original “(?), e que o triunfo universalista da raça ariana depende daforça
dos bárbaros. Deste modo, a história de Roma ensina que a democracia
ao instinto expansionista das suas vizinhas. Por isso, Oliveira Martins con-
criadora do seu “instinto racional”. Ora, esta força não se pode calcular a
priori.
por força de vários factores, não soube renovar-se por dentro, através da
criação de uma orgânica social e política adequada às necessidades e aos imperativos do instinto democrático. Roma arruinou-se, entrou num processo de degenerescência que se tornou irreversível com as invasões social é o horizonte para o qual tendem as sociedades progressivas, mas também revela que este ideal não se cumprirá fatalmente, à revelia de todos os acidentes. Se a Europa de oitocentos, após a longa aprendizagem medieval e o processo de maturação sócio-político dos tempos modernos,
caminha tendencialmente no sentido da democratização social, o certo é
4. O devir universal da história: problemas e certezas na teoria martiniana Para determinar o sentido evolucionário da história universal,
Oliveira Martins recorre ao método naturalista da observação comparada (de várias sociedades) e de selecção de um corpo social-modelo. O paradigma de evolver social encontrou-o na história romana. Tal “como o zoólogo que, ao querer estudar os costumes das abelhas, tem de escolher uma colmeia perfeita e típica, da mesma forma o nomólogo, ao querer estudar
o desenvolvimento orgânico das sociedades humanas, escolhe um exem-
plo perfeito e típico. Esse exemplo é Roma”(4). Mas o facto de Roma ser paradigmática não significa que a história das sociedades europeias reproduza todas as etapas da história do povo romano e pela mesma ordem de sucessão. O que a história romana ilustra é que todas as sociedades humanas progressivas caminham no sentido da afirmação político-social (1) Idem, ibidem, p. 29. (2) Idem, ibidem, p. 30.
(2) Idem, ibidem, p. 30. Sublinhado nosso.
(4) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob. cit., p. 36. Sublinhado do Autor.
que, tendo presente a história de Roma, não se pode afirmar que o princípio da igualdade se realizará, sem condições. O que Oliveira Martins adianta é que, sendo o instinto igualitário uma fatalidade orgânica dos corpos sociais adultos, a sua irrealização pode traduzir-se numa agonia social, de efeitos imprevisíveis. Isto não significa que o destino da Europa democrática seja comparável ao destino que teve o império romano, porque uma diferença incomensurável separa e distingue estes dois períodos históricos. A civilização europeia traz a marca da universalidade. “Nós sabemos que enormediferença há entre o império romano e os tempos modernos, já vimos como essa antiga civilização era restrita em área e número, e como a nossa é universal"(4). Com efeito, a civilização ariana, enquanto caminhava no sentido da maturidade social e política, foi alargando o seu território, expandindo-se por todo o mundo, à excepção da China que, todavia, para o autor, é muito provável que não tarde a render-se perante a superioridade mental-civilizadora do ariano. Mas, a incógnita persiste, (1) Idem,ibidem, p. 37. (2) Idem, ibidem, p. 37.
(3) Idem, ibidem, p. 36.
(4) Idem, ibidem, p. 37. Sublinhado nosso.
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Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3 A
pois a consecução do universalismo ariano põe à prova a “capacidade ingénita da raça”, sobretudo a sua razão criadora, não só para dominar a China, mas também para encontrar formas de expressão do instinto igualitário dos homens. Portanto, apesar do sucesso histórico do ariano desde os primórdios da civilização até finais do século XIX, não é possível afirmar a priori o seu triunfo no tempo futuro. A dinâmica histórica universal estava atingindo o limiar da sua concretização absoluta e, desse modo, colocava a raça superiormente dotada perante a necessidade de maximizar o seu “instinto racional”, isto é, de criar meios económico-políticos para responder ao instinto social dominante na civilizaçãoariana: o igualitarismo. No dizer do autor, a Europa já se encontrava “quase no ponto de convergência das duas conclusões — a democracia como termo natural e necessário do desenvolvimento orgânico da sociedade ariana, e o império universal da nossa raça como termo também necessário do dinamismo histórico ou da concorrência das diferentes raças humanas povoadorasda terra”(1). Mas, interroga Oliveira Martins, a civilização ariana terá recursos mentais para construir a democracia plena,
isto é, a democracia política, social e económica ou, numa palavra, o
socialismo? A resposta do autor não é afirmativa nem negativa, dado que as ciências antropológicas não podiam determinar quais os limites máximos da “capacidade ingénita da raça” ariana. Por outro lado, ainda que os acasos no curso histórico tenham sido sempre motivo de renovamento e de crescimento mental da raça ariana, não se podia daí inferir que todos os acasos ou acidentes fossem positivos. O futuro é imprevisível e não vem necessariamente ao encontro da tendência orgânica do seu presente. Basta
um acaso infeliz, um acidente imponderável, uma falha no “instinto
racional” ariano, para que o socialismo continue a ser o telos adiado da história universal. Se a civilização ariana não souber construir a democracia social, limitando-a ao formalismo jurídico-político; se, portanto,ela não se adaptar ao “instinto” que distingue radicalmente as sociedades animais das “colmeias humanas”, e que se encontra culturalmente plasmado no princí-
pio da igualdade, então, nesse caso, a civilização ariana corre o risco de
voltar ao grau zero da hAumanitude(2). Ela não terá futuro, no sentido em que atingiu aquela organização social e política limite, que pode abrir-se à
269
ruína, deixando o sentido universal da história em potência e, de certo
modo, à deriva no tempo, pois as restantes raças, e designadamente a raça mongólica, não possuem uma “capacidade ingénita” suficientemente elevada, para assumirem o testemunho do universalismo final do curso histórico. Mas,terá futuro, ou, pelo menos, largas probabilidades de futuro se, apesar do acaso, sempre imprevisivelmente negativo ou positivo, souber, pelo seu incomensurável e surpreendente “instinto racional”, abrir-se ao novo, em consonância com o instinto igualitário dos homens.
Assim sendo, o triunfo histórico do arianismo passa também pelo
modo, necessariamente criativo, como os estados democráticos encararem
a “questão social”. A progressividade universalista da história depende,
em larga medida, da estratégia económica e política que as democracias
finisseculares de oitocentos, de matriz racial indo-europeia, adoptarem
para disciplinar o “vasto exército das plebes miseráveis”(1) que as integram. Na verdade,a civilização ariana não alcançará o alfa e o ómega da sua tendência universalista, se não atender aos apelos dos seus “bárbaros”,
ou miseráveis, isto é, daqueles que, dentro das democracias industrialistas, assumem e protagonizam, instintivamente, o valor supremo da razão social que, para Oliveira Martins, é a igualdade. Não é possível afirmar que a evolução se dirige num determinado sentido, porque esse sentido depende do jogo de possíveis, dos factores imponderáveis, do imprevisível acaso, enfim, da aleatoriedade que opera no plano das condições biológicas e mesológicas da existência, ao nível das capacidades da raça e no próprio terreno do protagonismo político. Mas, para o autor, há uma tendência que historicamente se desenha e que aponta para o socialismo, o que, em termos naturalistas, significa que a selecção natural preservou a igualdade, por ser este o valor assumido instintivamente pelo maior número. Com efeito, na óptica martiniana, o valor da igualdade, nas suas múltiplas acepções, desde o plano jurídico ao plano educativo, é aquele que oferece, à maioria da população, mais garantias de sobrevivência e de expansão física e espiritual e, portanto, é aquele que poderá abrir a história à sua plenitude universal.
Neste sentido, Oliveira Martins, num texto de 1883, que pode ser
tomado como o embrião da parte final da sua “Teoria da história universal”, deixava explícito: “Não é tão absurda, como parece, a doutrina dos
socialistas quando pregam o darwinismo; ele não exclue o reconheci-
(!) Idem, ibidem, p. 38.
(2) Termo de Albert Jacquard. Vide: A herança da liberdade. Da animalidade à
humanitude. Tradução de José Vieira de Lima. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1988;
Idem, “Humanitude”, Le Genre Humain, Paris, 12, 1985, pp. 123-127.
(1) Oliveira Martins, “Teoria da história universal” (1884), Política e história, ob.cit., p. 38.
Parte II — Capítulo 3
Darwin em Portugal
270
existimos animento dosinstintos racionais, e a verdade é que nós homens pregando a menos, energú os e malmente movidos pela razão. As plebes iam a anunc lhes que s, concorrência vital, obedecem a instintos animai e Cumpr força. à to vitória certa de quem tem por si o número, e portan coisas nas el ao filósofo encaminhá-la, dirigi-la tanto, quanto é possív os resulhumanas”(1). Os verdadeiros ideais da razão harmonizam-se com s constados da selecção natural. Ora, as classes laboriosas-proletária
disso, a sua tituíam a maior fracção social da Europa oitocentista. Além
descendêndescendência era proporcionalmente mais numerosa do que a tendo “por isso, Por s. burguê mo rialis cia das classes dominantes do indust aneiespont sua na m-se, ficava si O número, e portanto a força”, elas identi iana, com “the dade instintiva, com o mais apto, ou na terminologia darwin
Oliveira survival of the fittest in the struggle for life”. Assim, para ade, iguald da Martins, a teoria darwiniana legitimava O ideal socialista a históri da cuja realização assegurava O comando do destino universal a, . Todavi pelos melhores cérebros descendentes de todasas classes sociais vontade, de força exigia Ele tico. automá era o triunfo do socialismo não das natural o sentid do o iment cumpr pelo espírito de militância e luta ade. iguald da valor no democracias de oitocentos, plasmado arem Daí decorre o direito que assiste às elites esclarecidas de cultiv ênconsci a Mas, al. univers as ideias vantajosas à consumação da história ra Olivei de as palavr cia histórica alcançada pelas elites nada garante. Nas para fadado Martins: “Quem pode assegurar que o nosso mundo não está outros atingir um limitado número de cultura e aí parar em condições que são, chimundos, se pudessem ver-nos, considerariam, permita-se a expres o a ilusão nesas?"(2). Importa nunca esquecer que “depois de se ter varrid se varreu m també já so, Univer do centro óptica de considerar a nossa terra nesta pois, ”(?), criação da tipo o os a ilusão filosófica de nos suporm aborto “o smente simple traga sequência, não é impossível que o futuro
2h
Martins, isso “provaria apenas apesar de todos os seus dotes, que nem os próprios indo-europeus eram capazes de tornar reais as ideias que todavia
podiam conceber”(1).
Na perspectiva do nosso autor, a raça ariana é o único sujeito que pode realizar a vocação universalista do processo histórico, já que, segundo as leis naturais da propagação e da apropriação, o ariano supera todasas restantes raças. Mas,se a explicação do sucesso expansionista do ariano e do seu hipotético triunfo universal é rigorosamente naturalista, O
certo é que Oliveira Martins deixa o seu texto aberto à necessidade de tratar metafisicamente a questão da força que se manifesta superiormente na “capacidade ingénita” da raça ariana. Em muitas passagens de outras obras, o autor procura objectivar a sua ideia de força, através da metáfora da semente, sem acentuar o sentido teleológico que essa metáfora carreava. Assim, “os dotes psicológicos das raças são para nós, pois, como a semente que tem em si a virtualidade da germinação e crescimento da planta quando encontra um chão apropriado”(2). Se aforça escapa a uma inteligibilidade científica é porque não é objectivável em termos exactos e unívocos. Já em As raças humanase a civilização primitiva (1881), Oliveira Martins afirmava que a plena inteligibilidade do processo histórico exigia a investigação filosófica da “essência dessa vis íntima, imanente no espírito humano”(), pois a lógica darwiniana “da acção do meio, da adaptação do homem, e da selecção natural pela concorrência vital — struggle for life”(*), limitava-se a explicar a ascendência animal dos dotes psicológicos(*) das raças humanas. Mas, se Oliveira Martins não escreveu uma Metafísica da força, e, particularmente, da força das raças, é porque o fundamental, isto é, O
i Oliveira progress is no invariable rule”(5); mas, a ser assim, conclu
imanentismo da força ficava salvaguardado na sua teoria da história de inspiração darwiniana. A nossainterpretação da teoria martiniana da história universal não pode omitir que, nos seus Elementos de anthropologia, Oliveira Martins desdobrava o conceito de raça, em “raça natural” e “raça histórica”, sendo a primeira objecto da Antropologia e da Pré-história e pertencendo a
, Coimbra, 31(6) (1) Oliveira Martins, “O socialismo contemporaneo”, O Instituto nosso. ado Sublinh Dez. 1883, p. 265. a, 5º ed., ob. cit. (2) Oliveira Martins, As raças humanas e a civilização primitiv vol. 1, p. 61.
vol. 1, p. 60. (2) Idem, ibidem, p. 36. (3) Idem, ibidem, p. 43. Sublinhado do Autor.
remember that da civilização total"(9). Como diria Darwin, “we must
(3) Idem, ibidem, p. 60. (%) Idem, ibidem, p. 60.
to sex. Second (5) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation
cií., p. 140. edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob.
(1) Oliveira Martins, As raças humanase a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit.,
(4) Idem, ibidem, p.42. Sublinhado do Autor. (5) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex.
Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., pp. 65-145.
272
Parte
Darwin em Portugal
segunda ao domínio da Etnologia, de outras ciências sociais( De da História(2). Mas, esta distinção entre “raça natural” e “raça histórica” não significava que o conceito de raça fosse operativo, apenas, no campo da Zoologia, da Antropologia e da Pré-história, pois se assim fosse, na sua teoria da história universal, o autor ter-se-ia colocado num outro registo epistémico; não teria definido a dinâmica histórica em termos de conflitualidade inter e intra racial e de selecção natural da raça mais apta na luta pela existência histórica. O facto é que, nas palavras do autor, “admitida à teoria da evolução transformista”(?) a relação existente entre as raças naturais e as raças históricas é uma relação defiliação. Isto significa que, na evolução natural, as raças históricas constituiram-se a partir de cada uma das doze raças naturais, que, por seu turno, procederam “mediata ou ime-
— Capítulo 3
273
da inteligência(!), distingue o homem do animal, sem que, por isso, o homem deixe de ser animal. O que Oliveira Martins afirma com clareza é que, “cada raça tem uma capacidade orgânica; a civilização corresponde, pois, a um fenómeno natural étnico "(2). Portanto, também não nos parece sustentável que, na obra martiniana, a raça seja uma entidade metafísica. A raça é uma população com características físicas próprias(?), embora o autor secundarize algunscritérios da antropologia física, designadamente a estatura, a forma e a capacidade cranianas, e valorize, em especial, o tipo de cabelo, tal como Hackel(4). Além das características anatómicas, cada uma dastrinta e seis “raças históricas” possui uma identidade cultural distinta, e é este traço expresso, em particular, no plano linguístico, simbólico e mitológico, que é tomado como norma na taxonomia racial martiniana,
diatamente, da origem comum — o pitecantropo álalo”(4), segundo à
porque é nele que se espelha a força racional das raças. “Compare-se um
cruzamentos, as instituições e os acasos e condições da existência de cada
logo se reconhecerão diferenças de uma ordem que não é lícito atribuir a influências climatéricas, nem à acção dos regimes de instituições sociais”(º). Ora, a força ideativa das raças realiza-se na sua própria historicidade e, portanto, quanto mais racional é a raça mais histórica é a sua existência. Não admira, pois, que a raça ariana, sendo aquela que possui a mais elevada “capacidade ingénita”, seja a raça histórica por excelência, e
genealogia hxckeliana que Oliveira Martins adopta(”). O nosso autor considera mesmo que as raças históricas são “variedades” dos “doze primitivos tipos (...) para cuja formação concorreram a acção do clima, Os qual”(6). Assim sendo, em nosso entender, a distinção entre raças naturais e raças históricas não é um argumento suficientemente sólido,para se refutar o naturalismo histórico da sua teoria da história universal.
Acresce que, em parte alguma da sua obra, o autor afirma que, à
“capacidade ingénita” da raça é uma aquisição do homem já histórico, ou uma dádiva da Divina Providência, ou uma força transcendente que se manifesta em proporções e qualidades diversas, nas várias raças humanas. De alguma maneira, a “capacidade ingénita” da raça identifica-se com à sua força racional, isto é, justamente, com aquela faculdade que, para lá
(1) Oliveira Martins, Elementos de antropologia: (Historia natural do homem), 8º ed., ob. cit., p. 150 ess. (2) Apenas algumas dessas “raças históricas” tinham realmente história. Era o caso da raça ariana. Para a grande maioria o adjectivo histórica tinha um sentido apenas etnológico. Como em Hackel, por exemplo, “nenhum povo de carapinha teve história verdadeira”, História da criação dos seres organizados segundo asleis naturais, ob. cit.
p. 520.
() Oliveira Martins, Elementos de antropologia: (Historia natural do homem),
8º ed., ob. cit., p. 150.
(4) Idem, ibidem, p. 151. (5) Vide: “Árvore genealógica das 36 raças históricas filiadas nas 12 raças naturais”. In: Elementos de antropologia: (Historia natural do homem), 8º ed., ob. cit. pp. 152-153.
(9) Idem, ibidem, p. 154.
europeu a um chinês, a um índio americano, a um negro, a um hotentote, e
a única que tem poder mental para construir a civilização universal, ou,
pelo menos, para concebê-la e conservá-la no seu horizonte ideativo e praxístico, como uma meta a atingir. Assim sendo, é evidente que a força racional da raça não se traduz, apenas, na sua língua, religião, costumes, enfim, na sua organização simbólica-comunicativa.
Todasas trinta e seis “raças históricas” têm as suas culturas. Mas só algumas têm história. Para ser, de facto, uma raça histórica é preciso que (') Como em 1893 dirá aos seuscríticos, e, em especial, a Augusto Rochae a Júlio
de Matos, “vontade, inteligência e instintos orgânicos são pois comuns aos animais e aos homens; só estes, porém, nascem dotados de instintos morais, que desabrocham espontaneamente nos períodos genesíacos da história, para se definirem racionalmente em concepções abstractas, que tornam o homem culto, segundo a frase clássica, o rei da criação”, As raças humanase a civilização primitiva. 5º ed., ob. cit., vol. 2, pp. 287-288.
(2) Idem, ibidem, vol. 1, p. 195. Sublinhado nosso.
(*) Oliveira Martins, Elementos de antropologia: (Historia natural do homem),
8º ed., ob. cit., pp. 147-160.
(4) Vide: Ernst Heckel, História da criação dos seres organizados segundo as leis
naturais, ob. cit., p. 518 e ss.
() Oliveira Martins, Elementos de antropologia: (Historia natural do homem), 8º ed., ob. cit., p. 159.
Darwin em Portugal
Parte H — Capítulo 3
a sua força ingénita dê provashistóricas da sua capacidade de sobrevivência na luta inter-racial, do seu poder reprodutivo (propagação), das suas faculdades de domínio territorial (apropriação), da sua plasticidade mental, através da assimilação-recriação de outras culturas, e mesmo da sua faculdade de destruição de culturas insípidas e de populações mentalmente desfavorecidas. A força mental de uma raça não se pode pesar nem medir, mas avalia-se historicamente pela extensão territorial conquistada e pelo nível demográfico alcançado. É à luz deste critério naturalista, e não do preconceito etnocentrista romântico, que se deve entender o modo,algo fatalista, com que Oliveira Martins afirmava a superioridade do ariano e elevava a suacivilização a modelo insuperável, em As raças humanase a civilização primitiva. Neste sentido, escrevia: “há na terra uma civilização tipo, destruidora das passadas civilizações da Babilónia, do Egipto, do Perú, do México, destinada a destruir a última dessas civilizações particulares, a China, por isso que há uma raça superior, excepcionalmente dotada, à qual compete o domínio exclusivo da terra pelas leis da concorrência vital e da selecção. Há cinquenta ou cem séculos os árias seriam uns milhares; hoje são seiscentos milhões, metade da população do mundo; então viviam num ignoto recanto do ocidente da Ásia central: hoje povoam ou dominam duas terças partes das terras, e imperam navegando em todos os mares do globo. Daqui por séculos, não muitos, sucederá às terras o que já desde o século
tinto do fundo rácico-étnico do restante território peninsular(1). Ora, este facto significava, para o autor, que a existência de Portugal não podia ser explicada pela “lógica natural” da história, isto é, pelo determinismoracial conjugado com a lei da apropriação territorial. E, todavia, Portugal era uma nação com sete séculos de história, com a agravante de não ser, apenas, uma história particular sem projecção universal, mas, pelo contrário, de ter dado um contributo decisivo para o processo universalista da história, com a epopeia dos descobrimentos. Por outro lado, além de não poder explicar a existência de Portugal pela ultima ratio da formação e consolidação das nacionalidades, Oliveira Martins confrontava-se com a impossibilidade de considerar Portugal uma “nação viva”, após o cumprimento da sua missão “marítima e colonial”(2) para o evolver da história universal. Neste sentido, em 1877, apreciando criticamente a perspectiva optimista-positivista de Horácio Ferrari, sobre a posição de Portugal na Península, Oliveira Martins afirmava: “A missão de uma nação é alguma coisa íntima e orgânica que está para a colectividade como a força vital para o indivíduo: nasce com ele, com ele morre.
XVI, desde Colombo, Gama e Magalhães sucede aos mares” (!). Para nós, é claro que, na obra de Oliveira Martins, o mecanismo da selecção natural
constitui a inteligibilidade mínima do processo de universalização da história. E, tal como em Darwin, a selecção também é compreendida como
um mecanismo de preservação do mais vantajoso e de fixação do novo, não sendo, porisso, reduzida à função negativa de eliminação das raças, ditas, menosaptas na luta pela vida e pela existência histórica. 5. Portugal: a contraprova do determinismo racial no processo histórico?
215
(1) Compreende-se que assim fosse, tanto mais que, entre nós, as investigações paleontológicas e de arqueologia pré-histórica se encontravam ainda na fase de arranque. Vide: Ana Leonor Pereira; João Rui Pita, “Ciências”. In: História de Portugal. Direcção de José Mattoso. vol. 5 — O liberalismo (1807-1890). Coordenação de Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 658-661. O plano de estudos elaborado por Adolfo Coelho é bem elucidativo do estado da questão antropo-etnológica peninsular, no final da década de setenta. Vide: Francisco Adolfo Coelho, “Esboço de um programa de estudos de etnologia peninsular”. In: Obra etnográfica, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1993, vol. 1, pp. 677-679 — Publicado originalmente em: Revista de Etnologia e Glotologia, 1, 1880, pp. 1-4. O que se avançou nas décadas seguintes não alterou substancialmente o estado da questão. Vide, entre outros: Francisco Paula e Oliveira, “As raças prehistoricas de Portugal”, Era Nova, Lisboa, 1, 1880-1881, pp. 503-511, 533-538; Ricardo Severo, Paleoethnologia portugueza. A proposito do livro de M. Émile Cartailhac “Les ages préhistoriques de VEspagne et du Portugal”, Porto, Typographia Occidental, 1888; Fonseca Cardoso, “[Recensão crítica de] Ricardo Severo,
Paleoethnologia portugueza — Les âges prehistoriques de 1 Espagne et du Portugal de M.
Em. Cartailhac. Porto, 1888”, Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes, Porto, 1, 1890,
No decurso da década de setenta, Oliveira Martins foi constatando
pp. 139-143, 182-184; Joaquim Filipe Nery Delgado, Relatorio ácerca da decima sessão do Congresso Internacional de Anthropologia e Archeologia Prehistoricas, Lisboa,
(1) Oliveira Martins, As raças humanas e a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit, vol. 1, p. 195. Sublinhado nosso.
Português (1893-1914), Lisboa, Imprensa Nacional, 1915. Recorde-se ainda que a Revista Lusitana começou a publicar-se em 1887, O Archeologo Português em 1895 e a revista Portugalia. Materiaes para o estudo do povo portuguez, em 1899. (2) Oliveira Martins, “Portugal na Peninsula (Carta ao Sr. Horacio Ferrari)”, A Renascença, Porto, (2-3), Fev. -Mar. 1878, p. 27.
que os conhecimentos antropológicos e pré-históricos da Península Ibérica não eram concludentes quanto à existência de um substrato português, dis-
Imprensa Nacional, 1890; José Leite de Vasconcelos, Historia do Museu Ethnologico
gas
274
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
Nenhuma nação jamais teve nem terá duas missões em diferentes épocas. Nós tivemos a nossa que foi marítima e colonial; quando a executámos, morremos. Hoje não somos nem podemos ser uma nação viva”(!). Mas, a Espanha é “uma grande nação em toda a extensão da palavra”(2), ou seja, assenta num fundo etnogénico e territorial que alimenta a sua existência histórica. No essencial, o autor mantém a sua perspectiva, segundo a qual, à luz do critério científico naturalista, Portugal nunca foi uma nação ver-
história”(1). Em função do nosso objectivo, o que, já em 1877-78, separa
216
dadeira, isto é, com nacionalidade ou “base etnogénica” (2), embora tenha
sido uma realidade nacional, ao cumprir uma missão histórica universal, como algo que estava fatalmente inscrito no litoral português e que, na época, teria sido levado a cabo pelos seus habitantes “ainda quando se não chamassem portugueses”(*), como dizia Oliveira Martins no seu estudo sobre Os Lusíadas. Finda a sua missão, Portugal extingue-se. Ora, esta
morte de Portugal, escrita no Porto a dez de Novembro de 1877 e vinda a público no primeiro trimestre de 1878, feriu, em particular, a sensibilidade
positivista de Horácio Ferrari. Escudando-se no organicismo sociológico e na ideia naturalista de causalidade, segundo a qual toda a causa produz um efeito ou vários efeitos (e não um fim ou fins), o autor defendia que um povo para ser nação não tinha de cumprir qualquer destino sobrenatural ou fatalidade providencialista. Ao retirar toda a carga metafísica e teleológica à ideia martiniana de missão, Horácio Ferrari aproximava a missão dos descobrimentos de outros objectivos perseguidos no decurso da história pátria: “nos primeiros séculos da monarquia podiamos dizer que a nossa missão era expulsar os mouros do ocidente da península; mais tarde tivemos a missão dos descobrimentos, da conquista e civilização das raças inferiores que encontrámos, e ainda a da propagação da fé católica. Eis um bom número de missões, perfeitamente distintas, para um só povo tão pequeno, e num período, relativamente tão curto, de quatrocentos anos. Dizer-se que a nossa verdadeira missão, a única para que fomos destinados foi marítima e colonial, e que devemos morrer porque a nossa evolução terminou como povo independente, é pôr de parte as lições da (1) Idem,ibidem,p. 27.
(2) Idem, ibidem, p. 28.
(2) Sobre a distinção entre nação e nacionalidade, clarificada por Oliveira Martins em 1885, vide Fernando Catroga, “História e ciências sociais em Oliveira Martins”, In: Luís Reis Torgal; José Maria Amado Mendes; Fernando Catroga, História da história em
Portugal. Sécs. XIX-XX, ob. cit., p. 138 e ss. (4) Oliveira Martins, Os Lusiadas. Ensaio sobre Camões e a sua obra, em relação à sociedade portugueza e ao movimento da Renascença, 0b. cit., p. 203.
2m1
as perspectivas de Horácio Ferrari e de Oliveira Martins, é que o futuro autor da Biblioteca das Ciências Sociais interpretava Portugal no quadro da história universal e era em função de um tão lato horizonte que afirmava radicalmente, quer o valor dos descobrimentos, quer a mudez e o atrofiamento de Portugal nos séculos subsequentes. Por outro lado, na base
da divergência dos dois autores repousavam duas visões do mundo distintas, cujos contornos ideo-políticos não tardariam a precisar-se(2).
No final da década de 70, justamente em 1879, Oliveira Martins dá
à estampa a sua História da civilisação ibérica e a sua História de Portugal() e, nestas obras, o problema da compreensão de Portugal não é colocado em moldes diferentes dos anteriores. Pelo contrário, Oliveira
Martins reforça a ideia de que Portugal é uma entidade histórica inobjectivável, a partir dos elementos naturais: a raça e o território. Portugal não constituía “um corpo de população etnogenicamente homogéneo, localizado numaregião naturalmente delimitada”(4), pois “se a unidade da raça primitiva se não vê, menos ainda Portugal obedece na sua formação às ordens da geografia”(º). As investigações científicas continuavam a não permitir a interpretação de Portugal pela “lógica natural” da história, pois não se encontrava demonstrada a singularidade lusitânica: “pouco ou nada sabemos, nem de Iberos em geral, nem de lusitanos em particular(9). Oliveira Martins era particularmente sensível a este problema e, assim,
compreende-se a sua insistência em afirmar a falta de unanimidade e de consenso mínimo entre os estudiosos, quanto às raízes étnicas portuguesas e à sua preservação histórica. “Até hoje todas as sucessivas tentativas para descobrir a nossa raça têm falhado. Latinos, celtas lusitanos e afinal
moçárabes têm passado: ficam os portugueses, cuja raça, se tal nome convém empregar, foi formada por sete séculos de história”(?). Em termos
(1) Horácio Ferrari, “As missões nacionaes”, A Renascença, Porto, (2-3), Fev.-Mar. 1878, p. 30. (2) Amadeu Carvalho Homem, “O republicanismo e o socialismo”. In: História de Portugal. Direcção de José Mattoso. vol. 5 — O liberalismo (1807-1890). ob. cit., pp. 239-251. () Oliveira Martins, Historia da civilisação ibérica, Lisboa, Livraria Bertrand, 1879; História de Portugal, Lisboa, Livraria Bertrand, 1879. 2 vols.. (4) Oliveira Martins, Historia de Portugal. 11º ed., ob. cit., vol. 1, pp. 21-22.
(é) Idem, ibidem, p. 17. ($) Idem, ibidem, p. 4.
(7) Idem, ibidem, p. 9. Sublinhado do Autor.
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
breves, dir-se-ia que, no caso português, a raça não fez a história, mas, inversamente, a história fez a raça.
não um produto artificial da vontade ou da consciência moral dos homens, contra a ordem natural das coisas.
278
Ainda que o autor salvaguardasse que o caso português não era paradigmático da lei geral do processo histórico e, portanto, de certo modo, se colocasse ao abrigo das críticas dos defensores do naturalismo histórico, e, em especial, das críticas de Teófilo Braga e dos seus correli-
gionários(!), o certo é que estes reconheceram o valor do trabalho historiográfico martiniano, mas reprovaram a sua tendência hermenêutica de tipo metafísico. Estavam de acordo quanto ao enunciado segundo o qual a história é “uma lição moral”(2), mas recusavam os ensinamentos que Oliveira Martins extraía da história de Portugal, pois eles não obedeciam aos cânones do positivismo. Atendendo ao nosso escopo, importa sublinhar a radicalidade naturalista da crítica de Augusto Rocha. Para o jovem doutor em Medicina, Portugal não podia ser uma excepção à lógica natural da história: “a história humana é apenas a história natural da espécie humana; e tudo quanto não seja considerar os sistemas de ideias, as instituições, como resultante do embate e concorrência dos homens, naturalmente agremiados na colectividade, será roubar ao método histórico o seu critério mais seguro”(2). Os povos são variedadesbiológicas da espécie humanae, por isso, Portugal, sendo um corpo histórico, é necessariamente umaraçadistinta. Se a história martiniana de Portugal fosse rigorosamente científica, então, Oliveira Martins “veria que
a solução futura e inevitável de uma federação dos povos peninsulares depende justamente destas causas naturais, que, assim como os separaram devem concorrer para aproximá-los mais tarde”(4). Na óptica de Augusto Rocha, Portugal era umaraça que historicamente triunfou no conflito vital
com as raças vizinhas e, de modo algum, se encontrava em vias de
extinção. A sua história nada tinha de tão extraordinário que não pudesse ser explicado pelas leis darwinianas da vida. Era uma obra da natureza e (1) Vide: Teófilo Braga, “Bibliographia. Historia da civilisação iberica por J. P. Oliveira Martins. Lisboa, 1879”, art. cit., pp. 385-392; Idem, “Bibliographia. Historia de Portugal, 2 vol., por Oliveira Martins. Lisboa, 1879”, art. cit., pp. 140-149. Vide, também, Augusto Rocha, “Boletim bibliographico. “A historia da civilisação iberica”, por J. P. Oliveira Martins. Porto, 1879”, O Instituto, Coimbra, 26 (11) Maio 1879, pp. 551-554;
Idem, “Boletim bibliographico. “Historia de Portugal" por J. P. Oliveira Martins, 2 vol., Lisboa, 1879”, O Instituto, Coimbra, 27 (8) Fev. 1880, pp. 399-403. (2) Oliveira Martins, Historia de Portugal, 11º ed., ob. cit., vol. 1, p. VE.
() Augusto Rocha, “Boletim bibliographico. “Historia de Portugal” por 3. P. Oliveira Martins, 2 vol., Lisboa, 1879”, art. cit., p. 399. Sublinhado do Autor.
(4) Idem, ibidem, p. 400.
219
Ora, de facto, Oliveira Martins sustentava que Portugal, não sendo
uma raça distinta e um território autónomo na geografia peninsular, estava condenado a defrontar-se com a sua própria irrealidade, o que ocorreu, justamente, na sequência da sua missão civilizacional. Finda essa gloriosa missão, “Portugal acaba. Os Lusíadas são um epitáfio”(1). A este juízo desencantado, a frente positivista, pela voz de Teixeira Bastos, respondia que “Os Lusíadas são o Evangelho de um povo”(2), a fonte moral do seu rejuvenescimento e não a épica agonia de uma naçãoirreal. Na base da concreção histórica portuguesa residia a sua consistência étnicae, por isso, Portugal não podiater-se esgotado na epopeia dos descobrimentos. A singularidade da raça portuguesa era uma garantia de futuro para Portugal, como concluía Teófilo Braga, ao cabo de quarenta anos de
intensa actividade historiográfica, ideológica, e outras, no seu Plano para a história de Portugal. Neste sentido, escrevia: “Tudo conduz a reconhecer que a este povo ainda compete um alto destino histórico, e que ele o atingirá, compenetrando-se do que vale, e dando objectivo à sua resistência”(2). Todo o corpo nacional emitia sinais positivos de regeneração, o que demonstrava a veracidade da sua teoria étnica. Portugal não era uma obra política, mas uma realidade com substância bio-étnica, apesar da sua história política. Só a força criadora dos seus alicerces naturais permitia explicar “como, através das ambições egoistas e das traições dinásticas dos seus dirigentes, ou também de instituições deprimentes, pôde esta nacionalidade subsistir, equilibrar-se e conservar-se entre os conflitos dos diversos regimes que convulsionaram a Europa”(4). O critério antropoetnológico demonstrava o fundo rácico do separatismo peninsular e, particularmente, “as diferenciações das duas raças — a lusitana e a ibérica, conservando entre elas a eterna divortia, através de todos os cataclismose transformaçõeshistóricas da Espanha”(*). Foi, sobretudo, na era dos descobrimentos que o lusismo revelou toda a sua singularidade, através do “génio marítimo da raça ligúrica”(º) em que assentava,e, então, (!) Oliveira Martins, Historia de Portugal, 11º ed., ob. cit. vol. 1, p. 10. (2) Francisco José Teixeira Bastos, Vibrações do seculo, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1881, p. 158. Sublinhado do Autor. (é) Teófilo Braga, “Plano para a história de Portugal”. In: Fran Paxeco, Portugal
não é iberico, ob.cit., p. 10. (4) Idem, ibidem,p. 7. (*) Idem, ibidem, pp. 6-7. Sublinhado do Autor. (9) Idem, ibidem, p. 8.
280
Parte
Darwin em Portugal
toda a sua capacidade criadora se plasmou na literatura dos quinhentistas com o seu expoente camoniano.
Noseu Plano para a história de Portugal, Teófilo propunha-seler os sete séculos da história pátria, através do critério racial, levando mais longe os resultados dos seus estudos publicados nas décadas de oitenta e de noventa. Sem dúvida, Teófilo visava contrapor à história metafísica-literária de Portugal de Oliveira Martins, a sua história científica de
Portugal e, assim, expor as deficiências daquela obra, cujo sucesso editorial era inegável(!), atendendo ao nível médio de instrucção do público(2). Por isso, Teófilo Braga fazia questão de afirmar que a história de Portugal era irredutível a “um acervo de contrasensos e de traições dos seus homens públicos e governantes(...) — casamentos reais(...); instituições monstruosas(...); extinção das cortes gerais; alianças dinásticas com potências egoistas(...); administração pública desvairada(...)(2). A história de Portugal não era um tratado de criminologia, mas a história de umaraça que soube resistir na sua autenticidade democrática a todos os crimes político-institucionais da realeza. Tratá-la cientificamente significava “seguir a marcha histórica de Portugal por esse filão genético do lusismo”(2), o que, embora exigisse conhecimentos profundos de antropologia e etnologia, não era impossível de consumar. Com efeito, “os grandes antropologistas modernos apontam a raça portuguesa como uma das mais puras da Europa”(º)e, por isso, o argumento martiniano, segundo o qual as investigações antropológicas não eram concludentes quanto à individualidade rácico-étnica de Portugal, era um pretexto para justificar a sua leitura metafísica-dissolvente da realidade nacional. Na verdade, o que nos importa sublinhar, em função da nossa problemática, é que Oliveira Martins nunca se identificou com qualquer metafísica, em particular, e de modo exclusivo, bem como nunca rejeitou
os contributos do naturalismo. Nunca foi positivista, mas isso não o impedia de conhecer os estudos antropológicos e etnológicos, de procurar
— Capítulo 3
281
respostas para os seus problemas historiológicos no biologismo(!), o que nada tem de surpreendente, pois o paradigma biológico difundiu-se por toda a cultura da época e nem mesmo se conjugava preferencialmente com
o comtismo ortodoxo ou heterodoxo. Portanto, a posição martiniana
relativamente à história de Portugal não resultava de qualquer dogma metafísico, mas do facto de não poder abordá-la a partir do conhecimento
científico da singularidade das suas raízes antropológicas. Com efeito, nos próprios termos martinianos: “se há ou não identidade de raça, é exactamente o problema que deveria agitar-se; e, sem isso, negá-lo é proceder dogmática e não cientificamente”(2). Vejamos, então, a que conclusões chegou o autor da História de Portugal. Confrontado com as divergências dos antropólogos e dos etnólogos, relativamente ao fundo rácico peninsular, Oliveira Martins opta por “inferir do actual para o passado”(2), isto é, por abordar o problema de modo inverso; e verifica que “há uma originalidade colectiva no povo ortuguês, em frente dos demais povos da Península”(4), embora ela se
circunscreva a “traços secundários”(*), pois toda a Península forma “um corpo etnológico dotado de caracteres gerais comuns”(*). É nos seguintes termos que Oliveira Martins retrata essa singularidade: “Há no génio português o que quer que é de vago e fugitivo, que contrasta com a terminante afirmativa do castelhano; há no heroísmo lusitano uma nobreza que difere da fúria dos nossos vizinhos; há nas nossas letras e no nosso
pensamento uma nota profunda ou sentimental, irónica ou meiga, que em vão se buscaria na história da civilização castelhana, violenta sem profundidade, apaixonada, mas sem entranhas, capaz de invectivas mas alheia a
toda a ironia, amante sem meiguice, magnânima sem caridade, mais que humana muitas vezes, outras abaixo da craveira do homem, a entestar com as feras. Trágica e ardente sempre, a história espanhola difere da portuguesa que é mais propriamente épica: e as diferenças da história traduzem as dissemelhanças do carácter(7). O que distingue o português do espanhol, na pena martiniana, é esse conjunto de traços interiores,
(1) Vide: In Memoriam — J. P. Oliveira Martins. 30 Abril 1845 — 24 Agosto 1894. s.l.,s. ed., s.d., pp. 11-12. As primeiras quatro edições da História de Portugal sairam em 1879, 1880, 1882 e 1886, respectivamente. (2) Vide: Joel Serrão, “Sondagem cultural à sociedade portuguesá
cerca de 1870”. In: Temas de cultura portuguesa. II, Lisboa, Portugália Editora, 1965,
pp. 47-86. (é) Teófilo Braga, “Plano para a história de Portugal”. In: Fran Paxeco, Portugal não é iberico, ob. cit., p. 9.
(4) Idem, ibidem, p. 9. Sublinhado do Autor. (º) Idem, ibidem,p. 10.
(1) Vide: Oliveira Martins, Historia da civilização ibérica, 10º ed., ob. cit, p. 224; p. 337. (2) Oliveira Martins, Historia de Portugal, 11º ed., ob. cit, vol. 1, p. 2.
() Idem, ibidem, p. 5. (4) Idem, ibidem, p. 5. (5) Idem, ibidem, p. 5. (9) Idem, ibidem, p. 5.
(7) Idem, ibidem, pp. 5-6.
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 3
psico-morais de tipo temperamental, caracteriológico, emocional é intelectivo, herdado dos lusitanos e, em última análise, provenientes da
da sua individualidade histórica. Esse substrato distinto, julgado
elevada dose de sangue celta(!) assimilada por estes. A diferença portuguesa não é física-morfológica, nem craniométrica, o que não quer dizer que não seja racial. Essa diferença vem de dentro, da potência interior, da “capacidade ingénita” da raça, e substancializa a “fisionomia diferencial”"(2) da população portuguesa, relativamente ao castelhano. Ao nível dos factores constitucionalmente naturais, aquele que teve força histórica, e que, portanto, configurou a distinção do “génio português” e da sua história, foi a celticidade(?) lusitânica. Este carácter celta, transmitido de geração em geração, tornou-se hereditariamente dominante, triunfando sobre outros traços rácicos com proveniências diversas que teve de enfrentar, no decorrer dos tempos. Ele fixou-se, assegurando a sobre-
vivência da individualidade portuguesa, ao longo de sete séculos de história.
Nem a ocupação romana, nem a invasão germânica, nem ainda a invasão árabe(4) conseguiram eliminar a celticidade lusitânica que, como vimos, é
um sedimento psíquico-moral e não antropométrico. Embora o português participe do caracter geral comum a todos os povos peninsularese se integre, por natureza, no corpo etnológico ibérico, razão pela qual a história portuguesa se torna superiormente inteligível no enquadramento peninsular, o certo é que a sua individualidade se reflecte
na sua história. E, se, na óptica martiniana, não foi a diferença radical dé
génios que fundou duas nações distintas, apesar de irmãs, também não se compreende que a marcha histórica tenha desencadeado o processo da sua diferenciação, sem haver uma fonte de divergência. Essa fonte existia e era a celticidade lusitânica que, todavia, não é concebida dogmaticamente mas “como hipótese”(º), que o desenvolvimento das investigações antropo-etnológicas tanto podia confirmar como infirmar. Sem negar que Portugal seja uma obra política, resultante da necessidade de equilíbrio europeu, pois “a Europa é de facto uma anfictionia”(9), o certo é que Oliveira Martins coloca umadiferença rácica na base
(1) Vide: Idem, ibidem, p. 6. (2) Idem, ibidem, p. 7.
() Sobre o ceitismo enquanto variante do arianismo,vide: Juan Comas, Les mythes raciaux, Paris, Unesco, 1951, pp. 43-45. (*) Oliveira Martins, Historia da civilização ibérica, 10º ed., ob. cit., pp. 145: -152. (*) Oliveira Martins, Historia de Portugal, 11º ed., ob. cit., vol. 1, p. 6.
(5) Idem, ibidem, p. 8.
283
à distância de cerca de três milénios, grosso modo, revelava-se como
aquelas “raízes profundas que nenhuma charrua destrói apesar de revolta a leiva pelo ferro das conquistas”(1); e, “embora se lancem novas sementes
à terra e nasçam vegetações novas, essas raízes profundas tornam a
reverdecer, crescem, dominam um chão que é seu e afinal convertem ou esmagam, transformam ou exterminam, de um modo obscuro, lento, mas
invencível, as plantas intrusas”(2). Julgamos não praticar uma violência hermenêutica, lendo nesta metáfora botânica a actividade contínua do celtismo luso pela conservação da sua autenticidade no decurso da luta
pela existência que teve de travar com elementos invasores e pode-
rosos, particularmente, o romano, o germânico e o semita. Já na década de oitenta e após a publicação de Elementos de anthropologia (Historia natural do homem), Oliveira Martins explicita noutra obra que as raízes célticas revelaram-se, sobretudo, “nas nossas aventuras marítimas, nas
nossas lendas messiânicas, no lirismo da nossa poesia, na inconsistência e passividade que no nosso carácter se alterna com os acessos de fúria africana ou de misticismo semita: nós, finalmente, a quem os castelhanos chamam os franceses da Península”() — somos representantes do génio
celta(*).
De certo modo, a epopeia dos descobrimentos recebe umaexplicação naturalista pelasraízes celtas de Portugal mas, a verdade é que o autor não retira a esse período alto da história portuguesa o carácter meta-natural e metafísico que sempre lheatribuiu. Oliveira Martins sempre encontrou na gesta universal do heroismo espontâneo dos portugueses algo que a linguagem naturalista não podia dizer e que se oferecia como uma subversão da lógica natural da história. Além disto, o modo de presença do acaso,
neste período, tornava-se tão significativo que podia ser tomado como algo ao serviço de uma causalidade teleológica. Por fim,a coincidência da morte da pátria com a morte de Camões e, ao mesmo tempo,a eternização universal de Portugal através de Os Lusíadas, eram realidades tão plenas de sentido e tão paradoxais, tão cheias de inquietude e de mistério que (!) Idem, ibidem, p. 4.
(2) Idem, ibidem, pp. 4-5.
(3) Oliveira Martins, As raças humanas e a civilização primitiva. 5º ed., ob. cit.,
vol. 1, p. 272. Vide também, Idem, ibidem, p. 299.
(4) A hipótese do ligurismo de F. Martins Sarmento é discutida e refutada por Oliveira Martins in As raças humanas e a civilização primitiva, 5º ed., ob. cit., vol. 1,
pp. 279-282.
st
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284
Darwin em Portugal
nenhum código científico podia objectivá-las sem empobrecê-las, esvaindo a sua densidade meta-natural. Por outro lado, Oliveira Martins nunca deixa de pensar Portugal enquanto parte integrante do corpo étnico peninsular, como se o celtismo luso fosse uma divergência tão ténue e frágil que não podia sustentar com firmeza a autonomia nacional. Assim, em 1893, na sua “Introdução à “História de Portugal" de Stephens”(1), é, de novo, o drama português, resultante da ausência de alicerces étnicos diferenciados, que inspira a Oliveira Martinsa ideia segundo a qual, de todas as possibilidades de devir para Portugal, a mais vantajosa, ou a menos prejudicial, é aquela que vai ao encontro da unidade geográfica e étnica da península. É nestes termos que Oliveira Martins se exprime: “é preferível a política (...) de adesão à Espanha no pensamento comum da civilização peninsular, e da aliança estreita, para figurarmos perante o mundo de pé, ambos, e abraçados. A Espanha arranca do flanco o espinho português; Portugal agradece amavelmente o protectorado inglês, que hoje mira à África”(2). Uma nação que não corresponde a uma raça, como Portugal, e que não tem melhores razões, para sustentar a sua individualidade, do que o frágil argumento histórico, está condenada a ser presa de nações verdadeiras é, por natureza, mais aptas na luta expansionista e colonizadora, como era:o caso da Inglaterra. Portugal nunca tinha retirado vantagens da aliança inglesa, nem podia retirar pois “todas as nações conquistadoras procede ram sempre, como a Inglaterra procedeu connosco: protegendo, para destruir”(3). É possível que Portugal continue a ser obra dos interesses políticos diversos das nações europeias em conservar a península ibérica artificialmente dividida em duas nações, uma verdadeira (a Espanha) e outra falsa (Portugal). Falsa porque não corresponde a um fundo rácico e territorial autónomoe nitidamente diferenciado, relativamente ao resto da península. Mas, tendo Portugal, pela “lógica natural” da história, uma
necessidade constitucional de pertencer ao seu corpo natural, talvez a união política de ambas, correspondente à sua unidade rácica e geográfica, acabe por se impor. Assim sendo, parece-nos claro que Portugal, não sendo paradigmático da historiologia martiniana, é, também, em parte, problematizado no quadro do naturalismo histórico.
CAPÍTULO 4 O uso prudente do “software darwínico” por Ramalho Ortigão 1. A darwinização da queda histórica da raça portuguesa, de meados do século XVI em diante Foi Ramalho Ortigão, o inconfundível “plumitante”(!), que, numa farpa datada de 1879, sob o título “A decadência da raça pelos vícios da educação”(2), apresentou e defendeu a ideia, segundo a qual, textualmente, “a história da nossa decadência oferece a mais perfeita confirmação das leis de Darwin"(2). Embora Ramalho Ortigão tenha sido um autorizado defensor da relação directa entre a educação jesuítica e o estado decadente da raça, a sua originalidade não reside propriamente nesse enunciado, que se transformou num poderoso cavalo de batalha da “militância laica”(*), nem no argumento da decadência(”). Mas, a objectivação do tema, de (1) Vide: Ricardo Jorge, Ramalho Ortigão, Lisboa, s. ed., 1915, p. 31. Vide: Amadeu Carvalho Homem, “Ramalho Ortigão”. In: História de Portugal (Dir. João Medina), vol. 9, Lisboa, Ediclube, 1993, pp. 137-140. Do mesmo autor, Amadeu Carvalho Homem, aguardamos a publicação de um estudo maior sobre Ramalho Ortigão. (2) Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio, 1879”. In: As Farpas. O país e a sociedade portuguesa, Edição integral, vol. 8, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1970, pp. 211-224.
(2) Idem, ibidem, p. 216. Sublinhado nosso. (4) Sobre a “militância laica” no domínio da pedagogia e do ensino visando a regeneração emancipadora do povo português, vide Fernando Catroga, A militância laica e a descristianização da morte em Portugal 1865-1911, vol. 1, ob. cit., sobretudo
pp. 205-219.
(5) Vide: Fernando Catroga, “Alexandre Herculano e o historicismo romântico”;
“Positivistas e republicanos”; “História e ciências sociais em Oliveira Martins”, In: Luís
(2) Oliveira Martins, Política e história, ob. cit, vol. 2, p. 333ess. (2) Idem,ibidem, p. 334. Sublinhado do Autor.
(3) Idem, ibidem,p. 333-334.
Reis Torgal; José Maria Amado Mendes; Fernando Catroga, História da história em Portugal. Sécs. XIX-XX, s.1., Círculo de Leitores, 1996, sobretudo pp. 80-85; pp. 89-90; p. 140 e ss.; Carlos Coelho Maurício, “Oliveira Martins historiador ou o problema da dupla
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 4
acordo com a lógica darwinista, é sobremaneira singular. Na verdade, o autor soubeutilizar as leis darwinistas e, ao mesmo tempo, valer-se da sua
causas do abastardamento que nos precipitou de decadência em decadên-
286
capacidade crítica para evitar a queda no culto da infalibilidade da ciência.
Este ensaio de Ramalho Ortigão é extremamente valioso, a vários títulos, mas limitamo-nos a apreciá-lo no que respeita ao seu sentido darwinista. O desenvolvimento da ideia-chave do autor, a saber, a relação entre
decadência e leis de Darwin, coloca o problema no terreno da evolução regressiva(!), tal como o naturalista inglês a definiu. Não admira que assim seja, tendo em conta a bagagem intelectual de Ramalho Ortigão e o seu constante labor de actualização científica e literária(2). Neste sentido, o nosso autor aborda o problema da “decadência” da raça portuguesa, segundo três vectores: “o meio, a hereditariedade e a selecção”(). A análise de cada um destes tópicos manifesta uma densidade irónica ímpar, o que também não surpreende. Quanto ao meio, o autor, circunscrevendo-o à sua vertente geofísica, constata a sua estabilidade no decurso da
história portuguesa. Outrora, em condições mesológicas idênticas, a raça portuguesa foi “forte” e “inteligente”(*); por isso, o factor meio não justificava a sua queda. Excluído este, o autor indaga o problema aosrestantes dois níveis: “é à hereditariedade e à selecção que devemos perguntar pelas vida de Portugal”, Ler História, Lisboa, 30, 1996, sobretudo pp. 52-61, Joel Serrão, “Esta palavra decadência”, Temas de cultura portuguesa. II, Lisboa, Portugália Editora, 1965, pp. 27-46; António Manuel Bettencourt Machado Pires, A ideia de decadência na geração de 70, Ponta Delgada, Instituto Universitário dos Açores, 1980. (1) Vide: Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or. the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions and corrections, ob. cit., p. 106 e ss. Vide também Jean Demoor; Jean Massart; Émile Vandervelde, L'évolution régressive en biologie et en sociologie, Paris, Félix Alcan, Éditeur, 1897, p. 241 e ss.; Th. Ribot, L'hérédité psychologique. Deuxiême édition. Paris;
287
cia durante os três últimos séculos, e nos reduziu à imobilidade em que nos
encontramos hoje”(!). Na raiz desta evolução regressiva encontrava-se a falta de uso de órgãos fundamentais, como o cérebro, o que se traduzia no seu progressivo atrofiamento de geração em geração e, correlativamente, na tendência hereditária para a dominância de caracteres psico-mentais inferiores. Para firmar a veracidade desta objectivação científica do problema, o autor recorria à exposição darwiniana sobre os coleópteros, justamente, o exemplo mais típico de evolução regressiva (2). Textualmente: “Darwin observou que na ilha da Madeira há uns coleópteros quase desprovidos de asas, ao passo que outros têm asas extremamente vigorosas. Estes dois fenómenos procedem da mesma causa — o vento do mar. Diante dessa força da natureza os insectos divergem de resolução. Uns acobardam-se, desistem de combater e escondem-se ao abrigo das plantas até que o vento cesse. Outros arriscam-se a serem arrebatados pelo vento, debatem-se, resistem, lutam. Estes últimos produziram uma raça de voadores atléticos e vitoriosos; os outros produziram gerações de coleópteros sedentários, moles, desasados. O que se dá com os insectos da
ilha da Madeira perante o vento do mar dá-se com os povos na luta pela vida no meio do conflito das contrariedades sociais. Os que cedem desasam-se. Foi o que nos sucedeu”(2). A transposição é directa. Tal como Darwin, o nosso ensaista apoia-se no princípio do uso e do não-uso das faculdades físicas e mentais, no quadro do mecanismo da selecção natural, ou seja, justamente, numa das leis da variação introduzidas pelo
naturalista inglês desde 1859(4). Recorde-se que esta lei recupera o princípio de Lamarck, segundo o qual, “le défaut d'emploi d'un organe, devenu constant par les habitudes qu'on a prises, appauvrit graduellement cet organeet finit par le faire disparaítre et même V'anéantir"(). De acordo
Librairie Germer Bailliêre, et Cie, 1882, p. 172 e ss.
(2) Vide: Ricardo Jorge, Ramalho Ortigão, ob. cit., sobretudo pp. 25-49. Já em
1878, Ramalho Ortigão, ao analisar o movimento intelectual coimbrão, valoriza em especial a publicação periódica O Seculo e nela realça os trabalhos de Correia Barata sobre a renovação mental operada pelo transformismo darwiniano e o seu confronto com as resistências da cultura teológica. Vide: Ramalho Ortigão, “As correntes litterarias”, Revista Academica, Porto, 1 (1) 15 Jun. 1878, pp. 3-5. Recorde-se também que Ramalho Ortigão aprovou a reconstrução darwinista da sociologia feita por Teófilo Braga. Vide: António Ferrão, Teófilo Braga e o positivismo em Portugal (Com um núcleo de corres» pondência de Júlio de Matos para Teófilo Braga), Lisboa, Separata do “Boletim de Segunda Classe da Academia das Ciências de Lisboa”, 1935, p. 18. (3) Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio, 1879”. In: ob. cit., p. 214. Sublinhado do Autor. (4) Idem, ibidem,p. 214.
(1) Idem, ibidem, pp. 214-215. Sublinhado do Autor.
(2) Vide o parágrafo intitulado “Effects of the increased Use and Disuse of Parts, as controlled by Natural Selection” na obra de Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions and corrections, ob. cit., pp. 108-112.
() Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio, 1879”. In: ob. cit., pp. 215-216. (4) Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. (A reprint of the first editon). With a foreword by Dr. €. D. Darlington, ob. cit., pp. 116-121. (5) Jean Baptiste Lamarck, Philosophie zoologique ou exposition des considérations relatives à !histoire naturelle des animaux. (...). Nouvelle édition revue et précédée
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 4
com esta lógica evolucionária, para Ramalho, o definhamento da raça
mente mais dotados(!), como sendo responsáveis pela decadência da
o meio volta a estar em causa, mas agora na sua acepção social, em sen-
Ramalho não invoca esta passagem da obra darwiniana para firmar a relação de causalidade entre a Inquisição e a decadência portuguesa. Mas
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portuguesa, pelo não uso das faculdades físicas, morais e intelectuais, tem de ser compreendido como um processo de adaptação à série de factores históricos que perturbaram a sua estabilidade. Quer isto dizer que,
Espanha. O abaixamento das faculdades interrogativas da raça afectava o
tido lato. Por outro lado, o mecanismo desta evolução regressiva consiste na transmissão hereditária de caracteres mentais inferiores, adquiridos e desenvolvidos pelo hábito, e na progressiva eliminação das qualidades nobres. Sendo estas desnecessárias, a selecção natural tende a eliminá-las. O mesmo se passa com a cegueira de alguns animais que têm hábitos subterrâneos. Não ver é para eles uma vantagem(!) e, por isso, a selecção natural completa a obra começada pelo não uso dos órgãos da vista, que os seus remotos ascendentes tinham adquirido pelas mesmas vias naturais. Os olhos vão diminuindo de volume e são progressivamente cobertos pelas pálpebras, atrofiam-se e chegam a desaparecer. Sendo esta variação útil, a selecção natural conserva-a por transmissão hereditária à descendência. São as condições do meio que tornam um órgão inútil e prejudicial ou, pelo contrário, útil e vantajoso. Assim, Ramalho Ortigão considera que diversos factores históricos foram decisivos para que se operasse o processo selectivo de atributos mentais e morais inferiores na raça portuguesa. Em particular, o modo de exercício do poder inquisitorial abriu o caminho da selecção de defeitos € da eliminação de qualidades morais: “a inquisição, fazendo da delação uma virtude cristã e da hipocrisia uma necessidade social, obriga os indivíduos pelo instinto de conservação a dissimular, a atraiçoar, a mentir. Os caracteres desenvolvem-se a pouco e pouco no sentido dos defeitos em que se exercem. O terror transmitido de geração em geração cria a deformidade moral a que podemos chamar uma pusilanimidade orgánica”(2). É significativo notar que Darwin consideravaas práticas inquisitoriais, especialmente a eliminação física dos homens moral e intelectual-
isso não afecta a clareza dos fundamentos da sua tese, segundo a qual, a
d'une introduction biographique par Charles Martins, ob. cit., p. 240. Sublinhado do Autor. (1) “As frequent inflammation of the eyes must be injurious to any animal, andas eyes are certainly not necessary to animals having subterranean habits, a reduction in their size, with the adhesion of the eyelids and growth fur over them, might in such case be an advantage; and if so, natural selection would aid the effects of disuse”, Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions and corrections, ob. cit., p. 110. (2) Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio, 1879”. In: ob. cit., p. 216.
seu senso moral e repercutia-se em toda a vida social. Curiosamente,
selecção duma moralidade inferior é observável em todas as práticas sociais, designadamente, na economia, na política e na educação. Logicamente, Ramalho conclui que, “em Portugal a luta pela vida destrói a altivez moral e dá a sobrevivência à ignorância bajuladora e servil”"(2), o
que não requer o uso das faculdades racionais superiores.
Terá o militarismo contribuído para esta evolução regressiva? A resposta do autor é negativa. No entanto, Ramalho aceita a ideia darwiniana de que a selecção militar conduz para os campos de batalha os indivíduos mais aptos na luta pela vida e, assim, limita substancialmente as suas probabilidades de deixar descendência; ao mesmo tempo, o serviço militar e a guerra favorecem a reprodução dos homens inferiores, como observou Darwin: “the shorter and feebler men, with poor constitutions,
are left at home, and consequently have a much better chance of marrying and propagating their kind”(). Com efeito, Ramalho Ortigão também considera que a selecção militar é uma selecção artificial negativa, na medida em que a guerra elimina uma fracção considerável dos organismos superiores seleccionados para o combate, além de dificultar a sua reprodução. Mas, objecta o nosso autor, se essa selecção bastasse, só porsi, para explicar a decadência portuguesa(”), então, as raças francesa, inglesa e alemã deviam acusar um elevado índice de enfraquecimento e, em seu entender, isso não se verificava, apesar das guerras travadas. Com efeito,
(') Conforme se lê no texto darwiniano: “the Holy Inguisition selected with extreme care the freest and boldest men in order to bum or imprison them. In Spain alone some of the best men — those who doubted and questioned, and without doubting there can be no progress — were eliminated during three centuries at the rate of a thousand a year. The evil which the Catolic Church hasthuseffected is incalculable”, Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 141. (2) Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio,
1879”. In: ob.cit., p. 220.
(3) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 134. (4) Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio, 1879”. In: ob. cit., p. 212.
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Darwin em Portugal
Ramalho Ortigão relativiza os efeitos decadentistas da selecção militar e acentua o poder das selecções religiosa, económica e político-pedagógica. Todas estas formas de selecção social são, no caso português, consideradas
artificiais e negativas, tendo sido a sua persistência histórica multissecular
que determinou a evolução regressiva da raça portuguesa.
Ramalho não exclui, do curso deveniente da história, a possibilidade
de recuperação da nobreza do português, dominante nos tempos préinquisitoriais e pré-jesuíticos. As suas expectativas positivas quanto à eliminação dos caracteres inferiores e dominância dos caracteres superio-
res, tanto físicos como mentais e morais, fundam-se, sobretudo, no poder
do instinto de imitação, que funciona como instância reprodutora do exemplo. Portanto, o passo decisivo neste processo corresponderia à emergência de bons exemplos(!). Com efeito, Darwin postulava que o instinto de imitação(2) pode assegurar o progresso do nível médio da moralidade social, sendo coadjuvado pela instrução e pelo exercício das
faculdades mais elevadas do ser humano. Importa acrescentar que, na
exposição darwiniana, os processos de aprendizagem mobilizam faculdades de valor diferenciado que são hierarquizadas do nível inferior para o nível superior, segundo esta ordem: imitação, atenção, memória, imaginação e, no topo, a razão(?). A imitação é uma faculdade elementar é primitiva e, por isso, Darwin escreve: “the principe of Imitation is strong in man, and especially, as I have myself observed, with savages”(*). Para o nosso ensaista, fazia todo o sentido apelar para o instinto de
imitação, uma vez que as faculdades superiores da raça portuguesa se encontravam atrofiadas. O instinto de imitação era aquele “agente fisiológico”(º) da aprendizagem que se tinha conservado intacto, dada a sua primitividade(º). Era até bem possível que, no decurso da evolução regres(1) O nosso autor antecipa o postulado-chaveda psicologia social de Gabriel Tarde, de inspiração darwinista, segundo o qual o homem civilizado é um imitador; daí decorre o valor evolucionário dos exemplos individuais superiores. A obra mais conhecida de Gabriel Tarde, Les lois de Pimitation, étude psychologigue, Paris, Alcan, é publicada em 1890. Vide: Antonello La Vergata, artigo “Tarde, Jean-Gabriel 1843-1904”. In; Dictionnaire du darwinisme et de ["évolution, vol. 3, ob. cit., pp. 4200-4202. (2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., pp. 129-133.
(2) Vide: Idem, ibidem, pp. 65-96.
(4) Idem, ibidem, p. 72. Sublinhado do Autor. (é) Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio,
1879”. In: ob. cit., p. 220.
(6) Essa primitividade ascende ao mimetismo animal (por exemplo, a homocromia protectora), tema que será bem abordado, posteriormente, por Carlos Carvalho Braga,
Parte If — Capítulo 4
291
siva, ele se tenha desenvolvido, em virtude do uso determinado pela sua
utilidade. Se o português comum não podia usar a imaginaçãoe a razão(!), ao menos conservava uma espécie de bom senso mimético. Daí que, para Ramalho, o exemplo de personalidades superiores fosse muito importante para encetar o processo de afirmação biológica de caracteres mais enérgicos na raça portuguesa. O cultivo exemplar da inteligência e de todas as faculdades superiores do homem,incluindo, “a tenacidade no trabalho, a firmeza no dever, o respeito da verdade, a inteireza do carácter, a honra,
o desinteresse, a coragem”(2), seria o modelo oferecido ao instinto de imitação do vulgo. Mas como era possível esperar que este modelo superior fosse assumido biologicamente pela raça,através do instinto de imitação? Como é que uma raça, cujas “asas” (a imaginação e a razão) tinham adquirido o estatuto de inutilidade orgânica, podia fazer suas as ideias, os sentimentos
e os comportamentos superiores? Tal não era possível, Ramalho Ortigão tinha consciência dos limites da eficácia do bom exemplo. Ao secundar o continuismo evolucionário da matriz darwiniana, o autor aceitava implicitamente a ideia de luta e, portanto, reconhecia que a elevação do nível mental e moral da raça portuguesa passava pela certeza do conflito entre a evolução progressiva e a evolução regressiva. Sem essa luta, que punha em causa a ordem social vigente e os elementares recursos adaptativos das maiorias desqualificadas, a selecção natural não poderia fixar os novos caracteres psicológicos. As “farpas” faziam parte dessa luta e constituíam uma arma poderosa que feria “intus et in cute”(2), mas nem elas nem os exemplos vivos podiam garantir o triunfo da moral superior. A exposição de Ramalho é percorrida por um sentido irónico assaz peculiar. Sendo certo que o autor apreendeu os termos em que se processa “Estudo sobre o mimetismo”, O Instituto, Coimbra, 50 (10) Out. 1903, pp. 622-630; 50
(11) Nov. 1903, pp. 688-695; 50 (12) Dez. 1903, pp. 742-749; 51 (1) Jan. 1904, pp. 17-22; 51 (2) Fev. 1904, pp. 101-106.
(1) Não está em causa a inteligência linguística da raça, cujo labor seria provado por F, Arruda Furtado, “Notas psychologicas e ethnologicas sobre o povo portuguez”, Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, Lisboa, 11 (42) Jun. 1886, pp. 49-64; As aptidões mitológicas da raça também estão fora de questão, como começava a ser demonstrado, entre outros, por José Leite de Vasconcelos, nomeadamente,
em “Mythologia portugueza. Tradições populares”, O Pantheon, Porto, 1, 1880-1881,
pp. 13-16, 131-136.
(2) Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio, 1879”. In: ob. cit., p. 219. (3) Vide Ricardo Jorge, Ramalho Ortigão, ob. cit., p. 38.
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Darwin em Portugal
a economia da natureza no modelo darwiniano,então ele sabia que a apren-
dizagem imitativa não era condição suficiente para inverter o sentido do evolver orgânico da raça portuguesa. A activação orgânica das faculdades superiores tinha de ser uma resposta adaptativa a novas exigências do meio porque, se o não fosse, podia causar problemas de sobrevivência. A raça
portuguesa tinha atingido um estado orgânico semelhante aos insectos
“desasados”, mas sobrevivia. E o preço da sua sobrevivência era precisamente o não uso das suas faculdades mais nobres. Ramalho Ortigão sabia que a solução “desasada” duns coleópteros era tão bem sucedida como a via do fortalecimento das asas, seguida por outros coleópteros. Darwin tinha sublinhado que, para os primeiros, era preferível não saber voar do que voar um pouco, pois, na impossibilidade de voar muito bem, qualquertentativa de o fazer corresponderia a um risco suicida. Como no caso de um naufrá-
gio, aqueles que não sabem nadar muito bem podem salvar-se, agarrando-
-se ao navio naufragado, mas estarão condenados se ousarem nadar(!) até à costa. Por isso, os que não sabem, de modo algum, nadar, e não têm alternativa, a não ser segurarem-se ao navio, estão em vantagem sobre aqueles que nadam um pouco. A economia da natureza que esta metáfora ilustra, dificilmente se altera, a não ser que a pressão selectiva do meio torne vital-
mente imperioso saber nadar, voar ou usar as faculdades superiores.
É, para nós, muito claro que, neste ensaio, Ramalho não usa o termo
“decadência” em sentido patológico, mas enquanto evolução regressiva, de acordo com a lógica darwiniana. Aí reside a sua originalidade teórica, sendo esta que sustenta o livre exercício do seu espírito de ironia. À raça portuguesa não padece de uma doença provocada por circunstâncias histórico-mesológicas morbígenas. O modo ortiganiano de encarar à decadência demarca-se nitidamente da leitura patologizante feita, sobretudo, pela elite médica(2). Para Ramalho Ortigão, a raça portuguesa, sim(1) Naconclusão de Darwin: “As with mariners shipwrecked near a coast, it would
have been better for the good swimmers if they had been able to swim still further, whereas it would have been better for the bad swimmers if they had not been able to swim at all and had stuck to the wreck”, The origin of species by means of natural selection; or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, with additions-and
corrections, ob. cit., pp. 109-110.
(2) Vide, por exemplo, Miguel Bombarda, “Elementos para um estudo da psychologia social portugueza”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, 10 (15) Abr. 1891, pp. 113-115; Idem, “O genio portuguez (Excerpto de um trabalho inedito)”, Revista Amarella, Lisboa, 1 (6) Fev. 1904, p. 122. Mas, também Adolfo Coelho, acentuou a morbidez da decadência, especialmente em Proposta relativa a um inquérito do estado physico, morale intellectual do povo portuguez, Lisboa, Sociedade de Geographia de Lisboa — Secção
Parte II — Capítulo 4
293
“plesmente, perdeu as asas. Compreende-se, então, que no seu ensaio não "haja lugar para uma prognose pessimista ou optimista. A adaptação da raça portuguesa ao meio era um facto e, embora tanto o meio comoa adaptação fossem medíocres, não constituiam qualquer risco de extinção física e histórica da raça. Os insectos desasados do texto de Darwin também evoluiram em termos regressivos, mas o importante é que se adaptaram ao meio e sobreviveram. Na verdade, Ramalho não imprimiu à decadência
portuguesa um tom dramático, não a equacionou em termos de vida ou morte da raça. Isto não quer dizer que o ensaista se conforme com a
solução “desasada”, pois sabe que ela não é civilizacionalmente benéfica,
nem pode garantir a sobrevivência física e histórica da raça portuguesa, no contexto da concorrência internacional. O fundamental a reter é que o sentido darwiniano da sua abordagem é mantido com firmeza, sem que, por isso, o nosso autor tenha pretensões de cientificidade. Pelo contrário, a sua ironia atinge também o fundamento naturalista da sua exposição. Em nosso entender, o autor aponta uma farpa à teoria darwiniana ao atribuir à “decadência da raça portuguesa” o estatuto de prova da lógica darwiniana da vida. É que, embora Ramalho defenda que a evolução regressiva é, como no texto de Darwin, uma evolução por selecção natural, ele faz notar que, a selecção da moralidade inferior foi provocada artificialmente “pelos vícios da educação”. Quer isto dizer que, o autor joga com os termos naturale artificial e, indirectamente, levanta o problema da relação entre a selecção social e a selecção natural. Implicitamente, deixa em aberto a seguinte questão: no domínio antropo-histórico, a selecção natural terá força bastante para se sobrepor à selecção social-artificial(!), como defendia Darwin? Por outro lado, a prosa de Ramalho Ortigão crava uma farpa vigorosa no optimismo pedagogista, avant la lettre, se tomarmos como barómetro, a publicação, entre nós, do “catecismo spenceriano”, Education:intellectual, moral and physical(?), o qual advogava a formação integral do indivíduo de-Sciencias Ethnicas, Typographia Portugueza, 1890; Idem, Esboço de um programma para o estudo anthropologico, pathologica e demographico do povo portuguez, Lisboa, Sociedade de Geographia de Lisboa — Secção de Sciencias Ethnicas, Typographia do Commercio de Portugal, 1890. (1) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., pp. 127-145. (2) Vide: Herbert Spencer, Education: intellectual, moral and physical. London, Williams and Norgate, s. d.. No prefácio datado de 1861, Spencer esclarece (p. V) que a
Obra reproduz um conjunto de quatro artigos publicados na Westminster Review, no final
da década de cinquenta.
294
Darwin em Portugal
Parte HH — Capítulo 4
em moldes científicos, no horizonte do materialismo evolucionista. Este barómetro não é arbitrário. No contexto do seu êxito internacional, o ensaio
físico da sociedade portuguesa”(1). Ora, não é à educação científica que Ramalho lança uma farpa, mas à ideia que vê nela o mecanismo chave da evolução progressiva. Na verdade, o seu ensaio revela uma profunda consciência sociológica que o conduz a afirmar que o decadentismo português não tinha como causa exclusiva a educação. Logicamente, do mesmo modo, a educação, só porsi, não podia mudar o estado da raça. Que força teriam os exemplos superiores a imitar, e mesmo a educação física, moral
spenceriano é vertido para português, nos anos oitenta(!), e chega a ser encarado como tábua de salvação da raça portuguesa(?). Basta dizer que, para Augusto Rocha, a aplicação das normas educativas spencerianas podia regenerar a raça “em menos de meio século”(?), desde que os directores dessa regeneração fossem médicos(?), pois ela exigia o conhecimento particular das leis fisiológicas e higiénicas e dasleis biológicas, psicológicas € sociológicas, em geral. Também Ricardo Jorge se pronunciava no mesmo sentido: as doutrinas educativas spencerianas “bem compreendidas e executadas seriam a melhor cura do definhamento intelectual e até moral €
() Em 1882 é traduzido o primeiro capítulo do ensaio spenceriano. Vide: Herbert Spencer, “Qual é o saber mais util” Sciencia para Todos, Lisboa, 1 (4) 28 Jan. 1882, p. 25; 1 (6) 11 de Fev. 1882, p. 57; 1 (9) 4 Mar. 1882, pp. 65-66; 1 (10) 11 Mar. 1882,
p. 73;1 (11) 25 Mar. 1882, p. 81; 1 (30) 5 Ago. 1882, p. 233; 1 (41) 21 Out. 1882, p. 321.
Em 1884 é estampadaa primeira versão integral: Herbert Spencer, Educação intellectual, moral e physica. Versão da ultima edição ingleza por Emygdio d'Oliveira. Com prefacio de Ricardo d' Almeida Jorge. Porto, Livraria Moderna de Alcino Aranha & C?. Editores, s. d. [1884 7]. Em 1886, Carrilho Videira traduz e prefacia a edição popular francesa de 1884, sob o título, Da educação intellectual, moral e physica. Versão portuguesa. Nova Edição. Prefácio de Carrilho Videira. Lisboa, Empreza Litteraria Fluminense, [1886].
O prefácio de Carrilho Videira (pp. 5-10) data de 18 de Dezembro de 1886. Esta tradução
conheceu pelo menos mais duas edições. Apenas mudou o título: Herbert Spencer, Da educação moral, intellectual e physica, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1887; Idem, Da educação moral, intellectual e physica. Nova edição. Lisboa, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 1903.
(2) Salvaguarde-se a posição de Bernardino Machado que se menteve crítico em
relação ao catecismo spenceriano, pois via claramente a articulação entre o modelo educativo spenceriano e o darwinismo social individualista-seleccionista, com o qual não se identificava. Vide: Bernardino Machado, A Universidade de Coimbra, Coimbra, Typographia F. França Amado, 1905, sobretudo pp. 173-229. Igualmente crítico pelas mesmas razões, foi Manuel de Oliveira Ramos, “A educação moderna. Summario de questões”, Revista de Portugal, Porto, 2, 1889, pp. 739-768. () Augusto Rocha, “[Recensão crítica de:] Herbert Spencer, Educação intellectual, moral e physica. Versão da ultima edição ingleza, por Emygdio d'Oliveira, com um pre: facio de Ricardo de Almeida Jorge, s. 1., s. ed., 1884”, Coimbra Medica, Coimbra, 4 (7)
Abr. 1884, p. 108.
(4) Augusto Rocha acrescentava: “somos nós [médicos] quem melhor pode compreender um autor, cuja filosofia promana em linha recta do evolucionismo, e que prossegue nos domínios da psicologia e da sociologia a fecunda transformação que a obra de Darwin operou em ciências naturais”, ibidem, p. 108. Vide, também, Manuel Laranjeira, “A “Cartilha maternal” e a fisiologia” (1909). In: Obras de Manuel Laranjeira; vol. 2, ob. cit., pp. 139-204.
295
e intelectual em moldescientíficos, se as condições económicase políticas
se conservassem nos moldes vigentes? A elevação da raça, pela selecção pedagógica das qualidades mais nobres, podia ou não podia ser uma fonte de inadaptação, já que não correspondia às exigências da mediocridade do meio social globalmente considerado? Este repto lançado às ilusões da educação científica não traduz algum pessimismo do autor. E que, Ramalho também entendia a educação enquanto parte integrante do meio e, nessa medida, advogava o seu poder modelador dos caracteres. O nosso autor não duvida que os valores veiculados pela educação e pelo exemplo se imprimem no organismoe se transmitem hereditariamente, de acordo com o instrutivismo lamarckiano, recuperado por Darwin(2). No entanto, a elevação de uma raça definhada exigia o concurso de outros estímulos mesológicos que apontassem na mesma direcção, em particular, incentivos político-económicos. Neste sentido, Ramalho Ortigão invoca a autoridade do economista e politólogo inglês, Walter Bagehot(?), autor de uma leitura evolucionária das sociedades, de inspiração spenceriana-darwiniana e valorativa dos princípios de Lamarck.
(1) Ricardo Jorge, “Prefacio”. In: Herbert Spencer, Educação intellectual, moral e physica. Versão da ultima edição ingleza por Emygdio d'Oliveira. Porto, Livraria Moderna de Alcino Aranha & Cº. — Editores, 1884, p. XVI.
(2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 143. Há mesmo estudiosos que consideram Darwin o primeiro representante do neo-lamarckismo. Vide: André Langaney, “Fugue à deux voix pour une théorie”, Les cahiers de science & vie, Paris, 6, 1991, p. 11; Jacques Ruffié, De la biologie a la culture, vol. 1, ob. cit., pp. 48-49. (3) Vide: Ramalho Ortigão, “A decadência da raça pelos vícios da educação. Maio, 1879”. In: ob. cit., p. 212; W. Bagehot, Lois scientifiques du développement des nations dans leurs rapports avec les principes de la sélection naturelle et de V'hérédite, Paris, Librairie Germer Bailliêre, 1873; Patrick Tort, artigo “Evolution des peuples”. In:
Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit. pp. 1529-1536; J. van der Dennen, “Origin and evolution of “primitive' warfare”. In: J. van der Dennen; V. Falger, Sociobiology and conflict. Evolutionary perspectives on competition, cooperation, violence and warfare, London e outras, Chapman and Hall, 1990, p. 153 e ss.
Darwin em Portugal
Parte Il — Capítulo 4
As “farpas” que Ramalho lança neste ensaio são metódicas, um pouco à maneira da dúvida cartesiana. Elas exercem um efeito desdogmatizador, mas não veiculam algum cepticismo relativamente ao código darwinista de leitura do real antropo-histórico. Por isso, julgamos poder concluir que o nosso autor não põe em causa a eficácia evolucionária da
tamentos de Ramalho sobre a referida obra, importa ter presente, ainda que em linhas muito sumárias, o perfil intelectual de H. Chamberlain, inglês de origem, mas naturalizado alemão aos cinquenta e tantos anos, após ter vivido em vários países da Europa: França, Inglaterra, Suiça, Austria, Alemanha(!). Desde finais da década de 70, integra-se no “Círculo de Bayreuth” de tendência pan-germanista e deixa-se fascinar pela pátria de
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selecção natural, mas essa eficácia, tal como em Darwin, não é, necessariamente, sinónimo de evolver no sentido do aperfeiçoamento físico,
moral e intelectual. O caso português testemunhava o evolver regressivo. Para contrariar esta direcção evolutiva da raça portuguesa era necessário imprimir uma nova configuração a todos os factores mesológicos, incluindo a educação(!), assente em bases ético-científicas sólidas:
É neste horizonte que se inscreve o labor estético-pedagógico de Ramalho, que tanto bem fez à forma mentis de portugueses e brasileiros e, muito em especial, à própria língua portuguesa. 2. O estudo ortiganiano dos Grundliagen: a “febre” que não contagiou Ramalho Limitando-nos ao objecto do nosso cuidado, é notável que, com setenta e tantos anos, Ramalho se dedique ao estudo de uma obra, aca-
bada de sair dos prelos em França, da autoria de Houston Stewart Chamberlain, “o profeta titular do arianismo”(2). O título original da obra é Die Grundlagen des neunzehnten Jahrhunderts, traduzida para francês
297
Goethe, Kant, Beethoven e Wagner(?). Em 1885, dois anos após a morte
do genial poeta-músico, é co-fundador da Revista wagneriana. Foi um estudioso das ciências naturais e da filosofia e em 1897 doutora-se em
botânica. O seu livro, Die Grundlagen firmou o seu nome como um
doutrinador do pangermanismo contra o “caos étnico” e o “perigo judeu” e como inspirador da corrente Volkisch (nacionalista-racista). Desde a primeira edição, “a obra tornou-se a nova Bíblia de centenas de milhares de alemães”(?) e foi aplaudida por muitos membros da elite culta do tempo, incluindo naturalistas como Emst Hackel e Julius Wiesner. É, aliás, ao botanista e fisiologista das plantas, Julius Wiesner() que dedica os seus Grundlagen. Chamberlain foi também admirado pelo imperador Guilherme II, com quem manteve correspondência entre 1901-1918 e 1921-1923(>). Neste ano, recebeu a visita de Adolf Hitler e, mais tarde, seria a vez de Alfred Rosenberg, o ideólogo oficial do III Reich, afirmar que os Grundlagen deram o “golpe decisivo”(9) na definição da mística do sangue germânico e na criação do puro estado de espírito alemão. Pela voz insuspeitada de Vacher de Lapouge, as teorias de Chamberlain “sont devenues la base de "impérialisme germanique, le plus agressif qui existe, et
em 1913 com o título La genêse du XIX* siêcle(?). Foi a tradução fran-
cesa(4) que o nosso escritor(*) analisou. Antes de darmosconta dos apon(1) Vide, a este respeito, por exemplo, o brilhante ensaio de Ramalho Ortigão;
“A Sua Alteza o Sereníssimo Senhor D. Carlos regente em nome do Rei. Lisboa, 25 de Maio de 1883”. In: As Farpas. O país e a sociedade portuguesa, ob. cit., vol. 2, pp. 7-16. (2) Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., p. 310. (3) Vide: Pierre Taguiev, “Chamberlain, Houston Stewart, 1855-1927”, Dictionnaire des philosophes, vol. 1, (Dir. Denis Huisman). Paris, Presses Universitaires de France, 1984, pp. 512-515. A obra foi sucessivamente reeditada desde 1899. A terceira edição alemã data de 1901 e, em 1941, o original conhecia a 28º edição. E traduzida para
inlgês em 1910 e para francês em 1913.
(4) Vide: Ramalho Ortigão, [Recensão crítica aj H. 5. Chamberlain, La genêse du XIXemesiêcle. Paris, Payot, 1913, 2 vols. (1551 pp.) — Manuscrito autógrafo, sem data
(1913 7), com 18 fl. — B.NL.
(5) Vide: Emília Ferreira, “Ramalho Ortigão, 160 anos depois. Fatalmente
escritor”, Público, 24 Nov. 1996, p. 34.
(1) Vide: Pierre Taguiev, “Chamberlain, Houston Stewart, 1855-1927”, Dictionnaire des philosophes, vol. 1, ob. cit., pp. 512-515. (2) Vide: Britta Rupp-Eisenreich, “Chamberlain, Houston Stewart 1855-1927”, Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 1, ob. cit., p. 506. (3) Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos
nacionalismos, ob. cit., p. 316.
(4) Chamberlain foi discípulo deste cientista austríaco, autor de vários ensaios sobre Lineu, Goethe, Darwin, Mendel, Unger e outros. Vide Britta Rupp-Eisenreich, “Weisner Julius, Ritter von, 1838-1916”, Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 3, ob. cit., pp. 4647-4648. (5) Vide: Léon Poliakov, “Spéculations aryennes sur Iunivers (1899-1945)”, Le Genre Humaine, Paris, 12, 1985, pp. 247-263; Paul Weindling, Health, race and german politics between national unification and nazism 1870-1945, Cambridge, Cambridge University Press, 1993, p. 106 e ss. (6) Citado por Pierre Taguiev, “Chamberlain, Houston Stewart, 1855-1927”, Dictionnaire des philosophes, vol. 1, ob. cit., p. 514.
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 4
le credo de dizaines de millions d” Allemands, dans 1 Empire, en Autriche,
século em seu conjunto corre inconscientemente para a realização do seu destino como corre um formigueiro”(!). Para conhecer esse destino im-
298
en Suisse, en Amérique”(!).
Cabe-nos agora perguntar: o que é que Ramalho Ortigão reteve desta obra que, ao longo de mil quinhentas e tantas páginas, percorre toda a história da civilização (arte, filosofia, direito, religião, ciência, indústria, etc.), guiada pelo postulado determinista, “sub specie necessitatis”(2), da luta inter-racial e fazendo do germano o eixo-motor da história universal? O manuscrito de Ramalho Ortigão regista quatro tópicos fundamentais: o papel dos germanosna história universal desde o século XIII, a crítica da ideia metafísica de progresso geral da humanidade; a ideia de raça e, por fim, o diletantismo. Trata-se de um conjunto de parágrafos da obra de Chamberlain seleccionados e traduzidos, algumas vezes, sintetizados. Ramalho não faz comentários críticos. A sua marca reside tão só nas questões seleccionadas do vastíssimo leque temático que os Grundlagen abordam. Vejamos, então, o que é que Ramalho aprendeu na obra de Chamberlain, salvaguardando, desde já, que o poder persuasivo dos Grundiagen não atingiu a robustez da mente ortiganiana. Relativamente ao tema da história, enquanto obra criadora dos ger-
manos, Ramalho foi sensível à ideia de Chamberlain, segundo a qual, a
compreensão do século XIX exige o conhecimento dos seus “antecedentes hereditários”(?). Essa herança é múltipla: “herdámos uma divisão determinada das forças económicas; herdámos erros e verdades, representações, ideais, superstições. Destes elementos muitos nos entraram na carne e no sangue, e não concebemos a existência possível sem eles (...). Antes de
tudo herdámos o sangue e o corpo no qual e pelo qual vivemos”(4). É o determinismo das leis naturais que estrutura e dá consistência ao curso histórico. Não há nele lugar para a liberdade, ainda que os raros espíritos superiores alcancem uma liberdade relativa, que se traduz na consciência das limitações impostas pela ordem natural da existência. Por isso, Ramalho Ortigão apontou no seu caderno estas palavras elucidativas: “um (!) Vacher de Lapouge, Race et milieu social. Essais de anthroposociologie, Paris, Librairie des Sciences Politiques et Sociales, 1909, p. XXIV; vide também: Gustave Le Bon, Enseignements psychologiques de la guerre européenne. Paris, Ernest Flammarion, Editeur, 1916, p. 115 e ss.; Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., sobretudo pp. 316-317. (?) H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. Édition française par Robert Godet. Paris, Librairie Payot & Cie, 1913, p. 61. (3) Idem,ibidem, vol. 1, p. 5. (4) Ramalho Ortigão, Manuscrito citado, pp. 1-2 (Cfr, H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 1, ob. cit., p. 6).
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porta, acima de tudo, tomar consciência “dos materiais de que somos cor-
poralmente e espiritualmente constituídos. Este é de todos os problemas o mais importante”(2). Masessa herança bio-cultural perde-se no fundo dos tempos, razão pela qual Chamberlain tinha de admitir uma baliza cronológica, ainda que salvaguardasse o seu carácter convencional. Assim, os Grundlagen postulam o começo da história no ano um da era cristã e defendem que o ano de 1200 é a data média que traduz a emergência “de um facto capital: o advento dos Germanos tomando posse do papel que são destinadosa representar na cena do mundo como fundadores de uma civilização e de uma cultura inteiramente novas”(2). Para Chamberlain, é inquestionável que os europeus setentrionais foram os criadores da história universal e impuseram a sua individualidade na luta inter-racial, desde
logo, “contra o caos étnico do império romano decadente, depois pouco a pouco contra todas as raças do mundo”(4). Este postulado da mística germânica, que a obra de Chamberlain procura demonstrar com argumentos históricos e antropológicos, não foi objecto de algum comentário por parte de Ramalho Ortigão. Não era seu timbre formular juízos sem primeiro estudar e reflectir sobre as questões; era normal que, em plena adultez,esta característica estivesse bem vincada na sua personalidade intelectual. Ramalho Ortigão captou o essencial da doutrina expendida por Chamberlain. Neste sentido, registou no seu caderno que o combate dos
homens do norte pela afirmação da sua individualidade não foi especialmente guerreiro. Na síntese de Ramalho, lê-se: “o que se debateu com a espada foi pouco. A grande luta foi a das ideias que persiste ainda. Se os Germanos não foram os únicos a modelar a história para ela contribuíram muito mais que todas as outras raças. Todos os homens que a datar do século VI aparecem como os verdadeiros configuradores dos destinos da humanidade, quer formem estados, quer descubram ideias novas, quer inventem alguma arte original, pertencem todos a esse grupo (...). Os grandes italianos do rinascimento são todos originários do Norte, impregnados de sangue lombardo, godo e franco ou do extremo sul germano(1) Idem, ibidem,p. 3. (2) Idem, ibidem, p. 4 (Cfr: H.-S. Chamberlain, La genese du XIXême siêcle. vol. 1,ob. cit, p. 7).
(3) Idem, ibidem, p. 5 (Cfr: H.-S. Chamberlain, La genese du XIXême siêcle. vol. 1, ob. cit., p. 8). (4) H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 1, ob. cit., p. 8.
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Darwin em Portugal
Parte HH — Capítulo 4
-helénico (...). Em Espanha são os visigodos que constituem o element vital”(1). É no século XIII quea civilização germânica começa a imprimir no mundo a sua força particular. Segundo o critério racialista de Chamberlain, “toda a nossa civilização e toda a nossa cultura actual cú obra de uma determinada raça humana: os germanos(...) a grande ra é norte europeia compreendendo germanos, celtas e eslavos antênticos”0) Na tradução francesa, que serviu de base ao estudo de Ramalho estes
nta ele foi tão “estimulante” como “paralisante”(!). Chamberlain acresce não um juízo sintomático do seu culto rácico, que Ramalho Ortigão mps registou: “ce rinascimento (...) ne nous a-t-il pas détournés pour longte a que r defende a chega alemão angloautor O de notre vie naturelle7”(2). da avam precis não rem afirma se para icas cultura e a civilização germân au cultura clássica: “bien avant le Dante, d'ailleurs, dans les pays du Nord,
300
termos aparecem em maiúsculas: “LES GERMAINS”, isto é "LES DIFFERENTES VARIÉTÉS DE LA GRANDE RACE NORD EUROPEENNE (...) les GERMAINS (...) les CELTES, et les SLAVES
authentiques”(?), que o autor considera originários da Europa(s). Assim; O germano não é o “bárbaro” responsável pelas trevas medievais, pois “essa escuridão é antes a consequência da falência em que caiu a gente do cao: étnico, toda essa humanidade sem raça que surgiu da queda do Império Romano. Sem o germano, uma eterna noite teria invadido o mundo”() Chamberlain eleva o germano a um nível de superioridade criadora sem paralelo com qualquer outra raça. O seu entusiasmo leva-o a afirmar que 0 Século XIX teria alcançado um grau de cultura superior àquele que atingiu, caso não tivesse de fazer face à oposição de “representantes do caos étnico não exterminados”(*) no decurso do processo histórico. Sem o germano, as culturas helénica e romana não teriam renascido. Mas esse renascimento nãopode ofuscar o valor da cultura germânica Shakespeare e Miguel Angelo não sabiam de resto uma palavra de gre o ou de latim”(?). Por mais enriquecedor que o renascimento tenha sido, (1) Ramalho Ortigão, Manuscrito citado
-
i
H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol Es depp89) “o dntor (Ch
(2) Idem, ibidem, p. 9.
a
O Hs. Chamberlain, La genêse du XIXêmesiêcle. vol. 1, ob. cit., p. 10. «o (3) Vide: Idem, ibidem, p. 656 e ss. Em nota da p. 657, Chamberlain acrescenta: est une opinion toujours plus fortement accréditée chez les savants, dans ces dernie temps, que les Germainsne vinrent pas d' Asie, mais qu'ils ont babité [Euro e immé o rialement (voir entre autres A. Wilser: Stammbaum der arischen Vólker 1880: Sch der Toopoeleichuna und Urgeschichte, 2º éd. 1890; Taylor: The Origin of the Arans ; Beck: Der Urmensch 1899, etc.)”. Além dos autores indi i recorde-se também Gustav Kossina que colocara a arqueologia EBIS o“ervicodo mito nórdico, defendendo que o berço ariano se situava na floresta do norte da E opa. Vide: Julian Huxley, Nous européens, ob. cit., pp. 76-77. + more.
(é) Ramalho Ortigão, Manuscrito citado, pp. 9-10.
Q RS punberiaim La genêse du XIXême siêcle. vol. 1, ob. cit. p. 10 du XD amalho Ortigão, É A Man ie STO), ito citado, ci p. 10 (Cfr.:: H.-S. Chamberlain, rlain, La L genêse 2,
de création c..ur même du germanisme, s"était affirmée une puissance
poétique qui suffirait à prouver combien peu nous avions besoin d'une ”(É). renaissance classique pour produire quelque chose d'incomparable de ito Destes juízos febris de Chamberlain, não há rasto no manuscr não Ramalho, o que nos autoriza a ter como certo que O ensaista português secundou a mística ariana-nórdica dos Grundlagen. Em segundo lugar, foi o “mito da humanidade” que chamou a aten-
ção de Ramalho. Convém recordar que o intento ideológico de Cham-
berlain era assumido comocientífico e, é enquanto tal, que os Grundiagen Em declaram guerra a um valor capital de raíz iluminista — a humanidade. não que real, te referen seu entender, tratava-se de uma noção abstracta sem conpodia ter lugar no processo histórico. Por isso, todos os erros que [é] todos de duzem a uma falsa interpretação do devir histórico, “o maior proconsiderar a civilização e a cultura actual como resultado de um
anota o seu gresso geral da humanidade” (4). No seu manuscrito, Ramalho
O interesse em estudar a fundo esta questão. Mas, na verdade, avança para da “mito ao tamente explici se referira tema das raças e não volta ao humanidade”. É certo que o tema das raças está intimamente ligado que relação essa foi não problema da humanidade. Mas, curiosamente,
a sua Ramalho registou nos seus apontamentos. Como veremos, toda
atenção estava voltada para a questão da selecção artificial das raças segundo o modelo zootécnico. As considerações que Chamberlain tece, ao longo da obra, sobre o progresso geral da humanidade substancializam o seu método de ideoloao gização racista da história. Talvez por isso, Ramalho não tenha voltado tese a itava contrad que ideia uma destruir assunto. Chamberlain visava siêcle. vol. 1, (1) Idem, ibidem (Cfr.: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême ob. cit., p. 10). cit. p. 10. (2) H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 1, ob. Sublinhado do Autor. (3) Idem, ibidem,p. 16. La genêse (4) Ramalho Ortigão, Manuscrito citado, p. 10 (Cfr. H.-S. Chamberlain, 11). p. cit., ob. 1, vol. siêcle. XIXême du
302
Darwin em Portugal
germanista que advogava, e fazia-o em termos comoestes: “Des Vinstant
que nous nous mettonsà parler de 1HUMANITÉ en général, dês Vinstant que nous nous imaginons apercevoir dans histoire un développement, un progrês, une éducation, etc., de “”humanité”, nous abandonnonsle terrain
solide des faits por planer dans les abstractions nuageuses. Cette humanité (...) présente en effet un grave défaut: c'est qu'elle nºexiste pas. La nature et Vhistoire nous offrent un grand nombre de types humains différents, mais non pas UNE humanité. L'hypothêse même que tous ces types humains s'apparentent physiquement entre eux, comme rejetons d'une souche primitive unique, vaut à peine ce que vaut la théorie des sphêres célestes de Ptolémée”(!). Em síntese: a categoria de humanidade: é ilusória, tanto no plano antropológico, como ao nível do processo histórico. Se, no dizer do autor, o monogenismo não tem fundamento científico, então o princípio da unidade da espécie humanaé insustentável(?) e, consequentemente, a humanidade concebida como um todo uno, colectivo, indiviso, na qual as diferentes raças se subsumem, não passa de “um expediente verbal”). A espécie humana é constituída por raças distintas e as suas diferenças físicas e mentais são tão acentuadas como aquelas “par oú se distinguent entre eux un lévrier, un bouledogue, un caniche et un terre-
neuve”(*). Entre as raças humanas não há nem comunidade de origem, nem unidade biológica, nem, por conseguinte, qualquer possibilidade de nivelamento igualitário, quer físico ou psicológico, o que inviabiliza todos: os sonhos de fraternidade universal(”), de solidariedade inter-racial, internacional e inter-classista. Com efeito, Chamberlain defende a desigualdade racial inata, inspirando-se no ensaio de Gobineau publicado em 1853 e 1855(9) e, embora se tenha demarcado do seu pessimismo(”), o certo é que foi um dos primeiros mentores da Gobineau-Vereinigung fundada em 1894(8). A superioridade do germano é advogada em todos os planos da () H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit, p. 957. Maiúsculas do Autor. (2) Vide: Idem, ibidem, vol. 1, p. 38; p. 356. (3) Idem, ibidem, vol. 2, p. 964.
Parte II — Capítulo 4
303
cultura e da civilização, mas Chamberlain coloca particular ênfase na
defesa do seu elevado sentimento religioso. Comparado com o germano, o judeu “est à cet égard d'une extrême stérilité; on le dirait frappé d'un de
ces “arrêts de développement” dont nous entretient, depuis Darwin, la biologie: pareil à une plante qui se dessêche et qui périt dans sa fleur”(1). Perante tais diferenças, enquanto existirem raças inferiores como pode haver humanidade e progresso geral? O alto destino que estava reservado
ao germano oitocentista era a resposta do fanatismo racial de Cham-
berlain. A possibilidade e, ao mesmo tempo, a salvação da história universal encontravam-se substancializadas nos superiores dotes inatos do germano: “Ja plasticité du germanismeest dans [histoire universelle un phénomeêne unique et incomparable (...) il y a un lien manifeste entre L'INDIVIDUALISMEcaractéristique et inextirpable du vrai Germain etcette plasticité de la race. (...) Jose Vaffirmer: tout Germain significatif est virtuellementle point de départ d'un groupe nouveau, d'un dialecte nouveau, d'une nouvelle conception du monde”(2). De facto, pelo quefica muito sumariamente exposto, verifica-se que Chamberlain não apresenta argumentos científicos para invalidar as categorias de Humanidade e de progresso geral. Limita-se a exaltar o seu herói. Ramalho Ortigão nem uma farpa lhe lança. O nosso ensaista não se impressionou, nem com a supremacia do ária europeu do norte, nem com O imperialismo racial inscrito no seu sangue e no seu corpo. Na verdade, Ramalho não consumiu uma gota de tinta a respeito da teutomania de Chamberlain. Não era a mística da raça que lhe interessava. O que, de facto, prendeu a sua atenção, foi um conjunto de parágrafos em que Chamberlain tenta definir a noção de raça à luz da obra de Darwin, The variation of animals and plants under domestication, cuja primeira edição datava de 1868. É de notar que, para salvaguardar a cientificidade do seu germanismo, H. Chamberlain remete para plano secundário a polémica questão antropogénica (monogenismo ou poligenismo)() e sustenta que a noção
() Idem, ibidem, vol. 1, p. 356.
(*) Vide: Idem, ibidem, vol. 1, p. 38. (8) Joseph Arthur, Conde de Gobineau, Essai sur 1 “inégalité des races humaines; Paris, Firmin-Didot et Cie., 1940, 2 vols. (7) Vide: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit; p. 1383 ess. (8) Vide: Pierre Taguiev, “Chamberlain, Houston Stewart, 1855-1927”; Dictionnaire des philosophes, vol. 1, ob. cit., p. 513.
(1) H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit., p. 300.
(2) Idem, ibidem, p. 956. Maiúsculas do Autor.
(3) Vide: Idem, ibidem, p. 1402. Supomos que Darwin se pronunciou a favor do monogenismo, como se lê no seguinte excerto: “Those naturalists (...) who admit the prin-
ciple of evolution, and this is now admitted by the majority of rising men, will feel no doubt that all the races of man are descended from a single primitive stock”, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and
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Darwin em Portugal
de raça pode ser definida independentemente do problema da origem animal única ou múltipla das raças humanas. Também os argumentos contraditórios da filologia, da paleontologia, da pré-história, da etnologia e da antropo-sociologia são considerados irrelevantes e desnecessários. Segundo Chamberlain, basta recorrer à observação empírica da criação artificial de raças de animais e de plantas para se determinar o que é à pureza racial. Ramalho não se demorou nas justificações do ideólogo inglês-alemão e apenas traduziu estas palavras de Chamberlain: “comparando-me aos sábios que estudam esta questão, eu ouso dizer que a tomo por outra ponta. Não me ponho à procura de ferramentas pré-históricas (...) ou de transformações fonéticas com o fim de descobrir por uma vez se há no mundo alguma coisa que se possa chamar raça e que coisa é essa”(1). Na verdade, o que o seu manuscrito foca é, precisamente, a substância naturalista da noção de raça, segundo o modelo da domesticação dos animais e das plantas. Assim, escreve Ramalho: “segundo Chamberlain, guiado por Darwin, raça é simplesmente a palavra pela qualse designa essa intensificação de determinados caracteres essenciais, esse desenvolvimento da capacidade geral de produção, esse enobrecimento de todo o ser (...) fenómenos que se não obtêm senão sob condições rigorosamente determinadas (selecção, cruzamentos, endogenia) mas que, dadas essas condições, se
obtêm sem excepção, isto é, com a segurança de uma lei da natureza”(2). Chamberlain defendia que a investigação necessária para se determinar à noção científica de raça era perfeitamente acessível ao senso comum.:Foi este tópico que suscitou um particular interesse a Ramalho. Neste sentido, o nosso autor seleccionou, na exposição de Chamberlain, um conjunto de parágrafos que se reportam ao critério zootécnico definidor da raça. Para provar a nossa afirmação, transcrevemos um excerto elucidativo: “... acompanho Darwin a uma cavalariça, a uma capoeira ou a uma horta, e aí me aparece o que confere à palavra raça o seu conteúdo: uma realidade indiscutível e manifesta. Então, penetrado da verdade dessa grande
augmented, ob. cit. p. 176. Mas, Claude Blanckaert entende que Darwin sustentava-o monofiletismo e não se envolveu na querela pré-darwiniana do mono-poligenismo. Vide: Claude Blanckaert, “Monogénisme et polygénisme. Monogenism and polygenism”. In:
Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 2, ob. cit., pp. 3021-3037.
(!) Ramalho Ortigão, Manuscrito citado, pp. 11-12 (Cfr.: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit., p. 1402). (2) Idem, ibidem, p. 11 (Cfr: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siécie,
vol. 2, ob. cit., p. 1402).
Parte HI — Capítulo 4
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lei (...) considero em torno de mim os homens(...) e eis o que me aparece:
em toda a parte onde um povo se manifesta extraordinariamente criador,
em toda a parte constato esse fenómeno observado nos animais e nas plantas: caracteres individuais intensificados, capacidade de produção acrescida. E verifico tanto num caso como no outro que cada vez que as condições de enobrecimento da raça começam a escassear ou são destruídas por condições diferentes, sempre a raça (no sentido que dão os criadores a esta palavra) periclita e a pouco e pouco desaparece”(!). Quais são essas condições que favorecem a distinção racial, da planta, do animal ou do homem? São condições naturais: em primeiro lugar, a matéria-prima de base; e condiçõesartificiais: especialmente a disciplina dos cruzamentos de acordo com as leis da hereditariedade que o criador de gado e o jardineiro conhecem por intuição. Ramalho continuou a traduzir: “noto ainda que há nos homens assim como nos animais e nas plantas, materiais de
ordem diversa, isto é, que certas variedades se mostram desde o princípio eminentemente próprias para constituírem raças, e não sucede o mesmo com outras. Essas variedades favorecidas no ponto de vista da plasticidade (como foram outrora os helenos, como hoje são os eslavo-celto-germanos) foram elas mesmas suscitadas por uma disciplina racial análoga à que praticam em pequeno os criadores e os jardineiros”(2). A noção de raça que resulta destas considerações é manifestamente evolucionária-transformista, é algo que não tem contornos fixos ab initio, uma entidade plástica e dinâmica, susceptível de desenvolvimento perfectível, mas também de flutuar na indefinição sem traços de nobreza. 3. Die Grundlagen: história ou histeria? O que desse delírio germanista ficou gravado no manuscrito de Ramalho Na perspectiva do ideólogo anglo-germano, a natureza autorizava a construção dum modelo de pureza racial, pois ela mesma criou uma matéria-prima de excelente qualidade: o germano. A palavra de ordem para a prossecução deste fim passa por ser de Darwin e é repetida várias vezes, na língua original, ao longo dos Grundlagen: “Free crossing obli(1) Idem, ibidem, pp. 12-13 (Cfr.: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit., pp. 1402-1403). (2) Idem, ibidem, p. 14 (Cfr.: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle.
vol. 2, ob. cit., p. 1403).
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Parte II — Capítulo 4
Darwin em Portugal
terates characters”(1). Esta proposição, retirada do contexto científico darwiniano, transformou-se na bandeira legitimadora de futuros geno-
cídios. Não era a razão científica que agitava essa bandeira, mas a obsessão de “salvar” a raça ariana-nórdica, dita superior. Salvá-la do perigo de desfiguração resultante da falta de disciplina racial. Como é sabido, independentemente da questão do determinismo histórico, económico-social, 0
certo é que esta ideia acabou por converter largas páginas de história num capítulo da criminologia. A nosso ver, os Grundlagen não podem ser considerados inimputáveis, e o mesmo é válido para os programas antroposociológicos de O. Ammon e de Vacher de Lapouge,entre outros(2), e da doutrina nórdica do eugenista americano, Madison Grant(?). Todos estes autores recorrem a Darwin para mascarar o seu racismo. Dizemos mascarar, porque de outra coisa não se trata, à luz da obra do naturalista inglês.
Ora, a utilização que Chamberlain faz da obra de Darwin, The variation of
animais and plants under domestication, imprimiu ao seu seleccionismo uma singular marca zoológica e botânica. O germano de Chamberlam coincide com o “ariano moderno” de Vacher de Lapouge(?), mas aquele, em lugar de se fixar no postulado da sua pureza racial originária, ameaçada pela mestiçagem, valoriza a possibilidade de criar por selecção artificial um modelo racial inédito. Por isso, subscreve a eugenia galtoniana(é), empenhada em melhorar física e mentalmente a espécie humana. Mas (1) Vide: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXêmesiêcle. vol. 1, ob. cit., p. 356, entre outras. Sempre que se propicia, Chamberlain remete o leitor para os capítulos XV e XIX da obra de Darwin, The variation ofanimais and plants under domestication. Na verdade, o que Darwin escreveu foi: “Free intercrossing obliterates the differences between allied breeds”,
in The variation of animais and plants under domestication. (A reprint of the second editon, London, John Murray, 1885). Delhi, Daya Publishing House, 1989, p. 62 ess. (2) Sobre o compromisso da antropo-sociologia com o pangermanismo, vide:
Mendes Correia, Raça e nacionalidade, ob. cit., p. 9 e ss. Sobre o contributo da França
para a construção do arianismo pangermanista, vide: Jacques Ruffié, Tratado do Ser Vivo: Volume IV. Sociobiologia ou bio-sociologia, Lisboa, Fragmentos, 1982, p. 24 e ss.
(2) Vide: Madison Grant, The passing of the great race; or, the racial basis of European history, New York, Charles Scribner's Sons, 1916.
(9) H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit., p. 1411. (é) Vide: Francis Galton, Inguiries into human foculty and its development, London, Macmillan and Co., 1883. É nesta obra que Galton cria o termo eugenismo; Idem, “Foreword”. The Eugenics Review, Adelphi, 1 (1) Abr. 1909, pp. 1-2; Michael Billig, L'internationale raciste. De la psychologie à la “science” des races, Paris, François
Maspero, 1981, sobretudo, pp. 15-25; Jean Gayon, Darwin et Paprês-Darwin. Une histoire de "hypothêse de sélection naturelle, Paris, Éditions Kimé, 1992, pp. 116-155.
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aponta-lhe uma limitação substancial. Galton não se colocava no ponto de
vista mais elevado, isto é, germanista. Porque é que a eugenia galtoniana distingue apenas os “melhores” e os “piores” em vez de colocar a linha divisória “entre ceux qui sont physiquement et moralement *Germains” et ceux qui ne le sont pas? Pourquoi n'agirions-nous pas — avant qu'il soit trop tard — de façon à conserver ce qui nous est le plus cher et le plus sacré, et cela veut dire en préservant les fondements physiques sans lesquels ce trésor de vie n'eút pas existé, sans lesquels il ne saurait subsister?(!). A disciplina racial deve partir daquilo que é “empiricamente palpável e de umairrefutável evidência”(2), ou seja, deve distinguir o germano do não germano; deve identificar os “melhores” com uma raça concreta. Essa raça é, para Chamberlain, justamente aquela que já deu
provashistóricas de ser a mais nobre. Mas, além disso, considera-a porta-
dora de aptidões inatas para se aperfeiçoar em condições de isolamento, à semelhança do que teria ocorrido com a raça helénica enquanto beneficiou de circunstâncias favoráveis à prática da endogamia, preservando a sua superioridade de misturas caóticas. A construção da pureza racial do germano tem de obedecer a um conjunto de regras ou leis naturais que em nada diferem daquelas que são
observadas na criação de cavalos de corrida, do fox-terrier, do galo da
Cochinchina, etc.(2). Essas leis naturais que presidem à formação das raças nobres, quer sejam plantas ou animais, são apenas cinco. Em primeiro lugar, a existência “d'une matigre premiêre dEXCELLENTE QUALITÉ”(*) que se identifica pela observação ascendente. Em segundo lugar, a prática do regime endogénico prolongado, pelo qual “la race multiplie en dedans de la race: Inzucht, dit " allemand”(*). Através deste regime, a raça conserva e acumula os seus caracteres próprios, mas a nobilitação da raça exige a selecção reprodutiva dos indivíduos mais qualificados(º). Se a selecção artificial pode produzir “un cheval de course, ou () H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit., p. 1413.
(2) Idem, ibidem, p. 1403.
() Idem, ibidem, vol. 1, p. 367. (4) Idem, ibidem, p. 374. Maiúsculas do Autor.
(5) Idem, ibidem, pp. 375-376. Sublinhado do Autor.
(9) A propósito desta regra, Chamberlain volta a indicar a obra de Darwin, dizendo expressamente: “Tout le monde devrait lire au moins "ouvrage de Darwin intitulé Animais and Plants under Domestication, qui a le mérite d'être simple, aisément intelligibile, et d'une étonante variété dans ses exemples. Dans POrigine des Espêces le même thême est traité d'une maniêre plus condensée et plus tendancieuse”, La genêse du XIXême siêcle. vol. 1, ob. cit., p. 376. Na verdade, o estatuto do chamado “modelo doméstico” nas
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Parte II — Capítulo 4
un basset ou quelque “surabondant” chrysanthême, par éliminatio méthodique de tout caractêre d"infériorité, on n'aura pas de peine à recon naítre dans 'espêce humaine [action du même phénomêne”(1). As possi bilidades plásticas do germano são, para o autor, um facto que a históri testemunha com abundância. O seu aperfeiçoamento e, correlativamente o progresso histórico-civilizacional depende da observância destas leis simples e infalíveis: endogenia e eliminação do inferior. Às três regras
por Darwin sem qualquer intuito eugenista(!), que alimentou o optimismo voluntarista de Chamberlain. Com efeito, na conclusão do especialista Jean Gayon, “les espêces domestiques étaient méthodologiguement essentielles à la théorie darwinienne”(2), por duas razões fundamentais: primeiro, as espécies domésticas provavam a possibilidade de uma modificação hereditária irreversível. Segundo, a selecção artificial demonstrava que as pequenas variações podiam acumular-se e mudar o tipo das espécies. Portanto, se o modelo doméstico provava a hereditariedade das variações e a eficácia da selecção, Darwin não podia prescindir dele. Assim se compreende que o primeiro capítulo da obra de 1859, On the origin of species, seja dedicado ao tema “variation under domestication”(). O recurso de Chamberlain à obra darwiniana de 1868, que alargava substancialmente os dois primeiros
sumariamente enunciadas, Chamberlain acrescenta mais duas. A quarta
reconhece que um regime de endogenia persistente muito fechado conduz à degenerescência e à esterilidade. Por tal razão, o eugenista tem de con-
siderar que, “comme dit finement Emerson: “We are piqued with pure descent, but nature loves inoculation ““(2). Ora, a obtenção dos melhores resultados exige a satisfação mínima da natureza. Se no caso do puro sangue inglês, para impedir a degenerescência, é preciso, de tempos a tempos, cruzá-lo com “étalons árabes”(2), no caso do germano basta o cruzamento periódico de variedades da mesma raça(?), para garantir o progresso da sua nobilitação, sem correr o risco da vingança da natureza. Por isso, Chamberlain introduz uma quinta lei para precisar o sentido da
quarta lei. O autor retoma, de novo, abusivamente, o enunciado darw
niano (crossing obliterates characters), combina-o com a tendência da natureza para as misturas (nature loves inoculation), recorre a exemplos da criação de animais e conclui: “seuls des mélanges de sang tout à fait DETERMINES ET LIMITES contribuent à 1'ennoblissement d'une race donnée ou à la formation d'une race nouvelle”(>). Em resumo: a formação de uma raça humana nobre ou pura é possível mediante: as seguintes condições: matéria prima qualificada, cruzamentos endogâmicos e seleccionados num contexto de isolamento histórico-geográfico(*) e,
finalmente, de tempos a tempos, uma infusão breve e limitada de sangue |
novo e seleccionado de uma variedade da mesma raça. Conhecidas estas leis, apenas é necessária vontade política para levá-las à prática. Foi o modelo doméstico de criação de raças de animais e de plantas, analisado obras de Darwin não tem relação alguma com qualquer programa eugénico, seja o de Galton, o de Chamberlain ou outros. Vide: Jean Gayon, Darwin et "aprês-Darwin. Une
histoire de Phypothêse de sélection naturelle, ob. cit., pp. 38-66. () (2) (É) (4)
H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 1, ob. cit., p. 376. Idem, ibidem, p. 377. Sublinhado do Autor. Idem, ibidem, p. 380. Idem, ibidem, p. 382.
(5) Idem, ibidem, p. 383. Maiúsculas do Autor.
(6) Vide: Idem, ibidem, pp. 385-389.
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capítulos da obra de 1859, visava dar crédito ao seu eugenismo e, ao
mesmo tempo, justificar a sua demarcação relativamente à doutrina de Gobineau. Com efeito, Chamberlain sublinhava que a obra do diplomata francês era anterior à revolução darwiniana(*) e, nessa medida, acusava um défice de cientificidade que se traduzia num pessimismo apocalíptico quanto ao destino da raça branca mais nobre: a raça ariana. Ramalho Ortigão tomou nota da crítica de Chamberlain a Gobineau, o que não quer dizer que o nosso autodidacta secundasse o pangerma-
hismo e o anti-semitismo dos Grundlagen, ou se identificasse com a “perversão espiritual reinante na Alemanha”(º), desdefinais do século XIX. A (!) Vide: Patrick Tort, “Variation/variabilité dans 1º..uvre de Darwin. Variation/
variability in Darwin's work”, Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 3, ob.
cit., pp. 4407-4417.
(2) Jean Gayon, Darwin et Paprês-Darwin. Une histoire de [hypothêse de sélection naturelle, ob. cit., p. 39. Sublinhado do Autor. (3) Vide: Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. (A reprint of the first editon), ob. cit., pp. 6-37. (4) Vide: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob, cit., sobretudo, pp. 1388-1389. () Ricardo Jorge, “A guerra e o pensamento médico. Discurso presidencial pronunciado na sessão de abertura da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa em 5 de Dezembro de 1914”. In: Sermões dum leigo. Discursos e alocuções. 2º ed. Lisboa,
Instituto de Alta Cultura, s. d., p. 85. Neste discurso, Ricardo Jorge defendeu que a espi-
ritualidade alemã estava afectada por uma epidemia vesânica cujos primeiros sinais datavam do final da guerra franco-prussiana: “primeiro, egotismo vaidoso; depois, megalomania, fanatismo racial, imperialismo místico, religião messiânica; enfim [1914],
agitação irritada, fúria agressiva” (p. 84). Por causa deste diagnóstico — “paranóia colec-
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Parte II — Capítulo 4
página do manuscrito de Ramalho, que regista o pessimismo do dogma gobinista, termina com este comentário de Chamberlain: “se assim é [se o ariano está condenado ao caos étnico], entendo que o melhor que todos
diletante enquanto mediador entre o cientista especializado e o ignorante.
nós temos que fazer é metermo-nos uma bala na cabeça”()).
O texto de Chamberlain prossegue com argumentos a favor da aplicação prática das leis de enobrecimento ou purificação racial(2), mas no manuscrito de Ramalho nada consta sobre esta questão. Em vez de acompanhar a sequência textual de Chamberlain, o estudioso português volta um pouco atrás e colhe apontamentos sobre as ideias poligenistas de Voltaire e Goethe e sobre o monogenismo de Kant(?). Para nós é claro que Ramalho não se entusiasmou com o argumento de Chamberlain, segundo o qual, o enobrecimento do germano por selecção artificial era uma questão vital e urgente que não podia esperar pelo esclarecimento de todas as questões obscuras das origens. Ramalho Ortigão, em vez de se deixar impressionar pelo argumento, apercebeu-se da fragilidade científica da doutrina de Chamberlain e indagou o problema das origens das raças humanas, talvez para rebater a aplicação ao homem do modelo doméstico de criação de raças puras. O último tópico do caderno de Ramalho intitula-se “especialistas e diletantes”(4). O seu interesse pelo modo como Chamberlain caracteriza O diletantismo não causa a menor surpresa pois, há mais de duas décadas que o nosso publicista se assumia como diletante(*). Da exposição de tiva” — Ricardo Jorge foi declarado inimigo do povo alemão no Archiv fir Schiffsund Troppen-Hygiene. Acto contínuo, o Archiv cessou a permuta com a Medicina Contemporânea. Entretanto, em França, o discurso de Ricardo Jorge foi classificado de “magnífico” por vários cientistas e médicos. Vide alguns documentos alemães e franceses anexos ao Discurso de Ricardo Jorge, in Sermões dum leigo. Discursos e alocuções, ob.
cit., pp. 67-112.
(1) Ramalho Ortigão, Manuscrito citado, p. 14 a (Cfr: H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit., p. 1405). (2) Grandes autoridades científicas, sob o regime do nacional-socialismo, como o anatomista Bugen Fischer (1874-1967) e o geneticista Fritz Lenz (1887-1976), inspiraram-se em Chamberlain e desenvolveram uma eugenia socio-antropológica que procurou determinar os “genes raciais”. Vide: Britta Rupp-Eisenreich, “Fischer, Eugen 1874-1967”; In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 2 ob. cit., pp. 1664-1670. Para uma ideia geral dos cientistas e da ciência nazi da raça, vide Michael Billig, L'internationale. raciste. De la psychologie à la “science” des races, ob. cit., sobretudo pp. 47-58.
(3) Vide: Ramalho Ortigão, Manuscrito citado, pp. 15-16 (Cfr.: H.-S. Chamberlain; La genêse du XIXême siêcle. vol. 2, ob. cit., pp. 1395-1397). (4) Vide: Idem, ibidem,p. 17. (º) Vide: Ricardo Jorge, Ramalho Ortigão, ob. cit., p. 33 e ss.
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Chamberlain, o que figura no caderno de Ramalhoé, apenas, o estatuto do
Daí decorre a afirmação do valor pedagógico do diletantismo, mas também do seu valor cultural-evolucionário, no sentido em que a divulgação diletante do saber é um processo criador. Para Chamberlain,o interesse do diletantismo pela vida real imprime
um sentido prático, o único verdadeiro, ao conhecimento científico. Éacon-
figuração desse sentido que leva o diletante a romper as fronteiras da espe-
cialização académica, a colocar as diferentes ciências em inter-relação e a
extrair do seu conjunto o sentido orientador da existência individual e social, isto é, a “verdade viva”(1). O diletante transforma o conheci-mento em sentimento, faz dele uma maneira de sentir (Gesinnung (2)), uma força viva consciente e inconsciente que determina a acção de acordo com os dotes individuais e raciais. Ele vivifica a ciência, convertendo-a num saber configurador do presente e do futuro. Assim se justifica plenamente que, nos rostos dos dois volumes dos Grundlagen, Chamberlain tenha inscrito em epígrafe estas palavras de Goethe: “Nous appartenons à la race qui de Pobscurité s'efforce vers la lumigre”. O verdadeiro espírito diletante está voltado para o futuro(?), esforça-se por compreenderos seus apelosà luz da substância histórica do passado e do presente. Se a história, interpretada
cientificamente, isto é, em moldes naturalistas-biológicos-raciológicos,
anuncia um destino glorioso para o germano, é dever do diletante colaborar com o sentido da história, vivificar a sua direcção e imprimir na consciência do germano a necessidade da disciplina racial. Sintomaticamente, o manuscrito de Ramalho passa ao lado desta relação entre o espírito diletante e o culto germanocrático e, apenas, regista um enunciado ideologicamente neutro: “Quem sabe se um papel importante não está reservado ao diletantismo na evolução da cultura e da mentalidade?"(). Por tudo o que ficou dito, parece-nos claro que Ramalho
não secundava a doutrina racista de Chamberlain, “o S. Mateus do germanismo”(º), como era denominado por Ricardo Jorge. O interesse de
Ramalho pela selecção artificial não era sinónimo de aprovação da eugenia racial de Chamberlain e dos seus pares.
(1) H.-S. Chamberlain, La genêse du XIXême siêcle. vol. 1, ob. cit., p. LXX.
(2) Vide: Idem, ibidem, vol. 2, p. 937.
(*) Vide: Idem, ibidem, vol. 1,p. 42 ess.; vol. 2, p. 1391 ess.
(4) Ramalho Ortigão, Manuscrito citado, p. 17. (*) Ricardo Jorge, Ramalho Ortigão, ob. cit., p. 34.
CAPÍTULO 5 A História enquanto “capítulo da Biologia” na teoria de Augusto Coelho Das várias teorias da história produzidas nos inícios do século XX()), apresentadas em forma de artigo(?), ou livro(), a que melhor testemunha o impacto do darwinismo é a teoria do pedagogo Augusto Coelho. Com efeito, o autor alicerça a sua construção num biologismo radical, que
procura não trair, e que consiste em fazer da história, textualmente, “um
capítulo da Biologia”(*). Esta posição da história no quadro geral do saber é defendida, “vendo nos povos históricos um produto de causas idênticas às que provocam a evolução dos ante-históricos, dos animais superiores, dos animais inferiores, das plantas, em suma do conjunto geral dos seres vivos. Por outras palavras: considerando o desenvolvimento dos povose 0 (1) Vide: Luís Reis Torgal, “História... da “ciência” (ou “arte”) à memória”. In: Luís Reis Torgal; José Maria Amado Mendes; Fernando Catroga, História da história em Portugal. Sécs. XIX-XX, ob. cit., sobretudo p. 366. (2) Vide, por exemplo, J. J. d'Oliveira Guimarães, “O que é a história”, Gazeta Hlustrada, Coimbra, 1 (5) 29 Jun. 1901, p. 38. Trata-se de uma interessante concepção determinista da história, segundo o modelo uniformitarista da geologia de Lyell, mas que não incorpora a lógica natural darwinista. (3) Vide, por exemplo, a dissertação de concurso à cadeira de História antiga, medieval e moderna do Curso Superior de Letras de A.A. Pires de Lima, O caracter scientifico da historia, Famalicão, Typographia Minerva, 1904. Uma ideia chave percorre toda a obra, a saber: o curso histórico foi e é dominado pela selecção social artificial e
viciado pelo triunfo do pathos (hereditariedade mórbida) nas classes dirigentes, em espe-
cial, na realeza, e, por isso, a história não tem um “carácter científico”, ou seja, para O
autor, não obedeceà lei da selecção natural. Todavia, no futuro, a história pode emancipar-se dos condicionalismos artificiais e naturalizar-se. Só então será cientificável. Note-se
que A.A. Pires de Lima, na sua original economia ideativa, é extremamente cauteloso
quanto à estratégia a seguir para normalizar darwinisticamente o evolver histórico. Vide: ob. cit., sobretudo, p. 61 e ss; pp. 102-103. (4) 3. Augusto Coelho, A theoria da historia, Lisboa, Livraria Classica Editora, 1914, p. 7.
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Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 5
de todos os seres viventes como um efeito das acções combinadas destes dois supremos e únicos factores — O Meio e a Luta pela Existência"(1). Os enunciados do autor não deixam margem para dúvidas. Estamos perante uma interpretação da história que, explicitamente, não lhe reconhece autonomia ontológica, antes supõe que ela é um ramo da árvore da vida, sujeito ao mesmo mecanismo evolucionário que rege toda a história natural. Ássim, O processo histórico, em todos os planos, seja o demográfico,
existência coloca ao seu serviço. É que, na óptica do autor, todo o valor é, autenticamente, um bio-valor e todo o poder é, objectivamente, um
o social, o económico, o institucional, o político, o ideológico, o mental, o cultural, o científico, o sanitário, o militar, etc., “tudo derivará das acções
fatalmente encadeadas e combinadas daqueles dois grandes factores de toda a História”(2). A dinâmica histórica procede da luta , entendida em
moldes darwinistas: “ela tudo transforma: religiões, ciências, artes,
crenças, organizações sociais, classes, leis, costumes, tradições — e até o próprio homem. Nadalheresiste de quanto constitui a grande existência colectiva da Humanidade”(?). Assim sendo, a luta pela existência adquire o estatuto de causalidade da dinâmica histórica, o que equivale a reduzir a história a um efeito mecânico do princípio da concorrência vital: “Tudo automático, espontâneo,fatal”(), na síntese de Augusto Coelho. A conflitualidade multifacetada que constitui a malha do processo histórico é entendida em moldes darwinistas(?), não havendo na obra do autor qualquer eco das filosofias da historia, designadamente da compreensão dialéctica, idealista ou materialista. Esta pobreza epistemológica reflete-se, de modo significativo, no estatuto e na função que o autor atribui aos códigos de relacionamento social e político, consignados no
direito, na ética, na diplomacia, etc.. Os valores humanistas, como a paz, a harmonia, a fraternidade, a igualdade e a solidariedade sociais não pas-
sam de uma máscara, de uma ilusão, de uma “mentira”() que a luta pela (!) Idem, ibidem, p. 7. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, p. 7. (3) Idem, ibidem, p. 206.
(*) Idem, ibidem, p. 237. (5) Vide: Idem, ibidem, p. 54.
(9) Vide: Max Nordau, As mentiras convencionaes da nossa civilisação. Traducção de Agostinho Fortes. 2? ed. Lisboa, Edição da Typographia de Francisco Luiz Gonçalves, 1910-1911, 2 vols. Diferentemente, em Max Nordau, algumas convenções sociais iludem o mecanismo natural da selecção: “Achamos na luta pela vida a base de todo o direito e de toda a morale, todavia, todos os dias fazemosleis e sustentamos instituições que absolutamente impedem o jogo livre e desembaraçado das forças”, ibidem, vol. 1, p. 37.
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bio-poder. Em conformidade com o determinismo naturalista, a própria pedagogia está ao serviço da selecção natural, não detendo um poder ver-
dadeiro de moldar a natureza animal do homem. Para esta perspectiva
redutora, a educação apenas dá ao homem o que Thomas H. Huxley, “le “chien de garde” de Darwin (...) appelle le 'masque de [ humanité "(1). Por mais sofisticadas que sejam as máscaras civilizacionais, a selecção natural não deixa de ser o mecanismo evolucionário da espécie humanae a instância que garante o triunfo da raça ariana na história. Uma vez que, segundo o nosso autor, a história da humanidade se esgota na história natural da espécie humana, compreende-se que o autor não necessitasse de recorrer a um outro quadro epistemológico para interpretar o processo histórico. Ao invés, a preocupação fundamental de Augusto Coelho consiste em não se desviar do biologismo, como se qualquer distância relativamente a esta matriz pusesse em causa a inteligibilidade científica da história. Com efeito, a teoria de Augusto Coelho opera uma enxertia da história na biologia, o que, não era, de modo algum, inédito(2) na cultura da época, nem, tão pouco, paradoxal(?), se atendermos à hegemonia do paradigma biológico(*) no quadro dasciências humanas. À luz do exposto, não surpreende que, na óptica de Augusto Coelho, exista uma continuidade linear entre a história da natureza, a pré-história,
a proto-história e a história, no sentido em que é o mesmo princípio abstracto da luta pela existência, através do mecanismo da selecção natural, que comanda toda a evolução. Assim, conforme sublinha o autor, “se a Luta pela Existência já forçara nos tempos idos muitos grupos humanos
a domesticarem os animais e assim os transformara em pastores, ela
forçará outros a domesticarem as plantas transformando-os em agricultores e, portanto — dada a urgência de se fixarem junto delas para as cultivar — a passarem de nómadas a sedentários”(>). A revolução da agri(1) Pierre Thuillier, Les biologistes vont-ils prendre le pouvoir? La sociobiologie en question. 1. Le contexte et 'enjeu, Bruxelles, Editions Complexe, 1981, pp. 154-155. (2) Vide: Paul Crook, Darwinism, war and history, ob. cit., sobretudo, pp. 63-97. (3) Vide: Michel Foucault, As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas, Lisboa, Portugália Editora, 1966, p. 476 e ss. (4) Vide: Marcello Cini, “Sciences galiléennes et sciences darwiniennes”. In: Les pouvoirs de la science. Un siecle de prise de conscience, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1987,p. 74 ess. (5) J. Augusto Coelho, A theoria da historia, ob. cit. pp. 92-93. Sublinhado do Autor.
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Darwin em Portugal
cultura, com todos os efeitos inovadores que ela gerou na orgânica social dos grupos humanos, designadamente a divisão do trabalho, não se traduziu num qualquer grau de libertação da humanidade do determinismo natural. Na perspectiva do autor, nem a etapa da fixação dos grupos pela agricultura, nem todas as conquistas posteriores que conduziram a espécie humana da animalidade à humanitude, no dizer de A. Jacquard(!), representaram uma ruptura com a lógica natural da vida. Pelo contrário: à concorrência vital acentua-se, alarga-se e complexifica-se. Os conflitos, a todos osníveis, inter-individuais e inter-grupais, inde-
pendentemente do seu nível civilizacional, obedecem ao jugo da luta pela. vida, ao qual a espécie humana e todas as demais espécies de seres vivos estão condenadas. Nas palavras do autor: “a fome não tem lei; ou antes tem uma: a guerra, a luta de homem contra homem, de povo contra povo, de massas de povos contra massas de povos (...). Mesmo no seio das civilizações mais requintadas, o homem que luta há-de conter em si, para se impor, uns restos da ferocidade do antropóide primitivo, se quiser alcançara vitória”(2). É a natureza instintiva do homem que lhe garante o seu triunfo e não, propriamente, o cumprimento das normasartificiais dos códigos de moral. A verdadeira consciência moral é aquela que faz da lei suprema da vida — a luta pela existência — o imperativo categórico da acção, tanto privada como pública. A verdade da história não está no reino das convenções sociais, dos códigos jurídicos, da formalidade civilizacional, no sentido em que, “a Evolução Histórica dos Povos é apenas um caso particular da Evolução Geral das Raças Humanas, comoesta o é da
Evolução Geral dos Seres Viventes”(3).
A história torna-se cientificamente inteligível através do evolucionismo que “tende a combinar na mesma concepção o pensamento de Lamarck e o de Darwin”(4). Por outro lado, Augusto Coelho adopta a ideia de evolução neo-lamarckiana triunfante na ciência e na cultura francesas, entre 1890 e 1914(º) e defendida, por exemplo, pelo zoólogo e represen-
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tante paradigmático do cientismo(!) quefoi Félix Le Dantec. Assim sendo,
não estamos perante uma teoria da história neo-darwinista de inspiração
weismanniana(?). Mas, por outro lado, Augusto Coelho acentua o mecanismo da selecção natural no processo evolucionário. Deste modo,na teoria do pedagogo português, a evolução histórica, tal como a evolução "orgânica, decorre de uma “adaptação directa” e de uma “adaptação indi“recta”. A primeira é “aquela em que, sob a acção dos Meios, se produzem nos seres vivos certas modificações que, transformadas em hábitos orgánicos novos, serão transmitidas por hereditariedade aos descendentes e provocarão a adaptação final ao Meio”(3). A segunda é “aquela em que, sob a acção das Lutas travadas entre os seres vivos pela posse das subsistências, certos combatentes possuidores de qualquer elemento de
superioridade — mesmo adquirido acidentalmente — vencem os seus
contendores e, uma vez triunfantes, assim seleccionados e transmitindo aos descendentes por hereditariedade as aptidões adquiridas, passam a constituir um grupo de seres mais perfeitos”(4). Estes dois processos simultâneos e correlativos são, notoriamente, um eco da equilibração directa (ou adaptação) e da equilibração indirecta (ou selecção natural) de Herbert Spencer(*). Tal como na evolução orgânica, também na história da humanidade, a adaptação ao meio tende para a estabilidade ou imobilidade e, simultaneamente, a selecção decorrente da luta gera instabilidade ou mobilidade. Assumindo o darwinismo biológico na sua versão neo-lamarckiana,
o autor postula a espontaneidade do devir, enquanto resultado da luta travada em circunstâncias mesológicas que a condicionam positiva ou negativamente. Com efeito, a acção do meio repercute-se no grau de “nutrição” do sistema nervoso dosindivíduos e das raças e, nessa medida, ela é decisiva. É que, a energia das raças plasma-se na “individualidade
(1) Vide: Georges Gusdorf, “Le divorce de la science et de la philosophie: du positivisme au scientisme”. In: Georges Gusdorf, Introduction aux sciences humaines. Essai
(!) Albert Jacquard, A herança da liberdade. Da animalidade à humanitude, ob. cit.; Do mesmoautor, “Humanitude”, Le Genre Humain,art. cit., pp. 123-127. (2) J. Augusto Coelho, A theoria da historia, ob. cit., p. 96. Vide, também, p. 198ess. () Idem, ibidem, p. 223.
(*) Idem,ibidem,p. 225.
(*) Vide: Peter J. Bowler, El eclipse del darwinismo. Teorias evolucionistas anti: -darwinistas en las décadas en torno a 1900, Barcelona, Editorial Labor, 1985, sobretudo, pp. 87-135.
critique sur leurs origines et leur développement, ob. cit., pp. 343-364. (2) Vide: August Weismann, “The selection theory”. In: Seward, A. €. (ed),
Darwin and modern science. Cambridge, At The University Press, 1909, pp. 18-64; Jaime de Magalhães Lima, “Augusto Weismann, o successor de Darwin”, Revista de Portugal,
Porto, 3, 1890, pp. 293-299.
(3) J. Augusto Coelho, A theoria da historia, ob. cit., p. 225. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, p. 226. Sublinhado do Autor. () Vide: Herbert Spencer, The principles of biology, London, Williams and Norgate, 1880, vol. 1, p. 462 e ss.
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Darwin em Portugal
dos povos”(!) e emana directamente do estado nutritivo do sistema nervoso que, por seu turno, depende das condições do meio. No texto do autor, o meio compreende um vasto conjunto de factores mesológicos,tais
como, “Temperatura, Luz, Electricidade, Ar, Humidade, Solo, Fauna, Flora”(2) e ainda todas as circunstâncias resultantes da actividade sin-
crónica e diacrónica dos multímoda, é feita pela ponentes, isoladamente. gmático: “num globo ao
homens. A avaliação do meio, na sua totalidade análise dos efeitos de cada um dos seus comVejamos o caso da temperatura, que é paradiqual não viessem modificar relevos, depressões,
horizontalidades ou outras circunstâncias, a Temperatura, reduzida a pura-
mente astronómica, poderia — só de per si — dar-nos a razão por que uhs povos são enérgicos e outros amolecidos, uns individualistas e outros sociáveis, uns impulsivos e outros reflectidos. Ela, só ela, provocando
lenta e permanentemente uma nutrição elevada ou deprimida do sistema nervoso, explicaria a alma dos povos”(2). A configuração das diferenças psicológicas que singularizam os povos é, em última instância, resultante da relação mecânica entre os estímulos provocados pelo meio exterior é a reacção adaptativa dos indivíduos. Daí que o autor seja levado a concluir que, “o Meio é o factor supremo da Alma dos Povos. Meio tónico e fortificante, povos fortes e tenazes; Meio amolecedor, povos fracos e incons-
tantes”(4). É o determinismo mesológico que moldao sentido da evolução histórica, por selecção natural.
A noção de “alma dos povos” inspira-se na psicologia social naturalista de Gustave Le Bon(?) e Augusto Coelho faz questão de sublinhar o seu suposto rigor científico. Para tanto, estabelece um paralelismo entre à formulação dos tipos de “alma dos povos” e a reconstituição das formas orgânicas paleontológicas. Neste sentido, transpõe, de modo simplista, O princípio fundamental da anatomia comparada de Cuvier, a saber, a lei da correlação das formas, para a físio-psicologia social comparada. Esta transposição é concebida nos seguintes termos: “à solidariedade existente
Autor.
(!) J. Augusto Coelho, A theoria da historia, ob. cit., p. 156 e ss. Sublinhado do
(2) Idem, ibidem, p. 158. () Idem, ibidem, p. 174. (4) Idem, ibidem, p. 196. Sublinhado do Autor.
(*) Vide: Gustave Le Bon, Leis psychologicas da evolução dos povos. Traducção
de Agostinho Fortes. Lisboa, Typographia de Francisco Luiz Gonçalves, Editor, 1910.
Sobretudo a noção de “alma das raças”, pp. 13-40. Vide, também, J. Augusto Coelho,
A theoria da historia, ob. cit., pp. 21- 52.
Parte II — Capítulo 5
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entre todos os atributos que constituem a alma dum povo pode aplicar-se o conhecido conceito dum grande naturalista. Ele dizia: deêm-me um dente dum animal e porele reconstituirei todo o animal. O psicólogo dirá: deêm-me uma qualidade psíquica dum povo e por ela reconstituirei toda a sua alma”(!). Augusto Coelho não identifica o naturalista, mas trata-se,
inequivocamente, de Georges Cuvier. Ora, o naturalista-paleontólogo francês, de grande projecção internacional, nas primeiras décadas do século XIX, fez da anatomia comparada a ciência das leis gerais da organização animal, e entre elas, consta, justamente, o princípio da correlação das formas dos seres organizados, “ao moyen duquel chaque sorte d'être pourrait, à la rigueur, être reconnue par chaque fragment de chacunede ses parties”(2). Foi na base deste princípio que, nas palavras do autor, “nous avons déterminé et classé les restes de plus de cent cinquante mammifêres ou quadrupêdes ovipares”(2). Atendendo, por um lado, à obra genial de Cuvier, resultante de décadas de trabalho especializado intensíssimo(?), e, por outro lado, à incomensurabilidade e complexidade do objecto que Augusto Coelho se propunha analisar, torna-se manifesto o uso abusivo que o pedagogo português fazia do princípio anátomo-fisiológico da cor-
relação das formas. Além disto, se para o nosso autor a história era um
capítulo da biologia transformista, não fazia muito sentido invocar a autoridade máxima do fixismo criacionista(”), o qual era sustentado pela conjugação do princípio da essencialidade tipológica com outros princípios, designadamente, o da correlação das formas(*). O certo é que, Augusto Coelho, escudando-se neste princípio, apresenta umaclassificação essencialista da “alma dos povos”, distinguindo os seguintes tipos gerais: “1º — O tipo báltico, compreendendo os habitantes da Zona Báltica — dolicolouros, dotados de poderosas qualidades de vontade, de sentimento equilibrado, de inteligência profunda, dados à vida (1) 3. Augusto Coelho, À theoria da historia, ob. cit., p. 50. (2) Georges Cuvier, Discours sur les révolutions du globe. Avec des notes et un appendice d'aprês les travaux récents de Mm. De Humboldt, Flourens, Lyeil, Lindley, etc. rédigés par le Dr. Hoefer, Paris, Librairie de Firmin Didot Frêres, Fils et Cie., 1867, p. 62. () Idem, ibidem, p. 70. Veja-se também, pp. 188-222. (4) Vide: Franck Bourdier, “Cuvier, Georges”. In: Dictionary of scientific biogra-
phy, New York, Charles Scribner's Sons, 1981, vol. 3, pp. 521-528. (5) Vide: Georges Cuvier, Discours sur les révolutions du globe. Avec des notes et
un appendice d'aprês les travaux récents de Mm. De Humboldt, Flourens, Lyell, Lindley, etc. rédigés par le Dr. Hoefer, ob. cit., sobretudo, p. 77 e ss.. (9) Vide o artigo “correlation of parts” in MacMillan dictionary of the history of science. Edited by W. F. Bynum,E. J. Browne, ob. cit., p. 83.
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Darwin em Portugal
interior, individualistas, em suma revelando força em todo o seu ser;
2º O tipo setentrional das regiões geladas e o meridional, representados, quer pelos Russos e outros povos dos países excessivamente frios, quer pelos Meridionais — uns e outros em geral escuros, numerosas vezes
braquicéfalos, moles de vontade, de sentimento explosivo, de inteligência superficial, dados à vida exterior, essencialmente sociáveis, revelando
finalmente fraqueza em toda a sua psicologia”(!). Estes tipos de “almados povos”, ou perfis psicológicos, são estruturais, fixos e constantes, pelo que não estão sujeitos a mudanças ao longo do curso histórico. Eles não apresentam um grau de plasticidade significativo, porque as partes da “alma” se correlacionam em termos de mútua dependência, em conformidade com
o nível de nutrição do sistema nervoso. Assim sendo, o autor recorre ao referido princípio de Cuvier, não só para justificar o essencialismo psicológico dos tipos de “alma dos povos”, mas também para reforçar o postulado da relação mecânica entre o meio € o sistema nervoso, entre este e a “alma dos povos”, e, entre esta € a civi-
lização. Neste sentido, escreve: “Quando nos pomos a comparar o:feitio especial de cada povo e o tipo da civilização por ele criada notamos um facto que é indispensávelregistar. É este: existe sempre íntima correlação entre a Individualidade desse povo e a Civilização que conseguiu dar à luz”(2). O nível civilizacionalreflecte o tipo de “alma do povo”. Esta pretensa lei científica da história é observável em todos os casos. Por exemplo, “a grande Alma Germânica”(2) espelha-se numa organização social, sem paralelo, desde o plano económico ao nível das artes. À superioridade alemã, o autor contrapõe a “alma portuguesa”, feita de “moleza”, de “indisciplina”, de “superficialidade”(*), o que se traduz necessariamente numacivilização inferior. Como em Gustave Le Bon(>), são as características psicológicas dos povos que modelam a sua história, mas, em Augusto Coelho a “alma dos povos” reflecte de forma mais radical o determinismo mesológico.
Autor.
(1) J. Augusto Coelho, A theoria da historia, ob. cit., pp. 50-51. Sublinhado do (2) Idem, ibidem, p. 69. Sublinhado do Autor.
() Idem, ibidem, p. 70.
(4) Idem, ibidem, pp. 70-71. Sublinhado do Autor.
(*) Vide: Gustave Le Bon, Leis psychologicas da evolução dos povos, ob.cit., capttulo intitulado, “Como as instituições derivam da alma dos povos”, pp. 108-115:. Nó mesmo sentido, Augusto Coelho defende que “não são as Instituições Sociais que modelam os povos, são os Povos que fazem as Instituições em concordância com o seu génio € as suas necessidades”, À theoria da historia, ob. cit., p. 82.
Parte 1 — Capítulo 5
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Com efeito, de todas as zonas geográficas, aquela que propicia o grau “ mais elevado de civilização é a zona báltica, ou seja, a zona do mar do “Norte e do Báltico “que serve actualmente de pátria aos Ingleses, Suecos, Dinamarqueses, Franceses do Norte, Alemães, etc., isto é, aos povos de “mais potente e tenaz energia que povoam a Terra”(!). A zona mediter“rânica também oferece boas condições para o aperfeiçoamento civilizacional. Mas, entre estas duas zonas e respectivos tipos de alma, o autor
estabelece uma diferença em termos sexistas, o que denota que Augusto "Coelho não desconhecia o critério de distinção das raças em raças masculinas e raças femininas, instituído pela mitologia racial de Gobineau(?). Todavia, Augusto Coelho não faz qualquer referência ao diplomata francês é à sua obra, Essai sur Vinégalité des races humaines (1853-1855)0), provavelmente por não aceitar a tese pessimista de Gobineau(?), segundo
a qual o cruzamento das raças humanas conduzia à degenerescência da
espécie humana e à decadência civilizacional; ou, talvez, por saber que os pressupostos de Gobineau eram incompatíveis com a genuína lógica darwiniana(), pois esta sublinhava as vantagens evolucionárias dos cruzamentos entre variedades da mesma espécie. Na obra de Augusto Coelho, a distinção entre raças masculinas e raças femininas revela-se operativa nos seguintes termos:”o báltico forte, tenaz, dominador, é a masculinidade; o mediterrâneo, mais mole, mais
inconstante, apto a ser dominado, tem qualquer coisa de frágil, de doce, de efeminado. São ambosdois tipos de eleição, dois tipos superiores. À sua colaboração, a essa colaboração em que as brandas qualidades do tipo
mediterrâneo por assim dizer amaciam a dureza das do báltico, se devem
as maiores e mais explêndidas civilizações históricas”(9). É manifesto que
(1) T. Augusto Coelho, A theoria da historia, ob. cit., p. 16. (2) Vide: Michel Korinman; Maurice Ronai, “Le modêle blanc”. In: François Chãtelet, Histoire des idéologies, vol. 3 (Savoir et pouvoir du XVIlle au XXº siêcle), Paris, Hachette, 1978, sobretudo p. 265 e ss. (3) Conde de Gobineau, Essai sur inégalité des races humaines, ob.cit. (4) Vide: Annette Smith, Gobineau et Phistoire naturelle. Genêve, Librairie Droz,
1984, p. 213-221.
() Vide: Patrick Tort, La pensée hiérarchigue et Vévolution, ob. cit., p. 197 e ss; Annette Smith, Gobineau et V'histoire naturelle, ob. cit., pp. 193-221. (5) J. Augusto Coelho, A theoria da historia, ob. cit., p. 237. Sublinhado do Autor. Aleitura da história da Europa sob o ponto de vista dos contactos e relações entre duas ou três raças, a “báltica”, a “mediterrânica” e a “alpina”, verificou-se na sequência do desenvolvimento da antropologia racial da Europa. Vide: William Cecil Dampier, Historia de la ciencia y sus relaciones con la filosofia y la religion, ob. cit., p. 310. Vide: Vacher
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Parte
Darwin em Portugal
a distinção masculino-feminino é usada, no texto de Augusto Coelho, para mascarar a hierarquização das raças e dos povos da Europa, o que, de facto, não é, nem recusado, nem questionado pelo nosso autor. Augusto Coelho não alcança resultados substancialmente diferentes daqueles que toda uma literatura historiológica e sociológica de fundo biologista difundia, com sucesso, na cultura europeia. Era o caso das obras do médico Gustave Le Bon, que tiveram uma difusão notável(!) em muitas
línguas(?). E, não há dúvida que Augusto Coelho,na sua teoria dahistória,
perfilha a ideia chave de Le Bon, apresentada, sobretudo, nas obras, Lois
psychologiques de Pévolution des peuples (1894) e Psychologie des foules (1895). Com efeito, a noção de “alma dos povos” de Augusto Coelho é semelhante à noção capital do autor francês de “alma das raças”(?), cuja carga semântica decorria da classificação hierárquica das raças históricas em termos bio-psicológicos. Igualmente nos dois autores, a noção de alma, seja a “alma dos povos”, seja a “alma das raças” históricas, é defini-
da em termos essencialistas no plano do carácter, que é considerado O
elemento decisivo na constituição orgânico-mental(). Também, tal como
em Gustave Le Bon e em Vacher de Lapouge, é em nome da sobrevivência do mais apto na luta pela vida que Augusto Coelho afirma a negatividade dos valores democráticos e igualitários cultivados pelo homem mediterrânico.
Não admira que assim fosse, pois, como concluiu Léon Poliakov, “a
doutrina da selecção natural, após ter proclamado que a vitória cabia ao de Lapouge, Race et milieu social. Essais de anthroposociologie, ob. cit., p. 388. Édouard 67: Conte; Comelia Essner, La quête de la race. Une anthropologie du nazisme, ob. cit., p. (1) Como escreve Serge Moscovici, “le tirage global de son ...uvre est Vune des plus grandes réussites scientifiques de tous les temps”, L'áge des foules. Un traité historique de psychologie des masses, Paris, Fayard, 1981, p. 81. (2) Vide: Serge Moscovici, L'áge des foules. Un traité historique de psychologie des masses, ob. cit., p. 90. A obra de Gustave Le Bon, Psychologie des foules (1895) foi mesmo traduzida em árabe e em japonês. Também Léon Poliakov afirma que esta obra foi traduzida para quinze línguas e que em 1921 já havia 28 edições francesas. Vide: Léon ob. Cit. Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos,
p. 276. Claude Liauzu também regista o impacto cultural da Psychologie des foules que, só em francês, conheceu quarenta e cinco edições entre 1895 e 1963. Vide: Claude Liauzu, Race et civilisation. L'Autre dans la culture occidentale. Anthologie historique, ob. Cit., p. 114. A tradução portuguesa foi feita por Agostinho Fortes. Vide: Gustave Le Bon, Psychologia das multidões, 2º ed., Lisboa, Tipografia de Francisco Luiz Gonçalves, 1909. (3) Vide: Gustave Le Bon, Leis psychologicas da evolução dos povos, ob. cit;
p. 13ess. (9) Vide: Idem, ibidem, pp. 30-40.
— Capítulo 5
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mais apto, abria aos teóricos possibilidades aparentemente infinitas de designar “os mais aptos” de sua escolha, de especular sobre o resultado da competição, no seio da sociedade civilizada, entre *os mais fecundos” e “os
melhores”, de decidir quem, isto é, que linhagem, ou que classe, ou que
sub-raça ariana era a “melhor”, de emitir um juízo sobre o valor das 'misturas inter-raciais”, e assim por diante”(1). Na verdade,para o nosso autor, a “alma feminina” do homem mediterrânico, nutria uma simpatia desmedida pelo ideário da igualdade, o que, em seu entender, se tornava compreensível à luz da fraqueza psicológica do latino que se plasmava na sua “sociabilidade exagerada”(2). Este traço do carácter latino tornava-o sensível aos valores democráticos mas levava-o a confundi-los com “Igualitarismo, Indisciplina, Humanitarismo e Anarquia”(). É que, a feminilidade neuro-psicológica do latino determinava que ele sonhasse com “uma sociedade sem concorrência, isto é, sem lutas, sem conflitos
entre os homens. Como se o Conflito, a Luta pela Existência não fora a lei geral da vida, lei tão imperiosa como a da Atracção Universal”(*). Em si mesmo, o exagero de feminilidade da alma mediterrânica era-lhe prejudicial, porque a luta pela vida condenava ao fracasso os ideários sociopolíticos fundados nos princípios da igualdade, da fraternidade, da solidariedade e da cooperação(*). No entanto, a fraqueza do homem do sul chamava para a luta a masculinidade ariana do norte e, nessa medida, aquela fraqueza podia revelar-se benéfica, em termoscivilizacionais, se a aproximação do nórdico não fosse demasiado brutal. Embora o autor considere legítimas as aspirações pangermanistas do homem do norte, pois radicavam na força masculina da sua alma e da sua obra civilizacional, não se pronuncia sobre as “profecias” seleccionistas de Vacher de Lapouge(*), que não desconhecia, de todo em todo, pois, no decurso da sua exposição recorre algumas vezes à primeira obra de antroposociologia(”) deste autor francês, que foi particularmente bem sucedido (1) Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., p. 287.
(2) J. Augusto Coelho, A theoria da historia, ob. cit., p. 142.
() Idem, ibidem, p. 142. (4) Idem, ibidem, p. 142.
(é) Vide: Idem, ibidem, p.96. (6) Vide: Jean Colombat, La fin du monde civilisé. Les prophéties de Vacher de Lapouge, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1946. (7) J. Augusto Coelho conhecia Les sélections sociales (1896) de Georges Vacher de Lapouge. Vide, A theoria da historia, ob. cit., p. 106; p. 154. Em nosso entender, o trabalho imenso desenvolvido por Vacher de Lapouge, no sentido de fazer da antropo-
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Darwin em Portugal
na Alemanha(!). O silêncio de Augusto Coelho, relativamente ao pessimismo histórico de Vacher de Lapouge e ao seu programa de regeneração eugenista da raça ariana, pode significar que o nosso autor cultivava, em última análise, uma leitura optimista do processo histórico decorrente de um entendimento da evolução por selecção natural, em moldes perfectibilistas. Contrariamente, Vacher de Lapouge não atribuía um sentido progressista à espontaneidade seleccionista do curso histórico. Segundo afirmava “les biologistes avisés voyaient bien que la lutte pour la vie ne se terminait pas toujours au bénéfice des organisations les plus parfaites(2). Este postulado era válido para a história natural, incluindo a história da espécie humana, e, também, para a compreensão antroposociológica da luta de classes, pois, “encore plus que la lutte des peuples celle des classes est une lutte de races”(2). Ora, de acordo com asestatísticas de reprodução das classes sociais, o autor predizia que a selecção natural se encaminhava a passos largos para garantir, textualmente, “le triomphe des classes inférieures sur les classes supérieures, des brachycéphales sur les Aryens”(). A história do Ocidente estava condenada à decadência, pois evoluia para a mediocridade com o triunfo dos maisfracos.
-sociologia uma ciência multidisciplinar (inscrevendo-a na biologia de Darwin, na craniometria de Broca,na raciologia de Gobineau, na eugenia de Galton, na teoria da here-
Parte II — Capítulo 5
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Em coerência, Vacher de Lapouge concluía: “Si Von nese décide pas bientôt à faire de la sélection systématique, Vavenir de la race est en dan-
ger, et le mouvement démocratique, qui tend à transférer toute 'impor-
tance sociale aux classes pauvres et dégénérées, est un véritable suicide de
Phumanité. ['évolution de "homme n'est pas terminée: finira-t-il Dieu ou singe? C'est la sélection qui décidera”(1). O seleccionismo eugenista lapougiano implicava o culto da perfectibilidade da espécie humana, pela preservação da pureza do sangue ariano e, correlativamente, assumia a ideologia do progresso histórico, pela “fé na supremacia dos “nórdicos” ou dolicocéfalos louros”(2). Como se compreende, o autor empenhou-se em provar os malefícios bio-antropológicos e socio-históricos da miscigenação(2), para legitimar o seu eugenismo e, simultaneamente, advogou que os valores democráticos, em especial o educacionismo, eram uma
aberração científica(*).
Ora, todo este leque temático era objecto de análise em Les sélections sociales(*), que Augusto Coelho conhecia. Por isso, não temos dúvidas em afirmar que, Augusto Coelho permaneceu fiel à sua formação pedagogista, mas não fez da sua teoria da história uma obra de militância pedagógica, porque o seu objectivo era defender o determinismo do processo histórico segundo as leis naturais darwinistas no horizonte duma ideia optimista de evolver. Deste modo, a selecção natural garantia o progresso histórico, como se ela fosse uma Providência omnipotente que o
ditariedade mendeliana, e recorrendo aos métodos estatísticos e biométricos), não se
traduziu na constituição de uma ciência nova. É por isso que, a sua antropo-sociologia se identifica com a substancialização cientista do “mito nórdico”. Nas palavras do autor, à antropo-sociologiaé, finalmente, “la théorie de la supériorité de la race aryenne,de la race demi-divine aux yeux de ciel et aux cheveux de lumiêre”, Vacher de Lapouge, Race et
milieu social. Essais de anthroposociologie, ob. cit., pp. VIL-VIHI. Vide, também, Idem,
ibidem, p. XIV, p. 289 ess.;p. 327 ess. (1!) Vide: Jean Colombat, La fin du monde civilisé. Les prophéties de Vacher de Lapouge, ob. cit., p. 9 e ss.; p. 130 e ss.; Vacher de Lapouge, Race et milieu social. Essais de anthroposociologie, ob. cit., p. 390. Recorde-se que a obra lapougiana Race et milieu social é a compilação e a tradução para o francês de um conjunto de monografias publicadas em inglês, italiano e, sobretudo, em alemão, em revistas especializadas (como à Politisch Anthropologische Revue dirigida pelo cientista e médico L. Woltmann), nos finais dos anos noventa e princípios do século XX. A referida obra representa uma tentativa do autor de se projectar no seu país, que lhe era indiferente e, de algum modo, hostil. Vide: Vacher de Lapouge, Race et milieu social. Essais de anthroposociologie, ob. cit., sobretudo p. XXXI; p. 325-331. (2) Vacher de Lapouge, Race et milieu social. Essais de anthroposociologie, ob.
cit., p. XXVIL (3) Idem, ibidem, p. XXIX. (4) Idem, ibidem, p. XXVIL
(1) Idem, ibidem, p. 226. Sublinhado nosso.
(2) Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., p. 289. (3) Vide: Vacher de Lapouge, Race et milieu social. Essais de anthroposociclogie, ob. cit. p. 84 e ss.; Vide, também, sobre o mito dos perigos da mestiçagem, Pierre-André Taguieff, “La bataille des sangs”. In: Des sciences contre Vhomme, Paris, Éditions Autrement, 1993, vol. 1, pp. 144-167. (4) Vide: Vacher de Lapouge, Race et milieu social. Essais de anthroposociologie, ob. cit., p. 312 ess. (*) Vide: Jean Colombat, La fin du monde civilisé. Les prophéties de Vacher de Lapouge, ob. cit., pp. 49-85. Em Les sélections sociales Vacher de Lapouge avaliava o educacionismo confrontando-o com o seleccionismo e concluía: “Il est probable que si dans V'espêce humaine la fonction de reproduire était réservée par privilêge exclusif aux individus d'élite de la race supérieure, au bout d'un siêcle ou deux on coudoierait les hommes de génie dans la rue et que les équivalents de nos illustres savants seraient utilisés aux travaux de terrassement, mais il est três douteux que dans un million d'années,
Péducation même intégrale des individus puisse produire seule un résultat semblable”. In: Jean Colombat, La fin du monde civilisé. Les prophéties de Vacher de Lapouge, ob. cit., p. 58. Sublinhado nosso.
326
Parte II — Capítulo 5
Darwin em Portugal
outro lado, não carecia deser homem não podia contrariar e que, por SÀ
para assegurar O a o da coadjuvada pela selecção artificial positiva,
do que postulavam os « arwinis ; ariana no tempo futuro, ao contrário autor, todas as selecções opera as -raciológicos(!). Assim, para o nosso e
ções militares, religiosas no curso histórico, como sejam as selec dos mais aptos e, por mais médicas, não eram contrárias à preservação se afigurassem, não se que artificiais que fossem, por mais negarvas Cc oder da selecção natural. m intitulado assi tema, o tratar to modo, o róprioDarwin ao (2), não ons Nati ised por ele-mesmo, “Natural Selection as affecting Civil podes o mava al, antes afir opunha as selecções sociais à selecção natur aS nu a ção operada pe desta, apesar daquelas. Por exemplo, a selec em the o evolucionário: não impediu o funcionamento do mecanism
and boldest men in o Inquisition selected with extreme care the freest A ose
of the best men to bum or imprison them. In Spain alone some ting there cam H no doub ut who doubted and questioned, and witho at the rate o at aa ries progress — were eliminated during three centu effected is inc thus ch has sand a year. The evil which the Catholic Chur an unpara e at essed culable (...); nevertheless, Europe has progr defender que Darwin con a rate” (3). Evidentemente, não pretendemos cadas pelas sociedades 4.6 Ó= nava as diferentes formas de selecção prati icas, militares, médicas, ricas, fossem essas selecções religiosas, polít mos concluir que, por EE económicas ou jurídicas. Também não visa
exemplar. Trata-se, isso a turno, Augusto Coelho era um darwinista E
o após a teoria gi afirmar que o darwinismo historiológico, mesm te seleccionis aro É amen niana(”), não evoluiu num sentido exclusiv arevelar a sua operativi ça leitura lamarckisante de Darwin continuava
uiu( ). Portanto, não sureÉ cultural que, de resto, até hoje, não dimin
ação rácica era uma 1O que Augusto Coelho sustentasse que à miscigen
s Ludwig de Georges Vacher de Lapouge, os alemãe É 1) Entre outros, além classes, des “Lutte n, Massi t Benoi Vide: oro. Nicef Woltma e Otto Ammon,e o italiano é s ess. 138 p. me, ob. cit., vol. À, lutte des races”. In: Des sciences contre Vhom Secon sex. to ion relat in tion selec and (2) Charles Darwin, The descent of man, nted, ob. cif., pp. 133-143. edition (eleventh thousand), revised and augme | 141. m,p. ibide (3) Idem, Vévolution. L'évolution de Vévolution: (4) Vide: Denis Buican, La révolution de nisme, ob. cit., pp. 167-170. eis. Ensaio sobre a diversidade: do (5) Vide: François Jacob, O jogo dos possív ss. e 35 p. mundo vivo, ob. cit., sobretudo
327
de vantagens selectivas e evolucionárias. Nessa medida, o autor não
dramatiza a aliança física e mental do nórdico com o mediterrânico, não
postula a sua incomunicabilidade psicológica, não coloca o problema do seu cruzamento em termos de hibridez, não partilha da “mixophobie” de Vacher de Lapouge(!), não alimenta o mito da pureza racial do sangue nórdico(2). Por isso, é indiferente à ideia raciológica do decadentismo do nórdico, isto era, do Homo Europaeus (alto, louro, dolicocéfalo)(), cuja pureza física e mental, no dizer de Vacher de Lapouge, se encontrava manchada e perigosamente ameaçada em virtude dos seus cruzamentos históricos com o Homo Mediterraneus e com o Homo Alpinus. Para Vacher de Lapouge, a França testemunhava esta realidade, pois as investigações antropológicas eram concludentes: “la marche vers la brachycéphalie s'accuse de siêcle en siêcle”(4). A verificação científica antroposociológica da diminuição progressiva da qualidade dos caracteres físicos e mentais da França, ou seja, a sua braquicefalização, anunciava, sem margem de erro, a decadência e, quiça, a morte da civilização ocidental. Por isso, a selecção artificial positiva era assumida como uma questão vital. O silenciamento de todas estas questões que, em 1914, à data da publicação da obra de Augusto Coelho, agitavam a cultura europeia, testemunha a indiferença do nosso autor? Ou é revelador de uma atitude de prudência(), em relação à doutrina nórdica da “mística
(!) Vide: Claude Liauzu, Race et civilisation. L'Autre dans la culture occidentale.
Anthologie historique, ob. cit., p. 226.
(2) Vide: Idem, ibidem, p. 243. Em Les sélections sociales, Vacher de Lapouge
escrevia: “La supériorité du Yankee, de 1º Anglais, du Hollandais, du Scandinave sur le Français, "Kalien, " Espagnol, 1 Américain du Sud, n'est pas seulementla conséquence de la supériorité de la race, mais aussi de la pureté du sang. Les premiers sontà la fois de race européenneet de race pratiquement pure, les autres ont peu de sang européen, et leur degré d'infériorité correspond à leur degré de métissage”, citado por Jean Colombat, La fin du monde civilisé. Les prophéties de Vacher de Lapouge, ob. cit., p. 62. (2) Vide: Vacher de Lapouge, Race et milieu social. Essais de anthroposociologie,
ob. cit., p. 83. (4) Idem, ibidem, p. 59.
(5) Essa atitude de prudência podia ser alimentada pela leitura do sociólogo francês de origem russa, crítico do darwinismo racista, Jacques Novicow. Uma das suas obras fundamentais já circulava em português: O futuro da raça branca. Critica do pessimismo contemporaneo. Traducção de Agostinho Fortes. Lisboa, Empreza do Almanach EncyclopedicoIllustrado, 1908. Por outro lado, é possível que Augsuto Coelho conhecesse o trabalho do médico Francisco da Silva Teles (sobre o Primeiro Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres), no qual o autor valorizava os argumentos científicos dos defensores das vantagens evolucionárias da miscigenação das
328
Darwin em Portugal
ariana”(!)? Sem dúvida, o mito nórdico construído pela antroposociologia
usava de forma distorcida os conceitos darwinistas de luta pela vida, varia-
ção, adaptação, selecção natural, hereditariedade, raça, inscrevendo-os num horizonte eugenista, em nome do progresso histórico e da perfectibilidade humana. Mas, a teoria de Augusto Coelho não era menos ideológica, pelo facto de não alinhar com o fundamentalismo seleccionista da antroposociologia. O cientismo do nosso pedagogo é conformista, diria
mesmo, providencialista, no sentido em que, na sua teoria da história, a
selecção natural assemelha-se a um Deus bom que vela pelo progresso; nos limites do possível, atendendo à insuperável animalidade da espécie humana.
PARTE HI DARWINISMO E ENGENHARIA SOCIAL
raças. Vide: Francisco da Silva Teles, “O Primeiro Congresso Internacional das Raças”, Revista de Historia, Lisboa, 1 (1) Jan.-Mar. 1912, pp. 1-15; 1 (3) Jul.-Set. 1912,
pp. 1397-144.
(1) Vide: Léon Poliakov, O mito ariano. Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos, ob. cit., p. 299 e ss.
CAPÍTULO 1 A sociologia bem temperada de Teófilo Braga 1. Princípio biológico da população, luta pela vida, variação e selecção
A abordagem exaustiva da sociologia teofiliana, feita por Amadeu Carvalho Homem(1), permite-nos tomar como dado adquirido que Teófilo Braga operou uma renovação da jovem ciência baptizada por Auguste Comte em 1839(2); e que, para o efeito, o pensador açoreano se socorreu de uma estratégia epistemológica multidisciplinar, emborafiel à taxonomia hierárquica das ciências e à leis dos três estados do comtismo. Ora,
sendo certo que essa renovação efectiva da matriz comtiana se traduziu num biologismo sociológico, pelo aprofundamento das relações de dependência onto-gnoseológica da sociologia relativamente à biologia (anatomia, fisiologia, patologia, embriologia, etc.), como demonstrou Amadeu Carvalho Homem, então faz todo o sentido re-interrogar a obra teofiliana sobre o valor nela atribuído aos princípios darwinianos. A questão que constitui o objecto do nosso cuidado pode formular-se nestes termos: em que medida é que a revolução darwiniana foi tomada como condição de possibilidade e de necessidade de uma reorganização da sociologia positivista? Ou, dizendo de outro modo: no biologismo sociológico de Teófilo Braga, os princípios darwinianos ocupam uma posição significativa em termos cognoscitivos do real social? Em 1877, no capítulo V dos seus Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas(), Teófilo (1) Vide: Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., sobretudo pp. 133-169. (2) Vide: Ana Leonor Pereira, “No rasto de problemas actuais da história”, art. cit., p. 607. (3) Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, Lisboa, Nova Livraria Internacional, 1877.
332
Darwin em Portugal
Parte III — Capítulo 1
intenta uma “reorganização da sociologia”(!), fundando-a numa base natural, justamente, “o facto biológico da População”(2), porque esta é considerada a materialidade ou o ontos primário e irredutível do social(?). Uma vez que “a sociedade começa pelo agregado formado pela necessidade biológica do sexo e da prole”(?), é óbvio que ela pressupõe o real biológico denominado população e, por isso, a sociologia tem de se alicerçar na concepção científica, isto é, biológica, do problema da população: “as relações de dependência imediata da Sociologia para com à Biologia é que impõem o problema da População como o ponto de partida das considerações sociológicas”(*). Dado que a revolução darwiniana de 1859 cientificou o problema da população no interior da biologia, tonava-se necessário e legítimo reformular a sociologia comtiana ao nível dos fundamentos — tal é o argumento do autor. Com efeito, Teófilo advoga, em defesa de Comte e da lógica do positivismo, que antes da obra darwiniana de 1859 não era possível estabelecer a base biológica da sociologia. É que, embora Th. Malthus já tivesse formulado o Princípio da População(º), em 1798, este não tinha poder epistemológico no domínio da biologia e, portanto, não podia ser assumido pela sociologia, atendendo à lógica relacional entre as ciências na tábua enciclopédica de Comte. Por isso, “na determinação da base da Sociologia é que Augusto Comte se desprendeu do estímulo biológico, fundando-a sobre o facto histórico da autoridade nas suas manifestações de poder temporal e espiritual, sua separação e transformação progressiva”("). Mas, se Comte não estabeleceu essa relação fundamental e fundante entre a Biologia e a Sociologia
campo da Economia política (...); além disto, este problema era prematuro na ciência, porque o ponto donde devera começar o seu estudo pertence à Biologia, no grande fenómeno do conflito pela vida, donde Darwin deduziu a síntese integral da origem das espécies”(!). Portanto, se uma revolução científica se operou na Biologia e se essa revolução instituiu uma lógica da vida válida para todos os seres vivos, incluindo a espécie humana, então, impunha-se reformular os próprios alicerces da sociologia, pois assim o exigia o espírito positivo(2). Queristo dizer que, em termos programáticos, Teófilo propõe-se, sem reservas, atribuir à teoria da selecção natural o estatuto de princípio científico fundante da Sociologia? Vejamos: textualmente é-nos dito que “o princípio de Malthus(...) reduzido à sua verdadeira origem e comprovado nela foi o motor principal da nova ordem de concepções que levaram Darwin às explicações do transformismo. Depois desta profunda comprovação biológica é que se deve seguir a reconstrução da Sociologia baseada sobre essa lei iniludível do conflito vital (..)”(). Embora, neste texto, Teófilo Braga não faça referência à selecção natural, não é lícito concluir que a autoridade de Darwin é convocada apenas para creditar o princípio malthusiano, tanto
foi por razões de ordem rigorosamente científica e não outras. Com efeito,
“o princípio da População era no seu tempo debatido unicamente no (!) Idem, ibidem, pp. 202-239.
(2) Idem, ibidem, p. 202. Sublinhado do Autor. (2) Vide também: Teófilo Braga, “Mesologia das civilisações”, Era Nova, Lisboa; 1, 1880-1881, p. 481; Idem, Systema de sociologia, Porto, Livraria Chardron, 1908, p. 94: Esta edição do Systema de sociologia é igual à primeira edição publicada em Lisboa, Typ. de Castro Irmão, 1884. (4) Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas
descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 231.
(5) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 116. Sublinhado do Autor. (6) Thomas Robert Malthus, 4n essay on the principle of population and a sum: mary view of the principle of population. Edited with an introduction by Antony Flew. Harmonds-worth, Penguin Books, 1970.
(9 Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 208. Sublinhado do Autor.
333
mais que Teófilo, na esteira de Darwin, o entende em moldes biológicos,
rigorosamente naturalistas, fazendo tábua-rasa da sua originária fundamentação teológica. Além disso, o nosso autor faz questão de distinguir o princípio da população, “reduzido à sua verdadeira origem e comprovado
nela”, como se lê no excerto transcrito, dos meios (4) defendidos por
Malthus para harmonizar o desequilíbrio entre a população e o alimento. Deste modo, não é exactamente o princípio malthusiano que Teófilo considera sociologicamente operativo, mas é o princípio biológico da população, enquanto “motor(...) do transformismo” que tem autoridade epistemológica para garantir a reformulação da sociologia. Com efeito, no desenvolvimento da sua argumentação, Teófilo traduz e comenta da obra fundamental de Darwin, precisamente, um texto
capital do tópico intitulado “Geometrical Ratio of Increase” do capítulo HI - Struggle for existence (>). O excerto é longo, mas, dado o nosso objec(!) Idem, ibidem, p. 209. Sublinhado do Autor. Vide também, Systema de sociologia, ob. cit., p. 120. (2) Vide: Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 18e ss. () Idem, ibidem, p. 209-210. Sublinhado do Autor.
(4) Vide: Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 120. (*) Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life, Sixth edition, ob. cit., pp. 50-51: “A
334
Parte HI — Capítulo 1
Darwin em Portugal
tivo, não podemos truncá-lo. Eis a tradução teofiliana: “Uma luta pela existência é a consequência inevitável do número elevado em que os seres organizados tendem a desenvolver-se. Todo o ser que na duração natural da sua vida produz muitos ovos ou sementes, está condenado à destruição
durante algum período da sua vida, e em uma estação ou num anó eventual; inversamente, segundo o princípio da progressão geométrica, O número dos indivíduos desta espécie tornar-se-ia tão extraordinariamente elevado que nenhum país poderia manter o produto. Assim já que nascem mais indivíduos do que os que podem sobreviver, é preciso que haja ém cada caso uma luta pela existência, quer da parte dum indivíduo contra outro da mesma espécie ou contra uma espécie diferente, ou bem contra as
condiçõesfísicas da vida. É a doutrina de Malthusaplicada com umaforça múltipla aos reinos vegetal e animal inteiros; ... Não há excepção à regra, que todo o ser orgânico aumenta naturalmente em um número elevado que, senão houver destruição, a terra seria imediatamente coberta pela posteridade de um só par. Mesmo o homem, que procria lentamente, duplica em número no espaço de vinte e cinco anos; ora, diante desta progressão, no fim de alguns milhares de anos não haveria literariamente bastante lugar físico para os seus descendentes”(1). Neste texto, Darwin afirmaa luta pela existência a partir das premissas malthusianas segundo as quais a população tende a aumentar em proporção geométrica enquanto o alimento cresce apenas em proporção aritmética. O princípio malthusiano, só por si, nada adianta relativamente
à lógica evolucionária da vida. Mas, Darwin viu nele a substancialização da ideia de luta, uma das traves mestras da sua teoria da evolução que struggle for existence inevitably follows from the high rate at which all organic beings tend to increase. Every being, which during its natural lifetime produces several eggs or seeds, must suffer destruction during some period of its life, and during some season or
occasional year, otherwise, on the principle of geometrical increase, its numbers would quickly become so inordinately great that no country could support the product. Hence, às more individuals are produced than can possibly survive, there must in every case be a struggle for existence, either one individual with another of the same species, or with the individuals of distinct species, or with physical conditions of life. It is the doctrine of Malthus applied with manifold force to the whole animal and vegetable kingdoms(...) There is no exception to the rule that every organic being naturally increases at so high'a rate, that, if not destroyed,the earth would soon be covered by the progeny of a single pair. Even slow-breeding man has doubled in twenty-five years, and at this rate, in less than à thousand years, there would literally not be standing-room for his progeny”. () Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit. pp. 211-212. Teófilo não indica que edição utilizou e não sabemosse traduziu do inglês, do francês, ou de outra língua.
335
podemos equacionar nos seguintes termos: multiplicação (com variações), luta (pelo alimento, pelo território, pela descendência) e selecção natural (das variações vantajosas-adaptativas). Ora, a refundamentação da sociologia podia basear-se na luta pela vida, sem ter de, necessariamente,
advogar alguma mecânica evolucionária de tipo seleccionista. Será este o
caso do nosso autor? É facto que, muitas vezes, Teófilo evita a palavra selecção, embora, invariavelmente, deduza da luta pela existência o trans-
formismo das espécies e das sociedades: “E assim como o conflito vital no domínio biológico é a causa principal (...) de aperfeiçoamento por uma transformação progressiva, também no domínio sociológico, o conflito permanente da População é a causa principal da divisão do trabalho, da especialização das aptidões(...)( 1. Na sociologia teofiliana, não há dúvida que a evolução social se funda na luta pela existência, decorrente do princípio biológico da população. Mas, na sua analogia, Teófilo não é claro quanto ao mecanismo da selecção. Por isso, torna-se necessário perguntar: por que formas se processa a evolução social? Eis a resposta de Teófilo Braga: “a sociedade modifica em formas especiais o conflito pela vida e a selecção do mais forte, como procede a natureza orgânica (...) a selecção social actua na diferenciação das castas, das classes e na divisão do trabalho”(2). Perante esta resposta de Teófilo Braga, parece inequívoco que o autor aceita a unidade lógica da teoria evolucionária darwiniana. Por um lado, considera “todas as formas de actividade social”() como sendo respostas empíricas ao instinto de sobrevivência dos grupos ou da sociedade no seu todo, perante a inevitabilidade da luta proveniente do desequilíbrio entre o elevado poder reprodutor do homem aslimitadas subsistências. Por outro lado, a luta pela vida, fundada no princípio biológico da população, desencadeia uma multiplicidade de práticas sociais que são “formas especiais [de] selecção”, como sejam, “a antropofagia das raças degradadas, a castração dos machos(...) ou o celibato (1) Idem, ibidem, p. 210. Sublinhado do Autor. Vide também Systema de sociologia, ob. cit. p. 119. Sobre a analogia entre a evolução biológica(filogenética) e a evolução sociológica, no plano da chamada lei da divisão do trabalho (fisiológico/social), vide: Júnior Gusmão, “A divisão do trabalho em zoologia”, A Academia de Coimbra, Coimbra,
1 (8) 1886, pp. 1-2.
(2) Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 213. Sublinhado nosso. Vide, também, Idem, “Transição da biologia para a sociologia”, Litteratura Occidental, Coimbra, série tº, (3) 1878, p. 67. Idem, Systema de sociologia, ob. cit., p. 122. (3) Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 213.
Darwin em Portugal
Parte IH — Capítulo 1
clerical como no Tibet, e o aborto usado (...) pelas mulheres pobres e criadas de servir(1). E também,entre outras formas de selecção, “a morte dos velhos pelos próprios filhos, usada por quase todos os povos antigos como uma cerimónia doméstica; os sacrifícios humanos impostos pelas religiões sensualistas, e a morte do primogénito, ou do quinto filho, segundo certos povos, ou também a morte das crianças fracas ou disformes, como usavam os Espartanos”(2). Assim, os meios adoptados pelas diversas sociedades, ditas selvagens ou civilizadas, para controlar a reprodução, são interpretados por Teófilo Braga como formas de selecção social empírica que reflectem o nível mental das mesmase, portanto, o seu estado evolutivo
well as from the analogy of the lower animals, more particularly of those
336
ou, inclusivamente, a sua improgressividade.
Teófilo considera “a regulamentação das relações sexuais no casámento, como base de toda a disciplina social”(?), mas distingue o casamento monogâmico do casamento poligâmico e atribui o primeiro às “raças progressivas” e o segundo às “raças improgressivas”(*). A poligamia é uma forma empírica de disciplinar a selecção da descendência mas constitui, na óptica teofiliana, o principal obstáculo ao progresso social. Este juízo emitido sobre a poligamia não é propriamente de inspiração darwiniana. Em obra alguma, Darwin hierarquiza as formas de aliança matrimonial ou estigmatiza moralmente qualquer dos múltiplos tipos de acasalamento que observou na natureza. Também a hipótese defendida por Teófilo da “promiscuidade das mulheres ou dos maridos “(º) nas sociedades selvagens não foi colhida na obra darwiniana(ó). Com efeito, O naturalista inglês advogava que a promiscuidade na espécie humana era muito improvável, por analogia com osrestantes animais e, especialmente, com os hábitos dos quadrúmanos. Neste sentido, o autor escreve: “from the strength of the feeling of jealousy all through the animal kingdom, as
337
which come nearest to man, I cannot believe that absolutely promiscuous intercourse prevailed in times past"(!). Com efeito, Darwin considera muito provável que, também, a espécie humana, desde os primeiros tempos, tenha praticado alguma forma de acasalamento, fosse monogâmico ou
poligâmico(?).
Mas, não é o facto de Teófilo Braga secundar algumas das ideias etnocentristas correntes na literatura científica e ideológica(?) da época, que invalida a sua tentativa de reconstrução da sociologia de acordo com as leis da evolução orgânica. À luz do critério de D. MacRae(*), podemos afirmar que a sociologia teofiliana é darwinista se ela conservar a sua fundamentação na luta pela vida e se deduzir a evolução da sociedade das práticas sociais (materiais e mentais), entendidas enquanto formas de selecção, não só em sentido negativo, mas também em sentido positivo. Ora, O projecto teofiliano reorganizativo da sociologia não se desvia deste quadro lógico: “o facto do desdobramento da população em proporção geométrica, não deve ser exclusivamente considerado como móvel do sacrifício de vidas à deficiência das substâncias; essa propriedade reprodutora no homem também exerce influência progressiva no desenvolvimento das sociedades”(*). A luta pela vida, ao constituir um poderoso estímulo de aperfeiçoamento das diversas aptidões dos indivíduos, é fonte de mudança das condições existenciais e de aprofundamento das relações sociais. Além disto, Teófilo vai mais longe ao introduzir o princípio da variação orgánica no processo evolutivo das sociedades: “do maior número de indivíduos acumulados sobre o mesmo território resulta um maior número de probabilidades de aparecerem organizações superiores, cuja capacidade intelectual vem influir sobre a sociedade pelas invenções do génio, pela razão disciplinadora dos instituidores, pela habilidade estratégica para a defesa comum”(9). Sem diferença, ou dissemelhança, no sentido de
(!) Idem, ibidem, p. 214. É também no quadro da luta pela vida que Darwin inter:
preta o infanticídio: “Wherever infanticide prevails the struggle for existence will be in so far less severe, and all the members ofthe tribe will have an almost equally good chance of rearing their few surviving children”, The descent of man, and selection in relation to sex, Second edition, ob. cit., p. 592. (2) Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 214. Sublinhado do Autor.
(3) Idem, ibidem, p. 213. Sublinhado do Autor.
(4) Vide: Idem, ibidem,p. 214; Idem, Systema de sociologia, ob. cit., p. 123. () Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 214. (9) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, Second edition, ob. cit., p. 587 e ss.
variação benéfica, não há progresso social. Por isso, as “organizações (1) Idem, ibidem, p. 590.
(2) Vide: Idem, ibidem, p. 591.
(3) Vide: Claude Blanckaert, “La science de "homme entre humanité et inhumanité”, In: Des sciences contre " homme, ob. cit., vol. 1, pp. 14-45; Miguel Baptista Pereira, “Sobre a condição humana da ciência”, art. cit., pp. 1-33. (4) Vide: Donald G. MacRae, “Darwinism and the social sciences”. In: S. A. Barnett, À century of Darwin, ob. cit., pp. 296-312. (5) Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 218.
(5) Idem, ibidem, pp. 218-219.
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Darwin em Portugal
Parte IH — Capítulo 1
superiores”, que o mesmo é dizer os grandes homens, marcam fortemente
ção não é propriamente uma variação inédita nas sociedades modernas, nem sequer é exclusivo da espécie humana: “hoje já se estuda a vida social nos animais inferiores, nas formas da sua economia. Só assim é que se vê comoa necesidade de defesa agrupa os diversos elementossociais”(1). Por outro lado, nas sociedades humanas, a explicação científica do poder funda-se no instinto associativo: “a Associação é a forma espontânea
a tendência evolucionária das sociedades humanas(!) e a sua superioridade explica-se cientificamente como “consequência do duplo efeito da selecção biológica e da continuidade histórica”(2). Além de valorizar as diferenças individuais socialmente benéficas, Teófilo Braga defende que a evolução social é garantida pela selecção tendencialmente hegemónica das variações vantajosas, transmitidas hereditariamente, o que faz sentido à luz do pressuposto darwínico, segundo o qual, “a sexualidade é o fenómeno biológico que mais actua, depois da necessidade da alimentação, sobre a colectividade social”(?). De facto, a teoria de Darwin não diz outra coisa
relativamente ao problema das variações, incluindo os hábitos e os instintos sociais(*). Mas, sendo as fórmulas de Darwin, destituídas de uma carga
política-programática bem definida(º), elas podiam ser usadas em diversos
sentidos ideo-políticos. Vejamos, então, no próximo tópico, como, e em
que sentido, é que Teófilo Braga aplica o código darwínico. 2. A disciplina ético-pedagógica da luta enquanto garantia da selecção natural
A sociologia teofiliana defende que, nas sociedades insdustrialistas
de finais de oitocentos, a classe mais numerosa, o proletariado, “por efeito
da selecção variada”(º), era portadora de variações vantajosas em termos
evolucionários, isto é, no sentido da sociocracia democrática; variações
orgânicas que se traduziam numa superior capacidade de resistência física e num índice elevado de fecundidade reprodutiva, face às burguesias da
indústria e do comércio(?); e também variações ao nível dos instintos sociais e dos hábitos, particularmente do instinto de associação e do hábito do altruismo, por imperativos de sobrevivência(*). O instinto de associa(1) Vide: Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 48.
(2) Idem, ibidem, p. 155.
(3) Idem, ibidem, p. 56. (4) Vide: Patrick Tort, “Variation/variabilité dans Veuvre de Darwin”, In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol, 3, ob. cit., pp. 4407-4418. (º) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, Second edition, ob. cit., pp. 127-145.
(6) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 155. (7) Vide: Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 219 e ss.
(8) Idem, ibidem, p. 226 e ss.
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donde saiu a forma empírica do Governo. O poder teocrático, concentrado
em umaclasse sacerdotal, que outra coisa é mais do que a preponderância exclusiva de uma associação que monopolizou o Poder? Esta é que é a base natural e orgânica que deve preceder toda a disciplina sobre o exame histórico ou mesmoteórico do Poder”(2). Com efeito, o problema do poder e do seu exercício, da autoridade e das formas de governo não é um dado
primário na lógica social; é um “facto secundário e também variável”(2)
que radica na luta pela existência(?) e é sustentado pelo instinto biológico de associação, nada devendo à suposta liberdade contratual das teorias metafísicas do poder. Assim, “a concentração do poder em uma família, casta ou indivíduo não se fez por contrato, como o julgou Rousseau, mas por inércia ou espontaneamente; a sua forma abstracta ou Estado, desen-
volveu-se por modificações empíricas à custa do facto natural da associação “(*). Todo o poder é um efeito da luta pela vida que gera a associação instintiva como meio de defesa e garantia de sobrevivência. Esta é a lógica darwiniana que a política científica herda da ciência social e que, para Teófilo, legitima o poder democrático, justamente, o poder do maior número. A política científica propõe-se disciplinar a luta pela vida, sendo esta a lei natural que rege a dinâmica social. Com efeito, Teófilo advoga a cientificação de todas as instituições empíricas que nasceram da necessidade insconsciente de corrigir o desequilíbrio entre a população e as subsistências. Entre essas instituições sociais, como sejam,a indústria, o comércio,
o direito e a política, consta a moral: “diante do princípio da população, a Moral serve como móvel de força preventiva (...), como consciência de que não devemos agravar o conflito natural com a nossa imprevi(1) Idem, ibidem, p. 223.
(2) Idem, ibidem, p. 223. Sublinhado nosso. () Idem, ibidem, p. 222. (4) Por isso, como escreve Teófilo no seu Systema de sociologia, “o facto histórico da Autoridade reduz-se pela investigação da origem das suas formas ao problema da População”, p. 120. Sublinhado do Autor. (5) Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob.cit., p. 226. Sublinhado do nosso.
Darwin em Portugal
Parte III — Capítulo 1
dência”(1). Mas, a moral teofiliana traduz-se,a este nível, numa disciplina reprodutiva muito branda, que exclui todas as formas de controlo artificial da natalidade. No mesmo sentido se pronunciara Darwin: “hence our natural rate of increase, though leading to many and obvious evils, must not be greatly diminished by any means. There should be open competition for
dos instintos sociais. Que base orgânica autoriza a defesa daquele ideal,
340
all men; and the most able should not be prevented by laws or customs
from succeeding best and rearing the largest number of offspring”(2). O naturalista inglês afirmava o poder evolucionário da selecção natural nas sociedades humanas, sem excluir as vantagens da eugenia positiva: Claro que o problema de Teófilo era mais vasto e mais complexo, no sentido em que os dados da revolução darwiniana tinham de se harmonizar com o seu ideal de pacificação social, inscrito no horizonte demosociocrático da teleologia positivista. Por isso, se a sociologia teofiliana não afirmasse, no mínimo, a necessidade orgânica-histórica da assunção ética dos problemas socio-vitais decorrentes da reprodução sem obstáculos, então, a política científica seria minada pela lei natural da luta pela vida e a paz social tornar-se-ia uma aspiração irrealizável. Assim se compreende o valorestratégico da moral científica, no quadro da transição da política empírica para a política científica nas sociedades industrialistas, onde o maior número, na óptica teofiliana, revelava condições orgânicas para protagonizar o ideal de progresso na ordem com amor. Quer isto dizer que a sociologia teofiliana deduz um modelo democrático de sociedade da selecção natural, já que considera as classes laboriosas-produtivas, não como classes desfavorecidas na luta pela vida
mas, justamente, como as classes tendencialmente mais favorecidas, em
virtude das aptidões adquiridas hereditariamente pela diversificação dos cruzamentos, ou “por efeito da selecção variada”?(2) A resposta a esta questão põe em jogo o modo como Teófilo Braga relaciona o ideal democrático de solidariedade, igualdade e liberdade(4) com a evolução (!) Idem, ibidem, p. 220. Sublinhado do Autor. (2) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, Second edition, ob. cit., p. 618. (3) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 155. Contrastando com as classes laboriosas, “aparentemente contra todasas leis da selecção, as Aristocracias extinguem-se pela similaridade orgânica, pois que elas fazem consistir a sua pureza no círculo estreito dos seus cruzamentos; extinguiu-se a aristocracia grega, romana e medieval, e ainda hoje as castas reais ou dinásticas que sobrevivem caem no albinismo, no cretinismo e em breve,
como o provou Hackel, se extinguirão pela degenerescência”, Idem, ibidem, p. 36. (*) Este ideal é objectivado pela política científica teofiliana. Vejam-se as linhas programáticas para o caso da liberdade: “Liberdade filosófica (instrumento)- de consciên-
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como sendo o “alto destino da espécie”?(!). Como é que aquele ideal, cul-
tivado pela moral, pela política e pela religião científicas ou demonstradas, se inscreve na lógica da natureza? Como pode resultar da luta pela vida e da selecção dos mais aptos? Na sua leitura biológica da afectividade social de inspiração comtiana, spenceriana e darwiniana, entre outras, avulta a ideia, segundo a qual, dentre todos os instintos sociais, “o instinto das relações simpáticas comuns a todos os vertebrados”(2) não foi eliminado no processo evolucionário da espécie humana(Q). Pelo con-
trário, sendo a simpatia a base orgânica da sociabilidade, não admira que ela tenha sido seleccionada e que as suas variações úteis se tenham fixado hereditariamente, por favorecerem a unidade intra-classista e mesmo a coesão social. Com efeito, ao postular a origem animal do instinto simpático, demarcando-o do instinto sexual que, como vimos, é a raiz da luta pela
vida, Teófilo pode fundar uma moral social biológica, sem pôr em causa o princípio da concorrência vital. O seu texto é claro: “entre todos os animais vertebrados predominam os instintos simpáticos, como se comprova não só pela facilidade da domesticação, aproveitada pelo homem primi-
cia, de ensino, de imprensa, de cultos; Liberdade política (garantia)- de eleição, de
representação, de reunião, de associação; Liberdade civil (objecto)- de propriedade, de indústria, de tráfico, de contrato”, Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 238. Não hesitamos em afirmar que o positivismo teofiliano é um humanismo, em resposta às pertinentes indagações que os positivismos de raiz comtiana têm suscitado. Vide: Amnie Petit “Le positivisme estil un humanisme?””. In: Des sciences contre Phomme, Paris, Éditions
Autrement, 1993, vol. 2, pp. 60-69. O ideário político-cultural teofiliano é irredutível a um socio-tecnocratismo como ficou claro na obra de Amadeu Carvalho Homem, A ideia
republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., sobretudo, pp. 221-309; e na obra de Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910, Coimbra, Faculdade de Letras, 1991, vol. 2, sobretudo, pp. 193-464. (1) Teófilo Braga, Traços geraes de philosophia positiva comprovados pelas descobertas scientificas modernas, ob. cit., p. 239. (2) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 168.
(3) A conservação do instinto simpático tinha sido defendida, com múltiplos testemunhos, por Darwin, como é comprovado pelo seguinte excerto: “Although man, as he now exists, has few special instincts, having lost any which his early progenitors may have possessed, this is no reason why he should not have retained from an extremely remote period some degree of instinctive love and sympathy for his fellows. We are indeed all
conscious that we do possess such sympathetic feelings”, The descent of man, and selection in relation to sex, Second edition, ob. cit., pp. 108-109.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 1
tivo, que associou à sua cooperação as principais espécies, como pelo agrupamento em cardumes, bandos, enxames e outros rudimentos sociais de muitas espécies animais conservando entre si um certo princípio de subordinação. A dependência afectiva, que agrupa os primeiros elementos sociais, não é aquela que provém dosinstintos sexuais, porque esses geralmente põem em jogo o instinto da destruição ou ferocidade”(!). Através desta distinção capital, Teófilo sustenta que o instinto de simpatia se desenvolveu segundo a lei comtiana dos três estados afectivos da Huma-
rais benéficos(!) para a harmonia social e para a solidariedade da espécie humana, como sejam, a simpatia altruista e a afirmação do indivíduo pelo seu carácter e pela diferença das suas capacidades e aptidões. Com efeito, a moral teofiliana, de acordo com o seu fundamento biológico(2), não sub-
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nidade, independentemente do instinto sexual, mas no quadro da luta pela
vida. Vejamos a exposição teofiliana: “é preciso ter em vista, que nenhum grupo humano teve um desenvolvimento pacífico; porque o isolamento, que era a condição para estar fora de conflitos, pela falta de estímulos, deprimente, produzia uma improgressiva estabilidade(...). A luta, servindo para garantir a existência, provocou a primeira Síntese afectiva das sociedades, a qual vamos ainda encontrar dirigindo as mais altas civilizações”(2). A concorrência vital é, assim, afirmada comoa condição de possibilidade da evolução material, mas também espiritual da humanidade. Ela sobredetermina o desenvolvimento do instinto de simpatia que, sendo a tendência natural de religação, se traduziu historicamente segundoa lei
dos três estados afectivos-mentais da humanidade. Portanto, o progresso
do espírito humano elevouo instinto de simpatia a formas de sociabilidade tendencialmente racionais, que a ciência social teofiliana procurava codificar(?), não em moldes absolutos e categóricos, mas de acordo com o
relativismo sociológico(?). Assim, a síntese afectiva, demonstrada ou científica, estabelecia “uma Arte de bem viver”(>) em cinco normas orien-
tadoras de sentido higiénico-moral, conciliando o bem-estar social com o “bem-estar subjectivo”(º), ou procurando “estabelecer o justo meio entre o interesse individual e a obediência ao conjunto social”(”), para que a coesão democrática da sociedade se afirmasse, no quadro da concorrência
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sume o indivíduo na colectividade, mas “limita o altruismo até ao ponto em que ele não dissolve a individualidade” (). A não ser assim, a moral positiva tornar-se-ia artificial, ilusória e inconsequente. Mas, porque ela se
quercientífica, tem de reconhecer que “o instinto da conservação sugere uma grande série de actos animais tendentes à independência e persistência do indivíduo; este instinto é propriamente o egoismo, impulso animal”(%). Tal como o altruismo,o instinto do eu tem uma consistência orgânica inata e, por isso, o ideal teofiliano de cidadania democrática-republicana assegura a sua conservação e evolução em todos os planos da sua existência social, e não só no plano ético. Entre o instinto animal de conservação e a afirmação do ser individual existe uma distância enorme, ainda que o segundo proceda do primeiro. Na explanação do autor: “porque é, pois, que as sociedades animais são um modo estacionário do seu funcionalismo orgânico? Porque esse modo de ser não tem sido modificado pelos impulsos da individualidade”(*). O mesmo acontece entre o instinto animal de “solidariedade da espécie”(6) e a afirmação da solidariedade social, que o mesmo é dizer, entre o “rudimento de altruismo”(?) e o altruismo propriamente dito. A diferença é, sem dúvida, insuperável, como uma descontinuidade na con-
tinuidade: “o animal que se agrupa em bando, sente a necessidade do seu semelhante, e o macho que defende o ninho ou covil, e que procura O alimento para a prole, obedece a essa tendência, que nos organismos superiores se revelou pela dedicação do altruismo, que fundou a família, a propriedade, a cidade e a autoridade, esteios de toda a civilização” (?). Este
vital.
Na moral teofiliana, a razão toma consciência do determinismo biológico da existência individual e colectiva, e valoriza os instintos natu(1) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 332. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, p. 333. Sublinhado do Autor. (*) Idem, ibidem, pp. 366-367. Vide também: Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., p. 182 e ss. (*) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 73 e ss. (é) Idem, ibidem, p. 366. Sublinhado do Autor.
(9) Idem,ibidem, p. 359. (7) Idem, ibidem, p. 365.
(1) Vide: Teófilo Braga, “Sistematização da moral”, O Positivismo, Porto, 2,1879o | -1880, pp. 203-220. (2) Vide: Yvon Quiniou, “La morale comme fait d'évolution: continuité, émer-
gence, rupture”. In: Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses
Universitaires de France, 1992, pp. 47-54. (3) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 360.
(4) Idem, ibidem, p. 359. Sublinhado do Autor.
() Idem,ibidem,p. 48.
(6) Idem, ibidem,p. 359.
(7) Idem, ibidem, p. 359. Sublinhado do Autor.
(8) Idem, ibidem,p. 359.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 1
instinto orgânico é suficientemente sólido para sobreviver à indisciplina metafísica das revoluções de oitocentos(!). Tanto o egoismo como o altruísmo têm uma consistência biológica é denunciam a origem animal do homem, embora se tenham modificado progressivamente, no decurso do longo processo evolucionário ante-histórico e histórico da espécie humana. Mas, se no homem, o egoismo é o altruismo não deixaram de ser animais, instintivos e orgânicos, nem por isso são menos humanos. Assim se compreende que as sociedadeshistóricas da espécie humana sejam irreconhecíveis nas sociedades animais, mesmo que nestas se observem costumes tão surpreendentes, como, por exemplo, “o par conjugal, o sacrifício pela prole, a preferência pela espé-
cológico bem característico da nossa espécie”(1). Este nível elevado de
344
cie, a comunidade, a direcção governativa, a divisão do trabalho em classes especiais, a previsão económica, os recursos industriais e a estratégia
defensiva, a linguagem emocional, sentimentosaltruistas para com outras espécies, o critério da orientação no espaço, finalmente as aversões e os antagonismos. Qualquer destas tendências bastava para tornar-se um estímulo de progresso”(2). Mas, estas tendências não se abrem à historicidade
porque, nem o instinto de auto-conservação, nem o instinto de simpatia
altruista próprios das sociedades animais evoluiram no sentido da consciência racional. Não queristo dizer que a sociologia teofiliana recorra à uma entidade metafísica, ou enverede pelo dualismo ontológico para justificar a incomensurabilidade entre os instintos sociais, nos animais e nó
homem. No quadro do monismo materialista teofiliano, a consciência, enquanto resultante mecânica da actividade cerebral(?), não é, sequer, um
estado psicológico exclusivo do homem. O mesmo era advogado por Darwin(*). Mas, adiantava Teófilo, se “a consciência é um estado relativo, progressivo, em graus ascendentes ou descendentes segundo a escala animal”(º), o certo é que, o homem é o único animal que alcança “a con
sciência da personalidade, a consciência do critério, a consciência moral,
grupos de noções sensoriais abstractas que com a hereditariedade e com a educação prematura e acção do meio social se tornam um estado psi-
345
consciência não é um dado absoluto, antes é relativo-variável e, na sua
fixação, a hereditariedade é coadjuvada pela educação e pelo meio social. Sendo um estado orgânico, a consciência pode evoluir, pois a sua organicidade é a condição de possibilidade de acumulação selectiva de variações hereditárias vantajosas. A esta luz, Teófilo Braga sustenta que a evolução, tanto da consciência egoista como da consciência altruista, pode alcançar um grau ético-social óptimo, que, por ser racional, não é menos imanente à natureza biológica do homem, enquanto ser individual e ser social. É neste horizonte que Teófilo interpreta a tendência para o associativismo livre nas sociedades europeias mais avançadas na época. Essa tendência
manifestava-se a vários níveis, desde o económico ao político e enraizava-
-se na transformação orgânica do egoismo e do altruismo, no sentido da
sua limitação recíproca, em ordem ao bem estar comum, sem o sacrifício
do valor do indivíduo(?).
Nasociologia teofiliana, a moral para as sociedades demo-sociocráti-
cas desenvolve uma relação privilegiada com a higiene e a educação. Por um lado, a história da humanidade, bem comoas histórias particulares de
domesticação de animais, e até de plantas, testemunhavam que as práticas higienistas e educativas não eram, de todo em todo, inconsequentes. Por outro lado, o cientismo biologista não questionava os benefícios sociais resultantes da disciplina higienista e da aprendizagem educativa e instrutiva, desde que os seus métodos e os seus conteúdos fossem de carácter científico. Evidentemente que, o princípio da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos pelos hábitos e pelo uso dos órgãos(?) não era pacífico, e tornou-se uma questão altamente polémica, desde a apresentação pública da teoria weismanniana da “continuidade do plasma germinativo”(4), em meados da década de oitenta do século XIX. Mas, para a sociologia teofiliana pouco importava que o neo-darwinismo weismanniano tivesse provado a intransmissibilidade à descendência dos caracteres adquiridos pelo corpo do indivíduo (soma), no decurso da sua existência. De resto, o próprio Weismann admitia o evolver das qualidades físicas e
(!) Vide: Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o con-
tributo de Teófilo Braga, ob. cit., p. 226 e ss. (2) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 48.
(*) Esta questão, com todas as suas implicações filosóficas, foi objecto de uma análise acurada, feita por Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit. p. llle ss. (4) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, Second edition, ob. cit. p. 75 e ss. (5) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 362.
(1) Idem, ibidem, p. 361. Sublinhado do Autor.
(2) Vide: Idem, ibidem, p. 360 e ss.
(3) Vide: Jean Baptiste Lamarck, Philosophie zoologique ou exposition des considérations relatives à Uhistoire naturelle des animaux. (...), ob. cit., pp. 220-265. (4) Vide: August Weismann, Essais sur l'hérédité et la sélection naturelle. Traduction française par Henry de Varigny. Paris, C. Reinwald e Cie, Libraires-Editeurs, 1892, pp. 119-243.
Darwin em Portugal
Parte IH — Capítulo 1
mentais do homem, inscritas na sua substância germinal, ainda que advo-
certo modo, a teoria lamarckiana ou “instrutiva”(!) da hereditariedade e da evolução caucionava o sucesso do voluntarismo ético-pedagógico e dispensava a via da disciplina eugénica, que não servia os intentos teofilianos. Masisto não significa que Teófilo se tenha distanciado da lógica darwiniana. O nosso autor conhecia bem a diferença entre Lamarck e Darwin e sabia que a selecção natural não excluía os mecanismos evolucionários lamarckianos(2). Assim, a defesa da universalização do ensino laico não contrariava a lei natural da luta pela vida, nem o critério darwiniano da sobrevivência dos mais aptos que, rigorosamente, era um critério numérico.
346
gasse que a acção de influências exteriores não tinha poder de transformar
a célula germinal(!).
Na verdade,a sociologia de Teófilo Braga limita-se a reflectir a ideia darwiniana de evolução. Ora, esta ideia integrava o mecanismo evolucionário defendido por Lamarck(2) e, nessa medida, não era exclusiva: mente seleccionista; ela demarcava-se quer da ortodoxia seleccionista de A. Wallace(?), quer do seleccionismo germinal de Weismann(). Se
Teófilo valoriza a higiene e a aprendizagem no quadro dum biologismo sociológico é porque reconhece que os hábitos e o uso dos órgãos podem produzir efeitos orgânicos de sentido evolucionário. Não é improvável que Teófilo (também) conhecesse Darwin, em francês, na tradução de Clémence Royer. Por essa via, Teófilo ficava plenamente familiarizado com o princípio de Lamarck, visto que a tradutora tomava a liberdade de corrigir o texto de Darwin com notas e comentários de sentido lamarckiano. O seu objectivo era, explicita e assumidamente, o seguinte, na con-
clusão da tradutora: “c'est donc comme disciple de Lamarck que j'ai
traduit Ch. Darwin”().
O certo é que,o princípio lamarckiano da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos era fundamental na economia sociológica de Teófilo Braga, porque garantia a possibilidade de moldar o telos histórico sem alienar a natureza biológica do processo evolutivo da humanidade(). De
(1) Neste sentido, escreve o autor: “nous savons bien que [ensemble des qualités
physiques et intellectuelles peut passer des parents aux enfants (...). Mais toutes ces qua: lités, les ancêtres les possédaient déjà en raison de leurs propriétés germinatives, qu'elles se soient d'ailleurs développées plus tôt ou plus tard, et qu'elles figurent chez eux avec des différences d'intensité ou de combinaison”, A. Weismann, Essais sur Vherédité et la sélection naturelle, ob. cit., p. 392. (2) Vide: Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured racesin the struggle for life, Sixth edition, ob. cit., sobretudo pp. XI-XXI, pp. 8-11; Idem, The descent of man, and selection in relation to sex, Second edition, pp. 32-35. (3) Vide: Alfred Russel Wallace, La selection naturelle. Essais, ob. cit., sobretudo pp. 28-44, (4) Vide: August Weismann, “The selection theory”. In: A. C. Seward (ed.), Darwin and modern science, ob. cit., pp. 18-64. (5) Clémence Royer, “Avertissement Aux Lecteurs”. In: Charles Darwin, De ['origine des espêces par sélection naturelle ou des lois de transformation des êtres organisés, Ob. cit., p. HI. Note-se que nesta tradução francesa, a segunda parte do título da obra de Darwin diverge do original num sentido lamarckiano. (º) Vide: Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., pp. 400-415.
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Teófilo Braga nunca perdeu de vista a lição darwinianae, a essa luz,
advogava que as classes numericamente superiores eram aquelas queapresentavam mais probabilidades de gerar uma descendência numerosa € de nela emergir um maior número de indivíduos altamente capazes. Assim sendo, o ideal demopédico(?), ao proporcionar uma igualdade de oportunidades na luta, colaborava com a ordem natural das coisas. Dizendo de outro modo: o pedagogismo teofiliano estava ao serviço da selecção natural, pois contribuia para que a luta pela vida se processasse de acordo com as desigualdades naturais. A escola era considerada um dos meios mais eficazes para combater as desigualdades artificiais e, simultanea-
mente, para favorecer a emergência das desigualdades naturais. Ora, a esta
naturalização total da sociedade correspondia uma nova síntese afectiva, justamente, a síntese afectiva científica e laica, que velava pelo desenvolvimento natural do ser emotivo e ideativo do homem. Assim, o cien-
tismo teofiliano eliminava do horizonte sociológico, não apenas a moral
teológica(*), mas também a moral do perfectibilismo eugenista, que não era linearmente dedutível das premissas darwinianas(”). Se Teófilo julga que o ideal de perfectibilidade social (o progresso na ordem com paz e amor) não carece de mecanismos eliminatórios dos menos aptos, nem de mecanismos de selecção artificial dos melhores (1) Vide: François Jacob, O jogo dos possíveis. Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, ob. cit., p. 35 e ss. (2) Vide: Teófilo Braga, “Carlos Darwin”, O Occidente, Lisboa, 5 (123) 21 Maio º 1882, p. 118. ao 5 de formação Da Portugal. em republicanismo O Catroga, (3) Vide: Fernando Outubro de 1910, vol. 2, ob. cit., pp. 377-425. (4) Teófilo Braga, “Fim das religiões”, O Positivismo, Porto, 2, 1879-1880, 286-295. pp. (5) Vide: Germano da Fonseca Sacarrão, Biologia e sociedade IL. O homem inde-
terminado, ob. cit., p. 145 ess.;p. 2ll ess.
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Darwin em Portugal
Parte III — Capítulo 1
progenitores, então, é porque deposita umafé cientista nasleis naturais da
position de Darwin face à la société, bien qu'incompatible avec Pantiinterventionnisme ultra-libéral de type spencérien, demeure une position essentiellement réformiste, éthique, paternaliste”(!), com um sentido utópico manifesto, na medida em que, “pour lui, Pégalité des conditions devrait être un point de départ — idéalement constant pour chaque génération nouvelle — qui garantirait la juste poursuite de la compétition entre les individus”(2). Não há dúvida que este era também o ideal teofiliano, o que não significa, de modo algum, que a política científica ou demonstrada de Teófilo Braga(?) seja redutível ao darwinismo social darwiniano. Em todo o caso, julgamosser legítimo considerar que Teófilo Braga é um
luta pela vida e da selecção natural. Nem a evolução do instinto altruis ta no sentido da solidariedade social, nem a evolução do instinto de conservação no sentido da afirmação do indivíduo, nem um nem outro, implica m a anulação da luta pela vida, porque esta se prende originariamente com o instinto sexual e, nesse capítulo,a sociologia teofiliana pauta-se pelo abso-
luto relativismo. Quer isto dizer que, a síntese afectiva científica não é
umadisciplina da sexualidade, porque Teófilo pretende que os benefícios da normalização democrática-industrialista-científica da sociedade hão afectem as vantagens biológicas da selecção natural. Se o altruismoé algo
que resultou do processo evolucionário, se, portanto, não é um dogmaar ti-
ficial e imposto, uma invenção estranha à natureza emotiva-afectiva. do homem, então, não faz sentido que ele anuncie o fim da lei natural: O mesmo é válido para o ideal de Paz civil internacional, cujas vantage ns selectivas são óbvias. E, se a educação facultasse a todos iguais oportunidades de revelarem as suas aptidões e talentos, então, na democra cia positivista, as desigualdades naturais afirmar-se-iam, o que seria útile benéfico, tanto para a realização do indivíduo, como para o “bem estar do maior número”(!). A luta pela vida não pode reduzir-se à fórmula hobbesiana — homo homini lupus —(2), nem nas sociedades selvagens e menos ainda nas sociedades civilizadas que se preparavam para o regime normal
da Paz, da Indústria e da Moral científica(?).
3. A originalidade do darwinismo social teofiliano
Por tudoo quefoi dito, não nos parece abusivo afirmar a presença de um darwinismo social na sociologia teofiliana. Mas que darwini smo social? A questão é pertinente, tanto mais que o darwinismo social continua a dividir os darwinólogos(4). Segundo leitura de Patrick Tort, “la (!) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 367. (2) Vide: Idem, ibidem, p. 370.
(º) Vide: Idem,ibidem, p. 5l4. ) (*) Veja-se, entre outros, Yvette Conry, “Le darwinisme social existe-t-il?”, Raison Présente, Paris, 66, 1983, pp. 17-40; Antonello La Vergata, “La lutte et Veffor?” In: Nature, Histoire, Société. Essais en hommage à Jacques Roger, ob. cit., pp. 241-252; Richard Weikart, “A recently discovered Darwin letter on social darwinism” Eis; Chicago, 86, 1995, pp. 609-611. Peter J. Bowler, “O papel da história das ciências Há composição do darwinismo social e do eugenismo”, Impacte, Mem Martins, (10), 1992
pp.
101-107.
349
representante do darwinismo social, ou melhor, de um darwinismo social
muito próximo do “optimismo liberal”(*) de Darwin. E, se bem interpretamos, a reformulação da sociologia e da política positivistas à luz da teoria darwiniana não implicou o sacrifício da matriz comtiana do seu pensamento. É, justamente, nesta conjugação que reside a originalidade da sociologia teofiliana, relativamente às teorias sociais do positivismo
francês pós-comtiano. Em França, apesar das divergências de exegese do sistema comtiano, entre os partidários da ortodoxia de Laffitte e os seguidores da heterodoxia de Littré, a teoria darwiniana não foi abordada em moldes substancial-
mente diferentes pelas duas correntes positivistas. É que, como demonstrou Yvette Conry, todos os positivistas leram e interpretaram Darwin à luz dum postulado fundamental do comtismo, segundo o qual, o progresso é o desenvolvimento da ordem. Este dogma do sistema comtiano levou-os a entender a evolução enquanto desenvolvimento. O caso de Émile Littré, crítico e dissidente de A. Comte, é muito significativo, atendendo a que se
tratou de uma figura que imprimiu uma marca muito forte na França cultural da segunda metade do século XIX e que, além disso, se projectou
internacionalmente. Como é sabido, a sua influência exerceu-se também
na configuração do positivismo português(*), mas não foi tão dominadora (!) Patrick Tort, “L'effet réversif de "évolution. Fondements de Panthropologie darwinienne”. In: Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, p. 44.
(2) Idem, ibidem, p. 42. Sublinhado do Autor. (3) Vide: Amadeu Carvalho Homem, A ideia republicana em Portugal: o contri-
buto de Teófilo Braga, ob. cit., sobretudo pp. 221-309.
(4) Patrick Tort, “L'effet réversif de I'évolution. Fondements de Wanthropologie
darwinienne”. In: Darwinisme et société, ob. cit., p. 44.
(5) Vide: Fernando Catroga, “Os inícios do positivismo em Portugal: O seu significado político-social”, art. cit., sobretudo p. 305 e ss.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 1
ao ponto de condicionar a leitura que Teófilo Braga fez da revolução darwiniana(!). Emile Littré, embora menos dogmático do que P. Laffitte, foi considerado como paradigma das resistências epistemológicas do positivismo à teoria darwiniana(?). Guiado pelo espírito metodológico do comtismo não recusa a priori a teoria darwiniana: “je n'ai aucune répugnance dogmatique contre le transformisme. Il m'est absolument indifférent que nous descendions, animaux et végétaux, les uns des autres”(?). O eminente lexicógrafo e historiador da medicina aceita formalmente a teoria transformista como uma hipótese não verificada e rebate as suas implicações filosóficas e sociológicas(*). Na verdade, Littré permanece tão impermeável à teoria darwiniana como todos os restantes positivistas franceses. É que, a ideia de modificabilidade entendida enquanto desen-
ção darwiniana. Assim,o princípio darwiniano da variação é lido enquanto diferença de intensidade no desenvolvimento da ordem, “imitant en cela la différence de vitesse interne à la loi destrois états(1). Asvariações são reduzidas a variabilidades porque se supõe “qu'elles sont régiées dans Vordre d'un développement, faute de quoi Véquilibre céderait à la maladie ou à la révolution”(2). Por outro lado, o princípio da selecção foi contestado, sem ser compreendido. Por exemplo, E. Jourdy como F. Harrison não hesitaram em escrever que a selecção era estranha às grandes leis sociológicas porque não havia qualquer traço de selecção na lei dos três estados(2). Também Patrick Tort conclui que, em regra, todos os positivistas franceses “repoussent toute application des concepts et schémas darwiniens (sélection naturelle et modele malthusien) à Pétude des sociétés”(4) porque, apesar das suas divergências, a sua fidelidade dogmática aos traços fundamentais do comtismo,limitou radicalmente a sua avaliação da teoria darwiniana.
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volvimento é comum a Littré, a Charles Robin, a P. Laffitte, a E. Jourdy, a
JFE. Chardoillet, a F. Harrison, e outros(). À luz do estudo analítico realizado por Yvette Conry, conclui-se que, no fundo, os positivistas fran-
ceses julgaram que a teoria da descendência com modificações era redutível à evolução embriológica, no sentido pré-wolffiano de “desenvolvimento”(º), integrante da ideia pré-formacionista. Este equívoco foi alimentado pelo postulado comtiano do progresso enquanto desenvolvimento da ordem. Na interpretação da historiadora francesa, aquele postulado impediu a inteligibilidade do sentido da evolu(1) Note-se que a posição de Littré relativamente à teoria darwiniana e à sua aplicação à sociedade foi explicitamente contestada pelo aluno de Manuel Emídio Garcia, António Pinto de Mesquita Carvalho Magalhães, no trabalho “Caracteres que separam, logica e doutrinalmente, os phenomenos sociaes dos phenomenos biologicos. Processos especiaes do methodo experimental inductivo em sociologia”. In: Estudo sociologico para a setima cadeira da Faculdade de Direito na Universidade de Coimbra por uma commis são eleita pelo curso do terceiro anno da mesma Faculdade no dia 9 de Janeiro de 1880,
Coimbra, Imprensa Academica, 1880, p. 23 e ss. Por seu turno, Manuel Emídio Garcia
elaborou um plano reformuladore crítico da sociologia de E. Littré, mas os seus alicerces não são, como em Teófilo Braga, as leis darwinianas. Vide: A. Paçô Vieira, “Divisão interna da sociologia”, O Instituto, Coimbra, 30 (1) Jul. 1882, pp. 9-14. (2) Georges Canguilhem e outros, Du développement à V'évolution au XIX* siecle, ob. cit., p. 56. (3) E. Littré, “A propos du transformisme”, La philosophie positive, juillet-décembre, 1875, p. 441, citado por Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en
France au XIXº siêcle, ob. cit., p. 419. (4) Vide: Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIX* siêcle, ob. cit., p. 418ess. (º) Vide: Idem, ibidem, p. 415 e ss. (9) Vide, também: Georges Canguilhem e outros, Du développement à V'évolution au XIX* siêcle, ob. cit.,p. 3 e ss.
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Não há dúvida que o positivismo comtiano era um sistemafilosófico
muito poderoso, mas fará sentido responsabilizá-lo pela não-introdução do darwinismo em França como defende Yvette: “la grande ombre de Comte est devenue le tombeau de Darwin, parfait modêle d'un obstacle idéologique qui bloque radicalement Vintelligibilité”?(*). Pela nossaparte, não podemos subscrever inteiramente esta justificação do destino da teoria darwiniana em França, porque se o comtismo é esse “perfeito modelo dum obstáculo ideológico”, como compreender a sociologia de Teófilo Braga? Como pode Teófilo Braga reformular a sociologia positivista, se o comtismo “bloqueia radicalmente” a razão? Não contestamos que o pensamento de Littré seja paradigmático da imposibilidade de se ser simultaneamente positivista e darwiniano. Mas, afirmamos que Teófilo Braga pode ser tomado como modelo da possibilidade de conjugação do positivismo heterodoxo com a teoria darwiniana. Tem algum interesse registar que Pierre Thuillier, na sequência de vários trabalhos de outros darwinólogos, considera que a filosofia da
ciência de A. Comte marcou a estratégia epistemológica de Darwin. Foi em (1) Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIXº siêcle,
ob. cit., p. 422.
(2) Idem,ibidem,p. 422. (3) Vide: Idem, ibidem, p. 421. (4) Patrick Tort, artigo “Positivisme”. In: Dictionnaire du darwinisme et de
Pévolution, vol. 3, ob. cit., p. 3519.
(5) Yvette Conry, L'introduction du darwinisme en France au XIXº siêcle, ob. cit., p. 419.
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Darwin em Portugal
Parte IH — Capítulo 1
1838 que Darwin teve acesso à filosofia positiva de Comte. O naturalista inglês não conhecia directamente a obra do filósofo francês. Mas, entre 7.€ 12 de Agosto de 1838, leu um longo artigo publicado na Edinburgh Review por David Brewster sobre o Cours de philosophie positive. E, em 13 de Setembro do mesmo ano, Darwin revelava o seu entusiasmo pelo positivismo numa carta dirigida ao geólogo Lyell, onde se lê: “TI est capital. 1 y. a quelques phrases excellentes sur essence même de la science (...) Vidée
tecção dos “fracos”, significava que o altruismo tinha sido seleccionado enquanto forma vantajosa de relacionamento social desde que não afectasse a livre afirmação individual dos mais dotados. E admitia que, nas
d'un état théologique de la science [est] une grande idée”(!). Quer dizer: à
filosofia comtiana da ciência vinha ao encontro da vontade darwiniana de emancipar a biologia da teologia, e legitimava a sua concepção materialista do conhecimento científico(?). Contudo, se este encontro, dito, “indirecto mas crucial”(?) de Darwin com a filosofia comtiana, se reflectiu na definição da sua estratégia epistemológica, não teve, se bem julgamos, quaisquer implicações ao nível interno da teoria da descendência com modificações. Em todo o caso, é lícito afirmar, no mínimo, que o espírito de positividade laica do comtismo estimulou fortemente a elaboração da teoria darwiniana. É óbvio que, a dívida de Darwin relativamente a Comte não
permite compreender, nem as resistências dos positivistas franceses, nem a ousadia cientista de Teófilo Braga. O certo é que, como vimos, Teófilo não teve dificuldades em rever a sociologia comtiana à luz do princípio seleccionista, sem pôr em causa as traves mestras do positivismo francês, a saber: a lei dostrês estados e a classificação hierárquica das ciências. É indiscutível que “a grande sombra de Comte” também percorre todo o Systema de sociologia de Teófilo. E, em nosso entender, ela guardou o autor do darwinismo social de Herbert Spencer e, simultaneamente,
aproximou-o da antropologia social de Darwin. Enquanto o engenheiro é filósofo inglês defendia a concorrência vital generalizada, o triunfo dos mais aptos, sem quaisquer entraves protectores dos menos aptos(2), Darwin admitia que a evolução dos instintos sociais, no sentido da pro(!) Transcrito da obra de Pierre Thuillier, Darwin & Cº., ob. cit., p. 31. (2) Vide: Michael T. Ghiselin, “Darwin, Charles Robert (1809-1882)”. Tn:
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sociedades futuras, a selecção natural faria triunfar a virtude sobre os
impulsos inferiores do homem: “Looking to future generations (...) we may expect that virtuous habits will grow stronger, becoming perhaps fixed by inheritance. In this case the struggle between our higher and lower impulses will be less severe, and virtue will be triumphant”(!). Se Teófilo está mais distante da versão spenceriana do darwinismo social “individualista”(2) e mais próximo do darwinismo social de Darwin,
deve-o, em nosso entender, à utopia comtiana da religião da humanidade,
que verdadeiramente nunca reprovou, apesar do seu espírito crítico da ortodoxia positivista. Por outro lado, Teófilo Braga não refutou o valor da síntese socio-
lógica spenceriana(?) mas, sintomaticamente, apontou-lhe uma limitação crucial: a ausência da dimensão afectiva, sem a qual, a solidariedade
humana não é contemplada. Ora, neste sentido, A. Comte tinha equacionado bem o problema, ao propor a religião da humanidade como meio de corporizar o sentimento de pertença a um todo solidário, o devir histórico progressivo. Por isso, Teófilo escrevia: “é pelos sentimentos que subsiste a sociedade humana, e a última parte da obra de Comte, contra a qual se lançam sarcasmos, é a solução deste instante e fundamental problema”(4). Portanto, na óptica teofiliana, o evolucionismo spenceriano, apesar de incorporar a lógica darwiniana, não compreendeu que a evolução se abre à Paz universal pelo amor da humanidade. E, Auguste Comte, apesar de não ter podido beneficiar da revolução darwiniana, para alicerçar a sociologia nas verdadeiras leis biológicas, compreendeu o valor da afectividade social. De certo modo, o darwinismo social teofiliano é sobredeterminado pela síntese afectiva de Auguste Comte. Assim, não admira que, ao apresentar a obra de Camille Monnier, Exposição popular
do positivismo (>), dedicada a Pierre Laffitte, de novo, Teófilo afirme o
Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 1, ob. cit., p. 777.
() Pierre Thuillier, Darwin & ۼ., ob. cit., p. 30.
(4) Herbert Spencer, L'individu contre Vétat. Traduit de Vanglais par J. Gerschel. Huitiême édition. Paris, Félix Alcan Éditeur, 1908, sobretudo pp. 65-166. Esta obra reuné quatro artigos inicialmente publicados na Contemporary Review em 1884. Vide: Idem, ibi dem, p. IL. Nasíntese rigorosa de Oldroyd, “Spencer's general view wasthat a struggle for existence in society was inevitable and any relaxation of it would necessarily lead to social dissolution”, D. R. Oldroyd, Darwinian impacts. An introduction to the darwinian revoliús
tion, Milton Keynes, The Open University Press, 1980, p. 208.
(1) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex, Second edition, p. 125. (2) Vide: Daniel Becquemont, artigo “darwinisme social”. In: Dictionnaire du darwinisme et de "évolution, vol. 1, ob. cit., pp. 1108-1119. () Vide: Teófilo Braga, “Positivismo e evolucionismo”, Hoje, Coimbra, 2, 1898, pp. 21-25. (4) Vide: Idem, ibidem, p. 25. (é) Camille Monnier, Exposição popular do positivismo. Traducção de Libanio
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Parte HI — Capítulo 1
Darwin em Portugal
valor científico da síntese afectiva, além da síntese especulativa e da sín-
tese activa, do positivismo comtiano. À luz da evolução natural do ins-
tinto de simpatia, era lícito prever o aparecimento de “uma nova sanção moral na solidariedade da espécie”, imanente ao “sentimento da Huma: nidade”(1). Na verdade, Teófilo sustentava que, sem a “síntese subjectiva “ a sociologia caía num “neo-metafisicismo”(2), como acontecia na cons-
trução spenceriana, incapaz de estabelecer o elo unificador da aparente
contradição entre o ser orgânico e holístico da sociedade e a sua composição atomística-individualista. A distinção teofiliana entre o instinto de simpatia e o instinto sexual podia, sem trair a lógica, assegurar a conjugação da própria religião da Humanidade (o alfa e o ómega da evolução do sentido moral a partir da simpatia) com as leis darwinianas decorrentes do princípio biológico da população. Todavia, o nosso autor não consumou este quadro cientista, sem dúvida, por não ser assumidamente laffittiano, mas também porque compreendeu que a selecção natural não conduzia, automatica e regularmente, à sociocracia ideal. É que, a categoria sociológica de indivíduo, que Teófilo fazia questão de salvaguardar, comportava em si mesma o imponderável e, nessa medida, punha em causa a previsibilidade sociológica do sistema comtiano. Teófilo conhecia bem as dificuldades do seu sistema e não as camuflava, como se pode constatar no seguinte excerto: “A acção individual vem lançar no fenómeno social uma complicação inesperada, por isso que nem se prevê a sua intervenção, nem se supõe como de factos acidentais pode tirar as condições para a modificação mais rápida do bem-estar da colectividade”(?). O autor não queria sacrificar o ideal positivista de bemestar social orgânico (o progresso na ordem com amor), nem podia anular essa nova entidade sociológica denominada indivíduo. A sua sociologia não pretendia ser politicamente neutra mas, pelo contrário, propunha-se legitimar o demo-liberalismo do seu ideal sociocrático. Se o indivíduo era pot: tador de variações inatas e adquiridas, e se a sua interacção com o meio social produzia efeitos de consequências improgramáveis, Teófilo tinha de confiar na acção disciplinadora da selecção natural, mas não podia aprioristicamente determinar a realização do estado social positivo. da Silva. Precedida de uma apresentação por Theophilo Braga. Lisboa, Typ. da Companhia Nacional Editora, 1892. (1) Teófilo Braga, “A quem ler (Apresentação da brochura de Camillo Monnier)”, A Ilustração, Lisboa, 8 (183) 15 Dez. 1891, p. 366. Sublinhado do Autor. (2) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 447. Sublinhado do Autor.
(3) Idem,ibidem, p. 71.
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Em termos epistemológicos, a solução teofiliana consistiu em escudar-se no relativismo sociológico e fundá-lo no determinismo biológico: “a primeira disciplina científica a que se pode submeter o facto social é caracterizá-lo pelo seu relativismo”(!). Em sociologia, o relativo é lei porque nenhum factor está ao abrigo da imprevisibilidade, nem nenhum se pode absolutizar dogmaticamente. O relativismo sociológico espelha a modificabilidade social, resultante da acção do indivíduo, da sujeição da
sociedade “às relações imprevistas impostas pela multiplicação dos efeitos
das circunstâncias ainda as mais acidentais”(2), mas repousa no deter-
minismo biológico, “pelo qual as gerações se substituem com diferenças adquiridas pela maiorfacilidade de desenvolver as aptidões hereditárias e de atingir a perícia pela educação”(?). Julgamos que o relativismo sociológico de Teófilo acusa a sua fidelidade à lógica darwinianada vida, entendida enquanto processo selectivo-adaptativo, fundado sobre a transmissão hereditária das variações inatas, mas também dos caracteres adquiridos sob a influência do meio, como seja, o meio educativo.
Tem-se repetido que, “la sélection naturelle permet à Vévolutionnisme de sortir du modêle déterministe pour entrer dans un probabilisme”(*), porque o resultado da selecção é dado a posteriori e, portanto, não se pode prever. Ora, de certo modo, Teófilo deu conta das consequências da revolução darwiniana no domínio da teoria do conhecimento científico. Pelo menos, a reformulação da sociologia na base das leis darwinianas, levou-o a abandonar a representação fisicalista da ciência, sem que isso implicasse o questionamento do estatuto epistemológico que A. Comte atribuía à sociologia no seu quadro hierárquico das ciências(?). De facto, o relativismo sociológico teofiliano advogava que o progresso não se decreta porque o factor tempo, sendo crucial não é, todavia, programável: “a sua acção só pode ser compreendida como uma continuação do determinismo biológico”($) Quer isto dizer que, o tempo (1) Idem, ibidem, p. 73. Sublinhado do Autor.
(2) Idem, ibidem, p. 73. () Idem, ibidem,p. 73.
(4) Denis Buican,La révolution de ['évolution. L'evolution de Pévolutionnisme, ob. cit., p. 134. Vide, também: François Jacob, O jogo dos possíveis. Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, ob. cit., p. 70 e ss.; François Jacob, La logique du vivant. Une his-
toire de Vhérédité, Paris, Editions Gallimard, 1970, pp. 177-195; Stephen Jay Gould,
A vida é bela, ob. cit., p. 299 e ss. (5) Vide: Ana Leonor Pereira, “No rasto de problemas actuais da história”, art. cit., p.607e ss. (6) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob.cit., p. 63.
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Darwin em Portugal
sociológico, embora não tenha a profundidade incomensurável do tempo geológico do actualismo de Lyell(!), tem a profundidade do tempo
biológico que se mede em gerações. À sociologia teofiliana não pode prever quantas gerações demorará a efectivação do bem-estar demosociocrático. Mas, confia optimisticamente que a humanidade caminha para um futuro social, em que as desigualdades sociais se estabelecem naturalmente, em função das aptidões inatas e adquiridas pela educação, € não à luz de convençõesartificiais, como ostítulos nobiliárquicos. Confia que a selecção natural se sobreponha ao arbítrio das instituições monár-
quicas e se instale a verdadeira desigualdade social, na base da igualdade
perante a lei e da livre concorrência das aptidões(?). A demo-sociocracia não é o fim da selecção e da luta pela vida. Mas é o fim da selecção social artificial praticada, sob diversas formas, pelos regimes teocrático e metafísico(?). Não quer isto dizer que a selecção natural não tenha cumprido a sua função de mecanismo evolucionário da civilização. Pelo contrário, é, justamente, porque ela vence'as selecções sociais artificiais que O maior número tende a triunfar na luta pelo máximo bem-estar social possível, tanto quanto permitem as leis naturais da existência: a fome e o amor, por um lado, e a evolução dos instintos sociais do altruismo e do individualismo, por outro lado. No dizer do autor, “o proletariado vem a preponderar na civilização por efeito da selecção variada, produzindo as manifestações da moralidade na família, do talento na indústria, e da inteligência que se impõe pela competência
Parte IH — Capítulo 1
“desigualdade do talento”(!), em lugar de agravar a conflitualidade social, possibilita a paz social e o progresso na ordem com amor, porque a afirmação do indivíduo reflecte também a evolução do senso moral, no sentido da conjugação útil, para todas as partes, do egoismo com o altruismo. E, na medida em que Teófilo aceita tomar “o senso moral como uma capacidade individual adquirida no prolongado desenvolvimento da espécie, e tornando-se orgânica por hereditariedade fixada”(2), não é
provável que, com tão sólido ethos(?), as sociedades democráticas conheçam dificuldades invencíveis na sua consecução do pleno bem-estar social.
no regímen da democracia”(4). Outrora, “o regímen das castas e o isola-
mento das classes embaraçavam o fenómeno da selecção”(*), mas, nem por isso, pelo “duplo efeito da selecção biológica e da continuidade histórica”(º), a selecção natural deixou de actuar. Nas sociedades industrialistas modernas o critério selectivo tende a ser definitivamente natural. Assim, as diferenças sociais acabarão por coincidir com as desiguais aptidões individuais. Ora, a naturalização da sociedade pela afirmação da
(') Idem, ibidem, p. 62 e ss.
(2) Vide: Idem, ibidem, p. 155 e ss.
(3) Teófilo Braga, “Sociologia”, O Positivismo, Porto, 2, 1879-1880, pp. 405-
-429; 3, 1880-1881, pp. 22-44, 165-183.
(4) Teófilo Braga,Systema de sociologia, ob. cit., p. 155.
(é) Idem,ibidem, p. 154.
(5) Idem, ibidem, p. 155. A crença no poder democratizante da selecção natural foi partilhada, com igual optimismo, especialmente, por Horácio Ferrari, no artigo “A selecção natural, em sociologia”, O Positivismo, Porto, 1, 1878-1879, pp. 102-109.
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(1) Teófilo Braga, Systema de sociologia, ob. cit., p. 155.
(2) Idem, ibidem, p. 363. (é) Vide, também: Idem, ibidem, p. 359 e ss.
CAPÍTULO 2 Um modelo-zénite: a psico-sociologia de Júlio de Matos 1. A formação da perspectiva Foi na vasta e multitemática obra de Júlio de Matos que encontrámos o modelo mais apurado de uma leitura ultra-seleccionista da conflitualidade social e das divergências ideológicas características das sociedades demo-liberais. Com efeito, na obra matosiana a inteligibilidade darwinista do social sobrepôs-se à direcção positivista que, por finais da década de setenta, o autor decidiu imprimir ao seu pensamento, sob a influência de
Teófilo Braga. É inegável que Júlio de Matos foi um expoente do positivismo português(!), mas basta percorrer os seus artigos publicados na revista O Positivismo (1878-1882), que dirigiu com Teófilo Braga, para se constatar que o futuro psiquiatra, já então, se revela um positivista crítico da heterodoxialittreana, em nome do imperativo epistemológico de salvaguardar o progresso científico. Portanto, relativamente à matriz comtiana,
pode dizer-se que Júlio de Matos sempre foi duplamente heterodoxo. O seu espírito não podia confinar-se às directivas de Comte via Littré, tanto mais que, segundo o seu próprio testemunho, já em 1875, entrava na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, com uma considerável cultura científica e filosófica, resultante da leitura e discussão de obras de grande projecção internacional na época, muitas vezes feitas em conjunto: “assim o foram na casa de Basílio Teles alguns volumes de Littré e de Bain, como na de João Diogo e na minha os de Spencer, os de Haxckel e essa tão sugestiva e tão lúcida “Fisiologia do Espirito” de Maudsley”(2).
(1) Vide: Fernando Catroga, “Os inícios do positivismo em Portugal: O seu significado político-social”, art. cit., sobretudo, p. 35 e ss. (2) Júlio de Matos, “Impressões”. In: in Memoriam. Sousa Martins, Lisboa, s. ed.,
1904, p. 314.
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Parte HH — Capítulo 2
Darwin em Portugal
De certo modo, o conhecimento que possuía das obras de Mausdley, de Spencer e de Hackel impediram que Júlio de Matos aceitasse, sem reservas, o positivismo francês, mesmo o de Littré, ainda que a matriz comtiana tenha sido decisiva na disciplina filosófica(!) do seu pen-
samento. Assim, não admira que, em Março de 1879, ainda estudante, em
carta dirigida ao eminente professor do Curso Superior de Letras, a quem devia a orientação filosófica do seu espírito, tenha emitido o seguinte juízo: “entendo que os trabalhos de Comte em mais dum ponto carecem duma revisão imposta pelos progressos da ciência, como também o entende o Teófilo. O serviço a prestar à Filosofia positiva é adaptá-la às necessidades crescentes do espírito pela introdução nela da sistematização de doutrinas e pontos de vista novos”(2). Em finais da década de setenta e inícios da década de oitenta do século XIX, a preocupação maior do jovem leitor de Comte(?) e de Littré() pode enunciar-se interrogativamente nestes termos: estaria o positivismo heterodoxo de Littré preparado para acolher os avanços científicos e, em especial, a teoria darwiniana? Foi nas autocríticas do médico, lexicógrafo e historiador francês, que Júlio de Matos encontrou os delineamentos da resposta à sua questão.
Efectivamente, saberá, pela fonte, que Littré era convictamente adverso da
doutrina transformista(”), sendo essa igualmente a posição dos colaboradores darevista La Philosophie Positive (1867-1883), dirigida por Littré e Wyrouboff(º). Ora, nesta matéria crucial, a autoridade de Littré não podia fazer-se sentir, de modosignificativo, no espírito de Júlio de Matos.
Já numa carta dirigida a Teófilo Braga, datada de 6 de Setembro de
(1) Vide: Júlio de Matos, “Methodos: Metaphysica e positivismo — Hypotheses — Inducção e deducção”, O Positivismo, Porto, 4, 1882, pp. 229-243, 295-307,
350-359.
(2) Júlio de Matos, “Carta a Teófilo Braga. Porto, 23 de Março de 79”. In: António Ferrão, Teófilo Braga e o positivismo em Portugal (Com um núcleo de correspondência de Júlio de Matos para Teófilo Braga), ob. cit., p. 75. (3) Vide: Júlio de Matos, “Augusto Comte”, Era Nova, Lisboa, 1, 1880-1881,
pp. 497-502; 561-565.
(4) Vide: Júlio de Matos, “Bibliographia. Conservation, révolution et positivisme par É. Littré. Deuxiême édition, augmentée de remarques courantes, chez Germer Bailliére. 1879”, O Positivismo, Porto, 1, 1878-1879, pp. 393-401.
() Vide: Idem, ibidem, p. 401.
(9) Vide: Fernando H. Órfão Belchior, “A ideia de progresso na revista *'O Positivismo” (1878-1882)”, Revista de História Económica e Social, Lisboa, 6, Jul.-Dez. 1980, sobretudo p. 90 e ss.
361
1878(1), o jovem autor sublinhava a sua adesão ao darwinismo,referindo-se a um artigo que preparava sobre a “evolução em biologia” e no qual se propunha defender que o princípio evolucionário darwiniano devia ser integrado na filosofia positiva. Simultaneamente, Júlio de Matos procurava justificar a legitimidade das reservas de A. Comte, em relação ao transformismo lamarckiano. É que, segundo argumentava, a evolução na Filosofia zoológica (1809) de Lamarck era ainda de tipo metafísico, pois decorria de “uma força intrínseca predeterminada e preestabelecida, um impulso inicial, como o mais importante factor na explicação do transformismo das espécies”(2). Os princípios lamarckianos da adaptação e da hereditariedade não assentavam numa base positiva e, por isso, A. Comte não podia aceitar o transformismo do naturalista francês. Mas, como advogava Júlio de Matos, “a questão mudou de aspecto depois dos trabalhos de Darwin, Wallace e Hackel, etc., e eu creio que é impossível hoje a um positivista deixar de aceitar o transformismo como uma hipótese legítima”(). Este estatuto científico atribuído ao evolucionismo darwinista,
decorria, segundo Júlio de Matos, da positividade do princípio da “selecção natural na luta para a existência”(4). Com efeito, em 1879, Júlio de Matos publica nas páginas de O Positivismo um artigo doutrinário, intitulado, “Ensaio sobre a evolução em biologia”(º), no qual expõe a sua concordância com a teoria darwiniana. Mas, de facto, a sua preocupação em justificar a rejeição comtiana da doutrina de Lamarck percorre toda a sua exposição, o que denota o seu empenho em se conservar fiel à disciplina positiva do pensamento e, também, a sua profunda ligação à obra de A, Comte, numaatitude epistemológica semelhante àquela que Teófilo Braga adoptara. Atendendo aoscritérios de cientificidade da filosofia positiva, a teoria darwiniana não é apresentada de forma dogmática e absoluta, mas como uma hipótese científica em processo de confirmação, embora Júlio de Matos não duvidasse da sua positividade. Na argumentação matosiana, os novos princípios introduzidos por Darwin — a luta pela vida e a
(!) Vide: Júlio de Matos, “Carta a Teófilo Braga, datada de 6 de Setembro de 1878”. In: António Ferrão, Teófilo Braga e o positivismo em Portugal (Com um núcleo de correspondência de Júlio de Matos para Teófilo Braga), ob. cit., pp. 65-66. (2) Idem, ibidem, p. 66. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, p. 66. Sublinhado do Autor.
(4) Idem, ibidem,p. 65.
(*) Júlio de Matos, “Ensaio sobre a evolução em biologia”, O Positivismo, Porto, 1, 1878-1879, pp. 94-101, 208-212, 291-294.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 2
selecção natural -- alicerçavam-se em provas positivas, e não em
efeito aparentemente paradoxal, a caridade privada ou pública concorre directamente para o aumento da população indigente. Ora, acrescenta o autor, se o estado e a sociedade civil se pautassem pela saudável lógica natural da vida, “os casamentos funestos dos pobres, cuja prole vem todos os dias acolher-se negligentemente sob a protecção da caridade pública, cessariam de contrair-se”(!). De resto, as classes pobres, mas laboriosas, sabem defender-se “no meio da luta para a vida, economicamente representada pela concorrência”(2), através do mutualismo. As associações de socorros mútuos são vistas por Júlio de Matos como um meio natural de
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suposições alheias à verificação comparada e mesmo experimental e, por
isso, não constituíam um simples prolongamento do transformismo lamarckiano. De facto, a cadeia argumentativa de Júlio de Matos aponta no sentido de considerar a teoria darwiniana como sendo constitutiva de uma — revolução científica, embora o autor não use exactamente esta terminologia. É de notar que, o “Ensaio sobre a evolução em biologia” foi construído na base de um conhecimento directo da obra darwiniana, e que o .
entusiasmo do autor pelo darwinismo biológico, incluindo a evolução da espécie humana por selecção natural e sexual, sobrepõe-se à prudência aconselhada pelo espírito positivo. Na verdade, só uma adesão muito forte
permite compreender que Júlio de Matos discorra com particular afogo sobre o modo de relacionamento do princípio malthusiano da população com a teoria da selecção natural(!) e sobre o princípio da selecção sexual em todo o mundo vivo, especialmente, na espécie humana.
Em função do nosso escopo, é de sublinhar que, já então, Júlio de Matos se prende, em moldes peculiares, com a problemática da selecção sexual(2), um tópico-chave da higiene social que advogará energica-
363
auto-defesa das classes laboriosas que, desse modo, acautelam a sua
subsistência em períodos de crise económica e de desemprego. Mas, sintomaticamente, o autor sublinha que as sociedades mutualistas tendem a perverter a lógica concorrencialista e seleccionista da dinâmica social, pois, facilmente se desviam “da sua primitiva direcção para um sentido político”(2). Desde que o mutualismo alimente ilusões revolucionárias(*), põe em causa a saúde da sociedade, o funcionamento da selecção natural e, portanto, o domínio legítimo dos mais fortes sobre os mais
mente. Neste sentido, defende a historicidade do critério da selecção .
fracos. Não há dúvida que, esta abordagem do pauperismo se inscreve na lógica spenceriana-darwinista da “sobrevivência do mais apto”(º).
os outros. Mas, em seu entender, esta forma de selecção não substitui, nem
nhava numa direcção ideológica que pouco retinha do projecto sociocrático de A. Comte.
sexual na espécie humana e advoga que no estado científico-industrialista da humanidade, o critério da “selecção psíquica”(2) triunfará sobre todos exclui, os critérios da resistência física, da harmonia corporal e da beleza que pautam a selecção sexual natural. Por outro lado, no mesmo ano, e também na revista O Positivismo,
Júlio de Matos toma posição relativamente às práticas assistenciais(?), que contrariavam o livre jogo da selecção natural-social, anunciando clara-
Podemos, então, concluir que, Júlio de Matos, desde muito cedo, cami-
No entanto, o médico portuense conserva-se fiel à sistemática cien-
tista do filósofo francês(º), em parte, porque ela satisfazia as exigências fundamentais da epistéme da época. Recorde-se que o próprio sistema spenceriano das ciências inspirava-se na arquitectura comtiana, toman-
mente o seu futuro darwinismo ultra-liberal e elitista. Com efeito, à
assistência privada ou pública é considerada um factor de perturbação das leis biológicas da sociedade; ela transforma o pauperismo numa patologia social, pois funciona como um “providencialismo”(*) que assegura: a sobrevivência artificial dos menos aptos e, ao mesmo tempo, destrói o seu já limitado instinto natural da luta pelo alimento. Além disso, por um (1) Vide: Idem, ibidem, pp. 208-211.
(2) Vide: Idem, ibidem, especialmente, p. 212.
(3) Idem, ibidem, p. 212. Sublinhado do Autor.
(4) Vide: Júlio de Matos, “A caridade e o pauperismo”, O Positivismo, Porto, 1, 1878-1879, pp. 350-357. (é) Idem, ibidem,p. 352.
(1) Idem, ibidem, p. 356. (2) Idem, ibidem, p. 356.
(*) Idem, ibidem,p. 357.
(4) Vide: Idem, ibidem,p. 357. (5) Vide: Herbert Spencer, Autobiographie. Naissance de Pévolutionnisme libéral, Paris, Presses Universitaires de France, 1987, pp. 273-393; Herbert Spencer, The principles of biology, vol. 2, ob. cit., pp. 497-504. (9) Vide: Júlio de Matos, “A reorganização da politica pela sciencia”, Era Nova,
Lisboa, 1, 1880-1881, pp. 72-74.
(7) Vide: Patrick Tort, “Spencer et le systême des sciences”. In: Herbert Spencer, Autobiographie. Naissance de I'évolutionnisme libéral, ob. cit., pp. V-XLIV; Idem, La pensée hiérarchique et Vévolution, ob. cit., pp. 328-341. A taxonomia das ciências de H. Spencer é mais complexa do que a comtiana, mas a reformulação operada por Spencer não era contrária ao espírito positivo de Comte, pois o filósofo francês esperava que o pro-
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Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 2
do-a como um referente fundamental(?). Não causa a menor surprésa à facto de Júlio de Matos, em 1880-1881(1), atribuir ao filósofo francês a
ilusões psicológicas que fazem do homem um ser excepcional e incomreensível na origem, nas funções superiores, na finalidade”(!). No pre-
autoria do princípio epistemológico que consistia em “fazer preceder o estudo da ciência social pelo estudo da ciência da vida”(2). Era dé ele. mentar justiça, reconhecê-lo. Mas, enquanto a filosofia biológica de
Comte, exposta em seis lições, escritas em 1836 e 1837 (da 40º lição à.
45º lição do Cours (2), se saldava, na expressão de G. Canguilhem, “dans . Vidée de la Biocratie, condition de la Sociocratie”(*), Júlio de Matos, já então, tinha em mente uma outra ciência da vida. Tratava-se, precisamente da ciência darwiniana, que não se revia nas categorias biocráticas de Aierarquia, subordinação e unidades biotáxicas(*) da filosofia biológica comtiana. E tanto assim é que, no mesmo ano, Júlio de Matos inicia a publicação de uma grandiosa Historia natural(*), com o objectivo de pro-
pagar a mentalidade naturalista e, em especial, de fazer, como diria .
Germano Sacarrão, “a pedagogia da evolução”(?). Esta obra matosianaé um trabalho de compilação dos resultados alcançados pelas ciências da vida animal. Ela inclui as vertentes anátomo-fisiológica, psicológica e etológica, de particular interesse para a sua ideia de naturalização da sociedade e da história da espécie humana. Neste sentido, logo no prefácio adverte que, “é pelo estudo (...) da história natural que conhecemos o lugar exacto que na criação nos compete,evitando por tal conhecimento as gresso do conhecimento científico conduzisse a “une meilleure organisation systématique de Iensemble des divers travaux scientifiques”, Oeuvres d'Auguste Comte. Tome: TI —Cours de philosophie positive. Troisiême volume — La philosophie chimique et.la philosophie biologique, Paris, Editions Anthropos, 1968, p. 671. Vide também, Herbert Spencer, Classificação das ciencias, São Paulo, Cultura Moderna(Soc, Editora Ltda), s.d., sobretudo pp. 68-96. (1) Júlio de Matos, “Augusto Comte”, art. cit., pp. 497-502, 561-565. (2) Idem,ibidem, p. 500. (2) Vide: A. Comte, Cours de philosophie positive. Troisitkme volume -La philosophie chimique et la philosophie biologique, ob. cit., pp. 209-671. (4) G. Canguilhem, “Auguste Comte. 1 — La Philosophie Biologique d”'Auguste Comte et son influence en France au XIXe siêcle”. In: Études d'histoire et de philosophie
des sciences. Troisiême édition. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1975, p. 73.
(º) Vide: A. Comte, Cours de philosophie positive. Troisiême volume-La philosophie chimique et la philosophie biologique, ob. cit., pp. 425-482. (6) Vide: Júlio de Matos, Historia natural ilustrada. Compilação feita sobre os mais aquctorisados trabalhos zoologicos, Porto, Livraria Universal, [1880-1882], 6 vols.. (7) Germano F. Sacarrão, Biologia e sociedade IL. O homem indeterminado,
ob,cit., p. 281.
365
fácio, Júlio de Matos não se refere à selecção sexual e à ascendência do homem de uma forma inferior mas, não há dúvida que, utiliza o termo
criação em sentido metafórico.
É por demais interessante notar o modo como Júlio de Matos procura serenar o leitor e, ao mesmo tempo, garantir o maior sucesso da obra. Por um lado, afirma, com prudência, que as doutrinas “trazidas à Zoologia e à Botânica por Darwin, seguidas e divulgadas por Wallace e Hackel, brilhantes sem dúvida (...) pertencem contudo ainda hoje aos domínios da
hipótese e da discussão. Não podemostratá-las aqui”(2). Por outro lado, o
autor abre uma excepção que revela claramente qual era a sua posição relativamente à teoria darwiniana. Vejamos, textualmente: “Somente, como dos novos trabalhos da escola transformista ressaltam princípios e teses que são desde já aquisições indiscutíveis da ciência, faremos deles a exposição que lhes é devida como a doutrinas positivas e demonstradas. Estão neste caso os princípios da luta pela vida e da selecção natural, justamente considerados os mais seguros e os mais fecundos da história natural moderna”(*). Note-se que a excepção aberta refere-se ao núcleo duro do evolucionismo darwiniano, o que é tanto mais elucidativo da opção de Júlio de Matos quanto o jovem médico não ignorava as resistências da comunidade científica internacional, sobretudo da francesa, ao
mecanismo evolucionário defendido por Darwin. Com efeito, as fontes de informação de Júlio de Matos eram pre-
dominantemente em língua francesa. Ora, como provaram, entre outros,
Yvette Conry(4) e Jacques Roger(”), a originalidade da teoria darwiniana foi transfigurada pelos cientistas e ideólogos franceses. Basta pensar na (1) Júlio de Matos, Historia natural ilustrada, vol. 1, ob, cit., p. 6.
(2) Idem,ibidem, p. 7.
(3) Idem, ibidem, p. 7. Sublinhado do Autor. (4) Vide: Yvette Conry, introduction du darwinisme en France au XIXº siêcle, ob.cit.. (5) Vide: Jacques Roger, “Darwin, Hackel et les français”. In: De Darwin au darwinisme: science et idéologie. Congrês International pour le Centenaire de la mort de Darwin. Paris-Chantilly 13-16 Septembre 1982. Édition préparée par Yvette Conry. Paris,
Librairie Philosophique J. Vrin, 1983, pp. 149-165.
(5) Vide: Charles Darwin, De V'origine des espêces par sélection naturelle ou des lois de transformation desétres organisés. Traduction de Mme Clémence Royeravec préface et notes du traducteur, ob. cit.. Note-se como a tradutora modificou o próprio título da obra.
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Darwin em Portugal
tradução da Origem das espécies por Clémence Royer, desde 1862(9), no livro de Quatrefages, Darwin et ses précurseurs français(!), nos trabalhos do malogrado Léon Dumont(2), introdutor em França das ideias de Eduard Hartmann(?), para já não chamar à colação ospositivistas tanto ortodoxos como heterodoxos. Na conclusão autorizada de Jacques Roger, “les
Français n'avaient pas attendu Hackel, pour méconnaitre ou travestir
Darwin en linterprétant à la lumiêre d'une tradition lamarckienne”(4). Mas, as resistências da França ao paradigma darwiniano pouco afectaram o nosso autor. Em 1880, Matos é um darwiniano assumido. Na apresen-
tação da sua História natural ilustrada, e apenas nesse lugar, silencia 6 tema da evolução bio-psico-social do homem de uma forma animal inferior, por motivos de ordem publicitária e pedagógica. Parecia-lhe contraproducente atingir imediatamente os dogmaséticos,religiosos, sociais e outros, do seu potencial leitor. Mas, no corpo da obra, Júlio de Matos reserva um capítulo para tratar da evolução do homem(), segundo os cânones da teoria darwiniana, apoiando-se também nas traduções francesas das obras
sistemáticas de Lyell(9), E. Hzckel(?), E. Hamy(?), entre outras.
Neste sentido, o autor contraria a taxonomia de Cuvier e inclui Os homens (bimanos) e os simianos (quadrumanos) na mesma ordem (primatas), invocando um conjunto de argumentos anatómicos, embriológicos, fisiológicos e etológicos, incluindo uma leitura fisiológico-evolucionária da linguagem e da religiosidade, para legitimar o parentesco entre as duas (1) Vide: A. de Quatrefages, Charles Darwin et ses précurseursfrançais. Étude sur le transformisme, ob,cit.. (2) Vide, por exemplo, Léon Dumont, “Le transformisme en Angleterre.
L'expression des sentiments chez "homme et les animaux, d'aprês Darwin”, art: cil., pp. 1033-1042.
(3) Vide: Patrick Tort, “Léon Dumont 1837-1876”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit., p. 1299. (4) Jacques Roger, “Darwin, Hackel et les français”. In: De Darwin au darwis nisme: science et idéologie. ob. cit., p. 160.
(5) Vide: Júlio de Matos, Historia natural illustrada, vol. 1, ob. cit., pp. 255-269.
(6) Vide: Charles Lyell, L'ancienneté de Phomme prouvée par la géológie et remarques sur les théories relatives a Porigine des espêces par variation, ob. cit.. (7) Vide: Ernst Hackel, Anthropogénie ou histoire de "evolution humaine. Leçons familiêres sur les principes de "embryologie et de la phylogénie humaines, ob. cit; (8) Vide: E.-T. Hamy, Précis de paléoniologie humaine, Paris, J.-B. Bailliêre et Fils, 1870, 372 pp.: il. — Publicado como apêndice à obra de Charles Lyell, L'ancienneté de Vhomme prouvée par la géologie, Deuxiême édition, Paris, 1870. (9) Vide: Júlio de Matos, Historia natural ilustrada, vol. 1, ob. cit., sobretudo, pp. 33-34; p. 97; pp. 159-162; pp. 27l e ss.
Parte HI — Capítulo 2
367
“famílias”(º). O seu texto é claro: “a nossa divisão de bimanos e quadrumanos não corresponde, como no arranjo taxonómico de Cuvier, a duas ordens, mas simplesmente a duas vastas famílias de um só e mesmo grupo ordinal”(!). Evidentemente que, face à exposição de Júlio de Matos, a argumentação de Darwin em The descent of man era incomparavelmente superior, sobretudo pelo volume excepcional de observações recolhidas e de dados extraídos de obras de outros naturalistas creditados na época. Mas os termos do problema são exactamente os mesmos, tanto na obra de Darwin(2) como na Historia natural de Júlio de Matos. Com efeito, o jovem médico também advoga que o homem não é portador de um único atributo exclusivamente seu(?). Nem o raciocínio, nem a emotividade, nem a vontade, nem a linguagem, nem a sociabilidade, nem o senso morale estético, nem a autoridade e o comando, nem mesmoa religiosidade, distinguem o homem do ani-
mal(4). A naturalização deste conjunto de atributos(”), especialmente, da razão, da linguagem e do sentimentoreligioso, atingia o cerne da antropolo-
gia metafísica e, também porisso, Júlio de Matos não vacila na defesa do continuismo evolutivo entre o animal e o homem,a todos os níveis.
Na verdade, o nosso autor conservou-se sempre fiel a este princípio darwiniano que, apesar da sua radicalidade não era propriamente tabu, na vanguarda cultural da aúrea década de oitenta do século XIX. É de notar que, à volta de 1880, os tópicos mais sensíveis da problemática enunciada foram objecto de um tratamento autónomofeito por outros estudiosos, no quadro do darwinismo. Referimo-nos, em particular, aos trabalhos de José Leite de Vasconcelos sobre a evolução natural da inteligência e da lin(1) Vide: Idem, ibidem, p. 34.
(2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., sobretudo, pp. 146-165. (3) Vide: Idem, ibidem, sobretudo pp. 65-127; Idem, The expression of the emotions in man and animais. With a preface by Konrad Lorenz. Chicago-London, The University of Chicago Press, 1965, pp. 50-82; 347-366. Vide: Júlio de Matos, Historia natural ilustrada, vol. 1, ob. cit., sobretudo pp. 160-179; 255-365. (4) Em defesa do sentimento animal de devoção religiosa, Darwin refere que “Professor Braubach goesso far as to maintain that a dog looks on his master as on a god”, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 96. (5) Vide: Georges Canguilhem, “Charles Darwin. IL — L”homme et "animal du point de vue psychologique selon Charles Darwin”. In: Études d'histoire et de philosophie des sciences, ob. cit.., pp. 112-125; Nino Dazzi, “Darwin psychologue”, De Darwin au darwinisme: science et idéologie, ob. cit., pp. 33-48. (9) Vide: José Leite de Vasconcelos, “Intelligencia e instincto”, O Pantheon, Porto, 1, 1880-1881, pp. 281-285; Idem, A evolução da linguagem: ensaio anthropolo-
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Darwin em Portugal
guagem(º), tema,aliás, debatido entre nós desde a publicação pioneira de
EA. Correia Barata(!), em 1875, e aos trabalhos de F.J. Teixeira Bastos(2)
sobre a aquisição animal do sentimento religioso e a sua evolução no homem. Na Historia natural ilustrada, o parentesco entre o homem eos animais superiores é, ainda, como em Darwin(?), afirmado ao nível da patologia mental, especialmente quanto ao exagero mórbido da emoção, isto é, no que conceme à paixão. “Estes estados não são privativos do homem; experimentam-nos igualmente os animais superiores. A. Ritti (...) demonstrou a existência da loucura afectiva nos animais superiores, mamíferos nomeadamente. De resto, sabem todos a que grau podem chegar nestes seres alguns afectos e emoções dos que na espécie humana consideramos mais elevados”(?). Esta capacidade de adoecer que: 0 sistema nervoso acusa, “implica uma lenta alteração do funcionalismo normal dos órgãos da vida vegetativa e, como observa Darwin, uma nova disposição dos traços fisionómicos. As alterações circulatórias e digestivas, aparecem primeiro; depois vêm as fundas perturbações respiratórias (...) as cambiantes fisionómicas enfim, que bastam a revelar-nos a pregico, Porto, Typographia Occidental, 1886. Cerca de 1880, Alexandre da Concéição traduz a obra de Emesto Menauit, A inteligencia dos animais. Obra ilustrada com 60 gravuras. Porto, Magalhães & Moniz/Imprensa Comercial, s.d.. Sobre a evolução da linguagem pelasleis naturais de Darwin, vide, também, João Cardoso Júnior, “Darwinismo”,
Gazeta Hlustrada. O Atheneu Artistico-Litterario, Porto, 6, 4 Dez. 1880, p. 42; 11, 8Jan. 1881, pp. 85-86; 19, 5 Mar. 1881, p. 152;20, 12 Mar. 1881, p. 155. 2º sér., 6, 11 Jun. 1881,
pp. 45-46. Idem, “Darwinismo”, A Vanguarda, Lisboa 1 (24) 17 Out. 1880,p. 4; 1 (25) 24 Out. 1880, p. 4. Posteriormente, este tema foi tratado, nomeadamente, por Oliveira Ramos,
“A teoria da evolução de Darwin”, Revista Academica, Porto, (1), 1889, pp. 2-3; (2), 1889, pp. 10-12; A. Martins, “Estudo sobre a origem da linguagem”, Revista de Coimbra, Coimbra, 1 (5) 15 Mar. 1891, pp. 78-80; Francisco Adolfo Coelho, “As leis da linguagem”, Revista da Federação Académica de Lisboa, Lisboa,(2), Abr. 1915, pp. 35-41. (!) Vide: F.A. Correia Barata, “O homem primitivo e a sua linguagem”, O Instituto, Coimbra, 22 (12) Jun. 1875, pp. 265-277. (2) Vide: Francisco José Teixeira Bastos, “Origens das religiões”. In: Ensaios sobre a evolução da humanidade, Porto, Livraria Universal de Magalhães & Moniz-. -Editores, 1881, pp. 81-115; Idem, “A creação do homem”, Era Nova, Lisboa, 1, 1880-1881, pp. 20-31. A naturalização do sentimento religiosoe a interpretação da história das religiões pelas leis darwinianas foram temas advogados com brilho pelo médico Francisco Silva Teles no artigo “Como nascem as religiões”, O Pantheon, Porto, 1, 1880-1881,
pp. 1977-181.
(3) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob.cit., p. 79. (*) Júlio de Matos, Historia natural ilustrada, vol. 1, ob. cit., p. 167.
Parte III — Capítulo 2
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sença de um apaixonado. Se a modalidade afectiva se prolonga para além
de certoslimites, a morte sobrevem às vezes, a loucura outras”(!), tanto no homem como noutros mamíferos. O nome da paixão pouco importa: pode ser amor, ódio, desejo de liberdade,etc.. O fundamental é que se trata de um estado fisiológico que não é exclusivo do homem. Outros mamíferos como o cão e o macaco,
tanto em estado de domesticidade, como em cativeiro, ou em estado selvagem, podem experimentar a tirania de uma paixão que muitas vezes
culmina na morte. Assim sendo, a Historia natural illustrada transmitia ao
leitor comum uma mensagem capital, a saber: entre o homem o bruto não se registava qualquer diferença substancial, no sentido ontológico (mate-
rialista-monista) do termo(?) e, no entanto, entre ambos, havia uma
distância praticamente incomensurável na escala evolutiva, o que, à luz do exposto, de modo algum podia ser lido em moldes criacionistas. Porquê este parentesco tão próximo e umadistância tão funda? Ou melhor, a inter-
rogação científica é outra: como? de que modo se processou a evolução? É naresposta ao problema do mecanismo evolucionário que Júlio de Matos revela que compreendeu bem a diferença entre Lamarck e Darwin. Em lugar de proceder como os franceses que lamarckizaram Darwin, Júlio de Matos secunda o mecanismo evolucionário darwiniano. Os princípios da teoria da descendência com modificações são analisados por esta ordem: luta pela existência; selecção natural; adaptação; hereditarie-
dade(?), sendo esta identificada com o facto da transmissão de caracteres.
Não se estranhe que a aquisição dos caracteres seja atribuída também à influência do meio, o que, de modo algum,significa que Júlio de Matos
subordina Darwin a Lamarck. A verdade é que a própria teoria darwiniana ainda não dispunha das noções biológicas capitais de soma e germen (Weismann, 1883) e de mutação (Hugo de Vries, 1900)(4). Por outro lado, face ao estado da questão da hereditariedade na época, o silêncio de Júlio de Matos relativamente às suas leis parece ser uma nota de prudência positiva, embora o nosso autor estivesse familiarizado com a exposição (1) Idem, ibidem, p. 167.
(2) Neste sentido, lê-se em Darwin: “we may trace a perfect gradation from the mind of an utter idiot, lower than that of an animal low in the scale, to the mind of a
Newton”, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 127.
(3) Vide: Júlio de Matos, Historia natural illustrada, vol. 1, ob. cit., pp. 263-269. (4) Vide: Charles Lenay, La découverte des lois de ['hérédité (1862-1900). Une anthologie, s1., Presses Pocket, 1990,pp. 163-263; Jacques Ruffié, De la biologie a la culture, vol. 1, ob. cit., pp. 44-52.
370
Darwin em Portugal
Parte HH — Capítulo 2
darwiniana e com a sistematização hackeliana do problema(!). Mas.
as ideias expendidas no prefácio à obra garofaliana e, como se verá, eleva a linguagem a um nível de dureza insuperável. O trabalho de Garofalo é mais severo do que o ensaio spenceriano(!), mas deve acrescentar-se que Júlio de Matos teve o cuidado de escolher um dos textos spencerianos
tratar-se-ja mesmo de um especial cuidado epistemológico? Não q podemos afirmar com segurança, pois o futuro psiquiatra fará desta categoria biológica — a hereditariedade — ao tempo, ainda tão pouco cientf. fica, a chave da sua objectivação elitista da sociedade. 2. A leitura matosiana do socialismo enquanto falsificação
da concorrência vital
Acabámos de constatar que, desde a década de oitenta do século
XIX, Júlio de Matos assume-se como um darwiniano no campo da biologia e da história natural e que, simultaneamente, já então, se inclinava para o darwinismo social individualista-elitista. Ora, nos seus estudos.
sócio-políticos de plena maturidade, Júlio de Matos irá receber a influência decisiva de Garofalo, cuja radicalidade seleccionista supera o modelo spenceriano(2), ainda que este não transigisse com qualquer forma de
proteccionismo social.
Ao contrário do que verificámos na sociologia teofiliana, o positivismo comtiano não exerceu em Júlio de Matos um efeito temperador dos corolários políticos que diversos sociólogos evolucionistas, particularmente Herbert Spencer, e mesmo zoólogos como Ernst Heckel, ou juristas e criminalistas como Garofalo, extraíram da doutrina darwiniana. Se Teófilo Braga, possuidor duma inteligência política invulgar, não resvalou para o seleccionismo conflitualista, já o mesmo não ocorreu com o seu condiscípulo republicano. Em 1904, Júlio de Matos assume a radicalidade das suas tendências | doutrinárias socio-políticas, de matriz darwinista, plasmando-as em dois estudos que servem de prefácios a duas obras que também traduziu, sendo a primeira da autoria de Raffaele Garofalo(?) e a segunda da autoria de Herbert Spencer(). No prefácio a esta última obra, Júlio de Matos retoma
(!) Vide: Júlio de Matos, Historia natural ilustrada, vol. 1, ob. cit., p. 264 ess.
(2) Vide: Daniel Becquemont, “Aspects du darwinisme social anglo-saxon”. lh: Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, sobretudo, p. 148 e ss. (2) Vide: R. Garofalo, A superstição socialista. Tradução e prefácio de Julio de Mattos, Lisboa, Livraria Classica Editora, 1904. (4) Vide: Herbert Spencer, Da liberdade à escravidão. Tradução prefaciada por Julio de Mattos. Lisboa, A. M. Teixeira, 1904.
37
mais duros no combate ao socialismo, senão o mais intransigente e
dogmático.
Notexto que prefacia a obra de Garofalo, o nosso autor propõe-se desmitificar os princípios da liberdade de consciência e de acção, da soberania popular e da igualdade, à luz do determinismo biológico. No primeiro caso, “a liberdade ou se compreende como a ausência de obstáculos arbitrariamente impostos pelos governos à conformação do indivíduo com as leis biosociológicas da evolução ou não tem sentido”(2). No segundo caso, a soberania popular é um falso e perigoso ídolo, pelo qual se confia “à ignorância e à corruptibilidade das plebes a escolha das assembleias legislativas”(2) o que se traduz na “selecção do medíocre e do arrivista”(*). Por seu turno,a igualdade “fora dos limites jurídicos, é apenas uma utópica aspiração de fracos e de impotentes, condenada pela história e pelas leis da biologia”(º). Estas apenas caucionam a afirmação das diferenças de capacidades individuais e da livre concorrência. Ora, em seu entender, a “superstição socialista” consiste na combi-
nação do “culto da soberania popular”(º) com o “culto da igualdade”(?), a qual se traduz numa “novareligião, sem Deus, é certo, mas com dogmas,
com profetas, com apóstolos, com intolerâncias, com lutas, com mártires
e até com procissões, ..."(2). Ao assumir a forma de religião(?), o socia(1) O título original deste ensaio spenceriano é “From Freedom to Bondage” publicado em 1891 como Introdução a A Plea for Liberty. Vide: Patrick Tort, artigo “Herbert Spencer 1820-1903”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 3, ob. cit.,
p. 4110. O mesmo ensaio foi traduzido para francês e publicado numa colectânea de artigos spencerianosintitulada, Problêmes de morale et de sociologie, Traduction et avant-propos par M. Henry de Varigny. Paris, Librairie Guillaumin et Cis, 1894, pp. 79-109. (2) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: R. Garofalo, A superstição socialista, Lisboa, Livraria Classica Editora, 1904, pp. XXIV-XXV. () Idem, ibidem, p. XXV.
(4) Idem, ibidem, p. XXVI. () Idem, ibidem, p. XXVI (9) Idem, ibidem, p. XXVII. Sublinhado do Autor.
(7) Idem, ibidem, p. XXVII. Sublinhado do Autor. (8) Idem, ibidem, p. XXVII. Sublinhado do Autor. (9) A leitura do socialismo enquanto religião não é original. Entre outros, Gustave
Le Bon tinha institucionalizado esta leitura. Vide: Gustave Le Bon, Psychologie du socialisme, Paris, Félix Alcan Éditeur, 1899, pp. 71-122.
Darwin em Portugal
Parte HH — Capítulo 2
lismo adquire uma carácter contagioso que, para Júlio de Matos, evidencia a sua perigosidade social. Sob a direcção dos seus mentores, o socialismo é sustentado pela “multidão confusa dos imprevidentes e ociosos que, não sendo a qualidade e a virtude, são, no entanto, o número e a maioria”(!). Além disso, este ideário contagiou também uma parte significativa das “classes superiores”(2), designadamente da burguesia, que faz dele um “fetiche intelectual”(2), pois supõe que ele representa o ideal de justiça, paz e harmonia social e não vê que se trata de uma forma patológica de lutar pela vida que subverte a selecção natural.
Esta tomada de consciência, por parte da burguesia, do seu valor civilizacional é um problema apresentado com carácter de urgência. Porquê? A razão é simples. Júlio de Matos, sob a influência da leitura spenceriana e garofaliana da organização política e institucional dos estados europeus mais avançados, defende que o estado-providência é a primeira forma do socialismo de estado(!), desde logo porque se trata de uma forma de governação da sociedade que falsifica asleis da luta pela vida e da selec-
372
Neste sentido, Júlio de Matos, ao traduzir e prefaciar a obra garo-
faliana, intenta fazer um trabalho pedagógico junto da burguesia iludida, demonstrando-lhecientificamente a “pavorosa aspiração de retrocesso”(4) do ideário socialista. Ao mesmo tempo, procura contribuir para preservar a ciência social do contágio do mito socialista que se apresenta com foros de cientificidade, à revelia do princípio evolucionário consagrado na
biologia e também na sociologia verdadeira, isto é, de matriz darwinista“liberal. Para esclarecer a burguesia, Júlio de Matos defende que o socia-
lismo é um despotismo nivelador das classes, pois visa o fim da iniciativa individual, da concorrência livre e da cooperação voluntária. Assim, à burguesia devia compreender que a sua adesão ao socialismo equivalia a aprovar o seu próprio fim; equivalia a julgar erradamente o nível mental das classes inferiores pela sua própria mente. É que, segundo Júlio de Matos, as classes ditas inferiores obedeciam a instintos selvagens que não acederam ao grau de moralidade básica, o qual se traduz nos sentimentos
de piedade e de probidade, ou seja, no respeito pelo indivíduo e pela propriedade. Através deste ensinamento, a burguesia devia reconhecer a sua superioridade moral e aprender a auto-estimar-se como sendoa categoria social que tinha a possibilidade e a obrigação históricas de garantir a conservação e o progresso do senso ético-civilizacional. Para Júlio de Matos, o seu interlocutor privilegiado não podia abdicar do “seu papel histórico de classe dirigente, defendendo a qualidade contra o número, a
inteligência contra a força, e promovendo por todos os modos, consciente € energicamente, a supremacia social de uma elite”(5).
373
ção dos mais aptos. Assim, “os funestos resultados deste sistema, em que
a acção do poder central tende a substituir completamente a do indivíduo, são de duas ordens: uma restrição cada vez maior da liberdade pessoal, mercê da incessante regulamentação arbitrária de todas as iniciativas, e uma tributação cada vez mais pesada, mercê das necessidades crescentes dos governos, que a tudo têm de prover”(2). Se a política fiscal incide nas classes burguesas e não afecta o proletariado, o certo é que aquelas não
recebem contrapartidas, sendo o proletariado o único beneficiário do inter-
vencionismo estatal em diversas áreas, como a educação, a saúde e outras formas de assistência social. No desenvolvimento deste enunciado, Júlio de Matosrevela a consistência do seu darwinismo social individualista().
Procuremos dar uma ideia sintética da sua argumentação e avaliar a sua radicalidade face à lógica darwiniana da vida social. Retomando o postulado da moralidade do burguês, Júlio de Matos concretiza-o no plano afectivo e sexual, advogando o seu malthusianismo
espontâneo: “o burguês, que não casa, em regra, senão quando julga possuir os meios de sustentar uma família, porque só conta consigo, é, neste doce regime, obrigado a contribuir para a educação dos filhos do proletário, que se casa, quando lhe apetece e que tem, como é sabido, a fecundidade maravilhosa dos roedores” (4). Quer isto dizer que o estado-
-providência explora a moralidade do burguês para socorrer a imoralidade do proletário. Além da educação dos filhos do proletário, o burguês paga a subsistência dos órfãos da imoralidade em asilos públicos; é o burguês que é obrigado a “sustentar albergues, hospícios, asilos e hospitais destinados ao proletariado. O burguês, que severamente educa os filhos no
(1) Vide: Idem, ibidem, p. XXIV e ss.
(!) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. XXVEI.
(2) Idem, ibidem, p. XXXII. (2) Idem, ibidem, p. XXIX. (4) Idem,ibidem, p. XXX.
(*) Idem, ibidem, p. XXXII. Sublinhado do Autor.
(2) Idem, ibidem, p. XXXV.
(3) É a denominação atribuída por Daniel Becquemont ao darwinismo social de tipo spenceriano. Vide: Daniel Becquemont, artigo “Darwinisme social”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit., sobretudo pp. 1112-1119.
(4) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: R. Garofalo, A superstição socia-
lista, ob. cit., pp. XXXVIXXXVI.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 2
respeito da lei, é, todavia, quem paga as casas de correcção, em que as crianças proletárias se acumulam”(!). Assim, o senso ético das classes superiores é gravemente penalizado pela imprevidência das classes inferiores sem que, por isso, estas ganhem alguma vantagem moral. No dizer do autor, “a previdência burguesa, que é uma virtude e uma característica de civilização, serve para manter a insouciance das classes ínfimas, que'é um defeito e um estigma de selvajaria”(2). Esta classificação das diferentes condições económicas e sociais não é propriamente original. A divisão da sociedade em classes superiores é inferiores, segundo um critério ético, era corrente na literatura sociológica e política de cariz liberal, produzida na época. O próprio Darwin também utiliza as categorias de homem prudente-superior (prudent-better) versus homem imprudente-inferior (reckless-inferior), sendo este identificado com o maior número. Mas, na matriz darwiniana, esta desproporção numérica entre o homem superior e o homem inferior não constituía um obstáculo à evolução civilizacional por selecção natural, porque, naquelas condições, a luta pela vida tornava-se mais dura. Todavia, pela lógica darwiniana, o estado-providência podia criar dificuldades artificiais à selecção natural, embora esta dispusesse de meios que garantiam: o sucesso dos mais qualificados(?). O mesmo é dizer que, na matriz darwiniana, o maior número não possuia meios económicos € culturais para competir com as elites. Por seu turno, estas garantiam a preservação histórica dos caracteres morais, culturais e civilizacionais mais elevados, através da educação social, religiosa, moral, estética e científica que pro: porcionavam aos seus filhos. Darwin reconhecia que o maior número era composto de homens inferiores, mas admitia que a sua superioridade numérica não punha em risco(*) o progresso da civilização segundo asleis da luta pela vida e da selecção natural. O optimismo do naturalista inglês não é totalmente partilhado por Júlio de Matos e pelos seus inspiradores mais próximos, embora estes se considerassem analistas sociais, de acordo com o código científico darwiniano. Para Júlio de Matos, a desproporção entre a qualidade e a quan:
outro lado,atribuía à política fiscal e assistencial do estado-providência a
374
tidade assumia contornos dramáticos, sobretudo em virtude da força social
e política que o socialismo imprimia no maior número desqualificado. Por (!) Idem,ibidem, p. XXXVII. (2) Idem, ibidem, pp. XXXVIL-XXXVII. Sublinhado do Autor. (2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., sobretudo p. 618. (4) Idem, ibidem, p. 618.
375
capacidade de estancar o funcionamento do mecanismo evolucionário, isto
é, da selecção natural. Portanto, a sua militância pedagógica pelo voluntarismo político-liberal do burguês assenta no receio do triunfo da quantidade sobre a qualidade, o que contrasta com a confiança que o sábio inglês depositava nas leis naturais da evolução social. Com efeito, Darwin conhecia a história da humanidade e tinha constatado que, em muitas circunstâncias, o poder político e institucional se opusera com veemência ao crivo da selecção natural. Mas, entendia que, nem por isso, a evolução civilizacional dos poderes mentais, morais, técnicos e outros deixava de
processar-se(!). De modo algo diferente, Júlio de Matos temia que o inter-
vencionismo estatal tivesse poder para inverter o sentido progressivo da evolução. Na perspectiva de Júlio de Matos, a primeira vítima do estado-providência era a pequena burguesia que, não podendo suportar a carga fiscal, acabava porir engrossarasfileiras do proletariado. Esta regressão era inevitável e perturbadora, dado que, por um lado, a pequena burguesia não podia fazer face a “uma vida simplesmente higiénica”(2) e, por outro lado, muitos dos seus membros acabavam “despenhando-se nas torturas da neurastenia”(?). Portanto, a política de previdência e segurança social, praticada por alguns estadosliberais europeus da época, produzia efeitos exactamente contrários aos intencionados. Agravava os vícios das classes inferiores, proletarizava a pequena burguesia e, desse modo, aumentava a pobreza material e baixava o nível geral de moralidade, com todas as consequências patológicas que daí decorriam para o agregado social no seu todo. Nos termos do autor, o “socialismo de estado”, além de ser um “desastre económico”, é um “desastre político, porque este sistema de governar em oposição com as leis naturais, nos prepara para o colectivismo”(4), isto é, para a regressão da história ao seu dealbar pré-histórico. Podemos afirmar que a distância entre Darwin e Júlio de Matos também reside no facto do psiquiatra portuense fazer uma leitura patológica das consequênciasfiscais e assistenciais do estado-providência. Mas, essa
diferença não compromete a identificação de Júlio de Matos com o darwinismo social spenceriano e garofaliano. Além disso, como se verá no (1) Idem, ibidem, sobretudo pp. 127-145.
(2) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. XL.
() Idem, ibidem, p. XLI. (4) Idem, ibidem, p. XLII.
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Darwin em Portugal
decurso da nossa exposição, Júlio de Matos não tinha interesse em enfatizar a ideia darwiniana de evolução natural, enquanto descendência com modificações, aberta a um jogo de possibilidades de devir(!). Para fundamentar darwinisticamente a sua obsessão anti-socialista não era, de facto, necessário, nem vantajoso, valorizar a lógica evolucionária na sua originalidade, irredutível ao cientismo spenceriano. Mas, nem por isso deixava de poder invocar o próprio texto darwiniano, pois este apontava para um ideal competitivista de organização social(2), embora evitasse pronunciar-se sobre o telos histórico. Em suma, apesar das diferenças entre o darwinismo social darwinianoe o cientismo socio-político de Júlio de Matos, não há dúvida que os postulados matosianos que presidem à sua reprovação, quer das práticas políticas do estado-providência, quer dos
ideários socialistas, inscrevem-se na lógica darwiniana da vida. Assim, o ideal socio-político matosiano tem como valor chave o
princípio da desigualdade biológica e social entre os indivíduos. Embora se tratasse de um princípio científico-darwiniano, Júlio de Matos enten-
dia que a sua efectivação podia ser contrariada e, nesse sentido, as
sociedades mais avançadas da época apresentavam sintomas de tendências regressivas, protagonizadas pelos socialismos, pelos comunismos é pelos anarquismos. Por isso, visando salvaguardar a evolução progressiva e prevenir a regressão ao estado pré-civilizacional, sem propriedade, sem família e sem indivíduo, Júlio de Matos sublinha o valor da desigual-
dade bio-social entre os indivíduos. Ela é resultante “de dois factores: a hereditariedade e o meio”(?), em particular o meio social de que-o indivíduo é originário. Quer isto dizer que, o meio em que se desenrola a
formação do indivíduo, especialmente, o meio familiar, condiciona-o;
negativa ou positivamente, em função da qualidade dosseus progenitores
e, nessa medida, acentua o determinismo hereditário. Mas, nem por isso;
a singularidade individual se dissolve na família ou na classe bio-social à
que esta pertence.
Por outro lado, Júlio de Matos procura transmitir a ideia de que 0 indivíduo e, portanto, o valor ideo-político do individualismo não é a negação do colectivo ou do comunitário, entendido em termos organicis(1) Vide: Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, ob. cit., pp. 28-31. (2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to ser qcond edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., sobretudo p. 618. (3) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: R. Garofalo, A superstição socia-
lista, ob, cit., p. LIN. Sublinhado do Autor.
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tas, segundo a influência recebida, sobretudo, do sistema spenceriano( b. A defesa do individualismo deve ser entendida como uma expressão da heterogeneidade crescente, própria das sociedades industrialistas, o que não implicava a assunção exclusiva do nominalismo sociológico. Já numa obra publicada em finais dos anos oitenta(?), o autor procurou definir a vertente organicista da sua leitura da sociedade, pela reunião de vários contributos de autores muito diferentes, como A. Comte, H. Spencer,
Espinas() e Ferri(?). Eis a síntese de Júlio de Matos: “as sociedades
humanas são organismos vivos e progressivos, embora especiais, tendo um movimento de assimilação e desassimilação, denunciado pelos nascimentos, pelas mortes, pelas imigrações e emigrações, por exemplo (Ferri), possuindo órgãos e funções, tanto mais especializados quanto maior é O seu grau de civilização e complexidade (Spencer), reproduzindo-se pela sucessão de gerações ligadas pelo vínculo datradição e diferenciadas pelo movimento imanente do progresso (Comte), enfim, defendendo-se instintivamente, como o fazem as sociedades animais (Espinas), quer dos
organismos similares pela guerra, quer dos seus próprios elementos perniciosos pela segregação”(). O que, sobretudo, importa sublinhar, é que, na sua definição, Júlio de Matos não afirma que “o movimento imanente do progresso(Comte)” é necessário e teleológico. À nosso ver, esta reserva não apaga a distância entre o seu biologismo sociológico e a teo-
ria da “descendência com modificações”, mas, sem dúvida, demarca-o da
(1) Vide: Herbert Spencer, “The social organism”. In: Essays: scientific, political, and speculative, London, Williams and Norgate, 1868, vol. L, pp. 384-428; Idem, The principles of sociology. Second edition, vol.1, London, Williams and Norgate, 1877, cap. E, intitulado, “A society is an organism”, pp. 467-480. (2) Vide: Júlio de Matos, A loucura. Estudos clinicos e medico legaes, S. Paulo, Teixeira e Irmão Editores, 1889. (3) Espinas, discípulo e tradutor de Spencer, é autor, entre outras, da obra Des sociétés animales, étude de psychologie comparée, 1877. Como muitos outros cientistas franceses, este sociólogo e pedagogo francês não reconheceu à selecção natural o estatuto epistemológico que Darwin lhe atribuiu. Vide: Antonello La Vergata, “Alfred Espinas 1844-1922”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit., pp. 1402-
-1403.
(4) Ferri, um eminente apóstolo da selecção natural, co-fundador do darwinismo criminológico, é autor da Sociologia criminale, 1881. Vide: Antonello La Vergata, “Enrico Ferri 1856-1929”. In: Dictionnaire du darwinismeet de P'évolution, vol. 1 ob. cit., pp. 1644-1645. (5) Vide: Júlio de Matos, A loucura. Estudos clinicos e medico legaes, ob. cit.,
p. 330.
Darwin em Portugal
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construção comtiana, tanto mais que, para Júlio de Matos, o indivíduo
ascendentes. As desigualdades são inatas ou congénitas, o que se prende
Com efeito, o nosso autor atribui ao indivíduo o estatuto de entidade
fica como prejudicial. Ora,é a partir deste código biológico que Júlio de Matosretrata os mentores do socialismoe a base social de apoio do referido ideário socio-político. A caracterização global das massasfiéis ao socialismo é redigida nestes termos: “os batalhões colectivistas são principalmente formados à
378
era insubsumível no corpo social.
sociológica capital, o que lhe permite biologizar a sociedade para lá dos limites da analogia organicista pré-darwiniana. Quer isto dizer que, a sociedade é vista como um organismo identificado com a noção de espé-
cie, o que, evidentemente, permite creditar a transposição do código dar-
winiano para a análise socio-histórica, partindo do “homo erectus da zoologia”(!) até chegar à heterogeneidade inter-individual característica das sociedades maiscivilizadas. No decurso desse processo evolutivo por selecção natural, a hereditariedade foi decisiva ao conservar e perpetuar as variações vantajosas à adaptação do indivíduo ao meio. Ora, particularmente naqueles meios sociais avançados, em que a conflitualidade e à mobilidade constituem a regra, compreende-se que a variação benéfica, em termos adaptativos, ganhe um estatuto sociológico elevado é um poderoso significado evolutivo. Salvaguardando as relações de coexistência, ascendência e descendência que ligam os indivíduosentre si, o certo é que o conceito darwiniano capital de variação(?) refere-se ao indivíduo é constitui a base científica da afirmação da desigualdade natural dos indi-
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directamente com a hereditariedade bio-social e esta tanto pode ser bené-
custa dos vencidos na luta pela vida ou, para nos servirmos de um termo
feliz de G. Le Bon,dos inadaptados. Devendo a sua miséria ao regime de concorrência, em que apenas triunfam os mais capazes, é natural que esses
seres inferiores, cada vez mais numerosos nas sociedades contemporâneas,
desejem ver destruída uma ordem social que implacavelmente tende a eliminá-los(...) Por isso, instintivamente se reunem, se agremiam sob a bandeira colectivista, e, como são fortes pelo número, se aprestam para a grande batalha niveladora — única para que têm capacidade, porque apenas exige esforços de destruição”(!). Hereditariamente destituídos de caracteres vantajosos para lutar, isto é, para construir ou produzir, os adeptos do socialismo colectivista possuem, no entanto, caracteres nocivos que aplicam na luta política. Relativamente aos mentores do socialismo,
vida(?). Esta variabilidade de caracteres, ou heterogeneidade, na terminologia spenceriana, é particularmente notória nas sociedades industrialistas. Mas, mesmo nas sociedades selvagens, a uniformidade não é regra: “the uniformity of savages has often been exaggerated, and in some cases can hardly besaid to exist"(4), conforme se lê no texto darwiniano. É a ideia chave de desigualdade inter-individual ou “intra-específica”, enquanto variabilidade de caracteres,alicerçada na categoria de variação, que constitui o núcleo substancial do darwinismo social de Júlio de Matos. As diferenças entre os indivíduos não são artifícios impostos pelas directivas jurídico-políticas, nem resultam exactamente das condições económico-sociais que presidiram à formação do indivíduo, pois, estas, no fundo, constituem a tradução mesológica da hereditariedade dos seus
reunidos sob a designação de “proletariado intelectual"(2), Júlio de Matos assume uma posição exemplarmente cientista. O “proletariado intelectual” constitui uma “categoria de inadaptados”, vencidos na luta pela vida(?), originários da pequena burguesia, fundamentalmente agrícola e comercial. Esta origem social denuncia a inferioridade das suas capacidades mentais. Nas palavras do autor: “desta procedência intelectualmente inferior, herdaram cérebros de estreita envergadura, de pequena permeabilidade, sem tendências definidas, sem o vinco hereditário de altos interesses do pensamento”(4). Embora estes indivíduos tenham ascendido às camadas superiores pela educação, pois são, sobretudo, médicos, advogados, engenheiros, professores e escritores sem sucesso, as suas capacidades não evoluíram e, portanto, eles transportam a marca hereditária dos “seus humildes progenitores”(º), que acabaporse reflectir nas suas dificuldades de adaptação às exigências dum meio social mais elevado.
(1) Vide: Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. XLIX. Sublinhado do Autor. (2) Vide: Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, of the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition,ob.cit., pp. 5-47. (é) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex:
(1) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., pp. LXI-LXHISublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem, p. LXII, sublinhado do Autor. (3) Idem, ibidem, p. LXIV.
víduos, isto é, da variabilidade das suas aptidões para lutar e triunfar na
Second edition (eleventh thousand), ob. cit. p. 26 e ss.;p. 65e ss. (4) Vide: Idem,ibidem,p. 28.
(4) Idem, ibidem, p. LXV. (5) Idem, ibidem, p. LXV.
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Darwin em Portugal
É porinstinto de sobrevivência que o “proletariado intelectual” se
coloca ao serviço da causa socialista-colectivista. Mas, visto que este ideal
político representa o fim da civilização, Júlio de Matosé levado a considerar a militância socialista como uma forma patológica de lutar pela vida. Por isso, esclarece: “esta categoria de inadaptados largamente representada nos
países latinos, está reclamando um atento e minucioso estudo analítico
semelhante ao que em psiquiatria se fez para os perseguidos-perseguidores”(1). Globalmente considerados, estes indivíduos não padecem propriamente de uma patologia “congénita e absoluta”(2), mas de uma degenerescência, em parte, adquirida (o que não é menos grave, como se verá adiante) pela conjugação dos seus limitados recursos mentais com o poder patogénico da deficiente e viciada instrução(?) recebida. Júlio de Matos não era, formalmente, adversário da mobilidade social, desde que a escola se
assumisse como uma instância de selecção dos indivíduos, de acordo com critérios científicos. Mas, em seu entender, a instrução vigente não contribufa para a expansão das variações úteis ao progresso (a disciplina mental, o senso ético, o espírito científico, o amor ao trabalho), antes se asseme-
lhava a uma fábrica de inadaptados, exemplarmente representados pelo “proletariado intelectual”. A instrução secundária e superior colocou aqueles indivíduos, originários de meios familiares e sociais sem tradições de cultura científica, estética e outras, num nível social mais elevado onde,
pelas razões apontadas, não podiam triunfar; e, nessas circunstâncias, em
lugar de procurarem sobreviver no plano social e profissional dos seus progenitores, entregavam-se ao culto do socialismo, do comunismo e do anar-
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3. A agressividade do darwinismo elitista na luta pela posse da ciência de Darwin Júlio de Matos não faz uma análise directa do postulado da insustentabilidade científica do socialismo, limitando-se a subscrever o trata-
mento que Garofalo dá a esta temática(!). Também não se pronuncia sobre algum ideário socialista em particular, mas refere-se em geral aos socialismos, aos comunismos e aos anarquismos, e reenvia o leitor para a obra garofaliana, a qual dedica particular atenção ao marxismo(2) finissecular. Compreende-se que assim fosse, pois, o socialismo dito científico ganhava adeptos nasfileiras dos darwinistas, como era o caso de Ferri(?), um dos principais representantes da escola penal positiva e da antropologia criminal italiana. Com efeito, em 1894, Enrico Ferri dá à estampa a obra Socialismo e
scienza positiva. Darwin — Spencer — Marx, na qual se propôs demonstrar o acordo completo entre a biologia darwiniana, a sociologia spenceriana e o socialismo marxista(*). O seu objectivo é declarado nestes termos: “Darwiniste et spencerien convaincu, je me propose de démontrer quele socialisme marxiste n'est que le complément pratique et fécond, dans la vie sociale, de cette révolution scientifique qui (...) a triomphé de nos jours grâce aux ceuvres de Darwin et de Spencer”(*). Esta pretensão teórica foi alvo de umacrítica cerrada na obra garofaliana que Júlio de Matos traduziu em 1904. Para o efeito, Garofalo recorria à tese haeckeliana(”) da impossibilidade de conciliação do darwinismo com o socialismo.
quismo. Ora, para Júlio de Matos, estes ideários falsificavam lei científica
do triunfo dos mais qualificados, em termos de hereditariedade bio-social, o que equivale a dizer que não respeitavam o pedigree na concorrência social: (1) Idem, ibidem, p. LXIV. Sublinhado do Autor.
(2) Idem, ibidem, p. LXIV.
(é) Sobre os moldes da instrução oitocentista vide: Luís Reis Torgal, “A instrução pública”. In: História de Portugal. Direcção de José Mattoso. vol. 5 — O liberalismo (1807-1890). Coordenação de Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 609-651. Igualmente elucidativo, entre outros trabalhos do mesmo autor, é o seu estudo intitulado “L”université dans la premiêre périodelibérale portuguaise (1820-1851)”. In: Colloque — Le XIXº siêcle au Portugal. Histoire-Société-Culture-Art-Áctes, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian — Centre Culturel Portugais, 1988, pp. 25: -37. Sobre a responsabilidade do ensino pela não coincidência entre a selecção social e as aptidões naturais dos indivíduos, vide: Francisco Adolfo Coelho, “A distribuição do ensino e a selecção social”, O Instituto, Coimbra, 48 (3) Mar. 1901, pp. 153-167, 48 (4) Abr.
1901, pp. 265-277, 48 (5) Maio 1901, pp. 348-353, 48 (7) Jul. 1901, pp. 489-507.
(1) Vide: R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., pp. 19-191. (2) Vide: Idem,ibidem, p. 28 e ss. () Vide: Idem, ibidem, p. 77 e ss. (4) Vide: Antonello La Vergata, “Enrico Ferri 1856-1929”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 2, ob. cit., pp. 1644-1645. Sobre a significativa influéncia da obra de Ferri, Socialismo e scienza positiva. Darwin — Spencer — Marx, nos círculos de intelectuais socialistas e sociais democratas entre finais do século XIX e inícios do século XX, vide Greta Jones, Social darwinism and english thought. The interaction between biological and social theory. Sussex-New Jersey, The Harvester Press Limited-Humanities Press Ínc., 1980, p. 72 e ss. (º) Citado por Yves Christen, Le grand affrontement — Marx et Darwin, Paris, Albin Michel, 1981, p. 155. Yves Christen utiliza a primeira edição francesa, Socialisme et science positive: Darwin, Spencer, Marx, Paris, 1896, p. 9. (9) Vide: Ernst Hackel, Les preuves du transformisme. Réponse a Virchow, ob. cit., sobretudo p. 108 e ss. Título original: Freie Wissenschaft und freie Lehre. Eine Entgegnung aufRudolf Virchow's Miinchener Rede iiber die Freiheit der Wissenschaft im
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 2
De facto, em finais da década de setenta e num contexto muito diferente, Heckel advogava que a teoria darwiniana não fundava a democracia
tendo o “delito de contradição”(!) era possível sustentar umarelação harmoniosa entre a teoria científica de Darwin e o marxismo, em qualquer das suas Versões. Como é que E. Ferri podia deduzir o socialismo marxista da teoria da selecção dos mais aptos, ou dos grupos favorecidos na luta pela vida (Darwin), passando pelo liberalismo industrialista da cooperação voluntária entre os indivíduos, por natureza desiguais (Herbert Spencer)? A resposta de Garofalo a Ferri é previsível e encontra-se sintetizada no verso de Pascarella: “Ma questo s'ê svortato de cervello!”(2). O certo é que, por finais da década de noventa e inícios do século
382
social, interclassista e solidária, e, portanto, menos ainda o igualitarismo
socialista, como aventava em tom acusatório o seu adversário Virchow. Na conclusão hxckeliana: “si I'on veut attribuer une tendance politique à cette théorie anglaise, — ce qui est permis, — cette tendance ne saurait être qu'aristocratique, nullement démocratique, encore bien moins socialiste”(1). Garofalo está basicamente de acordo com Heckel na defesa do postulado segundo o qual o darwinismo social e político fiel à teoria científica do sábio inglês é aquele que defende o governo da sociedade pelos
melhores, o domínio da qualidade sobre a quantidade, o triunfo das elites sobre a maioria vulgar, e, portanto, não reconhece à superioridade numé-
rica o estatuto de critério político científico. Nesta perspectiva, a teoria darwiniana, quando muito, podia caucionar um tipo de democracia política, baseada no sufragismo múltiplo, isto é, num regime eleitoral que evitasse o triunfo da maioria desqualificada e, ao mesmo tempo, invertesse à tendência da alta burguesia para o abstencionismo. Essa tendência abstencionista era explicada por Garofalo à luz do regime eleitoral vigente nalguns países europeus, como a França e a Itália, onde o sufrágio universal sacrificava os melhores. Assim, na perspectiva garofaliana, “as causas do abstencionismo eleitoral da alta burguesia (...) são as seguintes: a convicção de que nada valem os poucos votos da classe superior em face do indefinido número de votos das classes inferiores; a humilhação do pro-
prietário e do homem culto, vendo comparado o seu voto ao do ignorante, do miserável e do corruptível"(2). Deste modo, para os darwinistas sociais, como Garofalo, o próprio sufrágio universal democrático era visto como sendo contrário à lógica natural do triunfo dos mais aptos, ou seja,
das classes proprietárias e cultas, duas qualidades, por regra, associadas,
como veremos adiante. Nesta óptica, o darwinismo social é dito incom-
patível com os dogmas da igualdade (civil, cultural, política e outras) dos ideários socialistas, sejam eles reformistas ou revolucionários. Só traindo a lógica, empregando “a petição de princípio e o círculo vicioso” e comes modern Staat, Stuttgart, E. Schweizerbart, 1878. Cf. Patrick Tort, “Ernst Heinrich Heeckel 1834-1919”. In: Dictionnaire du darwinisme et de 'évolution, vol. 2, p. 2117. Esta; resposta de Hackel inscreve-se na polémica que manteve com Virchow, eminente
anatomista, anti-darwiniano e liberal de esquerda, a propósito da defesa hackeliana do
ensino da biologia evolucionária. (1) Emst Hackel, Les preuves du transformisme. Réponse a Virchow, ob..Glt p. ti2. (2) R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. 220. Sublinhado do Autor. .
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XX, o darwinismo está entranhado na doutrina marxista e no movimento operário. Ferri ilustra esta asserção, mas também o líder socialista
reformista italiano Filippo Turati(), o economista Loria(4), o filósofo e político Karl Kautsky que, como é sabido, foi um influente representante do marxismo e da social-democracia alemã, figura de primeiro plano na Segunda Internacional(”), e muitos outros casos ainda mais complexos e sofisticados, como o marxista-darwinista-racista Ludwig Woltmann(º).
Com efeito, neste período, as tentativas de conciliação do darwinismo com o marxismo foram numerosas e, atendendo às diferentes formações de
base dos seus protagonistas, compreende-se a multiplicidade de combinatórias então construídas, de tal modo que B. Rupp-Eisenreich concluiu que “aucune position n'est pas typique”, tanto a nível nacional como inter-
(1) Vide: Idem, ibidem, p. 89. Sublinhado do Autor. (2) Idem, ibidem,p. 186.
() Vide: Renzo Villa, artigo “Filippo Turati 1957-1932”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 3, ob. cit., p. 4361. (4) Vide: Giovanni Landucci, artigo “Achille Loria 1857-1943”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 3, ob. cit., pp. 2685-2687. (é) Vide: Antonello La Vergata, artigo “Karl Kautsky 1854-1938”. In: Dictionnaire du darwinisme et de V'évolution, vol. 2, ob. cit., pp. 2442-2445. (5) Vide: Paul Weindling, Health, race and german politics between national unification and nazism 1870-1945, ob. cit., p. 118 e ss. Na conclusão do autor, Woltmann
ilustra a tentativa “to reconcile Marxism with Aryan racism and Darwinism”, p. 119. Sobre estavastíssima temática e os seus protagonistas vide alguns traços gerais na obra de Yves Christen, Le grand affrontement — Marx et Darwin, ob. cit., sobretudo o capítulo intitulado “Darwinism social et socialisme darwinien”, pp. 137-186; Greta Jones, Social darwinisme and english thought. The interaction between biological and social theory,
ob. cit., pp. 54-77. Britta Rupp-Eisenreich, “Le darwinisme social en Allemagne”. In:
Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France
1992, pp. 169-236.
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Parte HI — Capítulo 2
Darwin em Portugal
nacional(!). Vale a pena esclarecer que, se bem julgamos, estas tentativas eram feitas à revelia do darwinismo social darwiniano e também da posição doutrinal de Marx(2), relativamente à teoria de Darwin. Com efeito, na correspondência de Marx e de Engels(?) encontram-se algumas referências à revolução científica darwiniana e o que ressalta delas, em nosso entender, é a incompatibilidade estrutural entre o teleologismo do
sistema dialéctico marxo-engelsiano e o anti-teleologismo da teoria evolucionária de Darwin. Compreende-se que Marx e Engels não considerem de forma explícita, e sem ambiguidades, a revolução darwiniana como o necessário fundamento biológico do materialismo dialéctico e do materia-
lismo histórico. Além de razões diversas de nível teorético, cuja exposição não tem cabimento neste lugar, havia também motivos ideo-
lógicos. Na carta de 16 de Janeiro de 1861 Marx escrevia a Lassalle que (1) Britta Rupp-Eisenreich, “Le darwinisme social en Allemagne”. In: Darwinisme et société, ob. cit., p. 189. (2) Sobre a leitura de Marx e Engels da teoria darwiniana, vide: Marcel Prenant, Darwin y el darvinismo, México, Editorial Grijaldo, S.A., 1969, pp. 137-158; Gabriel Gohau “La descendance de Darwin”, Raison Présente, Paris, 66, 1983, pp. 5-16; Dominique Lecourt, “A propos du rapport Marx-Darwin. Dune correspondance fictive”,
Raison Présente, Paris, 66, 1983, pp. 51-58; Dominique Lecourt, “Marx au cribe de
Darwin”. In: De Darwin au darwinisme: science et idéologie. Congrês International pour le Centenaire de la mort de Darwin. Paris-Chantilly 13-16 Septembre 1982, ob. cit., pp. 227-249; Yves Christen, Le grand affrontement — Marx et Darwin, ob. cit.; Pierre
Thuillier, Darwin & €Cº., ob. cit., sobretudo o capítulo intitulado “La correspondance
Darwin-Marx: fin d'une légende”, pp. 73-93. As conclusões destes investigadores, entre outros, não são convergentes. No entanto, existe actualmente um consenso firme quanto ao problema da suposta intenção marxiana de, em 1880, dedicar uma versão inglesa de
O Capital a Charles Darwin. Como concluiu Pierre Thuillier “il n'y a plus aucune raison
de penser que Marx ait eu Vintention de dédier à Darwin une quelconque traduction du Capital”, Darwin & Cº., ob. cit., p. 92. Vide também, ibidem, p. 194. Entre Marx e Darwin apenas há provas seguras de que Marx enviou a Darwin um exemplar da segunda edição alemã de O Capital com uma dedicatória em inglês. Darwin agradeceu em 1 de Outubro de 1873. Os investigadores são unânimes em afirmar a autenticidade desta carta: de Darwin. Vide os documentos originais in Pierre Thuillier, Darwin & C”., ob. cit., p. 191 ep. 193. () Vide: Karl Marx; F. Engels, Lettres sur les sciences de la nature(et les mathe: matiques), Paris, Éditions Sociales, 1974, pp. 19-87, especialmente as cartas de Engels à Marx (Manchester, 11 ou 12/12/1859); Marx a Engels (Londres, 19/12/1860); Marx à Ferdinand Lassalle (Londres, 16/01/1861); Marx a Engels (Londres, 18/06/1862); Marx à Engels (Londres, 7/08/1866): Marx a Engels (Londres, 13/08/1866); Marx a Engels (Londres, 18/11/1868); Marx a Laura e Paul Lafargue (Londres, 15/02/1869); Engels à Marx (Manchester, 18/03/1869); Engels a Piotr Lavrov (Londres, 24/09/1875); Engels à Piotr Lavrov (Londres, 12-17/11/1875).
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“le livre de Darwin [de 1859] est três important et me convient comme base dela lutte historique des classes”(!). Mas,a partir da carta de Marx a Engels datada de 18 de Junho de 1862, constata-se que os pais do socialismo científico adoptam uma atitude crítica em relação à teoria darwiniana, porque verificavam que os inimigos da classe operária, como H. Spencer(2), estavam a apoderar-se da revolução darwiniana para legitimar cientificamente a exploração capitalista (2). Mas, nem por isso, Marx e Engels passaram ao lado do darwinismo(*). Nem porisso, julgaram abertamente a teoria darwiniana como sendo uma falsa ciência, isto era, uma
ciência burguesa, para utilizar a sua linguagem. Antes, procuraram denunciar o uso ideológico que as ditas pseudo-ciências sociais, como a de Spencer, faziam da revolução darwiniana. Simultaneamente, Engels tentava recuperar o materialismo biológico darwiniano, em nome dumaciência total — o socialismo científico(º). Não obstante, Engels não aprovou as tentativas de harmonização do darwinismo com o marxismo, designada-
mente a proposta de E. Ferri(*).
O marxismo de E. Ferri era de tipo social-democrata e, nessa me-
dida, o criminalista italiano não pugnava pelo igualitarismo nivelador, mas pelo triunfo dos melhores em igualdade de condições sociais (N. Ora, o princípio da igualdade de condições, qualquer que fosse a sua dimensão, mesológica ou orgânica, era incompreensível para Júlio de Matos e R. Garofalo. Por isso, Garofalo impugna, sobretudo, o postulado ferriano (1) Vide: Karl Marx; F. Engels, Lettres sur les sciences de la nature (et les mathê-
matiques). ob. cit., 1974, pp. 20-21.
(2) Em 1860 e 1861, além de um vasto conjunto de ensaiose artigos publicados em diversos jornais e revistas, H. Spencer tornara público o seu Programa do Sistema de Filosofia Sintética. Vide: Patrick Tort, artigo “Spencer, Herbert 1820-1903”. In: Dictionnaire du darwinisme et de U'évolution, vol. 3, ob. cit., sobretudo p. 4096 e p. 4108. (3) Vide: Paul Crook, Darwinism, war and history, ob. cit., pp. 29-47. (4) Vide, por exemplo, F. Engels, Dialéctica da natureza [1873-1882], Lisboa-Rio de Janeiro, Editorial Presença-Livraria Martins Fontes, 1974, sobretudo p. 170 e ss.;
pp. 334-340.
(5) É neste sentido que interpretamos, por exemplo, dois documentos valiosos: “Projet d'allocution funebre a occasion de la mort de Karl Marx, 17 Mars 1883”; “Discours d'Engels à Ienterrement de Karl Marx. Der sozialdemokrar, nºi3, 22 mars
1883”, cf. Karl Marx; F. Engels, Lettres sur les sciences de la nature (et les mathema-
tiques), ob. cit., pp. 114-115. (6) Vide: Yves Christen, Le grand affrontement — Marx et Darwin, ob. cit.
p. 155.
(7) Vide: Greta Jones, Social darwinism and english thought. The interaction between biological and social theory, ob. cit., pp. 72-73.
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Parte IH — Capítulo 2
Darwin em Portugal
segundo o qual à medida que se sobe na escala evolutiva diminui o conflito vital. Ferri defendia que: “a luta pela existência com selecção dos melhores e mais adaptáveis se atenua progressivamente na passagem do reino vegetal ao animal, primeiro, na das espécies animais inferiores às superiores, depois, e, por fim, na das raças humanas selvagens às civilizadas”(!). Por seu tumo, Garofalo reconhecia que, na economia da natureza, as formas de luta pela vida e os critérios selectivos eram variáveis, especialmente na história da espécie humana. Mas, ao contrário: de
Ferri, concluía que a luta pela vida era tanto mais dura quanto mais elevado fosse o nível civilizacional, como testemunhava “a concorrência comercial e intelectual, forma da luta pela existência nas sociedades civilizadas”(2). Nenhuma outra forma de luta igualava aquela que punha em jogo e à prova as faculdades mentais dos indivíduos. E se estas eram constitucionalmente desiguais, por razões biológicas e mesológicas, como era possível nivelá-las? Tal como Júlio de Matos sublinhara, também para Garofalo' à desigualdade inter-individual, “que é um efeito natural da evolução e que não pode suprimir-se”Q), é a matéria prima sobre a qual se exerce a selecção que, por seu turno, garante o progresso. Nas sociedades civilizadas essa desigualdade compreende, além dos caracteres inatos do indivíduo, herdados dos seus ascendentes, atributos adquiridos (a propriedade e outros) em virtude das suas condições de vida, em particular, da suasitúação económica e social. Ora, se o par desigualdade-propriedade é natural como pode ele viciar a luta pela vida e a selecção dos mais aptos, como pretendia Ferri? Pelo contrário, “a propriedade individual e hereditária produz, indiscutivelmente, uma selecção de homens, senão mais inteligentes, pelo menos mais inclinados aos trabalhos mentais”(*). A tese garofaliana que Júlio de Matos secunda, pode enunciar-se nestes termos: sem cultura não há evolução e sem propriedade não há cultura. A relação entre progresso, desigualdade e propriedade é sustentada sem a menor hesitação: “nos nossos dias o que faz subsistir ainda, em parte, a doçura dos costumes, o senso estético, a cultura clássica (...), € O que, protegendo as tradições da sociedade avançada, nos salva da rudeza, do cinismo e da estupidez, é apenasa instituição da propriedade (...). É mesmo exclusivamente por ela que em nossos dias se realiza a selecção (1) R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. 78. (2) Idem, ibidem, p. 80. Sublinhado do Autor.
(2) Idem, ibidem, p. 178. Sublinhado do Autor.
(4) Idem, ibidem, p. 178. Sublinhado nosso.
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dos homens aptos pela sua estrutura intelectual a apreciarem e a conservarem as conquistas da civilização”(!). Neste sentido, a propriedade individual e hereditária prova a aptidão dos ascendentes na luta pela vida e,
portanto, é a instância seleccionadora das capacidades mentais. Os que
possuem propriedade podem entregar-se mais intensamente à cultura do espírito. Aqueles que são intelectualmente superiores e não têm propriedade, acabarão por vencer, embora tenham de lutar incomparavelmente mais para ultrapassar todos os obstáculos de vária ordem. Mas se não chegarem a triunfar, daí não resulta qualquer dano social , pois, “é muito pouco provável que o homem saído da plebe possua osinstintos de probidade que nas classes superiores se bebem com o leite e que a boa educação constantemente desenvolve”(2). A opçãoelitista que une a pro-
priedade à superioridade moral é enunciada em termos inequívocos:
“assim, em igualdade de condições intelectuais, eu prefiro o homem das classes superiores ao plebeu, porque há sempre a probabilidade de encontrar no primeiro qualidades de temperança, de lealdade, de conveniência,
e também sentimentos mais doces, mais tacto e maior delicadeza que no
segundo”(). Na impossibilidade de negar a existência de indivíduos inteligentes sem propriedade, o autor desloca a questão para o terreno da ética. O dote moral da elite proprietária não é susceptível de ser assimilado por aqueles que são intelectualmente superiores, mas de condição socio-económica inferior. Em última análise, é o par propriedade-moralidade que funda o elitismo de Garofalo e de Júlio de Matos. Os dois expoentes europeus do darwinismo social seleccionista-elitista consideram que o intelectual socialista ou comunista é um caso simples de julgar, porque, argumentam os autores, ele não possui condições materiais vantajosas, nem capacidades criadoras de cultura, nem o mais elementar senso moral. Se as suas ideias “delirantes”(4) não fossem uma provairrefutável dessa realidade, bastava conhecer os seus progenitores e ascendentes mais próximos, como asseverava Júlio de Matos.
Nesta óptica, é delírio e é delito afirmar que a propriedade é um roubo, como o faziam socialistas, comunistas e anarquistas, na sequência do slogan proudhoniano, que datava de 1840(*). Essa afirmação é dita equiva(1) (2) () (4)
Idem, Idem, Idem, Idem,
ibidem, pp. 182-183. ibidem,p. 184. ibidem, p. 184. ibidem, p. 155 e ss.
(5) Recorde-se que foi na célebre memória de 1840, Qu'est-ce que la propriété? que Proudhon emitiu a explosiva resposta: “la propriété c'est le vol”. Vide: o artigo de
388
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 2
lente à “reabilitação do furto”(!). A falta de respeito pela propriedade é pelo indivíduo tem um nome nas ciências criminológicas e psiquiátricas: loucura morak2). Por isso, não admira que Garofalo acrescente que os profetas do evangelho socialista pregam a boa-nova aos operários e “desses desgraçados fazem criminosos”(*). Às deficiências morais e intelectuais do operário soma-se ainda a sua força selvagem: “nas camadas ínfimas de todas as sociedades a força física impõe-se como nos tempos bárbaros”(*). Assim, a caracterização garofaliana das classes inferiores é, como em Júlio de Matos, de modo a provar a sua perigosidade social sob o efeito do delírio socialista. Em seu entender, é delírio afirmar que o fim da propriedade possibilita e garante uma melhoria da espécie: “dizem que a escolha sexual, não guiada por considerações económicas, levará à selecção de organismos mais belos e vigorosos, e, portanto, a um melhoramento da espécie”(9). Mas como? O que é que “prova que a saúde e a robustez serão para os dois sexos os critérios da selecção”(9)? Nenhum dos argumentos dos socialistas tem fundamento(?). Igualmente delirante é afirmar queo fim da propriedade trará a saúde pública: “Ferri que é perfeitamente são de espírito, apesar do socialismo (...) alguma coisa quis dizer, afirmando que no
regime colectivista deixariam de existir nevroses crónicas, loucuras e
Yves Roucaute “Pierre Joseph Proudhon 1809-1865”. In: Dictionnaire des philosophes,
vol. 2, ob.cit., pp. 2142-2144.
(!) R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. 139. Sublinhado do Autor. Vide também R. Garofalo, Criminologia. Estudo sobre o delicto e a repressão penal. Seguido de um appendice sobre os termos do problema penal por L. Carelli. Versão por:
tugueza com um prefacio original por Julio de Mattos. 3º ed. Lisboa, Livraria Classica
Editora de A. M. Teixeira, 1916, p. 180. Esta edição é igual à primeira edição: Criminologia. Estudo sobre o delicto e a repressão penal. Seguido de um appêndice sobre os termos do problema penal por L. Carelli. Versão portugueza com um prefácio original por Julio de Mattos. 1º ed. S. Paulo, Teixeira e Irmão-Editores , 1893. Na edição de 1916,
apenas muda a paginação.
(2) Vide: R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. 160 e ss. (É) Idem, ibidem, p. 129. (4) Idem, ibidem, p. 161.
(º) Idem, ibidem, p. 136.
(9) Idem, ibidem, pp. 136-137. (7) “Em primeiro lugar, as verdadeiras condições fisiológicas de um indivíduo são muitas vezes ignoradas, e as patológicas dissimuladas sob aparências enganadoras; depois, as simpatias, tantas vezes misteriosas, entre o indivíduo normal e o doente poderiam realizar-se no regime socialista, como hoje. De resto, como o colectivismo não suprimiria
a diversidade de profissões, o casamento poderia decidir-se em vista de conveniências
profissionais, que substituiriam as económicas de hoje; e com isto é provável que nada ganhasse a raça”, R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., pp. 136-137.
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crimes”(!). Para Garofalo e Júlio de Matos isso é insustentável porque nem as diferenças individuais, incluindo as variações teratológicas, são supríveis, nem a organização económicaliberal é a causa da criminalidade e das patologias mentais(2). Nesta óptica, a sua verdadeira raíz é a deficiente constituição bio-mental que afecta os inadaptados da sociedade. À chamada questão social é, pois, para Garofalo, Júlio de Matos e
todos os darwinistas sociais elitistas, de facto, uma questão bio-moral, o
que não significa que, nesta perspectiva, se negue a existência da miséria económica e mesmo da indigência absoluta. A primeira resulta da imprevidência daqueles operários “que têm apetites e necessidades impossíveis de satisfazer mediante a retribuição quotidianamente recebida”(?). A sua miséria não é sinónimo de fome: “a questão de estômago existe, e eu não a nego; mas é uma questão de apetites e não de fome. Do mesmo modo que no fim do século XVII o operário não queria privar-se de gin, de frutos exóticos, de cerveja, de chá, de café, de tabaco, assim hoje ele pretende
participar de todos os gozos materiais”(4). Em lugar de fazer poupanças, o operário imprevidente deixa-se governar pelos seus apetites e, por conseguinte, cai na miséria, mas raramente na mendicidade. É que, nesta óptica, o mendigo é um género de indivíduo destituído de todos os recursos para lutar pela vida e, por isso, a sua ambição não vai além da conservação apática duma existência animal. Neste sentido, ele é inferior ao delinquente porque o delito “exige sempre um certo esforço de que são inca-
pazesseres fracos e abatidos”(>), como é o caso do mendigo. Em geral, o
operário apenas revela um acentuado primitivismo moral e uma falta de desenvolvimento das capacidades mentais, o que, reflectindo-se na sua imprevidência reprodutiva e económica, faz dele um ser “desgraçado”. O seu mal-estar é económico, mas a causa dessa situação está no seu nível de moralidade e não na exploração capitalista, como pretendiam os socialistas. Sem dúvida, para os darwinistas sociais ultra-liberais, existe nas
(1) R. Garofalo, A superstição socialista, p. 186. Sobre a criminologia socialista vide Jorge de Figueiredo Dias; Manuel da Costa Andrade, Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 25 e ss. (2) Vide: R. Garofalo, Criminologia. Estudo sobre o delicto e a repressão penal,
3ed.,ob.cit,p. 187ess.
(*) Vide: Idem,ibidem,p. 188. (4) R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit. pp. 125-126. Sublinhado do Autor. (º) R. Garofalo, Criminologia. Estudo sobre o delicto e a repressão penal, 3º ed., ob, cit., p. 186.
Darwin em Portugal
Parte III — Capítulo 2
sociedades industrialistas uma questão bio-moral e não uma questão social, porque “a grande maioria da classe operária(...) sofre, não de fome, mas de falta de recursos para obter os mil prazeres que em sua presença
Mas, na medida em que esta incluía as vantagens mesológicas (económicas, culturais, éticas e sociais) herdadas pelo indivíduo, pode dizer-se que a propriedade fazia parte integrante da desigualdade biológica. Por isso, o combate socialista a um destes dois valores liberais supremosarrastava necessariamente O outro, razão pela qual, Júlio de Matos entendia que o socialismo visava a derrocada de toda a civilização. A julgar pelas dramáticas experiências de governação que a França conheceu “nas mãos de
390
gozam os favorecidos da fortuna, inflingindo-lhe assim, sobretudo nas
grandes cidades, uma sorte de suplício de Tântalo”(!). Mas, não é por acaso que uns indivíduos são afortunados. Naturalmente possuidores de qualidades bio-morais intrínsecas, por regra, hereditárias, eles capitalizam esse bem constitucional originário, adquirindo bens exteriores que depois transmitem à suá descendência, de acordo com as regras jurídicas vigentes. A aquisição, a conservação e o aumento da propriedade não resultam automaticamente dos atributos mentais e morais dos mais dotados, mas exige o seu uso bem adaptado às circunstâncias variáveis da economia de mercado e, portanto, implica um elevado dispêndio energético num trabalho superior, substancialmente administrativo, que requer um considerável esforço mental. Ora, para Garofalo e Júlio de Matos, “o plebeu não pode compreender”(2) que a actividade da inteligência é um trabalho. Por isso, o “plebeu”, isto é, as classes ditas inferiores, aderem às dicotomias antagónicas da “superstição socialista”. capital'trabalho; exploradores/ /explorados; burgueses/proletários; ociosos/trabalhadores. Para os nossos uais autores, esta leitura maniqueista da sociedade, feita pelos intelect
socialistas, serve para inventar e sustentar a luta de classes, a luta entre explorados e exploradores, e, ao mesmo tempo, para “delirar” com o fim dessa mesmaluta e dessas mesmas classes. Na óptica de Júlio de Matos€
391
loucos, de sanguinários ou de furiosos, como os da primeira Comuna, de 1793, ou de recidivistas, de ladrões e de analfabetos, como os da segunda
Comuna, de 1871”(1), podia-se antever o futuro que a “superstição socialista” preparava para a civilização ocidental e para toda a espécie humana. Por isso, o criminalista italiano concluía: “a tarefa que aos elementos sãos se impõe é a de reunir todas as forças no sentido de impedir uma revolução furiosa que produziria incomensuráveis males, supondo mesmo que nos não reconduziria à barbárie”(2). Esta patologização da ideia socialista e dos seus apoiantes atinge a sua máxima expressão sob a pena de Júlio de Matos, cuja radicalidade supera a leitura garofaliana. 4. A destruição das utopias sociais pelo evolucionismo psicológico “The individuals of the same species graduate in intellect from absolute imbecility to high excellence”().
-se, in de Garofalo, a “desonestidade” dos mentores do socialismo revelava
extremis, no recurso que faziam à teoria darwiniana da luta pela vida pata creditar o seu “delírio”, o quesignificava atentar contra a própria ciência, embora esta, sobretudo pelas vozes autorizadas de H. Spencer € E. Heckel, já tivesse apontado e continuasse à denunciar esse abuso que lesava a integridade lógica do darwinismo.
(1) Idem, ibidem, p. 186. Vide também A superstição socialista, ob. cit., p. 212
(!) Idem, ibidem, p. 106. (2) Idem, ibidem, p. 201. Sublinhado nosso. o (3) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., 1875, p. 79. (4) Garofalo fazia uma distinção entre anomalia (anacronismo) e doença mental (perturbação orgânica) pois pretendia legitimar a pena de morte para o “criminoso-nato”de Lombroso. O “criminoso-nato” era considerado anormal pois, no dizer do autor, se ele fosse classificado como doente, a defesa da pena máxima tornar-se-ia muito problemática. Vide: R. Garofalo, Criminologia. Estudo sobre o delicto e a repressão penal, 3º ed., ob. cit., p. 126 e ss; p. 268 e ss. Comose sabe, na lei portuguesa, a execução capital estava fora de questão, mas no plano internacional muitos representantes da escola italiana de antropolo-
(2) R. Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. 141.
de morte”, O Mundo Legal e Judiciario, Lisboa,8 (8) 25 Jan. 1894, pp. 113-115,
Tal como Júlio de Matos, também o criminalista italiano acaba por do rebater o ideário socialista, afirmando o carácter científico-darwinista
liberalismo concorrencial. Deste modo, a grande preocupação do psiquiatra português e do criminalista italiano residia na defesa de dois valores civilizacionais-chave: a propriedade privada e a desigualdade natural.
ess.
En Divergindo da posição garofaliana(*), Júlio de Matos entendia que “a ideia de doença, desde que se trata de funções mentais, é absolutamente
gia criminal eram favoráveis à referida pena. Vide: Fernando Martins de Carvalho, “A pena
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Parte HH — Capítulo 2
Darwin em Portugal
inseparável da consideração de raça e de tempo(...) A doença mental está no anacronismo”(1). No ano de 1893, data da publicação da primeira edição portuguesa da Criminologia de Garofalo(2), traduzida e prefaciada por Júlio de Matos, o psiquiatra portuense revela que já tem uma posição definida quanto ao complexo problema da delimitação das categorias de normal, anormal, saudável e patológico. A sua doutrina será desenvolvida em obras posteriores da sua especialidade(2), mas basta atentar no repto que lança a F. Ferraz de Macedo em 1893, para se verificar que Júlio de Matos mantém com firmeza a sua opção: “se o Autor conhecesse realmente todo o alcance desta concepção atavística — tão larga como a do próprio evolucionismo de que procede — se soubesse que ela está dando em psiquiatria a explicação de um considerável número de factos certamente não teria passado ao lado dela...”(4). Com efeito, é no quadro da matriz evolucionista que Júlio de Matos opera a distinção entre a normalidade psicológica e o desvio psicopatológico. Quer isto dizer que as doenças mentais são objectivadas e ordenadas hierarquicamente segundo a lei da involução deduzida da lei da evolução mental, afectiva e moral da espécie humana. Enquanto o homem normal é contemporâneo da sua época, partilhando com os outros membros da sua condição social o sentir, o pensar. e O querer dominantes, o doente mental é contemporâneo de épocas passadas e a sua doença é tanto mais profunda quanto mais remota for a época mental e afectiva que ele representa anacronicamente. É à luz deste código que Júlio de Matos equaciona a estigmatização dos socialismos, dos comunismos e dos anarquismos, supondo que estas doutrinas visavam destruir os alicerces materiais e morais da civilização, e que, para tanto, não excluiam o recurso à violência revolucionária. Ora, para Júlio de; Matos, esta forma de luta, só porsi, denunciava o anacronismo mental e afectivo dos seus proponentes, porque a força é o critério selectivo privilegiado, senão o único, nas sociedades de quadrumanos(>) e nas mais primitivas sociedades humanas selvagens. (1) Júlio de Matos, “Prefácio”. In: R. Garofalo, Criminologia. Estudo sobre O delicto e a repressão penal, 3º ed., ob. cit., p. XKH. Sublinhado nosso. (2) Vide: R. Garofalo, Criminologia. Estudo sobre o delicto e a repressão penal, ob. cit.. (3) Vide: Ana Leonor Pereira, A economia da alienação mental na obra de Júlio de Matos, Prova científica na área de História das Ideias Contemporâneas, Coimbra, 198 (4) Júlio de Matos, “[Recensão crítica de] F. Ferraz de Macedo, Crime et criminel. Paris, 1892”, Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes, Porto, 2, 1893, p. 188.
(5) Júlio de Matos, Historia natural ilustrada. Compilação feita sobre os mais auctorisados trabalhos zoologicos, vol. 1, ob. cit., pp. 2176-277.
393
Vejamos, em primeiro lugar, a que se reduz, na leitura do psiquiatra darwinista, o programa dos socialismos, dos comunismos e dos anarquismose qual a sua base social de apoio. Na exposição matosiana lê-se: “para evitar as desigualdades económicas do nosso tempo, o que propõem? Abolir a propriedade individual, voltando ao comunismo ingénuo dos primeiros homens, e destruir a concorrência, regressando à remota fase da
cooperação obrigatória. Para remediar as imperfeições morais da família contemporânea, baseada no casamento, o que lembram? Regressar à
promiscuidade sexual dos primitivos bandos humanos. Para evitar que o
produtor seja lesado pelo que auferem sobre a mão-de-obra o industrial e
o negociante, como intermediários da venda, o que lhes ocorre? Acabar
com o comércio, voltando ao inicial regime da troca directa dos produtos,
e reduzir o patrão a um simples chefe de oficina, como nos remotos e
titubeantes começos das indústrias(!). A base social que apoia este programa de retorno à pré-história é toda a “escória social”(2), incluindo “o mendigo verminado, o cavador troglodita e devoto, o vagabundo, a prostituta, O criminoso, é precisamente a indiferenciada turba (...) o indistinto rebanho “(). Estas classes numerosas obedecem cegamante ao domínio
autoritário e opressor dos mentores de “superstições”, como o socialismo, o comunismo e o anarquismo. A sua associação com objectivos políticos destruidores revela todo o primitivismo das suas “herdadas emoções selvagens de conquista e represália”), que os seus guias orientam contra um inimigo imaginário: o patrão, o capitalista, o Estado burguês, em suma, todo o sistema civilizacional do Ocidente, Para Júlio de Matos, a perigosidade civilizacional das hostes socialistas e congéneres era uma evidência. A sua acção podia sobrepor-se à lógica natural da luta pela vida, e perturbar a tendência evolucionária normal das sociedades liberais-industrialistas para a acentuação e aprofundamento da desigualdade inter-individual(*). Embora as experiências históricas do socialismo e do comunismo fossem possíveis, à revelia da lei
da evolução, e apesar dos trabalhos pedagógicos e preventivos de Júlio
de Matos, Garofalo e Herbert Spencer, elas teriam uma duração limitada,
e com certeza nada trariam de inovador em termos qualitativos. No essen(1) Vide: Júlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liber-
dade à escravidão, Lisboa, A.M. (2) Vide: Idem,ibidem, p. (3) Vide: Idem, ibidem, p. (4) Vide: Idem,ibidem, p.
Teixeira, 1904, pp. IX-X. XIL XV. Sublinhado do Autor. VHL.
(é) Vide: Idem, ibidem, pp. XVI-XVIIL
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 2
cial, limitar-se-iam a reeditar um estádio evolutivo pretérito. É que, a lei
regredirem para níveis inferiores de comportamento, dada, justamente, a
394
da evolução determinava que o novo se inscrevesse no processo de complexificação da heterogeneidade inter-individual(!). Conforme asseverava Herbert Spencer, a evolução na esfera social processava-se do militarismo para o industrialismo, ou seja, da “cooperação forçada” para a “cooperação voluntária”, desde a máxima escravatura(2) até ao nível moral mais
elevado da liberdade individual. A organização socialista da sociedade não se inscrevendo no modelo
industrialista só podia ser uma versão do militarismo. Daío título da obra spenceriana: Da liberdade à escravidão, isto é, do regime industrialista“liberal da cooperação voluntária ou acordo mútuo na livre concorrência, vigente nalguns estados europeus mais avançados na época, como à Inglaterra, ainda que de forma imperfeita, para o regime militarista socialista-colectivista da cooperação forçada. Esta traduzir-se-ia na coerção autoritária de todos por “uma oligarquia oficial de múltiplos graus, cujo
despotismo será mais terrível e monstruoso que todasas tiranias até hoje
vistas”(?). O regimesocialista é suposto ser mais ditatorial do que todasas experiências históricas de militarismo. Mas, o que importa sublinhar é que, para os darwinistas spencerianos, nenhuma reorganização política e social podia ocorrer fora da lei da evolução(4). Se o socialismo se instalasse revolucionariamente galgava séculos de história e repunha no século XX o passado pré-histórico da espécie humana, sem propriedade, sem
família, sem moeda, etc., isto é, sem Direito, sem Indústria, no sentido amplo do termo e, portanto, basicamente, sem Moral. Nodizer de Júlio de
Matos, “todos os ideais e todas as aspirações dessa doutrina nos reconduziriam, uma vez realizados, a um passado inferior, de que só através de séculos de sofrimentos nos emancipámos”(*). Sob o ponto de vista do evolucionismo, nenhuma fronteira impedia as sociedades humanas: de
-115.
(1) Vide: Herbert Spencer, L'individu contre ['état, ob. cit., sobretudo, pp. 96:
(2) Sobre os graus da relação de dependência forçada entre o “escravo” e 6 “senhor” vide: Herbert Spencer, L'individu contre V'état, ob. cit., p. 50 e ss. (3) Herbert Spencer, Da liberdade à escravidão, ob. cit., p. 70. Vide também Herbert Spencer, L'individu contre ['état, ob. cit., sobretudo, pp. 26-64. (4) Vide: Herbert Spencer, First principles. Third edition. London, Williams and Norgate, 1875, sobretudo pp. XI-XIIL. Idem, “Progress: its law and cause”. In: Essáys: scientific, political, and speculative. London, Williams and Norgate, 1868, vol. 1, sobre: tudo pp. 12-60. () Júlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liberdade a escravidão, ob. cit., p. XIX.
395
ascendência animal homem. Mas, para Júlio de Matos, essa involução generalizada não era pensável enquanto obra da selecção natural. O psiquiatra portuense não podia admitir que a obreira da evolução trabalhasse para o aniquilamento da própria evolução. Assim sendo, como é que o nosso autor explicava a possibilidade de retorno à pré-história? Em primeiro lugar, importa precisar que Júlio de Matos não perfilha rigorosamente o fisicalismo teleológico spenceriano(!), no qual o engenheiro-filósofo inglês encaixou a selecção natural, fazendo dela uma consequência da lei do equilíbrio da Força(?). Mas, a distância que Júlio de Matos guardou relativamente ao sistema da evolução spenceriano, não significa que o nosso autor tivesse sido inteiramente fiel ao jogo dos possíveis imanente à ideia darwiniana(?) de evolução. Sabemos que Júlio de Matos colocava no horizonte do processo histórico um ideal cientista de organização social e que, no fundo,este era tão radicalmente liberal como o industrialismo spenceriano, sem, por isso, ser menos biologista do que a sociocracia comtiana ou o organicismo spenceriano(?). Na verdade, dada a sua faceta de militante político, Júlio de Matos não podia recusar um sentido ao processo histórico e não hesita em utilizar a teoria científica darwiniana em função das conveniências da sua ideologia seleccionista e meritocrática. A interpretação do ideário socialista enquanto retorno à pré“história pressupunha uma doutrina linear da evolução, com uma direcção e apenas dois sentidos: um sentido progressivo e um sentido regressivo. O primeiro era explicado pelo mecanismo darwiniano da selecção natural. O segundoinvertia a relação natural de domínio da força quantitativa das camadas sociais inferiores pela força qualitativa das elites superiormente civilizadas. Mas como entender a possibilidade desta inversão que, no dizer do autor, o socialismo almejava? O mecanismo do retorno não podia (!) Recorde-se a fórmula spenceriana da lei da evolução: “the formula finally stands thus: — Evolution is an integration of matter and concomitant dissipation of motion; during which the matter passes from an indefinite, incoherent homogeneity to a definite, coherent heterogeneity; and during which the retained motion undergoes a parallel transformation”, First principles. Third edition, ob.cit., p. 396. Sublinhado do Autor. (2) Vide: Idem, ibidem, sobretudo pp. 397-559; Idem, The data of ethics. Second edition. London, Williams and Norgate, 1879.
(3) Vide: Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, ob. cit., pp. 133-
-204.
(4) Sobre os paradoxos da sociologia spenceriana, vide Patrick Tort, La pensée hiérarchique et Vévolution, ob. cit., sobretudo pp. 329-370.
Darwin em Portugal
Parte HH] — Capítulo 2
ser a selecção natural, pois Júlio de Matos não aceitava que ela seleccionasse os menos aptos, mesmo que eles constituíssem o maior número na sociedade. Na verdade, Júlio de Matos resolveu facilmente este problema, recorrendo ao seu código psicopatológico, cujas linhas mestras definiu
pode ainda ficar e fica na generalidade dos casos; o sentimento religioso
396
muito cedo, sob a influência decisiva de um darwinista e spenceriano
inglês, o médico alienista Henry Maudsley. Com efeito, há mais de duas décadas que Júlio de Matos tinha aprendido na Fisiologia do espírito(!) de Maudsley que a moral constituía a última ou a mais recente aquisição da espécie humana(?). A alienação mental testemunhava justamente a fragilidade da moral. Nas próprias palavras de Júlio de Matos: “todos os alienistas têm notado que na máxima parte das doenças mentais são sintomas precursores a perda total ou quase total do pudor, o esquecimento das noções morais, o apagamento completo da delicadeza de sentimentos. O alienado começa por esquecer todas as finas afeições(...); desconhece o — respeito, desconhece a gratidão, como que, despe por importunos: todos esses delicados sentimentos que lhe ornavam o espírito”(?). Na patologia do espírito é fundamentalmente a dimensão moral e societária que se
perde. A própria razão pode subsistir e ser compatível com a loucura; o
mesmo pode acontecer com o instinto animal de conservação e de reprodução e até com o sentimento religioso. Neste sentido, Júlio de Matos afirma que: “Maudsley tem no famosolivro A Fisiologia do espírito páginas admiráveis sobre o assunto; a prática clínica hospitalar ou privada traz-nos todos os dias uma confirmação das asserções de Esquirol, de Maudsley(...) O senso lógico pode ainda ficar — raciocinando o alienado de um modo justo, embora sobre dados falsos; o instinto de conservação
(1) Vide: Henry Maudsley, The physiology of mind. Being the first part of a third edition, revised, enlarged, and in great part rewritten, of “The physiology and pathology of mind”. London, MacMillan and Co., 1876; Júlio de Matos conhecia a tradução francesae cita-a, por exemplo, na sua refutação da tese martiniana da moralidade constitucional da espécie humana. Vide: Júlio de Matos, “Bibliographia. As raças humanas e acivilisação primitiva por J. P. Oliveira Martins (2 vols. — Lisboa, Livraria Bertrand — 1881), O Positivismo, Porto, 3, 1880-1881, sobretudo pp. 435-436. Júlio de Matos não nos dá
indicações completas que nos autorizem a concluir que utilizou a edição francesa de 1879, mas é muito provável que a sua fonte seja a seguinte: Henry Maudsley, Physiologie'de Vesprit. Traduit de 1 anglais par Alexandre Herzen. Paris, C. Reinwald et Cie, 1879. (2) Vide: Henry Maudsley, Physiologie de Vesprit, ob. cit., sobretudo pp. 358:
-380.
(é) Júlio de Matos, “Bibliographia. As raças humanas e a civilisação primitiva por J. P. Oliveira Martins (2 vols. — Lisboa, Livraria Bertrand — 1881)”, art. cit., p. 435:
397
pode subsistir: mas o pudor e a moralidade desapareceram”(!). Para explicar a doença mental, isto era, basicamente, a ausência de moralidade,
“é preciso imaginarmos que o homem anda para trás”(2). Quanto mais profundo for o processo de dissolução psíquica, mais o indivíduo se afasta do código moral próprio do homem civilizado, podendo mesmo recuar até um estado psicológico de não reconhecimento dos valores morais básicos. Dentre esses valores orgânicos, Júlio de Matos ressalta aqueles que estabelecem a fronteira na continuidade entre o animal e o humano. Há “dois sentimentos que constituem a base moral do homem civilizado e que são uma aquisição das raças superiores: o sentimento de probidade e o sentimento de piedade, respeito pela propriedade e respeito do indivíduo. Estes sentimentos geram-se na marcha ascensional da espécie e, pela sua
supremacia e intensidade, abafam os instintos da rapacidade e homicídio. Estes, adormecidos no fundo da natureza humana, agitam-se e rugem,
filões atávicos de uma longínqua existência do crime,e gritam dominando o valor dos sentimentos adquiridos, quando uma circunstância estimulante faça acordar no homem esses restos da animalidade primitiva. No homem normal, as aquisições do civilizado triunfam, os sentimentos de equidade (1) Idem, ibidem,p. 435.
(2) Henry Maudsley, Physiologie de Vesprit, ob. cit., p. 343. Citado por Júlio de Matos, “Bibliographia. As raças humanas e a civilisação primitiva por J. P. Oliveira Martins (2 vols. — Lisboa, Livraria Bertrand — 1881)”, art. cit., p. 436. Darwinutiliza o
contributo de Maudsley para a teoria atavística da alienação mental, como mais uma prova da descendência do homem de uma forma animal inferior. Indirectamente, dá crédito à ideia spenceriana de evolução implicada na doutrina de Maudsley. Eis o testemunho darwiniano: “Dr. Maudsley, after detailing various strange animal-like traits in idiots, asks whetherthese are not due to the reappearance of primitive instincts — “a faint echo from a far-distant past, testifying to a kinship wich man has almost outgrown”. He adds, that as every human brain passes, in the course of its development, through the same stages as those occurring in the lower vertebrate animais, and as the brain of an idiot is in an arrested condition, we may presume that it “will manifest its most primitive functions, and no
higher functions”. Dr. Maudsley thinks that the same view may be extended to the brain in its degenerated condition in some insane patients, and asks, whence come “the savage snarl, the destructive disposition, the obscene language, the wild how], the offensive habits, displayed by some of the insane? Why should a human being, deprived of his reason, ever becomeso brutal in character, as some do, unlesse he has the brute nature withinhim ” This question must , as it would appear, be answered in the affirmative”, Charles Darwin, The expression of the emotions in man and animals, ob. cit., p. 244. Sublinhado nosso. Se o próprio Darwin autoriza Maudsley, não seria de esperar que os psiquiatras recorressem a Darwin para assegurar a cientificidade do seu saber?
398
Darwin em Portugal
mantêm-se”(!). É notório que esta doutrina psiquiátrica e criminológica pressupõe umateoria da hereditariedadetributária de um substancial leque de dogmascientistas, moldados no quadro do evolucionismo. Entre eles, constata-se, no texto matosiano, a operatividade do parale-lismo entre à ontogénese é à filogénese, inspirado na lei biogenética de Hezeckel(2), e também das leis da hereditariedade sistematizadas na época(?), especialmente, a lei do atavismo.
Assim, em certas espécies de alienação mental, o indivíduo é palco de uma luta entre o ancestral e o actual e nesse combate doloroso é a regressão que triunfa. O princípio da revivescência de caracteres ancestrais (atavismo) tem de se compreender à luz de uma teoria psicológica evolucionista que, Júlio de Matos, sem conhecer Freud(), sistematizou nestes termos muito significativos: “cada personalidade é, pois, num dado momento a justaposição de subpersonalidades relegadas para o inconsciente, mas tenazes, persistentes, susceptíveis de uma integral ou parcial revivescência. Por trás do indivíduo, que representa as últimas aquisições de uma civilização, está a espécie que representa todas as sistematizações procedentes da acção lenta do meio, capitalizadas pela herança”(º). Neste sentido, torna-se claro que a regressão psicológica é possível porque a evolução psicológica do indivíduo recapitula de forma abreviada a evolução psicológica da espécie. Portanto, a patologia mental é explicada em termos antropogénicos, enquanto dissolução da hereditariedade. (1) João Barreira, “As conferencias do Dr. Júlio de Matos sobre o caso Charles Petit. Reportagem”, Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes, Porto, 2, 1893, p. 9Í. Sublinhado nosso. (2) Vide: Ermst Hackel, Anthropogénie ou histoire de Pévolution humaine. Leçons familiêres sur les principes de "embryologie et de la phylogénie humaines, ob. cit., pp. 1-
-14; 612-625. Vide também Jean Gayon, “Le concept de récapitulation à Vépreuve de lã
théorie darwinienne de I'évolution”. In: Histoire du conceptde récapitulation. Ontogenese et phylogenêse en biologie et sciences humaines, Coordonné par Paul Mengal, Paris, Masson, 1993, pp. 79-92; Germano da Fonseca Sacarrão, “Ontogenia e filogenia”,
Naturália, Lisboa, 7 (1-4), 1957-1958, pp. 57-70.
(3) Vide: Th. Ribot, L'hérédité psychologique. Deuxiême édition, ob. cit.,
Parte HI — Capítulo 2
399
A economia da alienação mental não se restringe à regressão moral. Além do delírio da vontade e da emotividade, também a razão pode delirar. O termo delírio é aplicado por Júlio de Matos às três faces da vida psíquica. Já no seu Manual das doenças mentaes (1884) o autor tinha concluído: “há pois um delírio intelectual, um delírio emotivo e um delírio
dos actos “(!). Em maior ou menor escala, estas formas de delírio são solidárias entre si, mas é, basicamente, na dominância de uma sobre as
outras que se funda a sistemática nosológica matosiana. A paranóia era uma forma de alienação mental cujo sintoma culminante era o delírio da razão. O grau de delírio determinava-se em função do tipo de racionalidade hegemónica na época, mas também atendendo à categoria social e
etária do indivíduo afectado.
Em função do nosso escopo, torna-se imperativo reproduzir um exemplo. Júlio de Matosilustra a sua exposição dizendo, nomeadamente, o seguinte: “que um negro, uma criança ou um inculto camponês tenham do Universo uma grosseira concepção antropomórfica, nada mais natural,
que a tenha, porém, um branco de maior idade e cientificamente educado,
eis o que denuncia um desvio paranóico da ideação”(2). Salta à vista o largo domínio de ideações que caíam na alçada desta espécie nosológica, se acrescentarmos que, de facto, o autor não aceita o princípio da pluralidade de modelos normais, mas apenas um modelo de normalidade ou
higidez: o estado científico da razão. Atente-se ainda na explicação naturalista do delírio capital da razão paranóica: o delírio persecutório. A ideia de perseguição era normal nos tempos em que a luta pela vida não estava regulamentada juridicamente, porque nesses tempos pré-históricos, anteriores à constituição do direito, a perseguição era um facto(?). Se a ideia de perseguição era normal no estado primitivo da razão, pois correspondia a uma realidade factual, vivida ou experimentada, no estado civilizado da razão ela denunciava uma patologia, isto era, um anacronismo mental, regularmente
associado a outras ideias primitivas, como a ideia de grandeza do ego. A mente paranóica era contemporânea da razão primitiva e selvagem e tal era concebível porque a doença era definida como sendo uma regressão atávica no processo evolutivo, também denominada “degeneres-
pp. 169-210.
(4) Freud também se inspirou em Darwin, Spencer e Hackel. Vide: Paul-Laurent Assoun, artigo “Freudisme et darwinisme”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévoliution, vol. 2, ob. cit., pp. 1741-1763. () Túlio de Matos, 4 paranoia. Ensaio pathogenico sobre os delirios systematisados, Lisboa, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 1898, p. 167. Sublinhado de Autor.
(1) Júlio de Matos, Manual das doenças mentaes, Porto, Livraria Central de Campos & Godinho-Editores, 1884, p. 283, sublinhado do Autor. (2) Júlio de Matos, A paranoia. Ensaio pathogenico sobre os delirios systematisados, ob. cit., p. 94. () Vide: Idem, ibidem,p. 95.
400
Parte HI — Capítulo 2
Darwin em Portugal
cência”(!), uma categoria que Júlio de Matos recupera da obra moreliana(2), retirando-lhe a carga teológica originária. Com esta breve síntese do código psicopatológico de Júlio de Matos(?), podemosdesde já concluir que, em 1904, o psiquiatra português possuía uma rede de categorias, ditas científicas, que lhe permitiam patologizar o socialismo e congéneres sem pôr em causa a lei da evolução € q mecanismo selectivo darwiniano. Assim, o seu código psicopatológico reforçava a ideia segundo a qual a selecção natural optava pela qualidade contra a quantidade, já que o estado mental das multidões socialistas e dos
seus mentores era regressivo.
Até onde ia essa regressão? Teria o socialista uma psicologia infantil? A interrogação é pertinente à luz do modelo matosiano, segundo o qual, “na
criança dá-se a falta dos sentimentos altruistas que caracterizam o homem perfeito fisiologicamente; são os representantes do homem noestadoselva-
gem: correspondem ao período denominado pré-moral'(4). Ou o atavismo moral e racional do socialista era mais profundo? Vamos ver que a exposição matosiana aponta neste sentido. Além de ser egocêntrico comoa criança, por não compreender a necessidade de se adaptar ao conjunto dos interesses sociais, o socialista era um representante de outros instintos primitivos, cuja presença anacrónica nas sociedades civilizadas se explicava pela ascendência psicológica do homem(*) e pelo atavismo psíquico(”). (1) Sobre a conjugação matosiana das categorias de atavismo e degenerescência vide: Idem, ibidem, pp. 169-181. (2) Vide: Jacques Hochmann,“La théorie de la dégénérescence de B.-A. Morel; ses origines et son évolution”. In: Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, pp. 401-412. (3) Este tema foi objecto de uma análise sistemática no nosso trabalho intitulado
À economia da alienação mental na obra de Júlio de Matos, ob. cit., pp. 11-34.
(4) João Barreira, “As conferencias do Dr. Júlio de Matos sobre o caso Charles Petit. Reportagem”, art. cit., p. 92. A analogia da criança com o selvagem fundava-se abusivamente na lei biogenética fundamental. Vide: Paul Mengal, “Psychologie et loi de récapitulation”. In: Histoire du concept de récapitulation. Ontogenêse et phylogenêse en biologie et sciences humaines, Coordonné par Paul Mengal, Paris, Masson, 1993, pp. 93-109.
401
Com efeito, para o republicano portuense, à luz de todas as conquis-
tas civilizacionais alcançadas pela Europa, no decurso de largos séculos de história, por um processo evolucionário de heterogeneidade crescente, o socialismo não passava de um “movimento nivelador e regressivo”()). Os
seus mentores alimentavam a “luta bárbara dos deserdados, dos incultos e
dos grosseiros contra os proprietários, os instruídos e os educados, tendo por base a única noção de justiça que os cérebros simplistas comportam e que se confunde com a ausência de diferenciação entre os homens”(2), Assim, para Júlio de Matos, as “tendências regressivas do socialismo”(*) e as “tendências regressivamente niveladoras do colectivismo”(*), conducentes à “barbarizaçãocolectivista”(º), espelhavam a categoria mental dos
intelectuais socialistas, comunistas e anarquistas. Não admira que, na
óptica matosiana, os referidos intelectuais-militantes sejam incapazes de
conceber a evolução,a não ser em termos regressivos, pois, em regra,eles “herdaram cérebros de estreita envergadura, de pequena permeabilidade, sem tendências definidas, sem o vinco hereditário dosaltos interesses do pensamento”(*). A sua “inferioridade mental”(7) conjuga-se perfeitamente com a “superstição” que procuravam inculcar na “plebe” e que esta aceita acriticamente, pois é composta de “pobres seres, indiferenciados e
inferiores”(?), tão “ignorantes e malévolos”(?), tão “simplistas e regressivos”(10) como os seus mentores. O socialismo é lido como uma “pavo-
rosa aspiração de retrocesso”(!) que, ao apelar para a “alma embrionária Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, pp. 387-398; Stephen Jay Gould, O mundo depois de Darwin, ob.cit., pp. 193-198. (1) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: Rafael Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. XXXI.
(2) Idem, ibidem, pp. XXVEL-XXIX.
(3) Júlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liberdade à escravidão, ob. cit., p. V.
(4) Idem, ibidem, p. XIV. () Idem, ibidem, p. XIX.
Entre nós, Silva Cordeiro denunciou a pseudo-cientificidade da referida analogia e de
(9) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: Rafael Garofalo, A superstição . socialista, ob. cit., p. LXV. (7) Júlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liberdade à = escravidão, ob. cit., p. XIV. (8) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: Rafael Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. LX.
1976, pp. 58-68.
(10) Túlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liberdade à = escravidão, ob. cit., p. IX. (11) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: Rafael Garofalo, A superstição
outras de igual teor recapitulacionista correntes no evolucionismo psicológico da época. Vide: Silva Cordeiro, A crise em seus aspectos moraes. Introducção a uma bibliotheca-de psychologia individual e collectiva, Coimbra, F. França Amado-Editor, 1896, sobretudo pp. 345-356; p. 414 e ss. (é) Vide: D.-H. Bouanchaud, Charles Darwin et le transformisme, Paris, Payot, (9) Vide: Patrick Tort, “L"histoire naturelle du crime”, Le Genre Humain, Paris,
12, 1985, pp. 217-232; Idem, “La folie et le droit. Essai sur Vatavisme des conflits”. In:
(º) Idem, ibidem, p. LIX.
socialista, ob. cit., p. XKX.
.
402
Darwin em Portugal
das classes inferiores”(1!), actualiza os seus “atávicos sentimentos sel-
vagens”(2), transformando a plebe numa “fera”(3) ou num “monstro
famélico”(*) capaz de destruir toda a civilização e regredir ao grau zero da história.
Na perspectiva de Júlio de Matos urge desmitificar o socialismo
patologizando os seus mentores,isto é, objectivando-os psiquiatricamente, como agentes temíveis, “revoltosos de grosseira cerebração”(º), “peri-
gosos degenerados”(*), capazes de arrastar as “classes ínfimas”(?) e tam-
bém umaboa parte da burguesia para “um estado mental aberrante”(*), um “perigoso e contagioso estado mental”(?), prefigurador duma patocracia apenas concebível por analogia com a existência selvática do homem pré-moral e pré-jurídico, em suma, pré-histórico. À luz do exposto, compreende-se que, na óptica de Júlio de Matos, os movimentos socialista e congéneres combatiam pela consumação criminosa do fim da história. O crime premeditado de lesa-Humanidade e de lesa-Natureza é anunciado pela “ressureição de atávicos sentimentos
dissociativos, festejada com entusiasmo selvagem”(10). A perigosidade
social e histórica do socialista, do comunista e do anarquista é apresentada como um facto, e não como algo provável, na medida em queo alienista determinou cientificamente o ilimitado poder destruidor da “superstição
socialista” e dos seus mentores. Sendo uns inadaptados, “esses paladinos
da plebe, que a psicologia contemporânea anda empenhada em estudar
nassuas íntimas anomalias degenerativas"(11), lutam para que toda a
sociedade se converta ao seu nível mental, trocando o senso moral, estético, científico, social, etc., pelo primitivismo dos sentimentos, da ideação
e da vivência colectiva, o qual só tem paralelo nas sociedadesselvagens é (!) (2) () (4) ()
Idem, ibidem, p. XXXL Idem, ibidem, p. XXXI. Idem, ibidem, p. XII. Idem, ibidem, p. XII. Júlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liberdade à
escravidão, ob. cit., p. XIV.
(9) Idem, ibidem, p. XII. Sublinhado nosso.
(?) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: Rafael Garofalo, A superstição socialista, ob. cit., p. XXXVHI.
(8) Idem, ibidem, p. XVHI.
(º) Idem, ibidem, p. XXVIL (10) Túlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liberdade à escravidão, ob. cit., p. XVI.
(1!) Idem, ibidem, p. VII. Sublinhado nosso.
Parte III — Capítulo 2
403
nas sociedades dos quadrumanos(!), isto é, em colectividades zoológicas
sem história, propriamente dita. Na leitura matosiana, os movimentos socialista, comunista e anarquista são considerados, no quadro da evolução, como representantes de uma forma anormal-patológica(?) de lutar pela vida que contrasta com a forma normal-saudável, cujo modelo era fornecido pelo próprio Júlio de Matos e seus pares. A radicalidade da linguagem matosiana não era propriamente corrente naliteratura social-darwinista da época, mesmo naquela que também
patologizava o ideário socialista e os seus mentores, como acontecia, por
exemplo, nas obras de Gustave Le Bon(?). Mas, o psicólogo social francês, ao menos, ressalvava que “les apôtres socialistes ne doivent pas être confondus avec les aliénés ordinaires et les criminels”(%). O próprio Herbert Spencer, não se limitando ao quadro conceptual do seu sistema da evolução(*), usava uma terminologia polida, ainda que o sentido da sua mensagem consistisse, igualmente, na afirmação da perigosidade civilizacional do socialismo e da necessidade de o combater em obediência aos princípios científicos da luta pela vida, da selecção natural, da livre concorrência e, portanto, da cooperação voluntária. Como em Júlio de
Matos, tratava-se de um combate imperioso, porque “os fanáticos do
socialismo estão dispostos a recorrer a todos os processos, ainda aos extremos, para a consecução dos seus ideais, sustentando, como o clero feroz de outros tempos, que os fins justificam os meios”(º); e, porque, também julgava que o socialismo “sustaria a civilização, fazendo-nos regressar às mais longínquas origens”(?), isto era, aos tempos da animalidade pré-histórica. (1) Vide: Júlio de Matos, Historia natural illustrada, vol. 1, ob. cit. p. 276 e ss. (2) Júlio de Matos subsume o anormal no patológico. Vide: Ana Leonor Pereira, A economia da alienação mental na obra de Júlio de Matos, ob. cit., pp. 25-34. (3) Vide: Gustave Le Bon, Psychologie du socialisme, ob. cit., pp. 44-70; pp. 100-
-122.
(4) Idem, ibidem, p. 485. (5) Vide: Patrik Tort, La pensée hiérarchique et Vévolution, ob. cit. pp. 329-431; F. Howard Collins, Résumé de la philosophie de Herbert Spencer. Précedé d'une préface de M. Herbert Spencer. Traduction française par Henry de Varigny. Paris, Felix Alcan, Éditeur, 1891, sobretudo pp. 65-542. F.H. Collins limitou-se a reproduzir os principais parágrafos da obra spenceriana, com a aprovação do engenheiro-filósofo. O livro de F.H. Collins foi traduzido em português, mas muitas passagens foram eliminadas. Vide: Caldas Cordeiro, Summario da filosofia evolucionista de Herbert Spencer, Lisboa-Porto, José Bastos — Typ. da Emp. Litteraria e Typographica, 1898. (9) Herbert Spencer, Da liberdade à escravidão, ob. cit., p. 69.
(9 Idem, ibidem,p. 72.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 2
Para um perito em taxonomias, como Júlio de Matos, possuidor de faculdades excepcionais de observação, descrição e classificação, a sua linguagem de militância anti-socialista era certamente considerada pelo próprio como sendo rigorosa e adequada. Com efeito, o seu método científico consistia, tão só, em “bem “observar” e bem “pensar””(!), pois não era um investigador de laboratório treinado na experimentação. Foi justamente esse método que lhe permitiu objectivar o pathos socialista. Para alguém que, desde 1883, observava diariamente os delírios da razão, da afectividade e da vontade,e que, a partir de 1890, por imperativos regulamentares do Hospital do Conde de Ferreira, passara a residir dentro da instituição(2), é de supor queos dois estudos publicados em 1904, fossem considerados objectivos, no sentido em que enunciavam a consistência positiva(?) do facto em causa. Quem melhor do que o director dum “palácio de vencidos na luta pela existência”(*), isto é, de um laboratório sociológico natural (>), podia descrever e classificar o estado mental dos socialistas, comunistas e anarquistas, a partir das suas manifestações sintomatológicas no plano das ideias, dos sentimentos e das acções, € determinar o seu grau de perigosidade civilizacional?!
A adjectivação psicopatológica tanto dos ideários socialista, comunista e anarquista, como do “proletariado intelectual” parece tornar-se mais compreensível, à luz do contexto vivencial de Júlio de Matose do seu código científico. Mas em que medida é que o contexto relativiza aqueles enunciados, manifestamente estigmatizantes? A resposta de Júlio de Matos não seria, antes, que a sua preparação científica, reforçada pela experiência directa e vivencial da realidade psicopatológica do outro, dos seus “vencidos na luta pela existência”, apenas lhe possibilitou objectivar
404
(!) Barahona Fernandes, Filosofia e psiquiatria (Experiência portuguesa e suas raízes). Ensaio, Coimbra, Atlântida, 1966, p. 50. (2) Vide: Júlio de Matos, “Autobiografia” publicada por Barahona Fernandes, in Anais Portugueses de Psiquiatria, Lisboa, 8(8) 1956, pp. 11-12. Vide ainda “Regulamento
do Hospital do Conde de Ferreira” capítulo HI, art. 18º, in António Maria de Sena, Os
alienados em Portugal. 1 — Hospital do Conde de Ferreira, Porto, Imprensa Portugueza, 1885, p. 84; Ana Leonor Pereira, “A institucionalização da loucura em Portugal”, Revista
Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, 21, Nov. 1986, pp. 85-100.
(*) Vide: Túlio de Matos, “A noção do objectivo”, art. cit., pp. 390-393. (*) Carta de Júlio de Matos para Teófilo Braga datada de 29/8/83, in: António Ferrão, Teófilo Braga e o positivismo em Portugal (Com um núcleo de correspondência de Júlio de Matos para Teófilo Braga), ob. cit., p. 108. (*) Vide: Ana Leonor Pereira, “Júlio de Matos: a ciência e a política”, Psiguiatria Clínica, Coimbra, 4 (1) Jan.-Mar. 1983, pp. 49-56. A psiquiatria, pela voz autorizada de Barahona Fernandes, considera que “os problemas médico-filosóficos”, como aqueles que
a obra de Júlio de Matos coloca, devem ser abordados pela história feita por historiadores
e não apenas pela história feita por médicos. Em seu entender, o artigo acima referido introduziu uma “nova perspectiva [que] dá realce à função paradigmática atribuída pelo 'alienista-filósofo” ao hospital na sua relação com a sociedade”, etc.. Vide: Pierre Pichot.e Barahona Fernandes, Um século de psiquiatria e a psiguiatria em Portugal, Lisboa; Roche, 1984, p. 341, Com efeito, também julgamos quea distância profissional do historiador relativamente às práticas psiquiátricas (discursiva e clínica) — face à estreita familiaridade que o psiquiatra-historiador mantém com elas — é uma das condições de possibilidade de renovamento da abordagem desta prática científica enquanto prática social.
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de modo mais rigoroso o que, noutro contexto e com instrumentos analí-
ticos menos precisos, não poderia alcançar? Quanto a este nível da questão, talvez não seja permitido ao historiador ir além do presumível, porque, como nos diz Amadeu Carvalho Homem, “ao contrário dos pacientes ou consulentes que se encontram fisicamente presentes nos consultórios dos psicólogos e dos psicanalistas, prontos a responder ou a resistir ao inquérito a que se sujeitam,o objecto da nossa curiosidade científica, da nossa febre historial, é virtual, distante, ausente”(!). Portanto, fica-nos sempre esta dúvida: Júlio de Matos queria
mesmo dizer o que disse? Terá ousado dizer o que muitos darwinistas,
como H. Spencer e Garofalo, pensavam, mas não afirmavam abertamente? Por outro lado, não teria Júlio de Matos esquecido a norma de prudência científica que a filosofia comtiana lhe ensinou a valorar? Não teria o autor aplicado um método e um corpo conceptual, próprios de um campo científico específico e limitado, a uma realidade que tinha uma etiologia e uma consistência distintas do ontos psicopatológico? Finalmente, não terá Júlio de Matos hipostasiado a psiquiatria convertendo-a num código universal, absoluto e omnipotente de leitura da º pluralidade ideológica das sociedades demoliberais? Mesmoadmitindo que todas as ideologias comportam uma dimensão ilusória(?), seria legítimo objectivar o excesso de ilusão dos socialismos (a sua utopia) enquanto alucinação e delírio? Para Júlio de Matos a resposta é positiva, pois, a transição do normal para o patológico operava-se no quadro involutivo da própria evolução. O mesmoé dizer que, entre a ilusão e a alucinação existia apenas uma diferença de grau.
(1) Amadeu Carvalho Homem, “História e psicologia: reflexões sobre o conhecimento do objecto ausente”, Interacções, 2, Jul.-Dez. 1995, p. 36. (2) Vide: “ideology”. In: MacMillan dictionary of the history of science, ob. cit., p. 199.
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Darwin em Portugal
5. The right science in the right place: forma e conteúdo A leitura matosiana das utopias sociais espelha uma formação psiquiátrica de matriz evolucionista-darwinista que é suposto garantir a sua cientificidade. Por outro lado, é a posição que a psicologia ocupa na arquitectura positivista do saber que justifica e legitima a validade. da abordagem matosiana do socialismo e ideários congéneres. Com efeito, na concepção matosiana, a sociologia é uma disciplina subordinada à psicologia normal e patológica que, por seu turno, mantém relações de dependência estrutural com a biologia filogenética e ontogenética. Note-se que, este tipo de relação inter-disciplinar não é basicamente diferente da concepção comtiana, pois, no seu sistema, construído “conformément au double principe d'unité de méthode et d'homogêne continuité de doctrine”(!), a sociologia liga-se directamente à fisiologia cerebral, Ao terminar a 44º lição do Cours de philosophie positive, intitus lada “Considérations philosophiques sur Vétude générale de la vie ani: male proprement dite”(2), Auguste Comte esclarece: “afin de compléter maintenant cet examen fondamental de la philosophie biologique, il nous reste enfin à envisager, dans la leçon suivante, la partie de la science physiologique, beaucoup plus imparfaite encore, mais offrant néamoins déjaã un incontestable commencement de positivité, qui conceme Tétude directe des fonctions affectives et intellectuelles; d'oú résulte la transition nécessaire et immédiate de la physiologie individuelle à la physique sociale, comme la physiologie purement végétative constitue, d'aprês la leçon précédente, de lien général entre la philosophie inorganique et la philosophie organique”(2). Portanto, é em obediência à relação de dependência “necessária e imediata”, conforme se lê no excerto transcrito,
da sociologia relativamente à fisiologia cerebral que a última (45º) lição da filosofia biológica versa sobre “considérations générales sur 1 étude
positive des fonctions intellectuelles et morales, ou cérebrales”(4). Nela, O
politécnico-filósofo francês trata do problema da determinação dos diversos centros cerebrais, inspirando-se particularmente na frenologia de Gall e não indo além de “considerações gerais”, em virtude da deficiente e elementar positividade dos estudos de anatomia e fisiologia do cérebro e
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do sistema nervoso na sua época(!), conforme argumentava o próprio A. Comte. Ainda que o contributo de Gall(2), no primeiro quartel do século XIX, se inscrevesse no movimento de secularização e de biologização do espírito humanoe tivesse sido valioso para os posteriores desenvolvimentos da anatomia cerebral, da antropologia criminal e da etologia, a verdade é que, décadas mais tarde, Júlio de Matos dispõe da obra de Maudsley(?) que vivamente o impressionou desde os 19 anos(4) e que também contemplava o problema das localizações cerebrais das funções psíquicas
complexas(”), tanto intelectuais como afectivas. Por isso, Júlio de Matos
não se detém especialmente sobre a hipótese de Gall dos 27 órgãos cerebrais(º) das faculdades intelectuais e afectivas e da sua correspondente localização, tanto mais que se tratava de uma hipótese a verificar experimentalmente. Mas, na esteira de Maudsley também sublinha que a investigação da anatomiae da fisiologia do cérebro(”) era uma via capital para a cientificação da psicologia e da psicopatologia. Não admira que Júlio de Matos dedicasse particular atenção a toda uma vasta literatura internacional, especialmente orientada para a alienação mental, que procurava afirmar(8) a autonomia da psiquiatria relativamente a outras disciplinas
(1) Vide: Idem, ibidem, p. 603. Vide: Raoul Mourgue, “La philosophie biologique d' Auguste Comte”, Archives d'Anthropologie Criminelle, de Médecine Légale et de Psychologie Normal et Pathologique, Paris, 24 (190-191) Out.-Nov. 1909, pp. 829-870; 24 (192) Dez. 1909, pp. 911-945. Georges Canguilhem, “Auguste Comte. 1. — La Philosophie Biologique d' Auguste Comte et son influence en France au XIXe siêcle”. In: Émdes d'histoire et de philosophie des sciences, ob. cit., pp. 61-74. (2) Vide: Georges Lanteri-Laura, “Histoire du problême des localisations cérébrales”, Perspectives, Amiens, 1, 1991, pp. 25-55. () Henry Maudsley, The physiology of mind, ob. cit..
p. 314.
(4) Vide: Júlio de Matos, “Impressões”. In: ln Memoriam. Sousa Martins, ob. cit.,
(º) Vide: Henry Maudsley, Physiologie de V'esprit, ob. cit., sobretudo p. 241-324. (9) Sobre a hipótese de Gall dos 27 órgãos (os órgãos da docilidade, da educabili-
dade, do cálculo, da amizade, da penetração metafísica, da observação indutiva, etc.) vide:
“Crâniologie”. In: É. Littré; Ch. Robin, Dictionnaire de médecine, chirurgie, pharmacie, des sciences accessoires et de "art vétérinaire d'aprêsle plan suivi par Nysten. 12 me edi-
tion. Paris e outras, J. B. Baillitre et Fils, 1865, pp. 376-378.
(1) Auguste Comte, Cours de philosophie positive. Troisikme volume-La philosophie chimique et la philosophie biologique, ob. cit., p. 603. (2) Idem,ibidem, pp. 550-603. Sublinhado do Autor. () Idem, ibidem, pp. 602-603. Sublinhado nosso.
(4) Vide: Idem, ibidem, pp. 604-671.
(7) Vide: Júlio de Matos, As hallucinações. Estudo medico-psychologico. 2? ed.
augmentada. Porto, Imprensa Commercial, 1880, pp. 65-68.
(8) Vide: Pierre Pichot; Barahona Fernandes, Um século de psiquiatria e a psiquiatria em Portugal, ob. cit., sobretudo pp. 19-71; vide: Fernandes da Fonseca, Psiquiatria e psicopatologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 56-75; 101-120.
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Darwi
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arwin em Poriugal
médicas, como a neurologia. Assim, o nosso autor, apenas de passagem( 1 refere-se a Hughlings Jackson(2), o pai da reformulação da neurologia sob a influência da teoria darwiniana e da filosofia spenceriana(?), considerado “the true originator of modern neurology”(4). De resto, o próprio
Maudsley, contemporâneo de Jackson, não aborda o paradigma jackso-
niano da evolução e da dissolução do sistema nervoso, o que, em parte, se explica atendendo à necessidade que a psiquiatria tinha de se demarcar da neurologia. Neste sentido, compreende-se o cuidado matosiano em preferir autores como Maudsley, Magnan, Tanzi, Krafft-Ebing,entre outros(”), que desenvolviam investigações sobre aquelas patologias da mente que não: podiam ser objectivadas segundo o modelo patogénico anátomo-. fisiológico. Era, em particular, o caso da paranóia, isto é, dos delírios sistematizados que, “pela ausência de características lesões, pela falta de privativas causas determinantes e pela carência de sintomas funcionais objectivamente apreciáveis, constituem a verdadeira loucura, a psicose por excelência, numa palavra, o próprio e irredutível domínio da psiquiatria (9).
Júlio de Matos conhecia bem asdificuldades da psiquiatria e deu um contributo de alcance internacional para a definição do seu objecto, especialmente com a obra 4 loucura (1889), traduzida para italiano: por Lombroso sob o título La pazzia, a obra Allucinações e illusões (1892), traduzida para espanhol, e 4 paranoia (1898)(). (1) Vide: Júlio de Matos, Allucinações e ilusões. Ensaio de psychologia medica,
S. Paulo, Teixeira & Irmão — Editores, 1892, p. 70.
(2) Mas, nem por isso é menos defensável, como advoga Barahona Fernandes, que na obra de Júlio de Matos “as considerações de cunho transformista, que faz sobre à evolução progressiva do espírito e a sua regressão na doença rimam já com as modernas ideias jacksonianas de “que os sintomas mórbidos representam formas ultrapassadas da evolução”, Pierre Pichot; Barahona Fernandes, Um século de psiquiatria e a psiquiátria
em Portugal, ob, cit., p. 279. Sublinhado do Autor.
(2) Vide: Georges Canguilhem, Le normal et le pathologique, Paris, Presses
Universitaires de France, 1966,p. 122 e ss.
(4) Jack D. Pressman, “Concepts of mental illness in the West”. In: Kenneth: F. Kiple (Ed.) — The Cambridge World History of Human Disease, Cambridge, University Press, 1993, p. 71. (5) Vide: Júlio de Matos, A paranoia. Ensaio pathogenico sobre os delirios sys=
tematisados, ob. cit., pp. 185-186. (9) Idem, ibidem, p. 7. Sublinhado nosso.
(7) Vide: Júlio de Matos, A loucura. Estudos clinicos e medico legaes, ob. cit. Idem, Alliucinações e illusões. Ensaio de psychologia medica, ob. cit.; Idem, A para:
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No que concerne à orientação antropogénica da leitura matosiana da mente normal e patológica, podemos concluir que Júlio de Matos se inscrevia no quadro de doutrinas bio-médico-psicológicas(!), construídas sob o impacto do evolucionismo sistematizado por Spencer e da própria teoria darwiniana da descendência com modificações, no seu sentido total e monista(2), isto é, abrangendo também o psiquismo animal e humano. Por isso, existe uma diferença considerável entre a geografia cerebral romântica do comtismo, fundada, sobretudo, nas pesquisas neuroanatómicas de Gall, e a antropogenia com os seus retornos teratológicos cultivada por Júlio de Matos. Mas, a estratégia cognitiva de Júlio de Matos denota ainda a influên-
cia marcante que o positivismo comtiano exerceu noseu pensar. Tal como A. Comte, também Júlio de Matos segue os princípios da unidade de método e da continuidade doutrinal. Comte transitava da biologia fixista e essencialista para a sociologia, através da fisiologia cerebral, e assim caucionava a previsão sociocrática do futuro, dito, “normal” da humanidade. Júlio de Matostransita da biologia transformista para a sociologia, através da psicologia evolucionista, e, deste modo, funda a previsão sociológica do endurecimento da luta pela vida, da competição, da selecção dos mais noia. Ensaio pathogenico sobre os delirios systematisados, ob. cit.. Quanto às traduções, vide Júlio de Matos, “Autobiografia” já citada. A paranóia não podia ser disputada pela neurologia porque não correspondia a qualquer distúrbio orgânico neuro-anatómico ou fisiológico nem a qualquer lesão propriamente dita e, por isso, era considerada “a verdadeira loucura” (Júlio de Matos), a “pura pazzia” (Tanzi), o objecto por excelência da psiquiatria, a par da “loucura moral “. Júlio de Matos dedica À paranoia a Sousa Martins que também perfilhava o modelo antropogénico na patologia mental. Vide: Sousa Martins, “Nosographia de Anthero”. In: n memoriam — Anthero de Quental, ob. cit., pp. 219-314. (1) Vide: Yvette Conry, “Points d'horizon bibliographique”, Perspectives, Amiens,
1, 1991, pp. 56-65.
(2) Recorde-se que ao terminar The origin of species, Darwin anunciava: “Psychology will be securely based on the foundation already well laid by Mr. Herbert Spencer, that of the necessary acquirement of each mental power and capacity by gradation”, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, ob. cit., p. 428. E no final da obra The expression of the emotions conclufa: “we have seen thatthe study of the theory of expression confirms (...) the conclusion that man is derived from some lower animal form”, The expression of the emotions in man and animals, ob. cit., p. 365. Vide também, Herbert Spencer, “The comparative psychology of man”. In: Essays: scientific, political, and speculative, London, Williams and Norgate, 1878, vol. 3, pp. 423-443. Vide, ainda, Georges Canguilhem, “Charles Darwin. IL. — L"homme et "animal du point de vue psychologique selon Charles Darwin”. In: Études d'histoire et de philosophie des sciences, ob. cit.,
pp. 112-125.
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Parte III — Capítulo 2
Darwin em Portugal
aptos contra a superioridade numérica, e da afirmação progressiva das desigualdades inter-individuais. No plano formal, o cientismo de Júlio de Matos reproduz o cientismo exemplar de A. Comte(!), o que não compromete filiação teorética do nosso autor no evolucionismo darwinista de Herbert Spencer, tanto mais que a sistemática do cognoscível (knowable) spenceriano obedece também aos princípios da unidade de método e da continuidade doutrinal. Com efeito, a ordem expositiva do sistema spenceriano da evolução transita da biologia para a sociologia através da psicologia(?), consistindo a última parte da psicologia num conjunto de princípios “which form a necessary introduction to Sociology”(2). Estamos perante um isomorfismo cientista, se assim podemosdizer. E, o que fundamentalmente salvaguarda
a originalidade matosiana, em relação aos cientismos de A. Comte e de Herbert Spencer, é a especialização do seu código psicológico, embora, como vimos, o nosso autor se inspire no modelo spenceriano da evolução» dissolução que assimilou na obra de Maudsley, mas também-nos Princípios de psicologia(*) do próprio Spencer. Esta arquitectura cientista que projecta o saber psicológico na inteligibilidade do social revelou-se singularmente operativa no pensamento de Júlio de Matos, ao ponto de podermos afirmar que o autor agravou as dificuldades que as sociologias comtiana e spenceriana tinham em substancializar a sua autonomia face à biologia e à psicologia. Não admira que assim fosse, pois, o impacto do darwinismo biológico e psicológico nos estudos sociais condicionou fortemente o desenvolvimento conceptual e metodológico tanto da sociologia como das restantes ciências sociais(”). Além disso, o nosso autor dispunha de um código explicativo da adaptação e da inadaptação do indivíduo ao meio, que lhe permitia dar corpo à selecção psíquica em moldes (1) Vide: “scientism”, MacMillan dictionary of the history of science, ob. cit.,
p. 381.
(2) Vide: Herbert Spencer, First principles, ob. cit., pp. X-XIIL (é) Idem, ibidem, p. XI. Sublinhado nosso. Vide também, Patrick Tort, “Spencer et le systême des sciences”. In: Herbert Spencer, Autobiographie. Naissance de ['évolutionnisme libéral, Paris, Presses Universitaires de France, 1987, pp. V-XLIV. (4) Vide: H. Spencer, The principles of psychology. Second edition. London, Williams and Norgate, 1872-1878, 2 vols.. Júlio de Matos consultou uma edição francesa que cita, por exemplo, em Allucinaçõese illusões. Ensaio de psychologia medica, 0b. cit., p. 94. (5) Vide: Donall MacRae, “Darwinism and the social sciences”. In: S. A. Bamett, A century of Darwin, ob. cit., pp. 296-307; Paul Descamps, “Résumé de I"histoire de la science sociale”, Petrus Nonius, Lisboa, 4, 1941, pp. 99-133.
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não contemplados, embora implícitos, na engenharia filosófica de Herbert
Spencer(!).
Assim sendo, Júlio de Matos pôde fazer, como bem observou
Amadeu Carvalho Homem,a “apologia burguesa, militantemente antiproletária”(2), reforçando o fundamento darwinista da sua opção socio-política, com uma análise psicológica, ou melhor, psiquiátrica, do intelectual socialista, do seu ideal de sociedade e da sua base social de apoio. Não queristo dizer que a meritocracia republicana de Júlio de Matos negasse a capacidade de adaptação do operário trabalhador ao sistema económico liberal. Uma fracção considerável de membros das classes, ditas, infe-
riores dava provas de saberlutar pela vida com normalidade, ainda que as
noções superiores da moral fossem estranhas ao seu espírito “inculto”, “grosseiro”(?)e predisposto a aceitar as ilusórias promessas do socialismo. Em todo o caso,à luz da caracterização que Júlio de Matos faz do operariado,nostextos de 1904,e também a julgar pela sua correspondência particular, não temos dúvidas que a militância política do nosso autor era explicitamente “antiproletária”. Vale a pena transcrever um excerto duma carta manuscrita, dirigida a Marcelino de Matos: “E lembra-se a gente de que não faltam malucos para apoiar as reivindicações do nobre proletariado! Nobre, porquê? Porque é numeroso? Adoptado este critério (...) ainda os ratos serão divinizados. Eu acabo por escrever um livro tremendo com as medidas cranianas e faciais do nobre proletariado”(*). Embora esta apreciação tenha sido escrita em 1912, no contexto do processo de radicalização da conflitualidade social e ideológica que o triunfo da República acelerou, ela deve ser tomada à letra como um corolário das proposições emitidas em 1904. Não é de estranhar que, ao terminar a referida carta, o autor afirme que “[há] duas espécies a destacar a humana, com que andam confundidas”(*). Uma delas é o proleta(1) Vide: Herbert Spencer, The principles ofpsychology, vol. 1, ob. cit., sobretudo
pp. 395-628; vol. 2, sobretudo pp. 558-626.
(2) Amadeu Carvalho Homem, “O republicanismo e o socialismo”. In: História de Poriugal, Direcção de José Mattoso. vol. 5 — O liberalismo (1807-1 890), ob. cit., p. 251. () Vide: Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: Rafael Garofalo, A supers-
tição socialista, ob. cit., pp. XXVII-XXIX.
(4) Júlio de Matos, Carta manuscrita para Marcelino de Matos datada de 17/06/1912. Sublinhado do Autor. No mesmo sentido, vide também as cartas manuscritas para Marcelino de Matos com as seguintes datas: 1/02/1912; 21/05/1912; 8/06/1912; 13/06/1912:29/06/1912;10/07/1912;12/08/1912;12/12/1912:2/07/1913; 26/10/1914. (>) Idem, ibidem, 17/06/1912.
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Parte HI — Capítulo 2
riado(!). Esta atitude taxonomista que coloca o proletariado fora da
balho acentuar-se-á cada vez mais, de acordo com as diferentes e desiguais aptidões dos indivíduos. Por isso, é a própria divisão do trabalho que garante o triunfo, na luta pela vida, aos mais desfavorecidos de meios materiais e de inteligência. Mas, essa garantia não é absoluta, nem automática, pois exige que o proletário possua o mínimo de senso ético que lhe permita resistir à sua gastromania e gula sexual, bem como ao delírio socialista, que é tão perigoso para a sua classe como para as classes pos-
categoria de humanidade ou, mais grave ainda, e textualmente, fora da
“espécie humana”, tem semelhanças evidentes com a atitude espontaneamente etnocêntrica do selvagem que exclui da sua limitada ideia dé homem todos os homens em que não se revê. Não encontrando neles a : sua cor, a sua linguagem, os seus mitos e ritos, etc., julga que eles não fazem parte do “nós”. De facto, o selvagem não tem noção alguma dê humanidade(2). Com esta observação, não pretendemos pôr em causa a diferença abissal que separa a inconsciência do selvagem da consciência científica de Júlio de Matos. Apesar das suas confissões epistolares, o racismo de Júlio de Matos não tem comoalvoprivilegiado as classes operárias, mas o chamado “proletariado intelectual”. Importa ter presente que, nem A. Comte, nem
H. Spencer, nem Garofalo, nem Júlio de Matos concebem um ideal de
sociedade sem o operariado, uma vez que o progresso social também repousa na divisão do trabalho. À medida que o industrialismo triunfa sobre O militarismo, para usar os termos de H. Spencer, a divisão do tra(!) A outra “espécie” é o jesuíta. Quanto ao jesuíta, Júlio de Matos não era origi: nal. Basta pensar na caracterização psiquiátrica da “loucura jesuítica” (p. 187) enquanto “forma paranóica(...) incurável” (p. 188) feita pelo ardente apóstolo do monismo materialista que foi Miguel Bombarda. Vide: Miguel Bombarda,A sciencia e o jesuitismo: replicaaum padre sabio, Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira, 1900, pp. 181-188. Por outro lado, em 1912, a ideia de objectivar cientificamente o suposto atavismo do jesuíta já es: tava em curso e os trabalhos antropométricos e craniométricos, feitos sobre aqueles que se encontravam sob prisão, nomeadamente no forte de Caxias, corriam em público em revistas como Ilustração portugueza. Assim,esta revista, em 7 de Novembro de 1910,estampava em grande plano algumas das melhores cabeças jesuíticas no acto da medição. Com essas medidas, Júlio de Matos não hesitaria em determinar a incorrigibilidade e, correlativamente, o grau de perigosidade pública do jesuíta. Em abono da verdade, deve acrescentar-se que o articulista da Ilustração portugueza não usa a linguagem das ciências interessadas nas medidas daqueles e de outros detidos. Talvez por não dominar a terminologia psiquiátrica e criminológica, o redactor do artigo comenta as imagens expostas sublinhando queo jesuíta era um dos “mais implacáveis inimigos” da República, pelo que, esta “viu-se forçada ao cumprimento das leis exterminadoras” segundo lição do “grande marquês”, obviamente do Marquês de Pombal. Vide: “Os Jesuitas em Portugal”, Ilustração Portugueza, Lisboa, (246) 7 Nov. 1910, pp. 582-589. Ascitações são da página 584. Para se fazer uma ideia da quantidade de medições a que, por regra, estavam sujeitos os detidos considerados perigosos, vide Diccionario das abreviaturas e signaes usados nos postos anthropometricos das casas de reclusão. Elaborado pela Repartição de Justiça da 1º Divisão Militar, Lisboa, Secretaria d' Estado dos Negocios da Guerra, 1903. (2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 123.
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sidentes de bens, de inteligência, de moral, de cultura científica, estética,
tecnológica, ete.. Assim, o operário que possua hábitos de trabalho regular eque seja previdente, no sentido da higiene corporal, sobretudo pela disciplina nutritiva e reprodutiva, e no sentido da higiene mental, pela recusa do associativismo ideológico-político, especialmente socialista, comunista e anar-
quista, dificilmente será um vencido na luta pela vida. Para Túlio de Matos,
o facto de o proletariado ser mentalmente “limitado” não inviabiliza asua adaptação ao meio económico-social liberal. Exercendo as suas, ditas, “grosseiras” faculdades, de forma saudável, ele poderá compreender quea sua aspiração suprema deve consistir em adaptar-se à livre concorrência do industrialismo, para assegurar a sua existência e a dos seus descendentes. Igualmente compreenderá que não tem recursos hereditários, materiais, mentais e morais para sustentar ambições políticas, culturais, económicas e sociais, e que, se o fizer, estará a contrariar a lei do progresso,a arriscar a sua adaptação e a autocondenar-se ao fracasso. o Embora o darwinismo social matosiano não se oponha explicitamente à mobilidade social, a sua concepção de progresso é inequivocamente elitista. O progresso é obra de “umaelite intelectual, que é, na realidade, a que progride, a que marcha, a que se diferencia, numa palavra, a que representa a civilização quer da espécie, quer de um país, a massa
amorfa e indistinta, a multidão homogénea, o rebanho, tem apenas a fazer
um esforço de adaptação”(!). A história não espera do proletário algum esforço criador evolucionário; por outro lado, o seu interesse vital é contrário ao papel de inimigo da civilização queele representa, sob o efeito da “superstição socialista”. Pelas razões expostas, não admira que Júlio de Matos tenha aplicado o seu código psiquiátrico, em especial, aos mentores socialistas, comunistas e anarquistas, pois eles eram os verdadeiros responsáveis pelo associativismo político das classes, ditas, inferiores,
(1) Júlio de Matos, Elementos de psychiatria, Porto, Livraria Chardron de Lello e Irmão, 1911, p. 29. Sublinhado do Autor.
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cujas consequências destruidoras da civilização eram previsíveis à luz da lei da evolução-involução. Com efeito, nos seus Elementos de psychiatria, Júlio de Matos acen-
tua a perigosidade daqueles “degenerados” que “são dominados por um desejo imoderado de reformas e de alterações incessantes na ordem social, tornando-se amotinadores, chefes de bandos políticos, agitadores..da plebe”(1!). Os intelectuais-militantes socialistas, comunistas e anarquistas não pertencem exactamente à categoria psiquiátrica daqueles loucos que se imaginam chefes políticos, autoridades militares ou representantes do poder divino. É que, os primeiros são, de facto, chefes de multidões concretas. Esta diferença não significa que o grau de alienação mental dos socialistas, comunistas e anarquistas seja substancialmente menor do que é naqueles casos clínicos. Embora o seu “delírio” seja reconhecido como um programa de reorganização da sociedade, por uma fracção significativa das classes operárias e mesmo por uma parte da burguesia, essa base social de apoio não lhe retira o carácter ilusório e alucinatório. Antes, para Júlio de Matos, funciona como circunstância agravante, porque testemunhaa perigosidade daqueles “degenerados”, tornando-a incomparavelmente superior à perigosidade do doente isolado no seu delírio autofílico e megalómano. Enquanto este pode causar danos morais circunscritos, O socialista, o comunista e o anarquista pôem em risco toda a civilização.
O “proletariado intelectual” tem o poder real de dominar as classes, ditas, inferiores e mais numerosas da sociedade, mas a fonte desse poder é falsa,
pois consiste numa interpretação patológica da evolução civilizacional. Em contrapartida, a possibilidade de prevenção científica da emergência de casos patológicos isolados, potencial ou efectivamente criminosos, limita-se ao impedimento reprodutivo, enquanto que, relativa-
mente aos intelectuais revolucionários, é possível fazer algo mais. Assim,
o autor defende que a reforma científica da instrução pode contribuir para “o extermínio desse proletariado intelectual, de que em todos os países deriva um progressivo contingente de suicidas e de loucos”(2). Para tanto, a reforma da instrução deve ser concebida e institucionalizada em moldes que não criem expectativas de ascensão social aos indivíduos não portadores de um bom capital bio-económico-social hereditário(?). O problema
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é que, no dizer do autor, “a acessibilidade da plebe às carreiras liberais (...) gera em muitos cérebros de estreita capacidade — cobiças, aspirações e sonhos que a cada instante desabam na luta pela vida”(!). Apesar das habilitações profissionais obtidas, a inutilidade dos seus esforços de adaptação a um nível superior da luta pela vida, confronta-os com a sua posição de vencidos e desencadeia o cultivo dos “delírios” políticos do socialismo, do comunismo e do anarquismo, arrastando consigo, por contágio(?), o elevado número de inadaptados às exigências psicológicas da civilização. Masisto não significa que a sua suposta loucura seja um produto do meio. A causalidade exógena da sua alienação mental tem um valor diminuto comparada com a sua predisposição endógena(?), pois, sem afirmar o valor etiológico da hereditariedade, Júlio de Matos não poderiaclassificar os intelectuais-chefes da “plebe” como “perigosos degenerados”(*). Na verdade, o darwinismo socialelitista matosiano funda-se num darwinismo psicológico hereditarista e, por isso, o autor conservava-se algo céptico quanto aos efeitos pedagógicos do seu combate anti-socialista. Mas, se Júlio de Matos não se escudava no optimismolamarckiano, no fundo, confiava que a lei da evolução por selecção natural possuía recursos (a elite proprietária-culta conservadora e criadora de progresso) para impedir o fim da história e o retorno à animalidade primitiva pré-moral. 6. O problema do valor ideológico do darwinismo psico-social matosiano Os textos de Júlio de Matos de 1904(?) estabeleciam um divórcio entre o ideário republicano e os ideários socialista e anarquista. A linha de fractura não colocava o socialismo, mesmo que fosse reformista, do lado o progresso ficaria comprometido pois dependia do cumprimento do “princípio do egoísmo biológico fundador da vida moral”, que consistia no seguinte: o superior deve beneficiar das vantagens da superioridade e o inferior deve acolher os inconvenientes da inferioridade. Textualmente: “chaque être doit recueillir les avantages ou les inconvénients de sa propre nature”, Herbert Spencer, Les bases de la morale évolutionniste. Triosiême
édition. Paris, Félix Alcan Éditeur, 1885, p. 162. (1) Idem,ibidem,p. 19.
(2) Idem, ibidem, pp. 35-36.
() Tenha-se presente que a educação intelectual, moral e física, segundoa cartilha
spenceriana, não tinha como fim combater as desigualdades naturais-sociais entre os indivíduos, mas acentuá-las para que a selecção fosse rigorosa. Sem este seleccionismo,
(1) Júlio de Matos, Elementos de psychiatria, ob. cit., pp. 29-30.
(2) Vide: Idem, ibidem, p. 37. () Vide: Idem, ibidem,p. 14.
(4) Júlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liberdade à escravidão, ob. cit., p. XII. (5) Júlio de Matos, “Prefacio do traductor” (LXXI pp.). In: Rafael Garofalo,
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do republicanismo, pois Júlio de Matos visava fechar a ideologia republicana à comunhão de alguns valores socialistas, sobretudo respeitantes aos direitos sociais. Embora a geração doutrinária de Teófilo Braga e Júlio de Matos permanecesse, como concluiu Amadeu Carvalho Homem, “francamente refractária aos valores do socialismo”(!), mesmo do socialismo romântico
do pathos anarquista. De facto, o quadro epistémico hegemónico na época
proudhoniano, saint-simoniano e outros, o certo é que, no quadro: do republicanismo, sobretudo após o fracasso do 31 de Janeiro de 1891,
vinha-se desenhando uma tendência socializante inspirada basicamente no “socialismo integral” de Benoit Malon e que teve como expoente Afonso Costa(?). Isto equivale a dizer que o darwinismo psico-social de Júlio de Matos não constituía uma espécie de ideologia oficial do partido republicano na aurora do século XX. É certo quea análise psico-social matosiana não foi alvo de contestação explícita por parte dos seus correligionários, mas isso não significa que a patologização em bloco do socialismo, do comunismo e do anarquismo fosse, por inteiro, secundada pela mentalidade republicana. A este título, parece-nos muito sugestivo tomar, como termo de com-
paração, a leitura queirosiana do anarquista frente ao socialista(?), a qual,
não sendo partidária, não é, todavia, politicamente neutra. Com efeito, na
perspectiva do romancista, enquanto o socialismo é considerado um ideário económico-social humanista, progressista e reformista, perfeitamente normal e saudável, o anarquismo comporta “todos os sintomas duma alucinação mórbida”(*). Ao consistir numa “exacerbação mórbida do socialismo”(”), demarca-se deste e entra na esfera do patológico. Por isso, Eça entende expressamente que “o anarquismo é uma doença”(). A partir desta posição queirosiana não nos parece abusivo supor que os militantes da causa republicana-revolucionária, adeptos da democracia social, bem como os socialistas pró-republicanos, partilhavam a ideia
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não dispunha de outro código de inteligibilidade daqueles indivíduos que tinham a pretensão de “arrasar completamente a sociedade (...) e depois recomeçar de novo a história desde Adão”(!), como nos diz a escrita elegante e incisiva de Eça de Queirós. Embora entre 1904 e 1910, alguns anarquistas tivessem andado “a fabricar bombas em sótãos com correligionários republicanos”(2), aforma mentis de ambos era substancialmente dissemelhante. Enquanto o republicano alimentava um sonho político, em larga medida inscrito no radicalismo demo-liberal de oitocentos, o imaginário anarquista saltava todas as fronteiras da revolução possível e necessária. Como observou Eça, o anarquista “delira quando, ao procurar a causa do mal, a encontra no princípio do direito: e delira ainda mais quando, ao procurar a cura do mal, a entrevê ou, antes, claramente a vê, na destruição da humanidade pela dinamite. O anarquista é pois, no fundo, um socialista que caminhou seguramente, por um caminho racional, enquanto foi, como socialista,
acusando a organização da sociedade: — mas que depois, ou impaciente desse lento caminho jurídico, ou cedendo aos impulsos duma natureza desequilibrada, deu um grande salto para fora da realidade, rolou no absurdo, e cabriolando através duma metafísica insensata, veio cair miseravelmente em práticas duma ferocidade selvagem”(2). É certo que esta ideia queirosiana do anarquista não está muito longe da concepção psicopatológica de Júlio de Matos, o que, obviamente, causou profundo desagrado na elite pensante do anarquismo português(*). A diferença manifesta, ou de superfície, entre a leitura matosiana e a perspectiva de Eça residia na linha de demarcação do normal relativamente ao patológico, dado que, como vimos, Júlio de Matos assimilava o anarquista ao comunista e ao socialista. Compreende-se que assim fosse, pois de acordo com o seu darwinismo social, o próprio “socialismo de estado”, isto era, o liberalismo intervencionista e providencialista con-
A superstição socialista, ob. cit.; Idem, “Prologo do traductor” (XXHI pp.). In: Herbert Spencer, Da liberdade à escravidão, ob. cit..
(1) Amadeu Carvalho Homem,A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga, ob. cit., p. V.
(2) Sobre a relação entre o republicanismo e o socialismo desde a década de
setenta do século XIX até aos primeiros anos da República,vide Idem, ibidem, sobretudo,
pp. 269-309. (3) Vide: João Medina, Eça político, Lisboa, Seara Nova, 1974, pp. 159-238. (*) Eça de Queirós, Echos de Paris, Porto, Livraria Chardron, 1905, p. 163.
(5) Idem, ibidem, p. 158. (6) Idem, ibidem,p. 158.
(!) Idem, ibidem, p. 162.
(2) Maria Filomena Mónica, “Nota explicativa”. In: Catálogo da exposição bibliográfica, iconográfica — 100 anos de anarquismo em Portugal, 1887-1987, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1987, p. 14.
() Eça de Queirós, Echos de Paris, ob. cit., p. 163. (9) Por exemplo, Eduardo d'Almeida classificou a leitura patológica do anarquismo feita por Eça como sendo um “lamentável desastre de inteligência (...) por do anarquismo
apenas conhecer a bomba de dinamite e as canções rubras dos sem-trabalho, ignorando Reclus, Kropotkine e Grave”, “O amor natural”, A Era Nova, Coimbra, 1 (12) 28 Abr.
1906, p. 46.
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duziria a sociedade, por um processo involutivo, à indiferenciação de um tempo pretérito de cooperação obrigatória e, no limite, à homoge
neidade primitiva, pela dissolução da propriedade privada, da família
do indivíduo, etc.. Portanto, para Júlio de Matos, sendo os resultadosdo . anarquismo, do comunismo e do socialismo idênticos, era secundário estabelecer entre eles graus de morbidez. Enquanto Júlio de Matos, na esteira de Garofalo, refere-se à conta
giosidade da “superstição socialista”, englobando o colectivismo é o anar quismo, Eça de Queirós constata o carácter epidémico da ideia anarquista e imputa esse alastramento, “na proporção de um para mil”(!) à própria sociedade. Quer isto dizer que a organização socio-mental hegemónica no tempo é vista como um meio patogénico, o que Eça deixa explícito nestes termos: “mas como é que esta seita de doentes tão disparatada na sua doutrina, e tão impotente nos seus meios de acção(...) se mantém e alastra na
proporção de um para mil? O anarquismo decerto se desenvolve, como todas as epidemias, por ter achado em torno uma atmosfera propícia e mesmo simpática. A verdade é que toda a sociedade que eles desejam arrasar, é tacitamente cúmplice dos anarquistas”(2). Em especial, as classes intelectuais construíam à volta do fenómeno, uma “larga aragem de favor [que] é um crime — porque, animando indirectamente a obra abomi
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esse culto denotava o caracter mórbido da sociedade triunfante, tanto mais que, por regra, os pretensos heróis anarquistas tinham um passado de delinquência comum, que manchava o seu ideário. Eça afirma a morbidez mental da sociedade burguesa porque se coloca na perspectiva do lamarckismo social, sendo esse mesmo código defensor do carácter morfogénico do meio, que lhe permite sustentar que o socialismo é a consciência histórica saudável do tempo, construída com
disciplina moral(!); por isso, em seu entender, o socialismo não podia estar implicado no jogo de cumplicidades entre a sociedade liberal e o anarquismo. Na perspectiva queirosiana, o socialismo, enquanto fruto evolu-
cionário das contradições da sociedade liberal, estava muito longe de ser, como na ideologia cientista matosiana, a falsificação da concorrência vital, nem tinha no horizonte a instalação de uma qualquer patocracia militarista de tendências regressivas, como temia Júlio de Matos.
Seguramente, o socialismo que Eça tem em mente não corresponde
ao ideário colectivista anti-individualista, que tinha como modelo a orga-
nização social de alguns insectos e, em especial, das abelhas(?). Eça não
perfilhava algum “colectivismo de himenópteros” à revelia do “individua(!) Vide: Antonello La Vergata, “La lutte et Veffort”. In: Nature, Histoire, Société.
nável do anarquismo, retarda directamente a obra útil do socialismo, é
Essais en hommage à Jacques Roger, ob. cit., pp. 241-252.
social, que é tão cheia de desordem”(). O comportamento da sociedade
d' O Seculo, Lisboa, 13, 1909, pp. 149-150, onde se postula que “as abelhas são colec-
concorre para que se prolongue, mais revigorada pela reacção, esta-ordem
perante o ideário e a violência do anarquismoé, naleitura queirosiana, de tipo mórbido e criminoso. Mas, paradoxalmente, esse comportamento serve os interesses das burguesias instaladas, o que significa, como é próprio da ironia queirosiana, que essa morbidez pode ser mais ou menos lúcida. Isto equivale a dizer que a sociedade liberal retirava vantagens orgânicas da enfatização literária do fenómeno anarquista. Por um lado, deslocava o anarquismo para o plano do imaginário e, por outro lado, reforçava a legitimidade e a justeza do seu próprio ordenamento jurídico-político e jurídico-penal(?). A esta luz, não havia propriamente falta de senso na mitificação do anarquismo por parte das elites burguesas. Mas, (') Eça de Queirós, Echos de Paris, ob. cit., p. 164. (2) Idem, ibidem, pp. 163-164.
(º) Idem, ibidem, pp. 168-169.
(!) Vide: G. A. Hamel, “L'anarchisme et le combat contre 1 anarchisme au point de
vue de Panthropologie criminelle”. In: Congrês International d'Anthropologie Criminelle — Compte rendu des travaux, Genêve, Georg & Cº, 1897, p. Íll ess.
(2) Atente-se no artigo intitulado “O socialismo das abelhas”, Almanach Ilustrado
tivistas ao passo que as formigas são republicanas”, ibidem, p. 149. Sobre “o mito do insecto-modelo”, vide Pierre Thuillier, Les biologistes vont-ils prendre le pouvoir? La sociobiologie en question. 1. Le contexte et "enjeu, ob. cit. p. 181 e ss. Vide também, Américo Pires de Lima, “A biologia e a sociologia”, Boletim da Associação de Filosofia
Natural, Porto, 1 (4), Set. 1938, pp. 41-60. Entre nós, Neves e Melo defendeu o
formigueiro como ideal de sociedade republicana. Vide: Adelino António das Neves e Melo, “As formigas”, O Instituto, Coimbra, sér. 2, 30 (9) Mar. 1883, pp. 394-416. O abade Thomaz Blanc contestou os argumentos de Neves e Melo in “Les fourmis ou la raison chez les insectes”, O Instituto, Coimbra, 32 (2) Ago. 1885, pp. 78-93. O autor sustenta que a formiga não é superior ao negro, ao selvagem e, em geral, ao homem dito inferior. Recorrendo a várias provas da estupidez da formiga, concluiu que este insecto não possui livre-arbítrio, nem linguagem porque “derriêre les antennes il n'y a pasla raison” (p. 92). A razão é um atributo exclusivo do homem criado por Deuse, portanto, o culto político do formigueiro é um absurdo. É de notar que o interesse pela organização social das formigas recebeu um forte impulso a partir da afirmação darwiniana dos poderes mentais da formiga: “It is certain that there may be extraordinary mental activity with an extremely small absolute mass of nervous matter: thus the wonderfully diversified instincts, mental powers, and affections of ants are notorious, yet their cerebral ganglia are not so large as the quarter of a small pin's head. Underthis point of view, the brain of an antis one of the
most marvellous atoms of matter in the world, perhaps more so than the brain of a man”,
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lismo mamaliano”(!) e, por isso, embora o romancista não fosse um
siano. Através da leitura que Miguel Bombarda faz do anarquismo e do anarquista podemos avaliar melhor a doutrina matosiana e, ao mesmo tempo, manter em aberto o problema da tendência mental dominante do cientismo republicano face à psicopatologia social e política de Júlio de
modelo político para o militante da causa republicana, é muito provável que este comungasse a sua distinção do socialismo relativamente ao anar-
quismo. Diferentemente do diapasão de Júlio de Matos, é bem possível
que apenas o anarquismo fosse considerado patológico, não tanto pelo corpo ideativo que apresentava na época, mas, sobretudo, pela sua radicalidade revolucionária, incluindo o seu terrorismo individual, quase sempre auto-martirizante e criminoso. De facto, na época, a anarquia era indissociável do paradigma de August Vaillant, o célebre libertário(2) condenado à morte por atentado bombista (1893) ao parlamento francês, em pleno funcionamento(?). Esta associação mental entre anarquia e crime, corrente na Europa e nos E.U.A.(?), ganhou, em Portugal, forma jurídica
na lei de 13 de Fevereiro de 1896(º).
Vejamos qual a posição de Miguel Bombarda nesta matéria, dado que se trata de uma autoridade científica e política (pró-republicana, mas à data, ainda independente), defensora dum democratismo socializante, de fundo neo-lamarckista(º), bem distinto do darwinismo elitista mato-
Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), revised and augmented, ob. cit., p. 54. (1) Expressões de António Bracinha Vieira, Etologia e ciências humanas, Lisboa; Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 76.
(2) Vide: Eça de Queirós, Echos de Paris, ob. cit., sobretudo pp. 149-169;
vide também a biografia de Vaillant por James Joll, Anarquistas e anarquismo. Tradu“a do inglês por Manuel Dias Duarte. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1977, pp. 152(3) Umalista de atentados anarquistas na Europa e na América, entre 1877 e 1896; é apresentada por Silva Mendes, Socialismo libertario ou anarchismo. Historia e doutri:
na, s.1., 1896, pp. 164-165.
(*) É, justamente, o que se verifica na lei americana de 1 de Julho de 1907 (Lei sobre imigração), que proibe o desembarque a anarquistas (artº 38) e a outras categorias de indivíduos (criminosos, alienados, indigentes, tuberculosos, portadores de doenças con tagiosas, polígamos, etc.). Cf. Afonso Costa, Estudos de economia nacional. 1 — O pro: blema da emigração, Lisboa, Imprensa Nacional, 1911, pp. 145-146. () Vide: “Carta de Lei de 13 de Fevereiro de 1896”, Diario do Governo, 37, 15 de Fevereiro de 1896, p. 377. (9) A defesa dos princípios de Lamarck é uma constante na obra do autor, tanto nos trabalhosde fisiologia e de psiquiatria como nos estudos sociais. Repetidamente afirma o primado do meio: “todos os seres variam na natureza quando, e só quando; variam as condições da sua existência”, Miguel Bombarda, “Biologia e sociedade”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. IL, 7 (28) 10 Jul. 1904, p. 221. Vide também; Idem, “Physiologia geral”, Lisboa, 1904, Sep. de A Medicina Contemporanea, sobretudo
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Matos. Com efeito, o combativo director do hospital de Rilhafoles desde 1892(1), na base da sua prática clínica e a partir dum caso exemplar de anar-
quismo, defendia a necessidade de se despatologizar o anarquista e o seu ideário, o que não implicava da sua parte a comunhão dos métodos libertários. Bombarda não aceitava que a psiquiatria fosse colocada ao serviço dosinteresses do poder político, tanto do poder instituído como das oposições, o que não significa que o autor tenha sempre respeitado esta norma que explicitou em 1896(2). A verdade, porém, é que o eminente fisiologista-psiquiatra denunciou o uso ideológico da psiquiatria(?), feito por psiquiatras, psicólogos, cientistas sociais, literatos, jornalistas, etc., para estigmatizar o anarquismo. O autor advogava energicamente que um dia gnóstico de loucura não podia ser afirmado a priori sobre um qualquer agente anarquista, tanto mais que o anarquismo era, em seu entender, um ideário social tão legítimo como o comunismo,o socialismo ou o liberalismo, ainda
que alguns dos seus actos caíssem sob a alçada do foro criminal.
O caso exemplar que observou, durante quinze dias, no hospital de Rilhafoles veio confirmar a sua posição de princípio. Esta posição consiste, textualmente, no seguinte: “il faut réprimer la promptitude avec laquelle on accuse de folie les faits qui s'éloignent par un trait extraordi-
pp. 39-48; Idem, “L'avenir de la psychiatrie”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. 2, 6 (17) Abr. 1903, p. 136. (!) Vide: Silva Amado, “Miguel Bombarda”, Revista Amarella, Lisboa, 1 (4) 14 Dez. 1903, p. 66. (2) Vide: Miguel Bombarda, “Un fait d'anarchisme”, Paris, 1896, Sep. de Revue neurologique, sobretudo, pp. 569-571. () Este uso ou esta função ideológica da psiquiatria, que foi e continua a ser uma constante da sua história, decorre, em larga medida, das variáveis sociológicas a que está sujeito o seu campo objectal. Vide, entre outros, David Ingleby, “A construção social da doença mental”, Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, 9, Jun. 1982, pp. 87-113; Jacques Ellul, “Esquisse sur les idéologies de la science”. In: Les pouvoirs de la science. Un siêcle de prise de conscience, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1987, pp. 111-134. Miguel Bombardatinha consciência do deficiente nível de cientificidade da psiquiatria do seu tempo, como é notório no artigo intitulado “A bancarrota da psychiatria”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. II, 8 (24) 11 Jun. 1905, pp. 185-186. Mas não foi exactamente essa consciência que lhe inspirou a recusa da patologização do anarquista.
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naire de ceux qui sont usuels ou courants dans nos sociétés actuelles (...).
H est facile à dire qu'un attentat anarchiste est un acte d'aliénation mentale. Mais plaçons-nous en dehors de la défense de la constitution actuelle de nos sociétés, souvenons-nous de tout de que peut la passión désespérée ou [énergie convaincue pour la propagande de ceux dont la voix est étouffée par une complexité infinie d"intérêts, et on pourra bien se demander si "un ou [Vautre des attentats d'anarchisme ne peut pas être le produit de la logique implacable, de la puissante réflexion d'un esprit absolument sain. Ou bien, il n'y aura jamais de révolutions sociales que celles entreprises par des fous, et lhistoire est remplie de faits qui nous démontrent la conclusion opposée”(!). Na perspectiva de Miguel Bombarda, a patologização psiquiátrica do anarquismo e de outros ideários revolucionários comportava um contra-senso fundamental pois, por essa via, as revoluções históricas ficariam sujeitas ao mesmo critério. Ora, essa inteligibilidade dos períodos revolucionários acabaria por se estender a todo o processo histórico, tanto mais facilmente quanto é certo que “les sociétés ne sont pas la seule résultante d'esprits sages, mais qu'il y a toujours et partout la collaboration de dégénérés et de déséquilibrés”(2) que, na óptica de Bombarda, não são necessariamente doentes, nem cons-
tituem, por regra, uma força de retrocesso civilizacional. A esta luz, à interpretação dos movimentos revolucionários bem ou mal sucedidos, bem
como dos actos isolados de revolta, em nome de ideários que, comg. 6
anarquismo, são, para Miguel Bombarda, inteiramente saudáveis nasua sistemática argumentativa, não pode cristalizar-se nos enunciados teratológicos da antropologia evolucionista. É que, as variações individuais em sentido qualitativo, ou o “desvio evolutivo”(2), constituem a própria fonte biológica do progresso histórico. Sem esse tipo de variações, “a
humanidadeteria ficado pela primitividade; não a teriamos hoje, nem dulcificada na sua miséria pela ciência, nem consolada nas suas ânsias pela
arte”(4). Ora, o espírito inconformista do anarquismo é considerado um “desvio evolutivo”, por ter como horizonte um futuro ideal de libertação da Humanidade dos problemas da fome, da guerra, da injustiça, etc.. O anarquismo é a consciência desesperada do presente e, portanto, também neste domínio, só a “observação cautelosa, averiguada, analítica de (') Miguel Bombarda, “Un fait d'anarchisme”, art. cit. p. 569.
(2) Idem, ibidem, p. 569.
(º) Miguel Bombarda, “Arte e manicomios”, A Medicina Contemporanea, Lisboa; sér. II, 3 (34) 26 Ago. 1900, p. 273. (th Idem, ibidem, p. 274.
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um Darwin”(!) autorizará a imputação de loucura ou de sanidade mental a cada agente singularmente considerado. O anarquista colocado em Rilhafoles pela autoridade policial, na sequência do atentado que cometera contra o rei D. Carlos, foi minuciosamente observado por Miguel Bombarda. Segundo o relatório do psiquiatra, o anarquista fora detido nas seguintes circunstâncias: “le 29 janvier dernier, dans "aprês-midi, L.B. de M... alla se placer au coin de la rue de S... sur le passage du roi. Lorsqu'il le vit arriver, il jeta sur lui deux grosses pierres dont il était armé et s'enfuit du côté d'A... Aussitôt arrêté, il cria: Vive [anarchie, vive la révolution sociale, vive la guillotine! Mené à la préfecture, il fut soumis à ]'examen de deux médecins, qui crurent devoir conseiller une observation plus prolongée dans un asile dºaliénés. Le30, il fut admis dans lhôpital de Rilhafolles”(2). Bombarda procedeu a um rigoroso examefísico, funcional e psicológico do autor do atentado regicida; reconstruiu a sua história pessoal e familiar; anotou os seus valores morais: a coragem, o amor da humanidade, o sacrifício da própria vida a uma causa suprema, o voluntarismo, entre outros(?); elaborou o
registo da sua profissão de fé no anarquismo e dos motivos propagandistas do seu ideário que presidiram ao acto criminoso. Neste sentido, o operário anarquista dizia ter aprendido com alguns mártires do ideal anarquista, especialmente com Ravachol e Caserio(*), que o atentado era a (!) Idem, ibidem, p. 273.
(2) Miguel Bombarda, “Un fait d'anarchisme”, art. cit., p. 570. Sublinhado do Autor. O acto agressor foi seguido pela explosão de uma bomba em casa do Dr. Joyce, segundo Silva Mendes, Socialismo libertario ou anarchismo. Historia e doutrina, ob. cit., p. 165. É de notar que este atentado contra D. Carlos foi a causa imediata da “Carta de Lei de 13 de Fevereiro de 1896”, Diario do Governo, 37, 15 de Fevereiro de 1896. Posteriormente, em 1908, no contexto da ditadura franquista, deu-se a sintomática coincidência da publicação da lei de 31 de Janeiro de 1908 no mesmo dia (1 de Fevereiro de 1908) em que ocorreu o duplo assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro D. Luís Filipe. Recorde-se que esta lei penal visava prevenir “os traumas e atentados para mudar violenta e criminalmente a forma do governo do Estado”, “Lei de 31 de Janeiro de 1908”, Diario do Governo, 25, 1 de Fevereiro de 1908, p. 361. Sobre o retrato psicológico
dos regicidas, Manuel Buiça e Alfredo Costa, vide a “carta de Manuel Laranjeira a Miguel de Unamuno,Espinho, 1 de Novembro de 1908”. In: Obras de Manuel Laranjeira. vol. 1, ob. cit., pp. 469-470. (2) Vide: Miguel Bombarda, “Unfait d'anarchisme”, art. cit., pp. 572-574. (4) Sobre algumas figuras lendárias do movimento anarquista, como Jerónimo Caserio (o assassino do Presidente da República Francesa, Sadi Carnot, em 1894) e François Claudius Ravachol, vide, entre outros, James Joll, Anarquistas e anarquismo, ob. cit., sobretudo pp. 154-157.
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propaganda pelo facto, a única “qui pourra faire la transformation de la société, parce que ce sera au seul retentissement d'un tel bruit que la voix du misérable pourra se faire entendre”(1). Na conclusão do seu relatório, Miguel Bombarda afirmou o estado
normal e saudável da mente anarquista em causa: “Tesprit de notre sujet
offre absolument tous les caractêres d'un état normal. Sa conviction et.sa sincérité sont profondes. Sa logique, bien qu'elle conduise à des actes violents, est inflexible et son point de départ trop réel, hélas!”(2). Igualmente, constatava que “son affectivité est tout à fait normale”(?), embora não se limitasse ao seu núcleo familiar, mas abrangesse positivamente os seus semelhantes em igualdade de condições de vida infra“humanas. Para Miguel Bombarda, este alargamento da esfera afectiva revelava “la grandeur réelle d'un coeur qui enveloppe 1humanité de son amour”(4). Qual teria sido o diagnóstico de Júlio de Matos? A julgar pelo juízo que formulou sobre os autores de atentados contra a realeza na Alemanha, na Inglaterra, na Itália e na Espanha, o diagnóstico de Júlio de Matos seria, seguramente, alienação mental(>). Tratar-se-ia de um indivíduo anti-social, destituído de emoções morais, egocêntrico, delirante, em
suma, um louco-criminoso, como todos os anarquistas. Para Miguel
Bombarda, o caso era bem diferente, como vimos. E era-o, no fundo,
porque o director de Rilhafoles reconhecia a dramática realidade da questão social e a legitimidade da luta do movimento operário(*), pelo pão, pelo trabalho, mas também pelos direitos associativos, pela segurança social e mesmo por ideais revolucionários de justiça social, Na verdade, não se pode falar apenas em reconhecimento, pois, Miguel Bombarda, militante republicano tardio, combatia pela renovação (1) Miguel Bombarda, “Unfait d'anarchisme”, art. cit., p. 572.
(2) Idem, ibidem, p. 570. () Idem, ibidem, p. 574. (4) Idem, ibidem, p. 570.
() Vide: Júlio de Matos, “Estudos de psycologia morbida”, O Positivismo, Porto, 2, 1879-1880, especialmente pp. 309-310. (9) Vide o importante testemunho documentado da luta económica, por um lado, € da luta política, por outro lado, do movimento operário, por Campos Lima, O movimento
operário em Portugal, Porto, Edições Afrontamento, 1972, pp. 69-129. Vide: à síntese de José Maria Amado Mendes, “As camadas populares urbanas e a emergência do proletariado industrial”. In: História de Portugal. Direcção de José Mattoso. vol. 5 — O liberalismo (1807-1890), ob. cit., pp. 493-499. Sobre o movimento operário português oitocentista e novecentista, refira-se ainda, entre outros contributos de vários historiadores,
a obra de Carlos da Fonseca, História do movimento operário e das ideias socialistas-em. Portugal, s.1., Publicações Europa-América, s.d., 4 vols..
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da sociedade, apostando num conjunto de linhas programáticas, “desde a legislação do trabalho até à socialização do solo, desde o imposto progressivo até à separação da igreja do estado”(!), passando pela higiene física e psicológica alcançável através da educação científica(2) e duma legislação rigorosa que devia abranger o divórcio e mesmo medidas eugénicas(2). Bombarda assumia o seu combate enquanto homem de ciência e a orientação neo-lamarckista que seguia permitia-lhe demonstrar que a questão social era uma questão (de meio) social e não moral, antropológica ou outra. Energicamente, em nome da ciência, desafiava a consciên-
cia dos seus pares: “a legislação do trabalho é um grito de justiça e um amparo social, o socialismo de estado, já tão vigoroso na Alemanha, é uma inspiração da ciência, e os milhares de associações [laicas], que por toda a parte no mundo civilizado a iniciativa privada tem arvorado em paladino dos miseráveis, são a mesma sociologia científica em
acção”(*).
De facto, a sensibilidade social e política de Bombarda está bem
patente no diagnóstico proferido. Em seu entender, a lógica daquele anarquista era coerente e implacável e o seu fundamento “trop réel, hélas!”, conformese lê no excerto acima transcrito. O anarquista em causa era uma testemunha real das dificuldades de sobrevivência de uma fracção muito significativa das famílias operárias. Neste sentido, Miguel Bombarda advertia que, “Vattentat n'a été commis qu'aprês de cruelles épreuves que Vaccusé a endurées dans la seule fin d'obtenir du travail”(). O relatório do psiquiatra, ao dar conta dos esforços desenvolvidos pelo operário-anarquista para alcançar um trabalho, sublinha a feição criminógena da orga-
(1!) Miguel Bombarda, A consciencia e o livre arbitrio, 2º ed., Lisboa, Antonio Maria Pereira, 1902, p. 362. (2) Vide: Miguel Bombarda, “A hygiene das escolas e a hygiene dos governos”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, 9 (16) Abr. 1891, pp. 121-123. (é) Vide: Miguel Bombarda, A biologia na vida social, Lisboa, Sociedade das Sciencias Medicas de Lisboa., 1900, sobretudo pp. 15-16; Idem, “Degenerescencia da raça”, A Medicina Contemporanea, Lisboa,sér. IL, 3 (27) 8 Jul. 1900,pp. 217-218. O facto de Bombarda defender algumas práticas eugénicas não significa que tenha colocado reservas ao primado do meio e, portanto, à necessidade de transformar as condições sociais (desde a nutrição à educação) para a melhoria da descendência. Vide Miguel Bombarda, “Degenerescencia das raças”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. II, 7 (32) 7 Ago. 1904,pp. 253-254; Idem, “Raças e meios”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. 2, 8
(25) 18 Jun. 1905, pp. 193-194.
(*) Miguel Bombarda, A biologia na vida social, ob. cit., p. 16. (é) Miguel Bombarda, “Unfait d'anarchisme”, art. cit., p. 573.
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nização económicae social vigente na época(!). Sendo as classes operárias
as primeiras vítimas das crises económicas, era normal que a sua cons-
ciência de classe se desenvolvesse, era normal que aderissem a ideários revolucionários e que, em situações de desespero absoluto, se dispusessem a sacrificar a própria vida, para bem do futuro dos seus filhos e de toda a Humanidade.
Na perspectiva de Miguel Bombarda, não era lícito classificar de
delírio doentio qualquer ideário revolucionário, incluindo o anarquismo, mesmo que os dogmas dafé anarquista consignassem a propaganda pelo acto, e que este se traduzisse num feito criminoso, como no caso anali-
sado. A psiquiatria não tinha legitimidade para patologizar os ideários sociais que constituiam uma ameaça ao regime instituído, porque sendo ela uma disciplina médica não podia, enquanto tal, traçar uma fronteira ideopolítica entre o normal e o patológico(?). Ora, duvidamos que este juízo fosse secundado pelos republicanos mais esclarecidos, nomeadamente pelo Grupo Republicano de Estudos Sociais(?). É por isso que a leitura queirosiana do anarquismo é aquela (') Pelo contrário, a lei de 13 de Fevereiro de 1896 considerou, explicitamente; O anarquismo teórico e prático como um crime e como um factor criminógeno na sociedade. A referida lei “estatui as penas aplicáveis àqueles que por escrito de qualquer modo publicado, ou por qualquer outro meio de publicação defenderem, aplaudirem, aconselharem
ou provocarem actos subversivos contra a segurança das pessoas ou da propriedade, ou
professarem doutrinas de anarquismo, conducentes à prática desses crimes, e o processo para o seu julgamento, e estabelece o procedimento aplicável à imprensa periódica, quando se ocuparde factos ou atentados de anarquismo, e bem assim autoriza o governo a aumentar o quadro de polícia civil de segurança de Lisboa”, “Carta de Lei de 13 de Fevereiro de 1896”, Diario do Governo, 37, 15 de Fevereiro de 1896, p. 377. Vide especialmente artigos 1º, 3º, 4º. É curioso notar que pelo art. 5º, “As disposições desta lei são aplicáveis aos autores dos factos nela incriminados, ainda que praticados anteriormente: (sublinhado nosso), como era o caso do agressor do rei D. Carlos. À face da lei, o destino do anarquista seria cumprir a pena de prisão correcional até seis meses, seguida da pena de deportação “para qualquer das possessões ultramarinas”, de acordo com o artigo 1º da Lei de 13 de Fevereiro de 1896 e com o artigo 10º da “Lei de 21 de Abril de 1892”, Diario do Governo, 91, 25 de Abril de 1892, pp. 858-859. (2) No entanto, Miguel Bombarda utilizou a sua arma psiquiátrica para defender à
mundividência cientista monista da contra-ofensiva do jesuitismo. Aliás, reservou a sua arma, especialmente, para combater a mundividência católica e seus protagonistas, mas também é certo que a utilizou apenas como último recurso para coroar a sua longa argimentação monista-mecanicista (físico-química). Neste sentido, vide o capítulo final, intiz
tulado “Psychologia dos Jesuitas”, da sua obra, A sciencia e o jesuitismo: replica a um padre sabio, ob. cit., pp. 181-188. (º) Vide: Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal. Da formação ao
Parte HI — Capítulo 2
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que, em traços gerais, nos dá uma imagem que, se bem julgamos, está
mais próxima da ideia republicana dominante nesta matéria. Importa ter presente que a força demolidora do anarquismo convinha a um partido republicano, cada vez mais voltado para a ideia de revolução, mas convinha apenas na medida em que pudesse ser disciplinada por este; por outro lado, o partido republicano tinha razões para recear a força anarquista adentro do movimento operário, sobretudo o seu terrorismo gre-
vista. Na verdade, a República, uma vez triunfante, bem cedo revelou os limites da sua tolerância ideológica e do seu democratismo social, ao
mesmo tempo que se afirmava no plano formal-normativo, tanto jurídico como político. O republicanismo não se enganou em relação ao anar-
quismo, como vice-versa. Depois do 5 de Outubro de 1910, o movimento
grevista intensificou-se. “Entre Outubro e Dezembro de 1910, veri-
ficaram-se 61 conflitos, número que em 1911, subiu para 80. Muitas destas lutas foram extremamente violentas, o que levou o regime a dotar-se
rapidamente de uma lei reguladora das greves. (...) Em Março de 1911,a República disparava, pela primeira vez, sobre uma manifestação operária, provocando dois mortos”(1). O divórcio entre a República e o movimento operário de tendências anarco-sindicalistas não tardou a declarar-se(2). Mas, O que nos importa é que, nem porisso,é legítimo concluir que o darwinismo psico-social elitista de Júlio de Matos constituía a matriz por excelência do pensamento social republicano. 7. A contestação do darwinismo elitista de Júlio de Matos O libelo psiquiátrico lavrado por Júlio de Matos, nos textos de 1904, apensos às obras de Garofalo e de Herbert Spencer, colocava em cheque a integridade psicológica (moral, afectiva e racional) dos protagonistas dos 5 de Outubro de 1910, vol. 1, ob. cit., pp. 89-93; Idem, A militância laica e a descristianização da morte em Portugal 1865-1911, vol. 1,ob.cit,p.27l ess.
(!) Maria Filomena Mónica, “Nota explicativa”. In: Catálogo da exposição bibliográfica, iconográfica — 100 anos de anarquismo em Portugal, 1887-1987, ob. cit., p. 14. Sobre o movimento grevista antes e depois do 5 de Outubro veja-se Carlos da Fonseca, História do movimento operário e das ideias socialistas em Portugal, vol. 4, ob. cit., sobretudo pp. 15-170. É igualmente útil apreciar o destaque dado por Campos Lima à greve geral de Coimbra em Março de 1903. In: O movimento operário em Portugal, ob. cit., sobretudo pp. 88-91. (2) Recorde-se, do lado libertário, e da autoria de Salvaterra Júnior, Rugidos e lamentos (Versos da canaiha...), Porto, Nova Tipografia Popular, 1913.
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ideários socialista, comunista e anarquista. Dentre os visados, alguns representantes de tendências anarquistas não perderam a ocasião para
faz selecção. Somos quem tudo produz”( 5. E conclui: “[somos a] maior
mostrar que, em seu entender, a ciência de Júlio de Matos estava compro-
metida com os interesses da grande burguesia industrial e banqueira e daí deduziam que o interclassismo do partido republicano era suspeito. De facto, no mesmo ano de 1904, enquanto o movimento grevista se intensificava no terreno(!), saiu a lume um livro(2) intitulado A Canalha (R. Garofalo, J. de Matos e nós), sob o pseudónimo de “Um-de-nós”. É praticamente certo que este livro foi escrito após a vinda a público de A superstição socialista de Garofalo e antes de ser dada à estampa a obra spenceriana Da liberdade à escravidão(?). Por isso, o autor ou autores de
A Canalha referem-se apenas a Júlio de Matos e a Garofalo. É igualmente provável que a tradução prefaciada da obra spenceriana tenha sido-a resposta de Júlio de Matos à explícita contra-ofensiva estampada em A Canalha. Neste sentido, recorde-se que a linguagem de Júlio de Matos atinge a sua máxima radicalidade psicopatológica no prefácio à obra spenceriana. No entanto, o certo é que Júlio de Matos não se refere à obra de “Um-de-nós”, nem dá indícios de a conhecer. Mas, basta ter presente o
juízo matosiano sobre o “proletariado intelectual” para se calcular que, em caso algum, responderia nominalmente âquele revolucionário. Para Júlio de Matos, seria uma imprudência de alto risco entrar em polémica com
“perigosos degenerados”, hábeis em fazer interpretações delirantes e, mais grave ainda, capazes de, impulsivamente, passarem à acção ofensiva directa, tanto mais que o livro em questão deixava transparecer as tendências anarquistas do seu autor ou autores. Em termos gerais, A Canalha é um trabalho feito por alguém que revela saber utilizar o princípio darwiniano da sobrevivência do mais apto, num sentido vantajoso para as classes operárias. Neste âmbito, além de estabelecer uma equivalência entre aptidão e força numérica, acres(!) No dizer de Rui Ramos, “só no ano de 1904 houve mais greves em Portugal (146) do que nos 15 anos entre 1871 e 1886”, História de Portugal. Direcção de José Mattoso. vol. 6 — A segunda fundação (1890-1926), Lisboa, Círculo de Leitores, 1994,
centa: “somos os melhores, os adaptáveis, os fortes, em que o militarismo
e melhor parte da Humanidade”(2). Reunindo em si a quantidade(?) e a qualidade, o proletariado é identificado darwinisticamente com a raça favorecida na luta pela vida, aquela que está habilitada para triunfar historicamente. Acresce ainda que a sua qualidade é reforçada pela sua consciência de classe, no duplo sentido de classe explorada e de classe sem interesses exploradores. Nodizer do autor, “desde que os trabalhadores têm consciência do
seu valor e do seu direito, não é Garofalo, Júlio de Matos e que tais sapientíssimos doutores burgo-aristocratas, que hão-se, em nome de sua ciência, pôr um travão às aspirações da maior e melhor parte da Humanidade. That is the question”(4). Perante a força histórica do proletariado, alicerçada na sua superioridade numérica e moral, a ciência matosiana, porque é uma “ciência burguesa”(º), não tem poder real e efectivo para impedir o curso histórico de seguir a sua tendência natural, justamente aquela que o movimento operário socialista, colectivista e anarquista assumia consciente-
mente. É significativo notar que a perspectiva do autor não pretende ser simplesmente representativa das diferentes reivindicações da classe operária, mas apresenta-se como sendo a voz da consciência operária, elevada a consciência universal do processo histórico. Por isso, quem
responde a Júlio de Matos é um sujeito colectivo, pretensamente homogéneo e coeso, denominado “nós”. Apesar da missão histórica que está reservada ao proletariado, em virtude da sua superioridade bio-moral e da sua posição no conjunto dos interesses particulares das restantes classes, ele é explorado pelo capital e também pela “ciência burguesa” que, segundo o autor, desempenha a função de mascarar a realidade social, para legitimar “a aristocracia do Ouro, a Plutocracia, o grande burguês”(ó). O reconhecimento desta condição de “explorado” “permite-lhe reforçar a sua consciência de classe destinada a pôr fim à exploração. Assim, “devemos destruir a causa da nossa miséria, substituindo o regímen de concorrência brutal, feroz,torpe, egoista, de roubo, ódio, sangue, pela solidariedade, justiça, acordo, inteli-
p. 243.
(2) A Canalha (R. Garofalo, J. de Matos e nós), Porto, Typographia Peninsular, 1904, 111 pp. — Publicado sob o pseudónimo de “Um-de-Nós”. () O “Prefacio do traductor” à obra garofaliana traz a data de Janeiro de 1904. Vide: Júlio de Matos, “Prefacio do traductor”. In: Rafael Garofalo, A superstição socia-
lista, ob. cit., p. LXXI. O “Prologo do traductor” à obra spenceriana traz a data de Setembro de 1904. Vide: Júlio de Matos, “Prologo do traductor”. In: Herbert Spencer, Da liberdade à escravidão, ob. cit., p. XXHI.
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(1) A Canalha (R. Garofalo, J. de Matos e nós), ob. cit., p. 13.
(2) (3) (4) (º)
Idem, ibidem, p. 13. Vide, também, Idem, ibidem, p. 98. Idem, ibidem, p. 13. Sublinhado do Autor. Idem, ibidem, p. 14. Sublinhado nosso.
(9) Idem,ibidem, p. 15.
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gência, mútuo auxílio, fraternidade, amor(1). A questão social não é uma
fantasia inventada pelo “proletariado intelectual”. Ela resulta da falta de pão, de liberdade, de instrução e de condições laborais(2) e provoca à diminuição da força do proletariado, até ao limiar da miséria material é
espiritual. A ciência de Júlio de Matos procura iludi-la, convertendo-a num
problema de “manchas, taras, estigmas,(...) perversões e atavismos de selvajaria e bestialidade”(?). E, para reforçar a suposta cientificidade deste retrato psicológico do proletário, Júlio de Matos faz correspondera falta de senso moral a um baixo nível anátomo-físico. Deste modo, no dizer de A Canalha, a “ciência burguesa” conclui que “somosfeios, rudes, bárbaros, selvagens, estúpidos, ferozes (...) simples feras-bestas”(4). A esta leitura estigmatizante e falsa, o autor contrapõe: “somente para arquivar as infâmias da aristocracia e da burguesia, do clero e da nobreza, precisa a história de milhares de livros”(*), o que, acrescenta o autor anónimo, não
constitui novidade para os republicanos. Com efeito, “o burguês republi-
cano cita as devassidões, orgias e crueldades espantosas dos reis, rainhas,
príncipes, e ainda as abominações do papado e das ordens monásticas, e a gente fica apavorada com as narrativas de tais monstruosidades...”() e vê que, afinal, a burguesia tem o mesmo senso ético e, sob o ponto de vista
estético, não é mais favorecida do que as classes dominantes de outrora.
Osintelectuais republicanos socorrem-se da “ciência burguesa” para denunciar a degenerescência (regressão patológica) da realeza(?), pro(!) Idem, ibidem, p. 98.
(2) Para uma apreciação sumária das condições laborais (higiene, segurança, horários, salários, associativismo) do operariado fabril, vide um testemunho médico do tempo, Ângelo da Fonseca, “Condições do operariado em Portugal”, Movimento Medico, Coimbra, 4 (5) 1 Jul. 1904, pp. 73-75. Vide também o trabalho académico de Carlos de Carvalho Braga, Lição — Cadeira de Anthropologia — Das degenerescencias na especie humana, e das suas causas. Causas mixtas. — Das condições intellectuaes, moraes e phy: sicas dos operarios das fabricas, 1902-1903, 31 folhas. Manuscrito. Cofre do Instituto de Antropologia da F.C.T.U.C. . Vide ainda a súmula da legislação operária elaborada por
Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., pp. 92-103. (É) A Canalha (R. Garofalo, J. de Matos e nós), ob. cit., p. 52. (4) Idem, ibidem, pp. 13-14,
(*) Idem, ibidem, p. 14.
(9) Idem, ibidem, p. 14. (7 Veja-se a obra quesaiu a público em 1905 e que retoma os contributos fundamentais de trabalhos anteriores de vários autores: V. Galippe, L'hérédité des stigmates de dégênerescence et les familles souveraines. Préface de M. Henri Bouchot. Paris, Masson et Cie. Éditeurs, 1905. Em especial, sobre os estigmas degenerescentes na genealogia dá família real portuguesa, vide pp. 245-266.
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curando com argumentos pseudo-científicos desacreditar a Monarquia e ganhar adeptos para a causa da República. Mas — pergunta o autor anónimo — com que moralidade é que o partido republicano pugna pela sua implantação na classe operária(!), se incumbiu o seu “sapiente alienista Júlio de Matos”(2) de nos “difamar e cobrir de odioso e opróbio”?2(). É verdade que “não somos bonitos e formosos como Apolo, Adonis ou Narciso, nem efeminados como a gentefina do Aigh-life”"(*); é igualmente incontestável que o proletariado não é instruído, masisto não significa que
ele seja degenerado como pretende a ciência de Júlio de Matos. Com efeito, argumenta o autor, importa ter em conta que “um trabalho fmprobo nos faz homens robustos, resistentes à fome,ao frio, ao calor, a todos os
elementose privações, no mar, na terra, na mina e fábrica; e que, se muitas vezes sucumbimos, não é por excesso de gozo e devassidão, mas
por excesso de miséria extrema e trabalho penoso durante a vida”(*).
Acresce ainda que as mulheres operárias são naturais. Não estudam o seu comportamento, nem são dominadas por “restos atávicos de tatuagem ... civilizada”(*). Mas,no entender do autor, é desnecessário fazer a defesa da higidez física, mental e moral do proletariado, pois a verdade terá poder bastante para suplantar as “patranhascientíficas”(7) de Garofalo e de Júlio de Matos. Apesar dos sentimentos de perplexidade e indignação que percorrem esta obra anónima, o seu autor entende que a “ciência burguesa” tem
o mérito de esclarecer o operário sobre as intenções do republicanismo. É que, nenhum intelectual republicano ousou combater a humilhante e ofensiva imagem da classe operária e dos seusideais, construída por Júlio de Matos, em absoluto contraste com a dignidade que o verbo poético e
hterário lhes vinha reconhecendo, mesmo em Portugal(). A razão era
clara. No dizer do autor de A Canalha, o partido republicano consi(!) Sobre a sociologia e a geografia eleitoral do republicanismo, vide: Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910, vol. 1,
ob. cit., sobretudo pp. 95-112.
(2) A Canalha (R. Garofalo, J. de Matose nós), ob. cit., p. 52. (2) Idem, ibidem, p. 63. (4) Idem, ibidem, p. 17. Sublinhado do Autor.
() Idem, ibidem, p. 17. (9) Idem, ibidem,p. 18. (?) Idem, ibidem, p. 48
(8) Vide, entre outros, Gomes Leal, A canalha, Lisboa, Edições Jorge Cabrita,
1986. Trata-se de um poema de dezoito estrofes, editado pela Tipografia Universal em 1873.
Darwin em Portugal
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derava Júlio de Matos uma “glória republicana, glória lusa, glória das glórias”(1) e, por isso, “os seus correligionários e admiradores entendem perfeitamente o mesmo”(2) a respeito do proletariado e dos seus ideais. Com efeito, o livro em causa, difundia a ideia de que a autoridade da ciência matosiana reduzia ao silêncio as possíveis divergências entre os membros da elite pensante do republicanismo. Por isso, o autor de 4 Canalha identificou a posição de Júlio de Matos com asdirectivas do partido republicano relativamente à questão social e aos ideais socialistas e anarquistas. Nesta óptica, a ciência de Júlio de Matos servia o interesse do republicanismo em se demarcar, com clareza, do socialismo, do colectivismo e do anarquismo. Ao mesmo tempo, acabava por produzir um efeito útil para a definição da estratégia operária, já que lhe dava acesso à consideração que o partido republicano tinha pelo movimento operário e pelos intelectuais socialistas e libertários. Através da ciência matosiana, o proletariado. ficava a saber que a República ainda nãoseria o fim da exploração do povo em geral; correlativamente, o proletariado apercebia-se da necessidade de desenvolver a sua consciência de classe, enquanto consciência de humanidade, porque, como escrevia o autor, “sabemos que há-de passar a moderna plutocracia — com seusreis e presidentes, papas e generais — e que a Humanidade permanecerá”(2), perseguindo o caminhodalibertação total. Entretanto, considerava que a revolta contra a ordem burguesa da sociedade era uma obrigação moral, decorrente dos imperativos existenciais imediatos, ainda que ela não se traduzisse ipso facto no fim de toda a exploração. Esta orientação combativa traduzia a sua desilusão relativamente aos ideais republicanos. Neste sentido, o autor revelava desconfiança face à ideia segundo a qual o proletariado não colhia vantagens em hostilizar o republicanismo; sendo este um movimento emancipador da sociedade da opressão monárquico-clerical, não seria do interesse da classe operária lutar pela República? Mas, desde que o proletariado ficou a saber, pela ciência de Júlio de Matos, que o republicanismo distorcia a questão social, o que é que a humanidade, realmente, ganhava com a sua vitória? Com efeito, O autor anónimo via na República uma futura madrasta decidida a converter o operário ao conformismo e à resignação, mesmo que para tanto julgasse necessário ensiná-lo a ler e a escrever.
em ter acesso a umacultura que, no fundo, incriminava as capacidades e a luta da classe libertadora de toda a Humanidade. Logicamente, o redactor da obra concluia o seguinte: se a “ciência burguesa” odeia, despreza e teme o operariado consciente da sua missão histórica, “com que direito então querem os republicanos levar os povos ao matadouro, como carne para canhão, para demolir as monarquias"(!)? Em termos globais, é esta a mensagem da obra A Canalha, visivelmente atravessada por uma imagem romântica e profética do operariado, na medida em que o julga
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Assim sendo, não admira que, o autor de A Canaiha recuse à
instrução e a ciência, ditas burguesas, por não vislumbrar vantagens reais () A Canalha (R. Garofalo, J. de Matos e nós), ob. cit., p. 52. (2) Idem, ibidem, p. 48. () Idem, ibidem, p. 18.
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destinado a instaurar a harmonia social e o amor da humanidade, sendo a
paz universal o sentido último do seu sofrimento histórico. O autor, Um-de-nós, não revela possuir uma orientação ideológica, claramente definida, no quadro dos socialismos e dos anarquismos europeus da época. Mas, o que importa realçar, atendendo ao nosso escopo, é que o pressuposto fundamental em que se alicerça a sua res-
posta a Júlio de Matos está de acordo com a lógica darwinista da vida: o número como critério de aptidão. Ora, além do sucesso reprodutivo, o
autor sublinhava a adaptabilidade das classes trabalhadoras às mais adversas condições existenciais. Era este postulado que sustentava a visão messiânica do operariado libertador da Humanidade, independentemente da estratégia de combate poder comportar alguma concessão ao refor-
mismo ou ser, integralmente, revolucionária e apolítica.
(!) Idem, ibidem, p. 69. Sublinhado nosso. A verdade é que, em Portugal, “tacticamente, muitos anarquistas e alguns socialistas” aceitaram a proposta da “República como antecâmara da Revolução Social” e, sem dúvida, o movimento operário participou massivamente no derrube da Monarquia. Vide: Fernando Catroga, “Os primórdios do 1º de Maio em Portugal. Festa, luto, luta”, Revista de História das Ideias, Coimbra, 11,
1989, pp. 445-499. As passagenscitadas constam da página 496.
CAPÍTULO 3 A rubefacção libertária do darwinismo 1. A selecção natural dos valores anarquistas No presente capítulo propomo-nos avaliar o modo como o anarquismo português usou a revolução darwiniana e o cientismo darwinista(!). Recorde-se que o libertário anónimo, autor de 4 Canalha, considerava a argumentação darwinista de Júlio de Matos como sendo própria da “ciência burguesa”, mas, curiosamente, afirmava a aptidão social e histórica do proletariado em termos muito pouco originais relativamente à fraseologia do darwinismo social: “somos os melhores, os adaptáveis, os fortes”(2). Apesar deste enunciado crucial, este documento não é suficientemente elucidativo da ambição cientista do ideário acrata, ao contrário de alguns textos doutrinais, designadamente, o trabalho académico do jovem anarquista João de Campos Lima, intitulado Movimento operário em
Portugal(), dado à estampa em 1904.
Com efeito, o autor defende que a teoria de Darwin se conjuga harmoniosamente com o ideário anarquista e contesta a fundamentação darwiniana das ideologias burguesas, conservadoras ou reformistas, de matriz liberal. O seu texto é claro: “um ponto costumam tocar mais insistentemente os escritores reaccionários — a justificação da sociedade actual pela teoria darwinista e pela teoria malthusiana.(...) Despindo a roupagem metafísica do seu habitual a priorismo, os conservadores permitem-se por um momento a ficção de ter descido à realidade dos (1) Para o caso espanhol, vide a tese de doutoramento de Alvaro Girón Sierra, Evolucionismo y anarquismo en Espafia (1882-1914), Madrid, CSIC/Centro de Estudios Históricos, 1996. (2) A Canalha (R. Garofalo, J. de Maios e nós), ob, cit., p. 13. (3) Consultámos a segunda edição publicada pelas Edições Afrontamento, Porto,
1972.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
factos”(!). Na sua óptica, o uso queos liberais, como H. Spencer, faziam do código de Darwin, além de não conduzir a uma objectivação científica
vegetais e animais, cabendo a vitória aos que tinham melhores condições de desenvolvimento e que assim, por selecção natural, persistiram. O aperfeiçoamento foi-se conseguindo desta forma pela fixação de todas as qualidades úteis ao indivíduo e pela eliminação das que lhe são nocivas e inúteis(...). Foi também a mesma teoria aplicada aos fenómenos sociológicos (...). Da luta das raças pelo triunfo dos mais fortes, não se irá operando a selecção natural, sendo esta pois a verdadeira lei do progresso"(!)? Por um lado, Campos Lima aceita a selecção natural como sendo a lei científica da evolução das espécies vegetais e animais. Por outro lado, considera que a história da espécie humana não se processa
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do real social, acabava por deformar esse mesmo código, em função dos
interesses das classes burguesas. Reconhecemosneste argumento a condenação feita por Kropotkine das leituras de Darwin de tipo spenceriano;
“Ce qu"ils ont fait de Darwin est abominable (...) TIs ont réduit le concept
de lutte pour "existence à sa signification la plus étroite. Ils ont conçu le monde animal comme un monde de lutte perpétuelle entre individus affaméset assoiffés de sang (...)'(2). Tal como para Kropotkine, também para o anarquista português nãoé a cientificidade da teoria darwiniana que está em causa. Pelo contrário, Campos Lima distingue-a do darwinismo
social e histórico, tanto individualista como racialista, e procura conjugá-la com o ideal acrata de sociedade. No mesmo sentido se pronunciara
o anarquista Angelo Vaz, em 1902, recusando as teorias da luta inter-
-racial(?) e, em particular, o darwinismo histórico de Gumplowicz(*) é o
darwinismo antroposociológico de Vacher de Lapouge(”). A exposição desta complexa problemática, tanto por Campos Lima como por Ângelo
Vaz, deixa perceber as dificuldades do seu intento, o que é bem com-
preensível se pensarmos que estes jovens autores não dispunham de categorias epistemológicas, como, por exemplo, o efeito reversivo da evolução(*), para validar uma interpretação da teoria darwiniana consonante com o fim da conflitualidade e da injustiça sociais. É nos seguintes termos que Campos Lima traça o enunciado geral do problema: “a teoria darwinista pôs o princípio de que a evolução das espécies se fora realizando à custa de uma luta lenta entre as diversas formas
(!) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., pp. 34-35.
(2) Citado por A. La Vergata, “Les bases biologiques de la solidarité” In Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France,
1992, p. 70. Extraído da obra de Kropotkine, Mutual aid: a factor of evolution, London, 1902. Esta obra de Kropotkine consiste na reunião em volume de uma série de artigos publicados pelo autor entre 1890 e 1896 na revista Nineteenth Century. Cf. La Vergaita, ibidem, pp. 69-70. (2) Vide: Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, Porto, Typographia da Empreza Litteraria e Typographica, 1902, sobretudo p. 68 e ss. (*) Vide: Louis Gumplowicz, Sociologie et politique. Avec préface de René Worms. Paris, V. Giard & E. Briére, 1898, sobretudo pp. 178-194.
(é) Vide: Jean Colombat, La fin du monde civilisé. Les prophéties de Vacher:de
Lapouge , ob. cit..
(5) Vide: Patrick Tort, “Leffet réversif de I'évolution. Fondements de Vanthropologie darwinienne”. In: Darwinisme et société, ob. cit., pp. 13-46.
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rigorosamente em conformidade com o mecanismo evolutivo darwiniano, na medida em que a luta (inter-individual, inter-classista e inter-racial) não
se resolve sempre pelo triunfo dos mais aptos ao nível orgânico, como era norma na luta natural. O autor verificava que, no tempo pretérito e presente do evolver civilizacional, a selecção natural era dominada por alguma forma de selecção artificial. Com frequência, os detentores dos melhores dotes físicos e psicológicos eram subjugados por aqueles que
possuíam meios exteriores de triunfo, como o poder económico, o poder militar, o poder político, o poder cultural, etc.. Historicamente, os conflitos inter-raciais tinham-se resolvido em termos militares e, em seu entender, a
superioridade militar não é sinónimo de maior aptidão física e psicológica, para levar a efeito os ideais mais elevados da espécie humana. As vitórias militares não significavam necessariamente o cumprimento da selecção natural. Por um lado, as guerras eram um factor de “degenerescência” racial, por “roubarem à população exactamente uma grande parte dos mais fortes”(2) e, por outro lado, conduziam ao estabelecimento de relações de
domínio forçado e artificial entre vencedores e vencidos, o que não garantia o progresso civilizacional. Com efeito, no dizer do autor, “a sujeição de um povo a outro pode produzir isto: a depressão dos vencidos e a desmoralização dos vencedores”(2), o que indica que a luta não se travou segundo as normas da natureza e, portanto, a selecção natural não se exerceu completamente. No plano inter-individual a selecção também estava viciada. Este tópico é o alvo de ataque privilegiado pelo jovem anarquista que procura refutar as asserções do darwinismo liberal de tipo spenceriano. Nos termos do autor: “se, em vez da luta entre raças analisamos a luta de indivíduo (!) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 35.
(2) Idem,ibidem,p. 36. () Idem, ibidem,p. 36.
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Darwin em Portugal
para indivíduo? É precisamente este o ponto em que se colocam os que, em nome do darwinismo, justificam a actual sociedade. Segundo eles, as desigualdades sociais são o resultado da luta travada entre os indivíduos.
E preciso que unstriunfem à custa de outros: é a lei da preponderância dos
mais fortes sobre os mais fracos (...)(!). Mas quem são os mais fortes?
Segundo Campos Lima,os darwinistas liberais identificavam erradamente
os mais fortes com os detentores do capital. De facto, “não são os mais
fortes os que triunfam, mas os mais ricos”(2). Ora, este tipo de selecção
não é natural e não pode ser progressivo, tanto sob o ponto de vista biológico como civilizacional. Provam-no múltiplas dimensões da vida social, desde os casamentos sem amor, por exclusivo interesse material, em que “é faiseado o instinto da espécie”(2), até ao comércio político(*). Quanto à suposta superioridade dos burgueses industriais, Campos Lima contrapõe: “o que há por trás deles é umaentidade fictícia — esse capital — quenofundo é ainda um produto do trabalho e não podeviver nem tem valor sem ele. É tal a importância desses pretendidos indivíduos mais aptos que pode deles prescindir-se”(>). Em nenhum domínio, incluindo as actividades científica e artística, a selecção social vigente é uma selecção natural, pelo que, na conclusão de Campos Lima, é “de todo o ponto inaceitável a defesa da actual sociedade pela teoria darwinista”(6). Mas, visto que, para o autor, a teoria de Darwin é verdadeira, ela tenderá a cumprir-se, o que significa que “os mais fortes, os mais aptos, os que nã sociedade actual são os vencidos, serão, numa sociedade livre, em que nada lhes embaraçará a sua acção, os que hão-de triunfar”(7). Assim, à plena naturalização da história implica uma reorganização social na base da liberdade e da igualdade de condições sociais,isto é, exige a revolução libertária. Com efeito, o autor sublinha a consonância entre a biologia darwiniana e a doutrina acrata: “a lei darwinista terá no futuro uma verdadeira aplicação”(8). O mesmo é dizer que a sociedade anarquista será a sociedade da selecção natural. Nela o princípio da luta pela vida assumirá (1) Idem, ibidem, pp. 36-37. (2) Idem, ibidem, p. 40.
(2) Idem, ibidem, p. 25. (*) Idem, ibidem, p. 40 e ss.
(*) Idem, ibidem, pp. 42-43.
(9) Idem, ibidem, p. 46.
(7) Idem, ibidem, p. 46. (8) Idem, ibidem, p. 46. Sublinhado nosso.
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um sentido inteiramente natural. O que, então, estará em jogo,é, exclusivamente, o conjunto das faculdades físicas e mentais dos indivíduos, ou seja, as desigualdades naturais num contexto de igualdade de condições sociais, em sentido amplo. A luta pela vida, à semelhança do que se passa nas sociedades animais, não será, rigorosamente, sinónimo de concorrência inter-individual, nem de luta de classes, nem de luta de raças. Em vez
de concorrência, a luta pela vida implicará a ajuda mútua, a coordenação de esforços, o relacionamento cooperativo entre os indivíduos e os povos.
É que, conforme explicitava Ângelo Vaz, na concorrência liberal, “toda a luta é transfigurada por um sem número de circunstâncias artificiais, criadas pelas convenções humanas, baseadas essencialmente em preconceitos, crenças e privilégios de todo o género”(!). A luta que produz efeitos realmente evolucionários implica “o concurso doutros factores,
como: a solidariedade, a cooperação, o auxílio mútuo. O acordo pela vida,
eis a fonte inesgotável de todo o progresso da espécie humana”(2). Para defender a cientificidade do postulado anarquista da luta enquanto esforço cooperador, Campos Lima advoga que, na teoria darwiniana, a selecção natural exerce-se ao nível da espécie e não do indivíduo(). Neste sentido, escreve: “A luta travada entre indivíduos da mesma espécie não pode confundir-se com o struggle for life de Darwin. A selecção natural, segundo este a entendia, não era mais do que o triunfo da espécie mais preponderante, conquistando em espaço e alimento às outras espécies o que lhe era necessário à existência”(4). De certo modo, o autor tem consciência de não ser inteiramente fiel aos textos darwinianos porque, de facto, estes não autorizavam a anulação da luta inter-individual e intra-específica, nem a exclusão do indivíduo enquanto unidade mínima da selecção(*). Por isso, recorre a outras autoridades da ciência biológica É e, designadamente, a P. Kropotkine e a R. Wallace(º), para afirmar que a (1) Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 73. (2) Idem, ibidem, p. 74. Sublinhado do Autor. (3) Vide: Charles Devillers, artigo “Sélection (unités de). Units of selection”. In: Dictionnaire du darwinisme et de V' évolution, vol. 3, ob. cit., pp. 3883-3885. (4) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 37. Sublinhado do Autor. (5) Vide: Jean Gayon, Darwin et 'aprês-Darwin. Une histoire de Phypothêse de sélection naturelle, ob. cit.,p. 75 e ss. (6) A exposição de Wallace, o co-fundador da teoria seleccionista da evolução, ajustava-se melhor à deslocação da selecção natural para o nível do grupo. Vide: Jean Gayon, Darwin et Vaprês-Darwin. Une histoire de Phypothêse de sélection natureile, ob. cit. p; 21 e ss.. Mas, Wallace, autor de Darwinism, an exposition of the theory of natural
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Darwin em Portugal
luta inter-individual e intra-específica não é regra na natureza e,logicamente, validar o ideal anarquista de harmonia e solidariedade sociais.
Importa documentar textualmente este tópico, pois constitui o
(desvio) fundamental da pretendida base darwiniana do ideal anarquista. “A luta entre indivíduos da mesma espécie é uma excepção raríssima. A suplantá-la e com uma grande generalidade está a lei do auxílio mútuo.
À espécie tem o sentimento da solidariedade, que às vezes se estende a
indivíduos de outra espécie mas semelhantes. Nas formigas por exemplo, e segundo conta Kropotkine na Moral Anarquista, a sua solidariedade sobe ao ponto de tomarem em protecção a formiga esfomeada de outro formigueiro, que o acaso transviasse; (...) Além disto, muitas espécies contrárias evitam a luta entre si (...) como demonstra R. Wallace no seu livro Darwinismo”(!). Kropotkine, o filósofo do movimento anarquista internacional, a partir de finais da década de 80(2), era também um geógrafo e naturalista de craveira internacional, profundamente conhecedor da biologia evolucionária e da revolução darwiniana. Neste sentido, o conceituado cientista-anarquista elaborou uma interpretação da biologia darwiniana, especialmente da teoria dos instintos sociais e do senso moral(?), em contraposição à leitura efectuada por H. Spencer: Na
perspectiva do naturalista russo, Darwin tinha demonstrado o valor evo-
lucionário da ajuda recíproca(*), especialmente nas sociedades de himeselection with some of its applications, 1889, não foi um apóstolo do anarquismo. Declarou-se publicamente partidário do socialismo em 1890. Vide: Gérard Molina, artigo “Alfred Russel Wallace 1823-1913”. In: Dictionnaire du darwinisme et de V'évolution; vol. 3, ob. cit., sobretudo pp. 4580-4582.
(!) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., pp. 37-38. Note-
-se que, nem todosos insectos forneciam soluções anarquistas para os grandes problemas (éticos, políticos, sociais) da humanidade. Por outro lado, Campos Lima não considera o caso das formigas vermelhas que, “reduzindo à escravidão as cunicularias, vivem à custa do trabalho destas”, António Luís Gomes, Ociosidade, vagabundagem e mendicidade, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892, p. 11. Sublinhado do Autor. E o autor acrescenta “o ócio produz nelas [formigas vermelhas] consideráveis transformações anatómicas; chegando mesmo a perder grande parte dos seus instintos, como o de edificar; educar a prole e de prover às suas necessidades. Mas há mais: chegam a tal estado, que, sendo privadas por qualquer circunstância das suas servas, preferem morrer de fome à terem de trabalhar! (Lubbock)”. (2) Vide, entre outros, James Joll, Anarquistas e anarquismo, ob. cit., p. 147 e ss: (2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex.
Second edition (eleventh thousand), ob. cit., sobretudo pp. 65-145.
(*) Kropotkine retomava a defesa do valor evolucionário da cooperação, sustentada pelos zoólogos germano-russos K. Kessler e A. Brandt, entre outros. Vide: Antonello
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nópteros e nas sociedades humanas, tendo remetido para um plano secundário a luta inter-individual e intra-específica. Neste sentido,
Kropotkine concluía: “linstinct de Vaide réciproque se répand dans le monde animal parce que la sélection naturelle opére pour le conserver et le développer, et détruit sans pitié les espêces qui le perdent. Au sein de la grande lutte pour la vie (...) les espêces qui appliquent de la maniére la plus cohérente le principe de Vaide réciproque ont la plus grande probabilité de survivre, tandis que les autres sont éliminées. Et le même grand principe est confirmé par Phistoire de Phumanité”(!). No argumento do naturalista russo é de notar, em especial, a conservação e o desenvolvi-
mento do instinto de ajuda recíproca, enquanto obra do mecanismo evolucionário darwiniano, isto é, da selecção natural. Se este instinto foi
seleccionado é porque ele revelou ser benéfico e vantajoso e, portanto,
deve ser cultivado. Deste modo, o ideal anarquista de Justiça, Paz e Amor
inscreve-se directamente na teoria darwiniana. Um dos anarquistas portugueses que defendeu, nos termos de Kropotkine, a darwinização do princípio da ajuda mútua foi Ângelo Vaz(2), na suatentativa de demonstrar que “o próprio princípio de Darwin, a selecção natural e a persistência do mais apto, envolve e ex-plica o princípio de solidariedade”(). Esta leitura supostamente(?) correcta da teoria darwiniana estabelece o fundamento zoológico da moral anarquista que se consagrou internacionalmente. La Vergata, “Les bases biologiques de la solidarité”. In: Darwinisme et société, ob. cit.,
p. 63 e ss. No dizer do autor, “Vidéologie de Jaide réciproque et de la solidarité biologique trouva en Russie sa terre d'élection, au point de conditionner profondément les réactions des scientifiques et des intellectuels de ce pays au darwinisme, leurs imprimant une sorte de marque nationale”, ibidem, p. 66. (1) Citado por Antonello La Vergata, “Les bases biologiques de la solidarité”. In: Darwinisme et société, ob. cit., p. 70. Vide também Raymond Williams, “Social darwinism”. In: Problems in materialism and culture. Selected essays, London, Verso, 1982, p. 96; D. R. Oldroyd, Darwinian impacts. An introduction to the darwinian revolution, ob. cit., p. 236 e ss. (2) Vide: Ângelo Vaz, Neo-maithusianismo,ob.cit., p. 76 e ss.
() Idem, ibidem, p. 76.
(4) Para o epistemólogo francês, Patrick Tort, o sentido fundamental da exposição darwiniana da evolução dos instintos sociais traduz-se numa ética da solidariedade. Vide,
entre outros trabalhos de Patrick Tort, “Darwinisme social: la méprise”, Les cahiers de science & vie, Paris, 6, 1991, pp. 76-80. Segundo o autor, Darwin interpreta os comportamentos altruístas dos animais (formigas, abelhas, cães) como “étapes intermédiaires vers la moralité pleinement developpée de 'homme social”, ibidem, p. 78. Por ser mais vantajoso, “Valtruisme apparaít comme un produit historique de la sélection des instincts sociaux”, ibidem, p. 78.
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Darwin em Portugal
Entre nós, também a imprensa anarquista(!), designadamente, A Era Nova, estava, de facto, vinculada à moral, dita científica, da cooperação e
da solidariedade. Ora, é significativo notar que os excertos da obra de Kropotkine, transcritos em A Era Nova, sublinham o postulado da: subsunção do indivíduo na espécie. Deste modo podiam afirmar que a selecção conserva e protege o que é vantajoso para a espécie, embora possa não ser benéfico para cada singular. Simultaneamente, podiam advogar um modelo .
de utilitarismo ético fundado no referido postulado. Textualmente: “o que é
considerado bom, entre as formigas, os arganazes e os moralistas cristãos ou ateus é o que é útil para a preservação da raça — e o que é considerado mau é o que lhe é nocivo. Não para o indivíduo, como diziam Bentham é Mill, mas para a raça inteira”(2). É o instinto de sobrevivência (e de perfectibilidade) da espécie que julga a moralidade ou a imoralidade dos comportamentos. Por isso, “a formiga, o pássaro, o arganaz (...) não leram Kant, os Santos Padres, nem mesmo Moisés. Entretanto, todos têm a
mesma ideia do bem e do mal”(2). A moral anarquista nada tem de artificial, identificando o bem com o conjunto de valores sociais úteis à conser-
vação e aperfeiçoamento da espécie, entre os quais avulta o valor capital da solidariedade na luta contra as adversidades e os condicionalismos do meio. A partir deste enunciado, era possível, em coerência, afirmar a
moralidade da revolução acrata contra a imoralidade do estado burguês(4). Era em nome da moral anarquista, que se abrigava na lógica darwiniana (1) Atendendo ao teor da nossa abordagem não cuidámos de avaliar a projecção da moral científica acrata em diversos jornais anarquistas que, neste período, são numerosos. Vide Catálogo da exposição bibliográfica, iconográfica — 100 anos de anarquismo:em Portugal, 1887-1987, ob. cit., sobretudo pp. 35-41; 123-125. Recorde-se que, em 1904, Campos Lima fez uma recensão da imprensa anarquista, distinta da imprensa socialista; na qual constam os seguintes jornais: “Em Lisboa: A Revolta, A Propaganda, A Obra, O Germinal, Amor e Liberdade. No Porto: O Trabalhador, A Revolução Social, O Libertário, O Emancipador, O Agitador, O Proletário, A Aurora, O Despertar. Em Vila Nova de Gaia: A Voz do Proletário. Em Coimbra: A Conquista do Bem, Os Bárbaros, O Caminho, Revista Livre, À Verdade”. E, o autor acrescenta, “houve ainda um jornal anarquista em Porta
legre, intitulado O Amigo do Povo, e outro no Funchal, À Ideia (...). São inúmeros os folhetos e prospectos que têm distribuído”, in O movimento operário em Portugal, ob. cit. pp. 123-124. (2) P. Kropotkine, “A moral anarchista”. A Era Nova, Coimbra, 1 (11) 14:Abr. 1906, p. 44. Sublinhado do Autor. () Idem, ibidem, pp. 43-44. (4) Vide também Elisée Reclus, “Porque somos revolucionarios”, A Era: Nova, Coimbra, 1 (10) 7 Abr. 1906, p. [38]; Idem, “O anarchista”, A Era Nova, Coimbra, 1 (7) 17 Mar. 1906, p. [27]; A. Hamon, “Patria”, A Era Nova, Coimbra,1 (8) 24 Mar. 1906, p: [30]
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da evolução natural, que o geógrafo Élisée Reclus concluía: “enquanto durar a iniquidade, nós, anarquistas comunistas internacionais, permaneceremos em estado de revolução”(!). O recurso à força e à violência, sendo útil, era dito, natural, e, portanto, era moral. A força revolucionária,
que tem em vista “despedaçar toda a lei exterior"(2) impeditiva da realização da igualdade e da liberdade acratas na espécie humana, está de acordo com os ensinamentos da “nossa única religião [que] é o estudo da
natureza”(2).
A legitimação biologista da revolução libertária é feita também pela defesa do postulado da evolução por descontinuidade que, na aurora do século XX, se sobrepôs ao continuismo da matriz darwiniana(4). Como é
próprio do uso ideológico da ciência, E. Reclus traduzia em termos simples e lineares, o que, no interior da biologia, era um problema da maior
complexidade, pois prendia-se com as teorias da hereditariedade e da variação(*). A tradução acrata da evolução saltacionista na história da
natureza, incluindo a história da espécie humana, consistia neste enuncia-
do dogmático: “nunca progresso algum, quer parcial, quer geral, se completou por simples evolução pacífica; fez-se sempre por meio de rápida revolução”(*). Na base desta fundamentação, dita científica, os revolucionários acratas visavam, na síntese de Campos Lima, “a remodelação social, imediata e completa, de modo a acabar-se de uma vez para sempre com a exploração do homem pelo homem”(). 2. A “raíz do mal” e o primado do meio na causa libertária Em 1904, o movimento anarquista português distinguia-se claramente do partido socialista, mas reclamava para si a paternidade anteriana, (1) Élisée Reclus, “Porque somos revolucionarios”, art. cit., p. 38.
(2) Idem, ibidem, p. 38. () Idem, ibidem, p. 38. Sublinhado do Autor.
(4) Vide: Denis Buican, La révolution de V'évolution. L'évolution de Pévolutionnisme, ob. cit., p. 167 e ss.; Peter J. Bowler, El eclipse del darwinismo. Teorias evolucionistas antidarwinistas en las décadas en torno a 1900, ob.cit., pp. 202-231. (5) Vide: Jean Gayon, Darwin et V'aprês-Darwin. Une histoire de "hypothêse de
sélection naturelle, ob. cit., pp. 261-329. Autor.
nosso.
(9) Élisée Reclus, “Porque somos revolucionarios”, art. cit., p. 38. Sublinhado do
(7) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit. p. 50. Sublinhado
Darwin em Portugal
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afirmando que “os nossos primeiros socialistas, e entre eles Antero de. Quental, foram apenas anarquistas”(!). As diferenças entre o anarquismoe o socialismo espelharam-se, inequivocamente, no significado que cada um deles atribuía ao 1º de Maio, festejado em Portugal desde 1890(2). O anarquismo não aprovavaa táctica socialista de unir os trabalhadores em torno daquele estado de espírito que Fernando Catroga sintetizou nos expressivos termos “festa, luto, luta”(2). Não concordava com a orientação do movimento operário no sentido do reformismo mais ou menos pacifista, pois julgava todos os meios de luta que não fossem radicalmente revolucionários como sendo cúmplices da organização económico-social vigente. Para Campos Lima, o 1º de Maio devia ser “um ensaio da greve geral pela
blemas que afectavam a sociedade. Ângelo Vaz sublinhava este tópico capital, É significativo notar que o autor escolheu para epígrafe da sua exposição, a célebre passagem do Discours sur Porigine et les fondements de Vinégalité parmi les hommes(1775) de J.-J. Rousseau, na qual o filósofo iluminista concluía que a fonte da desigualdade civil inter-individual era, justamente, a propriedade privada: “le premier qui, ayant clos un terrain, s'avisa de dire ceci est à moi, et trouva des gens assez simples pour
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paralização do trabalho no mesmo dia e em todo o mundo”(*) e não uma |
paródia da esperança na (r)evolução social, nem exactamente o culto fúnebre dos mártires do movimento operário e dos heróis da liberdade. O 1º de Maio devia ser assumido como uma prefiguração da revolução total e universal, e neste sentido, tinha de ser uma declaração de morte à orgânica social do tempo, fazendo tremer o poder burguês instituído e anunciando, de facto, com armas na mão, o fim de toda a exploração e, com ela, de todas as formas de poder e não apenas do poder político. Apenas esta revolução apolítica podia conduzir ao triunfo do Bem, da Verdade e do Amor(>), pois ela reduziria a cinzas todo o mal (o poder), até à sua longínquaraíz: a propriedade privada. De acordo com os principios de Kropotkine(º), a propriedade privada representava uma violação das regras naturais, geradora de todas as imoralidades e de todos os pro(!) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 120. Na verdade, o projecto social anteriano não é identificável com qualquer forma de anarquismo, seja O
anarquismo individualista de Max Stirner, seja o anarquismo colectivista proudhoniano ou
outro. Sobre o assunto, vide a exposição analítica de Fernando Catroga, “O problema político em Antero de Quental. Um confronto com Oliveira Martins”, Revista de História das Ideias, Coimbra, 3, 1981, sobretudo p. 510 e ss..
(2) Vide: Fernando Catroga, “Os primórdios do 1º de Maio em' Portugal. Festa, luto, luta”, Revista de História das Ideias, Coimbra, 11, 1989, pp. 445-499. Neste período histórico, foi entre 1894 e 1898 que o 1º de Maio conheceu a mais elevada expressão popular. Vide: Idem, ibidem, sobretudo, p. 458; p. 496. (2) Vide: Fernando Catroga, “Os primórdios do 1º de Maio em Portugal: Festa, luto, luta”, art. cit., pp. 445-499. (%) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. H4.
(5) Idem,ibidem,p. 67.
(6) Segundo Kropotkine, “il faut I'Expropriation. L'aisance pour tous comme but, Vexpropriation comme moyen”. Citado por Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 65.
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le croire, fut le vrai fondateur de la société civile. Que de crimes, de guer-
res, de meurtres, que de miseres et d'horreurs n'eut point epargnés au
genre humain celui qui, arrachant les pieux ou comblantles fossés, eut
criê à ses semblables: Gardez-vous d'ecouter cet imposteur, vous êtes
perdus si vous oubliez que les fruits sont à tous et que la terre n'est à
personne”(!). No entanto, o quadro teórico em que se inscreve a tese rousseauniana da passagem do jogo natural ao jugo social (2), e, designadamente, o postulado da bondade natural do homem, não é subscrito por Ângelo Vaz. É que, as investigações paleoantropológicas e pré-históricas e o estudo das sociedades selvagens apontavam no sentido da afirmação da “bestialidade feroz”(2) da natureza originária do homem. Darwin tinha mudado radicalmente a imagem do homem em estado de natureza. Provou a sua descendência “from some lowly organised form”(4) e testemunhou
directamente a sua crueldade e instintos canibais, mesmo relativamente
aos seus parentes, em especial, às próprias mulheres(>). O final da obra .
(1) Citado por Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p.21. (2) Vide: Ana Leonor Pereira, “Do jogo natural ao jugo social. O “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” de J.-J. Rousseau”, Revista de História das Ideias, Coimbra, 9, 1987, pp. 375-396. 6) Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 24. Vide, entre outras obras de divulgação da referida imagem do homem natural, Louis Figuier, O homem primitivo. Obraillustrada com 40 scenas da vida do homem primitivo desenhadas por Emilio Bayard e com 256 figuras representando os objectos usuaes das primeiras epocas da humanidade. Traduzido da 5º edição francesa por ManoelJosé Felgueiras. Lisboa, Empreza Literaria Luso-Brazileira-Editora, 1883; Ferdinand de Lanoye, O homem selvagem. Versão portugueza de E. P. de M., Lisboa, Livraria Bertrand, 1888. Francisco José Teixeira Bastos,
“Bibliographia. Les débuts de 1 humanité. L"homme primitif contemporain, par Abel Hovelacque,avec 40 figures dans le texte” — 1 vol. 336 pag. Paris, 1881”, O Positivismo,
Porto, 4, 1882, pp. 248-252.
(4) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second
edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 618.
(é) Vide: Alan Moorehead, Darwin. La expedición en el Beagle (1831-1836), Barcelona, Ediciones del Serbal, 1989, sobretudo pp. 63-79 referentes aos habitantes da Terra do Fogo. Vide também Th. H. Huxley, La place de "homme dans la nature. Avec
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The descent of man é a subversão absoluta do homem natural rousseauniano, de tal modo que Darwin confessa: “For my own part I would as soon be descended from that heroic little monkey (...) or from that old baboon (...) — as from a savage who delights to torture his enemies, offers up bloody sacrifices, practises infanticide without remorse, treats his wives like slaves, knows no decency, and is haunted by the grossest
mental — decadência orgânica — crepúsculo da espécie”(!). Por isso, o
superstitions”(1).
O ideário anarquista pretendia ser científico e, portanto, não podia fundar-se no arquétipo rousseauniano do homem natural. De resto, podia bem prescindir dele, pois dispunha da interpretação feita por Kropotkine da teoria darwiniana da evolução dos instintos sociais. Além disso, podia recorrer à valorização daqueles factores lamarckianos, explicativos do processo evolucionário, que mais convinham aos postulados sociogénicos da causa libertária e acrata. De facto, a doutrina anarquista, sem trair O mecanismo da selecção,atribuía à influência do meio sobre os indivíduos
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ideal libertário não podia aprovar os métodos daqueles que, como os socialistas, “simulam transigir com os revolucionários”(2), mas, de facto,
não reconhecem que, em última instância, a injustiça, a fome, a ignorância e demais problemas radicam na instituição da propriedade privada que configura a organização social. Vejamos de que modoa utilização do lamarckismo servia o princípio sociogénico da doutrina anarquista, justamente aquele que explicava todos os problemas sociais, desde a miséria material até à criminalidade. À pergunta “de onde provém a degenerescência?”, Campos Lima responde: “Eis-nos de novo em pleno domínio da acção do meio exterior"(2), que é composto portodas as condições existenciais, desde a nutrição à educação. Dado o baixo nível das condições reais de existência das classes trabalhadoras, acontece que, “entre aqueles que formam verdadeiras dinastias de miseráveis, famílias inteiras em cuja tradição não há senão quadros
um papel capital. Assim, a tese lamarckiana de que o meio tinha um poder modelador do organismo(?2) era convertida no argumento, segundo o qual, a organização da sociedade, fundada nodireito de propriedade privada,era a causa última da conflitualidade e do mal-estar sociais). A esta luz, defendiam que o direito de propriedade introduzia uma divisão artificial da sociedade humana em classes e institucionalizava a exploração daqueles
mente”(4). Os caracteres degenerescentes foram adquiridos através da acção do meio e, na permanência deste(”), esses caracteres transmitiram-se e fortaleceram-se hereditariamente. O mesmo é dizer que todo o caracter adquirido sob a poderosa influência do meio se imprime na
as diversas vertentes da questão social procediam da ordem jurídica da propriedade. Dela decorriam os seguintes efeitos: “pauperismo, prosti-
são e fixação de todas as pechas mórbidas”(9). Por seu turno, o anarquista Manuel José d'Oliveira, na sua dissertação inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em
que eram unicamente detentores de força de trabalho. Em última análise,
tuição, crime, suicídio, alcoolismo — esfalfamento físico, esfaifamento
une préface de Vauteur pour Védition française, ob. cit., pp. 239-242, sobre o canibalismo africano no século XVI. (1) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 619. A preferência (metafórica) por parentescos animais (o cão, o gato, o elefante, o macaco, etc.), como forma de sublinhara bestialidade do homem, mesmocivilizado, é afirmada com igual convicção por Tomás da Fonseca na sua exposição popular, A origem da vida, Lisboa, Empreza de Publicações Populares, 1913, pp. 119-137. O combativo pedagogo conhecia também a obra de Ernesto Menault, A inteligencia dos animais, ob. cit.. : (2) Vide: Jean Baptiste Lamarck, Philosophie zoologique ou exposition: des considérations relatives à Vhistoire naturelle des animaux.(...). vol. 1, ob. cit., sobretudo pp. 220-265, capítulo VIIintitulado: De influence des circonstances sur les actions et les
habitudes des animaux et de celle des actionset des habitudes de ces corps vivants, comme causes qui modifient leur organisation et leurs parties. (3) Vide: Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 13:6 88.
de fome e de trabalho violento, a degenerescência avança assustadora-
instância germinal; “o resto completa-o a hereditariedade, pela transmis-
1904, elaborou uma refutação analítica da doutrina lombrosiana,isto é, do atavismo e, consequentemente, da teoria do criminoso-nato(”). Às teses
(1) Ângelo Vaz, Neo-maithusianismo, ob. cit., pp. 21-48. (2) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 49. Vide também, P. Kropotkine, Palavras d'um revoltado. Obra publicada, annotada e acompanhada d'um prefacio por Elisée Reclus. Traducção de Campos Lima. Lisboa, Guimarães & C* Editores, 1912, pp. 213-218. (3) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob, cit., p. 16. (4) Idem,ibidem, p. 16. (*) Jean Baptiste Lamarck, Philosophie zoologique ou exposition des considérations relatives à Vhistoire naturelle des animaux. (...). vol. 1, ob. cit., sobretudo p. 258ess. (6) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 16. (7) Vide: Manuel José d' Oliveira, O problema de Lombroso. Estudo critico de biosociologia sobre a theoria atavica do crime, Porto, Typographia de A. F. Vasconcellos, Suc., 1904, sobretudo pp. 71-117.
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hereditaristas da escola lombrosiana(!), o autor contrapunha, em matéria de anatomia patológica, que “as chamadas anomalias atávicas são todas explicáveis por perturbações de desenvolvimento embrionário”(2), isto é, perturbações físico-químicas cuja etiologia era, em última análise, de carácter social. Entre as causas principais, apontava “as intoxicações, como o álcool, certas infecções, como a tuberculose,e as perturbações de nutrição, quer devidas a uma alimentação defeituosa, quer a um esgotamento nervoso persistente”(2), designadamente por excesso de trabalho. Este complexo causal patogénico era gerado pelas deficientes condições reais de existência das classes trabalhadoras e, por isso, o crime era, em última instância, uma questão social(4). Assim, no âmbito da medicina legal o jovem anarquista defendia que “o criminoso é a objectivação Sintética da responsabilidade social”(?) e, consequentemente, em matéria de
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e de guerra”(1). Na óptica anarquista, não era possível ultrapassar “a miséria física, a miséria intelectual e a miséria moral”(2), sem anular a sua verdadeira causa. Esta argumentação sustentava o dogma libertário, segundo o qual, o fim da propriedade alteraria radicalmente o meio social, ou o conjunto das relações sociais e, consequentemente, a luta de classes extinguir-se-ia na razão directa das vantagens evolucionárias da cooperação e da solidariedade. Então, “todos, cônscios duma elevada noção de Justiça e Amor, procurarão ascender, unidos e livres, na radiosa estrada que conduz à
Cidade Futura, à Cidade do bom-acordo, a terra da promissão, suprema etapa da Felicidade humana”(?). Enquanto persistissem as características patogénicas do meio social, especialmente, a propriedade privada, todo o combate à fome e ao crime seria estruturalmente inútil. Por isso, também
higiene postulava que “a profilaxia das degenerescências só poderá realizar-se integralmente com a solução da questão social"(9). A raíz última dos problemas patológicos e criminológicos não era bio-constitucional, massituava-se num solo mais profundo, justamente o meio social. Por isso, em consonância com o princípio sociogénico que justificava a
Campos Lima acentuava a justificação biológica (de tipo lamarckista) da revolução libertária: “transforme-se esse meio, déem-se a todos as condições indispensáveis de existência e não haja receio de que a lei biológica falhe: a degenerescência atenuar-se-á e, subsistindo ainda algum tempo pelos resíduos que a hereditariedade transmita, acabará por desaparecer”(*). Pela falta de uso, os caracteres degenerescentes extinguir-
degenerescências reconhecem como principal, muitas vezes como único
fortalecer-se-ão. As duas leis lamarckianas do uso e do não uso e da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos(>) eram fulcrais na lógica anarquista, pois, além de explicarem o pathos social, justificavam a mudança revolucionária do meio e garantiam a perpetuação e aperfeiçoamento das qualidades positivas, como a solidariedade. Nãose estranhe, por isso, que, além das doutrinas de Kropotkine, de Réclus e de outros cientistas militantes do anarquismo, a literatura acrata invocasse e utilizasse obras de cientistas neo-lamarckianos que, curiosamente, pouco ou nada tinham a ver com o ideal libertário.
necessidade da revolução social libertária, o autor concluía que “a imbecilidade, a loucura, a criminalidade, a tuberculose, numa palavra, todas as
factor o elemento social, e não é com leis, como não é com leis que se.
combate a tuberculose, que o higienista conseguirá modificar esse meio patológico quese tem engrandecido em muitos séculos de fome, de peste
(1) Vide: Cesare Lombroso, “Teorias de Lombroso. Congresso, periodicos, 25 Mai, sociedades anthropo-juridicas”, O Mundo Legal e Judiciario, Lisboa, 6 (136) Atlanie. . delinquente uomo Lº Idem, 1892, pp. 270-272; 6 (138) 25 Jun. 1892, p. 301; 1897. Editori, Bocca Fratelli Sºedizione. Torino, (2) Manuel José d'Oliveira, O problema de Lombroso. Estudo crítico de:bio: -sociologia sobre a theoria atavica do crime, ob. cit., p. 125.
() Idem, ibidem, p. 122.
À. (4) Desde 1900 encontrava-se traduzida a obra do criminalista e anarquista a Bibliothec Lisboa, Bel-Adam). (Traductor: idade. responsabil e mo Hamon, Determinis usado por d'Educação Nova-Editora, 1900. Bel Adam era o pseudónimo frequentemente Severino de Carvalho, um eminente representante do movimento anarquista portugues Invernos antes e depois da República. Vide a sua biografia in A Ideia, Lisboa (24-25), -Primavera, 1982, p. 110. bi (5) Manuel José d'Oliveira, O problema de Lombroso. Estudo critico de: -sociologia sobre a theoria atavica do crime, ob. cit., p. 125.
(9) Idem, ibidem,p. 125.
-se-ão. Correlativamente, pelo seu exercício, as qualidades mais nobres
(1) Idem, ibidem, p. 123. (2) Ângelo Vaz, Neo-maithusianismo, ob. cit., p. 65. () Idem, ibidem, p. 65. Sublinhado do Autor. (4) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 17.
(*) Vide: Jean Baptiste Lamarck, Philosophie zoologique ou exposition des considérations relatives à [histoire natureile des animaux. (...). vol. 1, ob. eit., sobretudo pp. 235-236; Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured racesin the struggle for life. Sixth edition, ob. cit., pp. XII-XIV; Ernst Hackel, Historia da creação dos seres organisados segundo as leis naturaes, ob. cit., pp. 81-86; Y. Delage; M. Goldsmith, As teorias da evolução, ob. cit., pp. 264-314.
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Entre nós, por exemplo, o periódico anarquista 4 Obra valorizou o trabalho de Clêmence Royer e, sobretudo, a sua tradução-traição lamarckiana da Origem das Espécies(!), bem como o trabalho do conceituado antropólogo Charles Letourneau(?), igualmente defensor de uma interpretação lamarckiana(?) da teoria evolucionária de Darwin. Como se
salto evolucionário da classe destinada a cumprir o ideal de solidariedade, de igualdade e de liberdade acratas. A pedagogia da revolução privilegiava a aprendizagem prática,
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verá adiante, Félix Le Dantec(?), o biólogo francês neolamarckiano —
homem de laboratório e eminente teorizador e divulgador das ciências da vida — que julgava inútil cultivar fantasias libertadoras, menos ainda libertárias, também serviu as ambições acratas de cientificidade.
3. A aprendizagem acrata da desalienação bio-moral A revolução acrata era entendida como necessária, no sentido em que se inscrevia numateoria determinista e teleológica da história e, por-
tanto, jamais seria obra do acaso(”), por um lado, ou do livre-arbítrio(s),
por outro lado. No entanto, o seu êxito não era rigorosamente mecânico € automático, antes implicava um voluntarismo que se plasmava na sua: estratégia pedagógica e cultural. A valorização do combate educativo tinha como fundamento biológico o instrutivismo lamarckista(”). Nesta base, Campos Lima julgava ser possível e eficaz a “renovação moral do operariado, por meio duma instrução bem orientada”(*), que facilitasse o (1) Vide: “Clêmence Royer”, A Obra, Lisboa, 7 (367) Fev. 1902, p. 3; vide também Daniel Becquemont, “Notes sur les éditions françaises et anglaises de L'Origine des Espêces”. In: Charles Darwin, L'origine des espêces au moyen de la sélection naturelle ou la préservation des races favorisées dans la lutte pour la vie, Paris, Flammarion, 1992,
pp. 37-41.
(2) Vide: “Carlos Letourneau”, A Obra, Lisboa, 8 (369) | Mar. 1902, p. 3. (3) Vide: artigo de Patrick Tort, “Letoumneau, Charles 1831-1902”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 2, ob. cit., pp. 2624-2626. (4) Vide: Patrick Tort, “Le Dantec, Félix Alexandre 1869-1917”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 2, ob. cit., pp. 2600-2604. (5) Este postulado também decorria da textura lamarckista do ideário acrata. Na verdade, o lamarckismo pode resumir-se na expressão, “la necessité sansle hasard”. Vide:
Jacques Ruffié, De la biologie a la culture, vol. 1, ob. cit., pp. 44-46. (9) Em 1896, um estudioso, com formação jurídica, do anarquismo internacional, concluía que “o anarquismo é, como a ciência moderna, determinista”, Silva Mendes, Socialismo libertario ou anarchismo. Historia e doutrina, ob. cit., p. 351. (7) Vide: François Jacob, O jogo dos possíveis. Ensaio sobre a diversidade: do mundo vivo, ob. cit., p. 104 e ss. (8) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 112.
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mas também recorria ao ensinamento teatral, livresco, etc.. Assim, para
Campos Lima, a greve geral era entendida como sendo o modelo mais eficaz de educação revolucionária porque atingia o meio opressor (a orga-
nização burguesa da sociedade) e, simultaneamente, estimulava os instintos de solidariedade, de ajuda recíproca, de auto-estima, de liberdade, etc.,
no seio da classe operária. A greve educava a consciência moral do oprimido, sobretudo as “grandes greves que fazem o terror dos governos e em que os grevistas proclamam os seus direitos na praça pública e à mão armada”(!). Acima de tudo, pela prática grevista e outras formas de luta no terreno(2), a classe explorada aprendia a “afirmar o seu direito à vida”(2), ou seja, tomava consciência do primeiro imperativo ético de toda a natureza: sobreviver. O direito à vida tinha o sentido primário de direito ao alimento e,foi, justamente,esta a lição moral que A ceia dos pobres(*) procurou difundir. Em A ceia confrontam-se duas posições: a atitude conformista e cúmplice da organização social, protagonizada por um indivíduo deficiente e excluído da sociedade que mendiga o alimento, e o inconformismo representado por um operário, igualmente excluído, que reclama o direito ao pão e ao trabalho. Por isso, o operário recusa o pão mendigado e repudia a pseudo-solidariedade dos mendigos. A sua resposta traduz a consciência do direito ao alimento:
(1) Idem, ibidem, pp. 105-106.
(2) A pedagogia da revolução pela acção directa era o objectivo, por exemplo, da Federação Socialista Livre, conforme se vê em A Era Nova, Coimbra, 1(1) 3 Fev. 1906, p. 3: “Federação Socialista Livre — Devido à iniciativa de alguns libertários de Lisboa, acaba de reconstituir-se a nossa Federação. Tem em vista a acção pelos meios directos, repudiando inteiramente a agitação política e parlamentar”. (é) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 105. (4) Campos Lima,A ceia dos pobres. Contraste à “Ceia dos cardeais”. (Episodio dramatico, em verso), Coimbra, Typographia França Amado, 1906. É uma resposta à obra de Júlio Dantas publicada em 1902. Note-se que o produto líquido da brochura de Campos Lima bem como os direitos de representação revertiam a favor do projecto anarquista,
Escola Livre. Este Episodio Dramático, em verso, foi representado pela primeira vez em Coimbra, no Teatro Príncipe Real, em 17 de Novembro de 1906, por Luciano de Castro, Simões Coelho e Araújo Pereira, respectivamente nos papéis do “Cego, mendigo”, do
“Aleijado, mendigo” e do “Operário sem trabalho”.
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“Ah, meu amigo, é esse o pão da caridade,
O pão que se mendiga, esse pão que se implora Co"a dolorida voz do mísero que chora Em vez de protestar. Eu sou um revoltado Contra o mal social, contra a lei, contra o Estado. Não posso pois comer dum pão assim, não posso”(!). O estado de espírito deste operário que caiu na miséria material, em
virtude do seu activismo grevista, é o de um revoltado libertário. Ele não
pode participar numa ceia que simboliza a resignação, mesmo tratando-se apenas de pão duro. Naverdade, A ceia dos pobres não é uma refeição, mas a partilha de histórias de fome, vividas pelos protagonistas e suas famílias. Na base dessa indentificação comum, A ceia culmina na defesa da fé revolucionária pelo operário: “Ah não, virá um dia em que um sopro fecundo Ainda há-de mudar toda a face do mundo: O dia em que se ouvir vibrante aquela voz
Que a vida anda gritar há muito dentro em nós”(2). A falsa adaptação dos mendigos não está de acordo com as leis naturais, nem com o seu horizonte perfectibilista, ainda que eles possam manter uma vida vegetativa, que é uma sobrevivência ilusória. Em con-
traste com esta imoralidade, a consistência moral do operário, ou seja;:a sua fidelidade às leis da vida, pode converter-se na sua mortefísica. Mas,
para Campos Lima, a recusa do pão da caridade, sendo «til à libertação total da espécie humana da tirania do capital e dos dogmas que ele alimenta, é uma atitude rigorosamente moral.
O que está em jogo na afirmação do direito à vida é também a luta pela descendência e por uma nova moral sexual. Neste âmbito, a pedagogia anarquista travou um violento combate argumentativo contra O princípio malthusiano da população, pois, se este fosse verdadeiro não era possível pôr termo à miséria e, portanto, o ideal libertário seria um contrasenso. Mas, Kropotkine refutou o princípio de Malthus com provas factuais da multiplicação das subsistências. Assim, o aumento da produção não se processa nos termos aritméticos indicados por Malthus, pois, 5
(1) Campos Lima, A ceia dos pobres. Contraste à “Ceia dos cardeais”. (Episodio dramatico, em verso), ob. cit., p. 10. (2) Idem, ibidem, p. 29.
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“actualmente, como o demonstrou Kropotkine, existe o dobro dos produtos agrícolas e o triplo dos produtos industriais precisos para satisfazer as necessidades de toda a gente. (...) O que falta é a sua regular distribuição”(!). O alimento não é, nem será problema: “imagine-se que a totalidade da população se tornava socialmente útil; onde iria o aumento da quantidade das subsistências?(2). Além disso, a química será uma fonte revolucionária de produção alimentar. Deste modo, os autoreslibertários concluem que a ciência malthusiana não vai à raíz do problema social, que reside exactamente na organização da economia fundada na propriedade, tendo em vista o lucro, e não se preocupando com a satisfação das necessidades da população. A doutrina anarquista, além de não aceitar os termos da equação malthusiana, coloca particular empenhonacrítica à sua proposta da moral restraint. No dizer de Ângelo Vaz, os preconceitos religiosos de Malthus impediram-no de distinguir a procriação do amor e, por isso, “à fome de nutrição não soube senão contrapor a fome sexual”(?). Ora, aquela distinção é decisiva, pois, através dela é possível harmonizar as leis da ciência social (a necessidade de controlar a natalidade) e as leis da fisiologia (a necessidade do exercício orgânico do amor), de acordo com os enunciados duma obra anónima que alcançou o maior sucesso, mesmo junto da élite pensante do anarquismo(*). Nessa obra, o médico anónimo demonstrava a necessidade do cumprimento dos imperativos decorrentes das leis das referidas ciências. Segundo a “lei do exercício [lei da fisiologia] a saúde dos órgãos e das emoções da reprodução depende de terem um suficiente exercício normal; a falta deste exercício tende poderosamente a produzir sofrimento e doença tanto no homem como na mulher”(º). Desta lei
decorre o “dever do comércio sexual. É dever de cada indivíduo, homem
ou mulher, exercer as suas funções sexuais, durante o período da vida sexual, evitando igualmente a abstinência e o excesso”(*). Por outro lado, (1) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 48. (2) Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 97.
() Idem, ibidem, p. 100.
(4) Trata-se de Elementos de sciencia social ou religião physica, sexual e natural. Exposição da verdadeira causa e do unico remedio dostres principaes males sociaes. A pobreza, a prostituição, e o celibato, por um Doutor em Medicina, Lisboa, Imprensa Democratica, 1876. Ângelo Vaz cita a 2? edição portuguesa, s.d., traduzida da 31º edição inglesa. Vide: Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 135. (É) Elementos de sciencia social ou religião physica, sexual e natural (...), ob. cit., p. 599. Sublinhado do Autor. (9) Idem, ibidem, p. 600. Sublinhado do Autor,
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das leis da ciência social, designadamente, a luta pela vida agravada pelo aumento demográfico tendencialmente progressivo, o autor extraía “o dever de limitar a procriação. Num país velho, é dever de cada indivíduo, qualquer que seja a sua posição na vida, só lançar no mundo um
É, justamente, de acordo com estas preocupações eugénicas, estabelecidas no quadro duma filosofia da liberdade acrata, sem restrições jurídicas e médicas que Ângelo Vaz defende duas proposições capitais. Segundo a primeira, “não vem longe o tempo em que fazer um filho será um acto duma grande responsabilidade moral e social”"(!); na segunda proposição, o autor advoga que “o princípio darwiniano é a pedra basilar da higiene”(2), no sentido em que, pela selecção natural, o triunfo na luta pela vida cabia à descendência mais qualificada física e psicologica-
pequeníssimo número de filhos”(!). A esta luz, a prevenção moral da
reprodução (moral restraint) proposta por Malthus é recusada pelo anar. quismo, pois traduz-se na miséria sexual que é uma causa directa d enfraquecimento orgânico e psicológico do indivíduo. Os doutrinadores da anarquia que secundavam o neo-malthusia nismo faziam-no por razões que se prendiam com a qualidade física, mora e intelectual das gerações vindouras, e não por causa das supostas limi. tações dos recursos alimentares. Neste sentido, Ângelo Vaz defendia qu o operariado não podia conciliar a quantidade com a qualidade d descendência, em virtude das suas condições reais de existência. Por isso as classes exploradas “em lugar de aumentar em extremo a descendência
criando assim novas bocas famintas, gerando novos concorrentes seu futuros inimigos na luta pela vida, deve coarctar, com o auxílio das práti
cas neo-malthusianas, o grau desmarcado da sua multiplicação”(2) Embora o controlo da reprodução, só por si, não pudesse desencadear mudança da organização social em vigor, era necessário preparar “a for mação duma humanidade nova, vigorosa e pujante na sua vida física mental, graças a uma selecção conscientemente querida e livrement aceite”(3). O neo-malthusianismo não sacrificava o direito ao amor, nem direito à procriação e, ao mesmo tempo, fazia a pedagogia da qualidade No dizer do autor, “a uma prolificação ao acaso, inconsciente e irrefléc tida, procura o Neo-Malthusianismo substituir uma prolificação volun tária, meditada e consciente”(*). Para realizar este desiderato er necessário tomar consciência dos efeitos das circunstâncias mesológicas das condições orgânicas dos progenitores na concepção e na evolução embriológica do futuro indivíduo(”). Importava, pois, aprender a alcançar
uma descendência o mais qualificada possível, adentro das constran gedoras limitações impostas pelo meio.
(!) Idem, ibidem, p. 600. Sublinhado do Autor. (2) Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 106. () Idem, ibidem, p. 107. (4) Idem, ibidem, p. 104. Sobre a história do neo-malthusianismo na Europa e nos EU.A,, vide Paul Leroy-Beaulieu, La question de la population, Paris, Librairie Félix Alcan, 1913, pp. 295-338.
(>) Vide: Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 110 e ss.
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mente.
À consciência higienista, requerida pelo neo-maithusianismo, devia actuar para lá do nascimento e proporcionar ao indivíduo, nas suas diversas fases de crescimento e nas sucessivas idades, “a cultura harmónica de todas as faculdades físicas, intelectuais e afectivas”(?), isto é, “uma boa
educação [que seja] o corolário dum bom nascimento”(4). Estes preceitos neo-malthusianos decorrentes da harmonização das leis da vida orgânica com as leis da evolução social, foram colocados pelo anarquismo ao serviço da pedagogia da liberdade, da solidariedade e da felicidade acratas da espécie humana. Neste sentido, tem de se sublinhar que a pedagogia anarquista repudiava toda a norma de coarctação da liberdade individual, porque encontrava nas leis biológicas o suporte científico do seu optimismo. Não era necessário impor qualquer forma de eugenia negativa porque a selecção natural acabaria por se exercer, colmatando as falhas da consciência higienista. O princípio darwiniano — “there should be open competition for all men” — (?) é lido num sentido amplo, sem fronteiras,
conforme declarava Ângelo Vaz: “casem e unam-se livremente os degenerados e doentes, mas tratem de impedir, pelo uso das práticas neomMalthusianas, que uma possível descendência venha a sofrer as terríveis consequências duma criminosa imprevisão dos pais. Essa resolução deve ser espontânea, imposta apenas pelos dictames da consciência, árbitra única das nossas acções e da nossa vontade”(*). A união e a reprodução, por exemplo, dos alienados, dos tuberculosos ou dossifilíticos não devia ser objecto de impedimentos legais ou médicos, de acordo com o princí-
(!) Idem, ibidem, p. 138.
(2) Idem, ibidem, p. 138. (3) Idem, ibidem, p. 113.
(4) Idem, ibidem, p. 113. Sublinhado do Autor.
(é) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 618. (6) Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 116. Sublinhado nosso.
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como a copulação pio da livre opção(!). Caso as normas neo-malthusianas, vadas pelos indivípreventiva e a estirilidade voluntária, não sejam obser ou adquirida, à duos portadores de uma má hereditariedade congénita . Mais do dência descen sua da ssiva natureza cuidará da eliminação progre livre. amor ao o direit o de defen queo direito ao amor, a doutrina libertária ista: darwin teoria a ção Como concluiu Campos Lima: “então terá aplica tivainstin -se rando triunfarão os mais fortes; por isso, os fracos, procu
sua cada vez maior mente, ir-se-ão extinguindo, obedecendo à lei da e humanaé entregue infecundidade”(2). Deste modo, a evolução da espéci
com os casaà força da atracção natural, bastando, para O efeito, acabar anti-naturais,; mentos por conveniência económica e com todas as uniões o na isto é, sem partilha mútua do sentimento do amor. cientiada credit )é so( amoro to A confiança do anarquista no instin ( >. Mas, esta ficamente pelo recurso à teoria darwiniana da selecção sexual pois é conLima, s Campo fica praticamente irreconhecível na exposição de primeiro Em ção. vertida numa ideia algo metafísica do amor € da concep forte o com lugar, julga que a atracção natural garante a união do “forte za a nature dise do “fraco” com o “fraco”. Em segundo lugar, acredita que para eliminar às põe de mecanismos para extinguir os “fracos” e de meios dos fortes : De características inferiores e perpetuar as melhores qualidades contrários de acordo com a sua suposição, “cumprir-se-á a lei dos que na evoliipois ista, darwin lei da Schopenhauer, que é ainda uma forma das bóas lação assimi nessa ção do feto até se converter num ser vivo pode, name luta a mente unica qualidades de um e de outro dos procriadores, ver-se ( >. ão selecç a assim ral travada contra as más qualidades e operando-se leg é não e, Este argumento serve o optimismo libertário mas, na verdad as de Darwin(º), timo reconhecer nele a luta pela existência entre as gémul sta inglês só não adyo(1) O desvio em relação a Darwin é manifesto. O naturali ariedade: Both sexos heredit da leis as das conheci gava a eugenia negativa por não serem inferior in body or mind; degree marked any in are they if e marriag from ought to refrain partially realised until the laws of but such hopes are Utopian and will never be even descent of man, and selection in The Darwin, Charles . known” inheritance are thoroughly
617-618. relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., pp.
l, ob. cit., p. 65. (2) Campos Lima, O movimento operário em Portuga O = ss. 22e p. ibidem, (3) Idem, — Second sex. to relation in n selectio and (4) Charles Darwin, The descent of man, : o ss. e 556 p. do, sobretu cit., edition (eleventh thousand), ob. ob. cit., P. 46. o (5) Campos Lima, O movimento operário em Portugal, tion de | évolutions L'évolu ion. Vévolut de ion (6) Vide: Denis Buican, La révolut . 167-170 nisme, ob. cit., pp.
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nem a teoria de Weismann da “selecção germinal”, resultante da luta pela existência entre as unidades hereditárias do plasma germinativo(l). No entanto, está nele implícita a ideia, segundo a qual, o que está em jogo no “amor” é de tal modo valioso e decisivo que não tem paralelo com qualquer dos restantes objectivos da vida. Como observou Darwin, recorrendo a um fragmento da filosofia de Schopenhauer, “no excuse is needed for treating this subject in some detail; for, as the german philosopher Schopenhauer remarks, “the final aim of all love intrigues, be they comic or tragic, is really of more importance than all other ends in human life. What it all turns upon is nothing less than the composition of the next generation (...)'”(2). Com esta passagem do filósofo alemão, Darwin sublinhava o valor primordial do seu objecto científico, a saber: a relação entre a selecção sexual e a descendência com modificações, tendo em vista demonstrar a divergência das raças humanas de um antepassado comum, descendente “from a hairy, tailed quadruped, probably arboreae in its habits, and an inhabitant of the Old World”(3). É certo que Darwin teceu considerações sobre a evolução futura da espécie humana, para defender a eficácia suprema da selecção natural. Mas o quadro problemático do cientista não é convertível no propósito libertário de naturalizar o amor pela suposta lei da atracção. O objecto-problema de Darwin é igualmente distinto de qualquer programa de regeneração humana, seja por selecção negativa, seja por via dos higienismos neo-malthusianos, quer estes se apresentem em moldes libertários, quer sejam codificados em lei com carácter imperativo. E, no entanto, Darwin pronunciou-se a favor da
necessidade de não se impedir a selecção positiva nas sociedades civilizadas: “there should be open competition for ali men; and the most able should not be prevented by laws or customs from succeeding best and rearing the largest number of offspring”(4). Em nosso entender, Darwin precisou claramente quem são “the most able”, mas isso não impediu que o anarquismo identificasse os mais capazes com as classes exploradas e que reclamasse para elas o direito ao amor livre e científico, com o fim de gerar uma descendência física, moral e intelectualmente superior que levasse por diante o ideal acrata. (!) Vide: Charles Lenay, “Weismann, August Friederich Leopold 1834-1914”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 3, ob. cit., sobretudo p. 4616. (2) Citado por Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 586.
(2) Idem, ibidem, p. 609. (4) Idem, ibidem,p. 618.
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Com efeito, para Ângelo Vaz, o amor naturalizado não dispensava
a consciência higienista e, por isso, o autor subscrevia inteiramente o relatório da Liga da Regeneração humana ao Congresso libertário de Paris, em Setembro de 1901(!), no qual se defendia que “la procréation guidée parla science est de premier chapitre de Vémancipation”(2), sendo esta concebida como um ideal revolucionário, na óptica acrata.
Outros membros do Núcleo de Educação Anarquista(?) participaram na batalha pedagógica pela disciplina científica do amor e da reprodução. Entre eles, é interessante observar a defesa feita por Alfredo Pimenta
da instrução científica da mulher. Segundo o jovem estudante de Direito, cabia à mulher tomar as providências necessárias para assegurar a higiene física e mental da descendência do futuro casal. Textualmente: “conhecendo os seus antecedentes mórbidos, as taras de que é possuidora tra-
tando, também, de investigar a hereditariedade do futuro esposo, estaria
pronta a apresentar no acto do casamento aquilo a que o Dr. Henri Legrand chama o contrato de saúde”(*). Sobre as vastas implicações concretas deste “contrato de saúde” que, curiosamente, era um corolário de perspectiva hereditarista-seleccionista em patologia mental, sustentada pelo médico alienista francês(”), o nosso autor não se pronuncia. Limita-se
a aventar, quanto a uma das faces da questão — a puericultura — que, “se (1) Vide: Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob.cit., pp. 117-126. Sobre história da Liga da Regeneração humana, vide Paul Leroy-Beaulieu, La question de la population, ob. cit. p. 324 e ss. (2) Ângelo Vaz, Neo-malthusianismo, ob. cit., p. 118. (3) Vide: “Nucleo de Educação Anarquista”, A Era Nova, Coimbra, 1 (1) 3 Fev. 1906, p. [3]; “Nucleo de Educação Anarquista”, 4 Era Nova, Coimbra, 1 (19) 16 Jun. 1906, p. [74]. Em meados de 1906 o Núcleo era composto de vinte e dois membros: “Alfredo Pimenta, terceiranista de Direito; Ângelo Vaz, médico; António Luís Gomes da Silva, quintanista de Direito, Araújo Pereira, actor, com o curso do Conservatório; Bento
Faria, jornalista; Cajo Paulo Prado, estudante de agricultura; Campos Lima, quartanista de Direito; Eduardo d' Almeida, advogado; Emílio Costa, estudante de engenharia, Ernesto Carneiro Franco, segundanista de Direito; Gonçalves Preto, segundanista de Direito; Joaquim José de Oliveira, quartanista de Direito; Joaquim Pinto Ramos, guarda-livros; José Joaquim Ribeiro, farmacêutico; Lopes d'Oliveira, bacharel em Direito e professor do Liceu; Luciano de Castro, actor; Luís Soares, farmacêutico; Manuel d'Oliveira, médico; Romualdo Figueiredo, actor; Rosalina Ferreira, aluna da Academia de Belas Artes de Lisboa; Simões Coelho, actor, com o curso do Conservatório; Tomás da Fonseca,agricultor”, A Era Nova, Coimbra, 1 (19) 16 Jun. 1906,p. [74]. (4) Alfredo Pimenta, “Instrução”, A Era Nova, Coimbra, 1 (12) 28 Abr. 1906, p. 45. Sublinhado do Autor. (5) Vide: Patrick Tort, “Legrand Du Saulle, Henri 1830-1886”. In: Dictionnaire du
darwinisme et de "Evolution, vol. 2, ob. cit., p. 2611.
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substituissem o ensino da doutrina cristã pela puericultura, as igrejas ficariam desertas, mas teriam menos concorrência os hospitais e as cadeias!”(1). Apesar do optimismocientista(2) que, então, perfilhava entusiasticamente, o autor(?) não deixa mesmo entender claramente se as suas preocupações quanto à qualidade da progenitura eram extensivas ao pro-
blema do número(*) de filhos.
Não admira que assim fosse, pois, surpreende-se alguma ambiguidade no pensamento da elite libertária quanto às propostas neo-malthusianas de redução da natalidade. Essa ambiguidade é compreensível a vários títulos. Primeiro, nem todos faziam uma distinção nítida entre a doutrina malthusiana e o higienismo neo-malthusiano e, por isso, reve-
lavam uma atitude despeitada quanto à limitação (voluntária) da descendência(?), mesmo que alguns anarquistas estrangeiros a secundassem, como era o caso do médico anarquista-pacifista francês, Alfred Naquet(). Segundo, o argumento da força numérica do operariado impunha-se à consciência acrata como sinónimo de força social e histórica
(!) Alfredo Pimenta “Instrução”, art. cit., p. 45. (2) Vide: Alfredo Pimenta, A sciencia. Versos. Coimbra, Edição da “Escola Livre”, 1907. Este canto poético à Ciência termina com estes versos: “E ante a Ciência nada se ergue, nada!/ Ninguém pode apagar a sua luz:/ Nem a lâmina fria duma espada,/ Nem a sombra fatídica da Cruz !”, Idem, ibidem,p. 8. () A colaboração de Alfredo Pimenta em A Era Nova não revela uma orientação propriamente revolucionária. Sintomaticamente, nesta fase (pseudo-anarquista) defendia a higiene social pelo imposto progressivo. Vide: Alfredo Pimenta, “O imposto”, A Era
Nova, Coimbra, 1 (2) 10 Fev. 1906, p. [7]; 1 (3) 17 Fev. 1906, p. [11]; 1 (4) 24 Fev. 1906,
p. [14]; 1 (5) 3 Mar. 1906, p. [18]. Também é significativo que não se tenha empenhado na construção dos fundamentos biológicos da moral anarquista. Vide, por exemplo, “Os homens de sciencia e o anarchismo”, A Era Nova, Coimbra, 1 (8) 24 Mar. 1906, pp. [30-33]. (4) Noentanto, A Era Nova trazia nas suas páginas este anúncio: “A greve dos ventres (Meios práticos para evitar as famílias numerosas). Cada exemplar 10 cêntimos. Cada pacote de 50 exemplares, 3 pesetas. Pedidos (acompanhados da respectiva importância) a Amadeu Cardoso da Silva, rua de Trás da Sé, 8 c. Porto”. (5) Vide: “Publicações recebidas. Livros e folhetos. Alfredo Naquet, G. Hardy, Neo-malthusismo y socialismo. Barcelona, Biblioteca Editorial Salud y Fuerza, s. d.”, A Sementeira, Lisboa, 3 (33) Maio 1911, p. 267; “Publicações recebidas. Livros e folhetos.
J. Teixeira Júnior, Mulheres, não procreeis, Lisboa, Biblioteca de Escritores Jovens, s. d.”, A Sementeira, Lisboa, 3 (35) Jul. 1911], p. 282. (6) Vide: Jacques Léonard, “Eugénisme et darwinisme. Espoirs et perplexités chez des médecins français du XIXS siêcle et du début du XXº siêcle”. In: De Darwin au darwinisme: science et idéologie. Congrês International pour le Centenaire de la mort de Darwin. Paris-Chantilly 13-16 Septembre 1982, ob. cit., p. 204.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
capaz de revolucionar o meio social no seu todo(!). Por outro lado, continuavam sensíveis aos argumentos a favor da difusão das práticas neo-malthusianas no mundo do operariado. Neste sentido, em 1911, A Sementeira difundia um excerto da obra de A. Naquet e de G. Hardy, onde se lê que as classes operárias “procriam na miséria seres destinados a todos os infortúnios, seres resignados e brutais, alcoólicos, degenerados, tarados de toda a ordem, incapazes de pensamento e de acção; ineducáveis(...). É impossível chegar ao socialismo, sem previamente propagar entre os proletários os procedimentos anti-concepcionais(...). Sem o neo-malthusianismo, não pode haver mais do que simulacros de solidariedade, mais do que um sindicalismo de fachada, uma cooperação de misérias, aparências de assistência, de educação, uma paródia, infelizmente, de acção revolucionária”(2). É compreensível o dilema dos intelectuais anarquistas que confiavam nos elevados instintos sociais e morais do proletariado, ao serem confrontados com o quadro desolador da sua miséria física, mental e afectiva. Não é, pois, de estranhar que o redactor da recensão da obra de Naquet e de Hardy acabe por não aceitar a ideia segundo a qual o sucesso da revolução exigia o sacrifício parcial do instinto procriador do proletário. Na verdade, as vantagens do aperfeiçoamento da descendência resultantes do controlo da natalidade, não eram óbvias, pois apenaso salto revolucionário mudaria o meio, isto é, justamente, o factor decisivo na modelação dos caracteres. No entanto, o cultivo do higienismo era útil à emancipação de toda a humanidade e não implicava que o anarquismo abdicasse do valor primordial atribuído aos factores mesológicos que condicionavam a evolução dos caracteres, tanto nos progenitores, como na sua descendência. A pedagogia higienista servia um ideal que não era estranho às leis naturais, mas que, pelo contrário, se inscrevia nelas
“a evolução do instinto sexual”(1!), que se tornava possível e necessário lutar pela formação da consciência de perfectibilidade. E se a prossecução plena do aperfeiçoamento da espécie implicava a revolução social, nem por isso deixaram de encontrar vantagens imediatas no modelo instru-
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de raíz, como também advogava Eduardo d' Almeida(?). Era à luz da evolução física, intelectual e moral da espécie humana, incluindo
(1) Vide: “Publicações recebidas. Livros e folhetos. Alfredo Naquet; G. Hardy, Neo-malthusismo y socialismo. Barcelona, Biblioteca Editorial Salud y Fuerza, s. d.”, art. cit., p. 267. (2) G. Hardy, “O neo-malthusianismo prepara o socialismo”, transcrito nã “[Recensão crítica de] Alfredo Naquet; G. Hardy, Neo-malthusismo y socialismó: Barcelona, Biblioteca Editorial Salud y Fuerza, s. d.”, A Sementeira, Lisboa, 3 (33) Maio
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tivista lamarckiano, especialmente na lei do uso do órgãos, neste caso, do
uso da consciência higienista. Se a ideia de revolução não era sustentável pela biologia de Lamarck e de Darwin, embora o saltacionismo neo-darwinista(2) lhe pudesse dar alguma cobertura, já a pedagogia do amor segundo as regras da natureza, codificadas pela ciência, encontrava um razoável apoio no neo-lamarckismo. Neste sentido, Eduardo d' Almeida socorreu-se da teoria de Félix Le Dantec que, sendo “en quelque sorte la résultante du lamarckisme et de la pensée anticléricale des Lumiêres”(2), nem por isso passou ao lado de Darwin(4). Vale a pena apreciar a leitura que o advogado anarquista fez da obra de Le Dantec: “Desenvolvendo as teorias da variação, adaptação e transmissão dos caracteres adquiridos, Le Dantec harmoniza, duma
forma justa e muito interessante, os princípios considerados antagónicos de Lamarck e Darwin”(º) pelos neodarwinistas weismannianos. Sintomaticamente, Eduardo d' Almeida não se detem no problema da aquisição dos caracteres, ou seja, nem se refere à influência directa do meio (Lamarck) nem à aleatoriedade das variações inatas (Darwin). O objecto do seu cuidado era outro. Através do princípio lamarckiano da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos(º), o anarquista português pretendia justificar a utilidade do esclarecimento científico-higienista das classes operárias.
Ora, na sua vasta obra, o biólogo transformista (homem de laboratório), Le Dantec, defendia a lei da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos(?), decorrente do princípio mecanicista (físico-químico) da assimi(!) Idem, ibidem, p. 269. (2) Vide: Denis Buican, La révolution de Vévolution. L'évolution de Pévolutionnisme, ob. cit., pp. 173-174. (3) Patrick Tort, “Le Dantec, Félix Alexandre 1869-1917”. In Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 2, ob. cit., p. 2604. (4) Vide: Félix Le Dantec, La lutte universelle, Paris, Emest Flammarion, Éditeur, 1906; Idem, A luta universal, Lisboa, José Bastos & Ca.-Livraria Editora, 1908. (5) Eduardo d' Almeida, A familia e a evolução social, ob. cit., p. 249. (9) Vide: Idem, ibidem, sobretudo p. 219 e ss.
1911, p. 268.
(7) Le Dantec era adversário da teoria weismanniana da continuidade do plasma germinativo. Vide: Felix Le Dantec, Lamarckiens et darwiniens. Discussion de quelques
do Autor, 1911, sobretudo p. 261 e ss.
théories sur la formation des espêces. Troisiême édition. Paris, Félix Alcan, Éditeur, 1908,
(3) Vide: Eduardo d' Almeida, A familia e a evolução social, Guimarães, Edição
Darwin em Portugal
Parte III — Capítulo 3
lação funcional. Segundo o enunciado da referida lei, “quando um carac-
mútua fosse entendida como um meio eficaz de colaborar com a obra da selecção natural que encaminhava a sociedade para “a conclusão rigorosa das lutas da humanidade”(1), isto é, para o anarquismo.
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ter novo foi verdadeiramente adquirido por um indivíduo, resulta, em todas as células desse indivíduo, uma modificação do património individual. Esta modificação atinge os elementos reprodutores como os outros, Um destes elementos reprodutores desenvolvendo-se, mesmo em circuns-
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tâncias diferentes das que haviam feito nascer, por constrangimento, o
4. O “pecado burguês” do cientismo acrata
esse caracter novo”(!). Com a garantia dada pela assimilação funcional de novos caracteres e pela sua gravação no património hereditário do indivíduo, a pedagogia do amor não seria de todo em todo vã e inútil. Eram duas as ideias fundamentais que importava inculcar, especialmente. na consciência da classe destinadaa libertar toda a humanidade. Em primeiró lugar, “a procriação em certas condições [é] um crime biológico”(2); em segundo lugar, “a educação faz parte integrante da verdadeira completa procriação [pelo que] devemos considerar também um crime biológico e social o abandono da educação doméstica”(?), sobretudo, o ensino da verdadeira moral em contraposição à imoralidade burguesa do egoismo. O instinto altruísta podia e devia ser desenvolvido, pois era da máxima utilidade para a solidariedade revolucionária e para a futura harmonia social acrata. Isto equivale a dizer que se tratava de uma exigência da selecção natural(4), enquanto mecanismo de toda a evolução. O exercício do altruísmo condenava à extinção o instinto individualista-egoista que a sociedade burguesa cultivava, mas não impedia a ansiada emergência da verdadeira individualidade entendida enquanto liberdade na igualdade(”). Assim sendo, compreende-se que também a pedagogia da ajuda
Como vimos, o pensamento libertário defendia que o sucesso da revolução social era garantido pelas leis científicas da história natural, tanto pelas leis lamarckianas que sobreviveram no interior da teoria de Darwin(2), como pelo mecanismo evolucionário propriamente darwiniano, isto é, a selecção natural. Ora, uma parte significativa do darwinismo social, que os anarquistas consideravam “burguês”, não se escudava apenas no núcleo duro da teoria darwiniana, mas recorria às leis de Lamarck
caracter novo do pai, dará nascimento a um filho, no qual se manifestará
pp. 66-89. Recorde-se que a teoria weismanniana foi essencial para o progresso da cientificação da hereditariedade. A distinção entre soma e germen vibrou um duro golpe nó lamarckismo. Vide o artigo “germ plasm”, MacMillan dictionary of the history of science; ob. cit., p. 168. (1) Felix Le Dantec, A sciência da vida. Traducção de José da Camara Manoel. Paris-Lisboa-Rio de Janeiro, Livrarias Aillaud e Bertrand-Livraria Francisco Alves, 1913 (), p. 340. Vide também, Idem, ibidem, p. 203 ess; p. 319ess.
(2) Eduardo d' Almeida, A familia e a evolução social, ob. cit., p. 270. (*) Idem, ibidem,p. 270. (*) Vide: Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit p 46ess. (5) Vide: Elisée Reclus, “O anarchista”, art. cit., p. [27]; vide também António
Gama, “As cidades no pensamento de Elisée Réclus”, A Ideia, Lisboa, (24-25), Inverno» -Primavera 1982, pp. 41-48.
para identificar os mais capazes com os detentores do poder económico,
político, cultural e militar. Nada há de surpreendente no facto de doutrinas
sociais tão diferentes, como o neo-liberalismo de H. Spencer ou o anar-
quismo de Kropotkine, se justificarem pelos mesmos mecanismos evolucionários(), pois, sendo estes abstractos, podiam ser preenchidos com os valores preferidos por cada doutrinador. Mas, quando uma ideologia quer afirmar a sua diferença radical, ela abre brechas na sua identidade ao recorrer a modelos cientistas vinculados a outros ideários sociais. Esta consideração aplica-se à utilização do cientismo de Le Dantec pela ideologialibertária. Com efeito, Le Dantec era muito claro em relação aos valores que perfilhava e, obviamente, defendia-os em nome da biologia. Assim, postulava que “Végoisme et la férocité ont droit de priorité dansnotre nature”(4), de tal modo que, “tout notre vernis d'homme civilisé n'empêche pas qu'en grattant légêrement on retrouve le vieil homme, Vhommedes cavernes”(*). Este enunciado fundamental é apresentado por
Félix Le Dantec como sendo o corolário chave do seu neo-lamarckismo,
(1) Eduardo d” Almeida, “O amor natural”, art. cit., p. 46. (2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., sobretudo p. 606 e ss. () Sobre o carácter ilusório dessa justificação, vide Michele Acanfora, “Détermination biologiqueset justification sociale”. In: Darwinisme et société. Direction de Patrick Tort, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, pp. 89-130. (4) Felix Le Dantec, L'égoisme, seule base de toute société. Étude des déformations résultant de la vie en commun, ob. cit., p. 3. (*) Idem, ibidem, p. 4. Sublinhado do Autor.
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Darwin em Portugal
Parte HH — Capítulo 3
mas diga-se, de passagem, que o instrutivismo de Lamarck não autorizava
Temos de convir que o recurso à teoria biológica de Le Dantec não era o melhor caminho para afirmar a cientificidade do ideário anarquista e, sobretudo, a sua diferença. Mas, o problema maior é que o anarquismo não queria ser diferente, no sentido em que não se auto-concebia como um
semelhante conclusão(!).
O que nos importa é que Eduardo d'Almeida recorreu a Félix Le Dantec para provar que as leis de Lamarck não tinham sido sepultadas pelo neo-darwinismo e que, portanto, era legítimo utilizá-las. No entanto, o autor não cuidou de denunciar a moral do egoismo do eminente biólogo francês e, por isso, o esforço de doutrinação que desenvolveu não foi
muito benéfico para a integridade ideativa do anarquismo. Convém acrescentar que o determinismo biologista de Félix Le Dantec era incompatível com a teoria darwiniana da evolução dos instintos sociais e do senso moral. Por isso, supõe que “la majorité des hommes est restée troglodyte. Elle restera troglodyte encore, malgré les nouveaux vêtements que lui fabrique la science”(2). Além do egoismo, “la biologie ne nous apprend que la nécessité de la lutte, et la noble utopie de la jus tice, pour être ancrée dans la mentalité de "homme, n'a pas de fondement scientifique”(2). Deste modo, a justiça recebe o estatuto de utopia antinatural. Ela não é propriamente nefasta, mas é inútil como a religião. De que serve o ideal de Amor encarnado em Jesus? “Jésus nous a dessiné ce
type idéal de bonté, de charité, de fraternité et d'amour, et, aprês vingt
siêcles, nous le poursuivons encore. En voyant combien il est éloigné de la réalité, nous aurions pu nous demander si cet idéal était viable, et si “Phomme selon le coeur de Jésus-Christ” est capable de se multiplier sur la Terre. La biologie nous apprend qu'il ne le peut pas”(4). Não há equívoco possível: a biologia não pode legitimar a vontade de libertação da humanidade da luta egoista entre os homens e os povos, seja essa vontade reformista ou revolucionária. Os dados estão lançados na ordem natural das coisas que não conhece, nem Deus, nem as utopias dos homens: A questão social é natural e nenhuma ilusão, seja ela religiosa ou política, poderá sobrepor-se às leis da biologia. Não é necessário multiplicar as citações para afirmar a incompatibilidade do cientismo de Le Dantec com os valores da igualdade, da liberdade e da solidariedade que o anarquismo julgava serem biológicos.
(1) Vide: Y. Delage; M. Goldsmith, As teorias da evolução, ob. cit., sobretudo pp. 392 e ss. (2) Felix Le Dantec, L'égoisme, seule base de toute société. Étude des déformations résultant de la vie en commun, ob. cit., p. 7. (3) Felix Le Dantec, La lutte universelle, ob. cit., pp. 284-285. Sublinhado nosso.
(4) Felix Le Dantec, L'égoisme, seule base de toute société. Étude des déformations résultant de la vie en commun, ob. cit., p. 7.
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ideário entre outros. Antes, ambicionava ser o único ideário social que
verdadeiramente decorria das leis lamarckianas-darwinianas da natureza. A este título é oportuno sublinhar que a expressão “darwinismo social” foi inventada por um anarquista, o jornalista Émile Gautier, que, em 1879, a utiliza em conferências realizadas no “Cercle d'études sociales du Panthéon”. Em 1880 reune os textos das conferências em volume que publica com o título Le darwinisme social. Em 1882, a expressão aparece em italiano e, posteriormente, difunde-se em várias línguas(!). A obra de Émile Gautier denota a necessidade que a doutrina anarquista tinha de se afirmar como sendo a fiel intérprete dos corolários sociológicos da revolução darwiniana. A expressão “darwinismo social” é utilizada em dois sentidos antagónicos: um falso e outro verdadeiro, sendo o primeiro cultivado, sobretudo, por E. Hackel e pelos seguidores do seu modelo elitista, e o segundo coincidente com o ideário anarquista. Na óptica de É. Gautier, todos os ideários que transpunham a selecção natural para o domínio da história e da sociedade eram falsos porque o mecanismo evolucionário da civilização era a selecção artificial. Assim, o autêntico darwinismo social
era aquele que se traduzia numa selecção artificial que corrigisse as desigualdades biológicas naturais no sentido da sua igualização, do seu nivelamento e da sua compensação. O seu ideário acrata defendia a selecção artificial da igualdade, da liberdade e da solidariedade contra a
selecção artificial dos privilégios, dos direitos e das vantagens das classes possidentes. Ora, como bem observou o especialista André Béjin, o que preside ao dito verdadeiro darwinismo social é “un pur volontarisme sans fondement biologique”(2), à revelia do intento de É. Gautier.
De facto, a argumentação de Gautier não naturalizava o ideal libertário, mas o que importa reter é que, ao identificá-lo com o verdadeiro darwinismo social, não só o vinculava à biologia de Darwin como ainda
lhe atribuía o estatuto de único ideário social verdadeiramente científico. Se os pressupostos de Gautier foram, em grande parte, ultrapassados, sobretudo pela leitura da teoria darwiniana da evolução dos instintos so(1) Vide: André Béjin, “Les trois phases de V'évolution du darwinisme social en France”. In: Darwinisme et société, ob. cit., p. 354 e ss.
(2) André Béjin, “Gautier, Émile 1853-1937”. In Dictionnaire du darwinismeet de Vévolution, vol. 2, ob. cit., p. 1808.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
ciais feita por Kropotkine, o certo é que a pretensão de corporizar o verdadeiro darwinismo social foi alimentada pelas gerações seguintes. Neste
invasão dosinteresses egoistas com pretexto nas pretendidas deduções da
466
sentido, em 1911, A Sementeira publicava um longo texto da autoria de Yves Delage e de Marie Goldsmith(1), retirado da conclusão da sua obra
Les théories de Vévolution (1909). Esse texto era ideal para reforçar os fundamentos biológicos do anarquismo e para refutar a “afinidade electiva” entre a teoria darwinianae o liberalismo, advogada pelo “falso” darwinismo social(2). Com efeito, Yves Delage era um zoologista de renome
internacional, um teorizador do neo-lamarckismo que secundava a ética dé
Kropotkine(?). Na referida conclusão, Yves Delage ilustrava, com citações da obra darwiniana, The descent of man, a extensão do auxílio mútuo no reino animal e as suas vantagens na luta pela vida. Sinultaneamente, demarcava-se, quer de H. Spencer, em cujo darwinismo via “o desejo de legitimar a ordem social existente”(4), quer de E. Hackel, que apresentara “a teoria da evolução como o melhor argumento contra as aspirações
igualitárias”(º) e, ainda, responsabiliza Wallace pelos “abusos da ideia
seleccionista”(º). Lamarck, Darwin e Kropotkine eram os naturalistas eleitos na conclusão da obra de Yves Delage. Nessas considerações sobre a relação entre a biologiae as ideologias sociais, o autor sublinhava a defesa da solidariedade por Lamarck, o seu inconformismoe a sua luta “contra as desigualdades existentes criadas pela instituição da propriedade e contra a opressão da grande massa pela minoria”(7). Não há dúvida quea publicação do excerto da obra de Yves Delage e M. Goldsmith se inscrevia numa estratégia de afirmação cientista do anarquismo. Para provar esta asserção basta ter em conta um artigo publicado num número anterior de À Sementeira, intitulado “Darwin”(8), no qual se afirma que a partir das releituras da obra de Darwin feitas por Kropotkine e por Yves Delage é M. Goldsmith “as nossas melhores aspirações ganham a força de resistir à
467
ciência” (1). Sem as leituras de Kropotkine e de Yves Delage da teoria dar-
winiana, o ideal acrata ver-se-ia confrontado com um dilema: ou defender a solidariedade e o altruismo à revelia da verdade científica oficial, isto era, do darwinismo de H. Spencer, “le codificateur officiel”(2), ou aproximar os valores acratas do modelo spenceriano(?) para salvaguardar a cientificidade do ideário. Perante este dilema, “como escapar-lhe?(2). A resposta do articulista é firme: “volvendo à direcção indicada por Darwin”(), isto era, reler Darwin, denunciar a falsidade do darwinismo social burguês e recla-
mar a plena harmonia entre a teoria darwiniana e o ideal anarquista, secundando as leituras de Kropotkine e Yves Delage. Mas, nenhum argumento tinha mais peso do que o próprio texto darwiniano. Por isso, A Sementeira publicava também um excerto da obra The descent of man, retirado da tradução portuguesa feita por João Correia d'Oliveira(*). Tanto o título como o corpo do texto correspondem ao original inglês(?), embora a construção das frases nos leve a pensar que João Correia d"Oliveira utilizou a boa tradução francesa de Edmond Barbier(?). O excerto darwiniano em (1) Idem, ibidem, p. 265.
(2) Patrick Tort, “L"effet réversif de J'évolution. Fondements de Vanthropologie darwinienne”. In: Darwinisme et société, ob. cit., p. 44.
() Em 1911, a ética spenceriana circulava em português, numatradução feita a partir duma edição francesa. Cfr. Herbert Spencer, The data of ethics. Second edition, ob. cit.; Idem, Qu'est-ce que la morale? Traduit de Panglais par Desclos-Auricoste. Paris, Libriarie
Schleicher Frêres, 1909; Idem, O que é a moral? Trad. de Barros Lobo (Francisco). Lisboa, Tosé Bastos & C?. Editores, 1910(7). Autonomamente, a parte fundamental da ética spenceriana (a moral e a vida social) foi também traduzida sob o título A Justiça, a partir duma versão francesa. Cfr. H. Spencer, A justiça. Versão de Augusto Gil. Paris-Lisboa-Rio de Janeiro, Livraria Aillaud e Bertrand-Livraria Francisco Alves, s. d.; Idem, Justice. Traduit
(1) Vide: Y. Delage; M. Goldsmith, “O darwinismo”, A Sementeira, Lisboa, 3.(35) pp. 279-280; 3 (36) Ago. 1911, pp. 291-292. 1911, Jul. (2) Vide: Michael Lôwy, “L'affinité élective entre social-darwinisme et libéralisme. L'exemple des Etats-Unis à la fin du XIXº siêcle”. In: Darwinisme et société; ob.cit., pp. 161-167. (3) Vide: Jean-Louis Fischer, artigo “Delage, Yves Marie 1854-1920": En: Dictionnaire du darwinismeet de V'évolution, vol. 1, ob. cit., pp. 1160-1164. (4) Yves Delage; M. Goldsmith, As teorias da evolução, ob. cit., p. 398.
() Idem, ibidem, p. 390.
(9) Idem, ibidem,p. 396. (7) Idem, ibidem, pp. 392-393. (8) “Darwin”, A Sementeira, Lisboa, 3 (33) Maio 1911, pp. 264-265.
par M. E. Castelot. Troisiême édition, Paris, Guillaumin et Cie. 1903.
(4) “Darwin”, art. cit., p. 265. () Idem, ibidem,p. 265.
(6) Vide: Charles Darwin, A origem do homem. Traducção synthetisada de João Corrêa d'Oliveira. Porto, Magalhães & Moniz-Editores, 1910(7). (7) Vide: Charles Darwin, “O homem, animal sociavel”, A Sementeira, Lisboa, 3
(33) Maio 1911, p. 265; Idem, A origem do homem, ob. cit., pp. 84-86; Idem, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., pp. 108-110. Trata-se do parágrafo intitulado “man a social animal” do capítulo IV, que trata da “comparison of the mental powers of man and the lower animals”. (8) Vide: Charles Darwin, La descendance de "homme et la sélection sexuelle. Traduit par Edmond Barbier d'aprês la seconde édition anglaise revue et augmentée par Pauteur. Préface par Carl Vogt. Paris, Editions Complexe, s. d., vol. 1, pp. 115-117. Esta
Darwin em Portugal
Parte IH — Capítulo 3
causa admitia que o homem civilizado tinha herdado dos seus ascendentes mais remotos “um certo grau de amizade instintiva e de simpatia para com os seus semelhantes(...) uma tendência para ser fiel aos seus companheiros, qualidade essa que é comum à maioria dos animais sociáveis”(1). Embora Darwin postulasse que o homem não possui “instintos especiais(special instincts) de ajuda recíproca, admitia nele alguma “tendência” (impulse) para isso, desde que o bem estar individual não fosse contraria-
acautelar a distância entre o autoritarismo elitista de Hackel e o ideal
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do. Na verdade, Darwin não advoga que a solidariedade é o instinto social
que melhor traduz a natureza do homem,pois, por detrás da ajuda mútua encontra sempre os “próprios e egoistas desejos”(2) de cada indivíduo, “his own strong selfish desires”(2). No entanto, acrescentava: “à medida que os sentimentos de amizade e simpatia e que a faculdade do império sobre si mesmo se fortalecem pelo hábito; à medida que o poder do raciocínio se torna mais lúcido(...) vai sentindo a obrigação de adoptar determinadas regras de conduta, independentemente do prazer ou do des gosto que isso lhe cause”(?). A doutrina acrata lia nesta e noutras passagens da obra darwiniana que o impulso natural para a cooperação solidária, sendo vantajoso, podia fortalecer-se, ao mesmo tempo que o egoismo seria eliminado pela selecção natural. Esta leitura era abusiva mas, nem por isso, permitiu ultrapassar a ambiguidade que caracterizava o relacionamento da doutrina libertária com a teoria de Darwin. Deste modo, é significativo que no artigo “Darwin”(?), após uma breve exposição biográfica do naturalista inglês, o redactor subscreva a exaltação da obra e da figura de Darwin feita por Hackel na sua Origem do Homem, traduzida em 1908(9), sem edição reproduz a de 1881 (3º ed. francesa) publicada em Paris, Chez C. Reiwald & Cie.,
469
acrata de emancipação libertária da sociedade. No entanto, à data, as
fontes de informação directa eram abundantes, mesmo em língua por-
tuguesa(!).
Quesignificado atribuir ao recurso feito pelo pensamento libertário
aos nomes e às obras de Félix Le Dantec e de Ernst Hackel, quando daí
não lhe advinha qualquer vantagem para a afirmação da sua diferença? Esta questão tem várias respostas possíveis. Entre elas, a nosso ver, a mais convincente foi dada metaforicamente em 1922 por Fernando Pessoa no seu longo argumento, intitulado, O banqueiro anarquista(?). Para se libertar das “ficções sociais”, o dito verdadeiro anarquista serviu-se de um processo que dizia ser, simultaneamente, teórico-científico e prático, e que consistia em subjugar essas ficções, mormente a ficção do dinheiro: “trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais, lutei mais, ganhei mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim. Não olhei a processos — confesso-lhe, meu amigo, que não olhei a processos; empreguei tudo quanto há — o açambarcamento, o sofisma financeiro, a própria concorrência desleal. O quê?! Eu combatia as ficções sociais, imorais e antinaturais por excelência, e havia de olhar a processos?! Eu trabalhava pela liberdade, e havia de olhar às armas com que combatia a tirania?!"(2). Somos, pois, levados a admitir que a subjugação da ciência, dita “burguesa”, foi um processo utilizado pela elite pensante do anarquismo para se libertar da tirania das ficções que pesavam sobre os mais desfavorecidos na luta pela vida. Kropotkine subjugara a teoria darwiniana ao ideal acrata. Mas os
intelectuais menores do anarquismo internacional foram bem mais longe, reivindicando, para a sua esfera ideológica, entre outros escritores,
Dickens e Tolstoi, além de um largo conjunto de cientistas da natureza e
Libraires-Éditeurs.
(!) Charles Darwin, “O homem, animal sociavel”, art. cit. p. 265.
(2) Vide: Idem,ibidem,p. 265.
(3) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 110. Sublinhado nosso. (*) Charles Darwin, “O homem, animal sociavel”, art. cit., p. 265. No texto original lê-se: “But as love, sympathy and self-command becomestrengthened by habit, and às the power of reasoning becomes clearer, so that man can value justly the judgments of his fellows, he will feel himself impelled, apart from any transitory pleasure or pain,to certain lines of conduct”, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 110.
() “Darwin”, art. cit., pp. 264-265.
(6) Vide: Emst Heckel, Origem do homem. Traducção de Fonseca Cardoso. Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão, 1908. Utilizamos a 3º edição, Porto, Livraria Lello & Irmão, Editores, 1948, p. 23 e ss.
(1) Vide: Ernst Hackel, Os enigmas do universo. Tradueção de Jayme Filinto. Porto, Livraria Chardron, de Lelio & Irmão, 1908; Historia da creação dos seres organisados segundo as leis naturaes. Traducção de Eduardo Pimenta. Porto, Livraria
Chardron, de Lello & Irmão Editores, 1911; Maravilhas da vida. Estudos de philosophia biologica para servirem de complemento aos “Enigmas do universo”. Traducção de João de Meira. Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão, 1910; O monismo. Laço entre a religião e a sciencia. (Profissão de fé dºum naturalista). Tradução de Fonseca Cardoso, Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão 1908; Origem do homem. Traducção de Fonseca Cardoso. Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão, 1908; Religião e
evolução. Traducção de Domingos Ramos. Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão,
1908.
(2) Vide: Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista, Lisboa, Ulmeiro, 1994.
() Idem, ibidem, pp. 49-50.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
da sociedade queincluía o darwinista liberal Herbert Spencer(!). Em nome do livre exercício da inteligência, sacrificaram a clarificação do seu ideal. A este propósito é também elucidativo o programa de educação intelectual das gerações mais novas, elaborado por Manuel d'Oliveira é publicado nas Folhas volantes de propaganda das Escolas livres(2). A originalidade deste programa relativamente à mundividência cientista 6,
monista(!). Assim, no dizer de Haeckel, a lei mecanicista de substância
470
em especial, ao monismo hackeliano perfilhado, entre nós, por Miguel Bombarda(), em moldes teometafisicófobos, é praticamente nula,
Vejamos como o programa confirma a nossa afirmação: “Conhecimento geral do meio cósmico; matéria e força; formas determinadas de matéria; estados gasoso, líguido e sólido; transformações recíprocas dos corpos:
Conclusão lógica: indestrutibilidade da matéria./Matéria inorgânica; orgânica e organizada; sua identidade fundamental; suas diferenças apenas
de grau; coexistência de matéria e força. Conclusão lógica: inseparabilidade dos fenómenos psíquicos(alma) da matéria nervosa./ Corpos celestes; pluralidade dos mundos;(...) Demonstração dos erros geocêntrico “e antropocêntrico./ História geral da terra; idade provável! do planeta quê habitamos; (...) estudo do Pithecantropus erectus, verdadeiro intermediário entre o homem e os outros mamíferos superiores. Demonstração da falsa ciência dos livros sagrados. (...) Impossibilidade de harmonizar a
Bíblia com a ciência./ Anatomia comprada e noções de fisiclogia geral; lei de adaptação; influência do meio sobre as propriedades gerais da matéria viva; hereditariedade e determinismo biológico. Noções gerais de fisiológia humana: natureza material da alma. (...) / Demonstração dos erros de
finalidade, teológico e antropomórfico”(4). Tal como neste programa,a lei da conservação da matéria (Lavoisier, 1789) e a lei da conservação da força (Mayer, 1842; Helmholtz, 1847) reunidas na “lei suprema de conservação da substância” foram elevadas a primeiro princípio da religião (1!) Vide: Silva Mendes, Socialismo libertario ou anarchismo. Historia e doutrina, ob.cit.,p. 143ess.;p. 197ess.. (2) Vide: Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 126. (*) Vide: Miguel Bombarda, Traços de physiologia geral e de anatomia dos tecidos. Programa da Fºparte do curso da 2º cadeira da Escola Medico-Cirurgica de Lisboa; Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891, sobretudo pp. 4-40; Idem, Estudos biologicos. A consciencia e o livre arbitrio, Lisboa, Antonio Maria Pereira, 1898; Idem, A biologia na vida social, ob. cit.. Neste último trabalho Bombarda considera que Os enigmas do universo de Ernst Hackel constituem “O evangelho do homem futuro” (ibidem, p. 7) e cita a primeira edição alemã Die weltráithsel. Gemeinverstándliche Studien úiber monistische Philosophie, Bonn, E. Strauss, 1899, 473 p. (Idem, ibidem).
(4) Vide: Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob.cit., p. 125.
471
“tem um valor absolutamente universal, tanto no domínio da natureza como no do espírito — sem excepção! — Mesmonas mais altas funções intelectuais(representação e pensamento) o trabalho das células nervosas eficientes está tão necessariamente ligado às mudanças naturais da sua substância (plasma nervoso), como em qualquer outro processo natural a força e a matéria estão ligadas uma à outra”(2). No programa do
jovem anarquista, note-se que, por duas vezes, se afirma a natureza físico-
-química da “alma”. Esse foi um dos maiores combates que Miguel Bombarda travou(?) em defesa da unidade ontológica do materialismo mecanicista. Na verdade, esta Weltanschauung totalitária que Haeckel con-
verteu em religião é assumida pelo programa anarquista sem quaisquer reservas críticas. Assim,o referido programa além de insistir na “natureza material da alma”, exclui qualquer hipótese de emergência do vitalismo, mesmo o de tipo imanentista (“erros de finalidade, teológico e antropomórfico”). Não admira, pois, que nas suas teses apresentadas à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Manuel José d'Oliveira, sustentasse no âmbito
da disciplina de Histologia e Fisiologia Geral que “a imortalidade da alma só pode admitir-se em ciência como expressão genérica da continuidade do plasma germinativo”(*), evidentemente, garantida pelo facto biológico da reprodução. Por conseguinte, não temos dúvidas que o jovem anarquista subscrevia inteiramente estas palavras de Hackel: “Hoje, sabemos que a luz da chama é um conjunto de vibrações eléctricas do éter e a alma um conjunto de vibrações do plasma das células ganglionares”(?). (1) Vide: Emst Heckel, O monismo. Laço entre a religião e a ciência (Profissão de fé de um naturalista). 3º ed.. Tradução de Fonseca Cardoso. Porto, Livraria Lello & Irmão, 1947, p. 82. Idem, Os enigmas do universo. Tradução de Jaime Filinto. Porto, Lello & Irmão, 1961, pp. 265-290. Vide também Luís Biichner, Força e matéria ou princípios da ordem natural ao alcance de todos. Com umanotícia biobibliográfica à décima sétima edição alemã por Vítor Dave. Versão de Jaime Filinto. Porto, Lelo & Irmão-Editores,
1958, pp. I-Il1.
(2) E. Heckel, Os enigmas do universo, ob. cit., p. 480. Sublinhado do Autor. (3) Vide: Miguel Bombarda,sobretudo: Estudos biologicos. A consciencia e o livre
arbitrio, ob. cit.; Idem, “Os neurones e a vida psychica”, Jornal da Sociedade das
Sciencias Medicas de Lisboa, Lisboa, 61 (5-6) Maio - Jun. 1897, pp. 129-180; Idem, A sciencia e o jesuitismo: replica a um padre sabio, ob. cit.. (4) Manuel José d'Oliveira, O problema de Lombroso. Estudo critico de bio-sociologia sobre a theoria atavica do crime, ob. cit., p. 125. (5) Ernst Heckel, O monismo. Laço entre a religião e a ciência (Profissão de fé de um naturalista), 3º ed., ob. cit., p. 90; vide também, Idem, Origem do homem, 3º ed, ob. cit., p. 40 e ss.; pp. 100-101; Idem, Anthropogénie ou histoire de V'évolution humaine. Le
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Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
À arquitectura do referido programa anarquista reproduz a sistemática evolucionista onto-gnoseológica típica do monismo materialista. Nela se inscreve a genealogia darwiniana da espécie humanae a sua naturalização integral que o programa sublinha referindo-se mesmo ao pithecantropus (1). Além disso, o autor justifica a validade pedagógica do programa, pela lei biogenética da recapitulação(2) abreviada da filogenia pela ontogenia. Nos próprios termos do autor: “como o indivíduo é, desde a vida embrionária até à adolescência, uma recapitulação de todas as fases por que passou na escala animal desde as espécies inferiores até à raça actual,
ma a lei da adaptação, a influência do meio, a hereditariedade e o determinismo biológico, tendo omitido uma referência explícita à lógica propriamente darwiniana do evolver: variação; luta pela vida; selecção natural. Contudo, à semelhança da posição hackeliana, não era exactamente a teoria de Darwin que o autor recusava, mas sim o neo-darwi-
será esse, no que diz respeito ao desenvolvimento do cérebro e suas
funções o método pedagógico natural, que,aliás, é directamente demonstrável pela observação”(2). O recurso a esta lei, que Heeckel redefiniu e considerou como sendo a lei fundamental da evolução orgânica(4), denota que o jovem anarquista segue a perspectiva neo-lamarckiana nos domínios da biologia e da antropologia. Com efeito, na referida lei, a história individual do organismo recapitulava a história evolutiva da sua espécie, justamente porque se postulava a hereditariedade dos caracteres adquiridos(*). Não é por acaso que o nosso autor inscreveu no seu progragons familiêres sur les principes de "'embryologie et de la phylogénie humaines, ob. cit., pp. 607 e ss.; Idem, “Algumas palavras a proposito da immortalidade da alma”, Almanach Encyclopedico Ilustrado para 1908, Coordenadopelo professor Agostinho Fortes, Lisboa,
1908, pp. 225-226; Idem, Os enigmas do universo, ob. cit., pp. 111-263. L. Bichner, Força
e matéria ou princípios da ordem natural ao alcance de todos, ob. cit., pp. 346-365.
(!) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob.cit. pp. 155-165; Ernst Hckel, Anthropogénie ou histoire de Vévolution humaine(...), ob. cit. p. 434; História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais, ob. cit., pp. 487-536. (2) Vide: Robert J. Richards, The meaning of evolution. The morphological construction and ideological reconstruction of Darwin's theory, Chicago, The University of Chicago Press, 1993, pp. 167-180; Georges Canguilhem e outros, Du développement à
Pévolution au RIXº siêcle, ob. cit., pp. 39-51.
(2) Vide: Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 126. (*) Vide: Ernst Hackel, Anthropogénie ou histoire de Pévolution humaine (...), ob. cit., pp. 1-15; pp. 606-625. Eis a fórmula da lei biogenética fundamental: “La série des formespar lesquelles passe l'organisme individuel,à partir de la cellule primordiale jusqu'à son plein développement, n'est qu'une répétition en miniature de la longue série de transformations subies par les ancêtres du même organisme, depuis les temps les plus reculés Jusqu'à nos jours”. Idem, ibidem, p. 5. Esta lei é ditafundamental porque possibilita a construção duma Antropogenia (1874) destinada a rematar o sistema monista. Vide: Georges Canguilhem e outros, Du développement à Vévolution au XIXe siécle, ob. cit., p. 40 e ss.
(º) Vide: Georges Canguilhem e outros, Du développement à ['évolution au XIXº
siecle, ob. cit., p. 40 e ss; Ernst Hackel, Anthropogénie ou histoire de Vévolution hu-
473
nismo exclusivamente seleccionista de A. Weismann(!). Este não convinha
a Hackel porque significava a ruína da sua antropogenia, fundada na lei biogenética fundamental que, por seu turno, se alicerçava noprincípio lamarckiano da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos. Para
defender a integridade do seu sistema monista, Haeckel colocou-se ao lado
de Spencer(?) na longa controvérsia que o filósoio inglês travou com Weismann, entre 1893 e 18970), precisamente sobre a hereditariedade dos
caracteres adquiridos. Hackel recusava o determinismo germinal e advogava o poder modelador do meio e da educação sobre o indivíduo e a sua descendência. Contra o seleccionismo weismanniano, Hackel permanecia “lamarckien et sélectionniste, ainsi que Vétait le nom moins énorme
. o Spencer”(*) e, entre nós, Miguel Bombarda(”). como eu, Hackel: próprio do testemunho Vale a pena registar um plasma do teoria a Spencer, desde o começo, combateu vigorosamente proWeismann de teoria germinativo de Weismann (...). Em Inglaterra,a
duziu um grande sucesso, opondo-se sob o nome de 'neo-darwinismo” à
maine (...) ob. cit., p. 5 e ss; Idem, Maravilhas da vida. Estudos de philosophia biologica, para servirem de complemento aos enigmas do universo. Traduzidos por João de Meyra. Porto, Lello & Irmão-Editores, s. d., p. 353 e ss.; Idem, O monismo. Laço entre a religião e a ciência (Profissão de fé de um naturalista). 3º ed., ob. Cit., p. 80.
(1) Vide: August Weisman, Essais sur | “hérédité et la sélection naturelle, ob. cit.,
pp. 121-156.
o
2»
(2) Vide: Herbert Spencer, “L"insuffisance de la “sélection naturelle , ensaio publicado pela primeira vez em 1893, em The Contemporary Review. Publicado em francês juntamente com outros ensaios de Spencer, na obra Problêmes de morale et de . sociologie, ob. cit., pp. 287-376. In: Allemagne”. en social darwinisme “Le ch, (3) Vide: Britta Rupp-Eisenrei Darwinisme et société, ob. cit., p. 206 e ss. (4) Idem, ibidem, p. 209. Sublinhado do Autor.
==
(5) Miguel Bombarda, na sua exposição das teorias da hereditariedade em vigor no final do século XIX, incluindo a teoria do plasma germinal de Weismann, opta pela hipótese das gémulas de Darwin pois ela salvaguarda a herança das qualidades adquiridas. Vide: Miguel Bombarda, Traços de physiologia geral e de anatomia dos tecidos. Programa da 1º parte do curso da 2º cadeira da Escola Medico-Cirurgica de Lisboa, ob. cit., sobretudo pp. 37-40. Vide: Charles Darwin, The variation of animais and plantsunder domestication. (A reprint of the second editon, London, John Murray, 1885), ob. cit., pp. 349-399.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
nossa concepção dos fenómenos evolutivos que era caracterizada de “neo-
Universidade Livre intitulada Aparecimento da vida sobre a terra. De
474
lamarckismo”. Estas designações não são bem justificadas; Carlos Darwin estava também tão convencido do grandíssimo valor da hereditariedade
progressiva [transmissão das qualidades adquiridas] como o seu grande
precursor João Lamarck e como Herbert Spencer. Por três vezes tive a felicidade de visitar Darwin em Downe de cada vez, tivemos, acerca desta questão fundamental, opiniões completamente concordantes”(!). O certo é
que Hackel, apesar da sua pretensa fidelidade a Darwin, extraía da sua religião monista corolários eugenistas(2) e anti-democráticos. Compreende-se, pois, como era equívoca a legitimação biológica dos valores
acratas, pelo recurso às leis, atrás referidas, do sistema hackeliano.
Por outro lado, é manifesto que o referido programa anarquista opõe sistematicamente a Weltanschauung transformista-monista à Weltanschauung criacionista-dualista, em moldes muito próximos daqueles que definiram a militância anti-teológica e anti-clerical de Heeckel, de Biichner e outros, com especial relevo, entre nós, para Miguel Bombarda.
Compreende-se que esse tenha sido também um combate assumido pelos
475
facto, o combativo autor, na altura ex-anarquista e deputado republi-
cano(!), abordou a história da terra e o transformismo das espécies no quadro do materialismo cientista. Ora, é significativo que o eminente pedagogo anti-clerical atribua a primazia ao meio no processo evolucionário(2). Na obra que dá à estampa em 1913, e que inaugura a Biblioteca d'Ensino Popular, torna-se mais nítida a valorização dos factores
mesológicos. Neste sentido, o autor, invocando Lamarck e Darwin, con-
sidera que o meio foi o elemento decisivo na origem e na evolução da vida(), e reserva mesmo um capítulo para abordar as “influências do meio”(4). É notório que o autor opta pelo neo-lamarckismo de Félix Le Dantec, mas também se socorre de Hackel(”), razão pela qual aborda em termos, muito simples, mas críticos, a teoria de Weismann(º) e o mutacionismo de Hugo de Vries(?). Sobre o ideal higienista e eugenista de Hackel e sobre a moral natural do egoismo físico-químico de Félix Le Dantec, o silêncio é regra. Porém, tanto as obras principais de Ernst Hackel como algumas obras de Félix Le Dantec(8) circulavam, à data, no
libertários e, por isso, não causa surpresa que O jovem Alfredo Pimenta tenha traduzido, em 1912, uma obra capital de Ludwig Biichner, o médico
e livre pensador (materialista) que abraçou o monismo(?). Tratava-se justamente de O homem segundo a ciência (1869)(*). Também em 1912, Tomás da Fonseca proferiu uma lição no curso de educação popular da (1) Emst Hackel, Origem do homem, 3º ed., ob. cit., p. 79. Recorde-se que-a
primeira edição portuguesa data de 1908. O original alemão data de 1898 e a primeira tradução francesa de 1900. Vide: Patrick Tort, “Hackel — Liste chronologique des travaux publiés”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution,vol. 2, ob. cit., p. 2119. (2) A historiografia internacional tem demonstrado que o darwinismo social ger-
mânico, particularmente o hzckeliano da Liga Monista fundada em 1906, militou pela
higiene-cugenia social e racial. É ponto assente que “Hitler did not invent national socialist biopolicy”, Vernon Reynolds e outros, The sociobiology of ethnocentrism. Evolutionary dimensions ofxenophobia, discrimination, racism and nationalism, London-Sydney,
Croom Helm, 1987, p. 253. Vide: Idem, ibidem, sobretudo pp. 258-267; vide também: Paul Weindling, Health, race and german politics between national unification and nazism 1870-1945, ob. cit., sobretudo p. 131 e ss.; p. 291 e ss.; Pat Shipman, A evolução do racismo, s.l., Círculo de Leitores, 1996, pp. 92-93; 111-128; Miguel Baptista Pereira, “Modernidade, racismo e ética pós-convencional”, art. cit., sobretudo pp. 24-29. (3) Vide: Britta Rupp-Eisenreich, Patrick Tort, “Biichner, Ludwig 1824-1899”. Mm:
(!) Vide: António Pedro Pita, “O poder de saber — competência e cultura nas universidades republicanas de educação popular”, Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, (27-28), Jun. 1989, p. 255. Sobre as Universidades populares na Primeira República vide também Vítor de Sá, “Universidades populares na 1* República”. In: Universidade(s) - História. Memória. Perspectivas. Actas do Congresso “História da Universidade” (No 7º Centenário da sua fundação), Coimbra, Comissão Organizadora do Congresso “História da Universidade”, 1991, vol. 1, pp. 471-476. (2) Vide: Tomás da Fonseca, Aparecimento da vida sobre a terra., Lisboa, Universidade Livre, 1912, p. 16 e ss. (3) Vide: Tomás da Fonseca, À origem da vida, ob. cit., p. 42 e ss.
(4) Vide: Idem, ibidem, pp. 56-63.
(5) Tomás da Fonsecacita a tradução portuguesa de Hackel, Historia da creação dos seres organisados segundo as leis naturaes, 1911, ob. cit.. (9) Vide: Tomás da Fonseca, A origem da vida, ob. cit., pp. 56-63.
(7) Vide: Idem, ibidem, pp. 50-55.
(8) Da autoria de Félix Le Dantec, em 1913, encontravam-se traduzidas: O atheismo. Tradução de Faustino da Fonseca. Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1907; O conflicto. Palestras philosophicas. Traducção e prefacio de João de Barros. Lisboa, Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso, 1905; O egoismo, unica base de todas as sociedades. Estudos das deformações que resultam da vida em comum, Paris-Lisboa-Rio
Dictionnaire du darwinisme et de V' évolution, vol. 1, ob. cit., pp. 450-453.
de Janeiro, Livrarias Aillaud e Bertrand-Livraria Francisco Alves, s. d.; As influencias
portuguez segundo a traducção franceza de Letourneau por Alfredo Pimenta. Porto,
Tavares Cardoso, 1908; A luta universal, Lisboa, José Bastos & Ca.-Livraria Editora, 1908; A “mecânica” da vida. Tradução de Cândido Garcia Reis. Lisboa, Livraria Aillaud e Bertrand, s. d. (19137); A sciência da vida, ob. cit..
(4) Vide: Luís Búchner, O homem segundo a sciencia. O seu passado, o seu pree sente o seu futuro ou d'onde vimos? quem somos? para onde vamos? (...). Vertido para Livraria Chardron, 1912.
ancestraes. Traduzido e prefaciado por João de Barros. Lisboa, Livraria Editora Viuva
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 3
mercado livreiro em língua portuguesa. E o que é mais curioso (para não dizer estranho) é que, entretanto, o optimismo “libertário” de Tomás da Fonseca continuava vivo(!), encontrando-se plasmado nareferida obra de 1913 que, de facto,visa a reconstrução cientista da moral. Assim, no capíftulo intitulado “Nosce te ipsum”(2), que traz em epígrafe um excerto de uma obra de Elisée Reclus, o autor postula que a consciência da origem inferior-animal do homem liberta-o da escravatura dos dogmas religiosos e político. Em seu entender, é esse conhecimento científico que cria condições morais para a plena emancipação do indivíduo e da sociedade; de acordo com o ideal de fraternidade e de justiça social(?). Félix Le Dantec dizia precisamente o contrário. A consciência da animalidade originária do homem podia fazer saltar o verniz da civilização e agravar os efeitos inevitáveis do egoismo. Por isso, julgava que a humanidade nada tinha a perder continuandoa alimentar as ilusões morais
social? Talvez seja a lógica do verdadeiro anarquismo (teórico e prático) protagonizado pelo banqueiro pessoano. Se assim é, a cultura anarquista construia-se em moldes não muito diferentes da prática anarquista do “banqueiro, grande comerciante e açambarcador notável”(!) que, ao recapitular a sua libertação, afirmava: “Pela centésima vez lhe repito: só a revolução social pode destruir as ficções sociais; antes disso, a acção anarquista perfeita, como a minha, só pode subjugar as ficções sociais”(2).
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Do mesmo modo, enquanto a ciência não entrasse no caminho da verdade
dita acrata, impunha-se colocá-la ao serviço da libertação revolucionária da humanidade. E, um pouco à semelhança do lúcido anarquista pessoano, que se libertou da tirania do dinheiro, enriquecendo, a luta libertária justi-
ficava a subjugação da ciência(?) à revolução e à moral anarquistas. Libertar-se da tirania da “ciência burguesa” significava retirar dela toda a mais-valia possível (e impossível), sem constrangimentos processuais.
e religiosas — “erros”, do ponto de vista do seu “ateismo científico”. Mas
também nada de substancial tinha a ganhar porque, na vida real das sociedades e das nações, as leis biológicas triunfariam sempre sobre os dogmas religiosos e sobre os imperativos categóricos. Tudo o que foi dito redobra o sentido da nossa interrogação (ou perplexidade?!) e da consoladora resposta que o anarquista pessoano nos dá. A estratégia cultural do anarquismo visava “destruir as ficções sociais”(4), como dizia o “banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa. Ora, a ciência era considerada uma instituição social burguesa, tão opressora como as demais, porque também estava condicionada, em particular, pelos interesses das classes dominantes e, em geral, pela “acção dissolvente das condições do meio”(?). Assim sendo, faz sentido relançar a pergunta: que lógica assiste à necessidade de legitimarcientificamente os valores da solidariedade, da igualdade, da liberdade acratas e mesmo da revolução (!) Em 1919 são palavras de Kropotkine aquelas que o activista-pedagogo coloca em epígrafe no rosto das suas Memorias do carcere: “Mostremos que nos estamos defendendo até à morte”, Tomás da Fonseca, Memorias do carcere (Subsidios para a Historia Contemporanea), Coimbra, França & Armenio Livreiros editores, 1919.
(2) Vide: Tomás da Fonseca, A origem da vida, ob. cit., pp. 87-89.
(3) É interessante notar que a crença nos efeitos morais da tomada de consciência da origem animal do homem fora alimentada pelo anti-libertário Costa Ferreira, em “A theoria genealogica do homem e sciencia social”, A Social, Coimbra, 1 (1) 9 Jan. 1897, pp. 4-6. (*) Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista, ob. cit., p. 51. Sublinhado do Autor. () Campos Lima, O movimento operário em Portugal, ob. cit., p. 26.
(i) Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista, ob. cit., p. 7. (2) Fernando Pessoa, O banqueiro anarquista, ob. cit., p. 51. Sublinhado do Autor.
() Vide: Bento Faria, “A revolução pela sciencia”, A Obra, Lisboa, 7 (318) Mar. 1901, p. 1; Idem, “A moral scientifica”, A Obra, Lisboa, 8 (398) Set. 1902, pp. 1-2.
CAPÍTULO 4 Minerva contra Eros: ressonâncias eugénicas em Portugal “a vida triunfa das crenças, de Deus, de tudo, porque a única crença verdadeira e santa, o único deus que existe, é a vida — a Vida”(!)
1. Contornos da problemática eugénica Apesar da sua fé na selecção natural, Hackel observava, em 1868,
que “milhares e milhares de mancebos sãos e vigorosos, os melhores da
sua geração”(2) eram sacrificados nos camposde batalha. A selecção militar e outras selecções negativas e artificiais eram praticadas e aceites por uma civilização que se dizia humanitária. Ora, para Hackel, esse humanismo era falso e paradoxal, na medida em que desprotegia os mais capazes
e favorecia os menos aptos. Neste sentido, o autor também reprovava a
abolição da pena de morte por entender quese tratava de uma medida que conduzia ao agravamento dos riscos de propagação da má hereditariedade e das tendências criminosas. Em suma, o autor concluía que a civilização, em nome de valores contrários à ordem natural das coisas, preferia os male-
fícios das “ervas daninhas e parasitas”(2) ao seu extermínio de raíz e consequente florescimento dos organismos saudáveis e úteis. Por outro lado, Hackel reflectia sobre as vantagens perfectibilistas da selecção espartana(?), dando a entender que, à semelhança desta, era (1) Manuel Laranjeira, “Amanhã. Prólogo dramático” (1902). In: Obras de Manuel
Laranjeira, ob. cit., vol. 1, p. 101.
(2Ernst Hackel, História da criação dos seres organizados segundo as leis natu-
rais, ob. cit. p. 127.
(3) Termos de Ernst Hackel, História da criação dos seres organizados segundo as leis naturais, ob. cit., pp. 127-128. (4%) Idem, ibidem, pp. 125-126. Vide artigo de Patrick Tort “Sélection spar-
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Parte UI — Capítulo 4
Darwin em Portugal
necessário conceber uma selecção artificial que fosse ao encontro da selecção natural. Cerca de quarenta anos mais tarde, em 1904, a suprema autoridade da religião darwinista-monista na Alemanha lançava estas perguntas à civilização que se dizia humanitária: “que vantagem tem a humanidade em conservar a vida e educar milhares de enfermos, de surdos-mudos, de cretinos? Que utilidade tiram estes miseráveis da própria existência? Não será melhor cortar logo no começo o mal que os atinge a eles e às famílias?(!). Hackel pronunciava-se a favor da eliminação (morte sem dor) de um conjunto diversificado de indivíduos considerados inúteis e prejudiciais, desde as crianças de constituição débil até aos adultos atingidos por doenças e anomalias incuráveis, tanto físicas como psíquicas(?). Esta forma de selecção por eliminação dos organismosdestituídos de aptidões para lutar pela vida era legitimada pela própria definição darwiniana de selecção natural. No enunciado do naturalista inglês, lê-se: “this preservation of favourable variations and the rejection of injurious variation I call Natural Selection”(2). Ou na versão definitiva: “this preservation of favourable individual differences and variations, and the destruction of those which are injurious, I have called Natural Selection, or the Survival of the Fittest(4). Com efeito, nestas definições, os substantivos rejeição e destruição são correlativos da preservação e, portanto, estruturam a ideia de selecção. Porém, o pensamento eugenista que é detectável na obra darwiniana, situa-se exclusivamente ao nível da reprodução(*), e de modo algum comporta ideias de selecção espartana, de eutanásia e outras práticas criminosas como é manifesto nas reflexões hackelianas. Neste domínio, se bem julgamos, Galton está mais próximo de Darwin do que o zoólogo alemão. Darwin subscrevia integralmente as teses hereditaristas expostas por Galton na obra Hereditary genius: an inquiry into its laws and consetiate. Spartan selection”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 3, ob. cits pp. 3949-3950. (1) Emst Heckel, Maravilhas da vida. Estudos de philosophia biologica, para servirem de complemento aos enigmas do universo, 3º ed., ob. cit., p. 123. (2) Idem, ibidem, pp. 118-124. (3) Charles Darwin, On the origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. (A reprint of the first editon). ob. cit., p. 70. (4) Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, ob. cit., p. 63. (º) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., pp. 563-566; pp. 606-619.
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quences (18691). Além disso, Francis Darwin, o sétimo filho de Charles Darwin, especialista em botânica e particularmente em fisiologia vegetal, biógrafo e editor da correspondência do pai, afirmava em 1895 que “Galton was encouraged and reassured by Darwin's appreciation of his work”(2). Essa apreciação era pública e a correspondência de Charles Darwin para Galton confirmava-a e reforçava-a(4). Na verdade, Galton era reconhecido como o herdeiro inglês das implicações hereditaristas da teoria darwiniana(S). Mas mais do queisso. Como escreveu Mogens Hauge: “the creation ofthis new science [eugenics] was a natural consequence of Darwin's theory of evolution and especially of its emphasis on the primary importance of natural selection”(”). Com efeito, a ciência criada por Galton a partir da biometria(ó) visava intervir nas taxas de fecundidade, estimulando a reprodução dos melhores (boa hereditariedade) e impedindo a reprodução dos menos qualificadosfísica e mentalmente. A eugenia(?) compreendia uma dimensão positiva (preservar) e uma dimensão negativa (eliminar), tal como a selecção natural de Darwin. No seu todo, ela apresentava-se como sendo umaselecção artificial positiva, no sentido em que julgava reproduzir a mecânica evolucionária da natureza que garantia o triunfo dos mais aptos e, por conseguinte, no sentido em que contrariava os efeitos decadentistas das selecções sociais anti-naturais praticadas nas
sociedades civilizadas. Em Portugal, a face “espartana” (ou a selecção pela morte) do darwinismo social hackeliano não foi sufragada ainda que o cientista
(1) Vide: Idem, ibidem, p. 28; Idem, The variation of animais and plants under cit., domestication. (A reprint of the second editon, London, John Murray, 1885)ob. vol. 1, p. 451. (2) Francis Darwin, “Francis Galton 1822-191 1”, The Eugenics Review, Kingsway,
6, Abr. 1914 -Jan. 1915, p. 10. () Idem, ibidem, p. 11.
(4) Vide: The Darwin-Wallace celebration held on thursday, Ist July, 1908, London, Linnean Society of London, 1908, sobretudo pp. 24-26. (5) Mogens Hauge, “What has happened to eugenics”, The Eugenics Review, Oxford e outras, 56 (4) Jan. 1965, p. 203. (9) Francis Galton, “Foreword”, The Eugenies Review, Adelphi, 1(1) Abr. 1909, Jean Gayon, Darwin et "aprês-Darwin. Une histoire de Vhypothêse de sélection 1-2; pp.
naturelle, ob. cit., sobretudo pp. 125-150 sobre a teoria estatística da hereditariedade.
(7) Vide: artigo “Eugenics”. In: MacMillan dictionary of the history of science, ob. cit., p. 131; Daniel Becquemont, “Eugenisme. Eugenism”. In: Dictionnaire du dare winisme et de Vévolution, vol. 3, ob. cit., pp. 1408-1419; G. Fonseca Sacarrão, Biologia ss. e 2ll cit.,p. ob. ado, indetermin homem O IL. sociedade
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 4
alemão tenha defendido que o seu humanismo monista se harmonizava com o verdadeiro espírito do cristianismo(!): compaixão; amor do próximo; libertação do mal. Por outro lado, a moldura eugenista galtoniana teve algum impacto, sobretudo no plano da luta pela boa descendência, instruída pelo postulado da hereditariedade ou da transmissão dos traços físicos e psicológicos inatos ou adquiridos. Mas essa luta nunca se traduziu na defesa de meios eugénicos radicais como a esterilização artificial preventiva, a eliminação de recém-nascidos e a formação de umaelite procriadora(2). Não houve em Portugal uma religião eugénica(?) de matriz galtoniana, menos ainda algum ideal de raça pura como acontecia nã “higiene racial” alemã(*), desde os inícios do século XX: “Racial hygiene was intended to be a personal creed of faith in the Nordic race and its phy+
sical and moral ideals, as well as a scientific movement”(!). Neste domínio, as nossas ambições ficaram muito aquém do programa da Sociedade inglesa de educação eugénica, plasmado no seu órgão The eugenics review(2) ou do programa do Archiv fiir Rassen und Gesellischaftsbiologie,
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(1) Vide: Ermst Hackel, Maravilhas da vida. Estudos de philosophia biologica, para servirem de complemento aos enigmas do universo, ob. cit., pp. 116-124. A suposta harmonia entre a eugenia hackeliana e o espírito cristão é um abuso delituoso. Idêntica perversão foi praticada, por exemplo, em 1937, pelas SS para justificar, no seu órgão Der schwarze korps, uma operação de exterminação sistemática de doentes mentais, crianças e jovens diminuídos, especialmente mongolóides, e feridos ou mutilados: da primeira guerra mundial. As SS, espelho do cinismo histérico do Fiihrer, argumentavam que a morte seria para aqueles a suprema felicidade porque na Bíblia (Mateus, 5) estava escrito que o reino dos céus pertence aos pobres de espírito. As SS reconheciam os direitos celestiais daqueles seres humanos e, por isso, preparavam-lhes uma morte sem sofrimento. O crime consumado (1941) pretendia ser visto como um acto misericordioso e humanitário em consonância com o espírito cristão. É evidente que estamos perante tim duplo crime: o delito hermenêutico e o crime consumado. Vide: Jacques Roger; “L'eugenisme. 1850-1950”. In: L'ordre des caractêres. Aspects de [Phérédité dans Vhistoire des sciences de l'homme, ob. cit., pp. 139-140. Vide também Walter Osswald, “Experiência nazi da eutanásia: memória e lição”, Acção Médica, Porto, 60(4) Dez. 1996, pp. 31-55. (2) Vide: Maximilian A. Miigge, “Eugenics and the superman: a racial science and a racial religion”, The Eugenics Review, Adelphi, 1 (3) Out. 1909, pp. 184-193; Montague Crackanthorpe, “The eugenic field”. The Eugenics Review, Adelphi, 1 (1) Abr. 1909, pp. 11-25. (3) “The idea of eugenics must be instilled into the conscience of civilisation-like a new religion — a religion of the most lofty and austere, because the most unselfish, morality — a religion which sets before it a sublime ideal; terrestrial, indeed, in its chosen theatre, but celestial in its theme”, in “Editorial and other notes”. The Eugenics Review, Adelphi, 1 (1) Abr. 1909, p. 4. Sublinhado nosso. (4) Vide: Paul Weindling, Health, race and german politics between national unification and nazism 1870-1945, ob. cit., pp. 135-154; Idem, Les biologistes de 1" Allema: gne nazie: idéologues ou technocrates? In: Jean-Louis Fischer, William H. Schneider, Histoire de la gênétique. Pratiques, techniques et théories, Paris, Sciences en Situation,
1990, 127-152.
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editado pelo médico Alfred Ploetz(?), o fundador do eugenismo alemão(?),
juntamente com outro médico Wilhelm Schallmayer. Se ambos se apresentavam como darwinistas, Schallmayer, ao contrário de Ploetz,
inclinava-se para a defesa de uma eugenia não racista (não vôlkisch e não nordicista), preferindo a expressão “higiene da reprodução” (vererbungshygiene) em vez de higiene racial ou eugenismo(”). Mas estas diferenças não amenizaram o sentido inaugural do eugenismo hesckeliano(”) que acabaria por ser inteiramente racializado. O caso português não é comparável à dinâmica eugenista da Ale-
manha, da Inglaterra, dos E.U.A.(7), da Suiça e dos países nórdicos(?),
mas revela alguma semelhança com o eugenismofrancês. Com efeito, esse parentesco consiste basicamente na subordinação do espírito eugenista ao campo do higienismo(”). Esta dependência é compreensível, atendendo à hegemonia do neo-lamarckismo (influência do meio exterior sobre a hereditariedade) na comunidade bio-médica francesa. Como concluiu o especialista Jacques Léonard, em França, “aucune contradiction entre le néo-lamarckisme et I'eugénisme!”(!0), embora essa conjugação fosse (!) Paul Weindling, Health, race and german politics between national unification and nazism 1870-1945, ob. cit., p. 153.
(2) Vide: “Editorial and other notes”, art. cit., pp. 3-10.
() Vide: Idem, ibidem,p. 5. (4) Vide: Benoít Massin,artigo “Ploetz, Alfred 1860-1940”. In: Dictionnaire du darwinisme et de "évolution, vol. 3, ob. cit., pp. 3483-3484. (*) Vide: Benoft Massin, artigo “Schallmayer, Wilhelm 1857-1919”. In:
Dictionnaire du darwinisme et de l'évolution, vol. 3, ob. cit., pp. 3785-3786.
(6) Vide: Jacques Roger, “L'eugenisme. 1850-1950”. In: L'ordre des caracteres. Aspects de Uhérédité dans [' histoire des sciences de Phomme, Paris, Sciences en Situation,
1992, sobretudo pp. 137-143.
(7) Vide: Idem ibidem, pp. 119-145; Pierre Thuillier, Les biologistes vont-ils prendre le pouvoir? La sociobiologie en question. 1. Le contexte et Penjeu, ob. cit. p. T6 e ss; Greta Jones, Social darwinism and english thought. The interaction between biological and social theory, Sussex-New Jersey, The Harvester Press Limited-Humanities Press Inc., 1980, pp. 99-120. (8) Vide: Mogens Hauge, “What has happened to eugenics”, art. cit., pp. 203-205. (º) Vide: Lion Murard; Patrick Zylberman, L'hygiêne dans la Republique. La santé publique en France ou Vutopie contrariée (1870-1918), Paris, Fayard, 1996. (19) Jacques Léonard, “Eugénisme et darwinisme. Espoirs et perplexités chez des médecins français du XIX* siêcle et du début du XXº siêcle”. In: De Darwin au darwi-
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Darwin em Portugal
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paradoxal após a constituição da nova ciência da hereditariedade em princípios do século XX(!): a genética. Foi a valorização do meio que moldou a eugenia francesa a uma ética humanista, prudente em matéria de imposições legislativas e mesmo no terreno da educação eugénica, tanto seleccionista como racialista. A França acabaria por não substituir a secular trilogia da liberdade, igualdade e fraternidade pela trilogia darwinista-eugenista determinismo, desigualdade, selecção (2). Em Portugal, mesmo após a fundação em Coimbra da Sociedade Portuguesa de Estudos Eugénicos(?) em 1937, por iniciativa de Eusébio Tamagnini(*), a eugenia (hereditariedade/factores internos) era entendida
no quadro da higiene (meio/factores externos), o que não significa que a cultura antropobiomédica de então desse guarida exclusivamente a ideias pré-mendelianas de hereditariedade. O certo é que, quanto ao estatuto da eugenia são esclarecedoras as palavras de João Porto: “o que repudiamos é o eugenismo a bastar-se a si mesmo, guindado aos píncaros de religião da humanidade, ou mesmo de ciência autónoma, simples peça da máquina materialista que aceita o homem como simples animal”(!). Apesarda data, 1941, não é o referente alemão, funcionando como contra-paradigma, que inspira estas palavras. Estamos perante uma posição de princípio que atravessa de forma latente ou manifesta as preocupações eugénicas da
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cultura e da ciência portuguesas, desde finais do século XIX.
nisme: science et idéologie. Congrês International pour le Centenaire de la mort de Darwin. Paris-Chantilly 13-16 Septembre 1982. ob. cit., p. 193. (!) Jean Gayon, Darwin et "aprês-Darwin. Une histoire de Phypothêse de sélec:
tion naturelle, ob. cit., pp. 261-329; vide também artigo “Genetics”, MacMillan dictionary
ofthe history of science, ob.cit., p. 165. (2) Há excepçõesa este sentido geral. Em primeiro lugar,refira-se o elitismo social
e racial de Vacher de Lapouge, na sua tese da desnordificação da França, construída-na base de estatísticas bio-antropológicas (Galton) e tendo como corolário a defesa da “fecun-
dação artificial “ e do “serviço sexual obrigatório “. Vide: André Béjin, “Les trois phases de !'évolution du darwinisme social en France”. In: Darwinisme et société, ob. Cit., pp. 357-358. Jean Colombat, La fin du monde civilisé. Les prophéties de Vacher de Lapouge, ob. cit., p. 150 e ss. Recorde-se que Lapouge foi o tradutor de O monismode Heackel. Vide: Ernst Hackel, Le monisme. Profession de foi d'un naturaliste. Traduction
de G. Vacher le Lapouge. Paris, Librairie C. Reinwald Schleicher Frêres, Éditeurs, s: d.
[1897]. Considere-se também a obra eugénica do médico Charles Richet, La sélection humaine (1913). Vide: André Béjin, “Richet Charles 1850-1935”. In: Dictionnaire du dar:
winisme et de V'évolution, vol. 3 ob. cit., pp. 3691-3694; Jean Rostand, A hereditariedade.
humana. Tradução do Dr. Ilídio Sardoeira. Lisboa, Publicações Europa-América, 1954, p. 122 e ss.. Posteriormente, é de destacar o eugenismo esterilizador do médico francês Alexis Carrel, exposto na obra L'Homme, cet inconnu (1935), um best-seller mundial, sobretudo entre 1935 e finais da década de 40. Vide: Patrick Tort, “Carrel, Alexis 1873-1944”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 1, ob. cit., pp. 520-526;
Alain Drouard, “Alexis Carrel et 'eugénisme”. In: Des sciences contre "homme, Patis,
Éditions Autrement, 1993, vol. 2, pp. 28-45. () Decorriam 25 anos sobre a constituição da Sociedade Eugénica de Françã (1912) por ocasião do primeiro Congresso Internacional de Eugenismo em Londres
(1912), no qual a delegação francesa revelou uma consistente originalidade, recusando à vertente eliminatória e coercitiva da eugenia e integrando-a no vasto domínio da saúde
Com efeito, foi sobretudo no contexto do higienismo(?) que se desenvolveram algumasreflexões eugenistas em defesa da boa descendência tout court. É que, o apuramento de atributos físicos e mentais por selecção dos progenitores, segundo um critério rácico, não foi encarado como um objectivo exequível. No entanto, a imagem de fealdade do português que corria no estrangeiro, ofendia o narcisismo arianocêntrico da raça. Neste sentido, em 1877(2), Zeferino Cândido negava que o português fosse uma “raça de cor” como se pretendia na conceituada Revue Scientifique, e acrescentava: “se somosfeios, se a nossa organização é disforme,
é que nossos pais cuidavam com mais ardor no engrandecimento da pátria, estendendo-lhe os domínios, abrindo largas estradas ao mundo inteiro, do
que na conservação apurada da sua espécie”(). Posteriormente, ao protesto de Zeferino Cândido juntou-se o de Silva Amado, o qual conheceu um eco internacional na Revue d'Anthropologie de Paris, dirigida por Paul Broca, onde o Professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa publicou a bela memória L'ethnogénie du Portugal(*). Neste trabalho (!) Idem, ibidem, p. 28. Vide também Barahona Fernandes, “Hereditariedade e ambiente”. In: No signo de Hipócrates. Il-Medicina humana, Lisboa, Livraria Luso-Espanhola, 1969, pp. 455-511. (2) Vide: Ana Leonor Pereira, “Novas sensibilidades científico-culturais em Portugal na aurora do século XX”. In: Estudos de história contemporânea portuguesa. Homenagem ao Professor Victor de Sá, Lisboa, Livros Horizonte, 1991, pp. 421-431, Ana Leonor Pereira; João Rui Pita, “Liturgia higienista no século XIX. Pistas para um estudo”, Revista de História das Ideias, Coimbra, 15, 1993, pp. 437-559.
pública. Vide: Jacques Léonard, “Eugénisme et darwinisme. Espoirs et perplexités chez des médecins français du XIX€ siecle et du début du XXº siêcle”. In: De Darwin-au
() Vide: António Zeferino Cândido, “Portugal no extrangeiro”, O Seculo, Coimbra, 1 (8) Mar. 1877, pp. 122-129.
1941 — Sep. de “Semanas Sociais Portuguesas”, p. 23.
(5) Vide: José Joaquim da Silva Amado, L'ethnogénie du Portugal. Deuxiême édition revue et corrigée. Lisboa, Typographia de Castro Irmão, 1880.
darwinisme: science et idéologie, ob. cit., pp. 200-201. (4) Vide: João Porto, Eugenismo e hereditariedade, Lisboa, Tip. “União Gráfica”,
(4) Idem, ibidem, p. 128.
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Silva
Parte HH — Capítulo 4
Darwin em Portugal
Amado
sustentava,
textualmente,
que
“les
Portugais
ont
un type moins méridional que presque tous les autres peuples du midi de Europe. Le type brun y est moins fréquent et moins pur qu'en Espagne, qu'au midi de ['Italie et même de la France. C'est rare qu“un Portugais ne montre dansses traits la preuve plus ou moins évidente du croisement du type blond avecle type brun”(1). Outrosprotestos se seguiram, pois, entretanto, a ideia segundo a qual a raça portuguesa acusava uma acentuada marca física e mental de sangue negro, continuou a difundir-se, nomeadamente numa obra feita por especialistas estrangeiros
e da responsabilidade editorial da Larousse,intitulada Le Portugal (1900).
Rocha Peixoto criticou severamente a caracterização antropo-etnológica do português feita na referida obra(2). Para o autor, a arianidade física é mental do português não era questionável, embora se pudesse aceitar alguma influência semita. Mas, o que importa relevar é que, entre nós, o
problema eugénico não foi assumido no planoracial. Adolfo Coelho ainda
sugeriu, de forma velada, que uma regermanização da península ibérica seria vantajosa, pois viria reforçar os traços arianos dos povos peninsulares(); mas, não ousou advogar uma eugenia racial. De facto; com
veremos, a problemática eugénica em Portugal tinha o sentido básico de
prevenir a transmissão de doenças e de anomalias consideradas here-
ditárias. De acordo com o sentido hereditarista da eugenia, não incluimos no nosso campo de reflexão todo um conjunto de problemas higienistas ligados à reprodução e à descendência, como sejam, a higiene da gravidez, do recém-nascido e da criança(4), nomeadamente a higiene
(D) Idem, ibidem, p. 4. (2) Vide: Rocha Peixoto, “[Recensão crítica de] Vários. Le Portugal géographique, ethnologique, administratif, économique,littéraire, artistique, historique, politique; colo» nial, etc. Paris, Larousse ed., 1900. 368 pp., 12 cartas, 162 il”, Portugalia, Porto, 1-(1-4)
1899-1903, pp. 662-664.
(3) Vide: Francisco Adolfo Coelho, Os povos extraeuropeus e em especial Os negros d'Africa ante a civilisação europeia, Lisboa, Typographia da Companhia Nacional
Editora, 1893, pp. 36-38.
(4) Vide, por exemplo: Alexandre Pereira Corte-Real, Algumas considerações sobre a hygiene da primeira infancia, Porto, Typographia Occidental, 1889; Luiz Cortez, “Jornal das mães-Educação”, A Voz do Operario, Lisboa, 30 (1553), Agosto de 1909, pp 1-2. Vide também a resenha histórica de Victor Ribeiro, “O revigoramento da raça portuguesa”, Boletim de Segunda Classe da Academia das Sciências de Lisboa, Lisboa,
H(2) Mar. — Jul. 1917, pp. 724-769.
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alimentar(!), física e mental(2) e o exercício físico(?) em geral, entre outros. 2. O combate pela selecção virtual da descendência O que constituiu o objecto privilegiado do pensamento eugénico português foi o problema do casamento e da reprodução dos indivíduos portadores de má hereditariedade ou de algum estado patológico adquirido, transmissível à descendência e, eventualmente, ao conjuge saudável. Em 1879, a revista O Positivismo difundia um artigo de Alexandre da Conceição,intitulado “O amor e o casamento”(*), no qual o assunto era
rematado com estas palavras: “é preciso que o casamento esteja sujeito à inspecção médica”(*) porque há casamentos que ameaçam osinteresses da espécie. A sua gravidade é tal que eles devem ser vistos como “um verdadeiro crime social, tão digno de repressão, como qualquer outro grande crime”(9). Apesar da dureza da linguagem (grande crime/repressão) o autor limita-se a remeter o problema para o campo da medicina,atribuindo à ciência médica a competência para decidir sobre a aptidão orgânica dos nubentes para o casamento. A ideia não era nova. Em 1862, Macedo Pinto
(!) Vide, por exemplo: Alves de Magalhães, “Hygiene alimentar da primeira infancia”, A Saúde Publica, Porto 1(3) 20 Jan. 1884, pp. 17-21. O autor apresenta uma justificação lamarckista do valor da alimentação: “visto como a biologia sob o influxo benéfico das leis do transformismo, nos mostra que as importantes condições do meio transformam não só as espécies mas até os órgãos individuais e que a aplicação prática dos princípios da higiene é um dos elementos mais poderosos para o homem entrar, com vantagem, na grande luta pela existência”, Idem, ibidem,p. 20. (2) Vide, por exemplo: Joaquim Augusto de Sousa Refóios “O melhoramento da raça pela protecção às crianças”, Gazeta Ilustrada, Coimbra, 1 (1) 29 Maio 1901, pp. 2-3; 1 (2) 8 Jun. 1901, p. 10. () Vide, por exemplo: Carlos Alberto de Lima, Melhoramento da raça pelo exer-
cicio physico, Porto, Typographia da Empreza Litteraria e Tipographica, 1891. Vide tam-
bém Luís de Pina, “Um capítulo portuense da história da higiene em Portugal”, Portugal Médico, Porto, 39 (8-9-10) Ago. -Set.- Out. 1955, pp. 461-477, 538-572,; Irene Maria
Vaquinhas, “O conceito de “decadência fisiológica da raça” e o desenvolvimento do desporto em Portugal (finais do século XIX/Princípios do século XX)”, Revista de História das Ideias, Coimbra, vol. 14, 1992, pp. 365-388. (2) Vide: Alexandre da Conceição, “O amor e o casamento”, O Positivismo, Porto,
1, 1878-1879, pp. 171-175. (6) Idem, ibidem, p. 175. (9) Idem, ibidem, p. 175. Sublinhado nosso.
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Parte III — Capítulo 4
Darwin em Portugal
tinha ido mais longe, afirmando a necessidade de uma regulamentação jurídica de impedimentos matrimoniais em caso de existência averiguada de doenças hereditárias ou contagiosas num ou em ambos os nubentes(!). No mesmo sentido se pronunciou também Sousa Refóios, defendendo em tese: “consideramos necessária e justa uma lei que proiba o casamento aos indivíduos afectados de moléstia grave, incurável e transmissível por herança”(2). Esta medida de eugenia preventiva muito moderada contribuía, a par de medidas higiénicas de combate à fome, à doença e ao analfabetismo, para o “rejuvenescimento da raça portuguesa”(2). Assim,a negatividade da proibição inscrevia-se num ideal positivo quea justificava inteiramente. Por isso, “melhorar e transformar, embora lentamente, a
nossa raça tão depauperada, valerá mais do que a soma de dinheiro e de esforços empregados simplesmente para ajudar a bem morrer os tuber-
culosos averiguados”(*).
Nesta matéria, a argumentação mais original, de sentido darwinista, foi elaborada por A. Filipe Simões. Através da distinção entre conservação e aperfeiçoamento da espécie, o autor salvaguardava a operatividade da selecção natural e, ao mesmo tempo, fundamentava a necessidade de uma selecção artificial positiva. Assim, defendia que a eugenia negativa não era, em absoluto, necessária para a preservação da espécie, pois, a selecção natural acabava por se exercer, apesar da assistência médica e de todas as formas de protecção social que se opunham à eliminação dos mais fracos física e mentalmente(”). Se a civilização (através da clínica e outras práticas) garantia a sobrevivência a muitas gerações de debilitados, a natureza reagia com a tuberculose e outras doenças eliminatórias. Sem dúvida, a tísica era um mal para o indivíduo, todavia, era vista como um bem para à
espécie, “por extinguir indivíduos profundamente alteradose incapazes de gerarfilhos valiosos e robustos”(*). Portanto, a selecção natural, através da
(1) Vide: José Ferreira de Macedo Pinto, Medicina administrativa e legislativa. Primeira parte— Hygiene pública, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1862, p. 817 e ss. (2) Joaquim Augusto de Sousa Refóios, Theses de medicina theorica e pratica que (...) se propõe defender na Universidade de Coimbra nos dias 7 e 8 de Julho de 1879 para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1879, p. 15. () Joaquim Augusto de Sousa Refóios “O melhoramento da raça pela protecção às crianças”, art. cit., p. 10.
(4) Idem, ibidem,p. 2.
() Vide: A. Filipe Simões, A civilisação, a educação e a phthisica, Lisboa, Livrariá Ferreira, 1879, p. 22 e ss..
(9) Idem, ibidem, p. 23.
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tuberculose e de outras doenças fatais, actuava em benefício da conservação da espécie. Contudo, nas sociedades mais civilizadas, a selecção natural não produzia efeitos substancialmente perfectibilistas, dado que a sua acção era perturbada pelos avanços da medicina e da assistência social. Assim, para compensar esta perturbação e colaborar com a selecção natural, o autor advogava a educação eugénica, a interiorização consciente do ideal de robustez física e mental e a assunção das suas implicações na prática. Para Filipe Simões, o ideal seria praticar a eugenia positiva. Através dela, “as boas qualidadesfísicas ou morais poderiam também apurar-se e desenvolver-se de geração em geração, por meio de uniões sucessivas entre indivíduos, a quem essas qualidades fossem comuns. Mas todos vêem a dificuldade de aplicar ao género humano os processos da zootecnia
racional”(1). Essas dificuldades eram fundamentalmente de ordem moral,
as mais difíceis de vencer. Basta ter presente “a repugnância que ainda hoje obsta a que os exemplos da zootecnia sejam aproveitados na educação física do homem”(2). No entanto, segundo Filipe Simões, os méto-
dos doscriadores de gado para aperfeiçoar as raças domésticas deviam ser aplicados na geração da descendência humana, porque “o homem é organizado à maneira dos animais, e portanto os princípios fundamentais dos métodos que servirem para aperfeiçoar a organização animal servirão também para aperfeiçoar a organização humana”(2). A zootecnia, lembrava Filipe Simões, consiste fundamentalmente na aplicação de três métodos: “a selecção artificial, a alimentação e o exercício”(4). Ora, na sociedade
portuguesa finissecular, nenhum destes métodos de aperfeiçoamento da progenitura era praticado. Tal situação estava longe de ser inédita. Darwin tinha constatado precisamente que, em regra, o homem cuida do aperfeiçoamento dos animais e das plantas sob domesticação e não coloca semelhante interesse na sua própria descendência: “man scans with scrupulous care the character and pedigree of his horses, cattle, and dogs before he matches them; but when he comesto his own marriage he rarely, or never, takes any such care”().
p. 45.
(1) A. Filipe Simões, Educação physica. 3º edição, Lisboa, Livraria Ferreira, 1879, (2) A. Filipe Simões, A civilisação, a educação e a phthisica, ob. cit., p. 49.
(3) Idem, ibidem, p. 48.
(4) Idem, ibidem, pp. 48-49. (3) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 617.
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É compreensível que em Portugal a questão fosse apresentada com algum dramatismo, pois se “falta a selecção, por não se atender às influências
ancestrais e paternas e às qualidades individuais dos conjuges, falta [tam-
bém] a regularidade e boa direcção da alimentação, falta o exercício”(!). Igualmente João de Korth constatava que, na sociedade portuguesa, “não se liga importância à história da família, à constituição, à idade e aos elementos hereditários dos conjuges”(2). E, recorria às teorias da hereditariedade de Darwin, Galton, Spencer, Hackel e Ribot(?) para mostrar que a herançafísica e psicológica, embora fosse um “mistério”(4), era um facto irrefutável. A prossecução de uma parte dos métodos zootécnicos, precisamente a disciplina alimentar científica e o exercício físico e mental, não dependia de factores morais. Apenas a selecção artificial(º) poderia ser alvo de resistências de tipo ético-religioso e, por isso, a melhorvia de as vencer consistia numa educação científica, sobretudo biológica(”). Se a formação
científica do indivíduo lhe permitisse reconhecer a hereditariedade mórbi-
da, bem como o valor da alimentação e do exercício, ele ficaria apto a
identificar o seu capital genético e as suas possibilidades de alimentar e | educar os descendentes. O casamentoe a procriação tornar-se-iam um acto
de liberdade, uma decisão que reflectiria a consciência biológica do indi
víduo, mesmo que o amortivesse de ser sacrificado. Assim, para Filipe Simões, nenhuma imposição legal teria uma eficácia tão positiva como à
consciência eugénica, fundadora da autodeterminação moral do indivíduo de acordo com o interesse perfectibilista da espécie. Como escrevia Augusto Filipe Simões, inspirando-se nitidamente no modelo educativo
spenceriano, “pela educação antiga preparavam-se os homens para serem governados. A educação moderna deveria preparar os homens para se governarem a si mesmos”(7). Vê-se bem que esta utopia ficava longe. Na
verdade, em lugar algum, como todas as utopias. Consciente da distância
(1) A. Filipe Simões, A civilisação, a educação e a phthisica, ob. cit., p. 49. (2) João G. d'Korth, Breves considerações sobre a hereditariedade, Ponto, Typographia Central, 1879, p. 69.
ess.
Parte HI — Capítulo 4
Darwin em Portugal
(2) Idem,ibidem, p. 19esss. (9) Idem, ibidem, p. 30 e ss. (*) Vide: A. Filipe Simões, A civilisação, a educação e a phthisica, ob. cit., p. 49 (6) Vide, também, A. Filipe Simões, Erros e preconceitos da educação physica.
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1872.
(1) A. Filipe Simões, Educação physica, ob. cit., p. 319.
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entre o ideal e o real, Filipe Simões propõe uma medida concreta: nenhum casamento deveria realizar-se sem um atestado médico, o qual constituiria documento impeditivo do mesmo no caso dos nubentes serem portadores de doenças graves contagiosas(!), como a tuberculose, a sífilis e a escrófula.
Outros autores, como António Maria de Sena, também professor da Faculdade de Medicina de Coimbra, pronunciaram-se sobre o problema da
hereditariedade mórbida. Sena começou por defender que “a hereditariedade mórbida, provável ou demonstrada, não deve ser impedimento legal do matrimónio”(2). Mas, em contrapartida, julgava que “a prostituição devia ser considerada um crime nas nossas leis penais”(?), sobretudo, por razões médico-higiénicas(*). Oito anos depois, Sena manifestava-se explicitamente contra a reprodução dos alienados sem excepção, isto é, quer se tratasse de doença mental hereditária ou adquirida(). E conclufa: “um povo que deseja conservar-se e progredir, fará por evitar a procriação dos alienados ou predispostos”(º). O único processo humanitário de atingir esse escopo higiénico e eugénico era a sequestração
dosalienados(?) com isolamento sexual. Em 1886(2), o avô da psiquiatria
portuguesa(?), entre outros benefícios resultantes da hospitalização dos alienados, sublinhava as suas vantagens eugénicas. A instituição hospita(1) Vide: Idem, ibidem, p. 48ess.. (2) António Maria de Sena, Theses de medicina theorica e pratica que (...) se propõe defender na Universidade de Coimbra para obter o grau de doutor, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1876, p. 15.
(3) Idem, ibidem, p. 15. (4) Em sentido contrário, João d'Korth médico pela Escola do Porto, entendia que, em matéria de higiene, “a prostituição é uma necessidade”, Breves considerações sobre a
hereditariedade, ob. cit., p. 71.
(5) Vide: António Maria de Sena Os alienados em Portugal. 1 — Historia e esta-
fistica, Lisboa, Administração da Medicina Contemporanea, 1884, pp. V-XVII.
(9) Idem, ibidem, p. XVHIL (7) Vide: Ana Leonor Pereira, “A institucionalização da loucura em Portugal”, art. cit., pp. 85-100. (8) Vide: António Maria de Sena, Beneficios sociaes do Hospital do Conde de Ferreira no 1º triennio. Discurso proferido na sala nobre do Hospital do Conde de Ferreira em 24 de Março de 1886 por occasião da inauguração do retrato do benemerito bemfeitor, Porto, Typographia Occidental, 1886.
(º) Vide: H. Barahona Fernandes, “O Professor Sena e o problema da assistência
psiquiátrica”, Amatus Lusitanus, Lisboa, 4 (3) Mar. 1945, pp. 204-217; 4 (4) Abr. 1945, pp. 285-302; Idem, “O nascimento da psiquiatria em Portugal”. In: História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. LCológuio — até ao século XX, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1986, vol. 1, pp. 577-593.
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Darwin em Portugal
Parte III — Capítulo 4
lar era vista como um meio de subtrair a raça à epidemização psicopatológica e à capitalização da má-hereditariedade. Pelo número de alienados internados (596) podia-se calcular a quantidade daqueles que nunca veriam a luz do dia: “a forma humana denominada — alienado — conquanto defeituosa, é capaz de procriação; e há até quem pense que até uma certa altura, a degeneração humana é acompanhada dum grande poder proliferante (...) E pela iniludível lei da herança, na grande maioria dos casos, esses produtos serão recrutas apurados para um novo exército de loucos(...) Considerai o número de produtos humanos, defeituosos, suprimidos pela sequestração”(!) e tornar-se-á
darwinismo seleccionista, Matos não admitia, além do intemamento,
claro o valor económico-social e biológico do internamento. Este tópico
do discurso do Dr. A.M. de Sena proferido na sala nobre do Hospital do Conde Ferreira em 24 de Março de 1886, era capital. Depois de demonstrar a lei da herança patológica com casos concretos, chama, de novo, a atenção do auditório para as vantagens do internamento: “Aplicai estes dados, senhores, mais uma vez vo-lo peço, à procriação dos alienados em geral, e à limitação considerável dessa procriação pelo facto da sequestração nos asilos”(2). Este ideal de eugenia preventiva da transmissão à descendência de doenças mentais foi inteiramente secundado pelo suçessor de Sena. Na vasta obra de Júlio de Matos esta problemática é uma constante(?), e tornou-se mesmo uma obsessão, como revela a correspondência que manteve durante onze anos, de 1911 a 1922(4), com Marcelino de Matos. O seu combate pela higidez mental da população portuguesa implicava o alargamento da assistência psiquiátrica ao maior número possível de doentes. Das obras que arquitectou, mas não chegou a ver de pé, a maior (Hospital Júlio de Matos) fala porsi (*). Apesar do seu
(1) António Maria de Sena, Beneficios sociaes do Hospital do Conde de Ferreira no 1º triennio, ob. cit., p. 21.
(2) Idem, ibidem,p. 22.
() Vide: Júlio de Matos, entre outras obras, Manual das doenças mentaes, Porto, Livraria Central de Campos & Godinho-Editores, 1884, p. 71 e ss.; A loucura. Estudos clinicos e medico legaes, S. Paulo, Teixeira e Irmão Editores, 1889, p. 330 e ss.; Elementos de psychiatria, ob. cit., p. 16 e ss.; “Prefacio”. In: António de Oliveira, Criminalidade: — Educação, Paris-Lisboa, Livrarias Aillaud-Bertrand, 1918, pp. A-L. (4) Vide: Júlio de Matos, Cartas para Marcelino de Matos. Cerca de 300 cartas é cartões manuscritos datados de 1911 a 1922. () Vide: Pierre Pichot; Barahona Fernandes, Um século de psiquiatria e a psiquiatria em Portugal, ob. cit., pp. 291-301; “Decreto com força de lei de 11 de Maio de 1911, autorisando a criação de novos manicómios e de colónias agrícolas para alienados, e regu= lando osrespectivos serviços”, Diario do Governo, 111, 13 de Maio de 1911, pp. 1945-1950.
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outros meios coercitivos de acautelar a reprodução dos alienados, nomeadamente, a esterilização.
No entanto, também em Portugal, se publicavam notícias sobre propostas estrangeiras de esterilização. Em A Medicina Contemporânea, Bombarda ia dando conta do estado da questão na América e na Europa. Em 1900, informava o seu público da proposta feita no estado americano de Michigan sobre “castração dos criminosos e dos fracos de espírito”(1). Noutro número, A Medicina Contemporânea divulgava em tom irónico as últimas experiências laboratoriais alemãs de esterilização masculina,feitas sobre coelhos e porquinhos da Índia, para aplicar aos degenerados(?). Igualmente em 1904, Bombarda apresentava a solução proposta na Nova Zelândia pelo médico W.A. Chapple no livro The fertility of the unfit. Tratava-se de uma operação cirúrgica imposta pelo estado a determinada categoria de mulheres, com o fim de cortar o mal pela raíz. “O dr. Chapple propõe que se faça a laqueação do canal de Fallopio a todas as mulheres taradase ainda aquelas casadas com homenstarados!... E, por muito favor permitiria às últimas a alternativa do divórcio...”(?). No comentário de Bombarda, evidencia-se a sua discordância relativamente às esterilizações feminina e masculina. Em vez da eugenia negativa,isto é, em lugar de se eliminar a possibilidade de frutificação da má hereditariedade, defende o recurso aos métodos zootécnicos de melhoria da descendência, indepen-
dentemente da qualidade dos progenitores. Neste sentido escreve: “ora, assim como um criador de gado não deixa ao acaso a multiplicação dos seus rebanhos e aplica regras que empiricamente se lhe têm mostrado seguras, assim na criação do homem devem interferir os conhecimentos
adquiridos e tantos outros desconhecidos, que a observação e até a experiência podem esclarecer”(4). O ideal zootécnico de Miguel Bombarda não comporta a dimensão propriamente seleccionista, já que o autor não se refere à escolha dos progenitores como sendo a condição sine qua non do aperfeiçoamento da raça. À sua posição é sustentada com exemplos do domínio da agricultura: “ainda há pouco, numa revista inglesa, vinham referidas as prodigiosas conquistas feitas por um agricultor da Califórnia na fabricação de plantas e de frutos. Frutos miseráveis transformados em (1!) Miguel Bombarda, “Degenerescencia da raça”, art. cit., p. 217.
(2) “Degenerescencia e esterilisação”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, sér. 2,
7 (35) 28 Ago. 1904, p. 284.
(3) Miguel Bombarda, “Degenerescencia das raças”, art. cit., p. 254. (4) Idem, ibidem, p. 254.
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Darwin em Portugal
frutos belos, grandes, saborosos; flores por igual metamorfoseadas em maravilhas de cor, de fragrância, de grandeza... E isto às centenas. Pois bem, é o que se torna preciso aplicar à espécie humana”(!). Os exemplos referidos são interpretados em moldes neo-lamarckianos. Se um fruto medíocre se pode converter num fruto excelente é porque a hereditariedade é uma questão mesológica. Assim, uma boa procriação depende das condições do meio, nomeadamente condições físico-químicas. No caso da espécie humana, o que está em jogo é um complexo de circunstâncias mesológicas a vários níveis; mesmo no meio intra-uterino se
entrelaçam “coisas físicas, coisas biológicas e coisas educativas”(2), em
larga medida ainda desconhecidas. Enquanto homem de laboratório, Bombarda acredita que o estudo sistemático do meio interior (masculino é feminino) antes e depois da fertilização ovular conduzirá à formulação das leis do meio ideal e à possibilidade de controlo dos meios concretos tendo em vista os melhores resultados. O que está implícito neste equacionamento do problema é, notoriamente, o pressuposto da fexibilidade do capital hereditário, uma ideia contrária aos resultados das investigações laboratoriais de Weismann, Mendel, Thomas Hunt Morgan e outros(). O neo-darwinismo ultrapassou a hipótese provisória de pangénese(*), elaborada por Darwin, a qual garantia a transmissão hereditária dos caracteres adquiridos, mas Miguel Bombarda permaneceu fiel à ideia darwiniana dê hereditariedade, embora conhecesse bem(”) a teoria weismanniana da con-
tinuidade do plasma germinativo. Para Miguel Bombarda, enquanto não'se constituísse uma “ciência das degenerescências (...) tão revolucionária (.:.) como foi a bacteriologia”(9), não era possível intervir eficazmente na melhoria da progenitura. Essa ciência tinha de ser experimental.
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domésticos, tanto saudáveis, como portadores de uma herança patológica (epilepsia, histeria, etc.), para se objectivar o problema da hereditariedade em função do meio. Julgava ser decisivo verificar os poderes (patogénicos ou normogénicos) dos factores mesológicos, como ressalta da sua exposição. “Ce qu'il faudrait ce serait de soumettre les animaux à des expériencesdirectes (...) Il faut s'adresser aux animaux supérieurs surtout aux animaux domestiques, varier leurs conditions de gestationet d'accou-
chement, leur transmettre des maladies pendant et aprês la vie embryonnaire; produire des intoxications chez les parents ou chez les enfants, modifier leurs conditions d'existence par la modification du milieu social,
en un mot, varier dans tous les sens possibles les conditions expérimen-
tales et observer”(1). Esta experimentação implicava o postulado da continuidade entre o ser animal e o ser humano, mas o autor salvaguardava a distância evolucionária entre ambose reconhecia a superior complexidade do problema da hereditariedade na espécie humana. Contudo, sendo
impossível fazer do ser humano uma cobaia de laboratório, a ciência dos meios degenerescentes podia recorrer aos animais domésticos. O que, no fundo, impedia o autor de encarar o problema eugénico nos moldes convencionais, de aparência científica(2), era o seu desacordo
quanto à discriminação dos progenitores, o que, por seu turno,reflectia a sua defesa do primado do meio. Com efeito, a valorização dos factores
mesológicos ambientais (desde o clima à educação) e intra-orgânicos (físicos e químicos) é uma constante na obra de Miguel Bombarda que se inspira sobretudo no neo-lamarckismo de Félix Le Dantec(?), apesar do seu credo no monismo heckeliano. É verdade que Bombarda dedicou uma das suas principais obras de combate cientista(*) “a Emst Hackel o patri-
Em 1901, num Congresso Internacional, Miguel Bombarda pro-
punha que se desenvolvesse uma experimentação directa sobre animais (1) Idem, ibidem, p. 254. Sublinhado do Autor.
(2) Idem, ibidem,p. 254.
() Vide: Emst Mayr, Darwin et la pensée moderne de évolution. Traduit de
Panglais (États-Unis) par René Lambert. Paris, Éditions Odile Jacob, 1993, p. 137 € ss. (4) Charles Darwin, The variation of animals and plants under domestication. (A reprint of the second editon, London, John Murray, 1885). vol. 2, ob. cit., pp. 349-399; Charles Lenay La découverte des lois de Phérédité (1862-1900). Une anthologie, ob. cit.;
pp. 105-161.
(5) Vide: Miguel Bombarda, Traços de physiologia geral e de anatomia dostecií dos. Programa da 1ºparte do curso da 2º cadeira da Escola Medico-Cirurgica de Lisboa, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1891, pp. 38-40. (6) Miguel Bombarda, “Degenerescencia das raças”, art. cit., p. 254.
(1) Miguel Bombarda, “La criminalité chez les animaux”. In: Congrês International d'Anthropologie Criminelle — Compte rendu des travaux. Publié par les soins de M. le Professeur J. K. A. Wertheim Salomonson. Amsterdam, Imprimerie de J. H. de Bussy, 1901, p. 211-214. (2) Vide: Jacques Hochmann, “La théorie de la dégénérescence de B.-A. Morel, ses
origines et son évolution”. In: Darwinisme et société, ob. cit., pp. 401-412. (3) Vide: Miguel Bombarda, Traços de physiologia geral e de anatomia dos tecidos. Programa da 1ºparte do curso da 2º cadeira da Escola Medico-Cirurgica de Lisboa, ob. cit., p. 30 e ss. Idem, A consciencia e o livre arbitrio, 2º ed., ob. cit, p. Xl ess.; p.40ess. (4) Vide: Miguel Bombarda, Estudos biologicos. A consciencia e o livre arbitrio, ob. cit. Trata-se de uma obra de combate à Weltanschauung teológica (fixista e dualista) e à metafísica vitalista, e de afirmação da Weltanschauung materialista-fisicalista, evolucionista e monista. Em defesa da cultura teológica pronunciaram-se Manuel Fernandes
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arca do monismo”, mas o determinismo físico-químico de Le Dantec ajustava-se melhor à sua formação científica. Este facto nada tem de para-
Não há dúvida que Bombarda se inscrevia na corrente neo-lamarckista(l) que remava contra a genética. Para afirmar o poder do meio externo e interno sobre o capital hereditário, o autor chega a enunciar proposições tão radicais como estas: “a hereditariedade é um mito; não há nenhuma força em potência nos seres vivos, que os obrigue a seguir caminho igual àquele que os pais seguiram”(2). As variações do meio (desde a nutrição à educação passando pelas múltiplas variações nas condições químicas da fecundação) são a chave das variações orgânicas. A variação não é um atributo do genótipo mas do meio: “LE MILIEU est, tout au long
doxal, por duas razões. Primeiro, Le Dantec era “le corrélat français de
Hackel”(!), não só por defender os princípios de Lamarck na sua lei da assimilação funcional e recusar o neo-darwinismo weismanniano, mas também em virtude da intransigência dogmática do seu sistema mecanicista e adaptacionista. Em segundo lugar, Le Dantec era um homem de laboratório, tal como Miguel Bombarda(?), enquanto o zoologista E. Heckel era essencialmente um intérprete dos trabalhos experimentais realizados por outroscientistas(2). Apesar da identidade de princípios básicos existente entre o sistema hxckelianoe o sistema de Le Dantec, o primeiro recusava o neo-darwinismo weismanniano para salvaguardar a lei biogenética fundamental e o segundo para defender a lei da assimilação funcional(*). Bombardaera fisiologista e histologista e, portanto, não admira que tenha afirmado a omnipotência do meio, a partir da doutrina de Le Dantec(”), tendo secundarizado a lei de Hackel.
de Santana, “A biologia modernae as idéas do Sr. Prof. Bombarda”, Revista de Educação
e Ensino, Lisboa, 14, 1899, pp. 193-211, 268-279, 289-316, 358-365, 399-410, 433-448
— Publicado sob as iniciais M. F.; Idem, O materialismo em face da sciencia: a propo: sito da consciencia e livre arbitrio do Sr. Prof. Miguel Bombarda, Lisboa, Typographia da Casa Catholica, 1899; Manuel Ferreira Deusdado, “[Recensão crítica de] Manuel
Fernandes Santana, O materialismo em face da sciencia. A proposito da Consciencia é
livre arbitrio, do sr. professor Miguel Bombarda. Lisboa, 1900. 2 vol”, Revista de Educação e Ensino, Lisboa, 15, 1900, pp. 236-240. Em defesa do vitalismo, pronuncia: ram-se Bettencourt Raposo, “Da consciencia universal à consciencia psychica”, A Medicina Contemporanea, Lisboa,sér. 2, 4 (6) 10 Fev. 1901, pp. 47-49; 4 (8) 24 Fev. 1901, pp. 63-65; F. Cardoso de Lemos, Referencias ao livro do Sr. Professor Miguel Bombarda (A consciencia e o livre arbitrio), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1898: Idem, “A consciencia e o livre arbítrio, por Miguel Bombarda. Lisboa, 1898”, Coimbra
Médica, 18, Jul. 1898, pp. 349-355.
(!) Patrick Tort, “Le Dantec, Félix Alexandre 1869-1917”. In: Dictionnaire du dar: winisme et de V'évolution, vol. 2, ob. cit., p. 2603. (2) Vide: Pierre Pichot; Barahona Fernandes, Um século de psiquiatria e a psiquiatria em Portugal, ob. cit., p. 273; Barahona Fernandes, “Miguel Bombarda: -=— Personalidade e posição doutrinal”, A Medicina Contemporanea, Lisboa, 70 (3) Mar;
1952, p. 142 ess.
() Vide: Britta Rupp-Eisenreich, artigo “Hxckel, Ernst 1834-1919”. Tn: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol. 2, ob. cit., sobretudo, pp. 2090-2114, (4) Vide: Peter J. Bowler, EI eclipse del darwinismo. Teorias evolucionistas anti darwinistas en las décadas en torno a 1900, ob. cit. p. 87 e ss. () Vide: Idem, ibidem, p. 129 e ss.; Yves Delage e M. Goldsmith, As teorias da
evolução, ob. cit., p. 298 e ss.
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de Véxistence individuelle, le facteur décisif de "évolution et la clef pour
Vinterprétation de la psychopathologie entiêre (...). LHÉRÉDITÉ n'est au fond qu'un facteur mésologique (...). LATAVISME est un mythe”(). Nesta perspectiva, o problema da melhoria da espécie humana era sinónimo de transformação das condições existenciais, biológicas (físicas e químicas) e socio-morais em sentido amplo. Daí queo fisiologista-psiquiatra hipervalorize todos e cada um dos factores ambientais modeladores do organismo. Por exemplo, sobre a educação, afirma sem qualquer reserva: “a educação é omnipotente e chega até a ser poderosa em cérebros doentes (...) A educação não representa só aquisições. Representa igualmente variações favoráveis que ficam e que se transmitem por herança”(2). (1) Esta corrente teve bastantes representantes em França mesmo depois da redescoberta de Mendel em 1900. Apenas em 1945 é criada a cadeira de Genética na Sorbonne. Vide: Denis Buican, La révolution de Pévolution. L'évolution de Pévolutionnisme, ob. cit., pp. 174-177. Recorde-se que o neo-lamarckismo conheceu um dramático sucesso, grosso modo, entre 1930 e 1970, na biologia soviética (Mitchourine, Lyssenko). Esta ciência foi forçada a abandonar as investigações na área da genética mendeliana-morganiana, dita “burguesa” e “capitalista” pelo “darwinismo criador soviético” ou lyssenkismo. Vide: Américo Pires de Lima, “O chamado cisma soviético na biologia”,
O Médico, Porto, (14), 1951, pp. 1-18; Germano da Fonseca Sacarrão, Biologia e sociedade I. Crítica da razão dogmática, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1989, p. 302 e ss.; Richard V. Kowles, Genetics, society and decisions. Columbus e outras, Charles E. Merrill Publishing Company, 1985, p. 465 e ss. (2) Miguel Bombarda,A sciencia e o jesuitismo: replica a um padre sabio, ob.cit., p. 93. Contra o exagero de Miguel Bombarda, Manuel Laranjeira, à data, estudante de medicina no Porto, observava: “A hereditariedade é um facto, é uma lei da Natureza. Mas
porque essa lei é obscura, porque não podemos seguir-lhe a evolução passo a passo, porque, em suma, a essência do fenómeno escapa aos nossos meios de investigação —
seguir-se-á que a hereditariedade seja um mito”? In: “Augusto Santo” (1901-03), Prosas perdidas, ob. cit., p. 139.
Autor.
(é) Miguel Bombarda, “L'avenir de la psychiatrie”, art. cit., p. 136. Maiúsculas do (4) Miguel Bombarda, A consciencia e o livre arbitrio, 2º ed., ob. cit., pp. 339-340.
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Torna-se agora mais nítido porque é que o seu ideal zootécnico não exige a selecção dos progenitores, ao contrário da linha hereditarista da eugenia positiva que fazia dessa selecção o primeiro requisito para-a
reconhece o vigor da palavra e o estilo enérgico de Bombarda, o leitor toma conhecimento dos debates havidos em Londres e Nova York acerca dos métodos de esterilização dos degenerados (criminosos ou honestos) e, em especial, das vantagens do método cirúrgico — vasectomia — já praticado no estado americano de Indiana, em mais de oitocentos criminosos desde 1907(!). Além disso expõe os motivos económicos e éticos aduzidos pelos defensores da vasectomia. Com efeito, no que respeita à dimensão supostamente humanitária desta medida argumentava-se que os degenerados, após a operação, não perdiam a virilidade e, simultaneamente, ganhavam o direito ao casamento. A lei apenas devia penalizar gravemente aqueles que ocultassem a sua prévia esterilização às respectivas noivas. Miguel Bombarda não vacila perante esta argumentação e ataca a raíz do problema. Norteado pela sua óptica neo-lamarckista, pergunta frontalmente: “O que é um degenerado? Tirando casos de profunda degenerescência, que se pode dizer não entram em discussão, porque neles a sexualização está abortada, a fixação prática dos estados degenerativos rodeia-se de dificuldades tais que na grande maioria dos casos será impossível determinar cientificamente que se trata de um degenerado. Nem mesmo quando tenhamos em frente toda a história do indivíduo, na sua observação actual como no seu passado e na sua hereditariedade. Ascendências taradas em todosse encontram”(2). Por um lado, o autor denuncia a arbitrariedade dos critérios definidores da degenerescência constitucional e, por outro lado, considera que esta não é tão grave como a degenerescência adquirida, especialmente por via de intoxicação ou de infecção. Assim, “um alcoólico, um sifilítico, é muito mais perigoso para a progénie do que, eu sei, um simples alienado. Vamos também esterilizar
obtenção de resultados bem sucedidos. Na verdade, Miguel Bombarda não
secundava o método por excelência da eugenia positiva,isto era, a criação
de uma elite procriadora, nem a eliminação irreversível das faculdades geradoras do homem e da mulher, em estado de inferioridade física-ou
mental. No entanto, o autor não recusava a suposta evidência da hereditariedade mórbida. No domínio da patologia mental dispunha de muitos casos averiguados no Hospital de Rilhafoles, o qual dirigiu até que a morte lhe fora tragicamente imposta por um alienado, na véspera da revolução republicana(!). Assim sendo, não admira que o Professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa tenha conservado no seu horizonte o ideal:de modelação das gerações vindouras pela qualificação dos meios e; ao
mesmo tempo, tenha defendido a instituição de um livrete de casamento.
Neste documento, o médico faria o registo do estado de saúde do indivíduo; a existência de doença grave contagiosa ou hereditária seria declarada como impeditiva da realização do contrato matrimonial(?). O livrete devia ser imposto pela força da lei pois, atendendo à docilidade do povo
português(?), “uma lei reguladora de casamentos entraria hoje tão facil-
mente como entraram as disposições impondo desinfecções e outras práticas profilácticas das doenças de infecção”(*). Mesmo que o analfabetismo do povo português não lhe permitisse compreender as vantagens evolucionárias desta medida de eugenia preventiva, ele obedeceria. às
determinações legislativas. Porém, esta convicção optimista de Miguel Bombarda não o desviou dos princípios do seu ideal eugénico. Por isso, em coerência, sempre reprovou a esterilização dos degenerados (não era inteiramente hackeliano!), embora o semanário que diri-
gia continuasse a informar o leitor das iniciativas tomadas na América é na Europa em tão delicada matéria. Em artigo não assinado, mas onde sé
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alcoólicos e sifilíticos? O mesmo seria dar cabo da humana raça” (). Em
seu entender, toda a solução radical do problema da degenerescência é insustentável e, em caso algum, pode ser legitimada cientificamente, porque“a ciência hoje não permite senão cortar às cegas”(4). O problema
(1) Vide: H. Barahona Fernandes, “Miguel Bombarda - Personalidade e posição
doutrinal”, art. cit., p. 142.
o
(2) Vide: Miguel Bombarda, “Degenerescencia da raça”, art. cit., pp. 217-218. A —
favor do impedimento médico e jurídico do instituto do casamento, em particular, aos
descendentes de alienados e aos portadores de loucura adquirida, pronunciou-se Casimiro A. de Oliveira na sua dissertação inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, O casamento e a alienação mental, Porto, Typographia Occidental, 1893. :
() Vide: Miguel Bombarda, “A hygiene das escolas e a hygiene dos governos,
art. cit., p. 122. (4) Miguel Bombarda, “Degenerescencia da raça”, art, cit., p. 218.
(1) Vide: “A esterilisação dos degenerados”, A Medicina Contemporanea, Lisboa,
sér. 2, 13 (5) 30 Jan. 1910, pp. 33-34.
(2) Idem, ibidem, p. 34. Sobre as divergências internacionais, no quadro do evolucionismo, quanto à amplitude do conceito de degenerescência, à fatalidade ou não da hereditariedade degenerativa e à delimitação da predisposição degenerativa (inadaptação ao meio), vide: J. Dallemagne, “Dégénérescence et criminalité”. In: Congrês International d'Anthropologie Criminelle —- Compte rendu des travaux, 1897, ob. cit., pp. 94-110.
() “A esterilisação dos degenerados”, art. cit., p. 34. (4) Idem, ibidem,p. 34.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 4
da determinação da fronteira entre o normal-saudável e o patológico era demasiado complexo(!) e a categoria de degenerescência, referida a um normal convencionado, não tinha poder epistemológico para abrir o caminho certo à investigação científica, porque ela comportava juízos de valor extra-científicos, como também observou Sobral Cid(2). Demais, as fraquezas do paradigma psicopatológico dominante na época revelavam-se nestes factos averiguados: a “degenerescência não significa fatalmente progénie degenerada”(), nem necessariamente ausência de qualidades positivas e mesmode atributos criadores de progresso civilizacional, como nos homens de génio(4). Recorde-se que o próprio Charles Darwin não escapava à totalitária doutrina da degenerescência, sendo considerado um “neuropata acentuado”(*) e que, o nosso Antero de Quental era para Sousa Martins “um bom caso” de degenerescência congénita “por hereditariedade bi-lateral convergente ou conspirante, de todas a pior”(º). Com efeito, na esteira de Lombroso, admitia-se que “o génio é uma verdadeira psicose degenerativa, do grupo das loucuras morais, que pode temporaria-
mente gerar-se no seio de outras psicoses, tomar-lhes a forma, conser-
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(!) Vide: Miguel Bombarda, “Opiniões de Lombroso”, A Medicina Contempos ranea, Lisboa,sér. 2, 2 (32) Ago. 1899, p. 273; Idem, “L'avenir de la psychiatrie”, art.cit., p. 136; Idem, “A bancarrota da psychiatria”, art. cit., pp. 185-186. (2) Vide: Sobral Cid “As fronteiras da loucura”, Movimento Medico, Coimbra, 9 (5-6) Mar. 1913, pp. 65-74. () “A esterilisação dos degenerados”, art. cit., p. 34. (4) No quadro da teoria da degenerescência, os homens superiores naarte, na ciência, na religião, na política, etc., eram psiquiatrizados. Vide: J. Bettencourt Ferreira,
“Genio e loucura. A 3º edição do livro de Lombroso”, Revista de Educação e Ensino,
Lisboa, 4, 1888, pp. 80-86; Júlio Artur Lopes Cardoso, A loucura e o génio, Lisboa, Companhia Nacional Editora Sucessora de David Corazzi e Justino Guedes, 1890; CA degenerescencia”, O Mundo Legal e Judiciario, 8 (16) 25 Maio 1894, pp. 263-264; Albino
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vando,todavia, certos caracteres especiais”(1). Não seria criminoso privar a humanidade dos seus génios? Isso não equivalia a negar-lhe uma via imprevisível de evolução civilizacional(2)? Com quedireito os eugenistas radicais advogavam a esterilização dos degenerados, sendo certo que “o problema da degenerescência é um problema insolúvel. Nunca se poderá fazer a partição exacta do que a humanidade lhe deve em benefícios, do que a humanidade lhe deve de estropícios”(). A esterilização é uma medida irreversível que o verdadeiro espírito científico-médico não pode sancionar, antes deve impugnar. A posição de Bombarda contra a esterilização em bloco, fosse masculina ou feminina,e independentemente dos métodos cirúrgicos, traduzia uma ideia consensual na comunidade científica portuguesa. Mas, nem sempre, as notícias sobre medidas de esterilização avançadas no estrangeiro e difundidas por periódicos médicos, vinham acompanhadas de justificações reprovativas. Assim, por exemplo, pouco tempo depois da crítica demolidora de Bombarda, a Gazeta dos Hospitais do Porto fazia o ponto da situação na América e na Europa e destacava como argumento favorável à esterilização dos “idiotas” e dos “imbecis”, o princípio positivista da defesa social, enunciado nestes termos: “se a sociedade tem o dever de protegero fraco,de assistir ao degenerado, tem ao mesmo tempo o dever de se proteger a si própria, defendendo-se contra a propagação da degenerescência”(*). Não obstante, o articulista não advoga de forma explícita e assumida qualquer medida de esterilização dos mentecaptos. Em regra, o pensamento eugénico português não estava orientado para soluções radicais. Mesmo o equacionamento que Ferraz de Macedo — defensor da pena de morte(?) — fez do problema, não se saldou numa
proposta de medidas de esterilização. Este médico, eminente antropo-
Pacheco, Degenerescencia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1901, especialmente
p. 175 e ss.; Manuel Laranjeira, “Augusto Santo” (1901-1903), Prosas perdidas, ob: cit., pp. 131-160; Idem, A doença da santidade (1907), 2º edição, Lisboa, Editorial Labirinto, 1986. (5) Júlio Artur Lopes Cardoso, A loucura e o génio, ob. cit., p. 60. (6) Sousa Martins, “Nosographia de Anthero”, art. cit. p. 237; p. 240. Sublinhado do Autor. Sousa Martins identificava-se com a teoria da degenerescência de Max Nordau, tendo mesmo trocado correspondência com o eminente escritor e médico (judeu húngaro) sobre essa questão. Vide a exposição de Jaime Cortesão, A arte e a medecina. Antero de Quental e Sousa Martinz, ob. cit., p. 76 e ss.; Max Nordau, Dégênérescence. Traduit de Valiemend par Auguste Dietrich. Septiême édition. Paris, Félix Alcan, Editeur, 1906-1907,
2 vols.. Esta é a obra capital de Max Nordau dada à estampa em Berlim em 1892-1893 é traduzida para francês em 1894. Vide: Patrick Tort, “Nordau, Max Simon, 1849-1923º. Es Dictionnaire du darwinisme et de Pévolution, vol. 2, ob. cit., pp. 3246-3249.
(!) Idem, ibidem, p. 59. (2) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex.
Second edition (eleventh thousand), ob. cit., pp. 136-139.
() “A esterilisação dos degenerados”, art. cit., p. 34. (4) “A esterilisação dos degenerados”, Gazeta dos Hospitaes do Porto, Porto,4 (8)
15 Abr. 1910, p. 126.
(é) Vide: Francisco Ferraz de Macedo, Varios ensinamentos e methodo scienti-
fico natural (Para uma monographia), Lisboa, Imprensa Nacional, 1882, pp. 167-181; Idem, Crime et criminel. Essai synthetique d'observations anatomigues, physiologiques, pathologiques et physiques sur des delinguants vivants et morts selon la methode et les procédés anthropologiques les plus rigoureux, Lisbonne, Imprimerie Nationale, 1892,
pp. 263-268.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 4
metrista, opinava que era necessário privilegiar a reprodução dos melhores(!) e eliminar a fertilidade dos “anómalos estigmatizados degenerescentes patológicos ou não “(2) pois esta medida de “positiva selecção artificial de aparência despótica”(2) libertaria o degenerado,a sua família, a sociedade e a espécie humana da má descendência. Pelos cálculos do autor, em média, cada degenerado tinhatrês filhos, de modo que, uma base de mil, na primeira geração, daria na quarta geração “um exército dos mais devastadores com osoitenta e um mil degenerados, cujo maior número terá por armas a venenosa epilepsia!”"(*). A argumentação do autor parece apontar para medidas radicais. No entanto, para combater a multiplicação da degenerescência encimada pela epilepsia e pelo alcoolismo, Ferraz de Macedo elabora um “projecto de restrição matrimonial(É) e não um projecto de esterilização. Segundo o referido projecto, ficavam impedidos de “contrair ligações consorciais de possibilidade ou probabilidade prolífica os epilépticos, os alcoólicos, os tuberculosos, os sifilíticos e todos os patológicos quea ciência classificar de míseros orgânicos ou mentais, que o forem por meio de provas positivas irrefutá-veis”(6). As penas previstas para os infractores à lei proposta(”) estavam igualmente longe de contrariar eficazmente a geração dasreferidas categorias de indivíduos. De facto, a expatriação dos casais(?) por motivo de falsificação dos documentos médicos não obedecia ao autêntico espírito eugénico. Este lutava por me-
nascimentos ilegítimos e, portanto, agravava o problema a todos os níveis. Comparando as dramáticas conseguências económico-sociais e cugénicas daqueles nascimentos ilegítimos com as múltiplas vantagens da esterilização, autores como Angelo Zuccarelli concluíam, inequivocamente, a favor
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didas incontornáveis, como a esterilização masculina ou feminina, pois
duvidava da eficácia real dos impedimentos patológicos do contrato matrimonial. A proibição do casamento aos indivíduos portadores de tara hereditária ou de doença adquirida e transmissível apenas faria aumentar Os
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do método radical: “par la stérilisation, au contraire, tout en laissant libre
Pexercice du coit et en sauvegardant le plus grand respect au libre choix, aux acquiescements amoureux et à tout autres convenances sociales, (...) on atteint certainement et durablementle but d'empécherla procréation de tant de nouveaux et plus grands dégénérés”(!). Entre nós, apenas Egas Moniz ousou propor a esterilização para eliminar a hereditariedade mór-
bida, mas não a admitia em moldes demasiado alargados. Segundo o autor,
futuro Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia(2), não era possível controlar a vida sexual dos indivíduos portadores de fraquezas e de doenças como a histeria, a epilepsia, a neurastenia e outras. Por isso, afirmava interrogativamente: “poder-se-ão obrigar a ser castos? Nunca, porque a força genésica é superior à própria vontade”(2). Assim sendo, há que empregar “os meios para evitar os resultados inconvenientes do acto sexual”(4). Mas que meios? No capítulo das medidas concretas, Egas Moniz exclui as práticas abortivas e defende a esterilidade artificial feminina de um número restrito de casos clínicos(>). Além disso, advoga a proibição do casamento “aos indivíduos atacados de doenças graves contagiosas”(º), como a lepra, a
tuberculose, a sífilis e outras doenças venéreas(?) e aconselha as práticas
(!) Angelo Zuccarelli, “Sur la necessité et sur les moyens d'empêcher la réproduction des hommesles plus dégénérés”, Congrês International d'Anthropologie Criminelle — Compte rendu des travaux, 1901, ob. cit., p. 343.
(2) Egas Moniz recebeu o Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949, por “duas descobertas notáveis: a angiografia cerebral (visualização radiológica do sistema
(1) Imprensa (2) (3) (4)
Francisco Ferraz de Macedo, Bosquejos de anthropologia criminal, Lisboa; Nacional, 1900, p. 296 e ss. Idem, ibidem, p. 250. Sublinhado do Autor. Idem, ibidem, p. 246. Sublinhado do Autor. Idem,ibidem, p. 328. Sublinhado do Autor.
() Idem, ibidem,p. 329.
(9) Idem,ibidem, p. 329. Sublinhado do Autor. (7) Vide: Idem, ibidem, p. 329. (3) No “Projecto de restrição matrimonial” elaborado por Ferraz de Macedo; lê-se: “Art. 3º — As infracções serão consideradas como um ataque à sanidade colectiva e ao bem público; pelo que, ambosos coniventes serão punidos com a simples expatriação, que pode ser voluntária a expensas próprias para onde quiserem, ou ser forçada a expensas públicas para as possessões ultramarinas, e em qualquer dos casos por tempo indeterminado”, Bosquejos de anthropologia criminal, ob. cit., p. 329.
vascular cerebral), destinada sobretudo a localizar e diagnosticar tumores cerebrais e a leu-
cotomia pré-frontal, método cirúrgico com o qual Egas Moniz pretendia tratar certas neuroses e psicoses”, A. Fernandes da Fonseca, Psiquiatria e psicopatologia, vol. 1, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 95. Vide também, H. Barahona Fernandes, Egas Moniz, pioneiro de descobrimentos médicos, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983; Manuel Augusto Rodrigues, “A Universidade de Coimbra e a Europa (1537-1937)”, ICALP-Revista, Lisboa, 9, Out. 1987, p. 102; artigo “cerebral localization”, in: MacMillan dictionary of the history of science, ob. cit., pp. 62-63. () Egas Moniz,A vida sexual. 1 - Physiologia, Coimbra, França Amado — Editor,
1901, p. 271. (4) Idem, ibidem, p. 302. (5) Idem, ibidem, pp. 271-272. (5) Idem, ibidem,p. 338. (7) Vide: Idem, ibidem, p. 350 e ss.
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neo-malthusianas, em especial, “às famílias da classe operária”(!) que, pelas suas condições orgânicas e económicas, não podiam gerar filhos robustos. O ideal seria que a abstenção calculada e intencional da maternidade fosse praticada pelos degenerados em geral e pelos indivíduos debilitados física, psicológica e economicamente. A sociedade devia aprender a conduzir-se nesta matéria crucial de acordo com o “primeiro preceito da boa
Por outro lado, os impedimentos do casamento por consanguinidade, consagrados no Código Civil de 1867(!), deviam ser revistos segundo o critério eugénico decorrente da lei da “hereditariedade convergente acumulada”(2). Neste sentido, a descendência de casais consanguíneos (primos, etc.) só seria dramática em caso de existência de hereditariedade mórbida na família ou de doenças contagiosas num ou em ambos os conjuges. À luz da ciência, a consanguinidade em si mesma não era um problema eugénico(?). Quer isto dizer que o casamento entre consanguíneos sem taras patológicas dava uma descendência normal. Conforme também explicava Carlos Maciel, a ideia segundo a qual “a consanguinidade (...) fixa e aumenta as qualidades boas e más da raça”(4) constituía uma lei da hereditariedade fisiológica, quer se perfilhasse a doutrina de Darwin (gémulas ou pangenes), a doutrina de Hackel (plastídulos), ou a teoria weismanniana (plasma germinal)(). Portanto, se a herança fosse positiva
animalidade”(!), abandonando todos os motivos e interesses de acasa-
lamento que comprometiam a obra perfectibilista da selecção natural. O princípio segundo o qual “para se ser feliz é indispensável, acima de tudo, ser-se um bom, um vigoroso animal”(2) devia ser respeitado categoricamente por se tratar de uma “verdade axiomática”(4). Ainda que
o conhecimento da hereditariedade fosse, ao tempo, muito insatisfatório(>), a herança mórbida era incontestável e, portanto, era legítimo
travar a sua expansão com uma legislação adequada sobre impedimentos patológicos do casamento. É igualmente o problema eugénico quepreside à sua defesa do instituto do divórcio(º) já admitido, por múltiplas razões, em muitos países europeus, mas não em Portugal, apesar da tentativa feita por Reboredo Sampaio e Melo que, em 1900, apresentou uma proposta de lei sobre o divórcio à Câmara dos Deputados(”). (1) Idem, ibidem, p. 272.
(2) Idem, ibidem, p. XX. Sublinhado nosso.
() Idem,ibidem,p. 272.
(4) Idem, ibidem, p. 272. Em 1902, é publicado o segundo volume, A vida sexual. II — Pathologia, Coimbra, França Amado — Editor, 1902. Os dois volumes reunidos tiveram dezoito edições até 1931. Vide: A vida sexual. Fisiologia e patologia. Décima oitava edição. Lisboa, Casa Ventura Abrantes — Livraria Editorara, 1931. No
entanto, Barahona Fernandes escreveu, com todo o fundamento, que esta obra “foi muito censurada, a ponto de cerca dos anos 40, só se vender com “receita médica””, Egas Moniz, pioneiro de descobrimentos médicos, ob. cit., pp. 154-155. (é) Vide: Egas Moniz, A vida sexual. 1 — Physiologia, ob. cit., p. 226 e ss. (5) Idem, ibidem, p. 339. O argumento eugénicoa favor do divórcio era inovador e veio juntar-se à argumentação jurídica e sociológica produzida, entre outros, por Marnoco e Sousa que defendia o divórcio enquanto “substitutivo penal das bigamias, dos uxoricidas e dos adultérios”, Impedimentos do casamento no direito portuguez, Coimbra, F. França Amado — Editor, 1896, p. 308. Posteriormente, os argumentos biológicos, psicológicos, sociológicos e jurídicos passam a andar associados, como acontece nos trabalhos de Luís Augusto Pinto de Mesquita Carvalho, A familia e o casamento. Estudo sociologico, Porto, Magalhães e Moniz, 1909; O divorcio e a separação de pessoas; conclusão. Estudo sociologico, Porto, Magalhães e Moniz, editores, 1909.
(7) Vide: Fernando Catroga, “A laicização do casamento e o feminismo republicano”. In: Colóquio “A mulher na sociedade portuguesa” — Actas. Coimbra, Faculdade
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de Letras — Instituto de História Económica e Social, 1986, vol. 1, p. 143; Rui Cascão, “Família e divórcio na Primeira República”. In: Colóquio “A Mulher na Sociedade Portuguesa” — Áctas, ob. cit., vol. 1, pp. 154-155. (!) Vide: Codigocivil portuguez. Conforme a ediçãoofficial. Quarta edição. Lisboa, Typ. Universal de Thomaz Quintino Antunes, 1869, art. 1073º, p. 247.
(2) Egas Moniz, A vida sexual. 1 - Physiologia, ob. cit., p. 346.
(3) Já em 1871, Raimundo da Silva Mota defendia que a consanguinidade não era causa de desordem orgânica, tanto nas espécies vegetais, como nas animais, incluindo o homem. Pelo contrário, demonstrava que as alianças consanguíneas nas plantas e nos animais era uma das regras básicas do aperfeiçoamento das raças segundo o modelo doméstico de selecção artificial. Vide: Raimundo da Silva Mota, Da consanguinidade matrimonial considerada no campo da hygiene, Coimbra, Imprensa Litteraria, 1871, sobretudo p. 59 e ss. (4) Carlos Maciel, Consanguinidade, Porto, Typographia de A. F. Vasconcellos, Suc., 1905, p. 29.
() Idem, ibidem, pp. 28-29. A questão não muda de figura na primeira década de novecentos. Num trabalho muito bem informado sobre os avanços da ciência da hereditariedade, datado de 1910, Luís Wittnich Carrisso concluífa: “não há lei nenhuma que
regule de modo absoluto a trasmissão de pais a filhos; mas, como é natural, sempre que um certo caracter seja comum aos dois genitores, podemos afirmar que tem mais probabilidades de ser transmitido do que outro qualquer, que não esteja naquelas condições. Essa comunidade de caracteres encontra-se tanto mais facilmente, quanto mais próximo for o grau de parentesco dos genitores”, Hereditariedade. Coimbra, Edição do A., 1910, p. 61. Dissertação manuscrita para o acto de licenciatura na Secção de Sciencias Historico-Naturais da Faculdade de Philosophia, apresentada em 14 de Março de 1910. Também para Eusébio Tamagnini o problema não é a consanguinidade, mas a existência de taras constitucionais na família. Vide: Eusébio Tamagnini, “A propósito duma conferência sobre a consanguinidade e a degenerescência nas famílias reaes”, Movimento Medico, Coimbra, 9 (2) Jan. 1913, pp. 22-26.
Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 4
e os nubentes saudáveis, nenhum argumento moral ou religioso devia impedir o casamento. Excluindo, obviamente, as relações incestuosas que atingiam o fundamento moral da família, as uniões entre parentes deviam estar subordinadas à norma geral que Egas Moniz enunciava nestes termos: “Em todos os casamentos o atestado médico deveria ser o documento indispensável e constituir impedimento transitório ou irredutível, segundo o estado dos conjuges”(!). No mesmo sentido, Carlos Maciel defendia em tese que “nenhum casamento devia ser permitido sem o consentimento médico”(2) e Francisco Augusto Fernandes Massa argumentava, igualmente em tese, que “a profilaxia mais profícua e racional seria sujeitar os nubentes a um rigoroso exame médico e interdizer o casamento aos que não dessem suficientes garantias de saúde à sua prole futura”(2). Em função do exposto, verificamos que a consciência médica-cugénica portuguesa se empenhou fortemente na luta pelos impedimentos patológicos do casamento. À medida que se avança na primeira década do século XX, esta orientação prá-
a verdade é que, em matéria de intervenção eugénica, as aspirações portuguesas permaneceram no limiar mínimo. Havia mesmo quem fizesse questão deafirmar que a inspecção médica pré-matrimonial obrigatória, os impedimentos patológicos do casamento, a subordinação da consanguinidade ao critério científico e o divórcio não eram exigências pro-
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tica do problema acentua-se, embora não se tenha alcançado uma
definição precisa e consensual do quadro das patologias proibitivas do contrato matrimonial. Não quer isto dizer que a eugenia radical (negativa e positiva) não se justificasse no caso da raça portuguesa. Pelo contrário, os resultados dos inquéritos publicados no ano de 1908 em O Século eram assustadores(4).
Por exemplo, o médico Samuel Maia calculou que em cerca de cinco milhões e meio de portugueses, só três mil e quinhentos eram “válidos”, isto é, não apresentavam deformidade visível e sabiam ler. Além destes,
apenas quinhentos e oitenta eram “perfeitos”, isto é, robustos, belos e instruídos(*). Apesar do dramatismo que ressaltava das colunas de O Século, (1) Egas Moniz, A vida sexual. 1 — Physiologia, ob. cit., p. 347. (2) Carlos Maciel, Consanguinidade, ob. cit., p. 75. (2) Francisco Augusto Fernandes Massa, Educação, hereditariedade e suggestão;, Porto, Imprensa C. Vasconcellos, 1906, p. 71. Dissertação inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto. (4) Vide: Irene Maria Vaquinhas, “O conceito de “decadência fisiológica da raça” e o desenvolvimento do desporto em Portugal (finais do século XIX/Princípios do século XX), art. cit.,p. 367 e ss. (*) Vide: Alberto Carrasco Guerra Brevissimas considerações sobre alguns perigos do casamento, Lisboa, Typographia de Francisco Luiz Gonçalves, 1908, pp. 93-94. Alguns indicativos da persistência da debilidade física e mental dos portugueses são apresentados por A.A. Mendes Correia, O problema eugénico em Portugal, Porto, Tipografia da Enciclopédia Portuguesa, 1928. Por exemplo, entre 1915 e 1921, mais de 50% da popu
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priamente zootécnicas(!). Em todo o caso, através dessas medidas, preten-
dia-se “melhorar a espécie humana(...) aumentar-lhe a potência orgânica,
criar-lhe mais força, mais energia”(2). E o mesmo autor, Alberto Carrasco
Guerra, entendia que o divórcio era a solução progressiva e regeneradora para os casos em que a loucura, o alcoolismo,a sífilis e outras doenças ameaçavam o conjuge saudável ou a descendência do casal(?). A sua posição, formulada em tese, traduzia-se neste enunciado: “o divórcio,
amplo, sem restrições, impõe-se como alta medida de higiene socia. “(4. Não admira que, em contrapartida, tenha postulado, em matéria de patologia geral, que “na sociedade contemporânea o dogma religioso é necessariamente anti-progressivo e degeneradordas raças”(º). Sob a aparência de alguma ousadia, o facto é que a dissertação inaugural e as teses que apresentou à Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, inscrevem-se na moderada corrente de pensamento eugénico que se vinha estruturando, grosso modo, desde a década de setenta do século XIX, sob o impacto do cientismo evolucionista. Quanto ao problema da hereditariedade, o autor perfilha o neolamarckismo, particularmente manifesto na abordagem que faz
dos casamentos consanguíneos. Assim, para que estes recebam um parecer favorável do médico não basta que os noivos sejam saudáveis e que a sua família esteja isenta de taras patológicas. É preciso também que os noivos não tenham crescido sob o mesmo tecto, por esta razão, nitida-
mente, neo-lamarckiana: “o meio idêntico pode originar as mesmas predisposições mórbidas que virão a somar-se nos descendentes”(*). Por outro lado, formula em tese um enunciado pouco preciso: “torna-se
lação viril submetida às inspecções para o recrutamento militar não foi apurada por falta de robustez física, falta de altura, deformidades físicas ou falta de saúde (tuberculose, lesões e afecções do aparelho cardio-vascular, etc.), Idem, ibidem, p. 2 e ss.. (1) Vide: Alberto Carrasco Guerra Brevissimas considerações sobre alguns perigos do casamento, ob. cit., p. 86.
(2) Idem, ibidem, p. 86.
() Vide: Idem, ibidem, p. 97 e ss.
(4) Idem, ibidem, p. 105.
(*) Idem, ibidem, p. 105.
(6) Idem, ibidem, p. 88.
Darwin em Portugal
Parte II — Capítulo 4
necessária uma lei reprimindo o casamento de tarados perigosos”(1). Mas, na sua argumentação, defende que a sífilis, a gonorreia, a tuberculose, o alcoolismo, as doenças mentais e nervosas graves e os estados degenerativos(2) deviam inviabilizar o casamento, mesmo que um dos
Castelo Branco admite que, nas sociedades civilizadas, a actuação da
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noivos fosse saudável e robusto. Em 1910, é ainda, e sobretudo, ao nível
do casamento que se ataca o problema da má descendência. Sérgio Calisto, nas suas teses, continuava a luta pela “regulamentação do casamento, baseada num registo sanitário e numa inspecção médica pré-nupcial”(?). 3. À consciência eugénica entre a prudência jurídica e o optimismo higienista O fracasso da proposta de lei, da autoria de Roboredo Sampaio e
Melo, apresentada à Câmara dos Deputados, em inícios de 1910, sobre
“proibição do casamento aos degenerados”, em concreto, “aossifilíticos, aos alcoólicos crónicos, aos tuberculosos e aos afectados de quaisquer doenças mentais e nervosas graves”(*), é uma boa prova das resistências mentais ao cientismo eugenista e, simultaneamente, da persistência de valores humanistas de fundo cristão, assumidos ou recalcados, nas frentes
ideo-políticas da época. Apesar disso, os autores com formação jurídica que reflectiram sobre o problema eugénico não dissentiam da matriz médica exposta. Mas, a sua prudência normativa contribuiu para que a aspiração eugénica referida não se convertesse em força de lei. A posição de António de Azevedo Castelo Branco sobre o problema eugénico, explanada em finais da década de oitenta do século XIX, tipifica a atitude de reserva crítica do saber jurídico
nesta matéria. O sub-director da Penitenciária Central de Lisboa equacionou o problema no quadro da teoria darwiniana, recorrendo, em particular, ao capítulo V da obra The descent of man , que leu em francês(*).
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selecção natural é travada pela protecção social, médica e jurídica “daqueles que a natureza dotou de qualidades menos prósperas para triunfarem das adversidades da existência”(!). Ao nível dos fundamentos, a argumentação do autor em defesa da artificialidade negativa da selecção social é
basicamente extraída da obra de Darwin. De facto, Castelo Branco usa
precisamente aqueles parágrafos darwinianos que comprometem a neutralidade ideológica da antropologia evolucionista do naturalista inglês. Vejamos parte duma longa passagem da obra darwiniana, traduzida por Castelo Branco: “(...) Quanto a nós, homens civilizados, empregamos todos os esforços para obstar ao processo da eliminação; construímos hospitais para os idiotas e para os enfermos; promulgamosleis para protecção dos indigentes; os médicos desenvolvem toda a ciência para prolongar o mais possível a vida de cada um. É racional acreditar-se que a vacina tem preservado milhares de indivíduos, que, débeis de constituição, teriam
sucumbido outrora com a varíola”(2). O excesso de proteccionismo, de filantropia e de sentimentos altruístas está na raíz do problema da quali-
dade da raça. Em lugar de serem eliminados, “os débeis, como os degene-
rados e os delinquentes podem reproduzir-se indefinidamente”(?) e gerar inúmeros descendentes, portadores das mesmas taras, necessariamente
agravadas, como demonstrou Darwin a partir da obra de Galton(º) e do modelo doméstico da criação de animais. Para fundamentar a sensatez (e não propriamente a legitimidade) de uma medida eugénica mínima, Castelo Branco recorre, entre outras, a esta passagem do texto darwiniano que se ajusta bem ao seu objectivo. Ei-la: “Quem se tiver ocupado da
reprodução dos animais domésticos, sabe, sem a mínima dúvida, quanto
(1) Idem, ibidem, p. 208. (2) Idem, ibidem, pp. 169-170. No original de Darwin: “We civilised men, on the other hand, do our utmost to check the process of elimination; we build asylums for the
imbecile, the maimed, and the sick; we institute poor-laws; and our medical men exert their utmost skill to save life of every one to the last moment. There is reason to believe
that vaccination has preserved thousands, who from a weak constitution would formerly (1) Idem, ibidem, p. 105.
(2) Vide: Idem, ibidem, pp. 94-95.
(3) Sérgio Ferreira da Rocha Calisto, Theses de medicina theorica e pratica, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1910,p. 22. (4) “Prohibição do casamento aos degenerados”, Gazeta dos Hospitais do Porto, Porto, 4 (7) 1 Abr. 1910, p. 111. (5) Vide: António de Azevedo Castelo-Branco, Estudos penitenciarios e criminais, Lisboa, Typographia Casa Portugueza, 1888, p. 169-170.
have succumbed to small-pox”, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., pp. 133-134. (3) António de Azevedo Castelo-Branco, Estudos penitenciarios e criminais, ob. cit., p. 208.
(4) Darwin recorre explicitamente ao artigo galtoniano “Hereditary talent and character” (1865) e à obra do mesmo “Hereditary genius” (1869). Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 133.
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Darwin em Portugal
Parte HH — Capítulo 4
esta perpetuação dos seres débeis deve ser nociva à raça humana. Vê-se, com grande surpresa, a rápida degeneração de uma raça doméstica à míngua de cuidados, ou por sua má direcção, e em consequência disso, excepto o homem, ninguém é tão ignorante e falto de tino, que permita a reprodução de animais enfezados”(!). Em termoslógicos, a qualificação da raça é perfeitamente controlável, tomando como guia de acção as regras zootécnicas, ou pelo menos a norma do impedimento da reprodução dos
alcoólicos, os epilépticos, os tísicos e os “velhos”(!). Esta óptica sobrestima oproblema da harmonia entre a moral consuetudinária e a ética cientista. E a suposta constatação do desacordo entre ambas que orienta a reflexão de Castelo Branco para a via educativa. Sem pôr em causa a razoabilidade da luta pelas imposições médico-jurídicas, o autor advoga a educação eugénica como meio, em parte, substitutivo da lei: “a necessidade da vulgarização das leis da hereditariedade fisiológica impõe-se com tanto mais império, quanto a selecção natural tem perdido a sua influência depuradora da espécie nas nações civilizadas”(2). Assim, em primeiro lugar, impunha-se formar uma consciência eugénica pública e privada capaz de dirigir o comportamento dos indivíduos de acordo com o seu nível de higidez física e mental. Simul-
piores (worst animals). Assim, é sobretudo a autoridade de Darwin que é
chamada a caucionar a defesa da interdição do casamento aos degenerados, ainda que Castelo Branco recorra a Lombroso, Biichner, Hackel, Ribot e outras autoridades do final do século, em matéria de hereditariedade(2), para reforçar a pretensa cientificidade daquela medida eugénica. Contudo, se os fundamentos científicos da eugenia não lhe suscitam qualquer dúvida, já o mesmo não ocorre quanto à sua legitimidade. Por um lado, o autor advoga que a sociedade tem o direito e o dever de tomar medidas preventivas contra o casamento dos degenerados(?)e, por isso, em teoria, aprova a legislação da Holanda que proibe o casamento aos indivíduos portadores de moléstias incuráveis, crónicas e hereditárias(*). Por outro lado, entende que o direito de liberdade não pode ser gravemente violado(”), e sê-lo-ia, em virtude da considerável extensão material da degenerescência nos seus diversos graus e variadas formas. Além disso, considera que a sociedade não está mentalmente preparada para aceitar a regulamentação eugénica do contrato matrimonial, mesmo quese tratasse apenas da proibição do casamento a quatro categorias de indivíduos: os () António de Azevedo Castelo-Branco, Estudos penitenciarios e criminais, Ob; cit., p. 208. No original da obra darwiniana, lê-se: “No one who has attended to the bréeding of domestic animals will doubt that this must be highly injurious to the race of man. Kt is surprising how soon a want of care, or care wrongly directed, leads to the degeneration of a domestic race; but excepting in the case of man himself, hardly any one is so ignorantas to allow his worst animals to breed”, The descent of man, and selection in rela: tion to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 134. (2) Vide: António de Azevedo Castelo Branco, “Hereditariedade morbida”, O Mundo Legal e Judiciario, Lisboa, 3 (50) 25 Out. 1888, pp. 857-860; 3 (52) 4 Dez. 1888, pp. 885-887; 3 (53) 5 Dez. 1888, pp. 904-905; Idem, “Casamento e criminalidade”, art. cit., pp. 10-12; Idem, Estudos penitenciarios e criminais, ob. cit., pp. 161-173. (3) Vide: António de Azevedo Castelo Branco, “Casamento e criminalidade”, art. cit., p. 12. (4) Vide: António de Azevedo Castelo Branco, “Hereditariedade morbida”, art. cit., p. 905.
(3) Vide: Idem, ibidem, p. 905.
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taneamente, em relação aos menores delinquentes, o autor confiava na
possibilidade da sua regeneração, através duma “ortopedia racionalmente correctiva das deformidades morais congénitas”(?). Quer isto dizer que Castelo Branco não exclui a eficácia moral e biológica da educação, de acordo com os princípios de Lamarck. Mas, nem por isso, se revela crítico do hereditarismo da escola lombrosiana(?). Neste sentido, não ques-
tiona a figura do criminoso-nato de Lombroso, embora não aceite a sua
eliminação pela morte; antes, é favorável à sua segregação perpétua(”). Tal como advogavam António Maria de Sena, Basílio Freire e outros, a prisão perpétua era o meio defendido para impedir a reprodução dos criminosos incorrigíveis ou natos, identificados, física e psicologicamente, com uma “espécie de antropóide”(*). Ao contrário da pena de prisão maior celular
(!) Cf. António de Azevedo Castelo Branco, Estudos penitenciarios e criminais, ob.cit,p. iNQess.
(2) Idem, ibidem, p. 169.
(3) Idem, ibidem, p. 141. (*) Vide: António de Azevedo Castelo Branco, “A escola penal positiva”, Revista de Educação e Ensino, Lisboa, 3, 1888, pp. 84-88, 97-100; Idem, “A escola penal positiva”, O Mundo Legal e Judiciario, Lisboa, 4 (76) 25 Nov. 1889, pp. 1261-1264; 4 (77) 10 Dez. 1889, pp. 1277-1279; 4 (78) 25 Dez. 1889, pp. 1293-1296; Idem, poemeto “cruzes tragicas”, Lyra meridional, Porto, Livraria Central Campos & Godinho-Editores, 1885, pp. 202-204. (*) Vide: António de Azevedo Castelo Branco, “A escola penal positiva”, O Mundo Legal e Judiciario, art. cit., p. 1293 e ss.. (6) António Maria de Sena, Discursos sobre o systema penitenciario, S. Paulo, Teixeira e Irmãos — Editores, 1889, p. 52. Sublinhado do Autor; vide, também Basílio Freire, Estudos de anthropologia pathologica. Os criminosos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1889, p. 33; p. 268.
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(estabelecida no sistema penintenciário, lei de 1 de Julho de 1867) seguida de degredo(!), a prisão-perpétua do criminoso-nato asseguraria a sua extinção gradual, “resultando daí o saneamento progressivo da raça”(2). Os autores referidos eram unânimes em considerar que, através da prisão perpétua do criminoso dito incorrigível ou nato, a eugenia negativa funcionava automaticamente. Embora a reflexão de A.A. Castelo Branco não seja exclusivamente
No âmbito do saber jurídico, são detectáveis algumas reflexões eugénicas em trabalhos de outros autores. Isto não quer dizer que, sempre que o objecto em análise é o problema dos impedimentos matrimoniais se argumente na base dum espírito minimamente eugenista(!). Outras vezes, a abordagem do tema circunscreve-se a aspectos parcelares, como a consanguinidade, as idades mínimas e máximas para casar, ainda que se argumente à luz da biologia, da fisiologia e da patologia e seja nítida a preocupação com a qualidade da descendência(?). Particular referência merece o trabalho sistemático desenvolvido por José Ferreira Marnoco e Sousa na sua dissertação de licenciatura em Direito(?). Trata-se de um estudo original, na medida em que o autor advoga a instituição de impedimentos patológicos do casamento, mas não secunda o biologismo sociológico(*) e, especialmente, o darwinismo social. Neste sentido, defendia em tese, expressamente, que “a teoria darwinista da luta pela existência e da selecção natural não é aplicável às sociedades humanas”(*). Em coerência, Marnoco e Sousa perfilha a teoria poligenista(”), mas recusa os impedimentosraciais
moldada pelo hereditarismo, a verdade é que o autor sublinha a neces-
sidade de se “coibir eficazmente a reprodução de pais degenerados, viciosos, perversos e corruptos”(2). Mas, mantém-se juridicamente reservado nesta melindrosa questão e, ao mesmo tempo, remete-a para a instância da selecção natural. No fundo, talvez sob a influência da leitura de Darwin, não encara a eugenia com dramatismo e confia no aperfeiçoamento da espécie. O mesmo é dizer que, apesar dos poderosos condicionalismos civilizacionais que se exercem sobre a livre actuação: da selecção natural, esta dispõe de meios pelos quais “expurga a humanidade de indivíduos organicamente inferiores e cuja propagação não seria proveitosa para a espécie”(*). No entender do autor, era o caso dos suici-
das(º), mesmo que o seu número(*) parecesse muito insignificante. A mor-
talidade infantil também trazia a marca da selecção natural e, dada a sua taxa elevada, será colocada, mais tarde, entre os principais “agentes automáticos de depuração natural”(?) pelo médico-antropólogo A. Mendes Correia. (1) Vide qualquer edição do Código Penal de 1886, artigos 55º, 56º, 57. Consultámos o Codigo penal approvado por Decreto de 16 de Setembro de 1886, Porto, Livraria Chardron, 1907, p. 21. (2) António Maria de Sena, Discursos sobre o systema penitenciario, ob. cit., p. 56. (3) António de Azevedo Castelo Branco, Estudos penitenciarios e criminais, ob.cit., p. 141.
(4) Idem, ibidem, p. 37.
(5) António de Azevedo Castelo Branco recorre também às autoridades de Heckel e de Bagehot: “da mesma opinião é Hackel, que considera o suicídio uma válvula de segurança para as gerações futuras, porque as livra de uma herança triste e fatal de nevroses, isto é, de dores; e segundo Bagehot é também a morte voluntária um dos factores do aperfeiçoamento da espécie humana por meio da selecção”, Estudos peniten ciarios e criminais, ob.cit., p. 37. (9) A julgar por uma notícia intitulada “Os suicidios em Portugal”, O Mundo Legal e Judiciario, Lisboa, 8 (19) 10 Jul. 1894, p. 317, entre 1886 e 1893, verificaram-se 292 suicídios expressos nas certidões de óbito. (7) António Augusto Mendes Correia, O problema eugénico em Portugal, ob: cit.
p. 6.
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do casamento, como, por exemplo, “o impedimento da diferença de cor”().
Por outro lado, o autor não aceita, em absoluto, o determinismo hereditarista da antropologia da escola lombrosiana. Em seu entender, a hereditariedade das tendências criminosas não era um facto averiguado; pelo contrário, constatava que elas “são muitas vezes modificadas, senão mesmo eliminadas,
pela influência do meio, da educação e da instrução”(8). Assim, o autor refuta o impedimento matrimonial por criminalidade. Também no caso dos surdos-mudos, não aceita, como norma, a proibição do casamento. Pelo (!) Vide, por exemplo, Bernardo de Serpa Pimentel, Algumas palavras proferidas na Camara dos Dignos Pares do Reino em sessão de 7 de Fevereiro de 1888 (Versam sobre mais de um assumpto, mas principalmente sobre impedimentos de casamento), Lisboa, Imprensa Nacional, 1888. (2) Vide, por exemplo, Lima Duque, “A consanguinidade e o matrimonio”, A Academia de Coimbra, Coimbra 1 (5), 1886, pp. 1-3; Idem, “A nubilidade e a lei”,
À Academia de Coimbra, Coimbra, 1(9)1886,pp. 1-2. (é) Vide: José Ferreira Marnoco e Sousa, Impedimentos do casamento no direito portuguez, Coimbra, F. França Amado- Editor, 1896.
(%) Idem, ibidem, p.4e ss.
(º) José Ferreira Marnoco e Sousa, Theses selectas de direito as quaes (...) na Universidade de Coimbra se propõe defender para obter o grao de doutor nos dias 4e 5 do mez de Novembro de 1897, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1897, p. XIII.
(6) Idem, ibidem, p. XL
(7) José Ferreira Marnoco e Sousa, Impedimentos do casamento no direito portuguez, ob. cit., p. 231.
(8) Idem, ibidem, p. 296.
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contrário, “a lei deve permitir que os surdos-mudos casem quando sejam suficientemente desenvolvidos para serem considerados capazes, o que, como nota Krafft-Ebing, precisa de ser determinado em todos os casos particulares por exame médico”(!). No entanto, o autor defende que as enfermidades da mente devem constituir impedimento patológico do casamento(?), quer se trate de demência interdita(2) ou não interdita. Além das doenças mentais detectáveis por exame psiquiátrico, outras doenças ditas hereditárias ou contagiosas pelas ciências médicas(*), deviam ser impeditivas do matrimónio. É precisamente no capítulo dos impedimentos patológicos do matrimónio que se nota a sensibilidade de Marnoco e Sousa à dimensão eugénica do casamento. É manifesto que o autor é favorável à introdução no Código Civil de 1867 de impedimentos dirimentes de ordem patológica(º) do contrato do casamento. Embora sublinhe, em particular, a escrófula, a tuberculose,a sífilis, as doenças mentais e o alcoolismo, entende que não é da competência do jurista estabelecer o quadro de doenças proibitivas da realização do contrato matrimonial. Não há dúvida que a sua exposição defende a necessidade de se actualizar o Código Civil português, de acordo com a pressão eugenista exercida pela classe médica. Mas a sua atitude de cautela, relativamente a indicações legislativas bem determi-
nadas, também é notória, o que se compreende tanto mais quanto Marnoco e Sousa não se identificava com o fundo darwinista da eugenia. Considerando em blocoas reflexões expostas e as medidas concretas efectivamente tomadas, o balanço é negativo em termos de rigor eugénico. Tenha-se presente que a “lei do casamento como contrato civil”, de 27 de Dezembro de 1910, impedia de casar “os interditos por demência, verificada por sentença passada em julgado, ou notória, e bem assim os divorciados por motivo de doença contagiosa reconhecida como incurável, ou de doença incurável que importe aberração sexual”(9). Se as doenças men-
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tais incuráveis e as doenças contagiosas incuráveis eram porlei, “taxativamente causaslegítimas do divórciolitigioso”(!), e causas impeditivas de segundas núpcias, a verdade é que o contrato de casamento não estava sujeito a qualquer exame médico pré-nupcial obrigatório. O argumento patológico servia o instituto do divórcio (e, logicamente, impedia as segundas núpcias) mas não se converteu numa medida elementar de eugenia negativa. Este facto prova a força do humanismo optimista reinante na época e não propriamente a nossa insconsciência eugénica. Os testemunhos médicos e jurídicos referidos não esgotavam a cons-
ciência eugénica da elite culta. Ela também é detectável nas artes, especial-
mente na literatura. Em certa medida podemos encontrá-la nalgumas criações geniais de Camilo e de Eça, bem como nas produções literárias de qualidade inferior dum Abel Botelho, dum Teixeira de Queirós, dum Júlio
Lourenço Pinto e outros(2), ainda que a defesa do eugenismo esteja, em regra, completamente fora dos seus horizontes. Mas há excepções. Fialho de Almeida colocou a sua formação médica ao serviço da educação eugéni-
ca através da sua obra literária. Nesta, aborda temas respeitantes à hereditariedade mórbida, à degenerescência, à transmissão hereditária de carac-
teres prejudiciais adquiridos; faz a apologia da eugenia positiva, através da selecção médica dos progenitores; e da eugenia negativa-preventiva, reprovando os casamentos disgénicos e defendendo o policiamento médico de todos os casamentos(?). É também oportuno lembrar que, na cena VIII do segundo acto da peça de Antero de Figueiredo, A Estrada Nova (1900)(),
a guerra à tuberculose se convertia na guerra ao amor cego(”). Na referida (1) Vide: [Lei do Divórcio], Diario do Governo, 26, 4 de Novembro de 1910, p. 282, art. 4º, 7º e 10º. (2) Vide: Fernando Catroga, “Os caminhos polémicos da “geração nova” “. In: História de Portugal. Direcção de José Mattoso. Vol. 5 — O liberalismo (1807-1890), ob. cit., pp. 569-582; Rui Ramos, História de Portugal. Direcção de José Mattoso. vol. 6 — À segunda fundação (1890-1926), ob. cit., pp. 313-321; Umberto Araújo, “Um caso
(1) Idem, ibidem, p. 299.
(2) Idem,ibidem, pp. 297-299.
(3) Vide: Codigo civil portuguez. Conforme a edição official. Quarta edição, 1869, ob. cit., art. 314º, p. 76.
(4) José Ferreira Marnoco e Sousa, Impedimentos do casamento no direito pôr: tuguez, ob. cit., pp. 291-295. (5) O vazio legal do Código Civil nesta matéria é patente nos artigos 1058º e 10735. Vide Codigo civil portuguez. Conforme a edição official. Quarta edição, 1869, ob. cit., pp. 243 e 244; p. 247. (9) “Leis da Familia. Nº 1 Lei do casamento como contrato civil”, Diario do Governo, 70, 27 de Dezembro de 1911, p. 937, artt. 4º, nº 4.
patológico”. In: n Memoriam — Eça de Queiroz. Organizado por Eloy do Amaral e M.
Cardoso Martha. Segunda edição, acrescida com novos estudos. Coimbra, Atlântida, 1947,
pp. 396-404; António Augusto Mendes Coorreia, O genio e o talento na pathologia (Esboço critico), ob. cit., p. 19 e ss.. () Vide: Almerindo Lessa, Fialho de Almeida ou a campanha eugénica dum prosador, Lisboa, Centro Tipográfico Colonial, 1938.
(4) Vide: Antero de Figueiredo, “A estrada nova”, Guerra à Tuberculose. Boletim da Liga Nacional Contra a Tuberculose, Lisboa, 1 (2) Abr. 1902, pp. 27-37. (º) O amor cego não era a irracionalidade máxima. O risco supremo consistia, como demonstrava Fernão Amaral Boto Machado, em “Cazar por annuncio”, O Mundo
Legal e Judiciario, Lisboa, 8 (10) 25 Fev. 1894, pp. 159-160.
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cena, Manuel Monteiro procura dissuadir António de Sousa de casar com a
Podia ter-lhe mostrado que a felicidade do casal e dosfilhos iria depender
Mas, António de Sousa argumenta: “a tuberculose não se herda e a Maria,
do exercício físico e do estilo de vida. Podia ter sublinhado a dimensão social do problema e a extrema vulnerabilidade dos “predispostos” nos
sua amada, Maria, porque os seus dois irmãos e a mãe morreram tísicos.
bem cercada de cuidados, poderá viver”. E, Manuel Monteiro replica:
“Sim, e o primeiro cuidado é não casar”(!). O diálogo prossegue com vivacidade dramática; sucedem-se os argumentos eugénicos contra as razões do coração. Manuel Monteiro tenta provar ao jovem apaixonado
que o seu casamento com Maria condenará fatalmente os seusfilhos “mais
cedo ou mais tarde, a serem vencidos na incessante luta pela vida, que
sempre deu, dá e dará, o primeiro lugar aos fortes”(2). A cegueira do jovem António de Sousa é completa. Tudo o que ouve é filtrado pelo seu sentimento amoroso. Então, Manuel Monteiro muda de estratégia, aban-
dona o caso pessoal do jovem apaixonado e coloca o problema ao nível sociológico e rácico. “(...) Se todas as raças se apuram, porque não se há-de também apurar a raça humana? (Pausa.) Demais, é uma imoralidade. Com que direito se chama à vida um ser enfezado? Com que direito? Os filhos deviam pedir aos pais severas contas de erros desta ordem: deviam ser juízes de tal procedimento. Só deveter herdeiros quem, pelo menos, tiver saúde para lhes legar”(2). Na verdade, o jovem António de Sousa tinha razão. A tuberculose não é hereditária(*) e, em 1900, já não havia qualquer dúvida àcerca desta doença infecciosa e contagiosa, provocada pelo bacilo de Koch (descoberto em 1882) que, na época, era-a primeira causa de morte, fazendo milhares de vítimas, sem distinção de classe, sexo e idade, embora matasse especialmente na “flor da idade”(?).
Mas, na óptica eugenista, bastava que a tuberculose fosse uma doença contagiosa; os indivíduos saudáveis não deviam constituir família com indivíduos atingidos pelo letal micro-organismo. Ora, Maria não estava tuberculosa. Tinha uma constituição fraca. Por isso, Manuel Monteiro podia ter apelado para a consciência higiénica do jovem apaixonado.
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da qualidade da habitação e das suas condições sanitárias, da alimentação,
meios públicos. Em vez de seguir a via do higienismo, Manuel Monteiro
desempenha o papel do eugenista. Não há dúvida que este fragmento literário veicula a dogmática eugénica mais simples. Em relação à higiene privada e pública, esta eugenia já parece demasiado cruel. Com efeito, pela lógica de Manuel Monteiro, quem seria suficientemente saudável para ter direito à sua própria descendência? Mas, ainda assim, é uma eugenia moderada que fica muito aquém do radicalismo esterilizador dos tuberculosos e de outros doentes físicos e mentais, cuja selecção seria feita por uma comissão médica(!) nas escolas, no recrutamento militar, nos concur-
sos aos empregos públicos e nos pedidos de casamento. E de crer que, em Portugal, o vazio legislativo sobre a questão do
certificado médico pré-nupcial, a sua obrigatoriedade para todos os nuben-
tes e consequente autorização ou proibição do casamento, se alicerçasse na
esperança depositada no higienismo, representado pela figura magna de
Ricardo Jorge(2). Na verdade, em matéria de doenças contagiosas,
qualquer medida eugénica teria uma eficácia muito limitada e duvidosa
comparada com o alcance da higiene privada e pública. Por outro lado,
quanto à maioria das doenças supostas hereditárias, a ciência não detinha argumentos sólidos para mostrar as vantagens evolucionárias da selecção negativa e positiva dos reprodutores. Por isso, quaisquer medidas de
eugenia radical (como esterilização) ou moderada (como a proibição do
casamento) e bem assim, medidas fiscais (como a aplicação de impostos pesados aos celibatários ricos e de boa estirpe), todas elas, à luz da ciên-
cia, eram, de facto,arbitrárias. Mesmoqueo vazio da lei não fosse sinón-
imo de prudência, fundada no conhecimento das incógnitas da ciência da
hereditariedade e das dificuldades de elaboração dos diagnósticos retros(!) Antero de Figueiredo, “A estrada nova”, ob. cit., p. 29. (2) Idem, ibidem, p. 31. Sublinhado nosso.
() Idem, ibidem, p. 31. Sublinhado nosso.
(4) Vide: Ana Leonor Pereira; João Rui Pita, “Liturgia higienista no século XIX.
Pistas para um estudo”, Revista de História das Ideias, Coimbra, 15, 1993, p. 452; pp. 490-
-492; pp. 516-517; pp. 542-545. (5) Vide: “Catecismo contra a tuberculose”. In: Guerra à Tuberculose. Boletim da Liga Nacional Contra a Tuberculose, Lisboa, 1 (2) Abr. 1902, pp. 40-44; Rui Cascão, “Demografia e sociedade”. In: História de Portugal. Direcção de José Mattoso. vol. 5 — O liberalismo (1807-1890), ob. cit., p. 435; Maria José Báguena Cervellera, La tubercu: losis y su historia, Barcelona, Fundación Uriach, 1992.
(!) Vide: Angelo Zuccarelli, “Sur la necessité et sur les moyens d'empêcher la réproduction des hommes les plus dégénérés”, Congrês International d'Anthropologie Criminelle — Compte rendu des travaux, 1901, ob. cit., sobretudo pp. 342-343. (?) Vide, entre outros trabalhos de Ricardo Jorge, Hygiene social applicada á Nação Portugueza. Conferencias feitas no Porto, Porto, Livraria Civilisação de Eduardo
da Costa Santos-Editor, 1885; Demographia e hygiene na cidade do Porto. 1 — Clima — População — Mortalidade, Porto, Repartição de Saude e Hygiene da Camara do Porto, 1899; “Prefacio”. In: Herbert Spencer, Educação intellectual, moral e physica, ob. cit.,
pp. HI-XVI. Ana Leonor Pereira; João Rui Pita, “Liturgia higienista no século XIX. Pistas
para um estudo”, art. cit., sobretudo pp. 438-440; 478-489.
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pectivos e prospectivos, o certo é que esse silêncio respeitava a ciênciae, obviamente, o bom senso moral do cidadão comum. Com efeito, a eugenia estava longe de ser a aplicação lógica dos resultados científicos, pela simples razão de que esses resultados, em
Esta consciência científica crítica da eugenia não se aprofundou nos anos seguintes e atingiu um nível quase acrítico com o médico-antropólogo António A. Mendes Correia. O seu trabalho fundamental nesta matéria é estampado em 1928(1), precisamente no período mais activo da
matéria de hereditariedade, eram muito frágeis. No seu notável trabalho
manuscrito de 1910, o naturalista Luís Wittnich Carrisso, mostra que “as leis da transmissibilidade e da transmissão dos caracteres assim como as da variação [estão] envolvidas por enquanto numa grande incerteza”()). E, acrescentava que “nos domínios da patologia, os fenómenos da hereditariedade suscitam também largas discussões”(2). Era justamente o que ocorria nas tentativas de verificação das leis de Mendel(?) na hereditariedade mórbida do homem. Ora, a aplicação das leis de Mendel à hereditariedade patológica do homem punha em causa a legitimidade científica das práticas eugénicas(?), como explicitou, em termos muito simples, mas precisos, o médico antropólogo A. Pires de Lima: “a aplicar-se sem restrições ao homem as leis de Mendel, o sequestro,a esterilização ou de algum modoa proibição de se reproduzir aplicada aos tarados seria ineficaz. Indivíduos perfeitamente sãos poderiam ter latentes os germens de qualquer doença ou tara, que só viria a revelar-se nos descendentes. Por outro lado, um indivíduo tarado podia, conforme a lei da disjunção dos caracteres, dar origem a um indivíduo são. E daí teríamos que tal proibição, além de ser ineficaz, seria afrontosa e injusta”(>). Idêntica opinião era emitida por Artur da Cunha Araújo(*) na sua dissertação inaugural à Faculdade de Medicina do Porto e pelo botanista Aarão Ferreira de
Lacerda(”).
(1) Luís Wittnich Carrisso, Hereditariedade. Coimbra, Edição do A., 1910. Dissertação manuscrita, ob. cit., p. 7.
(2) Idem, ibidem,p. 8.
(3) Sobre as leis mendelianas, vide: Charles Lenay, La découverte des lois de Pheérédite (1862-1900). Une anthologie, ob. cit., pp. 51-102; pp. 239-263; Jacques Ruffié, Tratado do Ser Vivo. Volume II. A verdadeira natureza do gene, Lisboa, Fragmentos,
1982, pp. 12-18. (4) No entanto, depois da morte de Galton em 1911, os eugenistas apostaram no mendelismopara justificar a eugenia negativa. Cf. Mogens Hauge, “What has happened to eugenics”, art. cit., p. 203.
(5) Américo Pires de Lima, 4 evolução do transformismo, Porto, Typografia' da Encyclopédia Portuguesa, 1913, pp. 118-119. (9) Artur da Cunha Araújo, O mendelismo no homem (Breve estudo sobre here: ditariedade), Porto, s. ed., 1912, sobretudo pp. 60-63. (7 Aarão Ferreira de Lacerda, “Breves considerações sobre alguns factos de here, ditariedade”, Dionysos, Coimbra,(5), 1912, pp. 263-276.
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Federação Internacional das Organizações Eugénicas(), e, portanto, na
fase de alta expansão do pensamento eugénico internacional(), sustentado por um vasto conjunto de eminentes biólogos da época. A lista apresentada por Daniel Dreuil é longa, o que leva o autor a colocar o problema ao contrário: nos anos vinte, trinta e quarenta houve algum biólogo-geneticista que tivesse tomado uma posição historicamente marcante contra o eugenismoA?). O autor tenta provar o “engagement massif” da comunidade de geneticistas na defesa do eugenismo o que, embora nos pareça um exagero(”), serve para entender a posição de AA. Mendes Correia, num país que, de facto, apenas arriscava o mínimo nesta matéria. Com efeito, não surpreende que, em Portugal, um cientista qualificado e actualizado advogasse a eugenia negativa e positiva, no momento
em que na Europa, sobretudo do Norte, e nos E.U.A. se tomavam medidas eugénicas radicais(º). No dizer de A.A. Mendes Correia, era “urgente e
indeclinável pôr em prática entre nós os princípios racionais da eugénica positiva (...), da eugénica negativa (...) e da eugénica preventiva (...). Estabeleça-se o pedigree das famílias, a segregação de criminosos recidi(1) Vide: António Augusto Mendes Correia, O problema eugénico em Portugal, ob. cit. (2) Cf. Mogens Hauge, “What has happened to eugenics”, art. cit, p. 204. () Vide, também, Richard C. Lewontin; Steven Rose; Leon J. Kamin, Genética e
política, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1987, p. 220 e ss. (4) Vide: Daniel Dreuil, “Entre science et eugénisme: le fardeau génétique”. In: Darwinisme et société, ob. cit., p. 480. (5) Vide, por exemplo, o caso de J.B.S. Haldane, geneticista de renome mundial que, numa obra de 1938, denuncia os preconceitos raciais e os perigos da eugénica. Consultámos umatradução francesa, Hérédité et politique, Paris, Presses Universitaires de France, 1948, sobretudo p. 33 e ss.
(9) Vide, por exemplo, um modelo de lei de esterilização americana de 1922 dos indivíduos “socialmente inaptos”, in 1.B.S. Haldane, Hérédité et politique, ob. cit., pp. 2-3, A lei compreende dez categorias singulares e plurais de “inaptos”, nas quais constam, designadamente, os indigentes, os sem domicílio, os órfãos, os cegos, os surdos, os alcoólicos, os drogados, os tuberculosos, ossifilíticos, etc. e, em primeiro lugar, os débeis mentais, loucos e criminosos. O artigo 15º da mesma lei prevê a esterilização dos parentes dos “inaptos” que, de acordo com asleis da hereditariedade (?!), eram classificados como procreadores potenciais de uma progenitura socialmente inadequada. A lei não se destinava apenas à raça negra. Comentário: por esta ordem de ideias, o genial Beethoven não teria nascido na América livre dos anos vinte ou trinta.
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Darwin em Portugal
vistas, a esterilização e o neo-malthusianismo, em casos de grandes taras e doenças profundas, o exame ante-nupcial com regulamentação sanitária do casamento, a propaganda popular e escolar da eugénica (incluindo a educação sexual e a profilaxia anti-venérea), a protecção às gestantes, a regulamentação médica da imigração; enfim a luta contra todosos factores disgenizantes (alcoolismo, uso de alcalóides, prostituição, imoralidade, etc.“(!). A proposta do autor visava, em primeira linha, negar aos progenitores, bio-socialmente inaptos, “o direito de dar a vida a alienados, a epilépticos, a degenerados, a criminosos, a vagabundos, a estropiados físicos e psíquicos, a mendigos profissionais, a alcoólicos, a sifilíticos...”(2). Conforme a justificada advertência de Mendes Correia, à luz da
radicalização da dinâmica eugénica internacional, a sua proposta não pecava por excesso, por “feroz irredutibilidade”(2). No entanto, o autor entendia que a inaptidão bio-social era uma questão constitucional-germinal, isto é, hereditária, e, por isso, mostrava-se céptico relativamente aos
meios higienistas e terapêuticos(4) de combater a degenerescência da raça portuguesa. Não há dúvida que o problema eugénico português é apresentado com profundo dramatismo e o cientista não esconde o seu receio pelo “triste fim” duma raça, outrora forte(*), caso não se tomassem medidas eugénicas elementares. Mas, entre nós, o bom senso prevaleceu. O problema da boa
descendência acabou por não se autonomizar do vasto campo higienista que, em todo o mundocivilizado, se alicerçava nas revoluções química, vacínica e pasteuriana(ó) e que fazia do combate ao micróbio e a outros factores patogénicos, como a fome e a ignorância, o meio de realizar o ideal de perfectibilidade humana. Se “o bem estar físico e moral, a
evolução meliorista da actividade somática e intelectual da humanidade”(7) estava ao alcance da via higienista, nenhum argumento era sufi(1) António Augusto Mendes Correia, O problema eugénico em Portugal, ob. cit., p. 7.
(2) Idem, ibidem, p. 7.
() Idem, ibidem,p. 7. (4) Idem, ibidem,p. 6. (º) Idem, ibidem,p. 8.
(6) Vide: Ana Leonor Pereira; João Rui Pita, “Ciência e medicina: a revolução pasteuriana”. In: Congresso Comemorativo do V Centenário da Fundação do Hospital Real do Espírito Santo de Évora, Évora, Hospital do Espírito Santo, 1996,
pp. 245-271.
(7) Ricardo Jorge, Hygiene social applicada á Nação Portugueza. Conferencias feitas no Porto, ob. cit., p. 41.
Parte IH — Capítulo 4
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cientemente forte para validar a via eugénica(!), ainda que esta pudesse coexistir com o higienismo. 4. A insensibilidade portuguesa
à via eugénica privilegiada por Darwin Darwin salvaguardou sempre a selecção natural enquanto meca-
nismo da evolução na história natural, incluindo a história da espécie
humana(?). É a sua fé na selecção natural que preside às suas reservas em matéria de eugenismo. As reflexões que sobre esta questão estampou na sua obra, The descent of man, estão orientadas mais no sentido da eugenia
positiva do que da eugenia negativa. É verdade que o naturalista inglês via na significativa diferença de taxas de fecundidade, entre o homem imprudente-inferior “reckless-infe-
rior” e o homem prudente-superior “prudent-better” um problema para o
progresso civilizacional ou, no dizer de Darwin, para “the advancement of
the welfare of mankind”(2). Mas, entendia ser mais eficaz estimular a reprodução dos melhores que interferir coactivamente na reprodução dos inferiores. Por isso, Darwin defendia a supressão das leis e dos costumes (por exemplo, o celibato clerical) que impediam o sucesso reprodutivo dos melhores: “the most able should not be prevented by laws or customs from
(1) Para uma leitura crítica do neo-eugenismo (de 1970 em diante) ampliado pelas biotécnicas da engenharia genética vide: Germano da Fonseca Sacarrão, Biologia e sociedade If. O homem indeterminado, ob. cit., sobretudo, pp. 227-281; J. - M. Hennaux, “Questions de bioéthique. A propos d'ouvrages récents”, Nouvelle Revue Théologique, Namur, 109 (1) Jan. - Fev. 1987, pp. 96-104; Luís J. Archer, Temas biológicos e problemas humanos, Lisboa, Edições Brotéria, 1981, sobretudo p. 10 e ss., p. 48 e ss.; Georges Guille-Escuret, “[Recensão crítica de] Austin L. Hughes, Evolution and human Kinship. New York — Oxford, Oxford University Press, 1988. VII, 162 p.”, L'Homme, Paris, 29 (111-112) Jul. -Dez. 1989, pp. 263-264; François Gros, A civilização do gene, Mem Martins, Terramar, 1989, sobretudo pp. 95-119; Denis Buican, A genética e a evolução, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1987, sobretudo p. 112. e ss. (2) Vide: Charles Darwin, The origin of species by means of natural selection, or the preservation offavoured races in the struggle for life. Sixth edition, ob. cit., p. 49; Idem, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., pp. 606-619. (3) Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., p. 618.
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Parte II — Capítulo 4
Darwin em Portugal
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succeeding best and rearing the largest number of offspring”(!). Darwin não tem dúvidas sobre as vantagens evolucionárias da inversão da taxa de fecundidade; o ideal seria que os melhores deixassem uma larga descendência, pois não seria de esperar que os fracos, “the weak”, no sen-
tido físico, mental e económico, se abstivessem, voluntariamente, da luta
pela sua descendência(?). É neste âmbito que Darwin se pronuncia a favor duma maior participação da mulher instruída na reprodução(?). A mulher treinada nos trabalhos da razão e da imaginação, habituada à luta mental, devia produzir uma descendência numerosa. A longo prazo, de geração em geração, as faculdades mentais femininas aumentariam, o que viria a traduzir-se numa elevação mental de ambos os sexos, pois a mulher lega
as suas faculdades não só às filhas mas também aos filhos. Portanto, a
melhoria da constituição hereditária da espécie, no plano mental e moral, dependia do número de filhos gerados pelas mulheres que tinham acesso à cultura da mente e se dedicavam a trabalhos intelectuais desde a juventude. Um bom exemplo deste ideal era a própria família de Charles
Darwin, casado com Emma Wedgwood, uma mulher saudável, bela, amorosa, instruída e rica (sua prima direita), colaboradora-secretária do
naturalista(?) e que, ao mesmo tempo, dera à luz, entre os 31 anos e os 48 anos, dez filhos(”), seis meninos e quatro meninas.
Fig. 10 — Emma Darwin. (Reproduzido de Steve Parker, Charles Darwin, 1992)
(1) Idem,ibidem, p. 618.
(2) Idem, ibidem, p. 134.
(3) Vide: Charles Darwin, parágrafo intitulado “Difference in the mental powers of the two sexes”, The descent of man, and selection in relation to sex. Second edition (eleventh thousand), ob. cit., pp. 563-566. (4) Vide: Charles Darwin, Memorias y epistolario íntimo. Mi vida - Recuerdos del hijo — Correspondencia selecta. Prólogo de Alberto Palcos. Buenos Aires, Editorial
Elevación, 1946, p. 157 e ss.; p. 242 e ss..
(*) Vide: Giuseppe Montalenti, Charles Darwin, Lisboa, Edições 70, 1984, p. 13; Michael T. Ghiselin, “Darwin, Charles Robert 1809-1882”. In: Dictionnaire du darwinisme et de Vévolution, vol, 1, ob. cit., sobretudo pp. 796-797.
Importa notar que, na perspectiva darwiniana, a igualdade de aptidões mentais entre o homem e a mulher não era afirmada a priori, ao contrário do que postulava o movimento emancipatório da mulher. No entanto, essa igualdade podia ser adquirida no processo evolucionário, o que não equivaleria à ausência de variações ou de qualidades diferentes na mente masculina e feminina(!). Quer isto dizer, em duas palavras, que Darwin não sustentava o dogma, segundo o qual, “o cérebro não tem sexo”(2), na expressão lapidar de Azedo Gneco. to sex. (!) Vide: Charles Darwin, The descent of man, and selection in relation no 556-606. pp. cit., ob. thousand), (eleventh Second edition 1887, (2) Azedo Gneco, “As condições do triumpho”, A Emancipação, Lisboa,
p. [2].
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Darwin em Portugal
Parte HI — Capítulo 4
Vejamos como, entre nós, foi tratado o tema chave do papel evolutivo da fecundidade diferencial, nos termos darwinianos acima expostos.
psíquica da mulher, resultante da selecção natural-sexual está programada
Algumas vezes, ele foi declarado inconsistente, à luz da poderosa crença
no antagonismo entre a maternidade e a intelectualização da mulher. É o que se constata explicitamente num artigo de A Medicina Contemporânea, datado de 1900, onde se lê: “Lombroso declarou que em todo o reino animal a inteligência está na razão inversa da fertilidade. O trabalho cerebral toma o indivíduo nervoso; e as mulheres nervosas são mães más que
preparam a decadência de uma raça”(!). De acordo com os dados suposta-
mente científicos da psicologia antropométrica, as mulheres possuidoras de uma inteligência criativa não eram rigorosamente femininas, antes formavam “um tipo de hermafroditismo psíquico”(2), incompatível com o sucesso reprodutivo. Esta posição foi exemplarmente desenvolvida por Eusébio Tamagnini em 1904 num longo estudo intitulado Psychologia feminina(), uma dissertação académica apresentada à Faculdade de Filosofia. Trata-se de um trabalho interdisciplinar que coordena um vasto conjunto de dados da etologia animal, da anatomia e da fisiologia da mulher, da antropologia física e criminal e da psicologia sexual, para afirmar a lei da “subordinação da mulher”(4) ao homem, a tendência natural da mulher para a monogamia(>) e “a estreita dependência entre a organização biológica e psicológica da fêmea e a maternidade”(º). Eusébio Tamagnini, na esteira de conceituados naturalistas, sobretudo franceses e italianos,
advoga o determinismo sexual de todo o psiquismo feminino, o que faz da mulher um ser menos qualificado nos planos da sensualidade, da sensibilidade, da memória, da vontade e da inteligência(”). A natureza orgânica é
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para a maternidade; exactamente o mesmo se dá nas fêmeas dos restantes
mamíferos e até nas fêmeas dos insectos e das aves. À parte mais significativa da energia da fêmea é canalizada para o instinto maternal. Entre os muitos exemplos, Eusébio Tamagnini refere que “em certas espécies de
Macacos, a mãe morre se o filho morre (...). Tem-se visto fêmeas a quem tiraram os filhos, alimentar animais novos de espécies muito dife-
rentes”(1), tal é a força do instinto maternal. Ora, desta leitura zoológica da mulher, o autor extrai a lei do “antagonismo pronunciado entre as funções de reprodução e o desenvolvimento intelectual”"(2) feminino. Embora a obra de Tamagnini obedeça ao espírito de análise naturalista, o certo é que as suas conclusões se afastam nitidamente da possibilidade de evolução orgânica cerebral da espécie, através do aumento da descendência das mulheres instruídas, intelectualmente dotadas e laboriosas. Por um
lado, o autor postula a diminuição das aptidões reprodutoras na mulher cientista, artista ou literata e supõe que “com a entrada da mulher na vida pública, começa a sua esterilidade”(2). Por outro lado, admitindo que os instintos reprodutores e maternais não fossem afectados pelo acesso da mulher às carreiras intelectualmente exigentes, incluindo a política, a sua
descendência não seria mais inteligente, mesmo que se provasse a hereditariedade dos caracteres adquiridos. É que, à partida, as faculdades mentais femininas (inteligência, imaginação e memória) estão subordinadas à sua sensibilidade intuitiva e concreta, como na criança, não podendo, por essa razão, nem igualar as faculdades mentais masculinas, nem qualificar superiormente a sua descendência. Assim, era, sobretudo, o dogma dos
limites naturais da mente feminina(”) que impedia o autor de secundar a (1) “A inferioridade da mulher”, A Medicina Contemporanea, Lisboa,sér. HI, 3 (30)
29 Jul. 1900, p. 248. (2) Idem, ibidem,p. 248. () Eusébio
Tamagnini,
Psychologia feminina,
Coimbra,
Imprensa
da
Universidade, 1904.
(*) Vide: Idem, ibidem, pp. 50-67. (5) Vide: Idem, ibidem,p. 67. (6) Idem, ibidem, p. 107.
(7) Idem, ibidem, pp. 68-152. No mesmosentido, vide um interessante artigo sobre a inferioridade olfactiva e gustativa da mulher, o que explica que “a arte culinária seja quase monopólio incontestável do sexo forte”, in: “O olfacto nas mulheres”, A Ilustração, Paris, 4 (12) 20 Jun. 1887, p. 187. Contrariamente a Eusébio Tamagnini, Luís Guimarães Filho, em trabalho manuscrito, tinha defendido a superioridade da mulher no campo isual e, especialmente, na sensibilidade cromática. Vide: Luís Guimarães Filho, Evolução
da percepção chromatica. Dissertação para a Formatura na Faculdade de Philosophia, Coimbra, Julho de 1897, Departamento de Antropologia da Universidade de Coim-
bra. Sem cota (cofre). Noutros tempos, como escreve o autor, “os rudes antropóides nossos ascendentes, velhos pais das raças humanas, de orelhas pontiagudas e móveis, de terríveis caninos, com os olhos protegidos por uma terceira membrana, não possuíam a estética de gosto, de cores e de olfato comparável à nossa”(ibidem, p. 4). Mas a sensibilidade evoluiu pelas vias naturais (leis de Darwin e de Lamarck) e, em virtude do uso sistemático dos olhos pela mulher, a sua percepção cromática é superior à do homem. Vide: Idem,
ibidem, pp. 63-77.
(1) Eusébio Tamagnini, Psychologia feminina, ob. cit., p. 109. (2) Idem, ibidem, p. 132. (*) Idem, ibidem, p. 53. Sublinhado do Autor. (4) Foi basicamente a escola antropológica italiana (Lombroso, Ferrero) que deu corpo científico ao dogma da inferioridade psicológica da mulher. Vide: Sandra Puccini, “La femme ou 1'humanité inachevée”. In: Des sciences contre "homme, Paris, Éditions Autrement, 1993, vol. 1, pp. 50-63.
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Parte HI — Capítulo 4
Darwin em Portugal
ideia darwiniana, segundo a qual, a espécie ganharia vantagens psicológicas com o aumento da descendência das mulheres instruídas. Este problema não foi objecto privilegiado nas reflexões daqueles
que, entre nós, deram corpo à questão dos direitos intelectuais sociais
(e políticos) da mulher. Sampaio Bruno, por exemplo, admitia a igualdade de aptidões mentais entre o homem e a mulher e sublinhava as vantagens sociais da educação integral da mulher: “é obra democrática tudo é que se resolver no sentido de desenvolver integralmente o espírito femi-
nino”(1). Entre outros, Carneiro de Moura(2) e Mesquita de Carvalho(?)
também eram favoráveis à emancipação intelectual da mulher. Não obstante, também eles passaram ao lado da questão darwiniana da reprodução das mulheres instruídas. O mesmo sucedeu a Angelina Vidal,-a Maria Amália Vaz de Carvalho e a Ana de Castro Osório, ainda que o culto
da ciência não fosse estranho ao seu universo mental(4). Ao contrário de Eusébio Tamagnini, os defensores dos direitos sociais, cívicos e políticos
da mulher não viam qualquer antagonismo entre o desenvolvimento men» tal da mulher e o exercício da maternidade. Esta era justamente uma-das directrizes do pensamento de Angelina Vidal(*). No entanto, a sugestão eugénica de Darwin não foi minimamente estudada. De facto, os protagonistas da questão feminina privilegiaram o problema da educaçãoinstrução das mulheres(*), porque ele era prioritário e fundamental na
(1) José Pereira de Sampaio, “A educação feminina”, O Seculo, Lisboa, 2 (596) 19
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dinâmica (auto)-emancipatória da mulher(!) e porquese reflectia directamente na luta pelos direitos de igualdade jurídica e política(2). Convém ter presente que a indicação eugénica de Darwin não implicava necessariamente a democratização da educação intelectual, moral e física da mulher; não tinha como pressuposto a conquista da igualdade de direitos, nem postulava a igualdade biológica de poder cerebral entre os dois sexos. O argumento de Darwin poucotinha a ver com as questões “femininas” e “feministas” mas, indirectamente, facultava-lhes um valiosotrunfo científico ao afirmar a relação directa entre a descendência feminina e masculina das mulheres educadas e a evolução moral e intelectual de toda a espécie. Os benefícios hereditários resultantes do desenvolvimento mental da mulher não eram exclusivamente femininos mas estendiam-se à sua progenitura masculina. E, essas vantagens evolucionárias tinham uma consistência orgânica, inscreviam-se na constituição hereditária da descendência. A ideia eugenista de que o progresso biológico-civilizacional da espécie humana dependia da fecundidade da elite intelectual feminina(?) não se repercutiu em Portugal. No entanto, Bissaia Barreto, num belotrabalho manuscrito(4), sublinha as vantagens evolucionárias, para toda a espécie, resultantes do desenvolvimento das aptidões físicas, morais e mentais da mulher. Se, por norma, as mulheres recebessem uma educação
integral, “para poderem entrar vantajosamente na luta pela existência”(), muitas conquistas bio-civilizacionais ficariam ao alcance da espécie,a julgar pelos obstáculos que elas vencem, sem essa educação. Assim como a monogamia “é consequência duma luta muito aturada e muito persistente
Dez. 1882, p. 1.
(2) Vide: Carneiro de Moura, A mulher e a civilisação. Estudo historico, econo: mico e juridico da evolução parallela dos sexos, Lisboa, Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1900.
(3) Vide: Luis Augusto Pinto de Mesquita de Carvalho, Estudo sobre a familia eo casamento, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1888; A mulher atravez dos tempos. Via dolorosa, Porto, Magalhães e Moniz, 1909.
(9 É o que se constata, nomeadamente, nos seguintes trabalhos: Angelina Vidal, “A Idéa”, A Voz do Operario, Lisboa, 4 (157) 15 Out. 1882, pp. 2-3; “Conclusão scientifica”, Jornal de Abrantes, XI (524) 5 Jun. 1910, p. 1, citado por Fernando Catroga, O republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910, vol. 2, ob.cit., p. 209; Maria Amália Vaz de Carvalho, “A vida e a correspondencia de Darwin, Chronicas de Valentina, Lisboa, Tavares Cardoso & Irmão, 1890, pp. 93-122; Ana de
Castro Osório, “O feminismo (De um novo livro em preparação, mulheres portuguezas)”, Revista Amarella, Lisboa, 1 (4) 14 Dez. 1903, pp. 52-55. () Vide: Maria de Fátima Nunes, “Angelina Vidal e o mundo do trabalho. Apontamentos de um discurso feminino”. In: Colóquio “A mulher na sociedade: por: tuguesa” — Actas, vol. 1, ob. cit., pp. 457-465; sobretudo p. 460. (º) Vide: Ivone Leal, “Os papéis tradicionais femininos: continuidade e rupturas
de meados do séc. XIX a meados do séc. XX”. In: Colóquio “A mulher na sociedade portuguesa” — Actas, vol. 2, ob. cit., pp. 353-368. (1) Vide: Joel Serrão, “Notas sobre a situação da mulher portuguesa oitocentista”. In: Colóquio “A mulher na sociedade portuguesa” — Actas, vol. 2, ob. cit. pp. 325-352. (2) Vide: Fernando Marques da Costa, “Mulheres, elites e igualitarismo na 1º República”. In: Colóquio “A mulher na sociedade portuguesa” - Actas, vol. 2, ob. cit.,
pp. 369-383.
(3) A este argumento de Darwin, o médico eugenista francês Charles Richet acrescentou a procriação tardia, levando às últimas consequências o princípio da transmissão hereditária dos caracteres adquiridos. Assim, uma mãe adulta, habituada ao trabalho intelectual regular era preferível a uma mãe jovem,ainda que instruída. Vide: André Béjin, “Richet, Charles 1850-1935”. In: Dictionnaire du darwinisme et de [Pévolution, vol. 3, ob. cit., pp. 3691-3694. (4) Vide: Bissaia Barreto, Notas e impressões pessoaes sobre a psychologia e situação da mulher na sociedade moderna, Coimbra, 1907. Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, sem cota (cofre) — Manuscrito.
() Idem, ibidem, pp. 17-18.
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Darwin em Portugal
da vontade feminina”(!), é de esperar que a mulher educada se venha a afirmar “como uma amiga, uma aliada, uma irmã do homem com plena liberdade e independência social”(2). Mas, nem por isso sacrificará a família. Pelo contrário, a mulher educada e trabalhadora alcançará a sua libertação económica-social, e nessas circunstâncias lutará por uma moral familiar superior. A sua inteligência será exercida por ela no sentido de desenvolver no conjuge o sentimento de paternidade que, tal como nos restantes mamíferos, não é um instinto natural no homem). Simultaneamente, a mulher libertará a maternidade dos preconceitos patogénicos
que a adulteram, e assumirá em plenitude o seu instinto maternal inato. Assim,osfilhos terão direito ao leite de sua mãe e ao amor dos pais que é
a base mais sólida duma educação progressiva(4). Mas, se a mulher ins-
truída era, para Bissaia Barreto, a chave do desenvolvimento económico,
Jurídico-social, familiar, moral e biológico da espécie humana,o autor não advogava qualquer medida de eugenia positiva que fosse ao encontro da referida sugestão darwiniana.
(1) Idem, ibidem, p. 67.
(2) Idem,ibidem,p. 119.
(3) Vide: Idem, ibidem, p. 49 e ss.. (4) Vide: Idem, ibidem, p. 99 e ss.
CONCLUSÕES
CONCLUSÕES I. Abrimos o nosso estudo com uma exposição problema-
tizante do novo código de leitura da história natural, incluindo a
história da espécie humana, inaugurado por Charles Darwin em 1859. Assim, abordámos, sumariamente, o estatuto de revolução
científica que é atribuído à teoria darwiniana, na base de argumentos intra-científicos e do seu “unificatory pattern” (Arthur L. Caplan), bem como os limites da explicação sociologista do sucesso da Origem das espécies. Procurámos transmitir a ideia capital de que o darwinismo é “politípico” (Antonello La Vergata) e dentro desta pluralidade de variantes da teoria darwiniana impunha-se, pela sua incidência na cultura portuguesa, relevar o evolucionismo
filosófico de Herbert Spencer e o monismo de Ernst Hackel e,
muito especialmente, o tipo de compromisso existente entre estas filosofias cientistas e a teoria darwiniana da descendência com modificações por selecção natural (Darwin). Maior atenção foi dada ao estatuto que a teoria biológica de Darwin atribui à história e à sociedade humanas, pois nesta matéria os darwinólogos estão longe de alcançar o limiar do consenso mínimo (veja-se Yvette Conry,
Patrick Tort, Richard Weikart, Michael Lôwy). Por outro lado, como
é óbvio, não podiamos analisar o impacto do darwinismo histórico e social na cultura portuguesa, sem previamente definirmos a nossa leitura da teoria darwiniana da sociedade e da história. Darwin é o nosso referente e é em função dos seus postulados (desigualdade-variação-hereditariedade; luta inter-racial e inter-individual,
selecção e evolução) que avaliamos os darwinismos históricos e sociais cultivados em Portugal, entre 1865 e 1914. Igual cuidado mereceu a justificação da nossa abordagem de Darwin em Portugal,
confinada à filosofia, à história e à engenharia social. O tema da
Darwin em Portugal
Conclusões
assunção do modelo evolucionário de Darwin, pela botânica, pela
(teoria da evolução) e a metafísica (a ideia de evolução teleológica, intrinsecamente espontânea). Compreende-se, por isso, que Antero se tenha confrontado com o problema da eticização da lógica natu-
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zoologia e pela antropologia portuguesas, exige um estudo de colaboração com especialistas nas ciências naturais. Diga-se entre parênteses que o mesmo é válido para o estudo das relações entre as ciências teológicas e o darwinismo. Internacionalmente, no período histórico em questão, esse relacionamento passou por diversas fases, e é bom não esquecer que a fundação da genética em 1900, a partir dos trabalhos do monge e botanista austríaco, Johann Gregor Mendel (1822-1884), foi decisiva para o triunfo de Darwin até hoje. Buscámos com particular curiosidade os documentos inaugurais da literatura darwínica em Portugal e encontrámo-los no terreno da história natural, com especial destaque para a história natural da espécie humana (Júlio Augusto Henriques, 1865). Por outro lado, as primeiras traduções da Origem das espécies (1913) e da Origem do homem (1910), bem como os estudos e as notícias publicadas em
1882 e em 1909, expressamente para homenagear o sábio inglês,
encerram, só por si, uma ideia (obviamente, imperfeita e lacunar) do acolhimento da teoria darwiniana, entre nós.
KH. Antero ocupa um lugar privilegiado no nosso estudo porque o poeta-filósofo representa a consciência vigilante das ambições filosóficas do cientismo darwinista (Hackel e seus pares), sem pôr em causa a revolução darwiniana. Em seu entender, o conjunto das leis científicas não podia ser elevado à categoria de sistema filosófico, mas tinha de ser pensado superiormente pela razão especulativa. Com a radicalidade do seu perguntar, Antero cuidou de distinguir a teoria científica da evolução (Darwin) da
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ral da vida. Para o resolver, Antero aceitou a cientificidade da teoria
da evolução no terreno do fenoménico, e procurou, hegelianamente, adaptá-la à substância última do ser absoluto: espontaneidade, liberdade, Bem. A síntese filosófica a que aspirou e que traduziu poeticamente dava um sentido ético ao determinismocientífico, mediante
a consciência singular do ideal de força espontânea, perfeição moral ou liberdade. O darwinismo não é excluído do verdadeiro campo
problemático da síntese filosófica de Antero, da sua “metafísica indutiva” (Fernando Catroga), mas não ganha, por isso, um estatuto
supra-científico. A teoria científica da evolução é apenas ciência,
mas tem valor filosófico, na medida em que foi o determinismo
naturalista que viabilizou a possibilidade de uma nova síntese
filosófica. Pode, então, dizer-se que o darwinismo é a possibilidade material da filosofia, a sua matéria prima, a sua ca(u)sa, a razão do
seu renovamento, que o mesmo é dizer, da sua verdade, porque, para Antero, uma filosofia verdadeira é aquela que é contemporânea do seu tempo, e que, simultaneamente, se assume como o pensamento da raíz do ser, do seu porquê e para quê, para além do como da ciência. Da conjugação da nova matéria prima (leis e mecanismos da evolução) com a consciência filosófica da verdadeira causa de toda a evolução (o fim espiritual para que tende todo o Universo) devia resultar uma metafísica evolucionista que salvaguardasse o ideal de espontaneidade imanente a todo o ser, ideal que não se cumpre
mecanicamente, nem mesmo está ao alcance de todo os homens; ele
Weltanschauung cientista (0 monismo evolucionista hackeliano), é da ideia filosófica de evolução no seu devir histórico. A teoria de Darwin apresentava a evolução enquanto descendência com modificações, sem um sentido progressivo e teleológico, mas apenasfilogenético. A visão hackeliana do mundo subordinava a teoria de
é inquestionável para Antero que vê na imperfeição moral do homem um testemunho da sua ascendência e evolução e, simultaneamente, do seu caminhar para a realização do ideal de espontaneidade, de liberdade ou, no limite, de perfeição espiritual. Antero não subjugou a teoria científica da evolução ao seu pampsiquismo
nista-mecanicista (físico-química) de causalidade evolucionária: A sua pretensa filosofia era uma “falsa filosofia” porque consistia na simples generalização das leis científicas. A “verdadeira filosofia” da evolução tinha de resultar dum diálogo criador entre a ciência
e de conhecimento, descodificou o sentido profundo que ela comporta, sob a máscara do determinismo das leis científicas. A teoria darwiniana não é colocada no banco dos réus para ser julgada ou
Darwin a um monismo materialista, assente numa ideia determi-
optimista, mas, hegelianamente, abriu-a a um nível superior de real
corrigida, como fez Éd. de Hartmann. Antero reconhecia que O
Darwin em Portugal
Conclusões
conhecimento científico é relativo e histórico, mas, entendia que o filósofo não tem competência para corrigir e substituir as leis científicas, do mesmo modo que o cientista não tem preparação para fazer filosofia. Os cientistas que tentaram fazer filosofia limitaram-
riana da evolução humaniza a natureza sem desnaturalizar toda a
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-se a sacralizar a ciência (Hackel, por exemplo) e revelaram uma
profunda inconsciência àcerca dos problemas da raíz do ser. As questões metafísicas não podem ser abolidas; elas brotam espontaneamente no espírito do filósofo, mas exigem respostas atentas ao progresso do conhecimento científico. Na verdade, Antero valoriza a ciência, fazendo-a partilhar a ideia de que a liberdade não é uma ilusão inconsequente, mas é a aspiração íntima de todo o ser. Assim, dentro do determinismo natural (struggle for life) reside um determinismo superior: a vontade que todo o ser tem de aumentar o seu próprio ser, de se ultrapassar a si mesmo, de se libertar dos condicionalismos que travam a sua (aspiração à) plena espontaneidade. Ao abrir a ciência à ideia de que a evolução é irredutível ao resultado mecânico da selecção natural, Antero concebeu uma filosofia teleológica da evolução que tem no horizonte a superação integradora da animalidade do homem, pela aspiração da consciência à liberdade e pela luta da vontade pelo Bem. Se, nos termos anterianos, “o darwinismo é uma grande fonte de consolaçãofilosófica”, é porque o poeta-filósofo julga que a teoria científica da evolução pode sustentar a aspiração intrínseca de todo o ser à auto-superação, sendo esta apenas acessível ao homem superior, através da sua vontade consciente. Se o ser humano foi pedra e bicho e hoje é homem, amanhã poderá tornar-se um ser livre, evoluindo moralmente. O conhecimento do que se foi (pedra e bicho), lido através da aspiração da consciência individual ao grau mais elevado do ser, gera um optimismo consolador. Para Antero, a evolução moral é mais do
que possível, é necessária, embora não seja mecânica, quer se trate da vida individual, quer no que concerne à vida da espécie humana que, tendo já ascendido à categoria de humanidade, preparava-se para se volver em humanidade livre, auto-determinada. A verdade do homem, enquanto espécie, enquanto humanidade histórica, €
enquanto indivíduo singular e único, coincide com a verdade do ser universal. Esta verdade apenas se desvelará quando o homem, no seu devir, se tornar a medida de todas as coisas. A metafísica ante-
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existência, incluindo a espécie humana. Pelo contrário, no juízo anteriano, os cientistas que se arvoravam em filósofos, como Ernst Heackel, animalizavam o homem e entificavam a natureza, elevando o determinismo mecanicista a medida de todas as coisas. HI. Em Portugal, o impacto do darwinismo na história fez-se sentir, especialmente, ao nível da lógica do processo histórico, ou, se se preferir, da historiologia. Entre nós, destacam-se, neste domínio, trabalhos tão singulares como são distintos os seus autores,
o que não é excepção à regra verificada noutros países, onde, tam-
bém, pela mesma razão, se impôs o estudo caso a caso. Teófilo
Braga construiu uma teoria da história, no quadro do seu “panbiologismo” (Amadeu Carvalho Homem), tributária do código de leitura etnocentrista-racialista (não dizemos racista) da história, o
qual ganhou um revestimento supostamente científico, a partir da revolução darwiniana. No entanto, a fidelidade teofiliana à matriz filosófica do comtismo é uma constante na sua teoria da história. Com efeito, a evolução é entendida enquanto progresso no sentido
positivista de desenvolvimento teleológico da ordem,e, portanto, o
jogo dos possíveis, O acaso € a imprevisibilidade, que singularizam a teoria darwiniana da evolução, estão ausentes da teoria teofiliana da história. No entanto, a sua abordagem do protagonismo histórico das raças semitas e arianas revela que Teófilo soube adaptar a lógica darwínica da selecção natural e da selecção sexual à lei comtiana dos três estados históricos. A matéria prima do evolver civilizacional é o factor rácico, entendido segundo o critério físicomorfológico e étnico, sobretudo linguístico-religioso-cultural. Teófilo entendia que, sem a noção biológica de raça não era possível objectivar cientificamente a noção de raças históricas e, por isso, procurou salvaguardar a identidade bio-antropológica de cada raça histórica, na dinâmica da concorrência e dos cruzamentos inter-
-raciais, em diferentes condições mesológicas. A originalidade
teofiliana reside, sobretudo, na teoria da hereditariedade histórica
que elaborou. Assim, a transmissão hereditária dá-se segundo três modalidades capitais: a persistência, a recorrência e a sobrevivência, três formas de atavismo bio-étnico que o autor justificava recorrendo
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Darwin em Portugal
à teoria bio-antropológica dos tipos estruturais irredutíveis de Paul Broca. A teoria teofiliana da hereditariedade histórica permitiu-lhe fundamentar a defesa do sentido arianocêntrico da história universal, decorrente de dois postulados: a superioridade física e mental do
ariano, desde tempos imemoriais, e a permanência do seu tipo
orgânico. Mas, apesar de perfilhar o etnocentrismo ariano, Teófilo não se identificou plenamente com a hierarquia racialista de Ernst
Heckel, ainda que o monismo evolucionista do zoólogo alemão
tenha deixado marcas profundas no seu pensamento filosófico (Amadeu Carvalho Homem). Com efeito, o postulado da inferiori-
dade constitucional do semita em relação ao ariano, sustentado por
Heckel e, em regra, pela chamada ciência racial pós-darwiniana, nãofoi inteiramente assumido por Teófilo. Na sua teoria da história, a hierarquia das raças tem um significado biológico mas também traduz a ordem de sucessão do protagonismo histórico das mesmas. No curso histórico, a raça semita precedeu a raça ariana, tendo protagonizado o estado mítico e teológico do espírito humano, de acordo com a lei comtiana dos três estados. A raça ariana é identificada com o espírito científico triunfante sobre o espírito teológico, mas, na medida em que aquele tem de se subjectivar para dar corpo ao sentido universalista da história, o ariano necessita da natureza
sentimental do semita. Por outro lado, a epopeia teofiliana da
humanidade é uma poética da luta da espécie humana, em primeiro lugar, pela sua afirmação enquanto espécie biológica, depois, pela sua diferenciação intra-específica ou inter-racial, ao que se seguiu a complexificação da luta a todos os níveis, territorial, social, cultural
Conclusões
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franco-prussiano não fechou. Também, quanto à definição da identidade rácica de Portugal, apesar das dificuldades manifestas em reconstituir o “filão genético do lusismo” (Teófilo Braga), o certo é que Teófilo não caiu no “maniqueismo racial” (Léon Poliakov), antes aceitou e soube converter a miscigenação num trunfo biocivilizacional, aproximando-se mais do sentido darwiniano dos cruzamentos rácicos do que os seus contraditores. Júlio de Vilhena, para advogar a fraca influência bio-civilizacional do semita, na Península Ibérica, subscreveu acriticamente o mito da sua inferioridade constitucional (mito que a antropologia, dita, científica, revestia com argumentos anátomo-fisiológicos e ontogénicos) e reforçou-o com o argumento da “incomunicabilidade fisiológica dos semitas” (Júlio de Vilhena). O problema do cruzamento do ariano com o semita foi
colocado em termos de hAibridismo, como se arianos e semitas
fossem duas espécies distintas e não duas raças da mesmaespécie. Idênticos postulados foram desenvolvidos por Correia Barata, embora o naturalista universitário tenha recorrido com outra perícia à teoria darwiniana e às leis da hereditariedade construídas por Ernst Hackel. Em moldes mais sofisticados e herméticos, aparentemente
mais científicos, Correia Barata cultivou exemplarmente o “mito ariano” (Léon Poliakov), em nome da ciência de Darwin. Se enten-
dermos que a antropologia e a bio-história pós-darwínica, cultivada por Ernst Haxckel e seus discípulos, resvalou do racialismo para o
racismo (Claude Blanckaert), temos de admitir que, afinal, a teoria
e outros, culminando no conflito franco-prussiano. Ora, Teófilo não
da hereditariedade histórica teofiliana não excluía a miscigenação inter-racial (veja-se o moçárabe), não confundia a história das raças com a história das línguas, enquanto os seus críticos não souberam alimentar o “mito ariano” sem estigmatizar biológica e culturalmente o semita.
Teófilo será norma no futuro, não é um ideal incorpóreo, antes está
IV. A “teoria da história universal” construída por Oliveira Martins, data da fase de plena maturidade ideativado autor da Biblioteca das ciências sociais. Aquando da composição do seu tratado expositivo e crítico da antropologia evolucionista-darwi-
troca o sonho francês da “religião” laica da humanidade una e fraterna, pelo ultradarwinismo político-militar e étnico da Alemanha. Por isso, defendemos que foi a sua fidelidade ao positivismo francês que acautelou a sua teoria da história do fundamentalismo ariano-germanista. Mas, sublinhe-se, a ética do altruismo, que para
organicamente inscrita no sangue celta da raça francesa. Sendo uma ética vantajosa para a humanidade a caminho da sua “humanitude” (Albert Jacquard), a selecção natural cuidará de a preservar €
expandir no decurso das lutas intra e inter-raciais que o conflito
nista, em 1880, Oliveira Martins não se converteu ao naturalismo histórico darwiniano-hackeliano mas, em 1884, põe de lado a inves-
tigação filosófica da questão da força imanente aos dotes psicológi-
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Darwin em Portugal
cos das raças humanas e avança para a elaboração de umaleitura da história universal, guiada pelo código darwiniano. A sua teoria é estruturada em torno do princípio da selecção natural da raça ariana na luta inter-racial pela existência histórica. A universalização arianocêntrica da história recebe a cobertura do mecanismo evolucionário das espécies, defendido por Darwin. A raça ariana é elevada a primeira e última autora da civilização universal, à luz da “lei
zoológica da selecção” (Oliveira Martins), lei que serve igualmente para justificar a exclusão das raças não arianas do processo uni-
versalista da história. Com efeito, para Oliveira Martins, a entrada
destas raças na história só tinha sentido em função do seu relacionamento com a raça ariana. Assim, a história universal é a história daquela raça que numérica e territorialmente se foi expandindo pelo globo, revelando uma “capacidade ingénita” para exterminar ou submeter as restantes raças, e para assimilar e recriar a cultura
Conclusões
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resolvesse o seu drama, que consistia em ser uma nação sem nacionalidade, isto é, sem um fundo constitucional (a raça e o terri-
tório) diferenciado do resto da península, unindo-se à sua irmã Espanha, o ramo hispano-português tornar-se-ia mais forte na luta entre os ramos da raça ariana, pela iderança do processo de arianização universal da história. Ao admitir o factor acaso como elemento constitutivo do processo histórico, Oliveira Martins distanciou-se da hierarquização dos diversos ramos da raça ariana, estabelecida por Ernst Heeckel e, simultaneamente, conservou-se
mais próximo da lógica darwiniana da vida. Além de ter em conta o acaso, enquanto factor natural, e não como obra do arbítrio providencialista, o autor salvaguardou a natureza imprevisível da história, de acordo com a teoria darwiniana. Em 1884, a ideia martiniana de
evolução não é concebida em termos de desenvolvimento essencialista, segundo um plano pré-determinado, pois ela comporta a ideia
religiosa, técnica, etc., de outras raças, como a semita. À lógica da
naturalista de acaso, mas também a ideia de inovação, ou de
Embora Oliveira Martins considere que, dentro da raça ariana, são
da raça. Historicamente, o ariano revelou possuir uma elevada
demográfica e territorial, defende a profunda solidariedade consti-
o facto de o ariano ter triunfado sempre sobre a contingência, o
submissão, da absorção ou do extermínio das raças menos favorecidas, pela raça superiormente dotada, é traduzida por Oliveira Martins numa linguagem fria e implacável, pretensamente científica. O sucesso reprodutivo e territorial é o primeiro indicativo da superioridade do ariano e o primeiro requisito da universalização da história. A este nível, apenas a capacidade reprodutiva do mongólico ameaça a universalização ariana da história, mas dado que o mongólico não possui outros trunfos, não será difícil submetê-lo.
emergência do novo, como resultante duma acumulação regular de variações e da acção de factores acidentais diversos, mas sempre imanentes aos elementos constitutivos da dinâmica histórica. Se a evolução é estruturalmente assegurada pela “capacidade de propagaçãoe de apropriação” da raça, o certo é queela não é pré-definida, nem a força da raça se manifesta de forma mecânica. Sendo imprevisível, a evolução não é, todavia, indefinida, pois o poder do acidente casual nunca é absoluto, mas correlativo da força racional
os ramos anglo-americano e eslavo que caminham nalinha da frente
capacidade de interpretar e de dominar vantajosamente o acaso. Mas
tucional da árvore histórica da raça ariana. Todos os seus ramos são igualmente dotados, em termos de “capacidade ingénita” face ao semita e ao mongólico. Se o ramo hispano-português não é lider do processo de universalização da história, foi porque o acaso O conduziu para o hemisfério sul, onde as condições mesológicas
acaso ou o acidente, não significa que o mesmo ocorra no tempo futuro. A história tem um telos universalista e o ariano possui uma necessidade intrínseca de progredir, mas o incumprimento daquele
travaram a sua expansão a vários níveis. Além disso, o ramo
hispano-português europeu da raça ariana permanecia dividido em duas nações, “contra a lógica natural” (Oliveira Martins), não
podendo, assim, beneficiar das vantagens que resultariam da união natural da raça e do território da península ibérica. Se Portugal
telos, se tal for o caso, é, em última análise, imputado à plasticidade racional do ariano. Se, historicamente, todos os “choques” foram
motivo de renovamento civilizacional da raça ariana (por exemplo, da agonia do império romano saiu a originalidade dos tempos medievais, resultante do choque e da miscigenação entre o latino e o germânico), dando a paradoxal ilusão de que o acaso foi necessário, tal não significa que o futuro seja previsível. Uma única
Darwin em Portugal
Conclusões
certeza é-nos transmitida por Oliveira Martins: o futuro não se pode calcular a priori, tanto mais que a história paradigmática de Roma mostra que o horizonte para o qual tendem as sociedades progressivas é a democracia social. Ora, a concretização desta tendência natural pode não estar ao alcance da mente ariana. Com efeito, a universalização da história exige, além do domínio do mongólico, que as sociedades europeias, de finais do século XIX, encontrem meios criativos e eficazes de realizar a democracia social, pois o “instinto igualitário” é, para Oliveira Martins, uma fatalidade orgânica dos corpossociais adultos. No limiar da sua concretização absoluta, a dinâmica histórica universal colocava a raça superiormente dotada perante a necessidade de maximizar o seu surpreendente “instinto racional”. A tendência orgânica da civilização ariana oitocentista apontava para a realização do sentido universal da história, através do domínioterritorial e demográfico do globo e da organização socialista das suas “colmeias”. Mas, se a “capacidade ingénita” da raça superiormente dotada não souber respondercriativamente ao instinto igualitário do maior número (democracia
1913. Apesar de terem decorrido trinta e quatro anos entre os dois estudos, a prudência ortiganiana relativamente à exaltação cientista
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social), o telos universalista da história permanecerá em aberto e à
deriva no tempo. E que, para Oliveira Martins, nenhuma outra raça (a semita e a mongólica) possui dotes bio-constitucionais para assumir o testemunho do universalismo final do curso histórico. Na
óptica martiniana, o alfa e o ómega da história é o arianismo socia-
lista, o qual é justificado pela selecção natural. Este mecanismo, além de ter preservado a raça mais apta na luta pela existência
histórica, seleccionou o instinto de igualdade no maior número, por
se tratar de um instinto vantajoso para cimentar a mundialização
ariana da história. Na verdade, apesar do seu darwinismo racialista em 1884 (não dizemos racista), Oliveira Martins continuou a afir-
mar-se como um adversário do darwinismo social individualista da linha spenceriana, posição que assumia desde a década de setenta do século XIX. V. O modosingular como Ramalho Ortigão lidou com teoria de Darwin e com a ciência racial darwinista, embora seja detectável em várias passagens da sua obra, ficou paradigmaticamente gravado num estudo impresso, datado de 1879, e num manuscrito de
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e, em particular, face à suposta infalibilidade do conhecimento cien-
tífico, permanece idêntica. Igualmente persiste o seu cuidado em distinguir a teoria de Darwin dos valores e dos dogmas extra-cientí-
ficos que se reclamavam dela. Com esse método, Ramalho não tinha em vista prestar culto à ciência, mas atingi-la com as farpas certas,
imputando-lhe as suas fraquezas e não as fraquezas alheias que,
também, submeteu ao crivo do seu juízo exigente e da sua rectidão
moral. Em 1879, a história da raça portuguesa, de meados do século XVI em diante, é lida em termos de decadência, no sentido rigo-
rosamente darwiniano de evolução regressiva. Essa decadência,
tendo uma causalidade histórica, dita, artificial (sobretudo o modo
de exercício do poder inquisitorial e a educação jesuítica) processou-se segundo o mecanismo darwiniano da selecção natural, coadjuvado pela lei lamarckiana do uso e do não uso dos órgãos. Submetida a um clima de terror que condenava a livre expansão das suas faculdades superiores racionais e morais, pouco a pouco, de geração em geração, a raça foi enveredando pelo não uso dessas
faculdades, pois, esse não uso revelava-se últil e eficaz em termos
de adaptação ao meio. Assim, a selecção natural foi preservando as
faculdades inferiores, como a imitação, e reduzindo ao estado de inutilidade orgânica, a razão e os instintos morais superiores, como
a honra e a coragem. Ao cabo de três séculos, todas as práticas sociais, desde a economia à educação, passando pela política, acusavam a selecção duma moralidade inferior e o triunfo da imitação que, para Darwin, era uma faculdade elementar, cuja primitividade ascendia ao mimetismo animal. Ironicamente, a farpa ortiganiana admitiu a possibilidade de recuperação das faculdades racionais e éticas na raça portuguesa, através do exemplo de personalidades superiores, oferecido ao instinto mimético do vulgo. O apelo a esta faculdade elementar que não tinha decaído, antes se reforçara, podia constituir um meio de inverter o sentido regressivo do evolver orgânico da raça portuguesa. Levando a sua ironia mais longe, Ramalho Ortigão atinge a própria teoria darwiniana, ao jogar com o sentido natural e artificial da selecção, no domínio antropohistórico. Ajuizar com conhecimento de causa é, também, o espírito
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Darwin em Portugal
Conclusões
que preside ao estudo que fez dos Grundlagen. Revelando a mesma
mente, procura fazer passar a mensagem de que a história é um
robustez e dignidade intelectuais, Ramalho passa ao lado da mística
ariana do sangue germânico que percorre a volumosa obra do “profeta titular do arianismo” (Léon Poliakov); fixa-se nos parágrafos onde, para salvaguardar a cientificidade do seu ideal germanista, Chamberlain recorre à exposição de Darwin sobre a selecção artificial das raças de plantas e de animais domésticos. Ramalho anotou com interesse o significado zootécnico da noção de raça, especialmente a ideia de que a raça não tem contornos fixos ab initio, mas é uma entidade plástica e dinâmica, cuja modelação depende de factores naturais (a matéria prima de base) e condições artificiais (endogenia, etc.). Porém, Ramalho Ortigão não aprovou a eugenia racial de Chamberlain, não se entusiamou com a proposta de apuramento artificial do germano, não se impressionou com os supostos perigos bio-civilizacionais do “caos étnico”, nem entendeu que O espírito diletante devia servir a germanomania, VI. Prudente, à sua maneira, sagaz mas equívoca, foi a “teoria da história” de Augusto Coelho. Na sua longa exposição, o autor atribui à história o estatuto de “capítulo da biologia” darwinista (Augusto Coelho). Neste sentido, postula a continuidade linear entre a história da natureza, a pré-história, a proto-história e a história e
defende que o mesmo princípio da luta pela vida e o mesmo meçanismo da selecção natural rege toda a evolução. O que há de original na teoria desenvolvida por Augusto Coelho é que a biologização radical da história inclui, paradoxalmente, o essencialismo psicológico e a noção metafísica de “alma dos povos”; a sua teoria biológica mascara a hierarquização das raças, sexualizando-as (raças masculinas e raças femininas); estigmatiza a “sociabilidade exagerada” (Augusto Coelho) e o instinto de igualdade do latino; aceita o pangermanismo ou a versão nordicista do “mito ariano”
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ramo da árvore da vida, embora, salve a ideia iluminista de progresso, sob a capa do mecanismo evolucionário de Darwin, e meta-
morfoseie a selecção natural num providencialismo optimista, num Deus bom que vela pelo progresso e que dispensa a necessidade de vigilância dos delírios criminosos, mesmo que eles se transformem em “paranóia colectiva” (Ricardo Jorge). Por tudo isto, e especialmente pela sua natureza híbrida, a teoria da história de Augusto Coelho representa um dos monumentos mais altos do impacto do darwinismo historiológico, entre nós. VII. No domínio da engenharia social (conhecimento da sociedade em ordem à sua transformação), o primeiro tratado de sociologia (1884) publicado entre nós, da autoria de Teófilo Braga, renova os fundamentos da matriz comtiana da sociologia, recorrendo aos princípios darwinianos de luta pela vida, variação orgánica e selecção, embora se conserve fiel à lei dos três estados e à
tábua hierárquica das ciências de A. Comte. Partindo do postulado de que a cientificação da biologia por Darwin tornava necessária a reorganização da sociologia positivista, Teófilo chega a resultados originais e ousados relativamente àqueles que eram alcançados pelos estudos sociológicos pós-comtianos, especialmente em França. Como provaram os especialistas Yvette Conry e Patrick Tort, os positivistas franceses, curiosamente, tanto os ortodoxos como os heterodoxos, não aplicaram os conceitos darwinianos
(princípio biológico da população, luta , variação e selecção) ao estudo da sociedade. “A grande sombra de Comte tornou-se o tú-
mulo de Darwin” (Yvette Conry), na medida em que a teoria da evolução darwiniana (descendência com modificações) foi identifi-
cada com o princípio comtiano do progresso enquanto desen-
volvimento da ordem e, em última análise, foi confundida com o
(Léon Poliakov), evitando comprometer-se com o seleccionismo
préformismo embriológico. Este equívoco impediu a compreensão e
“mitos” (François Jacob) que, desde o dealbar do século XX,
modificabilidade e selecção natural. Embora “a grande sombra de Comte” também percorra a construção sociológica teofiliana, julgamos que esta representa a possibilidade de conjugação do positivismo heterodoxo com a teoria darwiniana. A harmonia entre o pro-
eugenista de Vacher de Lapouge e dos seus pares; desdramatiza OS agitavam a cultura europeia, em particular, o mito da ameaça de braquicefalização da Europa, correlativo do mito da urgência de salvar a pureza racial do sangue nórdico. Augusto Coelho, insistente-
alimentou a contestação dos conceitos darwinianos de variação,
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Darwin em Portugal
gresso enquanto desenvolvimento da ordem (Comte) e o progresso enquanto evolução, comportando o princípio da variação orgânica (Darwin) foi garantida pela teoria dos grandes homens, e pela teoria da evolução dos instintos sociais e da moral (da simpatia ao altruísmo, da associação à solidariedade, do instinto de auto-conser-
vação à afirmação do indivíduo). O mecanismo de fixação da moralidade orgânica superior, aquela que conjuga a simpatia altruista com a afirmação do “bem-estar subjectivo” (Teófilo Braga), é o mesmo que presidiu ao seu evolver, ou seja, é a selecção natural, com o seu poder de preservar e acumular as variações hereditárias vantajosas
para o indivíduo e para a sociedade. Teófilo deposita uma fé cientista nas leis naturais da luta pela vida e da selecção natural e, por isso, entende que o ideal de perfectibilidade social (o progresso na ordem com paz e amor) dispensa a eugenia (técnicas eliminatórias dos
menos aptos e técnicas de selecção artificial dos melhores pro-
genitores). A própria lei comtiana dos três estados históricos testemunha a vitória da selecção natural sobre a selecção artificial. Noestado positivo, a política científica, correspondente à selecção social-natural, triunfa sobre a política empírica que, historicamente, se articulou com várias formas de selecção social artificial. Para que a selecção social seja autêntica ou natural é necessário que a luta pela vida se processe em conformidade com as desigualdades naturais e não de acordo com desigualdades convencionadas, ou artificiais.
O ideal teofiliano de reorganização social procura articular os benefícios da normalização demo-sociocrática da sociedade com as vantagens biológicas da selecção natural. Ele está muito próximo do “optimismoliberal de Darwin” (Patrick Tort) e demarcou-se nitidamente do “darwinismo social individualista” de Herbert Spencer (Daniel Becquemont), através da articulação do determinismo bioló- | gico com o relativismo sociológico e mediante a valorização da necessidade de unificar afectivamente a sociedade. Para Teófilo Braga, a política científica, decorrente da cientificação da sociologia, põe termo às selecções teocráticas e metafísicas e garante o pleno exercício da selecção natural, na base da igualdade perante a lei, da democratização da educação, etc., da livre concorrência das aptidões
individuais e do progresso dos instintos sociais altruistas e individualistas.
Conclusões
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VII. Diferentemente de Teófilo Braga, o seu condiscípulo republicano, Júlio Matos, subordinou a disciplina mental positivista ao darwinismo psico-social de Herbert Spencer, tendo mesmo resvalado para o seleccionismo conflitualista. No entanto, Júlio de Matos não se limitou a reproduzir a sistemática cientista do engenheiro-filósofo inglês, antes construiu o modelo mais apurado e completo de uma leitura ultra-seleccionista da conflitualidade social e das divergências ideológicas características das sociedades demoliberais. Conhecedor directo da obra do naturalista inglês, Júlio de
Matos, desde a juventude, assumiu-se como um darwiniano no
domínio da biologia e da história natural e como um darwinista individualista-elitista no terreno da engenharia social. Na base desta orientação, o médico portuense combateu, em bloco, os ideários
socialista, comunista e anarquista, lendo nos seus valores o propósito comum de falsificação da concorrência vital. Na verdade, à luz
do determinismo biológico, Matos defendia que os mais aptos, “the fittest”, seriam sacrificados nos regimes sociais fundados na sobera-
nia popular, ou seja, para o autor, na vontade do maior número desqualificado, bem como na política fiscal e assistencial protectora dos “fracos”, e noutras medidas contrárias à ordem natural do
triunfo dos mais dotados. Na perspectiva matosiana, os ideários socialista e congéneres, não respeitavam o princípio científico da desigualdade inata ou congénita, biológica e social entre os indivíduos, resultante da hereditariedade e do meio; em suma, faziam
tábua rasa do pedigree na concorrência social. O combate socialista pela igualdade, mesmo confinado à igualdade de condições sociais era incompreensível para Júlio de Matos, pois entendia que não era possível nivelar aquilo que à partida, e no decurso da evolução, se afirmava constitucionalmente desigual, em virtude das leis da
hereditariedade biológica (caracteres inatos) e da hereditariedade social (a propriedade e outros bens). Com efeito, na óptica do autor, a desigualdade natural incluía as vantagens ou as desvantagens
mesológicas (económicas, culturais, éticas, sociais, etc.) herdadas
pelo indivíduo e, por isso, a propriedade fazia parte da desigualdade biológica. Afirmando o carácter científico-darwinista do liberalismo concorrencial, Júlio de Matos rebatia a pretensão dos ideários
socialista e congéneres de legitimarem darwinisticamente a identifi-
Darwin em Portugal
Conclusões
cação dos mais aptos com a classe operária. Segundo a leitura que
ontogenética) e a sociologia, a psicologia evolucionista autorizava a equivalência entre o utópico e o alucinatório. Adoptando o “princípio da continuidade doutrinal” entre a biologia, a psicologia e a sociologia (Comte e Spencer), e perfilhando uma leitura antropogénica da mente normal e patológica (Ernst Heckel), Júlio de Matos renovou o conteúdo do modelo comtiano de cientismo. Comte transitava da biologiafixista e essencialista para a sociologia,
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Matos fazia de Darwin, o critério de aptidão bio-social não residia na superioridade numérica e, por isso, também não atribuía à
vontade do maior número o estatuto de critério político científico. O zénite do darwinismo matosiano é atingido com a patologização das ideias socialista e congéneres e dos seus protagonistas. No quadro do evolucionismo psicológico de matriz darwiniana, Júlio de Matos opera a distinção entre normalidade psicológica e desvio psicopatológico, sendo este entendido enquanto involução, retorno atávico ou anacronismo. Assim, as ideias que não se coadunavam com o estádio evolutivo (mental, afectivo e moral) da sociedade do tempo, a caminho da máxima heterogeneidade, só podiam ser contemporâneas de épocas passadas. Nessa medida, eram consideradas patológicas e o seu grau de morbidez era tanto mais profundo quanto mais remota fosse a época mental e afectiva que elas representavam anacronicamente. Por exemplo, o valor da igualdade era uma “ressurreição atávica” dos tempos pré-históricos da indiferenciação social. Do mesmo modo, a pretensão de transformar a sociedade pela violência revolucionária equivalia à reedição de uma forma anacrónica de luta — a força. Outrora, a força tinha sido o critério de governação nas sociedades pré-históricas e continuava a vigorar nas mais primitivas sociedades humanas selvagens, bem como nas sociedades de quadrumanos. Anacronismo afectivo e mental era também a ideia de que a classe operária era perseguida e explorada pelo capital. Para Júlio de Matos, a ideia de perseguição fora normal nos tempos em que a luta pela vida não estava regulamentada juridicamente, porque nesses tempos remotos a: perse guição era um facto muito real e concreto. Mas, nas sociedades liberais industrialistas, tal sentimento-ideia não tinha qualquer referente real e, portanto, não passava de um sintoma de uma ideação patológica. A patologização do socialismo e ideários congéneres conduziu à afirmação da sua perigosidade civilizacional e da necessidade de os combater, em nome da evolução e do seu meca-
nismo darwiniano: a selecção natural dos mais favorecidos na luta
pela vida. A leitura matosiana dos referidos ideários era, em última
análise, legitimada pela posição que a psicologia ocupava na arqui tectura positivista do saber. Situada entre a biologia (filogenética |
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através da fisiologia cerebral (Gall), caucionando, deste modo, a
precisão sociocrática do futuro da humanidade. Júlio de Matos transita da biologia transformista para a sociologia, através da psicologia evolucionista e, assim, funda a previsão sociológica do endurecimento da luta pela vida, da competição mental, da selecção dos mais qualificados e da afirmação progressiva das desigualdades inter-individuais. Apesar da sua unidade e coerência, o darwinismo
bio-psico-social matosiano não foi assumido, explicitamente, pelos seus correligionários, como uma tendência ideológica marcante do republicanismo português na aurora do século XX. Talvez a tendência mais consensual se situasse entre o extremo ultra-liberal e “anti-operário” (Amadeu Carvalho Homem) de Júlio de Matos e o extremo pró-socialista de Miguel Bombarda que defendeu, com todo o vigor da sua palavra oral e escrita, a higidez mental do ideário socialista e mesmo do inconformismo revolucionário anarquista, de acordo com a sua orientação biológica neo-lamarckiana. Esta, afirmando o primado do meio, legitimava a interpretação da questão social, enquanto questão de meio social e não (como defendia Júlio de Matos no extremo oposto) enquanto problema de raíz bio-antropológica. IX. Se atendermos ao “império mental” exercido na época, pelo cientismo darwinista (com ou sem Lamarck) na cultura ocidental, dificilmente o ideário anarquista podia resistir à tentação de ganhar credibilidade, reclamando a fundamentação darwinista dos seus valores. Também em Portugal, o ideário acrata usou a revolução darwiniana e o cientismo darwinista de uma forma singular, perfeitamente lógica, na base do enunciado segundo o qual a superioridade numérica do operariado traduzia a excelência da sua aptidão social e histórica para libertar a humanidade de todas as
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Darwin em Portugal
Conclusões
opressões. Além disso, a ambição cientista do ideário acrata plasmou-se na forma como os seus intelectuais contestaram a fundamentação darwinista dos ideários de matriz liberal, conservadores ou reformistas; ao mesmo tempo, salvaguardavam a teoria darwiniana, reservando-a para o casamento ideal com o anarquismo. A consonância entre a biologia darwiniana e a doutrina acrata é afirmada na base da leitura que o naturalista Kropotkine e outros cientistas-anarquistas faziam dos princípios da luta pela vida e da selecção natural e, sobretudo, da teoria darwiniana da evolução dos
causa última da conflitualidade social e de todos os problemas sociais, desde a prostituição ao alcoolismo, passando pelo crime,
instintos sociais e do senso moral. Neste sentido, também os anat-
quistas portugueses desvalorizaram a luta inter-individual e intraespecífica e defenderam que a forma de luta geradora de efeitos evolucionários é aquela que se traduz no esforço cooperador, na ajuda mútua, na solidariedade. Na óptica de Kropotkine, Darwin era mal interpretado por H. Spencer, o chefe de fila do darwinismoindividualista (luta inter-individual), mas também pelos darwinistas
racialistas (luta inter-racial). Uns e outros não compreendiam que Darwin tinha demonstrado o valor evolucionário da ajuda recíproca, especialmente nas sociedades de himenópteros e nas sociedades humanas. Ora, se nalgumas sociedades animais e nas sociedades
humanas o instinto de ajuda recíproca fora seleccionado, não havia dúvidas que esse instinto era benéfico e, portanto, impunha-se elevá-lo à sua máxima expressão. A darwinização do princípio da ajuda mútua permitiu estabelecer um fundamento biológico para a moral anarquista da cooperação e da solidariedade que identificava o Bem com o conjunto dos valores sociais úteis à conservação é ao aperfeiçoamento da espécie humana no seu todo. Igualmente, a revolução libertária recebe umalegitimação biologista, pois além de ser útil, logo natural e, portanto, moral na Óptica anarquista, estava
de acordo com a versão saltacionista da evolução natural que, na aurora do século XX, se sobrepôs ao continuismo da matriz darwiniana. A pretensão de cientificidade do ideário anarquista levou a sua elite pensante a recorrer também à valorização dos factores lamarckianos que mais convinham aos postulados sociogénicos da causa libertária e acrata. O primado do meio no transformismo lamarckiano convertia-se no argumento segundo o qual a organização da sociedade, fundada no direito de propriedade privada, era à
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pela degenerescência física e psicológica, etc.. Por isso, a transformação radical e revolucionária da sociedade, incluindo o fim da pro-
priedade privada, significava a extinção de um meio patogénico e a emergência de um meio normogénico e eugénico (pela transmissão
hereditária dos novos caracteres adquiridos, como, por exemplo, a
robustez física decorrente de uma boa alimentação,etc.). O meio era visto como sendo o factor decisivo na modelação dos caracteres, e
por isso, os anarquistas portugueses, em regra, não encontravam
vantagens reais na redução neo-malthusiana da natalidade. Por outro lado, o argumento da força social e história do operariado, sustentado pelo argumento da sua força numérica, convenceu-os de que o sucesso da revolução acrata não implicava o sacrifício parcial do instinto procriador do proletário. Por outro lado ainda, duvidavam
que esse sacrifício alterasse o quadro desolador de miséria física, mental e afectiva que o capital lhes impunha, com o objectivo de enfraquecer a sua força social e histórica. No entanto, sem abdicar do valor primordial atribuído aos factores mesológicos na modelação dos caracteres, o ideário anarquista cultivou o higienismo físico e moral, porque ele era útil à emancipação de toda a humanidade, no sentido em que auxiliava a selecção natural a preservar e a desenvolver valores, como a ajuda mútua, tão imprescindíveis, antes
como depois da revolução libertadora. O sucesso da revolução social acrata era garantido pela selecção natural da classe operária que, além da sua vantagem numérica, detinha uma superior capacidade adaptativa às condições de existência mais adversas, e tinha desenvolvido os instintos sociais no sentido da cooperação e da solidariedade, uma vez que a propriedade privada não a alienou na competição egoista pela posse de bens. Mas, esse sucesso era igualmente garantido pela lei lamarckiana da transmissão hereditária do adquirido. No novo meio, sem propriedades privadas, etc., a moral,
dita científica (natural-utilitarista) da solidariedade, fixar-se-ia irreversivelmente no organismo e, simultaneamente, a selecção natural
impedia qualquer retorno atávico ao egoismo. O ideário anarquista
fundavaa sua cientificidade, não apenas em Darwin e Lamarck, mas
recorria também ao biologismo neo-lamarckista, designadamente o
Darwin em Portugal
Conclusões
de Félix Le Dantec. Ora, a biologia de Le Dantec sustentava um código de valores, ditos naturais, como o egoismo e a ferocidade,
distância por Portugal. Dada a hegemonia do neo-lamarckismo
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que nada tinha a ver com a moral anarquista da ajuda mútua, da paz e da cooperação. Deste modo, o cientismo acrata cometia uma espécie de “pecado burguês”, valendo-se da ciência que classificava de “burguesa”, e criava muitos equívocos pouco salutares para a integridade ideativa do anarquismo. De certo modo, a elite pensante do anarquismo procedia como o banqueiro anarquista pessoano que se
libertou da tirania do dinheiro, enriquecendo, sem olhar a meios
(Fernando Pessoa). O anarquismo considerava que a ciência era uma instituição burguesa, uma fábrica de ficções mas, julgava vencê-la, subjugando-a ao ideal acrata. Tão bem comooutros ideários, o anarquismo testemunha o impacto cultural da biologia na época, mas melhor do que outros põe a nu a fragilidade dos enunciados biológicos, quando subtraídos do seu contexto originário.
X. Tal como a definição darwiniana de selecção natural, também a chamada ciência eugénica compreendeu uma dimensão positiva (preservação) e uma dimensão negativa (eliminação). Esta engenharia bio-social visava intervir nas taxas de fecundidade, aumentando a reprodução dos mais qualificados, sob o ponto de vista da hereditariedade física e mental e impedindo a reprodução dos menos qualificados. No seu conjunto, afirmava-se como sendo a verdadeira selecção artificial positiva, auxiliar ou substitutiva da
selecção natural, para acelerar a evolução perfectibilista da espécie e, simultaneamente, para prevenir a ameaça de involução, decorrente do elevado índice de fecundidade dos mais fracos. Em Portugal, o combate ideativo pela boa descendência nunca se traduziu na defesa de meios eugénicos radicais, como esterilização artificial preventiva, a eliminação de recém-nascidos e a formação de uma elite procriadora. Também não se reflectiu em propostas fiscais, como a aplicação de impostos pesados aos celibatários ricos e de boa estirpe. Na verdade, podemos afirmar com segurança que, em Portugal, não se cultivou a “religião eugénica” (“a religion of the most unselfish morality”, The Eugenics Review) de matriz inglesa (Galton), de matriz alemã (E. Heckel, A. Ploetz), suiça, nórdica ou americana. Também nesta matéria, a França foi o modelo seguido à
551
(influência do meio exterior sobre a hereditariedade) na cultura bio-médica francesa, a eugenia foi, em regra, subordinada ao vasto campo da higiene científica, e o mesmo ocorreu entre nós. À valo-
rização do meio moldou a eugenia francesa a uma ética humanista, prudente em matéria de imposições legislativas e moderada no plano da educação eugénica, tanto seleccionista como racialista. Deste modo,a trilogia eugenista (determinismo biológico, desigualdade orgânica, social e rácica, selecção artificial) não substituiu a secular trilogia da liberdade, igualdade e fraternidade (Jacques Léonard). Entre nós, desde finais do século XIX, ganhou corpo um pensamento eugénico (hereditariedade/factores internos) no contexto do higienismo (meio/factores externos) que se limitou a defender a boa descendência, segundoo critério da robustez física e mental, tout court. Com efeito, o tema privilegiado do pensamento eugénico português foi a reprodução, na moldura do casamento, dos indivíduos portadores de má hereditariedade ou de algum estado patológico adquirido e transmissível. Assim, incidia-se especialmente na necessidade de inspecção médica pré-matrimonial obrigatória, nos impedimentos patológicos do casamento, na subordinação da consanguinidade ao critério científico da hereditariedade, e no divórcio eugénico. Admitia-se também que a eugenia negativa-preventiva funcionaria automaticamente nos seguintes casos: com a aplicação da pena de prisão perpétua ao chamado “criminoso-nato” ou incorrigível e no caso da “sequestração hospi-
talar com isolamento sexual” (António Maria de Sena) dos indiví-
duos portadores de várias categorias de doenças contagiosas ou hereditárias, entre as quais, as patologias da mente. Os problemas da aptidão orgânica dos nubentes, para constituirem família, e da regulamentação jurídica de impedimentos eugénicos do casamento
foram abordados, nos moldes do espírito darwínico, por médicos e
por juristas, sobretudo, a partir de finais da década de setenta do século XIX. Em regra, esta elite pensante conservava no horizonte o ideal de eugenia preventiva, segundo o qual nenhuma lei teria a
eficácia da decisão individual, tomada de acordo com o “primeiro preceito da boa animalidade” (Egas Moniz). Esta normatraduzia-se
na renúncia ao casamento e à descendência e na abstenção da pater-
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Darwin em Portugal
nidade e da maternidade, por parte dos indivíduos debilitados física e psicologicamente. A concretização deste ideal requeria, evidentemente, a formação duma consciência eugénica, pública e privada, directora do comportamento dos indivíduos, em consonância com o
seu nível de higidez física e mental. Em parte, este optimismo instrutivista (Lamarck) impediu a aceitação das práticas de eliminação irreversível das faculdades geradoras do homem e da mulher doentes ou predispostos. Consensualmente refutada em Portugal, a esterilização, com o seu pretenso carácter científico e ético, foi problematizada e avaliada negativamente por Miguel Bombarda, em moldes que podemos considerar paradigmáticos da consciência crítica da eugenia radical. Em Portugal, apenas Egas Moniz, futuro Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949, ousou propor a esterilização para eliminar a hereditariedade mórbida, embora restringisse essa medida eugénica a um número limitado de casos clínicos. Como muitos outros médicos, Egas Moniz defendeu a proibição do casamento aos indivíduos atingidos por doenças graves contagiosas (tuberculose, sífilis, etc.), mas foi ainda original ao
introduzir o argumento eugénico como fundamento do instituto do divórcio. A consciência médica-cugénica portuguesa empenhou-se fortemente na luta pelos impedimentos patológicos do casamento (veja-se, por exemplo, o livrete de casamento proposto por Miguel Bombarda), embora, até ao final da segunda década do século XX,
grosso modo, não se tenha alcançado uma definição precisa sobre o quadro das patologias impeditivas da realização do contrato matrimonial. Por outro lado, entre nós, a eugenia permaneceu entalada entre a prudência jurídica e o optimismo higienista, o que pode ser interpretado como sendo sintomático da persistência de valores humanistas, de fundo cristão, na cultura portuguesa, apesar da força
dos seus sinais de acolhimento do cientismo, ou agnóstico ou ateu, no período considerado.
BIBLIOGRAFIA
A nossa bibliografia não vai além do recenseamento e da descrição, o mais completa possível, dos exemplares citados no presente estudo. A bibliografia subsidiária utilizada é uma parte mínima do imenso caudal de trabalhos que, sobretudo a partir de 1982, tem vindo a público. Lembre-se que a Ísis Current Bibliography of the History of Science and its Cultural Influences, anualmente, publica dezenas de novos livros sobre Darwin e o darwinismo. Como é óbvio,
demos preferência às grandes autoridades já consagradas na matéria. Quanto à obra de Darwin, não utilizámos, mas sabemos que a primeira edição completa da obra darwiniana está disponível desde 1990. Vide: Charles Darwin, The works of Charles Darwin, Edited by: Paul H. Barrett and R.B. Freeman. Advisor: Peter Gautrey. Letchworth, Pickering & Chatto, 1987-1990, 29 vols: il. — The Pickering Masters. Quanto à correspondência de Darwin, os estudiosos dispõem recentemente de um instrumento de trabalho ímpar. Trata-se da obra, The corre-
spondence of Charles Darwin. Edited by Frederick Burkhardt and Sydney Smith. Cambridge e outras, Cambridge University Press, 1985- ? Até à data foram publicados nove (9) volumes. NOTA: não fizemos uma actualização da ortografia das fontes portuguesas e estrangeiras.
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613
ANEXOS
Anexos
617
QUADRO I QUADRO COMPARATIVO DAS DIFERENTES LÍNGUAS EM QUE FOI IMPRESSA A OBRA DE CHARLES DARWIN ORIGEM DAS ESPÉCIES E DATAS DAS PRIMEIRASEDIÇÕES
Romeno
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1957 1959 1960 1964 1970
N.º de ed. — número de edições. (Quadro construído a partir dos dados colhidos em R.B. Freeman, The works of Charles Darwin. An annotated bibliographical handlist, Second edition revised and enlarged. Folkestone-Hamden, Dawson-Archon Books, 1977, pp. 73-111). NOTA: Em 1913 é publicada a primeira tradução portuguesa.
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618
Darwin em Portugal
Anexos
COMPARAÇÃO DO NÚMERO TOTAL DE ) EDIÇÕES . DA ORIGEM DAS ESPÉCIES EM DIVERSAS LÍNGUASATÉ 1913
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QUADRO COMPARATIVO DASDIFERENTES LÍNGUAS
GRÁFICOA.Incluindo a língua inglesa
EM QUE FOI IMPRESSA A OBRA DE CHARLES DARWIN ORIGEM DO HOMEM E DATAS DAS PRIMEIRAS EDIÇÕES
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Nº de ed. - número de edições.
Yiddish (judeu-al.) — judeu alemão. (Quadro construído a partir dos dados colhidos em R.B. Freeman, The works of Charles Darwin. An annotated bibliographical handilist, Second edition revised and enlarged. Folkestone-Hamden, Dawson-Archon Books, 1977, pp. 128-142). NOTA: Pela primeira vez, em 1910, são publicadas duastraduções diferentes, e ambas parciais, em língua portuguesa.
620
Darwin em Portugal
Anexos
COMPARAÇÃO DO NÚMERO TOTAL DE EDIÇÕES DA ORIGEM DO
QUADRO TI
HOMEM EM DIVERSAS LÍNGUAS ATÉ 1910
621
QUADRO COMPARATIVO DASDIFERENTES LÍNGUAS EM QUE FOI IMPRESSA A OBRA DE CHARLES DARWIN | A EXPRESSÃO DAS EMOÇÕES E DATAS DAS PRIMEIRAS EDIÇÕES
GRÁFICO C.Incluindo a língua inglesa
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Legenda : Al - Alemão (11). Cc —- Checo (1). Di— Dinamarquês (2). Es — Espanhol (2). Fr — Francês (7). Ho — Holandês (5). Hu — Húngaro (1). In — Inglês — (81). It — Italiano (2). Pl] - Polaco 6).
Po — Português(2). Ru — Russo(12). Su — Sueco (1)
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1872 1872 1872 1873 1873 1874 Í
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Nº de ed.
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40 12 8 2 2 3 4
até 1920
até 1
21 i 1
N.º de ed. — número de edições. (Quadro construído a partir dos dados colhidos em R.B. Freeman, The works of Charles Darwin. An annotated bibliographical handilist, Second edition revised and enlarged. Folkestone-Hamden, Dawson-Archon Books, 1977, pp. 142-149)
622
Anexos
Darwin em Portugal
COMPARAÇÃO DO NÚMERO TOTAL DE EDIÇÕES DE A EXPRESSÃO DAS EMOÇÕES EM DIVERSAS LÍNGUAS ATÉ 1920 GRÁFICOE.Incluindo a língua inglesa . 30
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623
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homem, segundo a theoria de
anti-diluviano ipparece:
GRÁFICO F. Excluindo a língua inglesa
Ros amoz a apoesição*desai
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macaco;mescladaquêforam'as.
várias raçasduranté milharesdeannosesob óseffeitos dos
variados climas fizeram então a sua apparição os primeiros . homens dos quaes o corpo e as fôrmas e os costumes eram.
totalmente differentes das dos homens d'hoje. Estas sequencias de transformações que muitos seculosconseguiramexecutar, vamosnós apresental-as viva e natu='
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ralmente no curto espaçodum hora, graças à sciencia tech-" nica Londrina, o que quasi se pode chamar um milagre! ' ' Nemcenimatographo, nem lanterna magica, ou pho- : togtaphia sãoprecisospara se obterem estes surprehenden- : tes efeitos: que decerto: devem:calar bem fundo em todo.o-
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publico..." Este espectaculo, por todos os motivos deveras sensa-
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Legenda: Ai - Alemão (10). Es - Espanhol(1). Fr » Francês(3). Ho . Holandês (2). In - Inglês (24). Ht - Italiano (3). PJ - Polaco (1). Ru - Russo (6).
cional, apenas por- muito pouco tempo se demora em Lisboa onde será apresentado no.
Salão. da Trindade
ÍNDICE
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PREFÁCIO... seios erraram errar creia rrenan
15
[NgUTO)Dj6[6-(O PR
24
1. O estatuto da teoria darwiniana.............. 2. Como explicar a revolução darwiniana. 3. O génio de Darwin: a intelecção do esgotamento do paradigmaestático da história natural... creeeeeereeertanenencecareaaaeneneasenacenaresreserasa 4. O sucesso da Origem e a sombra de Malthus 5. Darwinismo:a teoria darwiniana e as suas Variantes...
21 25
6. A teoria de Darwin e o evolucionismo filosófico de Herbert Spencer................
7. 8. 9. 10.
A teoria de Darwin e o monismoevolucionista de Emst Hackel A história e a sociedade na teoria biológica de Darwin... Darwin em Portugal: botânica, zoologia e antropologia... Darwin em Portugal: comemorações de 1882 e de 1909....................iiss
30 35 43
46
50 58 66 75
PARTE I FILOSOFIA: O SENTIDO DO DARWINISMO NA CA(UJSA DE ANTERODE QUENTAL
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Capítulo 1 A busca do lugar da evolução natural no diálogo possível entre a autêntica reflexão filosófica e os seus simulacros................. eee rereesisreeaners
89
Capítulo 2 A radicalidade do perguntar anteriano: distinção entre a evolução dos filósofos, o evolver darwiniano e a Weltanschauung cientista...
99
Capítulo 3 A luta filosofal de Antero pela eticização da lógica natural da vida.................
11
Capítulo 4 O vínculo entre a historicidade do Absoluto e a necessária adaptação criativa da filosofia ao progresso do conhecimento científico ............sesseesenerresearmersenea
119
626
Darwin em Portugal
Índice
Capítulo 5
A fulguração imperfeita do eu, testemunho-heterónimo da evolução natural............
131
Capítulo 6 A salvaçãofilosófica da ciência ou a anteriana “teia de Penélope” 2...
143
PARTE HI DARWINISMOE ENGENHARIA SOCIAL Capítulo 1 É: É É
PARTE II DARWINISMOE HISTÓRIA
É
ÉÉ É
Capítulo 1
A lógica teofiliana da história ... 1. História universal: um naturalismo historiológico de tipo darwinist a?...... 2. À estética da luta: a demora da “Humanitude”........meei e, 3. A geração de Portugal: hereditariedade recorrente e salvaguarda do múltiplo
155 155 172 190
Capítulo 2 Teses racialistas críticas das posições teofilianas...........iiiiis 1. A defesa radical da arianidade latina peninsular, por Júlio de Vilhena.......
205 205
darwinista da arianização da Península Ibérica...
214
2. O veredicto de um cientista da natureza: Correia Barata e a maquilhagem
Capítulo 3 A lógica martiniana da história... ie
É
É
sociologia bem temperada de Teófilo Braga .............. serenata Princípio biológico da população, luta pela vida, variação e selecção........ A disciplina ético-pedagógica da luta enquanto garantia da selecção natural A originalidade do darwinismo social teofiliano .............. essere
331 331 338 348
Capítulo 2 Um modelo-zénite: a psico-sociologia de Júlio de Matos................sceeseeeeeesereeeees 1. A formação da perspectiva............eesieseeneseneereseeeasenenasreneeorereraerare
359 359
2. A leitura matosiana do socialismo enquanto falsificação da concorrência vital... ice rererereaeraenerareeatanarea cana reaseereeaeaeereses sereno renesessenteacasa 3. A agressividade do darwinismo elitista na luta pela posse da ciência de Darwin... certa eeereseneeaeaareeraracerererenearacerararearestiena 4. A destruição das utopias sociais pelo evolucionismo psicológico ... 5. The right science in the right place: forma e conteúdo................sss. 6. O problema do valor ideológico do darwinismo psico-social matosiano....
Capítulo 3
A rubefacção libertária do darwinismo.............reremeesereseraereceseeareareracrerecareraerentos 1. 2. 3. 4.
229
é
Capítulo 5 A História enquanto “capítulo da Biologia” na teoria de Augusto Coelho...
A 1. 2. 3.
7. A contestação do darwinismoelitista de Júlio de Matos.........................
1 Traços naturalistas da teoria “filosófica” da história martinia na 229 2. A universalização ariana da história pela “lei zoológica da selecção”. ...... 2A4 3. “Lebenskraft” e “Lebensraum”: a expansão numérica e geográfica da raça ariana, uma necessidade ingénita favorecida pelas “estranhezas da história” 256 4. O devir universal da história: problemas e certezas nateoria martiniana.. 266 5. Portugal: a contraprova do determinismoracial no processo histórico? ... 274
Capítulo 4 O uso prudente do “software darwínico” por Ramalho Ort igão... 1. A darwinização da quedahistórica da raça portuguesa, de meados do século XVI em diante... serasa 2.0 estudo ortiganiano dos Grundlagen: a “febre” que não contagio u Ramalho 3. Die Grundlagen: história ou histeria? O que desse delírio germanis ta ficou gravado no manuscrito de Ramalho...
627
A selecção natural dos valores anarquistas ..............sseneresereeeaseeeasmesem A “raíz do mal” e o primado do meio na causa libertária... A aprendizagem acrata da desalienação bio-moral.....eeessenemeaas O “pecado burguês” do cientismo acrata............eeeseeereeseeeeeesereeseraseetes
Capítulo 4
370 381 391 406 415
427 435 435 443 450 463
Minerva contra Eros: ressonâncias eugénicas em Portugal... 1. Contornos da problemática eugénica o
285
2. O combate pela selecção virtual da descendência ...................s 3. A consciência eugénica entre a prudência jurídica e o optimismo higienista 4. A insensibilidade portuguesa à via eugénica privilegiada por Darwin.......
479 479
285 296
CONCLUSÕES... meses cera erermeresrereeeseesenentos
529
BIBLIOGRAFIA... iss irereeeiereecererereceareeaacenecerenararenenerarererararerenenanes
553
1.2.1. Portuguesas... esecesrareerreninereaereererarenerereereeastesaes
559
305
313
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487 508 521
1. Fontes... icrenerarracassenaranereereererereareaeerterecesararenecenaaeres 557 1.2. Manuscritas 559
1.2.2. Estrangeiras... iss eeererreeaerenreeearensenencanenesrarereraena 2. Bibliografia subsidiária ..... 3. Imprensa periódica citada
579 591
ot
628
Darwin em Portugal
ANEXOS... ecra reeiaeene cite reremeaeareenrer eres eaia aerea rara eaeneaniara
Anexo 1 1.1. Comparação das diferentes línguas em que foi impressa a obra de Charles Darwin Origem das Espécies e datas das primeiras edições Quadro I. Quadro Comparativo... ear Gráfico A. Gráfico Comparativo incluindo a língua inglesa... Grafico B. Gráfico Comparativo excluindo a língua inglesa...
617 618 618
1.2. Comparação das diferentes línguas em que foi impressa a obra de Charles Darwin Origem do Homem e datas das primeiras edições Quadro II. Quadro Comparativo ........... serenata rerrerenanereanaas Gráfico €. Gráfico Comparativo incluindo a língua inglesa... Grafico D. Gráfico Comparativo excluindoa língua inglesa...........
619 620 620
1.3. Comparação das diferentes línguas em que foi impressa a obra de Charles Darwin A Expressão das Emoções e datas das primeiras edições Quadro HI. Quadro Comparativo... eee Gráfico E. Gráfico Comparativo incluindoa língua inglesa... Grafico F. Gráfico Comparativo excluindoa línguainglesa... Anexo 2 Anúncio Teatral — Salão da Trindade. Brevemente grande novidade em Lisboa. À transformação do macaco em homem, segundo a theoria de Darvin. [...], Lisboa, Salão da Trindade, [1900] — 1 folha volante. AU.C..... net
END)(6= PR
621 622 622
ÍNDICE DE GRAVURAS Fig. 1 — Charles e Emma Darwin em Down House ............eeeseseseseaeeneeanses Fig .2 — Diagrama da árvore da vida por Darwin... sseseemenesseneraeerereansos
24
Fig. 3 — Esqueleto do homem e dos quatro géneros antropóides...............e
52
Fig . 4 — Ontogenia segundo Heckel............. cs sieeesreneeserserearecersreraseneeraneerasas
53
Fig .5 — Árvore genealógica do homem segundo Heeckel................iiti
57
Fig . 6 — Charles Darwin na fachada da B.G.U.C............ serenas
70
Fig 7 — Charles Darwin (1882)... ser reeeeeeeeerenaerrareneraeneeenaanconeaeenesenaneenta
77
Fig .8 — Jean Baptiste de Lamarck............. ss reeeresreseenerenterecemrensencerness
83
Fig .9 — Soneto de Antero de Quental, Evolução (1882)... Fig . 10 — Emma Darwin... ssa erneseseereraaerenereneeeeeeareneaeeerearenaers
Fig . 11 — Anúncio teatral 1900... ceeseceeererereeenerereerereacaceneransararernerracaça
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