Crítica dos Fundamentos da Psicologia - A psicologia e a psicanálise [1, 3ª ed.] 8585541083


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Português brasileiro Pages 194 Year 1998

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Table of contents :
Preâmbulo
Introdução
As descobertas psicológicas na psicanálise e a orientação para o concreto
A introspecção clássica e o método psicanalítico
O arcabouço teórico da psicanálise e as sobrevivências da abstração
A hipótese do inconsciente e a psicologia concreta
A dualidade do abstrato e do concreto na psicanálise e o problema da psicologia concreta
Conclusões -- As virtudes da psicologia concreta e os problemas que levanta
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Crítica dos Fundamentos da Psicologia - A psicologia e a psicanálise [1, 3ª ed.]
 8585541083

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CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA P SIffllfflA A psicologia e a psicanálise G eo r g es P o u t z e r

& PSICANÁLISE f il o s o f ia

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA REITOR

Almir de Souza Maia VICE-REITOR ACADÊMICO

Ely Eser Barreto César VICE-REITOR ADMINISTRATIVO

Gustavo Jacques Dias Alvim EDITORA UNIMEP CONSELHO DE POLÍTICA EDITORIAL

Almir de Souza Maia (presidente) Antonio Roque Dechen Casimiro Cabrera Peralta Elias Boaventura E y Eser Barreto César (vice-presidente) Francisco Cock Fontanella Gislene Garcia Franco do Nascimento Nivaldo Lemos Coppini Rinalva Cassiano Silva COMISSÃO DE LIVROS

Angela Maria Cassavia Jorge Correa Francisco Cock Fontanella (presidente) Maria Guiomar Carneiro Tomazello Nádia Kassouf Pizzinatto Rosângela Maria Vanale EDITOR-EXECUTIVO

Heitor Amflcar da Silveira Neto

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CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA G eo rg es Po ltizer

Tradução M a rc o s M a rc io n ilo e Y v o n e M a r i a d e C a m to s T e ix e ir a d a S ilv a

Prefácio O s m y r F a r i a G abbi Jr.

Indicação editorial e revisão técnica

MÁRCIO Maricueia

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FILOSOFIA & PSICANÁLISE

Título original

Critique des fondements de la psychologie La psychologie et la psychanalyse © Presses Universitaires de France, 1968 3a edição: outubro de 1994 © 1928, Éditions Rieder Copyright © 1998 no Brasil da Editora UNIMEP

POLITZER, G e o rg e s

Crítica dos fundam entos da psicologia: a psicologia e a psica­ nálise. T rad. M arcos M arcionilo e Yvone M aria de Cam pos Teixeira da Silva. Piracicaba: Editora UNIMEP: 1998. 194 p. 21,6 cm. (Filosofia e Psicanálise, n° 1)

mM

ISBN 85-85541-08-3 1- Psicanálise 2- Psicologia - Crítica dos fundamentos da. CDU 159.964.2

Coordenação editorial

Heitor Атйсаг da Silveira Neto Secretaria

Ivonete Savino

* * t* tm A л

Assistente adm inistrativo

Altair Alves da Silva Revisão de texto

Alexandre Bragion Capa

Cenival Cardoso O Sonho, Pablo Picasso, 1932 - 130 cm x 96,5 cm, coleção particular DTP e produção

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Gráñca UNIMEP Impresso em Duplicadora Digital Xerox Docutech 135

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Ficha Catalográfica

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Regina Fraceto EDITORA UNIMEP w w w .unim ep.br/~ editora

Rodovia do Açúcar, km 156 13400-911 - Piracicaba, SP Telefone/fax: (019) 430-1620 E-mail: [email protected]

PREFÁCIO CONSIDERAÇÕES SOBRE A ETERNA JUVENTUDE D A PSICOLOGIA: O CASO D A PSICANÁLISE

O sm y r Fa r ia G a b b i Jr .

Em 1947, cinco anos após Politzer ter sido executado pela Gestapo, Kanapa publica, sob o título de “La crise de la psychologie contemporaine”, dois ar­ tigos do notável pensador húngaro, escritos em 1928 e 1929, nos dois únicos números de Revue de Psychologie Concréte} A justificativa para a nova edição é claramente indicada: “desde 1929, a situação não m udou”.*12 Podemos comple­ tar, passados setenta anos: os nomes são outros, os vocabulários são diferentes, mas os pressupostos centrais da chamada psicologia clássica, nome dado por Po­ litzer para designar aquilo que é comum a todas as psicologias existentes, per­ manecem os mesmos. A Crítica dos Fundamentos da Psicologia, escrita em 1928, permanece uma obra atual e só se tomará um monumento histórico quando seu objetivo final for alcançado, ou seja, rjuando a psicologia, tal como a conhecemos, deixar de existir. Politzer foi demasiadamente otimista quando acreditou que, “Daqui a cinqüenta anos, a psicologia auténticamente oficial de hoje aparecerá como aparecem agora a alquimia e as fabulações verbais da física peripatética. Brin­ car-se-á ainda com as fórmulas retumbantes pelas quais se iniciaram os psicó­ logos 'científicos' e com as penosas teorias a que chegaram; com esquemas

* D outor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USF); livre docente em Epistemologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde é professor no Depto. de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciêndas Humanas. É autor do livro Freud: racionalidade, sentido e referência (Campinas: Cen­ tro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência - Únicamp, Coleção CLE, 1994). 1 POLTTZER, G. La Crise de la Psychologie Contemporaine. J. Kanapa (org.). Paris: Éditions Sociales, 1947. 2 POLITZER, G. Op. cit, p. 10.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

V

estatísticos e esquemas dinâmicos, e a teologia do cérebro constituirá um estu­ do divertido, como a teoria antiga dos temperamentos — logo, porém, tudo será relegado à história das doutrinas incompreensíveis e estranhar-se-á sua persistência, como se faz hoje com a escolástica.'’3 A gravidade, a relevância e a pertinência da crítica foram atenuadas logo após a publicação do livro. Politzer entendeu muito rapidamente que a sua aceitação generalizada, por parte dos psicólogos franceses, era a forma mais rá­ pida de desconsiderá-la. Seus principais representantes apressaram-se em dizer, já em 1929, que eram todos psicólogos concretos; assim não precisaram alterar uma linha de seu pensamento.4 Mesmo muito tempo depois, em 1960, no VI Colóquio de Bonneval, a homenagem prestada por Laplanche e Leclaire (“Que a situação especial que reservamos à Crítica dos Fundamentos da Psicologia seja considerada uma homenagem a um autor [...] cuja influência sobre o futuro da psicanálise na França não se tem sublinhado devidamente”5) é, como vere­ mos, uma forma de descaracterizar o essencial da crítica, de modo a perpetuar a psicologia clássica sob formas mais sutis. Nosso objetivo é triplo: descrever os pressupostos da psicologia clássica, indicar como a proposta de Politzer consiste em sugerir um novo modelo fun­ dador para a psicologia e, finalmente, apontar, de forma sumária, como a psi­ canálise lacaniana apropriou-se, sem muito recato e talvez sem nenhuma clareza, de algumas idéias básicas da Crítica..., mas deu a estas uma roupagem que tomou possível renovar homenagens como a de Bonneval. OS PRESSUPOSTOS DA PSICOLOGIA C1ÁSSICA Sob o nome de psicologia clássica, Politzer relaciona uma série de pressupos­ tos compartilhados por diversas escolas psicológicas, que certamente não se re­ conheceriam sob esse título. Seus adeptos tampouco encontrariam quaisquer relações de parentesco entre si; eles preferem acreditar que, de fato, existem psi-

3 Crítica dos Fundamentos da Psicologia, p. 40. 4 Em “O u va la psychology concrete?’, o capítulo II da coletânea La Crise de la Psychologic Contemporaine, Politzer observa ironicamente: “os mais abstratos psicólogos realizaram um ‘retom o sobre eles mesmos’ e descobriram subitam ente que, já há m uito tempo, eram partidários da psicologia concreta” (p. 92). 5 LAPLANCHE, J. & LECLAIRE, S. “O Inconsciente: um estudo psicanalítico”. 1966. In: O Inconsciente. EY, Henri. Trad. José Batista. Rio de Janeiro: T em po Brasileiro, 1969, p. 111.

VI Prefacio

cologias e que uma possível unidade só existiria enquanto especialidades de uma mesma profissão, ou seja, a unidade da psicologia não seria teórica, porém prática.6 Entretanto, para quem pretende realizar uma crítica essencial dos fun­ damentos da psicologia, é vital assinalar a unidade profunda que existe por trás da suposta diversidade e da eterna querela das escolas. Nesse sentido, deve-se compreender, antes de mais nada, que a Crítica... inicia-se pela apreciação de três tipos de psicologia, aparentemente, muito diferentes: a teoria da Gestalt, o behaviorismo e a psicanálise de Freud. Não se trata de propor um híbrido cons­ truído com pedaços retirados aqui ou acolá de cada um dos três tipos. Na ver­ dade, cada um deles, por razões diversas, já apresenta— ao lado de pressupostos da psicologia clássica — indícios evidentes de que é viável a construção de uma outra psicologia.7 A teoria da Gestalt é valorizada porque refuta a crença de que o psicológico é, em sua essência última, algo elementar. Em outras palavras, a psicologia clás­ sica conjetura — isto é, antes de iniciar qualquer investigação empírica — que a forma última do psicológico seria atomística (Pa). Esse atomismo é substitu­ ído na Gestalt pela crença de que o psíquico só pode ser entendido como tota­ lidade e não enquanto elementos distintos que são posteriormente associados. Entretanto, subsiste na Gestalt a tese de que o psicológico é aprendido de for­ ma imediata pela percepção (P2). O behaviorismo de Watson, apesar de também partir da assertiva de que o fato psicológico é um dado perceptivo, é saudado porque denunciou o caráter mi­ tológico de outra tese muito cara à psicologia clássica: a presunção de que exis­ ta uma vida interior (P3). A tese da vida interior, o último refúgio do animismo — pois eqüivale a acreditar que há seres dentro de nós que agem, têm intenções e são dotados de vida própria —-, leva necessariamente a dirigir a atenção do psicólogo para processos internos que, não sendo de natureza fisiológica — caso contrário seriam objeto da fisiologia e não da psicologia —, têm de ser

6 G. CANGUILHEM critica a proposta de Lagache de definir a psicologia como a “teoria geral da con­ duta, síntese da psicologia experimental, da psicologia clínica, da psicanálise, da psicologia social e da etno­ logia” dizendo que “essa unidade assemelha-se mais a um pacto de coexistência pacífica acordado entre profissionais do que a uma essência lógica, obtida pela revelação de um a constante em um a variedade de casos”. “Q u’est-ce que la psychologie” (1956). In: Cahiers pour ¡'Analyse, 1/2, Paris: Seuil, 1966, p. 78. 7 É im portante atentar para o fato de que Politzer não está procurando encontrar, para cada um a das psicologias mencionadas, aquilo que lhes falta para transformá-las ¡m ediatam ente em psicologia con­ creta. Bas são usadas para evidenciar os pressupostos da psicologia clássica. Nesse sentido, os seus equí­ vocos são tão ou mais im portantes que seus acertos.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA VII

pensados como de natureza representativa. Contudo, o behaviorismo, por não conseguir recusar totalm ente essa mitologia, fica condenado ou a realizar estudos fisiológicos ou a introduzir sob uma forma disfarçada aquilo mesmo que rejeita. Esta aporia é expressa de forma exemplar por Greco: “É a infelici­ dade do psicólogo: nunca está certo de que 'faz ciência’. Mas se a faz, nunca está certo de que seja a psicologia."8 Assim, para ficarmos em exemplos mais recentes, o behaviorismo de Skinner, que explícitamente rejeita a opção pela fisiologia, acaba pór cair na própria mitologia que condena, quando julga que a psicologia deveria estudar o que ocorre fora da caixa preta, ou seja, os estímu­ los e respostas do organismo.9 Ora, abandonar totalm ente o mito da vida in­ terna é começar por acreditar na inexistência de qualquer modalidade de caixa preta e que a linguagem não é e nem nunca será relato de estados subjetivos. As va­ riantes ainda mais recentes — não se pode jamais falar em progresso em psi­ cologia sem ser um pouco irónico —, que consideram que a mente é o software enquanto o cérebro é o hardware, apenas modificam o vocabulário: continu­ am presas dentro dos mesmos parâmetros que paralisaram a investigação de Watson. Entretanto, é a psicanálise de Freud, tal como exposta principalmente em Traumdeutung,10 que Politzer usa para ilustrar ao mesmo tempo a forma de pensar da psicologia clássica e os indícios de que seus dias estariam contados. A psicanálise é apreciada porque parece romper com o quarto pressuposto da psicologia clássica: a crença de que o psíquico resulte de processos e não de atos de pessoas concretas (P4). Para começar a entender esse aspecto central da Crítica..., é preciso empre­ ender uma rapidíssima excursão pelas paisagens de uma outra crítica, muito mais fundamental, a Crítica da Razão Pura, de Kant. Politzer não esconde que sua Crítica... é parte de seu projeto filosófico de restaurar, contra o neokantismo dominante no cenário francês da década de 20, aquilo que ele acredita ser o elemento mais significativo da obra de Kant: o papel essencial do sujeito e da

8 GRECO, P. “Epistémologie de la psychologies In: PIAGET, J. Logique et connaissance identifique. Paris: Gallimard, 1967, p. 937. 9 O artigo “Critique of psychoanalytic concepts and theories”, de B.F. SKINNER, é extrem am ente esclarecedor e merece ser lido. In: Minnesota Studies in the Philosophy of Sdence, FEIGI, H. & SCRIVEN, M . (orgs.). Minnesota: University of M innesota Press, 1956, pp. 77-87. ,0 FREUD, S. (1900). Die Traumdeutung. In: Gcsammeltc Wcrkc, II/III. Frankfurt: S. Fischer, 1976. Daqui por diante, Traumdeutung.

VIII helado

experiência na produção do conhecimento.11A chamada revolução copemicana de Kant consistiu em acreditar, com o empirismo, que somos afetados pelos objetos e que, todavia contra o empirismo, só podemos conhecê-los à medida que impomos a eles certas condições a priori. Ora, a primeira proeza da psico­ logia clássica consiste em transformar, apesar de todas as advertências do pró­ prio filósofo, o sujeito do conhecimento em sujeito psicológico; em seguida, ela o despoja de qualquer papel na produção do psíquico; finalmente, o fato psico­ lógico passa a ser estudado como se fosse algo em si, ou seja, algo totalmente exterior a qualquer sujeito. Traduzindo para um vocabulário mais simples, a psicologia clássica transforma o sujeito em observador do psíquico, isto é, em um sujeito capaz de realizar introspeções. O sujeito, transformado agora em psicólogo, relata observações sobre seus estados internos, que resultam de pro­ cessos em que ele não desempenha mais qualquer papel, ou seja, o psíquico não é considerado como um produto seu, mas, por exemplo, como resultado da aprendizagem, da memória, do aparelho perceptivo que são, por conseguinte, investigados como objetos em si.12 No entanto, não é apenas o último pressuposto que seria questionado pela psicanálise. Contra P„ Freud parece sugerir que o fato psicológico não seja elementar e só possa ser entendido como parte de uma tram a — o sonho, por conseguinte, seria apenas o indício de um certo estado de coisas e só poderia ser compreendido quando colocado nesse quadro mais amplo. Tampouco o psí­ quico teria uma natureza imediata e perceptiva; ao contrário, ele seria apreen­ dido através de inúmeras mediações e suporia interpretações por parte do analista. Em relação a P3, a coisa é um pouco mais delicada. Embora Politzer,

11 Ver o artigo “Politzer dans ses écrits”, de VOUTSINAS, D. (in: Bulletin de Psychologie, 408, XLV, 1618, Paris, 1991-1992, p. 742); em especial, o terceiro parágrafo. Kant procurou m ostrar o que tomava possível a experiência em geral e quais as condições a priori que permitiam a constituição dos fenôme­ nos físicos, tais como descritos pela física de Newton, com o objetivo de dem onstrar o que justificava de jure ela ser vista de facto como um a ciência. Politzer parte da constatação da esterilidade da investigação psicológica e interroga-se sobre quais seriam as condições a priori supostas pelos psicólogos para consti­ tuir a experiência psicológica. A seguir, trata-se de mostrar porque tais condições justificam de jure essa esterilidade. Da mesma forma que Kant não exigia que Newton fosse um filósofo, Politzer não requer que os psicólogos ou Freud sejam filósofos. Mas, independentemente de sua vontade, todos eles fazem opções de natureza filosófica quando constroem seu campo de investigação. Ver Psychology and the Philo­ sophy of Science (TURNER, M í . New York: Appleton-Century-Crofts, 1967) para constatar a ingenui­ dade de supor que seja possível constituir fatos na ausência de quaisquer pressupostos teóricos. 12 A psicologia clássica, segundo Politzer, transforma os acontecimentos vividos pelos hom ens em pro­ cessos que ocorrem no interior da m ente - realismo -, processos em seguida substantivados - abstracionismo - e tratados como classes de fenômenos psíquicos em que se perde toda significação individual formalismo.

CRÍTKA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

IX

sem dúvida, julgue que os exemplos de interpretação onírica de Freud em Traumdeutung indiquem claramente que não se seria obrigado a crer na existência de uma vida interna; todos os fatos apresentados durante a análise referem-se a situações em que a subjetividade é compartilhada. Nestas, a relevância recai sobre os atos do sujeito e não sobre processos intemos, o que nos leva de novo à rejeição de P4 Contudo — Politzer é o primeiro a reconhecer —, se Freud aparentemen­ te combate os quatro pressupostos da psicologia clássica durante os capítulos iniciais de Traumdeutung, no sétimo, “Zur Psychologie der Traumvorgánger”, temos uma recaída completa.13 Tudo se passa como se os primeiros capítulos descrevessem a experiência analítica e o sétimo tentasse reintroduzi-la à força no interior da psicologia clássica. Sem dúvida o leitor já se deu conta de que foi Po­ litzer quem inaugurou a idéia de que haveria na obra de Freud algo de muito valioso recoberto por uma camada grosseira, que deveria ser retirada de modo a podermos recuperar a sua essência. Antes de estudar se essa leitura é possível — e acredito firmemente que Politzer seja o comentador que menos deturpa a letra freudiana nessa empreitada digna de Sísifo —, convém investigar mais de perto o modelo que parece orientar a própria psicologia clássica. DO ESPELHO INTERNO AOS ATOS DRAMÁTICOS Koyré descreveu um dos aspectos da revolução científica do século XVII como a passagem de um modelo do mundo concebido como fechado para um modelo que entende o universo como infinito.14Da mesma maneira, é possível tentar esboçar o modelo que nortearia as crenças da psicologia clássica. Ela con­ cebe a mente como um espelho interno cjue reflete os objetos externos.15 Nesse sen­ tido, a tarefa primeira do psicólogo é pedir ao agente que descreva os reflexos no espelho. Esses relatos são em seguida comparados com a realidade. O trabalho

13 “É preciso acrescentar que Freud se exprime em term os de ‘representações’, de 'estados efetivos’ etc., e essa linguagem o leva para o cam po de influência da psicologia clássica. Isso é particularmente visível na Tsicologia dos processos do sonho’. A análise desse capítulo em que veremos Freud como dilacerado entre a psicologia abstrata e a psicologia concreta será instrutiva ao mais alto grau." Crí­ tica..., p. 112. 14 KOYRE, A Du Monde Cios à 1'Vnivers Infmi. (1957). Trad. Raissa Tarr. Paris: Gallimard. 1973, p. 12. 15 Essa metáfora sobre a essência especular de nossa m ente é analisada em grande detalhe por RORTY, R., em Philosophy and the Mirror of Nature. N ew Jersey: Princenton University Press, 1979.

X Prelado 7

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do psicólogo estaria terminado quando ele descrevesse os mecanismos que tornam possível o funcionamento do espelho. Os quatro pressupostos mencionados da psicologia clássica estão todos presentes no modelo da mente como espelho. Os objetos do mundo desper­ tam sensações que, por sua vez, geram representações na mente. Assim, o fato psicológico é dado de forma imediata pela percepção (PJ sob a forma de sensa­ ções elementares (P,) que produzem representações internas (P3). O estudo da psicologia está voltado para os processos (P4) que permitem ao agente consti­ tuir uma imagem do mundo. Uma forma interessante de descrever os equívo­ cos da psicologia clássica é presumir que ela tenha: (1) transformado a observação de Kant, perfeitamente legítima no contexto de uma teoria do Co­ nhecimento ('Todos os nossos juízos são inicialmente apenas juízos percepti­ vos: eles têm validade apenas para nós, ou seja, para nossa subjetividade, e somente mais tarde nós lhes damos uma nova referência, referência a um ob­ jeto, e queremos que eles sejam válidos para nós em todos os momentos e igualmente para todas as outras pessoas...”16), em um enunciado empírico so­ bre a génese do próprio fato psicológico e (2) desconsiderado do enunciado de Kant toda referência ao sujeito para reter apenas a referência ao objeto. A conseqüéncia do segundo equívoco eqüivale, em termos kantianos, a retomar a uma teoria do conhecimento empirista, ou seja, à crença problemática de que seria possível conhecimento sem qualquer contribuição por parte do sujeito. Essa química da mente —- a forma pela qual essas teses aparecem na história da filosofia de uma maneira muito mais sofisticada do que aquela desenvolvida pela psicologia clássica — pode ser estudada apropriadamente na obra de Stuart Mill.17 Essa forma de apresentação do modelo do espelho interno permite estu­ dar um quinto pressuposto (P5) da psicologia clássica, denominado por Politzer “postulado da convencionalidade do significado”, que reza que os relatos têm apenas um sentido convencional. Não é difícil entender a sua necessidade, da­ dos os pressupostos anteriores. Para que se possa verificar em que medida a

16 KANT. I. (1783). “Prolegomena zu einer jeden ldinftigen Metaphysik, die ais Wissenschaft wird auftreten kõnen”. In: Werkausgabe, Band V. WEISCHEDEL, Wilhelm (org.). Frankfurt: Suhrkamp, 1968, p. 163. 17 U m a descrição adequada do programa de Mill para a psicologia empírica encontra se em Psychologi­ cal Analysis and the Philosophy of John Stuart Mill. WILSON, F. Toronto: University of T oronto Press, 1990.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

XI

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mente reflete adequadamente os objetos extemos, é preciso presumir que a função básica da linguagem seja denotar as representações produzidas pelas sensa­ ções. Em outros termos, o pensamento tem de ser concebido como uma asso­ ciação complexa de representações cuja tarefa primordial é espelhar de forma apropriada a realidade externa. A única maneira de acesso ao pensamento, pro­ cesso intemo, é expressá-lo em palavras, manifestação externa. Por conseguintq “os relatos do sujeito não só pressupõem o pensar como são ao mesmo tempo o seu índice”.18 Para que essa série de relatos subjetivos possa ser consi­ derada objetiva, os relatos devem comunicar todas as vezes algo comum e constante; caso contrário, não haveria como diferenciar alucinação de repre­ sentação apropriada da realidade. Nesse sentido, para a psicologia clássica, o so­ nho não constitui um fato psicológico, pois não só ele não parece refletir nenhuma realidade externa como é impossível comprovar seu sentido co­ mum. Por conseguinte, o sonho é entendido como resíduo de um processo fi­ siológico, ou seja, como uma manifestação sem sentido. As tentativas de diversos pesquisadores para encontrar uma fonte para o sonho são apenas a tentativa de buscar uma referência externa e objetiva. Até mesmo para a psico­ logia clássica deve ter soado estranha a tese de que a mente seria capaz de gerar produtos espontâneos. No lugar do modelo baseado no espelho, Politzer propõe que a psicologia tome o teatro como sua metáfora fundamental.19 Não devemos pensar que ele esteja sugerindo que o psicólogo deixe de ser um desajeitado aprendiz da ativi­ dade científica para se transformar em uma espécie deesteta. Longe disso: Polit­ zer não é Wittgenstein.20 Este último, em suas esparsas observações sobre a

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18 Michel Foucault observa que “a psicanálise nunca chegou a fazer as imagens falarem” (Introduc­ tion, 1954. In: Dits et Écrits, I. DEFERT, D. & EWALD, F. - org. Paris: Gallimard, 1994, p. 73). No entanto, acreditamos que Freud tam pouco deixa a linguagem falar: ele considera as palavras, da mesma forma que as imagens, como meros índices do pensamento. 19 Politzer esclarece a noção de drama por ele utilizada: T o m a m o s o term o ‘dram a’ na sua acepção mais inexpressiva, descolorida ao m áxim o de todo sentim ento e de toda sentimentalismo; na acepção que ele pode ter para um encenador; em resumo, na sua acepção cênica. O teatro deve im itar a vida? A psicologia, para escapar de um a tradição milenar e para retom ar à vida, talvez deva im itar o teatro” (Bulletin de Psychologie, p. 794). 20 A única razão de mencionar W ittgenstein foi indicar que a crítica feita por Politzer à psicologia clássica pode ser realizada a partir de outros horizontes filosóficos que não passam por Hursserl, Hegel ou Heidegger. Por exemplo, no final de Philosophical Investigations (1953), W ittgenstein escreve: “A con­ fusão e a esterilidade da psicologia não devem ser explicadas qualificando-a de 'ciência jovem’; seu estado não é comparável, por exemplo, com o da física nos seus primórdios. [...] Pois na psicologia há métodos experimentais e confusão conceitua!” (trad. G.E.M. Anscombe. Oxford: Blackwell, 1972, p. 232).

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XII Prefácio

psicanálise, acredita que, apesar de uma série de equívocos, Freud foi capaz de propiciar algumas interessantes explicações estéticas.21 Para o primeiro, mais uma vez, a inspiração é kantiana: quem sabe, abandonando essa pretensão alu­ cinada de fazer uma ciência da coisa em si,22 se os psicólogos não poderão contri­ buir para a construção de um saber empírico sobre as atividades concretas de homens concretos, cooperando, dessa forma, para a constituição de uma antro­ pologia. Para entender o novo modelo, é interessante apreciar como ele substitui cada um dos pressupostos da psicologia clássica por novos pressupostos que efe­ tivamente constituem um programa viável de investigação empírica. Contra P„ a experiência prática dos homens23 ensinou que o fato psicológico não é elementar. Sempre que vamos ao teatro e assistimos a uma peça constata­ mos que o conteúdo dramático não pode ser dissolvido em conteúdos elementa­ res. Cada cena revela um fragmento do conteúdo dramático, que só adquire o seu pleno sentido quando conseguimos inseri-lo na trama tecida progressivamente diante de nossos olhos. Por conseguinte, Politzer acredita que os “fatos psico­ lógicos deverão ser os segmentos da vida do indivíduo particular”24 Tampouco devemos m anter P2. 0 fato psicológico, concebido a partir da metáfora do teatro, não é um dado; ao contrário, é construído e supõe sempre um ato interpretativo por parte do psicólogo concreto: “Seu método não será, portanto, um método de observação pura e simples, mas um método de inter­ pretação.”25

21 W ittgenstein, segundo notas de Rush Rhees (1946), comenta sobre o tipo de explicação que Freud fornece em Traumdeutung: “Você poderia começar com qualquer um dos objetos desta mesa - que evi­ dentem ente não foram postos aqui por via de sua atividade onírica - e comprovar que todos eles pode­ riam estar correlacionados num a configuração assim; e a configuração seria igualmente lógica” {Esté­ tica, Psicologia c Religião, trad. José Paulo Paes. São Paulo: Editora Cultrix, 1970, p. 87). Em outros ter­ mos, as supostas explicações de Freud apenas fornecem formas de apresentação-, ele é incapaz de prever as configurações efetivas, como ocorreria caso as explicações fossem realmente científicas. 22 Se o leitor acha que Politzer exagera na sua crítica de que a psicologia procura realizar a impossível tarefa de fazer a ciência da coisa em si, basta recordar a seguinte passagem de Freud em “Das U nbew ubte”: “Mas com satisfação aprenderemos que a correção da percepção intem a não oferece difi­ culdades tão grandes como a externa, que os objetos intem os são m enos incognoscíveis que os do m undo extem o” (in: Studienausgabe, Band III. Frankfurt: S. Fischer, 1915, p. 130). О principal equívoco da psicologia clássica, conforme já deve ter ficado patente, é transformar questões conceituais em ques­ tões empíricas. 23 Politzer acredita que a psicologia clássica seja mitológica. Para ele: “os produtos da tradição dramá­ tica: a literatura, o teatro, e a praktische Menscherkenntnis [o conhecimento prático do homem] (...) representam no seu conjunto a verdadeira psicologia pré-científica”. La Crise..., p. 70. 22 Crítica.., p. 67. 25 Ibid., p. 68.

CRÍnCA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA XIII

O palco é o lugar em que os atores desempenham seus papéis e, para nós, esse cenário é suficiente e, na realidade, o único relevante para entender a vida de cada um dos personagens. Não recorremos à vida pessoal do ator para com­ preender o motivo de Hamlet hesitar diante de seus próprios desígnios. Da mesma maneira, o psicólogo concreto abandona P3, ou seja, o mito da vida in­ terior. Os atos do agente são suficientes, não há necessidade de recorrer a uma outra cena. O objeto de nossa atenção é sempre o personagem e não algum processo transformado em objeto. Assim, por exemplo, o que nos impressiona é o ciúme de Otelo e não o ciúme; a ambição de Ricardo III e não a ambição. A psicologia concreta está voltada para o estudo do agente e, portanto, abandona P4, ou se­ ja, a investigação dos processos que ocorreriam no interior do indivíduo. Finalmente — e acredito que este seja o ponto nuclear da crítica de Politzer a Freud, como veremos a seguir —, a psicologia concreta renuncia à crença no postulado da convencionalidade do significado. Para entender o sentido dessa re­ núncia e iniciar a resposta sobre o que tomou possível a leitura que Politzer fez de Traumdeutung, é suficiente examinar a homenagem prestada por Laplanche. O INCONSCIENTE E A PSICOLOGIA CONCRETA Para Politzer, é possível nomear a tentativa de Freud de coagir a experiên­ cia analítica a submeter-se aos pressupostos da psicologia clássica recorrendo a um único termo: o inconsciente.26 A descoberta maior de Freud não teria sido a descoberta de processos inconscientes ou mesmo do próprio inconsciente, mas deslocar: “o interesse das entidades espirituais para vida dramática do indiví­ duo” e poder passar “da investigação da realidade interior para ocupar-se ape­ nas com a análise do ‘drama’”.27 Ora, a noção de inconsciente — e isto é, para muitos, quase uma trivialidade — traz para o primeiro plano a vida interior. Assim, Laplanche procura responder às objeções contra o inconsciente, formu­ ladas por Politzer, tentando mostrar que elas apenas se aplicariam a uma con­ cepção de inconsciente entendido enquanto latente mas não no sentido

26 Em Crítica..., encontramos, por exemplo: “o inconsciente só representa na psicanálise a medida da abstração que sobrevive no interior da psicologia concreta” ou “o inconsciente é inseparável dos procedimen­ tos fundamentais da psicologia abstrata e que, longe de constituir, na psicanálise, um progresso, indica precisamente um a regressão: o abandono da inspiração concreta e a volta aos procedimentos clássi­ cos”. pp. 131 e 153, respectivamente.

27 Crítica..., p. 103.

XIV Prefácio

dinâmico, uma vez que a psicanálise “funda a existência autónoma do incons­ ciente [...] nos fenômenos do recalque, da resistência, em última análise, na noção de conflito, nessa dialética à qual apela Politzer aqui, mas em vão, por­ que ele eliminou a distinção dos planos que lhe permitiria funcionar”.28 Iniciamos pelo final da réplica de Laplanche: o conflito é essencial para ca­ racterizar a descoberta psicanalítica, contudo só se pode expressá-lo pela distin­ ção entre dois planos; traduzindo: pela oposição entre dois sistemas — préconsciente e inconsciente. Em outras palavras, é preciso recorrer à idéia de in­ terioridade, caso se deseje exprimir o conflito psíquico. Ora, se nos voltarmos para a metáfora do teatro, seremos obrigados a dizer que o conflito é sempre um conflito que se expressa em primeira pessoa. Com essa observação queremos dizer que os atos que nos levam a suspeitar do conflito — Politzer abomina a idéia de que o agente seja seu próprio psicólogo — são sempre atos do indiví­ duo X e não de algo que age no interior de X. Se o agente, ao sonhar, identifica­ se com Y, W, Z, é ainda o agente que se identifica e não algo no seu interior. A pluralidade de vozes que indivíduo X pode carregar consigo não deve ser toma­ da como o caminho real para achar que algo no seu interior padece de polifonía aguda. Portanto, a observação de Laplanche “quando ‘ça fala’ no inconsciente,' encontra-se bem a unidade dramática cara a Politzer”29 é falsa, pois o que está sendo questionada é a existência justamente de um “ça que fala” e aindámais no inconsciente! É exatamente esse tipo de consideração que Politzer chama de abstração, ou seja, a substituição de atos do indivíduo por processos descritos em terceira pessoa. Outra maneira usual de reduzir o impacto da Crítica... é vinculá-la, sem atentar para sua especificidade, a um a determinada tradição filosófica; no caso mais freqüente, à fenomenología, uma vez que Politzer endossa a tese da ima­ nência do sentido.30 Todavia, um dos seus exemplos contra o realismo do in­ consciente é considerar que as regras do jogo de tênis estão presentes durante

28 LAPLANCHE, J. & LECLAIRE, S. Op. cit., p. 116, nota 3. 29 Ibid., p. 113. 30 As observações de alguns autores sobre a influência da fenomenología sobre Politzer são no mínim o curiosas. Por exemplo, Laplanche observa que: “A esse realismo da significação, Politzer opõe um a teo­ ria da imanência do sentido que, se não em presta seus elementos da doutrina fenomenológjca, poderia perfeitamente ser reivindicada por ela” (Ibid., p. 114); Bento Prado constata que: “O vocabulário téc­ nico da fenomenología husserlíana não está presente na CFP (assim como não encontrei nenhum a referência a Hursserl nos escritos de Politzer, no entanto tão familiarizado com a literatura teórica alemã), m as um certo estilo fenomenológico parece impregnar todo o seu ensaio”. (“Sessenta anos da Crítica dos Fundamentos da Psicologia’. In: Filosofia da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 16).

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA XV

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uma partida de ténis sem que sejamos, por isso, obrigados a nos indagar em que lugar elas estariam quando os jogadores não as invocam. Esse é o tipo de exemplo que poderia ter sido dado por Wittgenstein, e acredito que seria neces­ sário uma interpretação totalmente heterodoxa da sua filosofia para aproxi­ má-la da fenomenología de Hursserl. O que os dois pensadores condenam pode ser reconstruído, no contexto em que nos colocamos, como a crença em duas teses: (1) existe apenas o sentido convencional, fixo e imediato para cada proferimento; (2) sempre que a tese (1) for aparentemente violada, ela realiza­ se em outro plano. No caso de Freud, a adoção de (1) decorre do fato de ele aceitar que a única função da linguagem é referir-se a objetos. Ou seja, para ele, sempre há uma li­ gação profunda entre representação de palavra e representação de objeto por trás de toda ligação superficial em que o vínculo entre esses dois termos parece­ ria estar rompido (2).31 Em última análise, como indicamos, a palavra é tomada como um índice do pensamento. Contra essas teses, Politzer propõe que o sen­ tido não seja nem imediato, nem fixo; o sentido convencional seria apenas um ponto de partida. No lugar da dualidade entre conteúdo manifesto e conteúdo latente, existiria apenas o último, mas entendido de uma forma que refuta mais uma vez a convicção na existência de uma vida interior representativa, ou seja, que refuta a tese do realismo do inconsciente. O conteúdo latente designa agora o fato de a abertura do sentido e de sua apreensão não serem imediatas, porém construídas de forma interpretativa durante a análise.32 A alternativa oferecida por Laplanche de que ou haveria um sentido fixo, convencional ou um sentido totalmente novo, inédito33 é mais uma vez falsa e está igualmente baseada na crença de que a única função da linguagem é de­ notar. Mantê-la é perpetuar a crença de que o “aparentemente inusitado” é o “convencional disfarçado”, isto é, estamos diante de um ótimo exemplo do que

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31 Freud considera que: “A psicanálise das neuroses usa da forma mais abundante duas proposições: o domínio sobre o curso de representação, com o cancelamento das representações conscientes de meta, passa para as representações escondidas de m eta e as associações superficiais são apenas um substituto de deslocamento para associações suprimidas mais profundas. Sim, ela eleva as duas proposições a pila­ res de sua técnica.' Traumdeutung, pp. 536-537. 32 Politzer não inverte a tese dom inante de que só haveria o conteúdo m anifesto para adotar a crença de que só existiria o conteúdo latente na acepção de Freud; em outros termos, não se trata de m anter o postulado da cottvencionalidade do significado em outro plano; m as sim de indicar, mais um a vez, a futi­ lidade das dicotomias canónicas - subjetivo e objetivo, interno e extem o - presentes na psicologia clás­ sica e, para ele, superadas pela psicologia concreta. 33 LAPLANCHE, J. & LECLAIRE, S. Op. cit., pp. 115-116.

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XVI Pretório

Politzer denominaria o realismo da psicologia clássica. Entretanto, Laplanche faz uma distinção muito interessante entre a “atitude de tradução simultânea” e a “atitude de atenção aos fenômenos lacunosos”.34 Sem considerar o papel que a distinção é chamada a desempenhar na economia de sua comunicação, ela pode ser entendida como estando baseada em duas metáforas m uito distintas, usadas por Freud para caracterizar a relação entre conteúdo manifesto e con­ teúdo latente. A primeira atitude poderia estar apoiada na analogia dos dois conteúdos com dois textos escritos em línguas distintas ou com duas versões de um mes­ mo texto.35 Sem dúvida ela é bastante inexata porque a idéia de tradução sem­ pre implica crer que se possa ir livremente de uma língua ou de uma versão para outra e vice-versa. Mas se Freud descreve como o trabalho da análise des­ faz o trabalho do sonho — isto é, como o primeiro trabalho permite que se re­ cupere o conteúdo latente a partir do manifesto —, a passagem do latente para o manifesto é, para dizer o mínimo, bastante misteriosa. No entanto, essa me­ táfora é proposta porque ela exprime a crença de que a referência última dos dois con­ teúdos seja a mesma. Por conseguinte, contra Laplanche, seria muito difícil acreditar que Politzer de alguma maneira recorreria à metáfora da tradução. Para este, simplesmente não há o que traduzir porque não há nada oculto ou en­ coberto. Acreditar na existência do conflito ou que existiria algo de misterioso no homem36não acarreta crer que, enquanto o indivíduo não se dá conta da sua existência, o conflito estaria em uma outra dimensão. Em outros termos, o conflito é simultâneo à produção do sentido. A segunda atitude parece encontrar sua justificativa na metáfora da cen­ sura russa de jornais estrangeiros na fronteira.37Ela é privilegiada por Laplanche

34 Ibid., p. 117. 35 “Pensamentos e conteúdo do sonho presentificam-se para nós como duas apresentações do mesmo conteúdo em duas línguas distintas ou, expressando de um a forma melhor, o conteúdo do sonho apa­ rece para nós como uma versão ( Übertragung) dos pensamentos do sonho em um a outra forma de expressão cujos caracteres e leis de ligação devemos tom ar conhecimento através da comparação entre o original e a tradução.” Traumdeutung, p. 283. 36 Q uando se afasta o postulado da convencionalidade do significado deve-se estar preparado para os misté­ rios que o sentido reserva para nós. Contudo, essa possibilidade sempre renovada de significar não deve ser usada para procurar “responder a todas as perguntas que o drama faz e que levam necessariamente à vida interior.” Critica..., p. 189. 37 “Essa censura comporta-se de maneira bastante análoga à censura russa de jornais na fronteira que perm ite que os jornais estrangeiros cheguem às mãos dos leitores a proteger som ente se recobertos de traços negros.” Traumdeutung, p. 534.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA XVII

porque explicita a noção de inconsciente a partir da idéia de censura. Esta seria responsável pela produção de lacunas, marcando assim que, para Freud, “o in­ consciente é rigorosamente separado do texto manifesto”.*35*38Apesar de o mesmo tipo de objeção acima poder ser transposto para a segunda atitude, afinal a cen­ sura toma o lugar do indivíduo na análise, ela merece um tratamento mais longo porque permite avançar no estudo dos pressupostos da psicanálise para, mais adiante, avaliar a leitura realizada por Politzer de Traumdeutung. O ECLET1SMO FILOSÓFICO DA PSICANÁLISE DE FREUD A metáfora da censura russa também concebe um texto acabado, o jornal estrangeiro, que só em um segundo momento seria sujeito à censura, as linhas negras sobre as passagens consideradas indesejáveis. Se efetivamente essa me­ táfora pudesse ser considerada aceitável, teríamos a idéia de que o conteúdo manifesto, o texto do jornal estrangeiro lido na Rússia, é igual ao conteúdo latente, o texto do jornal estrangeiro, mais a ação da censura, as linhas suprimidas na fron­ teira. Por conseguinte, o fato de o conteúdo manifesto ser menor do que o con­ teúdo latente é levado em conta pela metáfora em exame quando se assinala que a censura age pela supressão de linhas. Da mesma maneira é contemplada a hipótese do realismo do inconsciente: o texto do jornal estrangeiro existe tan­ to quanto a sua versão censurada.39 No entanto, mesmo que concordemos que a experiência analítica condu­ za às descobertas de que o relato do sonho é muito menor que o relato que re­ sulta da análise do sonho e de que o sentido que se produz lentamente é objeto 38 LAPLANCHE, J. & LECLAIRE, S. Op. cit., p. 118. 35 Malcolm procura m ostrar com o Chom sky, ao constatar que as crianças a partir de algumas senten­ ças ouvidas adquirem a linguagem de sua comunidade, tentou encontrar um mecanismo que expli­ casse a disparidade entre as duas grandezas: o núm ero de sentenças que a criança ouve e o número de sentenças que ela é capaz de proferir. Ele conclui que: “N o fundo, Chom sky está maravilhado com o fato de que tanto possa resultar de tão pouco” e que “A posição de Chom sky pode ser melhor entendida se considerarmos sua perplexidade inicial com o filosófica e sua solução com o metafísica’ (MALCOLM, N. Wittgenstein: A religious point of view? Ithaca: Cornell University Press, 1994, p. 56). Apesar de Freud referir-se ao sonho, na realidade, ele analisa relatos de sonhos. Ó sonho enquanto tal é um a vivencia alucinada e enquanto vivencia só pode ser resgatada através da palavra (“m emória e qualidade para a consciencia no sistema 4* são m utuam ente exdudentes’ Traumdeutung, p. 545). Saber para que lugar vão os sonhos, qual o seu destino etc. é um a questão tão sem sentido quanto repetir a mesma ques­ tão em relação ao tempo. Mas, sem dúvida, Freud igualmente se assombra com a desproporção entre о relato do conteúdo manifesto e o relato do suposto conteúdo latente (Traumdeutung, p. 284ss.). Sua solução é tam bém metafísica e com o tal suscita questões sem resposta como, por exemplo: através de que mecanismos a censura selecionaria as palavras mais inocentes?

XVIII Prefácio

de várias objeções por parte do analisando — e Politzer parece endossar ambas — seríamos, ainda assim, obrigados a aceitar, com Laplanche, a defesa do realis­ mo do inconsciente? Antes de responder, examinemos a experiência mais de perto. O analisando conta um sonho. Ele não apreende imediatamente o senti­ do do relato do sonho e reluta em aceitar algumas possibilidades que se apresen­ tam no curso da análise. A partir de algumas indagações e de referências a outras narrativas, o sentido inicial sofre uma expansão progressiva. Para que se possa man­ ter a crença de que a análise esteja desfazendo a censura, ou seja, removendo as li­ nhas negras, é preciso supor efetivamente a realidade anterior tanto do conteúdo latente quanto da censura. Assim, diz-se que a análise desfez o traba­ lho do sonho. Uma outra metáfora de Freud — comparando os elementos do sonho a um quebra-cabeças — presume igualmente que só exista uma dispo­ sição adequada para as peças e anterior à sua montagem efetiva. Portanto, a teo­ ria inverte a relação temporal entre conteúdo manifesto e latente tal como ela é dada pela experiência e imagina que a resistência atual é repetição de uma censura ante­ rior. Justamente porque Freud não consegue livrar-se de P5, ele é levado a dizer que a análise não produziu um sentido inicialmente ausente, porém a defender que o sentido existia e fora reprimido. Se, ao contrário, acreditarmos, contra P5, que o sentido é aberto, a metáfora mais adequada seria a do calidoscopio, ou se­ ja, há infinitos sentidos possíveis, embora nem todos sejam igualmente interes­ santes ou significativos. Como, contra P1; não aceitamos que o fato psicológico seja elementar, podemos perfeitamente presumir que, no curso da interpreta­ ção, algumas possibilidades de sentido não sejam ¿mediatamente aceitas pelo agente. Contra isso, Laplanche objeta que não se saberia qual desses sentidos é o sentido verdadeiro.*41Tal réplica só teria sentido no quadro de uma teoria que, mesmo recorrendo a um novo vocabulário, à lingüística, a uma estranha álgebra

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Traumdeutung, p. 284.

41 LAPLANCHE, J. & LECLAIRE, S. Op. cit., p. 117. Tam bém poderia ser objetado contra nossas observações sobre a crença de Freud em P5 que elas desconsideram a tese de que o sonho teria uma determinação múltipla. Ño entanto, basta recordar que mesmo antes do aparecimento da noção de condensação a tese, já presente em Breuer, de que um sintoma poderia remeter a um a pluralidade de cenas distintas não ocultava a crença de que em todas elas estaria presente o m esm o invariante, no caso de Breuer, o estado hipnóide. Para Freud, a idéia de que haveria um m ecanismo de condensação no sonho tam pouco impede a tese maior de que “O s sonhos são um pedaço sobrepujado da vida men­ tal infantil” (Traumdeutung, pp. 572-573), ou seja, os relatos de sonho rem etem sempre a um único sen­ tido: o desejo infantil; tese que já deveria ter ficado explícita com o uso que ele faz da analogia do desejo infantil com o capitalista na produção do sonho (op. cit., p. 566).

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA XIX

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— mitológica? —,4243ainda conserve postulados da psicologia clássica e, nesse pon­ to, a noção de verdade por correspondência, pressuposta por P5. A metáfora da censura russa tem ainda uma outra conseqiiência nociva: ela pode levar à idéia falsa de que, se a censura não existisse, haveria uma iden­ tidade entre conteúdo latente e manifesto. Esse entendimento é erróneo por­ que contraria explícitamente a tese de Freud de que “esquisitices e absurdos resultam da influência da censura psíquica que o sonho experimentou durante a sua formação”A3A censura, portanto, não age após a formação do sonho, e sim durante a própria formação. A segunda atitude, assinalada por Laplanche, poderia oferecer um argu­ mento melhor contra Politzer se, atentos ao ensinamento de que a censura já age na produção do sonho, recorrêssemos a uma outra metáfora: a existência do inconsciente está dada pela presença de lacunas na fala que são semelhantes à exis­ tência de buracos em um queijo suíço. Esses buracos são produzidos durante o pro­ cesso de fabricação do queijo; por conseguinte, não teria sentido indagar o que aconteceria se eles não existissem.44 No entanto, antes de saudarmos essa me­ táfora como a salvação do realismo do inconsciente, é preciso investigar se ela requer mesmo a manutenção da crença na existência da vida interior. Para examiná-la, toma-se necessário mostrar como o ecletismo filosófico de Freud per­ mitiu a leitura de Politzer. A psicanálise freudiana pode ser descrita de forma extremamente sucinta como a tentativa de resolver a seguinte questão: como é possível que na histeria esteja perdida a capacidade de nomear o estado afetivo responsável pela produ­ ção dos sintomas?45A resposta inicial foi considerar que esse estado afetivo ti­ nha sido submetido à repressão (Verdrãngung). Dessa maneira, o sintoma podia ser concebido como um símbolo do afeto reprimido. A primeira tentativa de construir um modelo da mente para justificar esses discernimentos encontra­ se em “Entwurf einer Psychologic”,46 que, após alguns ajustes, é o embrião do Capítulo VII de Traumdeutung. O próprio “Entwurf...”, por sua vez, baseia-se,

) 42 ¡bid., pp. 137-145.

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43 Traumdeutung, p. 510. 44 Se os buracos não existissem, o queijo, no fundo, não seria considerado um queijo suíço; no máximo, a tentativa frustrada de prepará-lo. 45 Freud conserva a essência do m étodo catártico: “dar a palavra ao estado afetivo” (FREUD, S. Stu-

dien liber Hysteric. In: Cesammelte Werke, Band I. Frankfurt: S. Fischer, 1977, p. 252). 46 “Entwurf einer Psychologie" (Projeto de um a psicologia). In: Cesammelte Werlee. Frankfurt: S. Fis­ cher. Nachtragsband, 1987.

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XX Prefácio

em sua grande parte, em três textos publicados anteriormente por Freud: Zur Auffassung der Aphasien, “Quelques considerations pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques” e o quarto capítulo de Studien iiber Hysterie, “Zur Psychotherapie der Hysterie”.47 Em Zur Auffassung, Freud propõe um modelo para a linguagem que está baseado em duas noções básicas — representação de palavra e representação de objeto, inspiradas na química mental de Stuart Mill.48 No segundo texto, publicado originalmente em francês, apesar da presença de indícios que indi­ cam a influência do texto sobre a afasia, Freud diferencia a paralisia orgânica — por exemplo da mão — da paralisia histérica, dizendo que a área afetada no caso da segunda está dada pela linguagem natural e não pela anatomia.49 Em ou­ tros termos, tudo se passa na paralisia histérica como se a representação de objeto — uma representação complexa, indefinidamente aberta e organizada pela imagem visual — tivesse sido formada a partir da representação da pala­ vra, uma representação complexa, fechada e organizada pela imagem acústi­ ca. Esses dois modelos, que podemos chamar respectivamente de quimismo mental e subjetividade compartilhada, aparecem de novo em “Zur Psychothera­ pie der Hysterie” sob a forma de uma proposta para uma teoria da represen­ tação50 e do pressuposto da expectativa de normalidade.51 Em “Entwurf...” — uma tentativa de construir uma teoria da mente que atenda a todos os pres­ supostos examinados até aqui da psicologia clássica —, está presente igual­ mente o modelo da subjetividade compartilhada: o grito da criança que expressa dor ou fome adquire uma função descritiva depois que a pessoa que auxilia a

47 FREUD, S. Zur Auffassung der Aphasien. Leipzig und Wien: Deuticke, 1891; “Quelques considerations pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques”. In: Gesammelte Werlee, Band I. Frankfurt: S. Fischer, 1977. 43 Zur Auffassung..., p. 80. 49 “Quelques...’, pp. 50-51. 50 “Prossigo nessa última parte da apresentação com a expectativa de que as características psíquicas reveladas aqui possam ter um dia certo valor enquanto material tosco para um a dinâmica da represen­ tação.” (Studien..., p. 290). 51 “Quando as ligações de representação dos neuróticos e, em especial, dos histéricos dão um a outra impressão, quando aqui a relação das intensidades de diferentes representações parece inexplicável ape­ nas a partir de condições psicológicas, travamos conhecimento, no entanto, justam ente com a razão dessa aparência e sabemos atribuí-la à existência de motivos ocultos, inconscientes” (Studien..., p. 298). Essa últim a citação é importante porque revela que Freud procura vincular a expectativa de normali­ dade - a expectativa de que as pessoas comportam-se sempre de acordo com certos parâmetros soaais -, com um a teoria representativa da mente.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA XXI

criança desamparada dá a esse ato de exteriorização um sentido através de sua nomeação.52 O modelo do qutmtsmo mental parte de um solipsismo perceptivo, ou seja, de um indivíduo isolado que, a partir de sensações e de representações por elas produzidas, constrói pensamentos — longas cadeias associativas de represen­ tações — e depois, através da palavra, partilha seus pensamentos com outros indivíduos. Assim, a linguagem é entendida como sendo posterior ao pensa­ mento, na verdade, como seu índice. Dizendo de uma outra maneira, o pensa­ m ento é condição de possibilidade da linguagem. O modelo da subjetividade compartilhada presume a existência de três ter­ mos: o indivíduo, uma outra pessoa e o relato. O primeiro externa algo — e é fundamental entender que esse ato inicial de externar não é a comunicação de um estado interno — e a outra pessoa interpreta essa manifestação como expressão de um estado afetivo, como se fosse a descrição de um estado interno. A partir des­ sa interpretação da nomeação da pessoa prestativa, a exteriorização recebe um sentido descritivo, e não antes. Neste caso, a situação inicial de interação tor­ nou possível o pensamento, ou seja, a linguagem é entendida agora como con­ dição de possibilidade para o pensar.53 O ecletismo filosófico é patente quando atentamos que a construção da teoria psicanalítica pressupõe os dois modelos. As famosas dualidades, descritas ao infinito pelos comentadores de Freud, nada mais fazem do que exprimir\ sem se dar conta, essa contradição fundamental. Para ficar em um exemplo que mar­ cou mais de uma geração: atentem os para a tese de Ricoeur de que a psicaná­ lise é um discurso misto, energético e hermenêutico.54 O vocabulário da força, do estímulo, da quantidade, do afeto etc. expressaria, para ele, a face energéti-

52 “Entwurf...", pp. 456-457. Sílvia Faustino assinala: “Exteriorizar é um ato de sair de si e não de vol­ tar-se para si; é um ato que busca interação, e não auto-reflexão ou auto-reconhecimento. Por isso seu m odelo é o de um ato imediato, pré-reflexivo e pré-cognitivo: ao gritar, o sujeito não reflete sobre si mesmo; nem se conhece a si mesmo, m as tão-som ente exterioriza-se para que o outro - este sim - o conheça e conheça o seu estado”. Freud tenta conciliar os dois modelos pela suposição de que são as outras pessoas que descobrem que algo está errado no plano da m inha vida interna. Assim, ele conse­ gue realizar a façanha de m anter o m ito da vida interior ao mesmo tem po que desqualifica a introspecção enquanto via de acesso a essa suposta interioridade." (Wittgenstein - O eu e sua gramática. São Paulo: Atica, 1995, p. 65). 53 Na metáfora do teatro a relação é ternária e não binária: estão presentes o espectador, o ator e a fala do ator. 54 R1CCEUR, P. De ¡'Interpretation. Paris: Seuil, 1965, p. 75.

XXII Prefácio

ca da psicanálise, quando, na verdade, aponta para o modelo do quimismo men­ tal, enquanto os termos hermenêuticos — interpretação, sentido, símbolo etc. —, que seriam o indício da face hermenêutica, traem a presença do mo­ delo da subjetividade compartilhada. A leitura de Politzer, a mãe de todas essas leituras, é possível não porque os seis capítulos iniciais de Traumdeutung des­ crevam a experiência analítica e o último tente constrangê-la a entrar na ca­ misa de força da psicologia clássica, mas porque efetivamente Freud mistura os dois modelos durante toda essa obra e em seus numerosos escritos de uma for­ ma bem menos visível do que aquela que a minha observação sobre Ricoeur possa ter sugerido. Como efetivamente, na análise de um sonho, parece pre­ valecer o modelo da subjetividade compartilhada, é natural que se acredite que apenas no sétimo capítulo o modelo do quimismo mental faça a sua aparição. No entanto, uma leitura atenta encontrará fragmentos dos dois modelos ao longo de Traumdeutung. A polêmica entre Laplanche — o inconsciente é a condição da linguagem — e Lacan— o inconsciente organiza-se como uma linguagem — presente na homenagem de Bonneval, é a sua tradução empobrecida, porque ignora a natu­ reza metafísica do debate entre os dois modelos descritos acima.55 Todavia, é uma boa oportunidade para mostrar como Lacan tentou construir um a psica­ nálise que abrisse mão da crença na vida interior. O CHAMADO RETORNO A FREUD Acreditamos que a leitura dos escritos de Lacan até “L'agressivité en psychanalyse”, de 1948, revela que ele inicialmente se aproximou da psicanáli­ se de modo a reconstruí-la de um a maneira que pudesse prescindir da noção de inconsciente para, logo em seguida, transformar o modelo do quimismo mental, efetivamente presente na obra de Freud e descrito de forma notável por Polit­ zer, em um erro de leitura. Em sua tese de doutorado de 1932, “De la psychose paranoiaque dans ses rapports avec la personalité”,56 em várias passagens, Lacan busca desembaraçar a psicanálise da noção de inconsciente, que para Politzer, conforme estudamos, era

55 Sobre o elevado nível que presidiu a polêmica entre os dois psicanalistas, ver ROUD1NESCO, E. (1986). História da Psicanálise na França, vol. 2, trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, pp. 333-338. 56 Enquanto ROUDINESCO, E. (1993) observa que: ‘Sem citar o nome de Georges Politzer, [Lacan] inspirava-se nos trabalhos dele sobre a psicologia concreta e especialmente em La Critújue des Fondemenls

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGÍA XXIII

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o caminho real para introduzir a mitologia da vida interior. Assim, lemos: “A oposição em particular entre desejos conscientes e inconscientes, que a psica­ nálise conserva, parece-nos desaparecer quando se define o desejo de forma ob­ jetiva por um certo ciclo de comportamento”5657 ou “O próprio conceito de inconsciente responde a essa determinação puramente objetiva da finalidade do desejo”.58 Em outros termos, o inconsciente não é entendido como entidade, ele apenas assinala o fato de o sentido do comportamento ser aberto para o su­ jeito que age. Por outro lado, critica-se, usando um vocabulário calcado em Politzer, o modelo do quimismo mental: "Vemos com efeito tratarem as alucinações, as perturbações 'sutis” dos 'sentimentos intelectuais’, as represen­ tações de si aperceptíveis e as próprias interpretações como se fossem fenôme­ nos independentes da conduta e da consciência do sujeito que as experimenta e, inconscientes de seu eno, tom am esses acontecimentos como objetos em si [...]. As abstrações da análise tomam-se para eles realidades concretas.”59 No lugar do inconsciente e do quimismo mental, Lacan propõe o ponto de vista social que permitirá construir uma ciência “dos fatos concretos da psicologia”.60A te­ oria psicanalítica das psicoses seria insatisfatória porque estaria apoiada sobre uma noção inadequada de narcisismo; todavia, mesmo assim, ao comentar uma passagem sobre Das Ich und das Es de Freud, ele conclui: “essa exposição das doutrinas freudianas sobre o eu {moí) e o supereu assinalam adequadamen­ te o acesso científico de toda pesquisa a uma tendência concreta, por exemplo a tendência de autopunição, em oposição à confusão criada por toda tentativa de elucidar geneticamente um problema de ordem gnosiológica como o do eu {moí) se este é considerado como lugar da percepção consciente, ou seja, como sujeito do conhecimento”.61

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56 de ta Psychologic, publicada em 1928” (Jacques Lacan, trad. Paulo Neves. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, p. 60), MACEY, D. assinala: “A frase ‘em direção ao concreto’ sintetiza m uitas das preocupações de uma geração em revolta contra um 'm undo de polidez filosófica’, m as em termos da evolução teórica de Lacan a 'psicologia concreta’ de Politzer é o marco essencial” (Lacan in Contexts. London: Verso, 1988, p. 100). Chamamos de “sem m uito recato” essa apropriação que ignora a regra que reza que as fontes devem ser mencionadas. 57 LACAN, J. De la Psychose Paranoiaque dans ses Rapports avec la Personalité. Paris: Seuil, 1975, p. 44. 58 Ibid., p. 311. 59 Ibid, p. 310.

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60 Ibid, pp. 313-314. S1 Und., p. 326.

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XXIV Prefécio

Em 1936, no congresso de Marinbad, Lacan apresentou uma comunica­ ção intitulada “Le stade du miroir. Théorie d’un moment structurant et génétique de la constitution de la réalité, conçu en relation avec 1'expérience et la doctrine psychanalytique”. Este primeiro esboço do estágio do espelho perdeuse; no entanto, parte de seu conteúdo pode ser recuperado através do exame de ensaios posteriores. Por exemplo, em “Au-delà de ‘Principe de Réalité'”, escrito logo após o congresso, ainda em 1936, Lacan critica o associacionismo e procu­ ra em seguida redefinir a noção de imagem. Esta não deve mais ser entendida como sensação elementar, enfraquecida, como se fosse um estranho habitante da mente. A noção é usada para designar um tipo de organização. Freud é elo­ giado por ter reconhecido que “uma vez que a maior parte dos fenômenos psí­ quicos no homem refere-se aparentemente a uma função de relação social, não há lugar por isso mesmo para excluir a via que fornece o mais comum dos aces­ sos: a saber, o testemunho do próprio sujeito desses fenômenos”.62Adiante, ele acrescenta: “Mas o psicanalista, para não separar a experiência da linguagem da situação que ela implica, aquela de interlocutor, refere-se ao fato simples de que a linguagem antes de significar algo, significa para alguém.”63 Dizendo de outra maneira, em Freud não estaria presente o modelo do quimismo mental, somente o modelo que denominamos de subjetividade compartilhada, em que o papel do sujeito é ressaltado. No verbete La famille, de 1938, essas considera­ ções tomam-se mais incisivas. Na seção denominada O estágio do espelho, ele volta-se para o processo de identificação, considerado por Politzer como um dos indícios de que a psicanálise de Freud estava na direção da psicologia con­ creta.64 Referindo-se à comunicação de 1936, Lacan observa: “procuramos so­ lucionar o problema através de uma teoria desta identificação cujo momento genético designamos com o termo de estágio do espelho”.65 O estágio ilustra a forma que a realidade tem para a criança: enquanto valor afetivo seria ilusória como a imagem; enquanto estrutura teria a forma humana. Esse estágio assi-

62 LACAN, ]. Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 81. 63 m . , P. 82. 64 “Para m ostrar a psicologia concreta em ação, devemos salientar o caráter verdadeiro de um certo núm ero de novas noções que Freud foi levado a introduzir em conseqüéncia da análise dos sonhos e das neuroses, e que desempenham um papel preponderante nas explicações técnicas. Consideraremos, essencialmente, duas: a identificação e o complexo de Édipo.” Crítica..., p. 175. 65 LACAN, J. Op. at., p. 52.

C R ira DOS FUNDAMENTOS DA PSIC010GA XXV

nala o momento em que a criança toma o adulto como sua própria imagem, ou seja, o momento em que a criança identifica-se com o adulto. Dado o cará­ ter prematuro do infante, a criança, ao identificar-se; abandona uma imagem de si como despedaçada e vê-se como adulta. O ideal do eu, que se forma a partir da imagem especular, não designa uma entidade intema, porém uma forma de comportar-se da criança que se baseia em um engano a respeito de si mesma. Em 1946, em “Propôs sur la causalité psychique”, Lacan parece sugerir que está procurando realizar o projeto de uma psicologia concreta: “Porque não de­ vemos perder de vista que, ao exigir como ele [Politzer] que uma psicologia con­ creta se constitua em ciência, só conseguimos até agora postulações formais. Quero dizer que não pudemos enunciar ainda a menor lei em que se pauta nos­ sa eficiência.”66Na direção desse projeto, ele chega mesmo a criticar Freud: “Que me seja suficiente dizer que a consideração deles67levou-me a completar o catá­ logo das estruturas: simbolismo, condensação e outros que Freud explicitou, eu diria, de modo imaginário; porque espero que se renunciará logo a usar a palavra inconsciente para designar o que se manifesta na consciência.”68 O ensaio con­ tinua a desenvolver as conseqtiências do estágio do espelho e a vinculá-lo a uma tradição filosófica totalmente alheia ao associacionismo. Os efeitos desse engano, constitutivo da subjetividade, são analisados em detalhe em L’agressivité en Psychanalyse. Nesse ensaio encontramos mais uma indicação da dívida de Lacan para com Politzer: “A experiência subjetiva da aná­ lise inscreve imediatamente seus resultados na psicologia concreta.”69 Em outra passagem, ele defende que a noção de eu (je) não pode ser substantivada: “Essas diversas fórmulas afinal referem-se à verdade do ‘Eu (je) é um outro’, menos ful­ gurante à intuição do poeta quanto evidente para o psicanalista.”70O pleno sen­ tido dessa tese encontra-se em “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du je telle qu’elle est révélée dans 1’expérience psychanalytique”, de 1949, em que o estágio do espelho é descrito como um drama.71 66 67

Ibid., p. 161. He refere-se aos fenômenos elementares da psicose paranoica. LACAN, J. Of>. cit., p. 183.

69

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¡bid., p. 110. Ibid., p. 118. Ibid., p. 97.

XXVI Pretório

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De forma surpreendente, o termo inconsciente reaparece em “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse”, o famoso discurso de Ro­ ma, em 1953. O que aconteceu? A título de sugestão, uma vez que uma de­ monstração detalhada ultrapassaria em muito nossos objetivos, a resposta parece estar no sentido que Lacan conferiu72 ao prefácio escrito por LéviStrauss para Sociologie et Anthropologie de Mareei Maus, publicado no segundo trimestre de 1950.73 A noção de inconsciente aparece no seguinte contexto: “Essa dificuldade74 seria insuperável, dado que as subjetividades são, por hipó­ tese, incomparáveis e incomunicáveis, se a oposição entre o eu (moí) e o outro não pudesse ser superada em uma esfera, em que também se reencontram o subjetivo e o objetivo, queremos dizer o inconsciente. Com efeito, de um lado, as leis da atividade inconsciente estão sempre fora da apreensão subjetiva (pode­ mos ter consciência delas, porém como objeto); e de outro, entretanto, são elas que determinam as modalidades dessa apreensão.”75 E um pouco mais adiante: “Como a linguagem, o social é uma realidade autónoma (aliás, a mesma); os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado.”76 Lévi-Strauss criou, dessa maneira, as condições que permitiram a Lacan reintroduzir na sua versão da psicanálise a noção de inconsciente. Este deixava de ser um termo que designava um a realidade interior para designar apenas a relação entre subjetividades. A famosa fórmula o inconsciente organizase como uma linguagem indica tão-somente que, apesar de o sujeito estar sempre presen­ te nos seus atos — a psicanálise pode, por conseguinte, ser construída agora como uma psicologia em primeira pessoa — como uma psicologia concreta —, ele pode ig­ norar o sentido de suas produções, dado que elas são anteriores à própria reali-

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72 ROUSTANG, F. (1986) assinala a influência desse prefácio de Lévi-Strauss sobre a composição do discurso de Roma, m as o seu motivo é indicar que “essas quarenta páginas de Lévi-Strauss contêm tudo o que Lacan esperava para desenvolver o seu projeto de fazer da psicanálise um a ciência”. Nosso objetivo é sugerir que Lacan encontrou um a forma de recuperar a noção de inconsciente sem ter que aderir à tese da vida interior. Usamos a expressão “talvez sem nenhum a clareza” porque, se efetiva­ m ente ele tinha esse projeto, a própria constatação de sua existência está longe de ser óbvia (Lacan do Equívoco ao Impasse, trad. Roberto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Campus, 1988, p. 25).

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73 LÉVI-STRAUSS, C. “Introduction a l’ceuvre de Mareei M auss”. 1950, In: MAUSS, M. Sociologie el Anthropologic. Paris: PUF, 1968, pp. IX-UL

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74 A dificuldade reside no fato de o único elem ento com um entre o indígena e o antropólogo ser a própria subjetividade.

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75 LÉVI-STRAUSS, C. Op. cit., p. XXX.

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76 1Ш., p. XXXII.

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zação do sentido. Dizendo de outra maneira, os atos do agente são entendidos todas as vezes como significantes e, assim, estão abertos a receberem possíveis significados. A motivação para propor perguntas que induzem à criação do mito da vida interior perdem sua razão de ser. O significado não está em ne­ nhum lugar antes de sua realização concreta. Ele só passa a existir quando apa­ rece no curso da análise. Se a reconstrução esboçada aqui não é delirante, a falta de consenso em re­ lação às teses discutidas pode ser atribuída basicamente a pelo menos quatro fa­ tores: (1) Lacan não deixa patente a sua dívida para com Politzer; no máximo, ele parece estar oferecendo mais um a alternativa à psicologia concreta-, (2) Lacan rea­ lizou a proeza de transformar o modelo do quimismo mental de Freud em um erro de leitura dos intérpretes da obra freudiana; (3) Lacan superou-se quando transfor­ mou o retorno a Freud na tarefa hercúlea de ler as ocorrências do termo inconsciente em Freud com o sentido novo que ele lhe conferiu após sua leitura de LéviStrauss; aliás — o que parece ter se tornado um hábito difícil de ser abandonado —, de novo sem o devido reconhecimento; (4) Lacan não deu indicações claras de que a sua preocupação com a lógica era apenas uma forma de evitar a mito­ logia da vida interior.77 A grande ironia reside no fato de que desde a Crítica... Politzer havia dei­ xado para os técnicos a construção de uma psicanálise que fosse efetivamente uma psicologia concreta.78 Aquele que mais ficou próximo de realizá-la ignorou solenemente os preceitos de Descartes a respeito de clareza e distinção. O re­ sultado é essa estranha mistura de maternas, vida interior e significantes. A psi­ cologia, tal como a conhecemos, se chegar a morrer, morrerá como sempre viveu: jovem, muito jovem.

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77 “Le séminaire sur 'La Lettre volée'”, primeiro ensaio dos Écrits, pode ser lido como a tentativa de m ostrar a viabilidade de um a psicanálise que abre da m ão do m ito da vida interior. Se Lacan introduz ou não novas mitologias escapa totalm ente ao escopo da presente introdução. N o entanto, Politzer cer­ tam ente teria ótimos adjetivos para referir-se à lógica do inconsciente, aos maternas, aos nós borromeanos etc. 78 “O abandono do inconsciente levanta o problema da revisão das noções fundam entais da psicaná­ lise - mas o fato de sermos levados a reconsiderar a forma atual de noções clássicas como a censura e o recalque não nos obriga a encontrar um a nova solução. Essa é tarefa para os técnicos; só eles podem saber o que os fatos por eles conhecidos são capazes de ensinar se forem considerados do ponto de vista concreto. A crítica não pode e não deve ultrapassar a demonstração da necessidade dessa nova orientação.” Crítica..., p. 132.

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XXVIII Prefacio

Preambulo

33

Introdução

37

As descobertas psicológicas na psicanálise e a orientação para o concreto

53

A introspeção clássica e o . método psicanalítico

83

O arcabouço teórico do psicanálise e as sobrevivências da abstração

103

A hipótese do inconsciente e a psicologia concreta

131

A dualidade do abstrato e do concreto na psicanálise e o problema da psicologia concreta

163

C onclusões-A s virtudes da psicologia concreta e os problemas que levanta

181

A Pierre Morhange

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PREÂMBULO i

Este trabalho não é uma exposição. Não busca apresentar a psicanálise de maneira dogmática, na sua totalidade ou numa das suas partes, mas refletir so­ bre ela, a partir da perspectiva em que nos situamos. Supondo, por parte do lei­ tor, conhecimento da psicanálise, deixamos de lado tudo o que é apenas articulação técnica ou simples questão de fato, quando nada vimos de signifi­ cativo segundo nosso ponto de vista. Isso explica por que certos aspectos da psicanálise, tal como a sexualidade, que devem figurar em primeiro plano nas exposições dogmáticas, não aparecem neste trabalho. Tampouco somos partidários do método que consiste em justificar os “mas" e os “se” por citações apropriadas. Se citamos menos do que se faz habi­ tualmente em obras como a nossa, é porque a exatidão de nossa interpretação só pode ser verificada por uma reflexão pessoal. Da mesma forma, renuncia­ mos à concepção que inspira a maioria das obras filosóficas francesas, que con­ siste em supor um leitor totalmente passivo, para não dizer estúpido, ao qual é preciso apresentar as coisas bem mastigadas, para dispensá-lo de todo esforço de reflexão pessoal. Tal método é superficial e só oferece falsa clareza. Dificuldade e obscuri­ dade, clareza e facilidade não são sinónimos. Devendo a precisão da idéia bas­ tar-se a si mesma, as explanações que só se destinam a poupar o leitor do esforço são completamente inúteis, além de absolutamente desinteressantes para o próprio autor. Eis por que omitimos quase tudo o que não é posição e desenvolvimento das idéias em si. Após ter dito uma vez, do modo mais claro possível, em que sentido censuramos os psicólogos clássicos, por considerar os fatos psicológicos como “coisas", omitimos comparar a significação que essa censura tem para nós com a que tem para Bergson. Sabemos, de longe, não ser o único a empre­ gar o termo “concreto”, mas o sentido que ele tem em nosso texto deve preca­ ver contra qualquer confusão, embora não tenhamos examinado todas as suas significações. Tampouco analisamos uma a uma as diversas definições do fato

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS OA PSICOLOGIA ф

psicológico e as críticas clássicas da introspecção, para mostrar que as primeiras implicam a abstração e as últimas esqueceram o essencial. Também não eter­ nizamos a idéia do drama nela mesma; não mostramos, de cada uma das cons­ truções teóricas de Freud, a maneira pela qual a abstração permite gerá-las a partir de um fato concreto e a maneira como esse fato concreto pode ser en­ contrado ao se refazer, em sentido inverso, o caminho da abstração. Podería­ mos citar muitas outras passagens em que evitamos as explanações. Todos esses desenvolvimentos não teriam sido inúteis. Porém, o leitor que aceitar fazer o esforço necessário saberá achá-los; para os que se recusam a qual­ quer esforço do gênero, todas as explanações do mundo seriam insuficientes. Não queremos, contudo, encobrir com essa consideração o que há de im­ preciso e de provisório neste estudo. Nosso trabalho é ponto de partida; primei­ ro, por ser o tomo I dos Matériaux, depois, porque faz parte de uma série de escritos preliminares.1Se, por exemplo, não desenvolvemos a idéia de significa­ ção e a de drama até o ponto em que sua dualidade, um pouco embaraçosa no presente escrito, cedesse lugar a uma concepção clara das suas relações, é por­ que os elementos desse desenvolvimento pertencem já ao tomo II dos Maté­ riaux, o qual tratará da Gestalttheorie. Pela mesma razão, não aprofundamos a idéia de forma, embora nos sirvamos dela algumas vezes. Outros pontos, co­ mo, por exemplo, a análise da noção de consciência ou o estudo sistemático de todos os procedimentos clássicos que mencionamos ao longo deste estudo, só podem ser desenvolvidos no Essat que virá após os Matériaux. Se tivermos a sorte de encontrar críticos bastante esclarecidos para não nos resservir, sob pretexto de que arrombamos portas abertas, exatamente aquilo a partir de que queremos encetar a discussão, perceber-se-á, talvez, que ao fazer este trabalho não podíamos encontrar muitos pontos de apoio — pelo menos na literatura psicológica francesa. Poder-se-á aceitar a idéia de que que­ remos a psicanálise exposta em termos de Gestalt e de behavior. Todavia, não se esqueça que nossa posição ante a Gestalttheorie e o behaviorismo não poderá ser exposta com clareza a não ser nos estudos que pretendemos dedicar-lhes.

1 Trata-se do projeto de construção da psicologia concreta. O s outros tomos anunciados (ver nota 9) não foram escritos. A adesão de Politzer ao Partido Com unista Francês, um ano após a publicação do presente ensaio, levou-o a abandonar esse projeto. Os tom os I (Psicanálise), II (Gestalttheorie) e III (Behaviorismo) projetados para Matériaux pour la Critique sur les Fotutemems de la Psychologie deveriam com por um a obra maior, que tam bém não foi escrita: Essat Critique sur les Fondements de la PsyMogie. (N ota do revisor técnico - NRT)

Preâmbulo

De modo geral, não nos interessa saber em que medida as reflexões con­ tidas neste volume ou nos seguintes são “originais”. Se levantamos essa ques­ tão é unicamente para poder esclarecer mais um ponto. Dos cotejos que se fizerem, alguns serão legítimos, mas não nos esqueçamos do seguinte: para nós, trata-se essencialmente de apresentar os problemas de tal maneira que a discussão, sem nunca poder voltar a essa psicologia que não deve mais existir senão para o historiador, possa partir de uma nova base e seguir um plano re­ novado. Se nossas fórmulas se encontrarem em outros, ou se futuramente se revelarem inadequadas, isso não pode ter, considerando a nossa posição, im­ portância alguma, pois não se trata, no momento, de fórmulas, mas de uma orientação nova.

G.P.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

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INTRODUÇÃO 1. - Se ninguém pensa em protestar contra a afirmação geral de que as te­ orias são mortais e que a ciência só pode avançar sobre suas próprias ruínas, não é possível fazer com que seus representantes constatem a morte de uma teoria atual. A maioria dos cientistas compõe-se de pesquisadores que, não ten­ do o sentido da vida nem o da verdade, só podem trabalhar à sombra de prin­ cípios oficialmente reconhecidos: não se pode pedir que reconheçam uma evidência que não é dada? mas a ser criada. Seu papel histórico é outro: consis­ te no trabalho de aprofundamento e de exploração; é por meio deles que os “princípios'’ gastam sua energia vital; instrumentos respeitáveis da ciência, são incapazes de renovar-se e de renová-la. Reconhecem a mortalidade de todas as teorias, mesmo das próprias, mas só no abstrato: parece-lhes sempre inverossímil que o momento da morte tenha chegado. 2. - É por isso que os psicólogos ficam escandalizados quando lhes fala­ mos da morte da psicologia oficial, dessa psicologia que se propõe estudar os “processos psicológicos”, seja querendo captá-los em si mesmos, seja em seus concomitantes ou determinantes psicológicos, seja por meio de métodos “mul­ ticolores”. Não é porque a psicologia esteja de posse de resultados fecundos e positi­ vos que só se pode duvidar negando o próprio espírito científico: sabe-se que, por um lado, só existem, no momento, pesquisas “perdidas” e, por outro, pro­ messas, e que tudo está ainda na expectativa de um misterioso aperfeiçoamen-2

2 Politzer assinala em itálico, ao longo do texto, palavras, conceitos, frases, sentenças e parágrafos. Tal recurso enfatiza pontos essenciais de sua escrita, demarcando o estilo do autor. Elisabeth Roudinesco observou: “Politzer é não somente um autêntico leitor de Freud, como tem a envergadura de um grande teórico. Sob sua pena, a língua francesa possui um a verve e uma fineza incomparáveis. Esse húngaro não respeita nada, nem as celebridades, a quem trata de vasos de porcelana, nem a famosa ‘inteligência francesa', cujo ridículo fustiga com toda força.” In: História da Psicanálise na França - A batalha dos cem anos - v. 2: 1925-1985. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p. 76. (NRT)

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSIC010GIA

37

to que o futuro deve trazer-nos generosamente. Não há, tampouco, pelo menos a respeito do que já se fez, um acordo unânime entre os psicólogos, acordo que pode desencorajar de saída os “energúmenos'’: sabe-se que a histó­ ria da psicologia, nestes últimos cinqüenta anos, não é senão uma epopéia de desilusões e que, ainda hoje, novos programas são lançados a cada dia para fixar as esperanças tornadas disponíveis. Se os psicólogos protestam, e se podem protestar com certa aparência de boa fé, é porque conseguiram abrigar-se numa posição cômoda. Com as suas necessidades científicas satisfeitas pelo manejo, mesmo estéril, dos aparelhos e com a obtenção de alguns dados estatísticos que não têm por hábito sobreviver à sua publicação, proclamam que a ciência é feita de paciência e rechaçam todo controle e toda crítica sob pretexto de que a “metafísica” nada tem a ver com a ciência. 3. - Essa história de cinqüenta anos, da qual os psicólogos tanto se orgu­ lham, não é senão a história de um charco de rãs. Incapazes de descobrir a ver­ dade, os psicólogos a esperam cotidianamente, de qualquer um e de qualquer lugar, mas como não têm idéia alguma da verdade, não sabem reconhecê-la nem captá-la: vêem-na em qualquer coisa e se tom am vítimas de todas as ilu­ sões. W undt aparece primeiro para preconizar a psicologia “sem alma” e então começa a migração dos aparelhos dos laboratórios de fisiologia para os dos psi­ cólogos. Quanto orgulho! Q uanta alegria! Os psicólogos têm laboratórios e pu­ blicam monografias... Acabam-se as disputas verbais: calculemos! Puxam-se os logaritmos pelo cabelo e Ribot calcula o número de células cerebrais para saber se podem abrigar todas as idéias. Nasce a psicologia científica. De fato, porém, que miséria: o mais insípido formalismo vence protegido por uma complacência universal e aplaudido por todos aqueles que só conhecem da ciência os lugares comuns da metodologia. Aparentemente, é claro, esses psi­ cólogos prestaram serviço à psicologia combatendo as velharias eloqüentes da “psicologia racional”, quando, na realidade, só lhe construíram um refúgio onde, ao abrigo da crítica, ela ainda tinha possibilidades de sobrevivência. Quando se conseguiu medir as associações ao milésimo de segundo, fez-se sentir a lassidão. Felizmente, os “reflexos condicionados” chegaram para reani­ mar a fé. Que descoberta! Aos psicólogos maravilhados, Bechtherev apresenta a “psicoreflexologia”. Mas esse movimento adormece logo. A seguir, ora é a afa­ sia, ora a teoria fisiológica das emoções, ora as glândulas endocrinas que fazem

38 Introdução

renascer as grandes esperanças combalidas, mas aí só viceja a tensão e a dis­ tensão de um desejo impotente, porque quimérico, e ao mesmo tempo, após cada período de agitação “objetivista”, reaparece o monstro vingativo da introspecção. 4. - Longe de representar um novo triunfo do espírito científico, o adven­ to da psicologia “experimental” não passava de humilhação. Em vez de se dei­ xar renovar por esse espírito e de o servir, tratava-se de utilizá-lo para dar nova vida a velhas tradições que não a tinham mais e para as quais ele era a última chance de sobrevivência. Isso explica o fato, hoje reconhecido, de que todas as psicologias “científicas” que se sucederam desde Wundt não passam de disfar­ ces da psicologia clássica. A diversidade de tendências só representa os sucessi­ vos renascimentos dessa ilusão que consiste em crer que a ciência pode salvar a escolástica. Pois, em todos os fatos, fisiológicos ou biológicos, de que se apos­ saram, os psicólogos só procuraram isso. É também o que explica a impotência do método científico nas mãos dos psicólogos. 5. - Vistos a partir da seriedade com que concebem o método científico, os cientistas formam uma verdadeira hierarquia. Por ser o mundo da quantifi­ cação o mundo próprio dos matemáticos, movem-se nele com naturalidade e são os únicos a não transformar seu rigor em desfile. O uso que os físicos fazem das matemáticas, algumas vezes, já se ressente do fato de elas representarem para eles apenas um traje de aluguel; a pura envergadura dos matemáticos pode ser-lhes inacessível e eles são freqúentemente bitolados. Mas tudo isso é nada comparado ao que acontece no andar debaixo. Os fisiólogos já mergu­ lham terrivelmente na magia dos números, e o entusiasmo pela forma quanti­ tativa das leis transforma-se neles em adoração do fetiche. Todavia, esse impedimento não pode fazer esquecer a seriedade fundamental que encobre. Os psicólogos, por sua vez, recebem a matemática de terceira mão: dos fisiólo­ gos que a receberam dos físicos, que, só eles, as herdam dos matemáticos. Em cada etapa, o nível do espírito científico sofre uma queda e quando, no final, a matemática chega aos psicólogos, é “um pouco cobre e vidro” que eles imagi­ nam ser “ouro e diamante”. O mesmo se dá com o método experimental. É o físico que detém uma visão séria dele; só ele não brinca com ela, é só nas mãos dele que ela é uma técnica racional que não degenera em magia. O fisiólogo já tem forte tendência para a magia: nele, o método experimental degenera fre­ qúentemente em pompa experimental. O que dizer, então, do psicólogo? Nele, tudo é pompa. Apesar de todos os seus protestos contra a filosofia, ele só vê a

CRÍTKA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA #

ciência mediante lugares-comuns a respeito dos quais esta lhe ensinou. Como foi-lhe dito que a ciência é feita de paciência, que foi sobre pesquisas de porme­ nores que se edificaram as grandes hipóteses, crê que a paciência é um método em si e que basta procurar detalhes cegamente parã atrair o Messias sintético. Atrapalha-se, então, no meio dos aparelhos, ora se lança na fisiologia, ora na química, na biologia; acumula médias estatísticas e está seguro de que, para ad­ quirir a ciência, como para adquirir a fé, é preciso tomar-se estúpido.

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Entenda-se: os psicólogos são tão cientistas como os selvagens evangeli­ zados são cristãos.

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6. - A negação radical da psicologia clássica, introspeccionista ou experi­ mental, encontrada no behaviorismo de Watson, é uma descoberta importan­ te. Significa, precisamente, a condenação desse estado de espírito que consiste em crer na magia da forma sem compreender que o método científico exige uma radical “reforma do entendimento". Não se pode, qualquer que seja a sin­ ceridade da intenção e a vontade da precisão, transformar a física de Aristóteles em física experimental. Sua natureza recusa-se a isso e seria totalmente ilegíti­ mo, num a tentativa do gênero, confiar nos aperfeiçoamentos do futuro.

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7. - A história da psicologia nos cinqüenta últimos anos não é, portanto, como se costuma afirmar no início dos manuais de psicologia, a história de uma organização, mas a de uma dissolução. Daqui a cinqüenta anos, a psicologia au­ ténticamente oficial de hoje aparecerá como aparecem agora a alquimia e as fabulações verbais da física peripatética. Brincar-se-á ainda com as fórmulas retumbantes pelas quais se iniciaram os psicólogos “científicos" e com as peno­ sas teorias a que chegaram; com esquemas estatísticos e esquemas dinâmicos, e a teologia do cérebro constituirá um estudo divertido, como a teoria antiga dos temperamentos — logo, porém, tudo será relegado à história das doutrinas in­ compreensíveis e estranhar-se-á sua persistência, como se faz hoje com a esco­ lástica. Compreender-se-á, então, o que parece incrível agora, que o movimento psicológico contemporâneo não é senão a dissolução do mito da dupla natureza humana. O estabelecimento da psicologia científica supõe exatamente essa disso­ lução. Todas as articulações que um a elaboração nocional introduziu nessa crença primitiva devem apagar-se uma a uma, e a dissolução deve proceder por etapas: hoje ela já deveria estar terminada. Sua duração foi consideravelmente

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40 Introdução

prolongada, apenas pela possibilidade que se ofereceu às teses mortas de renas­ cer graças ao respeito que cerca os métodos científicos. 8. - Enfim chegou o momento da liquidação definitiva de toda essa mito­ logia. Hoje a dissolução não pode mais afetar a forma da vida e pode-se, agora, reconhecer com segurança o fim no fim. Atualmente, a psicologia está no es­ tado em que se encontrava a filosofia no momento da elaboração da Crítica da Razão Pura. Sua esterilidade é óbvia, seus procedimentos constitutivos dão nas vistas, e enquanto uns confinam-se numa escolástica impressionante por sua apresentação, mas que não progride de forma alguma, outros lançam-se em so­ luções desesperadas. Mas um sopro novo faz-se sentir: há o desejo de que toda essa história tenha acabado, mas recai-se constantemente nas fantasias esco­ lásticas. Portanto, falta alguma coisa: o reconhecimento claro de que a psicologia clássica nada é senão a elaboração nocional de um mito. 9. - Esse reconhecimento não deve ser uma crítica semelhante às que lo­ tam a literatura psicológica: estas mostram ora o fracasso da psicologia subje­ tiva, ora o da psicologia objetiva, e preconizam periodicamente o retorno da tese à antítese e da antítese à tese. Conseqíientemente, não se deve encetar uma disputa que, novamente, permaneça no interior da psicologia clássica e cujo benefício se restringe a fazer a psicologia voltar-se sobre si mesma. É ne­ cessária uma crítica renovadora, uma crítica que, pela liquidação clara do que tem sido, ultrapasse o ponto morto em que se acha a psicologia e crie essa gran­ de evidência que é preciso comunicar. 10. - Contrariamente a toda expectativa, não é do exercício do método objetivo que vem essa visão da psicologia nova que a crítica em questão supõe O resultado desse exercício é inteiramente negativo: de fato, desembocou no behaviorismo. Watson reconheceu precisamente que a psicologia objetiva clássica não é objetiva no verdadeiro sentido da palavra, pois afirmou que, após cin­ qüenta anos de psicologia científica, já era tempo de a psicologia tornar-se uma ciência positiva. Ora, o behaviorismo marca passo ou, melhor, desgraça muito maior lhe sobreveio. Inicialmente encantados pela noção de behavior, os behavioristas acabaram por descobrir que o behaviorismo conseqüente, o de Watson, não tem saída e, chorando as panelas da psicologia introspectiva, voltam, sob pretexto de “behaviorismo não-fisiológico'’, a noções francamente intros­ pectivas ou limitam-se a traduzir em termos de behavior as noções da psicologia clássica. Tem-se, então, o pesar de constatar que, em alguns, pelo menos, o

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

41

behaviorismo só serviu para dar forma nova à ilusão da objetividade.3 O behaviorismo apresenta, então, o seguinte paradoxo: para afirmá-lo sinceramente é preciso renunciar a desenvolvê-lo e, para desenvolvê-lo, é preciso renunciar a sua afirmação sincera; o que, então, despoja-o de toda razão de ser. Aliás, isso não é de se estranhar. A verdade do behaviorismo é constituída pelo reconhecimento do caráter mitológico da psicologia clássica e a noção de behavior só é válida quando considerada no seu esquema geral, anteriormente à interpretação que os watsonianos e os outros lhe dão. Cinqüenta anos de psi­ cologia científica só conseguiram chegar à afirmação de que a psicologia cien­ tífica está apenas começando. 11. - A psicologia objetiva clássica não podia chegar a outro resultado. Nunca passou da impossível vontade da psicologia introspectiva de vir a ser uma ciência da natureza e só representa a homenagem desta última ao gosto da época. Houve um momento em que a própria filosofia, inclusive a metafí­ sica, pretenderam fazer-se “experimentais’’, mas não se levou a intenção a sé­ rio. A psicologia conseguiu enganar. De fato, nunca houve psicologia objetiva diferente dessa psicologia que se fingia negar. Os psicólogos experimentais nunca tiveram idéias próprias, sem­ pre utilizaram o velho estoque da psicologia “subjetiva”. Cada vez que se des­ cobriu que certa tendência havia sido vítima dessa ilusão, recomeçou-se em outra direção, crendo que se podia fazer melhor partindo dos mesmos princí­ pios. Eis por que esses pesquisadores, a quem o método científico devia dar asas, sempre estiveram atrasados em relação aos psicólogos introspeccionistas, pois enquanto os primeiros ocupavam-se em formular “cientificamente” as idéias dos últimos, esses nada mais tinham a fazer a não ser reconhecer as pró­ prias ilusões. Agora, a psicologia experimental só consegue reconhecer seu pró­ prio vazio e a psicologia introspeccionista continua com suas maravilhosas e emocionantes promessas, enquanto entre psicólogos que abandonam o inte­ resse pela fisiologia das sensações, pelos laboratórios clássicos e pelo “devir mo-

3 O m anual de Warren é m uito significativo a esse respeito. (WARREN, Haward Crosby - 1869-1934. Précis de Psychologic. Paris: Mareei Riviére, 1923._ Trata-se de um compêndio de psicologia traduzido da 2a edição norte-americana por Louis C unault e Étienne Maigre, publicado na coleção Librairie des Sciences Politiques et Sociales. Este “m anual” marcou a introdu­ ção do behaviorismo em solo francês. Sistematizava os temas de estudo da neurofisiologia aplicada aos problemas psicológicos. NRT)

Introdução

vente” da consciência surge, com uma visão clara dos erros, a indicação de uma direção realmente fecunda. 12. - É à luz das tendências que procuram subtrair-se à influência dos pro­ blemas e das tradições da psicologia subjetiva, assim como da objetiva, que de­ vem ser vistos os aspectos positivo e negativo da crítica que empreendemos. Mesmo admitindo que essa crítica não deve ser o resultado de um trabalho pu­ ramente nocional, sua validade não exige que se comece “por baixo”. É o tronco que ela irá atacar, a ideologia central da psicologia clássica. Não se trata de desbas­ tar galhos, mas de derrubar a árvore. Tampouco é questão de condenar tudo em bloco: há fatos que sobreviverão à morte da psicologia clássica, mas só a nova psicologia poderá dar-lhes a verdadeira significação. 13. - O que há de mais notável em toda a história da psicologia não é a oscilação entre os dois pólos da objetividade e da subjetividade, nem a falta de genialidade que caracteriza o modo de os psicólogos utilizarem o método cien­ tífico, mas o fato de a psicologia clássica nem chegar a representar a forma falsa de uma ciência verdadeira, pois é a própria ciência que é falsa, radicalmente, fora qualquer questão de método. A comparação da psicologia com a física de Aristóteles não é totalmente exata, pois nem é dessa maneira que a psicologia é falsa, mas à maneira das ciências ocultas: o espiritismo e a teosofia que, tam ­ bém, simulam uma forma científica. As ciências da natureza que se ocupam do homem não esgotam tudo que se pode aprender a respeito deste. O termo “vida” designa um fato “biológico”, ao mesmo tempo que a vida propriamente humana, a vida dramática4 do ho­ mem. Essa vida dramática apresenta todas as características que tornam uma área suscetível de ser estudada científicamente. Mesmo que não existisse psi­ cologia, é em nome dessa possibilidade que ela deveria ser inventada. Ora, as reflexões sobre essa vida dramática só conseguiram encontrar lugar na literatu­ ra e no teatro, e embora a psicologia clássica afirme a necessidade de estudar os “documentos literários”, nunca houve, de fato,5verdadeira utilização, indepen­ dente dos objetivos abstratos da psicologia. Assim, em vez de poder transmitir à psicologia o tema concreto que se tinha refugiado nela, é a literatura que aca-

4 Enteda-se, de uma vez por todas, que designamos pelo term o “drama” um fato e que fazemos abstra­ ção total das ressonâncias românticas dessa palavra. Portanto, pedimos que o leitor se habitue a essa acepção simples do term o e esqueça sua significação “emotiva”. 5 Fora a psicanálise.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

bou por sofrer a influência da falsa psicologia: os beletristas viram-se obrigados, em sua ingenuidade e ignorância, a levar a sério a “ciência” da alma. De todo modo, a psicologia oficial deve seu nascimento a inspirações radi­ calmente opostas às únicas que podem justificar sua existência; mais grave ain­ da, ela se alimenta exclusivamente dessas inspirações. Com efeito, e para dizêlo em termos realistas, só representa uma elaboração nocional da crença geral nos demónios, isto é, por um lado, da mitologia da alma, e por outro, do proble­ ma da percepção, tal como se apresenta à filosofia antiga. Quando os behavioristas afirmam que a hipótese da vida interior representa um resto de animismo, divisam perfeitamente o verdadeiro caráter de uma das tendências cuja fusão deu origem à psicologia atual. Aí está uma história muito instrutiva, mas cujo relato ultrapassa os limites deste estudo. Em termos gerais, a atitude mística e “pedagógica” diante da alma, os mitos escatológicos incorporados no cristianis­ mo sofreram, em dado momento, uma queda e se encontraram repentinamen­ te rebaixados ao nível de um estudo dogmático inspirado por um realismo bárbaro, encontrando assim a inspiração do tratado aristotélico da alma. En­ quanto esse estudo devia, de um lado, servir à teologia, procurou, por outro, constituir um conteúdo para si, colhendo elementos na teoria do conhecimen­ to, na lógica e na mitologia, indistintamente. Formou-se assim um tecido de te­ mas e de problemas bem delimitados para formar uma parte distinta da filosofia. Pode-se dizer que, desde sua formação, o conjunto estava completo e, em todo caso, não se fez, até hoje, descoberta psicológica alguma digna desse nome: o trabalho psicológico, desde Gocklen ou, se preferir, desde Christian Wolff, jamais foi além do nocional: trabalho de elaboração, de articulação, enfim, a racionalização de um mito e, finalmente, sua crítica. 14. - A crítica kantiana da “psicologia racional” deveria ter arruinado defi­ nitivamente a psicologia. Poderia ter determinado imediatamente uma orienta­ ção para o concreto, para a verdadeira psicologia que, sob a forma humilhante da literatura, foi excluída da “ciência”. Mas a Crítica não produziu esse efeito. Ela certamente eliminou a noção de alma, mas, por ser a refutação da psicologia ra­ cional apenas uma aplicação da crítica geral das coisas em si, parece que o resul­ tado, para a psicologia, foi um “realismo empírico, paralelo ao que se impõe à ciência depois da ruína da coisa em si. Como a interpretação corrente não retém a idéia extraordinariamente fecunda da anterioridade da experiência extema à experiência interna, para reter apenas o paralelismo, a Critica da razão pura parece

consagrar a hipótese da vida interior.6O velho estoque da psicologia pôde sobre­ viver, e é sobre ele que se abateram as exigências em voga no século XIX: expe­ riência e cálculo. Começa, então, a lamentável história, o Carmen Miserable. 15. - O culto da alma é essencial para o cristianismo. O antigo tema da percepção jamais teria sido suficiente para gerar a psicologia: é da religião que lhe vem a forma. Urna vez constituída em tradição, a teologia da alma sobre­ viveu ao cristianismo e continua vivendo dos alimentos comuns a todas as es­ colásticas. O respeito de que conseguiu se cercar, graças ao disfarce científico, permitiu-lhe vegetar mais um pouco e, graças a esse artifício, conseguiu sobre­ viver a si mesma. Mas seria errado afirmar que a psicologia clássica alimenta-se apenas do passado. Pelo contrário, ela conseguiu alcançar certas exigências modernas: a vida interior, no sentido “fenomenista” da palavra, afinal conseguiu tornar-se um “valor”. A ideologia da burguesia não teria sido completa se não tivesse encontrado a sua mística. Após diversas tentativas, ela parece tê-la, enfim, encontrado: na vida interior da psicologia. A vida interior convém perfeitamente a esse destino. Sua essência é a mesma da nossa civilização, a saber, a abstração: só implica a vida em geral e o homem em geral, e os “sábios” atuais são felizes de herdar essa concepção aristocrática do homem com um maço de problemas de alto luxo. Além do mais, a religião da vida interior parece ser o melhor meio de de­ fesa contra os perigos de uma renovação verdadeira. Por não comportar vinculação a nenhuma verdade determinada, mas apenas um jogo desinteressado com as formas e as qualidades, ela dá a ilusão da vida e do progresso “espiritual”, enquanto a abstração, que é sua essência, trava toda vida verdadeira; e como ela só se comove com sua própria profundeza, é um eterno pretexto para ignorar a verdade. Eis por que a vida interior é recomendada por todos os que querem captar as vontades de renovação antes que possam vincular-se a seu verdadeiro obje-

6 As posições de Politzer sobre a experiência interna aparecem no artigo Introdução, publicado em L'Esprit, Io Caderno, maio de 1926. Esse artigo faz um relatório da situação real da filosofia contem po­ rânea e conduz o autor à seguinte conclusão: “Portanto, todos aqueles que nos cercam, racionalistas, intuicionistas, bergsonianos ou antibergsonianos, idealistas, pragmáticos, neokantianos, neohegelianos, neorealistas, realistas críticos e, com eles, todos os filósofos que brincam com a arte, com a ciência e com a religião, todos pertencem à mesma categoria, são filósofos sem matéria. Parecem pertencer todos à mesma escola: a escolástica contemporânea.’ (coletânea A Filosofia e os Mitos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 28). Após analisar a filosofia contemporânea girando na órbita da Crítica da Razão Pura, Politzer apresenta sua descoberta inaugural: o hom em concreto. (NRT)

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to, para que a gula das qualidades tom e o lugar da compreensão da verdade. Eis também a razão pela qual todos os que são fracos demais para mostrar-se “di­ fíceis” agarram a vara estendida: essa oferta de salvar-se contemplando o pró­ prio umbigo parece irresistível... 16. - Portanto, a psicologia clássica é duplamente falsa: falsa perante a ciên­ cia e falsa perante o espírito. Quantos não se alegrariam por nos ver sozinhos com nossa condenação da vida interior! Que prazer teriam em nos mostrar as “bases científicas” da falsa sabedoria! Todas essas “filosofias da consciência” que fazem malabarismo com as noções emprestadas da psicologia, todas essas sabe­ dorias que convidam o homem a aprofundar-se, quando se trata exatamente de obrigá-lo a sair da sua forma atual, todas elas poderiam ter continuado a ver com grande satisfação a afirmação da legitimidade do seu procedimento fundamental na psicologia. Mas as duas condenações encontram-se. A falsa sabedoria seguirá no tú­ mulo a falsa ciência: seus destinos estão ligados e elas morrerão juntas, porque a abstração morre. A visão do homem concreto expulsa-a dos dois campos. 17. - Esse acordo não deve ser razão para confundir as duas condenações. É muito mais eficaz separá-las e desligar primeiro a condenação da abstração pela própria psicologia. Ora, essa condenação aparece na mais técnica psicolo­ gia e é afirmada por autores que tudo ignoram das nossas exigências. Mas esse encontro nada tem de fortuito: a verdade trabalha todos os campos ao mesmo tempo e suas diversas fulgurações acabam por se unir numa verdade única. Por querer separar essas duas condenações, em princípio, precisamos se­ pará-las também materialmente. Eis por que é preciso começar por fixar o sen­ tido da dissolução da psicologia clássica, empenhando-nos no estudo das tendências que, ao mesmo tempo em que acabam a dissolução, prenunciam a nova psicologia. 18. - Três tendências podem figurar no caso: a psicanálise, o behaviorismo e a Gestalttbeorie. Grande é o valor da Gestalttheorie, sobretudo do ponto de vista crítico: ela implica a negação do procedimento fundamental da psicologia clássica, que consiste em desfazer a forma das ações humanas para tentar, de­ pois, reconstituir a totalidade, que é sentido e forma, a partir de elementos insig­ nificantes e amorfos. O behaviorismo conseqüente, o de Watson, reconhece o fracasso da psicologia objetiva clássica e traz, com a idéia de behavior, pouco im­ portando a sua interpretação, um a definição concreta do fato psicológico. Mas a mais importante das três tendências é, incontestavelmente, a psicanálise. E

Introdução

ela que nos faz ver claramente os erros da psicologia clássica e nos mostra, des­ de já, a nova psicologia em vida e em ação. Ao mesmo tempo em que elas contêm a verdade, essas três tendências encerram o erro sob três aspectos diferentes e, por isso mesmo, conduzem seus discípulos por vias que afastam mais uma vez a psicologia da sua direção ver­ dadeira. A Gestalttheorie, no sentido amplo da palavra (incluindo Spranger), entre­ ga-se, por um lado, como Spranger,7 a construções teóricas e não parece, por outro, poder libertar-se das preocupações da psicologia clássica. O behaviorismo é estéril ou recai na fisiologia, na biologia, até mesmo na introspecção mais ou menos disfarçada, em vez de esquecer realmente tudo para esperar apenas pelas surpresas da experiência. Por seu lado, a psicanálise viu-se tão sobrecarregada pela experiência que, enfim consultada, só queria falar, não teve tempo de dar-se conta de que escon­ de em seu seio a velha psicologia, que ela tem por missão suprimir, e alimenta com sua força um romantismo sem interesse e especulações que só resolvem problemas ultrapassados. Por outro lado, e de modo geral, é de maneira implícita ou com certa timi­ dez que a maioria dos autores ousa condenar a psicologia clássica. Parecem querer preparar o trabalho dos que vêem a salvação na conciliação dos contrá­ rios, sem perceber que se trata de mais uma ilusão, pois é impossível justapor tendências que levantam, em relação uma à outra, ou às outras, a questão pré­ via.8 Quanto aos que, como Watson e seus discípulos, ousam pronunciar uma condenação franca, suas afirmações a respeito da falsidade da psicologia clássi­ ca e as razões dessa falsidade são tão pouco articuladas que não impedem seus próprios autores de recair nas atitudes condenadas, o que faz com que suas de­ clarações sejam para uma verdadeira crítica dos fundamentos da psicologia o que as reflexões gerais sobre a fraqueza do “entendimento humano" são para a Crítica da Razão Pura. 19. - Para ser eficaz, a crítica da psicologia deve fazer-se sem dó, e só deve respeitar o que é verdadeiramente respeitável: falsas deferências, o receio de er-

7 Cf. Lebensformen, 5a e d ; Halle, 1925. 8 Freud, por exemplo, encarrega-se ele próprio de conduzir a psicanálise à psicologia clássica, como mais adiante veremos.

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rar externando todo o pensamento ou tudo o que o pensamento implica, só encompridam o caminho sem outra vantagem além da confusão. Essa timidez explica-se facilmente pelo fato de ser realmente difícil arrancar-nos dessa psicologia que nos aprisionou por tanto tempo. Os esquemas que ela nos dá não só nos parecem indispensáveis do ponto de vista prático, mas estão tão profundamente ancorados em nós que ressurgem no meio dos mais sinceros esforços que fazemos para nos livrar deles. É então possível ver uma evidência insuperável nessa tenacidade com que nos perseguem. Assim, por exemplo, a afirmação de que a vida interior não tem mais existência que os es­ píritos animais, e que as noções atribuídas à vida interior são tão escassas que é completamente inútil traduzi-las em termos de behavior, parece-nos impossí­ vel conceber, à primeira vista. Mas, atenção! Só há nisso a tentação própria das velhas evidências. A crí­ tica consiste precisamente em desmontá-las, peça por peça, para pôr a nu os procedimentos que as constituem e os postulados implícitos que elas enco­ brem. Eis por que não deve, sob pena de ficar ineficaz, restringir-se a afirmações gerais que condenam sem executar: a crítica deve chegar à execução. Isso tampouco está isento de dificuldades. A cada passo surgirá dúvida quanto ao direito de livrar-se de tal evidência ou de determinado problema. Mas em momento algum se deve esquecer que nossa “sensibilidade” é falseada, e que só prosseguindo poderemos adquirir uma visão justa que nos permitirá reconhecer o que deve ser salvo, e veremos, então, como as evidências que, de perto, parecem incontomáveis não o são quando olhadas à distância. 20. - Enfim, voltando às tendências de que acabamos de falar, o ensina­ mento que elas comportam para a psicologia beira a anulação por conta da nostalgia, que chama seus partidários ao retomo, e porque uma liquidação ra­ dical da psicologia clássica não lhes permite livrar-se dela para sempre. Eis por que, a fim de libertar o ensino em todo o seu alcance e em todo o seu rigor, dedicaremos um estudo a cada uma das tendências que menciona­ mos. Serão estudos preliminares que devem preparar a própria crítica, esclarecê-la no plano das suas articulações e fornecer-lhe as peças constitutivas; esses estudos formarão osMatériaux pour la Critique des Fondements de la Psychologie.9 A crítica em si, em que o problema que acabamos de expor será tratado em si

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5 O s Matériaux devem ser apresentados em três volumes. Depois deste, haverá um volume sobre a Gestalttheorie, com u m capítulo sobre a fenomenología; o terceiro tratará do behaviorismo e das suas diferentes formas, com um capítulo sobre a psicologia aplicada.

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Introdução

e sistematicamente, deve figurar no Essai critique sur les fondements da la psycho­ logy, o qual virá depois dos Matériaux. Esse caráter preparatorio e, conseqüentemente, provisorio dos Matériaux jamais deve ser esquecido; eles ainda não contêm a crítica, representam apenas os primeiros instrumentos, ainda toscos, com os quais serão forjados os instrumentos apropriados. 21. - Evidentemente, essa pesquisa que empreendemos nos Matériaux não pode ser feita no vazio. Não temos a mínima pretensão de examinar as tendências em questão sem idéias preconcebidas, “ingenuamente”. Afirmações desse tipo podem ser sinceras, mas nunca verdadeiras, pois não há crítica ver­ dadeira sem o pressentimento da verdade. A questão toda consiste em saber qual é a origem desse pressentimento. No que nos diz respeito, é refletindo sobre a psicanálise que percebemos a verdadeira psicologia. Isso poderia ter sido um acaso, mas não o é, pois só a psicanálise pode, hoje e de direito, dar a visão da verdadeira psicologia, por ser, e só ela, a sua encarnação. Os Matériaux devem, portanto, começar pelo exame da psicanálise: tratar-se-á, buscando o ensinamento que a psicanálise compor­ ta para a psicologia, de obter esclarecimentos que nos permitirão não esquecer o essencial no exame das outras tendências. 22. - A primeira onda de protesto que o surgimento da psicanálisé levan­ tou parece, agora, suavizada, embora a tenhamos visto recrudescer com violên­ cia na França,10 recentemente, e a situação tomou-se menos tensa entre a psicologia clássica e a psicanálise. Essa mudança de atitude, que pode ser inter­ pretada como uma vitória da psicanálise, representa, entre os psicólogos, ape­ nas uma mudança de tática. Percebeu-se que a primeira maneira de combater a psicanálise, em nome da moral e das conveniências, equivalia a entregar o ter­ reno, sem luta, aos psicanalistas e que é muito mais elegante, e muito mais efi­ caz, adquirir, por meio de uma prova de liberalidade — a qual consiste em dar a Freud o lugar que lhe pertence em psicologia, no capítulo do inconsciente —, o direito de fazer a respeito da psicanálise as reservas que a “ciência” exige. Tra­ ta-se, pois, graças a certo número de assimilações, de fazer recair sobre Freud todo o desprezo que se tem atualmente por certas tendências, e afirma-se, en-

10 A implantação da psicanálise na França confrontou-se com as idéias de Piérre Janet e as teorias da degenerescência e hereditariedade, entendidas com o agentes etiológicos das patologias m entais, que dominavam a psiquiatria francesa na década de 20. Foi dentro desse contexto que a tradução para o francês da Traumdeutung apareceu em 1926. (NRT)

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tão, que a psicanálise não passa de um renascimento da velha psicologia associacionista; que se baseia por inteiro na psicologia da Vorstellung etc. 23. - No que, por outra parte, diz respeito a seus adeptos, só vêem na psi­ canálise libido e inconsciente. De fato, Freud é para eles o Copémico da psico­ logia, por ser o Cristóvão Colombo do inconsciente e, de acordo com eles, longe de fazer reviver a psicologia intelectualista, a psicanálise liga-se, pelo contrário, a esse grande movimento que se esboça a partir do século XIX e que enaltece a importância da vida afetiva; com a teoria da libido, com a primazia do desejo sobre o pensamento intelectual, enfim, com a teoria do inconsciente afetivo, a psicanálise é o coroamento desse movimento todo. 24. - Não é difícil perceber que essa imagem, agora clássica, que os adep­ tos dão da psicanálise, vai diretamente no sentido dos desejos da psicologia clássica, ajudando-a a restabelecer seu equilíbrio após o abalo recebido da psi­ canálise. Pois, atribuindo a Freud só os méritos de Colombo e de Copémico, a psicanálise passa simplesmente a ser um progresso dentro da psicologia clássi­ ca; uma simples inversão dos valores da antiga psicologia, inversão só da ordem hierárquica dos seus valores; um conjunto de descobertas que as categorias da psicologia oficial podem perfeitamente receber, contanto que se dilatem um pouco para armazenar tanta matéria. Com efeito, o que a discussão orientada dessa forma levanta são teorias e atitudes, não a própria existência da psicologia clássica. Na verdade, não há evolução, mas uma revolução um pouco mais “coperniciana” do que se imagina: longe de ser um enriquecimento da psicologia clássi­ ca, a psicanálise é a demonstração da sua derrota. Constitui a primeira fase da ruptura com o ideal tradicional da psicologia, com suas ocupações e suas forças inspiradoras; a primeira evasão da área de influência que há séculos a mantém prisioneira, da mesma forma que o behaviorismo é o pressentimento da próxi­ ma ruptura com suas noções e concepções fundamentais. 25. - A razão pela qual os psicanalistas colaboram com seus adversários para a canalização da revolução psicanalítica é que, em seu íntimo, conserva­ ram uma “fixação” no ideal, nas categorias e na terminologia da psicologia clás­ sica. Além do mais, é incontestável que o arcabouço teórico da psicanálise está repleto de elementos tomados à velha psicologia da Vorstellung. Contudo, os adeptos da psicologia clássica não deveriam ter utilizado esse argumento. Querendo confundir o interior com a fachada, só chamaram a atenção para a incompatibilidade, na psicanálise, entre a inspiração fundamen­ tal e as teorias em que ela se encarna, cavando a própria cova. A luz dessa ins-

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piração fundamental, manifesta-se a abstração da psicologia clássica e aparece a incompatibilidade verdadeira, que não é a da psicanálise com certa forma da psicologia clássica, mas da psicanálise com a psicologia clássica em geral. Mais ainda, graças à natureza dessa incompatibilidade, cada passo dado em direção da compreensão da orientação concreta da psicanálise tem, em contrapartida, a revelação de um procedimento constitutivo da psicologia clássica; por isso mesmo, a maneira como Freud exprime suas descobertas na linguagem e nos esquemas tradicionais é apenas um caso privilegiado que nos permite observar como a psicologia fabrica seus fatos e suas teorias. De todo modo, não basta fazer a Freud a vaga acusação de intelectualis­ mo ou associacionismo: é necessário destacar com exatidão os procedimentos que justificam essa acusação. Somos obrigados a reconhecer, à luz do verdadei­ ro sentido da psicanálise, que esses procedimentos, cuja falsidade foi alardeada com tanto orgulho, não passam de procedimentos constitutivos da própria psicologia e a acusação em foco revelar-se-á um caso particular da ilusão que não pára de perseguir os psicólogos e que consiste em acreditar que se alterou a essência, quando só se trocou a roupa... 26. - Queremos investigar o ensinamento que a psicanálise comporta para a psicologia demonstrando as afirmações anteriores. Nosso esforço será, por um lado, libertar a psicanálise dos preconceitos comuns a partidários e ad­ versários e procurar sua verdadeira inspiração, opondo-a constantemente aos procedimentos constitutivos da psicologia clássica, da qual implica a negação. Por outro lado, e em nome dessa inspiração, analisaremos as construções teó­ ricas de Freud, o que nos permitirá, concomitantemente, captar os procedi­ mentos clássicos ao natural. Dessa maneira, não só obteremos uma visão nítida da incompatibilidade de que acabamos de falar, mas indicações impor­ tantes sobre a psicologia futura. E pelo fato de que a análise deve ser precisa e deve captar a maneira como se elabora e constrói a psicanálise, achamos que seria melhor estudar a teoria do sonho. Pois o próprio Freud diz: “A psicanálise baseia-se na teoria do sonho; a teoria psicanalítica do sonho representa a parte mais acabada dessa jovem ciên­ cia.”11 Por outro lado, é na Traumdeutung que melhor aparece o sentido da psica­ nálise e são mostrados com um cuidado e uma clareza extraordinários seus procedimentos constitutivos. 11 “Eiruge Bemerkungen über den Begriff des U nbew ussten in der Psychoanalyse’ in: KJeine Schrifien

zur Neurosenlchre, IV. Viena: Folge, 1922, p. 165.

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As descobertas psicológicas na psicanálise e a orientação para o concreto O que caracteriza uma ciência é certa sabedoria a respeito de um a área de­ terminada e, graças a essa sabedoria, certo poder sobre as coisas pertencentes a essa área. Não há ciência fecunda em que esses dois caracteres de sabedoria e eficácia estejam ausentes. Vejamos um físico: ele conhece mistérios espantosos e fará surgir diante de nós milagres que ultrapassam tudo o que o mágico mais hábil poderia imaginar. Falemos com um químico: ele nos ensinará coisas sur­ preendentes e o vejamos agir; o mais famoso ocultista nos parecerá pobre de coragem e falto de imaginação. Mesmo que a natureza só nos interesse medio­ cremente, a sabedoria e o poder desses homens nos causarão admiração. Tomemos agora um psicólogo. Ele nos falará das pretensões da psicolo­ gia. Contará a penosa história da sua ciência. Ele nos ensinará que se chegou a eliminar a noção de alma, a teoria das faculdades. Se lhe perguntarmos de que se ocupa, responderá que é da vida interior. Se insistirmos, aprenderemos sobre a existência das sensações, das imagens, das lembranças, da associação de idéias, da vontade, da consciência, das emoções, da personalidade e de outras no­ ções desse tipo. Explicará que as imagens não são átomos psíquicos, mas estados mais que tudo “fluidos”; que a associação de idéias, longe de tudo ex­ plicar, é apenas um estado de baixa tensão, que não choramos por estar tristes, mas que estamos tristes porque choramos. Ele nos ensinará, se prestarmos atenção, que nossa personalidade é uma síntese. Certamente enriqueceremos com alguns meios de expressão, mas resistamos ao desejo de “penetrar mais a fundo no conhecimento do homem”, pois para curar-nos de tais esperanças ro­ mânticas seremos encaminhados a um laboratório de psicologia experimental para ter uma idéia da ciência “tal como deve ser”. E lá aprenderemos coisas sen­ sacionais. Não nos farão objeções sobre nossa reticência quanto ao interesse propriamente psicológico da fisiologia das sensações. Em contrapartida, apren-

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deremos que associamos mais ou menos rápido, que há um esporte que con­ siste em reter algarismos fora de seqüéncia e a utilizar o pneumógrafo para tirar o diploma de estudos superiores. E se pedirmos de novo para ser iniciados no conhecimento do homem, ouviremos que a ciência é feita de paciência, e que com os progressos da técnica experimental e um gênio sintético semelhante ao de Newton... É isto: o psicólogo nada sabe e nada pode. É o primo pobre na grande fa­ milia dos servos da ciência. Só se alimenta de esperanças e de ilusões: deixa aos outros a matéria para contentar-se com a forma, pois acima de todas as suas misérias, ele continua um esteta. Por que falsas condescendências? Os psicólogos nada mais fizeram além de substituir uma espécie de fabulação por uma fabulação diferente, um esque­ ma por outro. Isso é tudo, realmente tudo. O conhecimento do homem? Isso tudo é relegado ou ao domínio dos falsos problemas ou ao das esperanças re­ motas. Não creio que se possa atribuir ao edifício central da psicologia outro in­ teresse, a não ser o que geralmente anima esses estudos em que o interesse está simplesmente no fato de que, avançando na erudição, segue-se com simpatia a sorte de uma idéia ou de uma noção. Aliás, isso pode ser verificado no estudo da história da psicologia. Ela não nos relata descoberta alguma: é inteiramente constituída pelas flutuações de um trabalho nocional aplicado a um idêntico tecido de problemas, o que é péssimo sinal para uma disciplina com pretensões científicas. No decurso da história da psicologia, só se viu mudar a linguagem utilizada e a deslocação do acento posto sobre as diversas questões. Mas o psi­ cólogo comporta-se tão estupidamente diante de um homem quanto o último dos ignorantes e, estranhamente, sua ciência de nada lhe serve quando se en­ contra com o objeto da sua ciência. Serve-lhe apenas quando se encontra com "colegas”. E exatamente o mesmo caso do físico escolástico: sua ciência é ape­ nas uma ciência de discussão, um a erística. A primeira coisa que impressiona na psicanálise é que o psicólogo pode adquirir por meio dela uma sabedoria real. Refiro-me apenas ao saber profissi­ onal, mas utilizo o termo sabedoria para salientar que é a primeira vez que a psicologia ultrapassa o plano da linguagem para captar algo do mistério que seu objeto de estudo encerra. E a primeira vez que o psicólogo sabe, é a primeira vez que ele aparece, ouso arriscar o termo, porque ele significa algo essencial­ mente "positivo”, como um mágico. O físico tem prestígio diante do público porque seu saber eficaz o faz apa­ recer como o legítimo sucessor do mágico que, aliás, só aparece ao lado dele

ill Capítulo Um

1 ) como precursor tímido. E o psicanalista adquire prestígio junto ao público por razões análogas. Pois ele aparece como o legítimo sucessor dos oniromantes, dos que lêem pensamentos e das pitonisas que, em comparação com ele, não passam de comediantes. E a possibilidade de comparar o físico e o psicanalista marca, na história da psicologia, uma etapa mais “positiva'7que o emprego de todos os aparelhos que migraram dos laboratorios de fisiologia para os dos psi­ cólogos. Assim como no caso do físico, a eficacia prática do saber do psicanalista é reveladora do fato de que estamos em presença de verdadeiras descobertas. A descoberta do sentido do sonho é uma delas, quero dizer, a descoberta do sentido concreto e individual do sonho. A descoberta do complexo de Edipo, tão desabonada pelos adversários de Freud, é outra. Confrontemos a psico­ logia do amor, segundo o freudismo, com tudo o que a psicologia clássica, incluindo Stendhal, pode nos ensinar sobre o assunto; façamos essa compara­ ção a partir dos pontos de vista que uma e outra nos dão para compreender um caso concreto e ficaremos surpresos com a diferença. E não falo, de propósito, do valor terapêutico, tão discutido, do tratamento psicanalítico. Situo-me ape­ nas no ponto de vista do saber que a psicanálise pode trazer à psicologia. Por certo as descobertas da psicanálises só traduzem em fórmulas cientí­ ficas certo número de observações que podem ser encontradas nos escritores de todo gênero e de todos os tempos. Isso porque a psicologia oficial, herdeira da teologia da alma, de certas teorias antigas sobre a percepção e, mais tarde, da psicologia filosófica, oriunda das duas, foi inteiramente absorvida por traba­ lhos puramente nocionais. E a psicologia verdadeira refugiou-se na literatura e no drama; teve de viver à margem da psicologia oficial, inclusive fora dela, como a física experimental teve de viver, inicialmente, à margem da física es­ peculativa, oficial. E isto se explica: foi preciso que se revelasse o caráter ilusório dos trabalhos puramente nocionais, realizados sobre o velho tema da alma e da percepção; depois, foi a vez de a química moderna dissolver a esperança de se encontrar a pedra filosofal, isto é, de transformar, pela aplicação dos métodos científicos, a velha psicologia ou suas transfabulações em ciência positiva; en­ fim, foi necessário o desgaste de certos valores em suas diversas encarnações para que o concreto pudesse falar.

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I Não se trata de simples juízos de valor: ao analisar o contraste que acaba­ mos de assinalar, poderemos descobrir na psicologia clássica a necessidade da

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ignorância, assim como a necessidade do saber na psicanálise. É o que iremos mostrar com o exemplo do sonho.

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Freud decidiu consagrar o primeiro capítulo da Traumdeutung ao histórico do problema do sonho. Acompanha a exposição das observações críticas que devem justificar sua intervenção na questão, e é difícil não reconhecer nesse ca­ pítulo a viagem de um homem que tinha um olho numa terra de cegos. Aliás, Freud dá a suas críticas um alcance modesto: tudo o que quer é fazer sentir que ainda há, após tudo o que foi dito, coisas a dizer sobre o sonho, ou melhor, que o essencial não foi dito, pois a questão foi tratada até agora com excessiva su­ perficialidade. Comparando os diversos trabalhos, ele obtém o quadro das difi­ culdades que um a teoria dos sonhos deve resolver. A teoria que Freud considera como a mais característica, por expressar a opinião mais difundida, é a teoria do despertar parcial, segundo a qual o sonho é, como diz Herbart (citado por Freud, p. 70),12 “uma vigília parcial matizada e, ao mesmo tempo, muito anormal". Encontra-se em Binz a tradução fisioló­ gica desta concepção: “Esse estado (de rigidez, Erstarrung) dissipa-se pouco a pouco pela manhã. Os produtos de fadiga, acumulados nas células cerebrais, são decompostos ou levados pela corrente circulatória. Cá e lá, alguns acúmu­ los celulares despertam, enquanto ao redor tudo continua fixo. E o trabalho iso­ lado desses grupos celulares surge, então, no seio da nossa consciência embaçada, sem que o esforço das partes do cérebro que agrupam e associam possa com­ pletá-lo. Eis por que as imagens surgidas são estranhas, reunidas ao acaso. Mas são ligadas a impressões de um passado recente. A medida que o número das células despertadas cresce, a desrazão do sonho diminui” (Binz, citado por Freud, p. 71). “Pode-se encontrar a teoria do sonho incompleto, acrescenta Freud, ou pelo menos sinais dessa concepção, em todos os fisiólogos ou filósofos modernos.”

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12 As referências que não têm qualquer indicação de título reportam-se à tradução francesa da Traum­ deutung (trad. M.I. Meyerson, Paris: Alcan, 1927). [Na presente edição, optam os pela tradução direta das citações feitas por Politzer da obra A Interpretação dos Sonhos de Freud, m antendo o estilo do autor no conjunto do texto. Com o está indicado, Politzer utilizou a tradução francesa de Meyerson, que tinha com o título La Science des Reves. N o prefácio à 8a edição, em 1929, Freud registrou a tradução de M eyerson publicada na Bibliothéque de Philosophie Contemporaine. Cotejamos as citações na Nova Edição da tradução de Meyerson, LTnterprétation des Rives, revista e com entada por Denise Berger (7a ed., Paris: Press Universitaires de France, 1993). Com o é um a edição revista, há conceitos traduzidos de forma diferente. O ptam os por m anter a tradução direta de texto tal como aparece no original. Como Politzer dom inava o alemão, acreditamos que conhecia os originais de Freud e se preferiu citar a tradu­ ção francesa é conveniente respeitá-lo. NRT]

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Capítulo Um

Essa teoria representa a antítese da concepção freudiana. Faz do sonho algo puramente orgânico e, em todo caso, um fenômeno puramente negativo, um defeito “que é freqüentemente um processo patológico", como diz Binz. Para Freud, pelo contrário, “o sonho é um fato psicológico no pleno sentido da palavra". Portanto, é a atitude de Freud em relação a essa teoria que devemos examinar. “Considerar o sonho como fato orgânico trai ainda outra intenção. Querse retirar do sonho sua dignidade de fato psicológico. Poder-se-ia representar bastante bem o que os biólogos pensam do valor dos sonhos pela velha com­ paração com o homem que, desconhecendo a música, deixaria os dedos corre­ rem pelas teclas de um instrumento. De acordo com essa concepção, o sonho seria totalmente desprovido de sentido; como poderiam os dedos desse igno­ rante reproduzir um trecho de música?”13 Freud quer dizer com isso que o sonho é sistematicamente considerado como um acontecimento que não entra na série dos processos psicológicos regu­ lares, que não se quer atribuir a formação do sonho a nenhum desses processos. O sonho aparece então não como formação psíquica regular; um pensamento, no sentido próprio da palavra, mas como um fenômeno que, apesar de sua peri­ odicidade regular, representa, quando à sua estrutura, um a exceção. Em vez de inclinar-se diante da originalidade e da complexidade do sonho e de pesqui­ sar os processos que o explicam, a teoria clássica obstina-se em considerá-lo como derrogação às regras do trabalho psicológico normal, como um fenôme­ no negativo. Essa visão da insuficiência das teorias orgânicas faz-se presente por toda parte na Traumdeutung; é bastante evidente que Freud quer remediar precisa­ mente esse defeito das teorias clássicas tentando mostrar que o sonho é um fe­ nômeno positivo, uma formação psicológica regular que, longe de dever sua existência a um a debandada das funções psíquicas, explica-se por um conjunto de processos regulares e complexos. Pode-se pensar, e as fórmulas da Traumdeutung nos levam muitas vezes a isso, que é simplesmente a dignidade do fato psicológico, no sentido clássico do termo, que Freud advoga para o sonho, e quando diz que o sonho é um fato psi-

13 U m a vez que nem sempre Politzer indica a página da citação que faz de Freud, iremos indicá-la na Nova Edição, PUF, 1993, p. 75. (NRT)

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

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cológico, na plena acepção do termo, que o sonho é integrado à psicologia sem que isso comporte consequências para a definição do fato psicológico. Com efeito, isto não é e não pode ser assim. Essa vontade de recusar ao sonho a dignidade de fato psicológico e, sobretudo’ a maneira como a teoria do despertar parcial o faz, não é simples inabilidade nem conseqiiência natural da dialética da psicologia fisiológica. Pois a psicologia fisiológica trabalha com as noções e os procedimentos da psicologia introspectiva clássica e se o problema do sonho é tratado por ela de maneira tão simplista, é porque, no campo do so­ nho, as categorias dessa psicologia tomam-se inutilizáveis e a teoria criticada por Freud é, exatamente, a tradução em linguagem dogmática da impossibilidade de abordar o problema do sonho a partir do ponto de vista e das noções da psicologia clássica. Em síntese, a teoria de Binz revela-nos que se o fato psicológico for de­ finido à modo da psicologia clássica, utilizando-se as noções que ela utiliza, não se pode ver no sonho um fato psicológico, no verdadeiro sentido do termo. Seria estranho Freud dizer, por um lado, que o sonho é um fato psicológi­ co na plena acepção do termo — porque sua formação, longe de explicar-se por uma debandada das funções psíquicas, deve-se a um conjunto de processos re­ gulares e complexos, assimiláveis, por causa disso, aos processos do pensamen­ to da vigília — e, por outro lado, que a expressão “fato psicológico” pudesse manter sua antiga significação. É o contrário que ocorre. Freud só advoga a dignidade de fato psicológico para o sonho porque consegue mostrar, na base deste, processos originais, po­ rém regulares. Ora, ele só depara esses processos porque parte da hipótese de que o sonho tem um sentido. E graças a essa hipótese que o sonho poderá ser reintegrado na sua qualidade de fato psicológico. Contudo, essa hipótese cons­ titui um a ruptura com o ponto de vista da psicologia clássica, que se situa num ponto de vista formal e desinteressa-se do sentido. O problema do sonho não podia ser resolvido pela psicologia clássica, a não ser pela aceitação da hipótese do sentido. Freud parte precisamente dessa hipótese e descobre que o sonho é um fato psicológico porque tem um meca­ nismo próprio. Mas, por sua hipótese inicial, saiu da psicologia clássica; e como essa ruptura é plena de conseqiiências, a fórmula que citamos tantas vezes e que quer representar, de alguma forma, o ingresso de Freud no seio da psicolo­ gia clássica, consagra, de fato, a ruptura com a definição clássica de fato psico­ lógico. Em resumo, estamos assistindo a um fenômeno bem conhecido na história das ciências: um esquema de interpretação clássica choca-se com uma “anomalia” que, ao final, revela-se como um “fermento dialético” poderosíssi-

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Capítulo Um

шо е acaba por quebrar o esquema clássico, tornando-se ponto de partida de uma visão nova: o sonho opôs à psicologia clássica a mesma resistência que a eletricidade opôs ao mecanismo dos físicos do século XIX e vai constituir, como o fez a experiência de Michelson para as teorias da relatividade, o ponto de partida de uma nova visão do universo da psicologia. De todo modo, a partir da crítica das teorias orgânicas, é óbvio que devemos encontrar na Traumdeutung uma nova definição do fato psicológico, irredutível àquela que a teoria clássica nos acostumou. II Essa nova definição pode ser deduzida pela comparação da maneira como o problema do sonho é abordado, por um lado, pela teoria orgânica e, por ou­ tro, por Freud. A teoria do despertar parcial considera os elementos do sonho sob um ponto de vista abstrato e formal. Formal, porque não se concede atenção algu­ ma à individualidade do sonho dada pelo sentido, e seus elementos só são con­ siderados enquanto realizam as noções de classe com as quais trabalham os psicólogos. Portanto, só se extrairão do sonho informações concementes a es­ sas classes, só se falará das imagens no sonho, dos estados afetivos etc;, a partir do ponto de vista da classe. Se o conteúdo intervém, é apenas para ser classifica­ do em geral. Dir-se-á, por exemplo, que o sonho é rico em recordações da infân­ cia, mas os psicólogos, que já tinha constatado o fato, acharam que podiam livrar-se dele falando da “hipermnésia” do sonho. Abstrato, porque o sonho e seus elementos são considerados em si mesmos, isto é, como se o sonho fosse simplesmente um conjunto de imagens projetadas numa tela. Verdade é que se estabelece a hipótese de uma tela especial (a consciência ou a vida interior) e de um aparelho especial (o cérebro); mas o procedimento explicativo tem exatamente a mesma estrutura da explicação do que acontece num a tela cine­ matográfica: trata-se de explicar um conjunto de processos que, da forma como se produzem, representam o fenômeno completo, e trata-se de explicá-los simplesmente enquanto processos, supondo causas mecânicas. É o conjunto desse procedimento que chamamos abstração. Ela começa por destacar o sonho do sujeito de quem o sonho é, considerando-o não como feito pelo sujeito, mas como produzido por causas impessoais: consiste em apli­ car aos fatos psicológicos a atitude que adotamos para a explicação dos fatos objetivos em geral, isto é, o método da terceira pessoa. Enfim, a abstração elimiCRÍT1CA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

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na o sujeito e assimila os fatos psicológicos aos fatos objetivos, ou seja, aos fa­ tos em terceira pessoa. O sonho passa a ser uma coleção d testados em si, um conjunto de estados em terceira pessoa. Sem relação com o sujeito concreto que o produz, o sonho é, por assim dizer, suspenso no vazio; é um a ressonância que nasce ao acaso e morre quando sua energia se esgota. A explicação não pode mais ser propria­ mente psicológica e procurar-se-á controlá-la com esquemas que em nada lem­ bram o ato do sujeito, da primeira pessoa; daí todas as comparações com o caleidoscópio, daí a metáfora do teclado tocado ao acaso. O que, ao contrário, caracteriza a maneira como Freud aborda o problema do sonho é que ele não efetua a abstração. Ele não quer separar o sonho do su­ jeito que o sonha; ele não quer concebê-lo como um estado em terceira pessoa, não quer situá-lo num vazio sem sujeito. E ligando-o ao sujeito de quem o so­ nho é que ele quer dar-lhe seu caráter de fato psicológico. O postulado de toda a Traumdeutung, isto é, que o sonho é a realização de um desejo,14 a técnica de interpretação que é precisamente a arte de ligar o so­ nho ao sujeito que o sonhou,15 enfim toda a Traumdeutung que é o desenvolvi­ mento, a articulação, a demonstração e a sistemática da tese fundamental, mostram-nos que Freud considera como inseparável do “eu” o sonho que, sendo por essência uma “modulação” desse eu, liga-se intimamente a ele e o exprime.16 O procedimento que encontramos na base da teoria orgânica não é parti­ cular a ele: encontra-se também nas teorias ditas psicológicas do sonho. Isso é

14 Cf. mais adiante, p. 71ss.

15 Cf. capítulo II. 16 A seguir usaremos o term o eu (je) para designar a primeira pessoa, e não no sentido técnico que tem em Freud. Cf. Das kh und das Es. Viena, 1923. [No original, quando Politzer utiliza o pronom e je, apa­ rece em itálico ou entre aspas, quando se refere ao moi, iremos indicar. Este recurso utilizado pelo autor é fundam ental para compreender a distinção que faz entre o relato em primeira pessoa e o relato em terceira pessoa. O “eu’ designa a m ínim a partícula identificadora daquele que enuncia o relato, ou seja, é um a expressão indexical e, como tal, indica um m odo relativo à situação em que se fala. N o artigo de 1926 (ver no ta 6) Politzer afirmou: “a descoberta do 'Eu' teórico, cujo ato é o pensam ento, subverte a noção ‘hom em ’. A idéia idealista destrói os gêneros aristotélicos, os gêneros impessoais e justapostos; e h destói essa noção de pensam ento impessoal e sem sujeito, que seria um pensam ento que é terceira pes­ soa. A idéia idealista é a descoberta do 'Eu'. O pensam ento é primeira pessoa, os gêneros não são mais justapostos, eles têm um a direção, centrífuga; eles irradiam do ‘Eu’. E esta ainda é apenas um a determina­ ção imprecisa, pois que eles são precisamente os atos desse ‘Eu’. E, desta forma, o gênero ‘hom em ’ desa­ parecerá tam bém . Deverá ter o m esm o destino do 'gênero pensamento': tomar-se-á sujeito, do qual é ile­ gítimo sair, ele se transformará no 'Eu' cujo ato é a Vida. M as não se trata da vida lógica, nem psicológica, e nem m esmo ainda biológica, trata-se da vida humana...". In: op. cit. p. 36. NRTj

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natural, pois a psicologia fisiológica nada mais faz, além de transpor a psicolo­ gia introspectiva clássica. Quando Dugas, por exemplo, diz que “o sonho é a anarquia psicológica, afetiva e mental, que é o jogo das funções entregues a si mesmas, exercendo-se sem controle e sem meta; no sonho, o espírito é um autóm ato espiritual” (ci­ tado por Freud, p. 51), encontramos o ponto de vista abstrato que consiste em conhecer os fatos psicológicos como entidades em si, no sentido próprio do ter­ mo; em realizá-los fora da pessoa de quem são manifestações. Situando-se fora da atividade da primeira pessoa, é natural que Dugas nada encontre além de um automatismo funcional. Essa teoria, que lembra muito a do despertar par­ cial, é a mais abstrata das teorias psicológicas do sonho, mas a abstração encon­ tra-se em todas, em graus diversos, porém nitidamente perceptíveis. Aliás, não só a abstração se encontra em todas as teorias do sonho, mes­ mo as psicológicas, mas constitui o procedimento fundamental de toda a psi­ cologia clássica. De fato, ela busca processos, por assim dizer, “autónom os”, porque descritos em termos de mecanismos e não de ações da primeira pessoa; trabalha com noções que correspondem aos fatos psicológicos considerados fora da sua relação constitutiva com a primeira pessoa e que, depois, servem de ponto de partida para as tentativas de explicação mecânica, em que só se utili­ zam esquemas na terceira pessoa e em que a primeira pessoa jamais reaparece. A mais representativa teoria dessa abstração é, evidentemente, a teoria das faculdades da alma. A primeira pessoa é compartimentada em faculdades, os fa­ tos psicológicos não são mais as manifestações do eu: provêm de faculdades in­ dependentes que são, e só podem ser, entidades em terceira pessoa. Mas a psicologia moderna, que afirma ter superado a teoria das faculdades da alma, está exatamente no mesmo caso. Os quadros que a teoria das faculdades nos le­ gou foram cuidadosamente conservados (só que em vez de faculdades, fala-se de “funções”) e, com eles, o procedimento fundamental que está em sua base. As noções atualmente em moda: consciência, tendências, síntese, “atitudes” etc., são noções que, tanto quanto as faculdades da alma, rompem a continui­ dade do eu, dando lugar, da mesma maneira, ao uso de esquemas na terceira pes­ soa. O mais que se possa dizer é que certos psicólogos tiveram o sentimento da necessidade de voltar ao “eu” e aos esquemas em primeira pessoa, mas pararam nesse “sentimento” e deixaram-se tragar por influências clássicas. Por outro lado, essa vontade de vincular o sonho ao eu não é peculiar, na psicanálise, à teoria do sonho. Faz-se presente em toda parte, em todas as áreas onde a psicanálise foi aplicada, como na teoria das neuroses e na dos atos falhos,

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sem falar das aplicações extramédicas. O que a psicanálise procura sempre é a compreensão dos fatos psicológicos em função do sujeito. Portanto, é legítimo ver aí a inspiração fundamental da psicanálise. III Qual é o sentido exato dessa inspiração? O caráter mais evidente dos fatos psicológicos é o de estar “em primeira pessoa”. A lâmpada que ilumina minha escrivaninha é um fato “objetivo”, pre­ cisamente por estar “em terceira pessoa”, por não ser “eu”, mas “ela”. Contudo, na medida em que sou eu (moí) que lhe subtendo o ser, a lâmpada é um fato psicológico. Portanto, segundo a natureza do ato que a põe, a lâmpada é um fato físico ou um fato psicológico; ela pode ser, portanto, ponto de partida de duas ordens de pesquisas essencialmente diferentes: a física, de um lado, a psicológica, do outro. Em si mesma (se isso tiver sentido), ela não pertence a nenhum a das du­ as. Mas o fato de pertencer a uma ou a outra não pode tornar-se efetivo por meio de uma simples afirmação verbal, pois é essa pertença que deve inspirar a ma­ neira como a lâmpada é concebida; ela deve criar, precisamente, a forma espe­ cial exigida pela dialética em que ela deve inserir-se. Para a física (melhor dizer, para a mecânica), a lâmpada será um “sistema material”, e o estudo propria­ mente mecânico da lâmpada só se faz possível sob essa forma. O mesmo vale para a psicologia. A lâmpada só será fato psicológico na medida em que sua per­ tença ao “eu” inspire a forma a lhe ser dada, e é preciso que ela tenha uma for­ ma especial enquanto fato psicológico, da mesma maneira como tem uma enquanto fato mecânico. Como a física, a psicologia deve fazer os fatos que es­ tuda passarem por uma transformação adequada, conforme seu “ponto de vis­ ta”. Só essa transformação pode dotar os fatos da originalidade indispensável, sem a qual uma ciência especial não tem razão para intervir. Essa “transformação” tem por base, na física, a posição dos fatos enquan­ to “terceira pessoa”, quer dizer, como conjunto de relações termo-a-termo e completamente determinantes umas das outras: a pesquisa vai “da coisa à coi­ sa”, e isso é tudo. Uma explicação mecanicista é completamente imanente ao próprio plano do processo em foco, uma coisa determina, sem resíduo, outra, esta determina a seguinte e assim por diante: nunca deixamos esse plano e tudo se resolve nas relações em terceira pessoa. A “transformação” própria da psicologia seria precisamente a que consi­ dera em “primeira pessoa” todos os fatos com que essa ciência possa ocupar-se,

62 Capitulo Um

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) mas de tal maneira que, para todo o ser e para toda significação dos fatos, a hi­ pótese de uma primeira pessoa fosse constantemente indispensável. Pois só a existência de um a primeira pessoa explica logicamente a necessidade de inter­ calar na série das ciências uma ciência “psicológica”, e se esta pode, como todas as outras, abandonar, no curso da sua evolução, os motivos temporais que lhe deram nascimento, não pode abandonar essa relação com a primeira pessoa, pois só ela dá aos fatos a originalidade de que precisa. Entre a física, “ciência da terceira pessoa”, e a psicologia, “ciência da pri­ meira pessoa”, não há lugar para uma “terceira ciência” que estudaria os fatos da primeira pessoa em terceira pessoa e que, despojando-os de sua originalida­ de, desejaria permanecer como a ciência especial que só a relação que ela rejeita pode justificar. Ora, a psicologia pretenderia ser exatamente essa “terceira ciência”. Ela quer considerar os fatos psicológicos em terceira pessoa e pretende ser uma ci­ ência totalmente original. Seu realismo permite-lhe operar esse milagre. A psi­ cologia ordinária inspira-se muito mais do que se possa imaginar (tendo em vista a terminologia em moda), no velho espiritualismo para o qual a origina­ lidade do espírito é, de alguma forma, química, no sentido de que o espírito, mesmo não sendo (como para os materialistas) uma forma da matéria; é situa­ do por um ato cuja forma é a mesma que a do ato que põe a matéria, e o espírito comporta-se como outro gênero de matéria: os dois estão em terceira pessoa. Só esse realismo pode levar a compreender por que os teóricos das localizações ne­ gligenciaram as objeções mais imediatas e desde muito conhecidas. É impossí­ vel compreender de outro modo o paralelismo psicofisiológico e a maneira como foi utilizado, e, em geral, todos os sonhos da psicologia fisiológica. Enfim, é ainda esse realismo que explica a facilidade com que os psicólogos se esque­ ceram da relação constitutiva dos fatos psicológicos. Pois se o espírito é, de acordo com o realismo, um tipo original de matéria, a psicologia poderá ser uma espécie de “parafísica”, descrevendo um m undo es­ pecial, chamado espiritual, mas paralelo ao m undo físico e não requerendo pro­ cedimentos especiais. Sua especificidade decorrerá da originalidade da percepção que esse realismo exige, e os fatos psicológicos poderão ser tratados como os fa­ tos físicos, pois a originalidade da percepção será a afirmação fundamental que deverá legitimar todos os procedimentos que, considerados em si mesmos, são absurdos. Contudo, tal método não tem estabilidade científica pois a afirma­ ção inicial, a respeito da originalidade da “percepção psicológica”, libera os psi­ cólogos de toda inquietude, a relação constitutiva deixa de aparecer no

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trabalho concreto; criam-se e descrevem-se realidades e processos, conforme o método da terceira pessoa, e, quando não se faz além de elaborar mitos, a afir­ mação inicial da percepção sui generis sempre tranqüiliza. E como tudo precisa passar pela “percepção”, a psicologia e a física encontram-se no mesmo objeto. A psicologia clássica esforça-se para poder considerar a mesma coisa duas vezes em terceira pessoa: projeta o exterior no interior, de onde procura depois, mas em vão, fazê-la sair. Desdobra o m undo para fazer dele, uma ilusão e, em segui­ da, procura fazer dessa ilusão um a realidade. Finalmente, cansada dessa “alqui­ mia”, declara que só há falsos problemas, cala-se castamente ou volta a lançar-se sobre as matizes qualitativas e os “atos de vida”. Ao professar, nos últimos cinqüenta anos, profundo desgosto pela metafísica, só conseguiu correr de uma metafísica a outra, pois do jeito que é, não pode abordar um a única questão sem que dali jorre imediatamente um problema metafísico. De todo modo, “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, e é impos­ sível aplicar às mesmas coisas, duas vezes, o método da terceira pessoa, queren­ do obter, cada vez, uma ordem de realidade diferente. Ou se renuncia à psicologia ou se abandona o método da terceira pessoa quando se estudam fa­ tos psicológicos. Eles não podem suportar a aplicação dos esquemas que fazem desaparecer a primeira pessoa e tampouco podem entrar em algum processo impessoal, pois tirar do fato psicológico o seu sujeito, que o subtende, é aniqui­ lá-lo enquanto psicológico-, e concebê-lo de forma que o esquema da concepção implique uma ruptura na continuidade do eu só pode levar a um a mitologia. A psicologia clássica ignora essas exigências, e os psicólogos não percebe­ ram que suprimir o eu dos fatos psicológicos é aniquilá-los; tampouco percebe­ ram que, em conseqúência, toda teoria fundamentada nesse procedimento só pode ser fabulação pura e simples. Talvez levantem contra nós a objeção de que arrombamos portas abertas, visto que a psicologia considera os fatos psicológicos exatamente como mani­ festações de uma consciência individual. Há verossimilhança nessa objeção, pois os mesmos que criticam a psicologia clássica de maneira tão resoluta e ri­ gorosa censuram-na por fechar-se nos fatos da consciência individual. “Alguns autores”, diz Spranger,17 “limitam a psicologia rigorosamente ao sujeito, isto é, aos estados e aos processos pertinentes a um eu individual”, e ele censura a psi-

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17 Ubensformem, p. 5 , 5a e d , Halle, Niemeyer, 1925.

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Capítulo Um

cologia clássica por manter o sujeito nesse isolamento artificial, em vez de vin­ culá-lo “às formas do plano histórico e social do espírito”.18 Entenda-se: Spranger tem perfeita razão em fazer essa censura à psicolo­ gia. Mas é porque se situa num ponto de vista muito diferente do nosso. Ele preconiza uma psicologia que estudaria as diversas maneiras de o hom em en­ tranhar-se nas redes múltiplas dos “valores” ou, caso se quiser, nas montagens que deles resultam para o homem. O que chamamos de abstração apresentase a Spranger sob um aspecto especial. Como a abstração consiste em conside­ rar os fatos psicológicos como estados em si, e como Spranger se situa no ponto de vista das “formas vitais”, ele perceberá essencialmente o isolamento diante das formas objetivas e verá nesse isolamento um a conseqúência da limitação da psicologia ao indivíduo. Ele não percebeu que a limitação da psicologia ao estudo dos fatos puramente individuais é apenas verbal. Com efeito, uma vez que a psicologia tenha afirmado que seu campo é constituído pelos acontecimentos do eu (moi), não sabe mais o que fazer desse eu e, na verdade, nada faz. Tendo-se tomado fenomenista depois da ruína da psicologia racional,'só estuda a multiplicidade dos “fenômenos”. Hume, pelo menos, foi franco: ele disse claramente que o eu {moí) não passa dessa multipli­ cidade. Mas os psicólogos modernos não podem resolver-se a enunciar clara­ mente as conseqúências fundamentais da sua atitude e gostariam de dar um sentido ao eu (moí). São muitos os temas a respeito disso. Pode-se recorrer, por exemplo, ao es­ quema da reflexão. O eu (moí) passa a ser a causa dos fatos de consciência e, ao mesmo tempo, o sujeito da introspecção: quem olha e quem é olhado. Na mai­ oria das vezes, aliás, o eu (moí) é simplesmente o lugar dos fatos psicológicos, no começo, e sua síntese, no fim. De toda forma, o eu (moí) é sempre abstrato. No esquema da reflexão, ele é, por um lado, simples causa, puro centro funcional e, por outro, um olho; na segunda hipótese, ele é apenas uma palavra para de­ signar o realismo ingénuo e, na terceira, um feixe de funções abstratas. A psicologia clássica fala do eu (moi), mas do eu (moí) por um lado e dos fa­ tos psicológicos por outro. De fato, enquanto estuda os fatos psicológicos, trata­ os como se estivessem em terceira pessoa e só se impõe depois a obrigação de vinculá-los a um sujeito. Mas é incapaz de encontrar uma relação que possa operar esse milagre. Refugiá-se, então, na qualidade e só conserva a individua18 lbid.

CRÍTICA 1X)S FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA $

lidade no plano qualitativo: a pertença dos fatos psicológicos ao indivíduo só se manifesta na irredutibilidade qualitativa do ato no qual são vividos. Exclu­ indo esse destaque pela qualidade, os fatos psicológicos são tratados como se fossem fatos em terceira pessoa. Não o seriam se sua pertença ao sujeito estivesse na base da forma em que são concebidos. E isso só poderia ser se não fossem considerados em si mesmos, à parte o sujeito, mas como elementos de um todo que não pode ser concebido sem o sujeito, isto é, como os diversos aspectos do ato do “eu”. Talvez se objete contra nós que a psicologia conhece nossa exigência e afirma claramente que não se trata de imagens, emoção, memória e, em geral, funções, a não ser provisoriamente; que só se pratica esse esfacelamento pela necessidade de análise pois, na realidade, trata-se das partes de um todo etc. Mas existe um abismo entre a afirmação de uma tese e a realização da ati­ tude que lhe corresponde. A profissão de fé em foco significa apenas que os psi­ cólogos não acreditam que as funções que descrevem possam realizar-se uma a uma, isoladas umas das outras, mas não que a análise de um fato psicológico do ponto de vista do formalismo funcional não seja uma análise psicológica verdadeira. Ora, aqui, trata-se disso, precisamente. A totalidade que os psicólo­ gos estão dispostos a admitir no hom em é uma totalidade apenas “funcional”, um emaranhado de noções de classe. Ora, semelhante emaranhado, qualquer que seja o grau de sua complexidade, não é um ato, e não supõe um sujeito, mas um simples centro funcional, pois não se pode, com elementos impessoais, cons­ tituir um fato pessoal como o ato, e a psicologia permanece, com sua falsa to­ talidade, no plano da abstração. Tampouco se diga que o esfacelamento se dá por necessidade de análise, pois a psicologia toma em empréstimo, e não sabe de onde, suas noções de clas­ se e só dá explicações justificativas porque o concreto começa a inquietá-la. De todo modo, não é da simples análise, mas da abstração e do formalismo que re­ sultam as noções fundamentais da psicologia clássica. Em resumo, as noções da psicologia não podem ser consideradas como as­ pectos de um ato individual porque não pertencem ao mesmo plano do “eu”. Só se trará à tona a pertinência dos fatos psicológicos ao eu ficando nesse plano: os fatos psicológicos devem ser homogéneos ao "eu", só podem ser as encarnações da mesma forma do “eu”.

f ô - CopítoloUm

IV Logo se vê que essas considerações não nos põem ainda na posse da “fór­ mula” da psicologia. As exigências que acabamos de desenvolver são, de fato, comuns à psicologia e à teoria do conhecimento e, em geral, a toda análise da mente. Pois o conhecimento tampouco pode ser explicado por esquemas em terceira pessoa. E por isso que Kant não podia aceitar a associação de Hume, concebida à imagem da atração universal de Newton. Ela é algo de cego, que vai “da coisa à coisa”, sem implicar um sujeito. Kant, ao contrário, com sua te­ oria da síntese satisfaz perfeitamente a exigência da primeira pessoa e da ho­ mogeneidade. A síntese, como ele a entende, é um ato em primeira pessoa e as categorias são, em última análise, apenas especificações da percepção transcen­ dental, que é a forma pura do ato do eu. Mas o eu de Kant, ao mesmo tempo em que é um “sujeito”, é o sujeito do pensamento objetivo, portanto, universal; sua descoberta e estudo não só não exigem a experiência concreta, mas a excluem, pois estamos e devemos perma­ necer no plano da lógica transcendental. Ora, caso tenha sua razão de ser, a psicologia só pode existir como ciência “empírica”. Ela deve interpretar a exigência da primeira pessoa e da homogenei­ dade de maneira apropriada a seu plano. Tendo de ser empírico, o eu da psicolo­ gia só pode ser o indivíduo particular. Por outro lado, esse eu não pode ser o sujeito de um ato transcendental, como a percepção, pois é preciso uma noção que esteja no mesmo plano que o indivíduo concreto e que seja simplesmente o ato do eu da psicologia. Ora, o ato do indivíduo concreto é a vida, mas a vida singular do indivíduo singular, isto é, a vida no sentido dramático do termo. Essa singularidade também precisa ser definida de modo concreto e não do ponto de vista formal. O indivíduo é singular porque sua vida é singular e essa vida, por sua vez, só é singular pelo seu conteúdo: sua singularidade não é, pois, qualitativa, é dramática. A exigência da homogeneidade e da primeira pes­ soa será respeitada se as noções da psicologia permanecerem no plano desse “drama”: os fatos psicológicos deverão ser os segmentos da vida do indivíduo par­ ticular. Segmentos da vida do indivíduo particular, para dizer que o que está acima ou abaixo do drama não é mais um fato psicológico “no sentido pleno da pala­ vra”. A ampola é, claro, algo da lâmpada, mas não é a própria lâmpada, e por ser a lâmpada o centro do meu interesse, o lugar em que ela se encontra, minha escrivaninha é também algo da lâmpada. Mas a ampola está “acima” e a escri­ vaninha, “abaixo” da lâmpada, e, se é a lâmpada que me interessa, não me é

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permitido romper a unidade do objeto “lámpada”; pelo contrário, é preciso re­ lacionar tudo a essa unidade, sem deixar o seu plano. O mesmo vale para a psi­ cologia. O que o sujeito vive são acontecimentos, e o termo “acontecimento” exprime que se trata do sujeito todo. Meu filho chora porque o m andam dei­ tar. Eis o acontecimento. Mas para a psicologia clássica só há nisso secreção la­ crimal consecutiva a uma representação que contraria uma tendência profunda. Isso é tudo o que aconteceu. Abandonamos o plano do “drama hum ano”, cujo autor é o indivíduo concreto, substituindo-o por um drama abstrato. No primeiro ca­ so, o indivíduo é algo de essencial, no segundo, os verdadeiros figurantes são impessoais e o indivíduo faz, no mais, o papel de empresário. Aí está o verda­ deiro sentido da abstração: a psicologia clássica procura substituir o drama pes­ soal por um drama impessoal, o drama cujo ator é o indivíduo concreto, que é uma realidade, por um drama cujos figurantes são criaturas mitológicas: em últi­ ma análise, a abstração consiste em admitir a equivalência desses dois dramas, em afirmar que o drama impessoal, o “verdadeiro”, explica o drama pessoal que é só “aparente”. O ideal da psicologia clássica consiste na busca de dramas pura­ mente “nocionais”. Pelo contrário, a psicologia, que aceita a definição que enunciamos, não admite a substituição do drama pessoal pelo drama impessoal. O aconteci­ mento, ou o ato,19 se quisermos, representa para ela o termo da análise e é pelo pessoal que procura explicar o pessoal. O psicólogo terá, então, algo do crítico de teatro: um ato sempre se lhe apresentará como segmento do drama que só tem existência no e pelo drama. Seu método não será, portanto, um método de observação pura e simples, mas um método de interpretação. Não é difícil adivinhar que a psicanálise caminha exatamente nessa dire­ ção. Freud procura o sentido do sonho. He não se contenta com o estudo abs­ trato e formal de seus elementos. Não busca um cenário abstrato e impessoal cujos figurantes são excitações fisiológicas e cujo enredo é constituído por suas andanças pelas células cerebrais. O que ele quer atingir pela interpretação não é o eu (moí) abstrato da psicologia, mas o sujeito da vida individual, isto é, o su­ porte de um conjunto de acontecimentos únicos, caso se queira: o ator da vida dramática, não o sujeito da introspecção; enfim, o eu (moi) da vida cotidiana. Esse eu (moi) não intervém como “proprietário dos seus estados”, ou como cau­ sa de um a função geral, mas como o agente de um ato considerado em sua de-

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15 Cf. m ais adiante e, sobretudo, p. 178.

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terminação singular. Sobretudo, não há referência a uma causa desprovida de sentido e de conteúdo, mas a um sujeito qualificado precisamente pelos acon­ tecimentos e que está por inteiro em cada um deles. O sonho é um segmento da vida do indivíduo particular: só pode ser explicado em relação ao eu-, mas, referido ao ей, o sonho significa, então, a determinação do seu sentido enquan­ to momento no desenrolar de um conjunto de acontecimentos cuja totalidade é chamada vida, a vida do indivíduo particular. V A psicanálise encerra, pois, uma definição nova do fato psicológico. Intro­ duzimos essa definição de modo um pouco artificial, começando por enunciá-la sob sua forma mais geral e mais abstrata. Era necessário começar assim; por um lado, para fazer aparecer, distinguindo as duas etapas da marcha para o concre­ to, toda a exatidão e todo o alcance da definição em questão, e, por outro, para mostrar que é possível enfatizar a falsidade desse procedimento fundamental da psicologia clássica que é a abstração, independentemente de qualquer questão de doutrina. Freud procede de maneira mais empírica e menos consciente. Não empre­ ende, e isso é natural, uma análise geral dos procedimentos da psicologia clás­ sica; limita-se a assinalar o erro das teses que decorrem dela nos pontos precisos em que os encontra. Tampouco destaca as conseqúências da sua atitude nem chega a formular em termos livres a inspiração fundamental de sua própria doutrina. Comporta-se como se tivesse definido o fato psicológico como aca­ bamos de fazê-lo: só se interessa pelos fatos psicológicos na medida em que são atos individuais, permanecendo convicto de que a psicanálise só é revolucioná­ ria enquanto contribuição. Em vez de prolongar o ponto de vista da interpre­ tação até o momento em que uma nova definição do fato psicológico possa surgir, considera-o, na Traumdeutimg, ponto de vista à parte, que não é o ponto de vista psicológico, e procura, no capítulo “A psicologia dos processos oníri­ cos”,20 traduzir, situando-se no ponto de vista “psicológico”, os fatos psicanalíticos na linguagem da psicologia clássica.21 Para que não se pense que nossa maneira de caracterizar a inspiração fun­ damental da psicanálise não é suficientemente persuasiva, procuraremos veri20 Trata-se do célebre capítulo VII da Traumdeuumg, base de sustentação da critica politzeriana ao naturalism o cientificista de Freud. (NRT) 21 Cf. começo do capítulo II e nosso capítulo V.

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ficar nossa interpretação mostrando, a partir de um exemplo concreto, que a atitude de Freud corresponde perfeitamente aos sinais que demos e que nossa interpretação permite compreender a tenacidade com que Freud afirma, na Traumdeutung, que “o sonho é a realização de um desejo”. 1. - Falando do pesadelo, Freud estabelece um paralelo entre o método das explicações clássicas e o dele. Diz ele: “Um exemplo impressionante mos­ trará até que ponto as viseiras da mitologia médica impedem os médicos de ver os fatos (p. 575). Trata-se de uma observação relatada por Debacker na sua tese sobre As alucinações e os terrores noturnos das crianças e dos adolescentes” (1881, p. 66). Freud cita a observação, mas basta comparar as duas explicações. Eis a de Debacker: “Essa observação é impressionante sob muitos pontos de vista e sua análise destaca os seguintes fatos: “Io) Que o trabalho fisiológico da puberdade num rapaz de saúde débil provoca um estado de enfraquecimento muito grande e que a anemia cere­ bral22 pode ser considerável; “2o) Essa anemia cerebral leva a um a alteração de caráter, a alucinações demonomaníacas e a terrores noturnos, talvez diurnos, muito intensos; “3o) Essa demonomania e esses escrúpulos religiosos ligam-se, evidente­ mente, ao meio religioso em que ocorreu a juventude da criança; “4o) Todos os fenômenos sumiram com uma estada prolongada no cam­ po, o exercício e a recuperação das forças após a puberdade; “5o) Podemos atribuir à hereditariedade e à antiga sífilis do pai uma pre­ disposição ao estado cerebral? Será interessante verificar no futuro.” Freud chama a atenção sobre a observação final desse trabalho: “Introduzimos essa observação no quadro dos delírios apiréticos de inanição, pois relacionamos esse estado particular à isquemia cerebral” (cf. pp. 575577 inclusive). A explicação de Freud é totalm ente diferente. Diz ele (p. 77): “Não é difícil adivinhar: 1) que o menino se masturbava quando pequeno, que não queria confessar e que fora ameaçado com severas punições (sua con­ fissão: ‘não o farei mais'; seus desmentidos: ‘Albert nunca fez isso'); 2) que sob o impulso da puberdade, a tentação de se masturbar voltou; 3) que ela provo­ cou um recalque e uma luta em que a libido transformou-se em angústia; esta

22 Destacado por Freud. Cf. Nova Edição, PUF, 1993, p. 499. (NR.T)

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angústia assumiu, secundariamente, a forma dos castigos com os quais ele fora anteriormente ameaçado.” Independentemente do que se pensar a respeito desta última explicação, o que impressiona é que o médico citado por Freud só se refere a causas gerais: anemia cerebral, inanição; para ele, a forma particular do delirio, as cenas em que a criança dramatizava seu pavor não têm importância; do cenário do diabo só explica o esquema geral e o faz por meio de um a causa geral: o meio religioso; conseqúentemente, nunca se desce ao plano individual para compreender os fatos em sua particularidade concreta; enfim, para resumir, não deixa lugar às “causas secundárias”. Freud, ao contrário, não abandona a forma concreta e in­ dividual do sintoma em questão, com todos os seus pormenores particulares, e só faz intervir na explicação fatos individuais, tirados da experiência do sujei­ to em questão. Portanto, nunca abandona o plano do indivíduo singular. 2. - Que o espírito da doutrina de Freud seja exatamente o que indicamos, isso é demonstrado pela afirmação mais fundamental da teoria do sonho, a sa­ ber: que “o sonho é a realização de um desejo”. Afirmação surpreendente, pois aparece no início do livro, no momento em que o leitor — sob a influência, por um lado, do capítulo dedicado ao histórico do problema do sonho e, por outro, sob a do paralelo que o próprio Freud estabelece entre os oniromantes antigos e a psicanálise — considera Freud apenas como aquele que sustenta “em geral” que o sonho tem um sentido. Realmente, a descoberta de Freud tem uma significação muito diferente e muito mais importante. Ele não é o primeiro a afirmar que o sonho tem um sentido. He mesmo fala da tentativa feita por Schemer de aprofundar o proble­ ma do sonho nessa direção (cf. p. 76ss.). “Em 1861, Schemer fez a mais original e penetrante tentativa de explicar o sonho por uma atividade particular que só podia se manifestar durante o so­ no” (p. 77). Essa “atividade particular” deve-se à imaginação que, durante o so­ nho, “liberta-se da inteligência e assume inteiramente o controle” (ibid.). Para fabricar o sonho, a imaginação extrai “seus materiais da memória da vigília, mas o edifício que ela constrói é inteiramente diferente das produções da vigí­ lia” (ibid.). Ela “não dispõe, no sonho, da linguagem dos conceitos; é preciso que ela mostre plasticamente o que quer dizer” (ibid.). “Ha dá uma forma exterior plástica aos fatos da nossa vida interior” (ibid.). Essa atividade plástica da ima­ ginação não consiste apenas na substituição de um objeto pela sua imagem. Ela dramatiza o pensamento esboçando sua silhueta (p. 88).

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“Schemer acredita que os elementos utilizados pela atividade artística do sonho são sobretudo as excitações orgânicas, tão obscuras durante o dia" (ibid.). A imaginação do sonho entrega-se com as excitações orgânicas a “um jogo irritante (...) representando os órgãos de ondè vem a excitação por formas simbólicas” (ibid.). Por exemplo, o organismo inteiro é representado por uma casa. Mas “não fica nisso; ela pode, ao contrário, representar um só órgão por séries de casas, por exemplo, longas ruas representarão a excitação intestinal. Outras vezes, partes de casa representarão partes do corpo. Por exemplo, num sonho de enxaqueca, o forro de um quarto (que é visto coberto de enormes ara­ nhas, semelhantes a sapos) representará a cabeça” (pp. 78-79).

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Diante desses textos e, sobretudo, lendo os comentários de um discípulo de Schemer, Volkelt, filósofo alemão bem conhecido (cf. p. 79, § 2), em que aparece um simbolismo tão desenvolvido quanto o de Freud, pode-se pensar que estamos diante de alguém de quem Freud fez muitos empréstimos. Ora, todo o pensamento de Schemer se encontra fundamentalmente falseado pela abstração. O sonho tem um sentido, sim. Também em Schemer se pode ver, embora só de maneira implícita, a distinção do conteúdo manifesto e do con­ teúdo latente, um constituído pelo relato não decifrado, o outro, pelo relato de­ cifrado. Mas o sentido que o sonho tem para Schemer é um sentido geral; portanto, a decifração, considerando a simbólica de Schemer, dá um conteúdo latente geral, e a interpretação liga o sonho a excitações orgânicas impessoais. Ora, para Freud, “é a nossa personalidade que aparece em cada um dos nossos sonhos” (p. 289). É precisamente a essa personalidade concreta que a interpre­ tação freudiana vincula o sonho. Freud não pode aceitar a explicação de Scherner, que mostra “como o poder de centralização, a energia espontânea do eu (moi) ficam enervados no sonho; como, por causa dessa descentralização, o co­ nhecimento, a sensibilidade, a vontade, o poder de representação são altera­ dos”, pois, nessa explicação, Schemer só afirma a tese da abstração. Freud não sabe o que fazer com essa teoria e com a simbólica decorrente. Os dois, Schemer e Freud, afirmam que o sonho tem um a significação, mas um é psicólogo no sentido clássico da palavra e está ansioso para voltar ao abstrato após ter roçado o concreto, enquanto o outro inaugura o retomo consciente e decisivo ao concreto. Para resumir a essência do sonho, Freud precisa de uma fórmula que ex­ presse precisamente o caráter concreto do sonho, e é o que ele pensa alcançar com a afirmação de que “o sonho é a realização de um desejo”.

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i Esta fórmula tem muitos aspectos, mas todos se resumem no seguinte: ele vincula o sonho à experiência individual concreta. Primeiramente, graças a essa fórmula, o sonho não está ligado a um a fun­ ção geral, ou melhor, a alusão a essa função geral não fornece uma explicação exaustiva do sonho. Por exemplo, dizer que o sonho provém de um desvio do real não é, para Freud, senão uma explicação superficial no sentido etimológico da palavra; uma explicação manchada do erro da psicologia que consiste em não querer remontar, como Freud gosta de repetir, além do conteúdo manifes­ to do sonho, isto é, além da significação convencional.23 Se, de fato, Schemer remonta além do conteúdo manifesto, mas não vê no conteúdo latente senão o exercício de um função geral, o jogo desinteressado de uma função como a imaginação, é tam bém verdade que semelhante teoria não é suficiente para Freud. O que ele diz é que o sonho é a realização de um desejo. Aí, poderia ter caído na abstração. Pode-se personificar o desejo e fazer dele o Desejo, como Schemer personifica a queda dos conceitos na representação plástica, para fa­ zer dela a Imaginação. Obter-se-ia, então, um a teoria geral e abstrata do sonho desejo. Levando um pouco a imaginação de Schemer para o lado do desejo, dirse-ia que a imaginação transpõe o pensamento num cenário de desejo, mas no cenário de qualquer desejo, contanto que seja um, pois acrescentemos, a título de axioma, o Desejo procura realizarse... Poderíamos elaborar, então, um simbo­ lismo do desejo conforme essa concepção geral e abstrata, simbolismo em que a imaginação interpretaria os pensamentos na perspectiva do desejo possível. Freud não caiu nessa abstração. A teoria que acabo de imaginar não pode­ ria ser dele pois, nessa teoria, o desejo a se realizar seria, como a imagem do so­ nho em Schemer, obra de um jogo livre da Imaginação a serviço do Desejo e, novamente, os desejos tais como seriam realizados no sonho não poderiam ser ligados ao indivíduo concreto, por serem determinados apenas pelo fato de que uma função geral é sempre propensa à realização de outra função geral. Eis por que o pensamento de Freud é totalm ente diverso. Não se trata de afirmar que o sonho é a realização do Desejo em geral, mas a realização de um desejo particular, determinado em sua forma pela experiência particular de um indivíduo particular. Se a criança de que Freud fala sonhou ter comido todas as cerejas, não é porque a Imaginação, operando com os materiais mnemónicos da vigília, reencontrou as “cerejas” e procurou, em nome do “Desejo”, o desejo 23

Ver, adiante, capítulo II.

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possível, mas porque a criança particular em questão tinha efetivamente desejado as cerejas, o que é bem diferente. Isso revela-nos, ao mesmo tempo, outro aspecto da fórmula de Freud. Se tivesse podido se contentar com essa emenda da teoria de Schemer que imaginamos, Freud teria permanecido na abstração por um segundo motivo. Não teria alcançado o concreto porque o desejo não teria sido um a esperança individual, efetivamente produzida pelo indivíduo. Teria sido um desejo possí­ vel, dados os materiais plásticos da imaginação; teria faltado o desejo de ser psi­ cologicamente real, pois não teria sido sustentado pela primeira pessoa. Mas, precisamente, para Freud o pensamento do sonho é um desejo concreto, não só pelo seu conteúdo individual, mas também pelo fato de ser um desejo psico­ logicamente real e, por isso, o "eu" está sempre presente no sonho. A teoria de Schemer ultrapassa as teorias abertamente abstratas do sonho e aproxima o concreto, dando um sentido ao sonho, vendo nele a revelação de algo. Mas essa revelação nos conduz apenas à intimidade de uma vida psicológica em geral. Se Freud tivesse parado na idéia de uma determinação do conteúdo do desejo pelos materiais mnemónicos, sua teoria nos levaria apenas ao domínio das virtualidades da experiência individual; teríamos ficado no abstrato, pois não ultrapassaríamos o plano das possibilidades. Porém, Freud postula um de­ sejo efetivo, a determinação por um motivo real; ele capta verdadeiramente o concreto psicológico, pois nos conduz ao âmago da experiência individual. Que significa o termo “desejo”? Freud explica o mecanismo do desejo (cf. por exemplo, p. 556ss, e, em geral, toda a seção III do capítulo VII) em vez de responder a essa pergunta, e, mesmo assim, só lhe dedica uma atenção especí­ fica no final da obra. Após ter explicado, no capítulo II, a técnica que utiliza para a interpreta­ ção dos sonhos, Freud analisa, no mesmo capítulo, o “Sonho da injeção aplica­ da a Irma” (pp. 98-109). O conteúdo manifesto é decomposto nos seus elementos e Freud anota os pensamentos despertados por cada um deles, res­ pectivamente. A cada passo do relato surgem pensamentos que esclarecem a significação dos elementos do conteúdo manifesto, de tal forma que, se con­ frontarmos esses pensamentos com o conteúdo manifesto, este é para aqueles como uma peça de teatro é para seu tema, no sentido preciso que os primeiros expressam a idéia do desejo e o segundo, o palco em que este se realiza. E, pelo contrário, cada vez que no decorrer das “associações” aparece a idéia de uma si­ tuação penosa, é a situação contrária que acontece no sonho. “Repreendo Irma por não ter aceito, ainda, a minha solução; digo-lhe: se tens dores ainda, é culpa

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tua. (...) A frase que digo a Irma dá-me a impressão que não quero de forma al­ guma ser responsável pelas dores que ainda sente: se é culpa de Irma, não pode ser culpa minha. Será preciso procurar nessa direção a finalidade intem a do so­ nho... apavoro-me com a idéia que eu possa ter negligenciado uma doença orgânica.24 Esse receio é fácil de ser compreendido num especialista que trata unicamente de pessoas nervosas e que é levado a pôr na conta da histeria um monte de sin­ tomas que outrosmédicos tratam como doenças orgânicas. Todavia, e desco­ nheço o porquê, surge uma dúvida a respeito da sinceridade do meu receio. Se as dores de Irma têm origem orgânica, sua cura não está mais na minha atri­ buição: meu tratam ento só se aplica às dores histéricas. Estaria desejando um erro de diagnóstico para não ser responsável pelo fracasso?” (p. lOOss.).

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Terminada a análise, Freud pode apresentar o relato do conteúdo latente.

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“Eis concluída a análise desse sonho.25 Durante todo o trabalho, lutei o mais que pude contra todas as idéias e os pensamentos inconscientes que ele continha. Notei uma intenção que o sonho realiza e que o motivou. O sonho realiza alguns dos desejos que foram despertos em mim pelos acontecimentos da tarde (as notícias trazidas por Otto; a redação da história da doença) [cf. re­ lato preliminar (p. 97)], a conclusão do sonho é que não sou responsável pela persistência da doença de Irma; o sonho vinga-me: retoma a censura. Retirame a responsabilidade da doença de Irma que ele relaciona com outras causas [enunciadas com pormenores]” (p. 110).

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Em resumo, o conteúdo manifesto, confrontado com os materiais forne­ cidos pela análise, apresenta-se como uma peça que “tem final feliz”. “O so­ nho”, diz Freud ao final da passagem que acabo de citar, “expõe os fatos tais como eu desejava que tivessem ocorrido; seu conteúdo é a realização de um de­ sejo, sua motivação, um desejo.” É claro, portanto, que o termo “desejo” é sugerido a Freud pelo fato de o conteúdo latente descoberto por ele ter a significação de uma realização e co­ mo, pela análise, encontram-se precisamente, por um lado, pensamentos préformadores dessa realização e, por outro, sentimentos que a chamam — seja diretamente, seja afastando a realização contrária —■,Freud acredita poder afir­ mar que o desejo é, ao mesmo tempo, o conteúdo e a motivação do sonho.

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24 Destacado por Freud. Cf. Nova Edição, PUF, 1993, p. 101. (NRT) 25 Pode-se imaginar facilmente que não comuniquei tudo o que me veio à m ente durante o trabalho de interpretação. (Nota de Freud)

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Freud percebe claramente as dificuldades que a generalização dessa afir­ mação implica. “Se afirmo que todo sonho é desejo realizado e que não há outros sonhos senão sonhos de desejo, sei que esbarrarei com uma oposição irredutível. Obje­ tar-me-ão: o fato de haver sonhos que devem ser interpretados como intenções realizadas não é novo... Mas dizer que só há sonhos de desejo é um a generali­ zação injustificada que se pode refutar sem dificuldade” (p. 124). Não só Freud volta com freqiiência a essa objeção geral, mas é precisamente essa objeção que constitui o “fermento dialético” que, a partir do capítulo IV, permite-lhe desen­ volver sua teoria. Com efeito, a objeção mais comum contra a teoria do sonho como reali­ zação de desejo consiste em dizer que “o desagradável e a dor são mais freqüentes no sonho que o agradável e o prazer” (p. 125). Fora os sonhos “que contêm, durante o sono, os estados afetivos penosos da vigília, há os pesadelos, os so­ nhos de angústia em que esse sentimento, o mais terrível de todos, atorm énta­ nos até acordarmos. E precisamente nas crianças, em quem encontramos os sonhos de desejo mais nítidos, que esses pesadelos ocorrem com maior freqúência” (p. 125). Mas Freud elimina essas objeções alegando que se fundamentam no con­ teúdo manifesto, enquanto ele fala do conteúdo latente. “É verdade que exis­ tem sonhos cujo conteúdo manifesto é penoso, mas já se procurou analisar esses sonhos para descobrir-lhes o conteúdo latente? Caso contrário, todas as objeções caem, pois não é possível que todos os sonhos penosos, todos os pe­ sadelos, sejam de fato sonhos de desejos?” (ibid.). É exatamente para responder positivamente a todas essas questões que Freud introduz a noção de transpo­ sição e todas as outras noções que constituem as articulações da sua teoria. O argumento de Freud é, antes de mais nada, puramente lógico; começa por alegai a possibilidade, e parece que a última palavra é deixada à indução. “Depois que a análise ensinou-nos que atrás do sonho esconde-se um sen­ tido e um valor psicológico, não esperávamos ver esse sentido interpretado de maneira unilateral” (p. 544). Pensa-se que ele vai limitar-se a probabilidades. Mas não. A marcha do pensamento freudiano é mais ousada. A idéia de que o sonho pudesse ser uma realização de desejo revelou-se a Freud em decorrência das suas análises. Mostrou-se logo um a hipótese de trabalho maravilhosa, pois é graças a essa hipótese que se pode abordar o estudo do sonho de acordo com o espírito da psicologia concreta. Freud tem, então, a idéia de dar um a base só­ lida à psicanálise transformando em princípio sua hipótese de trabalho. Não se

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sente seguro à sombra da indução; ele precisa da certeza da possibilidade de ge­ neralização e é com esse espírito que aborda a questão no final da obra. Não é mais questão de fornecer provas “analíticas”, mas de demonstrar que o sonho só pode ser realização de desejo (cf. p. 560). A última palavra de Freud na discus­ são é que “o sonho é sempre realização de desejo, porque provém do sistema inconsciente que não tem outra meta senão a realização do desejo e que não tem outra força senão a do desejo” 26 Finalmente, chegamos ao inconsciente. Embora seja esse o alicerce do pensamento de Freud sobre a possibilidade de generalizar sua afirmação fundamental, não se deve pensar que conseguiu erigir verdadeiramente como teoria os verdadeiros motivos dessa generaliza­ ção. Veremos, no capítulo em que se tratará do inconsciente em Freud, que te­ orias do tipo que acabo de citar não podem estar ligadas à inspiração verdadeira da psicanálise, e se Freud o faz é porque se expressa numa linguagem que fal­ seia sua visão. Assim é que a frase citada não passa de um devaneio justificativo ao gosto de uma psicologia cujas conseqiiências Freud é o primeiro a rejeitar. Os verdadeiros motivos dessa generalização defendida por Freud, com tanta tenacidade apesar de todas as objeções, residem na maneira como a fór­ mula fundamental da teoria freudiana do sonho se modela sobre as exigências da psicologia concreta. Por ser um segmento da vida do indivíduo particular, o fato psicológico é inseparável desse indivíduo. Mas é inseparável atualmente, sem isso a continui­ dade do eu fica rompida e o fato psicológico deixa de existir. Ora, o desejo não liga o sonho ao indivíduo do ponto de vista do conteúdo, mas porque assegura ao sonho essa continuidade do eu, sem a qual o fato psicológico é apenas uma criação mitológica. Se o sonho é a realização de um desejo, não é senão uma modulação do “eu” que o tem e que, conseqüentemente, está sempre presente. O desejo assegura ao sonho a continuidade dessa presença do eu. Resumindo, pela teoria do sonho-desejo, o sonho passa a ser um "ato". Estamos aqui diante da incompatibilidade da psicologia concreta com as noções da psicologia oficial. O fato psicológico deve ser pessoal e atualmente pessoal — essas são suas condições de existência. Decorre disso que a noção fundamental dessa psicolo­ gia só pode ser a noção de ato. O ato é a única noção inseparável do eu em sua

26 Aliás, subsiste em Freud um a hesitação quanto à questão: exceções foram admitidas. Porém, o sen­ tido da preferência de Freud é m uito claro.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

totalidade, único entre todas as noções, só se concebe como a intervenção atual do eu. Por isso, a psicologia concreta só pode reconhecer como fato psicológico real, o ato. A idéia, a emoção, a vontade etc. não podem ser reconhecidas pela psicologia concreta como tendo uma atualidade psicológica, conseqúentemente, como tendo realidade concreta. Freud adere precisamente à teoria do sonho-realização porque essa teoria faz do sonho um ato, um ato do sujeito particular a quem o sonho pertence, e porque não vê outro meio para obter o mesmo resultado, para assegurar ao so­ nho, ao mesmo tempo, a continuidade e a presença atual do eu. É evidente que Freud não pode expressar-se exatamente nesses termos. Pertence a outra gera­ ção, suas evidências são diferentes das nossas, pensa as coisas sob outras for­ mas e, por isso mesmo, sofre atrações dialéticas que o arrastam fora do campo do seu verdadeiro pensamento. Mas qualquer que seja a dialética que é obriga­ do a adotar, suas descobertas estão aí e podem indicar o que escapou, por moti­ vos que nada têm de vergonhosos para o próprio Freud. VI Na Traumdeutung percebemos o antagonismo entre duas tendências em psicologia: por um lado, o da psicologia oficial, cujo procedimento fundamen­ tal é a abstração, e, por outro, o da tendência freudiana que é um a orientação para o concreto, mas para o concreto interpretado, desta vez, de maneira clara, sincera e útil à psicologia. É esse antagonismo que explica o contraste entre o saber da psicanálise e a ignorância da psicologia clássica. Se começamos por desligar os fatos psicológicos do indivíduo singular, si­ tuamo-nos logo num plano abstrato, no plano das generalidades com as quais trabalham os psicólogos. Mover-nos-emos em meio a considerações que fica­ rão acima ou abaixo do indivíduo particular e, como só esse pode introduzir na teoria a diversidade concreta que a torna aplicável aos casos particulares, a abs­ tração levará forçosamente à tautologia e o acaso deverá preencher o vazio cria­ do pela eliminação do concreto individual. De fato, a experiência só nos apresenta fatos individuais, mas como, pela abstração, nos condenamos a só poder invocar generalidades, seremos obrigados, em relação a cada caso indivi­ dual, a repetir as generalidades; a explicação será incapaz de moldar-se ao fato a explicar. Assim, após ter dito que o sonho se explica pelo passeio aventuroso de uma excitação pelas células cerebrais, só se pode repetir a mesma coisa a res­ peito de cada sonho e ficamos condenados não só a essa repetição cansativa e

Capítulo Um

ridícula, mas a não poder utilizar o rico material que os sonhos nos fornecem. A utilização real desse material encontra-se, pela primeira vez, em Freud. De modo geral, quando se disse que todo estado psicológico traduz um estado do sistema nervoso ou lhe é paralelo, fechou-se a porta de todo saber concreto para abrir as comportas da Gehirnmythologie. Se se começar por desparticularizar o fato, a conclusão será necessaria­ mente abstrata e em nada servirá para a compreensão do fato concreto. Nesse caso, o psicólogo nada saberá. Sempre será obrigado a repetir, em relação a cada fato particular, as mesmas conclusões gerais: portanto, nunca estará de posse de uma ciência verdadeira; nunca poderá ultrapassar o plano da linguagem e nunca poderá fazer outra coisa a não ser constatar que o que aconteceu: a tau­ tologia será sempre o fruto da abstração. Pelo contrário, o psicanalista, por nunca distanciar-se do plano do indiví­ duo particular, pois para ele o fato psicológico é um segmento da vida do indi­ víduo particular, obterá conclusões concretas que atingirão os fatos em sua particularidade e, conseqüentemente, os indivíduos em sua vida concreta. Por não ter cometido o pecado da abstração, o psicanalista poderá adquirir um sa­ ber verdadeiro que, mesmo imperfeito ainda, já se impõe pela sua penetração nos casos concretos e nas situações particulares. A ignorância em que se encontra a psicologia atual não é, portanto, urna doença infantil e nenhuma melhora pode ser esperada neste caso de um "gênio sintético” ou do futuro, em geral. Pois esse caráter não se deve à imperfeição de métodos, eficazes em princípio, mas aos próprios procedimentos constitutivos. Um saber “empírico”, qualquer que seja, só pode constituir-se a posteriori, extraindo dos fatos o ensinamento que eles contêm. Esse é, grosso modo, o sentido do termo “indução”. Ora, para fazer induções fecundas, é preciso poder utilizar a experiência, não dispensá-la por antecipação; de maneira geral, é pre­ ciso um campo empírico adequado à ciência em questão. Caso contrário, a in­ dução permanece estéril... e nunca chegará a um saber explicativo. Ora, a psicologia clássica só conhece as induções estéreis. Para explicar a vida psicológica, ela precisaria partir do plano da vida, isto é, do indivíduo con­ creto e de seus atos, pois é a única maneira de chegar a um saber capaz de voltar aos indivíduos, portanto, a um saber explicativo. Mas em vez disso, a psicolo­ gia clássica passa a usar viseiras. Recorta, na experiência psicológica, uma área formal e funcional e, como esse ponto de vista só representa o aspecto mais for­ mal e mais superficial, o saber obtido não tem utilidade para a compreensão de um caso concreto. CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ф

) Na psicologia introspectiva, a indução é utilizada apenas para estabelecer a maneira como, na maioria dos casos, o “processo mental” se desenvolve. Pode-se tom ar como exemplo a introspecção experimental da escola de Wurzbourg. Aí, a rigor, pode-se falar de indução.27 Mas em que consiste? Trata-se de saber quais são as características da imagem, como é pensada, qual sua verda­ deira função no pensamento. O esforço da escola de Wurzbourg representa, certamente, um progresso. Os teóricos clássicos da imagem — Taine, por exemplo — confundiam a todo momento introspecção e fabulação. Inventa­ vam os caracteres da imagem de acordo com as exigências da doutrina associacionista e sensualista. A escola de Wurzbourg procurou obter a resposta consultando os fatos. É um progresso. Mas a resposta obtida pela experiência não constitui um saber concreto. Acaba-se por saber que a imagem é sempre vaga, que as imagens à maneira de Taine são excessivamente raras, talvez nem existam; que em todo caso, o pensamento supera amplamente a imagem e, em certos casos, pode se dar sem imagens. A experiência respondeu28 à pergunta, mas como esta era abstrata, a resposta também o é. Tratava-se de documentar­ se sobre a forma de um ato psicológico e a resposta à questão não propicia à psi­ cologia progresso real algum, pois em que o fato de saber que o pensamento não se parece com um filme constitui um “conhecimento do homem”? Se hou­ ve progresso, é simplesmente porque um conjunto de frases não poderá ser repetido pelos psicólogos. Não adquirimos um saber que podemos utilizar para a compreensão de um caso concreto. É um saber sem aplicação possível, pois a única aplicação suscetível de um saber psicológico é a aplicação à realidade constituída pelo in­ divíduo concreto e singular. Ora, não o tendo feito intervir nas experiências de Wurzbourg, não se pode fazê-lo sair. Por razões idênticas, os resultados da psi­ cologia abstrata constituem sempre um saber sem aplicação possível.

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Totalm ente diferente a indução em Freud. Primeiramente, parte-se do verdadeiro fato psicológico. Que se abra qualquer obra de Freud, o exposto está sempre assentado em fatos individuais,29 e o que há de essencial é que o caráter individual, longe de sumir no decorrer da explicação, permanece sempre como

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27 “A rigor”, pois n a m aioria dos casos só há fabulação pura e simples. Cf. nosso capítulo 11: “A intros­ pecção clássica e o m étodo psicanalítico”.

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28 Para simplificar a discussão, adm itim os que foi realm ente a experiência que respondeu à pergunta. Cf. capítulo II.

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29 Exceto os escritos “dogmáticos”, com o Jenseils des Lustprincips ou Das Ich und das Es, e em geral os escritos de “metapsicologia”, m as ainda aí, os fatos analíticos ocupam amplo espaço.

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ponto central. A psicologia do sonho fundamenta-se na análise dos sonhos considerados como tendo um sentido individual, tendo em vista os indivíduos concretos que os sonharam. A teoria dos atos falhos baseia-se na consideração dos atos falhos, enquanto atos de um indivíduo singular. O estudo das neuro­ ses não é em Freud, como na psiquiatria clássica, um estudo das neuroses em si, dessas maravilhosas entidades nosológicas que os indivíduos só encarnam e para cujo estudo essa encarnação não tem importância alguma. Pelo contrário, cada neurose é como um ato individual que é preciso explicar enquanto indivi­ dual. Nessas condições, é natural que se chegue à constituição de um conjunto de fatos particulares a partir dos quais a generalização se torna possível, mas uma generalização que, uma vez feita, passa a ser aplicável a muitos casos par­ ticulares, pondo a psicanálise na posse de um saber verdadeiro. Podemos citar como exemplos clássicos das induções freudianas a manei­ ra como se constituiu a simbólica (tão desabonada!) dos sonhos. A análise de uma enorme quantidade de sonhos permitiu a Freud constituir essa simbólica que, embora sem valor universal, aplica-se, todavia, à média dos indivíduos, a todos, para certos sonhos. Foi assim que Freud chegou a interpretar, sem aná­ lise, sonhos comuns a todos, de maneira quase idêntica, e que ele chama de so­ nhos típicos.30 A sexualidade infantil, o complexo de Édipo, a noção de transferência, de resistência etc. foram descobertos da mesma maneira. É pelo fato de partir do individual concreto que a indução se torna possível; é pela mesma razão que se pode voltar ao individual concreto, isto é possuir um saber psicológico aplicável. Eis, por um lado, o antagonismo verdadeiro entre a psicologia e a psicaná­ lise e, por outro lado, a verdadeira inspiração da doutrina freudiana. Passaremos agora a orientar o nosso trabalho em duas direções. Inicialmente, trataremos de esclarecer as afirmações que antecedem mostrando as articulações da teoria tal como são apresentadas na Traumdeutung.3I Ao mesmo tempo em que essas con­ siderações irão confirmar a idéia que formamos a respeito da inspiração funda­ mental da psicanálise, evidenciarão que Freud não lhe foi sempre fiel. Em suas anotações e especulações teóricas, ele recai na psicologia clássica.

30 Existe um a “psicanálise objetiva’ que interpreta as autobiografias, os diários íntimos etc. 31 Principalmente estabelecendo um paralelo entre o m étodo psicanalítico e a introspeção.

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A introspeção clássica e o método psicanalítico O capítulo II da Traumdeutung é dedicado ao “Método de interpretação dos sonhos”. Sabemos que esse método consiste essencialmente no seguinte: Io) decompõe-se o sonho em partes; 2o) o sujeito deve relatar sem crítica e sem reticência tudo o que lhe vem à memória a respeito de cada um dos elementos do sonho. Há motivo para nos sentir surpreendidos, e o fomos realmente, por Freud aplicar semelhante método. De fato, ele diz não ter a menor vontade de estudar os sonhos de acordo com os métodos fisiológicos, e por afirmar claramente que quer utilizar métodos psicológicos, podia-se esperar que utilizasse a introspecção. Ora, não é a introspecção que ele emprega, mas um método que só pode ser chamado de introspectivo, forçando o significado dos termos, e que, segundo o próprio Freud, é apenas um a variante do método de decifração (cf. p. 95).

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Freud não se manteve isento de críticas quanto ao caráter arbitrário do seu método. A essência desse método consiste em fazer com que o sujeito diga tudo o que lhe passa pela cabeça. Em contrapartida, a objeção que os psicanalistas fazem comumente à introspecção é que, mesmo a mais refinada, não consegue eliminar a censura, e sendo que o objetivo consiste precisamente em eliminá-la, é óbvio que se deve substituir a introspecção por um método em que o pensa­ mento seja menos falseado pela censura que no estado de vigília. O método consiste essencialmente na criação de um "estado psíquico que oferece certa analogia com um estado intermediário entre a vigília e o sono e também, sem dúvida, com o estado hipnótico” (p. 93), e isso porque "no momento de ador­ mecermos, as representações involuntárias surgem à superfície, porque a ação da vontade e da crítica afrouxa-se” (p. 94).

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De fato, Freud afasta a introspecção porque ela não poderia ser o método de uma psicologia concreta, e a oposição entre a introspecção e o método ana­ lítico não é senão um caso particular do antagonismo entre a psicologia abstra­ ta e a psicologia concreta.

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I Façamos abstração de todos os argumentos clássicos contra a introspecção e suponhamo-la perfeita: sobra que ela só pode informar quanto à forma e ao conteúdo do ato que introspectamos. Esqueci um nome que, na verdade, co­ nheço bem; se me introspecto, direi que sinto um certo mal-estar ao mesmo tempo que um a forte tensão interior: o sentimento de saber sem fórmula verbal e sem imagem; nomes apontam na minha mente, mas afasto-os com um a cer­ teza repleta de despeito, e a consciência dessa certeza, ao mesmo tempo que a da minha ignorância, deixa-me perplexo até o momento em que, de repente, sem poder saber o porquê, tenho uma sensação de alívio como se uma resistên­ cia cedesse subitamente e o nome procurado surge, afinal, acompanhado de um sentimento de alívio e de libertação. É o que a introspecção pode ensinar-me. Mas isso só satisfaz a uma psicologia abstrata. Essa psicologia tão empenhada em descrever com exatidão as mínimas nuanças de todos os estados que senti a partir do m omento em que constatei o surpreendente esquecimento, até o outro momento em que surgiu o nome procurado, essa psicologia, repito, deixa totalmente de fora a explicação do fato em si em sua particularidade e, sem inco­ modar-se, atribui esse fato ao acaso. “Se perguntarmos a um psicólogo clássico que explique como é possível encontrar-se com tanta freqiiência na impossibilidade de lembrar um nome que temos certeza de saber, penso que se contentará em responder que os no­ mes próprios caem com maior freqiiência no esquecimento que os outros con­ tidos na memória. Citaria razões, mais ou menos plausíveis, que, segundo ele, explicam essa propriedade dos nomes próprios, sem suspeitar que esse proces­ so pode ser submetido a outras condições de ordem mais geral” (La Psychopathologie de la Vie Quotidienne, tradução francesa, p. 3). O que significa que o psicólogo atribuiria o esquecimento a causas gerais que, pouco importa o que se faça, só podem ser válidas para uma generalidade, não para o fato preciso do qual se trata. E se Freud fala de condições “mais gerais” às quais esse processo pode ser submetido, essa linguagem não deve iludir, pois ele só se refere a fatores gerais, como censura, recalque etc., mas a explicação que ele dá para cada caso terá a pretensão de abranger o fato a ser explicado em sua particularidade. O postulado fundamental de Freud, segundo o qual todos os fatos psicológicos são rigorosamente determinados, tem exatamente a mes­ ma significação. É natural que quem procura explicações desse tipo não possa contentar-se com a introspecção. De fato, o que fiz no meu exemplo de introspecção? Con-

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siderei o fato do esquecimento, por assim dizer, de um ponto de vista formal, como se fosse o esquecimento de algo e, além do mais, como se fosse o esqueci­ mento de alguém. Não levei em conta o fato de que se tratavaprecisamente de tal nome e que era precisamente eu (moí) que o esquecera. Minhas constatações per­ manecem gerais e nada me informam, na medida em que não sei por que esque­ ci exatamente esse nome nem o momento preciso em que o esqueci. Essa é a natureza da introspecção. Não poderia responder às perguntas da psicologia ■ concreta pois, para isso, é preciso considerar as circunstâncias particulares do esquecimento, o que o nome esquecido significa para mim; seria necessário considerar esse esquecimento como um segmento da minha atividade particu­ lar, como um ato que, vindo de mim, me caracteriza; seria preciso penetrar o sentido desse esquecimento. Mas só se conseguirá penetrar o sentido do esquecimento apropriando-se dos materiais necessários a seu esclarecimento. Esses materiais, devendo indi­ car a significação que esse esquecimento tem para mim, não podem, evidente­ mente, ser fornecidos por mim. Ora, isso não pode ser feito com ajuda da introspecção, mas exclusivamente com a ajuda de um relato. Freud deve substituir a introspecção pelo relato. Por ser o fato psicológico um segmento da vida de um indivíduo singular, não é a matéria nem a forma de um ato psicológico o que interessa, mas o sentido desse ato, e isso não pode ser esclarecido senão pelos materiais que o sujeito fornece no relato. É preciso notar que essa maneira de Freud substituir a introspecção pelo relato não é simplesmente a substituição do ponto de vista abstrato pelo ponto de vista concreto, mas também a substituição do ponto de vista subjetivo pelo ponto de vista objetivo, para empregar essa antítese clássica, e, para falar uma linguagem mais moderna: pelo uso do método do relato, Freud substitui o pon­ to de vista da “intuição” pelo do “comportamento”. De fato, se substituirmos a introspecção pelo relato, o trabalho psicológi­ co incidirá sobre dados “objetivos”. O relato constitui um material objetivo que pode ser estudado de fora.32 Mas pode-se dizer que aí está apenas um a objeti­ vidade banal. O verdadeiro aspecto dessa objetividade só é dado pelo fato de o

32 Há na psicologia clássica u m m étodo que podemos ser tentados a comparar com o m étodo freudiano: é o dos questionários. Esse m étodo pode fornecer efetivam ente resultados objetivos. Mas o que falta a quem o emprega é precisamente um a noção concreta da psicologia: com o as pesquisas são abstratas, as respostas tam bém o são. Esse m étodo só conseguiu dar resultados válidos na medida em que os que o utilizam estiveram concretos sem o querer.

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psicólogo e seu sujeito não terem mais, como acontece na introspecção, a mes­ ma função. O sujeito psicanalisado ignora a interpretação e fala sem suspeitar do sentido que o psicanalista atribuirá aos materiais que ele fornece. O psicó­ logo introspectivo, pelo contrário, espera do seu sujeito um estudo já psicoló­ gico, e ele é sempre obrigado a supor um psicólogo no seu sujeito. Está aí uma diferença enorme com o que acontece nas outras ciências: o matemático não pede a um a função que ela seja “matemática”, mas que seja simplesmente fun­ ção, e o físico não procura na bobina de Ruhmkorff outro físico, mas apenas uma bobina de indução. O psicanalista não pede a seu sujeito que mude, por assim dizer, sua ma­ neira de ser: pede apenas para “relaxar” e falar. O sujeito não tem outra coisa com que se ocupar: o trabalho psicológico é reservado ao psicólogo e o sujeito não pode executá-lo. Enfim, o método do relato é objetivo — e esse aspecto é mais importante que o anterior — porque o psicólogo é liberado desse “mimetismo” que as re­ gras da introspecção lhe impõem. O “verdadeiro psicólogo” deve “reviver sim­ paticamente os estados de alma do seu sujeito”, sem isso, a introspecção não tem sentido, pois repousa em fatos que só podem ser captados do interior. Não sobra nenhuma marca dessa exigência a não ser no método psicanalítico, que quer interpretar, determinar o sentido do sonho, por exemplo, com a ajuda dos materiais fornecidos pelo sujeito. Assim como o físico não precisa transformar-se em bobina para estudar a indução, tampouco o psicanalista precisa ter “complexos” para reconhecer os complexos dos outros, e é-lhe mes­ mo rigorosamente proibido tê-los, pois ninguém se torna psicanalista senão após ter passado por uma análise completa. O que há de notável é que, por só procurar a interpretação, o psicanalista atinge a objetividade sem ser obrigado a recorrer a “esquemas espaciais”! Mas o método do relato não se opõe apenas ao caráter abstrato e subjeti­ vo da introspecção; ele representa também a antítese do realismo desta. Não podendo a introspecção fornecer mais que a forma e o conteúdo de um ato psi­ cológico, só tem sentido na hipótese realista e, de fato, a psicologia clássica con­ sidera a introspecção essencialmente como forma de percepção. Portanto, faz corresponder a seus dados uma realidade sui generis, a realidade espiritual ou a vida interior, e a introspecção deve fazer-nos penetrar nessa “segunda” nature­ za e informar-nos sobre seus estados. Os dados da introspecção, que são os de uma realidade, sugerem depois hipóteses sobre a estrutura dessa realidade, e es-

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sas hipóteses são naturalmente realistas. Pela introspecção aprendemos o que é e o que acontece no mundo espiritual. Ora, é óbvio que a vida psicológica de outro indivíduo só é dada sob forma de “relato” ou de “visão”. Relato, quando se trata de expressão por meio da lin­ guagem (em todos os sentidos do termo); “visão”, quando se trata de gestos ou, em geral, de ação. Estou escrevendo: há aí relato e, ao mesmo tempo, visão. Ex­ primo, por meio da escrita, meus “estados de alma” entre os quais alguns po­ dem ser adivinhados pelo visão do que faço: pela atitude que tomo escrevendo, as expressões de minha fisionomia etc. O relato e a visão têm função prática e social, sua “estrutura” é, por isso, “finalista”: a linguagem corresponde em mim a uma “intenção significativa” e as ações, a uma “intenção ativa”. É primeiramente com essa forma “intencional” que o relato e a visão se inserem na vida cotidiana. O relato propriamente dito é tomado pelo que é; à intenção significativa em mim corresponde nos outros uma “intenção compre­ ensiva”, e quanto à visão, o dia-a-dia respeita igualmente seu plano. Falo, e a vida diária só vê a intenção significativa. Estendo a mão para pegar a garrafa de água, alguém a apresenta. No primeiro caso, sou compreendido; no segundo, uma “reação social” responde à minha “ação” e é só isso. Enfim, nas relações cotidianas não se sai da “teleología da linguagem” e fica-se no plano das significações, compreensões e ações recíprocas.33 A psicologia clássica começa por abandonar esse plano “teleológico” e fa­ zer abstração da intenção significativa. O que lhe interessa não é o que o sujeito relata, mas o que se passou em sua mente enquanto falava; há necessidade, portanto, de certa correspondência entre o relato e processus suigeneris. Para en­ contrar esses processos, ela só dispõe, evidentemente, do relato, mas vence a di­ ficuldade desdobrando-o. Então, teremos, por um lado, a expressão e, por outro, o expressado, e também duas ordens de existência, pois o expressado tem uma maneira de ser sui generis : é espiritual, é o pensamento.34 É visível que esse “pensamento” não traz, do ponto de vista da significação, algo novo: a significação da idéia e a significação da palavra são exatamente a

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33 Só falaremos a seguir da maneira como a psicologia clássica trata o “relato". M as ver-se-á facil­ m ente que tudo o que dissermos a respeito aplica se tam bém à “visão”. 34 Ia-se, outrora, m uito mais longe e admitia-se um paralelismo com pleto entre a linguagem e o pen­ samento. Mas quaisquer que sejam os aperfeiçoamentos das teorias mais recentes, sempre encontrare­ mos o esquema do procedimento que descrevemos.

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mesma coisa. Porém, quando se fala da significação da palavra, não se deixou ainda a teleología da linguagem, enquanto o termo idéia marca precisamente a transformação do ponto de vista teleológico em ponto de vista realista. A psi­ cologia clássica desdobra a significação para passar do plano das significações para o plano dos “processos mentais’7. Sai, portanto, da dialética da vida corren­ te e faz entidades reais daquilo que não passa, do ponto de vista dessa dialética, de simples instrumento. Objetar-se-á que a introdução da idéia traz algo novo, pois a palavra é só instrumento de significação e essa significação precisa ser pensada numa cons­ ciência individual antes de poder ser expressa. Portanto, a idéia representa algo novo: um ato psicológico que deve ser descrito e estudado. Mas essa objeção nada mais é que a descrição do procedimento da psicologia clássica, o desdo­ bramento da significação uma vez realizada. De fato, após o desdobramento, a psicologia faz abstração da intenção significativa e situa-se no ponto de vista do formalismo funcional para descrever o modo de produção do que é expresso, a maneira como é vivido; a significação enquanto significação não tem mais importância alguma; qualquer que seja a coisa pensada, só o “pensamento” interessa ao psicólogo. II Parece-nos que o psicólogo clássico procede da seguinte maneira: desdo­ bra o relato significativo e faz do seu duplo um a realidade “intema”. Em vez de conservar a atitude ordinária que convém à teleología das relações sociais, re­ nuncia de repente e procura no relato a imagem de não sei que realidade “inter­ na”. Essa é sua atitude quando está diante do relato de outro. Mas a retoma depois, quando diante do seu próprio relato. Toda a alteração será então repre­ sentada pelo fato de que não é à intenção “compreensiva”, mas à intenção “significativa” e “ativa” que ele deverá renunciar; e, em vez de efetuar o desdo­ bramento para um outro, o fará para si. Uma vez efetuado o desdobramento, ele procurará descrever a realidade interna do ponto de vista do formalismo funcional. Dirá, então, que se introspecta. A introspecção ou a reflexão é o abandono da intenção significativa e ati­ va em proveito do formalismo funcional, e a essa alteração de ponto de vista corresponde um segundo relato, cujo ponto de partida é constituído pelo relato significativo, visto do ponto de vista realista e formal. Objetivamente, portan­ to, a introspecção é um "segundo relato", resultante da aplicação do ponto de vista do formalismo funcional ao relato significativo e o que a psicologia procura é precisa-

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mente substituir o primeiro relato, puramente significativo, por um segundo relato que nada mais tem a ver com a teleología das relações humanas e que, desse ponto de vista, é puramente “desinteressado” e deve constituir a descri­ ção de uma realidade sui generis. Afinal, é preciso escolher entre duas hipóteses. Pode-se dizer, de início, que o que é primitivo é a introspecção, pois são meus estados psíquicos que co­ nheço em primeiro lugar e não suponho estados psíquicos em meus semelhan­ tes senão graças à minha própria experiência intema. Se isso for verdade, é artificial dizer que desdobro o relato, pois só atribuo a meus semelhantes esta­ dos que, em mim, constituem realmente a duplicação do relato. O procedimen­ to fundamental da psicologia introspectiva não seria, então, o desdobramento do relato, mas um raciocínio analógico. A segunda hipótese consiste em admitir que o que é primitivo é, pelo con­ trário, a realização do relato por meio do desdobramento e não a introspecção; esta, longe de apresentar uma atitude espontânea, só seria a aplicação a si mes­ mo de uma atitude tomada em face do relato significativo pelo “senso co­ m um ”. Nesse caso, não seria o raciocínio analógico, mas o desdobramento, que caracteriza a psicologia. Contudo, esse desdobramento pode dirigir-se para os outros, ou para nós, e é esse segundo caso que chamo de “introspecção”. Sabe-se que a psicologia adota a primeira dessas hipóteses. E é essa hipó­ tese que inspira os ataques dirigidos contra ela: é precisamente o raciocínio analógico que os behavioristas rejeitam na psicologia clássica. Muitas considerações orientam-nos para a segunda hipótese. Primeiramente, é preciso distinguir a introspecção tal como é em princípio e a introspecção tal como é de fato, pois não se deve confundir com as profissões de fé a respeito da introspecção, o método introspectivo atual e o que se usava no passado. Ora, é a introspecção tal como é e tal como foi que visamos, não as diversas/?romessas de introspecção. Além do mais, é preciso distinguir as “percepções intemas” simples, como a da dor orgânica, das necessidades orgânicas, tais como se produzem na conti­ nuidade da vida cotidiana, da introspecção sistemática tal como empregada em psi­ cologia. Essa distinção é necessária, primeiro porque o “sofrimento” está ligado à “vida”, enquanto a introspecção pertence ao conhecimento,35 mas sobretudo porque a introspecção, método psicológico^ vai m uito além dos quadros da

35 Cf. mais adiante, capítulo TV, item IX, pp. 160-161.

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simples percepção ordinária dos nossos estados “internos”. Pois o fato de falar da “percepção dos meus estados internos” já implica a abstração. O que é ime­ diato é o sofrimento, tal como se produz no encadeamento dos acontecimen­ tos da m inha vida cotidiana. Se considerarmos a questão assim delimitada, notaremos, talvez, que a introspecção não procede do interior de maneira tão espontânea e tão sincera quanto os psicólogos costumam afirmar. Pois é claro que os psicólogos da ge­ ração anterior à nossa, quando apresentam o silogismo, no capítulo “Psicologia do raciocínio”, não nos revelam coisa verdadeiramente “interna”, pois foi a ló­ gica, a lógica de Aristóteles, cujo método nada tem de introspectivo, que nos ensinou a existência do silogismo. É óbvio que, se os psicólogos em questão pensam ter inventado a psicologia do raciocínio, é unicamente porque desdo­ braram o relato. Por ser absurdo afirmar que o silogismo é um “dado imediato da consciência”, é claro que, freio menos neste caso, a introspecção veio, por assim dizer, de fora, e que o segundo relato constituiu-se pelo desdobramento puro e simples do primeiro. Sabe-se, aliás, que os psicólogos em foco confundiam a todo m omento in­ trospecção e fabulação, que “decalcavam” suas realidades psicológicas da lingua­ gem: a demonstração de todos esses pontos não forma uma parte integrante da doutrina de Bergson? Só que se pensa — Bergson é o primeiro a fazê-lo — que há um erro na maneira como foi utilizada a introspecção, pois a verdadeira é outra coisa. Mas só há uma hipótese à qual somos levados pelo caráter ingénuo do rea­ lismo psicológico.36 Mas nada condena, e é o mínimo que se pode dizer, a idéia segundo a qual o que é chamado de erros cometidos no uso da introspecção seja só a revelação da sua essência verdadeira, a qual aparece tanto melhor quanto mais simplista são os que a empregam. Não seria a primeira vez que o verdadei­ ro caráter de um procedimento científico apareceria com clareza exatamente numa teoria já condenada. Por outro lado, Bergson mostrou que a introspecção dos seus predecesso­ res não era sincera, que seus relatos introspectivos alimentavam-se da realiza­ ção de exigências teóricas. Mas só viu nisso um erro evitável e, tendo em vista o caráter do seu empreendimento, não podia enxergar outra coisa. Todavia, a crítica bergsoniana poderia significar que o caráter “exógeno” da introspecção

36 Cf. adiante, p. 91.

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já fora demonstrado em relação a certogênero de “segundo relato”, o que faz in­ tervir no cenário personagens “estáticas”. Ora, Bergson só inaugura um novo gê­ nero de segundo relato, uma nova técnica para elaborar dramas impessoais: trabalha com personagens “dinâmicas” e “qualitativas”; e os temas que seu for­ malismo desenvolve e a linguagem na qual seu realismo se expressa são diferen­ tes. Mas há ignoratio elenchi em supor que essa espécie de segundo relato escapa da crítica que arruinou a primeira, pois a introspecção bergsoniana nunca foi submetida a um exame semelhante àquele a que ele submeteu a introspecção dos seus predecessores. Mas o que mais compromete a verossimilhança da opinião clássica é a pri­ mazia da atitude teleológica. Pois é a compreensão e a interpretação que estão em primeiro lugar, a psicologia só vem depois. Ora, a expressão e a compreensão não implicam uma experiência intema suigeneris por parte de quem se expressa, nem a projeção dos dados dessa experiência na consciência de quem é compre­ endido. Tal interpretação da expressão e da compreensão não só diz respeito ao realismo, mas também a todos os procedimentos da psicologia clássica. É na atitude teleológica que o realismo se enxerta. Primeiramente, em ge­ ral. a introspecção só aparece em terceiro lugar e representa a aplicação a si mesmo do realismo que, em princípio, se exerce inicialmente em relação aos outros. Se considerarmos, agora, o fato de que historicamente a noção de in­ trospecção é relativamente tardia, então, a nossa hipótese não parecerá, talvez, tão absurda — perceber-se-á, pelo menos, que o problema não é o da psicologia pela interpretação, mas o da psicologia da introspecção. De todo modo, essas considerações ultrapassam os limites do presente es­ tudo.37 O que importa, no momento, é o conteúdo da introspecção, a compa­ ração do conteúdo do “segundo relato” da psicologia clássica com o que a psicanálise fornece. Ora, seja qual for a última palavra a respeito do verdadeiro mecanismo da introspecção, ela sempre estará indissoluvelmente unida à abs­ tração e ao formalismo. E isto basta para desaçreditá-la diante de uma psicolo­ gia que se quer concreta e fecunda.

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37 É no Essai que eles deverão ser retomados sistematicamente. [Novamente encontram os enunciado o projeto do autor que não foi realizado. Roudinesco com enta os possíveis motivos que teriam levado Politzer a abandonar o projeto de escrever sua grande obra que sis­ tematizaria as posições, aqui descritas, sobre a psicologia concreta. Ver o capítulo “Marxismo, Psicaná­ lise e Psicologia”, in: História da Psicanálise na França-, op. cit., pp. 50-87. NRT]

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О que, pelo contrário, caracteriza o método utilizado pelos psicanalistas é que ele não comporta o procedimento realista que procuramos descrever. O psicanalista não deixa o plano ideológico das significações, não inventa uma atitude nova e paradoxal, como a reflexão. Seu objetivo é outro: quer prolon­ gar a atitude da vida do dia-a-dia, até o m omento em que ela alcança a psico­ logia concreta; ele não procura transformar o plano da significação em “realidades”, mas aprofundá-lo, a fim de encontrar, no fundo das significações coletivas convencionais, as significações individuais que não entram mais na teleologia ordinária das relações sociais, mas são revdadoras da psicologia individual. Portanto, o psicanalista terá, também, um “segundo relato” a opor ao relato puramente significativo. Mas seu segundo relato não será resultado da desar­ ticulação do primeiro; ele representará o aprofundamento dele. Tam bém nes­ se caso, só será considerada, em princípio, a intenção significativa, uma intenção significativa que não nos conduz à região das interações sociais, mas à psicologia do indivíduo concreto. Em resumo, o segundo relato da psicologia dássica leva-nos às realizações, enquanto o da psicanálise nos conduz, simples­ mente, à interpretação. “As teorias científicas do sonho não dão lugar ao problema da interpreta­ ção, pois para elas o sonho não é um ato psíquico mas um fenômeno orgânico só registrado por certos sinais psíquicos” (p. 88). Para a teoria científica, que é abstrata, e para a qual as representações têm existência própria, o problema da interpretação não existe. Pois interpretar significa apenas ligar o fato psicológi­ co à vida concreta do indivíduo. Mas, para Freud, o problema da interpretação não pode deixar de existir, pois pertence precisamente a uma concepção con­ creta da psicologia. Por considerar o sonho abstratamente, a teoria “científica” restringe o so­ nho ao que está contido nas fórmulas verbais que constituem o seu relato. Conseqüentemente, essa teoria não poderá completar o relato feito pelo sujdto, a não ser por um relato conforme o ponto de vista formal. Não precisará fazer in­ tervir a hipótese de um conteúdo manifesto e de um conteúdo latente. Freud, pelo contrário, considera o sonho como “fato psicológico, no sentido pleno da palavra”, como um segmento da vida concreta individual; portanto, é-lhe neces­ sário admitir que as fórmulas verbais não exprimem, no relato, o que exprimi­ riam fora do sujeito, mas precisamente alguma coisa do sujeito; será forçado a remontar além da significação convencional das fórmulas u tilizadas pelo so­ nho, a fim de encontrar a vida individual concreta. Precisará opor ao relato em

termos convencionais um relato feito em termos de experiência individual; ao relato superficial, um relato profundo: será obrigado a fazer intervir a distinção entre o que o sonho parece expressar e o que ele significa realmente. Freud chama o relato convencional de conteúdo manifesto e é a tradução desse relato em termos de experiência individual que ele chama de latente (cf. capítulo II, pp. 79-104 e passim). Faz-se necessário aprofundar essa distinção se quisermos compreender a psicanálise em toda a sua particularidade. Não basta para isso dizer que seu ca­ ráter concreto consiste essencialmente na adoção do ponto de vista da signifi­ cação. Em si, esse ponto de vista é rico em aplicações que podem ir, como em Spranger, numa direção muito diferente daquela que queremos indicar aqui.38 Freud gosta de repetir que a maneira como a psicologia clássica tem por hábito caracterizar o sonho, dizendo que ele é incoerente, fantasista, ilógico, em suma, desprovido de sentido, provém do hábito de considerar apenas o seu conteúdo manifesto. Com efeito, após ter dado ao sonho alguns qualificativos pouco lisonjeiros, a psicologia clássica passa imediatamente às constatações formais e funcionais. Ela o faz, claro, conforme os procedimentos abstratos que procuramos descrever. Na teoria do sonho, as teorias clássicas não fazem total abstração da significação; pelo contrário, a constatação da impossibilidade de dar um sentido a um a construção tão louca quanto o sonho determinou o es­ quema de teorias como a de Binz e a de Dugas. Na base dessa atitude há um postulado “implícito", o de que os termos do relato que o sujeito faz do seu sonho têm seu conteúdo ordinário; quando, por exemplo, a palavra-chave aparece, sua significação coincide com a indicada nos dicionários. Mas, de modo geral, os fatos psicológicos, mesmo sendo atual­ mente “psicológicos", sempre têm apenas um a significação convencional, sig­ nificação, por assim dizer, “pública”. Converso com uma senhora e, de repente, enxugo os lábios; esse gesto não tem outra significação além do “gesto-em-geral-de-enxugar-os-lábios”, e tudo o que a explicação psicológica poderá fazer será um relatório conforme o ponto de vista do formalismo funcional. E esse postulado, também, que está na base de todos os juízos sobre os fatos psicoló­ gicos que parecem ter errado sua significação convencional. O sonho não pode ser medido com as categorias das significações convencionais, portanto, não

38 Não insisto m ais sobre esse problema, porque o tom o II dos Matériaux pour la Critique des Fotidements de la Psychologie deve deter-se em Spranger específicamente e, m ais em geral, na Gestalttheorie.

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tem sentido. Esqueci um nome próprio que conheço muito bem: a psicologia clássica só vê nisso um ato falho, portanto, algo puramente negativo. Estamos diante de um verdadeiro postulado^eral da psicologia clássica, o postulado da convencionalidade da significação. E a intervenção desse postulado que Freud destaca dizendo que a psicologia clássica só quer considerar o con­ teúdo manifesto. Esse postulado está intimamente ligado ao realismo e à abstração. Indica o caminho ao realismo e abre a porta à abstração e ao formalismo. Indica o ca­ minho à abstração porque são as significações convencionais que são realiza­ das, enquanto o realismo procede por desdobramentos e o que é desdobrado é a significação convencional. Digo ‘‘porquê”. Para os psicólogos, há um “senti­ mento de relação”. Por outro lado, uma vez realizada a significação convencio­ nal, é a abstração e o formalismo funcional que intervêm. Abstração, porque a realização num a consciência individual determinada em nada altera essa mes­ ma significação e o fato de se encontrar nessa consciência, precisamente agora, não tem a menor importância para a psicologia clássica; quer se trate de mim ou de outro qualquer, a psicologia vai fazer constatações idênticas. Essas constatações são feitas no espírito do formalismo funcional. Trata-se de ligar a significação realizada à sua “classe”: ligar o “porquê” à classe dos “sen­ timentos de relação”, e descrever as circunstâncias gerais da produção e a ma­ neira como esse sentimento de relação é “vivido”. Sabemos que muitos psicólogos desenvolveram muita subtileza nesse gênero de exercício. Compreende-se porque a psicologia clássica reivindica a qualidade e não é capaz de procurar a individualidade dos fatos psicológicos, a não ser na irredutibilidade qualitativa no qual são vividos. Assim, tudo acontece para ela como se todas as consciências individuais tivessem exatamente o mesmo con­ teúdo de significações, como se cada consciência individual fosse apenas uma intuição de significações sempre as mesmas para todo mundo; significações que a intuição só captaria, sem nada alterar. É evidente que, nessas condições, só há “conteúdo manifesto”, isto é, significações convencionais, e todo o traba­ lho efetivo está reservado ao formalismo funcional: como explicar, se assim não fosse, que os psicólogos se desinteressam do “sentido” e se interessam ape­ nas pelo estudo abstrato e formal da significação realizada? Pois o ponto de vis­ ta do sentido está cheio de conseqúências e teria pura e simplesmente levado a psicologia a descobertas psicanalíticas. De todo modo, não foi uma graça espe­ cial que atuou em Freud quando ele descobriu a psicanálise: tratava-se, “sim­ plesmente”, de ver que o método clássico da psicologia arrebentava-se no

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choque com certos casos privilegiados que impunham um ponto de vista con­ creto, e esse ponto de vista teria levado qualquer um às mesmas descobertas. Que não se diga que a psicologia clássica também conheceu o ponto de vista em foco. Nossas afirmações anteriores são perfeitamente justificadas. É mesmo muito fácil mostrar, um a vez que uma descoberta é feita, que ela não caiu do céu como um meteoro, mas que foi anunciada. Por que, então, se esperou a descoberta para se aperceber das “anunciações”? É verdade, porém, que uma vez completada a realização o ponto de vista do sentido intervém na psicologia clássica. Mas só intervém comandado pela abstração e pelo postulado da significação convencional. Comandado pela abstração quando se trata de preparar os materiais do estudo psicológico. Uma vez completada a realização, procede-se a uma pri­ meira transformação: de acordo com suas significações, ordenam-se os termos do relato segundo as noções de classe. Acabo de exclamar: “Bolas, mais um fósforo que não acende!” — “bolas” significa “estado afetivo”, “de novo”, “sentimento de relação”, “fósforo”, “imagem”, “não pega”, “percepção”. O conjunto é um “juízo”. A preocupação estará em descobrir se houve análise ou síntese; que tenha havido síntese precedida de análise ou análise de síntese primitiva da percepção, de qualquer modo, a significação terá sumido. Sei que a psicologia “moderna” não está mais nesse ponto; sei que recortei, que dei importância exagerada aos elementos sólidos, mas mesmo que se diga ter havido simples formulação verbal de um a atitude única e indivisível, ou algo do gênero, temos de admitir que a atenção deixa o sentido e dirige-se para o estudo formal das funções ou das atitudes: só a linguagem é outra, o procedimento é o mesmo. A psicologia clássica também conhece significações individuais. Mas só se referem à maneira como o fato psicológico é vivido pelo indivíduo, à sua “uni­ cidade” qualitativa. Ora, esse “inefável” que deveria representar o summum do concreto pertence ao formalismo funcional e, de fato, não contém nenhuma determinação propriamente individual: o concreto que ele representa não passa de um concreto em geral. Mas o papel verdadeiro que o “sentido” desempenha na psicologia clássica só aparece se levarmos mais adiante a análise do postulado da significação con­ vencional. Acabamos de mostrar a maneira como esse postulado está ligado aos procedimentos fundamentais da psicologia clássica. Mas podemos perguntar qual é a origem desse postulado. O realismo consiste no desdobramento da significação convencional, isto é, na sua projeção para o interior. O problema do sentido é assim eliminado

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uma vez por todas, porque é precisamente à significação convencional que a realidade psicológica pertence, pois é ela que é projetada na tela da vida interior. Por outro lado, por que será que é exatamente a significação convencional que é realizada? O que é primitivo, em principio, é, como já dissemos, a teleologia das re­ lações humanas. M as o “senso comum ” adota perante essa teleologia o mesmo realismo ingénuo que perante “dados da percepção”. A diferença está apenas no fato de a percepção desdobrar-se para o “exterior”, enquanto a significação convencional o faz para o “interior”, mas há “hipóstase” nos dois casos, e ao re­ alismo ingénuo da metafísica corresponde o realismo ingénuo da psicologia. Vê-se facilmente que a essência desse realismo é constituída pelo “antro­ pomorfismo social”. Pois é o valor coletivo da linguagem e dos atos que é reali­ zado como fato espiritual. Esse realismo é ingénuo porque a passagem do ponto de vista da finalidade social para a realidade atual é efetuada sem justifi­ cação alguma e com certa espontaneidade. Aliás, nem há “passagem”: é a “in­ veja da Sociedade” que esse realismo expressa: o indivíduo não passa de realização das exigências sociais, ou, em outras palavras, a categoria de “Reali­ dade” só se abre inicialmente, naturalissimamente, para o aspecto social das coisas. Pelo emprego do postulado da significação convencional, a psicologia clássica só prolonga a atitude desse realismo ingénuo. Essa atitude poderia ter sido conveniente para a ciência. Mas não o foi, e todas as ciências livraram-se dela. Só a psicologia a manteve. Aliás, liberta-se com imensa dificuldade das exigências sociais, e o postulado em questão não é o único exemplo da trans­ formação dessas exigências em realidades. Se Freud teve todas as dificuldades imagináveis para fazer admitir a sexualidade infantil, é precisamente porque médicos e psicólogos só quiseram ver na criança o que ela deve ser, de acordo com certas representações coletivas bem conhecidas. De qualquer maneira, a conservação de um a atitude condenada por todos os cientistas mostra que o espírito dos psicólogos não é, ainda, bastante “esti­ lizado” para o trabalho verdadeiramente científico. Malebranche dizia: “Nossa mente talvez seja cristã, mas nosso coração é pagão.” O mesmo se dá com os psicólogos: falam da ciência, imitam-na, mas não gostam dela. IV O postulado da convencionalidade da significação não tem, aliás, a míni­ ma relação com a experiência. As diferentes “dialéticas”, das quais uma palavra

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pode ser portadora, são dadas pela linguagem por um lado e, por outro, pelo es­ tado das ciências; podem ser catalogadas a qualquer época. É evidente que para poder constituir esse catálogo não há necessidade de nenhum estudo psicoló­ gico, pois tudo é dado por documentos objetivos, no sentido mais simples do termo. Ora, com o postulado da convencionalidade da significação, a psicolo­ gia supõe precisamente que essas dialéticas, cuja lista podemos estabelecer sem consulta nenhuma aos dados realmente subjetivos, são as únicas existentes. É com razão, portanto, que falamos de “postulados”, pois a crença em foco não pôde ser sugerida pela experiência, sendo que, por causa da abstração, a ques­ tão nem pôde ser levantada. Conseqüentemente, a idéia de que poderia haver uma dialética puramente individual, à qual os atos individuais emprestassem uma significação puramente individual, é totalm ente estranha à psicologia clássica: esta não concebe, por exemplo, que a palavra situada na rede de signi­ ficações de um contexto individual possa adquirir um a função significativa ori­ ginal, nem quando situada numa rede de significações convencionais ela adquire uma significação convencional. Evidentemente, as significações convencionais não se situam todas no mesmo plano. Constituem camadas superpostas, que vão de significações ab­ solutamente convencionais às que o são menos, e supõem uma crescente ex­ periência individual. É possível constituir, para cada termo, o que se poderia chamar de “pirâmide dos sentidos”, uma pirâmide invertida, cuja base seria re­ presentada pelo sentido que a palavra tem para todas as pessoas e o vértice, pelo sentido dado graças à experiência de um único indivíduo. Entre o vértice e a base, situam-se os sentidos que, embora não determinados pela experiência de um único indivíduo, não pertencem a todas as pessoas. Por exemplo, “cha­ péu” significa para todos “agasalho para a cabeça”; “presente”, só para alguns; e “partes sexuais do marido”, só para a senhora cujo sonho Freud analisou em

Traumdeutung. Somos forçados a interpretar na vida prática. Sem isso a adaptação recí­ proca que as relações humanas supõem é impossível. Todas as significações, exceto a propriamente individual, nos são dadas pela experiência coletiva. Sa­ bemos que o chapéu é um agasalho para a cabeça e que podemos presentear alguém com ele: há induções que nos fornecem os materiais das nossas inter­ pretações cotidianas. Mas essas interpretações só excepcionalmente vão além das significações convencionais, pois assentam-se em induções espontâneas que só nos revelam o que pode acontecer de maneira manifesta na vida social. A “psicologia científica” não vai além. Pára nas induções espontâneas que nos

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dão as significações convencionais e não procura outra coisa: eis por que é tão pouco profunda. A psicanálise, ao contrário, não se satisfaz com isso: é preci­ samente a significação individual que sua interprçtação procura. Seu método pode parecer fantasista e arbitrário: na realidade, só prolonga essas interpreta­ ções que praticamos todos os dias, mas em vez de fechar-se dentro dos limites traçados pela teleología das relações humanas e pelas induções espontâneas que só podem fornecer materiais para encontrar a significação convencional, o psicanalista organiza uma investigação para obter os materiais necessários para a constituição da significação individual. O método psicanalítico não é, portanto, senão um a técnica que permite aprofundar as significações de acor­ do com as exigências da psicologia concreta. É a partir desse ponto de vista que devem ser explicados os diversos procedimentos que a constituem. V Por ser a significação individual dos termos do relato o que nos interessa, precisamos abordar o sonho como um texto a ser decifrado. Na medida em que é significação, a estrutura da significação íntima é a mesma que a da significa­ ção convencional e, quando queremos encontrar a primeira, não precisamos proceder de maneira diferente daquela que utilizamos quando procuramos es­ tabelecer uma significação qualquer. Precisamos de elementos e pontos de re­ ferência; enfim, de um contexto. Se existem significações íntimas é porque o indivíduo possui um a experiência secreta. Portanto, precisamos penetrar nessa experiência secreta, e só penetraremos nela, evidentemente, à medida que o su­ jeito nos fornece os materiais que a constituem. Daí a necessidade do procedi­ mento fundamental do método de Freud: as associações livres. O termo “associação” pode criar um mal-entendido, ou melhor, uma ilu­ são. A ilusão existe em Freud, e isso foi explorado pelos que, imbuídos do “m o bilismo moderno”, sobressaltam-se à simples vista da palavra “associação”. Na realidade, há bastante mesquinhez nessa maneira de insistir na superioridade do “fluído” sobre o “sólido”, e seria mais apropriado, nesse momento, abordar problemas mais importantes, sobretudo porque só há duas versões da mesma mitologia. De todo modo, nas “associações livres”, não há nem associação nem liber­ dade. A psicologia tomou por hábito falar de associação em todo lugar onde há uma intenção significativa conscientemente admitida e em que o sujeito não se inspira expressamente em alguma dialética. Estou escrevendo, agora; estou

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} consciente de uma intenção significativa e sou, de alguma forma, levado por uma dialética que é a das minhas idéias sobre a questão que estou tratando. Mas suponhamos que eu pare de repente e renuncie ao mesmo tempo a minha intenção significativa e a minha dialética. M inha “consciência” não se esvazia­ rá por isso, idéias suceder-se-ão, terei talvez um a grande quantidade de idéias, mas não tenho mais nada “a dizer” e minhas idéias não são mais organizadas por uma dessas leis que dão habitualmente “estrutura” aos nossos pensamen­ tos, quer dizer que não tenho mais “intenção significativa”, e a seqíiência dos meus pensamentos não está mais em conformidade com uma das dialéticas “clássicas”, isto é, convencionais. Dir-se-á, então, que tenho associações, e ima­ gina-se que as idéias se encadeiam conforme afinidades, aliás, puramente me­ cânicas. Fica bem claro, nesse exemplo, que só se fala de associação porque não foi possível reconhecer nenhuma das dialéticas clássicas, em virtude do postu­ lado da convencionalidade da significação. Se ignorássemos a dialética conven­ cional, o que costumamos considerar uma seqíiência racional parecer-nos-ia, da mesma maneira, “poeira mental” (como, por exemplo, quando ignorantes chamam de “algaravia” escritos difíceis de filósofos) e se, conseqüentemente, fa­ lamos de associação e de poeira mental, talvez seja porque ignoramos essa dia­ lética que age quando renunciamos a toda dialética intencional, essa é uma idéia estranha à psicologia clássica. As “experiências de associação” mostram que as “séries associativas” não se dão à deriva, mas que o sujeito gira sempre em redor de certos temas ínti­ mos. “É totalmente inexato pretender”, diz Freud (p. 523, cf. p. 521, § 3, à p. 524, § 2), “que deixamos as nossas representações descontrolar-se quando, por ocasião do trabalho de interpretação, meditamos e deixamos aparecer em nós as imagens involuntárias. Podemos mostrar que, naquelas ocasiões, renuncia­ mos apenas às representações de objetivo que conhecemos e que, uma vez co­ nhecidas essas representações, outras, desconhecidas ou, de acordo com expressão menos exata, inconscientes, manifestam sua força e determinam o curso das imagens involuntárias. Nossa influência pessoal sobre nossa vida psí­ quica não permite imaginar um pensamento desprovido de objetivo; desco­ nheço o estado de abalo psíquico que poderia permiti-lo.” Vê-se que Freud vai optar pela hipótese contrária à da psicologia clássica: supõe que mesmo que tenhamos renunciado a toda intenção significativa e a toda dialética convencional, nosso pensamento continuará sendo regido por uma dialética e a traduzir uma intenção significativa, mas uma dialética e uma

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intenção originais, que deixaram de ser convencionais para ser íntimas. Portan­ to, o pensamento continua tendo significação embora, convencionalmente, não queira ter nenhuma. Ele tem uma estrutura, embora pareça ter renunciado a toda estrutura e, por isso mesmo, é tão rico de ensinamentos quanto quando funciona conforme as dialéticas convencionais. Não há nenhum a necessidade de falar de associação e nem é lógico falar dela. Todavia, Freud o faz tanto quanto os psicólogos tradicionais. No que diz respeito aos psicólogos, conhece-se, atualmente, o procedimento que produz sua ilusão. Tomam-se os termos do relato e projeta-se seu conteúdo na “vida interior” para ali realizá-lo e fazer uma idéia dele. Inverte-se, a seguir, a ordem dos acontecimentos e imagina-se que os fatos seguiram um caminho inverso ao da análise: a palavra expressa a idéia, e se as palavras encadearam-se, é por­ que as idéias de que são os veículos se tinham “associado” primeiro. Quando Freud fala de associação é em virtude desse procedimento e porque, conforme às exigências da psicologia clássica, gostaria de traduzir, conforme o texto que acabamos de citar o mostra claramente, em linguagem associacionista, a supo­ sição, ou melhor, o fato fundamental no qual seu método se apóia. Ora, ao optar pelo procedimento associacionista, Freud abandona a inspi­ ração do seu próprio método. Não pode interessar-se senão pelas significações das fórmulas verbais que constituem o relato. Não deve, portanto, deixar o pla­ no teleológico para cair no realismo; deve limitar-se à interpretação comum da linguagem, não deve ultrapassar o sentido para penetrar na vida interior. Quando o psicanalista pede ao sujeito para dizer tudo, o que lhe vem à ca­ beça, sem crítica e sem reticência, está pedindo que ele abandone todas as m on­ tagens convencionais, livre-se de toda técnica e toda arte, para deixar-se inspirar pela sua dialética secreta. No que se refere ao sonho, ele representa precisamente um a criação dessa dialética pessoal; eis por que o sonho era um mistério para a psicologia clássica que queria abordá-lo com o postulado da convencionalidade da significação. Sendo assim, a análise do sonho só pode utilizar estados com origem seme­ lhante, isto é, em que reencontramos a dialética pessoal. O relato que parte dos acontecimentos do sonho deve mostrar-nos a maneira pela qual eles se inserem na experiência do indivíduo. Um ensinamento essencial desprende-se dessa comparação da introspecção com o método psicanalítico.

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Capítulo Dois

SERVIÇO DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO

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Há duas maneiras de utilizar o “relato” do sujeito. Podemos desarticulá-lo pela abstração e pelo formalismo para projetá-lo de um a maneira ou de outra na vida interior. E a atitude da psicologia clássica. Também podemos utilizar os dados psicológicos simplesmente como o contexto de um sentido que procuramos: reconhece-se aqui a atitude da psica­ nálise. Resulta disso uma conseqiiência muito importante para a atitude do pró­ prio psicanalista: são-lhe proibidas as hipóteses de estrutura. Ele não tem direi­ to, considerando o verdadeiro caráter da sua atitude, de procurar mecanismos, pois qualquer que seja o paradoxo, nesse momento, a psicanálise orienta-nos, atualmente, em direção a uma psicologia sem vida interior. Mas veremos adian­ te, como pudemos ver a respeito da representação que faz do mecanismo do relato, que Freud não percebeu essa conseqiiência da sua atitude.

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0 arcabouço teórico da psicanálise e as sobrevivências da abstração Ao examinar, nos primeiros capítulos da Traumdeutung a maneira como a psicanálise aborda os fatos e o espírito no qual concebe seu estudo, descobri­ mos, entre a atitude de Freud e a dos psicólogos clássicos, um antagonismo ra­ dical que opõe, uma à outra, duas formas irredutíveis da psicologia, a concreta e a abstrata. Pois a maneira como é encarado o problema do sonho implica uma definição do fato psicológico que desloca o interesse das entidades espirituais para vida dramática do indivíduo, e o método, tal como concebido por Freud, desvia-se da investigação da realidade interior para ocupar-se apenas com a análise do "drama”. Graças a essa atitude concreta, Freud é levado a fazer algumas descobertas tanto mais espantosas quanto mais inacessíveis à psicologia clássica: essas des­ cobertas exigem imperiosamente uma explicação. É de se esperar que se encontrem em Freud explicações adaptadas a essa psicologia concreta de que teria sido o fundador; em suma, reencontrar nessas explicações a atitude concreta que orientou suas descobertas. Essa esperança é tanto mais legítima quanto não vemos como as noções da psicologia abstrata poderiam convir a fatos cuja descoberta, ela só, supõe a negação do espírito no qual essas noções foram elaboradas. Ora, as especulações psicanalíticas decepcionam a essa expectativa. De fa­ to, tudo ocorre como se Freud quisesse, por suas explicações, refazer em senti­ do inverso o caminho que a inspiração concreta da psicanálise o fez percorrer e quer, de alguma forma, fazer-se perdoar pelas descobertas concretas, dando uma explicação que agrade à psicologia clássica. O antagonismo fundamental entre as duas formas da psicologia encontra-se, então, no seio da própria psica­ nálise, que parece dilacerada entre a psicologia antiga e a psicologia nova.

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) Compreende-se facilmente que é essencial, ao procurar o ensinamento psicológico que a psicanálise comporta, insistir nesse ponto. Não basta consta­ tar a presença de um a inspiração concreta na psicanálise; é preciso mostrar até onde vai, como e por que sua influência cessa quando se abordam as explica­ ções. Isso é necessário, não apenas para mostrar que a verdadeira crítica da psi­ canálise consiste em julgá-la em nome dessa psicologia concreta que ela inaugura e não por tal ou qual tendência da psicologia oficial atualmente em moda, mas porque esse conflito agudo entre a atitude concreta e a atitude abstrata no interior da psicanálise nos permitirá definir e fazer avançar as afirma­ ções dos capítulos anteriores.

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I O sonho é a realização de um desejo. A fórmula ainda é geral e Freud não pára nesse enunciado. Ele não nos deixará pensar que se trata de qualquer de­ sejo; pelo contrário, ele tenta mostrar que a maioria dos desejos que se realizam no sonho tem algo em comum: são desejos infantis. “Temos a surpresa de en­ contrar no sonho a criança cjue sobrevive com suas pulsões” (p. 176).39 Desta vez, se Freud não deixa o termo desejo indeterminado, se lhe dá a determinação que acabamos de ver, parece que o “fermento dialético'’ não está mais nas exigências da psicologia concreta, mas nas necessidades “intuitivas”. O desejo que o relato permite reconstituir está ligado a uma lembrança infantil ou a um impulso infantil: isso parece resultar pura e simplesmente da análise. Não é mais questão de princípio, é questão de fato. Bs por que, quando Freud diz “Temos a surpresa de encontrar”, não se deve pensar tratar-se de simples maneira de falar; pelo contrário, é para acredi­ tar que ele estava sendo perfeitamente sincero. Concretamente, a questão apresenta-se da seguinte maneira: a distinção do conteúdo manifesto e do conteúdo latente permite a Freud examinar as particularidades da memória do sonho, particularidades “freqúentemente marcadas, nunca explicadas” (p. 151). Essas particularidades são: Io) a prefe­ rência dada pelo sonho ao recente e ao indiferente; 2o) a intervenção freqúente, no sonho, de lembranças infantis de que não se dispõe durante a vigília (cf. pp. 151-152).

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___________________________ 39 Destacado por Freud. Cf. Nova Edição, PUF, 1993, p. 170. (NRT)

) 104 Capítulo Três

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Ora, a intervenção do recente, isto é, a presença no sonho de aconteci­ mentos da vigília aparentemente indiferentes, é um fato a ser explicado, e não é, como muitos pensam, a própria explicação do sonho. Explicar o sonho pela força de persistência das lembranças recentes não nos dá a razão do cenário preciso realizado no sonho e nada nos ensina sobre a vida individual do sujeito cujo sonho queremos explicar. A particularidade em questão, Freud a explica pelo deslocamento. O conteúdo manifesto só representa o conteúdo latente, e “o processo psicológico graças ao qual um incidente insignificante chega a substituir-se a fatos importantes pode parecer singular e contestável. Explicaremos, em capí­ tulo ulterior, as particularidades dessa operação aparentemente incorreta. Bas­ ta, aqui, examinar-lhe os resultados; inúmeras experiências de análises dos sonhos obrigam-nos a admiti-los. Vendo esse processo, parece que tudo se pas­ sa como se houvesse, um deslocamento — digamos: do acento psíquico... A 'car­ ga psíquica’ passa das representações com potencial inicial alto para outras cuja tensão é fraca. Estas podem, por isso, ultrapassar a soleira da consciência” (p. 163).40 Mas o deslocamento é só um instrumento na transposição do sonho. “O fato de o nosso sonho, suscitado por acontecimentos importantes, ser teci­ do por impressões diurnas indiferentes explica-se, aqui também, pela transpo­ sição” (p. 161). O mesmo se dá com a condensação que Freud define um pouco mais adiante (p. 165). Como o dissemos há pouco, estamos agora no domínio da indução. Torna­ mos conhecimento do esquema geral da teoria, só falta matizá-lo e articulá-lo diante das necessidades empíricas. A observação que fizemos a respeito do capí­ tulo V aplicar-se-á também a todos os capítulos, até “Psicologia dos processos do sonho”. Tratar-se-á doravante de explicar todos os fatos conforme as con­ cepções que os quatro primeiros capítulos nos dão a conhecer, modelando con­ venientemente as idéias a partir dos fatos. Ora, se a maneira como Freud articula seu pensamento é ditada por ne­ cessidades “indutivas”, estas últimas nada podem fornecer além do motivo, mas não explicam a forma precisa das noções que Freud faz intervir; tais noções ex-

40 Destacado por Freud. Cf. Nova Edição, PUF, 1993, p. 159. H á um a frase omitida na citação feita por Poiitzer que pareceu-nos esclarecer as reticências: “II semble, à voir ce processus, que to u t se passe comme s’y il avait déplacement - disons: de 1’accent psychique sur le trajet de l’association”. O u seja, o “deslocamento” é sobre o trajeto da associação. Sobre a posi­ ção de Poiitzer a respeito da associação, conferir item V do capítulo II. (NRT)

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plicam-se pela idéia que Freud faz das relações do conteúdo manifesto e do conteúdo latente e da forma de existência psicológica que convém a esse últi­ mo: são essas idéias que constituem, a partir de agora, a pedra angular da Traumdeutung. Se os quatro primeiros capítulos não podem ser compreendidos sem o reconhecimento das exigências da psicologia concreta, o restante da Traumdeutung não se compreenderá senão por meio das idéias que Freud tem do conteúdo latente e da maneira como é preciso interpretar sua existência. Portanto, é sobre esse último ponto que devemos insistir. Veremos que Freud não soube libertar-se dos procedimentos constitutivos da psicologia clássica. Mas como esses procedimentos encontram-se em oposição clara à inspiração concreta da psicanálise, essa oposição permite reconhecê-los e contorná-los. A psicanálise nos trará um ensinamento que, por ser negativo, não deixa de ser precioso: aprenderemos a reconhecer a essência abstrata de certas noções que surgem inicialmente como decorrendo essencialmente da própria experiência. Freud observa não ser necessário que a análise seja integralmente uma re­ constituição. “O que é preciso lembrar a respeito das objeções que nos. foram feitas”, diz ele (p. 526), “é que não é necessário atribuir à elaboração noturna todas as idéias que surgem durante o trabalho de interpretação. Nesse momento, refazemos o caminho que leva dos elementos do sonho aos pensamentos do sonho. O tra­ balho do sonho o fez em sentido inverso e não é nada verossímil que o caminho possa ser seguido nos dois sentidos. Parece, ao invés, que durante o dia pratica­ mos por novas associações espécies de sondagens que atingem os pensamentos intermediários e os pensamentos do sonho, às vezes aqui, às vezes ali”. Contudo, algo do “material associativo” foi pensado efetivamente, mas o quê? e de que maneira? Eis o problema. Freud responde: o ato que consiste em pensar o conteúdo latente é um ato psicológico; mas esse ato psicológico é sem consciência.41 A distinção do conteúdo latente e do conteúdo manifesto leva-nos à hipótese do inconsciente. Eis aproximadamente o esquema da resposta freudiana. As “associações livres” ou o relato fornecem o material notável sob dois aspectos. Esse material é, primeiramente, relativamente desproporcional ao conteúdo manifesto; é, também, revelador: permite informar o sujeito de coisas que ele mesmo ignora,

41 Considerando a orientação das nossas explanações, responderemos aqui explícitamente à segunda questão.

1 0 Í Capítulo Três

embora pertençam à sua vida íntima. Como é o sujeito que fornece o conteúdo latente, rico de pormenores e inesperado em sua significação, é preciso, por as­ sim dizer, entregar-lhe. Freud inverte, então, a ordem temporal: do relato resul­ tante da análise, faz o pensamento do sonho e, a seguir, concebe-o como anterior ao conteúdo manifesto, ao próprio sonho. E, precisamente porque os pensamentos do sonho não pertencem aos pensamentos disponíveis do sujeito, eles não têm existência semelhante à maneira de ser dos pensamentos disponí­ veis, mas uma maneira de ser diferente: a forma da sua existência é inconscien­ te. É assim que, na Traumdeutung, surge a noção teórica fundamental da psicanálise, a noção de inconsciente. “O que é sufocado persiste e subsiste no homem normal e continua capaz de rendimento psíquico” (p. 596) e “o sonho é uma dessas manifestações, teo­ ricamente, ele o é sempre; e praticamente na maioria dos casos” (iibid.). De modo geral, Flectere si nequeo superos, acheronta movebo. A interpretação é a via real que leva ao conhecimento do inconsciente na vida psíquica42 (ibid.). É essa concepção realista que está na base de todas as especulações de Freud. É ela que precisa em primeira instância da introdução da noção de trans­ posição.43 De fato, se o conteúdo latente representa uma realidade psicológica anterior ao conteúdo manifesto, anterior de direito e de fato, só um trabalho de transposição pode explicar a distância entre os dois conteúdos.44 Mas uma vez admitida a transposição para explicar o distanciamento, é necessário apro­ fundar a questão e explicar a forma exata desse distanciamento. Há, porém,

42 Destacado por Freud. 43 Na Nova Edição da tradução de Meyerson, aparece o conceito “deform ation” e não “transposition” com o citado no texto de Politzer. Cf. p. 125. N o Vocabulário da Psicanálise, Laplanche e Pontalis afir­ m am que na edição francesa da Traumdeutung, a palavra alemã “Entstellung” foi traduzida por “trans­ position”. Os autores rejeitam esta opção por acharem o term o “m uito fraco" e sugerem em seu lugar “déformation”, por considerarem m ais apropriado ao conjunto da argum entação de Freud. (NRT) 44 No mesmo Vocabulário da Psicanálise, os autores anotaram a crítica politzeriana à distinção construída por Freud entre conteúdo manifesto e conteúdo [atente. Afirmaram que a crítica de Politzer foi realizada “a partir de um ponto de vista fenomenológico”, o que teria conduzido à sua compreensão de que “o sonho, estritam ente falando, teria apenas um conteúdo”. São Paulo: M artins Fontes, 3* ed., 1994, p. 100. Este argum ento tam bém foi desenvolvido por Bento Prado Jr. em seu artigo “Georges Politzer: Sessenta anos da Crítica dos Fundamentos da Psicologia": “O vocabulário técnico da fenomenología husserliana não está presente na CFP (assim como não encontrei nenhum a referência a Husserl nos escri­ tos de Politzer, n o entanto tão familiarizado com a literatura teórica alemã), mas um certo estilo fenomenológico parece im pregnar todo o seu ensaio”. In: Filosofia da Psicanálise, São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 16. O ponto de vista aqui assinalado, encontra-se tam bém nas posições de Maurice Merieau-Ponty sobre Freud; específicamente o capítulo III de La Struture du Comportement, Paris: PUF, 1992. (NRT)

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um primeiro fato, a saber, que o distanciamento incide, inicialmente, sobre o valor psíquico dos elementos. Um elemento cuja significação convencional seja muito pequena pode representar no sonho um a significação psicológica de grande intensidade. Isso é um fato e vimos que Freud introduz a noção de des­ locamento. Por outro lado, o distanciamento é, simultaneamente, quantitati­ vo e qualitativo: o material associativo é considerável, enquanto o relato do conteúdo manifesto é muito curto. Isso significa que o sonho “condensa". Mas o sonho condensa também em outro sentido: “Há na elaboração do sonho uma espécie de constrangimento que une os motivos num todo... Esse cons­ trangimento apresenta-se como parte de outro processo primário: a “conden­ sação” (p. 165). De modo geral, será sempre suficiente erigir em princípio os diferentes aspectos desse distanciamento para chegar a noções novas, e é-o que faz Freud. Todavia, a distinção do conteúdo manifesto e do conteúdo latente e a maneira como Freud a concebe necessitam ainda de especulações em outra di­ reção: a causa da transposição. Trata-se de saber qual é a causa do “disfarce no sonho” — “por que sonhos indiferentes que, ao serem analisados revelaram-se como sonhos de desejos, não exprimiam claramente esses desejos? O sonho da injeção aplicada a Irma, que expusemos longamente, nada tinha de penoso, e apareceu na análise como a realização muito nítida de um desejo. Por que era necessário uma análise? Por que o sonho não revela imediatamente o seu sen­ tido? Com efeito, o sonho da injeção aplicada a Irma não dava, à primeira vista, a impressão de realizar um desejo do sonhador. O leitor terá percebido, e eu mesmo não sabia antes de analisá-lo. Se chamarmos esse fato de transposição no sonho, uma segunda questão surgirá logo: de onde provém essa transposi­ ção?” (p. 126). Na verdade, o emergir dessa questão não nos orienta necessariamente para a psicologia concreta pois, como observa Freud, uma resposta abstrata é igualmente possível: “Poderíamos, à primeira vista, imaginar diversas respos­ tas. Por exemplo: seria impossível, durante o sono, encontrar a expressão que corresponda às idéias do sonho” (p. 126). O que explicaria o cenário do sonho seria essa incapacidade, o sonho seria, então, um a espécie de balbucio. Contra essa teoria, Freud apela para a experiência: “Mas a análise de certos sonhos obriga-nos a dar outra explicação dessa transposição.” O “sonho do tio” mostra que a transposição quer disfarçar pensamentos penosos. Com efeito, não é só por razões “experimentais” que Freud combate a teo­ ria que aponta. O fato de ele, sem dar importância à teoria apontada, pedir aos

108 Capítulo Três

fatos outra explicação mostra que sente a abstração da teoria em questão. Se adotássemos essa teoria, o sonho passaria a ser novamente algo geral e a expli­ cação não poderia atingir o sonho do que se trata. A maneira como Freud res­ ponde à questão permite, senão satisfazer às exigências da psicologia concreta, pelo menos aproximar-se delas. Por outro lado, a teoria rejeitada por Freud é estéril: ela interrompe imedia­ tamente a pesquisa. Uma vez que se tenha dito “o sonho é um balbucio”, só se pode, a respeito de qualquer sonho e de qualquer elemento do sonho, repetir essa afirmação geral e espantar-se com as variedades e os caprichos desse balbu­ cio. A maneira como Freud responde à questão leva a novas manobras de inter­ pretação e obriga-o a elaborar hipóteses a respeito da estrutura do “aparelho psíquico”. Es por que ele pode dizer: “Temos aqui o sentimento de que a inter­ pretação dos sonhos poderia dar-nos, quanto à estrutura do espírito, noções que, até o momento, esperamos em vão da filosofia” (p. 134). Freud empreende, então, trabalhos nocionais que se prolongam paralela­ mente às manobras “indutivas” que assinalamos e que serão retomadas poste­ riormente de maneira sistemática na “Psicologia dos processos do sonho”. II A partir da articulação da resposta ao problema da transposição, consta­ tamos em Freud certo retomo à psicologia abstrata. “(...) A transposição é desejada, é um processo de dissimulação” (p. 131). Um conjunto de pensamentos querem expressar-se no sonho, mas em vez de aparecer tais e quais, estão disfarçados. Constata-se, ao mesmo tempo, que o pensamento do sonho é penoso para o sujeito, que ele tenta furtar-se à respon­ sabilidade que lhe cabe pelo próprio fato de ter sonhado. É esta última consta­ tação que permite a Freud explicar a transposição. Como o conteúdo latente é real e, por outro lado, o que é consciente não é senão o conteúdo disfarçado, faz-se necessário admitir que a forma de exis­ tência do conteúdo latente é “inconsciente, e que a consciência só é dada às re­ presentações sob certas condições”. Para fixar as idéias, Freud introduz uma notação extraída da vida política: uma censura fica de vigia na entrada da cons­ ciência. Freud percebe m uito bem a dialética da sua atitude: sendo o conteúdo latente psicologicamente real sem ser consciente, não só será impossível definir os fatos psicológicos pela consciência, mas, dado o fato da censura, a consciên­ cia só captará o fato psicológico de maneira deformada e a assimilação da cons­ ciência a um órgão de sentido tornar-se-á possível com todas as conseqúências

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de semelhante assimilação. “O fato de tornar-se consciente”, diz Freud, “é para mim um ato psíquico particular, distinto e independente do aparecimento de um pensamento e de um a representação. A consciência parece um órgão de sentido que percebe o conteúdo de um outro dominio” (p. 133). Mais adiante, Freud afirma nitidamente a relatividade da percepção pela consciência. “O in­ consciente é o próprio psíquico e sua realidade essencial. Sua natureza é-nos tão desconhecida quanto a realidade do mundo exterior, e a consciência nos informa sobre ele de uma maneira tão incompleta quanto nossos órgãos de sentido sobre o mundo ex­ terior”45 (p. 600). Em resumo, a consciência possui como uma energia específica. Essa energia específica é exatamente a censura. Quando se fala da relatividade do conhecimento sensível, quer-se salien­ tar duas coisas: por um lado, o fato de que, tendo em vista o número e a escolha dos órgãos sensoriais, nosso conhecimento do m undo exterior é essencialmen­ te seletivo e, por isso mesmo, incompleto; por outro lado, tendo em vista a “energia específica” dos nervos, a sensação impõe aos dados da experiência uma deformação qualitativa.46 Éde suma importância observar que, em função do seu ponto de partida, a afirmação da relatividade da percepção pela consciência tem, em Freud, uma orientação particularíssima. Há filósofos que afirmam a relatividade da experi­ ência interna: as idéias de Kant a respeito são m uito conhecidas. Mas, com Kant, estamos na teoria do conhecimento. Em Freud, a causa da relatividade tem, primeiramente, algo de moral e mesmo de sociológico. Se tomarmos o pensamento dele sobre a questão no ponto de partida, encontramos que cons­ ciência significa responsabilidade. O sujeito sente-se responsável pelo conteúdo da sua consciência: todo fato psicológico consciente é um ato cuja responsabi­ lidade deve ser aceita pelo sujeito. E o que explica a censura e o recalcamento, e eis, em primeiro lugar, a causa da relatividade da consciência. De fato, há pensamentos penosos para o sujeito: ele os recalca, não quer tomar consciência deles. Ora, não é o ato de pensar que é penoso em si; um pensamento recalcado não é penoso na simples execução do ato que consiste em produzi-lo, pois um pensamento recalcado sempre pode ser pensado em si mesmo, sob a condição de o sujeito não ser obrigado a assumi-lo. Ele só se tom a

45 Destacado por Freud. Cf. Nova Edição, PUF, 1993, p. 520. (NRT)

46 Sendo que Freud com para a consciência a um órgão sensorial, não há necessidade de nos aprofun­ dar mais na questão da relatividade.

Capítulo Três

penoso quando o sujeito é obrigado a reconhecê-lo como sendo seu, quando aparece como a expressão de um a maneira de ser que implique para ele a indig­ nidade, a decadência, porque contrário ao “ideal do eu (moi)”, por exemplo. É incontestável que aí se encontra o germe de uma concepção concreta do recalcamento e de todas as atitudes que ele comporta ou, pelo menos, ficamos num plano em que o recalque pode ter um sentido concreto. Expressando-nos assim, nossas afirmações, apesar da sua imprecisão, são relativas aos atos de um sujeito particular e estamos em presença, não de simples representações, mas das próprias formas nas quais o sujeito quer inserir-se; na presença de um conflito, não entre representações, mas entre as maneiras de ser, das quais umas são reais, mas condenadas, outras desejadas, mas irrealizáveis. Da manei­ ra como a consideramos agora, a “consciência" não é um a forma da experiên­ cia, é essencialmente um ato de reconhecimento, de responsabilidade, mesmo de identificação — em suma, aspecto das ações individuais pelo qual sua perti­ nência ao “eu” se torna manifesta e seu reconhecimento, efetivo. Se Freud tivesse orientado seus desenvolvimentos nessa direção, teria per­ cebido que toda essa "dinâmica" das representações que supõem censura, recalque e resistência refere-se ao próprio conhecimento que o sujeito pode ter dos seus próprios comportamentos e, assim, a limitação da consciência só teria significado á nega­ ção da onisciência do sujeito diante de si mesmo, negação que o método psicanalítico já comporta.47 Nessas condições, Freud não teria tido necessidade de conceber, por um lado, um mundo de entidades psíquicas inconscientes e, por outro, de fazer da consciência um órgão de percepção. Freud não deu atenção a essas possibilidades concretas e aplicou imedia­ tamente à consciência o esquema clássico da relatividade da percepção. Vere­ mos que, no momento em que estuda o problema sistematicamente, não encontramos senão o desenvolvimento abstrato desse esquema.48 É preciso acrescentar que Freud se exprime em termos de “representações”, de “estados efetivos” etc., e essa linguagem o leva para o campo de influência da psicologia clássica. 47 Cf. mais adiante, capítulo IV, item V e seguintes. 48 Verdade é que no desenvolvimento recente das suas teorias, Freud voltou ao problema do recalca­ m ento e encontramos, então, desenvolvimentos que se aproxim am das exigências que acabamos de expressar. Mas esses desenvolvimentos só acentuam o conflito entre a abstração e o concreto. Cf. capí­ tulo V, item II, pp. 173ss.

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Isso é particularmente visível na “Psicologia dos processos do sonho”. A análise desse capítulo em que veremos Freud como dilacerado entre a psicolo­ gia abstrata e a psicologia concreta será instrutiva ao mais alto grau.

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III Devemos iniciar pela seção II (pp. 527-543). A seção I, em que Freud estu­ da o esquecimento dos sonhos (pp. 509-527), tem grande interesse técnico, mas só nos sobraria repetir o que já dissemos a respeito do caráter concreto da inspiração da psicanálise e denunciar, como fizemos, sua ilusão quanto ao me­ canismo do relato. Com a seção II penetramos no âmago da especulação freu­ diana. Aliás, é só aqui que o problema é posto com toda a nitidez necessária. “Reunamos os principais resultados obtidos até agora. O sonho é um ato psíquico completo; seu móvel é um desejo a realizar; o desconhecimento desse fato, as esquisitices do sonho e as múltiplas absurdidades são provenientes da censura por que passa por ocasião da sua formação: a obrigação de condensar o material psíquico, a necessidade de representá-lo por imagens sensoriais e, em­ bora irregularmente, a preocupação de dar a esse conjunto um aspecto racional e inteligível. Cada um desses princípios leva a postulados e conjeturas de caráter psicológico; é preciso examinar as relações do desejo e as quatro condições do so­ nho, assim como as relações que estas têm entre si; é preciso inserir o sonho no encadeamento da vida psíquica.” Eis o problema e o plano do capítulo. Freud começa pela análise dessa particularidade do sonho, que consiste em dramatizar o pensamento. “No sonho, um 'pensamento', com maior freqiiência, um desejo, é objetivado, dramatizado, vivido” (p. 528). “Como expli­ car essa particularidade da elaboração do sonho, ou pelo menos, como fazê-la entrar no encadeamento dos processos psíquicos” (ibid.). Antes mesmo de responder a essa questão, e precisamente a fim de respondê-la, Freud exprime o fato na linguagem da psicologia clássica. “Se anali­ sarmos com mais rigor, reconhecer-se-á nas manifestações do sonho dois caracteres quase independentes um do outro. Um é a figuração como atual, que não deixa lugar a nenhuma dúvida; o outro é a transformação do pensa­ mento em imagens visuais e em discursos” (ibid.). O segundo caráter, que só aparece nos sonhos, significa que “o conteúdo representativo não é pensado, mas transformado em imagens sensíveis” (p. 529). Portanto, explicar a drama­ tização no sonho consistirá em descrever o mecanismo dessa transformação. Pode-se prever com bastante facilidade o teor geral dessa explicação. É evidente que, tendo em vista a maneira como Freud formula o fato, o esquema da tra-

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Capítulo Três

dição sensualista está em jogo. Portanto, é esse esquema clássico do trabalho psicológico, que vai da sensação ao pensamento, que está presente na mente de Freud. Por outro lado, há a concepção realista do conteúdo latente que nos mostra o trabalho do sonho do pensamento do sonho às imagens do conteúdo manifesto. E natural, portanto, que o sonho seja para Freud como uma regres­ são. Só falta articular a concepção do aparelho psíquico de maneira a tornar “progressão'' e “regressão” possíveis. Para isso, Freud precisa de uma represen­ tação tópica, sob risco de fazer, mais adiante, reservas sobre o grau de realidade conveniente a semelhante representação. “O grande G.-Th. Fechner, em sua Psicofísica, apresenta, após algumas considerações, a hipótese que a cena onde o sonho atua é, talvez, muito diferente da outra onde atua as representações da vigília... A idéia que nos é assim oferecida é a de um lugar psíquico”49 (p. 530). “Representemo-nos o aparelho psíquico como um instrumento cujas par­ tes componentes chamaremos instâncias, ou, para maior clareza, sistemas. Imaginemos a seguir (...) que uma sucessão constante seja estabelecida, graças ao fato de os sistemas serem percorridos pela excitação em certa ordem tem ­ poral” (p. 530ss). Como é de se prever, o esquema do reflexo intervirá para es­ clarecer o pensamento. Freud o diz muito claramente: 'T oda a nossa atividade psíquica parte de excitações (externas ou internas) e vai dar em enervações. O aparelho tem, portanto, uma extremidade sensitiva e um a extremidade moto­ ra (...). O processo psíquico vai, em geral, da extremidade perceptiva à extremi­ dade motora (...). Mas aí está apenas a realização de um a exigência há muito conhecida, segundo a qual o aparelho psíquico seria construído como o apare­ lho reflexo. O reflexo seria o modelo de toda produção psíquica” (p. 531). Os resultados das análises obrigam Freud a introduzir novas diferencia­ ções no “aparelho psíquico”. “No que dissemos até agora a respeito da compo­ sição do aparelho psíquico à sua extremidade sensorial, não fizemos intervir o sonho nem as explicações psicológicas que podem ser deduzidas. Mas para o conhecimento de uma outra parte do aparelho, o sonho vem a ser uma fonte de argumentos” (p. 533). Essa outra parte é a extremidade motora. E a noção de censura que obriga Freud a introduzir uma nova diferenciação: o pré-consciente. Com efeito, “assim como vimos, a instância que critica está em relação mais estreita com a consciência que a instância criticada. Ergue-se como uma tela

49 Destacado por Freud. Cf. Nova Edição, PUF, 1993, p. 455. (NRT)

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entre esta e a consciência”. Movido por razões clássicas, Freud situa consciente e pré-consciente na extremidade motora. “Encontramos alguns pontos de refe­ rências que nos permitem identificar a instância que critica com o princípio di­ retor de nossa vida desperta, o mesmo que decide das nossas ações voluntárias e conscientes. Se substituirmos essas instâncias por sistemas no sentido das nossas hipóteses, o sistema encarregado da crítica é levado na seqiiência do que vimos na extremidade motora (...). Chamaremos de pré-consciente o primeiro dos sistemas na extremidade motora, para indicar que daí os fenômenos de ex­ citação podem chegar à consciência.” (p. 534). “É também o sistema que con­ tém as chaves da motilidade voluntária (...). Daremos o nome de inconsciente ao sistema posto mais atrás; não poderia aceder à consciência a não ser passando pelo pré-consciente e, durante essa passagem, a excitação deve dobrar-se a certas modificações”50 (p. 534ss.). O andamento do pensamento de Freud está claro. Ele introduz no apare­ lho psíquico a noção de inconsciente para incluir o pensamento e a inspiração do sonho, e a noção de pré-consciente para fazer dele o lugar da atividade da censura: transposição e elaboração do sonho. Não chegamos ainda à explicação da regressão e, todavia, o caráter abstrato das hipóteses freudianas já está per­ feitamente visível, não só no esquema fundamental, mas também na maneira como este é articulado por Freud. Se Freud situa a censura junto à consciência é porque, como já indicamos, consciência significa, em primeiro lugar, responsabilidade. Sem isso, não se compreende a necessidade de admitir na entrada da consciência uma censura que não seja simples condição decorrente da teoria do conhecimento, mas es­ sencialmente um a seleção efetuada não com leis que enunciam o jeito de um processo automático, mas em conformidade a princípios que examinem as for­ mas do ponto de vista da sua significação. Por outro lado, se Freud põe a cons­ ciência em si na extremidade motora, não é só por causa do esquema utilizado, mas essencialmente porque “extremidade motora” significa ação e é a consciên­ cia que assume a responsabilidade dela. Portanto, a construção freudiana signi­ fica, no fundo: a ação só é possível ao sujeito sob forma confessável. No préconsciente, a responsabilidade está às voltas com as formas, isto é, com os sen­ tidos das ações nascentes. O termo ação é tomado, claro, no seu mais amplo

50 Destacado por Freud. Cf. N ova Edição, of>. cit. pp. 459-460. (NRT)

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sentido; significa, então, um “fato” do sujeito, qualquer que seja. Considerando as coisas nesse ponto de vista, estamos, a rigor, no plano da psicologia concreta. Na realidade, Freud expressa-se numa linguagem que faz o concreto su­ mir. Primeiro, logo após pronunciar, pelos motivos que acabamos de indicar, a fórmula “extremidade motora”, esta passa a significar para ele, definitivamen­ te, apenas “motilidade”; não é mais questão da ação humana, individual; a pa­ lavra ato perdeu seu sentido dramático e humano e mesmo qualquer sentido geral: é para Freud igual ao que é para o fisiólogo, um movimento, ou melhor, do movimento em geral, uma nova forma de excitação. Estamos agora no pla­ no do “formalismo funcional”: o termo excitação voltará constantemente na sua significação fisiológica, e sem o menor vestígio de humanidade. Esquecendo-se, sempre mais, de que sua teoria só é verdadeira na medida em que parti­ cipa do concreto, em que só reconhece como fato psicológico o ato efetivo do indivíduo singular, Freud intensifica seu esforço para explicar as coisas medi­ ante uma mecânica que deveria ser psicológica mas que, como todas as mecâ­ nicas psicológicas, funciona no vazio. “Chamaremos pré-consciente o último dos sistemas na extremidade moto­ ra, para indicar que daí os fenômenos de excitação podem chegar à consciência sem maior demora, caso algumas outras condições sejam atendidas, por exem­ plo, certo grau de intensidade, certa distribuição da função que chamamos atenção” (p. 534). Esse é, também, o momento em que ele faz desaparecer o caráter concre­ to da sua teoria da relatividade da consciência para dar dela uma versão pura­ mente mecanicista. “Daremos o nome de inconsciente ao sistema posto mais atrás; não poderia aceder à consciência a não ser passando pelo pré. cit. p. 481. (NRT)

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA

ção” {ibid.). Percebe-se corno “a adaptação à vida” necessitará das transforma­ ções ao revelar o caráter transitório da satisfação alucinatória. Será preciso, nesse momento, barrar o caminho à alucinação e conseguir, para fazer desviar a excitação, “uma melhor utilização das forças psíquicas”, isto é, a manutenção da excitação satisfatória a partir de fora. Mas, então, “toda essa atividade com­ plicada que vai da imagem-lembrança56 ao restabelecimento da identidade da percepção pelos objetos do mundo exterior é só um desvio tornado necessário pela experiência a fim de realizar um desejo”. A orientação biológica do esquema freudiano aparece nitidamente: no co­ meço foi o desejo que nasce da necessidade orgânica. Um princípio clássico chamado princípio de economia, ou princípio de prazer, logo intervém: o dese­ jo procura, por meio da alucinação, sua realização imediata. Assim é que, no começo, foram o desejo e a alucinação. “A vida noturna recolheu o que foi outrora nossa vida desperta, nossa vida psíquica jovem e inábil, um pouco como os nossos filhos perpetuam as armas, hoje em desuso, da humanidade primiti­ va, o arco e as flechas. O sonho é um fragmento da infância da vida psíquica, hoje ultrapassada”57 (p. 538). Embora estas fórmulas sejam semelhantes àquelas em que, há pouco, tivemos de reconhecer a inspiração da psicologia concreta, não se pense que significam a mesma coisa — pois toda a explanação que precede só se destina a dar-lhes uma significação abstrata. A revivescência da infância significava, então, a revivescência de certas atitudes determinadas que caracterizam a infância — a revivescência de uma atitude “de forma hum ana” que o indivíduo tivera efetivamente em sua infância e que reaparece em seus sonhos com um a encenação emprestada à sua vida presente. Mas agora que Freud deu-nos a conhecer os começos do “aparelho psíquico”, a mesma fórmula sig­ nifica a renascença de um mecanismo que não tem mais “forma humana”, a re­ nascença de um “processo” que não interessa mais ao sujeito, mas só à marcha das representações e das excitações. Não há necessidade de acrescentar que, do ponto de vista da psicologia concreta, os esboços de Freud (dado que ele não quer que os consideremos como uma explicação) voltam a ser ininteligíveis, pelo menos se tomados ao pé da letra e se nos dermos conta, por menos que seja, dos mecanismos que ele introduz.

56 “Imagem m nêm ica' (I’image mnésique). Cf. Nova Edição, op. cit. p. 482. (NRT) 57 Destacado por Freud. Cf. Nova Edição, PUF, 1993, p. 482. (NRT)

ЩCapítulo Três

Primeiramente, o que pode significar essa atração das lembranças da in­ fância? É muito cômodo dizer: as hipóteses são apenas maneiras de falar, ou “hypotheses поп fíngo”, e, ao mesmo tempo em que se sustenta esse ponto de vis­ ta contra a crítica, agir e escrever como se levássemos a sério tais hipóteses. Tudo isso, aliás, só representa precauções oratórias. Se não tivesse a intenção de levar a sério essas hipóteses, não as faria. Como não se pode dotar os fatos psicológicos de uma eficácia diferente da que lhes vem do sujeito, é preciso que elas possam aparecer como as formas da ação do sujeito. Procurar-se-á em vão um ato individual que possa corres­ ponder a essa atração de que nos fala Freud; é impossível formulá-la em primei­ ra pessoa. Assim como a descrição do mecanismo da regressão em momento algum deixa lugar à intervenção do “eu”: o mecanismo funciona no vazio. Aliás, uma longa série de formações, admitidas por Freud nas suas expli­ cações a respeito da elaboração do sonho, apresenta o inconveniente de ser psi­ cologicamente vazia. São as constelações preliminares à formação do sonho (cf. sobretudo pp. 582-583). Sendo que Freud parte de uma concepção realista do conteúdo latente, é natural vê-lo afirmar que as atividades de pensamento mais complicadas podem produzir-se sem que a consciência tome parte nisso (p. 582) e que, “pelo fato de nos­ so julgamento ter rejeitado pensamentos por lhe parecerem inexatos ou inú­ teis a um objetivo momentaneamente procurado, pode resultar um processo, ignorado da consciência e que continuará no sono (...). Chamemos esse proces­ so de pré-consciente” (p. 583). Temos, assim, no pré-consciente “uma esfera de pensamento deixada a si mesma” (p. 584), pois não somente não é ocupada pelo consciente, como é abandonada pela ocupação pré-consciente. É verdade que esses desejos inconscientes podem apoderar-se desses pensamentos, ««*s a questão é saber como podem ser psicologicamente reaia, quando essa ocupação pelos desejos inconscientes ainda não aconteceu. Freud responde simplesmen­ te que consciência e fato psicológico não são sinónimos e acrescenta que o vé­ lico postulado da unidade da alma ou da consciência é desmentido pelos fatos. Mas a questão não está nisso. É preciso dizer se esses pensamentos abandona­ dos a si mesmos ainda são atos do “eu”? Ora, isso é impossível. A continuidade do “eu” está aqui particularmente rompida, pois essas constelações prelimina­ res são apenas pensamentos flutuantes e basta observar a linguagem de Freud para perceber que são dotados de uma espécie de autonomia. Neste caso, não podem ser psicologicamente reais.

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A história da posterior diferenciação do aparelho psíquico e o postulado segundo o qual "no começo era o desejo” sugerem-nos as mesmas observações. Embora a eficácia não passe integralmente para noções de terceira pessoa, é verdade, contudo, que ficamos num a região totalmente abstrata. O processo que, finalmente, explica o sonho não é mais suscetível de ser individualmente qualificado, de forma que Freud merece uma repreensão, exatamente a mesma que ele costuma dirigir aos outros. O termo da explicação é representado por noções gerais, como as necessidades biológicas do organismo, a adaptação à vi­ da. Em uma palavra, a teoria não é de inspiração psicanalítica pois, em vez de nos fazer avançar no conhecimento do indivíduo concreto, leva-nos de volta à biologia por exemplo. Sem contar que nos movemos numa área onde represen­ tações, excitações e energias evoluem com uma espécie de soberania, como se o todo não devesse ser uma ação individual. Enfim, penetramos sempre mais na vida interior, na biologia, até mesmo na fisiologia, isto é, num a região psi­ cologicamente cega. É aqui que deparamos essas fórmulas infelizes que só se explicam pela fra­ queza diante da necessidade de explicação e pelo fato de que, onde a explicação não é justificada pelos fatos, apela-se para noções em que, como num mito he­ roico, pôs-se todo o entusiasmo. “Nosso maior interesse teórico”, diz Freud, “vai para os sonhos capazes de nos despertar (...). Perguntemos a nós mesmos como pode o sonho, desejo inconsciente, perturbar o sono, realização do desejo pré-consciente? É preciso que haja no caso relações de energia que nós não entende­ mos. Se as conhecêssemos, vertamos, sem dúvida, que deixar o sonho atuar e dar-lhe apenas uma atenção livre exige menos energia que frear o inconsciente como durante a vigília’’53 (p. 567). “A tomada de consciência depende da orientação de uma certa função psíquica, a atenção que, ao que parece, só pode ser dada em determinadas quantidades.” “Acreditamos que certa quantidade de excitação, que chamamos energia de ocupação, parte de uma representação de meta e segue vias associativas que esta escolheu. Essa ocupação nunca foi dada aos pensamentos abandonados, negligenciados; foi retirada dos pensamentos abafados, rejeitados; uns e outros são abandonados às suas próprias excitações” (p. 538).58

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58 O destaque é nosso.

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1 2 4 Capítulo Três

É claro que todas essas fórmulas significam algo, pois Freud manobra con­ forme os dados que lhe foram fornecidos pela análise. Poderíamos mesmo tra­ duzir uma grande parte dessas afirmações numa linguagem mais concreta. De todo modo, evoluindo em meio a essas noções, estamos longe do “sentido” e do fato psicológico “segmento da vida individual concreta”. VI A explicação freudiana do recalque nos exporá a maneira como Freud aprofunda suas construções teóricas. Assim como a regressão, o recalque é um processo primitivo do aparelho psíquico e explica-se, em última instância, pelo grande princípio da busca do prazer e da fuga do desagradável. No começo, o recalque nada tem de intencio­ nal e nada tem a ver com a responsabilidade: é o funcionamento de uma sim­ ples mecânica biológica. “Os processos do sistema y, incluindo os do pré-consciente, são carentes de qualidades psíquicas; eis por que só podem apresentar-se como objetos à consciência na medida em que se oferecem à sua percepção do agradável ou do desagradável. Será preciso resolver-nos a admitir que essas descargas de agradável e de desagradável regulam automaticamente a marcha dos processos de ocupação”59 (p. 565). “Escrevemos”, acrescenta Freud mais adiante, “que só o desejo pode pôr o nosso aparelho em movimento e que o curso da excitação estava automatica­ mente regulado pela percepção do agradável e do desagradável” (p. 588). Ora, no momento considerado, a regressão alucinatória é o caminho na­ tural imediato. Porém, como a regressão é estéril, “um segundo sistema” deve intervir a fim de transformar a energia alucinatória estéril em energia útil, isto é, produtora de apaziguamento. Pode-se fazer, aqui, uma aproximação com Bergson. Há no homem uma tendência a refugiar-se no sonho; a necessidade da adaptação à vida o arranca dela. Essa é uma idéia comum em Bergson e em Freud — e também de toda uma época. Contudo, Freud faz da necessidade em

59 Destacado por Freud. Cf. Nova Edição, PUF, 1993, p. 488. No inicio da década de 50 apareceu a primeira publicação em alemão da correspondência de Sigmund Freud com W uilhelm Fliess (18871902). Junto à correspondência foi encontrado um m anuscrito de Freud de 1895, “E ntw urf einer Psychologie”, que contém argumentos decisivos para compreensão da citação destacada. A leitura reali­ zada por Politzer, antecipa o cenário dos debates sobre a cientificidade da psicanálise que ocoreram após a publicação do manuscrito e da correspondência. A tradução do conceito bcseizen por “ocupação” parece-nos mais apropriada do que “catexia” ou “inves­ tim ento”. Indicamos a nota 21 da tradução do Projeto de uma Psicologia, realizada por O sm yr Faria Gabbi Jr. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1995, p. 116. (NRT)

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA J2 5

foco um “sistema do aparelho psíquico” a fim de poder utilizá-lo na explicação do recalque. Essa parada pelo pré-consciente das excitações oriundas do inconsciente, em vista da adaptação, não é, aliás, a imagem do verdadeiro recalque. Na simples fuga diante da lembrança, a causa do recalque reside no desa­ gradável com que a experiência carrega essa lembrança. лсаЬа-se o desejo, en­ tão. Eis por que o verdadeiro recalque não é fuga diante da lembrança. O verdadeiro recalqfie é aquele em que existe uma “transformação afetiva”, pois embora, primitivamente, a satisfação de um desejo provoque o prazer, existe outro cuja satisfação só pode ser desagradável. Só que a causa desse recalque não é mais e simplesmente o desagradável em si, mas um desagradável de um nível mais alto. Depende, com efeito, de um julgamento do pré-consciente (p. 592ss.). “De que maneira e sob a influência de que impulso essa transformação pode produzir-se? Eis o problema do recalque que basta indicar no presente momento. Admitimos que essa transformação afetiva se produz no decurso do desenvolvimento (pensa-se ao aparecimento do desgosto que, primitiva­ mente, não existe na criança) e esteja ligada à atividade do sistema secundário” (p. 593). Essa explicação evidencia que Freud, mais uma vez, aderiu a esquemas de terceira pessoa. E visível que a explicação ideal da qual quer se aproximar con­ siste em explicar tudo à maneira “energetista”, por deslocamentos de intensida­ des, transformações de energias, elevações e quedas de nível, cargas e descargas de ocupação, pelas diferentes regulagens das diversas correntes de excitação. Afinal, Freud conseguiu, com muita engenhosidade, isso não deixa dúvida, refazer em sentido inverso o caminho seguido por ele nos capítulos anteriores da Traumdeutung. Não é, simplesmente, uma metáfora. Conforme as tradições às quais se liga, o sonho da síntese está nitidamente presente em Freud. Faz alusões a isso, vez por outra, dizendo que a análise do sonho deveria ser acom­ panhada da sua síntese. De fato, seria a grande verificação. Sente também, no capítulo “Psicologia dos processos do sonho”, que recorre às hipóteses apenas na esperança de reencontrar, a partir delas, os fatos dos quais partiu. Infeliz­ mente, só se refere de passagem à psicologia “dedutiva”. Se tivesse tentado se­ riamente a “dialética descendente”, teria percebido que não se pode tirar das suas hipóteses os fatos sobre os quais estão assentados, pois os mecanismos que ele nos descreve têm os defeitos dos mecanismos da psicologia clássica: não são capazes de determinar o individual, somente o geral.

126 Copítulo Três

De qualquer maneira, um vez concluída a “Psicologia dos processos do so­ nho", tudo voltou para dentro do “psíquico", tudo se tornou jogo de excitação e de representação: Freud conseguiu construir um edifício ao gosto da psicolo­ gia clássica. Mas não está de acordo em todos os pontos com essa psicologia. Pois, por ter feito descobertas, vê-se forçado a ampliar os quadros clássicos. Por essa razão, foi obrigado a supor um conjunto de processos na origem do sonho, sem possibilidade de atribuí-los à consciência. Ora, atribuindo-os a outras ins­ tâncias, as formações psicológicas terminam antes que intervenha a consciên­ cia. O que sobra a ela? Tendo explicado tudo por meio desses processos sem que, em momento algum, houvesse necessidade de intervenção da consciência, o fato de tomar-se consciente não pode ser, para Freud, mais que uma simples qualidade. “Que função conserva em nossa concepção a consciência outrora todo-po­ derosa e que encobria e escondia todos os outros fenômenos? Ela não é mais que um órgão dos sentidos que permite perceber as qualidades psíquicas" (p. 602). A analogia é levada ao extremo. “Vemos que a percepção por nossos ór­ gãos dos sentidos tem por conseqüéncia dirigir uma ocupação de atenção para as vias onde se propaga a excitação sensorial; a excitação qualitativa do sistema perceptivo serve para regularizar o fluxo da quantidade móvel no aparelho psí­ quico. Podemos atribuir a mesma função ao órgão sensorial superior da cons­ ciência. Ao perceber novas qualidades, ele dirige e reparte as quantidades móveis de ocupação" (p. 603). VII Um m undo novo decorre dessas explicações: o universo do “psíquico". Ele tem uma forma de existência diferente da que é própria ao mundo exterior, mas é, todavia, real e exterior à consciência. Assim como a percepção sensível revela-nos o m undo exterior da matéria, assim também a percepção superior da consciência revela-nos o mundo exterior do psíquico. Mas assim como os sentidos são limitados em número, também a consciência só dispõe de poucos “receptores”. Pois “os processos dos sistemas, inclusive os do pré-consciente, carecem de qualidades psíquicas e, por isso, não podem aparecer como um ob­ jeto à consciência senão na medida em que se oferecem à sua percepção do agradável ou do desagradável” (p. 565). Mas isso só vale para o pensamento, pois a consciência tem tudo o que precisa para receber as sensações. “Mas no decorrer da evolução, para obter atividades mais delicadas, é pre­ ciso tornar a marcha das representações mais independente dos sinais do desa-

CRmCA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA 12?

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) gradável. Para isso, é necessário que o sistema pré-consciente tenha qualidades próprias que possam atrair a consciência; adquire-os, provavelmente, ligando seus processos ao sistema das lembranças dos sinais da linguagem que, para ele, é provido de qualidades. Graças às qualidades desse sistema, a consciência que, até aí, só possuía o órgão de sentido das percepções, torna-se também o órgão de sentido de uma parte dos nossos processos de pensamento. A partir desse momento, passava a ter duas superfícies sensoriais, uma voltada para a percepção, a outra para os processos inconscientes de pensamento”60 (p. 565).

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Eis que existe todo um m undo psíquico, com um devir, “processos” suige­ neris dos quais a consciência pouca coisa percebe. Eis também por que, para Freud, a psicologia nos leva a um a metapsicologia, assim como o aprofundamento do problema da percepção em certa direção leva à metafísica. E eis também o aparelho psíquico, engenhoso e espantoso. Mas tem um defeito: é condenado à inércia.

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Estamos diante de uma sucessão de sistemas ou de uma sucessão de pro­ cessos impessoais, de processos em terceira pessoa: desejos inconscientes, elabo­ rações pré-conscientes, percepção seletiva pela consciência; deslocações de intensidade e alteração de ocupação... Seria bom se o sistema pudesse funcionar. Ora, só poderia se houvesse aí, para usar um termo de comparação caro a Freud, um microscópio. A luz faria funcionar os diversos sistemas. Ao desejo cabe esse papel no aparelho psíquico. Ora, o aparelho psíquico não é um siste­ ma material; se é aparelho, é precisamente aparelho psíquico. Para poder fun­ cionar, ele precisa do ato do “eu”, mas esse ato é precisamente excluído do sistema freudiano.

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De fato, os desejos inconscientes nascem e desenvolvem-se, ligam-se às formações pré-conscientes, a consciência os percebe, mas em m omento algum há intervenção de uma atividade em primeira pessoa, de um ato com forma humana e comportando o “eu”. Poder-se-ia dizer que o ato do “eu” é dado pre­ cisamente pelo desejo. Mas esse desejo é submetido a transformações que dei­ xam de ser atos do “eu”. De qualquer modo, os sistemas excessivamente autónomos rompem a continuidade do “eu”, e o automatismo dos processos de transformação e de elaboração exclui sua atividade.

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60 Cf. também: Das lch und das Es, p. 19ss.

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Todavia, apesar dessas críticas que tornam as construções freudianas ina­ ceitáveis pela psicologia concreta, o capítulo “Psicologia dos processos do so­ nho” contém algo de muito significativo. Não fazemos alusão a essas modificações a que Freud submete as noções clássicas que introduz em suas construções. Mas é preciso notar que ele ultra­ passa muito, qualquer que seja sua linguagem, a psicologia clássica. Esta, em se tratando dos “processos mentais”, só conhece a associação das idéias e sua crí­ tica, por um lado, e, por outro, o que a lógica nos informa sobre as funções in­ telectuais. Se acrescentarmos a isso os esquemas “fluidos”, em moda neste momento, teremos feito o inventário de todos os “processos mentais” reconhe­ cidos pela psicologia. Foi Freud que, pela primeira vez, tentou introduzir algo novo e exato nes­ se domínio. Descobre certo número de processos novos que, qualquer que seja a linguagem pela qual nos expressemos, têm uma significação real e, com a re­ gressão, o deslocamento e a condensação, a psicologia sai ao menos, pela pri­ meira vez, dos lugares-comuns do associacionismo, da lógica e das profissões de fé dinamistas. Mas, tão logo se tenha feito justiça a Freud, não há razão para esconder que suas construções teóricas, tais como são hoje, são incompatíveis, precisa­ mente, com a psicologia concreta de que teria sido o fundador. Só que a de­ monstração desse conflito perpétuo entre a inspiração fundamental e a superestrutura teórica que caracteriza a psicanálise atual é completamente di­ ferente da vulgar censura de intelectualismo. Pois o problema trazido pelos er­ ros de Freud ultrapassa as briguinhas domésticas da psicologia clássica, e os procedimentos que estão na base das teorias freudianas não são apenas proce­ dimentos intelectualistas: são comuns a toda uma orientação da psicologia à qual pertencem os intelectualistas e seus adversários. Eis por que não se deve ver nas análises que precedem um levantamento dos erros pessoais de Freud. Seria limitar arbitrariamente o alcance das nossas conclusões e perder o beneficio do ensinamento que derivam, precisamente, das especulações freudianas que qualificamos de erróneas. Pois os erros a que nos referimos decorrem de uma necessidade que ultrapassa a ordem de grande­ za das deficiências individuais. A tentativa teórica de Freud era inevitável, era a primeira que se impunha após a descoberta do ponto de vista concreto. Além do mais, era necessário, para a própria compreensão da essência da psicologia clássica, que os seus procedimentos fossem aplicados a fatos que, oriundos de uma atitude diametralmente oposta, não lhes desse mais vez. Pois sendo pura-

CRÍHCA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA Ш

mente verbal a redução dos fatos concretos às teorias abstratas, só podemos enumerar os esquemas e as exigências clássicas cuja lista entregamos à crítica. Pode-se avaliar, todavia, que enterramos muito cedo as teorias psicanalíticas não procurando nelas senão um ensinamento puramente negativo, e que, nesse ponto de vista, nossas afirmações não são suficientemente comprovadas pelo capítulo precedente. Pois tudo o que mostramos até aqui é o contraste en­ tre o concreto e o abstrato nas teorias que examinamos, mas seja qual for essa oposição, é incontestável que os fatos descobertos por Freud exigem uma expli­ cação psicológica. Ora, se nos situarmos nesse ponto de vista, não podemos dis­ simular a nós mesmos que todos esses fatos nos orientam para o inconsciente. Então, é um ou outro: ou nos inclinamos diante dos fatos e admitimos o incons­ ciente — e as críticas precedentes passam a se referir apenas às fórmulas, não às teorias, e, por referirem-se apenas ao “estilo”, perdem todo interesse —; ou con­ sidera-se que as críticas em questão atingem o próprio fundo, não só as formas. Neste caso, é preciso ir até o fim e negar o inconsciente, e, com ele, os fatos psi­ cológicos que o provam — o que nos tiraria o benefício de tudo o que dissemos da psicologia concreta e, conseqüentemente, o direito a qualquer crítica. Está aí um dilema cuja chave é dada pela idéia que fazemos das relações entre o inconsciente e a psicanálise, e que exprime a inquietude gerada por nos­ sas observações. Essa inquietude não resiste a uma leitura atenta deste capítulo e o dilema mostra-se essencialmente frágil, mas a seriedade do problema exige uma explicação franca.

130 Capítulo Três

A hipótese do inconsciente e a psicologia concreta No capítulo anterior, mostramos a maneira como Freud é levado a intro­ duzir na teoría do sonho a hipótese do inconsciente, e logo indicamos que essa introdução resulta da persistência, no interior da teoria freudiana, das exigên­ cias e dos procedimentos fundamentais da psicologia abstrata. Essas indicações poderiam ser suficientes para a compreensão de que a hipótese do inconsciente não significa para a psicologia essa grande conquista que habitualmente se vê, e que, por outro lado, a novidade e a originalidade da psicanálise não podem re­ sidir na descoberta e na exploração do inconsciente, pois, em certo sentido, o inconsciente só representa na psicanálise a medida da abstração que sobrevive no interior da psicologia concreta. Mas basta enunciar essas idéias para que elas provoquem imediatamente nos psicólogos uma contradição pelo menos tão violenta quanto as provocadas outrora pela introdução do inconsciente. Pois, desde o final do século XIX, os psicólogos tomaram por hábito considerar o reconhecimento do inconsciente como uma das vitórias mais importantes da nova psicologia e parece, agora, graças a essa convicção, que não se poderia abandonar essa noção sem retomar às velharias da psicologia intelectualista. Para destruir idéias tão profundamente instaladas no espírito dos psicólo­ gos, as observações do capítulo anterior não são suficientes, pois não passam de notas marginais aos textos de Freud e não constituem uma análise sistemá­ tica do problema. Portanto, faz-se necessário retomar a questão, a fim de mos­ trar de maneira metódica, e independentemente do rumo das idéias de Freud, a ligação essencial entre o inconsciente e os procedimentos fundamentais da psicologia abstrata. É evidente, de acordo com o que acabamos de dizer, que semelhante de­ monstração não pode produzir a convicção se não conseguir mostrar, também,

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOtOGIA 131

que a condenação do inconsciente não significa o retorno à afirmação da exclu­ sividade da consciência. Caso contrário, a ameaça de retorno a essa tese da qual os psicólogos conservaram má lembrança sempre permitirá levantar, contra qualquer crítica do inconsciente, a questão prévia. A primeira parte da de­ monstração deve completar-se, portanto, por uma Segunda, cujo objetivo será mostrar que a psicologia não está de forma alguma fechada entre as duas possihilidades clássicas e que, consecuentemente, a condenação do inconsciente não significa a volta à consciência.,

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Na verdade, cabe uma única demonstração, pois é suficiente mostrar que o inconsciente implica a abstração para que a psicologia concreta se veja situa­ da, precisamente pela sua orientação concreta, num plano onde a oposição clássica não tem mais interesse. )

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Eis o tema do presente capítulo. Não se trata de empreender um exame completo do problema do inconsciente; semelhante exame, que traz necessa­ riamente o problema da consciência, ultrapassa os limites do presente estudo61 Eis por que abordamos o problema só sob esse aspecto particular que acabamos de apresentar. Por outro lado, mesmo obrigado a constatar que nossa crítica do inconsciente levanta problemas m uito importantes para a psicanálise, somos forçados a resistir à tentação de dar-lhes uma solução. O abandono do incons­ ciente levanta o problema da revisão das noções fundamentais da psicanálise — mas o fato de sermos levados a reconsiderar a forma atual de noções clássi­ cas como a censura e o recalque não nos obriga a encontrar uma nova solução. Essa é tarefa para os técnicos; só eles podem saber o que os fatos por eles conheeidos são capazes de ensinar se forem considerados do ponto de vista concreto. A crítica não pode e não deve ultrapassar a demonstração da necessidade dessa nova orientação.

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Diante do prestígio gozado pelo inconsciente, os psicólogos acreditam pia­ mente que, nos fatos habitualmente citados como provas do inconsciente, este aparece de forma tão direta e tão imediata que é mais apropriado falar de cons­ tatação que de hipótese. Se assim fosse, se o inconsciente fosse realmente uma constatação, ou pelos menos, uma hipótese escrita nos fatos e, conseqüente-

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61 As análises deste capítulo prosseguirão nos tom os II e III dos Matériaux e serão retom adas de forma sistemática n o Essai Critique sur les Fondements de la Psychologic.

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Capítulo Quatro

mente, irresistível, não teríamos nada a dizer. Inversamente, enquanto essa crença subsistir, podemos desconfiar, com razão, de qualquer crítica do incons­ ciente. Hs por que é indispensável mostrar, por uma explanação tão geral quanto possível, que há entre os fatos, por um lado, e a noção de inconsciente, por outro, uma distância assaz grande para que seja possível falar de deformação e levantar a seguir o problema da legitimidade desta. Em outros termos, é preciso começar por mostrar rapidamente que os fatos citados como provas do incons­ ciente só passam a ser assim graças a um certo número de procedimentos e exi­ gências que são, precisamente, as que constituem a abstração. O ponto de partida da hipótese do inconsciente é dado pelo fato de que o relatório que o sujeito pode dar do seu pensamento, por um lado, e seu pensa­ mento completo no mesmo momento, por outro, não são, em certos casos, equiva­ lentes; em outros termos, o sujeito pensa mais que acredita pensar, e seu saber confessado só representa um fragmento de seu saber verdadeiro. E a esse esque­ ma geral que se reduzem os casos que parecem forçar a introdução da hipótese do inconsciente, e quando Freud fala do inconsciente a respeito do sonho, está apenas pondo essa adequação em evidência. O sujeito sabe mais do que pensa saber; declara primeiro não conhecer o sentido do sonho, mas no decorrer da análise é ele quem fornece todos os elementos necessários à sua compreensão e há, assim, um distanciamento entre seu saber aparente e seu saber real, e como esse saber real é tão pensamento quanto o saber aparente, embora continue "oculto” ao sujeito, parece legítimo admitir, com Freud, uma “modificação da terminologia”, e dizer, "em vez de oculto, inacessível, (...) dando a descrição exa­ ta da coisa, inacessível à consciência do sonhador, ou inconsciente”.62 Portanto, o inconsciente parece ser, no caso do sonho, apenas um a ma­ neira legítima de expressar um fato incontestável. O fato é o contraste em quem sonha entre a ignorância aparente e o saber “latente” a respeito do senti­ do do seu sonho. Mas de que maneira, exatamente, chegou-se à constatação desse fato? Trata-se, primeiro, de descrever a atitude do sujeito em face de seu sonho. O sonhador começa por dar um relato descritivo do sonho; conta o que sonhou. Pode depois declarar o sonho absurdo ou revoltante, ou achá-lo “bonito”, mas é visível que o sentido do sonho lhe escapa. Só que, a ignorância que se quer constatar aqui não é uma ignorância vaga, como a que posso ter diante de um 62 Vorksungen über den Traum, Viena, 1922, p. 117.

CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA Ш

texto escrito numa língua que me é totalm ente desconhecida, mas uma igno­ rância determinada, a ignorância de algo que eu poderia e deveria saber, enfim, a ignorância do conteúdo latente. Com efeito, a ignorância do sentido do sonho para o sonhador só adquire sua significação após a análise; sua constatação só resulta da comparação de dois relatos, o do conteúdo manifesto e o do conteúdo latente. O conteúdo manifesto mostra-me o que havia na consciência e o conteú­ do latente o que havia realmente no sonho; em outros termos, o primeiro mostra-me o pensamento consciente do sujeito, enquanto o segundo mostra-me o pensamento todo. A proposição de que o sujeito ignora o sentido do sonho signi­ fica, portanto, que o sujeito ignora um pensamento que é verdadeiramente dele e que está nele atualmente, e então essa ignorância prova precisamente que nem todo pensamento é consciente. Mas vê-se também que a ignorância do sentido do sonho por quem sonha só prova a existência do inconsciente se for o pensamento atualmente real que transborda do pensamento consciente. Ora, a existência desse pensamento que ultrapassa o conteúdo manifesto do sonho só nos é revelada pelo conteúdo la­ tente e este só nos revela um “pensamento” à medida que o realizamos. Conseqüentementq a ignorância só é uma prova do inconsciente puando con­ siderada pela ótica do realismo, isto é, unicamente porque não a consideramos como uma privação pura e simples — pois, nesse caso, não poderia provar pre­ sença alguma sob qualquer forma que fosse —, mas como relativa a uma au­ sência que não interessa ao psíquico todo, mas somente ao psíquico consciente. Deve-se subentender que o que é ignorado existe também real­ mente, mas, como não é consciente, deve ser inconsciente. Desse modo, a ig­ norância do sentido do sonho por quem sonha não é, considerada em si mesma, uma prova do inconsciente, só se torna “prova” indiretamente e graças à exigência realista. O mesmo acontece com todas as provas do inconsciente latente citadas por Freud: para as lembranças inconscientes e para o inconsciente do saber dos hipnotizados. “A experiência mostra”, diz Freud, “que um elemento psíquico, isto é, uma representação, não é ordinariamente consciente de uma maneira durável. O que é mais característico é o desaparecimento rápido da consciência; a representação consciente atualmente não o é mais no instante seguinte, mas pode voltar a sê-lo novamente em certas condições facilmente realizáveis. Contudo, nesse meio

134 Capítulo Quatro

) tempo ela o foi, não se sabe o quê; podemos dizer que era latente, querendo dizer com isso que era, a cada instante, suscetível de tornar-se consciente. Da mesma for­ ma, dizendo que era inconsciente, damos uma descrição exata do fato.”® É claro que a disponibilidade da lembrança só prova um inconsciente la­ tente se a lembrança for real antes da sua realização consciente, isto é, entre o momento do seu desaparecimento e aquele em que reaparece. Assim, sua dis­ ponibilidade não prova a sua “latência” mediatamente, só a prova na ótica do realismo, pois é preciso que as lembranças sobrevivam a seu desaparecimento para poder dizer depois que sua reaparição é apenas uma atualização; em suma, a disponibilidade das lembranças não é, tampouco, a prova imediata de um in­ consciente latente, pois só impõe essa hipótese graças à exigência realista.

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No que se refere à inconsciência no hipnotizado, eis o que Freud diz:

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“Assistindo no ano de 1889, em Nancy, às demonstrações singularmente impressionantes de Liébeault e de Bernheim, fui também testemunha da se­ guinte experiência: um homem que havia sido mergulhado num estado sonambúlico, e a quem se fez sentir de modo alucinatório tudo o que é possível, pareceu, depois de acordado, tudo ignorar do seu sono hipnótico. Bernheim or­ denou-lhe, então, que contasse o que lhe aconteceu durante a hipnose, O su­ jeito afirmou não se lembrar. Mas Bernheim insistiu, pressionou o homem, assegurou-lhe que se lembrava, e eis que o homem tomou-se hesitante, come­ çou a refazer-se, lembrou-se, primeiro obscuramente de uma das impressões que lhe havia sido sugerida, depois de outra — a lembrança tornou-se sempre mais completa e foi finalmente externada sem lacunas. Mas como esse saber só lhe apareceu posteriormente, e como não pôde nesse meio tempo adquiri-lo de nenhuma fonte exterior, é legítimo concluir que tinha conhecimento ante­ rior dessas lembranças. Só que lhe eram inacessíveis, não sabia que as conhecia e acreditava não conhecê-las. A situação é, portanto, exatamente a mesma que aquela que supúnhamos no caso do sonhado.”6364

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Em outros termos, há distanciamento entre duas atitudes sucessivas do sujeito que declara inicialmente não conhecer o conhecimento que consegui­ rá mais tarde por si mesmo; portanto, é manifesto que o sujeito não é privado da lembrança em questão, pois é capaz de lembrá-la e que ele, de fato, apenas

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63 Das Ich und das Es, Viena, 1923, p. 10.

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64 Vorksungen über den Traum, Viena, 1922, pp. 104-105.

) CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA Ш

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ignora a extensão do seu saber: então, sua ignorância comparada com seu conhe­ cimento prova a existência do inconsciente.

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Mas, de novo, a ignorância em questão só é prova do inconsciente se o sa­ ber que o sujeito tem apenas na segunda atitude já for real na primeira; a igno­ rância não revela, então, uma ausência pura e simples, mas uma ausência relativa, ausência da consciência e presença no inconsciente, e é novamente mediante o realismo que a ignorância do hipnotizado passa a ser prova do in­ consciente: o relato dado na segunda atitude teve aqui o mesmo papel que o conteúdo latente no caso do sonho.

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A ignorância do sentido do sonho pelo sonhador, a disponibilidade das lembranças, a desproporção entre a extensão aparente e a extensão real da me­ mória pós-hipnótica não são propriamente provas do inconsciente; elas não impõem o inconsciente diretamente e só tom am legítima sua introdução graças ao realismo. Portanto, o inconsciente, aqui, não é dado pelos fatos puros e sim­ ples, mas pelos fatos deformados, no sentido de procedimentos constitutivos da psicologia clássica. Os psicanalistas alegam: diga-se o que se disser do inconsciente latente, isso não tem importância, pois, se Freud fala dele, é para mostrar que a introdução da noção de inconsciente já se impõe ao exame dos fatos independentemente da psicanálise. Trata-se, por um lado, de preparar o espírito do leitor ao uso amplo que a psicanálise faz dessa noção e, por outro, de impedir a sua utiliza­ ção para levantar, mais um vez, a questão prévia contra os fatos psicanalíticos. Aliás, Freud deixa expressamente o inconsciente latente às discussões dos “filósofos”. Imediatamente após o texto a respeito da disponibilidade das lem­ branças, acrescenta: “Os filósofos objetarão, sem dúvida: o termo inconsciente não tem signi­ ficação aqui; enquanto a representação estava no estado de latência, nada pos­ suía de psíquica. Se quiséssemos contradizê-los nesse ponto, entraríamos num briga verbal na qual nada teríamos a ganhar.”65 O fato é que o inconsciente la/ tente pouco importa para os psicanalistas: “E por outro caminho”, diz Freud no mesmo lugar, “que chegamos à noção de inconsciente, a saber, pela elabo­ ração de fatos em que atua a dinâmica psíquica.”66

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® Das Ich und das Es, Viena, 1923, pp. 10-11.

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Of>. crt., p. 11.

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Ш Capítulo Quatro

II “A experiência revelou”, diz Freud,67 “quer dizer que fomos obrigados a supor a existência de processos psicológicos ou de representações muito inten­ sas (...) que podem exercer sobre a vida mental todos os efeitos das representa­ ções ordinárias, inclusive efeitos que podem, por sua vez, tomar-se conscientes sob forma de representação, mas que permanecem inconscientes.” É aí que in­ tervém a teoria psicanalítica para afirmar que representações desse tipo não podem ser conscientes, porque uma certa força opõe-se a elas, que sem isso elas poderiam tomar-se conscientes e que poderíamos ver, então, como elas dife­ rem pouco de outros elementos psíquicos reconhecidos como tais. Essa teoria faz-se irrefutável pelo próprio fato de que a técnica psicanalítica nos deu os meios de vencer a força de resistência e tornar conscientes as representações em foco. Chamamos recalque o estado em que se encontram as representações antes de se tornarem conscientes; enquanto a força que produziu o recalque e que o mantivera apresenta-se a nós, durante o trabalho analítico, como resis­ tência. “Portanto, nossa concepção do inconsciente deriva da teoria do recalque. É o recalcado que é para nós o modelo do inconsciente.” O inconsciente propriamente analítico não é o inconsciente que é sim­ plesmente sombra — isto é, o inconsciente “latente” —, mas o inconsciente vi­ vo, atuante, numa palavra: o inconsciente “dinâmico” que somos obrigados a admitir, tendo em vista a resistência e o recalque. Eis a maneira como o argumento costuma ser articulado: O ponto de partida é dado pela resistência. Durante a análise, o sujeito re­ siste a certos pensamentos. Nega ter desejos homossexuais ou incestuosos quando a presença desses desejos é clara no sonho. É preciso notar de saída que não se trata simplesmente de evitar a confissão pública de algo que se sabe, pois a verdadeira resistência é anterior ao saber: o sujeito resiste precisamente antes do próprio saber, tudo faz para que a análise não o encaminhe para lá: começa por declarar que nada lhe ocorre, objeta, depois, contra o método psicanalítico, qualifica-o de fantasista etc., mas como tudo isso acontece antes do apareci­ mento de um pensamento ou de uma lembrança penosa, é legítimo ver nisso a resistência. Tudo se passa então, “diz” Freud, como se o sujeito quisesse fechar a entrada da consciência a uma representação condenada. Portanto, durante a análi-

67 Das Ich und das Es, pp. 11-12.

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se, a resistência revela a existência de um a força que recusa a certos estados psí­ quicos a entrada na consciência. Mas não há razão nenhuma para supor que a resistência seja algo improvisado, sendo que a condenação do estado psíquico ao qual se resiste é anterior à análise, que resulte quer de um juízo de valor de origem social, quer de acontecimentos individuais muito anteriores à análise. Nessas condições, a resistência durante a análise é apenas a manifestação de uma resistência exercida em toda a vida de maneira contínua e que, numa pa­ lavra, é uma força constante. Ora, as representações às quais se resiste são reais mesmo quando a resis­ tência as impede de vir à consciência. A primeira prova é que "encontramos na técnica psicanalítica os meios de vencer a força de resistência e tom ar consci­ entes as representações”.68 Freud diz mesmo que é por aí que a teoria que afir­ ma a existência dessas representações, por assim dizer, do outro lado da resistência, se toma “irrefutável” (ibid.). Fica claro que se houvesse só isso serí­ amos levados, simplesmente, a uma deformação parecida com aquela que traz o inconsciente latente. De fato, a prova mais séria é que, mesmo do outro lado da resistência e anteriormente ao seu surgimento, a existência das representações em questão revelase a nós pela sua ação. Portanto, a verdadeira prova do inconsciente reside no fato de que estados psíquicos não conscientes têm efeitos conscientes. O efeito real requer uma causa real, e assim faz-se necessário introduzir a noção de inconsciente. De qualquer modo, o inconsciente que pode ser provado “experimentalmente” é o inconsciente dinâmico. O inconsciente latente poderá aproveitar-se da verdade do inconsciente dinâmico, mas que ele só poderá ser revertido em sua ordem verdadeira se por razões “pedagógicas”. Desta vez, iríamos nos encontrar ante um fato ou grupo de fatos cuja constatação é independente da hipótese que queremos provar por meio deles e assistiríamos à génese empírica da noção de inconsciente: nossas afirmações precedentes válidas para o inconsciente latente não o seriam mais em relação ao inconsciente dinâmico. Mas, não é assim. O fato citado como prova do inconsciente dinâmico comporta-se como as provas do inconsciente latente: só prova o inconsciente pela exigência realista.

Das Ich und das Es, p. 11.

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Com efeito, que significa a proposição de acordo com a qual uma repre­ sentação em si inconsciente pode ter efeitos conscientes? Tomemos um exemplo concreto. No sonho da injeção aplicada em Irma, “Irma está com dor de garganta” sig­ nifica “desejo um erro de diagnóstico”. Ora, só há “explicação”, inicialmente, no plano das significações, pois estamos diante de uma explicação de texto, ou me­ lhor, diante da análise de uma cena dramática. Então, o desejo do erro de diagnós­ tico explica a dor de garganta, de mesma forma que o termo latino “pater” explica o termo francês “père”,69 ou que o ciúme explica o gesto de Otelo. Para que a tradução possa transformar-se numa relação de causa/efeito, é preciso re­ alizar os dois conteúdos. Então, “dor de garganta” passará a ser “imagem” e “erro de diagnóstico” será “representação”, e o fato do sentido da “representação” co­ mandar a presença da “imagem” será traduzido no plano “ontológico” fazendo da primeira a causa e, da segunda, o efeito. Assim, a prova do inconsciente dinâmico resulta essencialmente da com­ paração do conteúdo manifesto e do conteúdo latente. O que se constata po­ sitivamente é que uma intenção significativa fez-se representar por um signo imprevisto e que seu signo adequado é de natureza totalmente diferente. En­ quanto se permanece no plano da significação, essa constatação não prova o inconsciente. Conseqüentemente, a afirmação de que uma representação em si inconsciente tenha efeitos conscientes só é a transposição em termos “onto­ lógicos” da adoção, pelo segundo relato, do termo “representação” para o signo adequado do sentido de um ou muitos elementos do sonho. Só depois que se admite cjue a relação "lingüística"ou "cênica"deve transformar­ se imediatamente em relação causal e que o conteúdo latente deve existir tão atualmen­ te como o conteúdo manifesto, só então é que a inadequação dos elementos do sonho às intenções significativas deste passará a ser uma revelação da existência no além psí­ quico de uma representação. Em geral, só a exigência realista transforma os fatos em prova do inconscien­ te, quer se trate da memória, da hipnose ou dos fatos psicanalíticos. Ao realismo é preciso acrescentar o formalismo funcional.70 Pois, se a exi­ gência realista pode parecer natural a ponto de criar, ao introduzir a noção de

69 Em português, “pai”. (NRT) 70 Indicar o papel do formalismo funcional na deformação dos fatos, que passam a ser, assim, provas do inconsciente, não é senão um a brincadeira, após o que dissemos no capítulo III. Só desenvolvemos este ponto para maior clareza.

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inconsciente, a impressão de só obedecer aos fatos, é que esses últimos já são apresentados de maneira que, a partir dessa representação, o procedimento rea­ lista e, em decorrência, a hipótese do inconsciente pareçam inevitáveis. Se a noção de censura nos parece tão plausível, é que o fato da resistência apresenta-se logo cm termos de segundo relato. O sujeito tem muitas dificuldades para abordar certos temas que, depois, se revelam essencialmente significati­ vos. Após ter feito algumas “associações”, ele começa por dizer que nada lhe vem à memória, que não tem mais nada a dizer. Se insistirmos, dirá que acaba de ter algumas idéias, mas sem importância alguma. Diante de mais insistên­ cia, ele inicia, com sorriso irónico, um a discussão sobre a psicanálise. Procura desarmar o analista dizendo, por exemplo, que ele, com toda evidência, quali­ ficará tudo isso de resistência, mas trata-se de afirmações arbitrárias etc. Se conseguirmos decidi-lo a investigar, com o analista, se tudo isso é realmente re­ sistência e a continuar suas associações com esse objetivo, veremos aparecer uma idéia que o sujeito só confessa com enorme dificuldade; por exemplo, que ele tem um desejo incestuoso, nitidamente caracterizado etc. Eis o fato da resistência. O que é dado aí é um relato contendo materiais que permitem esclarecer a atitude do sujeito. Com isso, não deixamos ainda o plano das significações e não levantamos hipótese alguma. Só que, em vez de ficar com a significação, o realismo procura uma entidade psíquica para realizar; diz-se então que o sujeito resistiu à idéia de incesto, e o segundo relato diz ime­ diatamente: resistência a uma representação. E do fato apresentado dessa forma que partirão a seguir todas as especulações psicológicas. O formalismo substitui ¡mediatamente o drama pessoal por um drama em terceira pessoa em que os atores são os elementos; o drama todo desce então ao nível destes, e o fato é enunciado, finalmente, da seguinte maneira: a entrada da consciência é recusada a uma representação. Como, por outro lado, o sujeito resiste precisamente às representações que explicam o sentido do sonho, poderemos dizer que a cena apresentada du­ rante a constituição do sonho é exatamente a mesma, que também aí as repre­ sentações apresentaram-se à porta da consciência, mas que a entrada lhes foi recusada e, assim, pelo simples desenrolar do formalismo, somos levados à no­ ção de censura e, com ela, a toda a mitologia freudiana dos processos e das ins­ tâncias. É claro que, para apresentá-la sob a forma de uma resistência a uma repre­ sentação, é preciso elaborar uma descrição formal dessa resistência, tal como pode ser descrita no plano das constatações cotidianas e, a partir dessa descri-

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Capítulo Quatro

ção, converter as significações em entidades psíquicas, transformando os m ate­ riais que esclarecem a atitude do sujeito num pequeno drama com esquema mecânico. Ora, essa maneira de conceber a resistência desequilibra, de certa forma, o próprio fato. Pois o realismo associado ao formalismo obriga Freud a acentuar os termos do relato em vez da sua significação e a ver neles o fator verdadeira­ mente “dinâmico'’, quando, na realidade, esse fator dinâmico encontra-se em outro lugar. Assim, a descrição freudiana da resistência não é uma constatação, mas uma hipótese e, como tal, pode e deve ser criticada. De fato, afirmar que o sujeito ofereceu dificuldades para confessar que tinha pensamentos incestuosos e di­ zer que resistiu à idéia de incesto não é, de forma alguma, a mesma coisa, pois no primeiro caso trata-se de uma simples constatação “humana” e, no segun­ do, de uma descrição psicológica implicando realismo e ponto de vista formal. III Por essa revisão geral dos fatos citados por Freud como provas do incons­ ciente, quisemos mostrar que, se os fatos mencionados levam ao inconsciente, é apenas por causa de uma deformação devida à associação do realismo e do formalismo. Decorre logo que não são os fatos em si, tais como podem ser constatados “humanamente”, que geram a hipótese do inconsciente, mas uma interpretação desses fatos conforme o ponto de vista da abstração. Essa constatação que a legitimidade de um a crítica do inconsciente supõe não nos dá ainda informação alguma quanto à sua génese. Ora, o desenvolvi­ mento da abstração só chega ao inconsciente em determinados casos. É neces­ sário, portanto, mostrar a maneira exata como o realismo chega a gerar a hipótese do inconsciente. Vimos que o primeiro ato do realismo é a transformação do relato signi­ ficativo num conjunto de realidades psicológicas. Uma vez efetuada essa reali­ zação, o relato é “imobilizado”, no sentido de que seu valor significativo não está mais em jogo e que passa simplesmente a ser o ponto de partida de um segundo relato feito no espírito do formalismo funcional. Há aí, como expliquei acima, um desdobramento do relato significativo: as­ senta-se o plano das significações num outro plano, que é o das entidades psí­ quicas. Indicamos na mesma ocasião que o desdobramento nada trazia de novo. Que o relato mantenha-se como significativo, que seja imobilizado ou desdobrado; o único dado positivo restringe-se à significação: a ilusão de que o desdobramento traz algo novo vem exclusivamente do fato de que, um a vez

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completado o desdobramento, os termos do relato significativo passam a ser os temas de um novo relato, que é o segundo relato. Ora, exatamente porque, apesar do desdobramento, o único dado real é constituído pelo próprio relato significativo, e porque só se gira em tom o des­ ses termos, nada impede que se volte das entidades às significações, isto é, que se abandone a dialética do segundo relato para retomar a do relato significativo. Dessa maneira, tem-se a impressão de estar descrevendo realidades que perma­ necem sempre presentes durante a análise e às quais se pode, por assim dizer, dar a volta. Exprime-se esse fato dizendo que as entidades psicológicas em questão são conscientes. Como estamos em presença de um desdobramento puro e simples, a afir­ mação de que tal ou qual fato psicológico é "consciente"significa apenas que o realismo trabalhou sobre um relato efetivamente dado pelo sujeito. Em outros termos, dizer que um fato psicológico é “consciente" é apenas a tradução realista do fato de que o sujeito fez efetivamente um relato determinado no momento em que a realização aconteceu. Se, por um lado, o realismo pudesse contentar-se com realizar só no relato efetivamente dado pelo sujeito e, por outro lado, efetuar a realização como aca­ bamos de indicar, o problema do inconsciente nunca poderia ser posto. Mas acontece que, em certos casos, o realismo é obrigado a dissociar a dupla constituí­ da pelo relato significativo e seu duplo "ontológico" e, em outros, a postular um relato que não foi dado efetivamente pelo sujeito. O primeiro caso é dado quando o duplo “ontológico" deve ser realizado não somente à parte, mas anteriormente ao próprio relato. E o que se dá com o inconsciente latente. As lembranças que constituem os materiais do relato que faço atualmente não são os únicos de que disponho. Posso parar de repente e pensar na viagem que acabo de fazer. Então, outras lembranças surgirão. Da mesma maneira, posso tomar outras atitudes, implicando lembranças que constituem a matéria de relatos m uito diferentes. Mas no momento, não reali­ zo todos esses relatos; em outros termos, um só grupo de lembranças é atual, os outros são apenas disponíveis. A psicologia clássica apela para a noção de latência precisamente para explicar-essa disponibilidade. Mas como estamos no plano das concepções realistas, é preciso realizar as lembranças em questão como se os relatos fossem atuais; mas como não o são, seremos obrigados a situar o duplo ontológico do relato fora do próprio relato. Obviamente, será impossível reali­ zar esse movimento de vaivém entre as significações e as entidades, o que é pos­ sível quando o realismo trabalha sobre um relato efetivamente dado; será

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) impossível também retomar, à vontade, a dialética do próprio relato; enfim, o resultado da realização será dado, mas o aspecto verdadeiramente real do fato psicológico estará faltando, pois não terá havido relato. E este fato — a saber, que na ausência do relato fomos obrigado a realizá-lo — que é traduzido pela noção de in­ consciente latente.

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Isso pode ser ilustrado por exemplos diferentes da latência das lembran­ ças. Trata-se, na memória pós-hipnótica, de realizar um relato num momento em que não é ainda efetivo. O sujeito é incapaz de prestar conta do que acon­ teceu durante a hipnose; mas sob as fortes injunções do hipnotizador, conse­ gue lembrar-se do essencial. Conclui-se que soube no mesmo momento em que afirmou nada saber, daí a necessidade de realizar o relato anteriormente a sua realidade; dessa maneira, chega-se à hipótese do saber inconsciente.

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E desse modo que o realismo se vê levado, no caso do inconsciente latente, a só expor, dos dois termos que ele expõe quando trabalha um relato efetivo, apenas o segundo, o que resulta do desdobramento. Mas como o realismo é o procedimento arbitrário, as entidades psicológicas que devem representar os duplos "ontológicos” das significações são inteiramente fictícias. Esse caráter fictício do plano ontológico não pode aparecer quando os dois planos coexis­ tem, pois é precisamente a presença efetiva da significação que é interpretada como a presença de entidades psicológicas. Mas quando somos levados, para explicar a disponibilidade das lembranças, por exemplo, a dispensar o termo fictício, o realismo impede os psicólogos de enxergar a ficção e essa, transposta de acordo com o realismo, aparece como “inconsciência”. Enfim, o termo incons­ ciente só é a tradução, por tratar-se de entidades psicológicas puramente fictícias.

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O mesmo se dá em relação ao inconsciente dinâmico, embora o funcio­ namento do realismo seja, neste caso, diferente do que acabamos de ver.

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De fato, o inconsciente não é levado, aqui, pela necessidade de realizar o du­ plo ontológico do relato antes do próprio relato, mas pelo fato de ser levado a postular um relato que não foi efetivamente dado pelo sujeito.

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Tomemos o exemplo do sonho. O sonho tem dois conteúdos: um conteú­ do manifesto e um conteúdo latente Para ser mais exato, o sonho tem um só conteúdo: resulta precisamente da análise o fato dos termos do relato do sonho não terem suas significações convencionais, mas outra significação que não pode ser determinada senão pela análise; a impressão que se tem do sonho pos­ suir dois conteúdos provém unicamente de que se pode tentar diante do sonho a dialética convencional, que é, como se sabe, ineficaz na maioria dos casos.

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De qualquer forma, o resultado da análise é que o sonho constitui um re­ lato distinto do que deveria ter sido se as intenções significativas tivessem usado os signos adequados. Assim, o relato do sonho tal como dado pelo sujeito, em que as intenções significativas estão disfarçadas, deve ser substituido por outro, no qual estas aparecem com seus signos adequados. Do ponto de vista do realismo, a questão é a seguinte: é incontestável que o relato manifesto do sonho deve ser realizado, pois o sonho aconteceu efeti­ vamente. Mas é também necessário realizar o conteúdo latente, porque é ele que dá o verdadeiro pensamento do sonho. Enfim, essas duas realizações de­ vem acontecer simultaneamente, pois o sonho, mesmo que o sujeito só lhe co­ nheça o conteúdo manifesto, já tem a significação que a análise fará mais tarde para atualizar. Encontramo-nos, desta forma, na obrigação de realizar um relato que não é efetivo no momento em que deve ser realizado. Encontramos o esquema que já conhecemos: falta precisamente o que possa garantir a realidade do duplo on­ tológico e dar a ilusão de mover-se em meio a fatos psicológicos que existam verdadeiramente, a saber, o relato efetivo, seremos novamente obrigado a falar de fenômenos inconscientes. Resumindo, a introdução do inconsciente na teoria do sonho resulta do fato de que, ao lado do relato efetivo, pensa-se haver obrigação de realizar-se um outro relato que não é efetivo, mas que se postula em nome da constatação de que o pensamento verdadeiro do sonho exige um relato diferente do relato manifesto. Como com freqúência nada corresponde no relato latente ao relato ma­ nifesto, as entidades que resultarem do desdobramento de primeiro são podem ser inconscientes. Assim é, por exemplo, que Irma está com dor de garganta signi­ fica no “sonho da Injeção aplicada na Irma”: espero que seja um erro de diagnósti­ co. Esse desejo não é nomeado no sonho; portanto, se for realizado, só poderá sê-lo sob a forma de desejo inconsciente.

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IV Não há dúvida de que o inconsciente latente e o inconsciente dinâmico resultam da realização de relatos. Pois, por um lado, as lembranças realmente disponíveis não podem ser reveladas senão pelos relatos de fato realizados, e é desses relatos que se atinge depois, por uma ficção cujo mecanismo é claro, um momento em que as supúnhamos inexistentes, para afirmar, depois, sua latência. Por outro lado, o sentido do sonho só pode ser conhecido quando a análise permite dar o relato do conteúdo latente. Não só, mais uma vez, volta-se atrás

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para realizar o relato, mas ainda volta-se, a partir dele, para explicar a génese do sonho. Ora, nessa explicação, a base de referência é sempre o relato do conteú­ do latente e todos os problemas que Freud levanta na Traumdeutung a respeito da elaboração do sonho resultam de uma simples comparação entre o texto do conteúdo latente e o do conteúdo manifesto. E dessa maneira que a própria du­ alidade do relato revela, inicialmente, o disfarce e a censura; que uma primeira comparação feita do ponto de vista da apresentação dos motivos mostra a con­ densação-, e que a mesma comparação, mas feita do ponto de vista formal, le­ vanta o problema da regressão etc. Portanto, é claro também que o inconsciente dinâmico resulta da realiza­ ção de um relato postulado. Então, o problema verdadeiro não consiste em sa­ ber se houve ou não realização do relato, mas em saber se essa realização se justifica. Se olharmos de perto, o conteúdo latente não é senão o sonho tal como teria sido se, em vez de ter sido sonhado, tivesse sido simplesmente “pensado”. De fato, o conteúdo manifesto é simbólico, as intenções significativas não apa­ recem com seus signos adequados, enquanto o conteúdo latente é o mesmo texto, mas decifrado, quer dizer, dá as mesmas intenções significativas, mas com seus signos adequados. Ora, segundo Freud, a finalidade da análise é refa­ zer o trabalho do sonho em sentido inverso, isto é, remontar do conteúdo manifesto para o conteúdo latente. Conseqüentemente, está claro que essa concepção da análise acaba por atribuir anteriormente ao sonho um pensamento convencional, ex­ pressando o sentido do sonho e dando às intenções significativas seus signos adequados e a partir do qual o pensamento deformou-se por razões que Freud procura indicar com muita engenhosidade. Estamos aqui na presença de um verdadeiro postulado, o postulado da anterioridade do pensamento convencional. É só esse postulado que explica por que Freud se sente obrigado a realizar, anteriormente ao relato manifesto, a significação decifrada de um dos seus ter­ mos, e que faz com que seja obrigado a postular um relato que não ocorreu efe­ tivamente; como sem essa necessidade não há como chegar ao inconsciente dinâmico, encontramos na base dessa noção o postulado da anterioridade do pensamento convencional que constitui, de alguma forma, a força motora do realismo quando chega ao inconsciente. O grande problema é, portanto, o que consiste em saber se o postulado em questão é legítimo ou não. Os freudianos podem alegar essencialmente duas espécies de provas. Pode-se dizer que a diferença essencial entre o pensa­ mento da vigília e o sonho está em que o sonho é simbólico enquanto o pensa-

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mento do sonho não o é. É preciso explicar essa mudança de atitude. Pode-se, depois, pura e simplesmente, pôr em dúvida que o que se realiza seja precisa­ mente o relato convencional do pensamento do sonho, e dizer que só realiza­ mos os fatores “dinâmicos”, os quais atuam no sonho sem aparecer, como, por exemplo, as lembranças da infância que o sujeito utilizou no sonho e as quais ignora, todavia. A respeito do primeiro argumento, enuncia efetivamente o que impressio­ na primeiro no sonho. De onde vem o fato de que, diante de uma formação psi­ cológica, seja preciso recorrer, de repente, à análise em vez de se poder conservar a atitude que assumimos de costume perante relatos? Por que os de­ sejos que o sonho exprime não se nomeiam como fazem de costume, ou por que uma análise é necessária para compreendê-los? Não é prova de que o pen­ samento ordinário disfarçou-se? Somos, então, levados a supor no fundo do símbolo sua significação verdadeira, remontando assim ao texto primitivo. A isso, é preciso acrescentar que o próprio sujeito ignora essa significação verda­ deira, que só chega a ela quando a resistência está vencida e o recalque bloque­ ado, e seremos obrigados a reconhecer a necessidade de admitir o inconsciente dinâmico. Vê-se que o núcleo desse argumento é constituído pelo esquema da tra­ dução. O sonho é o texto original que, tendo em vista a censura e o recalque, só pode aparecer por meio de uma tradução simbólica. Mas algo fica esquecido: é que não é nada necessário que se conceba todo simbolismo conforme o es­ quema da tradução. Talvez seja legítimo conceber na forma de tradução, sobre a forma de disfarce, o simbolismo voluntário e racional. Desse modo, pode-se que­ rer traduzir “idéias” ou “sentimentos” pela pintura ou pela música. Aí, vai-se efetivamente do signo adequado ao símbolo. Dizer, porém, que o sonho proce­ de exatamente da mesma maneira, à diferença de que o signo adequado é in­ consciente, talvez seja uma afirmação apressada. Pois seja o inconsciente o que for, o certo é que o sonho não resulta de um simbolismo voluntário e pensado. A prova é que o sujeito ignora não só a significação dos símbolos do sonho, mas também que há símbolo em geral, e isso, os próprios psicólogos o ignoravam até o advento da psicanálise. Talvez não seja impossível que a simbólica do so­ nho seja, nessas condições, de natureza totalmente distinta. Se, considerarmos o sonho como a realização de um desejo, ele nos parece essencialmente como um cenário. Cenário que tem precisamente a forma do de­ sejo em questão; o sonho segue, por assim dizer, a dialética desse desejo. O mes­ mo acontece se consideramos que o sonho reproduz montagens infantis com I

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Capítulo Quatro

materiais recentes. Ora, para que o arranjo de um certo número de elementos, conforme o cenário do desejo, ou da montagem infantil, possa efetuar-se, não é necessário que o desejo ou a montagem em questão seja, anteriormente ao pró­ prio sonho, o objeto de uma representação distinta para o sujeito, assim como não é necessário pensar que durante uma partida de tênis as regras do jogo ajam “inconscientemente”. Da mesma maneira, é inútil atribuir ao desejo ou à mon­ tagem uma existência psicológica distinta. Pois esse desejo e essa montagem são tirados da análise do relato e representam resultados de abstrações. O que é ver­ dadeiramente real é a significação do relato em si, e se nos limitarmos a essa sig­ nificação não teremos motivo algum para realizar separadamente e no inconsciente o que é implicado como dialética na montagem do sonho. Nessas condições, a simbólica do sonho não é precisamente “o disfarce de um texto primitivo”. O fato é que esses elementos são tomados numa dialética imprevista, uma dialética individual que devemos analisar para ver qual é essa dialética, qual a forma ou a montagem que explica o sonho, e não procurar re­ montar a qualquer “texto original”. Com efeito, estamos diante de duas hipóteses. A freudiana concebe o so­ nho como uma transposição verdadeira que parte de um texto original que o trabalho do sonho deforma; a outra, pelo contrário, vê no sonho o resultado do funcionamento de uma dialética individual. A diferença essencial entre essas duas concepções reside em que o sonho, na primeira, é algo derivado, enquanto na segunda é o fenômeno primeiro que basta a si mesmo. Nessas condições, o sonho não tem dois conteúdos: um latente e um manifesto. Pois, só pode haver um conteúdo manifesto quando se procura interpretá-lo no plano das dialéti­ cas convencionais. Ora, precisamente essas dialéticas são ineficazes no caso do sonho: o sonho não é obra delas, pois explica-se por uma dialética pessoal. Só tem um conteúdo, o que Freud chama de latente. Mas esse conteúdo, o sonho o tem imediatamente, não posteriormente a um disfarce. O simbolismo só parece ser um disfarce quando se substitui a dialética que explica o sonho pelo seu relato e quando se realiza esse relato anteriormente ao próprio sonho. Conseqúentemente, para que a necessidade da realização do conteúdo latente anteriormente ao conteúdo manifesto seja evidente, é preciso dar uma interpretação estática da forma do sonho, isto é, abandonar a significação e realizar o relato. É por isso, por exemplo, que os sonhos se explicam, com freqúência, por uma lembrança da infância. Mas em vez de se conceber essa lembrança da infância do ponto de vista verdadeiramente dinâmico, isto é, como signo de uma montagem ou de um comportamento, considera-se do ponto de vista estático, fazendo dele a

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lembrança que se realiza como algo ao qual são obrigados, depois, a atribuir propriedades e efeitos mecânicos. É assim que se explica, finalmente, a necessidade de introduzir o incons­ ciente. Se se interpreta a lembrança da infância do ponto de vista dinâmico como significando um comportamento ou uma montagem, não se pode dizer que esteja ausente do sonho: está presente como as regras do jogo estão presen­ tes numa partida de tênis. Mas caso se interprete do ponto de vista estático, enquanto lembrança-representação ou lembrança-imagem, isto é, como uma entidade psicológica, ele precisa, então, de um lugar separado, e como não está estaticamente no sonho, somos obrigados a projetá-lo no inconsciente. Desse modo, os fatos em que se assenta o argumento que estamos consi­ derando não podem provar a legitimidade do postulado da anterioridade do pensamento convencional, porque, na realidade, esse postulado é anterior a es­ ses fatos. O simbolismo do sonho só prova esse postulado quando se concebe esse simbolismo como um disfarce, como uma transposição, mas isso supõe uma concepção da elaboração do sonho que considera como base referencial o relato realizado do conteúdo latente, o que implica o postulado em questão. O mesmo acontecè com o segundo grupo de argumentos. Vimos que Freud insiste no fato de que o inconsciente psicanalítico é o inconsciente dinâ­ mico que revela sua existência por uma ação real sobre a consciência, e que a teoria se tom a irrefutável pelo fato de que, uma vez levantada a resistência, os elementos inconscientes passam a ser conscientes. No que se refere à primeira parte do argumento, o fato fundamental em que se assenta é essencialmente a ação das lembranças infantis. A partir do que acabamos de dizer, é fácil mostrar: é graças a um artifício, ou melhor, a uma ilusão, que se pode declarar que, ao se achar a explicação de um sonho numa lembrança de infância, acha-se, realmente, um “fator incons­ ciente que produz efeitos conscientes”. Mas o que quer dizer a afirmação segundo a qual tal lembrança infantil explica tal sonho? Apenas que, na base do sonho, encontra-se uma montagem que é a significação de uma lembrança da infância. Mas dessa mesma consta­ tação resulta que a montagem existente na base da lembrança infantil está pre­ sente no sonho; conseqüentemente, o aparecimento da lembrança não traz a revelação de uma realidade psicológica distinta do próprio sonho, mas permite sim­ plesmente a identificação da montagem atualmente presente no sonho tal como ela é. Dito de outra maneira: ao tomar posse da referida lembrança, não arrancamos o véu que encobria a entidade, mas obtemos uma luz nova, um esclarecimento

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decisivo do problema. Não que nossa visão se tenha deslocado de uma realidade à outra, mas aprofundamos a nossa compreensão com a ajuda de uma nova re­ lação. Se nos transportamos para o plano da abstração, começamos por realizar o sonho manifesto; realizaremos depois a lembrança infantil e faremos dela algo em que a lembrança que há pouco era só instrumento de reconhecimento passe agora a ser a revelação de uma coisa, e será então necessário inventar um esque­ ma mecânico para explicar sua ação e falar da volta à consciência de um fato de que tinha agido inconscientemente. Não se pode interpretar fatos desse gênero como revelação de um incons­ ciente realmente atuante. Mais uma vez, o postulado, intimamente ligado ao realismo, é anterior aos fatos que devem justificá-lo. O exame das provas do postulado da anterioridade do pensamento con­ vencional leva-nos a uma conclusão análoga à que obtivemos pelo exame das provas do inconsciente. Os fatos que são citados como provas desse postulado são apenas os fatos defor­ mados conforme este último. A primeira deformação dos fatos vem da própria maneira como se conce­ be o papel da análise. Na mente de Freud e dos freudianos, a análise é essenci­ almente uma reconstituição, embora o próprio Freud reconheça que nem todos os momentos da análise têm valor histórico. Ora, o fato, tal como é cons­ tatado, é que a análise informa o sujeito algo que antes ele ignorava, por exem­ plo, o sentido do sonho. Mas, replica-se, é o sujeito que sonhou e é ele quem fornece os elementos necessários à interpretação; portanto, ele sabe e, como esse saber não é mani­ festamente disponível, sabe de maneira inconsciente. Mas está havendo aí ou­ tra deformação do fato. O sujeito afirma não conhecer o sentido do sonho. Não se quer aceitar essa afirmação e diz-se que o sujeito sabe. De fato, não se pode acreditar que o sujeito não saiba, pois supõe-se realizado o relato do conteúdo latente, e novamente não são os fatos que provam esse postulado, mas é em nome do postulado que os fatos são deformados. Essa constatação nada tem de surpreendente. Uma vez estabelecido que o postulado é intimamente unido ao realismo e à abstração em geral, é natural que se reconheça nele, não uma constatação empírica, mas um princípio a priori. Teria sido absolutamente inútil insistir nesse ponto se os psicanalistas não ti­ vessem se habituado a apresentar o inconsciente como uma hipótese que os fa­ tos impõem imediatamente.

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V De qualquer modo, agora que parece estabelecido estarmos diante de um postulado no sentido pleno do termo, convém examinar, com um pouco mais de precisão do que fizemos até aqui, a natureza desse postulado. É evidente que, se o sonho e, em geral, os sintomas neuróticos têm algum sentido, o têm no momento em que se produzem; e se o sonho, particularmen­ te, é a satisfação de um desejo, essa satisfação se dá no momento em que é so­ nhado. Desse ponto de vista, portanto, a análise só explica o que o sonho é e o que os sintomas neuróticos são-, como essa explicação se dá essencialmente no plano do relato, pode-se dizer que, neste determinado sentido, a análise faz o ser passar para o plano do relato em primeira pessoa e, desse ponto de vista, o conteúdo latente de um sonho ou de um sintoma neurótico nada mais é que uma descri­ ção, isto é, um relato convencional cujo tema é precisamente uma atitude vivida. Se a análise é necessária, é que o relato do sonho, tal como feito pelo sujeito, não é uma prestação de conta exaustiva do que foi vivido, e se olharmos de perto, o conteúdo manifesto do sonho só contém a montagem “cênica” da atitude real­ mente vivida; o mistério do sonho é constituído, em grande parte, por essa ina­ dequação do relato ao conteúdo verdadeiro da atitude que o constitui: o ser em primeira pessoa contém mais que o relato disponível. Ora, o postulado da anteriori­ dade do pensamento convencional, ao suscitar a realidade do conteúdo latente, só corrige esse estado de coisas, de tal forma que a distância entre o ser em pri­ meira pessoa e o relato desapareça. Pois o conteúdo latente não é senão o relato adequado da atitude vivida e, ao realizá-lo para fazer dele o ponto de partida da explicação da génese e do trabalho do sonho, só se põe como princípio que sem­ pre deve haver um relato adequado ao ser em primeira pessoa. Esse é o sentido verdadeiro do postulado que estamos examinando. Significa, essencialmente, ter por princípio que não se vive mais do que se pensa; em outros termos, todo comportamento supõe um relato adequado de onde ele procede. Eis por que, quando um comportamento é maior que o indicado pelo relato que o acompanha, projeta-se no inconsciente o que falta ao relato para ser adequado. A essência desse pos­ tulado consiste, portanto, em estabelecer que o fato psicológico não pode existir senão sob forma narrativa e, ao dizer que o postulado da significação convencional não passa, na realidade, de postulado do pensamento narrativo, nada mais fizemos, senão enunciar sua verdadeira essência. Pelas observações que precedem, não é difícil detectar o esquema intelectualista na base do postulado que estamos examinando. Pois essa idéia de que todo comportamento supõe um relato adequado de onde procede afirma pre-

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) > cisamente a primazia sobre o ser da representação, e a da atitude reflexiva, isto é, descritiva, sobre a vida. Na realidade, só há aí um a conseqiiência desse fato: que o realismo trabalha sempre, apesar dos seus protestos e tentativas de sutileza, sobre relatos. O próprio postulado nada representa além da generalização e, de alguma forma, a posição absoluta do que se constata nos relatos ordinários. É porque os relatos ordinários são efetivamente descritivos, porque é por meio dos relatos descritivos que a psicologia efetua suas primeiras realizações e fabrica suas entidades fundamentais, que esse tipo de fatos psicológicos é erigido, depois, em tipo universal e que se postula, aí mesmo onde o relato adequado não existe, um relato adequado inconsciente. E assim que se esclarece a verdadeira função do inconsciente. Como ele é o lugar dos relatos postulados em nome da exigência que acabamos de descre­ ver, sua função consiste em assegurar a essa exigência seu valor permanente. Com efeito, fala-se de inconsciente, precisamente, onde o fato, tal como constatado, invalida o postulado. Considerando que o inconsciente sempre leva ao fato o que falta a este para o postulado ser válido, faz com que o postulado pas­ se a ser irrefutável e, por efeito de multiplicação, o próprio inconsciente se tor­ na irrefutável; em resumo, o inconsciente tom a irrefutável o postulado e o postulado torna o inconsciente irrefutável.

A primeira conclusão a destacar desta análise é que os psicanalistas estão errados quando pensam que psicanálise e inconsciente são inseparáveis. Não pode ser assim, pois a inspiração fundamental da psicanálise é precisamente a orientação para o concreto, enquanto o inconsciente é inseparável dos procedi­ mentos constitutivos da psicologia abstrata. O que pôde ter criado e mantido a ilusão dos psicanalistas neste ponto é que a psicanálise estava obrigada, e ain­ da o é, a servir-se do inconsciente, mais que qualquer outra doutrina. É um fato incontestável, mas não há certeza de que a explicação seja a dada por Freud e pelos freudianos, a saber, a de que são os próprios fatos que impõem o incons­ ciente. Como o inconsciente mede a distância entre os fatos e o postulado do pensamento narrativo, seremos obrigados a recorrer a ele, tanto mais que o ponto de vista em que nos situamos irá se afastando sempre mais da equação clássica entre os fatos psicológicos e o pensamento narrativo. Ora, é precisa­ mente o caso da psicanálise. Situar-se no ponto de vista concreto para só acei­ tar como fatos psicológicos os segmentos da vida do indivíduo particular,

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atribuir à análise psicológica, como objetivo essencial, o estabelecimento da sig­ nificação do fato psicológico no conjunto da vida doeu singular, implica, a cada instante, a superação dos relatos imediatos e a necessidade de esclarecê-los pelos dados da análise, a fim de determinar a significação exata do ato do eu. Portan­ to, a psicanálise orienta-se por sua inspiração fundamental para a inadequação entre o pensamento narrativo imediato e a significação real do ato vivido pelo sujeito. Ora, se não abandonarmos a exigência realista e, em geral, os procedi­ mentos da psicologia abstrata, seremos levados, pelos caminhos que procura­ mos descrever, à noção de inconsciente. Assim, o inconsciente aparece necessariamente na psicanálise, mas essa necessidade não é necessidade empí­ rica, mas necessidade a priori, em função de os psicanalistas, na elaboração dos fatos, servirem-se da psicologia clássica. Assistimos, então, a esse fato curioso, se não paradoxal, em que a inspira­ ção verdadeira da psicanálise só age no início e na descoberta dos fatos, para cessar logo no momento da interpretação teórica. E é porque, no momento da interpretação dos fatos, a ação da orientação concreta cessa, para deixar lugar aos procedimentos clássicos, que o inconsciente aparece. Enfim, o inconsciente aparece precisamente no momento em que deveriam aparecer as hipóteses adequadas à psicologia concreta, e faz com que o inconsciente, mesmo dinâmi­ co, longe de ser uma descoberta verdadeiramente interessante da psicanálise, só indique sua impotência teórica. Verdade é que Freud pensou escapar de muitas objeções e mesmo criar uma teoria muito moderna ao emitir a hipótese do inconsciente dinâmico. Na realidade, isso não passa de mais um equívoco a ser afastado, pois é visível, à primeira vista, que o inconsciente dos psicanalistas só tem de dinâmico o no­ me, ou melhor, o dinamismo desse inconsciente não pode ter significação psi­ cológica alguma. Freud não se interessou pelo que há de dinâmico nos fatos que ele consi­ dera, isto é, os atos, os comportamentos e a forma, ou a lei deles. Pelo contrário, procura elementos “estáticos” que ele possa realizar. Daí o comportamento dele diante das lembranças infantis de que tanto se fala em psicanálise. Na ver­ dade, o lado dinâmico dessas lembranças, ou seja, a montagem das quais são signos, não é esquecido: mostramo-lo no capítulo anterior e é preciso acrescen­ tar que na recente evolução da psicanálise, como veremos em breve, o verda­ deiro dinamismo desempenha um papel crescente. Mas no que diz respeito às realizações fundamentais que desembocam no inconsciente, tudo se passa como se ele quisesse reter apenas o aspecto estático, e o que é realizado é só a

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lembrança-imagem ou a lembrança-representação, portanto, uma entidade e não uma montagem ou uma forma. A partir desse momento, o dinamismo é concebido apenas na relação causal e na afetividade, e não se procura mais se­ não um pequeno esquema mecânico em que a lembrança-elemento realizada, reforçada pelas forças afetivas, age à maneira de uma coisa. Chega-se, assim, a um dinamismo copiado pura e simplesmente do dinamismo físico. Ora, semelhante dinamismo não pode ter significação psicológica. Pois o único dinamismo que pode ser psicologicamente concebido é o do eu, isto é, um dinamismo em primeira pessoa, e toda concepção que quisesse dotar de di­ namismo elementos supostamente psicológicos é necessariamente mitológica. O mesmo se dá com a ação dinâmica das lembranças infantis, com sua “atra­ ção’’ e, em geral, com todas as ações que exercem, de acordo com Freud, porque só podem possuir as propriedades que lhes são atribuídas se concebidas como coisas; mas, então, por terem passado para o plano da terceira pessoa, deixam de ser psicológicas. Essa situação em nada é alterada por se afirmar que a essência do incons­ ciente dinâmico reside na afetividade. Pois os fatores afetivos com que os freu­ dianos povoam o inconsciente resultam, também, das realizações que partem dos relatos significativos surgidos no decorrer da análise, ou dados como con­ teúdos latentes; portanto, eles também têm origem nos procedimentos clássi­ cos. Por outro lado, para fazer deles a essência da vida inconsciente é preciso dotá-los de uma atividade própria e independente, mas dessa maneira, fazen­ do-os passar para o plano da terceira pessoa, só se pode desembocar numa vas­ ta mitologia. VII As análises e as reflexões que precedem não constituem, na verdade, uma refutação da hipótese do inconsciente. Sua finalidade é totalmente outra. Tra­ tava-se de demonstrar dois pontos, a saber, que o inconsciente é inseparável dos procedimentos fundamentais da psicologia abstrata e que, longe de constituir, na psi­ canálise, um progresso, indica precisamente uma regressão: o abandono da inspiração concreta e a volta aos procedimentos clássicos. Essa caráter do inconsciente aparece com nitidez suficiente no que prece­ de; mas não é inútil destacá-lo com algumas observações suplementares. O uso da hipótese do inconsciente representa tão pouco progresso que, com ele, Freud recai nos defeitos com que ele mais estigmatiza nos seus adver­ sários.

CRITICA DOS FUNDAAttMTOS DA PSICOLOGIA

1 A principal censura feita por Freud aos teóricos clássicos do sonho é que eles consideram o sonho como um fenômeno negativo, como um conjunto de operações fracassadas e falsas. Freud não compartilha essa opinião; mostramos como ele conseguiu sobrepor-se a ela. Mas fora desse aspecto da teoria freudia­ na, em que o sonho se revela essencialmente como “um fato psicológico no sentido pleno da palavra”, é impossível não reconhecer certa intervenção da concepção clássica, trazida pelo uso da noção de inconsciente. De fato, essa no­ ção implica, como o demonstramos, o postulado da anterioridade do pensa­ mento convencional. Em virtude desse postulado, todo pensamento devido a uma dialética individual aparecerá necessariamente como derivado, como de­ vendo ser explicado a partir de um pensamento que exprima o mesmo tema de maneira convencional, isto é, como um pensamento convencional deformado e des­ prezado. Eis por que dois problemas deverão ser encarados: um a respeito do sentido e outro a respeito da causa e do mecanismo dessa deformação, e sabemos com que cuidado e precisão Freud procurou resolvê-los. Seja como for, o sonho volta a ser, em certo sentido, algo de falho, de ne­ gativo, portanto, embora as causas de sua negatividade sejam positivas para Freud. O sonho não pode, obviamente, bastar-se e nenhum fato psicológico bas­ ta a si mesmo, pois o que importa à psicologia é sua significação enquanto seg­ mento da vida individual, e essa significação não pode ser determinada senão graças a uma documentação fornecida pelo sujeito. Afirmar a insuficiência do sonho tal como dado e basear-se nessa consideração não levaria a recair no de­ feito clássico. Mas recai-se ao considerar a insuficiência do sonho, não só do ponto de vista do que é necessário para compreender-lhe o sentido completo, mas relativamente a uma outra realidade psicológica que contém os elementos ver­ dadeiramente importantes, para a qual se transporta finalmente todo o interesse. O ponto de vista concreto teria permitido relacionar tudo exclusivamente ao sonho, sem considerá-lo como algo que não deveria normalmente ser o que é. Mas, para a interpretação dos fatos, Freud não soube utilizar a inspiração concreta da sua doutrina e foi obrigado, graças ao postulado da anterioridade do pensa­ mento convencional, a fazer intervir na sua teoria o esquema do preconceito clássico que mais lhe desagrada. A segunda censura fundamental que Freud dirige a seus predecessores é de só terem levado em conta no estudo do sonho o conteúdo manifesto ou, como dissemos, o postulado da significação convencional.

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) Ora, sabemos que na primeira fase do seu pensamento, na fase em que ele segue a inspiração concreta da psicanálise, Freud superou esse ponto de vista e chegou à descoberta que está na base da psicologia concreta. Mas, ao examinar suas construções teóricas, somos levados a reconhecer que Freud não abando­ nou tão radicalmente, quanto suas declarações possam fazer acreditar, o ponto de vista do conteúdo manifesto. Com efeito, a hipótese do inconsciente implica, como o temos mostrado, o postulado do pensamento narrativo. Conseqüentemente, o inconsciente só é introduzido por causa do fato de o sonho estar atendendo à exigência expres­ sa pelo postulado em questão; em outros termos, só há obrigação de introduzir o inconsciente, porque se esperava encontrar tudo no conteúdo manifesto e, como nem tudo está nele, é-se levado a projetar o complemento no inconsciente. Dessa maneira, não se abandonou realmente o conteúdo manifesto pois este continua como base de referência para situar os fatos psicológicos. Chega-se, por essa via, a uma espécie de "paradoxo epistemológico”: mais uma vez, a explicação consiste na eliminação do que deve ser explicado. De fato, houve sonho: uma dialética individual funcionou, laços imprevistos e imprevi­ síveis foram estabelecidos entre intenções significativas e signos: pensamentos que, em vez de assumir suas formas habituais, assumiram formas ordinaria­ mente reservadas a outros pensamentos. Ora, a explicação, ao introduzir o in­ consciente e ao expor o relato convencional postulado para a explicação do sonho, faz desaparecer a dialética individual. Desse modo, o fato mais interessan­ te fica eliminado; é uma dialética convencional que existiu e continua existindo, mas encontra-se, ainda, no inconsciente. Estamos finalmente de volta ao postulado da significação convencional. Pois a estrutura do pensamento projetado no inconsciente é tal que as signifi­ cações ficam ligadas a seus signos adequados, e é mesmo para achar novamen­ te essa adequação não respeitada pelo sonho que introduzimos o inconsciente, precisamente para realizar os signos de suas significações que, mesmo estando presentes no sonho, fazem-se representar por outros signos. Podemos chegar a conclusões análogas examinando da mesma maneira a terceira das grandes censuras que os psicanalistas fazem à psicologia clássica. O modelo de todo pensamento, segundo esta, é o pensamento consciente. Freud afirma, pelo contrário, ter deslocado o acento do consciente para o in­ consciente. Se considerarmos as construções teóricas de Freud, devemos admitir que ele caiu exatamente no mesmo erro. Pois também em Freud — e isso é eviden-

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te pelo que acabamos de dizer a respeito do conteúdo manifesto — é a cons­ ciência que, apesar de tudo, é a base de referência que permite situar os fatos psicológicos. Pois, se não esperássemos que toda a significação de um compor­ tam ento fosse formulado em relato, quer dizer, consciente, não poderíamos considerar como descoberta extraordinária o fato de que nem sempre é assim. É graças a essa exigência contrariada que os freudianos podem admirar sua descoberta do inconsciente. De tal forma que as construções- teóricas de Freud, longe de destituir realmente a consciência, representam um a visão re­ lativa à consciência. Mas a consciência não intervém na psicanálise só como base de referência; é também o modelo segundo o qual o inconsciente é constituído. De fato, a es­ trutura do complemento que projetamos no inconsciente é calcada exatamen­ te no pensamento consciente, e é só porque procuramos, ao lado do ato, um relato cuja estrutura é a mesma que a dos relatos que acompanham ordinaria­ mente as ações, que somos levados a postular o inconsciente. Que se venha, de­ pois, falar-nos dos processos originais do inconsciente, de seus estados que, talvez, jamais conheceremos exatamente, isso nada muda quanto à verdade da nossa afirmação, pois só há no caso os retoques progressivos que Freud trouxe para um edifício cujos alicerces foram elaborados conforme o pensamento consciente. VIII Não há dúvida: por ser o inconsciente tão indissoluvelmente unido aos procedimentos fundamentais da psicologia abstrata, ele conduz Freud de volta aos preconceitos que pretende combater. Por isso mesmo, a falsidade dessa hi­ pótese fica indiretamente demonstrada. Por ser ligada aos procedimentos clás­ sicos, assenta-se, como essas, no ponto de vista da terceira pessoa. Poderíamos terminar aqui com o exame do problema do inconsciente, pois basta demons­ trar, a respeito de um procedimento ou de uma noção, que implica a abstração para que a questão seja excluída da psicologia concreta. Mas os procedimentos clássicos são tão enraizados em nós que a hipótese do inconsciente parece ser uma hipótese fácil e cômoda, irresistível mesmo, e não percebemos que essa fa­ cilidade e essa comodidade vêm exclusivamente do fato de nos esquecermos da absurdidade fundamental. Nessas condições, não é inútil prosseguir até a de­ monstração direta dessa absurdidade, embora ela não possa trazer para o deba­ te nenhum elemento verdadeiramente essencial, sendo que a hipótese do

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inconsciente só será eliminada pela nova orientação da psicologia. Precisamen­ te por essa razão, contentar-nos-emos com uma rápida demonstração. Por mais que se faça, os dados psicológicos só podem ser reconhecidos pelo relato. Embora alguns relatos afigurem-se aos psicólogos como a descrição de realidades suigeneris, não é mais um dado imediato, mas uma interpretação, e o dado imediato só pode ser a significação-, todo o restante é só hipótese: quais­ quer que sejam os protestos dos psicólogos introspeccionistas, eles também só filtram, por meio de um aparelho complicado de hipóteses e postulados, os da­ dos dos relatos significativos.71 Ora, se chegamos ao inconsciente, é porque, não podendo nos contentar com o relato efetivo, somos levados a postular relatos que não acontecem no momento em que são realizados e que são inventados conforme um conjunto de princípios que estão longe de ser resumos de experiência. De certa forma, substitui-se ao sujeito para se fazer, conforme certas exigências, um relato que o sujeito não fez, e é para poder atribuir-lhe esses relatos inventados simples­ mente em nome de exigências puramente teóricas que introduzimos o incons­ ciente. Por isso, podemos dizer sem paradoxo que, por ser o inconsciente o lugar dos relatos postulados, mas inexistentes, os fenômenos inconscientes re­ presentam fatos psicológicos inventados peça por peça “para as necessidades da causa”. A falsidade do inconsciente é posta em evidência precisamente pelo fato de que os fenômenos pretensamente inconscientes são inteiramente aéreos, in­ consistentes. Pois, se é certo que não existe dado psicológico verdadeiro além do relato efetivo, o inconsciente que resulta da realização de relatos que não aconteceram não pode corresponder a realidade alguma; aí está para a hipótese do inconsciente um impasse sem saída. IX A conclusão das análises que precedem— a saber, que o inconsciente não é imposto pelos fatos e, tampouco, defensável perante um a reflexão suficien­ temente esclarecida sobre a natureza dos fatos psicológicos — não significa, de forma alguma, que seja necessário voltar à exclusividade da consciência; e a

71 lem bram os que o fato de o relato ser feito “interior” ou “publicamente” não tem a m ínim a impor­ tância.

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afirmação de que a psicologia concreta deve virar as costas à hipótese do in­ consciente não quer ser o anúncio da volta da antítese à tese. Longe disso, basta considerar essa relação72 íntima entre a noção de cons­ ciência e a atitude realista para compreender que, do ponto de vista de uma psi­ cologia que vira as costas às realidades a fim de só estudar as significações dramáticas, o problema clássico da consciência é um problema infinitamente distante, e que a verdadeira solução não pode ser encontrada em nenhuma das duas teses clássicas, pois elas se encontram num plano em que a antítese clás­ sica não possui interesse algum nem significação. Todavia, a demonstração completa da incompatibilidade entre a psicolo­ gia concreta e a tese da exclusividade da consciência excederia m uito os qua­ dros deste estudo. Pois um exame, mesmo superficial, das implicações desse problema mostra claramente que semelhante demonstração supõe uma análi­ se geral da noção de consciência. Ora, seria muito imprudente comprometer o alcance de certo número de idéias, em si mesmas válidas, a favor de uma expla­ nação que só pode figurar neste estudo em segundo plano. Aliás, não é a essa demonstração geral que o movimento natural das nos­ sas análises nos leva. O que temos demonstrado é que só os procedimentos da abstração permitem afirmar o inconsciente a respeito dos fatos psicanalíticos. Nessas condições, e para afastar da nossa crítica a inculpação de “reação”, bas­ tará mostrar que negar o inconsciente a respeito desses fatos não significa, de forma alguma, haver necessidade de encontrar a maneira de o conteúdo do in­ consciente freudiano ser concebido como consciente. De fato, a negação do caráter inconsciente de um fato psicológico só implicaria a afirmação do seu caráter consciente se fosse absolutamente necessário conceber, de um modo ou de outro, a realidade do fato em questão. Assim, por exemplo, a negação do caráter inconsciente do conteúdo latente do sonho não implicaria sua posi­ ção na consciência, a não ser que o conteúdo latente devesse ser absolutamente concebido como psicologicamente real no momento em que o sonho se elabo­ ra e ocorre. É incontestável que o sentimento dessa necessidade existe entre os psicó­ logos. Estão convencidos de que, se a representação geradora do sonho não é inconsciente, deve ser consciente, de um modo ou de outro. É a esse sentimen­ to que corresponde, por exemplo, a tese de acordo com a qual os fatos qualifi-71 71 Que tratam os por alto, p. 141ss.

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cados por Freud de inconscientes participam também da consciência, embora de maneira mais fraca que os fatos da consciência clara, tese que Freud cita e refuta no começo do seu recente trabalho, Das Ich und das Es (em nota, p. 13ss.). Mas é também evidente que esse sentimento só é válido quando admiti­ do ser preciso conceber como psicologicamente reais os fatos em questão. Sabemos que o conteúdo do inconsciente resulta da realização do conteú­ do latente. Este é apenas o relato explícito do sentido do sonho, o qual é postu­ lado para o sujeito como conteúdo latente inconsciente. Ora, a negação do inconsciente só pode trazer a afirmação da consciência do conteúdo latente se continuarmos postulando a realidade do conteúdo latente; em outros termos, se continuarmos exigindo do sujeito, ao mesmo tempo, o sonho e o relato ex­ plícito do sentido desse sonho, isto é, o sonho simultaneamente ao conhecimen­ to do sentido do sonho. Dessa maneira, encontramos na base dessa necessidade, que parece tão imperiosa, o postulado do pensamento narrativo, quer dizer, a mes­ ma confusão entre “o ser e o conhecer”, que já registramos a respeito do incons­ ciente. Nessas condições, a condenação do inconsciente só impõe a obrigação de alojar na consciência, de algum modo, os fatos que recusamos a considerar como inconscientes, se a negação incidir unicamente no caráter ou na maneira de ser de um certo número de fatos dos quais se reconhece a realidade. É o que caracteriza, precisamente, a posição da tese que acabamos de citar. Ora, a nossa crítica é de natureza completamente diferente. Fazemos inci­ dir a negação sobre a própria realidade dos fatos pretensamente inconscientes. Com efeito, esses fatos parecem-nos como inteiramente fabricados, conforme exi­ gências que não somente são incompatíveis com a orientação da psicologia concreta, mas com os próprios fatos, sendo que comportam uma contínua de­ formação destes. Não nos parece legítimo exigir do sujeito outra coisa senão o cumprimen­ to do ato. A significação do ato pode ser do conhecimento dele, mas o sonho e os fatos da patologia mental mostram-nos bem que ele pode também ignorála. Ora, obcecados pela idéia que a essência da vida psicológica é o fato de ser “para si”, os psicólogos recusam-se a reconhecer essa ignorância; querem, custe o que custar, salvar o “para si”, mesmo que, em certos casos, esse salvamento eqüivalha a uma matança. Assim nasce a hipótese do inconsciente. Negando o inconsciente, só renunciamos à exigência absurda que pede ao objeto de uma ciência ser, também, o construtor dessa ciência. É porque renun-

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ciamos a todo o aparelho da abstração garantidora da realidade dos fatos incons­ cientes que não precisamos perguntar, após a negação do inconsciente, de que maneira se deva conceber seu conteúdo. Esse conteúdo não existe. O sujeito so­ nhou: é só isso que lhe cabia fazer. Ele não conhece o sentido do sonho; ele não precisa conhecê-lo enquanto sujeito puro e simples, pois esse conhecimento cabe ao psicólogo; enfim, o conteúdo latente, isto é, o conhecimento do sentido do sonho, não pode ser, antes da análise, nem consciente e nem inconsciente: ele não existe, porque a ciência não resulta da obra do cientista. Enquanto o fato psicológico for definido como uma simples realidade in­ terna, o caráter paradoxal da exigência da onisciência do sujeito a respeito da sua vida interior não pode revelar-se, pois a ciência de si, por ser simplesmente relativa a uma realidade, pode não só postular, mas constatar, graças a proce­ dimentos que não nos cabe aprofundar aqui, a existência de uma intuição sui generis que capte imediatamente as formas da “sexta essência”. Quando não se trata mais de captar entidades ou qualidades, mas de compreender o sentido de um comportamento-, quando se trata não de “assistir ao desenrolar de uma vida dada imediatamente para si”, mas de analisar o drama concreto da vida individual, não se pode pedir ao sujeito que seja, ao mesmo tempo, ator e espectador inte­ ligente, senão exigindo dele o cumprimento de uma obra de conhecimento que só é possível resultar de um método tão complexo que é, precisamente, a aná­ lise freudiana. Portanto, é certo dizer que consciente e inconsciente estão envolvidos na mesma condenação: a dificuldade das duas teses vem do fato de ambas se ba­ searem no postulado do “pensamento para si”, ou pensamento narrativo. E por isso que a negação do inconsciente não nos leva à afirmação da exclusividade da consciência e que a negação dessa exclusividade não comporta a introdução do inconsciente: a confusão gerada pelo postulado em foco é incompatível com a psicologia concreta. Pois o fato psicológico original é a vida dramática do ho­ mem, e a psicologia concreta que quer conhecê-la só espera do sujeito essa vida dramática. A psicologia clássica, pelo contrário, pede mais: pede-lhe também uma obra de conhecimento e, o que é mais, quer fazer dessa exigência a constata­ ção fundamental da psicologia. Ora, vida e conhecimento não são sinónimos: o su­ jeito que tem a vida psicológica não é obngado a ter também o conhecimento psicológico, caso fosse, a psicologia seria inútil. O paradoxo da psicologia clás­ sica é de suprimir-se enquanto ciência logo que posiciona seu primeiro princí­ pio. De fato, como qualificar como ciência o que não passa de relato de uma visão? A psicologia concreta, pelo contrário, suprime esse paradoxo, pois não

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exige para o conhecimento psicológico estrutura privilegiada, e, não pedindo que o sujeito seja psicólogo, acha natural que ele não o seja; e é precisamente porque não considera que a ignorância do sujeito a respeito do seu próprio ser psicoló­ gico seja um fato particularmente notável que ela não precisa da noção de in­ consciente. Nossa crítica do inconsciente chega, portanto, a uma conclusão inteira­ mente negativa: o inconsciente só é uma aparência cuja falsidade é fácil de­ monstrar e a tentativa de Freud, que consiste em quer fazer da noção de inconsciente uma noção positiva cuja afirmação possa ter um valor psicológico verdadeiro, sendo relativa não a simples ausências ou latências, mas a presenças efetivas, fracassou por completo. Muito enganado ficaria quem quisesse concluir por isso da inutilidade de tudo o que foi feito para o inconsciente pelos predecessores de Freud e pelo pró­ prio Freud. Pois, uma vez bem entendido que o inconsciente não representa um progresso, do ponto de vista dogmático — porque é apenas uma maneira de sal­ var o “para si” com toda a psicologia clássica, e que não é inseparável da psica­ nálise, porque é incompatível com a psicologia concreta —, enfim, uma vez entendido que as teorias utilizando o inconsciente não podem pretender, tais como são atualmente, representar a verdade, as construções freudianas e, em geral, todo o movimento que tem orientado sempre mais os psicólogos para a noção de inconsciente aparecem-nos, novamente, singularmente interessantes. Vimos que o inconsciente é fabricado conforme a concepção clássica da vida psicológica e à imagem dos fatos que são dados para si. Por outro lado, qual­ quer que seja a falsidade psicológica do inconsciente, resta que os fatos do in­ consciente não são mais dados imediatamente, mas construídos como os das ciências ordinárias. Então, o fato de os psicólogos terem, finalmente, se decidido a aceitar essa noção revela-nos o enfraquecimento e o desgaste do ideal clássico. Por outras palavras, o movimento para o inconsciente pertence a um momento decisivo da dissolução da psicologia clássica, momento em que, embora queren­ do ainda salvar a abstração, a psicologia começava a desligar-se dela.

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A dualidade do abstrato e do concreto na psicanálise e o problema da psicologia concreta Não sobra dúvida, portanto, que a psicanálise apresenta uma dualidade essencial. Pelos problemas que levanta e pela maneira como orienta suas inves­ tigações, anuncia a psicologia concreta, mas a desmente a seguir pelo caráter abstrato das noções que utiliza, ou que cria, e pelos esquemas de que se serve. Podemos dizer, sem paradoxo, que Freud é tão espantosamente abstrato em suas teorias como é concreto em suas descobertas. Eis o resultado das análises anteriores. Ora, seria simples demais, já o dissemos, explicar o contraste pela falta de clareza ou pela falta de conseqúências do pensamento de Freud. Os erros desse tipo correspondem sempre a necessidades históricas e ultrapassam o poder da lógica individual. Mas, por ser assim, não pode haver solução de continuidade verdadeira entre os erros e a verdade em si: após ter condenado a atitude abs­ trata, por necessidades metodológicas, a crítica deve mostrar, para que não subsista mistério algum, que a atitude de Freud representa um etapa necessária na evolução que desemboca na evidência da atitude concreta. Podemos ser acusados de fazer obra muito fácil. Não damos mostra, de fato, de perceber que o próprio fato da dualidade em foco arrisca comprometer o nosso empreendimento todo, pelo menos enquanto apresentamos, não uma psicologia concreta que teríamos imaginado a priori, mas a que a psicanálise nos traz. De fato, a maneira como interpretamos a dualidade em foco, talvez não seja a única possível. Pois essa dualidade pode decorrer do fato interpre­ tarmos a psicanálise de uma maneira que só é exata até certo limite; então, a dualidade seria relativa a uma interpretação que, não sendo válida para toda a psicanálise, cinde-a necessariamente em duas partes, a segunda medindo pre­ cisamente a inexatidão da concepção que temos da psicanálise. Os intérpretes das grandes doutrinas filosóficas, por exemplo, não admitiram, muitas vezes,

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) a dualidade deste tipo, só por causa de idéias preconcebidas e compreensões unilaterais? Por outro lado, não é verdade que fomos obrigado, para evidenciar o que chamamos de inspiração concreta da psicanálise, a deformar continua­ mente as fórmulas do próprio Freud? Ora, essas deformações são possíveis e podem parecer legítimas até certo limite, mas, cedo ou tarde, o caráter artificial de um método semelhante surge necessariamente. Deve então aparecer a ilu­ são da dualidade.

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Nessas condições, não basta mostrar a necessidade histórica do que cha­ mamos os erros de Freud. Pois essa demonstração pode ser, mais uma vez, ape­ nas uma paráfrase da nossa ilusão. É preciso ir mais longe: é preciso mostrar, sem tocar, desta vez, nas próprias fórmulas de Freud, que, apesar da sua forma téc­ nica com pendência total à abstração, as especulações freudianas implicam uma atitude que precisa ser reconhecida e desembaraçada em sua pureza, para ser a da psicologia concreta. Essa demonstração é possível. Mas sua possibilidade só faz aumentar o perigo resultante dessa dualidade que tivemos de reconhecer no interior da psi­ canálise. Pois se, por um lado, as especulações teóricas de Freud representam apenas um a atitude concreta, mas disfarçada numa forma técnica abstrata, e se, por outro lado, esse disfarce é necessário, não é mais a exatidão da nossa in­ terpretação que deve ser revista, mas a capacidade da concepção que temos da psicologia concreta. Pode-se dizer que a psicologia concreta, tal como preten­ demos vê-la na base da psicanálise, é capaz de revelar-nos coisas que ficaram inacessíveis à psicologia clássica, mas essa, em compensação, desforra-se quan­ do se trata da elaboração teórica, de tal forma que a pretensa volta à abstração pode ser apenas a revelação da impotência teórica da nossa psicologia concreta. Se assim é, duas opções oferecem-se: a primeira é que temos adivinhado correta­ mente a essência da psicologia concreta, mas, então, a dualidade constatada nos mostra que essa psicologia precisa recorrer ao aparelho teórico da psicolo­ gia clássica e esta, longe de ser condenada, recebe por isso uma nova vitalidade — o que retira todo o valor à nossa tese fundamental, na medida em que a opo­ sição entre as duas formas da psicologia deixa de ser irredutível —; a segunda é que, se fazemos questão da morte da psicologia clássica, é a nossa concepção da psicologia concreta que perde interesse, pois mostra-se incapaz de compre­ ender o drama que pretende estudar. Além do mais, se a psicanálise anuncia re­ almente essa psicologia concreta que temos definido, mostra-se, mesmo à luz da nossa interpretação, bastante desprovida de interesse, pois apresenta-se como mais uma tentativa malograda. Enfim, de qualquer lado que olhamos,

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essa dualidade, cuja constatação podia parecer, inicialmente, uma vitória do nosso método, só representa o fracasso. Esses argumentos só valem, obviamente, se a dualidade em foco for ver­ dadeiramente absoluta, isto é, se não formos capazes de mostrar a psicologia concreta, tal como a definimos, atuando de verdade, não só quando se trata da definição do fato e da concepção do método, mas da própria compreensão do drama humano. Mas se pudermos mostrar que, longe de sofrer unia impotên­ cia teórica, ela já começou a elaborar suas noções fundamentais, esses argu­ mentos caem por terra. I O contraste entre a concepção concreta do fato e do método, por um la­ do, e a atitude abstrata das explicações, por outro lado, explicam-se em Freud, primeiramente, pela maneira como ele concebe as relações entre a psicologia e a psicanálise. Freud parte da idéia de que a psicanálise é um procedimento par­ ticular que, ao mesmo tempo em que permite encontrar resultados novos, aos quais os métodos da psicologia clássica nunca teriam podido levar, não chega à “psicologia” dos fatos em questão. Sua idéia fundamental é que a psicologia e a psicanálise estão em dois planos diferentes: a atitude psicanalítica não é a busca da própria psicologia dos fatos e, por outro lado, a busca da explicação psicológica implica o abandono da atitude propriamente psicanalítica. Essa atitude traduz-se muito bem na Traumdeutung: após ter descrito os fatos que a psicanálise permite descobrir, Freud procura sua explicação numa seção à parte, na seção intitulada “Psicologia dos processos do sonho”. Tratavase, até aí, de interpretar e analisar o sonho, trata-se, agora, de explicá-lo. “Até agora, ocupamo-nos essencialmente de procurar o sentido oculto dos sonhos, que caminho permite encontrá-lo, que meios o trabalho do sonho usa para escondê-lo. Eram as exigências da interpretação dos sonhos que, até agora, esta­ vam no centro do nosso interesse” (4a ed. alemã, p. 404).73 Trata-se agora em

73 Esta é a primeira citação da Traumdeutung, que se refere à edição alemã. Ela nos indica que Politzer utilizou, além da tradução francesa de Meyerson, a 4a edição alemã, ou seja, a de 1914. Como é sabido, outras quatro edições sucederam-se: a 5a (1918), a 6a (1921), a 7a (1922) e a 8a (1929). Considero rele­ vante esta informação pois Freud introduziu parágrafos e notas de rodapé ao longo das sucessivas edi­ ções de sua obra publicada com a data de 1900. Sobretudo em 1914 e 1919 encontramos acréscimos significativos no texto. Esta citação feita por Politzer, encontra-se na Nova Edição, PUF, 1993, p. 434. (NRT)

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enveredar “por um novo caminho”: compreender o sonho enquanto fenôme­ no psicológico. Para Freud, explicar um fato psicológico significa encaixá-lo em leis conheci­ das da psicologia. Diz-nos, a respeito da regressão: “Não temos explicado, como se poderia pensar, o caráter do sonho, não o encaixamos em leis conhecidas da psicologia” (p. 541). Conseqüentemente, a parte teórica do empreendimento de Freud aparece imediatamente como um a tentativa de aproximar os fatos psicanalíticos da psicologia clássica e o que nos pareceu ser uma mudança de orientação absolutamente radical apresenta-se da maneira mais natural: pelo simples fato de se procurar a explicação, estamos levados de volta à psicologia clássica. Nessas condições, a originalidade da psicanálise não poderá mais ser tradu­ zida no plano da explicação, senão pelo fato de não haver, na psicologia clássica, nada pronto para receber os fatos novos descobertos por Freud. “Parece-nos im­ possível”, diz ele, “explicar os sonho enquanto fenômeno psicológico, pois ex­ plicar significa trazer para o que já é conhecido; ora, até o presente momento, nenhuma noção psicológica existe à qual se possa ligar os elementos a que nossa análise chegou” (p. 508). Essa insuficiência não é constitutiva, não revela uma in­ capacidade original e definitiva, mas apenas uma imperfeição momentânea à qual se pode remediar. Mas qualquer que seja a extensão e a novidade do trabalho de alargamento que se impõe, este deixará intactos os fundamentos da psicologia clássica. Portanto, tudo o que resulta da novidade das descobertas psicanalíticas é a obrigação de “levantar novas hipóteses sobre a estrutura do aparelho psíqui­ co e o jogo das suas forças”. Basta a seguir lançar um olhar sobre as “implicações” que Freud desenvol­ ve e as hipóteses que levanta para ver que se trata para ele, exclusivamente, de fazer uma construção conforme o ideal científico dos psicólogos do final do sé­ culo XIX. Esse ideal científico nos é bem conhecido: devaneios fisiológicos, energé­ ticos e quantitativos constituem seus principais traços. O que se procura é uma mecânica psíquica que se assemelhe aos esquemas utilizados pela física nas suas explicações, tanto é que, após o movimento energetista na física, os psicó­ logos abandonaram os modelos mecânicos para orientar-se mais para os esque­ mas energetistas. Freud exprime esse ideal clássico, algumas vezes, da mais ingénua maneira: “libido”, diz ele em Psicologia Coletiva e Análise do Eu (tradu­ ção francesa, 1924, p. 36), “é um termo tomado da teoria da afetividade. Desig­ namos com ele a energia considerada como uma grandeza quantitativa (não

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mensurável, ainda) das tendências que se incorporam ao que resumimos sob o termo amor.” E os desenvolvimentos do nosso capítulo III mostram suficien­ temente com que engenhosidade Freud tenta realizar o ideal em questão. Fica claro que Freud nunca duvidou do edifício central da psicologia clás­ sica. Os métodos desta podem ser imperfeitos, os psicólogos clássicos podem ter se mostrado cheios de preconceitos e limitados sobre certas questões, mas tudo isso só leva a examinar novamente as teses e não os fundamentos: a psico­ logia clássica deve, certamente, ser submetida a um trabalho, mas apenas a um trabalho de revisão e de ampliação. Ora, uma vez que se tome essa atitude, é impossível interrompê-la e nun­ ca em qualquer momento poderá surgir a incompatibilidade dos fatos novos com a psicologia antiga, pois será sempre possível levar mais adiante a articu­ lação e a'ampliação das suas hipóteses e das suas noções. Eis por que Freud só pode fazer o trabalho especulativo anunciado, sem nunca poder perceber que está refazendo, em sentido inverso, o caminho das suas próprias descobertas. Se ao executar esse trabalho puramente formal, que é apenas o desenvolvimen­ to mecânico de alguns esquemas, ele pode achar que explicou realmente, é que estamos “fixados” no ideal científico da psicologia clássica. O empreendimento de Freud, considerado em sua fase teórica, represen­ ta, portanto, o antípoda do nosso. Para nós, tratava-se de desenvolver a psico­ logia contida nos fatos e método psicanalíticos, enquanto que, para Freud, o problema é inverso: encontrar a psicologia clássica da qual se podem deduzir os fatos psicanalíticos, e, por ela não existir, é preciso inventar uma. De princípio, fica evidente que a atitude de Freud é a primeira que se impõe e o faz mesmo da maneira mais natural. Com ajuda da psicanálise, descobre-se um certo número de fatos: eles são ¡mediatamente considerados como fatos da vida interior. Essa idéia é tão natural que existem textos em que Freud considera a própria associação livre como forma da reflexão ou da introspeção. Claro que, nessas condições, tudo o que a psicanálise nos traz são informações sobre essa realidade interior que a psicologia clássica pretende estudar: todo progresso nas descobertas psicanalíticas passam a ser, então, um motivo para levar mais adi­ ante o desenvolvimento das nossas idéias sobre “o aparelho psíquico”. Tendo em vista essa “fixação” ao ideal da psicologia clássica, geral em sua época, Freud é necessariamente levado a tomar a atitude que acabamos de des­ crever. A única coisa que poderia tê-lo impedido era desligar-se desse ideal. Ora, isso foi impossível, sendo que, pela sua própria posição, ele impõe à psicologia CRÍTICA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ф

) clássica um problema puramente formal que não apenas esta, mas qualquer conjunto teórico, verdadeiro ou falso, pode facilmente resolver. Com efeito, Freud chega à psicologia partindo da psicanálise. Ora, nesse momento, suas descobertas já foram feitas e sua atitude não é mais criadora, mas puramente desinteressada: ele não espera da psicologia a realização de uma obra verdadeiramente fecunda e produtiva, apenas a inserção num a rede de noções e de hipóteses, descobertas já feitas. De toda forma, Freud não pode constatar a esterilidade fundamental da psicologia, ao levantar um problema cuja solução só implica para ela uma “dilatação”. A atitude de Freud era inevitável, por dois motivos. Primeiro porque, ten­ do em vista as idéias fundamentais da época, as descobertas psicanalíticas apa­ recem ¡mediatamente como fatos psicológicos no sentido clássico da palavra; segundo porque, abordando a psicologia depois que a obra verdadeiramente criadora terminou, a impotência da psicologia não pode ser vista. Em outros termos, um psicanalista puro cuja ocupação essencial é a prática do método psicanalítico só podia chegar a essa contradição que assinalamos na obra de Freud. Outro é o problema para quem vai, não da psicanálise à psicologia, mas da psicologia à psicanálise. Pois, sendo o foco dirigido sobre a própria psicolo­ gia, não a abordamos depois que a obra de criação está concluída, a fim de con­ tentar-se com essa operação enganosa que consiste em elaborar hipóteses a posteriori para explicar fatos descobertos sem que essas tenham intervindo, mas é da psicologia em si que se espera o poder e a fecundidade. A história da psico­ logia e suas ocupações atuais estão aí para mostrar que nunca a concepção clás­ sica do fato e do método teria permitido que os problemas fossem postos dessa maneira que levou os psicanalistas a descobertas onde os métodos clássicos ti­ nham fracassado. É evidente, nessas condições, que as descobertas da psicanálise supõem uma concepção da psicologia que não pode coincidir com a psicologia clássica e que levantam um novo problema: saber, não por meio de algumas especula­ ções complementares, não como se pode reduzir os fatos novos aos esquemas antigos, mas qual é precisamente essa psicologia nova que fez com que as des­ cobertas fossem possíveis. Essa é a atitude que adotamos nesta obra. Mas essa atitude supõe a de Freud e só podia vir depois dela. Pois, em primeiro lugar, foram os psicanalistas que fizeram essas descobertas cuja análise desemboca na psicologia concreta e deviam começar por dar, eles mesmos, uma explicação. Ora, esta não podia ) ííH Capítulo Gnco

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concluir, pelas razões que acabamos de ver, à dualidade entre a inspiração fun­ damental e o aparelho teórico. Por outro lado, essa dualidade era necessária para que um empreendimen­ to como o nosso pudesse nascer. Diante do espetáculo da riqueza das descober­ tas psicanalíticas e da pobreza da psicologia clássica, as especulações abstratas da psicanálise oferecem um paradoxo que chama imperiosamente a crítica. II Diante da maneira como o problema da explicação é encarado por Freud, a originalidade da psicanálise só pode ser revelada, já o dissemos há pouco, pela necessidade de ampliar as noções da psicologia clássica e introduzir nela hipó­ teses novas, porém conforme aos procedimentos fundamentais desta. Como os trabalhos nocionais precisam moldar-se nos fatos novos trazi­ dos pela psicanálise, seria estranho que, apesar do seu semblante abstrato, não guardassem algo dessa inspiração concreta que faz nascer as descobertas. Até aqui, o inconsciente apareceu-nos como o cúmulo da abstração. Isso é perfeitamente verdadeiro: deve suas origens aos procedimentos que qualifi­ camos de abstratos; são eles que o geram e sem ele não pode ter sentido algum. Ora, na base de qualquer teoria existe, situada mais profundamente que os procedimentos que lhe dão sua forma técnica, um a atitude geral pela qual a te­ oria em questão pode extrapolar sua própria significação dogmática. Esse é, precisamente, o caso da hipótese do inconsciente: qualquer que seja a incom­ patibilidade do seu aspecto técnico com a psicologia concreta, sua aceitação implica uma atitude totalmente contrária ao ideal da psicologia clássica. O que caracteriza essencialmente o inconsciente, em geral e independen­ temente da teoria freudiana, é que ele se refere a fatos psicológicos cujo sujeito não tem conhecimento direto, ou que não lhe são fornecidos numa intuição imediata. Conseqüentemente, a introdução do inconsciente significa o fim da hegemonia da introspecção pois, precisamente, os fatos inconscientes, embora sendo psicológicos, não são do domínio da consciência e, por isso mesmo, es­ capam a qualquer introspecção; admite-se, assim, todo um conjunto de fatos psicológicos que não são dados “para si”, e para a constatação e o estudo dos quais é preciso recorrer a outros métodos. O que há de notável nessa conseqúência da introdução do inconsciente não é o fato de sermos obrigados a renunciar à introspecção. Os psicólogos clás­ sicos não têm dificuldades em fazê-lo e abandonam freqüentemente a intros­ pecção a favor de métodos “objetivos”, fisiológicos, biológicos e outros. Mas é

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preciso observar que nesses casos, e com o testemunho dos psicólogos a quem estamos nos referindo, abandona-se o domínio do próprio psíquico. Pois, quan­ do se abandona a introspecção por um qualquer dos métodos ''objetivos”, é sempre em virtude de uma definição ou de uma hipótese que permite dar um lugar, ou todo o lugar em psicologia, às excitações e reações fisiológicas, ou ao aspecto puramente motor dos comportamentos. Não se abandona a intros­ pecção para estudar, por meio de métodos objetivos, os fatos psicológicos em si, mas apenas fatos-objetivos que foi possível relacionar aos primeiros. Isso é tan­ to mais verdadeiro que, toda vez que se trata do “psíquico” em si, estamos obri­ gados, quer sim, quer não, sob um ou outro pretexto, voltar à introspeção. A hipótese do inconsciente, pelo contrário, significa que a introspecção tornou-se insuficiente para a exploração do próprio psíquico. Pois, para todos os que ad­ mitiram o inconsciente psicológico, este significa um conjunto de fatos que são tão real e tão atualmente psicológicos como os fatos conscientes, “com a única diferença”, diz Freud, “que lhes falta a consciência”. Não se trata, então, de re­ nunciar à introspeção porque se quer dar a fatos objetivos uma significação psi­ cológica, mas porque é o próprio psíquico que extrapola o “para si”. / E precisamente dessa forma que o inconsciente anuncia, em certo senti­ do, a psicologia concreta. Primeiramente, uma psicologia que utiliza a noção de inconsciente deve renunciar à afirmação integral da natureza privilegiada do conhecimento psicológico. Não se poderá mais afirmar que seja única na sua espécie por captar imediatamente seu objeto, sendo que é precisamente nessa “captação” que reside o ser próprio do fato psicológico, pois há fatos que, em­ bora psicológicos, estão fora do “para si”. Portanto, só podem ser conhecidos de forma mediata, seja graças à intervenção de um observador exterior, seja graças a procedimentos de raciocínio análogos aos utilizados pelas outras ciências. Embora o inconsciente pareça, em certo sentido, mais misterioso que o consciente, em outro sentido, representa o primeiro passo na destruição do mistério psicológico. Pois, pelo menos para certos fenômenos psíquicos, o su­ jeito do conhecimento não está numa situação mais privilegiada que quando se encontra diante de qualquer objeto. Por isso os psicólogos adeptos da noção de inconsciente perdem, necessariamente, o hábito de considerar todos os fa­ tos psicológicos como dados simples de uma percepção sui generis, pois os fatos inconscientes devem ser construídos ou, pelo menos, reconstruídos. Por esse caminho, chega-se, no interior da psicologia clássica, a um a dua­ lidade que constitui um fermento dialético muito poderoso. Após a introdução

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do inconsciente, não se pode mais definir o fato psicológico pelo “para si”: a de­ finição clássica do fato psicológico é reexaminada ¡precisamente no próprio plano do psíquico. Encontramo-nos, então, diante de duas espécies de “psíquico”: um, cujo conhecimento é uma “percepção”; outro, que não é mais que uma cons­ trução; um, que continuamos a definir pelo “para si”, outro, que não pode ser definido dessa maneira. Ora, é evidente que os fatos psicológicos, sejam eles conscientes ou inconscientes, participam da mesma essência, e essa essência é mais profunda que a consciência, sendo que os fatos conscientes podem, sem perder sua essência psicológica, tomar-se inconscientes. Continuando as pes­ quisas nessa direção, somos levados, necessariamente, a definir os fatos psico­ lógicos independentemente do “para si”, isto é, independentemente de uma percepção suigeneris, e o problema que se põe então é o próprio problema da psi­ cologia concreta: definir o psíquico enquanto psíquico, isto é, evitando toda confusão com a fisiologia, a biologia ou qualquer outra ciência da natureza ou do homem en­ quanto natureza, fazendo abstração da hipótese de que o psíquico é dado numa per­ cepção sui generis. Em outros termos, admitir, simultaneamente, um psíquico dado e um construído, é impossível, e a idéia da existência de um psíquico construído convida à generalização; somos então levados a procurar a origem do psíquico em outro lugar que não nessa originalidade que podemos qualificar de química e que está na base da definição clássica. Enfim, a atitude fundamental que está na base da hipótese do inconsciente contém a negação do realismo psicológico, e o desenvolvimento consequente dessa hipótese teria levado à procura de uma definição do fato psicológico que exclui o realismo. Só que a psicologia clássica nunca chegou ao conhecimento do verdadeiro sentido da hipótese do inconsciente nem ao desenvolvimento sistemático das suas conseqiiências, e, após ter abordado a dualidade em questão, pura e sim­ plesmente a manteve. Tendo em vista o caráter fundamentalmente abstrato da psicologia clássica, o realismo pôde intervir para frear o movimento que te­ ria chegado à sua destruição. Após ter posto o inconsciente ao lado do consciente, inverteu-se a dificul­ dade, fazendo da consciência uma “qualidade” capaz de acrescentar-se ou não ao “psíquico”, e então a dualidade fica resolvida, definindo o fato psicológico, conforme o realismo, simplesmente pelo psicológico “puro”, mas cuja origina­ lidade permanece, claro, “química”. CRÍTKA DOS FUNDAMENTOS DA PSICOLOGIA ф

Freud é levado, pelas razões que expusemos acima,74a dar ao inconsciente um papel e um lugar muito mais importantes do que tinham para os psicólo­ gos clássicos. Conseqíientemente, encontramos em Freud, por um lado, um desenvolvimento mais rigoroso das implicações puramente técnicas da hipóte­ se e, por outro lado, uma aproximação maior da psicologia concreta, no mesmo sentido que indicamos há pouco. A teoria freudiana traz, do ponto de vista técnico, duas afirmações: 1) a consciência é só um órgão superior de percepção; 2) o inconsciente é transcendente relativamente à consciência. Uma parte da primeira afirmação, pelo menos, está implicada na própria noção de inconsciente. De fato, só o fato de introduzir o inconsciente implica a ampliação da definição do fato psicológico, e este será definido, em virtude do realismo, como sendo o psíquico em geral75 cuja existência não requer, neces­ sariamente, a consciência. A aquisição do caráter consciente para o “psíquico” pode, então, ser facilmente assemelhado a um a percepção porque, sendo o ser do psíquico independente da consciência, o esquema da percepção é aplicável. Porém, a afirmação de que a consciência é unicamente um órgão de percepção implica já a psicanálise. Pois, na psicologia clássica, o inconsciente não desem­ penha um papel suficientemente importante para que não possamos afirmar que, ao lado dos fatos para os quais a consciência não passa de um órgão de per­ cepção, existem outros dos quais ela constitui o próprio ser. Mas a atitude de Freud é m uito mais radical. De fato, a psicanálise foi obrigada a situar no in­ consciente todos os processos importantes e verdadeiramente determinantes, de tal forma que, por exemplo, do sonho — se explicado em todos os seus de­ talhes por atividades pré-conscientes ou inconscientes — só resta para a cons­ ciência a percepção pura e simples do psíquico. A segunda afirmação é baseada em considerações psicanalíticas. Das aná­ lises de Freud resulta que o psíquico só é admitido à percepção da consciência sob certas condições. Conseqíientemente, sendo a percepção do psíquico ne­ cessariamente relativa a essas condições, o inconsciente é em si mesmo incognoscível.76

74 Capítulo IV, item VI. 75 Cf. textos citados na p. 109. 76 Cf. para os textos acima, capítulo III, § 2 início, pp. 105-106; § 115 e, em geral, a últim a seção da

Traumdeutung.

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Essas duas afirmações fundamentais da teoria freudiana do inconsciente acentuam o progresso da psicologia abstrata em direção a uma psicologia con­ creta e, por isso mesmo, essa atitude que encontramos na base da hipótese do inconsciente encontra-se quase inteiramente posta em evidência. Não cabe mais dizer que, ao lado dos fenômenos conscientes, deve-se considerar, também, os fenômenos inconscientes. As análises de Freud pro­ vam que a consciência não pode ensinar nada de verdadeiramente interessan­ te, pois tudo o que importa conhecer para a explicação pertence ou ao préconsciente ou ao inconsciente. Longe de poder deter-se na consciência, o psi­ canalista deve começar por extrapolá-la: se quisermos compreender o sonho, é preciso abandonar o conteúdo manifesto e ir para o conteúdo latente. Nes­ sas condições, não se pode dizer que a introdução do inconsciente rompe, num ponto particular, a hegemonia da introspecção. Dado o papel do incons­ ciente na análise, a introspecção não é mais um método científico no sentido próprio da palavra, pois o que pode ser conhecido pela introspecção ainda não é um conhecimento psicológico: o psicanalista não se detém na “introspec­ ção” do conteúdo manifesto. Dessa feita, o psicólogo não está mais diante de duas categorias de fatos, uns conhecidos imediatamente e os outros conheci­ dos mediatamente, pois todos os fatos verdadeiramente eficazes encontramse no inconsciente. Por isso mesmo, o psicólogo não tem mais que se ocupar dos conhecimentos que não sejam mediatos: o mistério do conhecimento psi­ cológico desapareceu por inteiro e o psicanalista deverá inventar um método que, mesmo sem ser fisiológico ou biológico, mas exclusivamente psicológico, seja outra coisa que não a introspecção. Esse método é a técnica psicanalítica, “a via real que leva ao conhecimento do inconsciente”. Houve, portanto, uma revolução “copemicana”: todo o interesse dos psi­ cólogos deslocou-se dos dados da percepção psicológica imediata para os dados que não podem mais ser considerados como tais, mas que são construídos e, por isso mesmo, toda a ideologia da psicologia clássica precisa ser retomada. Contudo, mais uma vez, ou melhor, pela última vez, o realismo intervém para impedir sua própria destruição. Se continuarmos a interpretar os dados mediatos dos quais os psicólogos se ocupam como relacionados a uma realidade e escolhendo a última possibilidade que resta para salvar o realismo, deve-se afirmar que a realidade em questão é transcendente e que só a captamos em seus

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“fenômenos”. Efetivamente, Freud explica o sonho e as psiconeuroses, e em ge­ ral tudo, por atividades “numenais”.77 Ora, semelhante atitude não pode ter estabilidade. A afirmação de que uma certa realidade só nos é conhecida em seus fenômenos sempre põe em pe­ rigo a própria realidade. Cedo ou tarde, seremos obrigados a limitar o conheci­ mento aos fenômenos. Esse “fenomenismo” deve passar longe dos psicólogos da “psicologia sem alma”, pois a realidade à qual nos ligamos não é simplesmente a alma substância; mas o psíquico enquanto realidade, enfim, a vida interior. Freud permanece “dogmático”. Com a ajuda do procedimento realista, ultrapassa os fenômenos. Mas o faz muito ostensivamente. O procedimento é articulado com tanta nitidez que seu dogmatismo prepara a crítica a ele corres­ pondente e anuncia uma psicologia “crítica”, que merece esse nome, não por­ que venha a ser uma psicologia sem alma, mas uma psicologia sem vida interior e, apesar disso, sem o menor vestígio de fisiologia e nem mesmo de biologia. Pode-se mostrar, portanto, que a dualidade no interior da psicanálise, en­ tre o abstrato e o concreto, não é simples ilusão de ótica, mas traduz a natureza particular da atitude freudiana. Não somente a volta ao abstrato devia produ­ zir-se na psicanálise, mas até as teorias que resultam dela implicam, tais como são e apesar da sua forma técnica abstrata, a própria atitude que se encontra na base da psicologia concreta. Enfim, não é em nós, mas em Freud, que se pode constatar uma “ilusão de ótica”. Se a posição de Freud é, dessa maneira, determinada com uma precisão su­ ficiente, o que não parece sê-lo é a própria psicologia concreta. Pois tudo o que sabemos positivamente dela, até agora, é a maneira de definir o fato psicológico como segmento do “drama” constituído pela vida do indivíduo particular e pelo método que pretende usar para estudá-lo. Mas ainda não vimos a maneira como realiza suas promessas; em outros termos, ainda não vimos a psicologia concreta atuando na análise do “drama”, com noções apropriadas a seu plano e a sua inspiração. E, para que o caráter abstrato das especulações freudianas não possa ser considerado como a revelação da incapacidade teórica da psicologia concreta tal como a concebemos, é preciso mostrar que, em meio a todas as no-

77 Trata-se do conceito kantiano de “núm eno”. Politzer realizou sua leitura da obra de Freud num cenário dominado pelo m ovim ento neokantiano. Suas resenhas sobre L. Brunschivicg, J. N abert e L Robinson, publicadas na revista Philosophies, em 1924, por ocasião do segundo centenário do nasci­ m ento de Kant, são exemplos relevantes. As posições do autor sobre o relato em primeira pessoa (psi­ cologia concreta) e em terceira pessoa (psicanálise) sustentam -se na ontologia moderna fundada por Kant. Cf. A Filosofia e os Mitos, op. cit. (NRT)

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ções e hipóteses que Freud foi levado a construir, há algumas que, mesmo estan­ do no mesmo plano das outras, já pertencem à psicologia concreta. III Para mostrar a psicologia concreta em ação, devemos salientar o caráter verdadeiro de um certo número de novas noções que Freud foi levado a intro­ duzir em conseqtiência da análise dos sonhos e das neuroses, e que desempe­ nham um papel preponderante nas explicações técnicas. Consideraremos, essencialmente, duas: a identificação e o complexo de Édipo.78 A identificação consiste na fato de que “o eu absorve, por assim dizer, as propriedades do objeto” (Psychologie Collective et Analyse duMoi, tradução fran­ cesa, p. 60). Uma criança “que teve a infelicidade de perder um gatinho declara de repente que ele mesmoera esse gatinho, pôs-se a engatinhar e não quis mais comer na mesa etc.” (ibid., p. 63). Não se deve confundir a identificação freudiana com a imitação da psico­ logia clássica, “a passagem imediata de uma percepção, na maioria dos casos vi­ suais, para um movimento-que reproduz a causa da percepção”. Embora se possa discutir a nossa definição para substituir os termos “estáticos” por ter­ mos “dinâmicos”, o que está claro é que semelhante definição que faz abstra­ ção do sentido do ato em questão é inteiramente formal: só se considera o mecanismo geral do ato. O fato de esse mecanismo estar descrito em termos de elementos ou em termos de atitudes não muda nada no seu caráter formal. Além do mais, o sujeito é eliminado não só porque, na maioria dos casos, será feito da imitação um pequeno drama em terceira pessoa cujos atores são os ele­ mentos, mas porque, levando em conta o formalismo, não há proposta de con­ siderar a imitação como sendo, no seu próprio teor, algo da vida do indivíduo particular. Longe de orientar-nos para essa vida, a imitação nos afasta dela: apa­ rece como uma função geral, como o hábito, por exemplo, ou a memória, e tudo o que a psicologia clássica pode fazer é procurar-lhe o mecanismo geral, descrever-lhe o desenvolvimento geral, enfim, estudá-lo em si. A identificação é, pelo contrário, essencialmente um ato que tem sentido: trata-se, para o sujeito, de ser outro ou algo outro que ele mesmo, trata-se de

78 Não se trata de fornecer a lista de todas as noções e explicações concretas que se encontram em Freud, mas exemplos, ou melhor, modelos capazes de m ostrar que noções e explicações concretas exis­ tem efetivamente na psicanálise. E s por que não falamos da “transferência”, nem da “introjeção”, nem do “complexo de inferioridade” de Adler etc.

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conformar-se com um modelo adotando-lhe, por assim dizer, toda a dialética. “A génese da homossexualidade masculina”, diz Freud (op. cit., p. 62), “é, na maioria das vezes, a seguinte: o jovem ficou muito tempo e de maneira muito intensa ligado à mãe, no sentido do complexo de Édipo. Quando chega a puber­ dade, ele deve trocar a mãe por outro objeto sexual. Dá-se uma mudança súbita de orientação: em vez de renunciar à mãe, identifica-se com ela, transforma-se nela e procurar objetos suscetíveis de substituir seu próprio eu (moí) e que possa amar e cuidar como foi amado e cuidado pela mãe. Esse é um processo de que se pode constatar a realidade tantas vezes como se queira e que é, naturalmen­ te, totalmente independente da hipótese que se poderia formular a respeito das razões e motivos dessa repentina transformação. O que impressiona nessa identificação é sua amplidão; sob um aspecto mais importante, do pondo de vista do caráter, principalmente, o indivíduo sofre uma transformação de acor­ do com o modelo da pessoa que, até então, lhe servira de objeto libidinoso.” Nessas condições, longe de ficar de fora, o sujeito está implicado integral­ mente na identificação que passa a ser, não só parte efetiva da sua vida, mas a chave de toda um a série de atitudes que só se compreendem por meio dela. Daí, a identificação nos traz sempre de volta à vida do indivíduo particular, pois é só esta que pode permitir a reconstituição da sua significação. A identifi­ cação é, portanto, um a noção concreta: é talhada no próprio drama humano; por outros termos, é um segmento da vida do indivíduo particular. O complexo de Édipo é uma noção muito conhecida e podemos contentar-nos com um a simples alusão. O menino tem pela mãe um afeto de natureza erótica, no sentido aliás muito amplo que este termo tem para os psicanalistas. Depois, “o menino percebe que o pai barra-lhe o caminho para a mãe; sua iden­ tificação com o pai assume por isso um aspecto hostil e acaba por confundir-se com o desejo de substituir o pai junto à mãe” (op. cit., p. 58). De fato, o próprio termo “complexo” revela a psicologia da Vorstellung, pois, para Freud, o complexo é uma representação cheia de grande intensidade afetiva. Mas só existe aí, e será inútil demonstrá-lo,79uma questão de estilo. De fato, o complexo de Édipo não é nem um “processo”, e menos ainda um “esta­ do”, mas um esquema dramático, ou, se preferir, um comportamento humano. Encontram-se na noção de identificação e no complexo de Édipo duas no­ ções que satisfazem à condição essencial que as noções da psicologia concreta

) 75 Cf. mais adiante, p. 178.

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devem comportar: permanecem no plano do eu e são talhadas na própria ma­ téria do drama humano. Por isso mesmo, não conservam vestígio algum do re­ alismo da psicologia clássica. Com efeito, nem a identificação nem o complexo de Édipo representam dados de uma percepção original e não se referem a uma realidade de alguma forma química. A realidade à qual se relacionam só é a do drama humano, a da significação que faz de um conjunto de movimentos uma cena humana. Nem a identificação nem o complexo de Édipo se assentam na considera­ ção de um conjunto de estados intemos ou de mecanismos psicofisiológicos, tampouco são “atitudes mentais”, pois representam procedimentos integrais e exprimem a forma humana de uma cena, nada mais. Enfim, essas noções só têm valor no plano das ações dramáticas do homem e são incompatíveis com o realismo da “sexta essência”. A identificação e o complexo de Édipo só são complexos do ponto de vista do ato que os constitui. Enquanto noções explicativas, são, pelo contrário, pri­ mitivas. A psicologia introspectiva descreveria os estados internos que duplicam a identificação; as representações, os sentimentos ou, se preferir, as atitudes mentais e as qualidades implicadas pelo fato de viver a forma de um outro. Chegaríamos, assim, às análises comoventes da simpatia. A psicologia “experimental” aplicar-se-ia ao lado positivo da identificação. Estudar-se-iam os mecanismos sensório-motores e ideomotores para elaborar mitos fisiológicos. Chegar-se-ia, então, à imitação. De qualquer modo, a explicação extrapolaria a identificação em si para procurar reconstituí-la com elementos que estão acima ou abaixo dela, quer di­ zer, com elementos psicológicos ou elementos fisiológicos. Para Freud, pelo contrário, a identificação e o complexo de Edipo são noções elementares que devem ser­ vir, precisamente, à análise e à reconstituição do drama humano. De fato, a identificação e o complexo de Édipo não são apenas os segmentos da vida de um indivíduo particular, mas também grandes esquemas dramáticos que têm, por assim dizer, suà dialética própria, podendo, conseqüentemente, dar a chave de toda uma série de atitudes. Nem é preciso considerar a análise dos sonhos e das psiconeuroses: a sim­ ples observação da vida cotidiana mostra a imensa importância das atitudes expressas por essas noções. Basta olhar ao redor de si para ver que toda a vida do homem é atravessada por elas e que são elas que o dirigem na maioria das

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vezes para as ações que terão sobre seu destino todo uma influência determi­ nante. Do ponto de vista técnico, a identificação explicou, há pouco, a génese da homossexualidade no homem. Intervém também na teoria freudiana da histe­ ria,80do amor,81 na explicação que ele tentou sobre a hipnose,82do caráter8384etc. No que diz respeito ao complexo de Édipo, sabemos como importante é o pa­ pel que Freud lhe atribui em suas explicações. O que há de notável é que a identificação e o complexo de Édipo sejam noções explicativas. Pois, com isso, Freud satisfaz a essa outra exigência da psi­ cologia concreta, de acordo com a qual as noções mats elementares devem ser atos, atos do "eu"e segmentos da vida dramática84 Pois, em vez de considerá-las como o ponto de partida de uma análise no sentido da psicologia clássica, faz delas noções elementares com as quais se reconstituirá comportamentos tão com­ plexos como o amor, por exemplo. Ora, a identificação e o complexo de Édipo são precisamente os atos do “eu'1e segmentos da vida do indivíduo particular. Por isso mesmo a psicologia concreta pode analisar o drama, sem transformálo em drama impessoal: os “elementos” que utiliza são esquemas em primeira pessoa. É verdade que as noções que acabamos de considerar não são concebidas por Freud conforme a sua essência verdadeira. Estão no mesmo plano que ou­ tras de origem perfeitamente abstrata. Tampouco a análise elementar, de acor­ do com a psicologia clássica, é completamente ausente: a expressão complexo de Édipo, por um lado, e a definição freudiana do termo “complexo”, por outro, provam-no bastante. Embora Freud tenha sido levado, nos seus últimos traba­ lhos — como, por exemplo, Psychologie Collective et Analyse du Moi e Das Ich und das Es —, a basear sempre mais as suas explicações sobre suas noções, sem aterse muito à análise elementar, esta está longe de estar ausente, e a dualidade continua subsistindo. Mas essa dualidade é muito mais evoluída que aquela que constatamos ao analisar a teoria do inconsciente. Com efeito, aí, a atitude fundamental que 80 Cf., por exemplo, Traumdeutung, 4a ed. alemã, p. 114ss. 81 Zur Einkitimg des Narzismus e Psychologic Colletive et Analyse du Moi.

ю Psychologt Colletive et Analyse du Moi, capítulo VIII. 83 Das Ich und das Es, capítulo III, p. 32ss. 84 Cf. acima, capítulo I, item IV, pp. 67-69.

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desvenda a inspiração da psicologia concreta ainda está inteiramente recoberta pela forma técnica produzida exclusivamente pelo abstrato. Aqui, pelo contrá­ rio, trata-se de noções que são concretas em sua própria forma técnica e sobre as quais vem enxertar-se a atitude abstrata, apesar do fato de, aliás, serem utiliza­ das da maneira que lhes convém. Mas essas noções não têm mais poder sobre esta e, embora estejam misturadas indistintamente na própria exposição, a ati­ tude abstrata por um lado cristalizam-se, por assim dizer, separadamente. Pois, na verdade, não é necessária muito perspicácia para ver que a análise elementar aplicada a noções como a identificação e o complexo de Édipo desprende-se por si mesma dessas noções e que são elas e a maneira como elas nos permitem a análise do drama que retêm a atenção. Sejam essas noções definitivas ou não, que tenham exatamente a impor­ tância que Freud lhes atribui, isso não tem importância alguma, do ponto de vista da própria vitalidade de psicologia concreta. O essencial é que podem mostrar-nos que a psicologia concreta não só é capaz de formular exigências que não pode cumprir e conceber um método de que é a primeira a não poder aplicar, mas que é apta a analisar, conforme suas próprias exigências, o drama humano do qual faz o domínio por excelência da psicologia. Essas noções e a maneira como Freud as utiliza em suas explicações mos­ tram que uma psicologia que só se ocupa do drama humano, que só faz intervir em suas explicações noções que, mesmo “elementares”, representam atos huma­ nos, e que, numa palavra, nunca deixa de lado esse plano, nem na investigação dos fa­ tos, nem na sua elaboração teórica, uma psicologia assim é perfeitamente viável, pois já está viva. Resolvida a questão de princípio, todo o restante não passa de questão técnica.

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CONCLUSÕES AS VIRTUDES D A PSICOLOGIA CONCRETA E OS PROBLEMAS QUE SUSCITA 1. - Estudamos a psicanálise na Traumdeutu.ng a fim de extrair desse estu­ do um ensinamento para a psicologia. Encontramos no freudismo uma nova inspiração, contrária à da psicologia clássica, e mostramos que a verdadeira oposição entre a psicanálise e a psicologia oficial está em duas formas irredutí­ veis da psicologia: a psicologia abstrata e a psicologia concreta. Aprofundando a maneira como Freud vê os problemas e concebe seu método, chegamos a des­ tacar as principais características da psicologia concreta. Uma vez de posse das suas exigências, pudemos descobrir os procedimentos fundamentais da psico­ logia clássica, como o realismo, o formalismo e a abstração. 2. - Os esclarecimentos a que pudemos chegar, com a ajuda da psicanáli­ se, sobre as exigências da psicologia concreta revelaram-se instrumento de crí­ tica eficaz no exame da psicologia abstrata. Acontece, todavia, que a psicologia concreta, oriunda da psicanálise, deve começar por virar-se contra a abstrata e servir de princípio a uma crítica interna: tivemos de constatar em Freud, sobre­ tudo no momento da elaboração teórica dos fatos, aberto retomo à abstração. Esse retorno está muito claro e estabelecemos a sua existência não só pelas nos­ sas observações a respeito das noções que Freud introduziu na Traumdeulung, mas sobretudo mostrando que só os procedimentos clássicos permitem dar um sentido à hipótese do inconsciente. Reencontramos, assim, mesmo no in­ terior da psicanálise, a oposição entre a psicologia concreta e a psicologia abs­ trata. 3. - Para que a constatação dessa dualidade não se volte contra o nosso empreendimento, mostramos não só que os “erros freudianos” representam uma etapa necessária no desenvolvimento da psicologia concreta, mas que a psicologia concreta, da forma como resulta da psicanálise, pode fazer muito mais que conceber um ideal científico e formular exigências, sendo que ela já é atualmente viva, porque existe na própria psicanálise certo número de noções

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e de explicações que, estando integralmente conforme às exigências da psico­ logia concreta, provam por isso mesmo sua vitalidade. 4. - Ao longo do estudo, expressamos nossa posição quanto a psicologia concreta, tal como a concebemos, ser chamada a realizar o sonho já antigo de uma psicologia positiva, pois só ela cumpre essa reforma radical do entendi­ mento que a atitude verdadeiramente científica implica e da qual os psicólogos clássicos quiseram fazer economia, substituindo-lhe uma imitação puramente exterior dos métodos científicos. Essa “reforma do entendimento" consiste, ao formular as exigências da psicologia científica, em ir até o fim, sem reservas e sem piedade. Pois não basta formular exigências. Exigências às quais nenhuma realidade corresponda nada representam, e é só mais tarde, uma vez realizadas, que quem as formulou ad­ quire o mérito de ter sonhado com a verdade. Os psicólogos clássicos confun­ dem a cada instante as exigências e sua realização. Ora, sua psicologia nunca conseguiu cumprir as exigências de uma psicologia positiva tais como formu­ ladas por ocasião do nascimento da psicologia moderna. Eis por que a psicolo­ gia positiva só existe na psicologia oficial de hoje como um sonho. 5. - Para demonstrar esse ponto bastaria uma alusão aos nossos desenvol­ vimentos anteriores, pelos quais estabelecemos que os procedimentos da psi­ cologia clássica não podem ter sentido psicológico nenhum. Como poderíamos qualificar de ciência psicológica um conjunto teórico ao qual nenhuma realida­ de psicológica corresponde? Essa demonstração será excelente quando se per­ ceber a verdade da psicologia concreta. Por enquanto, como ainda estamos longe disso, pode-se tachá-la de puramente formal: por entendermos por psi­ cologia o contrário da psicologia clássica, é natural que os procedimentos desta não possam ter sentido “psicológico" algum. Eis por que é preciso mostrar ou­ tra coisa: cabe mostrar que a psicologia concreta é a primeira psicologia positi­ va, porque conseguiu resolver o problema posto, e apesar do número e da divergência das tentativas, mas nunca resolvido pela psicologia clássica: atender às condições de existência de uma psicologia positiva. 6. - Essas condições de existência são três: 1) a psicologia deve ser uma ciência a posteriori, quer dizer, o estudo adequado de um grupo de fatos; 2) deve ser original, isto é, estudar fatos irredutíveis aos objetos das outras ciências,3) deve ser objetiva, em outros termos, deve definir o fato e o método psicológicos, de tal forma que sejam, de direito, umversalmente acessíveis e verificáveis.

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Ora, basta lançar um olhar sobre a história da psicologia nos cinqüenta úl­ timos anos e lembrar-se das críticas com que as tendências antagónicas se autodestruíram para ver imediatamente que nunca se enunciou um programa psicológico capaz de atender a essas três condições ao mesmo tempo. Muito pelo contrário, tem-se procurado, geralmente, resolver o problema sacrificando a segunda condição ou a terceira. A demonstração precisa desse ponto não pas­ saria de um jogo de erudição. Sabe-se que as psicologias introspeccionistas sa­ crificaram a terceira condição e as objetivistas, a segunda, isto é, na medida em que uns conseguiam salvaguardar o caráter puramente psicológico do objeto da psicologia, retiravam-lhe toda realidade científica; enquanto os outros só con­ seguiam pôr na base da psicologia fatos reais, sacrificando a própria psicologia. Dessa maneira, chega-se a psicologias que, não possuindo senão a metade da sua essência, são incapazes de atender à primeira condição: não podem esta­ belecer-se a posteriori, pois são obrigadas a substituir por mitos, como fazem os adeptos da psicologia fisiológica, essa ciência com que sonham sem poder reali­ zá-la. Por isso mesmo as psicologias em foco devem revelar-se, revezando-se, in­ suficientes, mas, como a impossibilidade de atender ao mesmo tempo as duas condições em questão continuam persistindo, procura-se resolver o problema inventando ou introspeções ou objetividades inéditas. Eis por que a psicologia mostra essa oscilação desesperadora entre a introspeção e a objetividade que ca­ racteriza sua história há cinqüenta anos. 7. - A explicação dessa incapacidade fundamental encontra-se na influên­ cia do realismo psicológico. Para a psicologia introspeccionista clássica, direta­ mente oriunda do realismo, o fato psicológico é um dado simples, relacionado a uma realidade percepttvel chamada psíquico. O próprio dos fatos psicológicos é dado pela participação dessa realidade que constitui um mundo ou uma vida no mesmo sentido que a natureza, mas que goza de propriedades opostas. Os psicólogos objetivistas, quando protestaram contra o próprio realismo psicoló­ gico, só procuraram libertar-se da forma técnica do realismo, não da atitude fundamental que a gera: procuraram, eles também, definir o fato psicológico como um dado simples relacionado a uma realidade percepttvel e, até aceitando a alternativa clássica do espírito e da matéria, eles encontraram-se diante da exi­ gência de procurar o fato psicológico nos dados da percepção externa. 8. - E preciso acrescentar que os primeiros psicólogos a preconizar a psi­ cologia objetiva nem conseguiram eliminar a forma técnica do realismo. Acre­ ditaram ser suficiente estabelecer uma relação de correspondência qualquer entre os fatos psicológicos e os fatos exteriores para que o problema da objeti-

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vidade fosse resolvido. Não perceberam que um a tentativa desse gênero só po­ dia ser uma vasta ignoratio elenchi e uma petição de princípio. Ignorado elenchi, ) porque não se trata de saber qual é a face objetiva dos fatos da psicologia clássica mas, sim, qual o resultado que o estudo objetivo do psíquico em si pode propiciar; ) e petição de princípio porque, antes de procurar estudar a face objetiva dos fatos ) psicológicos no sentido clássico da palavra, trata-se de saber se o estudo objeti­ ) vo dos fatos psicológicos não desembocará num resultado totalmente outro. ) Ao procurar estudar os fatos psicológicos “de fora”, os psicólogos em questão aceitaram tais e quais os dados da psicologia clássica, enquanto a psicologia ) nova devia voltar a examiná-los. ) De fato, houve apenas uma tentativa sincera de psicologia objetiva: o ) behaviorismo, tal como resulta das idéias fundamentais de Watson. Foi preciso ) cinqüenta anos e os sucessivos fracassos de W undt, Bechtherev e outros, assim como a revelação do caráter mitológico da psicologia fisiológica logo que extra­ ) pola a fisiologia das sensações, para que do estudo do comportamento animal ) surgisse, enfim, uma concepção positiva no sentido rigoroso do termo. ) O grande mérito de Watson, o dissemos desde o início, é ter compreendi­ ) do que o ideal da psicologia, ciência da natureza, implica uma renúncia absolu­ ta e sem condições à vida interior. Até aí, as psicologias só eram objetivas nos ) prefácios e tinham o hábito de reintroduzir no texto, com mais ou menos in­ ) genuidade, as noções introspectivas. Watson compreendeu que a atitude sin­ ) ceramente científica exigia que se fizesse tábula rasa de tudo que é introspeção ) e espiritualidade, conseguindo o que tinha passado despercebido aos maiores campeões da psicologia objetiva: pensar até o fm a exigência da objetividade em ) psicologia. Dessa mesma maneira o behaviorismo traz uma revelação de valor ) definitiva, a saber, que seus predecessores em psicologia objetiva, Wundt, Be) chetherev e outros, são comparáveis a peripatéticos que querem pesar o diáfa­ ) no e estudar pela estroboscopia a passagem do poder ao ato. Mesmo conseguindo apresentar uma concepção da psicologia conforme o ) ideal da objetividade, a tentativa de Watson é marcada pela mesma insuficiên­ ) cia das anteriores: salva a objetividade, mas perde a psicologia. A prova é que ) apenas Watson começou a tirar as conseqiiências da sua descoberta, na qual ) logo os psicólogos americanos puseram-se a procurar um “behaviorismo não fi­ siológico”. ) De fato, só o comportamento e seu mecanismo visto de fora podem inte­ ) ressar a um behaviorismo no sentido próprio da palavra. Mas, então, a psicolo­ gia é tão objetiva que se afoga, por assim dizer, na objetividade, e tudo o que o )

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behaviorismo poderia ensinar seria da ordem da mecânica animal. Aí está uma solução desesperada; o behaviorismo suprime o enigma do homem e, em seu lugar, precisamente por ter eliminado o que era específico do fato psicológico, só pode oferecer promessas. Daí a incapacidade do behaviorismo enquanto psicologia e o problema do behaviorismo não fisiológico. 9. - Aqui também a incapacidade é devida ao fato de, na própria posição do problema, ser a atitude motora do realismo clássico que atua. Compreen­ dendo com precisão que a vida interior é incompatível com a objetividade, Watson passou, simplesmente, para a percepção externa. Claro que, como ve­ remos daqui a pouco, sua proposta objetiva é menos simplista que a dos seus predecessores, mas resta que também aceitou a alternativa “dentro ou fora”, a diferença toda residindo no fato de que o “fora” está, desta vez, mais biológico que fisiológico. 10. - O que impede a psicologia de tomar-se ciência positiva é que, não podendo satisfazer senão parcialmente às suas condições de existência, está fe­ chada na antítese da objetividade e da subjetividade. Para escapar, mais que sair do ecletismo vulgar que caracteriza hoje o psicólogo médio, precisa de uma síntese no sentido próprio do termo. Se a psicologia clássica é incapaz de realizar essa síntese, é porque acredita que o fato psicológico deve ser um dado percepti­ vo. Só se pode, então, escolher entre a alternativa clássica da percepção interna ou da percepção externa ou ainda recorrer às duas ao mesmo tempo, o que, ma­ nifestamente, implica a ignorância do assunto. Para superar a antítese clássica, teria sido necessário renunciar a ver o fato psicológico numa percepção qualquer e consentir em lançar na base da ciência psicológica um ato de conhecimento numa estrutura mais elevada que a simples per­ cepção. Era o único meio de atender, concomitantemente, às condições de ori­ ginalidade e de objetividade, isto é, encontrar um campo original e objetivo, sem que essa originalidade fosse a de uma “matéria'' nova e sem que essa obje­ tividade fosse a da matéria física, enfim, escapar da alternativa do “dentro” e do “fora”. 11. - Por ter abandonado o realismo com a atitude fundamental que ele implica, a psicologia concreta encontrou no drama humano um grupo de fatos que atendem às condições que acabamos de enunciar; apresenta-se por isso mesmo como uma verdadeira síntese da psicologia subjetiva e da psicologia objetiva. Ao escolher o drama por campo de estudo, não é mais uma percepção qual­ quer que é o ato constitutivo da ciência psicológica. Não é a percepção externa,

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porque seus dados não são ainda fatos psicológicos, e não é a percepção interna, porque seus dados não são mais fatos psicológicos. Com efeito, um gesto que faço é um fato psicológico, porque é um seg­ mento do drama que representa a minha vida. A maneira como se insere nesse drama é dado ao psicólogo pelo relato que posso fazer a respeito desse gesto. Mas éo gesto esclarecido pelo relato que é o fato psicológico, e não o gesto à parte nem o conteúdo realizado do relato. Certo, o gesto tem um mecanismo fisio­ lógico, mas esse mecanismo nada tem de hum ano ainda; portanto, não pode interessar ao psicólogo, ainda não é psicológico. Por outro lado, o conteúdo do relato que posso fazer a respeito do meu gesto implica, visto através da psico­ logia clássica, descrições estáticas ou dinâmicas, mas essas descrições não me interessam tampouco. Implicam o abandono do sentido em proveito do forma­ lismo e dos outros procedimentos que temos descrito; e se a consideração do mecanismo puramente fisiológico do meu gesto é aquém do ponto de vista psi­ cológico, as descrições introspectivas ficam além: o ponto de vista do psicólogo é o que coincide com o drama. 12. - De modo geral, a percepção externa só pode fornecer o arcabouço material do drama e, mesmo assim, é preciso que o dado exterior seja definido à maneira de Watson, isto é, pelo comportamento. Ora, o fato psicológico não é o comportamento simples, mas o comportamento humano, isto é, o comportamento enquanto relacionado, por um lado, aos acontecimentos dentro dos quais se desenvolve a vida humana e, por outro lado, relacionado ao indivíduo, enquanto sujeito desta vida. Enfim, o fato psicológico é o comportamento com um sentido humano. Mas para constituir esse sentido, precisa-se de dados fornecidos pelo sujeito e que chegam a nós por intermédio do relato: o comportamento simplesmente mo­ tor só se toma fato psicológico depois de ter sido esclarecido pelo relato. De tal forma que a constatação do comportamento humano resulta, para o psicólogo, não de uma simples percepção, mas da percepção complicada de uma compreensão, conseqüentemente, o fato psicológico não é um dado sim­ ples: enquanto objeto de conhecimento, é essencialmente construído. 13. - Mas não se pode dizer que o “sentido do drama” seja dado apenas pela experiência interna que o sujeito tenha dos seus comportamentos e que, conseqüentemente, se podemos ultrapassar a simples percepção exterior do comportamento m otor para alcançar o comportamento humano, é porque, por assim dizer, do outro lado, a face interna do comportamento nos é revelada. É óbvio que se faz aí alusão ao relato que o indivíduo pode dar a respeito do seu comportamento. Ora, o relato em questão é essencialmente um relato signifi-

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cativo, e a psicologia só se ocupa dele na medida em que esclarece o drama. Para ver no relato algo além dos materiais destinados a esclarecer o drama, seria pre­ ciso cumprir a abstração, realizar o sentido e estudar do ponto de vista formal o sentido assim realizado. Ora, o que caracteriza a psicologia concreta é que não executa esses procedimentos: não deixa o plano do drama e considera o re­ lato como simples contexto que não nos faz penetrar na vida interior, mas que nos faz compreender um drama que se desenrola diante de nós. Enfim, o fato psicológico não pode resultar, tampouco, da percepção interna, pois esta já im­ plica o abandono do ponto de vista propriamente psicológico, e isso é o menos que se possa dizer, sendo que ao final da análise revela-se como uma pura ilu­ são. 14. - Não sendo o fato psicológico um dado perceptivo, mas o resultado de uma construção, é fácil mostrar que é original e propriamente psicológico sem ser interior, e que é objetivo sem ser da matéria ou do movimento. O drama é original. De fato, ele nada tem a ver com a matéria ou o movi­ m ento puros e simples. A extensão, o movimento e mesmo a energia, com to­ dos os seus estados e todos os seus processos, não são suficientes para constituir o drama. Pois o drama implica o homem tomado em sua totalidade e considerado como o centro de um certo número de acontecimentos que, por relacionar-se a uma primeira pessoa, têm sentido. É o sentido relacionado a uma primeira pessoa que distingue radicalmente o fato psicológico de todos os fatos da natureza. Enfim, a originalidade do fato psicológico é dada pela própria existência de um plano propriamente humano e da vida dramática do indivíduo que nele se desenrola. Mas o drama não é nada “interior”. Na medida em que requer um lugar, o drama desenrola-se no espaço como o movimento ordinário e como, em ge­ ral, todos os fenômenos da natureza. Pois o lugar em que estou atualmente não é simplesmente o lugar da minha vida fisiológica e da minha vida biológica, é também o lugar da minha vida dramática e, mais ainda, as ações, os crimes, as loucuras têm lugar no espaço, assim como a respiração e as secreções internas. Sob outro aspecto, é verdade também que o espaço só pode conter o arca­ bouço do drama: o elemento propriamente dramático deixou de ser espacial. Mas tampouco é interior, pois nada mais é que a significação. Ora, esta não tem e não pode ter assento em lugar: não é interior, nem exterior; ela está além, ou melhor, fora desses possibilidades, sem que isso comprometa de maneira algu­ ma a sua realidade.

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15. - Se o drama não é exterior e nem interior, no sentido espacial do ter­ mo, é todavia “exterior” no sentido lógico. Pois é de fora que o psicólogo aborda o drama e que procura compreender-lhe o sentido e o mecanismo; o drama apresenta-se diante dele como qualquer realidade; deve explorá-lo como se ex­ plora a natureza. Sob esse aspecto, o fato psicológico é objetivo, embora essa objetividade não seja a da percepção exterior. Com efeito, se o fato psicológico é objetivo, não é por ter extensão ou por ser mensurável, mas porque, no plano do realismo empírico da ciência, é exterior ao ato de conhecimento que o abor­ da; sob este ponto de vista é-lhe, até, transcendente; tem sua dialética própria ê só pode ser conhecido de modo mediato pela ajuda dos dados do relato. Em outros termos, o fato psicológico é objetivo, não por confundir-se com o objeto das ciências da natureza e ser o que ele é, mas porque se comporta da mesma maneira diante do conhecimento. Por isso mesmo, os dados da psicologia concreta, sem serem experimen­ tais no sentido vulgar da palavra, são, de direito, universalmente acessíveis e verificáveis. Qualquer um pode empreender, com ajuda do método do relato, a descrição e a análise do drama. 16. - É com razão que afirmamos que a psicologia concreta representa a verdadeira síntese entre a psicologia objetiva e a psicologia subjetiva. Dá razão àquela que não quis um a psicologia que não fosse objetiva e à outra por ter op­ tado pela conservação do caráter próprio da psicologia, mas condena as duas por terem sacrificado tudo ao que só representa uma das condições de existên­ cia da psicologia positiva. Realiza, ao mesmo tempo, o que nenhuma delas pôde fazer: uma psicologia objetiva, ao mesmo tempo que propriamente psicológica. A realidade do fato psicológico tal como definido pela psicologia concreta está livre de qualquer auréola metafísica. Sua afirmação não implica a existên­ cia de uma nova essência no sentido realista do termo, mas apenas a de um grupo de fatos que não levam, de forma alguma, à antítese clássica do espírito e da matéria: a psicologia não conhece nem um nem outro, só conhece o dra­ ma. Os fatos psicológicos levam-nos à presença de um mundo novo, mas um mundo de conhecimentos, não um mundo de entidades e de processos sui generis; a psicologia não nos libera o acesso a uma realidade que possa ser oposta ou jus­ taposta à natureza. Em resumo, a psicologia concreta não conhece a matéria psíqui­ ca e, o que é infinitamente mais importante, não se contenta com a negação puramente formal da tese, mas elimina todos os procedimentos que a geram ou que dela derivam. Por isso mesmo, a psicologia deixa de ser a ciência da vida in­ terior.

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17. - O fato de a psicologia concreta ser uma síntese entre a psicologia ob­ jetiva e a psicologia subjetiva é uma constatação importante quando se trata de mostrar com precisão sua orientação entre as tendências da psicologia con­ temporânea. Mas isso é apenas uma virtude clássica. A constatação — que é muito mais importante, por não interessar só as condições do seu nascimento mas a maneira como, uma vez nascida, deve orientar-se — é que a psicologia concreta é uma psicologia sem vida interior. Eis a virtude verdadeiramente fun­ damental da psicologia concreta; pois esta é essencialmente uma psicologia que renuncia a todos os procedimentos pelos quais o drama humano pode ser transformado em “vida interior”. É a isso que deve sua atual fecundidade; e todo seu futuro depende da conseqiiência e do vigor com o qual poderá man­ ter-se nesta via. Pois não é difícil distinguir o comportamento humano do com­ portamento simplesmente fisiológico ou biológico. O que é infinitamente difícil, e o será até o desaparecimento desta geração criada na ideologia da psi­ cologia abstrata, é não confundir o drama com a vida interior, ou melhor, não responder a todas as perguntas que o drama faz e que levam necessariamente à vida interior. 18. - Para conhecer o sentido do drama é preciso recorrer ao relato do su­ jeito. O conteúdo do relato, visto através da psicologia clássica, implica as céle­ bres noções de imagens, percepção, mefnória, vontade, emoção etc., cuja procura é, mesmo para um psicólogo que concebe a necessidade da psicologia concreta, uma tentação perigosa. Fecho os olhos e vejo a praça da Concórdia com o Obelisco no meio. A tentação de descrever essa visão e fazer dela um ob­ jeto de pesquisa é irresistível. E a mesma tentação que surge em relação a todas as “implicações” do relato. Ora, é nesse momento que se deverá prestar aten­ ção, pois trata-se de segurar-se na vertente dessas implicações. Com efeito, quaisquer que sejam as questões que se levantem a respeito do sujeito do relato, o psicólogo deve começar por interessar-se apenas pdo con­ teúdo, isto é, pela significação. A significação dos comportamentos humanos só pode ser conhecida porque o homem expressa-se pela palavra, ou, se preferir, porque pensa. Todavia, o que interessa ao psicólogo não é o pensamento em si, não é o pensamento que ele deve procurar captar através das suas encarnações: para efetuar sua pesquisa, não deve fazer abstração da significação, pois é ela que importa para a psicologia. 19. - Portanto, de modo geral, as formas do pensamento, os estados de consciência, enfim, o mundo em que atua a psicologia introspectiva constitui um domínio situado além do drama. É preciso que a psicologia desconfie dele.

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O domínio em questão, precisamente por estar além do drama, constitui, em relação à psicologia concreta, uma metapsicologia em que o psicólogo, no sentido positivo do termo, não deve deixar-se levar. Eis um gesto que faço. Compreendo facilmente que seu mecanismo fisi­ ológico nada tem a ver com a psicologia. Mas, enquanto faço esse gesto, tenho pensamentos que constituem como que o forro espiritual desse gesto, e grande é a tentação de mergulhar no estudo “desinteressado” do “forro”. Será preciso compreender, então, que sou psicólogo, e não metapsicólogo. Os pensamentos, em si mesmos, não podem interessar-me. Em contrapartida, posso fazer, a respeito desse gesto, um relato que me dá o sentido do gesto, seu teor humano e indivi­ dual: eis o que interessa ao psicólogo. A primeira obrigação do psicólogo concreto é a aquisição da moderação em relação à metapsicologia. Ora, o ponto de vista da psicologia introspectiva é tão fundo em nós que chegamos a duvidar da legitimidade do esforço necessário para ultrapassá-lo e resistir-lhe. É preciso saber duas coisas. A primeira é que as ciências que são consideradas positivas hoje só puderam chegar a isso sacrifican­ do um certo número de grandes evidências. Assim é que a física moderna foi obrigada a ultrapassar as evidências da visão aristotélica do mundo, e é graças a ensaios que duraram séculos que o .físico pôde habituar-se à visão quantitativa da natureza. O mesmo se dá em psicologia. A vitória sobre a metapsicologia da alma-substância não representava nada, ou, se preferir, era apenas um começo. O que é preciso é a vitória sobre a metapsicologia da vida interior. Em segundo lugar, é preciso saber que, sacrificando as evidências em questão, só se sacrificam falsos problemas. Pois uma parte das evidências a se­ rem sacrificadas revela-se — e procuramos demonstrá-lo ao longo do presente trabalho, assim como nos que se seguirem — como o efeito de uma “ilusão transcendental”. Claro, outras poderão ser retomadas, pois parecem ligadas a fatos reais. Assim é, por exemplo, que o “relato” implica a “memória” e parecenos impossível não estudar esta. Mas é preciso saber que não é a memória que interessa ao psicólogo concreto, mas a lembrança, enquanto esclarece o drama, e este, por ser o objeto primeiro da psicologia — a memória em si só aparece como uma suposição longínqua. De qualquer maneira, é preciso adotar resolu­ tamente a atitude da psicologia concreta com todas as suas conseqtiências e abordar, só depois, certas partes da psicologia abstrata atual, cujo sacrifício apa­ rece hoje como arbitrário. Só depois disso se poderá ver se os problemas em questão podem ou não ter uma significação concreta.

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Em resumo, para a geração que assiste a um progresso científico, a vitória sobre as evidências clássicas parece impossível, e os que preconizam sua neces­ sidade são sujeitos a recaídas esporádicas. E que a transformação das evidências opera-se pouco a pouco, mas seguramente ela se opera, e, para a geração se­ guinte, o problema quase não existe, e tudo aparece numa luz nova. 20. - O que esta pesquisa nos ensina a respeito da psicologia concreta só se refere à sua necessidade e à sua vitalidade, mas a idéia que fizemos dela até agora deve ser aprofundada. Esse aprofundamento não deve ser a priori, nem deixado ao acaso. Ele deve ser feito, por um lado, examinando, com a ajuda des­ se fio condutor que constitui nossa concepção atual da psicologia concreta, aquelas tendências da psicologia contemporânea que denotam para uma orien­ tação concreta; e, por outro lado, adotando o plano que nos é dado pelos pro­ blemas decorrentes da psicologia concreta, tal como a encaramos até aqui. 21. - A psicologia concreta orienta-nos, em primeiro lugar, para o behaviorismo.85Na presente obra utilizamos conentemente o termo “comportamen­ to” e nos agradou totalmente. Mais ainda, vimos desde nossa introdução que atribuímos à tentativa de Watson uma importância capital. É que o behaviorismo deve a sua existência a uma inspiração concreta. Esqueçamos o lado sensacional e o aspecto escandaloso do behaviorismo, isto é, a negação radical e verdadeiramente impiedosa da consciência, da intros­ peção e de todas as noções introspectivas, para nos deter nesta proposição fun­ damental: “O fato psicológico é o comportamento.” Se fizermos depois abstração da interpretação de Watson que se fecha inteiramente na concepção puramente fisiológica da dupla “estímulo/resposta”, achamos que o comporta­ mento é realmente um segmento da vida do indivíduo particular. De fato, afirmar que o fato psicológico é o comportamento é renunciar a reconstituir o homem pela combinação de um conjunto de conceitos de ori85 Como Politzer anunciou no “Preâmbulo” e na “Introdução”, no tom o 11 dos Matériaux abordaria a Cestalttheorie e, no III, o behaviorismo. Temos assim, ao longo do texto, algumas indicações - trilhas m esmo - do projeto que não foi realizado, Roudinesco nos inform a que um grupo de jovens filósofos resolveu fundar, com o dinheiro de herança de George Friedmann, duas revistas, Revue Marxiste e Revue de Psychologie Concréte. Os ideais do projeto politzeriano encontram um meio de divulgação. No pri­ meiro número, de fevereiro de 1929, da Revue de Psychologie Concréte, “fundada a título de experiência psicológica” por Georges Politzer, encontra-se um longo artigo onde é possível identificar os efeitos de sua adesão ao marxismo leninista do Partido Comunista Francês. Fragmentos dos artigos de Politzer foram editados em 1947 por J. Kanapa, publicado pela Edition Sociales com o título La Crise de la Psychologie Contemporaine. U m a edição integral dos mesmos foram editados por Jacques Debouzy e podem ser encontrados em Écrits 2 - Les Fondements de la Psychologie, Paris: Editions Sociales, 1973. (NRT)

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gem mais ou menos suspeita, como sensação, memória, vontade, caráter etc., é afirmar a necessidade de partir do que é verdadeiramente real, pois o compor­ tamento nada mais é que um corte no desenvolvimento contínuo da vida do homem. Em resumo, Watson também quer partir do todo e reconstituir o con­ creto com o concreto, e não com o auxílio do abstrato. Não é isso uma interpretação arbitrária do watsonismo. Watson dá-se perfeitamente conta do caráter concreto da noção de behavior. Sabe-se o quan­ to insiste sobre a necessidade de considerar o organismo as a whole e de renun­ ciar aos cortes tradicionais da psicologia e da fisiologia. Ora, considerar o homem as a whole, estudá-lo em suas evoluções concretas, isto é, nos seus com­ portamentos, aplicar esse ponto de vista sem fraquejar implica, qualquer que seja a interpretação final do termo behavior, uma reforma completa do objeto e das noções da psicologia clássica. 22. - É desta maneira que se justifica a aproximação inesperada que faze­ mos entre o behaviorismo e a psicanálise. Os dois correspondem a uma revolta contra a abstração, que é o caráter fundamental da psicologia clássica: são duas tentativas para introduzir a análise concreta numa disciplina que só conhece até aí devaneios abstratos. Além da biologia e da psiquiatria, a psicanálise e o behaviorismo alcançam-se na aversão ao abstrato e no esforço para repartir aquilo que, no plano particular de cada um, lhes parece ser a vida concreta do homem. Claro, o comportamento humano extrapola muito a noção watsoniana de behavior. Não só porque este ainda não é o drama, e só pode ser o arcabouço dele, mas porque a maneira como o drama é “estruturado” comporta todos os graus, indo de um encenação inteiramente “realista” a uma relação tão afasta­ da, que não tem interesse nenhum. De todo modo, aí está um problema fundamental: aprofundar a noção de comportamento humano indica com precisão seu conteúdo e seus limites. Ora, isso não poderá ser feito senão estudando o behaviorismo e suas diferen­ tes formas do ponto de vista da psicologia concreta. Esse estudo mostrará em que medida o que não diz respeito imediatamente ao drama pode, todavia, ser estudado do ponto de vista da psicologia concreta. Pois há certamente na psi­ cologia contemporânea, mesmo oficial, resultados que extrapolam o realismo e a abstração — ainda que seja só na psicologia aplicada. Mas, para reconhecêlos de maneira precisa, seria necessário retomar todo o conteúdo da psicologia atual e examiná-lo a partir de um novo prisma. E precisamente para essa pes-

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quisa que o exame do que há de vivo e de morto no behaviorismo será de urna importância capital. Essa pesquisa mostrará se é oportuno, e em que direção, constituir urna psicologia geral, ao mesmo tempo em que os quadros e as noções que a orienta­ ção concreta desta supõe. 23. - Da mesma maneira que as nossas análises nos levaram a utilizar a noção de comportamento, assim também a noção de significação e mesmo a de forma tiveram, em nossas demonstrações, um papel fundamental. É o drama que temos dado como objeto da psicologia concreta. Ora, o drama comporta essencialmente as noções de significação e a de forma. Por isso mesmo a nossa pesquisa orienta-se, por um lado, para a tentativa de Spranger e, por outro lado, para a Gestalttheorie, em geral. Aí também estamos diante de uma tendência cuja inspiração é nitidamente concreta, mesmo que seja só pela introdução do ponto de vista do sentido e pelo abandono da análise elementar. Mas, significação e forma, tais como intervêm na psicologia concreta, não têm o mesmo sentido em Spranger e entre os adeptos da Gestalttheorie e, por outro lado, é preciso ir mais longe que o abandono puro e simples da análise elementar, pois é preciso que esse abandono seja, ao mesmo tempo, a renúncia à metapsicologia. Em resumo, não aprofundamos aqui nem a idéia de significação nem a de drama, nem chegamos a determinar suas relações com precisão. Ora, são essas as noções fundamentais da psicologia concreta. Para precisá-las, será necessário estudar a Gestalttheorie. 24. - Esses estudos deverão trazer mais um resultado que, embora não in­ teresse diretamente o futuro da psicologia concreta, interessa à crítica da pró­ pria psicologia clássica. O estudo da psicanálise permitiu isolar um certo número de procedimen­ tos fundamentais da psicologia clássica. Ora, a fim de que a crítica possa escla­ recer tudo a respeito desta, é indispensável estabelecer a lista completa e a análise “total” dos seus procedimentos. Desse ponto de vista, mais uma vez, o estudo das duas tendências de que falamos há pouco é interessantíssimo. Pois, se cada uma delas participa, em certa medida, do concreto, este mostra-se sob outros aspectos, que não os da psicanálise. Podemos, portanto, descobrir procedimen­ tos clássicos que o estudo da psicanálise não revelou ou aprofundar sob novo ponto de vista os procedimentos que já conhecemos. Essa expectativa é tanto mais legítima que a Gestalttheorie, por exemplo, está baseada na crítica desse procedimento clássico, que é a análise elementar. Tratar-se-á, então, de saber

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qual é o lugar exato desse procedimento na hierarquia dos procedimentos clás­ sicos e se sua negação é suficiente para a constituição de uma psicologia verda­ deiramente fecunda — o que nos dará, ao mesmo tempo, um instrumento crítico de primeira ordem para julgar certas tendências da Gestalttheorie. 25. - Portanto, a presente pesquisa levanta problemas que só poderão ser resolvidos nos estudos posteriores que temos anunciado na introdução. Desde já, uma coisa está certa: com a psicologia concreta, a psicologia ingressa numa nova via: o estudo do homem concreto. Mas essa preocupação só é nova em relação aos psicólogos oficiais; na realidade, só representa a volta da psicologia para esse desejo que é a fonte primeira da confiança da qual a própria psicologia ofi­ cial viveu até agora. Esse desejo é o de conhecer o homem. Ao aceitar fazer des­ se desejo um programa científico, a psicologia concreta sistematiza a grande tradição concreta que alimentou sempre a literatura, a arte dramática e a ciên­ cia dos sábios, no sentido prático da palavra. Mas a psicologia concreta, ainda que tendo o mesmo objeto, oferece mais que o teatro e a literatura: oferece a ciência. E é assim que chegaremos a uma psicologia que não é, como a psicolo­ gia clássica, menos, mas mais que os ensinamentos das observações vulgares do homem. 26. - O desenvolvimento da psicologia reserva-nos, certamente, grandes surpresas, pois a história de uma ciência não se adivinha a priori. A psicanálise é um começo e é preciso, agora que se fez luz a respeito da sua essência verdadeira, continuar as pesquisas situando-se num novo ponto de vista. Por outro lado, o behaviorismo e a Gestalttheorie devem também reformar-se por completo; podese dizer que, do ponto de vista técnico, tudo resta por fazer. Os progressos téc­ nicos influirão, certamente, na maneira de conceber os fundamentos. Mas o certo é que não há possibilidade de volta. A psicologia nunca poderá voltar ao realismo e à abstração: o problema está lançado num terreno completamente novo. Nunca poderá retornar à psicologia fisiológica, nem à introspectiva; dois obstáculos barram-lhe o caminho: o behaviorismo e a psicanálise. Numa pala­ vra, e qualquer que seja a imprecisão das nossas fórmulas técnicas e a ressonân­ cia desagradável das fórmulas desse gênero: a metapsicologia morreu, começa a história da psicologia.

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