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Portuguese Pages [249] Year 2017
NO SÉCULO XXI
CONSELHO EDITORIAL
Bianca Oliveira João Peres Leonardo Garzaro Tadeu Breda EDIÇÃO
Eduardo Rascov Tadeu Breda PREPARAÇÃO
Tadeu Breda REVISÃO
Luis Avelima Priscilla Vicenzo FOTOS
Matheus Paschoal Ellen Elsie CAPA
Ana Carolina Soman PROJETO GRÁFICO & DIAGRAMAÇÃO
Bianca Oliveira
ORGANIZAÇÃO _ FABIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS _ JOANA SALÉM VASCONCELOS _ FABIANA RITA DESSOT TI
NO SÉCULO XXI DILEMAS DA REVOLUÇÃO
Ser bueno es el único modo de ser dichoso; ser culto es el único modo de ser libre, pero en lo común de la naturaleza humana se necesita ser próspero para ser bueno. — JOSÉ MARTÍ, 1884
Se puede salir hacia el socialismo y no llegar. — EDITORIAL DO JORNAL GRANMA, 1967
Hay por delante problemas esenciales, como la sorda y gigantesca guerra cultural interna que en Cuba se libra entre socialismo y capitalismo. — FERNANDO MARTÍNEZ HEREDIA, 2009
SU MÁ RIO
14
PREFÁCIO
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CUBA NO PRESENTE E NO FUTURO Frei Betto
INTRODUÇÃO
1
O QUE É A REVOLUÇÃO HOJE?
22
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2
POR QUE A REVOLUÇÃO NÃO CAIU?
38
3
COMO A JUVENTUDE SE RELACIONA
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COM A REVOLUÇÃO? 4
CUBA É UMA DEMOCRACIA?
54
5
HÁ CENSURA EM CUBA? OS CUBANOS TÊM
62
ACESSO ÀS NOVAS TECNOLOGIAS? 6
HÁ MACHISMO, HOMOFOBIA E RACISMO EM CUBA?
72
7
QUEM SE BENEFICIA COM A REAPROXIMAÇÃO
82
ENTRE ESTADOS UNIDOS E CUBA? 8
OS CUBANOS QUEREM DEIXAR CUBA?
90
9
O EMPREENDEDORISMO ESTÁ CRESCENDO
98
EM CUBA? 10
QUAL O LUGAR DAS COOPERATIVAS NO
108
SOCIALISMO CUBANO? 11
EXISTE DESEMPREGO EM CUBA?
120
12
QUAIS OS DESAFIOS DA QUESTÃO
128
AGRÁRIA EM CUBA?
13
QUAIS AS REGRAS PARA O CAPITAL
140
ESTRANGEIRO EM CUBA? 14
POR QUE CUBA TEM DUAS MOEDAS?
152
15
OS CUBANOS SÃO POBRES?
162
16
OS DIREITOS SOCIAIS CUBANOS ESTÃO EM RISCO?
170
17
QUAIS OS LIMITES E AS POTENCIALIDADES
174
18
CUBA É DESENVOLVIDA?
19
ERA NECESSÁRIO ALIAR-SE À UNIÃO SOVIÉTICA?
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EXISTEM RASTROS DO “HOMEM NOVO” EM CUBA?
DA EDUCAÇÃO EM CUBA?
21
ESTÁ EM CURSO UMA RESTAURAÇÃO
186 194 200 210
CAPITALISTA EM CUBA? 22
O QUE PODEMOS APRENDER COM A
216
REVOLUÇÃO CUBANA?
POSFÁCIO
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GLOSSÁRIO
234
SOBRE OS AUTORES
244
SOBRE O PROJETO
252
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CUBA NO PRESENTE E NO FUTURO PREFÁCIO FREI BETTO
18
Em novembro de 2016, um grupo de trinta e três jovens estudantes, professores e pesquisadores brasileiros viajou a Cuba, onde permaneceu durante quase duas semanas. A viagem ocorreu nos marcos do programa de extensão “Realidade Latino-Americana” da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Este livro é o resultado do que viram, ouviram, constataram e conferiram. Este é o melhor texto sobre Cuba ao alcance do leitor brasileiro na virada dos anos 2017–2018. Leitura obrigatória para quem, frente a Cuba, reage com equilíbrio, sem o reacionarismo anticomunista dos que veneram o capitalismo nem o esquerdismo infantil e dogmático de quem considera a Revolução Cubana o paraíso na Terra. Os autores tiveram contato direto com o povo cubano, sem nenhuma restrição, e conversaram com cientistas sociais, políticos, empreendedores e profissionais qualificados da emblemática ilha do Caribe. O texto nos ajuda a entender por que Cuba resiste após a queda do Muro de Berlim, o esfacelamento da União Soviética, o desaparecimento do socialismo no Leste Europeu e a opção chinesa por um capitalismo de Estado. E responde a inúmeras perguntas que sempre brotam quando se trata de Cuba: É um país democrático? Tem eleições livres? Os cubanos têm acesso à internet? Há igualdade de gênero e etnia? As recentes reformas econômicas aprimoram o socialismo ou empurram Cuba ao sistema capitalista? O que será do país após a renúncia ou morte de Raúl Castro? 19
Graças à mediação do papa Francisco, o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama adotou uma série de medidas para se reaproximar de Cuba, sobretudo ao reatar as relações diplomáticas entre Washington e Havana, rompidas desde 1961. Porém, dois passos decisivos à normalização dos laços bilaterais ainda não foram dados: a suspensão do bloqueio econômico imposto pela Casa Branca e a devolução da base naval de Guantánamo. E, agora, o presidente Donald Trump ameaça anular as medidas adotadas por seu antecessor. O fato é que, em 58 anos de revolução, Cuba resiste heroicamente a todo tipo de pressão orquestrada pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, a cia. E sabe que os estadunidenses jamais ousarão atacá-la, como fizeram com Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria. O poder bélico do imperialismo é capaz de derrubar governos, como ocorreu aos países do Oriente Médio. Contudo, jamais pode derrotar um povo, como se comprovou no fracasso da tentativa mercenária de invasão de Cuba, em 1961, na Baía dos Porcos, e na derrota sofrida pelo Tio Sam na guerra do Vietnã. Este parágrafo, assinado por Matheus Paschoal, um dos autores, resume o conteúdo deste livro: Cuba está entrando em uma nova fase da sua história, e devemos ser cautelosos nos prognósticos sobre seu futuro. É perceptível que o país necessita de mudanças para continuar avançando na construção do socialismo. Contudo, há questionamentos sobre se as mudanças que vêm sendo realizadas não estariam levando a uma restauração capitalista. O incentivo à lógica empreendedora e o aumento da mercantilização das relações sociais parecem colocar em risco a busca pela igualdade substantiva e de relações de produção baseadas em valores de solidariedade. O sentido das reformas aponta para uma forte mudança do socialismo cubano, podendo levar à restauração de uma lógica cada vez mais capitalista de reprodução social. 20
Por mais que o povo cubano seja marcado pela sua consciência e luta política, o horizonte da restauração capitalista parece assombrar o seu futuro.
Boa leitura e bom proveito!
FREI BETTO é escritor, autor de Batismo de sangue (Civilização Brasileira, 1982), Fidel e a religião (Fontanar, 1985) e Paraíso perdido: viagens ao mundo socialista (Rocco, 2015), entre outros livros.
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IN TRO DU ÇÃO
Este livro é o resultado de uma pesquisa realizada por trinta e três investigadores de variadas universidades brasileiras (Unifesp, usp, Unicamp, Unirio, ufrr e Unila) e diferentes áreas (Relações Internacionais, História e Economia), nos marcos da terceira edição do programa de extensão “Realidade Latino-Americana”, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em fevereiro de 2016, demos início a um calendário de estudos, leituras e palestras, no auditório da biblioteca do Memorial da América Latina, em São Paulo, instituição que apoia o programa desde a sua primeira edição. Após dez meses de trabalho, finalizamos esse ciclo de formação com uma “oficina de formulação de perguntas”, buscando indagar sobre a realidade cubana do século xxi em perspectiva histórica. Munidos de uma agenda de investigação coletiva, viajamos a Cuba na primeira quinzena de dezembro de 2016, onde realizamos mais de trinta entrevistas com pesquisadores, movimentos, dirigentes políticos e instituições especializadas. Não foi menos importante o que o grupo chamou de “agenda invisível”, isto é, as conversas com os cubanos que participaram de nosso cotidiano nas ruas, feiras, praças, restaurantes e demais espaços públicos. A viagem ocorreu poucos dias depois do falecimento de Fidel Castro. Em outras palavras, este livro é resultado de um processo que combinou formação teórica, elaboração coletiva e investigação de campo. Com ele, pretendemos trazer informações e análises atualizadas sobre a ilha no século xxi e os dilemas de sua revolução, em um mundo cada vez mais distante da23
quele que a gestou. Nosso propósito é dialogar com as dúvidas e inquietações que os brasileiros carregam a respeito dos impasses da Revolução Cubana no século XXI. Todos os capítulos são guiados por perguntas, para as quais apresentamos aproximações e hipóteses, sem nenhuma pretensão de esgotamento. Segundo nossa percepção, algumas dessas perguntas costumam ser evitadas pelo senso comum de esquerda e vulgarizadas pelo de direita. Nesse sentido, nosso objetivo é alargar e aprofundar o debate sobre Cuba no Brasil, oferecendo mais elementos informativos e analíticos ao público, buscando fugir de polarizações fáceis. Por isso, também, os capítulos nunca ultrapassam dez páginas. Assim, podem ser lidos coletivamente em salas de aula, universitárias ou escolares. Alguns exemplos das questões levantadas podem ser vistos no sumário: Cuba é uma democracia? É um país pobre? É um país desenvolvido? Há censura na ilha? Como a juventude se relaciona com a revolução? Quem se beneficia da reaproximação Cuba-Estados Unidos? Qual a participação do capital estrangeiro na ilha? Qual a força das empresas privadas? Com essas e outras perguntas, buscamos criar um panorama dos dilemas da Revolução Cubana no século xxi. Os autores deste livro formam um grupo politicamente heterogêneo, mas que encontra pontos comuns na defesa do pensamento crítico, no compromisso com a transformação social e na rejeição aos dogmatismos. A partir dessa perspectiva, entregamos ao leitor um material de formação política e histórica, visando estimular o debate e a reflexão fraterna, em sintonia com quem encontra na experiência cubana um ponto inescapável para o estudo da América Latina. Não pretendemos apresentar a Revolução Cubana como “modelo” ou “contramodelo”, mas analisar as lições que sua história pode nos oferecer para o presente e o futuro. Embora a autoria de cada texto seja determinada, o conjunto do livro representa um processo coletivo de discussão e 24
pesquisa. Ao voltarmos da viagem, todas as versões iniciais dos capítulos foram submetidas ao debate em grupo, o que orientou sua versão final. Nesse sentido, as questões abordadas são aquelas que o projeto pretendeu responder a si próprio, antes, durante e depois da viagem. Todas elas dialogam, de alguma maneira, com uma pergunta central, que será retomada ao final do livro: quais os riscos de uma restauração capitalista em Cuba no século xxi?
Quem cultiva a imagem de Cuba como um país estático, habitado por uma população silenciada, vitimizada e apática, poderá encontrar com a presente leitura fortes argumentos para modificar essa percepção, muito difundida por meios de comunicação brasileiros. A sociedade cubana encontrada pelo grupo atravessa um dos maiores debates públicos vividos em 58 anos de revolução. Segundo o cubano Rafael Hernández, diretor da revista Temas, um dos espaços críticos de maior vitalidade no país, é possível enumerar cinco principais pautas em discussão na ilha: i) A desigualdade social, que quadriplicou em Cuba nos últimos 25 anos e parece estar posta em contradição com as exigências do crescimento econômico. Seria a desigualdade um custo a pagar pelo crescimento? ii) A polêmica sobre os malefícios da supercentralização estatal em tensão com a necessidade do controle político que sustenta a soberania nacional: como descentralizar o Estado sem perder o controle soberano dos processos econômicos? Ou, ainda, como gerar novas formas de controle e soberania? O debate sobre a descentralização em Cuba não é pautado pela ideologia do Estado mínimo, 25
pois prevalece a percepção de que o Estado tem um papel social fundamental. Ao mesmo tempo, sua extinção — em perspectiva revolucionária — é impossível enquanto houver pressão estadunidense. Assim Fernando Martínez Heredia sintetizou o dilema: “Como diabos construímos um Estado forte, mas que não nos coma?” iii) O crescimento do setor privado: há diferentes visões sobre como dinamizar e democratizar a economia cubana, e sobre como criar novas regras de relacionamento entre mercado e Estado. Alguns apostam em uma visão empresarial e outros, em uma visão cooperativa. Entre uma e outra posição, existem nuances. Quais soluções podem ser criadas para que o setor privado não se transforme em puro capitalismo? iv) O desafio de superar o burocratismo e o dogmatismo: sente-se a necessidade de modificar o que o próprio Raul Castro descreve como “velha mentalidade”, associada aos vícios políticos herdados da influência soviética. Há um potencial travamento da mudança de mentalidade, na medida em que os mesmos responsáveis pela reforma colocariam em risco seu poder. Como dinamizar essa mudança política sem perder a organicidade social? v) O desafio de criar leis que correspondam ao dinamismo social da mudança em curso: qual seria o papel da lei na transformação cubana? Há um descompasso entre processo real e processo legal, que frequentemente gera desorganização e polêmica. Rafael Hernández menciona a necessidade de reformar a lei de municípios, a lei eleitoral, a lei de associações, a lei de culto, a legislação trabalhista, entre outras. O exemplo dos direitos laborais no novo setor privado é emblemático: como legislar sobre o 26
cuentapropismo, considerando que o mesmo termo descreve a situação de diferentes classes sociais (trabalhadores e empresários) em plena transformação? Percebemos que existem duas questões centrais que atravessam todos esses debates: a reforma econômica e a democratização da política. Há consenso entre os cubanos sobre a necessidade de ambas, mas há diferentes formas de interpretá-las. A investigadora Camila Piñeiro Harnecker sintetizou três correntes de opinião no debate estratégico cubano: 1) a visão estatista, que defende mudanças mínimas e é geralmente representada por setores da burocracia estatal; 2) uma visão economicista, que favorece a propriedade e a iniciativa privadas, frequentemente emulando a referência chinesa; e 3) uma visão culturalista, que defende a democratização das relações sociais de produção pela busca dos interesses coletivos e não individuais, associada ao cooperativismo e à mudança de mentalidade do trabalhador. Além desses, constata-se uma minoria simpática à liberalização tout court, assim como há vozes no polo oposto, acusando que nas reformas em curso haveria uma renúncia aos ideais da revolução. Prevalece a defesa de caminhos diferentes, embora igualmente referenciados em um “sentido original da revolução”. Nem sempre esse denominador comum se traduz em convergência de ideias ou maior nitidez no debate. Frequentemente, valores socialistas aparecem imiscuídos em um vocabulário de racionalidade tipicamente capitalista, como o uso do termo “capital humano” para explicar a importância da formação profissional, repetido algumas vezes na fala da presidente da Federação de Estudantes Universitários, Jenifer Martínez. Ou a referência à imagem de Cuba como uma “marca-país” no mercado turístico internacional. Nesse sentido, Fernando Martínez Heredia, um dos mais respeitados intelectuais 27
cubanos, se mostrou preocupado com aqueles que, mesmo acreditando ser socialistas, possam colaborar, na prática, para uma passagem ao capitalismo. No posfácio deste livro, o leitor poderá encontrar uma entrevista realizada com Heredia seis meses antes de sua morte, em 12 de junho de 2017. No fundo desse grande debate, se defrontam duas vias: por um lado, aqueles que veem a possibilidade de subordinar o emprego de meios capitalistas às finalidades socialistas; por outro, os que defendem a priorização de meios diretamente coerentes com valores socialistas, apontando para a democratização em todas as dimensões das relações de produção e de poder. É neste ponto que os desafios econômicos e políticos da revolução se encontram. Nesse entroncamento, o debate sobre o papel da consciência coletiva nas mudanças ganha especial relevo. A despeito do alto nível de escolaridade e da notável cultura política do cidadão cubano comum, que impressiona qualquer visitante, há uma avaliação generalizada de que ainda existem limites relevantes para a formação de um “sujeito emancipado” na ilha. O educador Ariel Dacal, do Centro Martin Luther King, recorda que a educação cubana alcançou níveis de excelência atestados rotineiramente pela Unesco, mas ainda dentro dos moldes do que Paulo Freire chamou de “educação bancária”. Segundo Dacal, trata-se de uma sociedade altamente informada, mas com restrita capacidade de intervenção e decisão política a partir das informações que possui. Este é um problema para aqueles que consideram imprescindível neutralizar a crescente pressão mercantil por meio do engajamento crítico em defesa dos valores revolucionários. Dessa perspectiva, alguns cubanos nos apontaram o problema de uma relativa despolitização, que tornaria a cidadania mais vulnerável às seduções mercantis. Em particular, discute-se a situação da juventude, vinculada a uma apreciação crítica sobre o sistema educacional e a participação 28
política. É a partir desse ângulo que Rafael Hernández indaga: “Pode haver [em Cuba] uma mudança de mentalidade e de valores sem que mudem os modos de participação, os acessos ao poder, as hierarquias estabelecidas?”. Em um debate sobre a relação dos jovens com a revolução, um participante afirmou: “Nós, jovens cubanos, não estamos experimentados na participação e no exercício do poder. Tampouco temos clareza do que queremos e das formas de consegui-lo”. O rechaço à participação tutelada foi resumido por outra jovem da seguinte forma: “Não queremos que nos deixem brincar de fazer a revolução: queremos fazer a revolução”. O advogado Júlio Fernández Estrada observou que, em Cuba, o povo se acostumou à participação popular amparada pelo Estado. Nesse contexto, observa que, ao contrário do que se pode imaginar, há relativa escassez de experiência de engajamento social em lutas políticas independentes, o que suporia uma relação diferente com o Estado. Enfim, será que a renovação da política cubana corresponderá a um aguçamento das contradições características de uma sociedade de classes? O vice-presidente da União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac), Luis Morlote, recordou que nunca houve bloqueio para a indústria cultural, e que o American way of life está presente na tv, no rádio, nos cinemas e nos turistas. Como a difusão dos valores tipicamente capitalistas incide nas atuais mudanças? O delicado paradoxo da radicalização democrática na unidade revolucionária, entre o fogo cruzado do imperialismo e da burocracia, foi sintetizado nas palavras de outro jovem: “O chamado à disciplina, dentro das filas revolucionárias, tem que estar compensado por uma indisciplina urgida pelas necessidades da mudança”. Em síntese, a mercantilização das relações sociais e a penetração do capital estrangeiro sinalizam o grau de contradições da revolução no século xxi e criam novas desigual29
dades. De maneira geral, os cubanos almejam justiça social, ao mesmo tempo que desejam ampliar seu acesso a bens de consumo não produzidos na ilha e não têm claro quais caminhos factíveis podem ser abertos. Segundo o educador Ariel Dacal, alguns preferem, “primeiro, resolver o seu”. Ou seja, as tensões entre a expectativa de uma atualização revolucionária e a corrosão dos valores coletivos decorrentes da difusão mercantil demarcam a disputa pelo sentido das mudanças na ilha. Os textos deste livro mapeiam, sob distintos ângulos, as potencialidades e os riscos inerentes a esse processo.
FABIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS JOANA SALÉM VASCONCELOS FABIANA RITA DESSOTI Inverno de 2017
ENTREVISTAS
Ariel Dacal, educador popular, Centro Martin Luther King. Julio Antonio Fernández Estrada, advogado, ex-professor da Faculdade de Direito da Universidade de Havana. Rafael Hernández, diretor da revista Temas. Fernando Martínez Heredia, pesquisador do Centro de Estudos Juan Marinello. Jenifer Martínez, presidente da Federação de Estudantes Universitários (FEU). Luis Morlote, vice-presidente da União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac). Camila Piñeiro Harnecker, especialista em cooperativismo. 30
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALONSO, Aurelio et al. “Debate: 'Actualizando el modelo: economía política y cultura'”, em Temas, nº 73, pp. 70-80. Havana, jan.-mar. 2013. COBO; Narciso et al. “Debate: 'Actualizando el modelo: economía política y cultura'”, em Temas, nº 73, pp. 70-80. Havana, jan.-mar. 2013. GARCÉS, Carlos. “Debate: 'Politización/ despolitización en la cultura contemporánea'”, em Temas, nº 76, pp. 72-82. Havana, out.-dez. 2013. GUANCHE, Julio Cesar et al. “Debate: 'Politización/ despolitización en la cultura contemporánea'”, em Temas, nº 76, pp. 72-82. Havana, out.-dez. 2013. ORGTEGA GONZÁLEZ, Diosnara et al. “Debate: 'Que es para ti la Revolución: los jóvenes opinan'”, em Temas, nº 56, pp. 152-160. Havana, jul.-set. 2008. PÉREZ, Ernesto et al. “Debate: 'Que es para ti la Revolución: los jóvenes opinan'”, em Temas, nº 56, pp. 152-160. Havana, jul.-set. 2008. ROJAS, Fernando Luis et al. “Debate: 'Que es para ti la Revolución: los jóvenes opinan'”, em Temas, nº 56, pp. 152-160. Havana, jul.-set. 2008.
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1 O QUE ÉA REVOLUÇÃO HOJE? FABIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS JOANA SALÉM VASCONCELOS
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A revolução de 1959 foi o processo que formou a nação cubana. No caso dos países latino-americanos, marcados por heranças da colonização europeia e da escravidão, “formar a nação” significa dois movimentos: por um lado, conquistar a independência em relação ao poder econômico estrangeiro, e, por outro, atingir um nível de igualdade social capaz de embasar uma nova identidade nacional, com densidade popular. Desde 1959, Cuba manda em si mesma e construiu um sistema social igualitário. O caminho para os revolucionários de 1959 chegarem ao poder foi a guerrilha, mas sua legitimidade vai muito além da força das armas, pois advém de um extraordinário apoio popular. Tal apoio foi selado por dois valores com os quais a revolução se comprometeu desde o início: a igualdade e a soberania. É a renovação desse compromisso, inclusive nas crises mais duras, que faz a revolução se sustentar até hoje. Em abril de 1961, mercenários invadiram a ilha para derrubar o novo governo, apoiados pelos Estados Unidos e por cubanos ricos que haviam fugido do país. Enquanto soldados cubanos derrotavam os invasores, Fidel Castro declarou o caráter socialista da revolução. O socialismo, momento transitório entre o capitalismo e o comunismo, carrega em si a utopia de uma igualdade na abundância. Cuba, porém, é uma ilha pobre. E, assim como o Brasil, sua história é marcada por um passado colonial e escravocrata. Portanto, o principal desafio da Revolução Cubana foi — e ainda é — combater o subdesenvolvimento. 33
Como disse Esteban Morales, sociólogo cubano que investiga o racismo, não se pode superar em cinquenta anos (de revolução) os problemas que foram enraizados durante mais de quatro séculos (de escravidão e colonialismo). Para complicar, a sociedade cubana resiste ao bloqueio econômico dos Estados Unidos, o que torna o desafio do desenvolvimento ainda mais complexo. Foi preciso ter criatividade, e a revolução só sobreviveu até hoje por ser um processo dinâmico e vivo. Durante a existência da União Soviética, Cuba se aproveitou das vantagens geopolíticas que obtinha com a Guerra Fria, por estar no encalço do seu principal adversário. Recebeu oferta barata de crédito e preços favoráveis para o petróleo. Nesse período, a ilha desenvolveu uma “dependência de novo tipo” com Moscou. Era uma relação que garantia vantagens econômicas no curto prazo, além de certa proteção, mas implicava desvantagens preocupantes no longo prazo. Isso permitiu que Cuba vivesse uma momentânea “igualdade na abundância” nos anos 1970 e 1980. Porém, quando a União Soviética caiu, em 1990, a pobreza emergiu novamente, mostrando as fragilidades e os limites da Revolução Cubana e, ao mesmo tempo, sua fortaleza popular: enquanto o socialismo real desabava, a ilha resistiu. A revolução sobreviveu, mas deixou de avançar na direção da igualdade. Pelo contrário, as dificuldades econômicas em um mundo hostil constrangeram o país a medidas que levam a uma gradual mercantilização da sociedade. E com a mercantilização, ressurge a desigualdade. Para fazer uma analogia do xadrez, esporte que Che Guevara adorava: com o fim do campo socialista, Cuba perdeu a rainha e as torres. Desde então, move as peças na defensiva para proteger as conquistas sociais da revolução. Nesse tabuleiro, a margem de movimentos está cada vez mais estreita. O estreitamento de opções faz com que Cuba sobreviva como uma espécie de “quilombo no século xxi”, nas palavras de Plínio de Arruda Sampaio Junior. 34
Apesar das dificuldades materiais e dos limites para construir um ser humano novo, como pretendia o revolucionário argentino, Cuba é um país diferente. A diferença tem aspectos positivos e negativos. Mas é exemplo vivo de que “um outro mundo é possível”. Quem consegue ver Cuba sem as lentes do liberalismo individualista descobre uma sociedade mais democrática, autoconsciente e culta do que qualquer país latino-americano. É também mais humana: os cubanos têm escassa vivência sobre o que seja a violência policial, o crime organizado, a chacina, os presídios superlotados, a redução da maioridade penal, a segurança privada, um condomínio fechado, catracas e portas giratórias, vestibular, fast-food, despejo, criança que trabalha, criança fora da escola, creches sem vagas, o telemarketing, a publicidade nas ruas, na televisão, nos jornais, nas revistas e nos cinemas, o marketing eleitoral, o parlamento como balcão de negócios, o cartório, o ensino, a saúde e a aposentadoria tratados como negócio, cinema, shows e espetáculos de dança caros, livros caros, transporte público caro, remédios caros, analfabetismo, Big Brother, trânsito, shopping center, fome, desemprego, abandono na infância, abandono na velhice. Em suma, o cubano tem pouca familiaridade com a experiência do desamparo. É evidente que há muitos problemas: ônibus insuficientes e lotados, baixos salários, pouca variedade de produtos, escassez de alguns itens, cortes de energia, processos morosos, funcionários desestimulados, corrupção, imprensa limitada, internet precária, um sistema político centralizador, o racismo e o machismo no cotidiano… Essa lista seria alongada por qualquer cubano. Com tantas dificuldades, por que os cubanos, afinal, não derrubam o governo? Provavelmente porque a maioria crê que é ele quem pode resguardar as conquistas da revolução. Fala-se da ineficiência do Estado, mas é um Estado que ali35
menta, veste, educa, cuida, defende e investe na produção da cultura popular há décadas. Apesar do racismo e do machismo, qualquer negro em Cuba pode virar médico, cientista, dirigente ou professor, enquanto as mulheres são maioria nas universidades, na saúde, na ciência e na cultura. Medida na régua do capitalismo contemporâneo, Cuba é uma espécie de reserva ecológica de valores humanos que o mundo se empenha em desnaturalizar. “Para nós, você não é um estrangeiro, é um ser humano”, ouviu um colega brasileiro, inseguro se receberia atendimento médico na ilha. “Os médicos cubanos são os melhores do mundo porque são os mais carinhosos”, emendou um pai. Se em outros tempos havia mais tabus e certezas, hoje o Estado cubano perdeu o monopólio das perguntas e das respostas sobre o futuro do país. Vive-se um momento de transição, em que o paradigma de “socialismo centralizador” perdeu lastro na realidade, mas ainda não se consolidou uma alternativa. O sentido da revolução está em disputa e imagina-se o país de muitas maneiras. Apesar das incertezas, dentro da ilha existe considerável consenso em torno de um projeto de nação que preserve as conquistas sociais e a soberania. As manifestações espontâneas de luto decorrentes da morte de Fidel, em dezembro de 2016, deram esse testemunho. Quem falou em “juventude indiferente”? Milhões de cubanos, inclusive os jovens e os críticos, homenagearam Fidel, pois reconhecem que o país que despontou em 1959 continua sendo mais digno que o país anterior. Essas manifestações foram uma mensagem ao futuro, com efeito demonstrativo aos Estados Unidos e ao mundo sobre o significado da revolução para os cubanos, hoje. A questão fundamental colocada para os jovens, e também para os mais velhos, não é ser “contra a revolução”, mas quais rumos tomará a revolução. 36
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
“Debate: ‘Que es para ti la Revolución: los jóvenes opinan’”, em Temas, nº 56, pp. 152-60. Havana, jul.-set. 2008. “Debate: ‘Valores em crise?’”, em Temas, nº 75, pp. 67-80. Havana, jul.-set. 2013. “Debate: ‘Politización/despolitización en la cultura contemporánea’”. Temas, nº 76, pp. 72-82, out.-dez. 2013. guanche, Julio Cesar (org). En el borde de todo. El hoy y el mañana de la revolución en Cuba. Havana: Ocean Sur, 2007. limia díaz. Ernesto. Cuba: fin de la história? Havana: Ocean Sur, 2017. martínez heredia, Fernando. A viva voz. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 2010. tablada, Carlos. Cuba: transición... hacia dónde? Madri: Editorial Popular, 2001. vitier, Cintio. Ese sol del mundo moral. Havana: Unión, 2008.
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2 POR QUE A REVOLUÇÃO NÃO CAIU? BIANCA GOYANNA
[…] qual é o significado da Revolução Cubana. É que a América Latina tem uma alternativa histórica, essa alternativa não está no capitalismo, ela não é aberta pela democracia burguesa, não é aberta pelo imperialismo, não é aberta pela internacionalização da economia capitalista, ela é aberta exatamente pelo socialismo. A via pela qual Cuba chegou ao socialismo é muito peculiar. Eu não diria, como Che, que nesse sentido a experiência de Cuba vai ser paradigmática, vai se repetir. Agora, essa revolução sim, porque esses povos não têm alternativa […] — FLORESTAN FERNANDES 38
Com o fim da União Soviética, nos anos 1990, existiam no imaginário internacional previsões de que Cuba abandonaria o regime socialista juntamente com os Estados do bloco comunista, as chamadas “democracias populares”. Mas Cuba não caiu. Por quê? Ao comparar a ilha latino-americana com os países do Leste Europeu, existe um ponto fundamental a se destacar: Cuba é o resultado de uma revolução popular e autônoma, que procurou desenvolver em sua sociedade valores humanitários de defesa da igualdade e da soberania popular. Influenciada pelos ideais de José Martí, que no século xix pregou a independência em relação aos Estados Unidos e aos demais centros capitalistas, Cuba, apesar de mais vulnerável, também nutria relativa autonomia de Moscou, diferentemente da tutela a que estavam submetidos os países da Cortina de Ferro. Por outro lado, ao contrário de exemplos revolucionários ocorridos na América Latina, como Bolívia e Nicarágua, Cuba apostou em estimular o poder popular, através, por exemplo, da criação de Comitês de Defesa da Revolução (cdrs). Desse modo, radicalizou a revolução e construiu uma forte base de sustentação popular, diferente dos casos boliviano e nicaraguense, que foram cedendo espaço para os apoiadores da contrarrevolução, e acabaram derrotados. O horizonte da Revolução Cubana não subordinou a mudança social a um projeto de poder, nem se subordinou aos moldes da democracia burguesa, apesar de, em parte, ter sido cooptado pelos soviéticos. 39
Durante os anos 1990, os cubanos tiveram que se adaptar a novas condições de vida, marcadas por uma profunda miséria e escassez. Para além de combater o subdesenvolvimento, eles tiveram que ter criatividade para sobreviver durante esse período de isolamento internacional, que escancarou os dilemas e limites do socialismo na periferia. Mesmo diante das adversidades, a revolução se manteve. Dois fatores foram fundamentais para tal: legitimidade e liderança forte. A legitimidade se relaciona com o apoio popular ao regime socialista e, consequentemente, com a consciência política da população, que entende a necessidade de enfrentar sacrifícios quando se identifica com a causa. A liderança se refere à competência da direção revolucionária, uma vez que não foi uma tarefa fácil conduzir o país naquele contexto e, depois, preservar as principais conquistas da revolução. Um fator determinante para legitimar o regime socialista, apesar de todos os desafios, foi a radicalização democrática pautada em mudanças estruturais. As medidas iniciais do governo, aparentemente tão simplórias e corriqueiras, foram se radicalizando durante o processo. Ações como a instituição do salário mínimo, normas para invalidar fortunas expatriadas, proibição de jogos de azar e loterias, redução dos preços dos remédios e da telefonia, tornar as praias públicas, campanhas para erradicar o analfabetismo na ilha, entre outros, ganharam o apoio da população. A estratégia cubana de fortalecer o poder popular como base de um projeto revolucionário é essencial para entender a continuidade do regime socialista. Entretanto, não é o único aspecto. A destruição do antigo Estado, incluindo o exército decrépito de Fulgencio Batista, e a democratização da propriedade foram dois fatores fundamentais para consolidar a revolução. A reforma urbana, que contrariava interesses de proprietários e da máfia dos jogos de azar, e a reforma agrária, que atingia diretamente os latifundiários açucareiros e fu40
mageiros, afetaram o capital internacional. Ao democratizar a propriedade, a revolução ganhou mais força, enfrentando a atividade contrarrevolucionária. A reação foi encabeçada pelos Estados Unidos, que, desde o início, conspiraram para derrubar o regime. Afinal, perdiam a ilha situada a poucas milhas de seu território, e onde até então mandavam em quase tudo. Diversas iniciativas para desestabilizar o futuro da revolução foram conduzidas pelo governo norte-americano, como a redução das compras de açúcar e o boicote ao refino de petróleo, áreas extremamente sensíveis da economia cubana. Em resposta ao recrudescimento da hostilidade estadunidense, Fidel Castro radicalizou o horizonte da mudança revolucionária. Expropriou usinas açucareiras e nacionalizou o refino do petróleo, bancos, ferrovias, instalações portuárias e hotéis. Diante disso, a ilha passou a sofrer investidas mais duras contra a revolução. Em agosto de 1960, Cuba foi condenada pela Organização dos Estados Americanos (oea) devido a suas relações com a União Soviética e os países do Leste Europeu, o que dificultou a comunicação política e econômica de Havana com os demais países da América. Depois disso, em outubro de 1960, os Estados Unidos estabeleceram um embargo econômico sobre Cuba, el boqueo, que afeta até hoje as relações da ilha com todos os países do mundo. Como as medidas no campo político-econômico não surtiram o efeito esperado por Washington, a cia organizou uma invasão fracassada à ilha a partir de um desembarque de mercenários na Baía dos Porcos — que em Cuba é conhecida como Playa Girón — em abril de 1961. Em busca da proteção soviética para se defender das ofensivas estadunidenses, Fidel declarou o caráter socialista da revolução. No ano seguinte, houve a Crise dos Mísseis, que resultou na retirada dos artefatos soviéticos enviados à ilha, mediante a promessa dos Estados Unidos — expressa na onu — de não voltarem a invadir Cuba. 41
A reação popular de apoio à revolução em ambos os episódios levaram Washington a repensar sua estratégia. Ficou evidente que, se invadissem Cuba, enfrentariam toda uma população, e não apenas um governo socialista. Antes da revolução de 1959 existia, dentro e fora de Cuba, a percepção de que a ilha se resumia a uma economia de enclave e destino do turismo estadunidense, devido a suas praias, bordéis e cassinos. O caráter nacionalista da revolução despertou um sentimento de soberania e pertencimento antes pouco difundido na população. Inspirado no nacionalismo universal de José Martí, a ideia do “homem novo” de Che Guevara era um exemplo dessa mudança de mentalidade social. A identidade com a nação fortaleceu o vínculo entre o povo e a defesa do projeto revolucionário. Foi através da consolidação desse vínculo de identidade nacional que o Estado cubano se fortaleceu, pois tem uma legitimidade única na América Latina, uma vez que é resultado de uma revolução popular. O governo socialista se agigantou pautado em discursos nacionalistas de defesa do Estado forte, que se traduziu, na prática, na defesa da soberania e da igualdade na sociedade cubana, exercendo, desta maneira, grande poder sobre as decisões relativas ao futuro da revolução. Segundo a explicação de um cubano, quando lhe foi perguntado por que Cuba resistia e persistia no modelo socialista, “os cubanos defendem a revolução pois o Estado lhes fornece a garantia à cidadania e aos direitos sociais essenciais, como o acesso a uma boa educação e à saúde de qualidade.” Essa é a razão pela qual Cuba não caiu. A forte presença do Estado cubano na sociedade, porém, mesmo que produto de uma revolução popular, merece e deve ser analisada cuidadosamente. Fernando Martínez Heredia sintetizou bem o dilema: “Como fazer um Estado forte, mas que não me coma?”. Eis um grande desafio do regime. Embora seja visto como um instrumento de garantia dos valores da revolução, não se 42
deve confundir poder do Estado e poder popular. Apesar de gozar de legitimidade entre a população, o Estado ainda apresenta caráter autoritário em alguns segmentos da sociedade cubana, principalmente no que concerne a acesso à informação, liberdade de imprensa e eleições com apenas um partido, entre outros temas, que merecem um debate mais aprofundado e que serão discutidos em outros capítulos deste livro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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3 COMO A JUVENTUDE SE RELACIONA COM A REVOLUÇÃO? CARLOS IRAMINA
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Compreender a juventude cubana é compreender os dilemas vividos pelas sucessivas gerações da revolução, até os dias de hoje. A vivência dos jovens que fizeram a Revolução Cubana em 1959 e experimentaram as conquistas sociais das décadas seguintes (1960–1980) é radicalmente distinta da dos atuais jovens cubanos, muito marcados pelas consequências da forte crise dos anos 1990. A geração revolucionária viveu tanto a repressão e as dificuldades da ditadura de Fulgencio Batista quanto o entusiasmo da derrubada do regime e da construção coletiva das bases da nação cubana pós-revolução. Os ideais do “homem novo”, do trabalho voluntário e da solidariedade internacional foram construídos por essa geração e enraizados na seguinte. Contudo, a Cuba do século xxi é marcada pela experiência da crise que eclodiu na primeira metade da década de 1990, que no país ganhou o nome de “período especial”. O colapso da União Soviética teve impacto direto no mercado comum dos países comunistas, o Comecon, do qual a economia cubana dependia fortemente, seja para a obtenção de empréstimos, seja para estabelecer relações comerciais de exportação e importação. O colapso provocou, entre 1993 e 1995, uma contração econômica de 34%. Houve escassez de todos os tipos de produtos: de gasolina para os ônibus e energia para as usinas — o que provocou apagões de dezoito horas por dia — a racionamento de alimentos. As imensas dificuldades do “período especial” fizeram com que muitos cubanos deixassem a ilha, sobretudo com destino aos Estados Unidos. 45
Ao contrário de outros países socialistas europeus, porém, Cuba enfrentou a crise com a decisão de manter o socialismo e as conquistas sociais da revolução, preservando o amplo sistema público educacional e de saúde. O meio encontrado para se recuperar do colapso foi reorientar a economia cubana de volta ao turismo, além de implementar medidas financeiras emergenciais, como a introdução da dupla moeda — a fim de estancar a inflação crescente e o mercado paralelo — e a regularização e incentivo de negócios privados individuais voltados ao turismo, conhecidos como trabalho por conta própria ou cuentapropismo. Essas soluções, contudo, carregam os seus próprios desafios, e têm consequências não apenas para o funcionamento do sistema econômico cubano, como também para os valores erigidos pela revolução. Os jovens vivem, portanto, os dilemas produzidos pela reintrodução dos empreendimentos privados — e sua relação contraditória com as conquistas sociais e os ideais revolucionários de igualdade e solidariedade. A juventude cubana não oferece respostas rápidas de apoio ou oposição incondicionais quando questionada sobre sua posição em relação ao governo. Pelo contrário, vivem uma relação particular e mais distanciada da revolução, com anseios e questões próprias da atualidade.
OS JOVENS, O TRABALHO E A EMIGRAÇÃO A juventude cubana encarna os dilemas da própria revolução, que se resumem na percepção de vários jovens cubanos: é verdade que Cuba é um país que oferece educação a suas crianças e adolescentes, porém, depois que recebem o diploma, aparecem os problemas oriundos do bloqueio econômico 46
e do subdesenvolvimento. Os jovens enfrentam dificuldades para trabalhar nas áreas de sua formação, pois há poucos empregos de alta qualificação na ilha. Consequentemente, se ressentem dos baixos salários e das restrições ao acesso a bens de consumo, agravadas desde o “período especial”. A emigração é uma das formas de solucionar essa situação, e isso pode ser observado na composição social dos cubanos que estão emigrando atualmente — em sua maioria, jovens brancos com boa qualificação técnica ou universitária. Tais características mostram que a emigração, hoje, é essencialmente econômica, ao contrário da emigração de caráter mais político ocorrida no momento anterior ao “período especial”. E que, apesar de os cubanos buscarem na emigração a possibilidade de ascensão profissional, mais renda e mais consumo, eles não são necessariamente contrários ao governo: possuem uma posição mais ambivalente, assim como o governo também é ambivalente em relação à imigração, pois se beneficia do fluxo de moeda internacional enviada pelos cubanos emigrados a seus parentes que continuam na ilha. As remessas afetam não apenas os jovens que emigraram, mas também os que ficaram e têm acesso aos dólares ou euros que chegam do exterior. A disparidade do poder de compra entre as moedas estrangeiras e nacional, por um lado, e o amplo fornecimento de serviços públicos gratuitos, por outro, possibilitaram que uma parcela de jovens cubanos usufruam uma condição satisfatória de vida, mesmo sem trabalhar ou estudar. Naturalmente, esse fato suscita reações negativas dos cubanos que só têm acesso à moeda local. Em relação ao trabalho dos jovens em Cuba, em especial os jovens mais qualificados ou intelectualizados, cresce o cuentapropismo, sobretudo em serviços ligados ao setor turístico: pequenos restaurantes, artistas cuja produção é dirigida ao turismo, ou outras atividades do setor de serviços. Esses trabalhos possuem caráter privado e individual, diferindo do 47
emprego estatal que vigorou na ilha a partir do fim da década de 1960, o que leva esses trabalhadores a terem uma relação com o trabalho e com o produto do seu trabalho distinta do padrão anterior.
JUVENTUDE E BUROCRACIA Prevalece certo senso comum de distanciamento, acomodamento e apatia da juventude em relação ao governo e aos rumos da política cubana. Isso pode ser sintetizado na noção de despolitização. É difícil negar que há despolitização em Cuba, mas ela não é tão generalizada como alguns supõem. Além disso, suas causas são complexas. Como já vimos, uma das causas dessa despolitização está na própria conjuntura econômica cubana, que passou a depender mais do setor privado. Se, em períodos anteriores, a alternativa de engajamento pessoal envolvia a luta coletiva voltada à conquistas sociais, após os anos 1990 o engajamento pessoal caminha no sentido da construção de uma carreira ou de um negócio próprio voltado ao ganho de renda particular, a fim de melhorar as condições de consumo, o que leva a um distanciamento da luta pública e, consequentemente, da ação política. Contudo, o distanciamento dos jovens em relação ao governo também é causado pelo distanciamento do governo em relação aos jovens. Não se trata apenas de apatia: a juventude cubana se defronta com novas pautas políticas que não merecem a atenção dos líderes políticos, e com o sentimento de que possui pouca influência sobre os rumos do país, uma vez que está subordinada à geração revolucionária. Opções históricas ajudam a explicar esse distanciamento: nos anos 1960 e 1970, a rápida aproximação de Cuba ao modelo soviético 48
avançou com a burocratização do governo cubano e, nos anos 1990, a decisão de seguir com a revolução após a queda do Muro de Berlim, mesmo diante das restaurações capitalistas, reconcentrou o poder na geração revolucionária. A burocratização imprimiu um fenômeno de engessamento hierárquico nas relações de trabalho e governo, dificultando a participação da juventude nas decisões políticas. Se, por um lado, essa burocratização não pode ser comparada com a da União Soviética — o nível de participação real e não apenas protocolar da população no poder é maior em Cuba, assim como há certa vitalidade de organizações sociais autônomas —, por outro, a hierarquização excessiva, com a manutenção rígida de quadros dirigentes, impediu os jovens de atuarem no centro das decisões do governo. A situação é resumida por Daybel Pañellas, que, em seu estudo sobre os diferentes grupos e identidades em Cuba, comenta que “os jovens sentem com mais intensidade a presença da dominação, do autoritarismo, do dogmatismo, do elitismo e da desigualdade, enquanto os mais velhos apreciam mais a existência de liberdade e direitos políticos, sociais e econômicos, confiança e soberania.” Tais anseios se misturam com o sentimento de que mudanças substanciais estão em marcha na ilha — mudanças que poderão manter ou alterar as características fundadoras da nação cubana. No plano político, incluem-se reivindicações de eleições diretas com listas abertas ao parlamento e a defesa da descentralização administrativa, em direção a uma maior democratização do país. As exigências de democratização também passam pela vida cotidiana dos cubanos. Os jovens exigem cada vez mais medidas para o enfrentamento do racismo, da homofobia e do machismo, persistentes na ilha mesmo após a revolução. São temas recorrentes em filmes, pinturas e romances, além de serem bandeira de organizações sociais. 49
As reivindicações por democratização também se estendem às relações de trabalho. Não por coincidência, os dois pesquisadores cubanos mais jovens com quem nos reunimos durante a viagem que deu origem a este livro propuseram a necessidade de um socialismo autogestionário em Cuba, a fim de enfrentar a burocratização estatal e empoderar o trabalhador por meio de cooperativas e redes de produtores, frente ao avanço da desestatização da economia.
OS JOVENS E OS RUMOS DA REVOLUÇÃO CUBANA Os jovens cubanos conhecem e sentem a importância da Revolução Cubana, e seus dilemas estão diretamente ligados aos dilemas da Revolução Cubana. O sentimento de que as coisas estão mudando na ilha se liga aos jovens, que ou esperam passivamente pelas transformações econômicas, ou enxergam nessas transformações algumas possibilidades. Tais possibilidades podem se aproximar ou distanciar dos valores da revolução, e, consequentemente, podem fazer suas conquistas sociais avançarem ou recuarem, mas estão intimamente ligadas à resolução dos problemas enfrentados por Cuba nos dias de hoje. Algumas medidas governamentais exemplificam os dilemas. Na tentativa de conter a emigração ilegal, por exemplo, houve uma pequena facilitação para a emissão de visto de trabalho (ainda difícil) no exterior. Essa medida se relaciona com a importância que a exportação de serviços — essencialmente médicos, mas também artísticos — possui para a renda nacional. A aceitação de alguns símbolos da desigualdade social, como a facilitação dada pelo governo para que médicos adquiram carros novos, também vão na direção de acomodar interesses crescentes de consumo da 50
população, mesmo que se choquem com a ideia de igualdade substancial concebida pela revolução. O governo também projeta contramedidas frente ao avanço da iniciativa privada na ilha, como a revalorização dos salários dos setores estatais — hoje bem abaixo de alguns setores privados — e o fomento ao trabalho não individual. As cooperativas, no entanto, ainda são incipientes, e em 2016 se reduziram ainda mais. Um dado representativo das dificuldades contemporâneas é o que ocorre atualmente em um dos setores-símbolo do sucesso da Revolução Cubana: o educacional. Os rumores da convocação de uma assembleia constituinte deixam em aberto as diversas possibilidades de enfrentar as dificuldades vividas pela revolução. Se muitos jovens se sentem apáticos em relação ao cenário político cubano, que parece desencantado, outros — embora em número reduzido e com propostas até agora minoritárias, incipientes e incertas — procuram novas soluções e alternativas para dar continuidade à revolução, como o socialismo autogestionário, e o fomento à democratização política (descentralização e eleições diretas) e econômica (democratização da gestão econômica de cooperativas auto-organizadas em redes).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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4 CUBA É UMA DEMOCRACIA? HUDSON MOREIRA LETÍCIA RIZZOTTI LIMA
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A discussão sobre o caráter democrático ou autoritário do regime político cubano é de longe uma das disputas mais fervorosas entre direita e esquerda, uma controvérsia até mesmo entre os setores progressistas. Se o nosso parâmetro para medir o governo de Cuba for aquela velha e desgastada democracia liberal do Ocidente — como os sistemas de Estados Unidos, Itália e Brasil —, definitivamente, Cuba não é uma democracia. Por outro lado, se para considerarmos um lugar democrático contamos a representatividade real, a legitimidade do sistema de governo entre a população e a responsividade da estrutura política, Cuba talvez seja o país mais democrático da América Latina. Os mecanismos de apoio popular — a exemplo dos Comitês de Defesa da Revolução (cdrs) ou dos Conselhos Populares — conferem permeabilidade à enrijecida estrutura do Estado, influenciada pela União Soviética. Aliás, um dos maiores enigmas do regime é a manutenção de forças sociais vivas apesar das burocracias dos tempos da Guerra Fria. Mesmo nesse cenário, é inegável, há em Cuba um enorme vínculo entre a tomada de decisões e a vontade popular: na rua, os cidadãos reconhecem seu poder de fala e a importância de ocuparem os espaços de representatividade. A taxa de comparecimento média nas eleições de voto facultativo, por exemplo, é superior a 90%, como aponta Júlio Fernández Estrada, professor de direito da Universidade de Havana. O que faz então com que o povo cubano compareça às urnas, não se desmobilize dos cdrs e não derrube o gover55
no nem mesmo em épocas de crise extrema, como o “período especial”? Dois pontos são essenciais para entender a complexidade da ilha. O primeiro é o êxito da construção do espírito nacional. A autonomia e a soberania do país são inegociáveis frente a quaisquer situações. O agravante de estar às margens dos Estados Unidos dá aos cubanos ainda maior senso da necessidade de união. O segundo é a manutenção dos direitos adquiridos: a garantia de serviços públicos de qualidade, como educação, saúde e moradia, é outra questão intocável. Não houve um só habitante, em nossas conversas formais ou informais, que tenha considerado trocar os direitos sociais por mais abertura econômica ou maior acesso a bens de consumo. Isabel, por exemplo, é moradora do município de Marianao, nas cercanias de Havana. Hoje aposentada, ela foi tradutora do russo para o espanhol, e conta com lágrimas nos olhos que só teve a oportunidade de ter uma casa — apertada —, educação completa e emprego durante toda a vida graças à revolução. Antes de 1959, sua mãe tinha um trabalho precário como empregada doméstica, era analfabeta, e o que ganhava mal dava para sobreviver. Já a filha nunca teve que se preocupar com a subsistência. Isso não significa que as condições de vida em Cuba se equiparem às dos países industrializados, evidentemente, mas seus cidadãos reconhecem a importância das transformações trazidas pela revolução. O que essas duas questões — reforçadas pelo fato de que Cuba foi o primeiro país no continente a erradicar o analfabetismo — revelam sobre o sistema político cubano é a enorme politização, autonomia e envolvimento da população para debater pautas sociais. Assim, o descompasso entre uma estrutura burocrática cristalizada e uma população educada e politizada é relativizado com a catarse possibilitada por formas de contato direto entre os dilemas do Estado e a vontade popular. O exemplo mais atual é a reforma econô56
mica, que tem sido discutida ao longo de 2017: reconhece-se a necessidade de abrir as estruturas comerciais e financeiras, mas sem prejudicar a capacidade estatal de garantir os serviços básicos de dignidade cidadã, em tempos em que os indivíduos procuram cada vez mais formas de trabalho fora da gama estatal. O que se percebe de fato é a singularidade do país no contexto latino-americano, pois a cultura de participação política está arraigada no lugar social do indivíduo; sua expressão não é permeada pela capacidade de compra do espaço midiático, mas sim a partir de sua colocação como membro da sociedade. Isso permite, inclusive, a formação concreta de uma oposição — seja à esquerda ou à direita — da oficialidade do Partido Comunista e de seus membros. Tal afirmação pode causar surpresa, considerando a imagem de Cuba veiculada pelos meios de comunicação tradicionais, e você deve se perguntar: por que, então, não se estabelecem outros partidos na ilha?, por que os destoantes internos não ganham holofote nacional e internacional — embora muitas vezes ganhem? O fato é que essa participação ativa e plural se dá localmente, uma vez que as listas de votação da esfera municipal não são formadas por comissão, diferentemente das eleições nacionais. É nessas características institucionais — como as listas gerais formadas por comissão, a indicação do órgão executivo sem chancela do voto popular — que recaem as principais críticas ao regime. Se não há financiamento privado de campanha nem marketing eleitoral, também não há qualquer propositura de projeto político dos candidatos, uma vez que a divulgação eleitoral se resume à apresentação de uma pequena ficha biográfica de todos os pleiteantes. De modo geral, o limite à liberdade política em Cuba não é traçado pelo poder econômico, mas balizado pelo respeito às conquistas da revolução. A oposição que ameaça a soberania 57
da ilha, submetida à permanente hostilidade dos Estados Unidos, tem pouca legitimidade e não é aceita. A mídia internacional insiste em distorcer e falsificar o sistema eleitoral cubano a serviço dos interesses do grande capital globalizado, caracterizando-o como antidemocrático e produto de uma ditadura. Entretanto, o que se enxerga em Cuba é um processo profundamente mais popular e democrático do que o das democracias representativas burguesas, sobretudo na América Latina. Desse modo, em Cuba não há uma divisão da política em três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas sim um único poder, o Poder Popular, constituído pela Assembleia Nacional, Assembleias Provinciais, Assembleias Municipais, Conselho Popular e a Circunscrição Eleitoral — degrau básico de todo o sistema. Nenhum desses órgãos está subordinado a outro, mas todos do povo podem exercer o governo de maneira prática e efetiva. Cabe ao eleitor cubano apresentar e escolher os candidatos a delegados nas Assembleias Municipais do Poder Popular, dada à auto-organização das circunscrições eleitorais. Além disso, segundo a Constituição cubana, são realizados dois tipos de eleições: as eleições gerais, em que são votados, a cada cinco anos, os deputados da Assembleia Nacional e demais instâncias de âmbito nacional, incluindo o Conselho de Estado, assim como os delegados às Assembleias Provinciais e Municipais e seus presidentes e vice-presidentes; e as eleições parciais, a cada dois anos e meio, em que são eleitos os delegados às Assembleias Municipais e seus presidentes e vice-presidentes. Deve-se assinalar que tanto os deputados da Assembleia Nacional quanto os delegados às Assembleias Provinciais e Municipais são eleitos diretamente pela população. A lei permite inclusive que o mandato do deputado eleito seja revogado pelo povo, em sua maioria, caso suas atitudes não correspondam com os compromissos assumidos. 58
Para se tornar deputado na Assembleia Nacional, o pré-candidato precisa ser apresentado à Comissão Nacional de Candidaturas por uma das organizações de massas do país. A comissão o submete à Assembleia do Poder Popular do município correspondente. É nessa Assembleia Municipal que o pré-candidato tem a sua candidatura aprovada, desde que consiga o voto de mais da metade dos delegados. Será finalmente considerado deputado da Assembleia Nacional aquele candidato que obtiver mais da metade dos votos válidos em seu município ou distrito eleitoral. Para a eleição presidencial, o candidato obrigatoriamente precisa ser deputado; ou seja, deve ter sido eleito por voto direto e secreto da população, da mesma forma que todos os 609 deputados da Assembleia Nacional. No caso específico do ex-presidente Fidel Castro, por exemplo, ele foi designado candidato pela Assembleia Municipal de Santiago de Cuba e eleito pelos votantes de uma circunscrição do município. A lei eleitoral estipula que ninguém poderá ser deputado na Assembleia Nacional se não conseguir maioria simples. Portanto, Fidel foi eleito com mais de 50% dos votos válidos. Posteriormente, sua candidatura a presidente do Conselho de Estado e de Ministros foi votada pelos deputados da Assembleia Nacional e, igualmente, alcançou mais de 50% dos votos. Tomando o caso da eleição de Fidel Castro, as consecutivas vitórias do candidato resultaram em 32 anos na presidência de Cuba. Ainda que respaldado por vasto apoio popular, o período é utilizado pelos meios de comunicação ocidentais para acusar o regime de ser uma ditadura. Esta acusação ignora a originalidade e o dinamismo da política cubana, e assume acriticamente a democracia liberal ocidental como um modelo universal. Positiva ou negativamente, Cuba se fez diferente, sobretudo por construir uma estrutura política em permanente re59
siliência, adaptando-se às necessidades sociais para sustentar as conquistas da revolução. Cuba faz isso mesmo diante da dificuldade para contemplar todos os aspectos de uma sociedade vibrante, dentro de um quadro regulatório específico, e que se empenha em proteger seus princípios para além das transformações forçadas pelo contexto histórico. A democracia cubana não é perfeita: a exigência de unidade por vezes sacrifica a crítica e a autocrítica, limitando a renovação política. Mas, de maneira geral, o Estado cubano tem um respaldo popular muito superior aos seus congêneres do continente e do mundo, porque é percebido como um defensor e guardião legítimo do legado da revolução, sintetizado em dois valores que todo cubano preza: direitos sociais universais e soberania.
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5 HÁ CENSURA EM CUBA? OS CUBANOS TÊM ACESSO ÀS NOVAS TECNOLOGIAS? ANDRÉ MANUEL SANTOS VILCARROMERO GIOVANA CARNIO BELTRAME MARIA LAURA DE ALMEIDA BARUFI
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Talvez uma das perguntas que as pessoas mais se fazem sobre Cuba seja em relação à censura e ao acesso à internet. O senso comum responde a essas perguntas com um simples “Sim, claro que sim, Cuba é uma ditadura, eles censuram tudo e o governo bloqueia todos os sites dos imperialistas capitalistas”. Logo ao desembarcar no aeroporto de Havana, porém, é possível ver uma grande placa de propaganda da Samsung. Em um primeiro momento, todos os clichês são colocados em dúvida.
OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM CUBA Evidentemente, os meios de comunicação já existiam em Cuba antes da revolução. O país foi o primeiro da América Latina a receber a televisão, por exemplo, em 1950. Em função da proximidade político-econômica com os Estados Unidos durante a ditadura de Fulgencio Batista (1952–1959), empresas estadunidenses controlavam o setor. A indústria cultural de Cuba espelhava o modelo de consumo do vizinho do norte, de quem era dependente, e o acesso era limitado a uma pequena parcela da população. Com a revolução, esse panorama foi alterado: os meios de comunicação cubanos passaram a ser controlados pelo Estado. Os líderes desse processo queriam criar um dos países 63
mais cultos do mundo — como disse Luis Morlote, vice-presidente da União de Escritores e Artistas de Cuba, “uma revolução só pode ser filha da cultura”. O ano de 1961, no início da revolução, foi marcado como o ano da educação, que deveria a partir de então ser expandida a todos. O analfabetismo foi erradicado. A intenção era que as pessoas desenvolvessem capacidade de questionamento e também fossem estimuladas a pensar culturalmente. Com isso, a cultura se democratiza e se torna uma aliada da revolução. “A cultura é uma integração de saberes para as pessoas poderem dialogar, questionar”, disse o ensaísta Juan-Nicolás Padrón. “A cultura é a base social do diálogo.” Em 1962, foi criado o Instituto Cubano de Radio y Televisión (icrt), cuja missão é oferecer uma programação de rádio e televisão para todos os cidadãos e executar e dirigir a aplicação das políticas do Estado através desses meios de comunicação. Hoje em dia, a população tem acesso a cinco canais de televisão: Cubavisión, Tele Rebelde, Educativo, Educativo 2 e Multivisión. A rádio é composta por um número maior de emissoras, presentes nos âmbitos internacional, nacional, provincial e municipal. Com relação à imprensa, o jornal Granma é o órgão oficial do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba, e tem como principal objetivo divulgar e fortalecer a revolução e seus princípios. No final dos anos 1980, a desintegração da União Soviética, principal parceira comercial de Cuba, também afetou as comunicações. Dentre as importações soviéticas mais significativas para a ilha estavam o combustível e o papel, essenciais para a imprensa nacional. Nesse contexto, foram adotadas medidas para restringir a imprensa escrita, em função da escassez de materiais. O único jornal diário que permaneceu ativo durante a crise foi o Granma. Para contornar a situação, se revitalizou a rádio, que assumiu a responsabilidade de ser a principal porta-voz do governo. 64
O último meio de comunicação a surgir no país foi a internet, no começo dos anos 2000. É um meio ainda instável, em desenvolvimento, e não é acessível à maioria da população. A Empresa de Telecomunicações de Cuba s. a. (etecsa) é a estatal que oferece os serviços de telefonia e também comercializa e opera o acesso e uso da internet, através das redes públicas. Por dois cuc (equivalente a dois euros), é possível utilizar a internet, seja em locais públicos com wi-fi, ou em salas com computadores nas filiais da empresa, durante uma hora. Porém, a própria população encontrou um meio de entrar nesse comércio, com algumas pessoas roteando sua internet pela metade do preço cobrado pela estatal. Quando usávamos internet no centro de Havana, a grande maioria das pessoas nos locais públicos era turista. Mas, ao visitar outras cidades menores e menos conhecidas, a maioria dos usuários era a própria população cubana. As praças ficam lotadas de pessoas usando celular. Sempre víamos alguém fazendo ligações em vídeo ou áudio para familiares ou amigos em outro país. Mesmo assim, o preço cobrado pelo serviço ainda é alto comparado com o salário médio da ilha, que é de 584 pesos cubanos, dificultando muito a sua difusão pela sociedade. Internet wi-fi gratuita em residências, apenas quando se trata de pesquisadores ou oficiais do governo, assim como em universidades, escolas e centros de estudos, principalmente da área médica. No entanto, há indícios de mudanças, e um espaço em particular chama a atenção: o estúdio Google+Kcho.mor, constituído em 2016 e equipado com vários computadores e câmeras para, por exemplo, fazer transmissões entre universidades. Para isso, conta com uma internet de alta velocidade, a mais rápida em toda a ilha, e wi-fi gratuito. Também é um espaço para experimentar e utilizar as últimas tecnologias do Google — empresa que assinou acordos com o governo cubano, no contexto da reaproximação do país com os Estados Unidos. 65
A CENSURA EM CUBA Os sites, em sua maioria, são permitidos, mas não irrestritos. Há certas buscas no Google que não são podem ser realizadas, mas as mídias sociais, como Facebook e WhatsApp, conectam sem problemas. Outro empecilho é o bloqueio econômico dos Estados Unidos, que impede a entrada de diversos serviços à ilha, como o mecanismo de pagamentos pela internet PayPal. Mas, com a aproximação dos dois países, grandes empresas prestadoras de serviços on-line, como o Airbnb e a Netflix, já penetraram no mercado cubano. Muitas outras preparam o terreno para fazer o mesmo. Existem grandes deficiências de conectividade na ilha. Os altos custos da internet e as restrições de acesso a determinados sites no país seria resultado de censura ou consequência do bloqueio estadunidense? O país só teve acesso à fibra ótica em 2011, graças à conexão submarina com a Venezuela. Dentro da ilha, o acesso ainda é feito por satélite e não por cabo subterrâneo. Essa situação reflete a prioridade dada aos direitos sociais em detrimento de tecnologias digitais, em um país com escassos recursos materiais. Para a criação de sites e comunidades na internet, os cubanos utilizam a Cuba Red, em que o governo é o principal responsável pela geração de conteúdos e provisão de serviços. Caso alguém queira construir um site, um blog ou qualquer página pessoal, precisará passar por uma burocracia e depender da aceitação do órgão administrativo. Para criar uma comunidade, é necessário agregar-se ao servidor de um órgão estatal. Por isso, o órgão possui o direito legal de excluí-la caso saia do tema proposto, geralmente de caráter técnico, como o gutl. Apesar das adversidades, os próprios cubanos inventaram um meio de transmitir dados de forma off-line, no chamado el paquete semanal. Esse pacote semanal consiste em diversas mídias digitais (filmes, séries, novelas, video66
clipes, quadrinhos, livros), programas (softwares, antivírus), revistas em pdf (algumas, críticas ao governo), publicidade e uma versão do Revolico, uma espécie de páginas amarelas ou Mercado Livre cubano, entre outros. O conteúdo é geralmente coletado de maneira clandestina, por estrangeiros ou pessoas com acesso a internet ilimitada de banda larga, e distribuída por toda a ilha através de memórias externas e pen drives em qualquer loja com um computador. Pelo preço de um cuc é possível adquirir o pacote todo, mas dá para economizar baixando somente o conteúdo que interessar. Com o aumento da popularidade do serviço e a preocupação com o conteúdo antirrevolucionário, o pacote se tornou ilegal. O próprio governo criou um concorrente chamado el maletín, com conteúdo mais educativo e clássicos do cinema, que, no entanto, fracassou por falta de adesão. Apesar de malvisto pelo governo, e da iniciativa governamental de infiltrar conteúdos culturais, o paquete é, na prática, um sucesso na sociedade cubana. Embora a maior parte do conteúdo seja de origem estadunidense — pois, como lembra Luis Morlote, no campo da cultura nunca houve bloqueio —, alguns artistas cubanos alijados da mídia estatal também contam com esse meio para divulgar seus trabalhos. Há, portanto, certa censura aos meios de comunicação em Cuba, exercida com o intuito de “proteger” a população de interesses estrangeiros, que podem se expressar diretamente contra o regime ou por meio de forças internas. Como afirma Yohan Karell Acosta González, do Centro de Estudos Hemiféricos, “não há censura no acesso à internet, só há bloqueio de sites subversivos estrangeiros e nacionais, como o blog patrocinado pelos americanos e europeus de Yoani Sánchez”. Mas os cubanos sempre foram muito abertos culturalmente. Programas televisivos, filmes, livros e músicas vindos dos Estados Unidos e Europa circulam no país. Os livros são baratos, assim como entradas de cinema. 67
Apesar de certas manifestações artísticas de protesto não serem permitidas, como é o caso da obra do grafiteiro Danilo Maldonado Machado “El Sexto”, preso por dez meses por escrever os nomes de Fidel e Raúl em dois porcos, e, mais recentemente, por pichar “se fue” [se foi] nos muros do Hotel Havana Libre no dia da morte de Fidel, há espaço para críticas ao governo na sociedade cubana. Grande parte da população favorece reformas nesse sistema, mas compreende o papel do Estado. Em geral, entendem as conquistas da revolução, e vão além, associando o seu próprio patriotismo aos ideais revolucionários. O que muitos buscam em Cuba, hoje, é uma mudança do modelo estatal centralizado vertical da chamada web 1.0, em que se tem acesso ao conteúdo criado por outros, para a web 2.0, em que a população pode construir seu próprio conteúdo e interagir livremente. E graças ao seu nível educacional, a sociedade cubana pode ser considerada como uma das mais preparadas para se inserir no mundo da informação e do conhecimento.
CONCLUSÃO A imprensa escrita em Cuba se limita aos órgãos oficiais, e o jornal de maior circulação é o Granma. A internet é escassa, e não está disponível a todos. Os motivos podem ser explicados tanto pelo preço do acesso, alto demais demais para o salário médio da população, quanto por não haver tecnologia necessária para suportar acesso irrestrito. Além disso, o bloqueio de alguns sites é visto como necessário para um Estado que realiza esforços para manter os valores e culturas locais, visando a sobrevivência do espírito revolucionário. Como o próprio Fidel disse no começo da revolução: “Dentro da revolução, tudo. Contra a revolução, nada.” 68
Entretanto, outros meios culturais são extremamente abertos e acessíveis, como é o caso do cinema, do balé, do teatro e dos livros. Esse é um dos fatores que explicam o alto nível cultural dos cubanos, em sua grande maioria politizados, além de terem graduação e pós-graduação universitária. A Revolução Cubana teve como foco principal a igualdade. Nesse contexto, a educação e a cultura foram centrais. No entanto, a internet não era fundamental para esse processo, somada ao fato de que as tecnologias eram importadas, o que a tornava ainda mais onerosa. É possível, portanto, ponderar que a censura atinge distintamente os diferentes meios de comunicação, num contexto de proteção a valores internos, que conta com ampla legitimidade social.
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6 HÁ MACHISMO, HOMOFOBIA E RACISMO EM CUBA? BÁRBARA BARRETO HUDSON MOREIRA RANI ANDRADE
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A Cuba de hoje é resultado de relações sociais anteriores e posteriores à revolução. Desse modo, é crucial avaliar historicamente as categorias sociais do país, como as que se caracterizam por gênero, sexualidade e raça/etnia, ponderando as conquistas, os desafios e os fracassos que foram construídos e desconstruídos até os dias atuais.
GÊNERO Para compreender a questão da mulher em Cuba, é necessário ter como ponto de análise central as diferenças de gênero criadas e estabelecidas na sociedade cubana. O mais interessante não é identificar e classificar práxis machistas como heranças coloniais ou heranças revolucionárias, e sim identificar que a existência por si só de tais condutas representa um problema ainda não superado na ilha. Assim, há que se considerar tanto os avanços quanto a manutenção da ordem social em termos de gênero. O Índice Global de Desigualdade de Gênero, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, considera características como paridade de salários entre homens e mulheres, níveis de participação e acesso a empregos que requerem habilidades técnicas, acesso à educação básica e superior, representação nas estruturas de tomada de decisões, expectativa de vida e proporção de sexos na população. Em 2015, Cuba ocupou o 29º lugar em um ranking de 145 países, o que sinaliza não só 73
uma preocupação com a mulher na sociedade cubana, como também efetivas ações para concretizar a redução — ou o fim — das desigualdades de gênero na ilha. Em termos latino-americanos, é possível compreender esse avanço se compararmos a posição cubana com o Brasil, que ocupa o 85º lugar no mesmo ranking. Há, contudo, um déficit na transparência de dados estatísticos sobre a violência contra a mulher em Cuba, o que aponta a uma realidade em que a violência de gênero não ocupa centralidade em questões de segurança pública. A ausência de dados estatísticos que permitam chegar a conclusões sobre os casos de violência contra mulher, tanto no âmbito doméstico quanto no público, pode sugerir, por outro lado, a baixa ocorrência desses casos. Há que salientar as conquistas da luta contra a desigualdade de gênero, que só foram possíveis com políticas assertivas, tendo em vista as barreiras à tarefa de transformar as mulheres — que se dedicavam ao trabalho do lar ou à prostituição — em trabalhadoras com os mesmos direitos e oportunidades masculinas, no que toca a questões laborais. Foram implementadas medidas que permitem às mulheres saírem de casa, como a criação de creches e o acesso aos estudos em nível básico, técnico e superior. Os investimentos em educação permitiram a autonomia e a independência financeira e intelectual das cubanas: em 1993, elas representavam 57,7% dos estudantes universitários do país. Foram aplicadas, também, medidas que retiraram da mulher o imperativo da maternidade, como a gratuidade dos métodos contraceptivos e a legalização do aborto. Ao longo da revolução construíram-se relações de trabalho baseadas em princípios de equidade entre homens e mulheres, nas quais não há diferenças salariais, hierárquicas e funcionais fundamentadas em diferença de gênero. Em 1975, o governo de Fidel Castro abordou as assimetrias de gênero no âmbito 74
doméstico no Código de la Familia, reconhecendo a jornada dupla das mulheres, que continuavam sendo as responsáveis pelo cuidado do lar e pela criação dos filhos. Porém, a ausência de mecanismos punitivos ou de incentivos a seu cumprimento reduziu a eficácia do código na condução da sociedade. No entanto, a proposta de instituir constitucionalmente a igualdade de gênero no âmbito doméstico tem grande valor, uma vez que propõe estimular uma mudança de mentalidade, de modo que a conduta com igualdade de gênero no foro íntimo seja concebida como uma prática não vinculativa, sem obrigar a mudança, mas convidando à reflexão. Elaborar um Código da Familia acarreta elementos conservadores morais, em termos de propor padrões de como deve ser a esfera íntima da população, mas também carrega uma tentativa de pensar sobre as desigualdades intrínsecas às relações familiares. Em contrapartida a essas conquistas da revolução, a historiadora Giselle Cristina dos Anjos Santos alude a um direcionamento da elevação do nível ideológico, político e cultural da mulher de maneira geral, e não apenas na instância do trabalho, embora tenha permanecido o valor da mulher revolucionária como mãe e guardiã das novas gerações. A referência de Fidel às mulheres como madre heroica reforçava o papel da mulher como figura materna. Outro ponto que gera questionamentos à luta pela igualdade é o fato de que, em 1991, as mulheres ainda eram minoria nos cargos de chefia do país, ocupando apenas 28,8% dos postos. Portanto, a proposta de um “homem novo”, desde a gênese do termo, revela-se excludente, pois não propõe uma “mulher nova”, ou então um “ser humano novo”: idealiza-se como novo, inédito, a figura masculina. A ideia na concepção do “homem novo” é que é preciso transformações radicais na consciência dos indivíduos, em seus costumes e valores e em suas relações sociais, para que se possa assim criar “homens” menos individualistas e comprometidos com a igualdade. 75
Não nos cabe aqui avaliar o nível de machismo da sociedade cubana, mas é do nosso interesse indicar o feminismo como um debate necessário para a construção de um “ser humano novo”, menos individualista e constantemente comprometido com o bem-estar da sociedade.
SEXUALIDADE No que concerne à discussão sobre a sexualidade, a Revolução Cubana trouxe a necessidade da construção de uma nova sociedade. Porém, embasado na proposição excludente do “homem novo”, o qual deveria ser não somente revolucionário e crítico, mas também um indivíduo másculo, o recente Estado acabou rechaçando a homossexualidade, fato que não esteve isolado do conservadorismo característico do século xx. Assim, o processo revolucionário adquiriu um caráter nitidamente homofóbico, com o aprisionamento e a perseguição a homossexuais e políticas de tratamento psiquiátrico, além da comprovada existência de campos de trabalho forçado, como bem evidencia o documentário cubano Mariela Castro’s March, e o próprio depoimento de Fidel a uma rede de televisão em 2009. No decorrer dos anos houve mudanças, seja pela pressão contra esse desrespeito à dignidade humana, seja pela capacidade de autocrítica dentro da ilha, seja sobretudo pelo movimento da sociedade que forçou uma revisão na postura do Partido Comunista. Desde 1990, com a retirada da homossexualidade da lista de doenças mentais pela Organização Mundial da Saúde (oms), o Estado cubano passou a utilizar de tais regulamentações internacionais para legitimar políticas públicas direcionadas à comunidade lgbt. Sua principal expressão é o Centro Nacional de Educación Sexual (Cenesex), fundado em 2008, órgão público responsável por garantir o livre exercício dos direitos sexuais, dirigido por Mariela Castro. 76
O Cenesex garantiu importantes direitos aos homossexuais, como a possibilidade de judicializar a homofobia sofrida no ambiente de trabalho. Hoje, tem-se em Cuba uma população que, em sua maioria, legitima o governo e o modelo democrático na ilha. Ao questioná-la sobre mazelas sociais, como as diversas formas de discriminação, é quase unânime ouvir que elas não existem na sociedade cubana ou se expressam de forma muito amena. Entretanto, o governo não divulga números e estatísticas sobre tais assuntos, o que dificulta o estudo dos índices de homofobia e de outras violências presentes no país. Se o debate sobre a homossexualidade avança, a aceitação do cubano médio à diversidade sexual aparenta seguir mais devagar. Cabe responsabilizar também o Estado por não trabalhar efetivamente na política de cambiar mentalidades após mais de meio século de revolução. Em Cuba, como em diversos outros países, ser homossexual ainda é um tabu; os lugares frequentados por lgbts são estigmatizados; homens com roupas consideradas femininas são impedidos de entrar em diversos estabelecimentos, como ocorreu com um colega brasileiro; recomenda-se aos estrangeiros homossexuais que não caminhem de mãos dadas nem expressem afeto nas ruas e demais espaços públicos, dado o rechaço da população; em lei, o amor é livre, porém a realidade, ainda que de forma tênue, o cerceia. Contudo, e embora não seja o mais desejado, o cenário cubano distingue-se do dos demais países da América Latina e do mundo, permanecendo significativamente distante dos níveis da violência homofóbica brasileira, por exemplo, que lidera os rankings de homicídio da comunidade lgbt.1
1
“Brazil Is Confronting an Epidemic of Anti-Gay Violence” [Brasil vive epidemia de violência homofóbica], em The New York Times, 5 jul. 2016. Disponível em . 77
É preciso ressaltar que existe uma constante denúncia de táticas estadunidenses de fomento à dissidência na sociedade cubana, através da instrumentalização do alegado desrespeito aos direitos humanos que supostamente ocorre no país. Desse modo, o debate acaba sendo prejudicado, já que pessoas e grupos que questionam de forma mais incisiva o Estado são taxadas de contrarrevolucionárias e desejosas de uma restauração capitalista na ilha. Às vezes isso é certo, mas outras vezes não é. Assim, importa não generalizar tais manifestações.
QUESTÃO RACIAL No que diz respeito à questão racial, tem-se uma discussão ainda mais complexa. Trata-se de um tema que sempre causou desavença dentro do próprio debate de esquerda na ilha, uma vez que as denúncias e lutas contra a discriminação racial eram enxergadas como uma afronta à própria revolução e a seus protagonistas, tidos como sectários. Acontece que o racismo, ainda que sutil, permanece na sociedade cubana como herança de mais de três séculos de escravidão, o que apenas meio século de revolução socialista não conseguiu extinguir. A permanência da desigualdade se expressa na ilha em bairros mais pobres, habitados sobretudo por negros; nos transportes públicos, lotados sobretudo de negros; nos salários mais baixos dos negros, devido a baixas qualificações; na mentalidade de alguns (poucos) cubanos brancos que ainda rejeitam se relacionar ou ter seus parentes se relacionando afetivamente com negros e negras; no rumor popular de que negros não possuem bons modos nas cidades; na maior sexualização da mulher negra, que se reflete na prostituição; na baixa presença no ensino da história de personalidades negras que contribuíram para a sociedade cubana; na baixa representatividade na mídia; e na pouca presença de intelec78
tuais negros em altos cargos de poder, principalmente dentro do Partido Comunista Cubano. É fato que o racismo institucionalizado foi abolido de Cuba, mas a sociedade permanece parcialmente racializada e a discriminação se alimenta dessa imperfeição. Assim, Esteban Morales, membro titular da Academia de Ciências de Cuba e renomado debatedor da questão racial na ilha, questiona: Qual pensamento tem maior presença dentro da nossa realidade, no que diz respeito aos problemas de raça, se nós não assumimos nem mesmo o tema na educação das novas gerações? Se nas escolas não se debate cor? Se no estudo da escravidão, dentro do nosso sistema educacional, chegamos somente até o final do século xix? Se abordamos África, Ásia e Oriente Médio de forma insuficiente? […] Neste país, educamos pessoas para serem brancas devido a falhas e erros no sistema educacional.
Morales define o racismo como um dos maiores desafios da revolução, ao questionar o seu propósito de supressão das desigualdades, além de caracterizar cubanos racistas como falsos revolucionários. Importa citar algumas razões para o não desaparecimento do racismo na sociedade cubana. O próprio bloqueio econômico impõe constrangimentos a Cuba, prejudicando os mais pobres — no caso, afrodescendentes cubanos; 90% da emigração cubana é branca, o que faz com que as remessas do exterior, muito importantes para a ilha, dificilmente cheguem às famílias negras; a mídia externa promove e difunde os valores das suas respectivas sociedades, inclusive os racistas, e são raros os cubanos que não assistam a novelas brasileiras e a filmes estadunidenses, por exemplo; a imprensa ainda carrega preconceitos, sobretudo na forma como aborda sucessos e fracassos de personalidades negras: vide, por exemplo, a cobertura jornalística em Cuba sobre a chegada de 79
Michelle Bachelet, uma mulher branca, à presidência do Chile, e de Portia Simpson, uma mulher negra, ao cargo de primeira-ministra da Jamaica. Como já mencionado, a história cubana ainda não protagoniza os afrodescendentes que contribuíram para o processo revolucionário e para a construção da moderna sociedade cubana. Além disso, falhas e erros no sistema educacional não facilitaram o debate racial. Em 2014, Raúl Castro qualificou como vergonhoso o insuficiente avanço de Cuba na questão racial, depois de mais de cinquenta anos de revolução. O presidente fez um chamado para a tomada de consciência sobre o assunto. Segundo Ricardo Alarcón de Quesada — doutor em filosofia e letras, escritor e político cubano que entre 1993 e 2013 presidiu a Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba —, o próprio Raúl vem se debruçando sobre a importância de cambiar mentalidades, o que inclui promover uma mudança de quadros na política, de forma efetiva e racional, incluindo mulheres e negros, sobretudo jovens. Lutar contra o racismo é fortalecer a unidade da nação, e o aprofundamento do socialismo deve ser antirracista. De fato, a sociedade cubana não é violenta e degenerada; o processo revolucionário garantiu o mínimo de dignidade humana para todos os cidadãos e cidadãs, com acesso público e universal a serviços de saúde e educação de qualidade, pleno emprego, segurança, moradia e alimentação. Ainda assim, a discriminação persiste, questionando a chave da revolução: a igualdade substantiva.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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7 QUEM SE BENEFICIA COM A REAPROXIMAÇÃO ENTRE ESTADOS UNIDOS E CUBA? ALINE DA COSTA LOURENÇO GUILHERME TACINI IBAÑES SERRA WALLAS GOMES DE MATOS
Nos Estados Unidos temos um monumento claro do que podem construir os cubanos: se chama Miami. — BARACK OBAMA 82
A história de Cuba desde muito cedo esteve vinculada às relações com os Estados Unidos. Assim como quase todos os países latino-americanos, Cuba foi colonizada pelos espanhóis. A colonização é, por definição, contraditória à soberania, o que limitou o desenvolvimento econômico e social da ilha. No final do século xix, as forças independentistas lideradas por José Martí retomaram a luta contra o império castelhano, mas os Estados Unidos intervieram no instante derradeiro do movimento de independência. Cuba se liberta da colonização espanhola para cair nas garras do nascente império estadunidense — a ilha se tornou uma neocolônia. Com a revolução de 1959, os conflitos se intensificaram. No dia 19 de outubro de 1960, a administração estadunidense, sob o governo de Dwight Eisenhower, impôs um embargo parcial sobre o comércio da ilha. A partir de janeiro de 1961, os Estados Unidos encerraram suas relações diplomáticas com Cuba. Desde então, as medidas hostis de Washington deram o tom — prevalente até hoje — às políticas bilaterais. Dado que Cuba era um país dependente e seu entorno regional era inóspito à revolução, a ilha considerou que precisava do auxílio econômico e militar de uma grande potência. Foi nessas condições que buscou ajuda da União Soviética, uma aproximação que se consolidou nos anos 1970. Com a derrocada do Kremlin e a desintegração do Conselho para Assistência Econômica Mútua do Bloco Soviético (Comecon), nos anos 1990, a sociedade cubana sofreu uma crise profunda, no que ficou conhecido como “período especial”. 83
Apesar do fim da relação entre Cuba e União Soviética, os Estados Unidos intensificaram o bloqueio por meio de medidas como a Lei Torricelli e a Lei Helms-Burton, ratificando o plano de acabar com o regime cubano. Guiados por esse objetivo comum, cada governo estadunidense usaria uma estratégia diferente em relação à ilha. Como consequência, a política externa cubana é marcada pelo conflito com os Estados Unidos. Isso implica sempre levar em conta a política estadunidense ao tratar da política exterior cubana, pois a diplomacia de Havana está obrigatoriamente referida à hostilidade de Washington. Apesar de muitos cubanos não considerarem as atuais dificuldades como uma crise — porque têm como referência as agruras do “período especial” — a economia islenha enfrenta problemas que colocam em xeque a dinâmica social e política do país. Há relativo consenso de que Cuba necessita de uma alternativa para sua situação econômica. Por esse motivo, o país vem passando por um processo de atualização, que envolve maior abertura ao capital estrangeiro e à iniciativa privada, em um movimento cujas raízes remetem ao “período especial”. Na perspectiva prevalente, a atualização do socialismo faz-se necessária para garantir a continuidade do próprio socialismo, além de desenvolver economicamente o país, elevando o nível de vida da população. A reaproximação com os Estados Unidos é encarada em Cuba sob o prisma deste dilema: como aliviar os problemas econômicos sem abdicar das conquistas sociais da revolução? Desde o início da revolução, o governo cubano sempre se dispôs a dialogar com os Estados Unidos. Esse diálogo, contudo, nunca aconteceu. As recentes conversas entre os dois países podem favorecer a atualização do modelo econômico cubano, uma vez que a amizade com a nação imperialista pode prover uma fonte alternativa de capital estrangeiro para a ilha. Todavia, os Estados Unidos ainda não fizeram 84
nada para acabar com o bloqueio, de forma que o debate sobre a reaproximação corre o risco de se limitar a um discurso retórico. Caso o diálogo avance, existe a expectativa de que o bloqueio se fragilize, o que pode ter efeitos contraditórios. Questionado sobre a nação imperialista em uma das praças de Havana onde havia sinal de wi-fi, um jovem cubano dizia que, “nos Estados Unidos, podemos ter isso aqui”, apontando para o celular em sua mão. Para muitos, o fim dessa forma de violência imposta pelos estadunidenses trará maior conforto material à população — algo a que os cubanos anseiam, assim como à ampliação da capacidade tecnológica da ilha, que ainda é bastante limitada. Esse problema não se restringe a aparelhos eletrônicos, mas também a equipamentos agrícolas, visto que o campo cubano tem baixa produtividade. “Vários remédios são muito caros em Cuba, pois para que eles cheguem às nossas mãos, antes precisam passar por diversos países, já que não podemos comprá-los diretamente dos Estados Unidos”, relata uma autoridade do Instituto de Biotecnologia do país. Como Cuba tem um setor biotecnológico avançado, espera-se que a queda do bloqueio facilite a importação, mas também a exportação de produtos cubanos desse setor. Entretanto, aproximar-se dos Estados Unidos significa mais do que diminuir deficiências tecnológicas: implica aproximar-se da nação que mais personifica o capital, e que mais se empenha em desarticular o modelo cubano. Almejar o fim do bloqueio pode ser como um gato que busca refúgio num canil, deixando-se envolver pelo inimigo por todos os lados. A abertura advinda da reaproximação com os Estados Unidos pode fragilizar os valores da revolução de 1959, pois o capitalismo é uma relação social que tem o individualismo, a mercantilização da vida e o consumismo como pilares. Não se trata apenas de trazer capitais estrangeiros, mas de importar um modo de vida, uma nova sociabilidade antagônica às conquistas da ilha. 85
A construção de uma sociedade sem classes, totalmente emancipada, parece não estar mais no horizonte cubano. As dificuldades intensificaram o pragmatismo, e ser pragmático neste momento significa garantir o sistema de proteção social, apesar do aprofundamento das relações capitalistas. Com esse fim, pretende-se que o Estado comande o mercado. Entretanto, o mercado que sempre promete progresso e liberdade não segue regras: impõe suas regras, e requer liberdade de ação, subjugando o próprio Estado aos seus interesses. Se esse for o preço cobrado pela recuperação econômica da ilha, pode ser um elemento crucial para a morte de um projeto socialista. Os Estados Unidos trazem os capitais, e estes trazem novas relações sociais em um mundo cada vez mais hostil. A multipolaridade, vangloriada por alguns, é apenas uma briga entre gigantes para decidir a parte comandada por cada um no capitalismo global. Tal disputa não favorece um projeto alternativo. Logo, barganhar com as grandes potências pode ser uma ilusão, pois nenhuma delas age fora da lógica da acumulação. O capitalismo em sua fase atual é marcado, grosso modo, pelos grandes monopólios transnacionais que não têm Estado, mas comandam o próprio Estado, cujo único senhor é o mercado financeiro em meio a uma crise civilizacional, em que a barbárie é a regra, e a alternativa aparentemente não existe. Conforme mencionado, o modelo cubano desde o “período especial” passa por grandes dificuldades que colocam em xeque sua própria sobrevivência. Contudo, durante o governo do presidente Barack Obama, abriu-se a possibilidade de uma reaproximação com os Estados Unidos. Um dos empecilhos a essa reaproximação é o lobby da oposição cubana sobre a política estadunidense, que pressiona Washington a recrudescer o bloqueio e, assim, criar mais dificuldades em Cuba, fragilizando o Partido Comunista com o objetivo de derrubá-lo e retornar à ilha se apropriando de suas riquezas. No entanto, 86
empresários estadunidenses estão olhando para a ilha como uma fonte de lucro para suas empresas, como as do ramo da agricultura, dos medicamentos e do turismo. Esses interesses mercantis podem limitar a hostilidade do governo estadunidense, inclusive durante o governo Donald Trump. Embora seja possível analisar a conjuntura atual de reaproximação com os Estados Unidos, ponderando seus prós e contras, ainda é cedo para oferecer uma perspectiva clara sobre uma possível vitória ou derrota da revolução. O que se pode inferir é que muitos cubanos veem como extremamente positiva essa movimentação, já que pode diminuir custos para importação de produtos, aumentando seu poder de compra, além de quebrar barreiras históricas com o país yankee e até mesmo estreitar laços com os cubanos naturalizados. Em síntese, por um lado, a reaproximação com os Estados Unidos pode significar certo alívio material e financeiro, além da fragilização do bloqueio; assim, a obtenção de divisas e bens auxiliaria na superação das deficiências tecnológicas da ilha, e garantiria o sistema de proteção social. Por outro lado, é uma maneira de Washington corroer o sistema cubano por dentro, levando-o, no longo prazo, a uma nova sociabilidade e ao aprofundamento das relações capitalistas, destruindo as conquistas da revolução.
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8 OS CUBANOS QUEREM DEIXAR CUBA? RENAN ALVES VIEIRA
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urante a viagem, em uma conversa informal com um ciD dadão cubano, lhe foi perguntado se os cubanos querem ir embora do país. Sem pestanejar, ele começou a responder com um exemplo. Fez uma pequena analogia e pediu para acompanharmos seu raciocínio. No início, disse para imaginarmos a ilha como a casa de nossos pais. Durante a infância, na casa dos pais, temos acesso à saúde, a um lar e à educação. O mesmo acontece com os jovens cubanos dentro do país. Entretanto, chega uma fase da vida em que precisamos nos tornar independentes e sair de casa. Na sociedade cubana seria o momento equivalente ao de conseguir um emprego. Ele conclui dizendo que Cuba é um dos melhores países para se criar os filhos, mas não é tão bom para se viver durante a fase adulta, visto que os salários são muito baixos e o acesso ao consumo é limitado. Segundo ele, saímos da casa dos pais não porque não os amemos ou porque queiramos distância. Saímos porque precisamos adquirir experiência e responsabilidade. O mesmo acontece com quem sai do país. O respeito e a saudade não se acabam, mas é preciso buscar novos horizontes de vida. Existe um conflito de interesses na sociedade cubana, notado nos primeiros minutos das diversas conversas informais com os cidadãos da ilha: ao mesmo tempo que os cubanos defendem os valores da revolução, choram pelo seu líder, Fidel Castro, que partiu, e cantam hinos em memória a el comandante, uma parcela da população acredita que a vida em Miami pode apresentar mais “oportunidades”. 91
A onda migratória rumo aos Estados Unidos não é um fenômeno exclusivamente cubano, mas de países em que parte da população ambiciona um nível econômico melhor para si e para suas famílias. Os Estados Unidos e o continente europeu seguem representando os principais polos de atração para essas pessoas, em sua maioria provenientes de países pobres. Entretanto, é válido ressaltar que os cubanos têm um sentimento ambíguo em relação à emigração. Em geral, não alimentam as ilusões do American dream, comuns a outros latino-americanos. Assim, ao mesmo tempo que ambicionam melhores condições de vida, receiam pela segurança social que perderão ao deixar o país. Em outras palavras, os cubanos ressentem o que a revolução não lhes oferece, mas também têm consciência do que ela lhes oferece. Daí certa ambiguidade. De modo geral, prevalece a impressão de que a parcela que mais aspira deixar a ilha é um segmento predominantemente jovem, que tem acesso à internet e se identifica mais com os valores do consumo e da imagem. Não se deve, porém, estereotipar esse grupo. Nas entrevistas que fizemos, observamos uma tendência-padrão nas respostas, que se diferenciavam de acordo com a idade dos entrevistados. Os mais velhos, que viveram durante o período pré-revolução, tendiam a ser mais rígidos em relação à defesa do Estado e dos valores revolucionários, enquanto os mais jovens, embora em sua maioria defendam o modelo atual, criticam os baixos salários e o difícil acesso aos bens de consumo. O crescimento do cuentapropismo é a solução muitas vezes encontrada pelos que, mesmo sem querer deixar a ilha, desejam ter acesso a maiores possibilidades de consumo. Casos como o de um engenheiro elétrico que abandonou seu emprego no Estado para trabalhar como garçom não são raros, e evidenciam essa problemática. Outra possibilidade intermediária é trabalhar no exterior mediado pelo Estado cubano, como parte da longa tradição internacionalista do 92
país. Esse é o caso dos profissionais que vieram ao Brasil no Programa Mais Médicos, por exemplo. Remessas provenientes de nacionais emigrados são a principal fonte de divisas de vários países da América Central e do Sul, como o Equador. O caso cubano se diferencia dos demais porque há um notável fluxo de receitas oriundas de profissionais altamente qualificados, vinculados principalmente à exportação de serviços médicos e de saúde. Há décadas o governo estadunidense explora o descompasso entre a formação profissional de alto nível e as possibilidades de trabalho e consumo na ilha. O objetivo é incentivar a evasão de cérebros, médicos, atletas e outros cidadãos talentosos, e assim esvaziar o país e provocar o declínio da revolução. Desde 1966, o Cuban Adjustment Act [lei de ajuste cubano] oferece facilidades aos imigrantes que saem de Cuba para residir nos Estados Unidos. Como substrato processual de sua aplicação, surgiu no ano de 1995 a política dos “pés secos, pés molhados”: cubanos que conseguissem atingir solo americano (pés secos), mesmo de forma ilegal, poderiam solicitar residência permanente após um ano, enquanto aqueles que fossem interceptados em alto-mar, a bordo de balsas entre Cuba e a península da Flórida, seriam deportados. Dessa forma, os cubanos gozavam de facilidades para emigrar jamais desfrutadas por nenhum outro povo latino-americano, ou mesmo por cidadãos de qualquer lugar do mundo. Articuladas em Washington, essas leis estimulavam a imigração ilegal, insegura e desordenada de cidadãos cubanos rumo ao território estadunidense. O governo de Havana, por sua vez, passou a restringir a liberdade da população, impondo barreiras ao livre trânsito humano ao, por exemplo, elevar o preço das passagens (não é um problema exclusivo de Cuba) e dificultar a liberação do chamado pd (permissão de saída do país ou tarjeta blanca). A guerra ideológica in93
fluenciou a política migratória cubana, já que tais medidas se viam necessárias para evitar a evasão de cérebros. Um passo rumo à distensão dessa política foi dado com a reformulação da lei migratória de 2013, que facilitou as condições necessárias para transitar legalmente fora de Cuba. A flexibilização veio em resposta aos anseios de parte do povo cubano, que busca adquirir melhores salários e, assim, ascender a um novo patamar de consumo. Não são raros os casos de cidadãos que emigram apenas para adquirir fundos econômicos, sem querer se fixar em um novo território. Enquanto no passado o êxodo populacional tinha motivação ideológica, hoje a situação é bem diferente. O âmago dessa nova realidade é puramente econômico, influenciado pelo abismo entre a formação profissional dos cubanos, as possibilidades de realização por meio do trabalho em outras localidades capitalistas e a frustração decorrente dessa situação. Como acentua o sociólogo Juan Valdez Paz, Cuba ainda hoje se encontra cercada de problemas estruturais, como carência de crédito em áreas estratégicas e baixa industrialização, fatos que não podem ser dissociados do embargo econômico. Tais problemas criam um ambiente propício ao anseio de emigrar. Mesmo assim, valores como o patriotismo e o nacionalismo se mostram vivos no ideário cubano, levando uma parcela da população a retornar com entusiasmo à ilha caribenha. De fato há quem queira deixar Cuba, mas também há os que saem do país, ganham dinheiro e voltam. Durante a viagem, tive a oportunidade de ouvir palmas dos passageiros no momento em que o piloto anunciou que havíamos pousado em Havana. Embora o momento tenha sido breve, foi carregado de um sentimento fraterno, de um filho cheio de saudades finalmente voltando para casa.
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LEIS DE IMIGRAÇÃO CUBA-ESTADOS UNIDOS 1959 Ano da Revolução Cubana. 1966 Cuban Adjustment Act: gestado durante a administração de Lyndon Johnson, permite ao procurador-geral dos Estados Unidos conceder vistos permanentes (depois de um período de um ano) aos cubanos que chegarem, mesmo de forma ilegal, a território estadunidense. 1995 Ano de modificação do Cuban Adjustment Act, sob a égide do governo Bill Clinton, que gerou a política conhecida como “pés secos, pés molhados”. Com essa modificação, os cubanos que tentassem alcançar a costa estadunidense e fossem interceptados em alto-mar (pés molhados) seriam repatriados, enquanto aqueles que conseguissem realizar a travessia (pés secos) poderiam se beneficiar do Cuban Adjustment Act. 2013 Entram em vigor as reformas na lei migratória cubana. Dentre as principais mudanças estão a extinção da tarjeta blanca (espécie de permissão de saída da ilha) e da “carta-convite”, além da possibilidade de extensão do período de permanência fora de Cuba (de 11 a 24 meses) sem perder a residência na ilha. 2017 O presidente Barack Obama anuncia o encerramento da política dos “pés secos, pés molhados”. O término dessa política era uma forte demanda de Havana, que a considerava um estímulo à emigração ilegal.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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9 O EMPREENDEDORISMO ESTÁ CRESCENDO EM CUBA? MATHEUS PASCHOAL
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A sociedade cubana perdeu um dos seus maiores revolucionários, Fidel Castro, em novembro de 2016, e há quem diga que muitas mudanças virão nos próximos anos. Por mais que Fidel já não exercesse o cargo de comandante supremo das Forças Armadas e nem de presidente do Conselho de Estado, uma vez que esses cargos foram assumidos por seu irmão Raúl Castro em 2008, o poder simbólico de sua figura ainda se fazia presente na política cubana. Contudo, transformações econômicas e políticas já estavam acontecendo durante o retiro de Fidel. Agora, com sua morte, provavelmente se aprofundarão. Um exemplo ilustrativo é a ampliação do setor cuentapropista, uma das mudanças que acompanham a atualização do modelo socialista cubano. O cuentapropismo é um termo utilizado para designar o setor não estatal do mercado de trabalho que, atualmente, abrange mais de duzentas atividades licenciadas. Ao viajar para Cuba, não é difícil entrar em contato com trabalhadores cuentapropistas, ou seja, que trabalham por conta própria. Devidamente licenciados, eles são donos e funcionários de restaurantes e pequenas hospedarias, vendedores de roupas, artesãos, fotógrafos, cabeleireiros, reparadores de produtos eletrônicos… A lista se alonga entre outras funções, que empregam cerca de 520 mil trabalhadores. O que esse número pode nos dizer? Ele não representa apenas um aumento dos empregos não estatais, mas o desejo do povo cubano de alcançar uma fonte de renda mais elevada do que a oferecida pelo Estado. Também é indício de um 99
novo tratamento do poder público em relação ao mercado de trabalho privado. Portanto, a questão que se coloca é entender como o cuentapropismo se insere no contexto dos desafios que a sociedade cubana vem enfrentando nos últimos anos, seja no mercado de trabalho ou fora dele. Devemos pensar o cuentapropismo, portanto, no contexto da renovação do socialismo da ilha e identificar as possíveis consequências que o crescimento dessa atividade trará para a ordem social cubana.
ESTADO E CUENTAPROPISMO O primeiro ponto a ser explorado é o posicionamento do Estado frente à expansão do setor cuentapropista. O trabalho por conta própria não é uma novidade na história cubana. Mesmo depois da revolução, o Estado permitiu que algumas atividades fossem realizadas pelo setor privado, em menor ou maior quantidade e com diferentes graus de regulação. A nacionalização de todas as formas privadas de trabalho que restavam na ilha — cerca de 58 mil pequenos estabelecimentos, mercados e até mesmo hortas familiares cultivadas em fazendas do Estado — ocorreu em 1968. Segundo a visão do comando da revolução naquele então, a propriedade privada e as vantagens econômicas suscetíveis de aumentar as desigualdades eram incompatíveis com a criação do “homem novo”, um sujeito com fortes valores morais de solidariedade e fraternidade. Contudo, nas décadas seguintes, o trabalho por conta própria foi permitido em alguns momentos e proibido em outros, a depender da conjuntura econômica e da visão do Estado sobre como deve ser o socialismo cubano — mais idealista e pautado pela criação do “homem novo”, ou mais pragmático, com a coexistência de certas formas de propriedade privada. 100
Um período de inflexão na história do cuentapropismo é a década de 1990. Com o fim da União Soviética, em 1991, Cuba perdeu o seu maior parceiro econômico, responsável por comprar grande parte de sua exportação de açúcar e fornecer as divisas necessárias para importar alimentos e outros bens indispensáveis. Assim, inicia-se o período mais difícil da história cubana pós-revolução de 1959, quando o povo conviveu com a escassez de alimentos básicos e viu suas máquinas — sejam carros ou tratores e equipamentos agrícolas — deixarem de funcionar por falta de combustível. Essa fase foi denominada como “período especial”: “especial” pelas dificuldades econômicas que acossaram os cubanos e pelas respostas criativas que tiveram de dar à situação. Ao fugir das soluções convencionais, o povo enfrentou a falta de alimentos com a introdução da agricultura urbana, a falta de combustível com o uso das bicicletas e a reintrodução do trabalho por conta própria para atender alguns pequenos serviços que o Estado já não era capaz de financiar. No início dos anos 2000, porém, a atividade cuentapropista, após ter se expandido na década precedente, foi novamente reduzida para incentivar o voluntarismo, combater a corrupção, reduzir as desigualdades e restaurar a moral revolucionária. A posição do Estado cubano oscila constantemente sobre a permanência das atividades privadas. Assim, desde 2011, o comando da revolução se tornou mais pragmático em relação ao tema, não mais enxergando o cuentapropismo como uma atividade que deve ser permitida apenas em caso de urgência, e sim como algo importante na construção do seu novo modelo econômico. É interessante frisar que essa atualização do modelo socialista busca o crescimento econômico não só pelo incentivo ao cuentapropismo, mas também pela atração de capital estrangeiro. É interessante entender o que vem atraindo tantas pessoas para o setor não estatal. Atualmente, 10% da população 101
economicamente ativa cubana opta pelo autoemprego. Essa taxa era de 3% em 2010. Existem alguns motivos que ajudam a explicar o fenômeno. O primeiro motivo é o auxílio do Estado para que a atividade se estabeleça: a partir de 2012, os bancos passaram a oferecer crédito para quem deseja abrir o próprio negócio; existem livros e cds com dicas de como gerenciar um empreendimento; houve ampliação das atividades licenciadas; foi criado um sistema de seguridade social para atender aos cuentapropistas; o Código del Trabajo passou a reconhecer o trabalho por conta própria e a estabelecer alguns direitos básicos para o funcionamento dessa atividade. Um segundo motivo são os baixos salários dos empregos estatais em comparação com o rendimento no setor cuentapropista. A psicóloga Daybel Pañellas, que investigou uma amostra de seiscentos trabalhadores cuentapropistas, percebeu que os piores salários no cuentapropismo são até seis vezes maiores do que a remuneração de um profissional no setor estatal. A busca por melhores rendimentos se tornou mais significativa com a queda dos produtos oferecidos na libreta de racionamiento, carnê que assegura a venda e a entrega mensal de um grupo de produtos básicos a preços irrisórios para cada família. Anteriormente, eram oferecidos alimentos e peças de vestuário quase gratuitos para todos os cidadãos; porém, com o enfraquecimento da economia cubana, o Estado diminuiu os bens oferecidos na libreta, restringindo-os apenas a alimentos, que duram entre quinze e vinte dias. Além da busca de maiores rendimentos para a compra de produtos básicos, vem aumentando o desejo por bens de consumo de “luxo” entre os jovens. Muitos querem ter celular, computador, viajar a outros países ou adquirir bens inacessíveis para quem trabalha no setor estatal. Portanto, o incentivo do Estado para a ampliação do setor cuentrapropista e a atratividade dos rendimentos que 102
essa atividade proporciona são fundamentais para explicar o boom do trabalho por conta própria em Cuba. Agora, devemos nos perguntar quais são as consequências que essa atualização do socialismo cubano, que amplia o setor não estatal, poderá trazer para um país socialista.
PROBLEMAS DO CUENTAPROPISMO Por mais que o Estado crie barreiras para o enriquecimento dos cidadãos que optam pela atividade cuentapropista, ao cobrar altos impostos e proibir o acúmulo de mais de um negócio por pessoa, a tendência é o aprofundamento da desigualdade econômica entre as famílias e o favorecimento daquelas que já tinham melhores situações econômicas. Os cuentapropistas têm rendimentos diferentes a depender da sua inserção no mercado de trabalho privado: o cuentapropista pode ser tanto o dono quanto o funcionário do empreendimento, assim como o público-alvo da atividade pode ser tanto os turistas como os trabalhadores cubanos. Além disso, o cuentapropismo favorece o “enriquecimento” de famílias que já têm algum dinheiro disponível para investir, como é o caso das que recebem remessas de dinheiro de parentes que moram no exterior. A desigualdade de gênero no mercado cuentapropista é outro problema. Primeiro, o cuentapropismo é extremamente masculino, se comparado com a participação feminina no setor estatal. Em 2013, somente 3,98% das mulheres ocupadas trabalhavam no setor cuentapropista, enquanto a porcentagem masculina era de 11,39%. Alguns fatores podem explicar essa diferença, por exemplo, o fato de que a maioria dos empregos autorizados estão nos setores de construção civil e de serviços, em que os homens representavam 83% e 60% 103
da mão de obra em 2013. Enquanto isso, não existe emprego por conta própria para profissionais formados e técnicos, cuja porcentagem de mulheres chega a 60,48%. Outro fator seria a discriminação na contratação de mulheres devido à ausência remunerada garantida nos períodos avançados da gestação e no pós-parto. Essa situação demonstra a existência de valores individualistas e menos solidários dentro dos empreendimentos cuentapropistas, o que provoca questionamentos sobre o quanto a sociedade cubana e seus valores de solidariedade estão preparados para lidar com o crescimento da mercantilização das relações sociais. Além do aprofundamento da desigualdade, a atratividade do setor cuentapropista enfraquece a oferta de trabalho em setores fundamentais para o desenvolvimento de um país, como educação, saúde e pesquisa. Assim, muitos professores, médicos e engenheiros optaram pelos salários atrativos do setor privado, se negando a trabalhar no setor estatal. Esse é um problema que o Estado precisa enfrentar se não quiser assistir ao desmantelamento das conquistas revolucionárias. Um quarto problema a ser resolvido é o aperfeiçoamento e a fiscalização do cumprimento das leis trabalhistas. Ao conversar com alguns garçons em Cuba, eles relatam que chegam a trabalhar mais de doze horas por dia, por mais que as leis trabalhistas estabeleçam o teto de oito horas. Outra questão é o sindicato dos cuentapropistas, que não separa quem é empregador de quem é empregado, englobando ambos na mesma categoria, o que fortalece o poder do empregador nas decisões salariais dentro da categoria. Obviamente, a decisão de legalizar o cuentapropismo em Cuba não tem apenas pontos negativos. Essa é uma maneira de o Estado controlar atividades que já existiam de forma ilegal ou alegal na economia cubana e taxar os rendimentos dessas famílias. Além disso, ela favorece que as remessas de dinheiro do estrangeiro se tornem investimentos na economia 104
cubana, que ocorra a ampliação da oportunidade de emprego em setores que o Estado não tem mais condições econômicas de garantir, e permite que as famílias encontrem uma fonte de renda alternativa, o que é importante para aquelas que vivem sempre com o mínimo necessário para a subsistência. A questão é entender as contradições desse movimento, observar o sentido das mudanças econômicas e pensar se elas são compatíveis com a construção do socialismo — ou, ao menos, do tipo de socialismo que vinham construindo.
A RENOVAÇÃO DO SOCIALISMO As mudanças econômicas e do setor privado cubano vão além do setor cuentapropista e preveem uma maior abertura econômica para o capital estrangeiro. No atual estado de enfraquecimento da economia cubana e de forte demanda por melhores condições de vida, o Estado vem atualizando seu modelo para garantir a geração de empregos e promover o desenvolvimento industrial, infraestrutural e de serviços. A criação da Zona Especial de Desenvolvimento Mariel caminha justamente nessa direção. O ponto central, mais uma vez, é se essas mudanças entrarão em conflito com as conquistas históricas da revolução. O acesso gratuito a educação e saúde de qualidade, os fortes incentivos à cultura, o direito à moradia, os baixíssimos índices de violência, mortalidade infantil e analfabetismo, assim como a elevada expectativa de vida, são conquistas impressionantes para um país latino-americano de origem escravista e primário-exportador. Ao mesmo tempo que a economia cubana ainda é incipiente para atender algumas demandas do povo, ela se mostrou capaz de construir uma das nações mais igualitárias das Américas, mesmo sob ataques constan105
tes, econômicos ou militares, dos Estados Unidos. Contudo, as novas gerações já não parecem se contentar apenas com as conquistas da revolução, e demandam melhores condições de vida e consumo. Por um lado, a atualização do modelo socialista cubano fortalece a economia interna, podendo proporcionar maiores investimentos no sistema social e na ampliação de fontes de renda alternativas; por outro, ela reproduz valores mais individualistas em certas esferas da sociedade, amplia as desigualdades econômicas e, muitas vezes, não oferece uma realização profissional para os trabalhadores, seja por trabalhar em uma atividade fora da sua área de formação, seja pela baixa remuneração de muitas profissões. Cuba está entrando em uma nova fase de sua história e devemos ser cautelosos nos prognósticos sobre seu futuro. É perceptível que o país necessita de mudanças para continuar avançando na construção do socialismo. Contudo, aparecem questionamentos sobre se as mudanças não estariam levando a uma restauração capitalista. O incentivo à lógica empreendedora e o aumento da mercantilização das relações sociais parecem colocar em risco a busca pela igualdade substantiva e de relações de produção baseadas em valores de solidariedade. Por mais que o povo cubano seja marcado por sua consciência e luta política, o horizonte da restauração capitalista parece assombrar o futuro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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10 QUAL O LUGAR DAS COOPERATIVAS NO SOCIALISMO CUBANO? JOANA SALÉM VASCONCELOS
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Cuba vive um momento de mudança: de um modelo socialista centralizador para formas variadas de desestatização e descentralização. Nesse processo, abre-se um novo debate sobre o papel das cooperativas no socialismo. Uma das principais controvérsias da Revolução Cubana, tanto no passado como no presente, diz respeito às formas de organização da propriedade dos meios de produção e, consequentemente, das relações sociais de trabalho. De modo geral, três formas de propriedade foram promovidas pela revolução, em diferentes tempos e níveis de prioridade: a propriedade estatal, a pequena propriedade privada e a propriedade cooperativa. Essas três formas nunca ocorreram de maneira isolada, e sempre estiveram sob uma diretriz geral de priorização da economia estatal. Mas hoje essa realidade está se atenuando. Com este capítulo pretendemos: i) pontuar qual poderia ser o papel das cooperativas no socialismo; ii) mapear os diferentes tipos de cooperativas criadas pela Revolução Cubana no passado e no presente; e iii) identificar o significado político da produção cooperativa nas atuais mudanças, alguns de seus desafios e limites.
AS COOPERATIVAS NA TRANSIÇÃO AO SOCIALISMO A propriedade cooperativa, em termos gerais, pode ser definida como uma organização da produção que: i) prioriza 109
o trabalho coletivo de um grupo de sócios ou associados; e ii) se configura como unidade autônoma de tomada de decisões. Os associados de uma cooperativa possuem atribuições, responsabilidades e direitos, e o princípio que rege a relação entre eles é a horizontalidade, ao contrário das relações tradicionalmente verticais entre patrões/administradores e seus empregados. Isso ocorre porque, em muitos casos, o trabalhador cooperativista é também o dono dos meios de produção, possuindo poder efetivo sobre as decisões econômicas. O fato de que a forma cooperativa tenha em sua essência os valores do trabalho coletivo e da horizontalidade não significa que todas as cooperativas funcionem dessa maneira. Mas essas características podem, em algumas situações, colocar em xeque as relações sociais capitalistas, sendo por isso uma forma de produção fortemente defendida por algumas correntes do pensamento socialista. O coletivismo e a relativa autonomia de decisão dos trabalhadores fizeram da cooperativa uma forma de produção sintonizada com alguns objetivos fundamentais do socialismo cubano. Primeiro, porque a cooperativa poderia romper com as imposições do patrão sobre o empregado, descaracterizando as obrigações do assalariado capitalista. Segundo, porque se abriria caminho para relações de produção mais conscientes, menos alienadas, construídas com base em vínculos comunitários, decisões democráticas e interesses coletivos. Na teoria, portanto, a ideia guevarista de um “ser humano novo”, com valores de solidariedade, generosidade e autodisciplina, entrava em acordo com as potencialidades da forma cooperativa. Mas, na prática, as cooperativas em Cuba sempre sofreram muitas adversidades, entre elas: i) o predomínio de uma cultura assalariada entre os trabalhadores, que não se interessavam por administrar e gerir a produção; ii) a adoção de um modelo econômico estatal-centralizador, que 110
não dava espaço para autonomias locais e; iii) os níveis reduzidos da produtividade do “trabalho autodisciplinado”.2 No atual momento de mudanças vivido por Cuba, as cooperativas têm ganhado nova relevância política, pois possibilitariam combinar a descentralização da economia estatal com os valores coletivistas e socialistas — ao invés do individualismo estimulado pelo mercado.3 A forma cooperativa é defendida por uma corrente de pensamento cubano que alguns chamam de “socialismo autogestionário”. Embora esse termo se associe à experiência iugoslava, em Cuba tem sido usado para definir uma proposta que se diferencie, por um lado, do modelo soviético e, por outro, do chamado “socialismo de mercado”. Esse socialismo autogestionário daria espaço às autonomias locais, ao sentimento comunitário, à pequena escala e à liberdade de decisão na unidade produtiva. Nesse cenário, os desafios das cooperativas são diferentes, conforme seus variados arranjos e formatos.
DIFERENTES TIPOS DE COOPERATIVAS DA REVOLUÇÃO CUBANA Em seus primeiros anos, a Revolução Cubana criou três tipos de cooperativas: as Cooperativas Canavieiras, as Sociedades Agropecuárias e as Cooperativas de Créditos e Serviços.
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Entendemos por “trabalho autodisciplinado” aquele no qual o trabalhador não possui um capataz ou patrão diretamente presentes no cotidiano, o forçando externamente a trabalhar sempre mais. É um trabalho executado com liberdade relativa, e que depende muito da “disciplina interna” de cada trabalhador. Cuba está vivendo o surgimento de um novo mercado de pequenas e médias empresas privadas. Sobre isso, ver o capítulo “É possível abrir uma empresa em Cuba?”. 111
As Cooperativas Canavieiras resultaram da divisão dos latifúndios canavieiros pela reforma agrária de maio de 1959 e da entrega das terras para grupos de trabalhadores assalariados. Sua duração foi muito curta: em setembro de 1962, em um Congresso Nacional de Cooperativas, a ampla maioria dos trabalhadores resolveu transformá-las em Granjas Estatais. Assim, os trabalhadores desfaziam-se da atribuição de administradores e voltavam a ser o que sempre foram: assalariados, sem responsabilidades de gestão. O governo revolucionário estimulou essa decisão, que encontrou sincera ressonância na base de trabalhadores. Já as Sociedades Agropecuárias foram resultado da coletivização voluntária de pequenas propriedades individuais camponesas, formando propriedades privadas coletivas. Seu formato, porém, sucumbiu às dificuldades de gestão coletiva de pequena escala e ao ímpeto estatizante da Revolução Cubana. Sobretudo durante os esforços da safra canavieira de 1970, as Granjas Estatais e os planos centralizados acabaram atropelando qualquer possibilidade de autonomia camponesa das Sociedades Agropecuárias, destituindo-as de sua função econômica e social. Portanto, tais propriedades foram extremamente fragilizadas no fim dos anos 1960. As Cooperativas de Crédito e Serviços (ccs) surgiram em 1960, junto com a Associação Nacional de Agricultores Pequenos (anap), e configuram um dos maiores casos de sucesso da forma cooperativa na Revolução Cubana. Tanto é assim que existem até hoje. Tratou-se da associação entre pequenos camponeses para obtenção coletiva de crédito estatal, serviços, insumos e maquinário, além de eventual prática de brigadas de ajuda mútua (trabalho em mutirão). As ccs também vendem sua produção coletivamente para o Estado cubano. Nenhum camponês cubano pode subsistir “avulso”: todos devem se associar a alguma ccs. 112
Os principais motivos do desaparecimento das Cooperativas Canavieiras e das Sociedades Agropecuárias se relacionam com alguns fatores já mencionados. Primeiramente, a cultura assalariada da classe trabalhadora cubana, que não possuía nem a experiência, nem o desejo de tornar-se administradora da produção. Em segundo lugar, o modelo de socialismo centralizador predominantemente adotado pelo governo cubano, que estimulou (e em alguns casos impôs) a estatização da propriedade privada coletiva. E, em terceiro lugar, a escassez de técnicos e máquinas dificultava a gestão na escala menor da cooperativa, demandando uma concentração de recursos em Granjas Estatais gigantes (cujas desvantagens já foram indicadas em vários estudos). Em 1976, no primeiro Congresso do Partido Comunista de Cuba, a ideia da Sociedade Agropecuária foi reeditada sob o nome Cooperativa de Produção Agropecuária (cpa). Também se tratava de propriedades privadas coletivas, mas com forte intervenção estatal na escolha de métodos e cultivos. Enfim, com o colapso da União Soviética e a consequente quebra da agricultura estatal cubana, foi criada, em 1993, uma nova forma de propriedade, chamada Unidade Básica de Produção Cooperativa (ubpc). A ubpc foi resultado da fragmentação e do desmonte das Granjas Estatais produtoras de cana-de-açúcar, em decorrência do colapso do mercado exportador para onde Cuba enviava seu principal produto. Na ubpc, a terra continua sendo estatal, mas o usufruto é privado, concedido para agrupamentos de trabalhadores cooperativados, em escala menor que as granjas do período anterior. Em sua regulamentação original, haveria relativa autonomia de decisão na unidade de produção: maior autonomia que a granja estatal, mas menor que a cpa. Na prática, porém, o excedente privado restante é mínimo, e a produtividade do trabalho continua menor que as expectativas. 113
Atualmente, as ubpc representam mais de 40% da superfície agrícola nacional, as cpa cerca de 10% e as ccs aproximadamente 30%. No quadro abaixo, há uma breve tipologia das principais formas de propriedade cooperativa da Revolução Cubana.
PRINCIPAIS TIPOS DE COOPERATIVAS DA REVOLUÇÃO CUBANA (1959 até hoje)
DURAÇÃO
ORIGEM ECONÔMICA
MEIOS DE PRODUÇÃO
RELAÇÃO COM ESTADO
SUPERFÍCIE AGRÍCOLA HOJE
COOPERATIVAS CANAVIEIRAS (CC)
1959 a 1962
Entrega de parcelas de latifúndios aos trabalhadores assalariados
Propriedade coletiva híbrida (estatal e privada)
Autonomia jurídica relativa e controle efetivo da administração estatal
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SOCIEDADES AGROPECUÁRIAS (SA)
1960 a 1970
Coletivização voluntária de propriedades camponesas
Propriedade privada coletiva
Supostamente autônomas, mas sufocadas pela safra de 1970
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1960 até hoje
Associação de pequenos proprietários privados
Propriedades privadas individuais associadas
Obtêm crédito do Estado e vendem a maior parte da produção para o Estado (permitida uma margem de excedente privado)
30% a 35%
10% a 15%
40% a 45%
COOPERATIVAS DE CRÉDITO E SERVIÇO (CCS)
COOPERATIVAS DE PRODUÇÃO AGROPECUÁRIA (CPA)
1976 até hoje
Coletivização de propriedades privadas individuais
Propriedade privada coletiva
Obtêm todo crédito do Estado e vendem a maior parte da produção para o Estado (permitida uma margem de excedente privado)
UNIDADES BÁSICAS DE PRODUÇÃO COOPERATIVA (UBPC)
1993 até hoje
Desmonte e fragmentação das Granjas Estatais
Terra estatal com usufruto coletivo privado
Subordinadas aos planos estatais, com mínima margem de excedente privado
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DESAFIOS DO SOCIALISMO AUTOGESTIONÁRIO Na atual descentralização econômica, existe uma corrente de pensamento que aposta nas cooperativas como estratégia para evitar que o mercado da propriedade privada (cuentapropista) “inunde” a sociedade e deteriore os valores da revolução com práticas individualistas. Porém, criar uma cooperativa em Cuba não é uma tarefa tão fácil. As heranças de um Estado centralizador e a cultura assalariada da classe trabalhadora ainda são obstáculos importantes para a construção de um sistema autogestionário. Hoje, na ilha, é mais fácil abrir uma pequena ou média empresa privada do que uma cooperativa. Atualmente, existem duas formas de criação de cooperativas: i) se um grupo de pessoas autônomas opta por coletivizar seu trabalho, ou ii) se uma empresa estatal escolhe tornar-se cooperativa, de acordo com algumas regulações e exigências do governo. Entre 2013 e 2014, segundo nos contou a socióloga Camila Piñeiro Harnecker, houve um impulso à cooperativização que gerou 498 novas unidades, sendo que 77% delas foram provenientes de empresas estatais. Nesses casos, o Estado atuou em favor da mudança, com a ameaça de desmonte do segmento de empresa estatal caso seus trabalhadores não quisessem tornar-se cooperativistas — no eufemismo oficial para “desemprego”, os funcionários públicos entrariam “em disponibilidade”. Porém, depois de 2014, nenhuma outra cooperativa foi criada, pois o Estado optou por avaliar a experiência-piloto das recém-criadas. Se a nova cooperativa não provém desse estímulo estatal, o processo é bem mais complexo e cheio de obstáculos. Quando nascem da iniciativa privada, as novas cooperativas precisam ser aprovadas pelo Conselho de Ministros, o que torna o processo lento e burocrático. O governo alega que em 116
breve haverá uma lei geral de cooperativas que facilitará esse trâmite, mas, ao mesmo tempo, tem facilitado a abertura de pequenas e médias empresas privadas, embora haja uma contradição essencial entre cooperativismo e cuentapropismo. Enquanto o primeiro supostamente estimularia a autogestão coletivista e o sentimento comunitário, o segundo abriria caminho para sentimentos individualistas e patronais. Mas tampouco se pode idealizar o papel das cooperativas, que nem sempre cumprem as funções desejadas na cultura econômica cubana. Foi o caso recente da cooperativização de alguns mercados agropecuários (feiras de alimentos). Esses mercados costumam ser estatais ou propriedade de uma ccs ou cpa. Diagnosticou-se que o monopólio estatal da distribuição estava ampliando o desabastecimento, pois os funcionários com salários garantidos não faziam a quantidade de entregas necessárias, ou encontravam dificuldades técnicas básicas, como a falta de combustível. Porém, quando surgiram as “cooperativas de mercados agropecuários”, elas não representavam os interesses dos produtores (como seria o caso se fossem propriedades de cpa ou ccs) e muito menos dos consumidores (como poderia ser o caso se fossem estatais). Essas novas cooperativas fizeram surgir interesses intermediários privados, que acabaram contribuindo para a alta inflação nos preços dos alimentos. Considerando que 80% a 90% dos salários cubanos são usados para alimentação, a última coisa desejável é uma inflação no preço dos alimentos, que abate fortemente o nível de vida da população. Assim, a socióloga Camila Piñeiro Harnecker nos alertou sobre o perigo de “idealizações” em relação à forma cooperativa, uma vez que existe o “mau cooperativismo” ou as “falsas cooperativas” com contratação ilegal de trabalhadores e práticas especulativas inflacionárias, egoístas e antipopulares. Além disso, as cooperativas exclusivamente intermediárias, formadas por feiras agrope117
cuárias, tendem a reduzir a variedade alimentar disponível, concentrando recursos nos produtos mais rentáveis — o que não ocorreria se pertencessem à cpa e à ccs, que têm sua produção contratada pelo Estado de acordo com as necessidades coletivas. Outro problema das cooperativas é que são predominantemente masculinas, revelando o machismo presente nessas estruturas: apenas 30% de sua força de trabalho é composta por mulheres. As cpa também sofrem com diversos problemas, entre eles, a falta de “sentimento de dono” da coletividade cooperativada, que acaba confiando ao Estado a tarefa de “salvá-las” de todas as crises. Como não existe “falência” de uma cooperativa, no limite os trabalhadores sentem-se amparados e nem sempre se dedicam como poderiam às tarefas da autogestão. É um problema de mão dupla: historicamente, o Estado atropela as possíveis autonomias das cooperativas e, portanto, seus sócios não as comandam como uma “comunidade de proprietários”, mas quase como trabalhadores estatais. Apesar desses e de vários outros problemas, há cubanos que defendem a cooperativa como um caminho mais forte e viável do que teria sido na década de 1960. Afinal, depois de mais de cinquenta anos, alguma consciência coletiva e engajamento social deve ter sido desenvolvido em relação ao início da revolução, em que a cultura assalariada capitalista era ainda uma realidade muito próxima. Nesse sentido, os otimistas em relação ao socialismo autogestionário acreditam que as condições para seu sucesso estão mais desenvolvidas do que nunca, sendo este o momento de testes, novas experiências e formatos, capazes de reconectar trabalho coletivo, sentimento comunitário, horizontalidade, autonomias locais e, sobretudo, solidariedade perante as necessidades populares.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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11 EXISTE DESEMPREGO EM CUBA? MARCELO SOARES DE CARVALHO
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Em qualquer economia, a forma de uso do trabalho humano é a base da relação social sobre a qual se organiza a produção e a distribuição das riquezas. Nas economias capitalistas, o trabalho é comprado e vendido como mercadoria; seu uso está voltado ao objetivo essencial da geração de lucro aos seus compradores, pouco importando a que ou a quem se destine o que for produzido. Por outro lado, a grande maioria das pessoas, trabalhadoras e trabalhadores, não tem alternativas de sobrevivência a não ser a venda de seu trabalho; por esse motivo se vê obrigada a eventualmente aceitar salários baixos ou condições de trabalho precárias, já que o desemprego seria uma alternativa ainda pior. É esse quadro comparativo que se deve ter em mente para melhor entender a natureza das relações de trabalho em Cuba, um país que optou por organizar sua sociedade e economia em moldes não capitalistas. A Constituição cubana define o trabalho das pessoas como uma necessidade de contribuição para com a coletividade, e também como um direito garantido a todos os cidadãos e cidadãs. Desde a revolução, isso significou um compromisso com o pleno emprego, sendo o próprio Estado cubano o principal contratante.4 Grande parte das pessoas contratadas pelo governo
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Dados fornecidos pela Oficina Nacional de Estadística e Información (onei) indicam que, mesmo em 2001, mais de dez anos após o início de um período de grande crise econômica e dificuldades, o Estado cubano ainda era responsável por cerca de 80% de todos os vínculos empregatícios declarados no país. 121
cubano trabalha em serviços de educação, saúde e assistência social, os quais são também definidos como direitos universais e incondicionais de todos os cubanos e cubanas; outras tantas pessoas trabalham em organizações cooperativadas, onde organizam a produção de forma autônoma e igualitária, tendo acesso garantido aos frutos de seu trabalho — o governo também oferece garantias (de compra e de seguros, no caso de muitas das cooperativas agrícolas) aos produtores cooperados. Essa breve descrição do uso do trabalho em Cuba poderia levar a crer que, claramente, sua situação nesse país é muito diferente daquela vista em economias capitalistas. O planejamento central da economia, o uso do trabalho com finalidade prioritariamente social e a considerável igualdade no acesso à riqueza coletivamente produzida seriam as marcas fundamentais do sistema socialista, no qual se enquadraria, portanto, Cuba. No entanto, transformações recentemente observadas dentro da ilha parecem indicar uma importante mudança de rumos, talvez em direção a características típicas do capitalismo, especialmente no tocante ao trabalho. Cuba tem enfrentado, desde o início da década de 1990, uma grave crise econômica, que se explica pelo fim da confortável situação em que se encontrava o país como parte do bloco de cooperação econômica das nações socialistas. A ilha tinha, até aquele momento, contas externas muito favoráveis: por exemplo, podia exportar açúcar obtendo preços maiores que aqueles observados no restante do mercado internacional; recebia petróleo, máquinas e equipamentos subsidiados pela União Soviética — de quem também recebia créditos para o equilíbrio de seu balanço de pagamentos, ou seja, a somatória dos seus saldos comerciais e financeiros com o exterior. Como ressalta o ex-ministro de Economia de Cuba José Luís Rodríguez García, os países socialistas forneciam 85% dos produtos importados por Cuba e eram o destino de 80% das exportações feitas pela ilha. O colapso soviético significou uma rápida reversão des122
sas condições, o que obrigou o governo cubano a buscar soluções para enfrentar essa situação, o que chegou a provocar, entre 1989 e 1993, uma queda de 35% no pib e de 75% nas importações do país. Esse fato é particularmente grave em uma economia nacional que é, afinal, apenas uma ilha: o atendimento às necessidades elementares da população, como a alimentação, passa obrigatoriamente pela capacidade de efetuar compras externas. Dada a gravidade desse quadro, o governo cubano foi levado a adotar medidas que pudessem trazer ao país mais moeda estrangeira (para permitir a importação de produtos indispensáveis) e, ao mesmo tempo, aumentar a produção e o abastecimento locais. Em função desses objetivos, permitiu-se a entrada de moeda estrangeira por meio de pessoas físicas — o que, no mais das vezes, se referia a transferências de valores entre familiares — e de novas modalidades de investimentos estrangeiros, e foram institucionalizadas formas alternativas de contratação do trabalho no setor não estatal, especialmente em atividades privadas por conta própria. Ao mesmo tempo, o Estado viu-se obrigado a reduzir o número de postos de trabalho e os salários que pagava aos seus funcionários, já que seus recursos também se mostraram mais escassos; isso fez com que muitas pessoas passassem a depender de outras fontes de renda no setor privado, inclusive na informalidade. Em face dessa nova configuração, muitos se perguntam sobre o quanto Cuba ainda teria de efetivamente socialista, uma vez que um número crescente de seus habitantes passou a enfrentar condições que lembram — talvez — o mercado de trabalho capitalista. Embora Cuba tenha conseguido desenvolver muito de seu potencial humano e produtivo após a revolução, não resta dúvida de que sérias limitações materiais permanecem; de fato, elas não se fizeram notar durante as cerca de três décadas de cooperação soviética, mas não foram efetivamente equacionadas: 123
o país manteve limitada capacidade de produção em setores importantes, como em energia, maquinário pesado, transportes e alimentos. Isso significa que tem ainda expressivo grau de dependência econômica com respeito ao exterior. Logo, a capacidade de garantir qualidade de vida à população é limitada, fato que se expressa, de modo mais direto, nas condições de emprego no Estado5 e na necessidade de tolerar, portanto, que as pessoas se empreguem em outras atividades, em outros moldes. Cabe destacar, porém, que mesmo durante os anos de maiores dificuldades econômicas, o governo não abriu mão dos direitos universais e irrestritos a saúde e educação, que garantem à população uma parte importante de sua sobrevivência cotidiana sem que para isso tenham que vender seu trabalho; com efeito, os indicadores sociais de Cuba — com respeito a escolaridade, controle da mortalidade infantil e expectativa de vida ao nascer, por exemplo — permanecem em situação superior à dos demais países da região, como demonstram os dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) das Nações Unidas. De fato, a própria população dá mostras de que atribui grande valor aos serviços públicos de proteção social, ao mesmo tempo que não desconhece as imensas dificuldades que enfrentam outros países, onde o povo muitas vezes tem que obter acesso a esses serviços por meio do mercado. Assim sendo, pode-se dizer que o uso do trabalho em Cuba segue pautado pelo objetivo prioritário do bem-estar da população, apesar do seu nível geral de renda, que é, efetivamente, baixo, embora, como já mencionamos, outras formas de uso do trabalho sejam visíveis, e até mesmo crescentes. Por outro lado, a atualização do modelo econômico cubano está sendo pensada de modo a manter o sistema socialis5
Ainda assim, o governo cubano segue sendo responsável por cerca de 70% dos postos de trabalho declarados, segundo dados recentes da onei. 124
ta (e suas estruturas fundamentais) como base da produção em Cuba, ainda que sejam utilizados mecanismos de mercado. Parece claro o propósito central de aumentar a autonomia produtiva do país, abrindo mão do mínimo possível em termos de igualdade, para reforçar as estruturas socialistas. Resta saber o quanto haverá de efetivo na declaração oficial de que os elementos de mercado agora presentes — mas, em tese, não definitivos — serão apenas instrumentais ao sistema existente na ilha. Considerando o quanto o povo cubano já provou ser ao mesmo tempo criativo e persistente na defesa de sua soberania nacional e de suas conquistas sociais, é de se esperar que novos caminhos sejam encontrados ou, então, desenvolvidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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12 QUAIS OS DESAFIOS DA QUESTÃO AGRÁRIA EM CUBA? JOANA SALÉM VASCONCELOS
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Atualmente, a “questão agrária” de Cuba é totalmente diferente da dos outros países latino-americanos: se na maior parte deles o latifúndio e a monocultura de exportação ainda exercem grande poder na organização do espaço rural, em Cuba, ao contrário, nem o latifúndio nem a monocultura existem mais. Os desafios atuais da agricultura cubana são muito particulares e isso se deve a dois acontecimentos ímpares da história da ilha: primeiro, às reformas agrárias que eliminaram o latifúndio no início da revolução, entre 1959 e 1963; e, segundo, ao desmonte da monocultura, desencadeado pela queda da União Soviética em 1990. A agricultura tornou-se a principal atividade exportadora cubana durante a colonização, quando foi criada uma estrutura produtiva destinada a satisfazer necessidades comerciais estrangeiras. As heranças desse processo são sentidas até hoje. Por isso, apesar das mudanças trazidas pela revolução, a soberania alimentar continua sendo um problema não completamente resolvido na ilha. Sem dúvida, a revolução permitiu melhores condições nutricionais para o conjunto da população rural e urbana do país. Contudo, o bloqueio econômico dos Estados Unidos impôs restrições comerciais que dificultaram a diversificação agrícola inicialmente planejada pelo governo revolucionário. Para compreendermos o sentido geral da “questão agrária” em Cuba na atualidade, vamos narrar brevemente essa história.
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HERANÇAS DA COLONIZAÇÃO Entre a chegada de Cristóvão Colombo em 1492 e a revolução negra do Haiti em 1791, Cuba ficou conhecida como “chave do Caribe”: sua localização estratégica permitia o controle das rotas dos navios negreiros e de mercadorias que abasteciam a colonização das Américas. Mas com a revolução negra no Haiti e a posterior independência do país, em 1804, Cuba passou a ocupar o protagonismo mundial na produção de açúcar, anteriormente exercido pelos haitianos. Durante os duzentos anos seguintes, Cuba desempenhou um papel agroexportador decisivo, realidade que só foi modificada na década de 1990. Ao longo do século xix, as terras da ilha foram sendo ocupadas por canaviais em crescente expansão, até atingir a década de 1950 com 75% de sua superfície agrícola tomada pelo latifúndio monocultor. Esse processo de invasão das terras pelo negócio do açúcar foi violento em dois sentidos: primeiro, significou o genocídio dos povos nativos e o controle estrangeiro do território; segundo, os canaviais foram erguidos por meio do sequestro, da comercialização e da escravização das populações africanas trazidas à força para Cuba, tal como ocorreu no Brasil. Nesse sentido, a agricultura cubana antes da revolução era muito semelhante à brasileira, dominada pela estrutura da plantation modernizada, isto é, o latifúndio, a monocultura e o trabalho compulsório, perpetuados em uma situação de dependência neocolonial. Essa agricultura causava desigualdade social: poucas famílias cubanas e estrangeiras controlavam o recurso natural mais importante do país, a terra, enquanto a grande maioria da população rural trabalhava muito, ganhava pouco, morava em habitações precárias e sofria com a fome e o desemprego sazonal.
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Em 1946, os latifúndios com mais de quatrocentos hectares controlavam 57% da superfície produtiva da ilha, mesmo correspondendo a apenas 2,8% do número total de propriedades. Ao mesmo tempo, as unidades com menos de 27 hectares representavam 78,5% do número de propriedades e ocupavam somente 15% da superfície agrícola. Com a revolução de 1959, porém, todos os trabalhadores rurais passaram a ter direito a uma pequena propriedade de terra. O governo revolucionário distribuiu pequenos lotes chamados de “mínimo vital” (27 hectares) para mais de duzentas mil famílias sem-terra. Esses pequenos proprietários foram organizados por uma nova instituição chamada Associação Nacional de Agricultores Pequenos (anap). Além disso, mais de 5,5 milhões de hectares ocupados por latifúndios foram expropriados e transformados em cooperativas e Granjas Estatais. As cooperativas eram propriedades mistas em que os trabalhadores eram responsáveis pela administração. Já as Granjas Estatais funcionavam com trabalhadores assalariados. Desde 1961, a propriedade estatal da terra predominou sobre as cooperativas.
REVOLUÇÃO CUBANA E FIM DO LATIFÚNDIO As duas primeiras reformas agrárias da Revolução Cubana ocorreram em 1959 e 1963, apresentando uma tendência simultaneamente em favor da pequena propriedade privada e da propriedade estatal. Seu objetivo principal foi a eliminação do latifúndio, considerado uma herança colonial nociva que impedia o bem-estar social no campo e gerava subdesenvolvimento. O fim do latifúndio e a redistribuição da terra entre Estado e campesinato melhoraram a situação dos trabalhadores rurais, que passaram a ter maiores salários, menores jornadas 131
e, muitas vezes, uma terra própria para plantar com a família. No entanto, a monocultura de cana continuou a existir. Em um primeiro momento, entre 1959 e 1963, o governo revolucionário trabalhou para diversificar a agricultura e diminuiu a superfície canavieira em mais de 150 mil hectares. Contudo, rapidamente a redução dos canaviais em favor de outros cultivos alimentares gerou desequilíbrios econômicos, como déficit comercial, queda da produtividade e escassez de mão de obra. Como a diversificação ocorreu de modo muito brusco, o espaço agrário foi “desorganizado” em favor da produção de subsistência. Na avaliação do governo, isso comprometia as receitas do Estado de tal maneira que a revolução não poderia cumprir suas “promessas” de bem-estar social. Para os revolucionários no poder, a realização rápida de tais promessas era uma condição indispensável para a estabilidade política. Tudo isso justificou uma das decisões mais contraditórias tomadas pela revolução: o socialismo cubano seria construído com base na monocultura canavieira. Ou seja, uma característica tipicamente colonial, geradora de desigualdades e dependência externa, seria a alavanca econômica do bem-estar social prometido pela revolução. Nesse sentido, ao mesmo tempo que Cuba superou o latifúndio, aprofundou a monocultura. A Revolução Cubana seguiu incentivando a monocultura canavieira enquanto possuía vantagens garantidas com suas vendas para a União Soviética. Esse cenário mudou completamente com a ruína do bloco comunista.
COLAPSO DA UNIÃO SOVIÉTICA E FIM DA MONOCULTURA Em 1990, a economia cubana estava totalmente atrelada à União Soviética, em especial a produção agrícola. Cerca de 85% do comércio exterior cubano era realizado com o bloco soviéti132
co. Com seu desmoronamento, o pib cubano contraiu 35% em quatro anos. O país entrou numa crise sem precedentes, e a agricultura foi pivô desse processo. A Rússia capitalista cancelou os contratos de compra preferencial de açúcar de Cuba, que ficou sem ter para quem vender suas safras gigantescas. Mais que isso: toda a estrutura produtiva da ilha estava especializada, e não era possível convertê-la instantaneamente. Por conta disso, a monocultura cubana colapsou. As novas alternativas não foram imediatamente construídas, e sim aos poucos, conforme o país tomava consciência da nova situação. Notou-se como a monocultura era uma face da dependência econômica externa: quando a economia nacional gira em torno de um único item comercializado com poucos países, a possibilidade de um desmoronamento repentino é enorme. Os economistas chamam isso de “vulnerabilidade externa”. Em Cuba, a vulnerabilidade externa era muito elevada devido à predominância absoluta de sua relação açucareira com a União Soviética. O desmonte da monocultura significou também a crise de um modelo tecnológico intensivo, baseado nos pressupostos da “revolução verde”.6 Por uma razão primeiramente econômica, ou seja, a falta de dinheiro para comprar fertilizantes e agrotóxicos, Cuba acabou abandonando os recursos técnicos da revolução verde. Em seguida, o Estado cubano e os pequenos agricultores foram tomando consciência da destruição ambiental que o modelo tecnológico intensivo havia proporcionado contra os solos e as águas do país. Isso desen6
A “revolução verde” foi o processo de industrialização da agricultura inaugurado após a Segunda Guerra Mundial, caracterizado por deslocar as indústrias de guerra para a fabricação de agrotóxicos e fertilizantes químicos. O nome “verde” é uma tentativa de criar uma aparência ecológica para um fenômeno altamente nocivo para a saúde humana e ambiental. A revolução verde pode ser definida como o processo de transferência de tecnologia da indústria da guerra para agricultura, gerando uma nova fronteira de lucros capitalistas que hoje culmina com os transgênicos e a engenharia genética. 133
cadeou o fortalecimento de um novo modelo: a agroecologia, que hoje é impulsionada pelo governo e pelos camponeses.
AGROECOLOGIA, COOPERATIVISMO E NOVOS PARADIGMAS A agricultura cubana, hoje, atravessa duas mudanças. A primeira é a transição de um modelo tecnológico intensivo, com uso de agrotóxicos e fertilizantes típicos da revolução verde, para o modelo agroecológico, que prioriza as forças da natureza para aumentar a produtividade. A segunda é a desestatização da terra via cooperativismo e usufruto privado, isto é, o incentivo do governo para que as pessoas voltem ao campo e o campesinato seja ampliado. É importante ressaltar que o paradigma agroecológico só pode funcionar como movimento político e social consciente. Isto é, não bastou o colapso do modelo intensivo para que a agroecologia “surgisse” em seu lugar como um acontecimento da natureza. Atualmente existem alguns programas de incentivo à agroecologia, entre eles o movimento Campesino a Campesino da anap. Por meio dele, os camponeses compartilham entre si técnicas e saberes agroecológicos desenvolvidos experimentalmente por eles mesmos. Assim, os conhecimentos práticos da agricultura ecológica são difundidos e renovados diretamente nas bases sociais do campo. Além disso, existe um processo de desestatização da terra, iniciado como medida emergencial durante a crise dos anos 1990, mas que depois se configurou como estratégia planejada do governo para o aumento da produção de alimentos. Em 1993, foi realizada uma terceira reforma agrária que reduziu as Granjas Estatais de 82% para 20% da superfície agrária do país, transformando-as em cooperativas chamadas Unidades Básicas de Produção Cooperativa (ubpc). Essa decisão foi 134
tomada com base no melhor rendimento das Cooperativas de Produção Agropecuária (cpa), criadas nos anos 1960, com relação às Granjas Estatais. Naquele momento, a agricultura ocupada por camponeses em propriedades privadas, todos organizados em Cooperativas de Crédito e Serviços (ccs) da anap, foi mantida em mesma proporção.7 Mais tarde, em 2010, diante do grave problema da falta de força de trabalho no campo, o governo aprovou uma quarta reforma agrária, que ainda está em curso. Seu objetivo era justamente ampliar o setor camponês, distribuindo as terras estatais em forma de “usufruto privado” — em que as propriedades continuam nas mãos do Estado, mas seu uso é privado em forma de concessão temporária. Com os incentivos criados pelo governo, em seis anos, 150 mil cubanos saíram das cidades para o campo, ampliando de 20% para 33% o setor camponês no conjunto da agricultura. A meta da quarta reforma agrária é que o campesinato represente 45% da produção agrícola. Como essas duas mudanças — a agroecologia e a desestatização — se articulam? Segundo Juan Valdés Paz, sociólogo da Universidade de Havana especialista em agricultura cubana, o campesinato é um sujeito social mais apropriado para a agroecologia, enquanto a produção estatal ainda carrega consigo heranças do modelo tecnológico intensivo. A transição agroecológica passaria, portanto, por uma transformação na mentalidade dos produtores e também uma adequação da estrutura e do tamanho das propriedades. Por isso, também há uma possibilidade de alteração constitucional que regulamente a ampliação da propriedade privada no campo cubano. Até pouco tempo, a legislação para o “novo camponês” usar a terra estatal em usufruto era muito rígida. Recente7
Sobre as propriedades cooperativas, ver o capítulo “Qual o papel das cooperativas no socialismo cubano?”. 135
mente, porém, algumas mudanças foram aprovadas para facilitar esse processo. Antes, por exemplo, o usufrutuário da terra ficava proibido de construir uma moradia permanente em seu terreno, pois as pressões para reestatização da terra ainda eram muito fortes; agora, a construção de casas é estimulada. Outra restrição que deixou de existir era que o contrato de usufruto da terra não podia ser transmitido aos filhos do contratado; agora isso é possível. Além disso, o período do usufruto foi duplicado de dez para vinte anos. A ampliação do campesinato cubano, porém, não significa autonomização da produção agrícola. O Estado não permite que o camponês fique “solto”, ou seja, o usufrutuário da terra estatal é obrigado a associar-se a alguma ccs e contratar uma parcela da sua terra em metas agropecuárias desenvolvidas pelo Estado em conjunto com a anap. Apesar de a produção alimentar cubana ter crescido com essas medidas, o país ainda vive uma tremenda dificuldade para garantir uma distribuição satisfatória de alimentos em todas as cidades da ilha.
DESAFIOS DA DISTRIBUIÇÃO DE ALIMENTOS Notamos, em Havana e arredores, que alguns mercados agropecuários pareciam estar desabastecidos de alimentos frescos. Mas em uma viagem ao ocidente da ilha, nos hospedamos no meio rural, onde percebemos maior diversidade e frescor alimentar em nossos pratos. Isso porque a produção de alimentos cresceu, mas a distribuição ainda é insuficiente. O modelo de transporte para distribuição alimentar às cidades vive ao menos duas dificuldades: por um lado, a escassez de combustível decorrente do bloqueio econômico dos Estados Unidos, que já dura 55 anos; por outro, o mo136
nopólio estatal, que organiza a atividade distributiva e gera uma série de contradições. Os salários excessivamente baixos da economia estatal acabam desestimulando seus funcionários, que muitas vezes não trabalham uma jornada completa por dia. Remodelar a gestão do transporte de abastecimento alimentar é uma tarefa complexa, que envolve repensar os estímulos ao trabalhador estatal. Além disso, as experiências de cooperativização do transporte de alimentos nem sempre obtiveram sucesso. Ao mesmo tempo, a agricultura urbana desenvolvida de modo espontâneo pela população nos anos 1990, e mais tarde incorporada aos planos do governo, não pareceu ser suficiente para abastecer todos os mercados com alimentos frescos. A distribuição continua sendo, portanto, um grande desafio para a melhoria dos padrões alimentares das cidades cubanas.
CONCLUSÃO
Ao eliminar o latifúndio, a Revolução Cubana superou um traço fundamental do subdesenvolvimento: o poder exclusivo de uma classe sobre a terra. Apesar disso, a monocultura foi fortalecida pela própria revolução, que dessa maneira contraditória buscou cumprir suas promessas de bem-estar social. Com o fim da União Soviética, a monocultura também foi desmontada, muito menos por um processo intencional de mudança, e mais pela crise de uma economia dependente. Se no modelo agrícola da Revolução Cubana entre 1959 e 1990 predominou a produção centralizada, estatal e monocultora, com adoção de padrões industriais intensivos típicos da “revolução verde” (nocivos ao meio ambiente e à saúde humana), hoje a tendência é oposta. O sentido geral das mudanças aponta para a ampliação do setor camponês (por usufruto ou propriedade privada) e do setor cooperativo (ubpc, cpa 137
e ccs), ambos orientados pelo Estado na realização de uma transição agroecológica. Nesse sentido, a Revolução Cubana abandonou alguns dogmas estatistas do socialismo do século xx e tem apontado, no século xxi, para a descentralização da agricultura, o cooperativismo e a produção camponesa, além de representar um posto avançado de experimentação da agroecologia no mundo.
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13 QUAIS AS REGRAS PARA O CAPITAL ESTRANGEIRO EM CUBA? FABIANA RITA DESSOTTI
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Uma das inquietações centrais sobre as mudanças que estão ocorrendo em Cuba, desde a crise dos anos 1990, é se o país estaria partindo para uma organização econômica de mercado, e se estaria se tornando uma economia capitalista. Na atualidade, um tema importante nesse debate é como se dá a participação do capital privado e do capital estrangeiro no processo de produção da ilha. Eis a proposta deste texto: verificar as principais mudanças que estão ocorrendo em Cuba no que diz respeito ao tratamento dado ao capital estrangeiro. Em termos econômicos, a estatização dos meios de produção e as reformas agrárias foram essenciais para a transição ao socialismo em Cuba. Controlar o setor agrário, em uma economia agrária, é o mesmo que controlar toda a economia. As dificuldades enfrentadas por Cuba, desde o final dos anos 1980, repercutiram em uma série de medidas de correção na economia, consideradas emergenciais em situação de crise. Entre elas, destacam-se uma maior abertura à participação do capital estrangeiro. Essas medidas, ao procurarem corrigir deficiências da economia, feriam os fundamentos da constituição cubana e, principalmente, alguns princípios fundamentais do socialismo em Cuba. Os Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la Revolución, aprovados no vi Congresso do Partido Comunista de Cuba, em abril de 2011, parecem significar a recuperação e reorganização de uma série de medidas que já tinham sido implementadas em períodos anteriores, mas que, por serem emergenciais, precisariam ser orientadas por 141
objetivos comuns, dando um sentido de planificação da economia na busca do crescimento econômico. Entre os aspectos centrais da atualização do modelo, destacam-se a busca de eficiência econômica e uma maior racionalidade nos gastos sociais. No que diz respeito à flexibilização dos investimentos produtivos, a atualização do modelo econômico proposta nos Lineamientos busca favorecer os investimentos necessários para ampliar os índices de crescimento econômico. Destaca-se o fato de que a proposta mantém a propriedade socialista dos meios de produção, uma vez que os setores centrais da economia cubana continuariam sob controle do Estado. Em termos da busca pela ampliação dos investimentos, o modelo “reconhece e promove — além da empresa estatal socialista, que é a forma principal na economia nacional — as modalidades de investimentos estrangeiros previstas na lei (empresas mistas, contratos de associação econômica, entre outras), as cooperativas, os agricultores pequenos, os usufrutuários, os arrendatários, os trabalhadores por conta própria e outras formas”. Existe um debate importante em Cuba sobre essa flexibilização para o mercado, principalmente quando se trata de investimentos estrangeiros, trabalhadores por conta própria e cooperativas. O que garante a atratividade para o investimento estrangeiro? De que forma o Estado pode garantir que o capital estrangeiro seja investido nos setores de maior interesse para o desenvolvimento econômico? Se os trabalhadores por conta própria podem contratar outros trabalhadores, por que não considerá-los pequenos empresários? Quais são as implicações em termos de regime de trabalho? O que garante os direitos dos trabalhadores empregados por esses pequenos empresários, uma vez que o sindicato que os representa é o mesmo do empregador? Como diminuir os riscos em termos de disparidades de renda, quando se observa que os trabalha142
dores por conta própria (ou dos setores privados) são muito melhor remunerados que os trabalhadores estatais? Por que não priorizar as cooperativas em vez dos pequenos empresários, uma vez que elas responderiam melhor à propriedade social dos meios de produção? Este texto não pretende responder a todas essas perguntas, mas tenta apresentar algumas considerações sobre o investimento estrangeiro, a partir de pesquisas e entrevistas.
CARACTERÍSTICAS DO INVESTIMENTO ESTRANGEIRO EM CUBA A participação do capital estrangeiro em Cuba não é novidade, mas, como tratado anteriormente, a atualização do modelo econômico se propõe a impulsionar esse tipo de investimento. Em março de 2014 se aprova a nova lei de investimentos estrangeiros, a Lei 118. Segundo esta lei, O investimento estrangeiro no país se orienta à diversificação e ampliação dos mercados de exportação, o acesso a tecnologias avançadas, a substituição de importações, priorizando a de alimentos. Do mesmo modo, a obtenção de financiamento externo, a criação de novas fontes de emprego, a captação de métodos gerenciais e a vinculação do mesmo com o desenvolvimento de encadeamentos produtivos, assim como a mudança da matriz energética do país mediante o aproveitamento de fontes renováveis de energia.
Os investimentos estrangeiros podem ser realizados em todos os setores econômicos de Cuba, exceto nos serviços médicos, educacionais e ligados à defesa do país. Existem 143
três modalidades principais de participação do capital estrangeiro: as empresas mistas, os contratos de associações econômicas internacionais e as empresas totalmente de capital estrangeiro. As empresas mistas têm uma característica específica: são aquelas que contam com a participação do capital estrangeiro e do capital nacional. Diferente do caso brasileiro, não é o tipo de capital (público ou privado) e sim a nacionalidade do capital (nacional ou estrangeiro) que as caracteriza. É uma companhia mercantil cubana, na qual participam como acionistas uma ou mais empresas estatais cubanas e um ou mais investidores estrangeiros. Forma-se um capital social a partir do aporte dos sócios, com o objetivo de produzir bens e prestar serviços, para obtenção de lucro. Esta é a modalidade de investimento estrangeiro mais utilizada em Cuba. Os contratos de associações econômicas internacionais representam um acordo entre uma empresa estatal cubana e uma empresa estrangeira sem a criação de uma personalidade jurídica: “classificam-se, entre outros, os contratos de risco para exploração de recursos naturais não renováveis, para a construção, a produção agrícola, a administração hoteleira, produtiva ou de serviços e os contratos para prestação de serviços profissionais”, diz a Lei 118. As empresas de capital estrangeiro são aquelas que não têm nenhuma participação do investidor nacional. O investidor estrangeiro exerce a direção da empresa, desfrutando dos seus direitos e assumindo suas obrigações. O investidor poderá estabelecer-se como pessoa física, como pessoa jurídica, constituindo uma nova empresa ou uma subsidiária de empresa estrangeira. Esta modalidade é mais complexa e envolve, principalmente, investimentos de infraestrutura industrial. O investidor pode apresentar um projeto a partir da Carteira de Oportunidades lançada pelo governo cubano, 144
ou propor um novo projeto de acordo com seus interesses. Na Carteira de Oportunidades de Investimentos Estrangeiros 2016–2017, lançada pelo Ministério de Comércio Exterior e Investimento Estrangeiro de Cuba, são apresentadas 395 oportunidades de investimento, nos seguintes setores da economia: minerais (13), açucareiro (13), comércio (7), energia renovável (23), petróleo (87), turismo (114), agroalimentar (76), biotecnologia e medicamentos (15), saúde (3), construção (10), audiovisual (3), transporte (10), hidráulico (5) e indústria (16). Destacam-se as oportunidades no setor de turismo, que parece ser o que mais atrai o investimento estrangeiro para o país. Em 2016, segundo o economista Omar Everleny, existiam 27 empresas mistas e 76 contratos de associação econômica de dezessete grupos estrangeiros no setor de turismo em Cuba. Para que o investimento estrangeiro aconteça, é necessária a autorização do Conselho de Ministros ou da Administração Central do Estado. Outro mecanismo de controle é a forma de contratação dos trabalhadores das empresas mistas. Eles devem ser contratados por entidades empregadoras propostas pelo Ministério do Comércio Exterior e Investimento Estrangeiro e autorizadas pelo Ministério de Trabalho e Seguridade Social. Além desses controles, as empresas de capital estrangeiro, as empresas mistas e os acordos econômicos internacionais são tributados de acordo com a legislação específica de sua atividade, podendo ser isentas de alguns impostos nos primeiros anos de atividade ou no período de recuperação dos investimentos. Existe também a possibilidade de isenções de acordo com os setores considerados essenciais para o país, o que representaria uma seletividade dos investimentos. As propostas de investimento são encaminhadas ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente, que avalia sua viabilidade no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável. 145
Tanto a legislação cubana quanto o depoimento de pessoas relacionadas ao processo econômico demonstram o controle exercido pelo Estado sobre os investimentos estrangeiros. Observa-se também medidas de estímulo aos investimentos estrangeiros para atender os objetivos elencados anteriormente. Um exemplo disso é o Regime Especial de Tributação da Zona Especial de Desenvolvimento (zed) Mariel.
ZONA ESPECIAL DE DESENVOLVIMENTO MARIEL Criada em dezembro de 2013, por meio do Decreto Lei 313, a zed Mariel representa, em conjunto com outras medidas de atualização do modelo econômico, uma forma de promover a infraestrutura necessária para estimular as exportações, promover a substituição de importações, impulsionar os projetos de alta tecnologia e gerar novos postos de trabalho. As empresas estabelecidas nessa zona recebem tratamento especial no que diz respeito a impostos e contribuições, além de simplificação nos trâmites aduaneiros. Conforme observado em nossas entrevistas, a zed Mariel representa uma grande aposta do governo para a atração dos investimentos estrangeiros, por tratar-se de uma zona industrial com um porto capaz de receber embarcações de grande porte, fundamental para entrada e saída de mercadorias e que, segundo informações do governo, poderia converter-se em ponto fundamental para o comércio entre Ásia, Europa, América do Sul e Central, Caribe e América do Norte. Parece claro para os analistas que a concretização desses objetivos depende, fundamentalmente, da eliminação do bloqueio estadunidense. 146
Na primeira etapa, conforme informações da diretoria do Escritório da zed, além do desenvolvimento de infraestrutura para o parque industrial, o governo esforçou-se na captação de investimentos nos setores de biotecnologia e farmacêutico, informática, comunicação e outros ramos das indústrias tradicionais, que são deficitários no país. Na Carteira de Oportunidades de Investimentos Estrangeiros 2016–2017 são apresentadas 24 oportunidades de investimentos na zed, distribuídas nos seguintes setores: comércio (1), agroalimentar (1), biotecnologia e medicamentos (13), construção (1) e indústria (8). Conforme Ladyrene Pérez, dos 22 projetos instalados na zed Mariel, oito estão em operação, alguns em caráter temporário e outros de modo definitivo.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Um dos problemas acentuados pelos analistas e pelo próprio governo cubano é que, apesar das medidas de estímulo, os investimentos estrangeiros ainda são insuficientes para se atingir os objetivos de crescimento econômico do país. Conforme Omar Everleny Pérez Villanueva, pesquisador cubano, existem em torno de 250 empresas estrangeiras em associação com o governo cubano, e o investimento estrangeiro representa apenas 0,5% do pib do país. São contratos de administração de hotéis e também em outros ramos, como petróleo, níquel, bebidas, tabacos e alimentação. Isso pode ser reflexo do próprio controle excessivo do Estado sobre a atuação deste capital, o que afugentaria o investidor estrangeiro, que prefere maior liberdade de atuação. Outra argumentação importante é o embargo econômico, o que dificulta em muito as relações econômicas do país com o resto do mundo. 147
USUÁRIOS DA ZED MARIEL — 2016 USUÁRIO
MODALIDADE
PAÍS
ATIVIDADE
TERMINAL DE CONTENEDORES MARIEL S. A.
Capital 100% cubano
Cuba
Transporte
RICHMEAT DE CUBA S. A.
Empresa de capital estrangeiro
México
Alimentício
PROFOOD SERVICE S. A.
Empresa de capital estrangeiro
Espanha
Alimentício
BDC LOG. S. A.
Empresa de capital estrangeiro
Bélgica
Transporte e logística
BDC TEC. S. A.
Empresa de capital estrangeiro
Bélgica
Eletrônica
DEVOX CARIBE S. A.
Empresa de capital estrangeiro
México
Pinturas
SERVICIOS LOGÍSTICOS MARIEL S. A.
Capital 100% cubano
Cuba
Logística
BRASCUBA CIGARRILLOS S. A.
Empresa mista
Cuba-Brasil
Cigarros
BANCO FINANCIERO INTERNACIONAL S. A.
Capital 100% cubano
Cuba
Bancário
UNILEVER SUCHEL S. A.
Empresa mista
Cuba-Holanda
Indústria
COMPANHIA DE OBRAS E INFRAESTRUTURA
Empresa de capital estrangeiro
Brasil
Engenharia e construção
WOMY EQUIPMENT RENTAL B.V.
Empresa de capital estrangeiro
Holanda
Logística
THAI BINH GLOBAL INVESTMENT CORPORATION
Empresa de capital estrangeiro
Vietnã
Indústria/painéis
BOUYGUES CONSTRUCCIÓN CUBA S. A.
Empresa de capital estrangeiro
França
Engenharia e construção
CARILOG
Acordo econômico internacional
França-Cuba
Logística
INDUSTRIAL BIOTECNOLÓGICO CIGB MARIEL S. A.
Capital 100% cubano
Cuba
Biotecnologia
TECNOLOGÍAS CONSTRUCTIVAS S. A.
Empresa de capital estrangeiro
Espanha
Sistemas construtivos
FINANCIERA IBEROAMERICANA S. A.
Empresa de capital estrangeiro
Espanha
Financeira
ARCO 33 S. A.
Empresa de capital estrangeiro
Coréia do Sul
Dispositivos médicos
FIDAS DO BRASIL S. A.
Empresa de capital estrangeiro
Brasil
Transporte e logística
LOGÍSTICA HOTELERA DEL CARIBE S. A.
Empresa mista
Espanha-Cuba
Logística
GRUPO TOT COLOR S. A.
Empresa de capital estrangeiro
Espanha
Pinturas
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O Ministério de Relações Exteriores de Cuba apresenta como principais limitações à entrada de capital estrangeiro no país: i) o bloqueio econômico dos Estados Unidos; ii) o elevado nível de descapitalização da economia cubana; iii) a ausência de pessoal qualificado e com experiência para operar o Investimento Direto Estrangeiro; iv) a demora no processo de negociação e de aprovação dos projetos; v) os altos custos nas operações dos investidores estrangeiros; vi) a falta de definição precisa da carteira de projetos que se deseja promover; vii) a falta de flexibilidade na política fiscal e comercial; viii) a necessidade de modernização do sistema bancário; e ix) a inadequação do regime de contratação da força de trabalho. Enfim, a atualização do modelo econômico cubano, que teve suas primeiras iniciativas nos anos 1990 e ganhou maior corpo com os delineamentos de 2011, tem promovido um intenso debate em Cuba. Existe especial atenção sobre a possibilidade de que as iniciativas impliquem grandes perdas nos ganhos sociais da revolução e, principalmente, na ruptura do socialismo e em um retorno ao capitalismo. Este debate por si só demonstra que a manutenção do socialismo e dos ganhos sociais não será tarefa fácil, mas também não se pode considerar que existe em Cuba delineamentos claros de que o país estaria caminhando para uma economia em que predominam os fundamentos de mercado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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14 POR QUE CUBA TEM DUAS MOEDAS? MARCELO SOARES DE CARVALHO
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Poucos assuntos despertam tanta controvérsia entre os pesquisadores da área de Economia quanto a natureza da moeda e, por derivação, também a relação de valor entre diferentes moedas nacionais — ou seja, a taxa de câmbio. Dados os propósitos deste texto, optou-se aqui por evitar as várias polêmicas teóricas e por apresentar apenas os conceitos mais elementares do assunto, para assim poder tratar dos aspectos concretos da experiência nacional cubana, especialmente no que se refere à realidade que aí se observa desde a década de 1990. Costuma-se dizer que um país é soberano no campo monetário quando seu banco central emite moeda nacional própria, ou seja, quando dentro de seu território circulam meios de pagamento que ele mesmo colocou em circulação. Para a maior parte dos países do mundo, essa soberania também se faz acompanhar de outro instrumento conhecido como curso forçado, isto é, a obrigatoriedade do uso exclusivo da moeda nacional para todos os fins legais, como, por exemplo, o pagamento dos compromissos estabelecidos em contrato e o acesso ao sistema bancário — contas correntes, aplicações financeiras, transferências de valores. Além de emitir a moeda nacional oficial, os bancos centrais acabaram historicamente assumindo a função de financiar os governos nacionais a que servem ou integram; adicionalmente, assumiram a função de fiscalizar, regular e garantir a estabilidade do sistema de bancos comerciais. Dada a existência do curso forçado, a única instituição autorizada a manter a posse de outras moedas que não aquela 153
oficial do país é o próprio banco central. Por esse motivo, ele é também conhecido como o depositário das reservas internacionais, o responsável pelo estoque localmente disponível de moeda estrangeira. Justamente por ser o emissor da moeda nacional e também o depositário das reservas internacionais é que o banco central assume a tarefa de indicar qual seria a taxa de troca entre a moeda local e as estrangeiras. Essa taxa de troca, também entendida como o preço da moeda estrangeira medido em unidades monetárias nacionais, é exatamente a taxa de câmbio. Esse assunto ganha particular importância quando se lembra que, para a imensa maioria das nações, as moedas de circulação local — isto é, aquelas emitidas e usadas dentro de seus territórios — não são aceitas no âmbito internacional, por exemplo, para pagar pelos produtos importados ou pela sua dívida externa. De fato, bem poucas moedas são efetivamente aceitas para a circulação internacional. Por motivos históricos, tanto econômicos quanto geopolíticos, a moeda emitida pelo Banco Central dos Estados Unidos, o dólar, é aquela com maior aceitação nos mercados de comércio e finanças mundiais, o que faz com que os demais países precisem dessa moeda nacional específica para poder pagar suas obrigações externas. Logo, o quanto cada país possui, a cada momento, dessa moeda será de enorme importância para garantir à sua população o acesso a todos os recursos materiais não disponíveis internamente. A escassez desse meio de pagamento internacional é, portanto, um problema potencial que permanentemente ameaça diferentes nações e, em especial, aquelas com limitado grau de desenvolvimento de sua estrutura produtiva interna, como no caso dos países da América Latina, marcados pelo subdesenvolvimento econômico. Países mais dependentes de recursos vindos do exterior — sejam eles bens industrializados, tecnologia ou recursos naturais — se encontram frequentemente endividados em 154
dólar e, por isso, enfrentam situações de crise de balanço de pagamentos, o que equivale a dificuldades para arcar com suas contas externas. Para contornar esse tipo de situação, os bancos centrais muitas vezes buscam aumentar o preço local da moeda estrangeira (desvalorização cambial), de modo a desestimular importações e estimular exportações; outro recurso corresponde ao controle mais rígido sobre a entrada e saída de capitais financeiros no país. Circunstâncias de crise desse tipo também podem envolver o desenvolvimento de um mercado ilegal (“paralelo”) de moeda estrangeira, isto é, um circuito de compra e venda de moeda e de produtos estrangeiros sem a autorização do banco central e das demais autoridades do país. Isso significa que pessoas e instituições que tenham acesso a essa moeda estrangeira vão eventualmente preferir usá-la no lugar da moeda nacional, seja porque perderam a confiança no valor da mesma, seja porque os preços em moeda local estão aumentando mais rapidamente. Com efeito, é possível que se crie uma profunda desigualdade de poder aquisitivo entre aquelas pessoas que só dispõem de moeda nacional e aquelas que, por vias legais ou ilegais, conseguem acessar moeda estrangeira; ao mesmo tempo, o banco central vai perdendo a capacidade de controle sobre a economia, já que a moeda que emite é cada vez menos aceita em seu próprio país. Há quem chame esse processo de “dolarização parcial não institucionalizada”, como o faz Carlos Pérez Soto, especialista da área de Estudos Econômicos e Financeiros do Banco Central de Cuba. Desde sua revolução socialista, a economia nacional cubana conseguiu contornar as restrições externas típicas do subdesenvolvimento econômico através da cooperação interna ao bloco de países alinhados em torno da União Soviética. Com efeito, essa relação envolvia o fornecimento subsidiado de maquinário, alimentos, petróleo e outros insumos de que o país não dispunha internamente; além disso, o endividamento ex155
terno cubano jamais fora um problema efetivo, já que o seu financiamento não dependia do acesso a dólares no mercado internacional, ficando também restrito ao interior do bloco de cooperação econômica, em condições bastante favoráveis. Com a dissolução do bloco soviético, essas condições externas foram rápida e intensamente revertidas: não apenas foram interrompidos os vitais fluxos de fornecimento de produtos importados, como se passou a exigir o pagamento da dívida externa acumulada até aquele momento. Apenas entre 1989 e 1993, o pib da ilha apresentou uma queda de 35%, ao passo que as importações foram reduzidas em 75%. Em um primeiro momento, o Banco Central de Cuba tentou cooperar com o governo do país para proteger o nível de vida da população, colocando recursos à disposição do governo para pagar as despesas, especialmente na área social. No entanto, financiar os gastos do governo apenas com a emissão de moeda, em um ambiente de grande escassez de produtos, levou a um forte aumento no nível geral de preços do país — ou seja, inflação. Evidentemente, estava em risco a própria sobrevivência da experiência socialista do povo cubano: o empobrecimento do conjunto da economia nacional fez aumentar as pressões que, tipicamente, deslocam as demandas sociais para os mercados ilegais, movimentados principalmente com moeda estrangeira. Dessa forma, um desfecho provável para essa gravíssima situação seria semelhante àquele observado em outros países que até aquele momento também tinham economias planificadas, como no caso do Leste Europeu. Seria de se esperar, ao menos, uma forte expansão da dolarização não ilegal, com todos os seus efeitos desagregadores. No entanto, o governo e o Banco Central de Cuba adotaram uma saída bastante criativa. Foi criado um sistema onde há circulação simultânea de duas moedas nacionais oficiais. A partir de 1994, passou a circular ao lado da antiga moeda nacional — o tradicional 156
peso cubano, ou cup — uma nova moeda emitida pelo Banco Central de Cuba, o chamado peso conversível, ou cuc, cujo poder de compra seria equivalente ao do dólar estadunidense. A ideia de base era autorizar formalmente o ingresso de moeda estrangeira por parte de pessoas físicas e jurídicas no território nacional cubano (até então, uma exclusividade do banco central), mas sem abrir mão completamente do controle estatal sobre o uso das escassas reservas cambiais disponíveis. Permitia-se que as pessoas que pudessem trazer dólares ao país continuassem legalmente donas do poder de compra equivalente ao de um dólar — mas sem o dólar em si, que seria trocado por uma unidade de cuc. O banco central (e, para fins práticos, o governo de Cuba) usaria, então, esses dólares para adquirir no mercado internacional os gêneros de primeira necessidade para o conjunto da população. Carlos Pérez Soto chamou esse sistema de “dolarização parcial institucionalizada”: não se permitiu completamente a troca da moeda nacional pela estrangeira (daí o caráter parcial da dolarização), e, ao mesmo tempo, evitou-se a instauração de uma dolarização à margem do controle das autoridades monetárias (daí o caráter institucionalizado do processo). Por um lado, estimulava-se a entrada de dólares em um país atingido por uma profunda crise externa; por outro, procurava-se fazer com que esses dólares pudessem ser usados para o atendimento das necessidades sociais coletivas, e não apenas das pessoas que conseguissem ter acesso à moeda estrangeira. O estímulo à entrada de dólares deu-se especialmente em relação às transferências entre familiares (de residentes no exterior para residentes locais) e, depois, em relação à presença de turistas. Posteriormente, foram introduzidas gradualmente várias medidas de flexibilização das estruturas de propriedade, viabilizando a existência de pequenos negócios privados (especialmente no setor de serviços de alimentação, turismo e transporte), cooperativas (agrícolas ou não) e a presença do ca157
pital externo. Essas pessoas jurídicas também poderiam, portanto, operar legalmente com moeda estrangeira, dentro do novo sistema dual (com duas moedas cubanas em circulação). Embora se possa dizer que a criativa solução adotada tenha preservado certa capacidade do governo para garantir os serviços públicos de proteção social — sobretudo, os serviços de saúde, educação, previdência e assistência social, oferecidos universalmente pelo Estado —, é bastante certo que algum grau de desigualdade foi introduzido em meio à população cubana. Afinal, o poder de compra da moeda estrangeira, mesmo quando convertido em cuc, segue sendo muito superior ao da moeda nacional, o cup. Portanto, aqueles que não têm acesso às divisas acabam tendo acesso a um menor volume de bens e serviços. Sobre esse aspecto, convém apresentar três observações importantes. Primeiro, é preciso ter em mente que as políticas sociais e a política econômica em Cuba sempre se pautaram pelo objetivo principal da geração de igualdade entre os indivíduos. Portanto, além de manter a estrutura de oferta universal de serviços de proteção às cidadãs e aos cidadãos, novos instrumentos compensatórios de política social estão sendo elaborados e implantados, tendo em vista o aumento recente da desigualdade. Segundo, ao não abrir mão de sua soberania no campo monetário, o Banco Central de Cuba conseguiu manter a capacidade de financiar o governo do país e suas políticas sociais. Conseguiu, ao mesmo tempo, manter a capacidade de promover ajustes nas taxas de câmbio (em cup e em cuc) — e, portanto, nos valores relativos aos produtos importados e exportados. Isso significa que o governo nacional tem à sua disposição ferramentas que lhe permitem, mesmo que minimamente, proteger o sistema econômico da ilha. Terceiro, é objetivo declarado do governo cubano fazer, em algum momento, a reunificação das moedas nacionais, re158
vertendo o atual sistema monetário dual ao que antes existia no país, isto é, mantendo apenas o peso cubano em circulação. No entanto, para que isso seja efetivamente possível, seria necessário antes garantir que a escassez de moeda estrangeira — e, consequentemente, a capacidade de lidar com as contas externas — não seja tão grave, para que não se promova nem um grande e rápido empobrecimento das pessoas e instituições que têm volumes de cuc (especialmente porque boa parte da produção local depende daquelas), nem um estímulo ao surgimento de um mercado ilegal de moeda estrangeira. Atingir essas condições envolveria, portanto, crescimento da produção interna e da autonomia da ilha com respeito ao exterior — um movimento de superação das dificuldades típicas do subdesenvolvimento econômico. A esse fim se dedicam as cubanas e os cubanos hoje; até aqui, sem abrir mão de sua experiência nacional de construção socialista.
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15 OS CUBANOS SÃO POBRES? KEISE NAYARA FERNANDES KLAUS HERMANN HERINGER
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Até 1959, Cuba possuía uma grande dependência econômica dos Estados Unidos e uma elite política avessa à autodeterminação, ligada aos interesses estadunidenses. A vitória da revolução, com a proclamação da independência de facto da ilha, quebrou e construiu diversos paradigmas na sociedade cubana, dentre eles, o padrão de riqueza. Na formação histórica do país, a existência desse padrão estava ligada obrigatoriamente aos privilégios das classes associadas às atividades exportadoras, como cana-de-açúcar ou tabaco, que eram até então defendidas pelos regimes políticos que passavam pelo poder. Esse modelo econômico assumia obrigatoriamente a superexploração do trabalho e a péssima qualidade de vida de grande parte da população, marcando uma enorme desigualdade social e econômica — cuja superação, por sua vez, deu base para o apoio popular à revolução. A ruptura com esse passado, proposta pela revolução, foi no sentido de que era possível acabar com a exploração econômica e criar uma sociedade igualitária por meio, por um lado, da desconcentração da riqueza gerada pelas mesmas atividades econômicas que reforçaram a dependência e, por outro, buscando novos meios de superá-las. A partir desse momento, começou a se construir em Cuba diversos instrumentos que colocaram a maior parte da população explorada e miserável em primeiro lugar, numa escala de prioridades econômicas. Esses instrumentos garantiram saúde, educação, moradia e alimentação, itens de acesso para poucos antes da 163
revolução. Os direitos sociais passaram a ser conquistas pétreas, que contribuíram para a erradicação do analfabetismo, que atingia em torno de 75% da população, e da miséria, que afetava em torno de um quarto de todos os cubanos, entre outras heranças do período pré-revolucionário. Para entender o conceito de pobreza em Cuba, hoje, é necessário considerar esses ideários e conquistas, que apontam para a desconstrução de uma visão consumista e individualista difundidas no capitalismo, dentro da proposta revolucionária de construção de um “homem novo”. O conceito de pobreza, assim como diversos outros, tem um significado diferente em Cuba. Era perceptível a hesitação quando perguntávamos para as pessoas nas praças públicas sobre a pobreza em Cuba. Os entrevistados pediam para explicarmos os critérios que definiam a situação de pobreza para nós, para então analisarem se a realidade cubana se encaixava em nossa concepção. Ou seja, era preciso que definíssemos nosso conceito de pobreza para só então fazerem a comparação. Tinham a necessidade de referenciar os seus parâmetros de definição, pois a exclusividade do caso cubano reside justamente na opção pela igualdade social em uma economia subdesenvolvida. Isso dificulta, naturalmente, a comparação com os nossos parâmetros, pois ambos existem em realidades completamente diferentes. O que, no entanto, não impede algum nível de comparação. Ao analisar onde é possível encaixar a dificuldade de acesso à moradia digna e à alimentação, no nível individual, diziam que não havia pobreza na ilha. “Isso quer dizer que ninguém passa fome em Cuba?”, insistíamos na pergunta aos entrevistados. Carlos, um cuentapropista do município de Marianao, explicou que, se alguém passa por dificuldade, os vizinhos ajudam. Essa concepção solidária constitui um valor arraigado no povo cubano. Ernesto Limia, historiador cubano, afirmava acerca deste tema: “As pessoas acreditam em uma 164
economia solidária, comunitária”. A fraca imagem que se tem do individualismo, apontando para um novo homem revolucionário, é uma característica fundamental para entender a realidade cubana e o grau de importância das atuais mudanças econômicas, consequência direta de uma sociedade mais igualitária, que se construiu ao longo desses anos. A partir de um olhar externo ao país, as pessoas acreditam que, sim, Cuba é um país pobre. Sob as lentes do capitalismo, é acusada pelo restrito acesso à tecnologia e a bens de consumo, inerentes ao seu subdesenvolvimento econômico, dependente de exportação de produtos primários e importação de produtos primários, industrializados e de tecnologia, agravado pelo bloqueio. Realmente, não se “esbanja” comida, tampouco outros bens de fácil acesso em economias capitalistas, como roupas ou itens de higiene. Mas, por outro lado, há a garantia dos direitos humanos e não há fome ou restrição total de bens essenciais. Segundo o sociólogo cubano Ernesto Domínguez, se pode dizer que a pobreza em Cuba não é “completa”, é mínima. Esse status certamente é inerente à condição econômica cubana: o compromisso fundamental da revolução era ter uma economia distribuída e igualitária para todos, independentemente de sua condição subdesenvolvida, procurando e construindo espaços dentro da margem de manobra disponível de cada época. Isso se observa tanto no período de mais pujança — na década de 1980, enquanto participante do Comecon, em que se brincava de guerra de comida nas ruas — quanto na década de 1990, de intensificação do bloqueio estadunidense no chamado “período especial”, em que se batiam cascas de bananas para comer. Em ambos os períodos, os cubanos viveram coletivamente experiências tanto de abundância quanto de fome, com mínima discriminação econômica ou privilégio. Por isso, as atuais mudanças econômicas vividas por Cuba, provocadas sobretudo pelo cuentapropismo, 165
são intensamente debatidas e polarizadas, pois estão à luz desse passado. Nesse sentido, o pobre cubano é diferente. Ao mesmo tempo que ele não tem acesso a bens de consumos considerados essenciais para o cotidiano do capitalismo, como um celular ou internet, possui direitos essenciais para uma boa qualidade de vida, como educação e saúde de ótima qualidade. Além disso, deve-se ter em mente que esse tipo de pobreza é ímpar, pois não é acompanhada de violência e desamparo, como em diversas realidades subdesenvolvidas da América Latina. Os cubanos reconhecem seu país como único em todo o mundo. Mesmo aqueles que almejam uma vida nos Estados Unidos têm consciência de que muitas vezes é preciso trabalhar muito em outro país para ter o que é gratuito e fundamental em Cuba. Ao mesmo tempo, o imaginário de consumir bens de forma abastada ronda a mente dos cubanos, principalmente dos jovens, que nos diziam que gostariam de sair do país, trabalhar, juntar dinheiro e voltar para viver em Cuba até morrer. De fato, em Cuba há limites para esse tipo de consumo capitalista: o salário público em torno de vinte dólares por mês não dá margens para isso. São vinte dólares que, na realidade da ilha, dão margem ao consumo fundamental e mínimo da família, pois valem muito dentro da economia cubana, complementado pela libreta, que fornece alimentos a preços subsidiados. Porém, essa renda tem gargalos em necessidades extraordinárias ou emergenciais, como remédios que nem sempre são garantidos pelo Estado. Sete dólares por hora de salário mínimo nos Estados Unidos, comparados aos vinte dólares mensais cubanos, se tornam tentadores para aqueles que gostariam de mudar de vida e sair do mínimo que se pode comprar em Cuba. Por outro lado, em poucos lugares no mundo se pode ter um tratamento de câncer gratuito e de qualidade como se tem na ilha. Em outros países, principalmente nos Estados 166
Unidos, isso custaria milhares de dólares. O custo dessa mudança de vida é bem definido, e os cubanos o reconhecem: a balança está entre ser “pobre” em uma sociedade igualitária, com direitos sociais garantidos, ou tentar ser “rico” na desigualdade e no desamparo. Cuba hoje vive o dilema de querer melhorar as condições de vida da população e lidar com uma economia fragilizada e estrangulada; de construir o socialismo nas cicatrizes soviéticas e nas condições de dependência econômica estrutural do capitalismo, que se mostraram ao longo de sua história difíceis de serem superadas, abrindo espaço para fenômenos como o cuentapropismo. Como esse dilema se resolverá e o que será do “pobre cubano”, essas são dúvidas trazidas à tona pelo atual processo de transição. Se os parâmetros e conceitos de cada lado do problema estão claros para todos, sua resolução é o que ansiamos saber.
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16 OS DIREITOS SOCIAIS CUBANOS ESTÃO EM RISCO? LETÍCIA RIZZOTTI LIMA MARCELO SOARES DE CARVALHO
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O que de fato caracteriza o Estado cubano é o compromisso de manutenção e ampliação dos direitos sociais consolidados pela revolução. Essa poderia ser uma afirmação de discurso, ou marcada pelo plano das ideias, mas o histórico das escolhas estatais comprova essa opção com dados internacionalmente reconhecidos. Ainda nos anos 1960, o país foi o primeiro da América Latina a erradicar o analfabetismo; construiu um portfólio de medicina de família e desenvolvimento de tecnologia de saúde que serve como referencial para o resto do planeta; deu conta do déficit habitacional sanando a relação exploratória de aluguéis. E esse não foi apenas um impulso a toque de caixa no auge do processo revolucionário. Dados condensados em publicação do Banco Central cubano, em 2002, mostram que os índices de investimento do pib em saúde e educação combinados permaneceram na casa dos 15% na ilha, mesmo no chamado “período especial”. Durante essa época — quando a queda de arrecadação em si era de quase 40% e o embargo estadunidense se recrudescia —, a dificuldade material do Estado era tanta, sobre qualquer aspecto de manutenção da vida social, que até a alimentação do povo foi prejudicada. Com a impossibilidade de consumir proteína suficiente, houve um surto de catarata; ainda assim, as relações habitantes/médicos e estudantes/professores continuaram a melhorar em níveis não conhecidos no continente. Outros indicadores sociais, como a taxa de mortalidade infantil, esperança de vida ao nascer e matriculados por faixa etária também mostraram, surpreendentemente, uma melhora durante os anos de maiores dificuldades materiais. 171
Percebe-se aqui a escolha política de não abrir mão dos valores que estavam no cerne da revolução, em uma época em que a pressão liberalizante se intensificou e o suporte soviético havia se esfacelado. A resiliência do sistema de proteção social só pôde ser mantida pela formação prévia de profissionais e estruturas que foram construídas nas décadas anteriores. Até hoje, este ponto não é negociável pela sociedade cubana: não há elementos substantivos que indiquem o comprometimento desse arcabouço, mesmo com as novas mudanças econômicas em vista. Uma vez que o direito à proteção social não é condicionado pela posição do indivíduo no mercado de trabalho, mas sim pela sua condição de cidadão, a ampliação do cuentapropismo e suas consequências ainda desconhecidas sobre relações de trabalho não parecem ameaçar as garantias consolidadas. Sem dúvida, a aprovação do novo marco legal sobre as relações de trabalho pode representar uma ameaça à proteção social tradicionalmente oferecida aos cubanos, mas, mesmo assim, apenas para uma parte dos trabalhadores do país, já que o Estado segue sendo o maior empregador formal. Alguns pesquisadores procuram sinalizar a necessidade de atualização da estrutura de proteção social de Cuba. Não se trataria, porém, de abrir mão do acesso universal a saúde, educação e assistência social. A ideia seria introduzir mecanismos de ação focados em segmentos sociais que se mostrem particularmente vulneráveis, dada as novas regulamentações econômicas que, embora tragam maior produção de riqueza, trazem também maior grau de desigualdade social. Dessa forma, seria possível seguir priorizando a defesa da igualdade como pilar da revolução. Apesar da dificuldade estrutural, os indicadores sociais da ilha computados pela onu se assemelham aos países que têm, no sistema capitalista, o que chamamos de “Estado de bem-estar social”. É importante notar que as estruturas de proteção 172
social típicas do Welfare State são viáveis em países capitalistas conhecidos por seus altos níveis de renda. Cuba, por sua vez, consegue manter uma estrutura de políticas públicas com alto impacto mesmo sendo um país subdesenvolvido, e, portanto, com nível de renda comparativamente baixo. A garantia de serviços fundamentais, providos pelo Estado para toda a população, é notadamente o que diferencia Cuba. Embora seja difícil prever em que medida as mudanças pelas quais vem passando a economia nacional cubana serão um fator de instabilidade para esse formato de políticas de proteção social, é importante destacar que está prevista, para muito breve, uma mudança constitucional no país. Há, portanto, potenciais transformações institucionais à vista. Se elas serão voltadas a incorporar novos elementos de promoção da igualdade, ou se, ao contrário, serão fatores de sanção das desigualdades típicas do setor privado, saberemos em breve.
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17 QUAIS OS LIMITES E AS POTENCIALIDADES DA EDUCAÇÃO EM CUBA? PATRICIA SPOSITO MECHI
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Quando se discute a Revolução Cubana, uma das características mais ressaltadas é a qualidade do seu sistema educativo. Ao lado da medicina de ponta e universalizada, a educação é um dos setores que nem mesmo os mais virulentos detratores da revolução encontram argumentos reais para atacar. No período entre 2000 e 2015, Cuba foi o único país latino-americano a cumprir plenamente os objetivos fixados pela Unesco no âmbito do Programa “Educação para todos”, que incluíam expansão e melhoria da educação e cuidados na primeira infância, universalização da educação primária e alfabetização de adultos, entre outros objetivos. Para entender o sucesso da educação cubana — mas também suas dificuldades — é preciso dimensioná-la numa perspectiva histórica. Desde o período colonial, intelectuais e militantes anti-imperialistas denunciavam os altos índices de analfabetismo em Cuba e a existência de uma educação superior voltada apenas ao atendimento das elites locais. Em sua famosa defesa “A história me absolverá”, Fidel Castro elencava seis pontos que o Movimento 26 de Julho buscava solucionar: terra, industrialização, habitação, desemprego, saúde e educação. No balanço que fazia da situação do país sob a ditadura de Fulgencio Batista, relacionava a questão da terra e da produção ao problema educacional, e afirmava: “Nosso sistema de ensino combina perfeitamente com toda a situação descrita. Num campo onde o camponês não é o dono da terra, para que se querem escolas agrícolas? Numa cidade onde não há indústrias, para que se querem escolas técnicas e industriais? 175
Tudo está dentro da mesma lógica absurda: não se tem nem uma coisa, nem outra.” De acordo com dados do censo cubano de 1953, das crianças com idade entre 6 e 14 anos, 44,4% estavam fora da escola; já a porcentagem de analfabetos era de 23,6% da população, 11% nas zonas urbanas e 41,7% nas zonas rurais — e estimava-se que chegasse à 90% nas regiões montanhosas. Talvez o analfabetismo fosse sentido em Cuba de forma mais intensa do que em outras regiões da América Latina, mas não fugia de um padrão generalizado no subcontinente, em que o peso do passado colonial e de uma economia baseada na monocultura para exportação não produziam uma sociedade em que as massas populares gozassem de acesso a bens sociais e culturais mínimos. Além disso, como apontou Fidel Castro, não havia necessidade de escolarização num regime neocolonial como o cubano. Nesse quadro, fica claro por que a erradicação do analfabetismo em Cuba estava entre as primeiras tarefas de grande porte assumidas pela revolução de 1959. Esse objetivo foi logrado em fins de 1961, após uma intensa jornada que, simultaneamente, formava pessoas alfabetizadas e novos mestres — que adquiriram um elevado status social em meio à revolução e se tornaram responsáveis pelo desenvolvimento de novas práticas pedagógicas. Um dos grandes desafios era erradicar o analfabetismo e construir a nova educação — dirigida para a liberdade e a formação integral do cidadão cubano, em meio às reminiscências do período anterior, em que a escolarização estava voltada apenas para o atendimento das necessidades educativas das classes dominantes, e era extremamente limitada no que se refere ao atendimento das demandas populares. Em outubro de 1960, em discurso na onu, Fidel Castro colocou como meta para a revolução a erradicação do analfabetismo em um ano, deflagrando uma grande campanha de al176
fabetização. Essa campanha foi precedida de diversos esforços de alfabetização realizados entre 1959 e 1960, que incluíram várias instituições, como o Exército Rebelde (que alfabetizava os camponeses mas também os próprios combatentes), o Instituto Nacional de Reforma Agrária e até mesmo o Conselho de Igrejas Evangélicas de Cuba. O resultado foi a alfabetização de cem mil pessoas. Em 1961, a Grande Campanha de Alfabetização, organizada a partir da avaliação das experiências anteriores, apontava para novos sentidos da prática educativa, em que a educação era concebida como um dos mais potentes instrumentos de libertação popular e de construção da nova sociedade. Já nesse período, é possível inferir que era clara a concepção de que a educação de massas não é, em si, emancipadora ou revolucionária, pois ela sempre está em consonância e atende às necessidades do sistema social no qual se insere. A alfabetização de determinados segmentos de trabalhadores, por exemplo, é importante em determinadas ocupações no mundo capitalista, e fundamental para a dominação de classe. Na Cuba revolucionária, os sentidos ideológico e prático das tarefas educativas determinavam ser necessário ir além da aquisição dos instrumentos de leitura e escrita; tratava-se também de ler e escrever o mundo, ou seja, compreender a realidade em que se inseria o povo cubano e desenvolver condições de intervenção sobre essa realidade, uma abordagem que também está presente no pensamento de Paulo Freire, uma das referências futuras e inspiração para os educadores cubanos nas décadas seguintes. Para essa leitura e escrita do mundo, um caminho encontrado pelos educadores cubanos — que é utilizado até hoje — foi o estudo dos discursos dos dirigentes da revolução, em especial de Fidel Castro. Importa aqui fazer uma breve consideração sobre essa abordagem. São abundantes nos discursos de Fidel Castro referências — e mesmo a atribuição da origem de 177
muitas das ideias levadas a cabo pela Revolução Cubana — ao líder da independência, José Martí. Da mesma forma, também não é desprezível a presença das reflexões de Che Guevara e de outros revolucionários cubanos. Apesar de uma personalização forte na figura de Fidel, seus discursos adquirem um sentido coletivo, ao expressarem as demandas e resoluções do povo cubano, amalgamadas com uma tradição cultural que tem seus alicerces principalmente no pensamento de José Martí. Os discursos políticos como instrumento pedagógico estabelecem um sentido de permanente apropriação da revolução pelas novas gerações — sem descartar as novas demandas que a juventude apresenta — de forma a incentivar uma permanente reflexão popular sobre os caminhos do processo. Entretanto, essa prática não é isenta de riscos, já que o debate atual sobre educação na ilha aponta para uma educação por vezes acrítica, mecânica, cujos princípios e métodos contribuem para um engessamento do pensamento crítico e para a dificuldade em fazer críticas aos caminhos atuais da revolução, em que os discursos dos revolucionários da Sierra Maestra se cristalizam como verdades absolutas. Aqui é importante frisar que não se trata de dificuldades de fazer críticas pela existência de censura ou perseguição, mas pelo modo como se desenvolve a pedagogia cubana — muitas vezes, tendo como referências os modelos de educação capitalista —, centrada na reprodução e memorização de conteúdos, não favorecendo o desenvolvimento do pensamento crítico. Por outro lado, existem experiências interessantes na apropriação que o povo cubano faz da revolução. Em dezembro de 2016, um grupo de pesquisadores brasileiros que visitou Cuba pôde presenciar uma experiência de trabalho num projeto social que atendia crianças de diversas idades, oriundas de famílias que enfrentavam problemas como abuso de álcool e violência doméstica. Para receber o grupo, as crianças prepararam pequenos textos que versavam sobre os seus direitos. 178
Nesses textos, falava-se em direito à alimentação, dignidade, saúde, educação, mas também em direito à felicidade, à brincadeira, ao cuidado e ao conforto. Por mais que os pesquisadores presentes estivessem atentos à necessidade de não olhar e julgar as experiências cubanas a partir de paradigmas externos a elas, ou seja, os paradigmas de uma sociedade capitalista, isso era inevitável e havia uma certa desconfiança sobre tudo o que se via. À primeira vista, as leituras de textos sobre os direitos das crianças pareciam muito com as leituras mecânicas a que nos acostumamos nas escolas brasileiras, onde há muito de repetição e pouco de reflexão, principalmente entre as camadas populares. No entanto, uma observação mais atenta permitia perceber que aquelas crianças, enquanto liam seus textos para o grupo, erraram, recomeçaram, riram dos seus próprios erros, colaboraram entre si e em nenhum momento foram repreendidas pelos educadores presentes. O costumeiro “shhh” não foi ouvido. Não havia uma atmosfera de medo e punição: ao contrário, havia solidariedade e tranquilidade, e isso leva a pensar sobre a apropriação daqueles conteúdos. As crianças não estavam limitadas ao sentido teórico ou potencial dos direitos que leram, elas também os praticavam em seu cotidiano: estavam sendo educadas, acolhidas, tratadas com dignidade e apropriando-se profundamente daqueles que eram seus direitos. Outro fato a ser destacado é a trajetória de Esteban Morales Domínguez, professor da Universidade de Havana, que discutiu com nosso grupo acerca da questão racial em Cuba. Em sua palestra, ele afirmou que, logo após a revolução, foi para o campo, ainda muito jovem, trabalhar como voluntário nas campanhas de alfabetização. Foi nessas campanhas, em que a educação emergia como um instrumento revolucionário de emancipação popular, que ele se tornou definitivamente professor. Ao mesmo tempo que ensinava os camponeses a ler e escrever, aprendia a ser educador numa sociedade em pro179
funda transformação. Sua trajetória pode ser entendida como uma alegoria do sentido da educação cubana: é na atividade prática de educar para colaborar com a emancipação popular que o educador emancipa a si mesmo, ou seja, a emancipação só ocorre em seu sentido pleno se for coletiva. Como Esteban Morales Domínguez, outros educadores cubanos, alicerçados na ideologia da revolução, puderam dar saltos qualitativos e hoje possuem instrumentos para modificar, reformar, questionar e superar elementos desenvolvidos pelo próprio processo revolucionário, num sentido de aprofundar e ampliar a revolução. A solidez desses fundamentos ideológicos permite que temas como igualdade de gênero, direitos dos lgbt ou questões raciais sejam objeto de debate, de críticas e de novos direcionamentos para a revolução. Esteban Morales discute, em particular, a questão racial em Cuba, não hesitando em apontar o quão profundo e arraigado é o racismo no país, mas colocando-o em perspectiva histórica de longa duração, demonstrando sua presença na sociedade socialista cubana como um dos elementos legados pelo colonialismo à atualidade, e que ainda não pôde ser superado. Um aspecto que chama a atenção ao conversar com as pessoas em Cuba é verificar que muitas delas possuem ensino superior, apesar de alguns não encontrarem facilmente trabalho em sua área de formação, ou abandonarem a carreira para se dedicar a atividades mais lucrativas, como o trabalho nos paladares (pequenos restaurantes particulares cubanos, onde é admitido o chamado trabalho por “conta própria”) e atividades vinculadas ao turismo. O sistema de ensino superior cubano passou por uma grande reformulação com a Reforma Universitária de 1962. Antes da revolução, atendia apenas quinze mil pessoas, de uma população de 5,5 milhões, voltada, como já dissemos, à formação das famílias abastadas ligadas à produção açucareira. A re180
forma se deu num contexto em que era necessário qualificar a mão de obra, mas também era necessário criar o “homem novo”, tal como afirmara Che Guevara. Foi o início de um processo que culminaria com a oferta de ensino superior, gratuito e de qualidade para todos os cubanos. A educação é concebida como parte do processo revolucionário que busca dar conta da construção do “homem novo”, homem este que é anti-imperialista e luta por uma nação soberana do ponto de vista econômico e ideológico, é generoso e procura difundir valores anticapitalistas, e busca em suma realizar as plenas capacidades humanas. Dimensionar historicamente a educação cubana permite que vislumbremos a profundidade e importância das modificações que ocorreram nessa esfera da vida na ilha. Passou-se de uma situação em que existiam altos índices de analfabetismo para uma sociedade plenamente alfabetizada; democratizou-se a prática educativa, já que se alargou o número de pessoas que poderiam se dedicar a essa tarefa; e lançaram-se as bases de uma educação para a formação humana no socialismo. Atualmente, Cuba enfrenta importantes desafios econômicos, e tem encontrado saídas criativas para minimizar os impactos do bloqueio imposto pelos Estados Unidos. Uma das medidas para aumentar as receitas do Estado cubano é a formação de médicos altamente qualificados para atuar em áreas com carências desses profissionais, com uma prática marcada pela solidariedade: sempre há brigadas de médicos cubanos a postos para atender vítimas de tragédias naturais ou sociais pelo mundo. O Brasil é parceiro de Cuba num programa do governo federal que recebeu o nome de Mais Médicos. O sucesso desse programa tem fomentado um debate acerca da exportação de profissionais de outras áreas, tais como tecnologia de informação. Dessa forma, o grande potencial do sistema educativo cubano, que não tem correspondido às necessidades de produção na ilha, pode ser uma 181
importe fonte de incremento das divisas do país, ao possibilitar a “exportação de cérebros”. Como já indicamos, a educação cubana não está isenta de contradições. Não é possível imaginar que séculos de escravidão e de regime colonial e neocolonial não impactem de maneira profunda toda a vida social da ilha. Da mesma maneira, os limites impostos pela forma atual de desenvolvimento do capitalismo — com a dissolução da União Soviética, o fim do mundo socialista na virada dos anos de 1990, o recrudescimento do bloqueio à Cuba desde a promulgação da Lei Helms-Burton, e a atual e generalizada crise do capitalismo — atingem profundamente todas as esferas da vida no país. A combinação de bloqueio econômico, ataques generalizados ao socialismo cubano, desferidos pela grande mídia ocidental, e as diversas e conhecidas sabotagens (por exemplo, o envio de dinheiro do exterior para financiar a contrarrevolução) implicam impactos sobre a educação cubana, que precisa garantir a revolução e, na avaliação dos governantes, responder ao mundo capitalista buscando superioridade. Sob esses ataques constantes, o espaço escolar se torna também local dessa disputa, e modificações nas práticas pedagógicas são vistas como temerárias, já que podem abrir caminho ao fortalecimento da contrarrevolução. Por outro lado, assumindo compromissos e “disputando” posições nos rankings educacionais capitalistas, as mesmas práticas mecanicistas e acríticas podem ocorrer, na medida em que um dos objetivos da educação é apresentar a superioridade da educação cubana, a partir de critérios que são externos a ela, já que a busca de excelência se desenvolve nos termos definidos pelo capitalismo. A sociedade cubana, portanto, passa atualmente por intensos debates sobre os rumos da revolução. Existem aqueles que apontam que a saída para a crise é o fortalecimento do Estado, enquanto outros apontam para a necessidade de uma 182
abertura capitalista. Há ainda aqueles que apostam no desenvolvimento de cooperativas e na autogestão dos trabalhadores. Essa disputa também está presente na escola, e implica formar o povo cubano a partir de valores que sustentam cada um desses modelos, que apresentam diferenças substantivas. Não é incorreto inferir que a defesa do cuentapropismo significa, no âmbito escolar, um incentivo à meritocracia e ao individualismo, valores que são perceptíveis ao conversar com jovens cubanos nas ruas. Por outro lado, também estão presentes argumentos de defesa do Estado e da revolução, embora se aponte a necessidade de mudanças. Um dos discursos mais intrigantes vindos de jovens cubanos é aquele que indica a superioridade do Estado na educação — para o qual corroboram organismos como a Unesco —, resultando em uma formação oferecida pelo Estado que garantiria a este jovem cubano, numa economia capitalista, vantagens no mercado, seja como empreendedor, seja como empregado. Esse paradoxo é expressivo do alcance e dos limites de uma revolução na periferia, cercada de capitalismo por todos os lados: a educação superior de qualidade se universalizou, mas a realização profissional desses jovens está limitada pela acanhada base produtiva da revolução, e pelo seu isolamento internacional. Alguns acreditam que, com a abertura ao capitalismo, o alto nível de formação do povo cubano levará os trabalhadores aos melhores postos, como se houvesse uma correspondência necessária entre condições de trabalho e níveis de escolaridade. Como se vê, se a escola cubana forma crianças que se apropriam da revolução e dos seus direitos, forma também pessoas com dificuldades de interpretar as potencialidades da ilha numa eventual abertura capitalista. Neste aspecto, embora a educação cubana desenvolva formação de alto nível, em particular no ensino superior, tal conquista não significa imunidade frente ao avanço da ideologia capitalista e dos valores 183
do liberalismo, que penetram das mais diversas maneiras na sociedade cubana, cuja revolução possui limites — decorrentes de seu isolacionismo e dos constantes ataques, diretos ou difusos, ao socialismo — a serem combatidos. A educação cubana no ensino básico e superior passou por muitas transformações ao longo das quase seis décadas que separam a revolução de 1959 dos dias atuais. Como dissemos, existem contradições e disputas no interior do sistema educativo cubano. Há educadores que apontam a necessidade de combater o conservadorismo no interior das escolas, que, como mencionamos, podem levar a um engessamento de algumas práticas e conteúdos pedagógicos. O desafio foi sintetizado por educadores populares que atuam no Centro Martin Luther King, em Cuba, que, em suas conversas com o grupo de pesquisadores brasileiros, pontuaram a necessidade de dinamizar e democratizar algumas estruturas decisórias que impactam o cotidiano escolar, além de frisarem a importância da ampliação de debates em torno de questões de gênero, raça e ecologia, sem, contudo, perder de vista as ideias de unidade do povo cubano e defesa da revolução.
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18 CUBA É DESENVOLVIDA? KLAUS HERMANN HERINGER RODRIGO CHAGAS
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A inteligência latino-americana alimentou a expectativa de superar as misérias da região, oriundas do passado recente de exploração colonial ou neocolonial, por meio de um amplo debate sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, principalmente entre 1945 e 1975. Até os anos 1960, esse debate ganhava uma unidade relativa, ao reconhecer a autonomia nacional como passo fundamental ao desenvolvimento industrial capitalista. O desenvolvimento, nesse contexto, tinha como pressuposto, por um lado, a soberania nacional como condutora dos países “periféricos” a uma industrialização que garantisse condições de vida (saúde, educação, urbanização etc.) compatíveis com as dos países capitalistas “centrais”, e, por outro, um arquétipo de democracia-burguesa como padrão de dominação adequado para reger a relação entre as classes sociais. Assim, criou-se a idealização de uma sociedade capitalista democrática como modelo predominante de como deveria ser o desenvolvimento para os países latino-americanos. No entanto, havia uma grande discrepância entre os modelos teóricos de “capitalismo democrático e autônomo”, idealizados por intelectuais e instituições locais, e o projeto que os grandes capitais monopolistas tinham para essa região, que deveria continuar funcionalizada a uma divisão internacional do trabalho — o que, na prática, significava executar uma modernização dimensionada à manutenção do processo exploratório da “periferia”. 187
É dentro desse contexto que se desenrola a Revolução Cubana, que se manteve firme ao exigir soberania nacional e avançar em demandas internas — como reforma agrária, educação e saúde — e entrou em conflito direto com os interesses do grande capital estadunidense. Como resultado, em um mundo polarizado pela Guerra Fria, Cuba introduz em sua revolução o ideário socialista e passa a articular seu processo de transformação social junto à União Soviética. O dilema enfrentado por Cuba — desde a revolução até os dias de hoje — é um dilema comum dentre os povos que foram colonizados: como realizar a emancipação nacional a partir de condições geradas em séculos de colonização exploratória; ou seja, como funcionalizar uma economia e uma sociedade, forjadas para atender os interesses de pequenos grupos internos e externos, de forma que sirvam agora às necessidades da maioria de seu povo? Em geral, nos países subdesenvolvidos, a saída para esse problema foi reter e modernizar as estruturas econômicas e de poder herdadas do passado colonial, mediando os interesses externos por meio dos governos locais e garantindo, assim, o “privilégio” de manter-se dependente do processo mundial de acumulação do capital: em outras palavras, realizando uma modernização que tem por finalidade a manutenção das estruturas de exploração. Cuba enfrentou o problema à sua maneira, e sofreu as consequências de sua posição de ruptura com esse modelo. A coragem da pequena ilha gerou o pânico estadunidense que passou a prever revoluções comunistas em toda a região: e, como resultado, ampliou, em meados dos anos 1960, sua ingerência junto aos países latino-americanos, patrocinando golpes militares que se avultaram, especialmente, no Cone Sul. Assim, a autonomia relativa que em alguns países da região tinha se ampliado durante as Guerras Mundiais se retraía de maneira drástica logo após a “ameaça comunista” se concretizar em 188
Cuba. É nesse contexto também que a própria concepção de desenvolvimento vai ganhando outros significados. Em resumo, a partir da Revolução Cubana, em 1959, e da consolidação de Cuba como país socialista, em 1962, as vertentes desenvolvimentistas, que passam a hegemonizar o pensamento social latino-americano, tendem a enfatizar o crescimento econômico e a desvincular a necessidade de autonomia nacional da ideia de desenvolvimento. Portanto, de forma crescente, vai se relativizando e distorcendo a relação entre a dimensão política e a econômica, dando espaço a um consenso no qual o crescimento econômico é a base para políticas públicas e o limite de qualquer concepção “viável” de desenvolvimento. Dessa forma, o embargo econômico que os Estados Unidos realizaram a Cuba é acompanhado de um embargo político e teórico que, primeiro, se realiza por meio de uma ofensiva contra vários governos e movimentos sociais, mediado por ditaduras militares e governos títeres — tendo por lema a ideia de “desenvolvimento com segurança” —, e, depois, por uma assimilação passiva da academia e de grupos políticos que se submeteram aos limites do “desenvolvimento dependente” imposto pelo grande capital. Convém lembrar que a supressão violenta dos debates e experimentos reformistas latino-americanos — em países como Chile, Argentina e Brasil — demonstrou amplamente a baixa tolerância do grande capital às possibilidades de desenvolvimento econômico capitalista que tenha como pressuposto e resultado a autonomia efetiva da região para traçar seus próprios interesses nacionais. O embargo estadunidense a Cuba vinculou amplamente a ilha à órbita da União Soviética, em relação à qual desenvolveu uma dependência econômica, sem abrir mão, porém, de sua soberania nacional. Com o fim do bloco comunista, Cuba sofre um impacto fulminante que gerou, a partir dos anos 1990, uma miséria generalizada. O próprio Estado, que 189
se agigantou e se entrelaçou profundamente no tecido social, esteve a ponto de ser nocauteado por falta de combustível. A cana-de-açúcar foi uma cultura herdada do período colonial que teve de ser mantida como única forma de viabilizar a revolução. Contudo, ao invés de ser internalizada por uma burguesia nacional, esta foi absorvida pelo Estado, que a modernizou totalmente sob a dependência de máquinas e insumos soviéticos. Com o fim da União Soviética, esse maquinário simplesmente desapareceu. Mas é possível afirmar que, mesmo com tantas dificuldades, Cuba é um país desenvolvido? Essa foi a pergunta que motivou as reflexões que aqui apresentamos. Pergunta que possui um caráter perverso, na medida em que, em sua crueza necessária, submete a Revolução Cubana a um critério de desenvolvimento. Como se sabe, há vários critérios de desenvolvimento, inclusive os cubanos. Mas como não ser arbitrário ou não cair em um relativismo inócuo ao tratar do desenvolvimento cubano? Trata-se de um país pobre, se tomamos como referência os limites da ilha para impulsionar a infraestrutura e ampliar as conquistas sociais. Pobreza que ganha, talvez, sua expressão mais decadente em Havana pelo contraste gerado pelo turismo em termos econômicos, e que se expressa tanto pela prostituição endêmica como pela insistência de algumas pessoas em ser úteis e, no contato com o gringo, receber alguma recompensa. A pobreza em sua face mais cotidiana se registra nos bairros mais periféricos, onde o consumo é escasso, onde a vida se mostra mais dura. O acesso à roupa, à comida, ao transporte é precário, e mais ainda o acesso aos aparelhos eletroeletrônicos e à internet. Contudo, a vivência de uma educação de qualidade e da fruição cultural é intensa e generalizada, bem como o atendimento médico e o gozo do esporte. São casebres como quaisquer outros que cobrem toda a América Latina, mas nos quais habitam médicos, engenheiros, profes190
sores, químicos etc. São bairros onde os níveis de violência são baixíssimos. Em quais bairros pobres ou de classe média de cidades latino-americanas pode-se caminhar à noite com a tranquilidade de que ali ninguém será assassinado ou sequestrado? Em Cuba, em todos. Em uma perspectiva de classe média e alta, Cuba perde quase toda a atratividade. Para os miseráveis do mundo, a vida ali ganharia dignidade. As condições de vida da classe média na América Latina, se não fosse pela violência, seria talvez melhor do que na Europa, já que elas contam, por exemplo, com uma vasta oferta de trabalhadores domésticos baratos à sua disposição. Naturalmente, para a maior parte dessa classe média, Cuba só inspira repulsa, pois é um modelo que destruiria seu padrão de consumo e de privilégios. Maria, negra, que mora em um bairro da periferia brasileira, tem acesso à internet e a eletrodomésticos, pode “esbanjar” em uma feijoada ou churrasco para uma ocasião especial. Contudo, sua família tem uma educação e acesso médico precários ou inexistentes, a violência a que ela e seus parentes estão submetidos cotidianamente é brutal. Outra Maria, igualmente negra, cubana, tradutora de russo que trabalha para o governo, tem roupas puídas e nenhum espaço para esbanjar. Assiste a novelas brasileiras, em uma televisão velha, e talvez sonhe em viver aquela realidade sem ter, como a Maria brasileira, um shopping center para passear e fingir que é rica. Seus filhos estão educados e a família, segura contra enfermidades e o crime. Ambas são marias latino-americanas que caberiam em canções como Maria, Maria, de Milton Nascimento, ou Maria Lando, de Susana Baca. Qual vive no país mais desenvolvido? Não faz sentido, depois de todos os fracassos dos ideais de desenvolvimento na América Latina, em um momento em que o próprio desenvolvimento de países capitalistas de “primeiro mundo” está em crise, questionarmos o desenvolvimento cubano. Pelo contrário, devemos, por meio da experiência cubana, 191
fazer o balanço crítico da ideia de desenvolvimento: quais as possibilidades de estabelecer padrões de vida do Welfare State aos países latino-americanos sob a batuta do grande capital? Cuba vivenciou e vivencia profundamente o dilema do ser ou não ser, da reforma ou revolução. Nunca conseguiu resolvê-lo, e agoniza profundamente tais dilemas, que corroem todo aquele — sejam nações ou pessoas — que busca ter domínio de si próprio e que, para tanto, se lança a escolher entre alternativas contraditórias sob o império do capital. Como disse José Martí: nosso vinho é amargo, mas é o nosso vinho. Em qual outro país latino-americano se pode falar isso sem que tais palavras não soem vazias?
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19 ERA NECESSÁRIO ALIAR-SE À UNIÃO SOVIÉTICA? FABIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS
O pensamento tem que parecer às vezes, inclusive, incorreto, e não pode ter medo de cometer erros. — FERNANDO MARTÍNEZ HEREDIA 194
Os dilemas do presente mergulham a ilha em um intenso processo de introspecção, que enseja reflexões sobre a totalidade do processo revolucionário. Em particular, chama a atenção a coincidência entre a reivindicação da necessidade de aliança com a União Soviética, no passado, e o reconhecimento praticamente unânime da necessidade de ampliar o papel do mercado na atualidade, ao mesmo tempo que se advoga ao Estado um papel regulador. Estou convencido de que a aproximação com a União Soviética, assim como os lineamientos atuais, foi uma política conduzida por lideranças comprometidas com o povo cubano e munidas de uma vivência incomparável. Entretanto, considero necessário refletir criticamente sobre essa opção entre aqueles que pretendem recolocar a revolução na pauta da América Latina no século xxi. A aproximação com a União Soviética, consolidada nos anos 1970, teve duas consequências importantes e relacionadas. No plano econômico, a inserção produtiva especializada nos marcos de uma relação comparativamente favorável com os soviéticos, que foi tratada como um dado permanente da realidade, elidiu o enfrentamento de dimensões estruturais do legado colonial. Sua principal expressão é a incompatibilidade entre uma base produtiva relativamente estreita e a universalização do padrão de consumo associado às sociedades industriais. Apesar do importante crescimento registrado por Cuba no período, o intercâmbio com os soviéticos frustrou qualquer 195
expectativa de acumulação em uma direção industrial na ilha, que não estava entre as intenções de Moscou. Cuba não superou a condição de país exportador-primário e dependente, e as fragilidades inerentes a uma economia subdesenvolvida voltaram à superfície quando a potência euroasiática ruiu. É inegável que o bloqueio agrava o fardo da pobreza, mas não é a sua causa — nem a sua suspensão será, um dia, a sua solução. Uma revolução na periferia do capitalismo que confronte a ilusão desenvolvimentista, assumindo os limites materiais que o subdesenvolvimento impõe como condição permanente, ao menos em um contexto de isolamento, precisa compensar sua debilidade econômica com poder político. Aliás, é o que fazem as burguesias dependentes, embora com a finalidade contrária: perpetuar o subdesenvolvimento. A legitimidade de toda revolução emana da capacidade de defender os interesses do povo. No processo cubano, inicialmente, esses interesses se identificaram com a formação da nação. Porém, a superação do neocolonialismo desencadeou uma dinâmica que empurrou o processo na direção do comunismo, que supõe a igualdade substantiva. Ao romper com os parâmetros da sociedade burguesa, a revolução comprometeu-se a radicalizar nessa direção. A distribuição igualitária da riqueza é uma dimensão fundamental desse ideário, mas não é a única: também o integram o fim das hierarquias no trabalho, a participação política e a igualdade de gênero e raça. A igualdade substantiva é necessariamente um ideário coletivo, premissa para a realização da individualidade. Isso é a liberdade no ideário comunista. Em oposição ao comunismo, a ideologia do capitalismo supõe que o ser humano se realiza individualmente. Presidida pela concorrência e não pela cooperação, a realização liberal está associada ao mérito, que por sua vez remete à capacidade de acumulação. Em uma ideologia que naturaliza o mercado, a realização individual 196
é mediada pelo consumo, ilusão que só pode prosperar em meio a seres humanos frustrados. O comunismo oferece uma via radicalmente oposta, porque o humano se realiza por meio do que faz, e o que se faz condiciona o que se é. Assim, o indivíduo só é livre quando o fazer é emancipado da coerção. Isso não significa a abolição do trabalho no sentido de produção material da existência, mas a superação do trabalho vazio de sentido para quem o faz. Como o trabalho, assim como a política, se realiza no âmbito social e não no privado, pode-se dizer que o ser comunista se realiza na esfera social. A pesada mão da influência soviética inibiu a realização revolucionária nessa direção. O burocratismo na economia militou contra o trabalho livre, o dogmatismo na política contra o poder popular, e o realismo cultural contra a originalidade criadora. Ainda que se admita a aproximação com os soviéticos como uma necessidade, a justificação desses traços em função do imperativo da unidade é discutível. Considerando-se a escassa ingerência da superpotência em assuntos internos da ilha, o mais provável é que a opção traduzisse uma crença genuína nos méritos do padrão soviético. Vale ressalvar que essa foi uma incorporação seletiva: Cuba tem sido uma revolução pacífica e nunca viveu as convulsões e expurgos do primeiro Estado operário e camponês da história, nem do seu rival chinês. A convergência entre burocratismo, dogmatismo e realismo socialista constrangeu a renovação política em termos geracionais, mas, principalmente, afetou as próprias possibilidades de revolução dentro da revolução — ou, para usar um termo herético, de revolução permanente: inibiu a “indisciplina urgida pelas necessidades da mudança”, evocada por um jovem na atualidade. Ao gravitar para o campo soviético e adotar práticas políticas e culturais a ele associado, a Revolução Cubana aprofun197
dou a aposta em um caminho referido ao desenvolvimento das forças produtivas. Para fazer uma analogia, apostou em se destacar nos Jogos Olímpicos e teve sucesso nesse caminho: durante seguidas edições, amealhou mais medalhas que a América Latina inteira. Mas, com isso, reforçou a lógica do esporte competitivo de alto rendimento, alinhada segundo critérios nacionais, a despeito de preservar o caráter amador da prática esportiva, também em revisão na atualidade. O “seguidismo” soviético envolveu a opção por um determinado padrão civilizatório, referido à noção de desenvolvimento. Essa opção teve como decorrência, necessária ou não, políticas antitéticas à autogestão econômica, à formação crítica e à liberdade criativa. No conjunto, foram fatores conservadores que limitaram a realização do ideal humanístico da revolução: o “homem natural” de Martí, ou o “homem novo” de Che Guevara. É possível cogitar que os avanços materiais dos anos 1970 ampliaram a margem de manobra futura. O ex-ministro de Economia de Cuba José Luís Rodríguez García considera que a revolução não resistiria ao impacto do “período especial” sem a prosperidade dos anos anteriores. Porém, esse é um raciocínio problemático, como toda contrafactualidade na história: é possível argumentar que, sem a inserção na órbita soviética, o impacto do seu colapso seria outro. Ou, na realidade, sequer haveria “período especial”. É impossível especular sobre o que teria sido Cuba sem seu atrelamento à órbita soviética, que só se consumou passada uma década do triunfo revolucionário. O certo é que essa via também condicionou as opções políticas futuras, na medida em que a revolução dos valores, que ampliaria o campo das alternativas, inclusive econômicas, se viu limitada pelo truncamento da radicalização democrática e cultural. É provável que o próprio campo de alternativas teóricas e políticas, considerado pela liderança 198
revolucionária — a “máxima consciência possível”, na expressão de György Lukács —, tenha se estreitado. Há nexos objetivos e subjetivos entre a necessidade de aproximação com os soviéticos, no passado, e a necessidade de abertura mercantil no presente. Finalmente, o raciocínio da necessária aproximação com os soviéticos implica reconhecer a impossibilidade do socialismo na periferia, sem amparo internacional. Sob essa perspectiva, os limites da Revolução Cubana estão inscritos nas contradições da experiência soviética. Esse enfoque se justifica no plano da realização material do comunismo, que supõe a revolução mundial. Mas, do ponto de vista político, a própria trajetória cubana desafia essa leitura, passado um quarto de século do colapso soviético. A alternativa às limitações econômicas seria radicalizar o lastro político, o que enseja um padrão civilizatório alternativo ao capitalismo, mas também ao comunismo. Isso porque o socialismo primitivo enfrenta a desigualdade em condições onde a igualdade na abundância é impossível. Esta disjuntiva se evidencia no presente: diante dos entraves para sustentar-se materialmente, diante do isolamento político mundial, da avassaladora indústria do entretenimento, da sedução consumista e das modernidades do mundo digital, restaria ao socialismo primitivo fundar-se em valores radicalmente diversos, para além da igualdade e da soberania. Sua salvaguarda seria a unidade popular em torno de um projeto de nação assentado na igualdade substantiva, permitindo a fruição de um conjunto de valores alternativos à sedução do consumo: a igualdade, a participação e a liberdade. Rechaçar essa possibilidade histórica equivale a resignar-se a uma modalidade de “socialismo dependente”, subestimando a radicalidade humanista implícita ao marxismo, em que a realização da existência transcende em muito as motivações econômicas. 199
20 EXISTEM RASTROS DO “HOMEM NOVO” EM CUBA? CARLOS CORDOVANO VIEIRA
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O “horizonte de expectativa” da criação de um “homem novo” se descortinou às vésperas da “era das revoluções”, nos prenúncios da Revolução Francesa. O desmoronamento do Antigo Regime e a perspectiva de edificação de uma nova ordem social traziam, à filosofia e à política, o problema do novo homem que lá habitaria. Entre o Iluminismo e a revolução, o tema de uma nova educação se libertou dos perímetros da especulação filosófica para tornar-se um projeto prático que, em suas feições mais democráticas, visava à instrução pública para todos, a ser fundada nos novos direitos do homem e do cidadão. A esse respeito, destaca-se o projeto de organização geral da instrução, lido por Condorcet na Assembleia em 1792: a Revolução Francesa haveria de contribuir para “o aperfeiçoamento geral e gradual da espécie humana, meta suprema para a qual toda instituição social deve ser dirigida”. Mais tarde, de acordo com Albert Sobaul, a convenção montanhesa estabelecia que “a instrução é necessidade comum […]. A sociedade deve favorecer, no que lhe for possível, os progressos da razão pública, e pôr a instrução ao alcance de todos os cidadãos”. A concreção desse horizonte, porém, estava limitada pelo enquadramento burguês da própria revolução. O socialismo, herdeiro distante das vertentes mais radicais das revoluções burguesas, viria, portanto, propor o problema do “homem novo” noutras bases. Em sua expressão mais fecunda, a obra de Karl Marx — em especial os chamados textos de juventude — enfrentou os limites burgueses da emancipação política: o estranhamento entre o Estado e a 201
“sociedade”. Porquanto o fenômeno remetesse à cisão entre as classes sociais na dimensão da produção material, a crítica à emancipação caminhava para a crítica da economia política, como em A questão judaica. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, os estranhamentos constitutivos da ordem social burguesa se traduziam na separação entre o trabalhador e o produto do trabalho; entre o trabalhador e a própria atividade produtiva; entre o trabalhador e o “gênero humano” — e todas essas cisões eram referidas à separação entre os homens, à divisão da sociedade em classes. Ou seja: o desapossamento em relação ao produto do trabalho é resultado do desapossamento em relação à própria atividade produtiva, que resulta, por sua vez, da separação entre produtores e condições de produção. Daí o trabalho, sob essa forma social, não se realizar como satisfação de uma necessidade humana, mas como um meio para a satisfação de um desígnio exterior — o do capital. Se a atividade produtiva humaniza — e esse é um preceito ontológico —, tem-se aí uma inversão: para o operário, a satisfação de necessidades relativas à subsistência não era um pressuposto da realização das potencialidades produtivas e criativas do homem, mas ao contrário: o trabalho, a atividade essencialmente humana, tornava-se sacrifício para satisfação de sua fisiologia. Por isso a desumanização, a vida humana genérica, tornar-se estranha ao próprio homem. Nesse sentido, a superação da divisão da sociedade em classes, a supressão da divisão hierárquica do trabalho e, como corolário, o fenecimento do Estado eram pressupostos para uma reconciliação entre o trabalhador e o “gênero humano”; se quisermos, para a criação de um novo homem. Decerto, não escapava a Che Guevara, em que pese ser figura icônica das revoluções não alinhadas à ortodoxia soviética, essa filiação histórica (“A Revolução Cubana toma a Marx onde este deixara a ciência para empunhar seu fuzil revolucionário”), nem o sentido mais profundo da criação do “ho202
mem novo” (“O homem deixa de ser escravo e instrumento do meio e se converte em arquiteto de seu próprio destino”). Mas, como se sabe, as revoluções no século xx ocorreram nos elos fracos da cadeia imperialista. Elas puseram em causa a transição socialista em sociedades agrárias — no caso cubano, de origem colonial, escravista e primário-exportadora. Aí, a luta se dava contra formas de opressão colonial ou neocolonial e contra a miséria herdada do passado, recriada pela própria dinâmica de um capitalismo periférico, que punha em movimento a ruptura revolucionária. A revolução não era resultado do esgotamento das potencialidades do “modo capitalista de produção” supostamente “desenvolvido”. Portanto, cruzar o limiar entre a “ciência” e o “fuzil” significava enfrentar os problemas concretos interpostos à marcha da revolução. Che tinha claro que, nessas condições, não caberia projetar a reprodução de etapas já percorridas no curso do desenvolvimento capitalista, e que, “perseguindo a quimera de realizar o socialismo com a ajuda das armas meladas que nos legara o capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, os juros, material individual como base etc.), se pode chegar a um beco sem saída”. Ao passo que a realidade efetiva da revolução fazia entrelaçar supostas etapas transitórias, tratava-se de criar, simultaneamente, a base material da nova sociedade e o “homem novo”: “Para construir o comunismo, simultaneamente com a base material, é preciso fazer o homem novo”. A “consciência socialista” era, pois, estruturante na construção da nova ordem, porquanto condensasse e potencializasse as energias revolucionárias da sociedade. Era a força fundamental no enfrentamento das formas burguesas de alienação e na transição direta do socialismo ao comunismo. Produzia-se, contudo, num primeiro momento, no cotidiano da vanguarda, na vida comunitária do guerrilheiro, por meio da “proletarização” de seu pensamento e de seus hábitos. A propósito, é justa203
mente na caracterização desse ethos que encontramos homens e mulheres munidos de valores éticos e morais inconciliáveis com o individualismo narcísico típico da vida contemporânea, cegamente governado pela mercadoria, pelo dinheiro e pelo capital — enfim, governado pelo mundo das coisas. Em suma, “se trata, precisamente, do indivíduo se sentir mais pleno, com muito mais riqueza interior e com muito mais responsabilidade. […] a época gloriosa que lhe toca viver é de sacrifício: conhece o sacrifício” — para concluir, “[…] sob o risco de parecer ridículo, o revolucionário verdadeiro é guiado por grande sentimento de amor”. Conquistado o poder, a revolução fará seu trabalho — negativo e positivo — de demolição da velha ordem e construção da nova. O ethos engendrado na guerrilha deveria plasmar o conjunto da vida social, penetrar mesmo na vida cotidiana e na consciência do povo, por meio de uma institucionalização da revolução. O problema central residia na organização do trabalho social. Naturalmente, posto que o socialismo de origem subdesenvolvida exigisse a construção simultânea da base técnica e do “homem novo”, haveria limites estreitos para os estímulos materiais ao trabalho. Daí porque, se estes devessem ser combinados a poderosos mecanismos de incentivos morais, a construção do socialismo seria também uma revolução pedagógica. A rigor, como escreveu Florestan Fernandes, a fusão em gestação do “homem novo” e da nova sociedade viria conformar as bases de uma nova civilização, a se consubstanciar numa tecnologia, numa pedagogia e numa cultura. Com efeito, a combinação de estímulos materiais e morais, tanto quanto o entrelaçamento da constituição da base material e do substrato cultural, se dava em termos de uma mobilização permanente para o trabalho — e, não menos, para sua qualificação. Por essa razão, a instituição que por excelência encarnava o desígnio de fazer transbordar da vanguarda para a vida cotidiana do povo os valores da revolução, lócus 204
privilegiado da criação do “homem novo”, era a escola. Ali se coadunavam as tarefas da produção do conhecimento correspondente às novas necessidades materiais e da sedimentação dos valores socialistas — como vimos, dois vetores indissociáveis. Isso, na mesma medida em que estudo e trabalho, trabalho manual e intelectual eram dimensões articuladas num mesmo processo de formação. A imagem recorrente de Cuba como uma “grande escola” ganhava, pois, nessa imbricação, seu sentido profundo. Na década de 1970, como pontuou Marta Harnecker, firmava-se a perspectiva de que o processo de sedimentação dos valores da revolução chegava a um patamar qualitativamente distinto. Nesse momento, o ethos da vanguarda se diluía na classe trabalhadora, e o trabalhador comum se tornava um verdadeiro “soldado da revolução”. Noutros termos, o “sacrifício”, já mencionado na caracterização do revolucionário de Che Guevara, era a contraparte ética de um processo de acumulação socialista fundado essencialmente no trabalho coletivo — por vezes, “voluntário”. De outro lado, o igualitarismo radical e, como corolário, a extensão efetiva de direitos fundamentais à totalidade do povo conformavam uma espécie de cimento inquebrantável da nova ordem. (Digna de nota foi a observação do sociólogo cubano Fernando Heredia a esse respeito: “o ‘homem novo’ tem todos os dentes na boca!”) A sedimentação da revolução tenderia mesmo a aplainar — era essa a perspectiva — a divisão hierárquica do trabalho. O plano, como determinação superior a que trabalhadores eram compungidos (dizia-se então: na base do patria o muerte!), tornava-se objeto de discussão entre planejadores, administradores e trabalhadores; ao passo que uma cultura de “superação” por meio do esforço permanente e combinado de trabalho e autoeducação era absorvida pelo mundo do trabalho. Em certos relatos, essas tendências chegavam mesmo a relativizar o poder da burocracia do partido no comando da 205
produção. Visto no conjunto, parecia estar em curso uma verdadeira introjeção da revolução na vida cotidiana do povo, em seu trabalho prático e em seus valores. A esse respeito, Florestan Fernandes formulou à época um diagnóstico bastante positivo: “[…] o homem novo e a sociedade nova passaram de marco utópico do ‘idealismo revolucionário’ a produtos e fatores interdependentes de uma nova situação histórico-social. Exprimem e fazem parte de práticas coletivas concretas, que redefinem o significado humano da revolução. Ou seja, na medida em que ‘uma revolução para os trabalhadores’ se transforma em uma revolução dos trabalhadores, pelos trabalhadores e para os trabalhadores, o que era uma aspiração de chegar ao socialismo passa a ser o socialismo em marcha e dele está brotando uma nova Cuba, Cuba socialista”. Mas na década de 1970 a vinculação estreita de Cuba com a União Soviética garantia relativo êxito à consolidação das bases materiais da revolução. Se os dois vetores, base material e ethos, conformavam dimensões complementares de um mesmo movimento, tanto quanto o eram os estímulos morais e materiais ao trabalho, esteio da acumulação socialista, é certo que as condições econômicas relativamente favoráveis, viabilizadas pela entrada no bloco soviético, faziam atenuar o peso do “sacrifício” a recair sobre os ombros do trabalhador cubano. Mais que isso, talvez possamos dizer que a existência mesma de um bloco socialista, em que pesem seus limites evidentes, lastreava um “horizonte de expectativas” quanto ao futuro em que se projetava a transição do socialismo à emancipação final comunista. Percalços materiais seriam sacrifícios temporários enquanto Cuba fosse o farol político de uma revolução latino-americana que estava por vir. É certo que a Revolução Cubana sempre alternou posições de centralidade dos estímulos materiais ou morais, conforme as conjunturas. Mas, numa quadra histórica em que se podia projetar para um futuro a consumação da transição comunis206
ta, a constituição das bases materiais e a criação do “homem novo”, estímulos materiais e morais, podiam caminhar mais ou menos pari passu. Tudo muda com o desmoronamento da União Soviética. A Revolução Cubana só pôde atravessar o “período especial” sem se perder em virtude da força visceral de seus valores. Mas, nessa nova quadra, há uma mudança fundamental em relação à época do Che: as projeções futuras de avanço da emancipação (da revolução mundial, diga-se) dão lugar à defesa de posições já conquistadas face à fúria do capitalismo contemporâneo que tudo devora. Passada a sobrevida do interlúdio bolivariano, restaria redimensionar a crise de hoje. Posições herdeiras, digamos, de um guevarismo castiço embaralham os termos de um discurso recorrente: ora, se a revolução superou, de fato, o “período especial”, é plenamente possível enfrentar os obstáculos presentes por meio de um recrudescimento dos estímulos morais e dos valores revolucionários, sem recuos. No entanto, não deixa de ser insólita uma leitura de oposição que, na prática, nega a crise. De outro lado, o peso substancial da economia estatal deixa dúvidas quanto à natureza e alcance das mudanças em curso. Se há ou não uma restauração capitalista e qual a sua magnitude, não é algo a que possamos responder. Mas cumpre observar que as posições em favor das mudanças — em certos casos, em defesa de uma “evolução” em direção à propriedade privada — parecem céticas quanto às potencialidades dos estímulos morais e quanto à capacidade produtiva (diz-se “eficiência”) do setor estritamente estatal. Formas diversas de cuentapropismo ou de cooperativismo, e, no limite, uma eventual entrada do capital estrangeiro — sob alguma regulação do Estado, por certo — viriam responder a tais debilidades. O que podemos dizer é que uma expansão dos mecanismos de mercado e, como corolário, a introdução dos 207
parâmetros da concorrência correspondem a um ethos estranho para o bom e velho “homem novo”. O reconhecimento explícito da existência de uma nova classe média ao lado da precarização de determinadas garantias fundamentais — a exemplo da insuficiência do racionamento alimentar equacionado pela libreta — mostram os riscos de que, sobre espaços consolidados do coletivo, ganhe terreno o “indivíduo”. Sugerimos que o horizonte de criação do “homem novo” possa se ter transfigurado com o esvaecimento, em nosso tempo, da perspectiva concreta e imediata da revolução mundial: que o caráter estrutural da crise do capital porá em causa a “atualidade histórica da ofensiva socialista” parece correto; mas, em meio ao avanço conservador, esta ainda está por ser construída. A Revolução Cubana carregou os limites das experiências revolucionárias do século xx. Sem superar a divisão hierárquica do trabalho, não pôde caminhar na direção do fenecimento do Estado; e, tendo superado a propriedade privada capitalista e suas relações de produção, permaneceu enredada, sobretudo como parte do bloco soviético, no regime expansivo e fetichista do capital. Uma restauração capitalista não será solução para o povo cubano, se a crise que fez desabar o chamado “socialismo real” — e que se projeta até hoje em Cuba — foi, na verdade, como sustenta István Mészáros, um fenômeno concernente à crise estrutural do capital — e, portanto, uma crise também do “modo capitalista de produção”. O capitalismo contemporâneo não produzirá em Cuba menos barbárie do que produz em qualquer outra parte. De outro lado, parece que, justamente por isso, a revolução, sem transcender a si própria, poderá chegar a um callejón sin salida. Talvez o povo cubano encontre energias criativas e emancipadoras em seu passado mais remoto, nos rastros das lutas históricas contra a escravidão e o colonialismo. A própria revolução plantou aí suas raízes mais profundas. Mas as 208
soluções são tão mais complexas — e a projeção futura de um “homem novo” parece se esfumar —, visto que a ilha se converteu menos em farol de um socialismo à vista do que em última fortaleza a ser defendida.
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21 ESTÁ EM CURSO UMA RESTAURAÇÃO CAPITALISTA EM CUBA? FABIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS
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Como todo processo histórico, o destino da Revolução Cubana não pode ser previsto. No entanto, é possível mapear o que está em disputa, indicando o sentido geral do movimento em curso. Há consenso em Cuba de que o país deve mudar. O que está em jogo é o ritmo, o tempo e o sentido do processo. A raiz das mudanças são os problemas econômicos que eclodiram no “período especial”, acentuados pela dominação neoliberal e pela crise do capitalismo mundial. Desde então, o socialismo cubano deixou de avançar, para se defender. José Luís Rodríguez, que comandou a economia da ilha através do “período especial”, sintetizou os desafios atuais em três pontos: reduzir o déficit do balanço de pagamentos; aumentar a produtividade do trabalho; ampliar e melhorar a infraestrutura. Em princípio, esses objetivos envolvem cortar gastos do Estado; romper com o igualitarismo das remunerações; e atrair financiamento e investimento estrangeiro. Sinalizam, portanto, para medidas contrárias aos valores da igualdade e da soberania, recordando o espectro neoliberal. Porém, a afinidade com o ideário neoliberal é no máximo formal, já que em Cuba os gastos sociais em proporção ao pib nunca foram reduzidos; a propriedade e o emprego estatal continuam dominantes; e a relação com o capital internacional é disciplinada. Além disso, ao contrário da opacidade que caracteriza a política do ajuste fiscal mundial, decisões dessa natureza são submetidas a uma ampla consulta popular. Foi esse o caso dos Lineamientos de la política económica y social que orientam a política cubana desde 2011. 211
De modo geral, o ensejo de aumentar o dinamismo e a eficiência da economia cubana é identificado com o imperativo de ampliar o papel do mercado e da iniciativa privada, em oposição à economia estatal. A expectativa é que o Estado cumpra o papel de regulamentar o mercado, disciplinando a iniciativa privada e o investimento estrangeiro com a finalidade de preservar as conquistas sociais da revolução e a soberania nacional. No entanto, é incerto o poder de negociação do Estado cubano no capitalismo atual, em que sua pretensão de controle se defronta com a expectativa contrária dos investidores internacionais. O dilema é ilustrado por uma anedota que circula no país: o governo cubano oferece uma carteira de investimentos possíveis ao capitalista estrangeiro em Mariel e explica cada um deles. Seu interlocutor escuta, fecha a pasta e diz: “O que eu quero saber é quanto vale Mariel”. Em resumo, segundo a economista Gladys Hernández, Cuba necessita potenciar uma economia mista, já que o Estado não pode garantir o pleno emprego e a sociedade não admite desemprego elevado. Entende que a preservação dos serviços públicos universais serve como um importante “colchão social”, amenizando o choque da crescente desigualdade. Ecoando a visão prevalente, Valdés Paz afirma que Cuba permanece uma economia planificada, em que o Estado controla setores econômicos (finanças, indústria, hotéis) e sociais (saúde, educação, ciência) estratégicos. Na antítese do livre-mercado, afirma que, “em Cuba, ninguém está só, nem há nada solto”. Diferente de quem avalia que as experiências socialistas “subestimaram as leis de mercado”, como fazem alguns em Cuba, o ex-ministro Rodríguez está entre os que admitem uma contradição essencial entre socialismo e mercado. Mas, diante da inelutabilidade da mudança, se refere a um esforço de “dosificação” das medidas, visando soltar as tensões sociais 212
sem perder o controle sobre o tempo do processo: sem pressa, mas sem pausa, como diz Raúl Castro. No entanto, os constrangimentos econômicos são apenas uma dimensão, embora central, da dificuldade para uma saída à esquerda para os dilemas atuais. Confrontado com a materialidade do subdesenvolvimento, o desafio de aprofundar o “socialismo primitivo” em um século xxi muito primitivo e pouco socialista exigiria uma radicalização democrática da política e da economia, enraizada em uma elevação da consciência crítica e da criatividade de sua população. Entretanto, isso foi pouco semeado sob a órbita soviética, a despeito de todos os avanços registrados. Quando a direção revolucionária iniciou a autocrítica, em meados dos anos 1980, temeu-se que os desafios colocados pelo “período especial” em meio ao colapso do socialismo real tornariam a radicalização democrática uma empresa arriscada. Naquele contexto, a coesão nacional sobreviveu como um valor porque o povo entendeu o que acontecia, e incorporou a adversidade como sua. A situação atual é ambígua, porque a mudança também sopra por ventos mercantis. Expressão dessa ambivalência na relação com o Estado, os cubanos querem mudar, mas preservando as conquistas; apostam no mercado, mas regulamentado; atraem capital internacional, mas defendem a soberania. Há um componente de conformismo, mas também há consciência crítica nessa ambivalência. De modo geral, os cubanos valorizam a segurança social de que desfrutam e têm menos ilusões sobre a vida no exterior. Porém, a ambiguidade existe porque a vida não é somente difícil, mas às vezes carece de sentido. Se o consumo preenche os vazios existenciais no capitalismo, o antídoto socialista é prover vias de realização existencial, esvaziando de sentido o consumismo. Em Cuba, avançou-se muito nesta direção: forjou-se uma cultura em que ninguém se orgulhava de bens materiais, mas 213
sim da solidariedade da ilha com a independência de Angola, por exemplo. É uma revolução em que se perdeu o respeito pela riqueza, pela propriedade privada e pelo imperialismo. Talvez não sejam os revolucionários “movidos por um profundo sentimento de amor”, idealizados pelo Che, mas todos têm dentes saudáveis: ao menos já têm a dentição do “homem novo”, como disse o sociólogo Martínez Heredia. Na atualidade, o dinheiro recuperou poder, embora ainda não a sua legitimidade. Ressurgem famílias que gastam o que não têm em uma festa de quinze anos, ou em um casamento-ostentação. Observam-se comportamentos voltados ao olhar do outro, característicos de uma sociedade narcisista: são posturas conservadoras, discrepantes da ética revolucionária em que se forjou a emancipação cubana, mas não necessariamente contrarrevolucionárias. Mais grave é a percepção de que, pouco a pouco, se naturalizam características do capitalismo, como aceitar como normal que um compre algo que outro não possa comprar. Nesse contexto, Martínez Heredia considera que, em Cuba, os revolucionários não estão perdendo a batalha, mas tampouco a estão ganhando. É provável que as contradições em aberto na transição cubana — os “fios soltos”, no dizer de Valdés Paz — aflorem e se encaminhem em uma reforma constitucional anunciada pelo governo. Não há clareza sobre como se dará o processo, nem sobre o conteúdo e o alcance da reforma. Mas é certa a sua premência, já que muitas das “atualizações” em curso são, na prática, anticonstitucionais. Cogita-se que será necessário, afinal, produzir uma nova Constituição. A seguinte etapa será selada com a aposentadoria de Raúl Castro, que anunciou que não se reelegerá à presidência do Conselho de Estado quando seu mandato expirar, em fevereiro de 2018. O primeiro vice-presidente Miguel Díaz-Canel, que nasceu em 1960, depois do triunfo revolucionário, é o mais cotado para o posto. 214
Entretanto, o futuro que respiram os cubanos já não é a utopia de uma sociedade sem Estado, sem classe e sem propriedade privada, mas uma combinação entre direitos universais gratuitos e de qualidade com relações mercantis disciplinadas por um Estado soberano. Diante desse cenário, dois dilemas se colocam para a revolução que “assaltou a oligarquia, mas também os dogmas revolucionários”: Até que ponto a mercantilização das relações sociais será compatível com a preservação do ideário revolucionário, ainda que em sua versão minimalista? O Estado será capaz de disciplinar o capital em defesa da nação na periferia mundial, em pleno século xxi? Na obra moral regeneradora da Revolução Cubana, o otimismo da vontade enfrenta o pessimismo da razão.
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22 O QUE PODEMOS APRENDER COM A REVOLUÇÃO CUBANA? JOANA SALÉM VASCONCELOS
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i. A primeira lição que a história cubana pode oferecer aos brasileiros é que o espaço para reformas redistributivas no contexto do capitalismo periférico é estreito. Entre 1950 e 1970, com exceção da Revolução Cubana, todas as tentativas de reformas sociais soberanas na América Latina foram obstruídas por golpes militares, cuja ferocidade eliminou os sujeitos políticos que as empreenderam. No entanto, Cuba, conjugando recursos escassos com radicalidade política, conseguiu criar o sistema de bem-estar social mais sólido do continente. Tal conquista não seria possível com mudanças parciais. As mudanças parciais mantêm vivas as fontes de poder, que alimentam a má distribuição de riqueza: as oligarquias, as tecnocracias e as burguesias. Estas, por sua vez, sempre se reorganizam, empreendendo uma luta de vida ou morte para assegurar seus privilégios. Mesmo na Cuba atual isso acontece, com a diferença de que os conspiradores estão fora do país. Desde 1998, uma onda de “reformismo social” atravessou nosso continente com variadas matizes, do bolivarianismo ao lulismo. Nesse ciclo, melhorias concretas alteraram a vida de muitas pessoas. Com isso, ganhou força novamente a proposta de “reformar o capitalismo periférico”. Entretanto, existem indícios de que tais melhorias só foram possíveis devido a uma conjuntura muito particular da economia mundial, e de que tais mudanças não eram tão sustentáveis no tempo quanto anunciaram seus autores. 217
A história cubana nos ensina que a radicalidade, a profundidade e a velocidade das mudanças são condições indispensáveis para sua duração histórica. É preciso refletir sobre por que, no Brasil, as conquistas sociais da última década estão sendo derretidas com tanta facilidade. Talvez porque os problemas estruturais dos povos latino-americanos só possam ser resolvidos com mudanças revolucionárias, e porque o “melhorismo” seja apenas uma suavização temporária (e reversível) do mesmo modelo de exploração. Diante da vulnerabilidade da “onda progressista” na América do Sul, a discussão sobre os limites das reformas volta a ganhar importância no continente. ii. A segunda lição que podemos extrair da história cubana é que as burguesias latino-americanas são antidemocráticas. E não abrirão mão de seus privilégios sem guerra. Foi nessa guerra que as classes dominantes empurraram o nacionalismo castrista para o socialismo. De modo geral, para estabilizar sociedades latino-americanas com extrema desigualdade e garantir uma exploração capitalista de alta intensidade, é preciso criar estratégias sistemáticas de terrorismo de Estado. O golpismo e a ditadura fazem parte do arsenal político cotidiano de uma classe dominante que não se identifica com seu povo, mas com os valores e práticas de uma elite estrangeira. A história cubana nos ensina que o limite das negociações entre classes dominantes e dominadas será sempre determinado pelos primeiros. Se a violência e a intolerância desmedidas caracterizam a gestão política do capitalismo periférico, a expansão de mecanismos institucionais democráticos corresponde a processos de exceção. Assim, lutar pelo aprofundamento de tais mecanismos é tão importante quanto estar ciente dos seus limites estruturais. 218
Em outras palavras, a democracia latino-americana só poderá realizar-se efetivamente por meio de uma revolução. iii. A terceira lição que podemos aprender com a Revolução Cubana é que o sistema econômico mundial não aceitará a soberania nacional dos países latino-americanos, e quem o desafia necessita estar preparado para enfrentá-lo. O capitalismo latino-americano é dependente, o que significa dizer que muitas forças externas têm poder de comando sobre os rumos da organização social. A conquista da soberania nacional implica cortar esses nexos de subordinação externa. Assim como as burguesias internas não entregarão seus privilégios sem luta, as burguesias externas jamais entregarão seus negócios, sustentados pela espoliação dos recursos naturais e pela superexploração do trabalho, típicas do subdesenvolvimento. Isso significa que uma verdadeira soberania nacional só pode se desenvolver no Brasil com base em um enfrentamento persistente contra os Estados Unidos. Cuba é a prova de que, embora isso seja custoso, não é necessariamente impossível. iv. O enfrentamento constante com os Estados Unidos restringiu o potencial emancipatório da Revolução Cubana, tanto em termos de liberdades democráticas, quanto de desenvolvimento econômico e bem-estar social. E daí advém uma quarta lição: a conquista da soberania nacional no Brasil seria fortalecida pelo internacionalismo latino-americano, isto é, por uma integração autodeterminada de projetos populares para o continente. O bloqueio estadunidense que isolou Cuba 219
foi responsável pela maior carga de dificuldades que o povo cubano suportou — e ainda suporta. Não fosse a relação imediata estabelecida com a União Soviética, nos anos 1960, possivelmente a Revolução Cubana não estaria viva. Paradoxalmente, porém, ao mesmo tempo que viabilizou a Revolução Cubana em termos econômicos, a União Soviética transmitiu-lhe uma cultura política hierárquica e enrijecida. Quando a União Soviética caiu, em 1991, a nação cubana estava formada e a coletividade popular estava mais consciente das conquistas que poderia perder, o que viabilizou a sobrevivência da revolução em bases internas. Em 1998, com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, o isolamento cubano foi atenuado e abriu-se uma brecha para a integração latino-americana em bases populares. Mas essa brecha está se fechando. A revolução de Cuba nos ensina sobre a importância estratégica do território latino-americano como plataforma da emancipação social de todos os seus povos que, juntos, poderiam enfrentar com mais chances as imposições dos interesses estrangeiros, determinantes da organização social e econômica do capitalismo dependente. v. Cuba também pode nos ensinar que qualquer projeto de esquerda na América Latina deve estar comprometido com o bem-estar e a dignidade do povo, mas isso não significa acompanhar os padrões de consumo da última moda. A Revolução Cubana não se confundiu com o fetichismo da mercadoria. Ao contrário, bem-estar e dignidade do povo são práticas edificadas com base em outros valores. Em primeiro lugar, está a garantia universal dos direitos sociais gratuitos: o acesso à saúde, à educação, à terra, à moradia e à alimentação, o direito à cultura. Tudo isso cimentado por pro220
postas de solidariedade e trabalho coletivo. Em outras palavras, Cuba mostrou que não é a tecnologia mais moderna que produz bem-estar, mas sim a garantia gratuita dos direitos sociais, o investimento na cultura e a constante construção de valores igualitários e solidários. Assim, se as esquerdas latino-americanas ainda se iludem com o sonho da modernização e do progresso, os cubanos ensinam que a dignidade pode ser construída sem pirotecnia, sobre bases materiais precárias orientadas para as finalidades humanas. Isso não significa refutar o desenvolvimento tecnológico, mas sim relativizar seu protagonismo na conquista do bem-estar. Com fundamentos técnicos relativamente simples, seria possível iniciar a construção de uma nova dignidade popular. A vergonhosa escassez de saneamento básico no Brasil, por exemplo, não nos deixaria mentir. Sem mergulhar na “modernização”, Cuba erradicou o analfabetismo e enfermidades típicas do subdesenvolvimento, ampliou a expectativa de vida de seus habitantes e reduziu drasticamente o índice de bebês mortos ao nascer, alcançando as primeiras colocações da América Latina em diversos rankings da Organização Mundial de Saúde (oms) e da Unesco. Para isso, não foi necessário que os cubanos estivessem atualizados nas fronteiras tecnológicas do sistema capitalista. Ao mesmo tempo, Cuba desenvolve tecnologias inovadoras com recursos escassos e finalidades humanitárias, sem interesse de lucro. Um bom exemplo é o Centro de Imunologia Molecular (cim), um dos laboratórios mais importantes do complexo estatal de pesquisas biotecnológicas cubanas. O cim foi responsável pelo desenvolvimento de uma “vacina” que estanca o câncer de pulmão, invenção censurada pelo monopólio dos quimioterápicos na indústria farmacêutica mundial. A Revolução Cubana nos recorda que é possível produzir tecnologia para as pessoas, e não para o lucro. E que a igualda221
de na periferia do capitalismo é incompatível com a modernização dos padrões de consumo. vi. Por fim, é possível refletir a partir de Cuba sobre os malefícios de um socialismo autoritário. O peso da União Soviética na constituição do sistema cubano e a cultura da obediência às autoridades de um partido único são fatores que limitaram o aprofundamento das conquistas democráticas da revolução. A necessidade de enfrentamento constante com os Estados Unidos foi usada para “justificar” expurgos indevidos, prisões arbitrárias e um receio difuso sobre o que não se devia falar ou pensar. Como alertou o músico Frank Delgado na canção “La otra orilla”, “eu sempre ouvi falar da outra margem envolta em uma nuvem de mistério […] Havia que falar em voz baixa, às vezes com tom de desprezo. Na escola aprendi que eram os gusanos [vermes] que tinham abandonado seu povo”. O pensamento dogmático, fortalecido pelo excesso de centralização política, dividiu a sociedade cubana entre “fiéis” e “traidores”. Um sistema permeável às pressões populares, mas pouco tolerante a críticas, deu origem a rupturas familiares e sociais com um importante grau de violência micropolítica. Esses problemas também podem ensinar o Brasil sobre a importância de as esquerdas conjugarem as lutas por igualdade social com a garantia da pluralidade política, da generosidade militante e da diversidade de gênero, e com a valorização da autodeterminação popular em sua multiplicidade de ações e identidades. Nesse mesmo diapasão, a homofobia foi institucionalizada pela Revolução Cubana e o Estado comunista enviou lgbts para prisões e centros de reabilitação e trabalho forçado, sob a acusação de “desvio de conduta moral”. Até pouco tempo, ser gay em Cuba era sinônimo de ser “contrarrevolucionário”. Da 222
mesma forma, a direção política não priorizou a superação do racismo e do machismo, por vezes reproduzidos em práticas que remetem a uma lógica patriarcal, branca e moralista. Porém, há sinais de que hoje a Revolução Cubana tem repensado todos esses problemas em chave mais democrática. São características que não podem ser apagadas tão cedo, pois exigem transformações culturais profundas, capazes de ventilar ideias e práticas rumo a um socialismo mais libertário. Essa autocrítica da revolução, hoje em curso, pode sem dúvida inspirar novos caminhos para a luta social no século xxi.
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POS FÁ CIO
“Não há nada que negociar da soberania de Cuba” 224
Fernando Martínez Heredia (1939–2017) foi um dos principais intelectuais produzidos pela Revolução Cubana. Dizia que, para desenvolver a revolução, era necessário um marxismo ortodoxo, rebelde, criador e herege. Assim fez e assim foi. Muitos o identificam com o legado de Che Guevara, porque salienta a centralidade do fator subjetivo no processo revolucionário (e, portanto, da cultura) ao mesmo tempo que critica o economicismo. Como o revolucionário argentino, Heredia desprezava quaisquer nexos mecânicos entre as condições materiais da existência (sempre precárias em Cuba) e as exigências orgânicas da revolução (sempre profundas). Ao reivindicar um pensamento e uma política superiores às suas condições de produção, esses militantes recusaram o desenvolvimento das forças produtivas como paradigma do socialismo. O outro lado dessa recusa foi reconhecer o potencial revolucionário inerente à situação cubana, vinculado à realização de uma cultura mais humana, na melhor tradição de José Martí. É nessa perspectiva que Martínez Heredia afirmou que a revolução, como criação consciente, deve “violentar os limites da reprodução da vida material para que a atuação seja decisivamente revolucionária e eficaz”. Sua crítica à revolução como modernização é contundente: “Em todo processo revolucionário deve dar-se um domínio do subjetivo sobre o objetivo, porque sem violentar a reprodução da vida material, quaisquer que sejam as mudanças que se alcancem, o que se reproduz é a dominação. É possível inclusive ser um grande 225
modernizador, mas o que virá então é uma dominação muito mais moderna.” Segundo esse ponto de vista, a superioridade socialista não reside na competição produtiva, mas no plano da cultura: daí a ênfase no desenvolvimento de uma cultura socialista, que segundo Martínez Heredia tem que ser superior e diferente, e não somente oposta ao capitalismo. É sob esse prisma que se entende sua alusão às experiências socialistas do século xx como “socialismo primitivo”: “Se cremos que o socialismo é o futuro, e isso é o que creio, pelo menos eu não quero que seja como foi. Quero que a gente do século xxi considere a todo o socialismo do século xx como o socialismo primitivo.” É ao mesmo tempo uma confissão de humildade e uma profissão de fé, de quem dedicou a vida a construir o socialismo, certo de que o futuro lhe pertence, sabendo que, para a humanidade, porém, esse futuro está apenas despontando. Mais do que um acadêmico, Martínez Heredia foi um militante que percorreu incansavelmente o continente semeando a revolução em conferências, cursos e conversas. Parte substantiva de seu pensamento está registrado em coletâneas de artigos e entrevistas. Martínez Heredia conversou com o grupo que produziu os artigos deste livro durante quatro horas em 8 de dezembro de 2016, em Havana, quando discorreu sobre quatro questões propostas. Dias depois, em 16 de dezembro, Joana Salém, Letícia Rizzoti e Matheus Paschoal gravaram em vídeo a entrevista (disponível em ) que reproduzimos a seguir, e que terminou sendo uma das últimas que concedeu: o pensador cubano faleceu em 12 de junho de 2017 na capital da ilha.
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Como você vê as atuais reformas econômicas em Cuba e a “atualização do modelo econômico”, sobretudo em relação à ampliação dos negócios privados e ao investimento do capital estrangeiro no país? Não posso dar uma resposta que se atenha somente à pergunta, porque não estaria bem. Em minha opinião pessoal, em Cuba está sucedendo outra coisa que não é exatamente isso. Eu não o chamo “atualização” e não entendo por que alguns o chamam assim. Cuba é um sistema “em transição socialista”, é como o chamo, ou em uma direção comunista, de revolucionários nacionalistas e socialistas que tomaram o poder há quase sessenta anos e produziram mudanças e transformações muito profundas na sociedade. Nenhuma economia se entende sem levar em consideração a sociedade em que está inserida. Pensar que a economia é a locomotiva das sociedades é um grave erro. No caso de Cuba, se trata da economia deste país. Enquanto este país for o que acabo de descrever, sua economia tem que atender a isso. Ou seja, para Cuba, o fundamental é que a economia responda à reprodução da vida das pessoas que vivemos aqui, de acordo com o tipo de sociedade que temos aqui. E, por sua vez, de acordo com o grau de soberania nacional com relação a qualquer país estrangeiro — sobretudo ao nosso inimigo histórico e atual que é os Estados Unidos, nosso inimigo imperialista. Essas são as condicionantes sem as quais é impossível falar da economia cubana. Alguém pode dizer “é preciso mudar isso ou aquilo” no nível da vontade. Mas existem consequências graves, ou não, dependendo do que se aplique. Na economia cubana, toda a indústria, o comércio exterior, o controle sobre a terra e a infraestrutura são totalmente do Estado. Nos demais elementos da economia, o Estado tem um papel preponderante também. Sempre houve um setor da 227
economia privada em Cuba. Era sobretudo de agricultores, que tiveram a responsabilidade de produzir uma parte apreciável da produção agrícola. Agora há um setor privado também, que foi tolerado e fomentado pelo próprio Estado. O Estado dá a licença — ou não dá. Hoje, 11% ou 12% dos trabalhadores em Cuba estão nesse setor. Suas linhas fundamentais são o oferecimento de comida (ou gastronomia), o aluguel de casas e alguns serviços. Não desempenham nenhum papel importante na produção. As demais questões, repito, seguem absolutamente nas mãos do Estado, que é seu total controlador. O Estado deveria representar o “projeto socialista” — o que seria outra discussão. Mas é pelo menos o Estado do poder socialista, que é bastante — a meu juízo — afetado pelo fenômeno da burocratização, coisa que pode ser importante ou não para sua pergunta. No caso da pergunta, creio que, para alguns, é importante porque, impede que aumente a propriedade privada. Para outros, é importante como explicação, porque impede que aumente o socialismo. É pelo contrário.
Você acredita que atualmente existem riscos de uma reversão capitalista da sociedade cubana em um futuro de médio prazo? Sempre houve o risco, em Cuba, de um retorno ao capitalismo. Em uma primeira etapa, em razão da força militar dos Estados Unidos, que tentaram que em Cuba houvesse uma oposição armada, que foi derrotada durante anos, ou inclusive da sua própria ação direta e invasão com mercenários. Depois já não podia mais ser assim, porque os Estados Unidos se enredaram totalmente na guerra do Vietnã e, em seguida, as circunstâncias geopolíticas mudaram em outros modos. Mas, em geral, os Estados Unidos excluíram o uso da forma militar para liquidar a revolução porque sabem que a revolução é poderosa militarmente. Não apenas por suas Forças Ar228
madas, mas também porque toda a população habilitada teve certa preparação ou muita preparação militar. Há uma moral de luta muito forte e os símbolos de defesa — não somente do socialismo, mas também da soberania nacional — são muito altos. Esse fator, me parece, não será alterado por muito tempo. Por outro lado, ocorreram em Cuba experiências de certo crescimento da produção mercantil, anteriores à atual, mais ou menos controladas. Mas a que vem ocorrendo nos últimos sete anos é a maior. De 2009 em diante, ocorreram mudanças com a introdução de elementos de situações sociais correspondentes ao capitalismo, de pequena propriedade privada, de pequenas empresas, e foi também importante a expansão de valores capitalistas, que não se podem medir como se medem as questões econômicas, mas que podem em algum sentido ser mais importantes que elas. Há também certo grau de não participação na política de uma parte da população, que é minoritária, mas é importante, e que sofreu um choque imenso nos últimos quinze dias pelo motivo do falecimento de Fidel Castro. Isso é mais interessante para os analistas dos problemas dos países e das sociedades: o ser profundo, não o superficial. Eu mesmo me deparei com isso. Ao falar em politicismo (não que isso seja ruim), a maioria da população de Cuba se mostrou politizadíssima frente ao falecimento de Fidel. E sete milhões de pessoas firmaram um compromisso revolucionário com o socialismo, assinando essa declaração famosa de Fidel. E ao redor de todo o país as manifestações desse tipo foram enormes e eram muito claras: eram de revolução socialista, de defesa da soberania nacional, de identificação com quem foi o símbolo de tudo isso. Então, quanto a isso não cabe dúvida, e temos que levar em conta. No entanto, eu insisto: sim, há uma deterioração de valores e isso é importante. Há relações sociais que correspondem ao capitalismo. Temos já uma quantidade enorme de turistas: são êxitos que têm sua contrapartida. As pes229
soas, sobretudo de classe média ou inclusive média baixa, que poupam durante o ano para passar férias como turistas, onde chegam parecem ricos, porque vêm gastar o dinheiro que economizaram. E se promove ao redor deles não apenas a prestação de serviços, mas também a ânsia pelo dinheiro que se relaciona com eles. Cuba tem um conhecimento sobre as relações mercantis que é antiquíssimo. Diferentemente de outros países, coloniais e neocoloniais, em Cuba o dinheiro era o equivalente geral das mercadorias há séculos. Então a revolução, entre outras coisas importantes, deu um enorme golpe ao valor dado ao dinheiro, que retrocedeu totalmente. De tal modo que o desempenho do trabalho, a atividade prática do cubano, se relacionava muito indiretamente com seu nível de vida, com sua qualidade de vida e até mesmo com sua renda. Ao contrário da maioria dos países, o salário real de um cubano sempre foi muito superior ao seu salário nominal, que seria um complemento. Todos os serviços fundamentais, e alguns que não o são, se converteram em gratuitos e universais. Isso sofreu certa deterioração. Segue sendo formado como antes, mas sofreu deterioração. O papel do dinheiro se ampliou. Esse fator há que se tomar muito em conta e observá-lo, porque é um fator de erosão do socialismo.
Em sua opinião, quais seriam as diretrizes principais do aprofundamento do socialismo em Cuba? Outra vez um telegrama. Esse tipo de respostas são telegráficas e os problemas não o são. De todo modo, sem nenhuma disposição para dar um receituário, porque isso não é possível, mas sem deixar de ser omisso, eu diria que várias coisas que parecem muito diferentes deveriam acontecer de modo simultâneo. É preciso assegurar a fortaleza de poder. Às vezes 230
alguns dizem, “não, para que se aprofunde o socialismo, o Estado deverá quase desaparecer”. Não estamos loucos. A fortaleza do poder precisa se manter — e bem grande. Porém, deve sofrer transformações em vários aspectos. A democratização terá que acontecer com uma mudança e uma restauração da legitimidade das autoridades. Em Cuba, foi legítima a autoridade nos últimos sessenta anos devido à sua grande revolução. E inclusive se pode personificá-la em Fidel, sobretudo, mas também em Raúl. E depois de Raúl, se acabou. Esse espírito histórico de legitimidade se acabou. Como fazer agora? Há mais de uma resposta. A minha é que não podemos convidar o capitalismo. Ou seja, há duzentos anos se defendia que o melhor para criar uma democracia era que houvesse três poderes: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. E que esses se contrapesem. Creio que não é preciso explicar aos brasileiros o que isso significa na realidade — não lhes fará falta. Nós não podemos pensar que, fazendo isso, vai ficar tudo bem. Mas fazendo o que ficaríamos bem? Teremos que correr riscos. E aí vem o problema: é preciso ser criativo. Não há outro remédio. Não é que nós sejamos propensos a ser criativos, é que não há outro remédio. E, nesse sentido, o poder deverá encontrar, por um lado, sua legitimidade de qualquer maneira e, por outro, aumentar sua eficácia como poder que tende a ser poder popular, e não o poder de um grupo. O poder de um grupo leva a uma degeneração que não está em nossos planos. A única maneira de evitá-lo é que se expanda, é compartilhar esse poder de muitas maneiras. Tampouco seria dizendo, demagogicamente, “agora é o poder popular porque todos…” Isso é mentira. É preciso criar um caminho, mas também é preciso percorrer esse caminho. Dizia Che Guevara — e por isso foi um dos nossos grandes pensadores: “Temos que partir fazendo o comunismo desde o primeiro dia, ainda que passemos a vida inteira tra231
tando de construir o socialismo”. Fidel Castro, quando fundou o Partido Comunista de Cuba em 3 de outubro de 1965, se referiu à necessidade de construir paralelamente o socialismo e o comunismo, e não como diziam por aí, por etapas. Isso segue vigente. Não é apenas uma verdade, mas também uma dor de cabeça, pois é preciso fazê-lo assim. Nós temos muitas coisas em nosso favor, e outras várias contra. Por isso eu prefiro não tratar de ser profeta, porque não me cai bem, mas sim dizer que, para mim, o que parece ter ficado muito claro com as demonstrações após a morte de Fidel é que o povo cubano não vai ceder em duas de suas sabedorias. Uma é que, ao restabelecer o capitalismo, a maioria sofreria, perderia quase tudo o que conquistou e reencontraria várias formas de ser subjugada, humilhada, explorada e pressionada. A segunda, que Cuba conseguiu, depois de 450 anos como colônia e neocolônia, ser totalmente livre — e, no meio de uma geopolítica terrível, foi livre durante sessenta anos. Aqui não há nada para negociar. O imperialismo pode mudar de parceiros, são coisas internas, mas não há nada que negociar da soberania de Cuba. O capitalismo pode ser atraente em alguns aspectos e terrível em todos os demais, mas os cubanos sabem bem do que se trata. Nesse sentido, a partir do que acabo de dizer, não digo que se vão resolver todos os problemas, mas é factível resolver os que virão.
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GLO SSÁ RIO
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COMECON OU CAME — O Conselho para Assistência Econômica Mútua foi um bloco econômico formado pela União Soviética e por países do Leste Europeu em 1949, no contexto da Guerra Fria, como um contraponto ao Plano Marshall dos Estados Unidos. O comércio preferencial entre os países do bloco era planificado e com preços fixos. Cuba se integrou em 1972, e seu ingresso ao Comecon é considerado um marco do aprofundamento da dependência da ilha em relação a Moscou. BLOQUEIO ECONÔMICO — Em 1959, a safra açucareira cubana
foi embargada pelos Estados Unidos. Essa foi a primeira medida de uma escalada de sanções que resultou no completo bloqueio econômico contra Cuba em 1961. É importante saber a diferença entre um embargo e um bloqueio. Enquanto o embargo costuma ser mais específico, obstruindo a compra de um ramo de exportação por um determinado período, o bloqueio indica um “embargo total”, a proibição de vários ramos de exportação. No caso de Cuba, o bloqueio estadunidense afetou as relações comerciais cubanas com diversos outros países do mundo, que ficaram proibidos de comercializar com os Estados Unidos caso realizassem trocas com Cuba ou ingressassem com seus navios de carga na Baía de Havana. O bloqueio tem consequências amplas e estruturais. Desde 2001, algumas empresas de alimentos e bebidas dos Estados Unidos estão autorizadas a vender seus produtos para Cuba, mas a compra de produtos cubanos segue proibida até hoje por decretos estadunidenses. 235
Segundo a definição clássica de Marx, o comunismo seria uma sociedade igualitária, sem classes sociais e sem Estado, em que cada indivíduo contribui de acordo com suas capacidades e recebe de acordo com suas necessidades, mediante relações sociais de produção não exploradoras. Contudo, no século xx a palavra “comunismo” foi marcada pela experiência soviética e pela atuação dos partidos comunistas do mundo, sendo muitas vezes identificada com políticas e práticas do stalinismo. Nesse sentido, é importante reconhecer que existem comunismos, isto é, a palavra é portadora de múltiplos conteúdos históricos, políticos e filosóficos. COMUNISMO —
CUENTAPROPISMO — Novo setor privado cubano que triplicou na última década, alcançando cerca de quinhentas mil pessoas, instaladas predominantemente nos serviços de restaurantes e habitação turística. A palavra vem de “trabalho por conta própria”. Para ser um cuentapropista, isto é, conduzir negócios privados na ilha, é necessário pedir permissão ao Estado e cumprir leis que delimitam a escala, o setor e os tributos do empreendimento. Alguns consideram que a palavra cuentapropista é inadequada porque acobertaria diferenças entre os proprietários de um negócio e seus funcionários, ambos chamados da mesma forma. Sabe-se que os cuentapropistas representam diferentes níveis de poder econômico: alguns contratam dezenas de funcionários e outros, nenhum; alguns acessam a moeda forte da ilha (cuc) e outros se mantêm na moeda fraca (cup). DESENVOLVIMENTISMO — Na América Latina, o pensamento econômico desenvolvimentista corresponde à defesa da industrialização como caminho de superação do subdesenvolvimento. Entre as décadas de 1950 e 1980, os economistas fundadores da Comissão Econômica para a América Latina e 236
o Caribe (Cepal) das Nações Unidas, como Celso Furtado, Raúl Prebisch, Aníbal Pinto, Jorge Ahumada e Juan Noyola, foram destacados representantes da proposta desenvolvimentista. O desenvolvimentismo se associou a políticas nacionalistas, com forte intervenção do Estado na economia, e reformistas, acreditando na possibilidade de um capitalismo socialmente justo. Também as esquerdas anticapitalistas da América Latina defenderam um programa desenvolvimentista, mas a partir de outra perspectiva: a de que a superação do subdesenvolvimento só era possível com uma revolução socialista. DIVISA — Moeda “forte” com grande poder de compra no mercado mundial. A principal divisa do século xx foi o dólar. Para os países subdesenvolvidos, a obtenção de divisas via exportações é fundamental para garantir a importação de bens de consumo à população, sejam alimentares ou industriais. Um dos dilemas da superação do subdesenvolvimento é como financiar a industrialização, pois a compra de máquinas estrangeiras demanda grande quantidade de divisas, e os países subdesenvolvidos costumam viver situações de “escassez de divisas”. No caso cubano, a escassez de divisas é uma dificuldade agravada pelo bloqueio econômico dos Estados Unidos. DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO — Organização assimétrica da economia mundial caracterizada pela especialização de países de passado colonial na exportação de produtos primários, e outros, antigas metrópoles, na venda de produtos industrializados. Essa divisão foi originada do processo colonizador e permaneceu vigente até o século xxi, com algumas crises e intervalos no século xx. Tal divisão é assimétrica, pois os produtos primários são historicamente mais baratos que os produtos industrializados, gerando uma troca desigual que aprofunda a distância entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. 237
Na divisão internacional do trabalho, as economias periféricas são exportadoras de matérias-primas e compradoras de produtos industrializados provenientes das “economias centrais”. São países com passado colonial, cujas estruturas produtivas foram formadas para atender as necessidades estrangeiras das metrópoles europeias. Apesar de suas independências políticas, tais economias seguem especializadas em vender recursos naturais até hoje, e são assim restringidas em sua soberania nacional, estabelecendo relações de dependência com as potências industriais e financeiras. ECONOMIA PERIFÉRICA —
Na Europa do pós-Segunda Guerra foram criadas políticas garantidoras de direitos sociais universais e gratuitos para toda a cidadania. Tais políticas se caracterizaram por oferecer educação e saúde públicas e gratuitas de alta qualidade, legislações com ampla proteção ao trabalhador, salário mínimo maiores que a média mundial, jornadas de trabalho de quarenta horas semanais ou menos, férias remuneradas, aposentadoria digna, entre outras garantias. Nesses países, a participação do mercado em alguns setores foi reduzida pelo protagonismo do Estado. Cabe destacar que os Estados de bem-estar social na Europa foram edificados por países colonizadores, que só puderam constituir tal riqueza pública devido aos séculos de absorção de recursos dos países colonizados e periféricos. ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL —
FULGENCIO BATISTA — O coronel Fulgencio Batista foi o ditador derrubado pela Revolução Cubana, que fugiu para a República Dominicana na madrugada de 1º de janeiro de 1959. Batista havia sido o chefe das Forças Armadas de Cuba desde 1934, e ocupara a presidência em duas ocasiões: após ter sido eleito, em 1940, e por meio de um golpe, em 1952. Após o golpe de 1952, Batista suspendeu a Constituição e criou um novo 238
Tribunal Constitucional integralmente nomeado por ele. Antes disso, viveu oito anos nos Estados Unidos e foi preparado para atuar como fiador dos interesses estadunidenses na ilha. Militar e empresário, em 1958 Batista era acionista de 65 empresas nos ramos de turismo, construção civil, agropecuária, meios de comunicação, bancos, transportes e serviços metropolitanos. Até hoje, é um personagem com alta rejeição na ilha, reconhecido por ser antinacional e corrupto. GUERRA DE INDEPENDÊNCIA — Entre 1898 e 1902, Cuba travou uma guerra contra a Espanha em busca da sua independência. Era a última colônia espanhola da América. Os Estados Unidos se envolveram na guerra contra o domínio espanhol com o interesse de anexar a ilha ao seu domínio. Embora a corrente anexionista, presente em Cuba e nos Estados Unidos, tenha sido derrotada em sentido estrito, ao final da guerra o governo formado pelos cubanos aprovou a Emenda Platt, que legalizava a livre intervenção militar estadunidense na ilha e entregava ao vizinho a base de Guantánamo, entre outros privilégios comerciais e geopolíticos. Por isso, o período posterior à guerra de independência é conhecido como período neocolonial, quando Cuba, como afirmou o historiador Julio Le Riverend, era uma república intervenida.
Corrente de opinião marxista que reivindica o pensamento e o legado de Ernesto Che Guevara como referencial político. O guevarismo se identifica por enfatizar o papel da consciência nos processos revolucionários, pela defesa dos estímulos morais à produtividade do trabalho e pela prática do trabalho voluntário como ação transformadora da sociedade e dos indivíduos. Che Guevara foi crítico dos manuais de economia da União Soviética. Por isso, o guevarismo também é marcado por sua independência em relação a modelos importados e por sua autenticidade latino-americana. GUEVARISMO —
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Para Che Guevara, a revolução socialista deveria estar alicerçada em valores como a solidariedade e o coletivismo, em um processo de transformação cultural e moral dos indivíduos rumo a uma humanidade menos egoísta e mais generosa. Para construir o socialismo, seria fundamental travar um combate contra os valores típicos do sistema capitalista, tais como a ganância, a cobiça, o consumismo e o individualismo. As bases econômicas do socialismo dependeriam diretamente da construção de uma “nova humanidade”, que se engaja no processo produtivo mais em busca do bem comum que do ganho individual. “HOMEM NOVO” —
Nascido em 1853, foi o líder intelectual e político da Guerra de Independência cubana. Exilado desde jovem, Martí transitou entre Espanha, México, América Central e Venezuela até estabelecer-se nos Estados Unidos. A partir de lá, desenvolveu intenso trabalho político, aglutinando as lideranças da Guerra dos Dez Anos (1868–1878) em torno de uma expedição que retomou a luta pela independência da ilha em 1895. Consciente de que essa causa confrontaria a Espanha mas também os Estados Unidos, Martí associou a emancipação cubana à unidade da parte da América que se configurava em oposição à potência do norte, e que ele chamou de “Nossa América”. Morto em 1898, nos primeiros combates da Guerra de Independência, Martí se tornou referência central do nacionalismo cubano e do ideário da unidade latino-americana. JOSÉ MARTÍ —
“PERÍODO ESPECIAL” — Termo usado para identificar a grave crise econômica vivida em Cuba entre a queda da União Soviética, em 1991, e a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, em 1998. A desaparição do bloco soviético gerou uma queda de 35% do pib e uma retração de 80% do comércio exterior cubano. Houve um rápido empobrecimento da população, que chegou a desenvolver patologias como a neuropatia, uma 240
perda temporária de visão relacionada à falta de vitaminas. Embora seja muito usado, o termo “período especial” é criticado por Fernando Martínez Heredia, que o considera um eufemismo inadequado. Ao mesmo tempo, a resiliência do governo à crise é um argumento empregado para demonstrar a confiança popular na Revolução Cubana. PLANTATION — Sistema agrário que caracterizou a colonização do território americano, constituído pelo tripé latifúndio (grande propriedade privada da terra), escravidão e monocultura de exportação (cultivo de um único produto para venda no mercado externo). É um conceito originalmente criado para explicar a agricultura colonial do sul dos Estados Unidos, embora tenha sido uma prática generalizada no Brasil, em Cuba, no Equador, na Guatemala, na Colômbia e no Haiti, entre outros países latino-americanos. Devido à origem estadunidense, o conceito é usado em inglês também nesses países. A plantation sintetiza um duplo sistema de dominação do capitalismo periférico: das burguesias internas (latifundiárias) e externas (que se beneficiam da divisão internacional do trabalho). SUBDESENVOLVIMENTO — Conceito histórico-estrutural que sintetiza uma série de características de países da América, da Ásia e da África, marcados por heranças coloniais profundas, tais como o caráter primário-exportador de suas economias, estruturas produtivas especializadas em satisfazer as necessidades estrangeiras, dependência de financiamentos externos, submissão à deterioração dos termos de troca, superexploração da força de trabalho, desemprego estrutural, segregação social, instituições políticas pouco democráticas, Estados oligárquicos, repressão de alta intensidade contra manifestações populares, entre outras. Existem muitas interpretações diferentes dadas ao conceito, sendo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) das Na241
ções Unidas identificada como a origem de uma teoria clássica do subdesenvolvimento, posteriormente criticada por diversos intelectuais latino-americanos. Segundo a definição clássica de Marx, o socialismo seria uma sociedade em transição ao comunismo, na qual as classes sociais e o Estado ainda existem, mas atravessam um processo de desintegração e reconfiguração em novas bases. É o período em que a “ditadura da burguesia” seria substituída por uma “ditadura do proletariado”, já que o poder burguês ainda existente necessitaria ser contido por medidas discricionárias. No socialismo, cada indivíduo contribui de acordo com suas capacidades e recebe de acordo com seu trabalho, mediante relações sociais de produção menos exploradoras e predomínio da propriedade estatal dos meios de produção. É importante reconhecer que existem muitos significados para socialismo, objeto de intensas polêmicas no século xx, diante das contradições desencadeadas pelo chamado “socialismo real”. SOCIALISMO —
Indica uma situação histórica na qual as relações do Antigo Sistema Colonial se desfizeram, mas a independência efetiva das sociedades coloniais ainda não foi atingida. Países que vivem relações neocoloniais já não são colônias, mas tampouco se transformaram em nações soberanas, permanecendo “presos” nessa transição. Trata-se de uma renovação das relações de dependência, marcada pela sofisticação das formas de controle externo das economias periféricas. No caso cubano, o período neocolonial ocorreu entre a independência da ilha perante a Espanha, em 1902, e a Revolução Cubana, em 1959. Foi marcado pela extrema subordinação de Cuba aos Estados Unidos, por meio da Emenda Platt (1902) e de tratados econômicos bilaterais (como de 1934 e de 1947). PERÍODO NEOCOLONIAL —
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A remessa de divisas é o dinheiro que os cubanos que vivem fora da ilha enviam aos seus parentes e amigos que vivem em Cuba. Embora não se possa ter uma contabilidade exata das remessas, sabe-se que esse dinheiro representa uma parte significativa dos ingressos cubanos. Muitos médios e pequenos empresários da ilha conseguiram iniciar seus negócios transformando essas remessas em capital inicial. Tornou-se uma das formas de atenuar a “escassez de divisas” no país, embora seja controversa, pois produz desigualdades sociais indesejadas. REMESSA DE DIVISAS —
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SO BRE OS AUTO RES
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ALINE DA COSTA LOURENÇO nasceu em Rio Pomba, no interior de Minas Gerais, em 1991. Discente do curso de mestrado em Economia e Desenvolvimento na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é economista formada pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ufrrj) em 2015. ANDRÉ MANUEL SANTOS VILCARROMERO nasceu em Campinas, São Paulo, em 1995. É aluno de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Filho de pai peruano e mãe brasileira, entusiasta da América Latina, participou de duas edições do programa Realidade Latino-Americana. Também é crítico de música nas horas vagas em seu blog pessoal VinewBlog, disponível em .
nasceu em 1994 na cidade de São Paulo. É aluna de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em que ingressou em 2013. Trabalhou na área de compras da empresa Braskem s. a. (petroquímica do grupo Odebrecht) e agora trabalha no Banco Santander Brasil, na área comercial. BÁRBARA BARRETO SOUZA
BIANCA GOYANNA PINHEIRO nasceu em 1996 em Salvador, Bahia. É aluna de graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), curso em que ingressou em 2014. Dentro da universidade participou do Diretório Acadêmico na gestão xvi de Julho no setor de 245
Movimentos Sociais e fez parte do Laboratório de Políticas Públicas Internacionais (laboppi). Tem interesse nos temas de classes sociais e América Latina. é professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
CARLOS CORDOVANO VIEIRA
é natural de Santo André, São Paulo. Cientista social formado pela Universidade de São Paulo (usp) em 2011 e estudante de graduação do curso de Ciências Econômicas e do mestrado em Desenvolvimento Econômico, ambos na Unicamp. Já atuou em coletivos de educação popular e foi pesquisador na administração pública na ebc entre 2014 e 2015. Atualmente realiza pesquisa na área de História do Pensamento Econômico, além de escrever alguns poemas.
CARLOS SEIZEM IRAMINA
é economista, professora da área de Relações Econômicas Internacionais do c urso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do programa de extensão Realidade Latino-Americana, no qual ingressou em 2014 com o interesse de estudar a inserção internacional dos países selecionados. FABIANA RITA DESSOTTI
FABIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor dos livros Origens do pensamento e da política radical na América Latina (Unicamp, 2016) e Além do pt: a crise da esquerda brasileira em perspectiva latino-americana (Elefante, 2016).
nasceu em Ribeirão Preto, São Paulo, em 1995. Em 2013 ingressou nos estudos de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e, desde então, engajou-se em grupos de pesquisa, além de ter GIOVANA BELTRAME
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participado da empresa júnior e de outras atividades extracurriculares, como monitoria e Centro Acadêmico. nasceu em 1995, em Osasco, São Paulo. Foi presidente de grêmios estudantis nos anos de 2010 e 2011. No ano de 2013, ingressou no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em 2016, integrou-se ao grupo Realidade Latino-Americana. Atualmente, milita junto à sociedade civil organizada para o fortalecimento do poder da juventude em sua cidade natal.
GUILHERME TACINI IBAÑES
HUDSON MOREIRA nasceu em 1996 na cidade de São Paulo. É aluno de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) desde 2014. Durante a graduação, realizou pesquisas de iniciação científica sobre o perfil político do eleitor nas periferias paulistanas. Atualmente, trabalha no Centro de Relações Internacionais da fgv-cpdoc e é titular no Conselho de Igualdade Racial de Osasco. JOANA SALÉM VASCONCELOS nasceu em São Paulo em 1987. É historiadora formada pela Universidade de São Paulo (usp), mestra em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora do livro História agrária da Revolução Cubana: dilemas do socialismo na periferia (Alameda, 2017). Faz doutorado em História Econômica na usp, pesquisando a reforma agrária no Chile da Unidade Popular e a contrarreforma de Augusto Pinochet. É professora nos ensinos médio e superior, e fundadora da Rede Emancipa de Educação Popular.
nasceu em 1995 em Bauru, São Paulo. É aluna de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) desde 2013. Participou do projeto Realidade Latino-Americana em 2015, quando viajou KEISE NAYARA FERNANDES PEREIRA
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para a Bolívia e o Peru. Nesse período, iniciou uma pesquisa sobre a integração infraestrutural sul-americana e a liderança brasileira. Atualmente, trabalha como consultora tributária para expatriados na Deloitte. KLAUS HERMANN HERINGER nasceu em Guaratinguetá, São Paulo, em 1994. Graduou-se em Relações Internacionais pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2016. Nos seus estudos descobriu o seu amor pela América Latina e aspiração pela Nuestra América, com enfoque em democracia, formação nacional e desenvolvimento econômico.
ingressou na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2013 para cursar Relações Internacionais. Desde então, se envolveu em projetos acadêmicos sobre identidade nacional, conflitos contemporâneos, América Latina e democracia. LETÍCIA RIZZOTI LIMA
nasceu em Mogi Guaçu, São Paulo, em 1994. É estudante de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). MARIA LAURA DE ALMEIDA BARUFI
nasceu em Campinas, São Paulo, em 1992. É economista formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e desde 2014 realiza pesquisas sobre desenvolvimento urbano, segregação social e gentrificação no contexto das cidades latino-americanas. MATHEUS GIOVANNI LUCHI PASCHOAL
MARCELO SOARES DE CARVALHO obteve os títulos de mestre em Desenvolvimento Econômico (Área Social e do Trabalho) em 2004 e doutor em Economia em 2011 pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Tem 248
experiência na área de Economia, com ênfase em Macroeconomia, Mercado de Trabalho e Políticas Públicas. PATRÍCIA SPOSITO MECHI é doutora em História Social e professora de Fundamentos de América Latina na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Pesquisa ditaduras latino-americanas, movimentos sociais e resistências. É autora do livro Protagonistas do Araguaia: camponeses, militantes e militares na guerrilha.
nasceu na cidade de São Paulo em 1993. É aluna de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), curso em que ingressou em 2014. Passou uma temporada de intercâmbio na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em Portugal. Participa do grupo de pesquisa “Conflitos armados, massacres e genocídios na era contemporânea” da Unifesp. RANI ANDRADE
nasceu em Osasco, em 1996. Em 2015 ingressou no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Integrou-se ao grupo Realidade Latino-Americana em 2016 e atualmente participa do Laboratório de Estudos Interdisciplinares e Análises Sociais (leia), realizando pesquisas na área de direitos humanos.
RENAN ALVES VIEIRA
é professor assistente do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Roraima (ufrr). Tem experiência na área de Sociologia do Desenvolvimento, com ênfase em Sociologia Brasileira e Formação do Brasil Contemporâneo.
RODRIGO CHAGAS
WALLAS GOMES DE MATOS nasceu em Poté, Minas Gerais, em 1991. Cursou Ciências Econômicas na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (ufvjm), campus do 249
Mucuri-Teófilo Otoni, vindo a ingressar em 2016 no mestrado em Economia e Desenvolvimento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Desde então participa do projeto Realidade Latino-Americana, além de desenvolver pesquisas acerca do processo de financeirização e da história do pensamento econômico.
Também participaram da viagem: estudante do ensino médio. ELLEN ELSIE NASCIMENTO, doutoranda em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (usp). ANTONIO FIX ARANTES,
FLÁVIA FORESTO PORTO DA COSTA,
jornalista de Marília, São
Paulo. FLORA DE JESUS GONÇALVES SANTOS, estudante do ensino médio. MARIA CLÁUDIA FERREIRA BARBARESCO, estudante de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). MARIA CLARA VAZELESK,
estudante da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (ufrj). MARIANA FIX, professora do Instituto de Economia da Univer-
sidade Estadual de Campinas (Unicamp). MELISSA PEDROSO MOURA, estudante de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
professor de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). VANDERLEI VAZELESK,
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Também participaram do programa mas não viajaram: nasceu em 1983 em Itaquaquecetuba, São Paulo. Concluiu o curso Licenciatura em História no ano de 2007, coordenando o grupo de estudos História dos Movimentos Sociais, e Especialização em História: política, cultura e sociedades, em 2011, pesquisando a história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst) no Vale do Paraíba na década de 1990, ambos na Universidade Guarulhos. Atualmente é mestrando no Programa de Pós-graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo (usp). ADIR DE ALMEIDA MOTA
Contribuíram com o grupo no processo de formação em São Paulo: JOANA SALÉM VASCONCELOS, CARLOS CORDOVANO VIEIRA, FABIO LUIS BARBOSA DOS SANTOS, TÂMIS PARRON, JOSÉ RODRIGUES MAO JUNIOR, YANET AGUILLERA, LUIZ FERNANDO AYERBE, FREI BETTO E PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JUNIOR.
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SO BRE O PRO JETO
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O programa de extensão Realidade Latino-Americana nasceu em 2014, inspirado na experiência de viagens militantes pela América Latina realizadas na virada do século. Formado por professores, estudantes de pós-graduação e graduação de diferentes universidades (Unifesp, USP, Unicamp, Unila, Unirio e UFRR) e áreas (História, Relações Internacionais, Economia), o grupo constrói, a cada ano, ciclos de três momentos: primeiro, a formação coletiva com aulas e palestras realizadas em São Paulo; segundo, a viagem de campo para os países estudados, com uma agenda previamente construída de entrevistas e visitas; terceiro, a divulgação dos aprendizados em forma de artigos, seminários, livros e exposições fotográficas. Desde sua origem, o projeto conta com a parceria do Memorial da América Latina, que sedia encontros de preparação e atividades de difusão. O Memorial também apoia a publicação de resultados das viagens na forma de livros eletrônicos que compõem a coleção “Pedagogia da Viagem”, cujo primeiro volume foi lançado recentemente. Em 2014, o projeto viajou para Colômbia e Venezuela. Em 2015, para Bolívia e Peru. Em 2016, Cuba, cuja experiência resultou no presente livro. Em 2017, Chile e Argentina. Para 2018, o país previsto é o México. Referenciado no pensamento crítico e radical da América Latina, o projeto pretende desenvolver um olhar histórico-estrutural sobre os conflitos políticos conjunturais, lançando mão de uma metodologia comparativa e uma pedagogia alicerçada no diálogo, mesclando pesquisa, ensino e extensão em um mesmo processo formativo. 253
[cc] Editora Elefante, 2017 Você tem a liberdade de compartilhar, copiar, distribuir e transmitir esta obra, desde que cite a autoria e não faça uso comercial. 1a edição, outubro de 2017 5a reimpressão, junho de 2019 São Paulo, Brasil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB–8/7057 Cuba no século X X I : dilemas da revolução / organização de Fabio Luis Barbosa dos Santos, Joana Salém Vasconcelos, Fabiana Rita Dessotti. – São Paulo : Elefante, 2017.
256 p.
Bibliografia I S B N 978-85-93115-06-6 1. Cuba 2. Cuba – Política e governo 3. Cuba – Aspectos sociais 4. Cuba – Aspectos Econômicos 5. Cuba – História I . Santos, Fabio Luis Barbosa dos I I . Vasconcelos, Joana Salém I I I . Dessotti, Fabiana Rita 17-1443 Índices para catálogo sistemático: 1. Cuba : Condições sociais
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972.91
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