Critica ao feminismo liberal: Valor-clivagem e Marxismo Feminista 9786588470077


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Table of contents :
Capa
Folha de Rosto
Créditos
AGRADECIMENTOS
LISTA DE SIGLAS
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I – FORMA POLÍTICA, FORMA JURÍDICA E VALOR MASCULINO
1.1 Forma política
1.1.1 Forma política e debates da derivação
1.2 Forma jurídica
1.2.1 Forma jurídica e teoria do Direito
1.3 Estado, Direito e feminismo
1.3.1 Forma jurídica e direitos das mulheres
1.4 Acumulação, regulação e feminismo
CAPÍTULO II – TEORIA CRÍTICA DO VALOR
2.1 Valor
2.1.1 Valor e capital financeiro
2.2 Crítica do valor
2.2.1 Krisis e Exit!
CAPÍTULO III – TEORIA DO VALOR-CLIVAGEM
3.1 Wertkritik e Wert-Abspaltung
3.2 Teorema do valor dissociado pelo gênero
3.2.1 O valor é varão
3.3 Patriarcado e capitalismo
3.3.1 Materialismo histórico e patriarcado
3.3.2 Ideologia, machismo, psique e cultura
CAPÍTULO IV – ROSWITHA SCHOLZ E OS FEMINISMOS
4.1 Scholz e os debates feministas marxistas
4.1.1 Feminismo marxista ou marxismo feminista?
4.1.2 Clivagem do valor e multiplicidade de opressões
4.2 Scholz e os debates feministas não marxistas
4.2.1 Simone de Beauvoir
4.2.2 Judith Butler
4.3 Scholz e o feminismo
4.3.1 Movimentos do feminismo
4.3.2 Discussões e movimentos do feminismo
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Critica ao feminismo liberal: Valor-clivagem e Marxismo Feminista
 9786588470077

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Copyright © EDITORA CONTRACORRENTE Rua Dr. Cândido Espinheira, 560 | 3º andar São Paulo – SP – Brasil | CEP 05004 000 www.loja-editoracontracorrente.com.br [email protected] www.editoracontracorrente.blog Editores Camila Almeida Janela Valim Gustavo Marinho de Carvalho Rafael Valim Equipe editorial Coordenação de projeto: Juliana Daglio Revisão: Marcelo Madeira Diagramação: Denise Dearo Capa: Maikon Nery Equipe de apoio Fabiana Celli Carla Vasconcelos Fernando Pereira Regina Gomes Conversão para ePub Cumbuca Studio Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Ficha Catalográfica elaborada pela Editora Contracorrente) L533 LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. Crítica ao feminismo liberal: valor-clivagem e marxismo feminista | Taylisi de Souza Corrêa Leite – São Paulo: Editora Contracorrente, 2020. e-ISBN: 978-65-88470-07-7 1. Valor-dissociação; 2. Direito. 3. Roswitha Scholz. 4. Marxismo. 5. Feminismo. I. Título. II. Autor. CDD: 305.42 – CDU: 305-055.2 @editoracontracorrente Editora Contracorrente @ContraEditora

À Roswitha Scholz

AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, quero agradecer ao Professor Alysson L. Mascaro, meu mestre e meu amigo, que me apresentou aos debates da derivação e mudou para sempre minha compreensão do Direito e do Estado. Mais tarde, o Professor Alysson me despertou para o estudo da teoria crítica do valor e para a leitura de Roswitha Scholz. Esses estudos, que mudaram por completo meu olhar sobre o marxismo e o feminismo, culminaram na minha tese de doutorado, e, nalmente, nesta obra, primeira desta coleção coordenada pelo próprio Mascaro. Agradeço imensamente à Editora Contracorrente, que acreditou nesta coleção “Pensamento Jurídico Crítico” e, particularmente, neste meu trabalho tão marginal e polêmico, fazendo mesmo jus ao seu nome. Agradeço à querida Professora Solange Teles da Silva, que orientou a tese de doutorado que embasa esta obra, pelos diálogos que me ajudaram a re nar as costuras cientí cas das minhas teses. Agradeço à Professora Danielle de Andrade Moreira e aos Professores Luiz Ismael Pereira e Silvio Luiz de Almeida pelas preciosas contribuições ao aprimoramento deste texto; e à Professora Patrícia Tuma M. Bertolin, cujos questionamentos me deixaram ainda mais convicta das minhas posições e me incentivaram a fortalecer os argumentos. Agradeço às Professoras Maria Beatriz Oliveira e Alessandra Devulsky, bem como aos Professores Camilo Onoda Caldas, Victor Vicente Barau e Pedro E. Z. Davoglio, pelas conversas e eventos que me instigaram a construir e melhorar essas teses sobre bases teóricas tão complexas; ao Professor Luiz Felipe Brandão Osório, que me ajudou com as traduções da língua alemã; e ao Daniel Cunha, coeditor da “Revista Sinal de Menos”, por algumas correções de trechos que lhe encaminhei. Agradeço à Ivana Jinkings, pelo honroso texto da dobra. Ao grupo “Crítica Radical”, do

Ceará, por divulgar as ideias de Scholz no Brasil há tantos anos e receber esta obra tão bem. Agradeço a todos os movimentos sociais, especialmente os que atravessaram a minha trajetória (movimento feminista, movimento estudantil, e MST), por sua coragem na luta, que me mobiliza a radicalizar a teoria, não para contrariar suas práticas, mas com a esperança de construção dialética de uma práxis cada vez mais transformadora, nesta e desta cruel sociedade das mercadorias, em colapso. Às minhas amigas, especialmente, Cássia Moraes, Érica Sevarolli, Mira Diniz, Júlia Lenzi Silva, Marina Pereira, Perla Carolina Müller, Bianca Miranda, Camila Ribeiro Desinde, e Vanessa Cristina Silva, e a todas as minhas alunas e ex-alunas, porque é amando mulheres, compreendendo mulheres, convivendo com mulheres e se reconhecendo nelas que se re ete sobre gênero e feminismo na vida real. Por m, dedico minha maior gratidão aos meus pais, Rosângela de Souza Corrêa Leite e Carlos Alberto Corrêa Leite, e ao meu irmão, David Henrique de Souza Corrêa Leite, sem os quais nenhuma das minhas conquistas seria possível, incluindo esta obra. Também ao meu maravilhoso companheiro, Caio Sobral Gomes Barreiro (e à sua família), que foi fundamental em toda a lavra destas páginas, emocionalmente tão custosa, mas também tão libertadora.

SUMÁRIO AGRADECIMENTOS LISTA DE SIGLAS PREFÁCIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO I – FORMA POLÍTICA, FORMA JURÍDICA E VALOR MASCULINO 1.1 Forma política 1.1.1 Forma política e debates da derivação 1.2 Forma jurídica 1.2.1 Forma jurídica e teoria do Direito 1.3 Estado, Direito e feminismo 1.3.1 Forma jurídica e direitos das mulheres 1.4 Acumulação, regulação e feminismo CAPÍTULO II – TEORIA CRÍTICA DO VALOR 2.1 Valor 2.1.1 Valor e capital nanceiro 2.2 Crítica do valor 2.2.1 Krisis e Exit! CAPÍTULO III – TEORIA DO VALOR-CLIVAGEM 3.1 Wertkritik e Wert-Abspaltung 3.2 Teorema do valor dissociado pelo gênero

3.2.1 O valor é varão 3.3 Patriarcado e capitalismo 3.3.1 Materialismo histórico e patriarcado 3.3.2 Ideologia, machismo, psique e cultura CAPÍTULO IV – ROSWITHA SCHOLZ E OS FEMINISMOS 4.1 Scholz e os debates feministas marxistas 4.1.1 Feminismo marxista ou marxismo feminista? 4.1.2 Clivagem do valor e multiplicidade de opressões 4.2 Scholz e os debates feministas não marxistas 4.2.1 Simone de Beauvoir 4.2.2 Judith Butler 4.3 Scholz e o feminismo 4.3.1 Movimentos do feminismo 4.3.2 Discussões e movimentos do feminismo CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Cotidiano Todo dia ela faz tudo sempre igual Me sacode às seis horas da manhã Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar E essas coisas que diz toda mulher Diz que está me esperando pro jantar E me beija com a boca de café Todo dia eu só penso em poder parar Meio-dia eu só penso em dizer não Depois penso na vida pra levar E me calo com a boca de feijão Seis da tarde, como era de se esperar Ela pega e me espera no portão Diz que está muito louca pra beijar E me beija com a boca de paixão Toda noite ela diz pra eu não me afastar Meia-noite ela jura eterno amor E me aperta pra eu quase sufocar E me morde com a boca de pavor Todo dia ela faz tudo sempre igual Me sacode às seis horas da manhã Me sorri… Chico Buarque de Hollanda

LISTA DE SIGLAS BM

Banco Mundial

CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe EUA

Estados Unidos da América

FBSP

Fórum Brasileiro de Segurança Pública

FMI

Fundo Monetário Internacional

IBGE

Instituto Brasileiro de Geogra a e Estatística

IPEA

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

LGBT

lésbicas, gays, bissexuais e transexuais/travestis

LGBTI lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais e mais outras + identidades afetivo-sexuais e de gênero LGBT Q

lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e queer

ONU

Organização das Nações Unidas

PCD

Pessoas com De ciência

PIB

Produto Interno Bruto

URSS

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

PREFÁCIO Associar o patriarcado ao capitalismo é aumentar sobremaneira o horizonte e os encargos da luta transformadora, mas é, ao mesmo tempo, a única hipótese cientí ca que permite alcançar tanto a determinação da clivagem de gênero quanto a reprodução do capital. Do lado da crítica ao capitalismo, desde Engels – com A origem da família, da propriedade privada e do Estado – não se pode desconhecer o papel da opressão de gênero e das organicidades sociais correspondentes, como a família, para estabelecer a nucleação da propriedade privada e do trabalho assalariado. Do lado das questões de gênero, não se podem tomar seus problemas nos marcos liberais, burgueses: não há lei que resolva o patriarcado. Sua causa é material, econômica, relacional social. Roswitha Scholz é a responsável pela mais avançada conjugação entre gênero e capitalismo. Pensadora de nossos tempos, compartilhando de um ambiente de debates de grande novidade, originalidade e radicalismo – o grupo de intelectuais conhecidos pela proposição de uma Nova crítica do valor –, Scholz investe contra o coração da imensa coleção de mercadorias que constitui a sociedade capitalista: a forma-valor. Partilhando de re exões que se desenvolviam, dentre outros, por Robert Kurz, Scholz propõe que a valorização do valor se faça, necessariamente, estabelecendo uma cisão de gênero: tal dissociação permitirá a constituição de uma forma de reprodução econômica na qual o masculino acumule sobre a hiperexploração do feminino. O valor é o homem. O inovador pensamento de Roswitha Scholz ganha agora, no Brasil, sua melhor sistematização por meio deste livro, que ora se publica, de Taylisi Leite. A jurista e pensadora brasileira lega uma dúplice re exão ao público leitor: tanto o pioneiro estabelecimento dos contornos internos das ideias de Scholz, suas bases, sua estrutura e sua ordenação, quanto, também, a extração pioneira das implicações intelectuais e políticas da loso a de Scholz. O

coração de tal extração está no deslocamento da luta feminista daquele que tem sido seu eixo de gravidade contemporâneo, liberal. Ao confrontar Scholz com as leituras atuais do feminismo, Leite alcança as mais avançadas determinações cientí cas sobre a sociedade capitalista e os mecanismos de luta necessariamente revolucionária para o m da clivagem de gênero. O valor-clivagem é o núcleo da proposição teórica de Roswitha Scholz. Taylisi Leite propõe, inclusive, outra possibilidade terminológica ao termo em português. As leituras e traduções anteriores tomavam a expressão alemã Wert-Abspaltung por valor-dissociação. Como se dá, socialmente, um binarismo de gênero, em suas formas masculino/feminino, o termo clivagem reforça tal cizânia que é constitutiva da subjetividade no capitalismo. Não há uma unidade originária que depois se cinde: há uma sociabilidade cuja forja é necessariamente clivada. Estruturalmente, há um vínculo histórico entre a divisão entre masculino e feminino e o estabelecimento de relações econômicas capitalistas por conta do valor. Tudo o que não é subsumido à abstração do valor, mas é necessário à reprodução do capital, é relegado ao feminino: trabalho doméstico, afetividade etc. As atividades reputadas como femininas são alijadas do trabalho abstrato. Gerar, parir, cuidar de crianças e velhos, cuidar da casa, tais atos são postos em chave diversa daquela da valorização do valor. Mas a sociabilidade capitalista não pode se reproduzir sem essas atividades, donde uma dualidade estrutural para a própria existência dos termos do valor. O sujeito automático do capital não é sexualmente neutro. Inexoravelmente porta a clivagem de gênero como seu lastro. O patriarcado é estrutural e lastreado na materialidade do valor e do capital. O arco de pensadores da chamada Nova crítica do valor é mobilizado por Taylisi Leite para avançar na leitura da determinação da reprodução social capitalista. Seus expoentes mais conhecidos, como Robert Kurz e Anselm Jappe, mas também aqueles que em próprio seu seio são teóricos divergentes, como Ernst Loho , ou mesmo seus antecessores, como Moishe Postone, são per lhados por Leite para uma investigação a respeito da natureza da formavalor e sua crítica. Para os teóricos da nova crítica do valor e para Roswitha Scholz, aponta Leite, o período das últimas décadas do capitalismo, que outras vertentes tratam por pós-fordista ou neoliberal, são de agonia de nitiva da forma-valor. No neoliberalismo e no colapso do capitalismo, a clivagem de gênero se torna mais extrema – o aumento da violência contra a

mulher é um de seus índices. A crise de acumulação do capitalismo não permitirá novos ciclos de pujança produtiva; sua resolução não pode se dar com remendos de bem-estar social, mas sim com a superação de seus termos. Assim também se inscreve a luta contra o patriarcado: não será possível um feminismo nos marcos da crise e do colapso da modernização, dentro do vasto arco de relações da sociedade produtora de mercadorias. Não há possibilidade de um capitalismo “mais humano” nem de um feminismo de luta por “mais direitos”. A re exão de Taylisi Leite sobre o valor-clivagem bebe também das fontes mais avançadas da teoria crítica marxista contemporânea. Busca nos debates da derivação, com Joachim Hirsch e outros, a natureza necessariamente capitalista da forma política estatal. Além disso, remonta a Evguiéni Pachukanis, fundando nele a materialidade da forma de subjetividade jurídica como derivada da forma mercantil. A tese de Leite, acoplando o pensamento de Scholz a tais formas sociais, é a de que Estado e direito portam estruturalmente a clivagem de gênero. Fundadas na mercadoria e no valor, a forma política estatal e a forma jurídica são constituídas pela mesma sorte do valor. Se este se funda na separação estrutural de gênero, o mesmo também se dará com Estado e direito, de tal sorte que não se poderá opor “bom” direito ou “boa” política às próprias formas que são derivadas da dinâmica da clivagem de gênero inscrita no próprio valor. Se o valor é o homem, Estado e direito também o são. Neste livro, Taylisi Leite propõe que se leiam as ideias de Roswitha Scholz como sendo de um marxismo feminista, distinguindo-se da tradição do feminismo marxista. Estabelecendo um inventário da relação entre feminismo e marxismo, Leite investiga divergências e convergências do pensamento de Scholz com leituras como a de Angela Davis ou mesmo Silvia Federici, esta última tratando da separação da produção e da reprodução, com algum paralelo com o valor-clivagem. Também a noção de múltiplas camadas de opressões – classe, raça, gênero –, chamada por interseccionalidade, é problematizada no cotejo com as ideias de Scholz. As próprias críticas da Nova crítica do valor e de Scholz à noção de classe e lutas de classes – dado seu apoio na forma-valor, que se espraia indistintamente a todas as relações sociais – estabelece uma demanda de transformação social distinta e mais radical, estrutural: não se trata apenas de reivindicar poder à classe

trabalhadora e às mulheres, mas acabar com o modo de produção da sociedade produtora de mercadorias. Este movimento se distingue tanto de um feminismo marxista tradicional, lutando em torno de um poder “neutro”, alcançável e disputável, no qual então depois se faria a in exão pela transformação social, bem como dos feminismos liberais, para os quais a luta é por conquistar os espaços da própria sociedade capitalista já estabelecida, num horizonte de aumento da identidade de grupos ou movimentos sociais. A obra de Taylisi Leite, ao fazer a investigação das rigorosas e materialistas proposições de Roswitha Scholz, põe ainda em perspectiva as variadas – e consagradas e mesmo frequentes – leituras do feminismo liberal. A re exão em torno do pensamento de Simone de Beauvoir tem destaque nesse contexto de leituras não-marxistas. As concepções feministas pósmodernas, pós-estruturalistas ou desconstrutivistas fundam-se em uma visão idealista de um ser abstrato, como se o feminino fosse despido de suas condições concretas e suas determinações materiais, produtivas, econômicas. Se Beauvoir é aproveitada pelo pensamento de Scholz, esta estabelece uma crítica radical às ideias de Judith Butler. Para Scholz, Butler não propõe uma resolução concreta aos problemas reais das mulheres, per lhand0-se mais próxima das perspectivas individualistas pós-modernas. A investigação sobre as três ondas ou fases dos movimentos feministas – de burguesia liberal desde o século XIX até a primeira metade do século XX; da liberdade sexual a partir da década de 1960; feminismo radical, de referencial pós-estruturalista, na virada do século XX para o XXI – é posta, neste livro, em confronto com as leituras críticas de perspectivas materialistas. Se são as ideias de Alexandra Kollontai que marcam um ponteiro crítico contra a primeira fase do movimento feminista, liberal, são as ideias de Scholz que perfazem a mais potente crítica ao feminismo contemporâneo, pós-estruturalista. Taylisi Leite oferece, ao público leitor, uma obra incontornável. Ao alcançar as máximas re exões críticas sobre o patriarcado no capitalismo, sua sistematização da obra de Roswitha Scholz deslinda o valor-clivagem como fronteira necessária das lutas. Nem liberalismo feminista nem marxismo que proceda a mero acoplamento quantitativo entre luta de classes e luta de gênero: este livro estabelece um ponto de não-retorno às lutas sociais. Está em causa o capitalismo, a estrutura de sociabilidade da valorização do valor,

que é clivada em gênero. Tal projeto é o resultado de uma trajetória de vida de grande envergadura intelectual e luta. Taylisi Leite destaca-se pelo engajamento radical, intransigente e infatigável nas lutas feministas e das trabalhadoras e trabalhadores. Sua formação, desde a graduação e o mestrado na UNESP até chegar a mim em São Paulo para seus estudos de doutorado sob minha orientação, tem aberto muitos campos de re exão e pesquisa em temas sensíveis de nosso tempo, como o da bioética, dos direitos humanos, do Direito constitucional ou das questões penais, dentro da seara do Direito público. Advogada, professora universitária e intelectual das mais destacadas de nosso tempo, tenho a felicidade de acompanhar há muito seus passos, num convívio acadêmico, de amizade e de ação muito especial. Este livro que ora se publica, originalmente sua Tese de Doutorado, brilhantemente defendida e aprovada por unanimidade no ano de 2019, é um ganho duradouro e incontornável para todas e todos que buscam fazer o vínculo entre saber e agir, entre ciência e revolução. A quem lê estas páginas, convido para que se aventure na descoberta do pensamento mais radical, mais rigoroso e mais materialista sobre a relação entre feminismo e capitalismo. Tal ciência nos aumenta sobremaneira o fardo da luta, mas também aumenta a sua objetividade e a sua perspectiva de êxitos de nitivos. Esta obra pioneira é, acima de tudo, página de esperança. São Paulo, 2020. Alysson Leandro Mascaro

Professor da Faculdade de Direito da USP

INTRODUÇÃO Esta obra é fruto do trabalho de pesquisa de doutorado da autora, cujo objeto consistiu na investigação da teoria da alemã Roswitha Scholz e sua aplicação ao Direito. Para Scholz, o delineamento das questões de gênero está diretamente associado à compreensão do funcionamento do sistema econômico capitalista, especialmente, no que concerne ao conceito de valor. Roswitha, que estudou Psicologia Social, faz parte da Crítica do Valor Fundamental, vertente teórica à qual pertencem eminentes pensadores marxistas do m do século passado e início deste, propondo uma releitura das categorias da economia política de Marx, mormente no que concerne ao trabalho abstrato, ao fetichismo, e aos processos de valorização no processo produtivo capitalista. No interior dessa crítica, que analisa a reprodução da sociedade burguesa como um encadeamento de desdobramentos da “formavalor”, Roswitha Scholz desenvolve uma abordagem radical da cisão de gênero, sustentando que o capital é “homem”, ou seja, arquetipicamente masculino. O diferencial desta abordagem em relação às re exões feministas que têm dominado o mainstream é que parte de uma leitura materialista dos dilemas da mulher na sociedade burguesa, inovadora e provocativa, pois vincula o machismo estruturalmente ao capitalismo, com leituras inéditas a partir da economia política. Em um contexto em que os descontentamentos e as radicalizações dos movimentos feministas só parecem aumentar e que os embates envolvendo sexo e gênero se tornam cada vez mais contundentes em todos os países do mundo, os diagnósticos de Scholz são muito relevantes. Embora seja patente que as mulheres tenham alcançado o reconhecimento formal de sua subjetividade jurídica, que se fez acompanhar pela positivação de múltiplos direitos ao longo do século XX, nas cartas internacionais e nos ordenamentos jurídicos nacionais, a assimetria objetiva entre homens e mulheres na tessitura social permanece abismal.

E, ainda que a mulher tenha sido absorvida pelo sistema produtivo e seu trabalho também seja explorado, seu espaço de in uência e pertencimento ainda está bastante adstrito aos papéis do feminino, e esses mesmos contornos fazem com que as mulheres sejam compelidas a trabalhar em duplas e triplas jornadas. Ademais, a rei cação da mulher a partir da objeti cação de seu corpo remanesce acintosa e a violência contra as mulheres têm até aumentado, especialmente, no Brasil. Além de tudo, nenhuma positivação de direitos na forma jurídica é garantia eterna e imutável de conquista dos bens a que se referem em seu conteúdo, podendo ser retirados a qualquer tempo, principalmente, se levarmos em consideração que a forma de regulação estatal mudou e tende a desconstituir direitos. Nesse cenário, uma investigação teórica acerca das interfaces entre sistema econômico e sexismo não é apenas oportuna, mas urgente, para que se possam analisar os processos sociais de gênero desde uma perspectiva estrutural, e não apenas cultural, evidenciando-se os pilares do patriarcado contemporâneo, bem como a relação entre capitalismo e Estado de Direito. Sem esse olhar, as lutas sociais têm-se centrado em disputas estéticas, e os movimentos cobram do Estado ações que sempre parecerão insu cientes, pois as demandas femininas não se esgotam na positivação de direitos subjetivos, na criminalização da violência de gênero, ou na promoção de políticas públicas. Como Roswitha Scholz empreende um desdobramento teórico crítico do valor, que realiza um aprofundamento conceitual marxista da produção mercantil, a adoção de seu pensamento como marco teórico tem o potencial de elaborar uma análise mais densa das questões femininas nas sociedades das mercadorias e perfazer um mergulho profundo na estrutura do patriarcado, para buscar respostas aos questionamentos que os movimentos sociais estão empreendendo. Esta obra não quer ser pretensiosa, mas temos a expectativa de que incite re exões e debates inéditos no Brasil, para, quiçá, haver uma mudança de caminhos nas lutas feministas do futuro. Embora o Direito Estatal tenha absorvido boa parte da pauta desses movimentos nos países que se pretendem democráticos, o descontentamento e os questionamentos dos movimentos não parecem diminuir. Os textos de Scholz, praticamente desconhecidos no Brasil, sustentam que o machismo e o patriarcado da sociedade burguesa diferem de quaisquer outros porque se constituem estruturalmente a partir do valor – necessariamente

androcêntrico. Isso altera signi cativamente a compreensão dos fenômenos e, consequentemente, as estratégias de enfrentamento. Segundo ela, o capitalismo engendra uma subjugação necessária da mulher de forma muito peculiar, passando pela ontologia do trabalho e pela determinação econômica. Estamos diante de relações idiossincráticas entre patriarcado contemporâneo e modo de produção centrado no valor, que, certamente, não se resolvem pela criação de leis. Por isso, a partir da Teoria Crítica do valor fundamental (também chamada de “Crítica à sociedade das mercadorias”), e da compreensão dos processos de valoração e de fetichização operados pelo sistema capitalista, bem como do seu impacto na dissociação de gênero, discutimos as possibilidades do Estado, do Direito, e do feminismo contemporâneo, incluindo as lutas das mulheres por direitos e reconhecimento. Para enfrentar esse desa o, dispusemo-nos a explorar as proposições teóricas da Crítica do Valor, passando pelas rupturas em seu próprio seio, e por suas divergências conceituais. Como o maior diferencial da proposta de Scholz é a radicalização marxista a partir da crítica da sociedade das mercadorias, não nos furtamos de devassar os contornos dessa teoria, através de seus principais expoentes, como Ernst Loho , Robert Kurz, Anselm Jappe, e outros autores que contribuem para as revistas Krisis e Exit! (publicação do grupo de Roswitha Scholz). E, uma vez que o grupo original desses autores e autoras sofreu uma divisão, importante assimilar as divergências entre os lados cindidos da crítica do valor fundamental para compreender quais são as especi cidades teóricas que marcam o teorema do valor-dissociação, desconectando-o da outra vertente do coletivo, para, então, apresentarmos mais amiúde a teoria do valor-clivagem de Scholz propriamente dita. Também aceitamos o desa o de apontar os reparos e advertências que Scholz faz a autoras consagradas da teoria feminista, a partir do seu valorclivagem, cuja ausência em outras propostas de gênero, para ela, é incontornável e torna outras abordagens débeis ou pí as. Neste aspecto, foi preciso cotejar Scholz com outras perspectivas do feminismo teórico, aspecto que, provavelmente, será o mais polêmico desta obra. Destacamos, primeiramente, o diálogo de Scholz com outras autoras feministas marxistas,

quase sempre complementar e, em alguns casos, em um contraponto dialético. Em um segundo momento, confrontamos Scholz com autoras feministas não-marxistas; como seria inviável cotejar a teoria do valor-clivagem com todos os feminismos teóricos alheios ao materialismo histórico dialético, selecionamos, principalmente, as contribuições de Simone de Beauvoir e Judith Butler, que são apresentadas por Scholz como equívocas ou insu cientes. Ao debater as perspectivas sobre gênero de Butler, adentramos um pouco, também, nas questões LGBTQ. O escopo dessa abordagem não é atacar autoras, nem destruir teorias, mas evidenciar em que medida o feminismo de Scholz se afasta de outras vertentes do feminismo teórico, principalmente o liberal, e evidenciar porque sua contribuição seria mais oportuna para compreendermos os processos de subjugação da mulher na contemporaneidade. É de fundamental importância salientar, ainda, que nosso recorte metodológico afasta o intento de devassar todas as teorias feministas. O que se pretende é, tão-somente, demonstrar qual a perspectiva de Roswitha Scholz acerca das teorias feministas que ela mesma aborda em seus escritos. Esforçamo-nos para que o tratamento de outras teorias feministas casse adstrito à visão de Scholz, numa perspectiva de coerência epistêmica e de seriedade cientí ca. O diálogo com outras teorias, portanto, serve para mostrar tudo aquilo que a teoria do valor-clivagem não é (existencialista, liberal, culturalista, identitária, queer etc.). É imprescindível esclarecer que, embora a obra tenha por título “Crítica ao feminismo liberal”, consideramos desnecessário tomar as teorias do feminismo liberal, propriamente dito, através de ícones como Catherine MacKinnon e Martha Nussbaum, por exemplo, pois temos a convicção de que as premissas teóricas materialistas de que parte essa obra já repelem, metodologicamente, compreensões inequivocamente liberais acerca do feminismo e das demandas das mulheres na sociedade capitalista. O que nos interessa é debater com modelos teóricos e movimentos feministas que não se consideram liberais, mas que, no entanto, acabam como novos e inusitados facilitadores da reprodução do valor graças a novos regimes de acumulação e a remodelações sociais.

A polêmica e a ruptura desta obra consistem exatemente no escopo de descortinar aspectos ocultos de epistemologias e movimentos que se propõem críticos, “de esquerda”, transformadores etc., para revelar que, ao m e ao cabo, estão apenas produzindo mais capitalismo, capturados pela ideologia fetichista e/ou oportunizados para valorizar o valor. Por isso, será proposto um contraponto entre as ideias de Scholz e outros feminismos marxistas respeitáveis; bem como entre o teorema do valor-clivagem e outros modelos teóricos do feminismo, de pretensão ruptural, embora não epistemologicamente marxistas. Temos a consciência de que todas as leitoras eruditas e estudiosas das relações de gênero sentirão falta deste ou daquele autor, desta ou daquela teórica. Porém, esclarecemos que este é um trabalho autoral e o caminho escolhido é determinado por quem se propôs a escrever esta obra. Destarte, os referenciais trazidos para o debate foram aqueles que consideramos oportunos para a construção do argumento, sem demérito de nenhum outro. O que ocorre é que seria impossível dar conta de tudo o que já foi escrito no feminismo, no marxismo, na teoria do Direito etc., além de metodologicamente equivocado, de modo que uma opção precisou ser feita. Esta opção pertence unicamente à autora da obra, por mais que possa frustrar alguma leitora ou algum leitor. Isso quer dizer que este não é um estudo sobre Beauvoir, Butler, Fraser, Federici, Davis ou qualquer outra grande autora, por mais salutar que seja sua contribuição aos debates teóricos feministas, mas a apresentação das críticas e apontamentos de Scholz às proposições de algumas teóricas para evidenciar o seu teorema – a dissociação-valor. Este também não é um livro sobre debates teóricos do feminismo; é sobre o pensamento de Roswitha Scholz e sua aplicabilidade ao Direito, e, por isso, não passaremos por todas as teorias e autoras, nem mesmo as marxistas, mas apenas por aquelas com as quais Scholz debate diretamente para construir seu argumento, ou por obras que consideramos icônicas para realizar um paralelo com os textos de Scholz. Ainda, desde esse ponto, também confrontamos Roswitha Scholz com a militância feminista e os movimentos feministas dos séculos XIX, XX e XXI, e assumimos a responsabilidade pelas autoras escolhidas e movimentos debatidos.

Trouxemos um questionamento acerca da pro cuidade da atuação dos movimentos feministas no mundo das mercadorias, e intentamos perscrutar as razões da crescente radicalização dos movimentos de mulheres e se as agendas propugnadas por elas são idôneas a concretizar transformações nas relações de gênero. Neste ponto, nosso objetivo é compreender os limites do feminismo contemporâneo, revisitando as demandas e a agenda dos movimentos feministas da atualidade, a m de lançar um novo olhar sobre as possibilidades de luta e de conquistas das mulheres no interior da sociedade capitalista. Aqui, cumpre esclarecer que novamente operaremos com advertências tecidas por nós a partir da leitura de Scholz, sem o compromisso de detalhar todas as vertentes, correntes e agendas do feminismo contemporâneo. O que pretendemos é demonstrar como as relações do valor-cisão relativas ao gênero impactam a atuação estatal no que se refere à inclusão das mulheres, especialmente, através de seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos e a positivação de suas demandas no ordenamento jurídico dos Estados nacionais. Procuramos indagar quais as possibilidades de atuação para o Estado – compreendido enquanto forma política – no que concerne às pautas do feminismo e aos direitos das mulheres. Do mesmo modo, questionamos quais as possibilidades para o Direito – compreendido enquanto forma jurídica – nesse contexto. Para alcançar todos esses objetivos, usamos a técnica de pesquisa de revisão bibliográ ca, balanceada dialeticamente com a concretude das relações de gênero na sociedade, as positivações e institucionalizações de direitos das mulheres, bem como as características e demandas dos movimentos feministas contemporâneos. No que se refere à linguagem adotada, com escusas à leitora e ao leitor que já sejam iniciados na “teoria crítica do valor”, optamos pela simplicidade, e por um detalhamento didático dos conceitos ao longo de todo o texto. Aproveitando os muitos anos de atividade docente, recorremos a fórmulas, esquemas e elementos grá cos, a m de tornar este conteúdo acessível, e divulgar as ideias de Scholz no Brasil. Então, a m de viabilizar a metodologia dialético-dedutiva adotada, para as temáticas do marxismo, da forma jurídica, da forma política e dos feminismos, utilizamos obras publicadas e impressas já consagradas na literatura acadêmica acerca dos temas; para as temáticas da crítica do valor e

do valor-dissociação, recorremos às publicadas e impressas, bem como aos textos online de Scholz, Kurz, Jappe, Postone, Loho , e outros autores, disponíveis nas revistas virtuais Krisis e Exit!. Kurz e Jappe possuem obras publicadas por editoras brasileiras e portuguesas, impressas e traduzidas; Scholz e Postone possuem textos publicados em português por periódicos brasileiros; porém, praticamente toda a produção destes e de outros autores (disponível e indisponível na via impressa) pode ser acessada virtualmente em língua portuguesa em alguns domínios. Por essa razão, este trabalho se tornou absolutamente viável, a despeito da nossa falta de uência em língua alemã. Eis uma vantagem desta “era da internet”. Como dito, Roswitha Scholz inscreve-se entre teóricos alemães da crítica do valor que abraçaram seu conceito de valor-clivagem, cujo trabalho está disponível na publicação alemã Exit!. Essa revista eletrônica é um dos principais meios de divulgação da crítica do valor fundamental, ao lado da revista Krisis, mantida por um grupo de intelectuais do qual Roswitha Scholz e Robert Kurz foram expulsos em 2004. Felizmente, há uma versão portuguesa da revista Exit! no sítio lusitano o beco, que nos permite acesso em língua portuguesa a todos os textos de Scholz, além dos seus trabalhos que foram editados em outros idiomas, como espanhol, inglês e francês. No mesmo portal, está disponível toda a produção de vários colaboradores (inclusive, da revista Krisis). Há também um blog português do grupo o beco, que disponibiliza textos da Krisis publicados até o início de 2004, todos com traduções de Boaventura Antunes e Lumir Nahodil. Há, ainda, uma revista brasileira para a teoria crítica do valor, a Sinal de menos, com diversas publicações. Por m, a própria revista Krisis alemã possui textos em português (tudo online). Por ser um referencial teórico novo no Brasil, utilizamos as traduções disponíveis n’o beco, sempre cotejadas com os textos no original alemão disponíveis nas revistas alemãs (online) a m de assegurar o rigor conceitual. Acreditamos que, através da pesquisa, leitura e documentação de todo esse material, junto com outras obras que versam sobre marxismo, feminismo, e teoria do Direito, foi possível constituir um corpo teórico robusto, idôneo a sustentar nossos argumentos. Finalmente, é interessante deixar claro que esta não é meramente uma dissertação expositiva sobre o pensamento de Roswitha Scholz, já que o primeiro núcleo deste trabalho é a aplicação da Teoria do Valor-Clivagem à

Teoria do Estado e à Teoria do Direito, de modo que nossa inovação consiste em demonstrar porque o Estado e o Direito não estão aptos a proteger as mulheres, eliminar as violências sexistas, garantir simetria de gêneros, extinguir o machismo e a misoginia, acabar com o patriarcado, nem promover igualdade material entre os sexos. O segundo cerne consiste numa tese de nossa autoria, que vincula as chamadas “ondas” dos movimentos feministas aos regimes de acumulação capitalista e sua regulação jurídicopolítica. O terceiro foco é propor um marxismo feminista, acompanhando o denodo de Scholz nessa empreitada, em oposição às teorias insu cientes e às feministas liberais. Assim, na verdade, a partir da leitura de Roswitha Scholz, temos três teses autorais inéditas dentro desta obra: a) a primeira é de que a forma jurídica e a forma política são derivadas exclusivamente do valor androcentrado, e não do valor total, de modo que se exclui o valor dissociado dessa relação de espelhamento; b) a segunda é a de que o feminismo tem sido sempre reativo e não propositivo, e, historicamente, tem estado a reboque dos regimes de acumulação capitalista e regulação estatal; c) a terceira é a de que o patriarcado capitalista é um todo que não se compreende de maneira compartimentada, e o método tem que ser rigorosamente materialista, partindo-se da economia política, pelo que ora propomos um “marxismo feminista”, e não um “feminismo marxista”, para xar um novo marco teórico e para sustentar que um marxismo nãofeminista sequer é marxismo. Desenvolveremos essas grandes hipóteses ao longo das páginas seguintes, cientes das múltiplas polêmicas.

CAPÍTULO I FORMA POLÍTICA, FORMA JURÍDICA E VALOR MASCULINO “A sorte das minorias, nas sociedades capitalistas, deve ser tida não apenas como replique, no mundo atual, das velhas operações de preconceito e identidade, mas como política estatal deliberada de instituição das relações estruturais e funcionais da dinâmica do capital. Por isso o capitalismo é machista, homofóbico, racista e discriminador dos de cientes e dos indesejáveis. O capital é historicamente concentrado nas mãos dos homens, cabendo à mulher o papel estrutural de guardadora do núcleo familiar responsável pelas mínimas condições de existência do trabalhador e de reprodução da mão de obra”. Alysson Mascaro1

1.1 Forma política Diante do monismo jurídico estatal, para compreendermos os limites do Direito em qualquer processo emancipatório (incluindo as relações de gênero), precisamos, antes, entender o Estado (único ente produtor do direito legítimo na sociedade burguesa). A partir da tessitura de toda a trama de conceitos da Teoria do valor-clivagem de Scholz, que aponta amálgama a teoria crítica do valor à dialética do iluminismo para forjar uma compreensão do patriarcado capitalista como estruturalmente dado e, por isso, peculiaríssimo, cumpre-nos perscrutar os aspectos concernentes ao Estado que possam ser extraídos desse teorema. A melhor ferramenta para a compreensão do Estado, nesse sentido, vem da epistemologia marxista, porém, não de qualquer interpretação marxista acerca do Estado, mas daquela que o entende como forma política, desde o surgimento dos denominados debates da derivação estatal, ou teoria materialista do Estado. A teoria materialista do Estado não é uma construção teórica fechada. Ao contrário, ela compreende análises bem diferenciadas.

O que elas têm em comum é a referência, sempre especí ca, ao materialismo histórico desenvolvido por Marx e à sua crítica da economia política. Mas o próprio Marx não se ocupou sistematicamente do Estado ou, mais precisamente, da forma política da sociedade burguesa. Em sua obra encontram-se mais exposições esporádicas, por vezes datadas e ocasionalmente também algo equívocas, ou pelo menos mal entendidas sobre esse tema.2

Em nossa perspectiva, uma adequada compreensão do Estado e da política se dá numa posição relacional, estrutural e histórica, dentro da totalidade da reprodução social. Por essa razão, Alysson Mascaro a rma ser primacial que uma teoria do Estado se fundamente na crítica da economia política capitalista, lastreada, necessariamente, na totalidade social, e, para ele, “o Estado é a forma política do capitalismo”.3 As ciências sociais tratam política e Estado identi cando-os ao juspositivismo, com base em ferramentas conservadoras, que restringem os fenômenos apreendidos às suas manifestações quanti cáveis. A compreensão do Estado está sempre agrilhoada à mitogra a contratualista do esclarecimento, e esses padrões não dão conta do entendimento estrutural e histórico dos fenômenos da política e do Estado, nem de seus problemas, contradições e crises. Esse Estado que concebemos hoje nasce como “Estado de Direito”, liberal (e burguês), fenômeno exclusivo da modernidade, mas vai se recon gurando; em todas as suas modalidades contemporâneas, só pode ser apreendido como “forma política” derivada das formas abstratas da economia. Conforme Alysson Mascaro: “O Estado surge historicamente antes; a forma política estatal surge depois”,4 isto é, o Estado, primariamente, se compreendido lato sensu, não é um fenômeno moderno/contemporâneo, tampouco uma criação da burguesia, mas há uma especi cidade do Estado gestado na modernidade que o aparta de todos os seus antecessores. O diferencial do Estado moderno, cuja formulação metanarrativa vai do Renascimento ao Esclarecimento (modernidade), mas se xa no Ocidente com as revoluções burguesas (mormente, na contemporaneidade), em relação aos modelos antecedentes, é justamente a forma política, assim como sua relação ideológica com a sociedade civil (polis).5

Deste modo, admitimos que o Estado contemporâneo nasceu atravessado pela luta de classes e pela dinâmica das relações sociais em disputa; no entanto, a instituição “Estado” não pode ser tomada como elemento xo do domínio de uma classe, uma vez que o Estado deriva da estrutura do capital, mas não necessariamente é sempre seu agente consciente. Ainda, consideramos que a divisão da sociedade em classes, tal como se veri cava no capitalismo liberal clássico e no fordismo, desapareceu. Sabemos que as ideias acerca do Estado não são homogêneas em todo o pensamento marxista, pelo que optaremos por recortar apenas os autores que compreendem o Estado como forma política, correlata às formas do valor, do dinheiro e da mercadoria, vinculando a compreensão da derivação do Estado à crítica do valor (dissociado), permitindo-nos algumas reformulações. Antes, porém, é interessante apresentarmos algumas nuances da compreensão do Estado no pensamento marxista que não aderem à forma política. Para começarmos a palmilhar esse trajeto materialista de entendimento do fenômeno estatal, a leitura de Friedrich Engels é oportuna, mas imprecisa para destrinchar completamente o Estado “burguês”, uma vez que o vincula à uma concepção própria de propriedade privada. Para Engels, o Estado é uma decorrência da propriedade privada e das contradições sociais que esta tem gerado, desde a Antiguidade, situando-se acima da sociedade para promover sua ordenação opressiva.6 Em A Origem da família da propriedade privada e do Estado, ele traz uma de nição de Estado nascido “direta e fundamentalmente dos antagonismos de classes que se desenvolviam no seio mesmo da sociedade gentílica”,7 de modo que esta instituição estatal não seria um poder que se impôs à sociedade externamente, da mesma forma que não se con gura como a “realização da ideia moral” na política, tal qual propugna o kantismo, ou como “a imagem e a realidade da razão”, como na concepção hegeliana, mas um produto da sociedade em determinado nível de desenvolvimento, e que se encontra numa “irremediável contradição”, dividida em antagonismos irreconciliáveis. Para que estes não destruam a sociedade, seria necessário um poder que se coloca aparentemente acima da sociedade, incumbido de manter os antagonismos em limites aceitáveis, com a manutenção da “ordem”.8

Mais adiante, na mesma obra, Engels registra certa relativização da concepção “restrita”, quando reitera o fato de que o Estado nasce da necessidade de conter os antagonismos classistas, mas aponta que este Estado é, “por regra geral”, o Estado da classe econômica dominante, que, por meio da institucionalidade estatal, vem a se tornar também politicamente dominante, e passa a obter novas formas de reprimir e explorar a classe oprimida. Todavia, segundo Engels, “há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes”.9 Assim, Engels identi ca o Estado com a ideologia do Estado, o que é um equívoco. Conforme bem pondera Pachukanis: “O reconhecimento do caráter ideológico deste ou daquele conceito, de modo geral, não nos livra do trabalho de detectar a realidade objetiva, ou seja, aquela que existe no mundo exterior, não apenas na consciência”.10 Além de parecer confundir a forma política com a ideologia, Engels mitiga a função estrutural do Estado, introduzindo uma “ampliação” da teoria do Estado, justamente como resposta à ampliação ocorrida na esfera política no último terço do século XIX, e inserindo elementos da emergente concepção “consensual” ou “contratualista” do Estado no marxismo – o que foi posteriormente aprofundado por Antonio Gramsci. Apesar disso, Gramsci abriu espaço para uma teoria do Estado independente da ciência política, e inaugurou o debate sobre outros lócus políticos na sociedade civil. Nesse sentido, segundo Hirsch et al, ao separar o Estado da política, Gramsci fundou as bases que possibilitaram, posteriormente, a compreensão do Estado e da política como espelhamentos do modo econômico de produção capitalista. Foi Antonio Gramsci quem começou a re etir sistematicamente sobre a independência da política e do Estado. O passo decisivo consistiu na superação de um modelo simples de basesuperestrutura, no qual Estado e política são compreendidos apenas como re exo da base econômica. Essa concepção, que tinha menos a ver com Marx do que com a corrente do marxismo dominante no início do século XX, ligava-se a uma noção teleológica dos processos históricos, pela qual a política não tinha lugar enquanto categoria independente. Gramsci, em suas análises das relações de força e de hegemonia, vincula-se a Lenin, mas ultrapassa uma concepção de Estado puramente

instrumentalista-voluntarista (BUCI-GLUCKSMANN, 1981, p. 87). Com esse novo passo, que coloca em relação a análise do Estado com a análise de relações de força que não se reduzem a relações econômicas, Gramsci abriu o debate de orientação marxista tanto para uma teorização independente do Estado, quanto para uma compreensão de contingência histórica.11

No Manifesto do Partido Comunista, Engels e Marx a rmaram que o Estado moderno possui uma vinculação direta com a propriedade privada e com o capital. Segundo eles, o Estado moderno corresponde à propriedade privada moderna, de tal modo que, gradualmente, o próprio Estado é adquirido pelos proprietários privados, por meio dos impostos e das dívidas públicas, cando completamente à mercê daqueles. Esse Estado possuiria, então, uma existência fora da sociedade civil, através da emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, mas ele nada mais seria do que a forma de organização que os burgueses se dão, tanto externa quanto internamente, para a garantia da manutenção de suas propriedades e de seus interesses. A rmaram categoricamente: “o poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa”.12 N’A ideologia alemã ca clara uma posição de Engels e Marx avessa ao Estado e à democracia burguesa, pois o ideal democrático plural não convive com o individualismo capitalista, assim como a perspectiva de que os aparatos da superestrutura (como o Estado e o Direito burgueses) devem fenecer com a superação do capitalismo. Para eles, a busca incessante dos indivíduos apenas de seus interesses particulares, na sociedade capitalista, inviabiliza a existência comunitária, e, nesse sentido, o ideal liberal burguês de democracia, no interior desse Estado, é também ilusório.13 Seguindo esse raciocínio, em outra passagem d’A ideologia alemã, reiteram a imprescindibilidade do evento revolucionário e a abolição das formas de organização da burguesia: (…) tanto para a produção massiva dessa consciência comunista quanto para a realização da própria causa, é necessária uma transformação massiva dos homens que só pode processar-se num movimento prático, numa revolução; que, portanto, a revolução não é só necessária porque a classe dominante de nenhum outro

modo pode ser derrubada, mas também porque a classe que a derruba só numa revolução consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade.14

A a rmação, n’A ideologia alemã, de que todas as instituições políticas comuns (gemeinsamen) são mediadas pelo Estado15 não foi abandonada por Marx em nenhum momento, em todos os seus escritos. Por isso, a partir do olhar de Althusser, os adeptos da derivação a rmam ser possível uma leitura diferente da que fez Lênin, e da qual se extraia a compreensão de Estado enquanto forma política (ou seja, embrionariamente, esta ideia já estaria presente nos textos marxianos). Conforme Joachim Hirsch: O Estado é a expressão de uma forma social determinada que assumem as relações de domínio, de poder e de exploração nas condições capitalistas. Para se poder entender isso, devemos, em primeiro lugar, analisar a questão do que é a “forma social” e como a “forma política” se relaciona com isso. Uma indicação sobre tal questão pode ser encontrada de forma provisória já em A ideologia alemã.16

Na Crítica ao programa de Gotha, Marx, inclusive, não se escusou de levantar o questionamento acerca de como seria o Estado após a superação do capitalismo, dizendo: “Então, uma questão se coloca: que transformação sofrerá a essência do Estado em uma sociedade comunista? Em outros termos: que funções sociais – análogas às funções atuais do Estado – nela subsistirão?” E pondera: “Essa questão só pode ter uma resposta cientí ca, e não se fará avançar um milímetro o programa, por mais que combinemos de milhares de formas a palavra Povo com a palavra Estado”.17 Porém, ao responder à própria pergunta retórica, em Gotha, propõe uma fase de transição política, na qual o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura revolucionária do proletariado.18 A instalação de uma ditadura não seria uma consequência da ausência de uma teoria ou modelo de Estado em Marx, da qual decorreria o “primado do partido”, mas uma proposta direta para a fase de transição entre o capitalismo e o comunismo, oportunizando as mesmas estruturas do Estado burguês numa de suas piores formas de governo. Ou seja, pela leitura de

alguns escritos, a autocracia socialista não seria uma excrescência das lacunas do marxismo, mas uma proposta clara do próprio Karl Marx. É deste eixo, nas obras marxianas, que advém a perspectiva do Estado socialista leninista, e também é aí, em um sentido mais extremo, que está fundado o stalinismo. (…) a concepção do “Estado como instrumento da classe dominante” foi difundida a partir de certas correntes do pensamento marxista. Também mencionamos que essa visão tem suas raízes nas concepções engelsianas, leninistas e revisionistas de Estado (com nuances que as diferenciam entre si), mas que o impulso decisivo para a difusão dessa doutrina se deu por meio do stalinismo e da in uência da União Soviética ao redor do mundo. A expansão de tais teorias atingiu inclusive o Brasil (…).19

Como, na Crítica ao programa de Gotha, Marx trata o Estado como a “máquina governamental, ou o Estado enquanto constitui, em consequência da divisão do trabalho, um organismo próprio, separado da sociedade (…)”,20 que deve ser superado e abolido com o m do capitalismo, seu escritos dão margem às mais diversas interpretações, desde a possibilidade de manipulação da máquina estatal no socialismo visando à superação comunista, até a concepção derivacionista da forma política. No discurso marxiano, a liberdade e a democracia burguesas são denunciadas como falsas, uma vez que recorrem ao individualismo, ao Estado e ao Direito burguês, como discursos legitimadores e instituições acachapantes, e jamais se transferem do âmbito formal para a concretude da vida. Isto signi ca, consequentemente, que a democracia burguesa não é, de fato, uma conquista humana para a emancipação.21 As instituições políticas são tanto as internas ao Estado, quanto aquelas que lhe sejam correlatas, gravitando no eixo político da reprodução social. O fenômeno político, no capitalismo, não se limita ao Estado, mas nele se condensa. O Estado gura como núcleo material da forma política capitalista, já que a forma política é derivada das formas econômicas do capitalismo. As revoluções burguesas constituíram o Estado e o Direito como formas acopladas tecnicamente uma à outra. As trocas de mercadorias e o trabalho transformado em mercadoria são os dados que talham a forma-

sujeito de direito. A normatividade estatal opera sobre essa forma já dada, conformando-a. A partir das formas sociais mercantis capitalistas, originam-se as formas: jurídica e político-estatal. Ambas remontam a uma mesma lógica de reprodução econômica capitalista, tendo como raiz comum a forma-valor. São pilares estruturais desse todo social que atuam em mútua implicação – lembrando que, no juspositivismo, Estado e Direito são vistos como ângulos distintos de um mesmo fenômeno, sendo que o contorno jurídico é constituído pelo político. Essas formas guardam especi cidades: o núcleo da forma jurídica, o sujeito de direito, não advém do Estado, por exemplo. Acerca dessa mesma ideia fundamental do marxismo com relação ao Estado, seu papel histórico e signi cação, Lênin fez outra leitura no sentido de que o Estado é produto do antagonismo entre as classes, sendo que a instituição “aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis”.22 Ao destacar trecho de O 18 brumário de Luis Bonaparte, Lênin compara-o com o tratamento dado à questão do Estado contida no Manifesto, para ele tratada aí de forma muito abstrata, e consigna que: “aqui [no 18 brumário], a questão se põe concretamente e a dedução é inteiramente precisa, bem de nida, praticamente tangível: todas as revoluções anteriores não zeram senão aperfeiçoar a máquina governamental, quando o necessário é abatê-la, quebrá-la”.23 Lênin, valendo-se da leitura de Marx e Engels, propõe a destruição do Estado, quando a rma que “todo Estado é uma ‘força especial de repressão’ da classe oprimida. Um Estado, seja ele qual for, não poderá ser livre nem popular. Marx e Engels explicaram isso muitas vezes aos seus camaradas de partido, mais ou menos em 1870”.24 Assim, ele interpreta a obra de Marx e Engels ligando-a, em sua totalidade, à ideia de revolução armada: “a essência de toda a doutrina de Marx e Engels é a necessidade de inocular sistematicamente nas massas essa ideia da revolução violenta”.25 Porém, mais adiante, a rma, contundentemente, que “a substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem uma revolução

violenta”,26 ou seja, num primeiro momento pós-revolução, Lênin não propõe a aniquilação do Estado enquanto forma, e sim enquanto conteúdo (de matriz liberal, burguesa e capitalista), propugnando um “Estado proletário” em sua substituição por meio da ação revolucionária. Ainda que Lênin tivesse uma clareza na compreensão da forma política e estivesse, na verdade, propondo uma outra forma, não foi o que de fato ocorreu na história da União Soviética. O modelo da URSS é duramente criticado por Kurz e Scholz, como um “socialismo de caserna” militarizado, que não apenas manteve a forma Estado capitalista, mas que apela para a força e a violência militar, e é incapaz de superar as formas do capitalismo (tantos as formas econômicas que valorizam o valor quanto a forma política estatal). Por isso, a compreensão de eixo marxista-leninista não é epistemologicamente muito congruente com a análise deste trabalho. Nessa toada, consideramos que a abordagem mais adequada a um diálogo com Scholz seria o debate da derivação, que toma as formas sociais do capitalismo presentes em O Capital, de Marx. Então, destoando de Engels, e de Lênin (com sua leitura de Marx), não operamos uma de nição do Estado simplesmente como um aparato apropriado e oportunizado pelos interesses burgueses. Adotamos as concepções dos “debates da derivação”. Nesse espectro, de fato, o Estado, constituído conforme o modo de produção capitalista, é rearranjado e transformado na organização política da sociedade burguesa, mas não porque seja um aparato neutro ocupado de forma ladina e oportunista pela burguesia, e sim porque, desde a sua forma, desde a sua estrutura, é uma instituição capitalista. O vocábulo derivação advém do substantivo Ableitung, da língua alemã, o que não signi ca que haja uma simples determinação, sendo o Estado mero resultado da vontade da classe dominante, mas, sim, de um determinado modo de produção e das relações sociais que lhe são inerentes e diferenciadoras dos modos anteriores. Daí o estudo especí co do Estado no capitalismo. Nesse diapasão, a teoria da derivação representa um caminho de superação dos impasses políticos. Em meio à falência do modelo de bem-estar social, a emergência do neoliberalismo e o engessamento das leituras do tipo soviético, a esquerda, nessa encruzilhada, vinha re uindo, reduzindo-se a apenas uma postura

de resistência ao neoliberalismo, sem proposições alternativas de desconstrução de perspectivas socialistas. No seio das contradições extremas do capitalismo desenvolvido de bem-estar social e já entrevista a crise da experiência soviética, o marxismo avança para compreender o Estado a partir das categorias que estruturam a sociedade capitalista.27

Inclusive, seguindo a crítica de Kurz,28 a doutrina bolchevique do Estado como comitê burguês e a consequente necessidade de revolução violenta para implantação da ditadura do proletariado tornaram-se marcas do socialismo de caserna stalinista, que é absolutamente incongruente com as leituras de Roswitha Scholz, sempre voltadas à emancipação. As interpretações “do leste” e do ocidente parecem similares, mas não o são. Enquanto a tradição leninista compreende o Estado capitalista por um viés econômico determinista ao mesmo tempo em que admite um aparelho estatal socialista provisório, a teoria do Estado marxista ocidental passou a desenvolver estudos quanto à forma, até que, na segunda metade do século XX, amadureceu a ideia de que as formas são derivadas. O desenvolvimento da teoria materialista do Estado a partir de Marx é caracterizada essencialmente pela diferença entre, por um lado, o marxismo “do leste” – isto é, o desenvolvido na União Soviética pós-revolucionária e posteriormente nos países de sua área de poder – e, por outro lado, o marxismo “ocidental” (cf. especialmente, quanto a isto, ANDERSON, 1978). Enquanto o primeiro de niu-se em grande medida pelo interesse acerca do aparelho de domínio estatal-socialista e continha traços economicistas e histórico-deterministas, no interior do segundo realizou-se um crítico e contínuo debate com a perspectiva marxiana. Por m, tratou-se, igualmente, de transformar em produtiva a análise marxiana das formas sociais para a teoria do Estado, para uma elaboração mais precisa da teoria da ideologia, na tentativa de decifrar a metáfora teórica da base-superestrutura e, nesse contexto, sobretudo, também por essa razão, demonstrar a autonomia dos processos políticos e das lutas sociais para o desenvolvimento social, bem como para a transformação do Estado. Faz parte desse contexto toda uma série de abordagens verdadeiramente diversi cadas, que também são desenvolvidas para cada quadro histórico e institucional.29

Há um impacto na adoção de uma ou outra compreensão. Para a primeira, o Estado é capitalista porque foi forjado historicamente pela burguesia e serve ao modo de produção capitalista; por isso, deve ser destruído junto com o capitalismo. Todavia, a institucionalização do poder político que nasce da revolução socialista seria capaz de estabelecer um outro Estado, proletário, cujo propósito é a realização do comunismo. Para a segunda vertente, o Estado (compreendido enquanto Estado moderno), que se constituiu, em sua gênese, como Estado nacional, constitucional, territorial, soberano, de direito, fundado na legalidade, hierárquico, burocrático etc. é, obrigatoriamente, capitalista. Não existe Estado (moderno) não capitalista, pois essa con guração está na forma em si. Essa intelecção só é possível por meio do estudo (principalmente do Livro I) d’O Capital, onde Marx desenvolve as categorias abstratas (formais) que constituem a economia capitalista, como “trabalho”, “dinheiro” e “mercadoria”. Essas formas são abstratas e derivam em outras, como a “forma política”. Em O capital Marx se limitou à investigação da forma valor e das consequências decorrentes dela sobre o processo de reprodução econômica e o desenvolvimento das relações de classe. Ele não chegou à formulação de uma teoria do Estado. Entretanto, é possível realizar esse passo teórico apoiando-se em sua obra e, consequentemente, desenvolver a forma política, enquanto expressão do modo de socialização contraditório do capitalismo. Aí encontra-se o elemento básico fundamental de uma teoria materialista do Estado.30

Assim, para o marxismo que compreende o Estado como “forma política”, o texto-base é O Capital,31 uma vez que, nos demais escritos, há severas ambiguidades que possibilitaram a interpretação leninista e, até mesmo, o stalinismo, entre outros regimes do século XX. Nesse compasso, a primeira percepção sobre o Direito como forma social vem de Evguiéni Pachukanis, e a leitura materialista do Estado parte de Louis Althusser.32 Para este, o Estado, ao invés de um aparato burocrático xo que pode ser usado tanto pela burguesia quanto pelo proletariado, é obrigatoriamente capitalista e epicentro da ideologia do valor, através de seus “aparelhos ideológicos”: “(…) devemos dizer que, em si mesmos, os Aparelhos Ideológicos de Estado

funcionam de um modo massivamente prevalente pela ideologia embora funcionando secundariamente pela repressão, mesmo que no limite, mas apenas no limite, esta seja bastante atenuada, dissimulada ou até simbólica”.33 O Estado, então, operaria como um grande catalisador da ideologia, que se espraia por meio de múltiplos aparelhos ideológicos, de modo que, em todo o tecido social, haveria regiões que se aglutinam como ideologicamente estatais, tal qual proposto por Louis Althusser: “Precisemos antes de mais um ponto importante: o Estado (e a sua existência no seu aparelho) só tem sentido em função do poder de Estado”.34 Para conceituar melhor, esclarece: Designamos por Aparelhos Ideológicos de Estado um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas. Propomos uma lista empírica destas realidades que, é claro, necessitará de ser examinada pormenorizadamente.35

Os maiores exemplos seriam o sistema educacional, que prepara indivíduos para funções correspondentes na divisão social do trabalho; a família, que confere as mínimas condições existenciais do trabalhador e a reprodução geracional da força de trabalho (tema que exploraremos melhor adiante a partir de Scholz); bem como as religiões, os sindicatos, os meios de comunicação de massas, os sistemas culturais e também o meio.36 Essa trama de aparelhos ideológicos e repressivos, por sua vez, possui uma única nalidade precípua, que é garantir a valorização do valor: “Como é assegurada a reprodução das relações de produção? Na linguagem da tópica (infraestrutura, superestrutura), diremos: é, em grande parte assegurada pela superestrutura, jurídico-política e ideológica”.37 Os núcleos da sociabilidade na sociedade das mercadorias são, assim, aparelhos ideológicos, que trabalham eminentemente no nível ideológico, constituindo subjetividades e relações sociais. Aparelhos repressivos (polícia, exército) estão praticamente concentrados em mãos estatais, ao passo que aparelhos ideológicos perpassam tanto o Estado quanto se esparramam por regiões do plano político não imediatamente estatais,38 mas secundariamente sim, pois seu funcionamento depende da anuência ou conivência do Estado e do Direito. A ideologia também integra a forma política, entretanto, é

preciso enfatizar que não se trata de uma metafísica no plano ideológico, que pode ser alterada com uma mudança de pensamento, de valores e de cultura. Althusser concebe a ideologia replicada pelos aparelhos do Estado como condição sine qua non da reprodução econômica, e vice-versa, de modo que só será aniquilada com o m do capitalismo, num sentido teórico muito aproximado ao do valor-clivagem de Scholz. O domínio estatal não se esgota, portanto, nos aparelhos repressivos, mas também está presente o poder estatal nos assim denominados por Althusser Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Aqueles aparelhos ideológicos de Estado, cuja concepção se coloca reconhecível na tradição gramsciana do Estado ampliado, compreende por exemplo o AIE religioso (as diferentes Igrejas), o AIE escolar, o AIE familiar, o AIE político (partidos, associações), o AIE da informação (mídia), e daí por diante. A ampliação da compreensão marxista do Estado por parte de Althusser pressupõe, como já havia sido feito em Gramsci, uma interpretação própria do conceito de “base-superestrutura”.39

Desta feita, para Hirsch, a proposta althusseriana é boa e pode ser aproveitada desde que a compreensão do Estado e de seus aparelhos repressivos e ideológicos, enquanto elementos superestruturais, não sejam compreendidos como fenômenos secundários que advêm da economia capitalista, mas como parte da totalidade, que articula as dimensões econômicas, ideológicas, políticas e sociais. E, na abordagem derivacionistascholziana que propomos, quando a família, a igreja, a escola, os meios de comunicação de massas etc. achacam os indivíduos com as constituições determinantes do binarismo40 patriarcal (compelindo-nos, violentamente, a corresponder aos parâmetros do que é ser homem e do que é ser mulher) estão realizando o escopo da forma política (na condição de aparelhos ideológicos que a compõem) e essa função está atravessada, obrigatoriamente, pela derivação das formas econômicas do capitalismo. As assim chamadas “superestruturas”, nas quais se alocam também a ideologia e o Estado, não são, segundo esta compreensão, “epifenômenos” secundários. Pelo contrário, do ponto de vista da reprodução, constata-se que elas são constitutivas para a existência do todo social. O todo social, que Althusser compreende como estrutura dominante, não se deixa reduzir a um traço essencial

como “a economia”. Esse todo e a dominância, veri cável no capitalismo, da instância econômica, pode ser compreendida em sua existência apenas através da remissão às instâncias ideológicas e políticas.41

Segundo Luiz Felipe Osório, Joachim Hirsch integra, com protagonismo, um grupo de pensadores que, in uenciados por Althusser e Pachukanis, a partir da década de 1960, voltaram os olhares para os elementos losó cos e políticos da superestrutura, apropriando-se das categorias econômicas marxianas: “Entre os prenunciadores estão Pachukanis e Rubin. O ponto de partida é a leitura de Althusser, que reverberou desdobramentos teóricos em diversos países, como Alemanha, Inglaterra e França”.42 Esse movimento teve início na década de 1960, devido ao reconhecimento das insu ciências do modelo keynesiano para dar conta das mazelas do capital, impulsionando os marxistas a voltarem sua atenção para os limites do Estado. Desde este ponto de partida, adotaremos, em de nitivo, a “forma política” dissecada por Mascaro (2013), que busca esse conceito em Joachim Hirsch e em Evguiéni Pachukanis, pois sua percepção já aproxima mais da teoria do valor dissociado, uma vez que Roswitha Scholz insiste na ideia de que o binarismo e a hierarquização de gêneros não são meramente culturais, ideológicos ou simbólicos, embora obviamente tenham essa dimensão, ao passo que Mascaro também compreende as relações de gênero e raça como necessárias ao capitalismo. 1.1.1 Forma política e debates da derivação Os chamados “debates da derivação”, a despeito de suas múltiplas divergências internas, serão tomados como ponto de parte de nossa compreensão do Estado, uma vez que reposicionam sua compreensão política e teórica em relação ao capitalismo, através de uma releitura de Marx. “O debate desenvolveu-se durante mais de uma década, envolvendo especialmente pensadores da parte ocidental da Alemanha (ex-República Federal da Alemanha) e da Grã-Bretanha, tendo sido denominada, respectivamente, como Staatsableitungsdebatte e state derivation debate. Em

português, a denominação corrente tornou-se ‘debate derivacionista do Estado’, ou ‘debate da derivação do Estado’(…)”.43 Não é uma coincidência que tais debates tenham emergido nesses dois países. A Alemanha da década de 1970 ainda sofria os impactos da grave recessão de 1967. O país tinha vivido uma era de imenso crescimento econômico nas décadas de 1950 e 1960, in uenciado pelo “Plano Marshall” do pós-guerra, que fomentou a retórica do “milagre alemão”, inclusive, para fazer frente à Alemanha Oriental, demonstrando o quanto a adesão ao capitalismo era muito mais “vantajosa”. A partir de 1966, porém, o crescimento “milagroso” começou a estagnar, tornando-se severa crise em 1967. De outro lado, na Inglaterra, o fracasso do plano econômico de Harold Wilson havia gerado desvalorização da libra e desemprego, que motivaram mobilizações de estudantes e trabalhadores, achacados também pela redução paulatina de políticas de bem-estar – o que viria a culminar nas “mãos de ferro” de Margaret Thatcher. O contexto histórico e econômico tornava evidente que o Estado não era capaz de conter as crises, não podia impor políticas econômicas sem a conivência do capital global, e jamais promoveria crescimento através de decretos, pois estaria sempre a reboque do movimento do valor. Nesse contexto, é que despontaram diversos autores e autoras que contribuíram para uma nova leitura marxista do Estado nos debates da derivação (ao mesmo tempo em que orescia a nova crítica do valor para uma releitura da economia). Os principais pensadores alemães do debate derivacionista são oriundos dos círculos universitários de Berlim e Frankfurt. São eles: Rudolf Wolfgang Müller, Christel Neusüβ, Elmar Altvater, Bernhard Blanke, Ulrich Jürgens, Joachim Hirsch, Freerk Huisken, Margaret Wirth, Claudia von Braunmühl, Heide Gerstenberger, Sybille von Flatow e Hans Kastendiek. (…) Entre os pensadores britânicos que integram a teoria derivacionista, destacamos John Holloway, Sol Picciotto. Bob Jessop e dois interlocutores de destaque: Werner Bonefeld e Simon Clarke.44

No princípio, devido às próprias circunstâncias históricas e econômicas, os autores e as autoras voltaram seus olhares para os limites da atuação estatal

perante o sistema econômico, com foco nos fracassos e insu ciências do Welfare State, da ampliação dos direitos sociais, da crença nas políticas públicas para promover dignidade humana e reverter desigualdades, e em todas as estratégias econômicas de crescimento inspiradas nas teses de John Maynard Keynes. Segundo Hirsch et al, a fricção causada pelas crises econômicas de então foi acossada pelos levantes franceses de maio de 1968. O cenário geral de descontentamento na Europa in uenciou as pioneiras críticas, que reconheciam, pela primeira vez, os limites do modelo de bem-estar social: A discussão em torno do Estado burguês limitou-se nos anos setenta, sem dúvida, à França. Ela existiu também na Alemanha ocidental, na esteira dos movimentos estudantis de protesto, e também aqui ela foi conduzida sobretudo no contexto marxista. Dois fatores foram especialmente signi cativos para uma discussão crítica acerca do Estado: Em primeiro lugar, a transformada situação econômica. A partir de meados dos anos sessenta, manifestações de crise econômica tornaram-se cada vez mais perceptíveis também na República Federal – como em todos os países capitalistas centrais. Já de início tentou-se fazer frente a elas por meio de uma “gestão global”, ou seja, com instrumentos keynesianos de política econômica, e no início dos anos setenta o assunto crescente era o do “limite do keynesianismo” (ESSER, 1975, p. 9-10). Essa “percepção de limite” signi cou, em última instância, nada mais do que do que a con ssão do fracasso da política de direção estatal, assim como que as promessas de pleno emprego e crescimento contínuo não haviam de ser cumpridas.45

A partir das percepções acerca das insu ciências da adoção de um modelo estatal de “bem-estar social”, os debates evoluíram para uma compreensão mais aprofundada acerca da estrutura estatal. Cada vez que o capitalismo passa por uma crise, reestrutura-se uma nova forma de acumulação e, ao mesmo tempo, exsurge uma nova forma de regulação estatal. Após a Segunda Guerra Mundial, o idealismo liberal forjou o “Estado de bem-estar pleno”, que é praticamente uma cção. O próprio Estado de “bem-estar social”, gestado desde a primeira metade do século XX, somente opera enquanto contribui para a valorização do valor, porque há uma relação de dependência entre a forma política e o processo produtivo. Essa constatação levou os estudiosos a desvendarem as minúcias da forma estatal, e

chagaram à conclusão de que acreditar que o Estado é um aparato volúvel ocupado historicamente pela classe burguesa é um grande equívoco. Esse engano leva à “ilusão” de que a classe trabalhadora poderia ocupar o Estado, ou fazer pressões políticas para que ele passe a atuar conforme suas demandas. Portanto, cuidava-se de demonstrar que o Estado da sociedade capitalista-burguesa é relativamente autônomo em relação às classes (incluídas as capitalistas), e não pode constituir um simples instrumento delas, mas permanece ao mesmo tempo sistematicamente vinculado às condições e regularidades estruturais do modo de produção capitalista, e deve ser tratado como parte constitutiva deste; demonstrar, portanto, o Estado capitalista é um “Estado de classe”, sem que possa ser um instrumento imediato de uma classe. Essa forma especí ca de relação de domínio, o fato de que o domínio de classe manifestase num dispositivo formalmente independente e aparentemente superior às classes, é o fundamento da “ilusão do Estado”, ou seja, a consideração de que o aparelho de Estado estaria aberto em igual medida a todos os interesses sociais, e poderia, por caminhos democráticos, ser instrumentalizado no sentido de uma reforma política “anticapitalista” ou, no mínimo, de uma reforma política fundamental.46

Adotamos a compreensão derivacionista de Estado e a categoria “forma política”, que percebe que é absolutamente “insu ciente relacionar o conteúdo da atividade estatal e do Direito com os interesses da classe dominante, ou ainda explicar as funções do Estado apenas a partir da luta de classes e predomínio de uma delas”.47 Como adverte Mascaro: “O Estado não é domínio dos capitalistas; menos e mais que isso: o Estado é a forma política do capitalismo”.48 Por isso, o Estado não é, tampouco, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns; na realidade, não se trata de questões subjetivas. O Estado é a forma política adequada para viabilizar a reprodução do valor, condensando toda a sociedade civil numa abstração contratualista, que legitima o aparato burocrático, a forma jurídica, e a exclusividade de violência. Há um liame simbiótico entre a valoração do valor e essa con guração estatal, de modo que não é possível tomar esse mesmo Estado, com todos esses contornos, e utilizá-lo para “combater a burguesia” e aniquilar o

mercado, nem para “destruir o patriarcado”. Nesse, sentido, trabalharemos com outra leitura da percepção de Marx acerca do Estado, conservando sua ideia primordial de que precisa ser abolido, num sentido categorial mais profundo, uma vez que sua forma, e não apenas seu conteúdo,49 está amalgamada ao capitalismo, de modo que não é logicamente possível um “Estado de Direito” proletário, não burguês. O Estado, então, não é mero comitê gestor dos negócios da burguesia. À exceção de crises extremas, de modo geral, o Estado já se institui para sustentar a luta de classes em seu interior e para sempre con gurar tal luta a partir de termos políticos. A relação entre Estado e capitalismo se estabelece a partir de uma penetração do econômico no político, num processo de imbricação recíproca. Eles se estruturam conjuntamente. A economia capitalista não existe sem a forma estatal correspondente, assim como a própria forma estatal só pode existir nas condições de reprodução econômica do valor. Se há autonomia desse modelo de Estado, ela existe de modo relativo, ncada na dependência estrutural e existencial de determinado tipo de reprodução social (capitalista). Assim, acompanhando Mascaro e Scholz, não sendo burguês ou masculino, imediatamente, o Estado sempre o é de modo indireto, pois a forma estatal é estruturalmente capitalista (e o capitalismo é o patriarcado capitalista). Isso não signi ca a rmar que o Estado é uma instituição racionalmente desenvolvida para se acoplar à forma-valor dentro de uma razão teleológica muito ordenada, nem que a forma política opera sempre como um agente lúcido da reprodução do valor, pois essa seria uma compreensão idealista do desenvolvimento das formas sociais, de inspiração hegeliana. É preciso sempre ncar a perspectiva materialista: as relações de produção vincularam-se às formas produtivas e, de modo contingente, aparelhos institucionalizados acoplaram-se ao modo de produção, conformando-se o Estado. Isso signi ca que a forma política não precisaria ser, necessariamente, essa do Estado de Direito, mas ocorre que foi esta forma que historicamente se consubstanciou com a melhor aderência possível às formas econômicas diante da conjuntura. O Estado moderno, desde a sua origem, ocupa a posição de garantidor dos negócios jurídicos, ou seja, é o terceiro necessário às relações capitalistas; em sua dinâmica econômica (receita e despesas), alimenta-se de tributos, o que depende do desenvolvimento do capital e de sua capacidade

arrecadadora, mas é por muito mais do que isso que o Estado é obrigatoriamente capitalista. Essa imbricação entre capital e Estado faz, inclusive, com que a crise de um seja também a crise do outro. Foi a institucionalização do Estado de Direito, constitucionalista e republicano que, no período de acumulação liberal, instalou-se como a forma política do capitalismo, e pôde desempenhar esse papel com a melhor e ciência, dentro das condições de possibilidade. Seguindo esse raciocínio, é inócuo acreditar que seria possível converter o Estado num instrumento de emancipação, através da ampliação dos mecanismos de democracia representativa e participativa, dos direitos sociais, das políticas públicas e da intervenção na economia, pois a forma Estado Democrático de Direito foi, tão-somente, uma recon guração da forma política com o escopo de apresentar um melhor desempenho na regulação de novos regimes de acumulação. A “new left” que, desde a década de 1960, organiza-se enquanto esquerda democrática, para se opor às propostas de revolução violenta do stalinismo, também estaria, assim, em erro, pois acredita que, através da democracia burguesa (ocupar a forma política via eleitoral) e da conquista de direitos, com ampliação dos direitos sociais e inclusão das minorias na subjetividade jurídica, vai domesticar o capital e promover emancipação. Para os debates derivacionistas, um dos maiores enganos da esquerda do século XX foi crer que poderia converter o Estado numa estrutura a seu favor, e, aí, estariam enganados tanto os bolcheviques quanto a esquerda libertária (englobando, infelizmente, praticamente todos os partidos de esquerda do mundo hoje). “Assim, o derivacionismo pode ser visto como uma crítica da tradição soviética stalinista (e do mecanismo economicista) e ao mesmo tempo como uma busca pelas ‘condições e dinâmicas’ próprias do Estado”.50 A assim realizada “derivação” da “especialização” do Estado em face da economia não pode ser de tal forma mal compreendida, que o Estado seja de fato posicionado em relação à economia (capitalista) de modo exterior e neutro. A separação/especialização é, muito mais, a forma da presença constitutiva do político nas relações de produção capitalistas, para aplicar nesse contexto a acima mencionada tese de Poulantzas.

Aliás, seria um erro de interpretação funcional supor como necessariamente dada a forma política especi camente manifestada no formato do Estado e de sua especialização. Na verdade, esta é sempre disputada, e com isso fundamentalmente precária em sua existência.51

Por essa razão, umas das preocupações mais prementes desses debates é investigar a constituição histórica desse modelo estatal, compreendendo se avançou em paralelo ao sistema econômico ou de maneira espelhada, “derivada”. Na modernidade, o nexo entre capitalismo e Estado é estrutural: o Estado passa a ser concebido como ente terceiro, garante e necessário da dinâmica do capitalismo. O Estado, nestas con gurações, é, portanto, um fenômeno especi camente capitalista. Na narrativa liberal, ele paira sobre a sociedade, distanciando-se da perspectiva classista, e se converte num árbitro supostamente imparcial para realizar a mediação entre capital e trabalho. Assim, no capitalismo, o campo político é constituído como necessariamente afastado dos agentes que portam e transacionam mercadorias (seja capital, seja trabalho assalariado), mas é justamente ao se a rmar como poder terceiro que o Estado exerce papel decisivo na reprodução da dinâmica capitalista de valorização do valor. A modernidade engendrou uma sociedade sobre os parâmetros da troca, advindos da circulação mercantil, e o Estado surgiu como terceiro na relação contratual, para mediar a dinâmica entre capital e trabalho; ele garante a mercadoria, a propriedade privada, e os vínculos jurídicos de exploração que jungem capital e trabalho. Para desempenhar esse papel, não precisaria ser obrigatoriamente constitucional, tripartite ou sufragista, mas ocorre que assim nasceu e se desenvolveu, com nuances presidencialistas, parlamentaristas, federalistas etc., mas sempre apto a performar enquanto forma política do capitalismo. Resumindo: a forma política capitalista não pode ser confundida com o aparelho estatal concreto, pois esse é apenas a expressão institucional de estruturas sociais existentes atrás dele. As determinações formais capitalistas – econômicas e políticas – atravessam todas as áreas sociais, marcam então tanto as burocracias de Estado como o sistema partidário, as associações de interesses e a mídia, as instituições econômicas e até a família.

Assim, o conjunto complexo envolvendo “Estado” e “sociedade civil” constitui um sistema dependente um do outro, e, ao mesmo tempo, forma uma relação contraditória, englobando as instituições existentes. “Estado” e “sociedade civil” não formam uma oposição simples, mas uma unidade contraditória condicionada. Assim, a forma política – concretizada institucionalmente no aparelho de Estado – depende da forma dinheiro e da forma capital, estando ao mesmo tempo em contradição com elas.52

O Estado, dessarte, não é só um aparato de repressão, mas sim de constituição social, um derivado necessário da própria reprodução capitalista. Por isso, a burocracia do Estado não pode ser entendida apenas nos limites da sua juridicidade. No plano estrutural, a luta de classes desponta como fato primordial da reelaboração constante da burocracia. A burocracia tem origem estrutural nas relações capitalistas, o que lhe dá razão existencial de ação. Assim, se o m do modo de produção capitalista e a abolição da propriedade privada implicariam obrigatoriamente o m das contradições sociais, um Estado que apenas cumpre a função de mediar os con itos seria absolutamente desnecessário. É preciso ponderar, porém, que, conforme ensina Pachukanis, o Estado não nasce como uma força de classe, mas como algo que se aloca acima da luta de classes, para evitar a desagregação social.53 Isso reforça a ideia de que o Estado tem como função precípua a conservação social a despeito dos antagonismos causados pela cisão classista do liberalismo tradicional. Permanece válida a ideia marxiana de que, com o m do capitalismo e da forma mercantil, a forma política estatal seria abolida, assim como o Direito, compreendido enquanto forma jurídica, seria não apenas prescindível, mas indesejável, no mesmo sentido de uma teoria do estado ontonegativa. Porém, isso não ocorreu na URSS de Lênin ou de Stalin. No mesmo sentido em que Scholz e Kurz a rmam que o “socialismo real” foi, na verdade, capitalismo do Estado, Pachukanis (que foi assassinado por ordem de Stalin devido às suas ideias) assevera que nunca houve ruptura com a forma jurídica (e podemos concluir que com a forma política tampouco) na URSS. Por isso, o jurista soviético propôs que uma teoria do Direito ontonegativa, e, por isso, marxista, deve preconizar o m do direito e não a substituição do

direito burguês por um “direito proletário”, já que este ainda seria jurídica, e esta estará sempre estruturalmente vinculada ao valor:

forma

Outra objeção contrária à nossa concepção sobre quais são as tarefas da teoria geral do direito é a de que as abstrações como fundamento de análise são consideradas adequadas apenas ao direito burguês. O direito proletário, dizem-nos, deve encontrar outros conceitos gerais, e sua procura deve ser a tarefa da teoria marxista do direito. Em um primeiro momento, essa objeção parece ser extremamente séria; porém, baseia-se em um equívoco. Exigir do direito proletário seus próprios, novos, conceitos gerais é uma tendência que parece revolucionária par exellence. Contudo, na realidade, proclama a imortalidade da forma do direito, pois aspira a extrair tal forma daquelas condições históricas fundamentais que asseguraram seu completo orescimento, e declara sua capacidade de se renovar permanentemente. A extinção das categorias (precisamente das categorias, não de uma ou outra prescrição) do direito burguês de modo nenhum signi ca a substituição por novas categorias do direito proletário, assim como a extinção das categorias de valor, capital, lucro etc., na passagem para o socialismo desenvolvido, não vai signi car o surgimento de novas categorias proletárias de valor, capital, renda etc. A extinção das categorias do direito burguês nessas condições signi cará a extinção do direito em geral, ou seja, o desaparecimento gradual [ПОСТeПeННOe] do momento jurídico nas relações humanas.54

Assim, pela forma-valor, referenciam-se atos econômicos e a constituição dos próprios sujeitos de direito, que o são porque portam valor e fazem circular as mercadorias. No capitalismo, tudo são bens passíveis de troca. A forma estatal nasce da produção capitalista da exploração do trabalho, da conversão de tudo em mercadoria, e o núcleo da forma política estatal é relacional: a externalidade é constituinte da própria forma. Por isso, a forma política não se confunde com as instituições políticas que a materializam. Ainda, é fundamental afastar a tautologia mitográ ca de todas as teorias conservadoras do Estado e do Direito, que preconizam que ambos nascem um do outro e se legitimam mutuamente. O Estado não nasce do Direito conforme a metanarrativa do contratualismo iluminista, e sim deriva das formas econômicas da produção para reprodução social adequada ao

capitalismo. Do mesmo modo, o Direito não emana do Estado republicano, representando a vontade popular, mas também deriva das abstrações capitalistas. Estado e direito derivam das formas econômicas em paralelo e, então, passam a se relacionar. Tem-se, assim, na teoria da derivação, como ponto comum, a tentativa de mostrar que tanto a forma econômica, quanto a forma política, no capitalismo, são distintas entre si e em relação às existentes em outros modos de produção. Isso signi ca explicar porque, no capitalismo, o Estado necessariamente existe diante de uma “separação” (na realidade, uma “separação-na-unidade”), estruturando, portanto, dois âmbitos – econômico e político – que anteriormente (no escravagismo e no feudalismo) se apresentavam numa espécie de unidade. Além disso, trata-se de compreender como essa separação impacta as funções desempenhadas pelo Estado e também como o exercício do poder – dentro e fora do Estado – no interior de uma sociedade assim organizada. A nal, as instituições estatais – o espaço político, portanto – ganham certa autonomia em relação ao poder da classe dominante. (…) Assim, a referida separação do político e do econômico não será pensada como fruto de um acaso ou de contingências históricas, mas do próprio modo como as relações sociais se constituem na economia capitalista (…). Veremos ainda que, para alguns pensadores, uma formulação teórica a respeito do Estado deve levar em conta necessariamente o conceito de forma jurídica, que consequentemente deve ser estudado com as ideias de forma mercantil e forma política.55

A despeito de algumas divergências internas entre essas autoras e autores (há múltiplos debates dentro do debate da derivação nos quais não adentraremos), a proposta que tomaremos como crucial para a compreensão marxista do Estado, em convergência com o teorema do valor dissociado, é de que o Estado é uma forma abstrata derivada das formas econômicas do capitalismo, mas, peculiarmente, da forma-valor, cuja especi cação sexual é masculina. É essa concepção de nos importa. O sistema econômico do capitalismo reproduz valor através de formas econômicas abstratas, que se relacionam pela equivalência de tudo com tudo. Somente é possível equiparar todas as coisas do mundo, para gerar valor, se as coisas não são mais

tomadas em si, enquanto objetos materiais, mas desdobradas em abstrações que pairam sobre elas, como a forma-mercadoria. A forma-mercadoria não se confunde com objetos que podemos pegar, cheirar, ver, ouvir e degustar; é uma abstração que permite constituir o valor equivalente de qualquer mercadoria em relação a todas as demais, pois todas são mensuradas em preço, graças ao dinheiro, que também é uma forma abstrata. O trabalho não é atividade humana real, é forma abstrata também, porque o trabalho é mercadoria. Com a articulação de todas essas formas abstratas (forma-trabalho, forma-mercadoria e forma-dinheiro), emerge a forma do valor, que, para Roswitha Scholz, é clivado em forma-valor e valorclivagem. O Estado é também uma cção, uma abstração conceitual, derivada dessas formas econômicas abstratas. A “pessoa jurídica” é uma cção que aloca um conceito (Estado) na forma jurídica do sujeito de direito, a m de possibilitar relações jurídicas, como os direitos subjetivos (relação entre um sujeito de direito e um bem jurídico), obrigações (relações que impõem prestação de um sujeito de direito a outro) e contratos (relações entre sujeitos de direitos com mútuos direitos e deveres). Por isso, o Estado foi a primeira pessoa jurídica (de direito público) constituída por um contrato social, para depois virem as pessoas jurídicas de direito privado (como as empresas). Todas as cções de personalidade jurídica e entes abstratos são fundamentais para o capital. A abstração estatal é uma forma derivada das formas da mercadoria e do valor. Por isso, o Estado, no capitalismo, não se confunde com nenhuma outra forma de concentração e imposição de poder centralizado do passado, nem com a institucionalidade do Estado exclusivamente, e nem com a política (compreendida a partir complexidade das relações sociais materiais). O Estado é a forma política, que compreende tanto os aparatos institucionais, a burocracia, a hierarquia, e as ferramentas estatais racionais de controle e estabilização, quanto os aparelhos ideológicos (inclusive espraiados na sociedade civil), e a própria legitimidade do Estado (a ideologia do Estado). Pensemos na derivada que advém da matemática. A derivada de uma função y = f(x), num ponto x = x0, é igual ao valor da tangente trigonométrica do ângulo formado pela tangente geométrica à curva

representativa de y = f(x), no ponto x = x0, ou seja, a derivada é o coe ciente angular da reta tangente ao grá co da função no ponto x0. Numa função y = f(x), pode ser representada também pelos símbolos: y’, dy / dx ou f ’ (x). O Estado é a derivada da função criada pela autorreprodução do valor capitalista. Por isso, a rmamos que o Estado contemporâneo é a forma política abstrata que possibilita a circulação das mercadorias (também na forma abstrata) e a reprodução do valor (outra forma abstrata), através de abstrações jurídicas também formais, como a norma jurídica (que é forma), o sujeito de direito, o bem jurídico e a relação jurídica. Porém, nalmente, para o nosso argumento, ao invés de adotarmos essa leitura tradicional mais hegemônica dos debates da derivação, de que a forma política espelha diretamente a forma-mercadoria, vamos tomar a derivação das formas a partir das proposições teóricas de Roswitha Scholz. Desde a intelecção do Livro I d’O Capital, a teoria crítica do valor que se desenvolveu na Alemanha entende que a grande abstração das formas econômicas que propiciam a reprodução automática do capital é a forma-valor, e é a partir desta que entendemos a derivação da forma política. Assim, cosendo uma possibilidade de congruência entre a crítica do valor e os debates da derivação,56 ao invés de tomarmos a forma política como derivada da forma-mercadoria, compreendemos que a derivação se dá entre a formavalor e a forma política. Todavia, ao derivar da forma-valor, o Estado não espelha o valor total, mas exclusivamente aquele que se vinculou à abstração do trabalho e à forma-mercadoria, inserto nas estruturas produtivas, ou seja, desconsidera o valor que Roswitha Scholz chama de “dissociado”. A dissociação do valor é uma clivagem do valor total que defenestra da forma-valor tudo aquilo que é vinculado ao feminino, de modo que as tarefas “de mulher” não são tomadas nas estruturas produtivas e não se convertem em trabalho (abstrato) assalariado, porém, também constituem a totalidade da produção, conforme veremos nos capítulos seguintes. Ocorre que, quando o Estado espelha a forma-valor (relacionada ao trabalho abstrato e à forma mercantil), ele espelha apenas a dimensão masculina do valor, e não o valor dissociado, que é feminino. Por isso, o Estado é homem na medida em que deriva da forma-valor, exclusivamente masculina, de modo que, assim como o Estado é obrigatoriamente burguês e capitalista desde a sua forma, ele também é patriarcal e machista desde a sua forma – nunca se trata

de uma manipulação de conteúdos. O Estado é macho e espelha as formas masculinas, de modo que não pode, também, ser convertido em uma máquina política, burocrática e jurídica de combate ao patriarcado. Seguindo esse raciocínio, qualquer teoria ou movimento feminista que creia na possibilidade de converter a forma política em aparato de luta contra o patriarcado e emancipação das mulheres é um feminismo iludido, liberal, ou as duas hipóteses anteriores. Tomar a representatividade nos aparatos burocráticos do Estado, a positivação normativa e as políticas públicas como horizonte de luta é típico do feminismo liberal, ainda que suas nuances se autoproclamem anticapitalistas. Se não for assumidamente liberal, está iludido. 1.2 Forma jurídica Quando dizemos que Estado e direito estão ligados, qual gêmeos xifópagos que trabalham sempre a serviço do capital, estamos nos referindo a liames e nalidades tão profundamente arraigados que não podem ser rompidos, mas não adotamos a perspectiva tautológica iluminista. Forma Política e forma jurídica, em nossa perspectiva, derivam, cada qual, da formavalor, em paralelo, e, depois, passam a condicionar-se reciprocamente. Porém, está claro que, uma vez que o Estado moderno se estrutura obrigatoriamente através da forma jurídica, a reestruturação do Estado signi caria também a modi cação do Direito, assim como a aniquilação do Estado signi caria também a do Direito. Como o Estado liberal só passa a existir a partir do momento em que é a rmado por um documento jurídico, no plano teórico de sua legitimação iluminista, com a pressuposição de um pacto de vontades livres e conscientes, é constituído pela abstração que lhe confere personalidade jurídica enquanto ente – o contrato social. Ocorre que, desde o olhar marxista, na realidade material, há uma imbricação necessária entre o poder econômico e o poder político, que torna os aparelhos do Estado veículos de realização do capital. E a forma jurídica, assim como a forma política, cumpre funções claras para dar às relações mercantis os contornos de relações jurídicas.

Para a loso a do direito burguesa, que considera a relação jurídica como a forma natural e eterna de qualquer relação humana, essa questão nem é colocada. Para a teoria marxista, que se esforça por penetrar nos mistérios das formas sociais e reconduzir “todas as relações humanas ao próprio ser humano”, essa tarefa deve ser colocada em primeiro lugar.57

O Estado moderno e contemporâneo, que apresentamos como, idiossincraticamente, forma política do capitalismo, só realiza suas funções através do Direito, tanto é que se forjou originalmente enquanto “Estado de Direito”. Todas as suas atribuições para valorizar o valor passam, obrigatoriamente, pelas engrenagens do ordenamento jurídico, seja pela legislatura, seja pelos atos normativos ou limitados pela legalidade perpetrados pelo Poder Executivo, seja através da jurisdição. A forma jurídica, assim, é o veículo e o instrumento pelo qual a forma política exerce sua regulação a favor do valor. Conforme as fases de acumulação de riquezas orientadas a reproduzir o valor vão se alterando (porque o capitalismo é cíclico e crítico), também o Estado se recon gura para possibilitar a expansão do valor e a continuidade do modo de produção e é, por meio do Direito, no primeiro plano, que se metamorfoseia para cumprir seu destino. É fundamental compreendermos o Direito como outra forma social do capitalismo, isto é, como forma jurídica derivada da forma do valor, de modo que se faz imprescindível uma leitura de “Teoria do Direito” desde uma lente marxista, para, então, convergirmos essa perspectiva com a de Roswitha Scholz. Se o Direito também é forma social do capitalismo (e só entra na forma o que é masculino), adotando-se o teorema da dissociaçãovalor, o Direito é homem. Conquanto, para que essa a rmação não pareça apenas burlesca ou pan etária, faz-se mister construirmos uma estrutura teórica sólida para a compreensão dessa proposição. A forma do Direito é crucial para a forma do Valor. Forma-mercadoria e bem jurídico são dois nomes, em duas dimensões que se interpenetram, para o mesmo fenômeno. Por isso, todos os ramos do Direito operam numa relação de equivalência dos bens jurídicos com o valor. Para carmos com exemplos bem simples: um crime será tipi cado na norma jurídica quando a conduta a ser apenada causa um prejuízo ao valor, por exemplo, ao retirar, de outro sujeito de direito, um bem jurídico que tenha valor de troca (crimes contra o

patrimônio) ou que tenha o potencial de gerar mais valor (crimes contra a vida, a integridade física, a liberdade etc.); a pena é também equivalente ao valor: medida em tempo que poderia ser convertido em trabalho e, consequentemente, em valor (privativa de liberdade, restritiva de direito e até de morte onde ainda é aplicada) ou em dinheiro/bens mesmo. De outra banda, o Direito Civil somente se ocupa de negócios jurídicos, que se referem à circulação de mercadorias, inclusive, no direito de família e das sucessões, o Direito não regula relações porque são vínculos de amor, mas porque há compartilhamento e transferência de patrimônio. A forma jurídica é, portanto, correlata e necessária às formas econômicas, de modo que sua simbiose com o processo de reprodução do valor é ainda mais íntima do que a da forma política, pois o Estado, enquanto forma política, penetra e é penetrado pelo valor, através do Direito. A relação entre a forma política e as formas abstratas da produção é articulada pela forma jurídica, ou seja, sem o Direito Positivo, o Estado jamais poderia ser a forma política do capitalismo. As teorias modernas do Estado vão buscar justamente no instituto jurídico do contrato o fundamento de legitimidade para o exercício do poder político estatal e seu exclusivismo na distribuição de violência. Esse campo de abstração formal, que corresponde ao Direito moderno, permite que a força impositiva das normas resida no simples e único fato de serem normas jurídicas, desconectando o direito da moral ou de valores religiosos, e facilitando a apropriação do Direito como um instrumento permanente de conservação das relações de produção. No capitalismo, se, de um lado, o Estado é tomado como legítimo porque foi constituído pelo direito; de outro, o Direito é tratado como legítimo porque emanou do Estado. O Estado moderno, ao se implantar na concretude histórica, principalmente na contemporaneidade, foi mesmo constituído por um documento jurídico positivado – a Constituição – que tem por escopo encerrar o poder estatal, suas nalidades, os detalhes de seu aparato de funcionalidade nos limites da norma jurídica, e as regras de validação de todo o ordenamento jurídico infraconstitucional, pois a vinculação do Estado de direito ao mito da vontade geral, pressuposto obrigatório da abstração contratualista, somente se concretiza pelo princípio da legalidade. A “nação” exprime um espaço valorativo comum, com língua, costumes, hábitos,

religiões – mesmo a língua passa a ser controlada politicamente, através da imposição de uma língua o cial em detrimento de dialetos e outros idiomas. A ideologia da nação construiu um espaço simbólico de amálgama sobre as classes, isto é, viabilizou, para o capital industrial, uma unidade social para além das classes sociais. No mito liberal, se Estado somente puder proceder consoante as previsões do Direito Positivo, basta que este seja elaborado pelo “povo” (outra abstração) para garantir que nunca se desviará de seus ns e de seu compromisso democrático-liberal. Aí reside a importância do sistema representativo, pois, se é materialmente impossível que todo o povo se reúna para elaborar as leis que irão orientar o Estado na realização da vontade geral, a escolha de representantes garante a e ciência e a legitimidade do Estado moderno. Há um nexo íntimo entre forma política e forma jurídica, mas não porque ambas sejam iguais ou equivalentes, e sim porque remanescem da mesma fonte. Além disso, apoiam-se mutuamente, conformando-se. Pelo mesmo processo de derivação, a partir das formas sociais mercantis capitalistas, originam-se a forma jurídica e a forma política estatal. Ambas remontam a uma mesma e própria lógica de reprodução econômica, capitalista. Ao mesmo tempo, são pilares estruturais desse todo social quem atuam em mútua implicação. As formas política e jurídica não são dois momentos que agem separadamente. Elas se implicam. Na especi cidade de cada qual, constituem, ao mesmo tempo, termos conjuntos.58

Tamanha tautologia liberal entre forma política e forma jurídica perfaz uma amarração metafísica poderosa à qual todas as instituições da modernidade puderam recorrer com segurança para garantir uma legitimidade a priori, possibilitando seu funcionamento. Tal mecanismo é tão e ciente que a mera denúncia, pelo marxismo, de que a forma política e a forma jurídica são criações históricas adjungidas ao modo de produção da modernidade já perfaz uma árdua empreitada perante uma tradição jus losó ca conservadora e liberal. Certamente, essa tarefa ca ainda mais monumental quando advogamos que tais formas possuem uma especi cação sexual masculina, já que derivam da forma (masculina) do valor.

Não se trata porventura de suplantar [Überwinden] a metafísica, como se supõe cada vez mais com o avanço dessa formação social. Tanto a ciência da natureza moderna como também a loso a e a teoria social apologéticas a ela ligadas têm bases evidentemente metafísicas. Estas apenas puderam ser pouco a pouco escamoteadas e acabar por ser aparentemente deitadas borda fora porque não representam uma metafísica no sentido de uma

re exão meramente losó ca ou teológica, mas sim uma relação social real, ou seja, uma metafísica real, de certa forma encarnada ou

embutida no processo de reprodução social. À medida que esta metafísica real se foi impondo historicamente e foi sendo interiorizada, a sua forma de re exão losó ca pôde desvanecerse, uma vez que o aparentemente evidente, axiomático e quotidiano já não tem de ser pensado à parte e já não se apresenta como uma essência distinta.59

Ao invocar o termo “modernidade”, a crítica do valor de Kurz e Scholz está alicerçada nas leituras frankfurtianas de primeira geração, que identi cam a razão esclarecida como anverso da estrutura produtiva. Razão e capital, mutuamente implicados, inauguram um novo tempo, no qual a subjetividade semeada por Descartes encontra seu apogeu na loso a de Kant, edi cando um mundo antropocentrado, cujas metanarrativas pressupõem uma nova totalidade, a do esclarecimento. De acordo com sua lógica inerente, o sujeito do valor e da história, esclarecido e branco-masculino, contém em si mesmo uma aporia insolúvel no terreno do valor; por um lado, é de nido como o sujeito autárquico da ‘vontade livre’ burguesa, a qual cria para si um mundo de objetos dos quais, ao mesmo tempo, acha-se separada como que através de uma divisória impenetrável, a perdurar eternamente em sua forma autorreferencial: exposta a rmativamente na problemática kantiana da coisa em si [...].60

O sujeito racional da modernidade, engenheiro do progresso, titular da ciência e tecnologia, condutor da política e gestor da economia, é, obrigatoriamente, masculino. A especi cação de gênero do valor possibilitase, também, porque a ideologia racional constitui uma forma-sujeito obrigatoriamente masculina. Graças a isso, o sujeito racional desdobra-se em

sujeito de direito,

unidade mínima da modernidade jurídica. E quem é o sujeito de direito, que faz jus à proteção de direitos individuais fundamentais nas declarações pós-revoluções burguesas? Formalmente tratado como o “homem” (“os homens nascem livres e iguais”, “todo homem tem direito a...”) em todos os documentos jurídicos positivados, também o é materialmente, uma vez que, de fato, somente os seres humanos do sexo masculino gozavam esses direitos. Apenas homens brancos e proprietários podiam votar, exercer liberdades, e celebrar negócios jurídicos. Em virtude da estrutura aporética, o “livre” sujeito brancomasculino da história, que é “livre” precisamente como executor do movimento do valor determinado e voltado para si, deve não apenas cindir os momentos de emocionalidade, sensualidade etc., senão também que se vê obrigado a cindir-se numa contradição interna entre pensar e agir; de um lado, surgem os “homens de ação” (econômicos e políticos), as amplas e irre etidas elites funcionais (situadas, em todo caso, no metanível das formas sociais); de outro, há os teóricos majoritariamente contemplativos, que não agem imediatamente do ponto de vista social e têm de apresentar-se a si próprios como meros observadores “externos” [...].61

Destarte, a forma-sujeito apresenta-se, tal qual a forma-valor, assexuada, neutra, a m de assentar uma naturalização ideológica, através de um discurso que é universalizante, para, na prática, corresponder exclusivamente à masculinidade e à branquitude. A verdade que pretendemos revelar é que não há nada de neutralidade nessas formas – são todas masculinas e excludentes. A panaceia da igualdade liberal, positivada enquanto igualdade formal, realiza o papel de escamotear as diferenças reais entre as partes que celebram um negócio jurídico, pois, ao equiparar formalmente proletariado e capital no contrato de trabalho, pressupõe liberdade de contratar e estipular cláusulas que vinculam as condutas pelo pacta sunt sevanda, e, perversamente, faz com que o Direito funcione como o agelo do capital, como instrumento da exploração violenta da classe trabalhadora mascarado de racionalidade jurídica. De outro lado, a proclamação de igualdade formal entre sujeitos abstratos tem o condão cínico de tutelar apenas os bens jurídicos de sujeitos reais homens e brancos, obviamente, burgueses.

A forma do sujeito que se volta a si mesma no interior desse construto histórico é, por um lado, universal-abstrata (“igualdade”), e, nessa medida, assexuada. Mas, por outro lado, os momentos de reprodução social, formas humanas de expressão etc. que não se deixam apreender pelo processo de valorização são, então, delegados “à mulher” como ser biológico sexual e materno) e desagregados da “verdadeira” forma subjetiva do valor. A relação de valor apresenta-se, por conseguinte, apenas super cialmente como sendo abrangente-universal, na medida em que se sugere como uma totalidade que não é e nem pode ser. Na sociedade moderna, para além de um conceito positivo de totalidade, o que está efetivamente em jogo é uma metarrelação ofuscada nas categorias de valor, a saber, a “relação de cisão” (Roswitha Scholz) sexualmente determinada desde sua base. Essa relação que denega justamente a suposta universalidade, por um lado, desaparece no mundo conceitual burguês-esclarecido; por outro, em suas formas de aparência práticas e cotidianas, onde tem de ser nomeada, tais fenômenos só se deixam expor traiçoeiramente nas categorias burguesas como “desigualdade objetiva (natural)”. A igualdade abstrata refere-se, por conseguinte, única e exclusivamente ao universo interno da forma do valor, sendo válida para a mulher desde que atue no interior de tal forma (como consumidora e vendedora de mercadorias ou de força de trabalho), enquanto os momentos cindidos deste universo aparentemente autossu ciente permanecem ofuscados.62

Na sociedade burguesa, o “cidadão” é uma alegoria política e jurídica, que, através do conceito de “sujeito de direito”, reserva esse papel, primordialmente, ao homem branco, proprietário e burguês. Segundo observa Eviguiéni B. Pachukanis, o arquétipo do sujeito de direito está vinculado à liberdade e à igualdade formais, forjado propositalmente para que não haja isonomia real, uma vez que se substitui a ideia de humanidade por subjetividade jurídica. Nós acrescentamos que esse sujeito de direito é, obrigatoriamente, macho, desde a sua forma, ainda que o Direito tenha, posteriormente, no conteúdo das normas, proclamado direitos para as mulheres. (…) o princípio da personalidade/subjetividade jurídica (que entendemos como princípio formal igualdade e da liberdade, o

princípio da autonomia da personalidade etc.), é não apenas um instrumento do engodo burguês e um produto da hipocrisia burguesa, na medida em que esta se opõe à luta proletária pelo aniquilamento das classes, mas, ao mesmo tempo, é realmente um princípio atuante incorporado à sociedade burguesa no momento em que esta nasce do sistema feudal-patriarcal e o destrói; segundo, que a vitória desse princípio não é única e tão somente um processo ideológico (ou seja, refere-se inteiramente à história das ideias, das concepções etc.), porquanto é um processo real em que as relações humanas tornam-se jurídicas, que caminha par a par com o desenvolvimento da economia mercantil-monetária (e capitalista, na história europeia) e que acarreta profundas e múltiplas transformações de caráter objetivo.63

Também para Marx,64 o cerne da alienação política é essa dicotomia entre humano e cidadão, na sociedade moderna, que decorre do fato de que a emancipação política alcançada pelas revoluções burguesas, além de parcial, deu ao Estado o papel de mediador entre o indivíduo e seu ser político, e só pode ser exercida pelos “sujeitos de direito” (abstração). A liberdade burguesa trata o “homem como mônada isolada, virada sobre si própria”,65 e só vale para o sujeito de direito com a mediação estatal. Os direitos humanos, diante desse modelo, serão sempre discurso tautológico vazio e sua dimensão concreta só pode se realizar para o proprietário/rico/burguês, cristão, homem cisgênero, branco e heterossexual. Não é sem razão que, setenta e dois anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a imensa maioria da população do planeta ainda não tem direitos fundamentais efetivados. A declaração de 1948, em verdade, não passou de uma reedição dos textos cunhados após as revoluções burguesas, especialmente, a declaração francesa de 1789. Todas elas operam no encantamento retórico de que a positivação de direitos no interior da forma jurídica é garantia de efetividade do direito material – prova de que os contornos discursivos da função do Direito e do Estado, diante do capitalismo, jamais irão se modi car. Enquanto a forma política, nos últimos séculos, tem-se prestado a viabilizar genocídios, encarceramentos, guerras, destruição da natureza e maior acumulação de capital, a forma jurídica tem cumprido seu papel de

legitimar os instrumentos e mecanismos que operacionalizam o funcionamento da sociedade burguesa e a exploração do trabalho. Os mecanismos, embora alguns mais re nados e outros mais deteriorados, remanescem os mesmos apontados por Marx. De outro lado, as experiências de Estados socialistas, empreendidas ao longo do século passado, não foram capazes de concretizar as propostas teóricas do marxismo em sua totalidade. Sequer o modelo de transição leninista foi efetivamente experimentado, menos ainda a supressão de nitiva do Estado e do Direito na maturação de um comunismo que pudesse transcender as barreiras nacionais. Este modo de proceder está de resto ligado a uma deshierarquização entre o plano da forma geral e a superfície empírica. Porém, quando não se elimina o plano da forma geral, mas se insiste na mediação entre os dois, também ambos têm a sua justi cação, tal como por outro lado não podem ambos ser postos como um só, sendo um substituído pelo outro (cf. Scholz, 2009). Isto é tanto mais válido quanto a teoria crítica da dissociação e do valor além disso já não pode assegurar o “velho” estatuto androcêntrico do sujeito. Assim vistas, também as diferenças e o correspondente efeito cumulativo relativamente a “raça”, classe, género, homofobia etc. têm lugar no plano micro identitário, bem como num plano meso sociológico; pressupondo-se, no entanto, que são vistas perante o pano de fundo desta mediação em conexão com o contexto total, o qual também tem de ser conceptualmente de nido como tal. Por isso a crítica da dissociação e do valor já por si tem sempre de satisfazer os protestos em referência às particularidades do sexismo, do racismo, do anti-semitismo e das disparidades económicas.66

Pachukanis alerta que o Direito é um dos tipos gerais de ideologia, de modo que não seria cabível argumentar a existência de uma “ideologia jurídica”, uma vez que, na verdade, todas as categorias do Direito não têm nenhum outro sentido além do ideológico.67 Assim, a norma opera num sentido similar ao da mercadoria, e ao do próprio valor (forma-valor masculina), pois todos são artifícios ideológicos, e, ao mesmo tempo, abstrações que viabilizam a reprodução material do capitalismo. Ou seja, Pachukanis não nega o caráter ideológico do Direito, assim como assevera

que todas as categorias da própria economia política também possuem um caráter ideológico, mas demonstra que se trata de algo além, que corresponde a uma relação social objetiva. (…) a divisão da produção e do consumo dos bens de uso concretos, entre os quais aparece a circulação, faz com que também os próprios sujeitos sejam divididos em dois papéis: o de produtor e o de consumidor. Apesar de cada indivíduo e cada empresa ser ao mesmo tempo tanto produtor quanto consumidor da riqueza social, sua existência e seus interesses de produtor e de consumidor separam-se de forma absurda. Como produtor, o sujeito-mercadoria ou sujeito da troca não está interessado no valor de uso dos seus produtos, seja ele “trabalhador” ou “capitalista” (…) Pois não se produz para o consumo próprio, mas sim para o mercado anônimo, e a nalidade do processo não é a satisfação de necessidades concretas, mas sim a transformação do trabalho em dinheiro (salário e lucro). Para o produtor e para os diversos funcionários de uma unidade produtora de mercadorias, os próprios produtos já estão perdendo suas qualidades e se transformando naqueles “coágulos de trabalho” enquanto ainda se encontram em sua forma material e no processo de criação dessa forma, pois nada mais são que dinheiro potencial.68

Nesse sentido, a positivação de demandas em forma de leis apresenta-se como uma luta que merece ser respeitada, mas jamais será emancipação, pois as garantias jurídicas ainda operam a partir de universais abstratos, como a percepção universalizante do sujeito de direito. E a forma jurídica não é neutra – tal qual a forma política, é capitalista e patriarcal em sua forma, e não pode ser manipulada pelo proletariado contra o capital, nem pelas mulheres contra o patriarcalismo. É premente olharmos o Direito e o Estado na perspectiva crítica, para escaparmos desse discurso que os toma como entes eternos, pois, do contrário, trata-se de uma perspectiva liberal (esquerda liberal, feminismo liberal). Não adianta ter raiva da crítica marxista capitaneada por Pachukanis, quando ela evidencia que a única possível nalidade para o Direito, desde a sua forma, é ser um correlato possibilitador das formas econômicas abstratas do capitalismo. Cumpre, a cada um e a cada uma, assumir um posicionamento liberal, ou reconhecer que o Direito não pode ser

emancipador, pois não importa os conteúdos veiculados na forma da norma, a qual nunca é moldura vazia e neutra, mas uma forma social capitalista. O Direito não é um ente ontológico; ele é um fenômeno histórico e capitalista. A norma é mesmo forma, mas a forma jurídica do valor. Diante dessa constatação, impõe-se a coragem de deglutir esse diagnóstico e repensar as possibilidades de emancipação, para muito além da retórica da sanção penal das violências e do efeito encantatório da positivação dos direitos subjetivos. Essa é a tarefa que se nos apresenta. As mesmas metanarrativas da razão esclarecida que forjaram o sujeito (racional) de direito como um sujeito masculino possibilitaram à forma do valor se amalgamar ao atravessamento simbólico de masculinidade que articula todas as relações entre homens e mulheres no patriarcado capitalista. Da mesma maneira que a razão, enquanto mito categorial fundamental da modernidade, é uma manifestação do masculino (seja em Descartes, Hume, Rousseau ou Kant, a racionalidade é varonil, e o feminino é irracional), também o trabalho que se abstraiu na forma-mercadoria e gera a forma-valor é exclusivamente masculino. A razão é atributo só dos homens, o trabalho é só o dos homens – o sujeito racional é macho, o sujeito de direito é macho. Essa operação metanarrativa é constitutiva de todos os mitos e arquétipos que sustentam a sociedade burguesa. É a linha que costura toda a ideologia, dando os contornos dos valores burgueses, da família burguesa, e de todas as relações e instituições da contemporaneidade; mas, ao mesmo tempo, é muito mais que isso: é a constituição estrutural das formas capitalistas. Se a racionalidade era uma exclusividade dos varões, somente eles puderam tomar parte no D ireito, na política e no mercado. A burocracia estatal, a ciência, as universidades, as indústrias, os bancos etc. demandavam homens para sua operação, com as características que foram narradas pelo esclarecimento como exclusivamente masculinas (força, coragem, inteligência etc.). Deste modo, o trabalho assalariado, compreendido como uma abstração econômica idônea a gerar mais-valor, foi inexoravelmente associado a uma forma masculina (pois exigia força, coragem, inteligência, ou outra característica que, segundo a narrativa iluminista, só os homens tinham). Uma vez que o trabalho (abstrato), enquanto forma econômica, constituiu-se como exclusivamente masculino quando da maturação do capitalismo industrial no regime de acumulação liberal, espraiou-se nas

demais formas sociais do capitalismo – mercadoria, dinheiro e valor – marcando todas como também masculinas. Do mesmo modo, a forma política derivou da forma-valor como obrigatoriamente varonil, ao passo que a forma jurídica, por sua vez, espelhou a mesma forma do valor e se con gurou como masculina. O curioso é que o sujeito de direito formal realmente correspondia apenas ao sujeito natural ‘ser humano macho’, o que parecia autoevidente na sociedade liberal. Ocorre que, quando o regime de acumulação capitalista mudou e a mulher real passou a ser identi cada também com a forma-sujeito de direito, espalhou-se uma ilusão de que esta seria uma forma neutra, que poderia servir tanto aos homens como às mulheres, ou tanto aos negros quanto aos brancos. O que nosso argumento sustenta é que a forma do sujeito de direito sempre será androcentrada, pois a forma jurídica deriva da forma do valor, e este também sempre será varão, na forma, pouco importando se mulheres reais estão nos postos de trabalho assalariado ou se as mulheres, abstratamente, ingressaram no conteúdo da subjetividade jurídica. 1.2.1 Forma jurídica e teoria do Direito O jurista soviético Evguiéni B. Pachukanis (2017) procedeu à identi cação da forma jurídica à forma mercantil, e é de sua leitura que partiremos para compreender a relação entre direito e valor (clivado). Para ele, o Direito é muito mais do que ideologia, apesar de ter também essa dimensão porque, tal qual acontece com a economia liberal, a teoria do Direito não tem nada de cientí ca, mas é puramente ideológica, forjando um discurso encantatório sobre todos os “operadores” jurídicos. Uma teoria geral do direito que não pretende explicar nada que de antemão recusa a realidade factual, ou seja, a vida social, e lida com as normas, não se interessando nem por sua origem (uma questão metajurídica!) nem pela ligação que estabelecem com certos materiais de interesse, só pode, evidentemente, pretender o título de teoria no mesmo sentido usado, por exemplo, para se referir à teoria do jogo de xadrez. Tal teoria não tem nada a ver com ciência. Ela não se ocupa de examinar o direito, a forma

jurídica como uma forma histórica, pois, em geral, não tem a intenção de pesquisar o que está acontecendo.69

A reprodução do capitalismo se estrutura por meio de formas sociais necessárias e especí cas, que constituem o núcleo de sua sociabilidade. O processo de constituição das formas é social, histórico, relacional, e é por meio das interações sociais que elas mesmas se formalizam (não constituem categorias ideais, do pensamento). As formas são imanentes às relações sociais. No capitalismo, veri ca-se que a generalização das trocas constitui a forma econômica correspondente, a forma-mercadoria, que posteriormente con gura a totalidade das relações sociais: dinheiro, mensuração do trabalho, propriedade, sujeito de direito, política etc. No capitalismo, a identidade de tudo é mercantil. Outro aspecto fundamental é que a forma jurídica, por sua vez, desdobra-se em novas abstrações teóricas, como o “sujeito de direito” e seus “direitos subjetivos”, ferramentas importantíssimas para a divisão do trabalho e as trocas mercantis. Por tudo isso, a implicação cogente entre forma jurídica e forma política é evidente, sendo que ambas existem para viabilizar a conservação da lógica do capital. (…) a forma jurídica – que constitui os sujeitos de direito, afastando as velhas relações sociais que jungiam uns aos outros pelo arbítrio, pela força ou pelo acaso – é uma de suas engrenagens necessárias. Além dela, a forma politica estatal é também sua correlata inexorável, constituindo um tipo especí co de aparato social terceiro e necessário em face da própria relação de circulação e de reprodução econômica capitalista.70

O Direito, crucial aparelho ideológico, é, simultaneamente, uma expressão da ideologia, e a forma jurídica do capitalismo. Por isso, em oposição às teorias burguesas/conservadoras do Direito, que não passam de expressões da ideologia (ao passo que o Direito e o Poder Judiciário, junto com órgãos auxiliares, são aparelhos ideológicos do Estado), Pachukanis propõe uma crítica marxista da norma jurídica e das pretensões teóricocientí cas da ciência jurídica. Com essa lucidez, por certo que Evguiéni não elabora uma “teoria marxista do Direito”, uma vez que, sendo o Direito a forma jurídica da

sociedade das mercadorias, tal qual o Estado (que é forma política), só pode ser encarado de modo ontonegativo desde o olhar marxista, ou seja, o Direito só existe para viabilizar a reprodução do valor, e ambos (direito e valor) são machos, e devem ser aniquilados juntos. Não existe uma teoria de um direito marxista, nem a possibilidade de um direito proletário.71 Sendo assim, esse grande jurista soviético escreveu sua obra sob o título Teoria geral do Direito e marxismo, com o escopo de demonstrar, a partir de Marx, que toda a teoria do Direito, fora desta epistemologia, só existe como metanarrativa justi cadora de abstrações voltadas a reproduzir o valor. A teoria geral do direito pode ser de nida como o desenvolvimento dos conceitos jurídicos fundamentais, ou seja, os mais abstratos. Estes incluem de nições como “norma jurídica”, “relação jurídica”, “sujeito de direito” etc. Graças a sua natureza abstrata, tais conceitos são igualmente aplicados a outros ramos do direito, seus signi cados lógico e sistemático permanecem inalterados, independentemente do conteúdo a que se aplicam (…). É preciso entender que esses conceitos mas gerais e simples são resultado de uma elaboração lógica das normas de direito positivo e representam um produto superior e mais recente de uma criação consciente quando, comparados com as relações jurídicas que se formam espontaneamente e as normas que as expressam. Contudo, isso não impede que os lósofos neokantianos encarem as categorias jurídicas fundamentais como algo que se destaca da experiência e torna a própria experiência possível.72

Os grandes conceitos que estruturam as teorias neokantianas do Direito, especialmente a Teoria Pura do Direito, formulada por Hans Kelsen (1998), são articulados através de uma sintaxe lógica-analítica que possibilita a combinação de elementos essenciais, perfazendo um sistema. Assim, esses conceitos fundamentais, como a “norma”, são aplicados a todos os ramos do Direito dogmático, garantindo que cada um deles cumpra sua função para a reprodução do valor, de modo que as abstrações jurídicas se descolam do mundo concreto e, ao mesmo tempo, possibilitam a continuidade da estrutura capitalista. O Direito privado (civil, consumidor, comercial, ambiental etc.) possibilita a circulação das mercadorias e a inserção das coisas do mundo na

forma da mercadoria, bem como todas as relações de troca da formamercantil e da forma-dinheiro para valorizar o valor.73 O Direito do trabalho viabiliza a exploração do trabalho abstrato.74 O Direito Penal pretende dar conta dos borbotões de massa miserável que não pode ser absorvida no mercado de trabalho, apenando as pessoas com supressão do seu tempo que poderia ser convertido em trabalho social empregado na forma da mercadoria, e de modo que a pena seja proporcional ao prejuízo para o valor. O Direito Público dá as ferramentas necessárias para que a forma política desempenhe seu papel, ao passo que o direito internacional existe para atender à internacionalidade do capital.75 A loso a do Direito informa a teoria do Direito, possibilitando uma articulação paradigmática entre conceitos como “sujeito” (masculino e kantiano) e “sujeito de direito” (forma jurídica abstrata), ou “imperativo categórico” e “norma jurídica”, para poder dar conta do fato de que se refere a fenômenos da realidade, que correspondem a relações reais entre seres reais, mas que necessitam de um desdobramento abstrato para se tornarem possíveis no âmbito do Direito. Assim como, na economia política, as atividades humanas concretas precisaram se desdobrar no trabalho abstrato para possibilitar a valorização do valor (que é, obrigatoriamente, uma categoria inconcreta, mas especi camente macho), a regulação jurídica das relações da sociedade das mercadorias também precisa operar com abstrações. “Para a loso a burguesa do Direito, cuja maioria dos representantes colocase a partir de um ponto de vista neokantiano, o problema ora citado se resolve por meio da simples contraposição de dois princípios: o princípio do ser e o princípio do dever-ser”.76 O trabalho, no capitalismo, é forma abstrata, e não se confunde com a mão de carne e osso que manipula uma massa material. A mercadoria é forma-mercadoria, abstrata, e não se confunde com as coisas tangíveis da existência concreta. O sujeito de direito é uma categoria jurídica abstrata, e também não se confunde com pessoas corpóreas (tanto é que abstrações, como as pessoas jurídicas, o espólio, o condomínio e a massa falida, são também sujeitos de direito – estes últimos, “despersonalizados”, pois a “personalidade jurídica”, por sua vez, é uma abstração que não se confunde com a “subjetividade jurídica”).

Todas essas formas – trabalho, mercadoria e sujeito de direito – são varonis, independente dos homens ou mulheres de verdade que as possibilitam na vida material. As relações jurídicas constituem-se a partir da previsão de uma norma abstrata, que é forma, e não conteúdo. Ao nal, trabalho, mercadoria, sujeito de direito e relação jurídica são, todas elas, formas (abstratas) do capitalismo, androcentradas. Na tentativa de superar as amarras naturalísticas do fundamento jus losó co jusnaturalista e desconectar o sujeito de direito do ser material, o juspositivismo sempre recorre à incorporação da loso a kantiana. Ao a rmar que o Direito opera no âmbito do “dever-ser”, encontrou a justi cativa perfeita para o fato de que aquele não tem compromisso com a realidade, e pode, inclusive, ignorá-la. Segundo a consagrada teoria kelseniana, a norma jurídica adquire esse caráter (ser uma norma jurídica, e não uma norma qualquer) ao ser dotada vigência (qualidade conferida por outra norma), a qual, por sua vez, constitui o vigor normativo – capacidade cogente da norma em vincular condutas, obrigando o seu cumprimento. O vigor é dado pela sanção, meio pelo qual a norma (juízo de dever-ser) se projeta no mundo do “ser”. Neste ponto, o artifício neokantiano usado pelo positivismo jurídico é quase cínico, pois a norma só tem razão de existir na medida em que seus juízos não correspondem à realidade material, isto é, só há a norma jurídica porque a realidade é diversa dela: só existe a proibição de matar (não matar) porque os sujeitos matam (conduta positiva); se não matassem, a norma proibitiva não existiria.77 Assim, a norma não apenas não precisa corresponder à realidade, como é, aprioristicamente, dela diversa. O vigor tem o compromisso de se realizar, onde entraria a e cácia da norma, que não é aferida empiricamente, obviamente, já que isso seria uma tarefa de outras ciências, como a sociologia.78 Para a conservação da pureza jurídica, a e cácia é um atributo lógico de uma norma vigente e válida: se é válida, é e caz. Desponta, aí, a maior qualidade da norma jurídica – a validade, que é um atributo formal, conferido por uma norma hierarquicamente superior.79 Uma norma é jurídica porque obedece aos requisitos formais de validação positivados em outra norma jurídica, anterior e superior, até culminar no ápice do ordenamento jurídico: a norma mais hierárquica, que, direta ou indiretamente, valida todas as demais (na prática,

seria a Constituição). Esta, então, que não tem norma positivada superior a si para lhe validar, nalmente, busca sua validade numa abstração metafísica fabulosa, a Grundnorm, traduzida como “norma hipotética fundamental” ou “norma fundamental”. Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas, pode a norma fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica – e se é lícito aplicar per analogiam um conceito da teoria do conhecimento de Kant –, ser designada como a condição lógico-transcendental desta interpretação (…) A função desta norma fundamental é: fundamentar a validade objetiva de uma ordem jurídica positiva, isto é, das normas, postas através de atos de vontade humanos, de uma ordem coerciva globalmente e caz, quer dizer: interpretar o sentido subjetivo destes atos como seu sentido objetivo.80

Note-se que o próprio Hans Kelsen está a rmando que todo o fundamento de existência, validade e legitimidade do Direito é “transcendental”. Por isso mesmo, não há melhor maneira de compreender o Direito do que através da leitura dessa obra do maior jurista do juspositivismo: o Direito é uma in nita tautologia de lógica arti ciosa, cuja existência se explica pela própria existência, e nunca irá corresponder à realidade. No nal das contas, sem que tenha essa intenção, a “teoria pura” de Kelsen, de fato, esclarece-nos, com perfeição, o funcionamento do Direito, cuja única razão é servir ao capitalismo. Para tanto, a forma jurídica necessita ser abstrata, hipotética, irreal, metafísica, transcendental. É o eterno retorno ao mito que a razão esclarecida realiza, ao intentar eliminar os mitos medievais e antigos, para, no nal das contas, tornar-se a única fonte de todos os mitos modernos.81 O Direito moderno é mais um deles, mas é muito mais do que isso, porque a razão é sempre instrumental, bem como o Direito e suas abstrações. Trata-se de fantasias forjadas de modo bastante re nado para viabilizar mais uma forma útil ao valor. Sem dúvida há que se reconhecer um grande mérito de Kelsen. Com sua corajosa coerência, ele levou ao absurdo a metodologia

do neokantismo com seus dois princípios. De fato, veri ca-se que o “puro” princípio do dever-ser, livre de todas as impurezas do ser, do factual, de todas as “escórias” psicológicas e sociológicas, em geral, não tem nem pode ter de nições racionais. Pois, para o dever ser puramente jurídico, ou seja, incondicionalmente heterônomo, até mesmo o m é algo estranho e diferente. O “tu deves a m de que”, de acordo com o Kelsen, já não é ou “tu deves” jurídico. No plano do dever-ser jurídico, existe apenas a passagem de uma norma a outra, de acordo com uma escala hierárquica em cujo topo se encontra a autoridade suprema que elabora as normas – um conceito-limite do qual a jurisprudência parte como dado.82

É imbuído dessa clareza que Evguiéni busca, nas formas da economia política, o fundamento de compreensão da forma jurídica enquanto mais uma forma social do capitalismo. A economia matemática conservadora opera com fórmulas e números para compreender a automovimentação do valor,83 como se fosse um dado a-histórico, eterno e absoluto, que precisa ser compreendido e quanti cado, sem crítica, para possibilitar políticas econômicas que auxiliem sua perpetuação, e, para isso, recorre a fundamentos tautológicos, com a pretensão de explicar uma conta que nunca fechará. A ciência política conservadora recorre a fábulas e mitos como metadiscurso de legitimação do Estado e da ordem jurídica, pois, obviamente, nunca houve um dia real em que homens livres e racionais se deram as mãos, em roda, e depois decidiram assinar o “contrato social” iluminista. Então, para superar esse fundamento que inspira o jusnaturalismo, a teoria positivista do Direito, com a pretensão de ser cientí ca, recorre a Kant, e argumenta que subjaz a todo o ordenamento jurídico uma “norma” fundamental transcendental de validação. Entendamos, de uma vez por todas, assim, que os discursos liberais, a serviço do capital, por mais que tentem se revestir da capa de ciência, sempre serão ideologia. Sempre que confrontados ao limite, recorrem a fantasias, abstrações, transcendências etc. porque não são e nem podem ser materialistas. Se forem materialistas, históricos e dialéticos, vão chegar às conclusões do marxismo e escancarar a perversidade e o absurdo do modo de produção fundado na forma das mercadorias. Assim, precisam ser abstratos e etéreos, operando sempre e sempre, in nitamente, numa tautologia fetichista

das abstrações que alimentam. O Direito tradicional e toda a pretensa ciência jurídica conservadora são assim, tal qual a ciência política e a economia burguesas. Ninguém há de duvidar que a economia política estuda algo que realmente existe, embora Marx tenha prevenido que itens como valor, capital, lucro, renda, etc., não podem ser desvendados com a ajuda de um microscópio nem por análise química. A teoria do direito opera com abstrações não menos “arti ciais”: a “relação jurídica” ou o “sujeito de direito” não podem ser desvendados pelo método de pesquisa das ciências naturais, muito embora por trás dessas abstrações se escondam forças sociais absolutamente reais.84

A dimensão ideológica do Direito, portanto, remonta aos fundamentos últimos de sua teoria, aos seus discursos de legitimação, à inspiração losó ca neokantiana, e à manipulação das formas abstratas (como a “norma jurídica”) como fossem verdades inquestionáveis, e esses discursos forjaram as formas sociais do capitalismo como masculinas. Contudo, o Direito, assim como a economia ou a teoria geral do Estado, tem esse contorno ideológico, mas é mais do que ideologia: é condição de reprodução da estrutura. Vimos que essa dupla função acontece também com o Estado: há a dimensão ideológica da teoria do Estado contratualista iluminista, oriunda do liberalismo político; há a ideologia do Estado, que é narrado como necessário à paz, à vida coletiva, e à proteção dos direitos naturais do homem; e há a forma política, derivada das formas do valor e da mercadoria, cuja nalidade é funcionar como um mecanismo de reprodução do valor enquanto este não possa prescindir da institucionalidade estatal. Assim, também ocorre com a economia. Obviamente, as categorias como “mercadoria”, “trabalho” e “valor” são abstrações ideológicas que representam o processo produtivo, de modo fetichista, porque ele assim o é. Então, ao mesmo tempo que sua existência é re exo da ideologia que sustenta o capitalismo (pois, sem tais abstrações na base de seus metarrelatos, ele não consegue se articular), essas categorias também são formas que possibilitam a continuidade real de replicação do valor. Por isso, a economia conservadora é ideológica, por operar com categorias misti cadas, sem sequer perceber que elas assim o são. Ao mesmo tempo, o processo

produtivo, de verdade, ocorre através dessas categorias, dessas formas abstratas. As categorias da mercadoria, do valor e do valor de troca são, sem dúvida, formulações ideológicas, formas de representação distorcidas e misti cadas (para usar uma expressão de Marx), por meio das quais a sociedade de troca concebe às relações de trabalho entre os distintos produtores. O caráter ideológico dessas formas comprova o fato de que basta passar a outra estrutura econômica para que as categorias de mercadoria, valor etc. percam todo o sentido. Por isso podemos falar com toda razão em uma ideologia da mercadoria ou, como nomeia Marx, em um “fetichismo da mercadoria” e colocar esse acontecimento no rol dos acontecimentos psicológicos. Isso não signi ca de modo nenhum que as categorias da economia política tenham exclusivamente um signi cado psicológico, que elas indiquem apenas a experiência vivida, as representações e outros processos subjetivos. Sabemos muito bem que, por exemplo, a categoria de mercadoria, não obstante seu evidente idealismo, re ete uma relação social objetiva. Sabemos que um outro estágio de desenvolvimento dessa relação, sua maior ou menor universalidade, é um fato material essencial e deve ser tomado como tal, não apenas enquanto processo ideológico e psicológico. Dessa maneira, os conceitos gerais da economia política são não apenas elementos da ideologia, mas um gênero de abstrações a partir do qual podemos cienti camente, ou seja, teoricamente, reconstituir a realidade econômica (…) É necessário demonstrar, portanto, que os conceitos jurídicos gerais podem entrar, e de fato entram, como a parte de processos ideológicos e de um sistemas ideológico – e isso não é alvo de nenhuma controvérsia –, mas, para eles, para esses conceitos, é de certo modo impossível revelar a realidade social misti cada. Em outras palavras seria preciso compreender as categorias jurídicas representariam aquelas formas objetivas do pensamento (objetivas para uma sociedade historicamente dada) que correspondem a uma relação social objetiva.85

Eis o ponto em que Pachukanis não elabora uma “teoria marxista do Direito”, mas sim confronta a teoria do Direito a partir da epistemologia marxista. Ele parte da leitura de O capital para demonstrar que, da mesma

maneira que o processo de produção e circulação das mercadorias se dá via formas abstratas como a (forma) “trabalho”, o “valor de troca”, a (forma) “mercadoria”, a (forma) “dinheiro”, e o (mais) “valor”,86 as relações jurídicas também somente são possíveis por meio de formas abstratas, androcentradas, que acabam constituindo os pilares do Direito. Assim, surgem abstrações como a “norma jurídica” (válida, vigente e e caz), o “sujeito de direito” (que não precisa corresponder a um ser humano, e, em sua gênese, excluía seres humanos – negros, mulheres, indígenas etc. – da sua forma como se isso fosse um dado lógico), o “bem jurídico” (forma abstrata para representar bens corpóreos ou incorpóreos), o “direito subjetivo” (relação jurídica entre sujeito de direito e bem jurídico, onde estão insertos o “direito de propriedade” e a “posse”), o “negócio jurídico” (relação jurídica entre sujeitos de direito) etc. O conjunto dessas abstrações (forma jurídica) é o que conhecemos como “direito objetivo” (law), que é mais do que o conjunto de normas, para ser a própria forma jurídica total. Segundo Pachukanis,87 Marx já havia identi cado isso há muito: “(…) Marx revela a condição fundamental, enraizada na própria economia, da existência da forma jurídica, que é justamente a igualação de dispêndios do trabalho segundo o princípio da troca dos equivalentes, ou seja, ele descobre o profundo vínculo interno entre a forma do Direito e a forma da mercadoria”. Desta feita, a forma jurídica não existe dessa maneira abstrata gratuitamente. Além de ser um espelhamento das formas produtivas, ela tem uma função: garantir a reprodução do valor. Se o valor é viril, a forma jurídica será, consequentemente, “homem”. O estabelecimento de uma economia de circulação mercantil, na qual bens e pessoas são trocáveis, reverbera, necessariamente, no Direito (também); e uma série de ferramentas jurídicas precisa ser construída em re exo e apoio a essa economia. A forma abstrata da mercadoria precisa de um mecanismo de articulação formal que viabilize as relações de troca, garantindo a equivalência de tudo com tudo, e o adimplemento das obrigações assumidas, por intermédio, no limite, da força coercitiva do Estado (via poder judiciário, por exemplo). As relações de troca mercantis necessitam da liberdade contratual, e da força vinculante dos contratos (pacta sunt servanda). É necessário que os sujeitos de

direito sejam juridicamente reconhecidos, formalmente livres e iguais, para exercerem a aludida liberdade. Faz-se mister, aqui, que tanto esses sujeitos tenham direitos e deveres, quanto que um terceiro, o Estado (forma política), execute os contratos não honrados e garanta a propriedade privada das partes. No capitalismo, instaura-se a impessoalidade, que determina a produção e a circulação das mercadorias, de modo que o capital explora o trabalho sem fazer distinções (e não apenas aos escravos ou servos). Basta, para tanto, que o trabalhador se submeta de forma hipoteticamente livre (como sujeito de direito), através do contrato de trabalho, o que ilustra a relevância do ferramental jurídico moderno para o desenvolvimento do sistema capitalista. Esse é o sentido mais elementar em que se pode dizer que o Estado e o Direito moderno são capitalistas, mas é mais do que isso: a forma de ambos equivale à forma mercantil e às demais categorias abstratas da produção, especialmente, à forma do valor. Não é apenas o conteúdo das normas jurídicas que garante o capitalismo. É a própria forma jurídica que o faz. Desde o momento em que os indivíduos são tratados como átomos e que o Estado garante a propriedade de alguns contra todo o resto, a transação que garante o lucro e a mais valia esta respaldada em determinadas formas como a do sujeito de direito. Certas ferramentas normativas estatais indistintas, usadas em todas as relações jurídicas, possibilitam exatamente que se formem todas as relações econômicas capitalistas. A forma jurídica é uma forma de sujeitos de direito atomizados que se submetem ao poder estatal e transacionam conforme mercadorias. A estrutura do capitalismo mercantil enseja a estrutura do direito, que passa a possibilitar as próprias relações do capital. As normas e as atitudes especí cas dos juristas, muitas delas podem até mesmo ir contra o capitalismo. A estrutura do direito não. Para as atividades mercantis, a estrutura jurídica lhe é um dado necessário e imediatamente correlato. Tal estrutura jurídica – técnica, normativa, fria e impessoal, apoiada em categorias como o sujeito de direito, o direito subjetivo e o dever –, que vem a ser o fenômeno jurídico tal como o conhecemos modernamente, nasceu apenas com o capitalismo, como seu correlato necessário.88

Trata-se de derivar as relações de equivalência operadas pela formamercadoria e pela forma abstrata do trabalho assalariado, o que só se possibilita graças à forma jurídica. A forma abstrata da mercadoria tem o condão de operar o valor equivalente para que tudo seja identi cável e preci cável, através do espelhamento “forma-mercadoria = forma-dinheiro”. A abstração mercantil consegue equiparar todas as coisas do mundo: águas, vacas, tecidos, telefones, sapatos, peixes, xícaras, casas, remédios, cachorros etc., até o in nito de possibilidades, pois tudo pode ser equivalente com tudo na medida em que pode ter preço, de modo que a forma-dinheiro é o equivalente universal. A abstração do trabalho possibilita que o tempo de um ser humano empregado na produção das mercadorias também seja preci cado e equivalente, pela forma-dinheiro, a qualquer outra mercadoria do mundo. Enquanto os seres humanos (por seu tempo e sua capacidade de gerar valor) são equiparados a qualquer objeto que valha dinheiro, as mercadorias ganham uma capacidade de valorização e circulação independente da vontade humana, do controle de alguém: isso é o fetichismo. Assim sendo, as pessoas aqui, no contexto da sua constituição fetichista, não se apresentam a si próprias como portadoras autónomas de vontade e acção, mas como representações no seio do mundo da essência da substância transcendente projectada. Como a substância absoluta permanece transcendente, não assumindo uma forma terrena imediata (a não ser em representações simbólicas), ela também não pode abarcar totalitariamente o mundo real. Não há nenhuma generalidade abstracta social, mas sim uma sequência de múltiplos graus de representações pessoais e de situações relacionais a todos os níveis (…) De certo modo, a projecção tornou-se imediatamente real, e com isso também palpavelmente terrena, mesmo que continue mediata, na medida em que apenas se manifesta em relações sociais e em coisas reais (mercadorias e dinheiro), enquanto a essência do “valor” como abstracção não pode ser imediata, nem portanto tão-pouco palpável. O paradoxo da abstracção real consiste em que a abstracção, em si não física/material/corpórea, a coisa do pensamento, ou por outra, um produto da cabeça

socialmente objectivado como projecção fetichista, se apresenta ainda assim como uma relação social real e uma objectividade física real,

nomeadamente em objectos que em si não são abstractos, mas que são tornados objectos realmente abstractos pelo mecanismo de projecção social.89 Ocorre que, para garantir que todas as mercadorias se equiparem, que sua troca por dinheiro ou por outra mercadoria seja garantida, que as pessoas possam ser consideradas iguais no processo de troca, que a apropriação privada da mercadoria não seja ameaçada, para que o Estado desempenhe suas funções, e para que o trabalho abstrato possa derivar em mais-valor, existe o Direito. Como o trabalho abstraído na forma, capaz de gerar valor, é másculo, o Direito, seu derivado, jamais poderia ser feminino (ou feminista). Nenhuma das relações de abstração e equivalência das formas econômicas seria possível sem que a forma jurídica incorporasse os artí ces que viabilizam a circulação mercantil na forma do sujeito de direito. É graças à norma, ou seja, às leis, aos códigos, aos contratos, aos títulos de crédito, às ações etc. que é possível se estabelecer o valor equivalente e incrementar o valor total. O Direito é o veículo do valor, a partir de sua estrutura. O que a leitura pachukaniana descortina é que pouco importa o que texto da norma trará – se está na forma jurídica é porque replica o valor. Consequentemente, uma vez que Roswitha Scholz elabora um teorema que sustenta uma especi cação sexual ao valor admitido na forma como obrigatoriamente “homem”, o Direito, forma jurídica do valor, por essa leitura, sempre está comprometido com o patriarcado, independentemente do texto contido na norma. 1.3 Estado, Direito e feminismo Porquanto, se, conforme Roswitha Scholz, o valor é o homem, quais seriam as possibilidades do Estado diante dos direitos das mulheres e do feminismo? Como o Direito poderia atuar diante da cisões de gênero decorrentes do valor? É possível a emancipação feminina na sociedade capitalista? E a igualdade de gêneros, é possível? Ou o m do gênero? A positivação de direitos das mulheres e as políticas públicas de gênero podem veicular a igualdade? Veremos por que nossa resposta será sempre negativa.

Outrossim, cumpre indagarmos a partir dos conceitos de Scholz acerca do valor e sua relação com a dissociação: quais as possibilidades do próprio feminismo no mundo contemporâneo e na sociedade das mercadorias falocêntrica? Como Scholz desenvolve uma abordagem radical da cisão de gênero, sustentando que o capital/valor é “homem”, ou seja, arquetipicamente masculino, o machismo e o patriarcado da sociedade burguesa diferem de quaisquer outros porque se constituem estruturalmente a partir do valor-clivagem. Para melhor explicar o signi cado de “dissociação-valor”, convém esclarecer primeiro o conceito androcêntrico de valor, no sentido da “crítica do valor fundamental” a que adiro criticamente. Em geral o conceito de valor é assumido positivamente, seja no marxismo tradicional, no feminismo ou na economia política, onde ele aparece, por exemplo na forma dos preços, como simples objecto da sociedade humana, sem pressupostos e trans-histórico. Não assim na “crítica do valor fundamental”. Aqui o valor é compreendido e criticado como expressão duma relação social fetichista. Sob as condições da produção de mercadorias para mercados anónimos, os membros da sociedade não utilizam os seus recursos de comum acordo, para a conveniente reprodução da sua vida, mas, isolados entre si, produzem mercadorias que só se tornam produtos sociais através da troca no mercado.90

Segundo ela, o capitalismo engendra a subjugação necessária da mulher de forma muito peculiar, passando pela ontologia do trabalho e pela determinação econômica, de modo que o Estado, compreendido como forma política, e do Direito, compreendido como forma jurídica, não podem adimplir as reivindicações femininas devido à sua forma. Para Scholz, o valor é necessariamente androcêntrico,91 o que, amiúde, trata-se de uma revisão hermenêutica dos diagnósticos marxianos, com a perspectiva de constituir uma crítica marxista do valor, levando em consideração a clivagem de gêneros, para um mundo capitalista estruturalmente em crise. E a crise impacta diferentemente a homens e mulheres: A crise tem repercussões diferentes nas mulheres e nos homens. Falo neste contexto de um “asselvajamento do patriarcado”. Isto não signi ca que a relação de género se dissolva num sentido

emancipatório. Nem tão-pouco signi ca que a estrutura fundamental da sociedade sexualmente hierárquica se torne obsoleta. Haverá mais um abrandamento dos papéis tradicionais de género em condições de empobrecimento. Tais desenvolvimentos podem ser observados, por exemplo, nas favelas do chamado Terceiro Mundo. As mulheres são aqui responsáveis pela sobrevivência da família. Os homens arrastam-se de emprego em emprego e de mulher em mulher e, na verdade, já  não se sentem responsáveis pelas relações nem pelos próprios lhos. Estamos aqui mais perante processos de degradação. Em situações de crise social aguda a maior carga recai sobre os ombros das mulheres.92

Para Kurz, os processos de valorização chegaram ao seu limite e a crise do sistema econômico é irreversível – a modernização está em colapso.93 Por isso, segundo Roswitha, o desenvolvimento de uma teoria marxista para uma compreensão radicalmente crítica das categorias sociais modernas e suas relações não pode permanecer em um entendimento abstrato universalista. O sexismo moderno, o racismo, o anticiganismo e o antissemitismo são, basicamente, decorrentes de produções discursivas iluministas estruturalmente relacionadas com o moderno sistema da produção de mercadorias, que opera através de contradições.94 Esta também é a leitura de Mascaro, para quem o capitalismo é obrigatoriamente patriarcal, racista e xenófobo, constituindo-se sobre estas bases sociais opressoras ao lado de bases políticas e jurídicas estabilizadoras, com o condão de conservar sua estrutura produtiva.95 Deste modo, qualquer coisa que não é absorvida na forma do valor abstrato, mas ainda continua a ser um pré-requisito para a reprodução social, é delegada à mulher, como a sensualidade ou a emotividade, por exemplo. Na produção, o trabalho das mulheres ainda carrega o estigma da desigualdade, oportunizando sua submissão social para uma exploração de seu trabalho mais cruel do que ocorre com os homens. Na sociedade, a mulher ainda é narrada como um ser inferior e submisso, naturalmente, dócil, sensível e acolhedor. Na indústria cultural, a mulher, enquanto forma arquetípica do binarismo capitalista, ainda é um “objeto sexual”, cujo consumo frívolo de mercadorias que a aproximem da aparência ideal imposta

pelo mainstream a torna objeto de consumo mais atraente; e as mulheres que não estão criticamente atentas às imposições do patriarcado buscam doentiamente corresponder a tais padrões, pois, achacadas pelas narrativas hegemônicas, muitas ainda estão dispostas a fazer tudo o que for possível para ter um relacionamento. As mulheres permanecem mais sujeitas a trabalhar na informalidade, em domicílio, em atividades de tempo parcial e sem regulamentação de jornada, e estão mais expostas à segregação ocupacional e ao desemprego. Ainda, os estupros e outros tipos de violência sexual contra as mulheres aumentam de maneira assombrosa, assim como os assassinatos.96 Então, perguntamos: onde estão as grandes conquistas para as mulheres que as ondas do feminismo supostamente trouxeram? Amiúde, trouxeram, de fato, apenas, uma muito maior amplitude de duplicação ou triplicação de jornada, quando a mulher pode ocupar posições diversas (inclusive, de direção) no mundo do trabalho abstrato e na burocracia estatal, sem deixar de ser a responsável pelas tarefas clivadas. Ou seja, a inserção na subjetividade jurídica formal, e as “conquistas de direitos” formais, não deslocaram a mulher dos lugares metanarrados da dissociação e da inferiorização existencial. Por tudo isso, ousamos a rmar, peremptoriamente, que, enquanto os movimentos feministas não tiverem por pauta principal a superação do valor, apenas estarão reproduzindo a lógica perversa de replicação do mesmo, que depende do patriarcado, do binarismo, e da inferiorização da mulher. Crer em outras estratégias de emancipação feminina, especialmente as que passam pelo Direito e pelo Estado, é pura ingenuidade: ou é deliberado feminismo liberal, ou falta de compreensão da anatomia do valor e de todas as formas sociais do capitalismo. Para nós, o olhar de Scholz é oportuno e indispensável, nesse cenário, porque, seguindo os passos de muitas outras autoras marxistas, ela é capaz de demonstrar a especi cação das relações de gênero na sociedade das mercadorias, e nos fazer compreender por que a inserção da mulher no mercado de trabalho e na forma jurídica não descon gura a masculinidade inerente ao capital. Isso porque o grande diferencial de Scholz é partir da “nova crítica do valor”.

Nos anos de 1990 a crítica do valor começou por se alargar para lá da tematização do contexto da forma da economia política e isto em três aspectos. Em primeiro lugar, a teoria da dissociação sexual de Roswitha Scholz (1992, 2000) forneceu uma modi cação decisiva, em que a moderna relação de género já não surge como “contradição secundária derivada”, mas como determinação real fundamental da moderna constituição de fetiche.97

A estrutura “sujeito de direito – mercadoria (bem jurídico) – sujeito de direito” é derivada da relação “trabalho morto (valor) – trabalho vivo – trabalho morto (mais valor)”. A determinação social dessa relação é que o capital já objetivado (trabalho morto) se reproduza através do trabalho vivo, desdobrado na “forma abstrata do trabalho”, correspondente ao tempo de trabalho inerente a cada indivíduo no processo de produção de mercadorias. Ocorre que, ao adotarmos a teoria do valor-clivagem, de Roswitha Scholz, passamos a compreender o próprio valor a partir da cisão de gênero, o que lhe confere contornos ainda mais complexos. Desta feita, teríamos a estrutura: trabalho

morto (valor masculino) / tarefas clivadas (valor dissociado) – trabalho vivo / atividades reduzidas enquanto femininas (fora da concepção de “trabalho”, mas, obviamente, outro tipo de “trabalho vivo”) – trabalho morto (mais valor, masculino) / tarefas clivadas (valor dissociado).

Perceba-se o quanto as relações apreendidas pelo marxismo tornam-se muito mais complexas com as especi cidades de gênero descobertas por Scholz. O que notamos é que as próprias críticas marxistas ao valor, ao Direito e ao Estado, que tomamos como referenciais teóricos fundamentais, desconsideram absolutamente a clivagem de gênero, e argumentam como se todas essas categorias fossem neutras, sem gênero, e universais. Por essa razão, estão seguindo a mesma linha universalizante da subjetividade da “razão esclarecida”, que é a grande metanarrativa legitimadora de todas essas abstrações que denunciam. Operam com a categoria “trabalho morto”, como se o valor não fosse masculino, e com o conceito “trabalho vivo”, como se as atividades desempenhadas fora da forma abstrata do trabalho, relegadas às mulheres, não fossem também trabalho realizado por seres humanos vivos, e explorado para incrementar o valor. Nosso diferencial, ao

adotar o teorema de Scholz, é demarcar a especi cação sexual de todas as formas sociais do capitalismo. Mas o conceito em si fechado de totalidade e de generalidade do universalismo androcêntrico é quebrado no próprio plano geral com o conceito de dissociação-valor, de tal maneira que este princípio teórico não só consegue desde logo aceder às diferenças (e seu posicionamento hierárquico), às particularidades que não são produzidas numa mera “relação de derivação”, mas é mesmo obrigado a tê-las em conta a partir de si mesmo. Apenas de tal modo consegue a teoria crítica da dissociação e do valor aceder ao seu necessário autodesmentido interno, como um universal que radica necessariamente no pensamento conceptual androcêntrico, sem se tornar ela própria “falsa” e “inverídica” na sua universalidade (negativa), que no entanto deve ser mantida. E só perante este pano de fundo é possível a sua auto-relativização, enquanto formulação fundamental de um paradoxo; mas ela própria imprescindível num plano de grande conceito, o que signi ca de facto que ela consegue simultaneamente acompanhar em termos materiais e de conteúdo na sua qualidade própria o “concreto” e o particular, o chamado plano micro, tal como a análise crítica do já referido posicionamento hierárquico das diferenças.98

Estamos, neste trabalho, tomando as advertências de Roswitha e partindo de seu teorema para compreender o valor sem uma idealização de neutralidade sexual, que, na realidade, é mais uma reprodução do universalismo iluminista, que impôs o sujeito macho e branco como única forma possível de subjetividade (universal). No mesmo sentido, recaem em erro as teorias de derivação, tanto da forma jurídica quanto da forma política quando desconsideram as circunstâncias de gênero (e de raça) nas formas abstratas pretensamente universais da sociabilidade capitalista. Por mais brilhantes e contundentes que sejam as críticas da economia política marxista, dos debates da derivação, incluindo Evguiéni Pachukanis, acabam, nesse ponto, recaindo nos mesmos canteiros dos liberais, pois também estão trabalhando com universalismos, sempre androcêntricos. É por isso que Scholz vai buscar Theodor W. Adorno: o maior crítico da razão iluminista. É com as lições dele, e mantendo-se crítica também a ele

(pois, certamente, Adorno peca na compreensão das categoriais estruturais do valor, que ela toma da Wertkritik), que Roswitha Scholz pretende escapar das armadilhas universalistas e totalitárias do esclarecimento. Scholz tem plena consciência, inclusive, de que Adorno não se insere no marxismo ortodoxo, e de que seus escritos destoam da proposta el à economia política marxiana da crítica do valor, mas ela está disposta a conciliar essas abordagens. Adorno não está preso a uma metodologia marxista trabalhadora e dedutiva, pelo contrário, ele pensa a forma social (mesmo que acanhada na “troca”) num sentido abrangente. Ele compreende a totalidade ainda na sua não-identidade, pelo que as suas re exões também em termos de conteúdo representam algo completamente diferente das de certos exegetas de uma nova leitura de Marx, para quem o conteúdo no fundo está subordinado a pontos de vista meramente metodológicos ou metódicos (palavra-chave: dialéctica como método, seja no interior ou no exterior do marxismo do movimento operário etc.). A verdadeira (in)verdade do todo social, no entanto, apenas se revela tendo em conta uma crítica da dissociação-valor estabelecida complexamente, que não pode ser fundamentada apenas em termos de teoria do conhecimento, pelo contrário, só pode atingir o seu propósito numa efectiva suplantação da práxis androcêntrica, racista e inimiga da natureza, e se situa para além de um romântico quotidiano do homem coercivamente “transformado em dona de casa” (Claudia von Werlhof), tão chato como simultaneamente inchado, fazendo da necessidade virtude, que secretamente está de olho em algo diferente e procura casar um plano irracionalista com uma crítica do valor falsamente estabelecida como racionalista.99

Por isso, ela é mais materialista e mais comprometida com a dialética que todos os outros autores homens de que parte – e dos que esta obra parte também. Dessa maneira, optamos por tomar Scholz como nosso referencial teórico principal, e, então, utilizar sua teoria a m de aprimorar os conceitos de forma jurídica e forma política tão brilhantemente trabalhados desde o século passado. Se tomarmos todas essas visões a partir de sua congruência epistemológica, e tecermos uma trama coesa, marcada pelo valor-dissociação de Scholz, poderemos realizar uma abordagem da “Teoria do Direito e

marxismo”, feminista, ou um “debate da derivação do Estado” em relação ao valor clivado. Essa tarefa nos é crucial, pois, ao partirmos do pressuposto teórico de que a valorização está intimamente relacionada à misoginia, desponta o questionamento acerca de como o Estado e o Direito podem se conduzir para dirimir as assimetrias de gênero e promover os direitos da mulher. Todavia, se Estado e direito derivam da forma valor e da forma mercantil; a forma valor atravessa a forma política e a forma jurídica, fazendo delas seus veículos.100 Estando tais aparatos a serviço do valor, o papel do Estado e do Direito diante das demandas femininas será determinado por estas idiossincrasias. Podem ser trincheiras estratégicas e provisórias nas batalhas contra o patriarcado, mas não podem ser o horizonte de um feminismo emancipador. 1.3.1 Forma jurídica e direitos das mulheres Cabe re nar as compreensões da derivação do Direito e do Estado, através da clivagem do valor de Scholz, pois não podemos mais tomar o sujeito do Direito e da política formal enraizado numa lógica de identidade universalista que, na verdade, desconsidera a existência de mulheres e homens não-brancos, mas opera perversamente a forma do sujeito para incluir ou excluir humanidades ao gosto do freguês – o valor. Isso é crucial para escaparmos das generalizações liberais, que também acometem o marxismo. Nesse sentido, Roswitha adverte: Como teórica feminista não quero enredar-me nas armadilhas da produção teórica androcêntrica (que estabelece o masculino como norma e padrão), a qual procede sempre de maneira universalista e na lógica da identidade. Tenho de ver que há outras disparidades: o anti-semitismo, o racismo, o anticiganismo – todas estas formas são essenciais para a constituição do sujeito burguês e do contexto social. Esta formação social, na sua lógica processual, não pode ser simplesmente derivada de uma forma. A elaboração teórica feminista tem de ultrapassar simultaneamente o olhar androcêntrico que constatou relações causais frequentemente simples e generalizantes.101

Seguindo nosso caminho teórico, se “sujeito de direito – mercadoria (bem jurídico) – sujeito de direito”, precisamos compreender como se dá o espelhamento da forma jurídica em relação às formas econômicas quando acrescentamos a complexidade da clivagem de gênero sobre o processo reprodutivo do valor, nos moldes “trabalho morto (valor masculino) / valor dissociado – trabalho vivo / atividades femininas (fora da concepção de “trabalho”, mas, obviamente, outro tipo de “trabalho vivo”) – trabalho morto (mais valor, masculino) / valor dissociado”. As atividades reputadas enquanto reprodução social, como gestar, parir e cuidar, tipicamente femininas, não entram na categoria do trabalho abstrato (trabalho vivo explorado), e, consequentemente, não podem ser compreendidas como “trabalho morto”. Por isso, não são valor (ou mais valor). Ou seja, no início do desenho liberal do Estado e do Direito burgueses, era absolutamente prescindível conferir subjetividade jurídica às mulheres. No mais íntimo do tecido social, também o Estado não é mero continuador de preconceitos ou distinções naturais ou biológicas. A noção de homem e mulher é retrabalhada no capitalismo. O patriarcalismo adquire contextos especí cos na dinâmica entre capital e trabalho. Os grupos sociais tradicionais – como a parentela – são dissolvidos em favor de um núcleo familiar plantado na vinculação entre homem e mulher. Em sociedades nas quais a vida depende da posse de bens que são adquiridos no mercado, é a centralização do papel do assalariado nas mãos do homem que forja o moderno patriarcado. O machismo vai de par em par com o capitalismo. Há um liame necessário entre a forma mercantil e a forma da família monogâmica heterossexual reprodutora. A forma política se põe a complementar, em tal caso, a dinâmica das formas.102

A implementação do Estado de Direito após as revoluções burguesas excluía as mulheres da forma jurídica do sujeito de direito para ns políticos, destituindo-as da titularidade sobre direitos individuais civis e políticos, e de todos as liberdades burguesas – exclusividade masculina (e branca). Quanto ao direito de propriedade, podiam deter titularidade precária sobre patrimônio, sem, porém, poderem celebrar negócios jurídicos, por sua incapacidade civil. A abstração jurídica da incapacidade surgiu para viabilizar a vinculação patrimonial de um bem jurídico a um sujeito de direito

considerado irracional, associada aos institutos da tutela e da curatela. O tutor (homem, geralmente, o pai ou o marido), capaz, é que poderia celebrar negócios jurídicos em nome da tutelada. As mulheres, assim como as crianças e as pessoas com de ciência (especialmente, intelectual), encontravam-se nessa previsão de incapacidade civil, por não serem consideradas sujeitos racionais tais quais os homens. No princípio do liberalismo, a derivação e a dissociação eram muito mais diretas, tornando a compreensão mais lógica para nós. Ora, se o sujeito de direitos é abstração para viabilizar os contratos, para a circulação mercantil e a exploração do trabalho vivo na forma abstrata do trabalho assalariado, a mulher não seria, obviamente, sujeito de direito. Se as atividades do lar realizadas pelas mulheres não eram consideradas trabalho, elas não precisaram ser alocadas na forma do sujeito de direito para serem exploradas. Seu trabalho não era assalariado e não gerava mais-valor. Logo, não eram sujeitos de direito, pois não celebravam contratos de trabalho sob o mito da autonomia da vontade. O sujeito de direito era, literalmente, homem. Notese que a subjetividade jurídica da mulher só era reconhecida, desde que limitada pela incapacidade civil, para possibilitar a circulação mercantil, oportunizando as guras femininas como veículos do movimento das mercadorias entre os homens, na lógica mercantil em que a circulação da mercadorias pode, inclusive, prescindir de sujeitos. A divergência entre, de um lado, a acção objectivamente especializada que é inserida num contexto suprapessoal e, de outro, a personalidade subjectiva dela divorciada que se demora numa “esfera privada” tem seu correspondente directo no plano da determinação formal da sociedade. Pois do mesmo modo que o homem abstrai-se a si mesmo como pessoa em sua actividade objectivamente especializada, assim também as mercadorias produzidas como “coisas sociais” não são objectos materiais e sensíveis, mas abstracções “fantasmagóricas”, segundo o termo de Marx. Em ambos os casos, o componente sensível – o substracto empírico-subjectivo – é excluído da relação social. Simmel aliás chega ao ponto de desvelar aspectos de “despersoni cação” no indivíduo masculino. Ele insinua assim qual o “ganho neurótico” que uma tal despersoni cação do homem rende: poder e, supostamente, “soberania”.103

O que importa, mais do que tudo, é a mercadoria circular. Se, para isso, for preciso reconhecer subjetividade jurídica a uma cadeira, a forma jurídica o fará.104 Por isso, a mulher branca, para ser titular de patrimônio, podia ser considerada um sujeito de direito (patrimonial) precário, mas incapaz civilmente, e absolutamente incapaz eleitoralmente. Uma mulher branca poderia ser herdeira, como um bebê, ou um gato (há ordenamentos jurídicos que possibilitam), pois isso sempre foi útil para a circulação mercantil e para o incremento do valor. Porém, precisava ser considerada incapaz para sustentar a retórica iluminista de que era um ser menos racional que o homem e, por isso, sua função existencial era de parir, limpar, cuidar etc., e suas atividades, fora do trabalho abstrato, estavam relacionadas às suas características “naturais” de emotividade e sensibilidade, o que tornava perigoso permitir que celebrassem negócios (coisas de homem, porque exigiam racionalidade). As mulheres não podiam celebrar contratos civis patrimoniais, nem ser sócias de empresas. Anuíam ao contrato de casamento, mas quem escolhia o noivo era o pai da noiva. Por isso, uma das reivindicações das feministas de primeira onda era poderem escolher com quem iriam se casar, dispor de seu patrimônio, e celebrar negócios sem tutor. A metanarrativa que forjou o binarismo de gênero da modernidade, e dissociou o valor, também alijou a mulher da participação das instituições estatais no início do liberalismo. O discurso de que a mulher nasceu para ser mãe, para cuidar de seu homem e de seus lhos, dos enfermos e dos idosos, assim como da casa, estava alicerçado na enunciação de que isso se devia às suas características existenciais “naturais” e inerentes à feminilidade, como a delicadeza, a paciência, a resignação, a emotividade, a sensibilidade etc. Essas características, construídas meticulosamente nos meandros da razão esclarecida, impediam as mulheres de participar da política institucional, que requeria “dureza”, “frieza”, “assertividade”, “inteligência”, “racionalidade” etc. – qualidades enunciadas como exclusivamente masculinas. Por coerência, o discurso que possibilitou a clivagem do valor impediu as mulheres de tomarem parte na forma política. Ora, se eram narradas como sensíveis e irracionais e, por isso, seu trabalho (no lar) não era assalariado (embora fundamental para a [re]produção do capitalismo), não podiam tomar decisões políticas. Assim, no capitalismo do século XIX e início do século XX, as mulheres não podiam votar, ou se candidatar a cargos eletivos. Daí, a

principal marca do feminismo daquele período ser o movimento sufragista. Infelizmente, somos compelidas, desde o referencial teórico adotado, a a rmar que as “conquistas” do feminismo de primeira geração serviram, tãosomente, para reforçar o paradigma liberal de que a “cidadania”, via sufrágio, era uma conquista da humanidade, bem como para rea rmar todos os engodos da universalidade iluminista. Portanto, a exclusão da mulher da subjetividade jurídica na fase liberal da reprodução do valor é simultânea ao fenômeno econômico da dissociação do valor. Enfatizamos, assim, que a narrativa iluminista de inferioridade da mulher não pode ser compreendida como mero produto cultural, pois foi crucial para a formação da estrutura produtiva capitalista. Da mesma maneira, o deslocamento da mulher da forma do sujeito de direito apareceu como um correlato das formas econômicas, uma vez que a forma jurídica é espelhamento destas últimas. O valor (supostamente neutro), na verdade, é homem, e o trabalho abstrato que gera mais valor (pretensamente universal e neutro) é apenas varonil – de outra banda, o sujeito de direitos (pretensamente universal e neutro) só abarca as existências concretas dos seres humanos machos e brancos. Tudo está interpenetrado. O sujeito de direito (masculino) não é anterior nem posterior ao sujeito do trabalho (masculino) – são elementos que surgem ao mesmo tempo e se pressupõem. Assim, se o Direito é forma jurídica também derivada da forma do valor, não é neutro quanto ao gênero, mas é, estruturalmente, desde a sua gênese, também masculino. São todas formas sociais do capitalismo. O único contrato que a mulher – branca – podia celebrar era o contrato de trabalho, da mesma forma que as crianças podiam trabalhar no século XIX e em boa parte do XX.105 Por isso, desde sempre, o Direito separou as capacidades eleitoral e civil das capacidades trabalhista e criminal. Um indivíduo pode ser absolutamente ou relativamente incapaz para celebrar negócios jurídicos, mas isso não vincula os critérios de imputabilidade penal ou capacidade laboral. Cada legislação, autonomamente, em cada seara dogmática, aloca, na forma da norma jurídica, critérios distintos de capacidade, como, verbi gratia, os etários. Por isso, nada impede que a plena capacidade civil seja de 21 anos, a plena imputabilidade penal dê-se aos 18 anos, a capacidade eleitoral seja aos 16 anos, e a capacidade trabalhista tenha

início aos 12 anos, num mesmo ordenamento jurídico nacional, por exemplo. Isto porque a forma jurídica incorpora, em seu conteúdo, prescrições que servem mais pro cuamente à valorização do valor naquele contexto histórico de vigência normativa. O mesmo raciocínio vale para as mulheres: uma mulher podia ser incapaz eleitoralmente, relativamente capaz penalmente e civilmente, mas, ao mesmo tempo, plenamente capaz para celebrar o suposto contrato de trabalho, que, de contrato bilateral horizontal, não tinha absolutamente nada. Cumpre observar que, no período a que estamos nos referindo, a compreensão dos direitos subjetivos era exclusivamente individual, e não havia direitos trabalhistas. Não havia salário mínimo, limitação de jornada, descanso remunerado ou férias, de modo que as pessoas trabalhavam até o esgotamento. A indústria do século XIX era um moinho de seres humanos, que sugava o seu trabalho vivo para o converter em mais valor até a completa destruição das pessoas. Por isso, seria contrário à lógica de reprodução do valor que as mulheres ou as crianças fossem impedidas de trabalhar,106 já que nuca houve pudor algum em negar subjetividade racional e jurídica e, ao mesmo tempo, espremer trabalho vivo desde o período de acumulação primitiva (aliás, quanto menos subjetividade, mais valor, a exemplo da escravização de pessoas negras). Assim, desde os primórdios do capital liberal, a mulher estava incumbida, com exclusividade, de realizar as tarefas clivadas, mas também podia ter um trabalho assalariado (com salário muito inferior ao do homem). Na fase liberal de acumulação de capital, com reprodução produtiva do valor, que durou desde o pós-independência dos EUA e a revolução francesa até 1929, as mulheres brancas estavam condicionadas à não-subjetividade racional, por meio de discursos que forçavam sua exploração nas tarefas do valor dissociado, como gestar, parir, cuidar, criar, lavar, passar, cozinhar etc., e, logicamente, à não-subjetividade jurídica, no que diz respeito às liberdades civis e políticas, e à plena capacidade para celebrar negócios jurídicos. Tratase de uma relação lógica e necessária: se o universo feminino não comporta o trabalho, as mulheres não se implicam em relações jurídicas, pois estas não passam de abstrações, na forma do Direito, para veicular a circulação mercantil e o aumento do valor.

Paradoxalmente, porém, se pobres, as mulheres podiam sim, na vida real, ser exploradas enquanto força de trabalho vivo. E, mais do que isso: por conta das metanarrativas de inferioridade, resignação e docilidade, sempre foram muito pior remuneradas do que os homens para exercer exatamente as mesmas atribuições (o que ocorre até os dias presentes). O trabalho vivo da mulher de carne e osso é, assim, até hoje, idôneo a gerar mais mais-valor no processo produtivo do que o trabalho dos homens. Na verdade, nesse ponto, segundo Scholz, o “empoderamento” feminino através da inserção no mercado de trabalho (abstrato) retirou dos homens um domínio exclusivo, produzindo uma sensação psicanalítica de “castração”, que resvala em mais violência contra a mulher: Os mecanismos dominantes postos e mantidos em movimento pelo homem – mecanismos estes que se autonomizaram às suas costas – têm como consequência última produzir a própria “castradora” do homem. O patriarcado do valor foi obrigado a criar para si um refúgio onde pudesse resguardar-se de si próprio: a privacidade abstracta da família, a esfera de acção preferida da mulher. Ora, são os próprios mecanismos produzidos insconscientemente pelo sexo masculino que tornam esse refúgio tão precário a ponto de fazer esvair o “bem-estar” (patológico) dos homens e permitir às mulheres sacudirem o seu jugo. De facto, a própria inserção feminina no “trabalho” abstracto signi ca não apenas a crescente alienação (“masculina”), mas ao mesmo tempo a maior independência da mulher em face de seu papel tradicional. Simultaneamente, o “perigo de castração” emana do próprio “trabalho” abstracto, que até agora agiu como doador de identidade. De facto, a onda de racionalização iniciada nas duas últimas décadas através de novas tecnologias e da globalização dos mercados não afecta apenas as mulheres com função remunerada (embora elas sejam as mais atingidas), mas também um número crescente de homens. Como não se trata mais de um mero desemprego “cíclico”, mas sim estrutural, também nesse sentido uma nova qualidade é alcançada. Ao mesmo passo, o absurdo e o poder de destruição do “trabalho” abstracto vêm a lume tanto subjectiva quanto objectivamente (crise ecológica). O próprio desenvolvimento tecnológico e estrutural torna cada dia mais obsoleto esse marco constitutivo da identidade masculina no patriarcado do valor. Em todos os níveis, também os homens são forçados a re ectir sobre sua identidade

tradicional, seja ela pessoal e subjectiva ou social. O “trabalho” abstracto não pode mais ser o campo social pelo qual se orienta a identidade masculina. Os poucos movimentos masculinos já existentes, de resto, põem em questão os pontos de referência de sua identidade.107

Aqui, encontramos o fenômeno que pode ser de mais difícil compreensão a partir do Theorem der Wert-Abspaltung. O fato de, na materialidade de vida real, mulheres de carne e osso trabalharem, receberem salários, e gerarem mais-valor não altera a forma clivada do valor, justamente porque o trabalho é abstrato. Vimos insistindo, reiteradas vezes, no fato de que o trabalho, para a crítica do valor, é abstração formal equivalente à forma da mercadoria (trabalho morto objetivado) e à forma do valor (trabalho morto convertido em mais-valor). Desde o regime de acumulação liberal, havia mulheres operárias, porém, a morfologia do valor nunca se descon gurou por conta disso. Estruturalmente, o valor é o homem. Por isso, não importa se, no mundo sensível, é um homem ou uma mulher que realiza o trabalho concreto. O que importa é a forma abstrata desse trabalho, que nunca deixará de ser EXCLUSIVAMENTE masculina. De outro ângulo, as atividades que não podem ser convertidas em mais valor, sempre vinculadas à feminilidade, como as tarefas domésticas, nunca deixarão de ser femininas, ainda que um homem (ou até uma máquina) realize-as. Isso porque, no capitalismo, sempre estamos operando com formas, e não com conteúdos. Há muito a esfera do “trabalho” abstracto deixou de ser propriedade exclusiva dos homens. O pressuposto patriarcal básico da relação de valor, porém, não foi por isso eliminado, mas apenas tornou-se precário e con ituoso. A despeito de toda a actividade remunerada, o “trabalho” abstracto não possui até hoje para as mulheres o mesmo poder fundador de identidade que para os homens. Vê-se que o fetichismo do “trabalho” como “tautológico m em si mesmo” e os critérios de sucesso por ele implicados estão enraizados na personalidade de cada homem. Isso vale sobretudo, é claro, para os representantes de instituições político-económicas e culturais, mas não raro para o teórico masculino (razão pela qual as mulheres que fazem carreira nessas áreas sujeitam-se a duras provas de adaptação).108

A mercadoria não é o tecido, o vestido, o sofá, a cebola, o canário, a truta, o caminhão etc., mas sempre a forma abstrata mercantil, para que tudo seja equiparável. Seguindo essa lógica, não importa se o trabalho concreto é capinar um terreno, confeitar um bolo, obturar um dente, assentar um tijolo, dançar, lecionar, jogar futebol, e assim in nitamente. Importa a abstração na forma trabalho para gerar equivalência entre todos os trabalhos. E só será trabalho aquele que gera mais-valor. Assim, dançar, por exemplo, pode ser trabalho e pode ser não-trabalho. O que estabelece a abstração é a relação com o valor, e não a natureza da atividade, nem a genitália de quem a desempenha. Não interessa quem está efetivamente realizando esse trabalho, desde que ele gere mais valor. Destarte, pode ser feito apenas por mulheres, na vida real, que continuará, na forma abstrata, sempre masculino. No sentido oposto, as tarefas clivadas sempre serão femininas. É com esse paralelo que a rmamos que o trabalho abstrato sempre será masculino, o valor sempre será homem, e as atividades clivadas, na sua forma abstrata, sempre serão femininas, tudo sempre inserido num universo de formas abstratas que se movimentam autonomamente, sem o controle de ninguém, para realizar o automovimento do valor. A possibilidade concreta de as mulheres trabalharem na indústria, no comércio, nos serviços, nas grandes corporações, ou onde quer que seja, não altera o fato estrutural do valor (na forma-valor) ser masculino, mas, em contrapartida, historicamente, só tem possibilitado ampliação do nível de mais-valor devido à ideologia de inferioridade feminina.. Mulher ser protagonista na televisão, diretora em uma empresa, parlamentar etc. não abala o patriarcado – e é isso que o feminismo liberal é incapaz de perceber. É por isso que as agendas do feminismo liberal, que, no início consistiam em poder votar e celebrar contratos, e, hoje, em ocupar altos postos no escalão do Estado e das corporações de capital, não alteram em nada a forma fetichista clivada do valor, nem a hierarquia de gêneros amalgamada nele. Se, no princípio liberal, a separação entre homens (racionais e sujeito de direito) e mulheres (irracionais e relativamente incapazes) era estanque, no período fordista de acumulação, algumas con gurações foram alteradas. Os direitos trabalhistas, aos poucos reconhecidos e positivados, possibilitaram um modelo mais bem ordenado de extração de mais-valor, num capitalismo profundamente arraigado na exploração do trabalho vivo. Por isso, para

dissimular a exploração, o Direito do trabalho cumpriu o papel de equiparar o proletariado e a burguesia na forma de dois sujeitos de direito (fossem pessoas naturais ou jurídicas) contratantes. A horizontalidade arti ciosa entre trabalhador e patrão se transplantou para uma pretensa igualdade formal entre homens e mulheres, de modo que foi possível o direito feminino ao sufrágio e outras condições mínimas de cidadania feminina formal. Ao longo do século XX, houve uma dilatação dessa equiparação, com conquistas graduais às múltiplas liberdades, direitos patrimoniais, direito à escolaridade, direito ao divórcio, chegando ao pós-fordismo com a expansão das pautas de liberdade sexual e reprodutiva (que surgiram ainda na primeira onda),109 e outras ainda em disputa. Esse é um foco salutar de nossas teses, pois as transformações históricas e/ou conjunturais acerca do que poderia ou não poderia ser desempenhado pelas mulheres ao longo dos séculos XIX, XX e XXI se dão num carrossel permanente das abstrações jurídicas. São as formas (que integram a forma jurídica), girando e girando, subindo e descendo, como pôneis de plástico de um carrossel colorido, que se permitem “montar” ou não por pessoas ou objetos reais, conforme as metamorfoses do valor. Dependendo das recon gurações do capitalismo e do Estado (para atender àquele), a forma jurídica vai servir para essa manipulação das vinculações entre o trabalhador individual e o sujeito de direito, entre mercadorias e bens jurídicos (corpóreos ou incorpóreos), entre movimentos mercantis e relações jurídicas, e assim por diante. A exclusão de mulheres, pessoas negras, pessoas com de ciência, pessoas homoafetivas etc., nos períodos de acumulação primitiva e de regulação liberal, era fundamental para o capitalismo. Isso somente se alterou quando deixou de ser crucial para valorar o valor, e não porque o Estado progrediu, num sentido comteano ou hegeliano. As relações de gênero são estruturadas pela dinâmica das classes e do capital. A homofobia é uma técnica de contenção, controle e direcionamento dos prazeres e de apoderamento relativo de grupos, alimentando ainda o patriarcado. A noção de raça superior está em conexão direta com a posse do capital ou com a depreciação do concorrente. A de ciência é considerada disfuncional e a feiura é indesejada no mercado que permeia os corpos. O Estado se planta no tecido social, recebendo o passado em sua complexidade e suas profundas contradições, mas não

toma a si tal legado de modo passivo. É justamente na recon guração das identidades, dos controles, dos saberes, e das disciplinas das classes, dos grupos, das minorias e dos indivíduos que o Estado conforma o tecido social.110

Ao longo dos séculos XX e XXI, a forma jurídica abstrata do sujeito de direito passou a incorporar, em seu conteúdo, mulheres brancas, pessoas negras, crianças, pessoas com de ciência, gays, pessoas transexuais etc., num movimento contínuo, mas não progressivo e constante, pois, nos altos e baixos dos ciclos da história, de forma intercalada, judeus foram retirados da forma jurídica do sujeito de direitos, bem como ciganos(as), comunistas, pessoas com de ciência, povos árabes,111 povos latinos, e outros. Mais complexamente, num movimento simultâneo, lgbt’s, indígenas, refugiados e miseráveis são alijados da forma em alguns lugares do mundo, e incluídos em outros, ou são formalmente reconhecidos, mas concretamente negados. Ainda, pessoas negras e mulheres, que foram formalmente incorporadas ao sujeito de direito desde a primeira metade do século passado, continuam sendo violentadas e exterminados todos os dias, mas desde que isso não afete (ou até sirva ao valor). Talvez, por isso, os movimentos feministas da atualidade mostram-se, muitas vezes, extremamente combativos, demandando do Estado novas formas de atuação, e recusando o discurso de que as mulheres alcançaram igualdade e conquistas reais tão-somente porque o aparato jurídico formal positivou determinados direitos. As tais “conquistas de direitos das mulheres” não abalaram o patriarcado. No olhar de Roswitha, Estas manifestações são boas e importantes. E creio que também é necessário um forte movimento antifascista. O que eu acho ainda assim problemático é o humanismo retórico e o frequente democratismo aclamativo, que de facto se opõe à direita, mas invoca de modo completamente a rmativo a chamada comunidade ocidental de valores.112

Ocorre que esses movimentos autoproclamados radicais não investem radicalmente contra o valor, mas oscilam entre uma declaração de guerra aos homens (indivíduos) e uma mudança de atitude performática que nega submissão aos padrões ideológicos do feminino. A proposta pós-estruturalista

reside apenas numa “mudança de atitude”, que, sequer, tem compromisso obrigatório com a luta contra o fascismo (que volta a rondar o mundo), muito menos contra o capital. E, na prática, ao invés de emancipar as pessoas, essas percepções diferencialistas têm apenas feito crescer mais ódio na direita reacionária, como ocorre, neste momento histórico, no Brasil, cujos contornos neofascistas se alimentam das fantasias binaristas e heteronormativas, que garantem a “família tradicional” como último lugar de refúgio para indivíduos dementes e despossuídos: “A ascensão de movimentos de direita vai de par com o desejo de um retorno às imagens tradicionais de género (…) a incerteza das normas tradicionais de género pode mudar. O ódio às mulheres e às minorias está novamente a aumentar.”113 Para Roswitha Scholz, todas as estratégias que não miram o valor-clivagem são absolutamente inócuas114, de modo que acreditar que deixar a barba por fazer e (ao mesmo tempo) passar um batom vermelho combate as opressões de gênero se compara, mais ou menos, a acreditar que se pode destruir os EUA explodindo uma bomba junto ao próprio corpo: É assim difícil de ignorar que uma crítica truncada do capitalismo feita pelos adversários da globalização e próxima dos estereótipos anti-semitas corresponde de certa maneira aos ataques terroristas, e que também se pode considerar que estes últimos representam uma escalada da primeira. Estas conexões involuntárias resultam precisamente da globalização que implica que cada país já não seja por si, mas que tenhamos precisamente um one world. A este respeito tem razão Benjamin Barber, quando a rma que o McDonald e a Jihad são mutuamente interdependentes. Isto aplica-se, igualmente, à insistência pós-moderna na identidade e à perspectiva desconstrutivista que se esforça por tornar implausível qualquer noção de identidade. Por exemplo, a política queer e os talibãs têm mais a ver entre si do que gostariam. Também sob esse ponto de vista é totalmente errado pensar que se pode tomar posição apenas pelo lado reaccionário de um fundamentalismo anti-ocidental, ou pelo lado dos valores abstractos universalistas ocidentais, na forma do degustar de uma libertinagem a meu ver meramente super cial, que tem muito a ver com “dessublimação repressiva” e tem pouco a ver com emancipação. Nesta medida, na verdade, a sociedade do prazer e o islamismo também estão bem uma para o outro. Uma posição radicalmente crítica deve

demonstrar essa conexão interna, assumir o direito a uma negação radical (justamente não abstracta) da situação mundial e deste modo rejeitar ambas as opções mutuamente condicionadas.115

Ora, os movimentos feministas, por mais radicais que se proclamem, insistem, na realidade, em se apegar ou à democracia liberal ou às formas sociais do capitalismo, de alguma maneira, e não conseguem se dissociar das narrações iluministas. Fato é que, a despeito da panaceia liberal sobre o avanço de “direitos”, o tempo não foi capaz de superar as con gurações sociais e políticas impostas pela modernidade capitalista; ao contrário, suas contradições apenas se agravaram, mormente, com a nova con guração do capitalismo global, o protagonismo das grandes corporações, e a supremacia do mercado numa ordem mundial que mitiga a soberania dos Estados nacionais. Por certo que a história dos movimentos e lutas feministas logrou êxito na expansão do sujeito de direitos, fazendo com que a forma-sujeito pudesse veicular outras subjetividades concretas, garantindo-se, formalmente, direitos às mulheres, mas advogamos que tudo isso só foi possível porque colou no valor. Primeiro, direitos patrimoniais, civis e políticos; depois, laborais e, mais recentemente, afetivos, sendo os direitos reprodutivos e sexuais ainda um campo de intensas disputas. No entanto, tais direitos são garantidos no limite da forma jurídica, o que não signi ca sua projeção no mundo real – a positivação não quer dizer efetividade de acesso a bens e autodeterminação para todas as mulheres. A luta por (mais) direitos sempre foi uma pauta profundamente liberal (e do feminismo liberal, mas também do feminismo identitário), que acredita que a dilatação da forma-sujeito para as mulheres em seu conteúdo e a expansão da forma-jurídica dos direitos subjetivos para acolher novas demandas são seus horizontes de lutas. O mais dramático de se adotar esse “horizonte” liberal, no entanto, é que a positivação jurídica nunca é uma conquista de nitiva – a forma jurídica, altamente volúvel para cumprir seu papel de veicular a valoração do valor – pode ser manipulada ou revogada a qualquer tempo. Se, para Scholz, a clivagem do valor amalgama-se ao tecido social patriarcal, as dimensões econômicas, política, social e ideológica estão imbricadas, misturadas, e se pressupõem, para Mascaro, o capitalismo é

machista e racista, e a forma política estatal está a serviço das desigualdades. Isto quer dizer que tudo existe concomitantemente, e não de maneira sobreposta ou consequencial, até porque esses direitos não avançam simplesmente de forma ordenada e contínua, e nem da mesma forma em todos os lugares do mundo. Essa leitura começa a se aproximar de uma abordagem do Estado conciliável com o teorema de Scholz, que encontramos também delineada na obra de Mascaro, o qual compreende o Estado além da instrumentalização pela classe burguesa e da própria limitação anacrônica da luta de classes. Alysson Mascaro,116 além de re etir as contradições sociais no seu interior, ensina que o Estado capitalista constitui e quali ca o acesso da sociedade a si, uma vez que processa os con itos em termos de demandas individuais, e não de classes. Em geral, as lutas de classes não avançam como tal nas teias do Estado, cando retidas nas categorias da forma política (cidadão, voto, representação) e da forma jurídica (direitos e deveres subjetivos das pessoas físicas e jurídicas). O Estado burguês processa os con itos em seu interior de forma a individualizá-los, já que isso é uma forma de tirar força dos mesmos e excluir qualquer possibilidade de que eles levem a transformações mais substanciais, de que possam atingir grupos sociais, ou classes. Essa tematização em termos de indivíduos, e não de classes, é pura ideologia, em virtude de o Estado capitalista ainda estar ligado, mesmo contemporaneamente, ao paradigma do liberalismo.117 Por isso que qualquer feminismo que centre todos os seus esforços numa agenda de “mais direitos” é um feminismo liberal. O Estado não surge porque suas instituições o impõem como tal, para, então, depois, ser capturado e benefício do capitalismo. O movimento é distinto. As relações mercantis de produção capitalistas geram uma forma política necessariamente apartada dos portadores de mercadoria, forma que seja terceira, “pública”, assegurando as condições de reprodução do valor. Tal forma política é que cria, aproveita, afasta, reforma, transforma, ou recon gura as instituições sociais, muitas vezes já existentes e outras novas, aglutinando-as à forma necessária de reprodução da vida social que vai se instalando.118

Cumpre, aqui, demarcar que a relação entre forma política estatal e instituições políticas estatais não é lógica, mas factual, porque é historicamente atravessada pela luta de classes, disputas de grupos e indivíduos. Não há um conjunto institucional padrão para a forma política estatal. É um outro equívoco de parte da esquerda liberal atual, por exemplo, associar estruturalmente capitalismo a Estado Democrático de Direito. As instituições estatais guardam relação profunda e mediata com o capital, mas têm certa indeterminação imediata em relação à própria reprodução do capital. E, nesse contexto, as situações variáveis das lutas de classes ou as crises do capital determinaram as peculiaridades das instituições políticas. Assim foi ao longo de todos os séculos XIX e XX e tem sido do atual. A forma política típica do capitalismo não é o Estado Democrático, mas sim a alternância entre democracia e autarquia, com predileção para esta última nos países de capitalismo periférico. Outra tolice da esquerda liberal em geral, e do feminismo liberal, é considerar a democracia uma conquista histórica dos movimentos sociais e um ponto alto de um trajeto racional e teleológico do processo civilizatório. Essa expressão da forma política (Estado democrático de direito) é apenas contingente e pode ser abandonada a qualquer tempo. Não é que esta ou aquela é a melhor con guração racional da forma política e, por isso, irá vicejar. A concretude da organização estatal pode ser tanto o nazismo alemão quanto a monarquia parlamentarista inglesa, ou qualquer outra forma de governo, com qualquer sistema de governo, desde que se articule à reprodução do valor, não da maneira mais e caz possível, mas a contento. Pode até ser que, em determinadas circunstâncias históricas e sociais, a forma política sequer assuma as nuances mais profícuas ao capital, porém, se for su ciente, continuará operando, uma vez que todas as dimensões da totalidade estão em permanente interação dialética. A democracia liberal requer o aparato técnico de um direito liberal, a funcionar como seu el escudeiro, contribuindo este na construção institucional daquela. O complexo aparato institucional da democracia liberal é formado estruturalmente pelas normas jurídicas, e protegido por uma concepção formalista do Direito. Esta amarração complexa da estrutura institucional democrática pelo Direito gera uma racionalidade que favorece o arrefecimento da luta política, mas, ao mesmo tempo, o regramento jurídico

serve à manutenção das instituições, cuja conservação ganha proeminência em detrimento da vontade política do povo. O Direito passa a ser o lócus da vida política, desdobrado no plano eleitoral e constitucional e da proteção de uma subjetividade mínima su ciente à reprodução do capital. Sendo cidadãos, os sujeitos de direito se tornam aptos a votar e serem votados. Na amarra jurídica necessária ao capital, a liberdade negocial, a igualdade formal, e a propriedade são também os esteios da ação política. Contemporaneamente, costuma-se chamar por democracia a forma política estatal que tenha por núcleos o plano eleitoral e o plano da constituição e da garantia da subjetividade jurídica, sem sequer debater uma ideia de democracia material. A proteção dos direitos subjetivos fundamentais e dos ritos e procedimentos previamente estabelecidos possibilitam facultar a livre deliberação a um espaço de temas já delimitados de antemão. A aparente virtude da democracia moderna seria a liberdade irrestrita da deliberação sobre os temas. No entanto, balizada pelo Direito, a ação política é ampla, livre e voluntariosa justamente num espaço estatalmente estabelecido e delimitado. A forma política do capitalismo dá o limite da própria liberdade da vontade democrática. A democracia delimitada pelo Direito aparece como bloqueio às lutas por meios não previstos jurídica e politicamente. Então, a ação revolucionária é interditada. Ademais, a democracia é absolutamente prescindível ao capital que, diante de suas crises históricas, prontamente fez com que a forma política estatal se despisse da capa liberal tradicional para se revestir da forma autocrática de contornos fascistas. A ilusão de que o Estado moderno irá cumprir suas promessas mitográ cas de segurança jurídica, de que a democracia é uma conquista irrevogável e de que os direitos subjetivos são efetivamente capazes de resguardar os bens caros aos indivíduos é facilmente desmentida historicamente. Se a forma-mercadoria demanda uma forma política estatal, esta pode se consolidar em instituições estatais democráticas, conforme um tipo especí co de arranjo das classes no capitalismo. Mas também pode haver graves crises na reprodução do capital, exigindo, contra a democracia, arranjos políticos ditatoriais ou mesmo fascistas. Assim, os institutos políticos de

democracia eleitoral, que são um correlato possível da própria forma-valor capitalista, podem se apresentar como instituições indesejadas a determinadas posições ou situações das classes burguesas.119

A experiência democrática, no seio das sociedades capitalistas, acaba por ser mais exceção que regra. No capitalismo, a forma política democrática está entranhada à forma jurídica residindo aí os seus espaços e seus limites. Agentes econômicos são tornados sujeitos de direito e como extensão dessa subjetividade para o plano político, cidadãos. Essa quali cação dos direitos políticos granjeia acesso à instituição estatal segundo direitos, deveres, garantias, poderes, e obrigações estabelecidos juridicamente. Ademais, cada vez mais, o capitalismo nos aponta que pode prescindir tranquilamente da ordem democrática, embora esta cumpra um papel importante, controlando os limites do exercício da liberdade e impedindo a revolução. E, além da democracia capitalista cumprir a função perversa de inviabilizar a luta revolucionária e a consequente emancipação, no seu interior, os discursos acerca dos direitos humanos jamais passarão de retórica vazia, garantindo-se sua concretude apenas para quem está incluído economicamente. As únicas circunstâncias em que determinadas concessões são realizadas para grupos marginalizados ou excluídos são aquelas em que o reconhecimento é inevitável para não abalar signi cativamente as estruturas do modo de produção. O mesmo padrão que instaura a subjetividade jurídica também instaura a democracia eleitoral. A livre disposição da vontade (política) é a equivalente política da autonomia da vontade no âmbito das relações comerciais. Derivada da forma-mercadoria, a forma política “democrática” estabelece a correspondência entre sujeito de direito e cidadão. A liberdade política pode mesmo até tender a ser a máxima possibilidade de escolha, mas dentro dos campos que não mudam a estrutura da reprodução social. No limite, se a democracia for um obstáculo à reprodução do valor, será prontamente substituída por algum totalitarismo, sem pudores, e todas as tais “conquistas” de direitos das lutas sociais se vão pelos ares. Então, todos esses direitos das mulheres, diante da cavalgada violenta do valor, são como bolhas de sabão.

Cinicamente, o risco das escolhas democráticas é enfrentado com o bloqueio da própria forma democrática, ou, no limite, rompe-se com as formas tradicionais do próprio Estado de Direito, como a legalidade, a m de assegurar a ampliação de possibilidades do valor se autorreproduzir – como ocorreu recentemente, novamente, no Brasil e em outros países da América Latina.120 Uma vez que o Estado não passa de forma política voltada ao automovimento do valor, é democrático num espaço restrito da liberdade de deliberação, e quando lhe convém. Do mesmo modo, a inclusão de grupos minoritários, como as mulheres, até pode ocorrer numa interação dialética entre estruturas e lutas, desde que que dentro dos limites estabelecidos pelo movimento de valoração e, ainda assim, não há nada de sólido; tudo pode ser pulverizado a qualquer momento. 1.4 Acumulação, regulação e feminismo Se, segundo Roswitha Scholz, “o sexo do capitalismo” é masculino121 porque o “valor é homem”122 e, seguindo a teoria materialista do Estado, se este deriva das formas econômicas, espelhando-as, o sexo do Estado também é masculino. Então, o Estado é homem desde que compreendido como mais uma forma social derivada do valor (que assimila apenas a forma-valor masculina, e não o valor-dissociação feminino). Por isso, quando questionamos quais as possibilidades para o Estado capitalista realizar todas as agendas do feminismo, necessitamos recorrer a uma teoria do Estado que indique sua verdadeira forma, para apontarmos que, a partir de congruências que encontramos entre o teorema de Roswitha Scholz e os debates da derivação do Estado, não há nenhuma possibilidade de que este último realmente promova a emancipação das mulheres, pois ele é o próprio patriarcado condensado em forma política. Nossa abordagem é muito mais funda, pois, na esteira de nosso raciocínio, metodicamente construído, o Estado socialista soviético também o era, assim como propostas que parecem tão revolucionárias, como o pósestruturalismo, que quer eliminar o próprio gênero, em si. Não se trata de recorrer a abstrações para, de maneira derrotista, a rmar que a “questão da mulher” não tem solução no capitalismo, mas de compreender que o

fetichismo é um fenômeno tão poderoso que não pode ser revertido simplesmente pela vontade dos indivíduos ou pela mudança de cultura. Não se trata, portanto, de desviar mais uma vez o problema social contido na “questão da mulher” para o campo dos “princípios” abstractos, para as universalidades masculinas. A “perda de dimensão sensível” das relações, reiteradamente lamentada por sociólogos como Ulrich Beck, não pode ser apreendida nem criticada se o problema básico das cisões patriarcais que caracteriza a sociedade de valor não ocupar o cerne da crítica. A actual problemática da sociedade global, como vimos, é o produto da longa história patriarcal e cristã-ocidental da socialização pelo valor. Essa forma que se tornou obsoleta não pode, entretanto, ser superada sem que a identidade masculina seja rompida. Toda tentativa (aberta ou velada) de subtrair-se tanto subjectiva quanto teoricamente a tal exigência e estender sobre a crise do valor o véu da neutralidade sexual está condenada ao fracasso.123

En m, não é possível haver emancipação das mulheres através do Direito e do Estado. A forma jurídica é apenas um espelhamento de formas como a mercadoria e o valor, a m de viabilizar a reprodução do capital através de abstrações formais, narradas fantasticamente como normas que se validam num movimento tautológico perene até culminar numa abstração insuperável como fundamento último do ordenamento jurídico, hipotética e metafísica. A forma política, por sua vez, é tão abstrata e absurda, que somente consegue buscar sua legitimação na narrativa ctícia do contrato social iluminista. As normas conferem legitimidade e força cogente a mitos como a “autonomia da vontade”, através de outras abstrações formais, cções teóricas do Direito e do Estado, como o contrato social, o sujeito de direito, o bem jurídico, a relação jurídica, a obrigação jurídica, o negócio jurídico, o direito subjetivo, a responsabilidade jurídica, e a sanção. E, sendo a forma jurídica derivada da forma-valor, serão, assim como esta última, clivadas. Ou seja, a forma jurídica também tem uma especi cação de gênero masculino. O Direito é homem, e o sujeito de direito é homem, estruturalmente, assim como o valor é homem. E, assim como o fato da mulher de carne e osso trabalhar, gerando mais-valor (masculino), via forma abstrata do trabalho assalariado (masculino), não altera o fato do valor ser masculino, a inserção

das mulheres na forma jurídica não altera o fato de que estas, derivadas do valor, permanecerão masculinas. A reprodução econômica se estabelece por meio das formas sociais inexoráveis a esse modo de produção. A mercadoria, como átomo do modo de produção, assenta parâmetros pelos quais as relações sociais se apresentam. Trocas de mercadorias e trabalho assalariado são os núcleos pelos quais a estrutura social capitalista se constitui. O complexo que é base da reprodução da sociabilidade capitalista é formado pela propriedade privada, circulação mediada monetariamente, constituição dos sujeitos de direito e separação do controle político direto das mãos do agente individual. Para além da luta de classes, as formas sociais do capitalismo lastreadas no valor e na mercadoria revelam qual a natureza da forma política estatal e da forma jurídica. As formas sociais advêm das relações sociais, mas acabam por ser suas balizas necessárias. Porquanto, se o Estado é como um espelhamento do sistema econômico capitalista, seu correlato político, não pode ser tratado simplesmente como um aparelho neutro, oco, que pode ser redirecionado contra o mesmo capitalismo e contra o machismo, de modo que é impossível transformá-lo num instrumento de poder da classe trabalhadora, menos ainda em direção à emancipação real das mulheres. O liberalismo político ofereceu (e oferece) a imagem de uma sociedade ordenada, sem violência, repressão ou antagonismos, mas estes elementos continuam a existir, não desaparecem da realidade social por conta do idealismo liberal; apenas são estrategicamente escamoteados. Isso porque o con ito, no capitalismo, é essencial e, mesmo que encoberto por subterfúgios ideológicos, não deixa de vicejar na sociedade. O direito e o Estado, por sua vez, não foram feitos para apaziguar os con itos em direção a outra ordem que não a do patriarcado e do capitalismo. Insistimos que, se o Estado é capitalista em sua forma, não pode ser tratado simplesmente como um aparelho neutro que pode ser redirecionado contra o mesmo capitalismo, e o mesmo se dá em relação ao patriarcalismo. Isso signi ca que as sugestões da esquerda (desde a soviética até a liberal) de tomar o Estado e voltá-lo contra a dominação machista e burguesa não podem desconsiderar os contornos da forma política como inexoravelmente projetados para esta lógica de repressão, de modo que é impossível transformá-lo num instrumento de poder da classe trabalhadora e das mulheres, menos ainda

promover, através das formas sociais do valor, uma concreta emancipação humana e feminista. (…) a forma política estatal não é um elemento insólito, neutro ou meramente técnico no sentido de indiferença em face do todo social. O Estado é, na verdade, um momento de condensação de relações sociais especí cas, a partir das próprias formas dessa sociabilidade. O seu aparato institucionalizado é um determinado instante e espaço dessa condensação, ainda que se possa considerálo o fulcro de sua identi cação.124

As variadas nuances de con guração institucional dos Estados contemporâneos capitalistas nunca alteraram a forma política estatal em si. “É verdade que, no limite, será possível ainda dizer que a forma política estatal derivada da forma-mercadoria é variável quanto às instituições apenas parcialmente, porque a ausência de todas elas inviabilizaria a existência da própria forma”.125 Portanto, o Estado não funciona como uma arma, que pode ser alterada para atirar pela culatra, e, com isso, atingir quem o projetou originalmente para subjugar e oprimir, assenhoreando o proletariado ou as mulheres do comando da política. Ele é obrigatoriamente a forma de organização política do machismo e do capitalismo. Se o Estado é autônomo quanto aos sujeitos de direito em relação mercantil e produtiva capitalista, então ele não se apresenta, formal

e imediatamente, como a vontade da burguesia ou, via contrária, da classe trabalhadora. Mas se o Estado revela sua autonomia perante as classes, não quer revelar, com isso, indiferença em relação ao todo social. Não é o domínio do Estado por uma classe que revela sua razão

estrutural de ser: é a forma que revela a natureza da reprodução social.126 Há uma imbricação necessária entre o poder econômico e o poder político, que torna os aparelhos do Estado veículos de realização do capital, assim como momentos de condensação da interação dialética permanente entre os encontros promovidos pelas contingências materiais e as formas abstratas. “A forma política estatal se identi ca numa consolidação relacional. Suas instituições podem ser consideradas momentos ou regiões dessa tessitura relacional. A especi cidade do poder político, no capitalismo, mais do que ser originada pelas instituições políticas, passa por elas”.127

O Estado está comprometido com o mercado desde a sua forma, desde a sua gênese, da mesma maneira que se estruturou para institucionalizar o patriarcado. A implantação do modelo de Estado liberal, com sua tripartição de poderes, o sufrágio e o sistema representativo, a vinculação à legalidade, a legitimação a partir da abstração correspondente ao interesse público e o fundamento teórico contratualista são características diretamente relacionadas às mediações que a forma política teve de realizar para viabilizar as relações mercantis e possibilitar o avanço capitalista, no modelo liberal, com alijamento das mulheres. Isso não quer dizer que o Estado Liberal, com todas essas características, fosse a única maneira de regular a acumulação liberal, mas foi o resultado dos processos históricos dialéticos (o melhor modelo possível). O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos outros momentos do capital e das formas sociais. O Estado, outro volante da máquina da alienação ao lado do dinheiro, recebe assim, por sua vez, uma natureza dupla. Do ponto de vista histórico ele assume, já em sua primitiva forma moderna nascente, absolutista, burguês-revolucionária e ditatorial, por um lado, o papel de parteira do sistema produtor de mercadorias e, por outro, torna-se componente imanente deste último; do ponto de vista institucional ele serve, por um lado, para assegurar as condições que apoiam o capitalismo, e, por outro, é promovido a instância reguladora que interfere ativamente no processo de reprodução do trabalho morto, tão logo os setores ‘improdutivos’ da infra-estrutura (ciências, tratamento dos direitos, assistência social e de saúde, educação, reparo dos processos de destruição social-ecológicos etc.) começam a sufocar a estrutura de automovimento do dinheiro; do ponto de vista ideológico, por m, o Estado apresenta-se, por um lado, como Moloch, ‘canibal’ (Gluksman, 1978) e monstro leviatânico que constantemente ameaça agredir a ‘verdadeira’ subjetividade burguesa e, por outro, porém, como deus ex machina, como instância à qual se recorre sempre que há fricções e sofrimentos resultantes da socialização negativa.128

A instituição do Estado por vontade dos indivíduos não se sustenta (pela burguesia, por exemplo); como qualquer outra forma do capitalismo, ele é uma espécie de autômato. Por isso, não há que se atribuir a formação e o desenvolvimento da instituição ao estatal à atuação voluntariosa da burguesia

(ou de qualquer outra classe social), tampouco dos homens contra as mulheres, com o intuito de erigir uma instituição forte para servir como aparato que será mero gestor de seus interesses. A instituição estatal e as normas jurídicas são bem mais complexas do que isso. O Estado moderno é o recipiente institucional da riqueza nacional abstrata, para cuja acumulação sem sentido ele tem de reunir as necessidades e os impulsos humanos numa única vontade global exteriormente imposta. E a existência encarnada da riqueza abstrata, do trabalho morto que se multiplica, é precisamente o dinheiro, que por sua vez somente pode existir no contexto do mercado e da circulação. Se esse Estado quisesse mesmo abolir o dinheiro e a circulação, teria de destruir sua própria nalidade.129

O fato do reconhecimento de mulheres, pessoas com de ciência, indivíduos negros e, em alguns lugares, LGBTI’s ter decorrido de intensas pressões operadas pelos movimentos sociais criou uma ilusão perigosa na esquerda: de que se tratam de conquistas das lutas sociais e, assim, por via das mobilizações, seria possível converter o Direito e o Estado em instrumentos de luta, inclusão e, até, emancipação dos excluídos da sociedade capitalista. Contudo, foram as crises que o capital experimentou que, de fato, possibilitaram essa acoplagem das demandas desses grupos à forma jurídica, sempre orquestrada pela forma política. Não que as lutas e movimentos sejam desprezíveis e haja um determinismo econômico, mas há um movimento dialético perene, que só se condensa nas formas sociais quando não inviabiliza as formas econômicas. É o fetichismo da forma jurídica que possibilita essa dança, que afasta e aproxima, ao longo dos tempos, pessoas reais excluídas pela ordem mundial da sua forma-sujeito. Humanidades concretas são incluídas ou excluídas da forma do sujeito de direito, direitos fundamentais são positivados e revogados, relações jurídicas são reconhecidas ou rechaçadas, mas tudo opera para a continuidade de valorização do valor. É, justamente, através do Direito, que o Estado cumpre suas funções de alterar as estratégias de regulação da sociedade, sempre para garantir que o capitalismo supere suas crises e o valor continue se reproduzindo. Por isso, a forma jurídica é um fetiche, que opera com normas fantasmagóricas (molduras), cujo movimento

e interação, de quando em quando, possibilitam, ou não, o reconhecimento e a proteção de algumas humanidades. Neste sentido, cabe demarcar que a razão da vinculação entre Estado, Direito, capitalismo, patriarcado (e feminismo) é menos voluntarista ou ocasional do que estrutural. Este Estado, portanto, não é domínio dos capitalistas, dos machistas, dos brancos etc., mas sim a forma política do capitalismo e do patriarcado contemporâneos – é a regulação do regime de acumulação. Nesse passo, seguiremos com a Wertkritik, no sentido de que é limitado compreender as pelejas da sociedade das mercadorias enquanto estrita luta de classes, inclusive, porque, as próprias classes foram deformadas pelas mudanças nos regimes de acumulação, especialmente, pelo pósfordismo. Ademais, a ideia de “luta de classes” poderia fazer crer que, se o proletariado derrotar a burguesia, haverá emancipação – e isso não basta. Se não forem eliminadas as formas sociais do capitalismo, os horrores decorrentes desse modo de produção não acabam. Essas perspectivas, de que se trata de uma batalha dos pobres contra os ricos, das mulheres contra os homens, dos negros contra os brancos etc. é extremamente reducionista e super cial e, sem dialética e introjeção de paradoxos, muito equivocada. Independentemente dos burgueses serem maus, dos homens serem machistas e dos brancos serem racistas, por exemplo, as formas continuarão se movimentando. Não existe um sujeito controlando, malignamente, toda a hecatombe desta sociedade, mas sim bilhões de sujeitos que não se levantam contra ela. Sem a superação das formas, os grupos oprimidos e opressores, no melhor cenário, apenas trocariam de lugar. As opressões se dão com a conivência dos oprimidos, mas, para as vencer, estes devem derrotar as formas de opressão para, de fato, haver uma revolução libertadora. Capital e trabalho (abstrato e exclusivamente masculino e branco) se fazem representar dentro do Estado, através do Direito. As classes lutaram para con gurar o Estado, mas foram elas mesmas recon guradas por ele. O mesmo ocorreu com os movimentos feministas, numa constante interação dialética multifacetada, mas que, no m das contas, sempre se converte em novas expressões da reprodução do valor – até têm resultado numa outra cor de capitalismo, mas sempre capitalismo.

Pelos apontamentos marxianos clássicos, a fase de acumulação primitiva de capital teria durado, mais ou menos, de 1400 a 1800, na Europa, enquanto, aqui na América, estendeu-se pelos anos 1800 até o m do século XIX, numa complexidade concomitante aos processos de liberalização e industrialização do capital global – pois muitos países permaneceram explorando mão de obra de pessoas negras escravizadas, ao passo que as populações tradicionais de África, da América, da Ásia e da Oceania sofriam com as investidas genocidas do “far west” e do neocolonialismo. Naquele mesmo momento, a cauterização semiótica da percepção individualista dos sujeitos sobre si mesmos avançou. Na Antiguidade e na Idade Média, não se podia encontrar essa metanarrativa da existência humana caracterizada pelo recorte celular de um indivíduo em relação ao todo da natureza, da sociedade, dos mitos, do conhecimento, da política etc. Não havia essa percepção de existência individual, como se cada um fosse uma mônada isolada. A percepção individualista da existência, a partir da modernidade, alterou completamente as possibilidades ontológicas do ser humano, e assentou a ideologia individualista, que se tornou tão importante para o capitalismo, ao se desdobrar em narrativas de meritocracia, egoísmo, sucesso, competição, consumismo etc. No entanto, fundamentalmente, ainda no período de acumulação primitiva, a individualização, decorrente a capacidade individual de trabalho, possibilitou o recorte da humanidade em microcélulas individuais e, graças a isso, a loso a iluminista pôde maturar a ideia de sujeito (racional). Esse sujeito (racional e individual) converteu-se no sujeito de direito individual do liberalismo – sempre homem. Graças a isso, o Estado moderno constituiu-se, após as revoluções liberais, ncado numa suposta legitimidade conferida por todos os indivíduos, seus cidadãos, sujeitos de direito racionais, que teriam anuído ao “contrato social” (na verdade, todos homens). Assim, o Estado (forma política) nasce legitimado pelo mito da “autonomia da vontade”, que rege todos os contratos, como um representante do poder do “povo” (outra abstração fetichista) e da vontade dos seus cidadãos (homens). Esse mito é imprescindível à legitimação estatal liberal, bem como à exploração do trabalho abstrato, e à circulação das mercadorias. O Estado, portanto, assim como o valor, também masculino,

não era o lugar das mulheres, que não pertenciam ao “espaço público”130, no qual se exigiam caracteres viris, como a racionalidade. O lugar das mulheres era o ambiente privado, doméstico. Por isso, na mesma linha de Scholz, a rmamos que o Estado é homem, machista, misógino, na sua gênese, enquanto forma política derivada do valor.

Em paralelo, se amarrarmos as leituras da Wertkritik, de Pachukanis, e dos debates da derivação, chagaremos a alguns denominadores comuns ao modo de produção e ao Direito (também varonil). Não tomamos as formas sociais (direito e Estado) como fenômenos posteriores ou anteriores ao capitalismo; eles são todos coexistentes e estão imbricados. Desse modo, quando dizemos que todos são “machos”, não estamos falando de qualquer outro modelo jurídico ou estatal, mas exclusivamente destes, entremeados pela valorização do valor. A igualdade, pressuposto formal do Estado e de todas as relações jurídicas, deriva do fato de que todo indivíduo é igualmente portador de uma capacidade de trabalho. Como todas as relações sociais são relações de con ito, de oposição de interesses, de desigualdade e de exploração, no mundo real, necessitam da retórica jurídica para lhes dar uma aparência de ordem através da “autonomia da vontade”. Historicamente, se o Estado e o direito surgem como derivas necessárias e especí cas do mesmo fenômeno do circuito pleno da forma mercantil, serão as revoluções liberais burguesas que constituirão o Estado e o direito como formas acopladas tecnicamente uma à outra. O Estado conforma o direito num processo de especí ca aparição estrutural: a forma jurídica já se institui como dado social presente e bruto quando o Estado lhe dá trato. Os agentes da produção já se apresentam na estrutura social capitalista como sujeitos de direito, operando relações sociais concretas quando os estados os de nem formalmente como tais e lhes dão seus contornos peculiares como as atribuições da capacidade. São as normas estatais que conformam o sujeito de direito a poder realizar vínculos contratuais livremente a partir de uma idade mínima estabelecida, mas esse sujeito já se impunha na estrutura social por derivação direta da forma mercadoria. A manifestação social do sujeito de direito advém estruturalmente da própria dinâmica da reprodução capitalista. A institucionalização normativa do sujeito de direito, os contornos da capacidade e as garantias a essa condição jurídica

é que são estatais. A troca de mercadorias e o trabalho feito mercadoria são os dados que talham a forma-sujeito de direito. A normatividade estatal opera sobre essa forma já dada conformando-a.131

O “Estado de Direito” contemporâneo leva essa alcunha por três motivos: porque sua nalidade é proteger os direitos dos sujeitos de direitos; porque está supostamente limitado pela legalidade (o que é necessário para a retórica mitológica de “segurança jurídica”); e, também, porque surge a partir de um contrato. As Constituições dos Estados nada mais são do que o contrato social iluminista realizado, positivado, escrito; e são imprescindíveis para garantir as estruturas formais da sociabilidade capitalista, que depende de formas que regulem a propriedade, constituam sujeitos de direito e viabilizem a circulação mercantil. Como o capitalismo opera com abstrações categoriais econômicas, precisa de abstrações jurídicas impingidas pelo Estado para se possibilitar e valorizar o valor. É crucial compreendermos que as recon gurações dos modelos de organização do Estado, que impactaram a história do constitucionalismo ocidental, estão diretamente atreladas a alterações no modo de acumulação de riquezas. No período de acumulação primitiva, o Estado já funcionava como garantidor dos contratos, porque já se impunha como poder soberano, só que ainda não buscava executar todas as regras contratuais burguesas (fundamentalmente, garantia privilégios para a nobreza, que, então, se opunha à burguesia). A partir do séc. XIX, entretanto, o Estado começou a regulamentar intensivamente os interesses da burguesia e as formas de exploração capitalistas, como se infere de exemplos pródigos das legislações reguladoras de direitos privados (como os códigos civis e comerciais, sendo o exemplo mais notável o Código de Napoleão que é de 1804). Como o modo de produção capitalista é intrinsecamente marcado por crises, que exsurgem dos limites próprios dos regimes de acumulação de capital (liberalismo, fordismo, pós-fordismo), o Estado também precisa se recon gurar cada vez que o valor se reinventa a m de continuar se reproduzindo. Então, a forma de regulação estatal (liberal, social ou “de bem-estar”, e neoliberal) é derivada das mudanças no regime de acumulação decorrentes de crises do capitalismo.

O constitucionalismo não foi contaminado naturalmente por uma razão ideal em direção ao progresso, num sentido iluminista ou hegeliano, mas se recon gurou conforme as necessidades do valor, esse sujeito automático, que sempre cria estratégias para se reinventar após suas crises, e continuar valorizando a si próprio. Tanto é que, quando o liberalismo político encontrou seu primeiro abalo com os impactos da primeira guerra, e a sociedade burguesa se viu ameaçada pela revolução russa, prontamente, um novo paradigma de Estado foi instalado no constitucionalismo (com referências na Constituição Mexicana de 1917, e na Constituição de Weimar de 1919). O auge do liberalismo ocorreu entre as décadas de 1890 e 1920, quando todas as mulheres estavam defenestradas da forma “sujeito de direito” em plenitude e, por isso, não podiam votar, contratar, distratar, estudar, exercer liberdades etc., o que foi objeto de lutas dos chamados “feminismos de primeira onda”132 ou “de primeira geração”, que corresponde às lutas dos movimentos femininos do século XIX e da primeira metade do século XX com a nalidade de que a mulher fosse incorporada na forma do sujeito de direito. As mulheres brancas (e burguesas) pelejavam para ter os mesmos “direitos” que o homem branco burguês, como liberdade contratual (fazer negócios jurídicos com autonomia, e escolher com quem iriam se casar – que também é celebrar um contrato), liberdade de locomoção, liberdade de opinião, expressão e manifestação, e direito ao voto (por isso, muitos desses movimentos são identi cados como sufragistas). No regime de acumulação liberal clássico, era importante a separação do que era trabalho assalariado (abstrato, forma econômica do capitalismo) e qualquer outro trabalho (afazeres, atividades, artes, ofícios etc. alocados fora da forma abstrata do trabalho identi cado à mercadoria). Para forjar essa clivagem, a regulação dada pela forma jurídica e pela forma política rati cava a cisão iluminista entre um masculino e um feminino ontológicos, e entre público (espaço dos homens) e privado (único âmbito possível às mulheres), de modo que as mulheres não poderiam ser consideradas sujeitos plenos, e, por isso, as “coisas de mulher” jamais seriam trabalho assalariado. A con guração da família burguesa patriarcal e heteronormativa foi ideologicamente imposta a todas as famílias, de modo que o homem, “pai de família”, provedor do lar, vendesse seu trabalho vivo, incluso na forma do

trabalho abstrato. O trabalho da mulher, dissociado, cou restrito ao lar e não remunerado. Ao ter-se constituído como espaço funcional abstracto, desvinculado, o trabalho abstracto também apresenta uma conotação sexual. A dissociação [Abspaltung] de todas as outras áreas da vida e momentos de relacionamento (afecto pessoal, sentimentos, etc.) da produção como processo de constituição de valor e de valorização conota como “femininos” tanto os momentos dissociados como a natureza entregue à moldagem [Zurichtung] da economia empresarial, o que conduziu a atribuições e “competências” correspondentes das mulheres (…). À abstracção real do trabalho abstracto no processo de produção encontra-se portanto ligada a dissociação do feminino, de um modo essencial e não apenas acidental. Tal corresponde igualmente à raiz histórica do trabalho abstracto, nomeadamente ao cruzamento da “economia desvinculada” com a “desvinculada” máquina militar apoiada nas armas de fogo, no processo de constituição primordial da modernidade.133

Por certo que, na suposta “primeira onda”, narrada como homogênea, havia mulheres negras escravizadas, mulheres brancas pobres entre o proletariado achacado,134 mulheres brancas burguesas reivindicando cidadania, e muitas outras. Os movimentos sufragistas, abolicionistas e de mulheres trabalhadoras, entre outros eram complexos e concomitantes – como o são até o presente. Esses múltiplos encontros dialéticos com as formas, tudo ao mesmo tempo, chocando-se aos aparelhos ideológicos, acabaram aderindo a uma nova forma de acumulação, devido à crise do liberalismo. Os numéricos abalos à economia liberal, como a primeira guerra, a crise de 1929, e a segunda guerra, somados às pressões dos movimentos sociais, desde o ludismo, passando pela ascensão do comunismo e do anarquismo, pelas internacionais, pela revolução russa, e também pelos movimentos de mulheres, entre outros movimentos sociais e políticopartidários, desdobraram-se numa recon guração da regulação. Pouco a pouco, as agendas das feministas foram se incorporando na forma jurídica. Assim, o antigo liberalismo da mão invisível de Smith, regulado pelo Estado liberal do laissez faire, deu lugar ao Estado social – forma política do fordismo – que possibilitou o avanço dos “direitos das

mulheres” pleiteados pela primeira geração. Especialmente por causa da quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929, o capitalismo central, cambaleante, exigiu recon guração e, com ela, uma nova regulação estatal. Surgiu o famigerado “Estado de bem-estar”, que perdurou até a década de 1960, espremido nos anos 1970. Esse modelo de Estado também foi crucial para a reconstrução dos países de capitalismo central após as duas grandes guerras mundiais, e foi, no seu interior, que os direitos das mulheres, dos povos negros e das pessoas com de ciência foi pioneiramente reconhecido mundo afora. Na realidade, o paradigma de “bem-estar” pressupõe a inserção de um grande contingente de trabalho vivo dessas pessoas no processo produtivo para servir ao fordismo e, por isso, reconhece outras pessoas reais como sujeitos de direito. Enquanto o modelo econômico liberal era plenamente assegurado pelo constitucionalismo republicano oitocentista e pela positivação de leis e códigos que regulassem as relações de trabalho e a propriedade privada, marcado por direitos fundamentais exclusivamente formais e prestação estatal negativa, o fordismo necessitou de um outro aparato estatal, que pudesse se imiscuir na economia de forma protecionista e fomentadora de crescimento do produto interno bruto. Tal Estado, de welfare, mormente após o crash de 1929, também se tornou responsável por mitigar os efeitos sociais catastró cos do modo de produção, obrigando-se a tutelar os direitos fundamentais (principalmente os sociais emergentes) através da prestação positiva. Além de legislar de maneira protetiva sobre as relações de trabalho (para assegurar a valorização do valor centrado na exploração do trabalho) e nanceirizar em seu bojo um sistema público de previdência, passou a promover políticas públicas de assistência social e acesso a serviços públicos. Tudo isso foi crucial para a acumulação fordista, centrada no capital produtivo e na urbanização da vida, e a mesma regulação (forma politica), mutatis mutandis, marcou, por exemplo, o new deal estadunidense, o fascismo italiano, o nacional-socialismo alemão,135 o desenvolvimentismo de Getúlio Vargas no Brasil, e o socialismo soviético. Norbet Trenkle a rma: Já na década de 1980, ou seja antes do seu colapso, nós tínhamos criticado radicalmente o chamado socialismo real. Não porque pensássemos que representava um suposto desvio de uma ideia

correta em si mesma, como argumentam até hoje os trotskistas, por exemplo, mas por algo mais fundamental: víamos ali um sistema de modernização capitalista recuperadora, portanto, uma variante especí ca de capitalismo, a ser abolida junto com ele. Falar de uma variante signi ca que ele tinha diferenças em relação ao capitalismo no “bloco ocidental”. Isso diz respeito principalmente ao papel central do Estado, que se explica essencialmente pela sua função como agente da modernização. Na Rússia periférica, o Estado criou os fundamentos e prérequisitos para uma sociedade capitalista. Que esse “modelo” de controle estatal da economia e da sociedade tenha sido posteriormente estendido a Estados muito mais desenvolvidos capitalistamente, se deveu principalmente ao desenlace da Segunda Guerra Mundial que, como se sabe, culminou na formação de dois blocos de poder global. No entanto, tratou-se em princípio de uma forma de manifestação do capitalismo recuperador no século XX. Desenvolvimentos semelhantes existiram em quase todas as partes da periferia capitalista. Também no Brasil o Estado desempenhou um papel importante na modernização econômica em meados desse século. Mas no socialismo real a estatização foi muito mais pronunciada e sobretudo ideologicamente carregada. O fato de o Estado buscar planejar e controlar completamente todos os processos econômicos e sociais foi percebido tanto pelos seus partidários quanto pelos seus oponentes como uma alternativa sistêmica ao capitalismo.136

A política econômica keynesiana operava com a aceleração arti ciosa do crescimento, via adiantamento creditício, e o Estado provedor, que realiza políticas públicas, foi essencial para conter a destruição em massa da classe trabalhadora, a m de garantir a continuidade de sua exploração e da reprodução da sociedade e do valor. Nos países de capitalismo central, além dos direitos das mulheres, vieram os direitos trabalhistas e previdenciários, e direitos sociais, como saúde e educação. A revolução russa, que acabou por implementar um capitalismo de estado (nos moldes fordistas de produção), foi protagonizada e impulsionada pelo movimento das mulheres soviéticas em 1917, e também instituiu um Estado social, muito mais do que socialista.137 No Brasil, a “Era Vargas” reconheceu o direito ao voto para as mulheres e regulamentou o trabalho feminino, além de também normatizar

o trabalho e a previdência, capitaneando os sindicatos e as “caixas de aposentadoria”, justamente porque isso era crucial para um nacionaldesenvolvimentismo calcado na exploração do trabalho e no capital produtivo. A incorporação de mulheres ao mercado de trabalho e o reconhecimento formal de seus “direitos”, porém, não alterou a forma dissociada do valor, estruturalmente masculino. O trabalho abstracto é per se de nido como estruturalmente masculino, mesmo que desde o início tenha existido uma inegável participação das mulheres no processo de produção. O facto de as mulheres receberem sistematicamente salários piores, chegarem a posições de che a apenas em casos extremamente raros, terem de dar muito mais “rendimento” que os homens para serem reconhecidas, etc., todos estes factos, que em média ainda hoje se veri cam, não podem ser remetidos para o plano das manifestações históricas e empíricas, nem porventura declarados como meros resquícios de relações pré-modernas, ou como o seu regresso meramente subjectivo e regressivo, mas são expressão da relação de dissociação, como marca essencial do próprio trabalho abstracto e do seu espaço funcional da economia empresarial.138

Impactado pela Segunda Guerra Mundial, o fordismo potencializou suas estratégias produtivas com novas reacoplagens (como a do “milagre alemão”), e transações globais ordenadas pelo acordo de Bretton Woods, e foi acompanhado por uma versão mais completa do Estado social, de bem-estarpleno, com ampliação dos direitos fundamentais nos países de centrocapitalismo. Assim, nas décadas de 1950 a 1970, houve uma explosão de crescimento econômico em diversos países, fomentado pelo Plano Marshall, pela reinstalação de parques industriais e pela construção civil, ao mesmo tempo em que as Nações Unidas proclamavam uma nova era para os direitos humanos.139 Parecia que o holocausto havia sido apenas terrível desvio infeliz no trajeto de progresso da modernidade capitalista idealizada pelo esclarecimento, quando, na realidade, foi apenas uma das suas facetas. Quando o fordismo começou a encontrar os seus limites de valoração do valor (o que sempre acontecerá com qualquer acumulação devido à tendência da taxa de lucro), e as economias centrais entraram em recessão, ainda mais após o “choque de Nixon”, com o avanço tecnológico, maior

concorrência, e a crise do petróleo, o modo de acumulação recon gurou-se e, com ele, o Estado. Substituindo a produção em massa xada num único polo industrial, o pós-fordismo (também denominado toyotismo) opera com uma pulverização das unidades produtivas por todo o globo, estoques reduzidos, e exibilização da rigidez fordista para investimentos de capital xo a longo prazo nos sistemas de produção em massa. Muito mais do que uma mudança na organização da produção, o pós-fordismo propicia a expansão do mercado de capitais, e o predomínio do capital nanceiro sobre o produtivo. Na segunda fase do regime fordista, após a Segunda Guerra Mundial, quando o Estado de bem-estar também avançou com mais garantias e direitos fundamentais (nos tratados internacionais e no constitucionalismo), o “new deal” de Roosevelt foi emblemático, e, mais tarde, o já citado “plano Marshall”, que viabilizaram as estabilidades econômicas dos EUA e da Europa (nesta, revertendo os efeitos das guerras). Nesse período, aparece a chamada “segunda onda” do feminismo, com reivindicações de liberdade sexual, contracepção, direito ao divórcio, mais inclusão na universidade e no mercado de trabalho, igualdade existencial, reconhecimento como ser humano, entre outras agendas, que acabaram se tornando factíveis no pósfordismo, com entremeios dialéticos nas décadas de 1960 e 1970, e avanço na década de 1980, quando também outros grupos (como os gays) começam a alcançar reconhecimento e proteção jurídica. O fordismo chegou ao m, principalmente, quando Nixon rompeu com o padrão “dólar-ouro” estabelecido em Breton Woods, inviabilizando a continuidade da socialdemocracia, em 1971. A URSS degringolou porque era completamente dependente desse regime de acumulação de capital, característico do Estado de bem-estar, de Breton Woods, e do keynesianismo. Não foi sufuciente adotar medidas como a Glasnost e a Perestroika para se adeuqar ao neoliberalismo. Para Scholz (1996) e Kurz (2004), a URSS tinha um modelo econômico capitalista, pois nunca rompeu com a lógica das abstrações categoriais do capital que culminam no valor. Foi justamente, nesse período, que emergiram os debates da derivação, reconhecendo que este modelo de Estado estava fadado ao m, por não ser mais auspicioso para o capital. A recessão de países como a Alemanha e a Inglaterra, e de toda a Europa, acentuou-se com a grande crise do Petróleo da década de 1970.

A partir do m dessa década, emergiu, então, o modelo de Estado neoliberal, como uma nova estratégia de regulação econômica, ao passo que o capitalismo entrou na sua fase pós-fordista, de pulverização da produção ao longo do planeta, oportunizando sua caraterística global imanente. Se a equivalência geral entre mercadorias ocorre por meio do tempo de trabalho socialmente necessário para a produção, a especialização do trabalho diminuiu o tempo e, consequentemente, a multiplicação do valor. Esse contexto pós-fordista é que possibilitou às mulheres a ocupação de posições de comando na indústria, no comércio, nos serviços, nas instituições estatais, e nas pro ssões liberais, o que vem crescendo signi cativamente desde os anos 1980. É também, desde a década de 1980, que os direitos LBGT têm sido positivados ao redor do mundo. Constituindo novos nichos de mercado, a comunidade LGBTI+ e as mulheres com poder aquisitivo são perfeitamente absorvidas no reconhecimento jurídico e na “representatividade”, sem que isso altere em nada a hierarquia de gêneros e o patriarcado; e, de outo lado, faz com que seu “empoderamento” sirva como uma luva ao regime de acumulação neoliberal. Acho aqui interessante como as teorias de género e queer, que experimentaram uma espécie de alto voo após o colapso do bloco de Leste, fazem triste gura neste ponto. Elas efectuaram de certo modo uma desvalorização das relações sociais. Acreditava-se que a liberalização da sociedade e a igualdade das mulheres estivessem muito avançadas. As hierarquias de género e a estrutura da heterossexualidade compulsiva foram objecto de uma crítica com pouca garra. Teorias marxistas ou psicanalíticas foram em geral descartadas em favor de uma teoria do discurso limitada à análise das atribuições linguísticas. Estas teorias pós-estruturalistas estiveram de certo modo ligadas à exigência neoliberal de identidades exíveis. Hoje vemos que as teorias dos gender studies e queer studies, super ciais e com fraco fundamento na teoria social, constituíram equívocos. Se eu não perceber que existem estruturas sociais profundas, que de facto modi cam historicamente a sua face, mas permanecem em última análise como estruturas coercivas, então tenho tendência a confundir já com a libertação as situações em que há ganhos emancipatórios reais. Em muitos países, as conquistas das lutas emancipatórias

estão a ser simplesmente anuladas. Perante isto a teoria do discurso tem de cair das nuvens.140

E é justamente nesse contexto neoliberal que o feminismo existencialista de Simone de Beauvoir, o Queer de Judith Butler, o feminismo negro estadunidense, o feminismo radical, entre outros, tornam-se referenciais teóricos da imensa teia complexa e plural do chamado “feminismo de terceira onda”, compondo movimentos que vão propugnar muitas “mulheres” e muitas lutas paralelas e entrelaçadas, e não uma categoria “mulher” universalista, reivindicando a diferença e a identidade. Nesse contexto, é que o pós-estruturalismo se torna o modelo teórico hegemônico, e suas diluições a partir das dores psíquicas e vivências dos indivíduos desconectam as lutas das mulheres da luta contra o capital. A pulverização pós-fordista da produção e o desmonte neoliberal do Estado social coincidem com essa explosão de in nitas “mulheridades”, sofrimentos, pautas e demandas, que, no limite, quando se dissolvem em mera “representatividade”, “lugar de fala” (deturpado) e “identitarismo”, colam, com justeza, nas novas estratégias de acumulação do valor, e desoneram a forma política, em sua nova regulação. Nossa tese é de que a abstração do trabalho (que surgiu no início do mercantilismo, quando cada indivíduo era somado singularmente por sua capacidade de trabalhar) clivou a existência, forjando o patriarcado capitalista, e as tais “gerações” do feminismo somente serviram à lógica do capital, pois só focaram a regulação (forma política e forma jurídica) e nunca se voltaram contra as estruturas. A opinião contrária, que erroneamente interpreta a relação entre a dissociação e a assimetria sexual na modernidade como mero momento histórico e empírico com tendência a desaparecer, está no fundo associada à interpretação errónea da abstracção real como mera “abstracção da troca”, que no caso contudo e para variar se apresenta de repente como uma relação positiva e progressiva. É que, com efeito, na circulação observada por si só não existe a dissociação como momento da abstracção real; aqui só conta a solvabilidade, sem olhar a sexo, idade, cor da pele, etc. A circulação é por isso, e como é sabido, o eldorado da ideologia burguesa do progresso e da liberdade, embora esta implique a concorrência e a desumanização dos não solventes. Mas mesmo a concorrência de extermínio e a desumanização dos perdedores

são executadas de acordo com a especi cidade da esfera da circulação sob a forma do universalismo abstracto: sem ruído, sem olhar à pessoa e com um “reconhecimento” educado, no sentido da igualdade de direitos entre proprietários de mercadorias. As pessoas incapazes de concorrer ou de pagar nem sequer existem para a lógica da circulação. É também aqui que se enquadra o aparente desaparecimento da determinação sexual.141

Os postos de trabalho minguaram, e os direitos trabalhistas tendem a desaparecer, tudo em nome da exibilização. A acumulação pós-fordista impactou a regulação estatal, que foi alcunhada como neoliberalismo. O valor passou a se reproduzir muito mais pelas operações nanceiras do que pela exploração do trabalho assalariado, tornando-se, cada vez mais, ctício. Principalmente, a partir da década de 1980, o laissez-faire do liberalismo clássico voltou a ser invocado para a desregulamentação, economia de mercado e livre-comércio, ao lado do enxugamento do Estado, por privatizações e austeridade scal. Essa recon guração pós-industrial da economia, bem como das formas sociais, impactou completamente todos os prismas da vida. Ora, o próprio pós-fordismo entrou em uma crise entrópica em 2008 e a regulação neoliberal está em transformação, não sabemos em que direção, mas ela insinua que as “conquistas femininas” do século XX estão ameaçadas, enquanto os movimentos feministas, majoritariamente liberais, têm-se centrado em ocupar espaços na mídia e se “empoderar” simbolicamente. Toda vez em que se altera o regime de acumulação do capitalismo (porque todos têm um limite e irão culminar numa crise), abre-se a possibilidade de regulação das relações pelo Estado e pelo Direito. Nesses momentos, é que a forma do Direito pode acolher as demandas das lutas sociais, mas é preciso ter a clareza de que isso só ocorre porque interessa à superação da crise, a m de que o valor tome fôlego para voltar a se valorizar. Não é a vontade dos indivíduos que altera as relações, nem as lutas simbólicas e identitárias dos movimentos de representatividade, mas o automovimento do valor, remodelando o Direito pela interação dialética entre as formas econômicas e as lutas sociais, já que a forma jurídica é o principal veículo que a forma política possui para realizar novas regulações que fortaleçam o capital. É por isso que a forma do sujeito de direito

absorveu as mulheres (e outras identidades excluídas) e expandiu “direitos” na forma jurídica da norma positivada, pois, no momento em que a regulação é oportuna ao valor, torna-se vigente. Porém, se deixa de ser oportuna, pode ser descartada a qualquer momento, ou seja, a positivação na forma jurídica não é, em absoluto, uma garantia de nitiva de inclusão ou uma conquista irrevogável. O mérito teórico da crítica do valor está em apontar a equivalência entre o trabalho e o valor social de troca do trabalho; assim, o trabalho corresponde, no capitalismo, a uma abstração mercantil que oculta os caracteres sociais do trabalho. Toda a materialidade da vida assume representações sociais, formas abstratas, e o capitalismo somente é viável através dessas abstrações. Entre elas, estão as formas abstratas do trabalho, do valor, da mercadoria e do dinheiro, assim como a forma política e a forma jurídica. Nesse ponto, há um cruzamento conceitual entre a releitura que a crítica do valor faz do Livro I d’O Capital, priorizando as formas abstratas do processo produtivo, com os conceitos derivacionistas do Estado e do Direito, que buscamos em autores como Mascaro (2013) e Pachukanis (2017). Trazendo à baila a dissociação-valor de Roswitha Scholz, asseveramos que os momentos de acumulação capitalista (liberalismo, fordismo, pós-fordismo) coincidem com a regulação estatal (Estado liberal, Welfare State/Estado de bem-estar social, Estado neoliberal) e, também, com os movimentos feministas (primeira, segunda e terceira onda) e suas “conquistas” históricas. Porquanto, nossa conclusão aponta para a impossibilidade de emancipação das mulheres através de sua inserção na forma jurídica do sujeito de direitos, no reconhecimento formal de direitos subjetivos, de políticas públicas estatais para sua integração na sociedade, e muito menos pela criminalização das violências de gênero. Porém, todo este esforço teórico não pode ser jogado na vala comum de um discurso pan etário que simplesmente esbraveja que o Direito e o Estado burgueses são inúteis ao feminismo.142 Não se descarta que há, sim, uma interação dialética entre as lutas e as formas. A inclusão ou exclusão de mulheres heterossexuais ou lésbicas, brancas ou não, cis ou transgênero, ricas ou pobres etc., na forma jurídica, sempre irá ocorrer quando isso for oportuno, ou até mesmo crucial para a reprodução

do valor. Se for útil à reprodução do capital, o Direito absorverá as mais diversas humanidades nas suas abstrações formais e ampliará sujeitos, bens jurídicos e direitos subjetivos, mas isso somente porque o Direito é o principal instrumento do Estado para conformar as relações sociais às necessidades do capitalismo. O Estado, forma política derivada da forma mercantil, tem um papel estrutural fundamental: ele é a forma de regulação do sistema econômico, e por isso, certamente, também, é masculino. O Estado é que faz a calibragem, recon gurando as posições das peças da engrenagem, apertando e afrouxando, conforme os momentos cíclicos do capital. Os debates da derivação surgiram porque intelectuais ingleses e alemães se deram conta de que o modelo de “Estado de bem-estar social” não era uma escolha política ou uma conquista histórica das nações, mas uma necessidade do valor, naquele período de acumulação, para possibilitar sua reprodução. Assim que o capital pôde prescindir desse modelo de Estado, ele foi atirado às feras do mercado neoliberal global, e dilacerado. Por isso, o capitalismo também não tem nenhum compromisso com a democracia (podendo até se reproduzir no totalitarismo, ser supostamente socialista, ou altamente militarizado). Se for profícuo à reprodução do valor um modelo de Estado autocrático, totalitário ou fascista, esse será fomentado e terá legitimidade. Na fase atual de regulação do capital, após a crise de 2008, vivemos um período que pode ser considerado pós pós-fordista, ou pós-neoliberal, o qual ainda sequer se pode nominar e, nele, o neofascismo vem tomando o planeta, numa hecatombe sintomática de todas as supostas conquistas e avanços das últimas décadas, pois o valor entrou numa nova fase de acumulação, e requer outra modelagem da forma política. Os direitos sociais que se supunham conquistados, assim como as garantias fundamentais liberais, a ordem democrática, a legalidade e outras abstrações míticas tradicionais, como a “segurança jurídica”, estão sendo abandonadas junto com o paradigma de “bem-estar”, para dar lugar a uma teratologia ainda inominável. Não há, portanto, conquistas de direitos, sujeitos de direito indeléveis ou democracias que se sustentem se o valor necessitar de outra regulação. Acreditar que as mulheres irão se emancipar por meio de movimentos feministas que têm no Direito um horizonte de lutas é sofrível. O

reconhecimento das mulheres (brancas, negras, lésbicas, trans etc.) como sujeito de direitos, a formalização de mais direitos (eleitorais, patrimoniais, trabalhistas, previdenciários, civis, reprodutivos, sexuais, consumeristas etc.) na norma jurídica, ou a criminalização das violências de gênero pelo Direito Penal, jamais irão libertar as mulheres, mas é mais do que isso, não irão alterar minimamente a perversidade do patriarcado capitalista. Aliás, o punitivismo,143 que vê no sistema penal solução para profundos problemas socioeconômicos, que, logicamente, deveria ser uma pauta (cínica) típica da direita, é uma panaceia do feminismo liberal (e da “esquerda punitiva” em geral). Não é que o Direito apenas não soluciona os problemas profundos do patriarcalismo: ele, sequer, mitiga-os, a não ser para uma minoria de mulheres privilegiadas, mas isso já está “na conta” da desigualdade estrutural que marca a sociabilidade capitalista. Embora todas as mulheres sofram com a multiplicação de jornadas, a misoginia e a violência de gênero, é certo que as formas e os graus de sofrimentos variam consoante as suas especi cidades concretas de pessoas reais. Se o Direito, porém, não anula as agruras do patriarcado, nem para as mulheres mais privilegiadas do planeta, que dirá paras as excluídas. O que ocorre é um efeito encantatório da forma jurídica, uma ilusão, desde as narrativas jusnaturalistas, de que a positivação é proteção, de que a juridicização é efetividade, de que a norma jurídica altera a realidade, e de que o “Direito” é inquebrantável, civilizatório e justo. Tratase de outra faceta do fetichismo. De outra banda, pensar que o Estado, através de políticas públicas, ou pior, de persecutio criminis, irá concretizar os direitos das mulheres na forma de acesso a bens reais da vida, proteção, segurança, e igualdade material, é crer em todas as promessas liberais acerca das funções do Estado, ignorando que seu único escopo, desde sempre, foi garantir o desdobramento do valor em mais valor. É fechar os olhos para a história recente, negando o holocausto e, inclusive, o fracasso indelével do Welfare State, com sua superação histórica. Já não há mais possibilidade para a subsistência desse modelo de Estado e a realidade, nua e crua, reitera essa verdade todos os dias, cada vez mais, a cada dia, desde 2008. Os movimentos de mulheres que esperam um Estado-pai (homem e paternalista), para curar suas chagas e abrandar seus sofrimentos,

realmente não compreenderam absolutamente nada acerca do patriarcado no capitalismo. Porquanto, com as lentes do Teorema do valor-clivagem, que melhoram signi cativamente os focos dos debates da derivação do Direito e do Estado, podemos a rmar que estes últimos, androcêntricos, porque derivados da forma masculina do valor, não são aptos a alterar a estrutura clivada do valor que sustenta o patriarcado capitalista e nunca irão emancipar as mulheres, pois nunca irão dissolver qualquer forma de desigualdade estrutural. Mas é mais do que isso, além de ideologia (com importantes aparelhos ideológicos) e sustentáculos da estrutura capitalista e patriarcal, o Estado e o Direito são formas sociais do capitalismo, inexoravelmente, masculinas e machistas, dissociadas tal qual o valor, pois sua gênese vem dos mesmos metadiscursos da razão esclarecida que suportam toda a existência moderna e contemporânea. Enquanto formas, não se alteram, embora seus conteúdos volúveis iludam e encantem. A dança das formas e dos conteúdos, num vai-e-vem contínuo, faz parecer que a apropriação das formas para outros propósitos é possível. Mas não é. A forma tem um escopo, desde a sua estrutura, não importando os conteúdos que veicula. Seu movimento é autômato. Forma valor-clivagem, forma política e forma jurídica movimentar-se-ão, eternamente, na mesma direção, gostemos de admitir isso ou não. E essa direção é o movimento eterno, contínuo e permanente da valorização do valor (dissociado), que determina uma sociabilidade patriarcal. Não há outra possibilidade de vida enquanto o capitalismo subsistir. É muito claro, também, que essa separação dos movimentos feministas em ondas é mais ideológica do que didática, e não guarda veracidade histórica plena, pois, enquanto despontava a “segunda onda” nos países de capitalismo central, muitas mulheres do mundo não tinham (e não têm) os direitos reivindicados pela “primeira onda”. Com o mesmo raciocínio liberal-iluministas das “gerações de direitos humanos”, constitui uma narrativa de que os “direitos das mulheres” teriam avançado homogeneamente e em caráter progressivo e cumulativo, o que não corresponde à realidade. Numa ótica histórica materialista e dialética, entendemos que todas essas lutas e movimentos acontecem ao mesmo tempo, em diversos lugares do globo, com caracteres conjunturais muito

diversi cados. Ora, as tais “ondas” do feminismo narradas pela sociologia de gênero hegemônica são um metarrelato ideológico que provam o nosso argumento – somente é narrada a história do feminismo que coincide com os ciclos do capitalismo. Talvez nem todas as lutas feministas estejam sobredeterminadas pelo valor, mas, majoritariamente, estão a reboque dos movimentos cíclicos e críticos do capital, mormente, quando se toma por “feminismo” os movimentos que incutiram conteúdos na forma jurídica. As mobilizações de mulheres, principalmente, no ocidente, estão inseridas no torvelinho da história, que se movimenta pelo entrecruzamento de múltiplas espirais dialéticas, criando “nós”, que representam a condensação das agendas políticas das lutas concretas nas formas jurídica e política. Esses “nós” somente são feitos se também estiverem amarrados a momentos peculiares do valor-total. Trata-se de encontros plurais entre a materialidade constituída por seres humanos reais e o movimento fetichista das formas econômicas e sociais do capitalismo. Assim, o que o chamado “feminismo de primeira onda” reivindicava foi incutido na forma jurídica, a partir da viragem do liberalismo para o fordismo, no âmago do Estado social, porque, naquele momento, as demandas das mulheres amarraram-se à valorização do valor. Na acumulação liberal, era importante a cisão de gênero e a ideologia de uma divisão estanque de papéis (embora mulheres e crianças proletárias fossem também operárias), para que o trabalho vivo dos homens fosse explorado em maisvalor, ao passo que os afazeres domésticos, essenciais à reprodução das pessoas (do trabalho vivo, portanto), fossem impingidos às mulheres e jamais remunerados. Já no fordismo, calcado no máximo de capital produtivo, ou seja, exploração do trabalho vivo, quanto mais gente exercendo trabalho assalariado, melhor para o valor, de modo que as reivindicações da “primeira onda”, como liberdade contratual e sufrágio para as mulheres, foram assimiladas pelas formas sociais. Já o dito “feminismo de segunda onda”, que cou marcado, inclusive, por reivindicar o m do aprisionamento da mulher na família patriarcal (ser esposa e mãe), teve suas demandas acopladas à forma jurídica no pós-fordismo, para o qual é interessante a atomização de pessoas

“livres e independentes” que possam ser “ exíveis” e se movimentar conforme a pulverização da produção. É nesse sentido que os movimentos têm estado a reboque das crises e viragens do capital. As amarras das agendas feministas às formas, sempre tardias, são encaradas como conquistas das lutas, quando, na realidade, só colam quando oportunas à valorização do valor. Não que o valor precise dessas con gurações sociais para se incrementar (pelo contrário, poderia até lhe ser interessante mais a eterna tradicional família burguesa do século XIX), mas é claro que as pressões concretas dos movimentos ingressam no torvelinho dialético da história. O encontro dialético entre a vida e as abstrações automáticas constituiu essas con gurações, mas poderiam ter sido outras. A questão é que as “três ondas” são ideologicamente narradas como “os” movimentos feministas, numa homogeneização pasteurizante, quando, na realidade, há multiplicidade material de lutas de mulheres, porque as grandes agendas de cada “onda” colaram nos momentos de recon guração da acumulação capitalista e da regulação estatal, através do Direito. O desa o presente que se nos apresenta é o que vamos fazer daqui para diante – suplicar pelo aconchego das formas ou investir em sua destruição. A alcunhada “terceira onda” tem como marca a dissolução da homogeneização arti ciosa de mulheres e demandas, pelo reconhecimento de in nitas maneiras de ser mulher: com múltiplas identidades afetivo-sexuais, étnicas, sociais etc. Por um lado, esses contornos podem ter um potencial ruptural magní co, se estiverem concentrados na superação das formas do valor clivado. Por outro lado, se acabarem se diluindo em personalismos identitaristas, mudanças de comportamento, disputas estéticas, representação midiática e outras tolices, poderão propiciar amarras não apenas com as con gurações neoliberais e pós-fordistas, mas com outros contornos do capital e da forma política, pois o valor está novamente em metamorfose – e a perspectiva é assustadora. 1 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 67. 2 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 19.

3 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 28. Grifo nosso. 4 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 56.

5 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 87. 6 ENGELS, Friedrich. A origem da família, Mioranza. São Paulo: Escala, 2009, p. 138. 7 ENGELS, Friedrich. A origem da família,

da propriedade privada e do Estado. Tradução de Ciro da propriedade privada e do Estado. Tradução de Ciro

Mioranza. São Paulo: Escala, 2009, pp. 190-191. 8 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da Mioranza. São Paulo: Escala, 2009, p. 191. 9 ENGELS, Friedrich. A origem da família,

propriedade privada e do Estado. Tradução de Ciro

da propriedade privada e do Estado. Tradução: Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2009, pp. 193-194. 10 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 88. 11 HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John; WISSEL, Jens. “A teoria do Estado do ‘marxismo ocidental’. Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivação do Estado”. Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 1, pp. 722-760, mar. 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/27761. Acesso em: 23.03.2019. 12 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 110. 13 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 48. 14 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 57.

15 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, pp. 111112. 16 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 24.

17 MARX, Karl. “Gotha: comentários à margem do programa do partido operário alemão”. In: MARX, Karl; ENGELS Friedrich. Manifesto do partido comunista (1848) seguido de Gotha: comentários à margem do programa do partido operário alemão (1875). Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2009b, p. 122. 18 MARX, Karl. “Gotha: comentários à margem do programa do partido operário alemão”. In: MARX, Karl; ENGELS Friedrich. Manifesto do partido comunista (1848) seguido de Gotha: comentários à margem do programa do partido operário alemão (1875). Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2009b, p. 123. 19 CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Expressão Popular,

2015, p. 83. 20 MARX, Karl. “Gotha: comentários à margem do programa do partido operário alemão”. In: MARX, Karl; ENGELS Friedrich. Manifesto do partido comunista (1848) seguido de Gotha: comentários à margem do programa do partido operário alemão (1875). Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2009b. p. 125. 21 Os direitos humanos/fundamentais, diante desse modelo, serão sempre discurso tautológico e sua dimensão concreta só pode se realizar para o proprietário burguês, preferencialmente, branco, e homem cisgênero heterossexual. 22 LENIN, Vladimir. O Estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 25. 23 LENIN, Vladimir. O Estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 42.

24 LENIN, Vladimir. O Estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 26. 25 LENIN, Vladimir. O Estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 38. 26 LENIN, Vladimir. O Estado e a revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 39.

27 OSÓRIO, Luiz Felipe. Imperialismo, Estado e relações internacionais. São Paulo: Ideias e Letras, 2018, p. 177. 28 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise

econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 56. 29 HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John; WISSEL, Jens. “A teoria do Estado do ‘marxismo ocidental’. Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivação do Estado”. Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 1, p. 722-760, mar. 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/27761. Acesso em: 23.03.2019. 30 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 28.

31 Numa leitura althusseriana, trata-se da adoção do Marx da maturidade, que desenvolve uma verdadeira epistemologia cientí ca, uma estrutura metodológica que pode ser tomada para a compreensão de outros fenômenos dos quais o próprio Marx não se ocupou diretamente e/ou profundamente. 32 Louis Althusser foi acusado de estrangular sua companheira Hélène Rytmann após dezesseis anos

de união, matando-a, em 1980. Foi declarado inimputável pela justiça francesa e não cumpriu pena pelo feminicídio, tendo apenas cumprido medida de segurança em hospital psiquiátrico até 1983. A despeito desse episódio assombroso, tomaremos os escritos do autor como referencial teórico, uma vez que, segundo Joachim Hirsch, John Kannankulam e Jens Wissel (2017), sua obra é o ponto de partida para as re exões dos debates da derivação, tornando-se central para a compreensão do Estado na perspectiva de Mascaro (2013). Como nossas teses repousam completamente sobre o teorema do valordissociação de Roswitha Scholz, pelo qual deixamos absolutamente claro que o machismo, a misoginia e o patriarcado (e as violências daí decorrentes, cujo ápice é o feminicídio) são estruturais, como condições de reprodução do valor capitalista, não cabe uma perspectiva de demonização individual, que culpabiliza exclusivamente os homens por fenômenos da estrutura. Segundo, vamos construir ao longo desta obra, o machismo não é culpa dos homens, mas está muito além disso, pelo que nos parece infantil proclamar o ódio aos machos, generalizadamente, ou a este ou àquele indivíduo, apesar disso não isentar Louis ou qualquer outro homem por atos de violência: não é que sejam “pobres vítimas do sistema”, mas a violência concreta é apenas a “ponta do iceberg”. Por certo que o feminicídio (como o da acusação que pesou sobre Althusser) é atroz e decorre da perversidade do patriarcado capitalista (sem entrarmos no mérito de sua doença psiquiátrica), e, mais do que isso, é icônico para apontar como os (homens) marxistas, brilhantes teóricos e pensadores, ainda são sujeitos atravessados pelos horrores do valor (clivagem) e podem cometer os maiores horrores de misoginia. Os intelectuais e militantes marxistas são, em sua maioria, homens, misóginos e sexistas, e o meio intelectual marxista é, até hoje, avesso às mulheres, o que evidenciamos através da expulsão de Roswitha da Krisis. Desta feita, não desconsideramos os horrores e as violências que teriam sido perpetrados por Louis Althusser, nem por todos os outros marxistas, nem por todos os outros homens, mas compreendemos que a cruci cação individual não é um caminho inteligente nem dialético; que a questão é muito mais ampla; e que isso não pode ser motivo para deixarmos de adotar um autor cuja contribuição teórica é indelével e imprescindível. 33 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1980, p. 47.

34 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1980, p. 36. 35 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1980, p. 43. 36 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1980, p. 44

37 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1980, p. 53. 38 ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1980, p. 43.

39 HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John; WISSEL, Jens. “A teoria do Estado do ‘marxismo ocidental’. Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivação do Estado”. Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 1, pp. 722-760, mar. 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/27761. Acesso em: 23.03.2019. 40 Sistema de gênero culturalmente constituído, que considera haver apenas dois gêneros: masculino e

feminino. Metanarrado ideologicamente como único possível, porque a rma-se embasado na biologia (macho e fêmea), é hegemônico na cultura ocidental, e predominante no mundo (especialmente, onde a religião é o cristianismo). É o princípio do cissexismo, que atribui o gênero masculino a quem nasceu com cromossomos XY, pênis e testículos, e o gênero feminino a quem nasceu com cromossomos XX, vagina, útero e ovários. Só existe, assim, homem (XY) ou mulher (XX). Os casos biológicos de intersexualidade (mistura desses componentes biológicos) são tratados como patologia e os indivíduos forçados a assumir um dos dois gêneros binários. Pessoas cis, portanto, são aquelas que se adequam ao binarismo, ao passo que pessoas hetero são aquelas que se conectam afetiva e sexualmente a pessoas do gênero binário oposto. Por isso, dizemos que a maioria das pessoas é cis-hetero. 41 HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John; WISSEL, Jens. “A teoria do Estado do ‘marxismo ocidental’. Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivação do Estado”. Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 1, pp. 722-760, mar. 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/27761. Acesso em: 23.03.2019. 42 OSÓRIO, Luiz Felipe. Imperialismo, Estado e relações internacionais. São Paulo: Ideias e Letras, 2018, p. 174. 43 CALDAS, Camilo Onoda. A 2015, p. 17. Grifos do autor. 44 CALDAS, Camilo Onoda. A

teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Expressão Popular,

teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Expressão Popular, 2015, pp. 32-33. 45 HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John; WISSEL, Jens. “A teoria do Estado do ‘marxismo ocidental’. Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivação do Estado”. Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 1, pp. 722-760, mar. 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/27761. Acesso em: 23.03.2019. 46 HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John; WISSEL, Jens. “A teoria do Estado do ‘marxismo ocidental’. Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivação do Estado”. Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 1, pp. 722-760, mar. 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/27761. Acesso em: 23.03.2019. 47 CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 84. 48 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 63.

49 “Sabemos que o aparelho de Estado pode permanecer intacto, como o provam as revoluções burguesas do século XIX em França (1830, 1848) ou os golpes de Estado (o Dois de Dezembro, Maio de 1958) ou as quedas do Estado (queda do Império em 1870, queda da República em 1940), ou a ascensão política da pequena burguesia (1890-95 em França), etc., sem que o aparelho de Estado seja afectado ou modi cado por este facto: pode permanecer intacto apesar dos acontecimentos políticos que afectam a detenção do poder de Estado. Mesmo após uma revolução social como a de 1917, uma grande parte do aparelho de Estado permaneceu intacta após a tomada do poder de Estado pela aliança do proletariado e dos camponeses pobres (…)”. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1980, p. 37. 50 CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 49. 51 HIRSCH, Joachim; KANNANKULAM, John; WISSEL, Jens. “A teoria do Estado do ‘marxismo ocidental’. Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivação do Estado”. Revista Direito e Práxis, vol. 8, n. 1, pp. 722-760, mar. 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/27761. Acesso em: 23.03.2019. 52 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p.46. 53 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 134. 54 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria

geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, pp. 7778. 55 CALDAS, Camilo Onoda. A teoria da derivação do Estado e do Direito. São Paulo: Expressão Popular, 2015, pp. 86-87. 56 Assumindo que se trata de uma leitura nossa e que sempre haverá posições respeitáveis em sentidos contrários. 57 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 96. 58 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 39.

59 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 60 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, pp. 51-52. 61 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 54-55. 62 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e

seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, pp. 47-48. 63 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, pp. 6162. 64 MARX, Karl. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 63. 65 MARX, Karl. Para a questão judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 64.

66 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa,

2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm . Acesso em: 19.02.2018. 67 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 87. 68 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise econômica mundial. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 87. 69 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 71. 70 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 25.

71 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 77. 72 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 67.

73 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 119. 74 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 79.

75 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 147. 76 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 69. 77 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 78.

78 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 70. 79 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 139. 80 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 142.

81 Note-se que podemos articular os diagnósticos de Adorno/Horkheimer e de Pachukanis, pois estamos falando sobre o mesmo fenômeno a partir da mesma epistemologia, que é compreender as abstrações metanarrativas da sociedade das mercadorias. Quando costurarmos isso com a leitura da economia política d’ O Capital da Wertkritik, chegaremos ao encontro com Scholz. 82 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 70.

83 A “mão invisível” de Adam Smith, consubstanciada na fórmula de Jean-Baptiste Say, a “Lei de Say”, opera numa tautologia, de que Produto é igual à Renda, que é igual ao Dispêndio (Produto = Renda = Despesa), pelo princípio de tudo o que é consumido é previamente produzido, ignorando os fatores da produção, como o (mais-) valor e o trabalho. Até os dias presentes, todos os estudos de Macroeconomia são inspirados por esse liberalismo clássico, porque o PIB (Y) é compreendido através da fórmula: Y = C + I + G + X – M; sendo C (consumo) + I (investimento) + G (gastos do governo), e representam a absorção interna, ou seja, são os bens e serviços que a sociedade absorve para o consumo ou para o aumento de estoque de capital em determinado período de tempo. Já X (exportação) – M (importação), ou absorção externa/balança comercial, referem-se ao mercado externo, demonstrando o saldo do que se vende (exporta) e do que se compra (importa) do exterior. As óticas são equivalentes porque representam uma relação idêntica, que não guarda em si nenhuma relação de causa e efeito. É a primeira identidade macroeconômica: PRODUTO = RENDA = DESPESA. Os estudantes de economia, hoje, no século XXI, ainda estão aprendendo economia conforme Smith. E é cediço notar como todos esses estudos desconsideram em absoluto a verdadeira lógica do processo de reprodução do valor. São fantasiosos. Por isso, a economia liberal é ideológica, e não cientí ca, como bem apontara Marx (2013, p. 40). 84 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 76.

85 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 88. 86 Que, para Scholz (1996), tem uma dimensão dissociada, relegada às mulheres.

87 PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do Direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 80. 88 MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2012, p. 6.

89 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. Grifo nosso. 90 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)“. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 91 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 92 SCHOLZ, Roswitha. “O ódio às mulheres está novamente a aumentar”. Revista

da

Exit!: crise e crítica

sociedade das mercadorias, Lisboa, 2017. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha_scholz26.htm. Acesso em: 02.01.2019. 93 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 129. 94 SCHOLZ, Roswitha. “A nova crítica social e o problema das diferenças: Disparidades económicas, racismo e individualização pós-moderna. Algumas teses sobre o valor-dissociação na era da globalização”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2004a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz3.htm. Acesso em: 09.08.2017. 95 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 86. 96 Na edição do ano de 2018 do “Atlas da Violência” produzido pelo IPEA em parceria com o FBSP,

apresentaram-se dados relatando que 135 estupros, contra meninas e mulheres, são registrados por dia, em média, no Brasil. Foram 49.497 nas polícias brasileiras, e 22.918 no SUS. Entretanto, considerando a altíssima subnoti cação, os institutos estimam um número de 300 mil a 500 mil casos, por ano, no país. Isso elevaria a estimativa média para 822 a 1.370 casos diários. Ainda revelam que, em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no Brasil, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. No período de dez anos, o IPEA observou um aumento de 6,5% na taxa de feminicídios. (INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2018). 97 KURZ, Robert. “Crise e Crítica: o limite interno do capital e as fases do de nhamento do marxismo”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2012. Disponível em: http://obeco.no.sapo.pt/rkurz409.htm. Acesso em: 06.11.2017. 98 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do

patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 99 SCHOLZ, Roswitha. “A importância de Adorno para o feminismo hoje: retrospectiva e perspectiva de uma recepção contraditória”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2012. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz20.htm. Acesso em: 09.01.2019.

100 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 23.

101 SCHOLZ, Roswitha. “O ódio às mulheres está novamente a aumentar”. Revista Exit!: crise e crítica

da

sociedade

das

mercadorias,

Lisboa, 2017. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha_scholz26.htm. Acesso em: 02.01.2019. 102 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 67.

103 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 104 Tanto é que o espólio e a massa falida são “sujeitos de direito despersonalizados”. Se o espólio for constituído apenas de uma cadeira, nosso exemplo será real, e aquela ganhará a forma de subjetividade jurídica para assumir obrigações de crédito e débito monetário, e circular mercadorias, para, ao m, movimentar o valor. Há países no mundo em que os animais domésticos podem ser herdeiros, justamente para viabilizar a circulação e transferência do valor; assim era com as mulheres no princípio do capitalismo industrial. 105 E ainda trabalham, inclusive, em condições análogas à escravidão, em diversos lugares do mundo. 106 Vale lembrar que boa parte das re exões de Marx foi fomentada pelos relatos de Engels acerca da situação assombrosa da classe trabalhadora na Inglaterra, pois Friedrich visitava diversas fábricas de propriedade de seu pai, onde presenciou cenas terríveis, inclusive, de morte de trabalhadores(as). As condições eram tão precárias, desumanas e insalubres, que os ambientes fabris se tornavam redutos pestilentos, propícios à propagação das mais diversas doenças, isso quando o próprio ritmo de trabalho não levava à morte por esgotamento. Em várias passagens d’O Capital, Marx (2013) refere-se a esse descalabro, e menciona o trabalho de mulheres e de crianças, sendo que, em muitos casos, as mães permaneciam ao lado das crianças trabalhadoras pra lhes garantir o mínimo de sobrevivência, uma vez que se alimentavam, urinavam e defecavam na linha de produção. 107 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre

os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 108 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 109 O aborto ainda é criminalizado em boa parte do mundo, sendo que 42% dos países autorizam

apenas os procedimentos considerados necessários ou humanitários. Disponível em https://www.pewresearch.org/fact-tank/2015/10/06/how-abortion-is-regulated-around-the-world/. Acesso em 02.08.2020. 110 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 67-68.

111 “O terror nos Estados Unidos foi claramente de motivação anti-semita. As teses de Postone provam aqui a sua verdade de forma simbolicamente resumida. Os ataques tiveram como objectivo, a partir de uma ideologia regressiva, a destruição do geral-universalista-abstracto na relação de capital. Para os fundamentalistas islâmicos trata-se, como eles repetidamente reiteram, de fazer a luta contra os judeus e os cristãos, contra o Ocidente. Mesmo que não proclamem qualquer relação a rmativa com o ‘trabalho’, eles insistem na religião como o ‘concreto’ cultural aparente. No entanto, uma referência abstractamente positiva ao capitalismo na presente situação da parte da esquerda radical é falaciosa. E também testemunha de uma falsa imediatidade. Assim se esquece que o próprio anti-semitismo é um produto acabado do capitalismo. Quanto mais se generalizou a forma da mercadoria e, através dela, também os valores universalistas ocidentais, tanto mais os judeus foram identi cados com tudo isso de

uma forma personalizadora. Apenas com o capitalismo surgiu uma forma de pensamento continuadamente fetichista da mercadoria e, consequentemente, uma relação positiva e ideologizada com o ‘concreto’ e com o ‘trabalho’, sem que se visse que esta primordialidade aparente já é ela própria sempre produto da abstracção real na forma da mercadoria. Os judeus foram vistos já quase como os causadores, mas em todo o caso como os verdadeiros bene ciários do capitalismo, cujos poderes destrutivos lhes seriam indiferentes. Este estereótipo anti-semita é parte integrante da cultura ocidental; o discurso em muitos aspectos bastante pertinente da cultura judaico-cristã obscurece esse facto. Por conseguinte, é importante conceber o capitalismo como processo histórico e, neste contexto, determinar também o anti-semitismo historicamente, considerando as continuidades. Assim se distingue, por exemplo, o anti-semistismo fordista eliminador dos nazis do anti-semitismo na era da globalização, sendo que o anti-semitismo agora dominante na Alemanha é um anti-semitismo secundário (não apesar, mas por causa de Auschwitz). Precisamente tendo em conta o facto de, desde o século XIX, no processo de sedimentação da lógica da identidade, os judeus terem sido simplesmente identi cados com as manifestações destrutivas do capitalismo, há que distinguir as diferentes fases históricas. Por isso, no caso dos ataques terroristas nos E.U.A. não se trata simplesmente de uma aniquilação dos judeus accionada à escala de um plano fabril, sistemática, como no nacionalsocialismo, mas precisamente da militância de actos terroristas suicidas, por muito pós-modernamente so sticados que tenham sido e como tais tenham feito simultaneamente um manguito à húbris da alta tecnologia”. SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 112 SCHOLZ, Roswitha. “O ódio às mulheres está novamente a aumentar”. Revista Exit!: crise e crítica

da

sociedade

das

mercadorias,

Lisboa, 2017. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha_scholz26.htm. Acesso em: 02.01.2019. 113 SCHOLZ, Roswitha. “O ódio às mulheres está novamente a aumentar”. Revista Exit!: crise e crítica

da

sociedade das mercadorias, Lisboa, 2017. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha_scholz26.htm. Acesso em: 02.01.2019. 114 Para nós, sob outro prisma, também é absurda a esquerda feminista punitiva, que acredita na mítica função preventiva da pena proposta pelos iluministas, principalmente pelo Marquês de Beccaria, imaginando que criar tipos penais, como a forma quali cada do “feminicídio” para o crime de homicídio, ou o recrudescimento do ius puniendi estatal, como na nossa lei brasileira “Maria da Penha”, seja a solução para coibir a violência contra a mulher. Nesses casos, a mulher já fora violentada (ou morta) e o Direito Penal só atua num sentido pós-violatório (o bem jurídico já foi violado, para que incida a sanção penal). Tal política criminal de “tutela penal dos direitos humanos” não protege ninguém da violência, pois a pena, obviamente, só tem caráter retributivo: é vingança e castigo. Diante da seletividade penal estrutural, os homens alcançados por essa persecução penal não serão, certamente, os ricos e brancos. 115 SCHOLZ, Roswitha. “Lógica da identidade e crítica do capitalismo: notas sobre as reacções da

esquerda aos ataques terroristas em Nova Iorque e Washington”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2009. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz11.htm. Acesso em: 08.04.2019. 116 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 59. 117 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 60. 118 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 31. 119 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 33.

120 A recente história política brasileira é emblemática desse fenômeno, pois, pelos simples fato dos governos do Partido dos Trabalhadores terem realizado um mínimo de redistribuição de renda e direitos subjetivos previstos no texto constitucional de 1988, com o advento da crise do capital de 2008, que chegou com atraso ao país, o espectro do fascismo dominou a sociedade brasileira. Para assegurar a aprovação legislativa das reformas trabalhista e previdenciária, e evitar o controle estatal sobre a multiplicação irrefreada do capital nanceiro especulativo, rompeu-se com a legalidade e a institucionalidade brasileiras, viabilizando a cassação do mandato da Presidenta Dilma Rousse . Após o aviltamento calamitoso do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro para impedir Rousse (que se alimentou de discursos misóginos contra a então Presidenta eleita), o governo ilegítimo que se imiscuiu no poder não foi integralmente capaz de contentar os interesses do capital. Ao mesmo arrepio da legalidade instituída, o ex-Presidente Lula foi preso para não retornar ao Planalto via eleições presidenciais. Diante disso, todos os braços do valor se entrelaçaram com o avanço do mais vil e estúpido fascismo crescente no país, para que, com um governo absolutamente descomprometido com a democracia, a legalidade e os direitos fundamentais, seja possível reconverter o Brasil apenas num imenso pasto, para que o valor possa devorar e engordar sem nenhum limite. 121 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias. Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 122 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 123 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 124 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p.19. 125 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 33.

126 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 45. nossos. 127 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 27.

Grifos

128 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 40. 129 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 68. 130 Em qualquer dicionário de língua portuguesa ou espanhola, a locução “homem público” é tratada como sinônimo de “político” ou “homem do Estado”, ao passo que “mulher pública” é “prostituta” ou “meretriz”. 131 MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 41.

132 Nunca é demais lembrar que essa manipulação da subjetividade jurídica da mulher como um joguete de oportunidade à circulação mercantil e à exploração do trabalho, no século XIX, só se aplica às mulheres brancas, uma vez que mulheres (e homens) negras eram consideradas apenas coisas, ao serem alocadas na forma da mercadoria com o desenvolvimento das categorias abstratas do capital. Quando a subjetividade jurídica das pessoas negras foi reconhecida em países que escravizaram africanos e afrodescendentes, como o Brasil, porque interessante ao valor, as mulheres negras

começaram a viver as demandas das mulheres brancas de um século anterior, sempre achacadas pelo racismo, além do patriarcado estrutural. 133 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 134 As mulheres trabalhadoras eram revolucionárias socialistas, anarquistas, grevistas e/ou pleiteavam

participação sindical, proteção estatal, redução de jornada, e direitos iguais aos dos homens trabalhadores. 135 Obviamente, não estamos tratando dos genocídios e horrores, mas sim estamos nos referindo à economia centrada no capital produtivo (agrícola, industrial e construção civil), protecionismo econômico (chegando à queima de estoques de produtos primários), política de geração de empregos formais, massivos investimentos em obras públicas, bancos públicos de crédito voltados à promoção do crescimento econômico, diminuição da jornada de trabalho para criar novos postos, salário-mínimo, seguro-desemprego, aposentadoria, benefício social, escolas e hospitais públicos etc. Isso tudo é um denominador comum em todos esses modelos políticos. 136 BARREIRA, Marcos; BLANK, Javier. “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social:

conversa com Ernst Loho e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2018. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-deemancipao-social/#_ftn14. Acesso em: 14.12.2019. 137 Inclusive, Scholz e Kurz são ácidos e categóricos ao deixarem bem claro que o “socialismo real” de inspiração leninista foi, em verdade, outra regulação do capitalismo. Principalmente, com Josef Stálin, uma vez que a ex-URSS não rompeu com a forma produtiva e com as formas abstratas da economia capitalista, como o trabalho abstrato, a mercadoria e o valor, o Estado soviético era apenas outra expressão possível do modelo de “bem-estar” útil à acumulação fordista do século XX. Da mesma forma que Kurz e Scholz argumentam que Stálin não rompeu com a forma do valor, Pachukanis (2017) a rma que a URSS não rompeu com a forma jurídica, e, por isso, foi executado a mando de Stálin. Claramente, Kurz, Scholz e Pachukanis estão dizendo a mesma coisa, pois, se o Direito é a forma jurídica do Valor, quem não rompe com um não rompe com o outro. 138 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 139 Interessante notar como a economia brasileira foi atingida por esse modelo, desde o Estado Novo,

tipicamente centrado no modelo fordista. Durante o período de avanço econômico do capital internacional, pós-segunda guerra, o governo Kubitschek implantou o modelo desenvolvimentista da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), com seu “plano de metas” de crescimento. Os governos da ditadura militar centram-se em políticas de controle da in ação e expansão industrial, inclusive, com investimentos em indústria estatal de base, de modo que a economia nacional experimentou também o seu chamado “milagre brasileiro”, entre os anos 1968 e 1973, com um PIB que avançava mais de dez por cento ao ano. Claramente, não se trata de uma relação necessária e progressiva entre democracia e crescimento, mas sim entre modo de acumulação fordista e regulação desenvolvimentista, a qual pode conviver, como forma política, até com as mais cruéis ditaduras. 140 SCHOLZ, Roswitha. “O ódio às mulheres está novamente a aumentar”. Revista Exit!: crise e crítica

da

sociedade

das

mercadorias,

Lisboa,

2017.

Disponível

em:

http://www.obeco-

online.org/roswitha_scholz26.htm. Acesso em: 02.01.2019. 141 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 142 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 143 O punitivismo é uma ideologia que propaga a ampliação dos tipos penais na legislação, majoração

das penas, e persecução criminal pelas instituições do Estado (polícias, Ministério Público, Poder Judiciário) e ciente, isto é, idônea a gerar massivo encarceramento. Opera com uma ilusão pueril, um mito liberal, de que o crime é prevenido pelo “direito penal”, pois a violência (inclusive, de gênero) seria uma questão de impunidade (penal), e não resultado de mazelas sociais e econômicas. Também desconsidera que o sistema penal é seletivo, e não opera numa racionalidade igualitária sobre todos os supostos violadores da lei; tem uma “clientela”, cujo recorte se dá sobre os grupos sociais estruturalmente marginalizados.

CAPÍTULO II TEORIA CRÍTICA DO VALOR Um cadáver domina a sociedade – o cadáver do trabalho. Todas as potências do globo estão coligadas em defesa desta dominação: o Papa e o Banco Mundial, Tony Blair e Jörg Haider, sindicatos e empresários, ecologistas alemães e socialistas franceses. Todos eles só têm uma palavra na boca: trabalho, trabalho, trabalho. KURZ, LOHOFF, TRENKLE, 1999

2.1 Valor Primeiramente, é crucial conceituarmos o que é o valor desde a leitura do Livro I d’O Capital, de Karl Marx, para demonstramos no que consiste a “Crítica do Valor”. Assim, faz-se mister esclarecer que, ao tratarmos da categoria “valor”, não estamos nos referindo apenas ao valor econômico de algo, ao valor de uso dado pela utilidade das mercadorias, nem ao valor de troca em si, mas sim ao fenômeno da valorização do valor. O valor é, na realidade, um processo, através do qual o capital se reproduz. Para iniciarmos essa explanação, vejamos como Karl Marx explica valor de uso e valor de troca: A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Mas essa utilidade não utua no ar. Condicionada pelas propriedades do corpo da mercadoria [Warenkörper], ela não existe sem esse corpo. Por isso, o próprio corpo da mercadoria, como ferro, trigo, diamante etc., é um valor de uso ou um bem. Esse seu caráter não depende do fato de a apropriação de suas qualidades úteis custar muito ou pouco trabalho aos homens. Na consideração do valor de uso será sempre pressuposta sua determinidade [Bestimmtheit] quantitativa, como uma dúzia de relógios, 1 braça de linho, 1 tonelada de ferro etc. Os valores de uso das mercadorias fornecem o material para uma disciplina especí ca, a merceologia. O valor de uso se efetiva apenas no uso ou no

consumo. Os valores de uso formam o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social desta. Na forma de sociedade que iremos analisar, eles constituem, ao mesmo tempo, os suportes materiais [sto ische Träger] do valor de troca. O valor de troca aparece inicialmente como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por 15 valores de uso de outro tipo, uma relação que se altera constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor de troca parece algo acidental e puramente relativo, um valor de troca intrínseco, imanente à mercadoria (valeur intrinsèque); portanto, uma contradictio in adjecto [contradição nos próprios termos].144

Ao tomarmos o conceito de valor, estamos considerando o valor de uso e o de troca, mas, além disso, a forma fundamental do valor no sistema econômico capitalista. Para nos explicar com clareza, Marx estabelece o que ele chama “dois polos de expressão do valor: forma de valor relativo e forma equivalente”.145 Então, parte do seguinte exemplo, que ora adaptamos: suponhamos que trinta metros de tecido tenham o mesmo valor de um casaco pronto. Tecido e casaco são duas mercadorias diferentes e desempenham papéis distintos no que se refere ao seu uso – a utilidade do pano está em podermos fazer roupas com ele, como um casaco, e é por isso que ele tem valor; o casaco serve para ser vestido, pode ser usado em caráter de nitivo. O casaco pronto serve de material para a expressão do valor – sabemos quanto vale o pano em relação ao casaco (uma mercadoria mais acabada). Por isso, o valor do tecido é relativo: medido em relação ao valor do casaco. O casaco, por sua vez, já é uma mercadoria cujo valor se mede de forma equivalente. Assim, forma relativa e forma equivalente determinam-se reciprocamente, distribuídas em mercadorias diferentes, e são, ao mesmo tempo, inseparáveis, e mutuamente excludentes.146 Porquanto, ou uma mercadoria expressa valor relativo ou tem valor equivalente. Porém, se o valor do tecido é determinado em relação ao casaco (quantos metros de linho são necessários para termos o valor de um casaco?), como se estabelece o valor do casaco? Através do tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir um casaco. É por isso que o casaco é a forma equivalente: é

preciso mais trabalho para ser feito, pois ele já é um momento além do pano, uma mercadoria nalizada. Por essa razão, mercadorias em que estão contidas quantidades iguais de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho têm a mesma grandeza de valor. O valor de uma mercadoria está para o valor de qualquer outra mercadoria assim como o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de trabalho necessário para a produção de outra. “Como valores, todas as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho cristalizado.” Assim, a grandeza de valor de uma mercadoria permanece constante se permanece igualmente constante o tempo de trabalho requerido para sua produção. Mas este muda com cada mudança na força produtiva do trabalho. Essa força produtiva do trabalho é determinada por múltiplas circunstâncias, dentre outras pelo grau médio de destreza dos trabalhadores, o grau de desenvolvimento da ciência e de sua aplicabilidade tecnológica, a organização social do processo de produção, o volume e a e cácia dos meios de produção e as condições naturais. Por exemplo, a mesma quantidade de trabalho produz, numa estação favorável, 8 alqueires de trigo, mas apenas 4 alqueires numa estação menos favorável. A mesma quantidade de trabalho extrai mais metais em minas ricas do que em pobres etc.147

Dessa maneira, é possível se estabelecer uma relação de equivalência entre coisas materialmente distintas, a partir do momento em que podem ser alocadas na forma-mercadoria (uma abstração). Quem de ne qual mercadoria tem qual valor? A resposta também é tão simples que causa irritação: são as próprias mercadorias. A loucura dessa a rmação salta aos olhos. As coisas, por de nição, não têm vontade e muito menos podem tomar decisões. Mas, de certa maneira, é assim mesmo que ocorre. Por quê? Trocando diariamente os seus produtos, as pessoas, na sociedade burguesa, igualam as suas formas de atividades. Essa equivalência confere aos produtos a propriedade especial de possuir um valor. Essa qualidade é fantasmagórica pois o produto, pela sua natureza, não possui qualquer valor. O valor de uma mercadoria, por exemplo, um diamante, não pode ser descoberto em sua própria estrutura, mesmo através da análise de seus átomos, visto que

encontraríamos apenas átomos de carbono. Por conseguinte, confrontamo-nos com um paradoxo: o valor é ao mesmo tempo existente e inexistente. As coisas não possuem um valor natural, só as relações de troca entre os seres humanos fazem nascer o valor. Assim, e de modo paradoxal, o comportamento das pessoas torna-se uma “qualidade” das coisas. Tais relações “entram” nas coisas e “animam” o corpo das mercadorias que só então podem “comportar-se” em relação a outras mercadorias.148

Por que o trabalho é abstrato? Porque, quando o trabalho também pode ser inserido nessa forma mercantil, ele se torna tão abstrato e conceitual quanto ela, e serve como medida para se aferir valor. Por isso, quando a economia política marxista fala em mercadoria, não está tratando das coisas concretas e palpáveis do mundo, e, quando se refere ao trabalho, não está se referindo a qualquer atividade humana – mas sim às formas abstratas que podem se tornar equivalentes. Cabe assinalar que, seguindo Marx, estamos tratando todo trabalho abstrato como “trabalho simples”, para facilitar a compreensão do conceito. (…) o valor da mercadoria representa unicamente trabalho humano, dispêndio de trabalho humano. Ora, assim como na sociedade burguesa um general ou um banqueiro desempenham um grande papel, ao passo que o homem comum desempenha, ao contrário, um papel muito miserável, o mesmo ocorre aqui com o trabalho humano. Ele é dispêndio da força de trabalho simples que, em média, toda pessoa comum, sem qualquer desenvolvimento especial, possui em seu organismo corpóreo. O próprio trabalho simples médio varia, decerto, seu caráter em diferentes países e épocas culturais, porém é sempre dado numa sociedade existente. O trabalho mais complexo vale apenas como trabalho simples potenciado ou, antes, multiplicado, de modo que uma quantidade menor de trabalho complexo é igual a uma quantidade maior de trabalho simples. Que essa redução ocorre constantemente é algo mostrado pela experiência. Mesmo que uma mercadoria seja o produto do trabalho mais complexo, seu valor a equipara ao produto do trabalho mais simples e, desse modo, representa ele próprio uma quantidade determinada de trabalho simples. As diferentes proporções em que os diferentes tipos de trabalho são reduzidos ao trabalho simples como sua unidade de medida são determinadas por meio de um processo

social que ocorre pelas costas dos produtores e lhes parecem, assim, ter sido legadas pela tradição. Para ns de simpli cação, de agora em diante consideraremos todo tipo de força de trabalho diretamente como força de trabalho simples, com o que apenas nos poupamos o esforço de redução.149

Podemos dizer, por exemplo, que 30 metros de linho = um casaco = 10 horas de trabalho. Tudo está na forma da mercadoria e, portanto, na forma do valor, pois é a produção de mercadorias que agrega valor real ao capital (riqueza de fato). Então, a matemática é: valor relativo x = valor equivalente y = trabalho z, sendo o valor da mercadoria menos acabada relativo ao valor da mercadoria mais pronta para uso, e, este, equivalente ao tempo de trabalho necessário para sua produção. Por isso, não importa o que o trabalhador está produzindo, mas sim quanto valor gerou. Pode ser um livro, uma música, uma arma, não importa. As mercadorias valem conforme o valor que agregam ao capital, e a categoria abstrata do trabalho é que pode identi car todas as mercadorias entre si. Mas as mercadorias possuem objetividade de valor apenas na medida em que são expressões da mesma unidade social, do trabalho humano, pois sua objetividade de valor é puramente social e, por isso, é evidente que ela só pode se manifestar numa relação social entre mercadorias. Partimos do valor de troca ou da relação de troca das mercadorias para seguir as pegadas do valor que nelas se esconde. Temos, agora, de retornar a essa forma de manifestação do valor. Qualquer um sabe, mesmo que não saiba mais nada além disso, que as mercadorias possuem uma forma de valor em comum que contrasta do modo mais evidente com as variegadas formas naturais que apresentam seus valores de uso: a forma-dinheiro. Cabe, aqui, realizar o que jamais foi tentado pela economia burguesa, a saber, provar a gênese dessa formadinheiro, portanto, seguir de perto o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor das mercadorias, desde sua forma mais simples e opaca até a ofuscante formadinheiro. Com isso, desaparece, ao mesmo tempo, o enigma do dinheiro. A relação mais simples de valor é, evidentemente, a relação de valor de uma mercadoria com uma única mercadoria distinta dela, não importando qual seja. A relação de valor entre

duas mercadorias fornece, assim, a mais simples expressão de valor para uma mercadoria.150

Ocorre que é possível estabelecermos uma relatividade de valor entre os tecidos e as roupas (como, no exemplo de Marx, entre linho e casaco) porque os primeiros são usados na fabricação delas. Assim, o valor das roupas pode funcionar como medida de valor equivalente para os tecidos, as linhas, os botões (e seu material, como mar m, madrepérola, plástico etc.), os zíperes (e seu material) etc., mas não pode funcionar como equivalente para todas as coisas. Como se poderia estabelecer um valor relativo entre a carne e a roupa, ou entre o papel e a indumentária? Quantos quilos de alcatra ou de papel branco equivalem a um casaco? Não é possível sabermos se partirmos do raciocínio sobre o linho, pois podemos medir quanto de valor foi agregado ao corte de linho depois que se costurou um blazer com ele, mas o mesmo não vale para a carne, já que não se faz blazers com peças de alcatra.151 Deste modo, uma mercadoria pode ser equivalente para o conjunto de algumas outras, mas não será um equivalente universal. O valor pré-capitalista não era auto-re exivo e constituía somente uma mediação entre valores de uso. Nestas circunstâncias não podia constituir uma relação de reprodução social. O valor só se torna capital a partir do momento em que se torna uma relação auto-re exiva, tautológica, de tal modo que a contradição inerente a toda a produção de mercadorias se transforma numa contradição “em processo”, dinâmica.152

O equivalente universal precisa se constituir a partir de um critério que homogeneíze tudo o que caiba na forma mercantil. O preço tem essa função. Tudo que seja capaz de se identi car com o valor, isto é, reproduzir capital, precisa ser uniformizado pela equivalência. É aí que surge a importância da forma-dinheiro. Originalmente, adotou-se o padrão-ouro, pois este metal já era considerado precioso, e, por sua raridade, beleza e propriedades físicoquímicas, dotado de valor de uso e de troca. Não se pode estabelecer relação direta entre o valor da carne e do casaco, mas pode-se dizer quantos gramas de ouro vale uma peça de carne ou um casaco. Se 5 kg de carne = 1g de ouro, e 1 casaco = 5g de ouro, sabemos que o valor de 25kg de carne = valor de 1 casaco.153 O ouro deixa de ser apenas uma coisa concreta do mundo (um

metal belo, reluzente, maleável, condutor etc.) para se abstrair na formadinheiro. Então, torna-se o equivalente universal. Reforçando: o equivalente não é o metal em si, mas a forma criada a partir da atribuição de valor a ele. O preço das mercadorias (em gramas de ouro, por exemplo) corresponde ao seu valor de troca. Desponta, aqui, a evolução da moeda. Se tratarmos o ouro como mercadoria em si, por seu valor intrínseco decorrente de escassez e beleza, teremos apenas uma convenção arbitrária para a viabilização do escambo. Assim, pode-se tomar o ouro como critério de equivalência, ou qualquer outro produto. Do mesmo modo que se pode “preci car” as coisas em gramas de ouro (5 kg de alcatra custa 1g de ouro, 1 casaco custa 5g de ouro, um cavalo custa 200g de ouro, uma casa custa 10 kg de ouro etc.), isso poderia ser feito com qualquer outro material (por exemplo, se o equivalente universal fosse a carne, a preci cação caria assim: 1 casaco custa 25kg de alcatra, um cavalo custa uma tonelada de alcatra, uma casa custaria cinquenta toneladas).154 Desta maneira, o ouro é tomado como mercadoria em si, cujo valor arbitrariamente estabelecido como equivalente universal para determinar preço constitui um sistema de escambo. Então, trocar moedas de ouro por uma casa seria tão escambo quanto trocar por toneladas de carne. Ora, um processo diferente ocorre se o valor do ouro é considerado abstratamente na forma-dinheiro. Aí, já haveria um sistema econômico um tanto mais depurado, no qual se torna desnecessário que as moedas sejam, de fato, feitas de ouro; podem ser confeccionadas com qualquer outro material mais abundante, desde que, nelas, inscreva-se a representação do valor em ouro. Isso é a moeda (enquanto papel-moeda, ou moeda de metal representativa).155 Ocorre que a mera existência de moeda está abismalmente longe de con gurar modo de produção capitalista, mesmo no período mercantil. Antes do capitalismo, já havia sistema monetário, mas a produção de insumos e objetos era voltada exclusivamente ao uso; com seu advento, a produção de mercadorias vincula-se a relações monetárias para estruturar o mercado, que possui uma con guração sistêmica, o que se transfere para as relações sociais, criando uma nova ideia de totalidade social. Decerto que existia moeda antes do capitalismo, todavia, é apenas neste último que o dinheiro, enquanto expressão do valor, pode valorizar a si

mesmo num processo contínuo de valorização do capital abstrato. A diferença fundamental é que, no capitalismo, o padrão-ouro foi estabelecido justamente no século XIX, com o avanço do capitalismo industrial, como um equivalente universal abstrato correspondente à forma-mercadoria. Dessarte, subsiste a fórmula valor relativo x = valor equivalente y = trabalho z, sendo o valor equivalente (universal) correspondente à forma-dinheiro. O trabalho abstracto, cujo conceito Marx estabelece, não é a generalização mental de que falávamos há pouco, mas sim uma realidade social, uma abstracção que se torna realidade. Vimos acima que, se todas as mercadorias devem ser trocáveis entre si, o trabalho contido nas mercadorias deve igualmente ser imediatamente trocável. Só o pode ser se for igual em todas as mercadorias, ou seja, se se tratar sempre do mesmo trabalho. O trabalho contido numa mercadoria deverá ser igual ao trabalho contido em todas as outras mercadorias. Na medida em que se representam no valor, todos os trabalhos valem somente enquanto “dispêndios da força humana de trabalho”. O respectivo conteúdo concreto é apagado; os trabalhos equivalem-se todos entre si. Não se trata aqui de uma operação puramente mental: de facto, o valor dos diferentes trabalhos representa-se numa forma material, o valor de troca, que nas condições mais evoluídas toma a forma de uma quantidade determinada de dinheiro. O dinheiro representa algo de abstracto – o valor –, e representa-o enquanto algo de abstracto. Uma soma de dinheiro pode representar qualquer valor de uso, qualquer trabalho concreto. Onde a circulação de bens for mediada pelo dinheiro, a abstracção tornou-se algo de bastante real. Podemos então falar de uma “abstracção real”. A abstracção de toda e qualquer qualidade sensível, de todos os valores de uso, não é uma espécie de resumo mental (…) O dinheiro não representa os valores de uso na sua multiplicidade, antes é a forma visível de uma abstracção social, o valor. Na sociedade mercantil, cada coisa tem uma dupla existência, enquanto realidade concreta e enquanto quantidade de trabalho abstracto. É este segundo modo de existência que se exprime no dinheiro, que merece portanto ser chamado abstracção real principal.156

Todas as coisas do mundo, corpóreas e incorpóreas, ao serem inseridas na forma-mercadoria são dotadas de um valor relativo ao valor equivalente

universal, que é a forma-dinheiro. Então: valor relativo da forma-mercadoria x = valor equivalente da forma-dinheiro y = trabalho z. O “pulo do gato” do capitalismo está justamente no trabalho, que cria a identidade tempo = dinheiro. Só o moderno sistema de produção de mercadorias, com a sua nalidade autotélica de transformação permanente de energia humana em dinheiro, veio criar esse domínio particular, “apartado” de todas as outras relações sociais e abstraído de qualquer conteúdo, que leva o nome de esfera do trabalho – a esfera da actividade não autónoma, incondicional, não relacional, robotizante, separada do restante contexto social e obedecendo a uma abstracta racionalidade nalista de “economia empresarial”, independente das necessidades. Nesta esfera, separada da vida, o tempo deixa de ser tempo vivido e vivenciado, torna-se simples matéria-prima que tem de ser optimizada: “tempo é dinheiro” (…) Na esfera do trabalho não conta aquilo que se faz, mas sim que o fazer, enquanto tal, seja feito, pois o trabalho é um m em si mesmo justamente na medida em que traz consigo a valorização do capital-dinheiro – a in nita multiplicação do dinheiro por intermédio do dinheiro. O trabalho é a forma de actividade própria desta absurda nalidade autotélica. É por isso, e não por quaisquer razões objectivas, que os produtos são todos eles produzidos como mercadorias. Só sob a forma de mercadoria representam a abstracção dinheiro, cujo conteúdo é a abstracção trabalho. Nisto consiste o mecanismo da engrenagem social autonomizada em que se mantém aprisionada a humanidade moderna.157

É contra esse trabalho que a teoria crítica se insurge, pois tal trabalho e capital não passam de duas faces da mesma moeda. Quando se converte as atividades humanas também em uma derivação abstrata tal qual a formavalor, é possível constituir essa equivalência, e a diferença do capitalismo para os outros sistemas é que o valor não será dado simplesmente por uma preci cação arbitrária, mas sim pela exploração material da força de trabalho convertida em mercadoria. Portanto, é a capacidade do trabalho de agregar valor às coisas que produz capital, e isso só é possível quando o trabalho se abstrai para corresponder à forma-mercadoria e para ser valorado na formadinheiro.158

As mercadorias são “valor” porque “representam” “trabalho passado” (dispêndio de energia humana social abstracta), ou seja, elas representam uma determinada quantidade da energia social despendida. Esta representação exprime-se por sua vez num meio particular, o dinheiro, que é a forma geral do valor para todo o universo das mercadorias.159

Desse modo, em última análise, todas as mercadorias têm seu valor relativo dado pela quantidade de trabalho dispendida na sua produção. O verdadeiro equivalente universal é o trabalho abstrato, ele é o reprodutor do valor. Assim, uma vez que o trabalho vivo, abstrato, é tratado como mais uma mercadoria, e usado para gerar valor sobre o trabalho morto (contido na mercadoria), a teoria crítica do valor irá a rmar que esse conceito – “trabalho” – só existe no capitalismo.160 Ou seja: o trabalho não é uma categoria ontológica e a-histórica. Esse trabalho abstrato só existe na sociedade das mercadorias, como dirá Anselm Jappe: Marx sugere, pois, que o trabalho abstracto corresponde ao conceito hegeliano. No trabalho abstracto o conceito e a abstracção tornam-se reais. Aí, a forma triunfa efectivamente sobre o conteúdo, sobre a substância. Algo de puramente formal, completamente destituído de conteúdo, como é o trabalho abstracto na sua forma de valor, submete aqui a realidade em toda a sua extensão. O capitalismo é a metafísica realizada, o verdadeiro realismo dos conceitos com que sonhavam os escolásticos.161

O trabalho passado representado pelo valor das mercadorias é, nos termos de Marx, “trabalho morto”, o que explica a a rmação da Krisis de que “um cadáver domina a sociedade – o cadáver do trabalho”.162 É por isso que a teoria crítica do valor também se autodenomina “crítica da sociedade das mercadorias”. Assim, enquanto, no marxismo tradicional, o conceito de “valor” aparece vinculado à forma dos preços, ou à forma-dinheiro, na Crítica do Valor, é compreendido como uma relação social fetichista, uma vez que o trabalho abstrato é um construto necessário para que ele, trabalho, seja alocado na forma-mercadoria, assim como qualquer outra coisa, e possa se converter em trabalho passado consubstanciado na mercadoria que produz, a qual é igual a valor no processo produtivo. Trocando em miúdos, o

(mais)valor criticado pelos autores de Nuremberg equivale ao trabalho abstrato, considerando-se que o capitalismo, enquanto modo de produção que é, precisa produzir. 2.1.1 Valor e capital nanceiro Até agora, então, ainda não adentramos no problema do valor a partir da nanceirização do capital, mas estamos considerando apenas o capital produtivo. Nem o capitalismo, nem o Estado, nem a sociedade de hoje se comparam ao que eram nos séculos XIX e mesmo em meados do XX. Ademais, a Crítica do Valor identi ca que tanto as teorias marxistas quanto os movimentos anticapitalistas sempre estiveram centrados no aspecto da distribuição, desconsiderando que o ponto nevrálgico reside no processo de produção em si. Sobre este último aspecto, cumpre, nalmente, esclarecer em que medida a crítica da sociedade das mercadorias atualiza Karl Marx, por assim dizer, e traz a crítica do valor ao m do século XX e ao nosso século XXI. Aqui, a questão central é a aplicação de seus postulados ao capitalismo nanceiro, especulativo, ou, para usar uma expressão cara a Kurz (2008), de cassino.163 Como a crítica do valor acredita que tem uma vantagem na interpretação de Marx sobre os demais marxistas (o que imola disputas de correção entre seus próprios integrantes), intenta solucionar os dilemas do capitalismo atual a partir da sua já clara compreensão de que o capitalismo é o fenômeno de incremento do valor pelo valor. Tanto a economia política como o marxismo tradicional fracassam na tentativa de explicar a acumulação de capital dominada pelo mercado nanceiro dos últimos trinta anos. A razão mais profunda para isso são os pressupostos teóricos básicos de ambas as abordagens que, a despeito de suas diferenças, chegam em última instância a resultados muito semelhantes. A economia política confunde riqueza capitalista com riqueza material, isto é, a riqueza de bens reais, e considera o dinheiro essencialmente como um mero meio re nado de mediação da divisão social do trabalho no processo da generalização da troca. Embora o marxismo tradicional dirija seu olhar para a valorização do capital, alega que este só pode se incrementar – considerando

a sociedade como um todo – por meio da extração real de maisvalia. Esses dois pressupostos básicos têm uma consequência teórica comum: os processos econômicos relevantes ocorrem somente na economia real, enquanto a função dos mercados do dinheiro e de capitais limita-se à redistribuição da riqueza já existente.164

Diante do desa o de presenti car o marxismo, Ernst Loho (2014) procura explicar o fenômeno de expansão do mercado de capitais, que dá uma nova con guração ao capitalismo a partir da década de 1980, de modo que a acumulação passou a se fundar, principalmente, em ações, títulos de dívida ou derivativos, e não na máxima extração de mais-valor da massa trabalhadora que marcou o capitalismo desde a Revolução Industrial até a década de 1970. Essa predominância dos títulos bancários e do capitalismo nanceiro desde a década de 1980 culminou na crise do capital de 2008, sobre a qual comentou Kurz (2008): A maior crise nanceira desde 1929 parece caminhar a par e passo com uma amnésia geral. Nos últimos anos houve um deslumbramento com o boom da conjuntura mundial, sem que ninguém perguntasse qual a fonte que a alimentava. Agora, de repente, já todos a conheciam e, pretensamente, todos vinham chamando a atenção para o caso desde há anos. A culpa do desastre seria da desregulação neoliberal desenfreada dos mercados nanceiros, bem como da ganância, irresponsabilidade e incompetência dos administradores dos bancos. E tudo teria sido uma fatalidade do modelo “anglo-saxónico”, assim como todo o mal seria oriundo dos EUA, ainda ontem tão aclamados. (…) Esta forma de se fazer ao voto, além de mentirosa, releva de um completo desconhecimento dos factos. Na realidade a economia de bolhas nanceiras foi um tipo particular de “de cit spending” keynesiano. Contudo, aconteceu não com base no endividamento estatal, mas com base na “in ação de activos” do capitalismo nanceiro, e não a nível nacional, mas a nível mundial. Do ponto de vista puramente económico o resultado foi o mesmo: as bolhas nanceiras in adas foram transformadas em investimentos e postos de trabalho. Só que, ao contrário do velho “de cit spending” estatal, o novo “de cit spending” do capital nanceiro não desaguou em infra-estruturas, mas sim em cadeias transnacionais de criação de valor (Ásia, Europa de Leste) e num

consumo de minorias a nível mundial. (…) Esquecem-se, contudo, que esta “traição” foi lha da necessidade. Se não tivesse havido a oferta excessiva de moeda o crash já teria ocorrido há 10 anos. O que isto mostra, pelo contrário, é a ingenuidade da esperança no regresso à regularidade “séria”. O Estado tem agora de assumir a gigantesca massa falida da economia das bolhas nanceiras. Poderá ter de car nisso até ao dia do juízo nal.165

Para o grupo Krisis, é crucial trazer suas críticas originárias para o presente porque as recentes mutações do capitalismo impactaram, não apenas as formas de reprodução do valor, mas todos os aspectos da sociedade, e as formas sociais do valor, fazendo emergir, na forma política, contornos nefastos de protofascismo em todo o mundo ocidental, que acreditava ter superado o totalitarismo. Tudo isso, segundo eles, está marcado pela decrepitude do trabalho, o que abala todos os aspectos da sociedade das mercadorias, conforme manifestam abaixo: Desde que publicamos o Manifesto contra o trabalho, há quase 20 anos, a crise fundamental do capitalismo não apenas se intensi cou rapidamente do ponto de vista econômico, mas está questionando cada vez mais a própria existência da sociedade da mercadoria como um todo. A destruição dos fundamentos naturais da vida avança desenfreada, a fratura social do mundo atinge dimensões dramáticas e, no plano político, assistimos a um retorno assustador das identidades coletivas, juntamente com o ressurgimento de partidos e movimentos nacionalistas, de extrema-direita e populistas de esquerda. Não é surpreendente que a exaltação quase religiosa do trabalho não tenha sofrido com isso, uma vez que ela expõe um elemento constitutivo da subjetividade moderna e indica a posição central do trabalho na sociedade capitalista.166

Para o coletivo Krisis, a ideologia do trabalho, quase uma religião durante o século XX, sofreu profundos abalos desde que publicaram seus textos fundamentais. Naquele momento (décadas de 1980 e 1990), dedicaram-se a tecer uma crítica do trabalho a partir do fenecimento do modelo fordista de produção, que tinha, na exploração de mais-valor, a centralidade da forma de acumulação e, por isso, o trabalho abstrato era religiosamente exaltado como a única forma de “digni car o homem”.

A partir de então, descortinaram-se os caracteres do modelo de acumulação pós-fordista, no qual o trabalho continuou exaltado, mas com novos discursos ideológicos, como “motivação pessoal”, “resiliência”, “engajamento” e “proatividade” para o máximo desempenho individual. Ocorre que, ora, também esses contornos neoliberais entraram em crise, de modo que, do extremado individualismo pós-fordista, o trabalho deslocou-se novamente para a construção de uma identidade coletiva, amarrado a ufanismos nacionalistas e exaltações racistas. Por isso, segundo eles, a crítica que formularam ao trabalho, no Manifesto, permanece atualíssima, com o detalhe que a crise social se tornou mais aguda, exigindo ferramentas mais a adas da crítica do valor.167 Segundo eles, sua a rmação de que o alijamento total do trabalho vivo da produção do valor iniciou uma crise insuperável no capitalismo permanece totalmente correta, embora tenha havido um crescimento dos postos de trabalho na China e no sudeste asiático, uma vez que o crescimento econômico dessas regiões se deve a uma imensa acumulação de capital ctício nos mercados nanceiros transnacionais.168 Eles defendem que, desde a década de 1980, já denunciavam, junto com Kurz, que o colapso do capitalismo era inevitável, embora o capital ctício pudesse adiar a crise do neoliberalismo. Porém, avaliam que sua a rmação peremptória de que o capitalismo de cassino encontraria seus limites era de citária, dado que, com a crise de 2008, embora a economia tenha chegado à beira do precipício, acabou sendo resgatada por programas de salvamento econômico dos governos e bancos centrais, com uma política monetária expansiva impulsionada pelos mercados nanceiros.169 Para eles, seu erro de avaliação deve-se ao fato de que sua análise teórica inicial acerca do capital ctício estava errada, pois haviam reduzido sua dinâmica a um amontoamento de dívidas, fazendo com que interpretassem a acumulação dos mercados nanceiros como apenas aparente, ao passo que a acumulação autêntica ocorreria somente a partir do trabalho.170 Para dar conta do capital ctício, passaram a desenvolver mais sua teoria crítica, compreendendo que ele pode ser negociado como mercadoria, a partir de uma duplicação da forma-mercadoria, de modo que, em paralelo à mercadoria original ou à soma real de dinheiro, paira a reivindicação

monetária de quem cedeu o dinheiro pelo prazo de um crédito ou pela duração de uma ação. Segundo Lohho (2014), o capital nanceiro não é a mera distribuição de capital já existente, não é apropriação de riqueza produzida em outro lugar, e não surge do capital funcionante como parte do capital total. A suposição de que cada aumento do capital social total (incluindo o nanceiro) provém de uma exploração efetiva do trabalho não pode ser verdadeira, pois pressupõe um incremento gigantesco na produção de maisvalor global em centenas de trilhões de dólares. Isso não pode ser real quando o valor total dos derivativos nanceiros globais tem chegado a doze vezes o total do PIB do planeta.171 Por isso, para ele, não se pode confundir acumulação de valor com acumulação real de capital, nem a riqueza capitalista com a riqueza material-sensível. O capital nunca emerge da produção material enquanto tal. Antes, o capital não é outra coisa senão o movimento incessante da transformação do dinheiro em mais dinheiro, e essa relação rei cada do m-em-si é, por sua vez, somente a expressão do fato de as pessoas entrarem em relação umas com as outras (…).172

Se compreendermos o capital como relação social,173 não cará restrito à produção de bens, de maneira que os títulos nanceiros são mais uma abstração que representa capital, e, por isso, podem valorizar o valor. O capital monetário, como se sabe, pode ser vendido em uma variedade de formas. A forma desenvolvida representa a relação social que se origina quando o dinheiro nas mãos dos capitalistas monetários é trocado por uma mercadoria do mercado de capitais, isto é, uma obrigação juridicamente estabelecida que se tornou negociável por si mesma. (…) No capital industrial, o capital total existente inicialmente na forma da mercadoria geral divide-se em uma parte de capital variável e uma parte constante, onde a primeira é trocada pela mercadoria especial força de trabalho e a segunda por matérias-primas e máquinas. Somente com a venda das novas mercadorias particulares produzidas com a ajuda desses ingredientes, e com a reconversão do capital na mercadoria geral dinheiro, o capital industrial completou seu movimento e atingiu seu objetivo. E também o capital comercial,

na sua busca de lucro, põe-se provisoriamente na pele de mercadorias particulares. Essas transformações, indispensáveis para o processo de valorização, de maneira alguma abolem o estatuto privilegiado do dinheiro enquanto alfa e ômega da produção capitalista, somente o con rmam. Somente com a reconversão na mercadoria geral pode-se distinguir se o capital inicial tem funcionado de fato como capital ou se tem fracassado nessa tentativa. A forma dinheiro é a forma real, universal, do capital, o capital-mercadoria (…).174

O capitalismo estrutura-se por essa fantasmagoria, avançando para uma nova fase no m do século XX, quando os títulos nanceiros representam uma evolução da forma-dinheiro. Então, o que a forma-dinheiro tem de especial em relação à forma-mercadoria é que pode valorizar a si mesma. O dinheiro, enquanto expressão autônoma de uma soma de valor (em espécie ou em mercadoria) pode ser transformado em capital, passar de um valor dado para um valor que se valoriza a si próprio. Isso ocorre desde a égide do capitalismo, pois nunca houve desenvolvimento do capital industrial sem o capital nanceiro. Assim, a forma-dinheiro possui o seu valor de uso como dinheiro e também o de funcionar como capital, produz lucro e possibilita extrair do trabalhador ainda mais quantidade de trabalho não pago: mais-valor e maisproduto.175 Na realidade, o dinheiro pode assumir três funções: meio de pagamento, meio de reserva de valor e medida de valor. Porém, ele origina também um novo tipo de mercadoria, de segunda ordem: o título nanceiro, que representa uma relação social, consignada juridicamente no papel (é, novamente, forma jurídica que permite essas relações), capaz de levar o fetichismo ao seu extremo. Nossa análise torna visível essa dimensão: a aparição das mercadorias do mercado de capitais torna o fetiche do capital um fetiche real. Naturalmente o capital não pode se multiplicar por si mesmo, mas tão somente como resultado de uma relação social. Mas a extração de mais-valia através da produção de bens de maneira alguma é a única relação social da qual pode surgir capital. A relação social entre o emissor e o vendedor de uma mercadoria de segunda ordem, nessa sua exclusiva maneira louca, acaba sendo também criadora de capital. Com a proliferação

dessas mercadorias de segunda ordem, o capital criou para si uma fonte de acumulação de capital independente de uma anterior valorização do valor, não só do ponto de vista do capital individual mas também considerada a totalidade social. Assim, o fetiche especí co das mercadorias de segunda ordem torna o fetiche do capital uma força material tangível, com amplas consequências teóricas: a aparição desse novo tipo de mercadorias quebra a coincidência entre a acumulação de valor e a acumulação de capital.176

As operações bancárias de crédito e juros sempre se basearam nesse fenômeno, essa é uma idiossincrasia da nanceirização do capital, que vai ao extremo na especulação do mercado de capitais. Na forma mais elementar do capitalismo nanceiro, um banco empresta um capital que pertence, de fato, a outra pessoa. Os bancos não operam com números mágicos, mas com capital produzido a partir do trabalho. O que acontece é que um indivíduo A deposita uma quantia x no banco, o qual empresta essa quantia x a um indivíduo B, e cobra juros por isso. Quando o indivíduo B pagar os 4x que deve ao banco, este ganhou 3x sem ter produzido nenhuma riqueza material, mas apenas capital, e usando o montante de dinheiro do indivíduo A, que adveio do trabalho assalariado. Assim, o capitalismo nanceiro é, desde sempre, a capacidade do valor para se valorizar a si mesmo, mais de uma vez, a partir do mesmo tempo social de trabalho. Nada no capitalismo tem valor em si, está-se sempre diante de formas abstratas, conceitos matemáticos, ou categorias etéreas que representam capital. Daí, da mesma maneira que temos a forma-mercadoria, a formadinheiro e a forma-valor, podemos ter outra forma abstrata nanceira. Os papéis não precisam corresponder a uma riqueza concreta no mundo, pois o mesmo não é exigido da própria forma-mercadoria no que concerne à sua capacidade de incrementar o valor. Esta não é identi cada com a mercadoria tangível, é uma forma abstrata. A diferença crucial seria a de que a mercadoria nanceira é só a forma mercantil, sem conteúdo concreto. Ações, títulos de dívida ou futuros, como se sabe, nem podem ser comidos nem podem ser usados como meios de transporte, e também não servem para satisfazer qualquer uma das variadas necessidades sensoriais que o consumidor poderia desenvolver. As mercadorias do mercado de capitais, portanto, diferenciam-se

fundamentalmente dos bens e formam uma classe separada de mercadorias, cujo valor de uso encontra-se completamente fora do mundo do material-sensível. Todas as mercadorias do mercado de capitais têm um único valor de uso “metafísico”, genuinamente social: elas prometem ao seu vendedor que o dinheiro utilizado na compra se transformará ele mesmo em dinheiro multiplicado, portanto, em capital.177

A transformação de dinheiro em mercadoria seria mais uma dimensão subordinada ao processo geral de mercantilização capitalista. Para Loho (2014), é preciso partir do movimento de valorização do valor e do capital funcionante para poder explicar esse processo de mercantilização do próprio capital. Sugere a retomada do método de Marx, que não alcançou diretamente a relação social que se origina com a aparição de mercadorias do mercado de capitais, detendo-se na análise do capital portador de juros, vendido enquanto mercadoria sem confrontar outra mercadoria. Segundo Ernst Loho (2014), o caminho correto de intelecção (mais el ao método marxiano) deve dar a largada desde a forma-mercadoria, a partir da qual se poderá explicar o mercado de capitais. O capital monetário também pode se inscrever na forma-mercadoria, mas cria uma mercadoria que só existe no momento de sua venda. Ela não é produzida primeiro e alienada depois, seu tempo de vida é marcado pelas remessas. O dinheiro que um capitalista procura vender existe antes da venda, mas apenas como simples dinheiro. No momento preciso da venda é que esse dinheiro se desdobra na forma-mercadoria. O mercado de capitais é, ao mesmo tempo, o lugar de produção, comercialização e realização das mercadorias que negocia, tudo simultaneamente. Porém, não só o nascimento da mercadoria “capital monetário” coincide com o momento da circulação, mas também a sua morte. Tanto para o comprador quanto para o vendedor, a soma de dinheiro perde, com o m da venda, seu valor de uso enquanto capital. A vida dessa mercadoria expira, portanto, logo que na sua realização encontra seu encerramento e se completa a restituição do capital monetário do comprador ao vendedor, prevista no acordo entre eles.178

Outra grande particularidade dessa espécie ímpar de mercadoria é que ocorre uma duplicação do valor de uso a partir de uma mesma soma de dinheiro por meio de uma condição juridicamente estabelecida, que trans gura em mercadoria o capital monetário potencial. Por meio da alienação do capital monetário, origina-se, nas mãos do vendedor desse capital, uma duplicata do capital monetário alienado. Segundo Loho (2014), Marx, ao tratar dos juros, já destacava que a mercadoria capital monetário é fundamentalmente diferente das mercadorias negociadas nos mercados de bens e segue suas próprias leis de movimento, apontando que uma mercadoria de capital fornece uma relação social estruturada completamente diferente da proporcionada pelos bens, porque, nela, o valor toma uma forma muito peculiar, que se diferencia fundamentalmente de todas as outras mercadorias: por um lado, é transferido ao comprador, mas, por outro lado, também é usado pelo próprio vendedor, que objetiva transformar dinheiro em mais dinheiro. A venda de capital monetário, consequência de uma relação jurídica, é mais abstrata que qualquer relação de troca, pois ele é a única mercadoria que pode ser alienada sem relação ou equivalência com qualquer outra mercadoria. Mas, então, como surge essa nova mercadoria? Ela é a duplicata de uma mercadoria original. Ocorre que há dois tipos de duplicatas: aquela que está na tradicional teoria dos títulos de crédito; e essa nova, a que Loho denomina “mercadoria de segunda ordem”. Antes de tudo, essa secção do universo das mercadorias só existe pela transformação do capital monetário em uma mercadoria. A mercadoria que ali se negocia representa portanto um tipo derivado de mercadoria: uma mercadoria de segunda ordem. Enquanto nos mercados de bens transborda uma variedade multicolor de valores de uso diferentes, neste mercado reina uma monotonia absoluta. Nos mercados de dinheiro e de capital movem-se exclusivamente mercadorias com um único valor de uso: sua aquisição promete aos compradores a transformação do dinheiro em mais dinheiro.179

De outro viés, os títulos estatais ou as ações seriam uma outra espécie de “duplicata”,180 com a qual se origina um capital independente, que segue um movimento próprio, representando capital adicional na totalidade

capitalista. Mercadorias de segunda ordem também são um espelhamento do bem que representam, mas adquirem autonomia. Enquanto a duplicata original é apenas uma garantia formal de um crédito relativo a uma mercadoria, ações se tornam outra mercadoria. Se é emitida uma duplicata pela venda de uma fazenda, é esta que está abstraída na forma mercantil para ser negociada e preci cada. Já a ação de uma empresa deriva em forma mercantil ela mesma, enquanto a empresa permanece um bem real também abstraído na forma-mercadoria. Teríamos o esquema fazenda > formamercadoria, sendo a duplicata apenas uma representação cartular do dinheiro a receber pela venda da fazenda. De outro lado, teríamos o esquema empresa > forma-mercadoria1 ↔ ação da empresa > forma-mercadoria2, autônomas para serem negociadas. Nesse caso, tanto o capital original quanto a sua imagem espelhada participam da circulação social geral de mercadorias e capital. Enquanto compra de uma promessa de pagamento negociável, a duplicação produzida na venda da mercadoria capital monetário ganha uma qualidade nova: o capital inicial existe agora não somente duplicado, mas duplicado no interior da economia capitalista. Isso tem, por sua vez, consequências de longo alcance para a teoria da acumulação. Considerada a totalidade capitalista, as promessas de pagamento que se encontram em circulação enquanto mercadorias do mercado de capitais representam capital tão plenamente válido quando o capital funcionante. A acumulação real de valor na produção de bens não é, portanto, a única fonte concebível que possa alimentar a acumulação social total de capital. A multiplicação de duplicatas de capital na forma de mercadorias do mercado de capitais pode ser considerada também como portadora do processo da acumulação capitalista global. (…) Em termos lógicos, enquanto forma desenvolvida da duplicata de capital, a mercadoria do mercado de capitais é o resultado de um processo de mercantilização em duas etapas. Em primeiro lugar, o dinheiro, na sua função de capital monetário, torna-se ele próprio uma mercadoria; em um segundo passo, as duplicatas de capital originadas na venda do capital monetário transformam-se também em mercadoria.181

Deve-se entender que todos esses fenômenos se dão pelas abstrações formais e não pela vontade ou ação dos sujeitos. Neste século XXI, os títulos nanceiros não assumiram a forma da mercadoria porque representam relações entre indivíduos, mas convertem-se numa nova forma abstrata capaz de reproduzir o valor, por um movimento contínuo deste. As duplicatas que circulam no mercado de capitais, negociáveis como mercadorias, são, porém, ilusórias, e seus valores podem subir ou descer a qualquer momento, uma vez que não se vinculam à criação de riqueza real. São meros títulos, cuja venda implica o dinheiro, enquanto mercadoria geral, e a mercadoria particular que duplicaram, dotada de valor de uso. Como são vendidas sem precisarem se defrontar com uma mercadoria concreta, são projetadas como capital potencial no futuro, totalmente ctício. É o apogeu da valorização fetichista do valor: o capitalismo de cassino. Ocorre que esse valor desdobrado no mercado de capitais não surge do nada. Como visto, não se trata meramente de circulação de um valor já existente, mas da criação de valor. Isso só é possível porque esses títulos (que só têm valor de troca) duplicam a forma-mercadoria a partir de uma mercadoria original dotada de valor de uso. A qualquer duplicata, subjaz uma mercadoria que representa trabalho passado. No caso das mercadorias de segunda ordem, duplicatas sui generis, o trabalho cria valor na produção da mercadoria original, e a duplicação da forma-mercadoria referente àquela desdobra o valor de troca, aumentando-o. Amiúde, ainda é o trabalho que está produzindo valor, de uma forma muito diferida, numa antecipação do futuro. Imaginemos que o trabalho valoriza o valor, produzindo mercadorias numa empresa qualquer, como tênis, refrigerantes ou celulares, ao passo que toda a infraestrutura, bens e maquinário dessa empresa também representam trabalho passado. Quando se negociam ações dessa empresa no mercado de capitais, estas adquirem autonomia numa nova forma-mercadoria, a qual nasce e desaparece no momento de transação. O trabalho, no capitalismo nanceiro, torna-se uma “variável dependente do capital ctício”.182 As ações são compradas e vendidas, mas não se confundem com o patrimônio da empresa, suas instalações, ou com seus produtos – todas estas mercadorias, dotadas de valor de uso, continuam podendo ser alienadas, o

que nada tem a ver com a compra e venda de ações da empresa nas bolsas de valores. Todavia, a existência dessas ações é possível porque duplicam a mercadoria “empresa”, cujo valor se alicerça no trabalho, vivo ou morto. É como se o trabalho abstrato gerasse mais-valor, e este pudesse ser exaurido, com a duplicação da forma-mercadoria, para um segundo momento de valorização do valor. Desta feita, seria mais-valor sobre o mais-valor: trabalho → mais-valor = forma-mercadoria1 >>> forma-mercadoria2 → mais-valor. Porém, o absurdo do fenômeno do mercado de capitais é que ele não gera lucro a partir do trabalho morto, de um trabalho passado, mas sim de uma expectativa futura de multiplicação do valor, de modo que o esquema seria trabalho passado → mais-valor = forma-mercadoria1 >>> forma-mercadoria2 → projeção futura de valorização → mais-mais-valor. Isso possibilita que, até mesmo um capital totalmente ctício, não calcado em trabalho passado, como as “criptomoedas”, possa gerar valor através de especulações sobre um futuro aumento de seus preços. Por isso, o capitalismo de cassino não se baseia em nada além de “achismos” e apostas. É esse estranho mecanismo que constitui a base da acumulação global de capital no capitalismo contemporâneo. Enquanto a massa de reivindicações monetárias negociáveis como mercadorias aumenta cada vez mais rapidamente, o sistema de riqueza abstrata como um todo permanece em um curso de expansão. No entanto, o predomínio da acumulação na indústria nanceira não dissocia completamente o processo de acumulação da economia real. À sua maneira, também a formação de capital na indústria nanceira permanece sempre relacionada com variáveis da economia real. Ela não pressupõe qualquer exploração que já tenha ocorrido, isto é, produção passada de mais-valia, mas capitaliza expectativas de lucro no futuro. Em outras palavras, representa a acumulação de valor a ser produzido no futuro. Como tal, no entanto, depende de expectativas e esperanças de futuros aumentos de lucro nos mercados de bens ou, em todo o caso, em determinados mercados de bens.183

Ou seja, se no capital produtivo o valor advém do tempo passado, devido ao tempo de trabalho socialmente necessário para gerar mais-valor; no capital nanceiro, o valor advém do tempo futuro.184 O processo de valorização do valor expande-se de tal forma que converte todo o tempo em

valor, tanto o tempo passado quanto o tempo futuro. Por isso, para a Crítica do valor, o capitalismo de cassino ainda está ncado no trabalho abstrato, mas muito diminutamente. Cria um paradoxo, no qual torna mais exíguos os postos de trabalho, mas não pode abrir mão da categoria trabalho por completo, mesmo nas suas modalidades nanceira e especulativa. Daí que a grande questão é a compreensão do trabalho abstrato e da centralidade do valor para a adequada compreensão do modo de produção. O mais perverso, porém, é que, embora, em boa medida, o capital ctício continue se reproduzindo a partir do trabalho, ele precisa de uma quantidade muito ín ma de trabalho vivo para converter em trabalho morto, a partir do qual, é capaz de produzir valor in nitamente, usando apenas a projeção de valor sobre o tempo futuro. Nesse sentido, o trabalho perde sim o sentido que tinha no liberalismo e no fordismo, já que o valor pode valorizar a si próprio, alcançando o seu potencial automático fetichista num sentido absoluto, prescindindo realmente de seres humanos (trabalho vivo). Essa predominância do capital nanceiro, ao lado de uma inserção tecnológica sem precedentes na produção, com a microeletrônica, a que a Krisis (2019) chama de “Terceira Revolução Industrial”, enfraqueceu a mercadoria “força de trabalho” – o colapso do trabalho é maximizado pela inserção da tecnologia no processo de produção. Tudo isso, obviamente, teve um impacto nefasto na organização da esquerda, pois os sindicatos perderam totalmente sua força de negociação. Conquanto, a esquerda, como um todo (inclusive, os partidos e movimentos sociais) está equivocada ao pensar que a degradação do trabalho e o enfraquecimento dos Estados nacionais (de bem-estar social) devem-se à vitória de um projeto neoliberal executado por frações do grande capital, grupos de poder e pela elite global185 – o keynesianismo ruiu porque ele só era viável no regime de acumulação fordista. Foi a viragem de acumulação de valor que minguou o trabalho e aniquilou o Estado social, trazendo consigo, também, por exemplo, a destruição paulatina dos direitos trabalhistas e previdenciários (típicos do fordismo). Acontece que o próprio neoliberalismo, a despeito de seu sucesso provisório em adiar o colapso da valorização do capital, por meio de suas desregulamentações, austeridades, precarizações e desmontes, entrou em crise em 2008 nos países de capitalismo central e vem mostrando sua falência, em efeito cascata, agora no

capital periférico. A pandemia de que não se sabe onde vai parar.

covid-19

veio para acentuar esse processo,

Tudo é uma questão de modo produtivo, de como o valor se valoriza, e isso é acintoso em si; não se trata de um mero problema de “elites neoliberais” perversas dominando o mundo, ou voluntária distribuição desigual, que pode ser solucionada pela esquerda no poder. É por isso que Wertkritik revisita Marx, a m de radicalizar a compreensão do Livro I d’O Capital, sustentando que a exploração não se dá apenas pela apropriação do mais-valor pela classe burguesa (como um fenômeno praticamente sociológico). Em verdade, a Crítica do Valor parece sustentar que compreendeu Marx muito melhor do que todos os marxismos até hoje. Tudo está centrado no processo de valorização do valor. O problema do capitalismo é o capital, e não sua distribuição desigual. De tal modo, a transferência dos meios de produção para o proletariado não seria idônea a eliminar a monstruosidade da exploração; seria necessário destruir o valor. A conversão do fordismo em neoliberalismo foi profundamente marcada por uma mudança na ideologia do trabalho: enquanto, naquele, era identi cado com a monotonia do trabalho em massa, neste, fomenta uma “ética” do desempenho individual, como se o Estado social do fordismo sustentasse “preguiçosos” que, no neoliberalismo, não teriam mais lugar.186 O aumento do abismo entre ricos e pobres, na ideologia neoliberal é, assim, resultante da “preguiça” e da falta de “espírito empreendedor” dos pobres, reputados como “vagabundos”, como se o desemprego descontrolado em massa fosse “falta de vontade individual”.187 Essa ideologia chega, agora, com força nos países de capitalismo dependente, aniquilando as parcas estratégias keynesianas que puderam implementar precariamente. É claro que o caráter manifestamente circular dessa gura ideológica, segundo a qual o rendimento prova o quanto alguém conseguiu, ao mesmo tempo em que isto só deveria ser o resultado desse desempenho determinado, não perturbou evidentemente o açoite do mercado neoliberal. A ideologia do neoliberalismo é, pois, basicamente um sistema fechado e enlouquecido que reinterpreta as contradições internas do sistema capitalista como relações individuais de vontade.188

O trabalho perdeu relevância enquanto conteúdo material da produção de valor, mas foi substituído por um contorno ideológico de desempenho individual, numa bravata de que aquele que trabalha por sua conta e em nome de si mesmo, sem depender de ninguém (principalmente do Estado), é um verdadeiro empreendedor, pode se tornar um investidor e, assim, alcançar o merecido sucesso (esse é o cerne ideológico do fenômeno estrutural da “uberização”). Em uma observação mais atenta, a ideologia neoliberal do desempenho revela muito sobre a relação entre trabalho e capital na era do capital ctício. Uma vez que o trabalho aqui não constitui mais o motor da acumulação de capital, mas se tornou, por sua vez, a variável dependente do capital ctício, o conteúdo material praticamente já não desempenha qualquer papel. Trata-se apenas do simples desempenho inteiramente sem conteúdo, que também é medido pelo resultado monetário puro. O estúpido orgulho do produtor foi desse modo substituído pelo orgulho estúpido de uma conta bancária gorda e símbolos idiotas de status de sucesso ou de sucesso simulado. O pré-requisito para isso, no entanto, era que uma parte considerável da população, apesar de todas as imposições e ajustamentos que sofriam, ainda participasse da dinâmica do capital ctício e pudesse convencer a si mesma de que estaria entre os ganhadores no futuro.189

É nesse sentido que Roswitha Scholz denuncia, como veremos adiante, que as propostas identitaristas sobre mudanças individuais na maneira de “performar” o gênero se ajustam à lógica neoliberal de “desempenho individual”, através de análises que, como toda a ideologia do neoliberalismo, parecem também “enlouquecidas”, porque “reinterpretam as contradições” do patriarcado capitalista, e das relações de gênero, “como relações individuais de vontade”. Não necessariamente essa é a assertiva das autoras nas quais se fundam os novos movimentos sociais feministas e LGBTI+, mas sua simpli cação grosseira em atitudes voluntaristas acaba servindo como uma luva ao desenho neoliberal, e desconectando a luta contra o patriarcado de uma perspectiva coletiva e de superação do capitalismo. No entanto, segundo os diagnósticos da Crítica do Valor, o próprio neoliberalismo está em frangalhos, desde que a crise de 2008 revelou a total dependência da sociedade do capital ctício, e suas consequentes

vulnerabilidades, pois um valor que depende de especulações sobre o futuro, obviamente, é frágil. Diante desse quadro, seu intento é evidenciar que a luta das esquerdas contra uma suposta elite neoliberal, para o resgaste do Estado social, como panaceia de salvação da sociedade e do “trabalho” está equivocada. No fundo, estão aprisionados a óticas liberais e não conseguem romper com os parâmetros ideológicos e materiais que sobredeterminam os horrores da sociedade das mercadorias falocentrada. (…) a maior di culdade da emancipação social consiste justamente em romper com a formatação capitalista dos próprios sujeitos e superar o modo de vida da sociedade da mercadoria no qual eles estão xados. A crítica do trabalho continua central, porque se dirige tanto contra a forma de fetiche principal da sociedade produtora de mercadorias, quanto contra as identidades nela baseadas; não só contra a identidade do trabalho enquanto tal, mas também contra a identidade do “homem trabalhador” e “de alto desempenho” branco-ocidental, cujo mundo é remodelado em conformidade com o seu gosto e ao preço da sua destruição, bem como contra as identidades nacionais sempre associadas à fantasia do “trabalho honesto”.190

Roswitha Scholz, abrindo um novo ramo nesse tronco da crítica do valor, revela o quanto as mulheres estão se debatendo nessas di culdades de criar agendas de luta além dos horizontes do valor. Acabar com o capitalismo é abrir mão de toda a sua estrutura produtiva. Sem isso, para a Wertkritik, não se destrói o capital e, para Scholz, não se supera o patriarcado. A crítica da sociedade das mercadorias, e, em especial, Roswitha Scholz vêm trazer uma outra perspectiva para uma esquerda também combalida e errante, ainda mais agora, neste momento histórico, em que até mesmo o neoliberalismo, que a esquerda acreditava ser a pior expressão do capitalismo, está degringolando e dando espaço a algo pior (ao menos, na periferia). Para a Krisis, no mundo todo, estamos diante de um cenário propício ao ressurgimento regressivo de uma “identidade do trabalho honesto” com “identidades coletivas nacionalistas”, porque “trabalho e nação formam um par de certezas aparentemente concretas, às quais os sujeitos da mercadoria sempre se referem de forma identitária em tempos de crise para se protegerem contra as ameaças da dinâmica capitalista”.191 Essas abstrações

têm o potencial de se converter em fantasias e em visões paranoicas, que podem alimentar o retorno de regimes totalitários abertamente genocidas. E é diante desta ameaça que todas as esquerdas devem rever suas análises de conjuntura, a partir de uma compreensão estrutural da sociedade fetichista. Sem a compreensão do valor, não é possível construir o enfrentamento. Particularmente, os movimentos antimachistas precisam urgentemente de um novo olhar, pois, diante, desse “monstro” que ameaça novamente “emergir da lagoa”, não há possibilidade de resistência tão-somente por meio de uma atitude “lacradora”. 2.2 Crítica do valor Pode-se dizer que o pioneiro a elaborar uma revisão do trabalho abstrato e da categoria do valor, em Marx, foi Moishe Postone, nos EUA, em 1978. Na Alemanha, a Wertkritik, na década de 1980, também desenvolvia suas críticas do valor em paralelo à produção de Postone, cujo trabalho veio a ser debatido posteriormente e incorporado à chamada nova crítica do valor. Portanto, trataremos as abordagens de Professor de Chicago e dos pensadores de Nuremberg como praticamente concomitantes, já que a crítica do valor alemã se desenvolveu na década de 1980. É sem dúvida mérito de Moishe Postone ter sido ele o primeiro a romper com a ontologia do trabalho burguesa, o conceito transhistórico de trabalho e a positivação do trabalho abstracto pelo marxismo tradicional, e a ter dado início à sua suplantação; e tal aconteceu, em parte, muito antes da crítica do trabalho, tal como ela foi sendo desenvolvida desde os nais dos anos oitenta pelos princípios da crítica do valor em língua alemã. A elaboração teórica de Postone, de argumentação semelhante, remonta aos anos setenta, foi objecto de uma elaboração ulterior nos anos oitenta, e desde o início dos anos noventa foi apresentada sob uma forma mais avançada (na tradução alemã da obra principal até à data apenas em 2003). Na Alemanha, a crítica do valor e do

trabalho surgiu em grande parte independente de qualquer recepção de Postone; o que constitui um indicador de que o ulterior desenvolvimento e superação da teoria de Marx sobre a crítica radical do trabalho de certo modo pairou no ar, como resposta ao debate burguês sem conceitos categoriais em torno da “crise da sociedade do trabalho”, que já

tinha sido teoricamente inaugurado no m dos anos cinquenta por Hannah Arendt, e tinha ganho uma actualidade e explosividade inesperadas com o desenrolar da crise mundial da terceira revolução industrial (crescente desemprego estrutural de massas).192

No texto intitulado “Necessidade, Tempo e Trabalho”, Postone inaugura a problematização sobre os equívocos do marxismo tradicional, sempre ocupado dos problemas da distribuição desigual de capital, sem tratar da estrutura de sua reprodução: Separa-se, por um lado, a dominação de classe e a propriedade privada, como especí cas do capitalismo e, por outro lado, o trabalho industrial como não-especí co e independente do capitalismo. Uma vez aceita esta estrutura, contudo, segue-se que o modo industrial de produção – aquele baseado no trabalho proletário – é visto como historicamente nal. Isto leva à noção de socialismo como a continuação linear do modo industrial de produção, o qual foi originado pelo capitalismo; o socialismo como um novo modo de administração política e econômica do mesmo modo de produção. A esta estrutura teórica básica denomino Marxismo tradicional. É certo que existiram visões divergentes ou opostas extremamente importantes, no interior desta interpretação: por exemplo, determinismo versus tentativas de considerar a subjetividade social e a luta de classes como aspectos integrais da história do capitalismo; Comunistas de conselho versus Comunistas de partido; teorias que tentaram, com diversas roupagens, sintetizar Marxismo e psicanálise, ou desenvolver uma teoria crítica da vida cotidiana. Contudo, na medida em que se orientaram segundo os pressupostos básicos quanto à essência do capitalismo e do socialismo acima esboçados, elas permaneceram presas à estrutura do Marxismo tradicional que, em última análise, preocupa-se com um novo modo de distribuição social e com a forma de organização e regulação de um modo industrial de produção apoiado na classe operária. Este modo industrial, por sua vez, não é posto em questão.193

Como o capitalismo se estrutura num livre-mercado, possibilitando o desenvolvimento do capitalismo industrial, suas condições intrínsecas de acumulação, competição e crises originaram técnicas de planejamento

centralizado, concentração urbana de proletariado industrial, centralização e concentração dos meios de produção, separação entre direito formal à posse e posse real etc. Tais técnicas, típicas da produção industrial, criaram um grau de riqueza inimaginável até então, distribuída de forma brutalmente desigual. Diante desse quadro, o marxismo a que Postone chama de “tradicional” vislumbrou a possibilidade de um novo modo de distribuição, justo e conscientemente regulado. Por isso, embora os marxistas pareçam ter uma teoria da produção social, o que realmente fazem é uma crítica histórica do modo de distribuição. “É claro que um papel muito importante é atribuído à produção, mas o desenvolvimento da produção industrial em escala ampla é considerado essencialmente como a mediação histórica entre o modo de distribuição capitalista e a possibilidade de um outro modo.” 194 Esta abordagem orienta a interpretação de todas as categoriaschave Marxianas. A interpretação da categoria de valor, por exemplo, geralmente associada a esta visão, é a de uma categoria de distribuição – o regulador “automático” da distribuição social de bens e serviços, capital e trabalho. Da mesma forma, a contradição Marxiana entre as forças e as relações de produção são também interpretadas primordialmente quanto ao aspecto da distribuição de riqueza social, onde as “forças produtivas” são equacionadas com o modo industrial de produção e as “relações de produção” capitalistas são apreendidas como apropriação privada, mediada socialmente pelo automatismo do mercado “auto-regulado”. Vê-se a contradição como ocorrendo entre uma capacidade produtiva que, potencialmente, poderia satisfazer as necessidades de consumo de todos os membros da sociedade e relações sócio-econômicas que impedem a efetivação deste potencial. Deve notar-se que, nesta teoria, o processo industrial de produção, uma vez tendo emergido, passa a assumir uma existência histórica independente. Ele é visto como intrinsecamente independente da “economia capitalista” que, por sua vez, é apresentada como um conjunto de fatores extrínsecos: propriedade privada e condições exógenas de valorização do capital dentro da economia de mercado. O elemento historicamente dinâmico é visto como incrustado na “esfera econômica”, entendida estreitamente, enquanto o modo de produção é considerado como externo a ou em contradição com aquela esfera. 195

Dessa forma, em Moishe Postone (1978), para que o marxismo seja retomado sem os equívocos tradicionais de se centrar no aspecto da distribuição, precisa ser relido. Essa falha, segundo ele, não pode ser atribuída a Marx, mas sim à sua má interpretação. Revisitando os Grundrisse, Postone assevera que Marx sabia da centralidade do trabalho quando a rmava que todo o modo de produção capitalista está fundamentado no trabalho assalariado. Segundo ele, Marx já considerava o valor como centro da produção burguesa e sabia que as relações de valor ocorrem na produção em si, e não apenas na circulação e na distribuição.196 A partir daí, propõe uma nova abordagem marxista, que abarque uma teoria social e econômica, ao mesmo tempo, levando-se em consideração que o valor é o alicerce de toda a sociedade burguesa, bem como do processo produtivo: A reinterpretação da teoria crítica de Marx que apresento aqui é uma tentativa de enfrentar o desa o posto por diversos críticos da sociedade moderna, mediante o desenvolvimento de uma teoria crítica do capitalismo, mais ampla e profunda, uma crítica capaz de incorporar suas críticas. Uma abordagem com esta pretensão, ao invés de considerar vários processos – tais como o crescimento do hiato entre a cultura “objetiva” e a “subjetiva”, ou a crescente razão instrumental da vida moderna – como resultados necessários e irreversíveis de um desenvolvimento predestinado, deverá permitir fundamentar socialmente tais processos com referência a formas de prática social historicamente determinadas e captar sua trajetória progressiva como sendo não-linear e transformável. Esta reinterpretação de Marx também acarreta, conforme já observado, uma teoria sócio-histórica da subjetividade, com base na qual se poderia desenvolver uma poderosa abordagem para a problemática weberiana da modernidade e da racionalização. Ainda que con ra importância às formas de pensar que foram cruciais para o desenvolvimento do capitalismo e aos recorrentes processos de diferenciação e de racionalização, a abordagem aqui apresentada pode dirigir-se a este pensamento e àqueles processos, em termos das formas de vida social expressas pelas categorias marxianas. Finalmente, veremos também que a teoria de Marx sobre a constituição das estruturas sociais e da dinâmica histórica da sociedade moderna, mediante formas de práticas historicamente determinadas, pode ser interpretada como uma teoria so sticada do tipo

recentemente proposto por Pierre Bourdieu – isto é, como uma teoria da relação, mutuamente constituinte, entre a estrutura social e as formas quotidianas de prática e de pensamento.197

Por isso, para Roswitha Scholz, Postone é um clássico da crítica do valor fundamental, mesmo que nunca tenha usado essa expressão.198 Na proposta de Postone (1978), valor e trabalho são o fundamento do mais-valor e, consequentemente, do capital, de modo que o trabalho não pode ser considerado ontológico – equívoco do marxismo tradicional. Segundo Scholz, assim, Postone considera que valor e trabalho são importantes apenas para a socialização capitalista, de modo que a mercadoria é o ponto de partida de análise do capital como forma social (dado que valor e trabalho são raízes do mais-valor), objetiva e subjetiva e, por isso, é fundamento tanto da sua visão econômica quanto de sua visão sociológica. Entretanto, Roswitha faz questão de advertir que as formulações de Moishe não podem ser completamente identi cadas com as perspectivas dela ou de Robert Kurz, embora, obviamente, ambos tenham bebido também nessa fonte para desenvolver suas teses. Para ela, há um equívoco em Postone, corrigido pelas análises de Kurz, quando este critica o fato de muitos marxismos centrarem sua análise do capital na forma simples da mercadoria, o que careceria de veracidade histórica. O maior problema, porém, seria a desconsideração do capital global, pois a ideia de mercadoria tomada por Postone parte da mercadoria individual, relacionada ao capital individual. Nesse cenário, as análises das relações sujeito-objeto, para Kurz, reproduziriam o fetichismo, asseverando que o capital não pode ser interpretado como resultante de relações subjetivas.199 (…) enquanto Kurz insiste em ler “O Capital” como um todo e só depois observar a forma da mercadoria, situação em que o terceiro volume de “O Capital” assume importância, justamente para o processo das categorias reais de um colapso/decadência do capitalismo hoje observável também empiricamente, Postone agarra-se às primeiras 150 páginas de “O Capital” e desenvolve a partir daí o curso do capitalismo, sem consequências em termos de teoria da crise. Postone recorre basicamente à forma da mercadoria, Kurz à forma do capital. Ao mesmo tempo, Postone defende implicitamente um ponto de vista que tende a ser

ideologicamente complacente com a classe média, não em último lugar porque coloca em primeiro plano sobretudo a ecologia, enquanto Kurz, bem consciente da questão ecológica, desmascara simultaneamente os interesses de classe média como ideologia; em Postone, no fundo, existe um “limite interno” apenas no plano da ecologia, mas não no da economia. Posto isto, Postone e Kurz (pelo menos no seu último livro “Dinheiro sem Valor”) movem-se ambos no plano do capital como processo total. 200

Para ela, os problemas centrais de Postone seriam seu aprisionamento a um “individualismo metodológico” e o fato de que deriva o capital, enquanto sujeito-objeto da história, da forma-mercadoria. O principal diferencial de Kurz, segundo Roswitha (2014), é que vê, nas formulações de Marx, primeiro o capital global, e depois as construções sobre a formamercadoria. Assim, as categorias obtidas no início da exposição de Marx, no Livro I d’O Capital, não desaparecem a seguir, mas são mantidas no posterior desenvolvimento e são evidenciadas no seu verdadeiro contexto de mediação, não como categorias da forma da mercadoria simples, mas sim da relação de capital. Segundo Scholz, Kurz opera com todos os volumes d’O Capital, e Postone, apenas com o Livro I, o que, certamente é controverso, em ambos os casos.201 O valor é a objectividade social da mercadoria, também da mercadoria individual, da mercadoria antes e independentemente da relação de troca secundária, na qual, sob condições capitalistas, o fenómeno do valor de troca na forma equivalente geral do dinheiro é idêntico à realização da mais-valia, isto é, ao regresso do capital à sua forma de dinheiro quantitativamente acrescida. O valor e a mais-valia, porém, já são determinações da essência da mercadoria como objectividade do valor antes desta “realização” (na medida em que a mercadoria está desde sempre determinada como a forma especí ca da riqueza das sociedades capitalistas), realidade que em nada se altera quando essa realização não ocorre – o carácter de valor da mercadoria, nesse caso, manifesta-se em que seja escusadamente tratada como lixo em vez de consumida, o que só é possível precisamente pelo facto de a sua essência social consistir a priori na objectividade do valor, e não na objectividade da necessidade. A mercadoria individual é objectividade do valor, não no sentido quantitativo contabilizável

isoladamente, que – como se pretende demonstrar adiante – apenas é determinado na média social, mas em sentido qualitativo, como coisa social individual, como coisa de valor. Esta não é uma determinação jurídica, política ou de outra dominação externa (a relação jurídica, interpretada erroneamente como relação de vontades apenas subjectivas, no entendimento do marxismo tradicional, só pode aparecer reduzidamente como exterior), mas a determinação da essência interna da própria mercadoria, quer chegue à troca ou não. Precisamente por isso a objectividade da mercadoria é o fantasmático, o oculto, o que não é imediatamente visível no corpo da mercadoria, como Marx deixa claro logo no início da sua análise da forma do valor.202

Não que Kurz não ponha em foco a forma-mercadoria em suas análises; a diferença seria a ordem de leitura da obra máxima de Karl Marx: começar pela mercadoria (Postone) ou pelo capital global (Kurz). Como O capital é uma obra metodologicamente complexa, a ordem de leitura mudaria, segundo Roswitha (2014), a interpretação e as conclusões do leitor. O ponto decisivo consiste em saber se a abstracção trabalho ou abstracção real pode ser pensada consequentemente como lógica da produção, ou se permanece reduzida à circulação. A isso equivale a questão da prioridade do trabalho abstracto. Será que ele constitui o apriori da reprodução capitalista como totalidade, sendo assim a sua validade estabelecida já no próprio processo de produção “concreto”, o será que se trata apenas de uma “abstracção da troca” secundária? O marxismo tradicional na maior parte dos casos admitiu implicitamente que este último era o caso, uma vez que apenas era capaz de pensar a forma capitalista da produção industrial de modo muito super cial e a lógica da abstracção como força destrutiva totalitária ainda não estava historicamente amadurecida; (…) O trabalho abstracto como apriori social ou apenas como “abstracção da troca” e, com isso, produto secundário da circulação, sendo que esta alternativa é idêntica àquela que inquire se o valor das mercadorias é “produzido” no processo da sua produção, ou se “surge” apenas na esfera da circulação. É que o trabalho abstracto como substância do capital a nal não é outra coisa senão a “substância formadora do valor”, ou seja, aquilo que constitui o valor. À primeira vista, o problema parece desconcertante. Porque é

evidente que o valor é produzido pelo trabalho, ou não será assim? 203

Robert Kurz, ao se debruçar sobre a obra de Postone, inicia suas críticas com a a rmação de que Postone não foi muito claro numa perspectiva de desontologização historicizada do trabalho, pois teria considerado a possibilidade de outras formas de trabalho em sociedades não capitalistas, o que seria uma perspectiva trans-histórica – e equivocada – da compreensão da categoria “trabalho”. E Kurz atribui essa suposta “confusão” de Postone, que “duplica os conceitos de necessidade e trabalho”, ao fato de o próprio Marx não ter sido claro nessa diferenciação.204 Claro que essas divergências no interior da própria crítica constituem terreno pantanoso, no qual somente se adentrará, ora, naquilo que for relevante para detalhar o valor-clivagem de Scholz. O que afasta Roswitha de Postone é, a bem dizer, um debate epistemológico sobre o método de compreensão de Marx que, ao m, não altera as conclusões fundamentais a que chegam – tanto é que a revista Exit! (como a Krisis) também tem como subtítulo “crítica à sociedade das mercadorias”, e Roswitha Scholz e Robert Kurz fazem críticas semelhantes às de Postone à ontologização do trabalho. Dadas as contendas entre os grupos Krisis e Exit!, máximos expoentes da crítica do valor, optamos por partir, neste momento, de suas convergências teóricas, para, então, no capítulo seguinte, delinearmos as rupturas que irão caracterizar o grupo de Roswitha Scholz, inclusive, como crítico a algumas posições teóricas de seus desafetos que remanesceram na Krisis. Pode haver um exagero nas críticas de Scholz e Kurz a Postone,205 mas o que é relevante nesse ponto é a substituição da centralidade da formamercadoria pela valorização do valor, para que se possa compreender todas as modalidades de capitalismo, seja produtivo, nanceiro ou de cassino. Fato é que o modo de produção capitalista se possibilita através da sobreposição de uma plêiade de abstrações, encadeadas e dialeticamente relacionadas (como forma-mercadoria, forma-dinheiro, forma-valor, trabalho abstrato, lucro, valor de uso e valor de troca), e nenhuma delas pode ser o ponto de partida da compreensão do capitalismo, a não ser o próprio capital em si (necessariamente global), caracterizado sempre por um processo permanente da valorização do valor.

Em verdade, no frigir dos ovos, a nova crítica do valor acaba considerando que existem “dois Marx” (um que ontologiza o trabalho e outro que deve ser compreendido através da forma-valor), e adere a esse “segundo Marx”. É desta leitura que ora também partimos, para a rmar que o patriarcado capitalista está estruturado pela dissociação do valor, e que as formas sociais, como a política e a jurídica, derivam da forma-valor masculina (excluindo-se a dissociação-valor), e não da forma mercantil. A “crítica do valor” começa por distinguir um Marx bom e actual de um Marx mau e perimido. Até aqui nada de novo, havendo já centenas de exercícios deste género. O Marx mau é aqui designado como “exotérico” e o Marx bom como “esotérico”. Existiria uma tensão interna, potencialmente contraditória, na obra de Marx (dos Manuscritos de 1844 até ‘O Capital’) de que ele não foi consciente. O Marx mau teve depois sequência naquilo que é apelidado depreciativamente como o “marxismo tradicional”. O Marx bom teve, naturalmente, de esperar pela novel “crítica do valor” para luzir em todo o seu esplendor libertário. O Marx exotérico (e com ele o marxismo tradicional) estaria imbuído de uma “ontologia do trabalho”, glori cando acima de tudo o homo faber e concebendo a história social como uma sucessão de “modos de produção” de nidos pela forma como é assumido o eterno metabolismo do homem com a natureza. Este Marx seria, no fundo, ainda um mero “dissidente do liberalismo burguês”, apostando no nascente movimento operário como um motor imanente do desenvolvimento do próprio capitalismo, alargando cada vez mais o império das relações mercantis e promovendo um crescimento acelerado das forças produtivas.206

Como, neste primeiro momento, a opção é expor os aspectos de congruência entre os teóricos críticos, focar-se-á nos seus pontos de convergência e na relevância de sua contribuição, a partir do “Marx” que deve ser compreendido através das formas sociais abstratas do modo de produção capitalista. Por isso, para uma explanação inteligível da teoria crítica do valor fundamental, partiremos do texto considerado fundante deste debate: o “Manifesto contra o trabalho”, escrito por Robert Kurz, Ernst Loho e Norbert Trenkle, e publicado no último dia de 1999. A partir da sua compreensão de “trabalho”, chegaremos à crítica do “valor”.

No manifesto, os autores denunciam que vivemos em uma sociedade dominada pelo trabalho, embora o trabalho esteja se tornando cada vez mais escasso. Aí, segundo eles, reside uma evidente perversidade, pois quanto mais o trabalho humano vai se tornando dispensável, mais os discursos de que quem não trabalha é indigno se adensam.207 Em nome de ampliar os postos de trabalho, todos os horrores se justi cam, desde a austeridade scal neoliberal, o m dos direitos trabalhistas e da previdência pública, até a poluição ambiental. Quem não trabalha, não come! Este princípio cínico continua em vigor, hoje mais do que nunca, precisamente porque está a tornar-se irremediavelmente obsoleto. Trata-se de um absurdo: a sociedade, nunca como agora, que o trabalho se tornou supér uo, se apresentou tanto como uma sociedade organizada em torno do trabalho. Precisamente no momento em que está a morrer, o trabalho revela-se uma potência totalitária que não tolera nenhum outro deus junto de si. Dentro da vida psíquica, dentro dos poros do dia a dia, o trabalho determina o pensamento e os comportamentos. E ninguém poupa despesas para prolongar arti cialmente a vida desse ídolo, o trabalho. O grito paranóico dos que clamam por “emprego” justi ca até que se aumente a destruição dos recursos naturais, com resultados há muito conhecidos. Os últimos obstáculos à total comercialização de todas as relações sociais podem ser postos de lado, sem qualquer crítica, na mira de meia dúzia de miseráveis “postos de trabalho”. E a ideia de que é melhor ter um trabalho “qualquer” do que não ter nenhum trabalho tornou-se uma pro ssão de fé universalmente exigida.208

Essa obstinação pelo trabalho, além da óbvia precarização e perda de direitos, também é responsável pela ampliação de novas formas de exploração (como terceirizações, e mascaramentos de vínculo empregatício como prestação de serviços ou divisão de proventos, “uberização”), bem como, inclusive, pela panaceia do empreendedorismo (cada vez mais doentia)209. Segundo a crítica do valor, a sociedade do trabalho chegou ao m, e “se recalca na consciência pública”, com a miti cação do trabalho como único meio de garantir a integridade humana, em nome do que tudo se justi ca.210 Os discursos variam para culpabilizar ora a corrupção, ora as “reivindicações

exageradas” dos movimentos laborais e a “rigidez” da legislação trabalhista (preconizando exibilização/extinção de direitos), ora a incompetência de gestão dos políticos, ora o despreparo dos próprios trabalhadores para as exigências do mercado, ora questões geográ cas ou climáticas, e por aí em diante. Todavia, a verdade é que a categoria “trabalho”, do ponto de vista objetivo, é que se esgotou, pela supremacia de valorização do valor através do capitalismo nanceiro em todo o planeta. Embora, como vimos anteriormente, a valorização do valor nas mercadorias de segunda ordem negociadas no mercado de capitais seja o extremo exaurimento da exploração do trabalho abstrato – e, por isso, os discursos sociais de que o trabalho é a coisa mais importante da sociedade remanescem –, paradoxalmente, a exploração do trabalho via capital produtivo não é mais o principal meio de valorização do valor. O trabalho morto está sendo espremido até a última gota pelo capitalismo de cassino para gerar valor, o que não tem limites, vide a loucura especulativa baseada em suposições, boatos e sorte. Deste modo, o trabalho vivo torna-se cada vez mais obsoleto, ao passo que é dito às trabalhadoras e aos trabalhadores que não podem parar de trabalhar jamais, pois, do contrário, não comem, não convivem em sociedade, não moram, não vestem, não se locomovem etc., en m, não existem. (…) o facto, mundialmente constatável, de o trabalho se revelar irracional enquanto m em si mesmo, de ser algo que se tornou a si próprio obsoleto, é transformado, com a obstinação típica de um sistema delirante, em fracasso pessoal ou colectivo dos indivíduos, das empresas ou de certas “localizações” geográ cas. As limitações, que objectivamente são do próprio trabalho, devem passar por problema subjectivo dos excluídos.211

Para compreendermos a raiz de sua crítica, é preciso assinalar que o que entendem por trabalho é uma categoria abstrata exclusiva do modo de produção capitalista. Esse trabalho a que se referem não é qualquer atividade humana capaz de intervir no entorno e transformar a realidade externa ao sujeito. O trabalho contra o qual a Wertkritik se manifesta é o trabalho social medido em tempo empregado na produção, que pode ser tratado como mercadoria. É o trabalho que se encaixa na forma mercantil, tal qual

qualquer outra mercadoria, e pode ser mensurado pela forma-dinheiro, preci cado. O capitalismo é que criou essa categoria abstrata: trabalho. Antes, o que havia eram atividades humanas diversas. Não há, em rigor, qualquer identidade entre o trabalho e o facto de os homens transformarem a natureza e se relacionarem uns com os outros em determinadas actividades. Enquanto existirem seres humanos, eles hão-de construir casas, fabricar roupas, produzir alimentos e muitas outras coisas, hão-de educar os lhos, escrever livros, discutir assuntos, construir jardins, compor música e tanto mais. Esta é uma verdade banal e evidente. O que não é evidente é que a actividade humana em si, o puro “dispêndio de força de trabalho”, sem que se leve em consideração o respectivo conteúdo e independentemente das necessidades e da vontade dos envolvidos, se torne num princípio abstracto que domina as relações sociais.212

O trabalho do modo produtivo capitalista não é qualquer atividade humana. É mercadoria. E, além disso, para que se caracterize o trabalho (enquanto categoria abstrata do capitalismo), ele precisa reproduzir o capital, isto é, gerar mais capital para o capital. Isso, na terminologia da Wertkritik, signi ca gerar valor, valorizar o valor; ou, na terminologia marxiana tradicional, estamos tratando do trabalho que é capaz de gerar mais-valor (ou mais-valia).213 O trabalho abstrato correspondente à forma do valor também assume uma forma social. Uma vez que o trabalho deixa de ser relação material dos indivíduos com o entorno a m de intervir e transformar, e se desdobra nessa categoria metafísica, todas as relações sociais são mediadas pelas abstrações do modo de produção. A intelecção de Marx pela crítica do valor a rma que as relações concretas entre pessoas reais são suplantadas pelas relações entre a forma-valor, a forma-dinheiro e a forma-mercadoria (aí, também alocaremos a forma-política e a forma-jurídica). O valor, por m, é uma fantasmagoria. Por que o valor é um fantasma? A relação social entre humanos inverte-se numa relação entre as coisas. Essa relação de coisas pode evidentemente ser apenas uma abstração, mas trata-se de uma abstração real, não podendo se dissipar senão quando as

pessoas pararem de entrar em relação social desta maneira muito especí ca. Marx chamou essa incapacidade de entrar em relação social a não ser através dos “produtos da mão humana” de fetichismo da mercadoria. O fundamento místico fetichista da sociedade produtora de mercadorias “esclarecida” encontra uma analogia no domínio da religião. “É somente a relação social particular das pessoas que toma para elas aqui a forma fantasmagórica de relação de coisas. Para encontrar uma analogia, é preciso portanto sumir nas trevas do mundo religioso. Lá os produtos da cabeça humana parecem ser animados por uma vida própria, personagens independentes têm relações entre eles e com os humanos. A mesma coisa passa-se no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana.” (K. Marx, O Capital I). [...] Assim não basta que essa forma inconsciente torne-se simplesmente consciente. Trata-se bem mais de transformar a forma da prática social das relações entre os indivíduos, de modo que o processo de mediação humano-humano e humanonatureza seja realizado através da comunicação consciente.214

Nesse sentido, a rma Anselm Jappe, nas “aventuras da mercadoria”: Se a mercadoria é uma categoria fetichista, é porque o trabalho que constitui o respectivo valor é trabalho abstracto: Este carácter fetiche do mundo das mercadorias, como a nossa precedente análise já demonstrou, provém do carácter social próprio do trabalho que produz mercadorias.215

Na sociedade burguesa, as pessoas convertem-se em produtoras individuais, ao passo que as relações sociais se dão através das mercadorias, pela quantidade abstrata de valor que representam. Há uma distorção da realidade, que dessubjetiva os seres humanos, e anima a mercadoria. Porém, trata-se da forma-mercadoria – são as formas sociais do capitalismo que se fetichizam, para se “movimentar” autonomamente, e não os objetos concretos. O fetichismo, segundo Kurz, pode ser assim conceituado:

Fetichismo (fetiche da mercadoria). Conceito que se origina da crítica da religião do século XVIII, sendo considerado uma categoria essencial das religiões “primitivas”. Fundamentava-se nas observações de colonizadores portugueses na África e servia para designar uma crença que imagina em objetos mortos uma

alma e forças sobrenaturais. Marx referiu esse conceito ironicamente à moderna sociedade produtora de mercadorias que se sujeita a um fetichismo análogo na forma do dinheiro e de seu movimento de exploração de empresas. Assim, o conceito tornou-se corriqueiro na crítica da lógica da mercadoria, apesar de ser, a rigor, demasiadamente genérico. Pois no fundo, Marx não quer ressaltar o fato de que a objetos em geral podem ser atribuídas forças sobrenaturais que nada têm a ver com sua existência natural, mas sim caracterizar um estado social em que a sociedade não tem consciência de si mesma, não penetra nem organiza diretamente na prática sua própria forma de socialização, mas sim tem de “representá-la” simbolicamente em um objeto externo. Esse objeto (que também pode ser animado) assume então um signi cado sobrenatural que não é idêntico a sua forma externa, mas que aparece através dela. Em virtude desse signi cado adquire ele, apesar de sua banalidade material, poder sobre todos os membros dessa216 sociedade.217

O fetichismo seria o fenômeno pelo qual as relações sociais se amoldam na forma-mercadoria, conferindo às formas uma capacidade de interação como se fossem vivas (por isso, “sociedade das mercadorias”). A valorização do valor precisa “animar” a mercadoria para que se estabeleçam as abstrações categoriais que marcam a sociedade capitalista (como o trabalho, a formamercadoria, a forma-dinheiro e a forma-valor). Essa relação independe da vontade concreta dos sujeitos, pois a própria valorização do valor é um processo automático, que não requer nenhuma vontade ou controle das pessoas. Por isso, o modo de produzir do capitalismo, ou seja, a maneira como gera valor, é que é fetichista por si só. O fetichismo não precisa advir das relações de consumo, através da quais os sujeitos procuram compensar vazios pessoais pela aquisição de mercadorias, não deriva de processos psíquicos humanos e nem se confunde com a sobreposição axiológica da importância das coisas sobre as vidas humanas, embora a sociedade burguesa experimente todos esses fenômenos também, como consequência do fetichismo. Em verdade, o fetichismo nasce da abstração categorial imprescindível para a produção de valor (formas sociais), de modo que não se o pode eliminar pela vontade (ou voluntarismo) dos seres humanos. O fetichismo só acaba, para dar lugar à emancipação, se o processo produtor de valor cessar.

Nessa toada, é que a teoria crítica do valor expõe alguns nervos da esquerda também, que não tem sido capaz de perceber o quanto é fetichista e incapaz de se desagrilhoar das formas sociais do capitalismo. A esquerda liberal, pró-democracia burguesa, reformista, e que acredita na distribuição de renda como caminho para superação das barbáries engendradas pelo capitalismo ao longo dos últimos séculos, não compreendeu a gravidade da estrutura produtiva e dessas formas sociais, que geram barbárie a partir da forma, de modo que não admitem reversão de sua função por meio de manipulação de conteúdos. De outro lado, a esquerda bolchevique parece também não haver compreendido que não se supera o capitalismo mantendo sua estrutura produtiva, refém, inclusive, da internacionalidade do capital. Ainda mais oca é a “new left” que abandonou a compreensão marxista deliberadamente. Todo o feminismo hodierno tem vindo nessa mesma esteira. Sobre o cenário em que emergiu a crítica do valor fundamental, relata Ernst Loho em entrevista a Javier Blank e Marcos Barreira: A onda neo-marxista que tinha se alastrado por todos os países ocidentais na sequência do movimento de 68, estava em declínio a inícios da década de 1980, inclusive na República Federal da Alemanha. A esquerda acadêmica em especial era cada vez mais atraída pelas abordagens pós-modernas. Também o panorama dos protestos havia se transformado radicalmente em relação à primeira metade da década de 1970. Grupos com qualquer demanda geral anticapitalista desintegravam-se ou eram marginalizados. Em lugar disso, movimentos focalizados – na RFA sobretudo os movimentos ecológicos e paci stas – dominavam a cena. Os iniciadores do projeto Krisis viam nesses desenvolvimentos os sintomas de uma crise fundamental da crítica radical do capitalismo, da qual a Nova Esquerda tinha uma boa parte de cumplicidade. Uma ausência decisiva nos impulsionou: a Nova Esquerda tinha redescoberto a crítica do capitalismo, mas sem fornecer um novo fundamento teórico, adequado ao estágio de desenvolvimento que entrementes este havia atingido. Foram recuperadas abordagens anacrônicas tomadas da fase de ascensão da sociedade da mercadoria, como a do marxismo do movimento operário, ou fazia-se uma loso a da própria ausência de um quadro adequado de referência teórica e entregavam-se a um espontaneísmo de pouco fôlego. No entanto, para uma reformulação bem-sucedida da oposição ao

sistema, é indispensável uma teoria social crítica à altura do seu tempo – já naquele momento tínhamos essa rme convicção.218

Sendo assim, a verdadeira crítica não convive com meios-termos e propostas conciliatórias, muito menos com reformismos. Para a Nova Crítica do Valor, não se trata de uma questão de distribuição (desigual da propriedade e do capital) – mas sim do modo como a produção está estruturada pela abstração do trabalho, e pelas formas “mercadoria” e “dinheiro”, a m de gerar a forma “valor”. Isso é que perfaz a exploração, e isto signi ca que superar o capitalismo é eliminar a valorização do valor. Só é possível extirpar do mundo a hecatombe que decorre da produção capitalista se não houver mais valorização do valor: eis o cerne da “Crítica do Valor”. A crítica categorial às determinações essenciais da modernidade capitalista já adquiriu, sob o nome de ‘crítica do valor’, uma certa força de radiação na esfera que designa a re exão teórica. A crítica do valor remete-se à forma valor consoante à mercadoria enquanto forma de socialização da modernidade. Mas, aqui, não se trata em absoluto de uma mera determinação econômica no sentido estrito. Senão que o conceito de valor e/ou de valorização constitui, antes do mais um conceito negativo e totalizador da relação do capital ou da ‘socialização’ do valor. Nação, Estado, e política não são imediatamente subsumidos à economia empírica, mas pertencem eles mesmos à totalidade fetichista imposta pelo valor. Por isso, a forma política tampouco pode ser uma forma de emancipação, e menos ainda a chamada nação. O mesmo vale para a ontologia capitalista do ‘trabalho’. Também o conceito abstrato de trabalho é incapaz de construir uma alavanca de emancipação, deixando-se compreender, quando muito, de uma maneira trans-histórica.219

Nesse passo, Roswitha desfere um duro golpe na esquerda que acredita se tratar a luta de classes uma peleja contra a apropriação privada burguesa dos meios de produção. Pior que isso, ainda, é uma esquerda que acredita que o Estado pode mediar a distribuição injusta de capital.220 Nem as políticas econômicas “de esquerda” (neo)keynesianas, nem o (neo)desenvolvimentismo, nem o Estado de bem-estar, e nem mesmo as experiências históricas de modelo chinês ou soviético jamais estiveram aptas

a eliminar a perversidade do sistema, uma vez que encaram o trabalho abstrato como uma categoria ontológica e anacrônica, e não se dão conta de que, para eliminar os horrores do capitalismo, é preciso aniquilar o modo de produção, com seus elementos “trabalho”, “dinheiro”, “mercadoria”, e “mercado” – mais amiúde, é preciso extirpar o “valor”. As experiências ditas socialistas jamais interromperam o processo de valorização do valor. Ao contrário, as propostas socialistas propugnavam (e ainda propugnam) a ampliação do valor e sua redistribuição para a classe trabalhadora, ao invés de ser apropriado pela classe burguesa. Para os revolucionários socialistas, isso superaria as mazelas do capital. Entretanto, o que a Wertkritik evidencia é que o processo de valorização do valor é perverso em si, especialmente, por seu caráter fetichista e dessubjetivador dos seres humanos. A forma-valor não pode ser apropriada pelos trabalhadores e, assim, transformada em algo emancipador. Para a Teoria crítica do valor, isso é impossível. Então, os ditos revolucionários (aqui incluídas as feministas), que só concebem “luta de classes”, como se tratasse apenas de uma contenda contra um grupo de pessoas inimigo (a burguesia), não entenderam nada sobre o capital e, por isso, são inaptos a promover seu m. Obviamente, do mesmo modo, é absurdo imaginar um capitalismo “mais humano” via distribuição de renda e ampliação de direitos individuais e sociais, responsabilidade social das empresas, expansão da democracia burguesa, mais participação popular, políticas públicas de inclusão e distribuição, ou reforma tributária para tributação progressiva dos mais ricos, como quer a esquerda liberal. Essa percepção de parte da esquerda, embora elogiável por sua credulidade e perseverança, é risível diante das revelações da crítica da sociedade das mercadorias. Para a crítica do valor, essa é a origem dos descalabros do mundo capitalista, de modo que é urgente revisitar as categorias marxianas “valor”, “trabalho” (abstrato) e “forma-dinheiro”, demonstrando a centralidade do fetiche, exclusiva do processo produtivo capitalista. “Quanto mais estúpida se torna a representatividade espiritual do sujeito do mercado e do dinheiro, tanto mais fantasmagórico é o modo como ele se reproduz, com papagaíce, as desgastadas virtudes burguesas e os valores ocidentais. 221

Enquanto o problema do valor não for enfrentado, tudo que teremos é mais do mesmo. É sempre o capitalismo (enquanto modo produtivo), não importando se se apresenta vestido de rosa, de vermelho, ou de azul. É por isso que, segundo Roswitha, a experiência histórica do socialismo (a que ela prefere denominar “capitalismo de Estado”, justamente porque manteve a valorização do valor) sucumbiu à globalização do mercado e à corrida do desenvolvimento, dando lugar à perspectiva precária de reforma para a esquerda conformista, que passou a propugnar uma conciliação entre economia de mercado e democracia, como se fosse possível apaziguar a barbárie do capitalismo através dos direitos humanos e do Estado de bemestar. Apenas nas sociedades retardatárias, na não simultaneidade histórica da moderna produção de mercadorias, pôde surgir, no interior da história da imposição do capitalismo, um sistema de transição relativamente autónomo fundado na legitimação desta ideologia; a saber, aquela “modernização atrasada” [nachholende Modernisierung] em formas de capitalismo de Estado que foi (mal) interpretada como “contra-sistema socialista”, apesar de em lado nenhum ter surgido da crise de amadurecimento de um capitalismo desenvolvido, tendo-se este paradigma tornado dominante, pelo contrário, apenas durante algumas décadas nas sociedades “subdesenvolvidas” do ponto de vista capitalista da periferia do mercado mundial (Rússia, China, Terceiro Mundo). Como nestas sociedades também havia um sistema produtor de mercadorias, ainda que “atrasado”, nelas vigorava necessariamente a dinâmica capitalista mercadoria-dinheiro da mediação do mercado anónimo (que já inclui sempre o princípio da concorrência), ainda que de maneira diferente do Ocidente, uma vez que aqui era o próprio Estado a assumir o papel de empresário colectivo. E a nal foi também esta dinâmica da forma do valor abstracto, também nos Estados do bloco de Leste reacoplada a si mesma, que fez cair – por meio dos processos do mercado mundial e da corrida do desenvolvimento das forças produtivas – o “socialismo realmente existente” (aliás, capitalismo de Estado) e levou aos cenários de crise e guerra civil dos anos noventa por todo o mundo. Com o colapso da “modernização atrasada”, seguramente não se abriram quaisquer “perspectivas de reforma”, com a passagem à “economia de mercado e democracia” (como entretanto é conhecido o capitalismo

originário ocidental, até no jargão da esquerda conformista), mas, a ser mantido o sistema produtor de mercadorias e seus critérios, apenas e ainda as “perspectivas” da barbárie.222

Nesse passo, no chamado por ela ainda “terceiro mundo”, despontou a panaceia do desenvolvimento pelo fortalecimento de um capital produtivo nacional e menos dependente, que, no entanto, foi massacrado pelo advento neoliberal, por exemplo, pelo endividamento com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, tornando obsoletos não apenas os conceitos de “relações de classe”, mas também de “relações de dependência nacional”.223 No entanto, como, a partir da década de 1980, o capitalismo industrial produtor de mercadorias, que sempre se desenvolveu desse modo fetichista, foi suplantado pelo capitalismo nanceiro e especulativo, e o sistema do século XX, que resolvia suas crises mediante criação arti cial ou adiantamento de crédito colapsou, o que levou os países pobres a um extremo endividamento com o FMI e o BM. Sob o pretexto de se restaurar o crédito desses países, foram impostas reacomodações estruturais dos Estados nos países de capitalismo periférico, como políticas de austeridade, e ajuste scal, que nada mais são do que o corte de gastos dos governos com programas e benefícios sociais e serviços públicos. Essa forma de regulação, além de administrar suas crises pela via do capital nanceiro, reduzindo os postos de trabalho e gerando miséria, impede os Estados nacionais de recompor a dignidade de seus cidadãos por meio de políticas públicas.224 Para crítica do valor, a tendência é que o trabalho abstrato e a mediação da forma mercadoria se tornem cada vez mais obsoletos para a reprodução do valor, de modo que a tendência é a miséria se ampliar e as condições precárias de vida chegarem aos países de capitalismo central. Segundo Robert Kurz (2004), ao passo que o neoliberalismo impõe medidas de austeridade orçamentária ou, nas palavras de Scholz (2000) “eufemisticamente chamados processos de reajustamento estrutural”, a maior parcela da população é empurrada para a miséria, de modo que a crescente precarização das condições de vida culminará num estado de coisas absolutamente insustentável, a que Kurz (2004) denomina “colapso da modernização”, devido ao paradoxo de um capitalismo que inviabiliza a reprodução da humanidade, mas ainda precisa, em boa medida, do trabalho

abstrato para gerar valor. Inclusive, porque, quando o capital nanceiro entra em crise, o Estado é que vem em sua salvação, injetando-lhe capital que arrecadou de quem trabalha. Daí também as narrativas da ideologia de que o trabalho é a única salvação dos indivíduos. E Robert Kurz estava correto, porque a crise do neoliberalismo veio em 2008 e continua a exercer seus efeitos no planeta. Por isso, Robert Kurz chama a experiência russa de “socialismo de caserna”, como tributário da mesma lógica de valorização do capital atinente aos países ocidentais, e marcado por uma cultura beligerante; a revolução bolchevique, portanto, só teria repetido, num tempo concentrado, o mesmo processo multissecular de acumulação primitiva e de emergência do trabalho abstrato e do valor como categorias históricas dominantes, tal como ocorreu no ocidente.225 Desse modo, a crise do Leste é parte da crise mundial do capitalismo. (…) Fiquemos com dois pontos: 1. A derrota deu-se no terreno capitalista da rentabilidade, que portanto tinha pertinência interna, o que aconselha o reexame do socialismo inicial. Sem duvidar da convicção dos revolucionários, Kurz aproxima formulações de Lenin e Marx Weber, sublinhando o parentesco funcional entre a exaltação socialista do trabalho em abstrato a sua justi cação pela ética protestante. Nesse sentido e em retrospecto, o socialismo teria servido de cobertura ideológica a um esforço retardatário e gigantesco de industrialização nacional. Este não escapava ao sistema mundial de produção de mercadorias, a que aliás os momentos estatizantes nunca foram estranhos, bastando pensar no mercantilismo, em Bonaparte e Bismarck, e, no entreguerras, no keynesianismo, em Stalin e Hitler. 2. É deste ponto de vista que a derrocada dos países socialistas e de sua indústria representaria um capítulo, posterior ao terceiro-mundista do colapso da modernização econômico-social. Esta não estaria mais no futuro, mas no passado, e deu no que deu, por tenebrosa que uma tal perspectiva seja para o Leste europeu e a América Latina.226

Kurz critica, inclusive, o “socialismo real” como parte do sistema mundial produtor de mercadorias, caudatário da de nição de fases monetaristas e estatistas num movimento pendular durante toda a história do

sistema capitalista; dessa forma, o estatismo, enquanto ideologia o cial dos bolcheviques de 1917, remete às ideias mercantilistas do século XVI.227 Todas as lutas da classe trabalhadora, até hoje, têm sido a favor do trabalho, não apenas para a regulamentação da exploração através da forma jurídica (direito do trabalho), mas, inclusive, uma luta para trabalhar mais (na forma abstrata capitalista) – ter mais empregos, mais terras pra cultivar, mais matéria-prima, mais regulamentação da exploração do trabalho etc. Mesmo na sua expressão mais radical – a luta revolucionária –, a organização sempre foi em prol de trabalhar muito para se apropriar do produto do trabalho antes usurpado pelo burguês. Até hoje, a classe trabalhadora não se deu conta de que, para suas lutas serem verdadeiramente emancipadoras, devem ser contra o trabalho, pela abolição do trabalho, que não é um ontos atemporal, e sim uma forma exclusiva do capitalismo.228 Assim, o movimento operário assumiu, à sua maneira, a herança do absolutismo, do protestantismo e do Iluminismo burguês. A infelicidade do trabalho foi convertida numa falsi cação: o orgulho do trabalhador, que vinha rede nir em termos de “direito do homem” a autodomesticação do indivíduo como material humano do ídolo moderno. Os domesticados hilotas do trabalho trataram de, até certo ponto, dar a volta à questão no plano ideológico, desenvolvendo um autêntico zelo missionário dirigido em dois sentidos: por um lado, a reivindicação do “direito ao trabalho”, por outro, a exigência de “obrigação de trabalho para todos”. A burguesia não era combatida enquanto suporte funcional da sociedade do trabalho, mas, pelo contrário, censurada como parasita, em nome do trabalho. Todos os membros da sociedade, sem excepção, deviam ser compulsivamente recrutados para os “exércitos do trabalho”. O movimento operário passou assim, ele próprio, a ser um peacemaker da sociedade capitalista do trabalho. Foi ele que impôs, contra a tacanhez dos funcionários burgueses do século XIX e dos inícios do século XX, as últimas etapas da coisi cação dentro do processo de desenvolvimento do trabalho, aliás em analogia com aquilo que a burguesia zera um século antes, ao assumir a herança do absolutismo. Tal só foi possível porque os partidos operários e os sindicatos, como consequência da sua divinização do trabalho, desenvolveram uma atitude positiva face ao aparelho

de Estado e às instituições da administração repressiva do trabalho, que de facto não pretendiam eliminar; pretendiam sim ocupar esses postos numa espécie de “marcha através das instituições”. Assumiram, portanto, como anteriormente acontecera com a burguesia, a tradição burocrática da administração dos indivíduos na sociedade do trabalho, que vinha do absolutismo.229

Cabe insistir, para assentar o conceito, que, ao dizer que a classe trabalhadora deve lutar pela extinção do trabalho, a crítica está tratando o trabalho enquanto forma social do capitalismo, e não como atividade humana em sentido genérico. Obviamente que, com a superação deste modo produtivo, que é histórico (e, por isso, começou um dia e um dia acabará), as pessoas continuarão a exercer atividades diversas, mas elas não serão motores da valorização do valor pela condensação do tempo na forma-mercadoria. Isso é que seria a verdadeira emancipação: fazer o que se gosta, contribuir com o todo, e ter acesso a tudo o que é necessário para uma vida digna (não é o mínimo existencial, é o máximo não supér uo). Para Kurz, estamos caminhando em sentido diametralmente oposto ao da emancipação, embora o capital esteja em colapso, e entramos numa nova fase de descalabros, em que o mercado mundial, que, desde o m do século XX, absorveu e assimilou todas as outras formas do capitalismo, cria um verdadeiro jogo, que destrói qualquer possiblidade de existência digna para os perdedores, entre os quais inclui países periéricos.230 Na vigência da lógica mercantil, o estoque de capitais que engendra os avanços produtivos já não tem como ser alcançado noutros pontos da terra: cada passo em frente nos países atrasados é compensado por dois, três ou mais, que não há como acompanhar, nas regiões adiantadas. Vejam-se a respeito os esforços desenvolvimentistas do Terceiro Mundo, anacrônicos, via de regra, antes mesmo de começarem a produzir, isto quando chegam a tanto e não param a meio caminho, satisfeitos com as bandalheiras propiciadas. Subsídios, endividamentos e decênios de sacrifício humano brutal não trouxeram a prometida modernização da Sociedade, quer dizer, a sua reprodução coerente no âmbito do mercado global, agora mais remota do que nunca. Com este fracasso abriu-se a época presente, das “sociedades pós-catástrofe”, onde o desmoronamento dá a tônica. A situação de vários países da América Latina hoje se pode

caracterizar como de “desindustrialização endividada”, com populações compostas de não-pessoas sociais, ou seja, de sujeitos monetários desprovidos de dinheiro. Contudo, havendo ainda quem opere com lucro no mercado mundial, a ilusão de que este sistema é “normal” e leva a algum porto não se extingue, mesmo ao preço de os bene ciados viverem atrás de guaritas. “São essas minorias que se aferram às estratégias de privatização e abertura do FMI, sustentando as miragens a que guras como Fujimori, Menem ou Collor de Mello devem a sua ascensão”. A tendência chega ao extremo lógico quando uma economia é expelida da circulação global, depois de a concorrência moderna lhe ter desativado os recursos locais: a massa da população passa a depender de organizações internacionais de auxílio, transformando-se em caso de assistência social em escala planetária. Droga, má a, fundamentalismo e nacionalismo representam outros modos pós-catástrofe de reinserção no contexto modernizado.231

Esse mundo do capital pós-catástrofe, após o m do socialismo histórico, é o mundo de prevalência do capitalismo de cassino, e pulverização da produção do capital fundado no trabalho abstrato, com adensamento das desigualdades regionais e globais, crise do Estado de Direito, maximização da concentração de capital e expansão da pobreza. Esse é o mundo presente, diante do qual a leitura da nova crítica do valor, no geral, relevadas suas divergências internas, é certeira. Trata-se de compreender o capitalismo, não a partir do problema da distribuição, mas desde a própria estrutura produtiva, fundada em categorias abstratas cuja função é possibilitar a valorização do valor. Com a hipertro a do mercado de capitais, esse fenômeno vai a outro patamar assombroso, no qual o valor se reproduz a si mesmo, e o trabalho é, ao mesmo tempo, prescindível e absolutamente necessário enquanto metanarrativa de salvação dos indivíduos. Enquanto processo histórico, o ímpeto interno do movimento de valorização consiste em tentar lograr a absoluta autossu ciência da vazia abstração da forma: preparando, pois, os objetos do mundo até o momento em que terminam por desaparecer no vazio dessa forma – ou seja, mediante a aniquilação do mundo.232

Eis uma tal perversidade, idônea a sustentar outras tantas, como os discursos salvacionistas do neoliberalismo, através da redução do aparato estatal ou a necessidade da destruição ambiental. Nesse labirinto, até o que parece saída, como os intervencionismos (neo)keynesianos, a expansão de direitos sociais e as políticas de pleno emprego, são parte das regras do jogo (como veremos acontecer pós-pandemia). Quanto mais se movimenta, mais se permanece no mesmo lugar. Enquanto toda a sociedade estiver organizada em torno do valor, as perfídias só farão aumentar, pois as crises, necessárias ao capitalismo, trarão novas estratégias, cada vez mais teratológicas, para que o valor continue a se valorizar. É a partir destes pressupostos teóricos e diagnósticos realistas que desenvolvemos as hipóteses deste trabalho. 2.2.1

Krisis e Exit!

A obra de Roswitha Scholz está inserida numa revisão teórica do marxismo alemão, na qual se inscrevem também nomes mais conhecidos como Robert Kurz (2010) e Anselm Jappe (2006). O principal foco de todos é o conceito de valor, objeto de uma crítica vinculada aos processos de fetichização e de valorização das sociedades capitalistas fundadas no princípio de produção de mercadorias e num trabalho ontologizado e trans-histórico. Amiúde, trata-se de uma revisão hermenêutica dos diagnósticos marxianos, com a perspectiva de constituir uma crítica marxista do valor para um mundo capitalista estruturalmente em crise. Para Kurz, os processos de valorização chegaram ao seu limite e a crise do sistema econômico é irreversível – a modernização está em colapso.233 Por isso, para os teóricos críticos do valor, mais do que nunca, é premente elaborar uma crítica consistente do modo de produção. Roswitha Scholz nasceu na Alemanha, em Nuremberg, em 1959, em uma família de classe baixa. Inicialmente, formou-se em um curso técnico de assistente de farmácia e trabalhou alguns anos numa empresa de vendas de produtos farmacêuticos para idosos. Em entrevista a Clara Navarro Ruiz (2017), ela relata que sempre leu muito, desde a adolescência, principalmente, textos existencialistas, como os de Sartre e Camus. Seus primeiros contatos com o marxismo foram com leituras do leste europeu, que não a convenceram. Como oresciam os feminismos de terceira onda e a

nova esquerda alemã, Roswitha engajou-se na militância, mas relata que sempre se sentia deslocada, por não concordar com a maioria das abordagens, mas se calava por não se sentir segura o su ciente para argumentar: “Aos 17 anos, eu já estava em um centro de mulheres, mas lá eu era uma gura completamente marginal e não ousava dizer muita coisa. Então, eu me preparei para o acesso à universidade e, por alguns anos, eu me concentrei nisso”.234 Quando entrou na Universidade para estudar Sociologia, Pedagogia e Psicologia Social, Scholz assistiu a alguns seminários sobre a escola de Frankfurt, na qual encontrou uma abordagem muito distinta do marxismo da que havia no socialismo soviético, e se convenceu da crucialidade dessa epistemologia. Mais tarde, quando cheguei à universidade (estudei, sobretudo, Sociologia, Pedagogia e Filoso a, mas z alguns seminários em outras disciplinas da Faculdade de Filoso a), e tentei descobrir quais teorias não-marxistas poderiam ser úteis para o feminismo. O feminismo foi uma questão que me interessou desde a adolescência. A crítica do valor de então, dito de uma maneira branda, não era especialmente receptiva ao feminismo. Na universidade, participei de vários seminários sobre interacionismo simbólico e fenomenologia, mas, no nal, cheguei à conclusão de que a “Dialética do Esclarecimento”, com sua incorporação da psicanálise, é um trabalho fundamental para que a teoria feminista ative sua chave crítica. [tradução livre].235

Desde então, decidiu que precisava se aprofundar nos estudos marxistas, pelo que procurou a “Iniciativa crítica Marxista”, que oferecia cursos sobre os textos de Karl Marx, e na qual Robert Kurz era gura central. Scholz relata que se ocupar de Marx foi crucial para que ela resolvesse alguns nós teóricos que via no existencialismo, inclusive, em Simone de Beauvoir.236 Ela foi viver em união estável com Robert Kurz na década de 1980, junto com o qual fundou, na mesma época, o grupo “Crítica marxista” original, acompanhados de Loho e Trenkle. Com a fundação do coletivo, passou a se dedicar muito a escrever sobre o feminismo, mas também sobre o sujeito e a ideologia. Pode-se dizer que a assim denominada atualmente teoria “crítica do valor” (tradução de Wertkritik) ou “nova crítica do valor” surgiu em 1986, e

logo tomou os contornos de um fórum, a m de elaborar uma crítica radical da sociedade que se reproduz sob as determinações da valorização capitalista, cuja produção se materializou na edição da revista, publicada desde 1987 sob o nome “Crítica marxista”, tornando-se Krisis – Kritik der Warengesellschaft em 1989. O grupo obteve mais notoriedade em 1999, com publicação do “Manifesto contra o Trabalho”, escrito por Robert Kurz, Ernst Loho e Norbert Trenkle. Em 2003, o lósofo Anselm Jappe, em seu livro As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor, apresentou os desenvolvimentos teóricos desses autores, divulgando ainda mais os debates da Wertkritik, bem como esta particular alcunha. A expressão “Nova Crítica do Valor” apareceu pela primeira vez no livro do crítico social e ensaísta Anselm Jappe, “As Aventuras da Mercadoria”, publicado originalmente em 2003. Com esta expressão Jappe designava uma vertente de teoria crítica anticapitalista à qual seu livro ainda é a mais poderosa síntese. A Nova Crítica do Valor pode ser de nida, inicialmente, como uma dupla releitura: ela é tanto uma releitura da obra de Karl Marx, lósofo e crítico social alemão, quanto uma releitura do capitalismo, que toma como base suas recentes transformações ocasionadas pelo decurso de seu próprio desenvolvimento.237

Apesar da revista ser a dimensão cientí ca concreta e com mais visibilidade do seu grupo de pesquisadores, nas palavras de Anselm Jappe, Krisis era mais que uma publicação, era “um ponto de encontro pouco organizado para a discussão entre pessoas, grupos e movimentos que não aceitam a alegada falta de alternativa ao sistema mundial capitalista”,238 com a intenção de promover debates e seminários, intervir em discussões públicas da atualidade política, e, também, de produzir textos, principalmente, para a difusão desses debates e o fomento de novos. A produção em língua portuguesa até 2003 ainda se encontra disponível239 na homepage do grupo Krisis240 mantida por então apoiadores de Lisboa. O grupo Krisis original operava como um fórum catalisador dos debates, entre outras funções, como a de angariar fundos para nanciar a produção do grupo.241 Tal página portuguesa em apoio à revista Krisis mantém textos da con guração original do grupo, antes da cisão, mas também disponibiliza o

manifesto contra a cisão e apoio aos expulsos, como veremos adiante. A maioria dos intelectuais que prestam contribuições é alemã, mas a Krisis sempre teve por objetivo transcender as fronteiras e inclui publicações de autores de outras nacionalidades.242 A Wertkritik pode tanto ser considerada lha da ortodoxia marxista (o que seria um erro porque seu escopo é justamente o de implodir as ilusões da nova e da velha esquerda) como ser reputada como não-marxista (porque não reconhece a centralidade da luta de classes, mormente desde o declínio fordista), e as duas percepções seriam equívocas. Inclusive, em entrevista, Norbert Trenkle conta que, em 1989, decidiram mudar o nome original da revista “Crítica marxista” para Krisis porque havia questionamentos se suas análises eram mesmo “marxistas”: A mudança do nome da revista [de Crítica Marxista para Krisis – Contribuições para a crítica da sociedade da mercadoria] não ocorreu por causa do colapso do socialismo real; este apenas deu o último empurrão. De fato, há algum tempo nos perguntávamos se a nossa posição podia mesmo ser caracterizada como “marxista”. Pois um elemento essencial da nossa elaboração teórica naquela fase inicial era justamente a crítica ao “marxismo tradicional”, que para nós incluía praticamente todas as correntes marxistas existentes naquele momento. À diferença dessas correntes, retomamos o o da teoria de Marx, que tinha sido ignorado ou distorcido completamente. Nossa abordagem foi a de desenvolver a crítica do capitalismo como uma sociedade fetichistamente constituída, isto é, uma sociedade mediada pela produção de mercadorias e pelo trabalho, na qual as relações sociais defrontam os seres humanos como coações objetivas, como aparentes leis naturais. O marxismo tradicional nunca entendeu, e ainda não entende, esse aspecto crucial. Para ele, o eixo da crítica sempre foi e continua sendo a dominação de classe e a luta de classes, que vai junto com uma referência positiva ao trabalho. Até mesmo quando se discute o caráter fetichista da mercadoria geralmente só se vê nele o encobrimento das relações de classe.243

A crítica do valor demonstra que não apenas a esquerda democrática está equivocada, mas a tradicional esquerda revolucionária também, pois

nenhuma compreendeu a centralidade da forma-valor e das demais formas sociais do capitalismo. A crítica fundamental a rma que apenas a destruição delas desagrilhoa as pessoas, ao passo que todas as esquerdas, até hoje, só zeram servir-se dessas formas, alimentá-las e até mesmo lutar por sua expansão. Todavia, uma teoria crítica do valor realmente livre dos grilhões das metanarrativas burguesas não poderia incorrer em resistências a proposições que escapem à razão esclarecida, e ao sujeito masculino, branco e eurocentrado do iluminismo. Roswitha relata que, no começo de seu relacionamento com Robert, travavam muitas disputas em torno das questões de gênero, mas que, para sua surpresa, com o passar do tempo, ela o convenceu acerca da clivagem do valor.244 Desde então, Kurz, que era o membro mais proeminente do grupo Krisis (composto, quase sempre, exclusivamente por homens, além dela), passou a defender a teoria de que o valor é homem com muito a nco, mas não logrou êxito no convencimento dos colegas. Por isso, apesar do cisma ter se escancarado em 2004, na prática, estava posto desde o início dos anos 1990.245 Em meados dos anos 1990, quando os desconstrutivismos tomavam o feminismo, principalmente, com a contribuição de Judith Butler, Roswitha passou a dedicar-se muito profundamente aos seus estudos sobre a dissociação do valor. Sua insistência em levar a especi cação sexual das categorias econômicas para os debates da Krisis começara, então, a gerar contínuas altercações, devido à resistência dos demais intelectuais (todos homens). No ano 2000, Scholz amadureceu suas ideias e publicou “O sexo do capitalismo”. Kurz produzia outros textos em paralelo, mas ambos insistiam para a inserção das ideias de Scholz no interior da Wertkritik. Nós escrevemos nossos textos separadamente e então veio o “abaixo no computador”. À noite, nós conversávamos relaxados sobre diferentes assuntos, tomando um vinho, e, desta forma, nos in uenciamos mutuamente – também através de controvérsias. Nós tínhamos diferentes áreas de especialização. Basicamente, os temas de Robert Kurz eram economia e política, e os meus eram feminismo, “raça”, classe, gênero e “sujeito”. Muitas vezes, nossa vida era escrutinada criticamente – também no contexto da Krisis. Nós não tivemos lhos e isso é algo antinatural de certa

forma, e o pobre Robert Kurz teve que discutir continuamente com sua esposa. Mesmo em sua vida privada, ele não podia descansar! O fato de que o trabalho teórico não é apenas fadiga e tormento, mas – bem como Marx, apesar de seus muitos lhos – pode ser uma paixão, é algo que certas pessoas não conseguem entender, especialmente quando as mulheres também têm essa perspectiva.246

Em abril de 2004, Roswitha Scholz e seu companheiro Robert Kurz (falecido em 2012) foram expulsos do grupo Krisis. Junto com eles, saíram Hanns von Bosse, Petra Haarmann, Brigitte Hausinger e Claus Peter Ortlieb, os quais redigiram um documento relatando o episódio, com apelos de suporte aos apoiadores do grupo em todos os países. Foi um escândalo, à época, uma vez que o casal era cofundador do grupo Krisis, e Kurz sempre foi considerado seu principal expoente mundo afora. Por isso, os editores lisboetas da revista aderiram ao apelo e publicaram o inteiro teor do manifesto. Recortamos o seguinte trecho: A raiz deste con ito está onde se baseiam os problemas de relacionamento e de conteúdo: na relação entre os sexos. Tal como a teoria da dissociação permaneceu nos últimos doze anos um corpo estranho na crítica do valor da Krisis, do mesmo modo a sua autora Roswitha Scholz como pessoa tem sido um contratempo para a equipa de homens da Krisis. Não é por acaso, antes um efeito colateral plenamente querido, o facto de a redacção da Krisis estar mais uma vez sem mulheres, após um interregno de apenas um ano. E também não perdoaram (eles) ao Robert Kurz ter apoiado este princípio, que pôs em causa o objectivismo lógico-dedutivo do velho desenvolvimento teórico da Krisis. Este con ito quanto aos conteúdos, há muito em lume brando, agudizou-se na formulação de uma crítica radical da loso a burguesa do iluminismo, tal como foi desenvolvida por Robert Kurz na discussão com os anti-alemães. A super cial comunidade da linha da frente pôde equivocar-se por um momento quanto ao diferendo existente relativamente à crítica da forma do sujeito ocidental masculino e branco. Esse diferendo pode agora ser revelado: desejavam uma crítica do iluminismo “mais simpática”, para salvar momentos do universalismo androcêntrico. Se esta motivação inclui uma certa compatibilidade com a ideologia de base “pró-ocidental” dos

anti-alemães, comporta-se precisamente ao contrário na discussão sobre a importância do anti-semitismo como ideologia de crise. O balizamento dos aspectos correctos dos anti-alemães defrontase aqui com uma tendência para inocentar objectivamente o sindroma anti-semita. Também neste aspecto, a campanha super cialmente comum contra o belicismo apenas encobre um diferendo mais profundo. Os referidos con itos quanto ao conteúdo não estavam de modo nenhum amadurecidos e poderiam até certa medida ter sido resolvidos no quadro da Krisis. O que foi inviabilizado com a sua transformação em problemas de relacionamento e com a respectiva “solução” administrativa. O que resta é o cada qual por si, a partir de agora também em distintas plataformas organizativas: A anterior maioria da redacção, incluindo Roswitha Scholz e Robert Kurz, juntamente com parte do círculo de apoio à Krisis activo, vai pôr em marcha outro projecto de crítica do valor e uma nova revista teórica com diferente posicionamento da acentuação. Assim, serão sacudidas as últimas cascas de ovo do objectivismo lógicodedutivo da anterior teoria da “Krisis” e será promovida a crítica da forma do sujeito ocidental masculino e branco; precisamente no tempo de uma ideologia de “hurra!” pró-ocidental que vai até ao interior da esquerda.247

A página portuguesa da Krisis (mantida pelo grupo “O Beco”) disponibiliza, ainda, nota de apoio aos expulsos,248 abaixo transcrita: Os editores desta página do Grupo Krisis em português respondem sim sem hesitação ao apelo da Petra, da Brigitte, do Hanns e do Claus. Desde já manifestam o seu apoio e se propõem colaborar com a nova Revista que, com a participação de Roswitha Scholz e Robert Kurz (cuja presença é incontornável; basta ver os textos desta página), possa desenvolver a crítica do valor, aprofundando a crítica da dissociação sexual e do sujeito do iluminismo. A “nova contemporaneidade histórica” que vivemos faz deste um projecto aliciante para todas as mulheres e homens que hoje não desistiram de produzir as suas vidas no planeta Terra. Lisboa, 12 de Abril de 2004. Os editores.

Essa celeuma é de particular interesse para este trabalho porque seu fulcro foi justamente a proposição de Roswitha Scholz de que o valor é, necessariamente, androcentrado e masculino. Segundo o manifesto de Bosse,

Haarmann, Hausinger e Ortlieb, Kurz e Scholz foram expulsos do grupo Krisis por meio de artimanhas na manipulação das formas deliberativas do coletivo, e o que ensejou essa polêmica foi justamente o fato de Roswitha insistir em colocar o debate de gênero no interior da crítica do valor, sustentando que as formas sociais burguesas condicionadas pelo machismo são derivadas da estrutura produtiva da valoração de um valor exclusivamente masculino e branco, conforme desenvolvemos no decorrer destas páginas. Por ora, é salutar notar que a indignação que sobressalta do manifesto observa que, ainda no interior do marxismo que se proponha mais radical no que concerne à economia política, os debates de gênero e raça são refutados, pois os próprios intelectuais que se arrogam a exclusividade como marxistas são, usualmente, homens, brancos e ocidentais. Os marxistas (e, como diz o manifesto, toda a esquerda) costumam ser refratários a essas questões porque estão subjetivamente atravessados por narrativas constitutivas de sua identidade, que obrigatoriamente passam pelo machismo e pelo racismo. O homem branco ocidental, ainda que marxista e/ou de esquerda, goza dos privilégios de uma sociedade excludente e, naturalmente, por isso, espera-se que não esteja disposto a absorver essas pautas no interior da crítica radical ao modo de produção, e, inclusive, quando as aceita, apropria-se delas com o seu olhar.249 Tanto é que, num primeiro momento, o grupo Krisis afastou questões feministas propostas por Scholz do debate marxista, como sintoma de um pensamento que, ainda que se proponha crítico, está determinado pelos aprisionamentos de uma razão iluminista totalitária que dita o que é ou não é cientí co;250 conquanto, num segundo momento, apossaram-se do teorema de Scholz, asseverando que estava incompleto e que lhe faltavam aspectos fundamentais, numa espécie de mansplaining e bropriating251 teórico. Quatorze anos após a expulsão, numa entrevista disponível em português, Trenkle a rma, in verbis, que o teorema de Roswitha Scholz “acertou o alvo” quando compreendeu que o não-trabalho (abstrato) estava alijado da forma do valor por ser feminino, mas que discorda do “valor ser pensado ali apenas como um princípio estrutural abstrato”.252 Por isso, o manifesto (2004) dos membros da redação a favor de Scholz e Kurz está claramente centrado em dois aspectos: para eles, o casal foi expulso do grupo Krisis, primeiro, porque seus membros eram majoritariamente

machistas – “relação entre os sexos” – (“a teoria da dissociação permaneceu […] um corpo estranho na crítica do valor da Krisis, do mesmo modo a sua autora Roswitha Scholz como pessoa tem sido um contratempo para a equipa de homens da Krisis […] Não é por acaso a redacção da Krisis estar mais uma vez sem mulheres”); e, segundo, porque a teoria de Scholz é refutada até mesmo pelo mais pretensamente radical marxismo, que continua aprisionado a “uma crítica do iluminismo ‘mais simpática’, para salvar momentos do universalismo androcêntrico”.253 Trata-se de uma resistência no âmbito subjetivo-relacional e, também, no âmbito acadêmico-cientí co. Essa expulsão de Scholz e de seu companheiro Kurz da Krisis teve a pretensão de mandar uma mensagem clara: nem as mulheres nem as teorias feministas eram bem-vindas na teoria crítica do valor (assim como não têm sido, historicamente, na ciência e na academia para os estudos marxistas, nem nos tradicionais sindicatos e partidos políticos de esquerda). Esse episódio revela o quanto a pretensão de Roswitha Scholz é audaciosa, não apenas porque é radical na crítica ao capitalismo e à sociedade burguesa (o que, obviamente, é um duro enfrentamento contra a direita), mas porque é extremamente radical na crítica ao patriarcado – e esse último aspecto é de difícil digestão também pela esquerda. A grande radicalidade de Roswitha está em apontar que o debate de gênero não é um apêndice ou um complemento às críticas ao capital e à sociedade de classes, mas crucial: não se compreende o capitalismo sem o patriarcado burguês, de modo que qualquer marxismo não feminista é de citário. É radicalmente marxista, mas também é radicalmente feminista. Com a expulsão de Scholz e Kurz do grupo Krisis, aqueles que apostaram nessa nova possibilidade de compreensão do valor, retiraram-se junto com eles. Então, dessa dissidência de intelectuais do grupo Krisis, que acompanharam Roswitha e Robert, surgiu um novo grupo: o Exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft – nome claramente ambíguo, que ironiza a saída de seus membros do grupo Krisis, e, ao mesmo tempo, busca apontar saídas teóricas para o labirinto da valorização do valor, da razão iluminista, e da sociedade capitalista. Assim, o primeiro número da revista Exit! foi publicado em agosto de 2004 (quatro meses após a cisão), com editorial de Claus Ortlieb, que começa expondo a cisão, retomando alguns trechos do manifesto:

Este é o primeiro número de uma nova revista teórica. EXIT é o produto duma das habituais cisões que há muito fazem parte dos maus hábitos da esquerda. Agora também a “KRISIS” segue esse caminho. Não existe mais, pelo menos não com sua anterior composição de autoras e autores, nem tampouco como revista da editora Horlemann. A forma do direito burguesa, logo ela, tão mal afamada, foi chamada a decidir o afastamento de Robert Kurz e Roswitha Scholz da redação da Krisis, por meio de expedientes administrativos, seguindo-se o da maioria de seus membros. Desde então, levanta-se frequentemente a pergunta de quais teriam sido os motivos – nada óbvios – de um tal rompimento. Não existe uma resposta curta para isso e uma longa não cabe aqui. (…) Mudanças pessoais trazem também consigo, quase forçosamente, diferentes acentuações. Saídos do processo de construção teórica da antiga “Krisis”, teremos tanto maior empenho em romper de vez as cascas de ovo do objetivismo lógico-dedutivo a ela ligado e avançar na crítica à forma de sujeito do homem-branco-ocidental, precisamente nos tempos atuais de uma ideologia de hurra! “pró-ocidental”, que vai até ao interior da esquerda. Em prosseguimento à fundamentação teórica de uma crítica do “trabalho abstrato” enquanto substância da relação capitalista, queremos estabelecer um relacionamento crítico-solidário com os movimentos sociais nascentes, e não “populista de esquerda”, a serviço do pensamento antissemita. Alegramo-nos com todos que nos acompanham neste caminho pela ação ou pelo estímulo.254

O grupo Krisis alterou sua con guração original, mas continuou existindo, com membros fundadores como Ernst Loho e Norbert Trenkle e outros novos. A revista Krisis – Kritik der Warengesellschaft,255 passou a ser uma publicação apenas virtual,256 com textos de diversos autores.257 A maioria de membros é alemã e escreve nesse idioma, embora haja membros de outras nacionalidades, que publicam na revista em seus idiomas nativos e, também, em alemão.258 Já o dissidente grupo Exit! é nuclearmente formado por Roswitha Scholz, Robert Kurz (in memorian), Hanns von Bosse, Petra Haarmann, Brigitte Hausinger, Christian Höner, Frank Rentschler e Claus Peter Ortlieb. Além deles, outras pessoas contribuem exclusivamente com textos

para a revista259 Exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft.260 Cumprindo o compromisso assumido na nota que transcrevemos, o grupo português “O Beco”, organizado por José Neves, manteve no ar apenas as publicações da Krisis261 anteriores à cisão, bem como o manifesto dos dissidentes, e, dali em diante, passou a publicar apenas os novos textos da revista Exit! traduzidos para a língua portuguesa e textos originalmente em português. Para isso, foi criado um novo sítio virtual em língua portuguesa: obeco.planetaclix.pt.262 Como os editores lusitanos tomaram o partido de Roswitha e seus aliados, alguns textos da revista Krisis posteriores à cisão estão disponíveis em português, mas apenas no sítio virtual da própria revista alemã263 (não há na página de Portugal). Robert e Roswitha não tiveram lhos, pois se dedicaram a criar muitas obras que têm o potencial de reformular as críticas marxistas ao modo produtivo e à sociedade das mercadorias, patriarcal. Roswitha Scholz e Robert Kurz viveram juntos até julho de 2012, quando ele faleceu, aos 68 anos de idade, após uma cirurgia renal. Roswitha Scholz está viva e permanece produzindo escritos incessantemente. Porque sua atividade pro ssional atual é integrar a redação da Revista Exit!, ela é identi cada como jornalista mundo afora. Figura polêmica e controversa, Roswitha continua vivendo em Nuremberg após a morte de Kurz e escreve ativamente na revista Exit!, editada por Claus Ortlieb e outros colaboradores. 144 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 158. 145 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 174. 146 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 174. 147 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do

capital. capital. capital.

capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 163. 148 HÖNER, Christian. “O que é o valor: da essência do capitalismo – uma introdução”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2004. Disponível em: http://www.krisis.org/2004/o-que-e-ovalor/. Acesso em: 03.01.2019. 149 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p.169.

150 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p.173. 151 A despeito da tentativa de artistas pop.

152 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006, p. 182. 153 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 204. 154 Obviamente, é mais viável pagar em moedas de ouro do que em alcatra – imagine alguém carregando 50 toneladas de carne para comprar uma casa. 155 Não é à toa que o padrão-ouro foi arquitetado por David Hume no século XVI, quando o Mercantilismo avançava a passos largos, constituindo o profícuo período de acumulação primitiva para a posterior maturação do Capitalismo. 156 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006,

pp. 39-40. 157 KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. “Manifesto contra o trabalho”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 1999. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-otrabalho/. Acesso em: 03.01.2019. 158 Note-se que o padrão-ouro foi substituído pelo padrão dólar em 1944, na Conferência de Bretton

Woods, como critério de equivalência entre mercadorias, e regulação do câmbio, fazendo com que o

capitalismo pudesse se despojar por completo da necessidade de lastro com a efetiva existência de ouro material para seu crescimento e reprodução. A partir do momento em que a forma-dinheiro é o próprio padrão de equivalência e, ao mesmo tempo, o lastro, não é preciso haver lastro, e, então, podese reproduzir o capital abstratamente por operações matemáticas, que irão ensejar a supremacia do capital nanceiro sobre o capital produtivo, possibilitando o crescimento econômico arti cial. A escusa era a necessidade de reconstrução dos países de capitalismo central após as destruições geradas pelas grandes guerras do século XX, com aceleração por adiantamento do crédito, e fomento econômico estatal, para que o valor pudesse, a partir de então, de nitivamente, livrar-se de quaisquer limitações materiais e fronteiras geográ cas. 159 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)“. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 160 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 18. 161 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006,

p. 178. 162 KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. “Manifesto contra o trabalho”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 1999. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-otrabalho/. Acesso em: 03.01.2019. 163 Ridiculamente especulativo, baseado em suposições, fofocas, previsões do futuro, apostas e sorte. 164 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg,

2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 165 KURZ, Robert. “Keynesianismo de Casino”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2008. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz304.htm. Acesso em: 06.11.2018. 166 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis:

Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 167 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 168 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis:

Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 169 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 170 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis:

Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 171 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 172 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 173 Neste ponto, há uma divergência com Kurz e Scholz, já apontada anteriormente, quando esta última crítica Postone por compreender o capitalismo a partir de relações intersubjetivas. O problema dessa análise, para Scholz (2014), é que Postone parte de uma perspectiva individualista e desconsidera a totalidade da estrutura. 174 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das

mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 175 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 176 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”.

Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg,

2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 177 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 178 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 179 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 180 A duplicata clássica permanece economicamente passiva e não tem nenhum signi cado próprio na

vida econômica, pois existe apenas na perspectiva privada das partes negociantes. Ela não pode sair da mão do vendedor até o seu resgate nal. A duplicata é um título de crédito que o comerciante pode sacar após a emissão da fatura de venda, constituído a partir de uma negociação mercantil ou de prestação de serviços. A fatura é a origem, o documento de comprovação da venda e da transferência do bem ao comprador, e a duplicata tradicional representa a consolidação do crédito. A diferença entre a duplicata e os outros títulos de crédito é que ela está sempre ligada à fatura, portanto, sempre tem uma causa de emissão, uma transação de compra e venda ou uma prestação de serviços. Esse tipo de duplicata deriva de um bem negociável e representa a garantia de recebimento do valor de uma transação. 181 LOHOFF, Ernst. “Acumulação de Capital sem acumulação de Valor: o caráter fetichista das mercadorias do mercado de capitais e seu segredo”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2014. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/acumulaao-de-capital-sem-acumulaao-de-valor//. Acesso em: 05.01.2019. 182 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis:

Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 183 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 184 Por exemplo, “Cada boom imobiliário é baseado na perspectiva de aumento dos preços dos imóveis, e cada alta na Bolsa recebe a sua dinâmica a partir da esperança de lucros empresariais futuros.” Cf. KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anos-do-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 185 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis:

Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019.

186 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 187 De fato, a ideologia neoliberal leva a meritocracia capitalista às últimas consequências e propagandeia que os benefícios sociais do Welfare State eram uma “mamata” responsável pela indolência, pelo desemprego e pela pobreza e, por isso, eles “têm que acabar”, minimizando o Estado para favorecer apenas “aqueles que fazem por merecer” (quando, na realidade, só se favorece o rentismo). Esses discursos ainda encontram muitos ecos no mundo, com destaque para a América Latina, que tardiamente implementou algumas políticas de welfare com relativo sucesso, as quais vêm sendo solapadas, inclusive, com a decadência do “constitucionalismo dirigente” e do “novo constitucionalismo latino-americano”. 188 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis:

Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 189 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 190 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis:

Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 191 KRISIS. “Vinte anos do Manifesto contra o trabalho. Adendo à quarta edição alemã”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2019. Disponível em: http://www.krisis.org/2019/vinte-anosdo-manifesto-contra-o-trabalho-adendo-quarta-edio-alem/. Acesso em: 10.12.2019. 192 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 193 POSTONE, Moishe. “Necessidade, tempo e trabalho”. Krisis: Kritik der Warengesellschaf, Nuremberg, 1978. Disponível em: http://www.krisis.org/1978/necessidade-tempo-e-trabalho/. Acesso em: 05.01.2019. 194 POSTONE, Moishe. “Necessidade, tempo e trabalho”. Krisis: Kritik der Warengesellschaf, Nuremberg, 1978. Disponível em: http://www.krisis.org/1978/necessidade-tempo-e-trabalho/. Acesso em: 05.01.2019. 195 POSTONE, Moishe. “Necessidade, tempo e trabalho”. Krisis: Kritik der Warengesellschaf, Nuremberg, 1978. Disponível em: http://www.krisis.org/1978/necessidade-tempo-e-trabalho/. Acesso em: 05.01.2019. 196 POSTONE, Moishe. “Necessidade, tempo e trabalho”. Krisis: Kritik der Warengesellschaf,

Nuremberg, 1978. Disponível em: http://www.krisis.org/1978/necessidade-tempo-e-trabalho/. Acesso em: 05.01.2019. 197 POSTONE, Moishe. “Repensando a crítica de Marx ao capitalismo”. Revista Exit!: crise e crítica da

sociedade das mercadorias, Lisboa, 1993. Disponível em: http://www.obeco-online.org/mpt1.htm. Acesso em: 08.01.2019.

198 SCHOLZ, Roswitha. “Após Postone: sobre a necessidade de transformação da ‘crítica do valor fundamental’, Moishe Postone e Robert Kurz em comparação – e a crítica da dissociação-valor”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2014. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha%20scholz19.htm. Acesso em: 02.01.2019. 199 SCHOLZ, Roswitha. “Após Postone: sobre a necessidade de transformação da ‘crítica do valor fundamental’, Moishe Postone e Robert Kurz em comparação – e a crítica da dissociação-valor”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2014. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha%20scholz19.htm. Acesso em: 02.01.2019. 200 SCHOLZ, Roswitha. “Após Postone: sobre a necessidade de transformação da ‘crítica do valor fundamental’, Moishe Postone e Robert Kurz em comparação – e a crítica da dissociação-valor”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2014. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha%20scholz19.htm. Acesso em: 02.01.2019. 201 Consideramos mais razoável admitir que a crítica do valor, como um todo, está mais centrada no Livro I d’O Capital, embora isso seja objeto de interessantes e relevantes debates, que, porém, não são o foco desta obra. 202 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 203 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 204 KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o

limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit! crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 205 E a outros marxistas, entre os quais, nesse raciocínio, inscrever-se-ia, por exemplo, Pachukanis (embora nunca mencionado por Scholz e Kurz), que é central para as análises jurídicas desta tese, pois deriva a forma jurídica da forma mercantil. 206 NOVO, Ângelo. “As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor”. Crítica Marxista.

Campinas, 2006, p. 173. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/resenha104dossie5.pdf. Acesso em: 09.01.2019. 207 KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. “Manifesto contra o trabalho”. Krisis: Kritik der

Warengesellschaft, Nuremberg, 1999. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-o-

trabalho/. Acesso em: 03.01.2019. 208 KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. “Manifesto contra o trabalho”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 1999. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-otrabalho/. Acesso em: 03.01.2019. 209 O maior fenômeno que evidencia essas alterações, atualmente, é o da “uberização” (neologismo cunhado a partir do nome da empresa “Uber”), que representa um seguimento de corporações mantenedoras de aplicativos para smartphones, que oferecem serviços ao consumidor, com base na precarização das relações de trabalho. O não reconhecimento de vínculo empregatício é mascarado por propagandas de exibilidade de jornada, autogestão, foco em resultados, e alternativa e caz contra o

desemprego. É o atual ícone da informalização do trabalho, dado o desmonte do aparato legal do século XX, já que a forma jurídica precisa atender às novas regulações do capitalismo. 210 KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. “Manifesto contra o trabalho”. Krisis: Kritik der

Warengesellschaft, Nuremberg, 1999. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-o-

trabalho/. Acesso em: 03.01.2019. 211 KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. “Manifesto contra o trabalho”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 1999. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-otrabalho/. Acesso em: 03.01.2019. 212 KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. “Manifesto contra o trabalho”. Krisis: Kritik der

Warengesellschaft, Nuremberg, 1999. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-otrabalho/. Acesso em: 03.01.2019. 213 “A tradução de ‘Mehrwert’ por mais-valor em lugar de mais-valia é teoricamente indiscutível. No

entanto, antes de adotá-la consultei vários pesquisadores brasileiros que trabalham no interior da tradição marxista. A opinião unânime foi de que o uso de mais-valor é de fato irreparável do ponto de vista teórico”. DUAYER, Mario. “Mais-valia ou mais-valor?” Blog Marx revisitado – Marx/Engels: uma visão do século XXI, dez. 2011. Disponível em: https://marxrevisitado.blogspot.com/2011/12/maisvalia-ou-mais-valor.html. Acesso em: 04.01.2019. 214 HÖNER, Christian. “O que é o valor: da essência do capitalismo – uma introdução”. Krisis:

Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2004. Disponível em: http://www.krisis.org/2004/o-que-e-ovalor/. Acesso em: 03.01.2019. 215 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006,

p. 37. 216 Para a compreensão das histórias da tradição oral africana acerca dos “fetiches” (de onde Marx tomou esta palavra para criar sua metáfora sobre a forma da mercadoria), recomenda-se a sequência de animações infantis “Kirikou”, de Michel Ocelot e Bénédicte Galup, França. 217 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise

econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 221. 218 BARREIRA, Marcos; BLANK, Javier. “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social: conversa com Ernst Loho e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2018. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-deemancipao-social/#_ftn14. Acesso em: 14.12.2019. 219 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 33. 220 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 221 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 35. 222 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016.

223 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 224 O golpe de 2016, no Brasil, que cassou o mandato presidencial de Roussef, teve o escopo de realocar o país nesse enquadramento. 225 KURZ, Robert. O colapso da

modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 60. 226 SCHWARZ, Roberto. “Um livro audacioso: a propósito do livro de Robert Kurz (O Colapso da Modernização; Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 1992. Disponível em: http://www.obecoonline.org/rsw.htm. Acesso em: 04.01.2019. 227 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise

econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 86. 228 A despeito de tantas bordoadas, não se pode a rmar que a intenção da Crítica do valor é apenas apontar dedos para a esquerda. Talvez, queira apenas advertir sobre os equívocos históricos e armadilhas do capitalismo e, mais do que isso, trazer a economia política de Marx para a complexidade do século XXI. De qualquer forma, essa postura radicalmente crítica, naturalmente, rende-lhe inimigos por todos os lados. 229 KURZ, R; LOHOFF, E; TRENKLE, N. “Manifesto contra o trabalho”. Krisis: Kritik der

Warengesellschaft, Nuremberg, 1999. Disponível em: http://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-otrabalho/. Acesso em: 03.01.2019. 230 Isso explicaria a insuperável desigualdade entre países, e a atual hecatombe política e social por que

passa o Brasil. 231 SCHWARZ, Roberto. “Um livro audacioso: a propósito do livro de Robert Kurz (O Colapso da Modernização; Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 1992. Disponível em: http://www.obecoonline.org/rsw.htm. Acesso em: 04.01.2019. 232 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista

e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 58. 233 KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise econômica mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004, p. 129. 234 “A los 17 años estabaya en un Centro de mujeres, pero allí era una gura completamente marginal y no me atrevía a decir gran cosa. Entonces preparé el acceso a la universidad para mayores y durante un par de años me concentré en eso”. RUIZ, Clara Navarro. “Escisión del valor, género y crisis del capitalismo: entrevista con Roswitha Scholz”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, n.8/9, pp. 475-502, 2017. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/download/2193/2257. Acesso em: 28.04.2019. 235 “Más tarde, cuando llegué a la universidad (estudié sobre todo sociología, pedagogía y losofía, pero hice algunos seminarios en otras disciplinas de la Facultad de Filosofía), intenté averiguar qué teorías non marxistas podían ser útiles para el feminismo. El feminismo era una cuestión que me interesaba desde la adolescencia. La crítica del valor de entonces, dicho suavemente, no era especialmente receptiva hacia el feminismo. En la universidad asistí a distintos seminarios sobre

interaccionismo simbólico y fenomenología. Pero en último término llegué a la conclusión de que la Dialéctica de la Ilustración, con su incorporación del psicoanálisis, es una obra clave con la que la teoría feminista debe enlazar en clave crítica.” (Tradução livre). RUIZ, Clara Navarro. “Escisión del valor, género y crisis del capitalismo: entrevista con Roswitha Scholz”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, n.8/9, pp. 475-502, 2017. Disponível em: http://constelacionesrtc.net/article/download/2193/2257. Acesso em: 28.04.2019. 236 RUIZ, Clara Navarro. “Escisión del valor, género y crisis del capitalismo: entrevista con Roswitha

Scholz”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, n.8/9, pp. 475-502, 2017. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/download/2193/2257. Acesso em: 28.04.2019. 237 NASCIMENTO, Joelton. “Apresentação”. In: NASCIMENTO, J. (Coord.). Introdução à nova

crítica do valor. São Paulo: Perse, 2014, p. 7. 238 JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006. 239 Toda produção está disponível em alemão, e boa parte em outros idiomas, inclusive, em português. 240 O site em língua portuguesa é http://grupokrisis2003.blogspot.com. Acesso em: 18 set. 2016.

241 No sítio virtual lusitano do grupo Krisis, as autoras e autores com textos disponíveis em português até o começo de 2004, são, em ordem alfabética: Amir Assadi, Anselm Jappe, Atanásio Mykonios, Birgiti Niemann, Cláudio R. Duarte, Claus P. Ortlieb, Ernest Loho , Franz Schandl, Heinz D. Heidemann, Karl-Heinz Wedel, Lorenz Glatz, Moishe Postone, Norbert Trenkle, Robert Kurz, Roberto Schwarz, Roger Behrens, Roswitha Scholz e Ruy Fausto, mas o grupo Krisis é muito maior, sendo que a redação e a direção sofreram alterações com o tempo. 242 Como é o caso dos brasileiros Duarte, Schwarz e Fausto. Cláudio R. Duarte, inclusive, junto com

Daniel Cunha, Felipe Drago, Joelton Nascimento, Raphael F. Alvarenga e Rodrigo Campos Castro, edita a revista brasileira “Sinal de Menos”, que publica textos cujo teor é voltado à crítica do valor. Disponível em: https://sinaldemenos.org/about/. Acesso em: 09.11.2017. 243 BARREIRA, Marcos; BLANK, Javier. “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social:

conversa com Ernst Loho e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2018. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-deemancipao-social/#_ftn14. Acesso em: 14.12.2019. 244 RUIZ, Clara Navarro. “Escisión del valor, género y crisis del capitalismo: entrevista con Roswitha Scholz”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, n.8/9, pp. 475-502, 2017. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/download/2193/2257. Acesso em: 28.04.2019. 245 RUIZ, Clara Navarro. “Escisión del valor, género y crisis del capitalismo: entrevista con Roswitha Scholz”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, n.8/9, pp. 475-502, 2017. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/download/2193/2257. Acesso em: 28.04.2019. 246 “Escribíamos nuestros textos por separado y luego llegaba el “berrear en el ordenador”. Por las

noches hablábamos relajadamente sobre distintos temas tomando un vino, y de este modo nos in uíamos recíprocamente –también a través de las controversias–. Teníamos distintos ámbitos de especialización. Básicamente los temas de Robert Kurz eran la economía y la política y los míos feminismo, “raza”, clase, género y “sujeto”. A menudo nuestra vida era escrutada críticamente – también en el contexto de Krisis–. No teníamos hijos, y eso es algo en cierto modo poco natural, y además el pobre Robert Kurz tenía que discutir continuamente con su mujer, ¡ni siquiera en su vida

privada podía descansar! El hecho de que el trabajo teórico no sea solo fatiga y tormento, sino que – como también en Marx, pese a sus muchos hijos– pueda ser una pasión, es algo que cierta gente no puede entender, sobre todo cuando las mujeres también tienen esta perspectiva.” RUIZ, Clara Navarro. “Escisión del valor, género y crisis del capitalismo: entrevista con Roswitha Scholz”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, n.8/9, pp. 475-502, 2017. (Tradução livre). Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/download/2193/2257. Acesso em: 28.04.2019. 247 BOSSE, Han von; HAARMANN, Petra; HAUSINGER, Birgitte; ORTLIEB, Claus Peter. “Sobre a cisão do grupo Krisis: declaração de anteriores membros da redacção e do círculo de apoio”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2004. Disponível em: http://grupokrisis2003.blogspot.com/. Acesso em: 04.01.2019. 248 Disponível em: http://grupokrisis2003.blogspot.com/. Acesso em 09 nov. 2017. 249 Por fenômenos como este, difundiu-se, na internet, o termo “feministo”, usado para criticar homens que se a rmam “feministas”, e acreditam que podem explicar às mulheres o que é o machismo e lhes ensinar, paternalistamente, a serem feministas. Entre os movimentos sociais brasileiros, também se popularizou o termo “esquerdomacho” para designar homens da militância de esquerda em geral (partidos, movimentos, coletivos, sindicatos), que se dizem feministas e que, por serem militantes de esquerda, criam, nas mulheres, a expectativa de que não serão sexistas, mas que, nas relações cotidianas, reproduzem todas as opressões e misoginias típicas do patriarcado. 250 Por isso, o teorema de Roswitha que tomamos como fundamento teórico de todas as nossas

análises é muito delicado e pode ser manipulado por leitores sexistas, o que pretendemos evitar desde já. Por criticar o feminismo liberal e os pós-modernismos, como o pós-estruturalismo e tudo aquilo que Scholz (2004) denomina “culturalismo” teórico, principalmente quando tais teorias são banalizadas pelos movimentos sociais de gênero na forma de “lacração”, corre-se o risco de que estas críticas (nossas e de Roswitha aos “identitarismos”) sejam tomadas por uma esquerda machista sequiosa de munições para atacar o feminismo negro, e toda militância feminista e LGBTQ, porque, no fundo, os abalos simbólicos ao patriarcado lhes são intimamente incômodos. Por isso, Roswitha Scholz (2010) não autoriza, em suas palavras, “barbudos do marxismo” a “meter no bolso” a teoria da dissociaçãovalor, assim como não quer que os pós-estruturalismos diluam seu teorema. Esta nota tem o escopo de tentar evitar que alguns homens usem nossas palavras para sustentarem seu machismo, mascarado de “verdadeiro marxismo” contra o “identitarismo”, A própria pessoa de Scholz foi vítima de perseguições misóginas de colegas do sexo masculino, de modo que, de maneira alguma, seus escritos podem ser manipulados contra as mulheres por homens que se arrogam um “puro” marxismo teórico. Nesse sentido, nossa abordagem tem o intuito de ser uma alerta a toda a esquerda (que carece das leituras da nova crítica do valor) e aos feminismos (para que retomem a epistemologia marxista como ferramenta teórica para sua práxis), mas jamais um pretexto para que homens cis-hetero possam atacar as mulheres e pessoas LGBTQ, seja pelo que for (ainda que haja equívocos em sua militância), oportunizando uma crítica fundada em autoras mulheres (como Roswitha Scholz, ou a autora desta obra). Assim, homens cis-hetero não estão autorizados “a meter no bolso” as nossas teses para atacar mulheres e LGBTI+, sob o risco de distorções e manipulações perversas. 251 Terminologias do feminismo estadunidense que se propagaram pelo mundo. Mansplaning seria a prática masculina de explicar às mulheres teorias, conceitos, teses, problemas etc. de forma condescendente e paternalista, simpli cando os conteúdos e as infantilizando, como se fossem incapazes de compreender ideias complexas. Inclusive, abarca o fenômeno dos homens explicarem às mulheres coisas óbvias, autoevidentes, que elas já sabem, e até mesmo, coisas que elas acabaram de dizer, ou temas nos quais elas são especialistas. Bropriating é a situação na qual um homem se apropria

de uma tese, argumento ou proposta de uma mulher como se fosse dele, e apenas porque um homem tomou a ideia como sua é que ela passa a ser reconhecida e ovacionada por outros homens. 252 BARREIRA, Marcos; BLANK, Javier. “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social:

conversa com Ernst Loho e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2018. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-deemancipao-social/#_ftn14. Acesso em: 14.12.2019. 253 BOSSE, Han von; HAARMANN, Petra; HAUSINGER, Birgitte; ORTLIEB, Claus Peter. “Sobre a cisão do grupo Krisis: declaração de anteriores membros da redacção e do círculo de apoio”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2004. Disponível em: http://grupokrisis2003.blogspot.com/. Acesso em: 04.01.2019. 254 ORTLIEB, Claus Peter. “Editorial da Revista Exit! n. 2”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/editorial_exit2.htm. Acesso em: 08.01.2019. 255 “Crise – crítica à sociedade da mercadoria”, tradução livre.

256 Disponível em: http://www.krisis.org/. Acesso em 09.11.2017. 257 Além de Loho e Trenkle: Moishe Postone, Anselm Jappe, Ingolf Ahlers, Amir Assadi, Roger Behrens, Achim Bellgart, Michael Beykirch, Julian Bierwirth, Bob Black, Eske Bockelmann, Robert Bösch, Paul Braun, Gérard Briche, Denis Collin, Gotz Eisenberg, Exner Andreas, Riccardo Frola, Lothar Galow-Bergemann, Lorenz Glatz, Claudia Globisch, Stephan Grigat, Stephanie Grohmann, Marianne Gronemeyer, Volker Hildebrandt, Christian Höner, Wertkritische Gruppe Karlsruhe, Olaf Kistenmacher, Georg Klauda, Peter Klein, Tomasz Konicz, Konstatntin Kulterer, Paolo Lago, Neil Larsen, Christian Lauk, Karl-Heinz Lewed, Massimo Maggini, Facundo Nahuel Martin, Stefan Meretz, Birgit Niemann, Daniel Nübold, Pahl Hanno, Tobias Peschke, Krisis Redaktion, Erich Ribolits, Vincent Roulet, Peter Samol, Franz Schandl, Holger Schatz, Gerhard Scheit, Jens Schröter, Jaime Semprun, Giordano Sivini, Joahanna W. Stahlmann, Attila Steinberger, Simon Sutterlütti, Gaston Valdivia, Johannes Vogele, Karl-Heinz Wedel, Heinz Weinhausen, Udo Winkel, Maria Wöl ingseder, e Petra Ziegler. 258 Além de todos esses nomes, há três brasileiros que integram a revista Krisis, com textos em

português: Marcos Barreira, Caio B. Mello e Cláudio R. Duarte Disponível em: http://www.krisis.org/autorinnen/. Acesso em 09 nov. 2017. 259 Andreas Urban, Bernd Czorny, Carsten Weber, Christian Mielenz, Jörg Ulrich, Daniel Späth, Elmar Flatschart, Georg Gangl, Gerd Bedszent, Gerold Wallner, Günther Rother, Heinz Blaha, Herbert Böttcher, Justin Monday, Klaus Kempter, Knut Hüller, Leni Wissen, Leo Roepert, Moritz Kuhles, Manfred Sohn, Martin Dornis, Micha Böhme, Kenneth Plasa, Peter Nowak, Richard Aabromeit, Stefan Brendle, Tammo Jansen, Thomas Meyer, Tim Graβmann, Ulrich Leicht e Uwe Stelbrink. Optaram por manter publicações, tanto na Krisis quanto na Exit!, os autores Moishe Postone (falecido em março de 2018), Anselm Jappe, Tomasz Konicz e Udo Winkel, o que nos faz inferir que preferiram não tomar lado na cisão de 2004. Birgit Niemann e o brasileiro Cláudio R. Duarte possuem links para textos publicados também na versão lusitana da Exit!. Disponível em: https://www.exit-online.org/text.php?tabelle=autoren. Acesso em: 15.11.2018. Versão original alemã disponível em https://www.exit-online.org/. 260 “Saída! – crise e crítica da sociedade da mercadoria”, tradução livre. Observe-se, nos subtítulos, que as revistas mantêm, praticamente, o mesmo nome.

261 Disponível em: http://grupokrisis2003.blogspot.com/. Acesso em: 15.11.2018. 262 No site d’O Beco, a revista Exit!, na versão em português, conta com textos de Roswitha Scholz, Robert Kurz, Andreas Urban, Anselm Jappe, Bernd Czorny, Carsten Weber, Christian Mielenz, Christian Höner, Claus Peter Ortlieb, Daniel Cunha, Daniel Späth, Elmar Flatschart, Gerd Bedszent, Herbert Böttcher, Johannes Bareuther, Justin Monday, Klaus Kempter, Leni Wissen, Leo Roepert, Moritz Kuhles, Manfred Sohn, Moishe Postone, Petra Haarmann, Richard Aabromeit, Timm Graßmann, Thomas Meyer, Tomasz Konicz, Udo Winkel, Ulrich Leicht, Birgit Niemann, Boaventura Antunes, Bruno Lamas, Cláudio R. Duarte, Heinz D. Heidemann, Johannes Vogele, Larissa Costa Murad, Leonel Santos, Nuno Miguel Machado, Rall Canti, Ricardo Pagliuso Regatieri e Roberto Schwarz. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/. Acesso em: 15.11.2018. 263 Disponível em: http://www.krisis.org/navi/portugues/. Acesso em: 15.11.2018.

CAPÍTULO III TEORIA DO VALOR-CLIVAGEM “O valor é o homem”, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do “trabalhador” abstracto – antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior –, a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra”.264

Roswitha Scholz

3.1 Wertkritik e

Wert-Abspaltung

No início da década de 2000, após diversas guinadas desde 1968, com a autoproclamada “nova esquerda”, a esquerda liberal da década de 1990 (pósdeclínio da URSS), e a ascensão de governos (ditos) de esquerda na América Latina nos anos 2000,265 toda esquerda ocidental cou cindida entre caminhos que advogavam a indisponibilidade da democracia, medidas reformistas, economia desenvolvimentista, e ampliação de direitos e liberdades, de um lado, e outros que desejavam retomar as proposições da “velha esquerda”, de outro, via radicalização da ortodoxia teórica marxista, inclusive. Podemos dizer que a atual esquerda do século XXI também ainda só é capaz de vislumbrar essas duas portas: a aposta na socialdemocracia ou a ressurreição da vetusta revolução bolchevique. A crítica da sociedade das mercadorias está abrindo uma terceira, muito mais custosa: a suplantação do valor. Dentro desta, há uma fresta ainda mais estreita: a compreensão (para superação) do valor dissociado.

A pretensão de uma nova e macroteoria, negativo-emancipatória já se acha formulada, pois, sob o título de ‘crítica do valor’, enquanto crítica categorial do sistema produtor de mercadorias, mas não com a clareza su ciente e tampouco com a hostilidade emancipatória em relação ao Esclarecimento, cuja ontologia ideológico-burguesa encontra-se, todavia, positivamente presente como ‘dimensão silenciosa’ até na crítica aparentemente mais radical (…).266

As lutas identitárias das minorias sempre estiveram insertas no primeiro grupo, por agendas que pretendem expandir o sujeito de direitos burguês, para garantir às mulheres, homens negros, pessoas homoafetivas, transgênero etc. os mesmos direitos e liberdades do homem branco cis-heteroafetivo, no interior das ordens democráticas liberais.267 Já o segundo caminho proposto, caudatário do marxismo-leninismo, e do bolchevismo que degenerou em stalinismo, tradicionalmente avesso a essa expansão liberal de direitos humanos e liberdades, não comporta as agendas dos movimentos de minorias eclodidos ao longo do século XX. As proposituras de Scholz são tão inovadoras que vêm trazer uma terceira possibilidade (ainda que, num primeiro momento, apenas no plano teórico), e, por isso mesmo, tendem a ser repelidas por toda a esquerda. Para a esquerda liberal, são muito radicais nas críticas ao capitalismo e, principalmente, às suas derivações; para a velha esquerda, têm muito da nova esquerda. Para seus desafetos da Krisis, são muito abstratas. Para os culturalistas, são muito ortodoxas na compreensão econômica da sociedade através do marxismo radical. Seguindo o diagnóstico de toda a Wertkritik, desde a década de 1960, notamos que agonizam o marxismo tradicional, o leninismo, o socialismo e o movimento operário. O Estado de bem-estar social, o keynesianismo268 e o desenvolvimentismo269 do “Terceiro Mundo” chegaram ao desengano no m da década de 1980. O capitalismo venceu por todos os lados, e não somente na realidade objetiva, mas no interior dos sujeitos. Daí a necessidade de se revisitar a teoria marxista dos últimos 150 anos, para lhe dar uma nova forma, adaptada ao século XXI, uma vez que, desde os anos sessenta, o marxismo estaria esgotado e incapaz de acompanhar o desenvolvimento

capitalista. A “nova esquerda” de 1968 apontou os problemas, mas, nem de longe, propôs alguma possibilidade viável; a teoria marxista da década de 1970 não passou de uma compilação de comentários ao que já havia sido feito, e o pós-modernismo se tornou a “teoria da moda” nos anos 1980 e 90, ainda mais após o m da URSS. Nesse contexto é que surgiu a Wertkritik, novel crítica do valor, realizando uma revisão crítica das categorias marxianas, tratadas pelo marxismo tradicional como positivas e ontológicas, enquanto negativas e históricas. A mais-valia (mais-valor) deixa de ser apenas uma apropriação jurídica feita pelo capitalista, e, consequentemente, uma questão de luta de classes, e passa a ser tratada como um m em si mesmo, acima de todos os sujeitos. Para a Exit!, A “Valorização do valor” signi ca uma reacoplagem cibernética do valor a si mesmo, como uma espécie de máquina social. Tal como o valor, como forma da acumulação sem m, também o “trabalho abstracto”, como seu conteúdo, se torna igualmente um m em si irracional, indiferente a qualquer qualidade social ou material.270

Essa mudança do eixo de compreensão do marxismo dá à crítica do valor uma radicalidade peculiar, e ela desponta como uma possibilidade teórica mais lúcida e amadurecida para dar conta da complexidade do nosso tempo. Não obstante, o grupo de Nuremberg que reivindicou essa crítica cindiu-se, dando origem à Exit!, que vai além da crítica ao valor nos seus apontamentos originais, pois, para essas pensadoras e pensadores, uma crítica resumida à forma do valor (neutra) e à substância do trabalho também seria reducionista. Deve-se incluir, então, na crítica radical, o “caráter metafísico” de toda a sociedade burguesa e seu “sujeito automático”, o que implica uma reformulação do conceito de fetichismo. O fetichismo dessa sociedade não é apenas uma analogia às religiões como proposto originalmente por Marx, e também não pode ser apreendido como ideologia simplesmente, porque é, ele próprio, uma constituição metafísica e, ao mesmo tempo, concreta de todas as relações sociais, de modo que o “sujeito automático” é uma transcendência imanente que se processa na abstração do valor. Este último, vai além das necessidades humanas e do

mundo físico, dos quais se desacoplou, tornando-se a mais autodestruidora potência de todas as anteriores formações de fetiche.271 A subjetividade da circulação fundada na concorrência posta em marcha pela economia-dos-canhões no início da modernidade, bem como por seus protagonistas sociais, obteve então um esmeril para os seus ideais, passando, ao mesmo tempo, por um processo de eclosão que só sacudiu a capa absolutista no intuito de liberar mundo afora, para além de suas formas cruamente embrionárias, o puro moderno sujeito do dinheiro e do Estado, bem como para fundamentá-lo do ponto de vista ontológico. Que este pensamento, o qual pela primeira vez formulou explicitamente a forma valor enquanto uma exigência totalitária feita ao homem e à natureza, tenha legitimando-se mediante um paradoxal e repressivo conceito de liberdade e progresso, eis o que se converteu numa cilada para o desejo de emancipação social. Com isso, precisamente, a crítica foi instrumentalizada sempre apenas com vistas à imposição subsequente da destrutiva forma do valor, assim como da subjetividade que lhe é inerente.272

No grupo Exit!, a crítica do valor assumiu uma determinação essencial até então reprimida no interior do marxismo, o que possibilitou sua extensão para uma crítica da dissociação do valor elaborada por Roswitha Scholz. Ao se implicar na crítica do “sujeito automático”, o grupo Exit! comprometeuse com a desconstrução do universalismo abstrato da modernidade, expressão metafísica da razão iluminista, que impacta não apenas a forma-valor, o trabalho abstrato, a forma política e a forma jurídica, mas se apresenta como um universalismo androcêntrico e ocidental que acomete também a crítica. Em 1992, Roswitha Scholz publicou, pela primeira vez, um texto sobre seu “teorema/teoria do valor-clivagem”, “teorema/teoria do valor-cisão” ou “teorema/teoria do valor-dissociação” (traduções possíveis para Theorem der Wert-Abspaltung)273, no qual sustenta que a contradição básica de valor enquanto socialização da substância (conteúdos) e a forma (valor abstrato) é determinada pelo gênero. Deste modo, qualquer coisa que não é absorvida na forma do valor abstrato, mas ainda continua a ser um pré-requisito para a reprodução social, é delegada à mulher, como a sensualidade e a emotividade, por exemplo.

O “sujeito automático” não é de modo nenhum sexualmente neutro, mas tem, sim, como pressuposto essencial uma determinada relação entre sexos. Tal como a modernidade não suplantou a metafísica como relação social, mas constituiu-a de novo, também não suplantou o carácter patriarcal do “Ocidente cristão”, mas recon gurou-o e objectivou-o. A dominação patriarcal moderna não deve ser entendida como relação sociológica super cial, que estaria em contradição com o universalismo abstracto da forma da mercadoria e nela poderia ser abolida, mas constitui um momento central deste mesmo universalismo. Todos os momentos da reprodução social, da vida pessoal e das relações sociais que não são absorvidos na lógica abstracta do valor ou que apenas relutantemente e com perda do seu carácter próprio se deixam inserir na lógica abstracta do valor (cuidar das crianças, “trabalho doméstico”, “trabalho amoroso e de relacionamento”, funções de amortecimento socio-psíquicas etc.) foram dissociados do universo político-económico e de nidos historicamente como “femininos”. O capitalismo, portanto, não é somente a conexão de suas formas categoriais, mas sempre também um processo de dissociação. A relação de valor é simultaneamente uma relação de dissociação de determinados momentos da reprodução social e somente as duas juntas podem formar o conceito crítico da sociedade moderna. O valor e o seu sujeito são de nidos como estruturalmente masculinos. Com o que a moderna relação entre os sexos é representada, para além de Marx, ao mesmo nível conceptual que o próprio capital, e já não é um mero apêndice subordinado.274

Por isso, ao formular suas ressalvas ao pensamento de Moishe Postone, criticando aquilo que ela chama de seu “individualismo metodológico”, através das lições de Robert Kurz, Roswitha faz questão de advertir que, antes de suas teses, nenhum autor da nova crítica do valor colocava a questão de gênero na centralidade das suas análises. O plano da “dissociação do feminino” em relação ao valor (maisvalia), entendido em termos de dialéctica negativa, não surge em nenhum deles ou surge apenas secundariamente. Da perspectiva da crítica da dissociação-valor, no entanto, os diferentes planos, o plano material, o cultural-simbólico e – last, but not least – o psicanalítico terão de ser relacionados entre si, em seu

entrelaçamento dialéctico e simultânea separação, no seu desenvolvimento processual. Só assim poderá ser suplantada a totalidade negativa, para além do individualismo metodológico androcêntrico, bem como do universalismo androcêntrico, que na realidade caracteriza essencialmente a decadência de crise do patriarcado capitalista.275

Robert Kurz foi o primeiro dos colegas de Scholz a absorver seus conceitos e trabalhar as críticas ao valor e à razão esclarecida, cotejadas com as relações de gênero. Para Kurz, assim como o valor é homem, também o esclarecimento (Aufklärung – iluminismo, razão moderna) é masculino: Enquanto os momentos cindidos da sensualidade e da emocionalidade, do ‘cuidado e do afeto’ – que, por falta de uma apresentabilidade na forma do valor, só se tornam economizáveis às expensas de fricções catastró cas –, bem como dos âmbitos reprodutivos a eles ligados etc., que não são assimiláveis à forma valor, surgem como irracionalidade ‘feminina’, natural e conceitualmente inapreensível (e, em última análise, a ser eliminada), em contraposição ao encouraçado sujeito do valor – consoante à racionalidade estabelecida pelo valor mesmo e que se naturaliza e se irracionaliza nas próprias ideologias subjetivistas, mas de um modo meramente compensatório, tal como ele é: a irracionalidade abstrata transmuda-se, sem mais nem menos, numa irracionalidade igualmente abstrata, tornando clara a identidade entre a razão burguesa e o delírio objetivo.276

O teorema da cisão é, portanto, um desvio que Scholz propôs no interior da Wertkritik e que, a nal, foi o pivô de sua ruptura, em 2004, entre os grupos Krisis e Exit!, especialmente, porque Robert Kurz o abraçou com fervor e forçou sua incorporação às análises da crítica ao valor. Como o Theorem der Wert-Abspaltung de Roswitha foi o epicentro da divisão da Wertkritik (conforme narrado no capítulo anterior), os membros que acompanharam Scholz na sua expulsão da Krisis e fundaram a revista Exit! incorporaram seus postulados ao debate do valor, reconhecendo que sua crítica precisa se fazer acompanhar de uma crítica ao sujeito universal do iluminismo.

De tal feita, o aspecto principal que diferencia a Wertkritik do grupo Krisis desta do grupo Exit! seria a advertência, por parte deste último, de que a crítica realmente emancipadora precisa estar atenta aos grilhões da razão esclarecida, direcionando-se, inclusive, a ela, e não pode correr o risco de recair em cativeiros de universais metafísicos. Essa radicalidade do coletivo Exit! requer, porém, um compromisso de desconstrução subjetiva de quem se arvora na crítica, que o machismo e o racismo, o que nem todos (e todas, infelizmente) estão dispostos a fazer.277 Pode-se a rmar que o pessoal do Exit! incorporou o Theorem der WertAbspaltung à Wertkritik; a Krisis pós-2004 (embora a rme que sim) não. É possível, porém, que o olhar dos membros do Exit! seja parcial devido ao certame. Petra Haarmann, em texto sobre a divisão do grupo, é bastante dura e personalista nos ataques, deixando claro, num texto muito ácido, que as divergências teóricas entre os grupos decorrem de uma construção que realiza “a velha e conhecida cisão da subjetividade masculina branca”, e de uma postura intransigente de Loho , no sentido de que ele defenestraria do coletivo quem ousasse discordar (“quem não car satisfeito pode ‘abrir a sua própria loja’”): (…) quem porventura queira colaborar no “projecto” Krisis como sócio, que pague as suas quotas e/ou apenas desenvolva qualquer actividade a mando e sob a supervisão da direcção ora novamente centrada em Nurenberg (“o novo grupo nuclear”, Ernst Loho ). Quem não car satisfeito sempre pode “abrir a sua própria loja”. Para além da pura falsi cação do rótulo – leia-se o extenso texto na página da internet – a construção apresentada pelos “provisórios” não realiza outra coisa senão a velha e conhecida cisão da subjectividade masculina, branca e ocidental.278

Também para Claus Peter Ortlieb, o grupo rival tentou se apropriar do teorema de Scholz de modo quase publicitário, o que pode ensejar tendências regressivas e acríticas na compreensão dos fenômenos descritos por Scholz, que acabam por alocar as questões de gênero e de raça novamente em patamares secundários de compreensão, fora de uma análise que precisa ser estrutural.

Para ele, incorporar a especi cação de gênero à crítica é fundamental para compreender a atualidade. Ora, os meios de subjetivação de gênero precisam estar no centro da análise, tal qual as formas de “digestão da crise” num momento em que os discursos vitoriosos são os da necessidade de mitigação da regulamentação das relações laborais, uma vez que, desde a sua égide, o trabalho converteu-se em “serviço” e se fracionou numa parte masculina e outra feminina.279 Se a esquerda não perceber que está incorrendo nos mesmo erros dos liberais que combate, acabará enredada numa teia sem m, e Ortlieb acredita que esses equívocos acometem também os pensadores da Krisis que não aceitam as formulações de Scholz ou as consideram adjacentes. Os conceitos fundamentais da crítica do valor tiveram que ser implementados na esquerda a custo só no princípio dos anos noventa, por isso é que hoje se põe o problema da sua banalização, não só por uma recepção super cial nas diversas “cenas” da esquerda, como também pelas próprias tendências regressivas numa parte do anterior círculo da crítica do valor. Neste cenário, representado não apenas pelo resto da “Krisis”, recorre-se agora à “consternação” e a um “quotidiano” amplamente acrítico, bem como a uma ligação populista de esquerda com um mais vasto público do movimento. Há, no entanto, um perigo de recuperação por parte da direita e de posições conservadoras, se porventura, em caso de agravamento da crise, for esquecida a constituição da subjectividade da concorrência burguesa-patriarcal. Como fundamento desta crítica ideológica a uma versão banalizada da própria teoria crítica do valor, designa Scholz o pano de fundo social comum de todas as tendências correspondentes: nomeadamente, “a transformação dos homens em donas-de-casa” (Claudia von Werlhof), incluindo os de círculos teóricos de esquerda, dos ‘media’, etc., e “a queda da classe média” (Barbara Ehrenreich). Uma “crítica de trabalho” reducionista, bem como um conceito androcêntrico reduzido de “realidade social” têm que dar o mote da crítica do valor na colectânea “Dead Men Working”; racismo, anti-semitismo e sexismo são, nos novos hábitos, outra vez degradados a contradições secundárias, em vez de serem compreendidos no seu entretecimento com as disparidades económicas, relação entre

sexos e construção da “raça”, como faz a crítica do valordissociação, no direito que a si própria se reserva.280

Em entrevista concedida em 2018, no Rio de Janeiro, a Marcos Barreira e Javier Blank, diante do questionamento, dirigido a Trenkle e Loho , sobre o que pensam do teorema de Roswitha Scholz, foi Norberte Trenkle quem tomou a dianteira para responder que o considera extremamente relevante na medida em que relaciona o patriarcado com a socialização pelas formas abstratas da mercadoria, do trabalho e do valor, revelando que compreende uma conexão estrutural entre patriarcado e capitalismo que só a tese do valor-clivagem observa, diferenciando-se de perspectivas de sobreposição de opressões: O teorema do valor-cisão representa um passo importante no desenvolvimento teórico da crítica de valor porque relaciona sistematicamente a estrutura patriarcal da sociedade capitalista com a forma historicamente especí ca de socialização pela mercadoria, o valor e o trabalho. Isso o diferencia de maneira fundamental das abordagens críticas do capitalismo comuns no feminismo, que normalmente procedem em termos meramente aditivos e entendem o patriarcado como uma forma adicional de dominação, ao lado da dominação de classe e da dominação racial, a chamada tripla opressão. Diferente dessa relação externa entre diferentes formas de dominação, o teorema do valor-cisão insiste na conexão constitutiva interna entre dominação masculina e sociedade capitalista. De acordo com isso, a socialização pelo valor depende necessariamente da produção constante de um “outro” cindido, inscrito como feminino, no qual são externalizados todos aqueles elementos que não encontram lugar na racionalidade mercantil objetivada.281

Trenkle aduz que concorda com a compreensão de Scholz acerca da existência de um não-trabalho (trabalho abstrato) identi cado com atividades narradas como tipicamente femininas. Inclusive, ele entende, como Roswitha, que não se trata de uma divisão social do trabalho que relega às mulheres trabalhos reprodutivos e aos homens, trabalho produtivo, como propagou toda a tradição do feminismo marxista. Todavia, ele vincula a clivagem de gênero à constituição do sujeito e ao binarismo:

Embora essa cisão esteja sujeita a mudanças históricas em sua con guração concreta, ela representa um princípio básico da sociedade da mercadoria, que se efetiva nos diferentes níveis do vínculo social. Isso é talvez mais evidente na esfera do trabalho, constitutivamente baseada na exclusão e de nição como nãotrabalho de toda uma gama de atividades que são indispensáveis para a manutenção da sociedade e predominantemente atribuídas às mulheres. No marxismo tradicional, isso equivale aproximadamente à divisão entre as esferas do trabalho e da reprodução. Mas a cisão não se limita de modo algum a uma relação funcional, no sentido das mulheres contribuírem para a reprodução da força de trabalho por meio de atividades domésticas e de cuidado não remuneradas. Pelo contrário, ela já é efetiva no nível fundamental da constituição do sujeito e molda no capitalismo o ordenamento hierárquico binário de gênero que, a despeito de seu abrandamento nas últimas décadas, ainda prevalece. O sujeito moderno constitui-se fazendo de si mesmo e dos outros um objeto. Isso está fundado na essência de uma relação social na qual as pessoas se confrontam como indivíduos isolados e se relacionam através da produção de mercadorias e do trabalho; mas, ao mesmo tempo, é uma característica essencial do que é considerado “masculino” na modernidade capitalista.282

Há um ponto sutil de divergência entre o que propõe Scholz e a compreensão de Trenkle, pois, para ele, a clivagem entre “trabalho” e “nãotrabalho” molda os arquétipos binários heteronormativos de gênero a que devem corresponder os homens e as mulheres reais, o que vem sendo mitigado ao longo das últimas décadas. Isso porque, na leitura que a Krisis faz do teorema da dissociação, há um foco distorcido sobre a constituição dos indivíduos a partir de uma subjetividade masculina universal. Roswitha Scholz está olhando o mesmo fenômeno por outro ângulo. Em suas teses, as metanarrativas acerca do binarismo (“coisas de menino” e “coisas de menina”) que sustentaram o sujeito universal (branco e macho) do iluminismo foram oportunas a uma clivagem do valor total em forma-valor (masculina) e valor-dissociação (feminino), de modo que ambos são produtivos (e não o feminino reprodutivo) na medida em que movimentam, conjuntamente, a valorização do valor. Assim, a dissociação é do valor, e não

do sujeito, e, por isso, constitui um patriarcado estrutural, e não apenas uma ideologia binarista da supremacia masculina. Não é que o expurgo do feminino da forma abstrata do trabalho tenha constituído o sujeito e as relações sociais patriarcais a partir de uma cultura centrada no homem; mas o modo econômico de produção capitalista é estruturalmente patriarcal porque o valor é varonil. Por isso, não há nenhuma possibilidade de “abrandamento” do “ordenamento hierárquico binário de gênero” enquanto perdurar o processo produtivo do valor capitalista. Não se trata de uma prática social, ou de axiomas da cultura, mas das formas abstratas da economia que sobredeterminam a vida. Roswitha faz questão de centrar sua análise no valor, ou seja, na esfera da produção econômica, e Trenkle está distorcendo sua teoria ao compreender que as relações sociais são machistas porque o fetiche da sociedade das mercadorias forja um sujeito masculino. Insistindo na questão do sujeito, ele continua a expor sua opinião, a rmando que a mulher foi relegada à condição de objeto, enquanto recipiente dos desejos do sujeito: Nesse sentido, a frase “o valor é o homem“ acerta o alvo. O sujeito moderno é essencialmente “masculino” no sentido de uma constituição historicamente especí ca, enquanto “o feminino” é de nido na demarcação em relação a ela. Isso também está estabelecido na forma da relação social. O sujeito “masculino” só pode produzir e manter essa relação objetivadora com o mundo circundante criando uma contra-imagem que é, por assim dizer, o “recipiente” para os desejos, sentimentos e necessidade cindidos, que ele não pode se permitir enquanto sujeito. Embora essa imagem da “feminilidade” tenha mudado signi cativamente nos últimos tempos, a estrutura da cisão não foi abolida, mas apenas deslocada.283

Norbert Trenkle conclui que ele e Loho concordam com as proposições de Scholz no que diz respeito à cisão do trabalho, mas que consideram seu teorema insu ciente por não elaborar um contorno da forma-sujeito, focando sempre no valor e tratando o sujeito como um apêndice dele. Assim, as teses de Roswitha seriam por demasiado “abstratas”, colocando o valor-dissociação num “meta-nível” que não corresponde à materialidade e que, por isso, precisa ser complementado. Segundo ele, o

grupo Krisis está buscando desenvolver esse complemento a partir de uma crítica do sujeito. Portanto, concordamos em princípio com o teorema da cisão desenvolvido inicialmente por Roswitha Scholz. No entanto, encontramos uma insu ciência no fato de o valor ser pensado ali apenas como um princípio estrutural abstrato em um meta-nível e, desta maneira, a forma-sujeito aparecer como uma espécie de apêndice do valor, determinado por ele. Isso restringe inclusive a crítica do valor-cisão a um meta-nível muito abstrato, que deve então ser complementado por acréscimos sócio-psicológicos e de crítica da ideologia. Assim, após a ruptura com Robert Kurz e Roswitha Scholz, tentamos desenvolver o teorema da cisão a partir da perspectiva de uma crítica fundamental do sujeito. Há alguns textos, especialmente de Ernst Loho e Karl-Heinz Lewed. No entanto, temos que admitir que a nossa crítica do sujeito e, com ela, a questão da cisão de género, ainda precisa ser desenvolvida.284

No texto “O encantamento do mundo: a forma do sujeito e sua história constitucional – um esboço”,285 Ernst Loho a rma que o processo metabólico da natureza foi reorganizado como um ato de culto no sistema de autoexploração de valor e na reprodução cotidiana de pessoas, transformando-se em um serviço de fetiche interminável.286 Segundo ele, na sociedade das mercadorias, as pessoas não organizam suas conexões sociais direta e conscientemente, com base em suas necessidades sociais e sensuais; em vez disso, sua sociabilidade assume a forma fetichista de um terceiro, pressuposto por seus próprios relacionamentos. Por isso, desde que ajam de acordo com a forma do sujeito, as pessoas não podem substituir sua própria dinâmica.287 Em sua intelecção, o totalitarismo da “forma-sujeito” depende de uma rede invisível de enclaves inferiores e da produção permanente dos que seriam os “excluídos”, pois, se o sujeito universal não existe concretamente em cada indivíduo, ele se materializa no que se externaliza pelo “outro”, ou seja, cada indivíduo somente concebe aquilo que é pelo que não é. Enquanto o sujeito percebe sua ilusão de autonomia na rejeição da construção real do não-sujeito, ao mesmo tempo, ele o usa para preencher o

vazio da individualidade abstrata. Constitui-se, então, a ideia de masculinidade: o macho não é feminino.288 É nesse sentido que Ernest Loho , assim como supra a rmado por Trenkle, concentra suas análises da cisão de gênero na forma universal do sujeito: A sociedade de mercadorias difere fundamentalmente de todas as formações sociais anteriores. No entanto – após a adaptação apropriada – elementos originários de sistemas de fetiche mais antigos foram incorporados à sua construção e constitutivamente. Isso vai tão longe que o formulário do sujeito possui características indispensáveis que não podem ser deduzidas diretamente da estrutura especí ca da mercadoria e da lógica de ação. O governo patriarcal é uma daquelas características que foram adotadas na pré-história da sociedade de mercadorias e adaptadas a ela. A verdadeira metafísica do valor depende estruturalmente de uma área separada; em seu falso universalismo, a forma do sujeito não pode prescindir de um contraponto, da construção real de um não sujeito. Essa diferenciação funcional, indispensável à autoconstituição da forma do sujeito, se apegou à hierarquia tradicional de gênero e se fundiu a ela. O relacionamento assimétrico entre homem e mulher foi realinhado para coincidir com o contraste assimétrico entre sujeito e não sujeito, a m de formar uma unidade simbiótica com ele no futuro. O avanço da forma do sujeito deveu seu impacto à acusação sexista. Por outro lado, a adaptação do patriarcado à regra do falso universalismo garante sua intensi cação e perpetuação. A ordem patriarcal não pode mais ser abolida com base no formulário do sujeito.289

Roswitha Scholz, ao comentar a tentativa de Ernst Loho de incorporar seu teorema da cisão do valor, a rma que houve uma má-interpretação na medida em que Loho compreende o feminino a partir de um essencialismo, e insiste em que a mulher não foi absorvida pela forma do sujeito. Loho usurpou a teoria da dissociação-valor só super cialmente, mas interpretou-a completamente mal no seu conteúdo. Não há aqui nenhuma determinação ontológica, mas apenas a relação histórica especí ca de dissociação-valor, como conceito do moderno patriarcado produtor de mercadorias. Correspondentemente, a dissociação, como o “Outro” do valor,

não constitui de modo nenhum uma ocupação positiva, nem certamente um “bem” ontológico ou o “eterno feminino”, mas é tão negativa como o próprio valor, enquanto seu reverso. Portanto, não existe aqui qualquer base ontológica de sensualidade submetida para “salvar”, pelo contrário, valor e dissociação, como as duas faces da mesma moeda, são para rejeitar e abolir igualmente os dois – incluindo a respectiva a rmação positivamente identitária (portanto também do feminino). Os cumprimentos duvidosos de Loho ao “bom” feminino ontológico não passam de fantasias (masculinas), por exemplo relativamente a uma maternidade mitologizada. Se Loho reduz a dissociação a uma “depreciação da acção quotidiana que é incompatível com a forma de sujeito” (ibid., 36), ele inscreve-se de certo modo como homem de classe média “transformado em dona de casa” (Claudia von Werlhof), que agora espera poder pôr de lado a forma de sujeito como quem tira uma gravata, na medida em que revaloriza a “acção do quotidiano”. No entanto já aqui se mostra, precisamente nisso, que ele apenas gostaria de manter a supremacia, na medida em que assume o centro de forma perfeitamente masculina tradicional no dissociado usurpado e positivado e monta o verdadeiro “departamento criativo” (já como “de nidor de conceitos” tão formalmente lógicos como equivocados). O que tem muito pouco a ver com a emancipação da relação de dissociação-valor.290

“A mulher” não foi absorvida pelo “sujeito”, porque não existe “a mulher”. Tanto “a mulher”, com suas respectivas características femininas, quanto “o sujeito” são metanarrativas do esclarecimento, e não essências universais. Scholz (2017) a rma, portanto, que mesmo os intelectuais da Krisis que tentaram fagocitar o valor-clivagem nas suas análises, zeram-no de maneira equívoca, pois acreditam numa “essência” feminina boa vinculada à maternidade, e no fato do homem assumir o papel de “do lar” poder romper com a forma do sujeito masculino do valor. Esses erros, segundo ela, devem-se às fantasias masculinas que cercam a mente de pensadores machos, como, para ela, é o caso de Loho . Desta forma, não bastaria rever Marx, mas seria fundamental incluir uma crítica radical ao iluminismo,291 que é o fundamento ideológico- losó co para a domesticação da humanidade no trabalho abstrato, e o elemento central de

constituição do “sujeito automático” (macho), à medida que converte a razão em máxima metafísica do real, apresentando o capitalismo como a materialização da metafísica do progresso. Ocorre que o “sujeito automático” é o próprio valor, e não o sujeito universal burguês do esclarecimento. O “sujeito automático” é uma categoria econômica, do modo de produção, e não uma categoria ideológica. Loho transporta o teorema da cisão de Scholz para o plano da ideologia, ao sustentar que a dissociação de gênero operou na forma de um sujeito constituído discursivamente pelo iluminismo, obrigatoriamente macho e branco. Para ele, a forma abstrata do sujeito racional da modernidade expurgou as mulheres de seu conteúdo – só os homens poderiam se espelhar na forma abstrata. E esse espelhamento, essa identi cação dos homens, individualmente concretos, com a forma, dá-se por um referencial identitário negativo (como se houvesse um processo psíquico-subjetivo do tipo “eu me assemelho à forma ideal do sujeito racional porque não sou mulher…ou porque não sou negro”… etc. “então, sou sujeito, e não objeto”). A percepção de Loho não está de todo errada e, inclusive, é por esse mecanismo que todas as identidades coletivas protofascistas se constituem (“eu sou o não-outro”, perfazendo a conclusão “então, sou cidadão, e não inimigo”), mas ela é reducionista, na medida em que transporta a clivagem de gênero para o plano simbólico-discursivo. Se a cisão ocorresse apenas no âmbito do sujeito metanarrado pela razão instrumental do iluminismo, ela seria ideológica, e não material. Embora a tese de Loho tenha um enorme mérito em compreender o antropocentrismo moderno com extrema lucidez, num sentido semelhante às análises frankfurtianas,292 suas ideias não diferem de todas as outras teorias sobre gênero que despontaram no século XX. O grande diferencial de Roswitha Scholz é que ela traz a clivagem para o plano da economia, da produção de riquezas, o que faz com que o patriarcado capitalista seja intransponível enquanto houver capitalismo. A interpretação de Loho acaba mantendo o debate no âmbito da cultura, o que cria a ilusão de que é possível mitigar o machismo por mudanças no comportamento e pelo combate à ideologia.

De fato, Roswitha Scholz defende que a clivagem ideológica advém de uma cisão no sujeito universal do esclarecimento, porém, essa dissociação se imiscui na forma do valor, no próprio capital, fazendo com que o valor seja homem, e o sexo do capitalismo seja masculino (economicamente falando). Por isso, a insistência do grupo Krisis em manter a clivagem de gênero apenas na forma-sujeito é um retrocesso, conforme advertiu Ortlieb (2005). Por m, há ainda um segundo ponto problemático quando Loho tenta se apropriar do teorema da dissociação-valor: ele parte de um feminino ontológico. Ao pensar que a forma-sujeito do iluminismo (pretensamente universal, mas exclusivamente europeu, ocidental, branco, burguês e varão) alijou as mulheres de seu conteúdo por defenestrar o feminino da razão, Loho parece não compreender que não existe “o feminino”. As próprias abstrações “masculino” e “feminino” são ilusões fabricadas a partir da biologia (macho e fêmea), vinculando ao sexo biológico uma plêiade de características narradas como uma “essência”, uma “energia”, ou qualquer outro vocábulo que se preste a essa metafísica arti ciosa para a cisão binarista da humanidade em dois gêneros. Então, não é que as mulheres foram deslocadas da forma-sujeito porque tudo o que é feminino (como a sensibilidade) não combina com o sujeito da razão; e sim o fato de se supor e de se a rmar que a mulher é sensível é, por si só, uma arti cialidade, que ganha um tônus metanarrativo no iluminismo porque cola no capitalismo e possibilita a formação do valor. Todas as pessoas podem, potencialmente, ser inteligentes, sensíveis, violentas, criativas, ou qualquer outra coisa; porém, o iluminismo, tão misógino quanto a escolástica,293 produziu um discurso no qual as mulheres são, essencialmente, femininas (sensíveis e amorosas, por exemplo), e os homens, essencialmente, masculinos (corajosos e inteligentes, por exemplo). Para o grupo Exit!, todo o marxismo, inclusive o que se quedou na Krisis, herdou do iluminismo burguês o apego à razão metafísica, e, por conta disso e por causa de idiossincrasias machistas dos próprios intelectuais, não está apto a (ou não quer) assimilar o valor-clivagem sem distorções. Se os marxistas alheios à Wertkritik sempre tenderam a ontologizar as categorias básicas do modo de produção, os membros da Krisis, que resistiram ao valorclivagem de Roswitha Scholz ou o desvirtuaram, por sua vez, tendem a ontologizar categorias da sociabilidade capitalista.

3.2 Teorema do valor dissociado pelo gênero Trilhando um caminho que reinterpreta, modi ca e concilia Adorno/Horkheimer com o “Marx da crítica do valor”, Scholz propõe-se a elaborar uma teoria do valor que leve em consideração a dissociação entre masculino e feminino, compreendidos como abstrações iluministas que se imiscuíram em formas econômicas. Como militante da Wertkritik, advoga a desontologização das categorias fundamentais da estrutura produtiva, especialmente o trabalho, para apontar o valor como um processo alheio aos sujeitos, que tende a valorizar a si próprio, tornando-se uma perversidade que estrutura o capital malé co desde a sua reprodução, e não meramente pela desigualdade de distribuição. Mas Roswitha Scholz vai além. Partindo de Adorno, ela demonstra que as metanarrativas da sociedade, caudatárias da razão instrumental, tendem a universalizar tudo em categorias metafísicas como se fossem também ontológicas. A masculinidade e a branquitude são tomados como universais ontológicos, que Scholz vai denunciar como falsi cações da ideologia que se comutam em estruturas da valorização do valor. Os contornos teóricos da Crítica do valor fundamental trazem radicalidade à compreensão marxiana do processo produtivo, ao demonstrar que a forma é que determina a exploração, e não a vontade de uma classe, ao ponto de nos fazer concluir, na mais perfeita lógica, que a exploração só cessará com a aniquilação total do modo de produção capitalista; todavia, por mais que pareça uma crítica completa, a crítica do valor, originalmente, não dava conta de explicar fenômenos de opressão social e historicamente estabelecidos, como o racismo e o sexismo, e sua relação com a produção, para indicar um caminho de sua superação. Isto porque, segundo Roswitha, o trabalho abstrato aparece, ainda nesse modelo teórico, como um modo sexualmente neutro. O conjunto do relacionamento social no capitalismo, contudo, não se determina somente pelo automovimento fetichista do dinheiro e pelo carácter de m em si do trabalho abstracto. Pelo contrário, veri ca-se uma “dissociação” especi cada sexualmente, mediada dialecticamente com o valor. O dissociado não é nenhum simples “sub-sistema” desta forma (como por exemplo o comércio externo, o sistema jurídico ou até a política), mas é

essencial e constitutivo da relação social total. Quer dizer que não há nenhuma “relação de derivação” lógica imanente entre o valor e a dissociação. A dissociação é o valor e o valor é a dissociação. Cada um está contido no outro, sem ser idêntico a ele. Trata-se de ambos os momentos centrais essenciais da mesma relação social em si contraditória e fragmentária, que devem ser compreendidos ao mesmo alto nível de abstracção.294

O capital (produtivo) se reproduz através do trabalho que transforma a matéria-prima, utilizando os meios de produção. Matérias-primas, instrumentos e força de trabalho são mercadorias cuja identidade é formada pela atribuição de valor, o qual é de nido pela quantidade de tempo de trabalho social incutido nas mercadorias. O valor da mercadoria industrializada é superior ao da matéria-prima pela quantidade de trabalho social embutido nela. Isso signi ca que o valor de uma mercadoria não corresponde ao seu valor de uso, e sim ao seu valor de troca.295 Todas as coisas (inclusive pessoas) adquirem uma identidade a partir de seu processo de valorização enquanto mercadorias. Conquanto, não há totalidade na forma do valor; há dimensões que ela não abarca, operando, portanto, uma dissociação abstrata da esfera concreta. Então, qualquer esforço teórico marxista, mesmo a crítica do valor, que desconsidere isso, não estará apto a compreender as múltiplas relações na sociedade burguesa, entre as quais, as relações de gênero. Desta feita, Scholz incrementa o conceito de fetichismo, nele inserindo a especi cação sexual. Pode-se dizer que ela elaborou uma teoria social de constituição do capitalismo, ou uma teoria econômica de constituição da sociedade patriarcal, pois são fenômenos interdependentes. Os papéis sociais são determinados pelo valor. Todos os trabalhadores (operários, motoristas, padeiros, médicos, pedreiros, advogados, faxineiros, dentistas etc., ou seja, pensemos em todas as atividades assalariadas possíveis) só se colocam no mundo a partir do trabalho – este é o papel social que desempenham. E o valor é sempre macho. O caráter objetivo do trabalho explorado desdobra-se num caráter social, de modo que a produção consitui a socialibilidade, e capitalismo é igual a patriarcado. O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela re ete aos homens os caracteres

sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, re ete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais.296

Sendo o capitalismo um sistema baseado na valorização do valor, e o valor vinculado apenas ao homem, os únicos espaços para a mulher na sociedade burguesa foram, originariamente, aqueles não mediados pelos processos de valorização, embora marginalmente relevantes para a reprodução social capitalista.297 Uma parte desse valor (forma-valor) sempre foi reinvestido no processo produtivo; o excedente, apropriado pelo capitalista (o burguês, o estado soviético, o conglomerado de capital etc.). O processo de valorização se autonomiza em relação aos sujeitos, transformando-os em apenas mais alguns objetos dentro do sistema. Por isso, a valorização é fetichista – enquanto o valor se autonomiza como se fosse o sujeito do processo, as pessoas se transformam em objetos.298 Roswitha toma esta concepção de Marx, concebendo o capitalismo como um sistema baseado na formação de valor, e lhe acrescenta o gênero masculino, pois o capital projeta sobre as mulheres características dissociadas da possibilidade de formação do valor, ao mesmo tempo em que usa o valor clivado para produzir valor total.299 Como o trabalho é uma forma abstrata do valor, os indivíduos não atuam concretamente no mundo e uns com os outros, mas se projetam a partir das relações formais metafísicas. Então, o trabalho abstrato que realizam é que se relaciona com os outros trabalhos que os demais desempenham, ao passo que todos os trabalhos se relacionam com as mercadorias. Por isso, cada qual é produtor de valor (através do trabalho) e fomenta a circulação das mercadorias pelo consumo, por meio do qual também incrementa o capital nanceiro. Em suma, tudo o que fazemos na vida é valorizar o valor. Se o valor é estruturalmente masculino, o trabalho também é, através dos quais de constitui uma sociedade de mercadorias fetichizadas. Assim, também o fetichismo é, certamente, varonil.

Roswitha adverte, no entanto, que uma crítica do fetichismo não pode ser adaptada para se amalgamar ansiosamente a qualquer fenômeno da nossa sociedade, mas tem que percorrer a tarefa de re etir sobre si mesma para não se ajustar a tendências totalitárias do capitalismo. Para que não se corra o risco de banalizar o conceito de fetichismo, é preciso realizar sempre uma metacrítica, inclusive da dissociação do valor, no sentido da dialética negativa adorniana.300 Para ela, a limitação da esquerda em reduzir todos os problemas da sociedade capitalista às relações de classe não explica as novas formas de desigualdade social, e esgota as possibilidades de um debate emancipador, pois não abarca questões de raça ou sexo, que acabam sendo tratadas no âmbito do individualismo burguês. Vivemos numa sociedade na qual a imensa maioria das pessoas se inscreve na denominada “classe média”, o que esvazia a ideia de luta de classes, que pressupõe classes claramente delimitadas, em permanente antagonismo. Segundo ela,301 a antiga sociedade de classes, de fato, foi, tãosomente, um estágio do próprio capitalismo, já superado. O m do fordismo fez com o capital produtivo, centrado na exploração do trabalho, fosse degenerado pelo pós-fordismo e pelo capitalismo de cassino. As classes tradicionais do liberalismo e do fordismo (burguesia e proletariado) também se pulverizaram, criando essa massa amorfa e gelatinosa, que é a “classe média”. Esta nova con guração da sociedade burguesa é altamente oportuna, pois, se todos e todas integram a “classe média”, o capitalismo não precisa admitir a pobreza, a miséria, a marginalização e a exclusão. Essa imensa “classe média” amorfa comporta os mais diversos seguimentos de renda, diferentes posições na estrutura produtiva e nos aparelhos ideológicos, as mais variadas subjetividades, e é um golpe de mestre do valor, de modo que, ao mesmo tempo em que é alargada e pluralizada discursivamente, é orientada de modo individualista e fragmentário. Então, desaparece a “identidade ou consciência de classe”, que era o fundamento do velho movimento operário. Essa recon guração complexa do todo social resvala nas agruras de uma esquerda que precisa escolher entre se opor ao capitalismo a partir da luta de classes ou priorizar as questões identitárias que envolvem o racismo, o sexismo, a lgbtfobia e outras formas de discriminação,302 o que, nas lutas das mulheres, acaba degringolando em

feminismo liberal, com pautas pró-valorização do valor viripotente. Como as questões identitárias são mais visíveis, mais palpáveis para os sujeitos de uma imensa “classe média” fragmentada, a esquerda vem se subdividindo em grupos, movimentos e coletivos de indivíduos que partilham das mesmas amarguras: movimentos de mulheres, movimento negro, movimento LGBTI+, e assim por diante, tornando as agendas cada vez mais fragmentadas e especí cas. De outro lado, o discurso liberal tem se mostrado altamente e caz em cooptar as demandas desses movimentos sociais, como se elas se esgotassem na representatividade estatal e midiática, no reconhecimento de direitos, criminalização da discriminação, e no aumento da capacidade de consumo desses grupos (negros, mulheres, gays etc.). Diante disso, a crítica do valor fundamental que vê o valor de maneira unidimensional a rma que houve um fenômeno de “desclassi cação geral” na sociedade, e tem di culdade de conciliar todos esses debates; já na perspectiva de Roswitha, há uma multidimensionalidade nas próprias relações de clivagem do valor, pela diferenciação sexual, que marcam uma forma fundamental de socialização do capitalismo e que não podem ser desconsideradas. Só assim seria possível compreender essa nova etapa de socialização negativa, via inclusão excludente, de sorte que a forma social complexa atual e as desigualdades gênero ou raça não coincidem com as classes nem contradizem a ideia de sociedade de classes. As classes e as demais relações sociais abrangentes, para Scholz (2008), condicionam-se mutuamente. Essa interpenetração dos fenômenos da desigualdade socioeconômica, do racismo, do machismo, da lgbtfobia etc. só pode ser compreendida por uma crítica do valor na qual o próprio valor é pluridimensional e dissociado. Quando a nova crítica do valor não se limitou à velha percepção de apropriação da “mais-valia” pela burguesia (que demarcava a “classe operária” como uma grande categoria assexuada), mas colocou em questão a forma-mercadoria para a compreensão da sociedade das mercadorias, na visão da autora, ganhou um potencial de articulação a uma percepção que leve em consideração as diferenças. Para Scholz (2000), a crítica do valor liberta o marxismo da anquilosada visão de classes, pois a “classe proletária” é um algo abstrato que não atende às demandas peculiares das mulheres brancas, das mulheres negras, dos homens negros, dos LGBTI+, dos povos

originários etc. Ou seja, as desigualdades socioeconômicas continuam a ser denunciadas, mas não a partir da ideia de “luta de classes”, para que não se ontologize outra categoria abstrata (“classe”) de uma maneira anacrônica que não corresponde mais à realidade. O método materialista proposto por Marx já recomendava que não se arvorasse em idealismos metafísicos. Roswitha acredita que a especi cação sexual da forma-valor (conforme concebido pela Wertkritik) é o caminho para um feminismo radicalmente anticapitalista, que leve em consideração as diferenças. Nessa toada, ela a rma que busca relacionar a multidimensionalidade teórica das relações entre os sexos (psicanálise, antropologia e psicologia social, que é sua formação original) com as hipóteses da crítica do valor, o que perfaz o centro de sua teoria do valor clivado.303 Roswitha Scholz parte de alguns conceitos frankfurtianos para edi car sua teoria, principalmente, das formulações de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer acerca da “razão” na Dialética do esclarecimento.304 Theodor Adorno e Max Horkheimer são pensadores da primeira geração da denominada “Escola de Frankfurt”, que, na realidade, seria mais bem alcunhada de “Teoria Crítica da Sociedade”, conforme proposto por Horkheimer. A vinculação de Scholz a Adorno,305 inclusive, passa pelo abandono do marxismo tradicional e da compreensão da sociedade capitalista através da “luta de classes”, já que Adorno expurgou essa concepção de seus textos posteriores ao holocausto.306 Para Horkheimer/Adorno a razão instrumental, a lógica da identidade culminou com a liquidação dos “outros” no nacionalsocialismo. Eles apresentam aqui a lógica da identidade predominante fundamentalmente em ligação com o domínio da natureza e neste contexto com o princípio da troca. A crítica da dissociação-valor aproveita agora do pensamento de Adorno a própria crítica da lógica da identidade, ou seja, a crítica a um pensamento dedutivo que quer criar a ordem a partir de cima e pretende submeter o particular, o contingente, o diferente, o não inequívoco a uma lógica única.307

Scholz toma emprestados da Escola de Frankfurt os diagnósticos acerca da razão instrumental do Aufklerung, o qual constituiu um metadiscurso absoluto e unívoco capaz de orientar todas as abstrações da sociedade das mercadorias, entre as quais, a dissociação do valor. Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer pintam um retrato da razão esclarecida e seus desdobramentos, partindo do seu marco fundamental, que corresponde à eliminação dos mitos, em direção a uma nova miti cação totalitária, substituindo toda a mitologia precedente pela miti cação unívoca da própria razão. Segundo seu diagnóstico, o escopo original do esclarecimento era livrar a humanidade do medo, assenhoreando-a de seu trajeto sobre a terra, a partir da dissolução dos mitos, que substitui a imaginação pelo saber, vencendo o temor do desconhecido e domesticando a natureza. O desencantamento do mundo por meio do entendimento consubstanciou-se, porém, num poder inelutável, ao qual a natureza se rendeu, convertida em mera objetividade.308

Como o telos primordial da razão (ou esclarecimento) é substituir todos os mitos a ela alheios, para que possa sair vitoriosa da contenda com os demais mitos (incluindo “Deus”), segundo Adorno e Horkheimer, a razão precisou ser absoluta, eliminando de seu caminho tudo aquilo que lhe pudesse ser estranho e, consequentemente, ameaçador. A razão instrumental da modernidade é autocrática e, quanto mais desconstruía o ilusório e o mágico, mais se aproximava da repetição técnica, na qual o pensamento se tornou autômato em face do objeto. “O pensar rei cou-se, então, num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz para que ela possa nalmente substituí-lo. O esclarecimento pôs de lado a exigência clássica de pensar o pensamento.”309 A racionalidade iluminista está fundada numa mimese, que, inclusive, orienta as formas econômicas e sociais do capitalismo. Com o projeto de emancipação iluminista, a razão, inconscientemente, passa a acelerar a atuação da mimese. Aliás, não poderia ser de outra forma. Não é útil para quem determina a ordem (e por isso tem o poder de decisão) que as pessoas saibam de algo tão fantasmagórico: “A ratio, que recalca a mimese, não é simplesmente seu contrário. Ela própria é mimese: a mimese do

que está morto” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 55). Mais à frente rati carão: “a vida paga o tributo de sua sobrevivência assimilando-se ao que é morto” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006, p. 149). A razão do projeto iluminista kantiano que tinha como objetivo a emancipação do homem, a iluminação dos caminhos do sujeito, mantém a característica mítica da mimese. O que numa pretérita fase mágica da sociedade era fruto da adaptação orgânica necessária ao outro e, posteriormente, tornou-se proscrito com o primado da razão (…).310

Essa razão descrita por Adorno e Horkheimer é obrigatoriamente instrumental, e também acrítica, uma vez que renunciou à busca de sentido, aos conceitos e, até mesmo, às relações causa-efeito, em prol da fórmula e da probabilidade, pois o que não é passível de cálculo, exatidão e utilidade torna-se ameaçador para o esclarecimento totalitário. Eis a dinâmica de um pensamento que, para ser su cientemente forte a ponto de derrotar todos os mitos, precisa ser tão implacável que se torna capaz de eliminar tudo o que lhe ameace. Para tanto, no limite, faz violência, inclusive, a si próprio.311 Para os autores da primeira geração frankfurtiana, o problema central daí decorrente é que a razão totalitária não se mostrou idônea a trazer progresso como prometera, engendrando, tão-somente, uma nova espécie de barbárie.312 O totalitarismo e o esvaziamento da razão iluminista constituíram “um paradoxo, pelo qual se viu orescer, no interior do projeto civilizatório da sociedade burguesa ilustrada, o nazismo e outros regimes totalitários, os genocídios, a exploração rei cante do trabalho, a alienação e o controle total da indústria cultural, e a destruição da natureza, entre outros descalabros”.313 Scholz bebe nessa fonte para a rmar que, na perspectiva de sua teoria do valor-dissociação, é decisivo insistir numa dialética entre essência e aparência e na crítica da razão proposta pelos frankfurtianos, nos quais, segundo ela, a lógica da identidade já estava associada à lógica sexual. O sujeito masculino dissocia os seus impulsos e sentimentos, tem de ser controlado e dominado. Há assim uma dialéctica entre dominação e submissão ou auto-submissão. A relação com a teoria da dissociação-valor é aqui evidente. A dissociação-valor

torna-se visível, pelo menos esquematicamente, como princípio formal que atravessa a sociedade como um todo. Horkheimer e Adorno não se limitam aqui a reproduzir estereótipos sexuais, como Maihofer constata em todo o caso com razão, mas reconstroem um discurso sobre o género, cuja constituição expõem criticamente até certo ponto; também têm em consideração implicitamente o plano cultural-simbólico e compreendem o patriarcado capitalista como um modelo de civilização de modo nenhum redutível à economia. A subjectividade masculina e feminina, seja como for que possam ser vistas, são assim apresentadas como fragmentárias em si. No entanto Horkheimer e Adorno não chegam aqui à fundamental penetração e crítica da relação de dissociação-valor como seu núcleo constitutivo. As suas observações sobre a relação de género têm em primeira linha carácter descritivo.314

Destarte, como a razão cria um pensamento classi catório, incapaz de ver a coisa em si, e não tolera rupturas e ambivalências, o “feminino” (abstração forjada por essa razão) seria o lado obscuro do próprio valor, que todas as teorias aprisionadas no iluminismo foram incapazes de notar. Uma crítica da dissociação do valor exige um pensar dialético negativo, que seja capaz de ir além do iluminismo e, por isso, distancia-se de qualquer outra teoria. Para Scholz, esse trajeto já fora palmilhado por Adorno, capaz de compreender a totalidade ainda na sua não-identidade. Gostaria de apresentar alguns aspectos fulcrais da teoria da dissociação-valor que desenvolvi como contraconceito no contexto do espírito do tempo do culturalismo dos anos 90. Essa teoria liga-se, por um lado, ao mais recente desenvolvimento da teoria de Marx pela crítica do valor e, por outro, à teoria crítica de Adorno. No meu ponto de vista, Adorno forneceu vários argumentos para uma crítica do androcentrismo, que precisam ser modi cados e trazidos para o contexto da contemporaneidade.315

A razão instrumental, que só opera com o idêntico e o classi cável, por outro lado, é totalmente inapta à compreensão da dissociação. Qualquer tentativa de compreensão dentro do seu cativeiro (como a de Loho ) vai retornar à ontologização trans-histórica do “masculino” e do “feminino”. Por isso é que Roswitha afasta seu teorema da crítica do valor original (para

ela e para seus companheiros de Exit!, ainda agrilhoada ao iluminismo) e incorpora o pensamento adorniano. A mesma razão totalitária que faz o papel de metadiscurso do capitalismo funciona na dissociação do valor, ao passo que inviabiliza a compreensão desse processo. É a mesma razão que faz o movimento de abstração metafísica para desdobrar as atividades humanas em trabalho abstrato, e para redigir as narrativas do que é masculino e feminino no intuito de clivar o valor. No século XIX, quando a razão esclarecida ganhou os contornos de discurso cientí co, os estudos biológicos e médicos serviram à rati cação da metanarrativa acerca da superioridade masculina e branca. A percepção biologizante tomou as características medulares e a dimensão cerebral, para a rmar, com a autoridade da ciência, que a mulher era mesmo um ser menos racional que homem, assim como as populações não brancas. Como, no mundo comandado pela razão totalitária que combate todos os mitos, a ciência é a fonte exclusiva de verdades, o metarrelato sobre a dicotomização do gênero associada a qualidades “naturalmente” masculinas ou femininas foi signi cativamente robustecido no século XIX e início do século XX (período de avanço do capitalismo industrial). Tem-se, portanto, a construção da representação da mulher medular, uma representação cientí ca da inferioridade biológica e social do sexo feminino, parte integrante de um sistema dicotômico de pensamento que organiza hierarquicamente as coisas e as pessoas, conforme se pode observar nas duas colunas: Cérebro-Medula; Cultura-Natureza; Raças Superiores-Raças Inferiores; Adulto-Criança; Inteligência-Emoção; ComandoSubmissão; Homem-Mulher. Os pares são dispostos para reforçar o antagonismo horizontal entre eles e, ao mesmo tempo, salientar a interação vertical, o que explica as analogias entre mulheres, crianças e ‘raças inferiores’, tão comuns no pensamento cientí co do século XIX. Cabe ainda salientar como o autor construiu sua análise a partir da analogia entre gênero e raça. Castro procura criar similaridades entre as mulheres e os indivíduos préhistóricos ou seus descendentes no presente, as ‘raças primitivas’, aproximando suas características físicas e atribuindo-lhes signi cados e valores como a inferioridade e a passividade. Seu objetivo era provar que a evolução criara diferenças muito acentuadas entre as raças humanas e os dois sexos. Dessa forma, a

mulher representava um estágio anterior da evolução em relação ao homem, equivalente às diferenças que os cientistas encontravam entre as raças. Tal criação de similaridades e diferenças levou Castro e outros cientistas da época a estabelecer analogias como ‘raças femininas’ ou ‘povos infantis’ e a a rmar que quanto mais adiantada e evoluída a raça, maior era a diferença entre homens e mulheres, pois o termo ‘raça evoluída’ era análogo ao desenvolvimento cerebral masculino.316

As atribuições especí cas de gênero, então, caracterizam, de maneira essencial, o plano simbólico do patriarcado produtor de mercadorias, no qual determinadas propriedades consideradas de menor valor (em sentido axiológico), como a emotividade e a ingenuidade, são atribuídas à mulher e apartadas da forma-sujeito universal, e, principalmente, do sujeito automático porque, do ponto de vista da produção econômica, não são trabalho abstrato. As mesmas qualidades supostamente femininas são desvalorizadas (do ponto de vista moral) porque não geram valor (do ponto de vista nanceiro). A mulher é “desvalorizada” em todas as acepções que este vocábulo pode assumir na língua portuguesa. É por essa razão que, para Roswitha Scholz (2013), o patriarcado capitalista não pode ser analisado apenas do ponto de vista psicossocial, cultural e simbólico, mas, além de tudo isso, precisa ser compreendido através dos fatores de reprodução material. Por isso, seu teorema realiza uma crítica simultânea e radical da totalidade do patriarcado, nas esferas social e econômica, ou seja, é radicalmente marxista e feminista. Dessa forma, Roswitha Scholz vai propor uma especi cação na crítica do valor que não esteja ameaçada pelo risco de se fetichizar, de reproduzir as ontologias metafísicas do iluminismo, nem de incorrer em machismo, racismo, etnocentrismo e a ns. Desde a sua perspectiva, ela se considera capaz de responder aos fenômenos multifacetados da sociedade do século XXI, e do capitalismo presente, dando respostas e caminhos para uma possível emancipação. Scholz é intrépida na defesa de que seu valor-clivagem responde, enquanto modelo teórico, às mais diversas angústias de nosso tempo. Sendo assim, o Theorem der WertAbspaltung seria a expressão mais acabada, mais completa, mais dialética e mais corajosa da Wertkritik.

3.2.1 O valor é varão Consoante Roswitha Scholz, em geral, o conceito de valor aparece como um simples objeto das sociedades humanas, na forma dos preços, como se fosse um dado des-historicizado. Para se compreender o que seria o seu valor-clivagem, é imprescindível, então, partir de um conceito de “valor” histórico, que corresponde a uma relação social fetichizada, tal qual propõe a Wertkritik. Os membros da sociedade capitalista não utilizam os seus recursos e capacidade em comum acordo para reproduzir a vida coletiva em benefício de todos; isolados como mônadas, produzem mercadorias que só se tornam produtos sociais através das trocas em mercados anônimos. Nessas mercadorias (compreendidas a partir da forma e não do conteúdo, pois não importa no que consistem materialmente), há valor porque elas representam trabalho passado (uma determinada quantidade de energia humana socialmente dispendida na abstração do trabalho remunerado). Esta representação se exprime através do dinheiro, cuja forma é a forma geral do valor para todas as mercadorias existentes.317 As relações sociais decorrentes desse processo invertem as posições das pessoas e das mercadorias. Enquanto as pessoas aparecem como simples produtoras privadas de mercadorias (indivíduos associais, sem relação), as mercadorias são postas em relação entre si na base da quantidade abstrata de valor que representam, pois, como visto no capítulo anterior, valor relativo e valor equivalente decorrem das relações entre as mercadorias. As pessoas não se relacionam (do ponto de vista da produção) e são coisi cadas (porque seu trabalho é uma mercadoria como qualquer outra coisa). As mercadorias relacionam-se (para formar o valor), pelo que são animadas, de maneira quase personi cada. Esse fenômeno que “põe de pernas pro ar o relacionamento entre as pessoas e os produtos materiais”318 é o que a crítica do valor considera fetichismo, o qual, sob essa concepção, não é um produto psíquico, mas uma condição da estrutura produtiva. Para a Wertkritik, há, de fato, uma alienação das pessoas à medida que não utilizam seus recursos corpóreos e intelectuais de acordo com decisões conscientes, mas estão submetidas a “uma relação cega entre coisas mortas – os seus próprios produtos – comandada pela forma dinheiro”.319 A alienação é um esvaziamento da subjetividade por retirar dos sujeitos a possibilidade

verdadeira de autodeterminação, e, embora gere sofrimento psíquico, cuja causa, na maioria das vezes, não é detectada pelas pessoas, o fetichismo não é uma mera decorrência emocional da alienação. O fetichismo ocorre quando subordina seres sociais às relações das mercadorias, de modo que exsurge da produção (do valor, do trabalho abstrato e da forma-dinheiro). Assim, alienação e fetichismo não são fenômenos psíquicos: são fenômenos da produção capitalista que geram sofrimento psíquico. Na visão de Scholz, o marxismo das últimas décadas fracassou em realizar a crítica desse fetichismo que subordina os seres humanos às relações entre mercadorias porque relegou a radicalidade d’O Capital ao âmbito da loso a, desconsiderando sua importância na compreensão material do modo de produção. Para a autora, o fetichismo jamais poderia ser desprezado ou deslocado da economia política, pois sua compreensão é a chave para libertar qualquer teoria da prisão das categorias do capitalismo.320 A crítica do valor fundamental tem a audácia de retomar esse aspecto ostracizado, para colocar o fetiche negativo da forma aparentemente natural do valor no centro das atenções, sob holofotes, a m de reformular radicalmente a crítica social do marxismo, a rmando que esse fenômeno (o fetichismo) é especí co da sociedade capitalista – sociedade produtora de mercadorias. No entanto este fetichismo especí co da forma da mercadoria, como princípio geral e dominante da socialização, encontra-se apenas no moderno sistema produtor de mercadorias. Só o capitalismo moderno é que criou uma forma de mercadoria orientada para mercados anónimos, desligada e autonomizada do resto da vida e das outras formas de relacionamento, e que simultaneamente domina o processo da vida social. Antes produzia-se primeiramente para uso, não só nos contextos agrários, mas também nas corporações regidas por leis corporativas especiais. Mesmo o conceito de uma “totalidade” social só pôde surgir com esta garra realmente totalitária da forma da mercadoria e do dinheiro sobre a sociedade. A produção de mercadorias, as relações monetárias e a “economia de mercado”, como contexto sistémico geral, só nasceram porque o valor, e com ele a sua forma de manifestação, o dinheiro, se transformaram, de um simples meio que mediava produtores realmente independentes (economia familiar, etc.), num m em si social universal: o dinheiro foi reacoplado a si mesmo como

capital, para se “valorizar”, ou seja, para fazer do dinheiro “mais dinheiro” (mais-valia) num processo imparável.321

Essa capacidade do capital em se autovalorizar num movimento contínuo e permanente está assentada sob dois pilares fundamentais, que distinguem o capitalismo de qualquer modo produtivo anterior a ele. O primeiro é que os bens de uso não perfazem o maior volume da produção, sendo mero suporte à abstração do valor, pois as necessidades humanas são só um subproduto da acumulação de capital. Enquanto, nos modos produtivos pré-modernos, os bens de uso eram os únicos produtos, o fetichismo moderno cria uma inversão, convertendo o trabalho abstrato num m em si mesmo. Isso porque o trabalho não se converte apenas em valor de uso, mas vira valor contido na forma-mercadoria (trabalho morto), que pode se reproduzir tautologicamente dali para diante. O segundo pilar é o próprio trabalho abstrato, isto é, o fato de a força de trabalho humana ser convertida numa mercadoria comum, expropriada de qualquer autonomia e submetida ao mercado (de trabalho), de modo que as escolhas não existem – está tudo heterodeterminado.322 Diante desses dois alicerces, constata-se que as pessoas não produzem aquilo de que realmente necessitam para seu uso e, na maioria das vezes, não têm acesso ao uso do que produzem (certamente, nunca têm acesso ao valor do que produzem). Esse é o fetichismo sobre o qual a crítica se debruça. De acordo com o entendimento da crítica do valor, o aspecto mais pontual do chamado mais-valor (“mais-valia”) é a exploração do trabalho determinada exteriormente pelo capital, considerado enquanto um conjunto de relações jurídicas de propriedade. Mas, mais do que isso, o capitalismo é a própria forma-valor que reproduz o valor total, pelo caráter social deste sistema produtor de mercadorias que se estabelece pela conversão de atividade humana em trabalho abstrato. Por isso, o “trabalho” surge no capitalismo, vinculado à universalização da produção de mercadorias, e não deve ser ontologizado. Enquanto forma-mercadoria, os produtos representam trabalho abstrato passado (trabalho morto) e, portanto, valor, uma quantidade determinada de energia humana gasta, reconhecida no mercado como socialmente válida. Essa representação, por sua vez, expressa-se na forma-

dinheiro, enquanto mediadora universal da troca e, ao mesmo tempo, o m em si mesmo da forma do capital.323 Com a conversão do que antes eram atividades humanas para produzir bens de uso em trabalho abstrato, toda a vida no planeta foi submetida ao automovimento do valor. Este é muito mais do que uma mais-valia apropriada pelo patrão, e sim uma forma que se reacopla a si mesma de modo fetichista. Neste ponto, há uma inovação signi cativa em relação às compreensões marxistas tradicionais. Por isso, consoante Scholz, “Uma simples redistribuição na forma da mercadoria, do valor e do dinheiro, seja qual for a modalidade, não pode evitar as crises, nem acabar com a pobreza global engendrada pelo capitalismo”, de modo que nem o socialismo real nem qualquer forma mais “social” do Estado capitalista podem abrandar a perversidade do valor, já que “O problema decisivo não é como sacar a riqueza abstracta na forma insuperada do dinheiro, mas é essa mesma forma”.324 Ocorre que o modo de produção capitalista torna cada vez mais difícil a reprodução da humanidade pelo aumento da pobreza (ainda mais com a pulverização do Welfare State), e, segundo Roswitha, por mais que a Wertkritik original seja mais feliz nos seus entendimentos do que o marxismo aprisionado na ontologização do trabalho e na ilusão da redistribuição da mais-valia para resolver as injustiças do sistema, continuava indiferente no que concerne às relações de gênero, que constituem o vértice do fetichismo. Se, diante do fetichismo, as relações se dão tão-somente entre mercadorias animadas, ao passo que as pessoas estão recortadas individualmente e rei cadas (e as mercadorias representam o valor, que é masculino), as mulheres não tomam parte nessa sociedade. O patriarcado produtor de mercadorias, fetichista, exclui as mulheres desde a sua estrutura produtiva. Para ela, enquanto o trabalho abstrato e o valor aparecerem de modo sexualmente neutro, mesmo numa crítica que se pretende radical, continuarse-á olvidando outras tarefas que permaneceram fora da forma-valor. Estas restam sempre e sempre a ser executadas pelas mulheres, como a lida da casa. Mesmo quando executadas por homens, permanecem “atividades femininas” e dissociadas do valor. Essas atividades se quedaram majoritariamente atribuídas às mulheres (mesmo as que exercem atividade remunerada) e estão

expurgadas do trabalho abstrato capitalista.325 Eis que vislumbramos o teorema do valor-clivagem de Roswitha Scholz: O conjunto do relacionamento social no capitalismo, contudo, não se determina somente pelo automovimento fetichista do dinheiro e pelo carácter de m em si do trabalho abstracto. Pelo contrário, veri ca-se uma “dissociação” especi cada sexualmente, mediada dialecticamente com o valor. O dissociado não é nenhum simples “sub-sistema” desta forma (como por exemplo o comércio externo, o sistema jurídico ou até a política), mas é essencial e constitutivo da relação social total. Quer dizer que não há nenhuma “relação de derivação” lógica imanente entre o valor e a dissociação. A dissociação é o valor e o valor é a dissociação. Cada um está contido no outro, sem ser idêntico a ele. Trata-se de ambos os momentos centrais essenciais da mesma relação social em si contraditória e fragmentária, que devem ser compreendidos ao mesmo alto nível de abstracção. O que não pode ser compreendido no valor, que é portanto por ele dissociado, já desmente a pretensão de totalidade da forma do valor; ele representa o oculto da própria teoria e por isso não pode ser compreendido com o instrumental da crítica do valor. As actividades femininas de reprodução, uma vez que representam o reverso do trabalho abstracto, não podem ser simplesmente cobertas com o conceito abstracto de trabalho, como faz frequentemente o feminismo, que em grande medida tomou do marxismo do movimento operário a categoria positiva trabalho. Nas actividades dissociadas, que não em último lugar compreendem também o afecto, a assistência e os cuidados aos doentes e incapazes, bem como o erotismo, a sexualidade e o “amor”, incluem-se ainda os sentimentos, as emoções e as posturas que são contrapostos à racionalidade da “economia empresarial” no domínio do trabalho abstracto, e que se opõem à categoria trabalho, mesmo se não estão completamente livres dos momentos da racionalidade de objectivo nem das normas protestantes.326

O valor e sua dissociação estão dialeticamente relacionados: não derivam um do outro, são dois momentos concomitantes que se pressupõem. Por isso, segundo a autora, a clivagem do valor está além, até, das categorias próprias da forma-mercadoria, e deve ser concebida por meio de uma lógica superior

que estrutura a produção capitalista e conforma a sociedade. Por isso, a crítica de Scholz a Postone lá atrás: para ela, é preciso começar o entendimento pelo processo global do capitalismo (valorização do valor), e não pela forma mercantil. Nesse passo, a sociabilidade, no capitalismo, que é fetichista por se estabelecer a partir do valor varão, constitui-se por um patriarcalismo especí co, no qual as mulheres estão alijadas desde a raiz.327 Assim, a dissociação do valor implica uma relação muito especí ca, de caráter psicossocial, e advém da lógica da forma como se produz valor no capitalismo, enquanto idiossincrasia vertebral do próprio fetichismo. Por essa razão, não importa se, na vida concreta, os homens estão lavando a louça, limpando a casa, cuidando dos lhos etc. e as mulheres, trabalhando mediante salário, porque se trata da forma, e não do conteúdo. O valor é uma forma abstrata que se conformou como exclusivamente masculina. Essa forma-valor é o sujeito automático, que se movimenta sozinho, sem a manipulação de nenhum sujeito de carne o osso. Assim, o valor (forma-valor) é masculino e é o sujeito automático do fetichismo. É fetichista porque é uma abstração (uma coisa) que avança sozinha, como uma máquina metafísica programada para se autovalorizar a qualquer custo.328 Se o valor é “homem” e se mobiliza autonomamente, a continuidade do capitalismo é a perpetuação do patriarcado. Trata-se de uma conclusão lógica. Isso inclui tanto o valor que advém do trabalho abstrato quanto o valor matematicamente extraído das operações nanceiras e das mercadorias de segunda ordem no mercado de capitais. Se é (forma-)valor, é másculo, e fomenta o patriarcalismo. O modelo que Scholz está propondo é o seguinte: o trabalho abstrato inscreve-se na forma-mercadoria como qualquer outra coisa passível de preci cação no capitalismo. O esquema é: trabalho abstrato, inserido na forma-

mercadoria, representa trabalho passado e, por isso, é igual a mais-valor.

Ocorre que as atividades reputadas como femininas, “coisas de mulher”, como gerar e parir, cuidar dos lhos e dos idosos, arrumar e limpar a casa, lavar a louça e a roupa, cozinhar, servir etc. não são consideradas “trabalho abstrato” e, por isso, não entram na forma do valor. No entanto, a sociedade não consegue se reproduzir e continuar funcionando sem que alguém desempenhe essas atividades, as quais, na égide do capitalismo, eram exclusivamente femininas por conta da dissociação do valor e, hoje, por mais que possam ser desempenhadas por homens, continuam morfologicamente femininas, quanto à forma, pois estão fora da forma-valor, que foi concebida como masculina desde a sua origem. Mas o valor-clivagem é mais do que uma reprodução, porque ele compõe o valor total; desta forma, o trabalho “feminino” clivado é trabalho produtivo, e não apenas reprodutivo. O esquema é o seguinte: trabalho abstrato >>>>> (este é o valor que “é varão”), atividades femininas >>>>> valor-clivagem. O capitalismo é machista na estrutura, e não apenas na cultura das sociedades. O que o condiciona assim é o movimento de abstração do trabalho, sem o qual não se reproduz o valor. Se todas as tarefas humanas fossem simples afazeres voltados a produzir coisas úteis, não haveria uma dicotomização entre o que é trabalho (abstrato) e o que não é, e, consequentemente, não precisaria haver uma divisão entre “trabalho de homem” (valor) e “tarefa de mulher” (valor-clivagem). A necessidade do capital em abstrair uma forma do trabalho para além das ações humanas em

geral foi o que cindiu a existência em masculina e feminina, de modo que o patriarcado capitalista não se compara com nenhum outro. E essa constituição simbólica binária do gênero que conhecemos é histórica, e não ontológica e atemporal. Essa dualidade foi auspiciosa para a primeira constituição da sociedade produtora de mercadorias, e, como foi estruturante do capitalismo, ora, faz parte da sua morfologia e não pode ser revertida. Esse corte de duas possibilidades existenciais para os seres humanos (ser homem ou ser mulher), no capitalismo, está, então, diretamente ligado à abstração do trabalho. Na formação originária deste modo de produção (século XIX e início do XX), para se constituir o trabalho abstrato, operou-se uma metanarrativa, segundo a qual as “coisas de mulher” não eram trabalho. Trabalho (abstrato) era apenas o que correspondesse a atos não femininos. O valor-clivagem é uma espécie de sombra do valor: está oculto, mas compõe o valor total.

Desta feita, de um lado, cou o trabalho abstrato que gera valor (na forma deste) e, de outro, as atividades “das mulheres”, não abstraídas enquanto trabalho e inaptas a gerar valor (diretamente, embora gerem indiretamente). Essas atividades femininas se desdobram num espelhamento do valor, o valor clivado/dissociado, constituindo o conceito de Scholz “valor-clivagem” (ou valor-dissociação). No olhar de Scholz, o valor que se

inscreve na forma e o valor clivado são duas faces do mesmo fenômeno, pelo que é necessário compreender a totalidade do valor e sua coimplicação interdependente (um não existe sem o outro). Se não existe valor sem clivagem, não existe capitalismo sem binarismo de gênero, e, logicamente, sem o patriarcado. Em consequência, enquanto houver valorização do valor total (forma-valor + dissociação), haverá machismo.

Porquanto, o valor que se reproduz tautologicamente, objeto da crítica de Nuremberg, para ela, deve ser a totalidade dialética entre essas duas dimensões, que se pressupõem: a forma-valor e a dissociação-valor. O valor total é o capital, são sinônimos. Ele não se reproduz só através da forma-valor, precisa do valor clivado também, pois não há sociedade só com trabalho abstrato – as demais atividades (femininas) são cruciais para a vida humana. O teorema da dissociação é a condição de possibilidade para que o nãoanalítico, o inabitual, o não comprovável pelos métodos cientí cos da razão instrumental, e o contingente possam ser compreendidos, uma vez que o valor-clivagem é o anverso obscuro do próprio valor. Na modernidade patriarcal são delegadas n’ “a mulher”, ou seja, são-lhe atribuídas e projectadas nela não só determinadas actividades, mas também sentimentos e qualidades (sensualidade, emotividade, fraqueza de entendimento e de carácter etc.). O sujeito masculino esclarecido que, como socialmente determinante, representa entre outras a força de se impor (na concorrência), o intelecto (relativamente às formas de re exão capitalista), a força de carácter (na adaptação aos desaforos capitalistas) e o qual ainda constituiu (inconscientemente), por exemplo, o mecânico de precisão masculino disciplinado da fase fordista na fábrica, está ele próprio essencialmente estruturado

sobre esta “dissociação”. Neste sentido, a dissociação-valor tem também um lado cultural-simbólico e uma dimensão psicossocial, que a meu ver só podem ser abordados com um instrumental psicanalítico. Segundo a tese da dissociação-valor, as esferas privada e pública, por igual dialecticamente mediadas, são idealmente concebidas como feminina e masculina respectivamente. Contudo, a relação de género claramente não “assenta”, objectivada, nos domínios da esfera privada e da esfera pública, como poderiam supor certas conjecturas estereotipadas. Sempre houve mulheres também na esfera pública, sobretudo na esfera da actividade capitalista remunerada; mas a dissociação simplesmente prossegue, até no interior da esfera pública.329

O trabalho abstrato que cabe na forma-mercadoria, gerando valor, e o trabalho doméstico (ou “não-trabalho”, pois não é abstrato e não gera valor) condicionam-se mutuamente, assim como as categorias universais “masculino” e “feminino”. Para o teorema do valor-clivagem, porém, não se pode admitir que houve uma divisão sexual do trabalho como propõem outras feministas marxistas, pois essa compreensão aloca tal divisão no plano da superestrutura (como o Direito, a religião ou a cultura), ou considera o trabalho feminino apenas reprodutivo.330 Para Roswitha, trata-se de um fenômeno estrutural, no qual os fatores materiais, culturais, históricos e psicossociais estão no mesmo patamar de relevância. Se o valor advém do trabalho passado, porque advém do tempo de trabalho socialmente necessário para gerar riqueza, ou então, do tempo futuro, quando se opera no mercado de capitais para gerar o valor por meio de projeções futuras de valorização da forma-mercadoria, o valor [macho] sempre advém do tempo, passado ou futuro. As atividades cindidas comezinhas, de labor cotidiano doméstico, também ocupam muito tempo, perfazendo uma divisão do trabalho durante o mesmo tempo: enquanto alguém vende trabalho abstrato, alguém desempenha tarefas clivadas. Lembrando que, segundo o teorema de Roswitha, não importa o gênero desses alguéns de carne e osso, porque as estruturas são trabalho abstrato masculino e tarefas clivadas femininas.331 Desse modo, as atividades dissociadas acabam produzindo o valor total, indiretamente, porque são um tempo socialmente necessário de trabalho

clivado para que o trabalho valorizável seja realizado. Por isso, a dissociaçãovalor também corresponde ao tempo, que, mediatamente, é um tempo de trabalho social necessário à reprodução do valor. Nesse sentido, Scholz até concebe uma divisão ‘social’ do trabalho a partir do gênero, que, na verdade, é uma divisão econômica. Ela não aceita que o trabalho feminino seja apenas reprodutivo (de trabalho vivo – gente) e o trabalho masculino seja produtivo (de trabalho morto – mercadoria). Isso também ocorre, mas, amiúde, todos os trabalhos são produtivos, na medida em que o valor total nal depende tanto do tempo de trabalho socialmente necessário para produzir gente quanto do tempo de trabalho socialmente necessário para produzir mercadoria. A nal, enquanto alguém “trabalha fora”, alguém precisa “trabalhar” em casa.332 Esse alguém, no mundo material, pode ser um homem ou uma mulher, tanto num papel quanto em outro. Porque o patriarcado estrutural também sobredetermina a cultura, usualmente, são as mulheres que fazem o trabalho clivado, mesmo quando desempenham trabalho abstrato, duplicando, ou triplicando sua jornada de trabalho. Destarte, o valor é androcêntrico, e o capitalismo se apropria do patriarcado ocidental com um contorno especí co, que concatena as relações de gênero aos processos de valorização e acumulação do capital. Por isso, alocar as mulheres em labores tradicionalmente típicos do masculino, mesmo na forma de trabalho abstrato, não descon gura a forma, pois o que é estruturante do sistema é a forma em si (para ela, sempre machista).333 O machismo é estrutural. Isso faz com que o feminismo liberal, que propugna a emancipação das mulheres por meio do empoderamento econômico, pela capacidade de consumo, pela “representatividade”, e pelas possibilidades de ocupar postos de trabalho (sendo o sucesso de nitivo ocupar altos cargos na burocracia estatal, na indústria cultural e no mundo corporativo), não altera a forma do valor e, portanto, não rompe com o patriarcado contemporâneo. Ou seja: o patriarcado atual (e seus correlatos, como o machismo, o sexismo, a violência de gênero, e a misoginia) só acaba com o m do capitalismo. Desta feita, o feminismo liberal, ao fomentar o valor e estimular a continuidade do capitalismo, alimenta o patriarcado (pois o capitalismo é o patriarcado, e vice-versa). No m das contas, o feminismo liberal não é sequer feminismo, porque opera a favor da perpetuação do patriarcalismo.

3.3 Patriarcado e capitalismo Ao passo que o capitalismo produz mercadorias fetichizadas, por meio do valor varão, produz também, ao mesmo tempo, um anverso, que escapa à produção tradicional de mercadorias e à forma-valor-mercantil, mas que se torna totalmente articulado a ela. Nesse contexto, as pessoas são desprovidas de seu caráter social e a sociedade é constituída por coisas, através da quantidade abstrata de valor. O resultado é o fetichismo, pela alienação dos membros da sociedade, porque a sociabilidade se constitui através dos produtos, que são coisas mortas desvinculadas da representação social de qualquer conteúdo concreto. Deste modo, o valor total é uma clivagem das formas contraditórias mais uni cadas no seio da lógica de produção capitalista. Para Scholz, a crítica do valor fundamental precisa ter em conta o caráter androcêntrico dele e perceber seu paradoxo, ainda mais porque discute mais amiúde a abstração do trabalho e o fetiche da mercadoria. Seguindo esse raciocínio, é preciso refutar associações teóricas entre feminilidade e valor de uso, e masculinidade com valor de troca, já que, para ela, todo valor[forma] é homem.334 Esta crítica do conceito de valor pensado de modo androcêntrico, tal como ela é formulada pela teoria da dissociação-valor como conceito abrangente, tem consequências não apenas para a “crítica do valor fundamental”, mas também para outras abordagens, que já no passado se debateram (ainda que na maior parte dos casos inconsequentemente) com a abstracção do valor e com o fetiche da mercadoria. É o caso particularmente do conceito de “valor de uso”, que se pode encontrar na esquerda e em muitas concepções feministas, colocado de modo enfático e em princípio positivo, porque pensado como exemplo do “feminino” que como tal já guardaria em si supostas potencialidades de resistência. Pois na correspondência valor de uso = feminino, valor de troca = masculino, ao mesmo tempo que se salvaguarda a subordinação do valor de uso ao valor de troca, as disparidades sexualmente especi cadas continuam a ser simplesmente derivadas de uma forma de mercadoria sexualmente neutra. A análise continua ainda à maneira androcêntrica, limitada ao espaço interior da mercadoria.

Segundo Kornelia Hafner, pelo contrário, já em Marx se conclui “que os próprios valores de uso aparecem como criaturas do capital”, e que a aceitação duma “utilidade pura” abstracta do valor de uso só aparece de forma generalizada depois de a forma de mercadoria se ter generalizado por toda a parte através da relação de capital (Hafner, cit. in Kurz, 1992). Para a “crítica do valor fundamental” de que aqui se fala, segue-se daí que a mercadoria só é “valor de uso” no processo de circulação, como objecto do mercado, e nessa medida também o valor de uso não passa de uma simples categoria do fetiche económico abstracto. Ele não designa a utilidade concreta do uso sensível-material, mas apenas o “usar puro e simples”, como valor de uso de um valor de troca. Do ponto de vista da dissociação-valor, o conceito de valor de uso é portanto, ele próprio, de certo modo parte do universo androcêntrico abstracto das mercadorias.335

Por essa visão, é como se a dissociação de gênero do valor só ocorresse na esfera da circulação, pois é no momento do consumo em que as mercadorias são usufruídas, degustadas, tocadas, sentidas. Somente no momento do consumo é que as mercadorias são usadas no plano sensível, de modo que o produto concreto se subtrai da forma-mercadoria (e da formavalor) para ser apenas o que realmente é: um chocolate, um sapato, um automóvel etc. O consumo, em si, está fora do contexto da forma econômica, mediado por uma esfera de atividades de reprodução, que se cruzam com outras atividades parcialmente mediadas (ou até não-mediadas pela forma-mercadoria): como o ato de uma mãe dar um chocolate ao lho, calçar-lhe sapatos ou o transportar de carro. É, por isso, que haveria uma tendência em acreditar que o “dissociado” encontra-se apenas no consumo, e não na produção. Trata-se de uma percepção sensorial do fetichismo, acreditando-se que este só se dá através dos sentidos, no exato momento em que alguém entra em contato corporal com a mercadoria. Na advertência de Roswitha, seria essa percepção reducionista do conceito de fetiche da mercadoria a responsável por associar o feminino ao valor de uso. Ocorre que a circulação é apenas um dos momentos da reprodução do capital no processo produtivo, e a valorização do valor ocorre em todas as suas etapas. “O uso e a fruição sensíveis, tal como as actividades com isso

envolvidas e as qualidades atribuídas à mulher como momento dissociado, são, portanto, imanentes à sociedade capitalista, ainda que não imanentes à forma do valor”.336 Por isso, para Scholz, qualquer visão marxista que desconsidere que o valor é sempre masculino não estará apta a compreender nem a forma do valor, nem as relações de gênero na sociedade burguesa. Para ela, enquanto a forma do valor é androcêntrica, as atividades ditas femininas (cuidado, sensualidade, acolhimento etc.) são despidas de forma. Não há valor feminino (de uso ou não), não há forma mercantil que não seja “homem”, pois tudo o que entra na forma é masculino, e o que está fora é o dissociado. O valor (que é clivado em forma-valor e valor-clivagem), segundo Scholz, tende a aparecer, mesmo na teoria social relacionada com a re exão do valor, como unidimensionalmente masculino, como um dado transhistórico. É como se o valor fosse uma massa disforme, que, porém, na verdade, reforça uma forma do valor androcêntrica com pretensão de ser universal. O que realmente ocorre, segundo Roswitha, é que “o consumo de meios de produção utilizados na economia empresarial, como máquinas, bens de investimento etc. não está relacionado com a dissociação; esses mantêm-se espontaneamente no ‘universo masculino’ do valor”,337 enquanto o feminino nunca consegue aceder à forma-valor. Pouco importa se as mulheres vendem força de trabalho (abstrato), pois a forma-valor é sempre masculina. Por isso, para ela, é óbvio que o valor dissociado não se limita ao consumo ou mesmo à produção de bens voltados ao uso, ao consumo, embora o núcleo do valor-clivagem seja a plêiade de caracteres femininos, como o amor, o afeto, o cuidado, a paciência, a resignação, a submissão, a assistência, o erotismo etc. “Aqui é difícil distinguir com exactidão entre o que é actividade obrigatória e manifestação existencial da vida. E é precisamente isso que torna acabrunhantes as actividades de reprodução femininas, ao invés da situação do ‘trabalhador abstracto’”.338 O “dissociado” assim de nido que, do ponto de vista do contexto androcêntrico da forma coberto pelo valor, no limite leva ao consumo de certo modo no vazio, aparece por isso, na teoria social masculina unidimensionalmente relacionada com a

re exão do valor, como a-histórico, uma massa mole e informe, tal como o feminino em geral na sociedade ocidental cristã, ao qual não se consegue aceder com a análise da forma do valor. Pelo contrário, o consumo de meios de produção utilizados na economia empresarial, como máquinas, bens de investimento etc. não está relacionado com a dissociação; esses mantêm-se espontaneamente no “universo masculino” do valor. O dissociado feminino é assim o Outro da forma da mercadoria, como o que está à parte; por outro lado, porém, permanece dependente e menosprezado, precisamente porque se trata de um momento dissociado no contexto de toda a produção social. Poder-se-ia então dizer: se à mercadoria corresponde a forma abstracta, ao dissociado corresponde a ausência de forma abstracta; no caso do dissociado, poder-se-ia falar paradoxalmente duma forma de ausência de forma, em que esta – para mais uma vez o sublinhar – logicamente já não pode ser compreendida pelas categorias do contexto interior à forma da mercadoria. A ciência e a teoria androcêntricas, na forma da mercadoria, não conseguem ter em conta esta relação, uma vez que elas têm de catapultar para fora da sua teorização e dos seus aparelhos conceptuais, como “não lógico” e “não conceptual”, o que cai fora da forma da mercadoria. A “sensibilidade” de que aqui se fala no contexto da “dissociação” é sem dúvida historicamente constituída. Isto é válido não só para as actividades das mulheres na reprodução (preparação dos bens para consumo, amor, cuidados, afecto etc.), que apenas surgiram no século XVIII com a diferenciação entre um sector de trabalho pago capitalista, por um lado, e um sector de reprodução privado doméstico, por outro (ver, por ex., Hausen, 1976), mas também para a constituição da necessidade em geral (3).339

Eis que o dissociado é o reverso da forma do valor, e a negação da forma mercantil, descolando o “feminino” da estrutura produtiva. Porém, é importantíssimo asseverar que isso não faz o âmbito feminino melhor do que o masculino aos olhos de Scholz, tampouco menos capitalista, ou menos alienado, até porque esse tal “feminino” é uma falsi cação ideológica, uma construção discursiva operada pela razão instrumental. A vida da mulher, epicentro da sociedade burguesa, comporta-se “como um espelho da alienação do trabalho abstracto no espaço funcional da economia empresarial

do capital”, de modo que “(…) o uso e a fruição sensíveis, tal como as actividades com isso envolvidas e as qualidades atribuídas à mulher como momento dissociado, são portanto imanentes à sociedade capitalista, ainda que não imanentes à forma do valor.” 340 A constituição da forma-valor, estruturalmente e desde a sua origem, dissociada, por meio de uma unidade negativa entre a forma-mercadoria e o valor-clivagem, faz com que as mulheres cujas atividades se limitam a uma vida doméstica sejam acometidas por outra ordem de alienação. As atividades femininas não-valoradas (dissociadas), fora da forma trabalho, são um espelhamento do trabalho que existe no espaço funcional da economia capitalista. Embora haja outras expressões do patriarcado anteriores ao capitalismo, neste, a relação entre os sexos adquire uma qualidade completamente nova, uma vez que a hierarquização sexual está atrelada à dissociação do valor. Não existe um feminino essencial e ontológico. Todas essas características supostamente atribuídas à mulher, como “delicadeza”, “cuidado”, “amor incondicional”, “dom da maternidade” são arti cias, discursivamente forjadas ao longo da história, com uma engrenagem estrutural muito peculiar no capitalismo. As mulheres que abraçam essa mitogra a estão alienadas pela ideologia. As “coisas de mulher” estão fora das formas produtivas do capital e, por isso, são socialmente inferiores. Mas isso não quer dizer que a tarefas dissociadas não sejam cruciais para a reprodução social e para a própria valorização do valor. Através delas, na vida privada, dá-se o momento do consumo das mercadorias, e, além disso, é imprescindível que alguém esteja realizando atividades não valorizáveis para que alguém esteja trabalhando nos moldes da abstração laboral. Por isso, a mulher que é apenas dona-de-casa para que seu homem trabalhe fora é alienada na medida em que se expropria dela, indiretamente, a valorização do valor (ao passo que as pessoas que trabalham na economia empresarial são diretamente expropriadas). Alguém tem que continuar realizando as ações que não se encaixam no trabalho abstrato, como cuidar dos lhos e dos velhos, cozinhar, lavar e limpar a casa. Dessarte, mesmo que a mulher ingresse no mercado de trabalho, é altamente oportuno que os discursos enunciadores de que o labor do lar é atribuição natural das mulheres continuem vicejando. Ademais, a mulher

cumpre um papel dissociado de estimular o homem (seu marido ou companheiro) a se submeter ao trabalho assalariado expropriador de maisvalor. Daí, advêm todas as construções sociais simbólicas sobre a boa mulher, prestimosa e dócil, que acorda para preparar o café-da-manhã e buscar o jornal de seu marido, que espera seu homem trabalhador ansiosa no portão da casa, que descalça os sapatos de seu varão exausto do dia de trabalho, que prepara o jantar primorosamente e, depois, apresenta-se “feminina”, sensual e desejável para o sexo – tudo isso para animar seu esposo a se resignar à sua condição de proletário, a nal, em seu imaginário, ele não tem os meios de produção, mas tem uma bela e dedicada esposa no lar, a quem deve sustentar e agradar. Esse modelo de família heteronormativa e monogâmica, de relações e de sexualidade, era completamente aderente ao liberalismo e ao fordismo. Com as alterações sociais do m do século XX, porém, aparecem con gurações em que o casal não precisa ser heterossexual, as pessoas podem viver sozinhas ou em relações poliafetivas etc, pois a dissociação tradicional (com esposa recatada e “do lar”) deixar de ser oportuna quando todas as pessoas precisam trabalhar para sobreviver – isso se houver trabalho. No pós-fordismo, é possível que todos desempenhem todos os trabalhos (abstrato e clivado) ou que nem o homem nem a mulher se responsabilizem pelo cuidado da casa e dos lhos341 (nestes casos, essas tarefas são delegadas a uma instituição prestadora de serviços onde trabalham mulheres ou à empregada doméstica).342 Nem mesmo nas uniões homoafetivas as con gurações da clivagem se alteram, sendo apenas alcançadas por diversi cações que se reconectam com o valor cindido. Inclusive, quando o homem é quem realiza as tarefas domésticas (como dono-de-casa ou trabalhador doméstico) e a mulher ocupa espaços tradicionalmente masculinos, a dissociação-valor remanesce, pois não se trata de uma questão de sexo biológico. Não importa se a pessoa real, concreta, que está realizando o trabalho abstrato ou a atividade dissociada, é biologicamente/identitariamente homem ou mulher, pois se trata de uma questão de forma, de estrutura. O que importa é que a dissociação-valor é feminina e o valor é macho. Minorias de casos, em que há uma “inversão” material dessa estrutura (como mulheres que ganham salários e homens que

cuidam dos lhos) ou sua diversi cação (como um casal de gays ou de lésbicas que realiza todas a atividades, remuneradas ou não), não alteram a forma geral do valor e sua clivagem. Na pós-modernidade, pode-se constatar agora uma nova mudança na relação de género. Contudo, como já se deu a entender, há que veri car a codi cação fundamental, no sentido da dissociação-valor, e a correspondente hierarquização sexual, tanto antes como depois, em todas as suas fragmentações, diversi cações, inversões de pólos, transformações e supraformações, reacoplagens e diferenciações pós-modernas; na existência da mulher de carreira ou do homem doméstico, tal como no futebol feminino ou no striptease masculino, no casamento de gays e lésbicas (…).343

Num esforço hipotético, diante de todas as transformações pósmodernas acerca de sexualidade, relações e identidade de gêneros, seria possível imaginarmos uma sociedade capitalista na qual o valor dissociado não estivesse vinculado a uma divisão binarista de gêneros? Na verdade, não. Primeiro, porque, por ora, há um fazer humano que permanece exclusivo das mulheres, pois mais que se tente desconstruir as relações sociais de gênero: engravidar, gestar e parir. Como a humanidade ainda precisa se reproduzir, e como ainda não há outro meio de nascer no planeta, essa “tarefa”, claramente clivada fora da forma-valor, continua sendo feminina. Mas e os homens transexuais que engravidam? E se a tecnologia avançasse e fosse possível nascer de outra forma? Seria possível imaginar uma sociedade capitalista não binarista e patriarcal? Ainda não, porque o valor capitalista se constitui dessa forma desde a sua origem, ou seja, a clivagem faz parte da sua morfologia obrigatoriamente, pois não há como compreender historicamente a moderna sociedade produtora de mercadorias sem sua metanarrativa, que é o iluminismo. Este engendrou os relatos dualistas de gênero e dissociou o valor para converter atividades humanas em trabalho abstrato, deixando de fora deste tudo o que reputou como “feminino”. É por isso que Roswitha Scholz precisa estruturar sua teoria em Karl Marx (pelas lentes da crítica do valor) e em Theodor W. Adorno. Portanto, a construção do valor é sexualmente especí ca: o valor é homem; o dissociado da forma-valor é mulher. A

totalidade dialética de ambos é o valor-clivagem: forma fundamental do patriarcado produtor de mercadorias. A clivagem é a sombra da forma do valor, para a qual não se olha, nem do ponto de vista conservador, nem pelas lentes do marxismo tradicional, da esquerda e dos feminismos. Roswitha Scholz quer mudar isso. As cisões que resultam da esfera feminina e do contexto de vida da mulher, com todas as suas idiossincrasias, são, ao mesmo tempo, elementos integrantes (da) e exteriores à forma-valor. A constituição do valor é sexualmente especí ca e produz uma repartição de papéis masculinos e femininos, cujas relações assimétricas, desde a estrutura produtiva, oprimem as mulheres. “A assimetria dessa relação, na qual o elemento sensível é marcado como feminino e por isso mesmo posto de lado e avaliado como inferior, justi ca a fórmula algo sensacionalista com que caracterizamos o patriarcado sem sujeito: ‘o valor é o homem’”.344 Roswitha está consciente de que a rmar que “o valor é o homem” tem uma força retórica e “sensacionalista”, mas ela quer mesmo chamar a atenção para esse aspecto obscurecido do modo de produção capitalista. O capitalismo é patriarcal. O patriarcado que conhecemos e experienciamos é capitalista. O mesmo molde socioeconômico opera com diversos pares de opostos oriundos da loso a moderna, como “sujeito X objeto”, “razão X natureza”, “dominação X submissão”, “civilização X barbárie” (onde estariam brancos X outras ‘raças’ também) etc. Nessa mesma lógica iluminista dual de se conceber o mundo, está o par homem X mulher, e, ante a isso, dirá Scholz que o gênero do capitalismo é masculino.345 Por essa especi cidade, o modelo civilizatório produtor de mercadorias suga sua condição de possibilidade da opressão das mulheres e das pessoas consideradas de “raças inferiores”. Então, para Scholz,346 embora o machismo estrutural ocidental tenha suas raízes culturais no helenismo, na modernidade, ganha um novo tônus, atrelado ao modo de produção do capital. O homem racional do esclarecimento (ou iluminismo) é obrigatoriamente masculino, impõe-se sobre a natureza e promove o progresso pelo intelecto. Nas sociedades pré-modernas, produzia-se sob outras relações de dominação (pessoais, e não coisi cadas pela forma-mercadoria), e o valor das coisas se determinava pelo valor de uso, tanto no âmbito agrário quanto no

artesanal. Isso ocorreu, inclusive, na fase mercantilista de acumulação primitiva, que contava com as normas das “corporações de ofício”, as quais, até mesmo, impediam a pretensão abstrata de obter lucro. A troca de mercadorias, naquele momento, não se dava através do que conhecemos como mercado em sentido moderno, marcado por relações de competência. Não se podia falar numa totalidade social como esta em que as formas “dinheiro” e “valor” se abstraem para se converterem em ns em si mesmos, com vistas à valorização do capital. A modernidade capitalista produtora de mercadorias é que trouxe a possibilidade de se criar mais dinheiro a partir do dinheiro, não apenas como escopo subjetivo de enriquecimento por parte dos indivíduos, mas como referência sistêmica do valor a si mesmo, por uma tautologia sem m.347 No capitalismo, as necessidades humanas tornam-se secundárias e o trabalho vira mercadoria, de modo que a capacidade humana de criação se torna heterodeterminada, não por uma dominação pessoal do burguês sobre o proletário, mas por conta dos mecanismos autômatos e anônimos reprodutores de mais-valor, a partir do momento em que as atividades produtivas assumem a forma do trabalho abstrato. A consequência disto é que a totalidade da vida se forja pelo automovimento do dinheiro em conexão com tal abstração laboral. Mas o valor do trabalho abstrato, para Scholz, precisa ser mais especi cado enquanto relação fetichista, para dar conta das tarefas realizadas pelas mulheres. A questão crucial é que tais atividades reputadas como tipicamente femininas estão alijadas do trabalho abstrato – não são “trabalho”, enquanto categoria do capitalismo fadada a gerar valor.348 Por essa lógica, o patriarcado também não pode ser compreendido como uma dominação pessoal do homem sobre a mulher. Nesse sentido, ainda que, segundo ela, no âmbito cultural, nossa tradição patriarcal tenha raízes na antiguidade ateniense, só pode ser verdadeiramente interpretada se zermos um recorte temporal, destacando o período histórico correspondente ao modo de produção capitalista. Então, para Scholz, devemos compreender o patriarcado que se origina no m do século XVIII e se estende até os dias presentes como um fenômeno especí co, e não como mera continuidade, evolução ou desdobramento dos períodos históricos anteriores.349 Pelas mesmas razões, não é demasiado deixar claro

que esse patriarcado, além de típico da modernidade e do capitalismo, é também, obrigatoriamente, ocidental. No machismo estrutural da modernidade ocidental, enquanto o feminino está associado ao cuidado, à sensualidade, à sensibilidade, à emotividade, ao acolhimento, à passividade, à paciência, à leniência, ao perdão, à tranquilidade, à resignação, à delicadeza, ao descanso, ao lúdico, ao erótico, à beleza, ao amor, ao carinho, ao afeto etc., o masculino vincula-se ao denodo, à assertividade, à coragem, ao empreendedorismo, à luta, ao desenvolvimento, à racionalidade, à violência, à e ciência, à inteligência, à conquista, ao desbravamento, ao pragmatismo, ao talento, à integridade, à produtividade, à força, à inovação etc. O modelo civilizatório do ocidente capitalista é que estabelece que o homem, sujeito por excelência, traz, em sua essência, características ativas capazes de propulsionar o progresso burguês, como a racionalidade, o ímpeto, a certeza e a agressividade, enquanto a mulher é naturalmente burra, passiva, indecisa e delicada. Ao passo que aos homens se reservam os domínios da política e da economia, a mulher deve cuidar das pessoas. O homem é o sujeito, a mulher é sempre apenas um corpo. Essa teia simbólicodiscursiva só foi possível devido às características da razão iluminista enquanto grande metanarrativa da modernidade, ao mesmo tempo em que o capitalismo, que forja a clivagem do valor, vincula-se à mesma razão instrumentalizada. Nesse sentido é que Roswitha resgata a primeira geração frankfurtiana. Basta uma breve consulta ao dicionário, de qualquer autor ou editora, para encontrar as verdades ocultas que estão na base da diferença. E isso ocorre tanto nos dicionários de língua portuguesa usados no Brasil, quando nos dicionários de espanhol/castelhano usados nos países latino-americanos hispanófonos. O homem é um nome identi cado com toda a humanidade: “homem” e “ser humano” são sinônimos no léxico. Enquanto o verbete “homem” corresponde a toda a espécie humana, homo sapiens, “mulher” seria apenas uma versão incompleta de humanidade, capaz de conceber ou dar à luz a outros homens. Além dessa sua característica mais marcante (sua função existencial), se zermos uma breve consulta, veremos que “mulher” também pode ser identi cada com a parceira sexual do

homem: cônjuge, companheira, amante, amásia, concubina etc. Cabe enfatizar que o lexicógrafo reproduz a tradição enciclopédica do Iluminismo, para o qual era possível, na esteira do racionalismo moderno de Descartes, criar uma coleção de conceitos, um catálogo de verdades (marca dos movimentos dicionaristas e enciclopedistas). Para o Esclarecimento, se a razão é capaz de saber a verdade sobre todas as coisas, seria perfeitamente possível que tais verdades fossem assentadas em uma lista sistemática, organizada em ordem alfabética. Assim, o dicionário é um catálogo de verdades racionais, ao menos, no imaginário dos sujeitos contemporâneos. Se ele diz que a mulher é apenas a mãe ou a amante, mas nunca o ser humano, está revelando claramente as verdades de nossa sociedade, evidenciando que as declarações formais de direitos humanos e igualdade não passam de retóricas vazias. A conceituação do dicionário leva em conta todas as utilizações populares das palavras, as crenças semânticas e culturais que dão sentido aos signos. Portanto, “homem” e “mulher” são colocados em seus devidos lugares nas de nições de dicionário, que é o nosso primeiro livro da escola e incute, nas crianças, as construções culturais arraigadas na sociedade.350

No imaginário iluminista, o homem é o sujeito racional que domestica a natureza, o herói burguês que derrota todos os mitos, e o vencedor capaz de alavancar o progresso. Por isso, os homens devem ser valentes, ambiciosos e dominadores. A mulher é ainda a própria natureza, cuja selvageria e rebeldia devem ser domesticadas com pulso másculo e rme. Dessa forma, embora a mulher seja um ser sensual, sua sexualidade deve ser reprimida, pois somente a sexualidade masculina pode ser violenta, ativa ou promíscua (o pretexto biológico é de que um homem pode engravidar várias mulheres de uma só vez e o inverso não ocorre; nesse metadiscurso, os homens devem sempre competir entre si e colecionar mulheres e vitórias, e as mulheres devem ser pací cas e passivas, servindo a um único homem). A clivagem do valor é um processo que surge no século XVIII e se desenvolve até nossos dias, mas vai adquirindo nuances. Nas relações de gênero capitalistas, as atribuições polarizadas estavam muito bem delimitadas nas sociedades do século XIX e meados do XX. Originalmente burguesa, a família nuclear heterossexual foi-se estendendo a todas as classes sociais, até se

generalizar em todo o ocidente, alcançando até os rincões, principalmente, com o impulso do desenvolvimento fordista na década de 1950.351 É notável que essa família tradicional coincida com os momentos de supremacia do capitalismo industrial, e que se altere a partir do m do século XX, no mesmo momento de ascensão do capital nanceiro sobre o produtivo. A fabricação e comercialização da pílula anticoncepcional (desde 1960), a legalização do divórcio (anos 1970) e o recente reconhecimento jurídico do casamento homoafetivo (a partir dos anos 2000) coincidem com momentos de transformação do capitalismo. Por ser um processo, o teorema do valor-dissociação deve ser compreendido em constante transformação. Como desde o m do século XX, as mulheres estão “duplamente socializadas”, responsáveis, ao mesmo tempo, pela casa, pela família e pela carreira, as contradições estruturais que acompanham esse novo desenho precisam ser tratadas pelo teorema da autora. Obviamente, as mulheres trabalham desde o princípio do capitalismo, mas essa recon guração metadiscursiva, pela qual toda mulher deve trabalhar (além de se casar e ser mãe), é uma nova aparência do valor-clivagem, mais acentuada neste século XXI. Para compreender essa novidade, Scholz reforça que é necessário um olhar dialético entre indivíduo e sociedade. As contradições da dupla socialização decorrem das tendências individualizadoras do capitalismo presente, com peculiaridades referentes ao papel individual da mulher a partir do neoliberalismo. 3.3.1 Materialismo histórico e patriarcado Na esteira da tradição materialista dialética, Scholz propugna a necessidade de historicizar o patriarcado, demonstrando as especi cidades desse fenômeno no ocidente e as especi cações que adquire no moderno sistema produtor de mercadorias.352 Para ela, o patriarcado ocidental tem origem cultural na divisão ateniense de papéis de gênero, atrelada às concepções de público e privado. No âmbito privado, estavam situadas a família, o afeto, o carinho, o amor, a sexualidade etc., elementos associados ao feminino, motivo pelo qual era a esfera de domínio das mulheres, para que o lar funcionasse como amparo e descanso aos homens (para que pudessem desempenhar seus papéis na vida pública). O espaço público, no

qual se desenvolviam a arte, a política, a guerra, o pensamento, as ciências, o trabalho, e a economia, era o domínio dos homens. Os pressupostos do patriarcado ocidental e cristão ligado à formavalor têm origem na Grécia antiga. É absurdo acreditar que somente os fundamentos da matemática e das ciências naturais tenham sido lançados na Grécia. Tais bases só puderam rmar-se sobre o solo de uma racionalidade especí ca, de cunho masculino e mercantil. A própria situação geográ ca da Grécia, sua dispersão em ilhas e o predomínio do tráfego marítimo, devido à falta de alimentos, favoreceram extraordinariamente a “intensi cação da troca de mercadorias” (Sohn-Rethel, 1978, p. 111), o que por sua vez ensejou a forma monetária. Nesse espaço geográ co surgiu a primeira cunhagem de moedas (Lídia), sendo adotada pelos gregos: segundo Sohn-Rethel, como sabemos, este foi um pressuposto histórico para o pensamento racional e abstrato, desvinculado do mito. Nesse meio social, a antiga nobreza agrária foi privada de seu poder, sobretudo nas cidades jônicas; a m de permitir os contratos no comércio multilateral de mercadorias, foi necessário criar um organismo jurídico e uma jurisdição pública. Tais instituições constituíram uma nova forma e um novo signi cado da esfera pública. O discurso perante o tribunal e a assembleia popular ganhou relevância; era imprescindível saber argumentar de modo abstrato e racional, a m de grangear poder e prestígio. Essa esfera pública que conduziu à criação da dialética, da lógica formal etc., era todavia reservada exclusivamente aos cidadãos masculinos. As mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. A principal tarefa da mulher era conceber um lho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. A hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral (cf. Reinsberg, 1989). A ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres. A esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na gura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. O homem precisava da mulher como “antípoda”, no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. Assim, já na antiga Atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada

etc. (cf. Reinsberg, 1989, pp. 42 s. e Pommeroy, 1985, p. 362) – atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade. Tal cisão é comprovada até mesmo nas mais abstratas concepções teóricas da antiga loso a. Para Platão, por exemplo, a matéria é algo amorfo e di cilmente apreensível pelo pensamento, sendo de nida (com gênero feminino) como a “hospedeira e ama das ideias”. Também para Aristóteles o amorfo como byle (traduzido em latim por Cícero como materia, de onde vem a designação corrente entre nós) é um conceito feminino.

Conforme Scholz, dessa especi cidade histórica da sociedade ateniense é que derivam as determinações simbólicas dos contornos de gênero binaristas do ocidente, onde se erigiu um discurso do que é “ser mulher” e do que é “ser homem”. A partir daí, no âmbito simbólico-cultural, forjou-se toda a concepção ocidental acerca do feminino e do masculino como categorias existenciais determinantes da formação da subjetividade e de todas as relações sociais. Para Roswitha, trata-se de um dado histórico e especí co. Feminino e masculino, enquanto determinações materiais dos sujeitos, não são categorias biológicas universais. Há muitas outras civilizações, por exemplo, baseadas na economia agrária, em que jamais houve essa divisão de papéis com tal con guração, tampouco a associação do binarismo à cisão da vida em público e privado. Há muitas civilizações não binárias e não cissexistas. Trata-se de um construto cultural, que, segundo ela, deriva, em todo o ocidente, da con guração social ateniense. Não é sem razão que, cerca de dois mil e quinhentos anos depois, mesmo que a mulher possa, hoje, estar nos espaços públicos, ainda lhe pesam as cobranças de satisfação dos papéis privados típicos do feminino ocidental, como ser “feminina”, casar-se e ser mãe, pois, ainda agora, sem isso, como na Grécia antiga, sua vida estaria incompleta – ou, mais drasticamente, teria sido em vão. Segundo a tese da autora, quanto mais cindido o público do privado, mais divisão dos papéis de gênero haverá. Como a Europa se constituiu por um processo crescente de institucionalização, a concepção de espaço público forjou-se de forma muito característica, edi cando um patriarcado peculiar que marca as relações de gênero no ocidente. No atual modo de produção, então, a clivagem dos gêneros, enquanto abstrações, ganha outro tônus, pois se vincula à forma do valor, fazendo com que o patriarcado ocidental capitalista seja ímpar.

A despeito das construções discursivas fazerem parecer que essa dualidade de essências (masculina e feminina), com características muito detalhadas e delimitadas, seja algo atemporal e ontológico, na realidade, da forma como as conhecemos, são um fenômeno especí co das sociedades capitalistas.353 Esse cisma absoluto em apenas dois gêneros possíveis com papéis sociais e qualidades preestabelecidas não tem precedentes na história da humanidade. Embora Atenas realizasse uma clivagem de molde ‘masculino está para o público, assim como o feminino está para o privado’,354 nunca houve uma divisão com esse grau ampliado de ideologia sobre o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”. Convém ressaltar, ainda, que mesmo essa dualidade simbólica da antiguidade se veri ca apenas na sociedade ateniense, não podendo ser relatada em nenhuma outra. Os exemplos históricos são convincentes. Berenice reinou em Cyrene (abaixo de Alexandria) em 210 aC. Safo, que deve ter vivido 610-560 aC, era poeta. Escreveu nove livros de poesia, dos quais alguns fragmentos permanecem. Por causa sua importância, foi cunhada em moedas que datam do século III dC, nove anos após sua morte, e também tinha a sua imagem e seu nome gravado nos vasos e bronzes, tornando-se presente em grande parte da arte romana. Esther governou a Pérsia em 460 aC. Vasti reinou desde a Índia até a Etiópia em 480 A.C. Hypatia (370-415 aC) estudou loso a, religião, matemática, poesia e arte, vindo a completar a sua formação superior platônica na Academia de Plutarco, onde ensinou geometria, astronomia, loso a e matemática. Houve várias rainhas egípcias, como as Cleópatras, Nefertari, Nefertiti e Hatshepsut. Na verdade, não se pode dizer que a mulher era subjugada em todo o mundo antigo, pois as construções culturais foram as mais diversi cadas e as dinâmicas sociais eram muito distintas.355

De maneira alguma, também, é possível identi car esse discurso binarista na Idade Média. Certamente, havia um elevadíssimo grau de repressão da sexualidade, principalmente, feminina, mas jamais uma opressão simbólica que determinasse o que são “coisas de menina” e “coisas de menino”. A acentuada misoginia medieval, tributária, principalmente, da escolástica, como forma de interpretar o mundo e a vontade divina, devia-se a um imenso temor da mulher e dos seus potenciais naturais que pareciam místicos

de tão incompreensíveis até então. Se a natureza era um objeto de domínio do feminino, controlar as mulheres era uma forma de tentar controlar a natureza. A caça às bruxas, na qual a Igreja cumpriu papel central, foi um empreendimento de controle e domesticação tanto do feminino quanto do natural. Na tradição católica, a mulher não é apenas uma fragmentada e incompleta (só existiu Eva, feita da costela), como impura e portadora do pecado, pois convenceu Adão a comer do fruto proibido. Por isso, a mulher católica só pode se redimir pela bênção da procriação. A gura de Maria, maior símbolo católico (mais importante que o próprio Cristo para essa religião), tem por m reverter o potencial maligno das mulheres. Para tanto, foi necessária a mitogra a de que uma moça virgem e casada fosse a mãe do messias, tornando-se uma representação honesta do amor divino. A fecundação da mãe de Jesus pelo Espírito Santo só reforça a ideia de que a mulher tem apenas duas dimensões, uma boa – a maternidade –, e uma má – a prostituição (ou mera sexualidade). Foi necessário dessexualizar a própria concepção de Jesus da Mãe do Filho Deus, para que ela pudesse ser a mais sagrada entre as mulheres, digna de tal propósito. Essa demonização da mulher e do sexo foi oportuna, pois a imposição da castidade do clero preservou o patrimônio da Igreja. Além das questões econômicas, também foi propícia a todas as políticas religiosas de controle social do corpo, dos comportamentos, por uma engenharia de docilização que sustentou mil anos de feudalismo.356

No mundo medieval, Scholz357 identi ca organizações sociais semimatriarcais entre algumas tribos germânicas, e destaca a relação da mulher com o domínio da natureza, de modo a centralizar os processos de cura. Porém, não havia, no Medievo, uma narrativa ideológica que separasse os gêneros “homem” e “mulher” em categorias abstratas dotadas de um rol muito especí co de características distintas, forçando os indivíduos de carne e osso a corresponder às expectativas criadas por tais abstrações. Conforme o privilégio exclusivista sobre os saberes comuns foi avançando, esta relação entre mulher e natureza acabou sendo tomada como mística, incontrolável e ameaçadora. Assim, o controle sobre o lugar da mulher passou a ser operado a partir de metanarrativas que articulavam o metafísico (vontade divina) com

o natural (criação divina). Com a derrocada do mundo antigo e o subsequente esfacelamento das instituições calcado na racionalidade clássica, o patriarcado precisou reestruturar-se. Nas sociedades pré-modernas, consoante a autora,358 as mulheres tinham possibilidade de exercer in uência no domínio público através de vias informais por conta de um baixo nível de institucionalidade da esfera pública (mesmo no Medievo, quando as concepções de inferioridade feminina da escolástica imperavam). No que se refere às metanarrativas, nas sociedades pré-burguesas, o que havia era uma concepção unívoca, um modelo “monogênero”, pelo qual a mulher era considerada uma variante do homem, uma vez que a vagina era nada mais que um pênis voltado para dentro.359 A despeito do homem ocupar um lugar simbólico de prestígio nos espaços públicos, as mulheres não eram exclusivamente de nidas como donas-de-casa e mães. Segundo Scholz,360 isso só começa a ocorrer a partir do século XVIII. Nas sociedades agrárias (como é o caso, inclusive, da medieval), a contribuição das mulheres era considerada tão valorosa quanto a dos homens. Foi, então, na modernidade, que a hegemonia da racionalidade relegou a mulher a um lugar completamente marginal, inclusive como não-sujeito pleno. O esclarecimento, cujos principais escopos foram justamente destruir todos os mitos e se apropriar da natureza, ocupou-se especialmente da mulher, que, anteriormente, era associada a ideações mágicas, míticas e naturais, convertendo-a num ser subserviente ao homem, mediante a edi cação de valores morais atinentes à família, à maternidade e ao lar. (…) Kant considerava a “incapacidade civil” e a “dependência natural” das mulheres. Embora considerasse Kant que, se a mulher é um “ser de razão”, deve necessariamente ser livre em suas escolhas, esta mesma razão, escreveu ele na “Antropologia”, destinará a mulher a seu papel de submissão de seus interesses particulares, aos da espécie, representada pela família. (…) Ao conceber uma respeitabilidade ao espaço doméstico, sobre o qual as mulheres deveriam “reinar”, Hegel reconheceu um estatuto de sujeito às mulheres “do lar”, mas por outro lado as exclui de qualquer participação na construção das civilizações (…).361

Interessante notar que esse metadiscurso não estava apenas no pensamento conservador de Kant, mas também em Hegel, cuja dialética, invertida, inspirou o marxismo. Foi a razão esclarecida (e toda a loso a moderna, sua lha) que redigiu essa grande metanarrativa pela qual a mulher é semirracional: suas qualidades referem-se à emotividade, à sensibilidade, à sensualidade e a tudo o que não é cerebrino. Todavia, para Scholz (1996), essa dicotomização existencial que obrigou a mulher a ocupar apenas um espaço possível, como “rainha do lar”, apenas se tornou hegemônica e de nitivamente estruturante da sociedade quando imbricada no processo de valorização do capitalismo. Amiúde, não foi a cultura da sociedade moderna nem a loso a esclarecida que determinaram a dissociação dos papéis de gênero, mas sim a dissociação do valor, o que foi, aí sim, ao mesmo tempo, dialeticamente, fomentado e propagado pela ideologia. Num raciocínio materialista, para Scholz, o que estrutura a sociedade é o modo de produção, e não as ideias (aí está a dialética invertida marxista, que deve se afastar do idealismo hegeliano, inclusive, machista). Portanto, em verdade, foi a estruturação do processo de produção de mercadorias, através da valorização, que, associada ideologicamente ao esclarecimento, realizou de nitiva e auspiciosamente uma dissociação entre masculino e feminino, alijando a feminilidade (enquanto arquétipo metanarrado) do pertencimento à organização capitalista. Ademais, o natural (sempre atrelado à mulher e ao feminino) foi totalmente preterido em prol do arti cial, do desenvolvimento, da tecnologia, da ciência e do progresso – categorias racionais (iluministas) cujo domínio e possibilidade de realização foram reputados como exclusivamente masculinos. O sujeito racional do esclarecimento sempre foi homem, do progresso capitalista também. Desta feita, esse sistema dual de gênero é histórico: tem sua origem no século XVIII, seu desenvolvimento no século XIX e adentra a primeira metade do século XX. É nesse período, coincidente com a cavalgada iluminista, em que o relato de que o único lugar da mulher é a casa se hegemoniza. A partir da modernidade é que toda concepção de gênero opera por meio do dualismo “masculino X feminino” (como um par de opostos que se pressupõem), o que só se possibilitou pelo advento da razão instrumental, responsável por esse grande metarrelato sobre toda a existência.

3.3.2 Ideologia, machismo,

psique e cultura

As atividades femininas representam o reverso do trabalho abstrato, propiciando uma associação do feminino e da feminilidade ao que não é racional e produtivo, como o afeto, o cuidado, a delicadeza, o amor, a sexualidade, a passividade, o acolhimento, a empatia, a sensualidade, o perdão, o erotismo, a paciência, a emotividade, o lirismo, os sentimentos etc. De outro lado, estão as qualidades de domínio do masculino, como a racionalidade, a inteligência, a força, o pragmatismo, a proatividade, o denodo, o foco, a gana, a lógica, a velocidade, o controle, a produtividade, a assertividade, o progresso etc. O mundo empresarial, o mercado, a economia, a ciência, a universidade, a tecnologia, a política, o Estado, o Direito, a burocracia e a polícia são todos espaços de domínio do masculino – não dos homens cisgêneros, necessariamente, no sentido biológico (ter cromossomos XY, pênis etc.), mas são lugares do arcabouço de características associadas à masculinidade, de modo que, ainda que as mulheres ocupem esses espaços (como vieram ocupando desde meados do século XX até hoje), terão de emular o masculino. Cabem às mulheres as atividades dissociadas (não geradoras de valor), já que são próprias do mundo feminino irracional, afeitas às idiossincrasias da feminilidade: ser mãe (engravidar, educar e cuidar dos lhos), preparar os alimentos, limpar e conservar a casa, lavar a louça e a roupa, cuidar dos idosos e dos doentes, manter-se bela, delicada e feminina etc. Tudo o que gera valor diretamente é masculino, o que motiva a autora a a rmar que “o valor é homem”. Ocorre que os papéis relegados à mulher, a despeito de não se desdobrarem em trabalho abstrato, são necessários à valorização do valor total, embora não produtores de valor (varão) em si, pois as pessoas precisam nascer, crescer, ter higiene, alimentar-se, conservar a saúde, aprender, morar, dormir, vestir, envelhecer… Sem isso, não há sociedade, e, consequentemente, não há capitalismo. Isto porque é possível haver coisas úteis sem que produzam valor, no sentido da conceitual economia marxiana: Uma coisa pode ser valor de uso sem ser valor. É esse o caso quando sua utilidade para o homem não é mediada pelo trabalho. Assim é o ar, a terra virgem, os campos naturais, a madeira bruta etc. Uma coisa pode ser útil e produto do trabalho humano sem ser mercadoria. Quem, por meio de seu produto, satisfaz sua

própria necessidade, cria certamente valor de uso, mas não mercadoria. Para produzir mercadoria, ele tem de produzir não apenas valor de uso, mas valor de uso para outrem, valor de uso social.362

Roswitha Scholz está propondo uma teoria materialista do patriarcado, pois, desde seus argumentos, as relações de gênero na sociedade burguesa estão além de uma compreensão meramente sociológica. Não por isso Scholz despreza os fatores sociais, culturais e psicológicos. Inclusive, sua formação original é em psicologia social e é, a partir de uma perspectiva dialética que coteja dialogicamente a materialidade e a cultura, que ela compreende o machismo estrutural. Certamente, os fatores da cultura e a formação psicossocial que atravessa o aparelho psíquico dos indivíduos são extremamente relevantes, pois é através disso que se realiza, de fato, o patriarcalismo. Quem permite o automovimento das formas do capitalismo e a perpetuação da sociedade das mercadorias são as pessoas de carne e osso. No dia em não mais forem condescendentes com o sujeito automático, a materialidade se altera, porque, sem uma intervenção externa, ele nunca irá parar. Porém, o equívoco é supor que o sexismo e o binarismo são produtos de interações sociais forjadas pela cultura ou que os comportamentos machistas nascem na psique humana. Por isso, nem a antropologia nem a psicanálise dão conta integralmente de explicar esses fenômenos, embora sejam bastante relevantes para isso. Se a explicação fosse psicanalítica, poder-se-ia adotar o modelo edipiano freudiano363 para se a rmar que: o menino, ao se tornar dominante, cria uma desidenti cação com a mãe e uma repressão do feminino para formar sua identidade masculina, ao passo que a menina se identi ca com a mãe para assumir sua própria identidade feminina e reproduzir o papel de submissão doméstica.364 O problema é que essa teoria somente seria aplicável no início da contemporaneidade (quando Freud propôs o “complexo de édipo”).365 Tal modelo freudiano só seria cabível num modelo clássico de família heteronormativa, onde há pai e mãe (que permanecem casados), lho e lha criados pelos pais heterossexuais durante toda a infância, e dentro da qual os papéis de gênero são estritamente os da modernidade clássica (pai trabalhador e mãe dona-de-casa). Com o avanço

do tempo e a dissolução desta família nuclear clássica nas sociedades capitalistas, esse modelo teórico restaria obsoleto. Além disso, argumenta como se houvesse essas categorias metafísicas “o menino” e “a menina”, nas quais se pudessem encaixar todas as crianças do planeta, de todos os lugares e em todos os tempos, o que não corresponde à realidade. É como se todo menino e toda menina fosse a replicação do mesmo sujeito universal do iluminismo, e, por isso, o mesmo modelo teórico seria aplicável a todos os infantes. Outrossim, pressupõe a família tradicional do século XIX e início do XX. Sem essa família universal padrão, como as pessoas continuariam a forjar psiquicamente sua identidade de gênero? Seria o caso de a rmar-se que a cultura determina as identidades subjetivas de modo coercitivo, de fora para dentro, e, a partir desse referencial externo que relata como ser homem ou mulher, os indivíduos constituem psiquicamente seus referenciais identitários subjetivos. Então, para “salvar” o modelo de Freud,366 a solução teórica seria de que esse masculino que o menino emula e o feminino que a menina introjeta não estão no pai ou na mãe, necessariamente, como pessoas concretas, mas são arquétipos dados pela cultura. Na terminologia da própria psicanálise, seriam estruturas superegoicas, das quais mãe e pai são representantes, que podem ser substituíveis.367 Neste sentido, nessa segunda versão da teoria, “masculino” e feminino” seriam, ainda mais acentuadamente, universais abstratos típicos da razão esclarecida, e todo sujeito (universal) tivesse sua identidade constituída pelo mesmo modelo, porque a cultura forjaria o superego de todo e qualquer ser humano. Acompanhando o raciocínio de Roswitha Scholz, diríamos que está correto e incorreto ao mesmo tempo. Na esteira do pensamento dela, é razoável a proposição de que arquétipos culturais de gênero constituem as identidades subjetivas, através de metanarrativas do que são o masculino e o feminino. Porém, esses arquétipos não podem ser compreendidos como dados antropológicos na sociedade produtora de mercadorias, como o seriam em outras sociedades (mais um momento em que Scholz encontra a Escola de Frankfurt, também famosa por cotejar a psicanálise freudiana com o marxismo). Essa dualidade de gêneros está imbricada na forma do valor; não é essencial, biológica nem a-histórica. A tese de Freud estaria certa, porque

os seres humanos, na sociedade das mercadorias, tecem suas identidades de gênero a partir de referenciais abstratos externos; mas está parcialmente incorreta porque essas abstrações não advêm nem da cultura nem da psique, mas sim da valorização do valor, do modo de produção capitalista. Ainda, feminino e masculino não são abstrações totais ontológicas nas quais sujeitos universais (homens e mulheres) buscam sua identidade, por assim dizer, pois esse seria um pensamento idealista e iluminista. Seguindo os passos materialistas de Karl Marx, sabemos que, primeiro, vêm as relações concretas e, depois, os desdobramentos abstratos. Não é a razão iluminista que determina a vida. O modo de produção capitalista desdobra a realidade em abstrações formais, como o valor e a mercadoria; depois, estes condicionam a vida concreta, dialeticamente. Essa é a compreensão de Scholz sobre o dualismo de gêneros: o valor, arquetipicamente masculino, dissocia-se no seu anverso feminino, oportunizando as metanarrativas iluministas e, depois, essas categorias, dialeticamente relacionadas entre si e com a cultura e a psique, condicionam os comportamentos humanos. É um movimento dialético. A ideologia está na dialética entre todas as formas sociais (aparelhos ideológicos) e econômicas, e seus impactos na psique e na cultura. Desta feita, a explicação psicanalítica é válida, desde que, primeiramente, adapte-se aos outros modelos de sociedade e de família que apareçam ao longo do desenvolvimento capitalista, de modo que o masculino mimetizado pelo garoto, e o feminino, pela garota, não estão no pai e na mãe de carne e osso, mas em arquétipos metafísicos. Em segundo lugar, tais arquétipos não são quaisquer construções culturais que poderiam ocorrer em qualquer forma social; eles são uma exclusividade da sociedade capitalista. A única “ideologia de gênero” que existe na sociedade capitalista é essa que cliva a humanidade em homens e mulheres, como se houvesse apenas esses dois gêneros (masculino e feminino), cada qual com um conjunto de características distintas do outro e bem marcadas, como se não houvesse outra possibilidade de existir fora do binarismo. Por isso, em Scholz, as dimensões cultural, social, psicanalítica e material do patriarcado estão no mesmo patamar de importância para sua compreensão, todas relacionadas mutuamente, coimplicadas. Todavia, há um fator preponderante no que se refere ao atravessamento das narrativas sobre

os gêneros: a dimensão material (o valor-clivagem) que estrutura os arquétipos culturais introjetados psiquicamente pelas pessoas. Aí, o caminho de compreensão seria o materialismo histórico e dialético. Não é que toda pessoa seja replicante do mesmo sujeito universal kantiano e por isso o iluminismo esteja correto; a verdade é que o capitalismo e a razão esclarecida convertem todas as pessoas no mesmo sujeito-mônada, através de condicionamentos operados pela ideologia desde as formas sociais constituídas pelo capital. Por isso, os fenômenos que se veri cam na sociedade capitalista não têm paralelo em nenhuma outra, no tempo ou no espaço. O materialismo dialético de Marx, tomado por Roswitha, está sempre fazendo o caminho inverso ao do idealismo: modo de produção (material) → formas abstratas (fetichistas) → cultura e comportamentos. Temos, portanto: valorização do valor → valor-clivagem → binarismo masculino/feminino e homens e mulheres determinados a atender a esses padrões. Segundo Scholz, o patriarcado produtor de mercadorias não está cindido num âmbito público que abarca diferentes esferas (política, economia, ciência, tecnologia etc.), domínio dos homens, e um âmbito privado (lar), domínio das mulheres. Essas diferentes searas são relativamente autônomas, por um lado, e, por outro, condicionam-se dialeticamente e reciprocamente. A grande questão é que o âmbito privado não deriva do valor: é um âmbito dissociado, no qual elementos como amor, cuidado e carinho, que se contrapõem à lógica do valor, podem estar presentes. Na esfera pública, só cabem os caracteres típicos do valor, como a frieza, a celeridade, a competitividade, o rendimento e o resultado. Por isso, não só o mercado está condicionado por qualidades atinentes ao “masculino”, como também o Estado. Na política, as qualidades dadas como femininas são indesejáveis. Ao passo que o mundo do trabalho é estruturalmente masculino, a sociedade política condiciona-se pela falolatria. A partir dessa relação entre a esfera privada e a esfera pública, também se explica a existência de alianças masculinas baseadas na aversão ao “feminino”. Assim, todo o Estado e a política se constituem, desde o século XVIII, sobre os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, enquanto alianças masculinas. Isso não quer dizer que o patriarcado “seja xo” em esferas

dissociadas dessa maneira. As mulheres, por exemplo, agiam no local de trabalho desde o início. No entanto, aqui também se mostra a divisão: as mulheres ocupam cargos menos valorizados na esfera pública, ganham menos do que os homens e, apesar de Angela Merkel e cia., para elas, o caminho para posições de liderança é bem mais custoso. Tudo isso aponta para a divisão do valor como um princípio universal formal da sociedade (não divisível mecanicamente em esferas) em um nível superior de abstração. Isso signi ca que o efeito da divisão do valor passa por todos os níveis e áreas e, portanto, também pelas diferentes áreas da esfera pública. [tradução livre].368

O fato de haver dirigentes políticas do sexo feminino não muda a estrutura do valor-dissociação, muito menos o fato das mulheres ocuparem postos de trabalho abstrato, como aliás, o zeram desde o desenvolvimento mais remoto do capitalismo. Não é uma questão de representatividade, mas de forma produtiva. A representatividade cumpre o papel de sinalizar às meninas que podem ser outras coisas, além de donas-de-casa, mas não abala o patriarcado. Diante da teoria de Scholz,369 transformar a desigualdade de gêneros numa disputa identitária dissolve todo o conceito, subsumindo todos os níveis do patriarcado capitalista e todo os seus mecanismo e estruturas num mesmo conceito (machismo), sem compreender as diferenças qualitativas. Inclusive, a teoria da dissociação-valor não propõe que se monte uma compreensão social apenas desde o ponto de vista do valor (como propõe a Wertkritik fundamental), pois isso também corresponderia à lógica androcêntrica universalista da identidade. Além da compreensão do valor, pela conversão de trabalho social médio em trabalho abstrato e sua condensação nas formas mercadoria e dinheiro, é imprescindível perceber que o valor dissocia o trabalho doméstico e tudo o que se refere ao mundo da vida privada da sua forma. Tanto o trabalho quanto todas as formas do capital têm a pretensão de serem universais abstratos, destituídos de especi cação de gênero, com a nalidade de forjar uma falsa igualdade entre as condições de homens e mulheres na modernidade. Ocorre que a própria forma do valor é dissociada do feminino. Na relação de gênero formada como relação de cisão, os momentos da reprodução material, cultural e psíquica, socialmente necessários, mas que não se deixam expor sob a

forma do valor, são excluídos da igualdade e da universalidade ínsitas à socialização do valor, razão pela qual são levados a assumir uma forma mutilada, na qual prolongam vegetativamente uma existência muda, como sombras da forma do valor. E justamente porque não se deixam exibir do ponto de vista objetivo e sob a forma do valor, resta igualmente inútil querer reivindicar a inclusão dos momentos cindidos na abstrata universalidade delineada pela forma do valor. A falsa e negativa universalidade baseia-se precisamente na cisão, sem a qual não pode existir e tampouco ser pensada. Inversamente, o que é cindido não constitui, de sua parte, nenhuma ‘autenticidade’ social, cultural e psíquica, na qual o universalismo abstrato pudesse ser positivamente dissolvido. Enquanto aquilo que se cindiu, o cindido é, antes do mais, reduzido e mutilado; a superação da relação de cisão, e, com esta, da própria relação de valor, só é possível com uma superação de ambos os lados.370

Nesse contexto, a dominação patriarcal e a misoginia ganham contornos especí cos. A forma abstrata do valor que se debruça sobre as mercadorias acaba se projetando ideologicamente sobre todos os princípios que são necessários ao seu universo de produção, como a competição, a racionalização e a dominação – elementos constitutivos típicos da virilidade do homem moderno.371 Por isso, em termos empíricos, é plenamente possível, por exemplo, que as mulheres não atuem apenas de um modo meramente parcial no interior da esfera abstrato-universalista do universo do valor, senão que também consigam fundir-se a ele, fazendo carreira etc. Nessa medida, são ‘sujeitos’, isto é, estruturalmente quase ‘masculinos’, ainda que, na maior parte das vezes, sejam-no sob formas identitárias paradoxalmente fraturadas. A relação de segregação enquanto tal, em sua lógica, não é todavia afetada com isso. As mulheres que fazem carreira, por exemplo, não desmentem essa relação, mas a representam como sujeitos diante das demais mulheres (e, de certo modo, perante a si mesmas). Enquanto perdurar a relação do valor, a cisão enquanto tal continuará a existir igualmente num sem-número de formas partidas e fragmentadas.372

Mas segundo as premissas do teorema do valor-clivagem não se pode adotar nenhuma forma linear de compreensão para uma análise do patriarcado que se constitui pela forma da mercadoria, tanto ao longo do tempo, como nas diferentes regiões do mundo. Como já exposto acima, Scholz adverte que sua teoria é mais crítica porque está disposta a dotar a dialética negativa adorniana e a permanecer sempre crítica a si mesma também, reconhecendo suas limitações. Segundo ela, o patriarcado capitalista não evoluiu de igual maneira em todas as sociedades, pois o capitalismo convive com outras relações de gênero decorrentes de modelos culturais ancestrais, e outras relações patriarcais (como as não ocidentais), no curso do desenvolvimento do mercado global. As relações de gênero não se apresentam da mesma maneira em todo o planeta, nem em todo o decorrer da história recente do capitalismo no ocidente. O “patriarcado-coisi cadomoderno-ocidental” 373 admite outras tessituras quanto ao gênero sem perder a especi cidade do valor clivado. É preciso insistir na relação entre essência e aparência quando há um princípio formal (forma-valor varão) que determina todas as relações sociais. O desenvolvimento das forças produtivas e da dinâmica do mercado criava paradoxos ao impor que as mulheres se distanciassem de seus papéis tradicionais para que seu trabalho abstrato pudesse também ser explorado. Desde os anos 1920, mas de maneira mais contundente após a segunda grande guerra, na década de 1950, cada vez mais mulheres estão incorporadas no mercado de trabalho formal, o que fez com que, do ponto de vista jurídico-formal, homens e mulheres precisassem ser equiparados.374 O pressuposto racional do contrato de trabalho exige sujeitos de direito contratantes como partes iguais para mascarar a assimetria de relações concretas. Se o trabalhador homem é igual ao tomador de seu serviço, do ponto de vista legal/formal, para celebrar o contrato, o mesmo ocorre com a trabalhadora mulher. Ou seja, se trabalhador (homem) = empresa, e trabalhadora (mulher) = empresa, todos sujeitos de direitos, logo, homem = mulher. Disso adveio a necessidade jurídica de equiparar formalmente homens e mulheres em todas as legislações ocidentais.375 Ocorre que, ao mesmo tempo em que essas mulheres se integraram à sociedade “o cial” do capitalismo, não deixaram de ser as responsáveis “naturais” pelo cuidado da

casa, da roupa, da louça, da comida, dos lhos, dos enfermos e dos idosos. Essa dupla socialização (ou “dupla/tripla jornada”) fez com que o valorclivagem adquirisse uma nova qualidade. As velhas relações de gênero burguesas já não se ajustam ao que Scholz denomina “turbocapitalismo”, com suas exigências de exibilidade.376 Essa exibilização alcança, então, a dicotomia estanque dos papéis de homens e mulheres. Todavia, isso não signi ca necessariamente que as mulheres tenham alcançado mais liberdade e relevância nos espaços de decisão, embora isso possa ter ocorrido em algumas partes do mundo. Passaram já alguns anos após a publicação das de nições de posição sobre a meta-estrutura abrangente da dissociação-valor aqui resumidamente referidas e há algumas coisas a modi car e precisar, como vou mostrar. Assim, por exemplo, cou entretanto mais claro para onde tende o desenvolvimento pós-moderno do patriarcado produtor de mercadorias: chega-se não só às referidas transformações e supra-formações, reacoplagens e inversões de pólos, mas, na onda da crise estruturalmente condicionada do sistema capitalista que cobre todo o mundo, também a um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias à escala global. Nas violentas rupturas sociais da crise mundial, as mulheres (e hoje mesmo na sua imagem ideal, ao contrário do que acontecia até à fase fordista) são responsabilizadas já não só pela esfera da reprodução, mas, ao contrário dos homens, são responsabilizadas em igual medida pela lida da casa e pelo ganhapão, sendo que se mantém o seu menosprezo, apesar ou talvez por causa disso. Assim se cobrem de ridículo aquelas apreciações optimistas que desde meados dos anos oitenta consideravam a emancipação das mulheres já realizada, ou que continuam mesmo agora a a rmá-lo. A posição da crítica da dissociação-valor opõe a estas tendências de asselvajamento o objectivo da superação do valor, da forma da mercadoria, da economia de mercado, do trabalho abstracto e da dissociação; uma perspectiva para a suplantação de toda a relação da produção de mercadorias, que tem de abranger não só o ponto de vista material, mas também o ideal e o psicossocial.377

A atomização social e a individualização ganham terreno num contexto em que as formas seguras e tradicionais da modernidade se esfacelaram.

Diante de uma con guração econômica mundial cada vez mais perversa, sem que as relações de gênero se alterem substancialmente, a hierarquização entre homens e mulheres não desparece. Mormente, numa maximização da classe média, e numa lógica de ganhadores e perdedores, as mulheres ainda ocupam posição especí ca.378 Por mais que se reconheçam transformações pósmodernas do patriarcado produtor de mercadorias, veri cam-se “supraformações, reacoplagens e inversões de pólo”,379 mas o valor permanece estruturalmente condicionado pela dissociação. Mais do que isso, para Scholz (2000), há um “asselvajamento” desse patriarcado em escala global. A precarização das relações de trabalho fez-se acompanhar pela pulverização da família tradicional, de modo que, da mesma forma que o homem troca de emprego continuamente, também se relaciona com diversas mulheres, sem se xar num único relacionamento, eixo da família nuclear.380 A família tradicional estava para o capitalismo industrial, no qual era usual o trabalhador permanecer no mesmo emprego (e no mesmo casamento) a vida toda, assim como as novas formações de família381 estão para o capitalismo nanceiro. Com a pulverização pós-moderna das relações econômicas e sociais, a volubilidade é a regra, mais para homens do que para mulheres, pois sobre estas ainda recaem os arquétipos de submissão, resignação e cuidado. Essa recon guração retirou do homem a obrigação de ser patriarca e provedor de sua família por toda a sua existência. Como a mãe é a única responsável pelo cuidado dos lhos, os homens se vão, e elas se tornam o esteio da casa em todos os sentidos. Por isso, na maioria dos casos, a recon guração do patriarcado capitalista pós-fordista só trouxe mais sofrimento às mulheres, especialmente, pobres e não brancas. Com o desmantelamento social e o recrudescimento neoliberal, estrangulando o Estado social, através de imposições de medidas coercitivas e administração das crises, o patriarcado tornou-se ainda mais cruel para as mulheres marginalizadas do mundo. A dupla socialização atual das mulheres é, na realidade, um paradoxo, pois ainda é funcional numa tentativa de sustentar um patriarcado capitalista em desmoronamento.382 As mulheres permanecem majoritariamente responsáveis pelas tarefas do valor clivado (casa e lhos) e, ao mesmo tempo, submetem-se à extração de mais-valor

pelo trabalho abstrato, com salários menores que os dos homens.383 Por isso, geralmente, têm três jornadas de trabalho. A fundamentalidade da relação de dissociação-valor mostra-se precisamente no facto de para ela não haver qualquer correspondente conceito fundamental e geral. Pois, como as esferas públicas gerais da economia, da política e da ciência são conotadas como “masculinas”, esta atribuição reproduz-se no entendimento da teoria como tal, devendo os homens em princípio ser também responsáveis pelo “império do conceito”. E tal como a dissociação se mostra, mesmo estando as mulheres já sempre na esfera pública, o mesmo se aplica à teoria e ao desenvolvimento conceptual: também mesmo na própria elaboração teórica, por assim dizer, apenas a teorização do insusceptível de generalidade é atribuída às mulheres e por elas assumida com manifesto apreço. E também neste sentido, na reprodução teórica da responsabilidade prática pelas actividades dissociadas da reprodução, elas são de certo modo identi cadas com o cuidar, tal como até em privado e no sector nanceiro lhes seriam reembolsados essencialmente créditos de con ança.384

No “colapso da modernização” apontado por Kurz (2004), o capitalismo está “perdendo as estribeiras”, mesclando racionalidade e irracionalidade,385 de modo que as metanarrativas do iluminismo ainda são conservadas quando oportunas para valorizar o valor, e desmanteladas quando isso for mais interessante para o capitalismo.386 Vale tudo para o valor continuar a se valorizar. Assim, por exemplo, grupos de autoajuda para controlar os efeitos da crise, no chamado “Terceiro Mundo”, são executados por mulheres, de modo que, no momento em que a produção é governada por just-in-time, as atividades de reprodução são muito mais difíceis de se realizar do que eram antes. De certa forma, essas tarefas recaem sobre as mulheres, duplamente sobrecarregadas. Em geral, hoje, atribui-se às mulheres o papel de gerentes da crise. Elas têm que servir como “meio de limpeza e desinfecção” (Christina Türmer-Rohr) quando o carro estiver preso na lama. Também o grito que reivindica cotas de mulheres em posições de gerência (que ressoa especialmente ruidosamente desde 2008) deve ser considerado neste contexto. Na minha

opinião, seria errado ver nisso uma tendência para uma forma posterior de emancipação; ao contrário, é uma espécie de sexismo invertido. [tradução livre].387

Nesse cenário, conforme Scholz, a violência masculina sobre as mulheres tende a aumentar nos níveis mais diversos, ao passo que a constituição psíquica das mulheres sofre alterações decorrentes do duplo papel que precisam assumir.388 A mulher é violentada pela exploração no mercado de trabalho, e pela sobrecarga da dupla/tripla jornada ao se atribular nas atividades do valor dissociado quando está fora de seu posto de trabalho formal (nunca descansa), e, ao mesmo tempo, continua submetida às violências de gênero e subjugos sociais decorrentes dos discursos que sustentam sua inferioridade existencial. Por tudo isso, o Theorem der Wert-Abspaltung não pode desconsiderar, de maneira nenhuma, as diferenças socioculturais das diversas regiões do planeta. É possível que, nos países de capitalismo avançado, tenha havido um incremento da participação política e econômica da mulher na sociedade, com ampliação de direitos e maior in uência decisória, contudo, em alguns lugares, a expansão voraz do mercado global levou a um embrutecimento do patriarcado. Ainda dentro de uma mesma realidade geográ ca, há outros recortes que fazem com que nem todas as mulheres se encontrem na mesma situação. Para falar dos locais de capitalismo central, a autora cita o exemplo de seu país, a Alemanha, onde as mulheres germânicas alçaram signi cativo grau de relevância sociopolítica e ocupam cargos de gestão e comando, mas as mulheres imigrantes seguem sendo serviçais e cuidadoras exploradas, recebendo salários baixíssimos. Menciona também os EUA, onde as mulheres que vivem nos guetos de miséria sofrem um patriarcado cada vez mais brutal.389 O mesmo ocorre nos países africanos e latino-americanos, nos quais as mulheres pobres são responsáveis, ao mesmo tempo, pelo sustento material e cuidado da família, e, muitas vezes, são as cuidadoras do lar, dos velhos e dos lhos de outras pessoas além dos seus próprios. Além de tudo isso, as taxas de violência de gênero e feminicídio têm aumentado assustadoramente nessas localidades, e atingem de maneira distinta mulheres brancas e negras.390

Por tudo isso, Scholz reconhece que seu teorema precisa se desvencilhar dos rígidos suportes da modernidade tradicional, quais sejam, trabalho e família. O patriarcado produtor de mercadorias está ainda mais selvagem, sem que, contudo, tenha superado a relação entre o valor e o trabalho abstrato (mesmo no “capitalismo de cassino”) e sem que tenham desaparecido os momentos cindidos da reprodução do valor. 264 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 265 “Na realidade, os de 1968 tinham conquistado a vitória – assim parecia. O sociólogo da moda dos

anos 80 (e também dos anos 90), Ulrich Beck, imaginou assim uma individualização, cuja di culdade era acima de tudo a di culdade da escolha. Uma reviravolta conservadora-liberal ‘genuína’ não poderia vir depois disso! Na ‘alegre sociedade do risco’, em última análise, tudo pode mudar apenas para melhor, ‘democraticamente’, empurrado pelos novos movimentos de protesto, que navegam suavemente na sociedade em pretensão reformista, numa fase de ‘modernização re exiva’. Mas não, a sociedade já tinha passado por tudo isso e zarpou daí para fora. O lema de Margaret Thatcher ‘Não há sociedade, há apenas indivíduos’ veio depois de Beck, na medida em que não cou em vigor nenhum quadro de referência de teoria social abrangente, para os indivíduos libertados dos laços tradicionais. Tudo isso, no entanto, colorido de social-democracia verde.” SCHOLZ, Roswitha. “As Metamorfoses do Yuppie Teutónico: Chauvinismo do bem-estar, esquerda dos anos 90 e anti-semitismo de capitalismo de casino”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2018. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz29.htm. Acesso em: 03.01.2019. 266 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 39. 267 “A orientação para a concorrência e o egocentrismo do indivíduo do capitalismo de casino, bem como a problemática de um hedonismo com isso mediado, não são vistos. Em relação a este ponto, a auto-re exão na década de 90 é substituída por um tocar do tambor ‘hedonista’ ainda mais alto, como se vê, por exemplo, na revista ‘Die Beute’ [O Saque]. É precisamente desta maneira paradoxal que se pretende combater as tendências de direita nos anos 90. Ao mesmo tempo, pretende-se manter, de maneira bastante ‘conservadora’, os precarizados direitos adquiridos dos anos 80 do capitalismo de casino e alargá-los nos anos 90. Os ‘sinais’ do tempo são em todo o caso favoráveis a isso: cultura pop, teorias mediáticas etc. são grandes tópicos em todo o discurso burguês-teutónico dos anos 90. Isso não quer dizer que a esquerda pop-cultural não tenha, em muitos aspectos, características muito simpáticas, assim como os ‘alternativos’ em alguns casos; a questão da ecologia nos últimos tempos apenas por eles foi trazida para discussão, e o problema da opressão das mulheres apenas pelo novo movimento das mulheres foi massivamente introduzido na arena do debate. Na esquerda pop-cultural, por exemplo, é o ‘cuidado’ de um pensar em si que é dirigido contra a ‘esquerda dogmática’ (embora seja também um produto neoliberal), trazendo, no entanto, aspectos que o ultrapassam.” SCHOLZ, Roswitha. “As Metamorfoses do Yuppie Teutónico: Chauvinismo do bem-estar, esquerda dos anos 90 e antisemitismo de capitalismo de casino”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2018. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz29.htm. Acesso em: 03.01.2019.

268 Conjunto das teorias e medidas propostas pelo economista britânico John Maynard Keynes e seus seguidores, que defendiam, dentro dos parâmetros do mercado livre capitalista, a necessidade de uma forte intervenção econômica do Estado com o objetivo principal de garantir o pleno emprego e manter o controle da in ação. 269 Segundo Pedro Fonseca, o que caracteriza um governo como desenvolvimentista é um “núcleo duro”, que comporta três elementos: industrialização, intervencionismo pró-crescimento e nacionalismo, que pode ser compreendido desde o ufanismo conservador até a radical ruptura com o capital estrangeiro. FONSECA, Pedro C. D. “Gênese e Precursores do Desenvolvimentismo no Brasil”. In: BASTOS, Pedro Paulo Z.; FONSECA, Pedro Cezar D. (Coord.). Era Vargas: desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Unesp, 2012, pp. 22-23. 270 EXIT. Crítica do capitalismo para o século XXI: com Marx para além de Marx – o projeto teórico do grupo Exit! Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2007. Disponível em: http://www.obeco-online.org/exit_projecto_teorico.htm. Acesso em: 08.11.2019. 271 EXIT. Crítica do capitalismo para o século XXI: com Marx para além de Marx – o projeto

teórico do grupo Exit! Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2007. Disponível em: http://www.obeco-online.org/exit_projecto_teorico.htm. Acesso em: 08.11.2019. 272 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista

e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 42. 273 As traduções portuguesas do sítio “O Beco” consagraram a expressão “valor-dissociação” ou “dissociação-valor”. Encontramos, também, em outras traduções, a expressão “valor-cisão”. Todavia, entendemos que o termo “clivagem” seria mais adequado. A palavra alemã Abspaltung usada por Roswitha tem como tradução direta lusófona “secessão”, que signi ca uma divisão ou separação, forjada através de um critério político. Todavia, na língua portuguesa, o morfema “secessão” está vinculado historicamente a divisões territoriais geopolíticas. Por isso, sua adoção poderia ser inapropriada. Nesse ponto, o termo “dissociação”, usado pela química para signi car a decomposição molecular, é mais oportuno, já que Scholz pretende estabelecer um paradigma pelo qual se decompõe a humanidade numa divisão de papéis sociais atrelados à geração de valor. Ocorre que o Português dispõe da palavra “clivagem”, que, na embriologia, é utilizada para a meiose zigótica; na geologia, para a decomposição mineral; na psicanálise, para a cisão do ego; na sintaxe, para a desestruturação frasal; e, na sociologia, para a fragmentação de grupos sociais. Por ser a teoria de Scholz eminentemente sociológica, embora em dialética com a economia política por sua característica marxista, entendemos que a adoção do termo seria extremante profícua. Em Scholz, o valor opera uma verdadeira clivagem social, sobreterminando uma forma binarista de ser humano, conforme o gênero (masculino/feminino) e sua relação com a reprodução do valor. Por isso, utilizaremos ao longo desta tese, tanto a tradução consagrada “valor-dissociação”, mas também, como expressão sinônima, nossa proposta terminológica de “valor-clivagem”. 274 EXIT. Crítica do capitalismo para o século XXI: com Marx para além de Marx – o projeto teórico do grupo Exit! Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2007. Disponível em: http://www.obeco-online.org/exit_projecto_teorico.htm. Acesso em: 08.11.2019. 275 SCHOLZ, Roswitha. “Após Postone: sobre a necessidade de transformação da ‘crítica do valor

fundamental’, Moishe Postone e Robert Kurz em comparação – e a crítica da dissociação-valor”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2014. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha%20scholz19.htm. Acesso em: 02.01.2019

276 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 60. 277 “Como teórica feminista não quero enredar-me nas armadilhas da produção teórica androcêntrica

(que estabelece o masculino como norma e padrão), a qual procede sempre de maneira universalista e na lógica da identidade. Tenho de ver que há outras disparidades: o anti-semitismo, o racismo, o anticiganismo – todas estas formas são essenciais para a constituição do sujeito burguês e do contexto social. Esta formação social, na sua lógica processual, não pode ser simplesmente derivada de uma forma. A elaboração teórica feminista tem de ultrapassar simultaneamente o olhar androcêntrico que constatou relações causais frequentemente simples e generalizantes.” SCHOLZ, Roswitha. “O ódio às mulheres está novamente a aumentar”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2017. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz26.htm. Acesso em: 02.01.2019. 278 HAARMANN, Petra. Truques de Prestidigitador na Barraca dos Malabaristas. Revista Exit!: crise e

crítica da sociedade das mercadoria, Lisboa, 2004. Disponível em: http://www.obeco-

online.org/phaarmann.htm. Acesso em: 12.01.2019. 279 ORTLIEB, Claus Peter. “Editorial da Revista Exit! n. 2”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/editorial_exit2.htm. Acesso

em: 08.01.2019. 280 ORTLIEB, Claus Peter. “Editorial da Revista Exit! n. 2”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/editorial_exit2.htm. Acesso

em: 08.01.2019. 281 BARREIRA, Marcos; BLANK, Javier. “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social: conversa com Ernst Loho e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2018. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-deemancipao-social/#_ftn14. Acesso em: 14.12.2019. 282 BARREIRA, Marcos; BLANK, Javier. “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social: conversa com Ernst Loho e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2018. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-deemancipao-social/#_ftn14. Acesso em: 14.12.2019. 283 BARREIRA, Marcos; BLANK, Javier. “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social: conversa com Ernst Loho e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2018. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-deemancipao-social/#_ftn14. Acesso em: 14.12.2019. 284 BARREIRA, Marcos; BLANK, Javier. “É preciso uma nova perspectiva de emancipação social: conversa com Ernst Loho e Norbert Trenkle (grupo Krisis) sobre a crítica de valor, a crise fundamental do capitalismo e o crescente irracionalismo social”. Krisis: Kritik der Warengesellschaft, Nuremberg, 2018. Disponível em: http://www.krisis.org/2018/preciso-uma-nova-perspectiva-deemancipao-social/#_ftn14. Acesso em: 14.12.2019. 285 Tradução livre de “Die Verzauberung der Welt: Die Subjektform und ihre Konstitutionsgeschichte – eine Skizze”.

286 LOHOFF, Ernst. “Die Verzauberung der Welt: Die Subjektform und ihre Konstitutionsgeschichte – eine Skizze”. Krisis: Kritik der Warengesellschaf, Nuremberg, 2005. Disponível em: http://www.krisis.org/2005/die-verzauberung-der-welt/. Acesso em: 15.12.2019. 287 LOHOFF, Ernst. “Die Verzauberung der Welt: Die Subjektform und ihre Konstitutionsgeschichte – eine Skizze”. Krisis: Kritik der Warengesellschaf. Nuremberg, 2005. Disponível em: http://www.krisis.org/2005/die-verzauberung-der-welt/. Acesso em: 15.12.2019. 288 LOHOFF, Ernst. “Die Verzauberung der Welt: Die Subjektform und ihre Konstitutionsgeschichte

– eine Skizze”. Krisis: Kritik der Warengesellschaf. Nuremberg, 2005. Disponível em: http://www.krisis.org/2005/die-verzauberung-der-welt/. Acesso em: 15.12.2019. 289 “Die Warengesellschaft unterscheidet sich grundlegend von allen vorangegangenen Gesellschaftsformationen. Dennoch sind – nach entsprechender Adaption – in ihren Bau Elemente eingegangen, die ursprünglich älteren Fetischsystemen entstammen, und zwar konstitutiv. Das geht soweit, dass die Subjektform für sie unverzichtbare Merkmale aufweist, die sich selber gar nicht direkt aus der spezi sch warengesellschaftlichen Struktur- und Handlungslogik deduzieren lassen. Zu diesen aus der Vorgeschichte der Warengesellschaft übernommenen und ihr angepassten Wesenszügen gehört vor allem anderen die patriarchale Herrschaft. Die Realmetaphysik des Werts ist strukturell auf einen abgespaltenen Bereich angewiesen, in ihrem falschen Universalismus kommt die Subjektform ohne Kontrapunkt, ohne das Realkonstrukt eines Nicht-Subjekts nicht aus. Diese für die Selbstkonstituierung der Subjektform unabweisliche Funktionsdi erenzierung lagerte sich an die überkommene Geschlechterhierarchie an und verschmolz mit ihr. Das asymmetrische Verhältnis von Mann und Frau richtete sich passgenau am asymmetrischen Gegensatz von Subjekt und Nicht-Subjekt neu aus, um mit ihm künftig eine symbiotische Einheit zu bilden. Der sexistischen Au adung verdankte der Vormarsch der Subjektform seine Durchschlagskraft. Umgekehrt garantiert die Anpassung des Patriarchats an die Herrschaft des falschen Universalismus dessen Verschärfung und Perpetuierung. Auf dem Boden der Subjektform ist die patriarchale Ordnung daher nicht mehr aufhebbar.” (Tradução livre). LOHOFF, Ernst. “Die Verzauberung der Welt: Die Subjektform und ihre Konstitutionsgeschichte – eine Skizze”. Krisis: Kritik der Warengesellschaf, Nuremberg, 2005. Disponível em: http://www.krisis.org/2005/die-verzauberung-der-welt/. Acesso em: 15.12.2019. 290 SCHOLZ, Roswitha. “Não digo nada sem a minha alltours: A identidade (masculina) pósmoderna entre a mania da diferenciação e a segurança da teoria marxista vulgar; réplica às críticas à teoria da dissociação-valor”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2010. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz14.htm.htm. Acesso em: 09 jan. 2019. 291 Ou “esclarecimento”, para adotar uma terminologia mais adequada ao “Aufklarung” frankfurtiano. 292 ADORNO, T. W; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos losó cos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 293 “Se, para Descartes, apenas há sujeitos e objetos, a mulher ocupa a segunda posição. A mulher, representada na arte antropocêntrica clássica, é uma Venus ou uma Santa. O Iluminismo, com seu trio promissor de liberdade, igualdade e fraternidade, foi capaz de assassinar Olympe de Gouges, uma mulher ativista da Revolução Francesa, quando ela propôs uma ‘Declaração Universal da Mulher e da Cidadã’ como um complemento para o documento original. No oitocentismo, o espírito de Kant e a razão hegeliana vieram reforçar este ponto de vista (…)”. LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. “Desa os das mulheres: um enfoque ocidental de gênero e direitos humanos”. Lex, Lima, vol. 15, n. 19, pp. 109-124,, 2017, p. 119.

294 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)“. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 295 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 70. 296 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 206. 297 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 298 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 94. 299 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 300 SCHOLZ, Roswitha. “Viva o fetiche!: Sobre a dialéctica da crítica do fetichismo no actual processo de ‘Colapso da modernização’. Ou: quanto establishment pode suportar a crítica social radical?”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2014b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha%20scholz18.htm. Acesso em: 12.01.2019. 301 SCHOLZ, Roswitha. “O ser-se supér uo e a ‘angústia da classe média’: o fenómeno da exclusão e a estrati cação social no capitalismo”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2008. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz8.htm. Acesso em: 12.01.2019. 302 SCHOLZ, Roswitha. “O ser-se supér uo e a ‘angústia da classe média’: o fenómeno da exclusão

e a estrati cação social no capitalismo”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2008. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz8.htm. Acesso em: 12.01.2019. 303 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)“. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 304 ADORNO. Theodor W; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos

losó cos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. 305 Apenas, colateralmente, ela menciona Horkheimer e somente quando há textos conjuntos com Adorno. O diálogo teórico de Roswitha Scholz é com Theodor Adorno, inclusive porque, mesmo muito questionado, diferentemente de Max Horkheimer, Adorno sempre fez questão de se a rmar marxista e focar suas críticas no apenas na degeneração do stalinismo. cf. PEREIRA, Luiz Ismael. Adorno e o Direito: para uma crítica do capitalismo e do sujeito de direito. São Paulo: Ideias e Letras, 2018, p. 29. 306 “Embora Adorno nunca tenha abandonado seus escritos anteriores à Segunda Guerra Mundial, podemos veri car que a temática de suas preocupações se alterou com a própria mudança no movimento crítico do Instituto. Em suas obras reunidas (Gesammelte Schriften), os escritos musicais ‘ocupam nove tomos e três tomos mais de fragmentos’ (AGUILERA, 1991, p. 12-13). Isso é sintomático tomando-se em conta que esse corte retirará a própria luta de classes do centro de trabalhos posteriores à Segunda Guerra.” PEREIRA, Luiz Ismael. Adorno e o Direito: para uma crítica do capitalismo e do sujeito de direito. São Paulo: Ideias e Letras, 2018, p. 23.

307 SCHOLZ, Roswitha. “A importância de Adorno para o feminismo hoje: retrospectiva e perspectiva de uma recepção contraditória”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2012. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz20.htm. Acesso em: 09.01.2019. 308 LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. Bioética, biodireito e modernidade: razão e humanização. Curitiba:

Juruá, 2016, p. 26. 309 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos losó cos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 33. 310 PEREIRA, Luiz Ismael. Adorno e o Direito: para uma crítica do capitalismo e do sujeito de direito. São Paulo: Ideias e Letras, 2018, p. 71. 311 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 19. 312 ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos

losó cos.

losó cos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.11. 313 LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. “Esclarecimento: uma introdução aos conceitos basilares de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer”. Revista Filoso a Capital. vol. 01, n. 10, 2015. p. 19. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/6932/7caaa75dbd83622f43f2eb6a402ede06404e.pdf. Acesso em: 12.03.2018. 314 SCHOLZ, Roswitha. “A importância de Adorno para o feminismo hoje: retrospectiva e perspectiva de uma recepção contraditória”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2012. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz20.htm . Acesso em: 09.01.2019. 315 SCHOLZ, Roswitha. “A nova crítica social e o problema das diferenças: Disparidades económicas, racismo e individualização pós-moderna. Algumas teses sobre o valor-dissociação na era da globalização”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2004a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz3.htm. Acesso em: 09.08.2017. 316 MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX.

Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004, pp. 250-251. Disponível em: http://books.scielo.org/id/jnzhd/pdf/martins-9788575414514.pdf. Acesso em 31.01.2019. 317 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 318 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 319 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 320 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016.

321 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 322 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)“. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 323 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 324 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 325 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 326 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias. Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 327 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 328 É uma imagem mental bastante absurda de se conceber, mas essa é a empreitada do marxismo:

mostrar o quanto o sistema capitalista é absurdo. O capital é como um robô macho e metafísico, na forma do valor, que excluí de si o valor-clivado produzido pelas atividades femininas, programado para nunca parar de se valorizar. 329 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 330 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 331 Embora, na vida real, sejam majoritariamente as mulheres que realizem as tarefas cindidas, uma

vez que a estrutura está re etida na cultura, nas relações sociais e na psique das pessoas. Quando o trabalho clivado não abstrato é terceirizado mediante remuneração, no Brasil, é realizado majoritariamente por mulheres negras (empregada doméstica, diarista, babá, cozinheira etc.), devido aos atravessamentos racistas que marcam a sociabilidade brasileira além do próprio patriarcado. O machismo é estrutural e cultural ao mesmo tempo. O diferencial em Scholz, porém, é que combater apenas o machismo cultural não tem o poder de abalar o machismo, já que a estrutura dá as condições materiais de possibilidades sociais. 332 O Direito de Família reconheceu isso com muita clareza quando instituiu o regime de comunhão parcial de bens, que é o regime legal geral adotado pelo Código Civil brasileiro (quem não opta formalmente por outro regime de bens, no casamento ou na união estável, adere tacitamente a este).

Independentemente de quem tenha pago pelos bens do casal, ou seja, de quem tenha trabalhado de forma capaz a converter o tempo em dinheiro, a forma jurídica reconhece que os bens pertencem a ambos (ou ambas), pois o patrimônio somente pôde ser amealhado por meio da colaboração do casal na constância da relação, através de um pacto de divisão de trabalhos e de tempo social. Esse regime é adotado independentemente de ser um casal heterossexual ou homossexual, cisgênero ou transgênero, e de qual dos consortes, na vida concreta, desempenhou qual tarefa. A forma jurídica, derivada das formas do valor, já evidencia há algum tempo as a rmações de Roswitha Scholz, ao reconhecer os direitos patrimoniais de quem “não trabalhou fora”. Por certo que se trata de uma conquista dos movimentos de mulheres, em interação dialética com a acumulação-regulação do valor. 333 Os conteúdos não são capazes de alterar as formas. No plano simbólico, cultural, psíquico e discursivo, certamente, fomentam a re exão para a ação, o pensamento e a mudança de atitude e axiomas, mas não alteram as estruturas. Por exemplo, uma camiseta com o rosto de Ernesto Guevara não é uma camiseta anticapitalista na forma porque está inserta na forma-mercadora, reproduzindo o capital, e valorizando o valor. Estruturalmente, é uma camiseta pró-capitalismo, embora, simbolicamente, possa trazer conteúdos anticapitalistas. Esse raciocínio pode ser transportado a qualquer exemplo, inclusive, às mudanças estéticas que marcam os papéis de gênero ao longo dos séculos XX e XXI. Ninguém está a rmando que não se deve usar a camiseta ou que não se deve romper esteticamente com o binarismo heteronormativo, mas sim que, embora haja grande importância simbólica, nada disso abala as estruturas. 334 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 335 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 336 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 337 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 338 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 339 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 340 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna

do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 341 Com a precarização das relações de trabalho e a escassez de postos de emprego, as mulheres também são alcançadas pelo fenômeno da “uberização” e trabalham informalmente através desses novos aplicativos, embora o conjunto desses trabalhadores seja predominantemente masculino, uma vez que se trata de trabalhos reportados como “coisas de homem”, como conduzir motocicletas e

automóveis. De outro lado, mesmo diante da redução drástica de oferta formal de trabalho, quase não se vê os homens laborando como babás, faxineiras e cozinheiras. 342 As relações de gênero estão imbricadas nas desigualdades econômicas e raciais, mas continua sendo uma mulher a realizar as atividades dissociadas. O “empregado doméstico” poderia ser qualquer pessoa, supostamente, mas é, majoritariamente, ainda, uma mulher, por conta da clivagem do valor. E negra, por causa do racismo. 343 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 344 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 345 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 346 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 347 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 348 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 349 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez., 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 350 LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. “Desa os das mulheres: um enfoque ocidental de gênero e direitos humanos”. Lex, Lima, vol. 15, n. 19, pp. 109-124, 2017. 351 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 352 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre

os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 353 O capitalismo e o iluminismo enredam os indivíduos e o pensamento por meio de metarrelatos que ontologizam e anacronizam fenômenos que são datados e históricos (assim como faz com o “trabalho”, faz com “homem” e “mulher”). Esse é um movimento crucial da ideologia, para que não se perceba que tais fenômenos são típicos do capitalismo e, como este, um dia tiveram início e um dia poderão acabar. 354 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996.

355 LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. “Desa os das mulheres: um enfoque ocidental de gênero e direitos humanos”. Lex, Lima, vol. 15, n. 19, pp. 109-124, 2017. 356 LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. “Desa os das mulheres: um enfoque ocidental de gênero e direitos humanos”. Lex, Lima, vol. 15, n. 19, pp. 109-124, 2017. 357 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 358 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, 1996. 359 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 360 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 361 KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro: Imago, 2008, p. 57. 362 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 164. 363 “No caso da experiência edípica, construímos quatro movimentos de complexi cação no interior

da obra de Freud. Primeiramente, o Édipo aparece associado à teoria dos sonhos, como uma comprovação da tese do sonho como realização de desejos. Nesse campo, a experiência edípica é tomada pelo eu, caindo na lógica identitária, e Freud não explora o encontro com a alteridade. Em um segundo momento, o outro comparece na sua irredutibilidade na cena edípica, mas é um outrodevorador, representado pelo pai totêmico. Será a partir da morte do pai totêmico e do banquete partilhado no interior da irmandade que o outro pré-histórico irá adquirir a condição de outro simbólico, de outro-abstrato; e a irmandade, através do processo de identi cação, poderá reconhecer-se como outro-pessoa, atravessado pelo outro-abstrato, mas com uma certa liberdade de buscar o outroobjeto, busca proibida pelo pai do totem. Nesse terceiro momento, os conceitos de identi cação e morte do pai irão marcar o nascimento do sujeito, criando espaço para a compreensão da constituição do outro-alteritário, na gura do superego e do Inconsciente sistemático. No último movimento, assistimos ao processo de percepção da castração como verdade estruturante do sujeito, verdade essa transmitida na trama edípica. Assim, o outro-abstrato aparece como condição de possibilidade do sujeito e norteador das possíveis relações com as diversas guras de alteridade.” MOREIRA, Jacqueline de Oliveira. “Édipo em Freud: o movimento de uma teoria”. Psicologia em Estudo, Maringá, vol. 9, n. 2, pp. 219-227, mai./ago. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v9n2/v9n2a08.pdf. Acesso em: 18.01.2019. 364 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 365 “A hipótese da importância da cena edípica na trama da subjetividade aparece cedo na teoria freudiana. Já em 1897 (Freud, 1950/1974, p. 350), Freud lança a idéia do Édipo numa carta a Fliess, mas só tardiamente, após a formulação da Pulsão de Morte e a partir de sua articulação com o conceito de castração, a idéia ganhará uma dimensão de conceito fundador. Ademais, Freud dedica apenas um texto especí co ao complexo de Édipo, a saber, ‘A Dissolução do Complexo de Édipo’ (1924)”.

MOREIRA, Jacqueline de Oliveira. “Édipo em Freud: o movimento de uma teoria”. Psicologia em Estudo, Maringá, vol. 9, n. 2, pp. 219-227, mai./ago. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v9n2/v9n2a08.pdf. Acesso em: 18.01.2019. 366 Inclusive, o diagnóstico da “histeria” estava completamente associado a uma perspectiva racional

iluminista de domesticação dos impulsos incontroláveis das mulheres pela razão cientí ca masculina. E, embora haja múltiplos debates sobre esse tema, há muitos relatos sobre a misoginia do Dr. Freud e a violência de gênero nos seus “tratamentos”. 367 “O superego constitui um dos saldos nais dessa complexa trama. Parece-nos que a discussão freudiana sobre a instância moral segue a lógica do modelo totêmico. O superego resulta de um processo identi catório com a lei, da qual o pai é o representante. Assim, mesmo no declínio do Édipo negativo, onde ocorre o processo de identi cação com a mãe, podemos a rmar a constituição de uma instância moral. Essa colocação introduz novos elementos para a re exão do Complexo de Édipo e a constituição do superego no caso da menina, tema que constitui o quarto movimento da teorização freudiana.” MOREIRA, Jacqueline de Oliveira. “Édipo em Freud: o movimento de uma teoria”. Psicologia em Estudo, Maringá, vol. 9, n. 2, pp. 219-227, mai./ago. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v9n2/v9n2a08.pdf. Acesso em: 18.01.2019. 368 “Desde esa relación entre la esfera privada y el ámbito público se explica también la existencia de

alianzas masculinas que se basan en la aversión hacia lo “femenino”. Así, todo el Estado y la política están constituidos desde el siglo XVIII sobre los principios de libertad, igualdad y fraternidad como alianzas masculinas. Con ello no pretendo decir que el patriarcado “queda jado” en unas esferas disociadas de esta forma. Las mujeres, por ejemplo, actuaron en ámbitos laborales desde el principio. Sin embargo, también aquí se pone de mani esto la escisión: las mujeres ocupan posiciones menos valoradas en la esfera pública, ganan menos que los varones y, a pesar de Angela Merkel & Co., para ellas el camino hacia las posiciones dirigentes no está sin más despejado. Todo esto apunta a la escisión del valor como principio formal universal de la sociedad (no divisible mecánicamente en esferas) en un nivel de abstracción más elevado. Esto signi ca que el efecto de la escisión del valor pasa a través de todos los niveles y ámbitos y, por tanto, también a través de los diferentes ámbitos de la esfera pública.” SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. (Tradução livre). Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 369 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 370 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 49. 371 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, jul. 1996. 372 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, pp. 49-50. 373 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 374 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”.

Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n.5, pp. 44-60 dez. 2013.

Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 375 No Brasil, essa igualdade formal se constata pelo reconhecimento do direito ao voto para as mulheres, pela primeira vez, na Constituição de 1934, e retomado na Constituição de 1946. A expressa menção “homens e mulheres são iguais” perante a lei, porém, só está na Constituição brasileira de 1988. 376 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 377 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 378 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 379 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 380 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 381 Segundo dados do IBGE, o percentual de mulheres sem companheiro e com lhos era de 15,2% do total de famílias brasileiras em 1992, e de 17,4% em 2009, enquanto o percentual de casais heteroafetivos com lhos caiu de 56% para 47% do total de unidades familiares. A mulher como arrimo de família passou de 27,3% em 2001 para 40,5% em 2015. Em números, temos que, de 2005 a 2015, o Brasil ganhou mais de um milhão de famílias monoparentais formadas apenas por mãe e lhos. Fonte: https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=6&op=0&vcodigo=FED304&t=tiposfamilia. Acesso em: 31.012019. 382 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 383 Em 2014, o IBGE, no âmbito do Sistema Nacional de Informações de Gênero, elaborou, em convênio com a Secretaria de Políticas para as Mulheres, um estudo sobre estatísticas de gênero baseado nos resultados do Censo Demográ co de 2010. Constatou-se que as mulheres brasileiras recebem, em média, 76,5% dos salários dos homens (IBGE, 2014). 384 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 385 Cabe olhar para a situação política, econômica e social do Brasil hoje. 386 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n.5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019.

387 “Así por ejemplo, los grupos de auto ayuda para controlar los efectos de la crisis en el denominado

Tercer Mundo los llevan adelante mujeres, por lo que, en un momento en que la producción se rige por el just-in-time, las actividades de reproducción son mucho más difíciles de cumplir que hasta ahora. En cierto modo estas tareas recaen sobre las mujeres, doblemente sobrecargadas. En general hoy se atribuye a las mujeres el papel de gerentes de la crisis. Han de servir de “medio de limpieza y desinfección” (Christina Türmer-Rohr) cuando el carro ha quedado atrapado en el fango. También el grito que reclama cuotas de mujeres en las posiciones directivas (que resuena de manera especialmente ruidosa desde 2008) debería ser considerado eneste contexto. En mi opinión sería erróneo ver en él una tendencia hacia una forma ulterior de emancipación; más bien se trata de una especie de sexismo invertido.” SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. (Tradução livre). Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 388 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n.5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 389 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 390 “No Brasil, a taxa de feminicídios é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2015, o Mapa da Violência sobre homicídios entre o público feminino revelou que, de 2003 a 2013, o número de assassinatos de mulheres negras cresceu 54%, passando de 1.864 para 2.875. Na mesma década, foi registrado um aumento de 190,9% na vitimização de negras, índice que resulta da relação entre as taxas de mortalidade branca e negra. Para o mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas saiu de 1.747 em 2003 para 1.576 em 2013. Do total de feminicídios registrados em 2013, 33,2% dos homicidas eram parceiros ou ex-parceiros das vítimas”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. “Taxa de feminicídios no Brasil é quinta maior do mundo; diretrizes nacionais buscam solução”. Notícias do Brasil. ONUBR (Nações Unidas do Brasil), 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo-diretrizes-nacionais-buscamsolucao/. Acesso em: 31.01.2019.

CAPÍTULO IV ROSWITHA SCHOLZ E OS FEMINISMOS Barbudos do antigo marxismo e voluntaristas pós-modernos do pluralismo podem por vezes chegar a alianças notáveis, até numa e mesma pessoa. Tanto o sugestivo recurso a “certezas” pós-modernas como a interpretação positivista da teoria de Marx procedem mais ou menos de acordo com o mote “Não digo nada sem a minha Alltours” (constituindo um óbvio “desvio” da frase “não digo nada sem a presença do meu advogado”, era o spot publicitário da agência de viagens Alltours). Assim se sentem autorizados a meter no bolso a crítica da teoria da dissociação-valor.391

4.1 Scholz e os debates feministas marxistas Neste momento da história, com as atuais recon gurações de patriarcado e capitalismo, as teorias feministas do presente precisam agudizar o olhar. Na década de 1990, após o colapso do bloco soviético, as correntes feministas culturalistas e diferencialistas alcançaram grande notoriedade, ao passo que os debates392 feministas marxistas que marcaram as décadas de 1960 e 1970393 foram relegados a segundo plano, ou mesmo silenciados. Roswitha propõe um “redescobrimento da teoria marxista” no feminismo, para a rmar que essa teoria, de maneira alguma, pode ser considerada anacrônica, supér ua ou desnecessária, ainda que, da perspectiva marxista na história, a teoria tradicional precise ser atualizada diante da derrocada do “socialismo real”.394 Como notaremos neste item da presente lavra, Scholz não se propõe a nenhuma espécie de crítica ou ataque direto às feministas marxistas.395 Todos os debates teóricos, mais ou menos agressivos, que encontramos em seus textos, estão voltados a apontar os erros, as insu ciências ou os perigos das re exões feministas não marxistas. Scholz só coloca os marxistas no alvo de

sua mira teórica quando fazem parte do grupo Krisis ou quando ela é diretamente provocada por textos que contestam ou interpretam mal seu “teorema do valor-clivagem”. No que diz respeito ao feminismo marxista que marcou os anos 1960 (e 1970), Scholz propõe o seu resgate, de modo que, consequentemente, não está animada à sua contestação. Desta feita, todas as ressalvas que podem ser feitas aos debates feministas marxistas a partir de Scholz derivam da crítica que ela e seus companheiros de Exit!, especialissimamente, Robert Kurz, formulam em relação ao marxismo, à esquerda e às experiências socialistas como um todo, ao apontarem que o grande erro comum a todos eles é ler as mazelas do capitalismo a partir da distribuição desigual de capital e propriedades, e não a partir da perversidade estrutural do processo produtivo que valoriza o valor automaticamente. Seguindo esse raciocínio, todo debate feminista que partir de conceitos como “classe” e “luta de classes” ou que focalizar a luta revolucionária contra a desigualdade na redistribuição de capital e direitos será considerado equivocado desde a perspectiva de Scholz. Também desde seu olhar teórico, é desacertado entender o patriarcado capitalista como uma continuação mais perversa dos patriarcados précapitalistas, assim como imaginar que gênero e classe são opressões que se mesclam ou se sobrepõem nas relações sociais; pior ainda, nessa esteira, é crer que a hierarquização entre homens e mulheres é apenas ideológica, simbólica ou cultural. Sabemos que, para Scholz, a estrutura da produção econômica determina a clivagem de gênero (e não apenas a cultura e as práticas relacionais da sociedade), e que categorias como valor e fetichismo são imprescindíveis para a compreensão da hierarquização entre os sexos. Para ela, no século XXI, o feminismo marxista tem de avançar em relação ao marxismo tradicional, combinado com a Teoria Crítica de Adorno, mas sem perder a capacidade crítica e dialética, inclusive acerca da aplicabilidade desta última. Confrontando a economia política de Marx (apoiada nas leituras da nova crítica do valor) com o pensamento adorniano, Scholz propõe-se a resolver aquilo que aponta como problemas do feminismo marxista, associando patriarcado e capitalismo. Neste contexto, na primeira metade da década de 1980 depareime com a Dialéctica do iluminismo, que me pareceu oferecer um ponto de partida para a “questão primordial” do feminismo desde

1968: Como juntar Marx e feminismo, mais a questão ecológica e outras com a repressão da natureza interior? Ao mesmo tempo, entrei então em contacto com os começos de um marxismo crítico do valor, que já em meados dos anos de 1980 tinha feito prognósticos precisos (não profecias) sobre a desintegração do capitalismo nas décadas seguintes, os quais em grande medida foram entretanto con rmados empiricamente.396

Na visão de Scholz, o marxismo não tem desempenhado nenhum papel relevante na construção do feminismo desde a queda da URSS. Questões como a ruptura com a neutralidade sexual das grandes categorias marxianas ou como adaptar o marxismo às demandas femininas para superar a assimetria entre os sexos deixaram de ser enfrentadas desde a década de 1980 para dar lugar aos pós-estruturalismos culturalistas. Diante disso, Scholz propõe a retomada das re exões do feminismo marxista do século XX, com as aparas imprescindíveis da teoria do valor-clivagem, objetivando uma quali cação dos debates e dos movimentos sociais feministas do século XXI. Durante o século XX, o feminismo marxista desenvolvera-se a partir da vinculação da luta revolucionária com as demandas das mulheres, como se houvesse um recorte de gênero no interior da classe proletária. Isso está presente em todos os olhares e vertentes do feminismo marxista que não partem do valor-dissociação. Por essa razão, ora, cabe-nos perscrutar alguns desses olhares a m de apontar em que medida não alcançam as proposições de Scholz na relação entre patriarcado e capitalismo. É nesse ponto que haverá incongruência entre a “teoria do valor-dissociação” e qualquer outro feminismo marxista: somente Roswitha Scholz parte da revisão conceitual de “valor” feita por sua “nova crítica” e, por isso, eleva o debate teórico feminista a um patamar categorial marxista jamais antes alcançado, a despeito de algumas autoras, como Lise Vogel (que produziu nos anos 1970 e 80) e Silvia Federici (cuja principal obra é dos anos 2000), terem chegado muito perto. É com essa métrica que compararemos a ótica de Scholz com outras visões do feminismo marxista, mesmo que a própria autora não tenha se dedicado a essa tarefa especi camente. Tomaremos sua crítica geral e a aplicaremos a cada contribuição marxista (que pinçamos como relevante a título de exemplo) para o feminismo, sem o compromisso de confrontar

Scholz com todas as pessoas que já escreveram sobre feminismo a partir de um referencial epistêmico marxista até hoje,397 pois este não é um escopo principal nem secundário deste trabalho. Essas conversas entre Scholz e demais feministas marxistas forjadas por nós a partir de agora têm apenas o condão de ressaltar, reforçar e assentar a teoria do valor-clivagem como única que é: ao mesmo tempo, uma teoria feminista, uma teoria econômica, e uma teoria do sujeito. Assim, se o conceito de dissociação-valor deve ser considerado por assim dizer como GRANDEZA FILOSÓFICA, no sentido de princípio social fundamental que determina toda a sociedade (mundial), e por isso tem de ser tematizado para lá de qualquer interesse feminista particular – então esta problemática não pode obviamente voltar a ser tratada apenas no contexto particular do debate feminista. Pelo contrário, essa grandeza losó ca terá de constituir a base da teoria crítica em geral, por causa do seu carácter abrangente. Só desta maneira se torna claro que a dissociação-valor não trata simplesmente da relação hierárquica de género em sentido estritamente sociológico, mas sim do todo da relação social. Nessa medida a dissociação-valor já não pode ser tratada como “aspecto” da elaboração teórica geral no plano da mera constituição do sujeito, como pensam alguns, por exemplo os representantes de uma certa crítica do valor de resto entendida de modo universalista. Trata-se nada menos que da verdade do falso todo, que agora no entanto tem de ser concebido de novo. Isto não tem nada a ver com meras obrigações morais de se “declarar” feminista, nos termos da campanha a que também se sentem obrigados homens de orientação até aqui universalista marxista, na sua in nita benevolência para com os desejos das pobres mulheres discriminadas. É a própria coisa que tem de ser resgatada logo na conceptualidade teórica fundamental. Não se trata, portanto, apenas de teoria feminista com o objectivo da “libertação da mulher” (na maior parte das vezes explícita ou implicitamente pensada imanente ao capitalismo) nem das correspondentes tematizações no plano do sujeito, mas sim de muito mais. Mas até se trata disso também.398

Para começarmos, pode-se dizer que o texto pioneiro a tratar as relações de gênero articuladas com uma crítica ao capitalismo foi escrito por um

homem (o único que, por esta relevância, traremos para o debate deste capítulo), inaugurando, então, a possibilidade de uma re exão sobre o patriarcalismo da sociedade burguesa. No capítulo II de sua obra A origem da família, da propriedade privada e do estado, intitulado “A Família”, Friedrich Engels parte dos estudos do antropólogo Lewis H. Morgan para tratar as relações de parentesco e as formas de matrimônio que levaram à formação da família monogâmica,399 e a consequente subjugação das mulheres. No tocante à “questão da mulher”, a perspectiva marxista assume uma dimensão de crítica radical ao pensamento conservador. Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado a condição social da mulher ganha um relevo especial pois a instauração da propriedade privada e a subordinação das mulheres aos homens são dois fatos simultâneos, marco inicial das lutas de classes. Nesse sentido, o marxismo abriu as portas para o tema da “opressão especí ca”, que seria retomado e retrabalhado pelas feministas marxistas dos anos 1960-70.400

Para Engels, então, foi a formação do parentesco patrilinear pela imposição de exclusividade sexual às mulheres que inaugurou a sua opressão na história das civilizações. A expressão “família”, segundo ele, tem origem romana, e foi cunhada para designar uma unidade social mínima, status familiae, cujo chefe (o pater familias) mantinha sob seu domínio a mulher, os lhos e os escravos, todos submetidos ao potestatis ingenitae (pátrio poder, que incluía o direito de vida e morte sobre todos eles).401 É nesse sentido que, segundo Engels, o primeiro efeito do poder exclusivo dos homens sobre todos os demais seres se denomina “patriarcado”, caracterizado pela família monogâmica e pela derrota histórica do sexo feminino no mundo – o que coincide com o surgimento da “civilização” ocidental.402 Para ele, há uma claríssima imbricação entre a monogamia e a propriedade privada, uma vez que a exclusividade sexual da mulher foi o que garantiu o direito sucessório, instituto fundamental para a conservação da propriedade privada sob os mesmos domínios restritos e exclusivistas. A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos lhos (…) O primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na

monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura te nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se veri cam às custa da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada (…).403

Desde a família consanguínea até a unidade familiar, a humanidade teria passado por alguns estágios de desenvolvimento nas relações de parentesco, sendo que a monogamia, aspecto central da família burguesa, é, na realidade, uma imposição apenas para a mulher, com a introdução da gura do pai verdadeiro (além da óbvia mãe verdadeira), o que interfere na hereditariedade e na sucessão patrimonial, com a substituição da matrilinearidade pela patrilinearidade.404 Isso se deu pela delidade imposta às mulheres, o que garante a indiscutibilidade da paternidade genética e a consequente possibilidade de herança. Os laços conjugais tornaram-se mais sólidos, cabendo exclusivamente ao homem o seu rompimento (e a quem não se exige delidade), de modo que, para Engels,405 a monogamia foi a forma original de “escravização de um sexo pelo outro”. Destarte, uma civilização lastreada na apropriação privada dos bens da vida é, obrigatoriamente, opressora, sexista e, por óbvio, excludente. Para Engels, o mesmo sistema que realizou a divisão social entre proprietários e não proprietários foi o que inferiorizou as mulheres em relação aos homens. Como um elemento fundamental da divisão da sociedade (entre quem detém a propriedade privada e quem nada possui) é a transmissão hereditária, fez-se imprescindível um modelo que delimitasse muito bem quem eram os herdeiros. Esse modelo é a família monogâmica, que obriga a mulher a manter relações sexuais com um único homem, o que garante que ele será pai legítimo de seus lhos, sucessores na posse. Sem a opressão da sexualidade feminina, portanto, não haveria possibilidade de uma tessitura social fulcrada na propriedade privada. Por isso, para Engels, o casamento (e a monogamia em geral) é um instituto corrompido desde a sua origem, por sua nalidade precípua, e obrigatoriamente machista, criado para garantir a propriedade privada e para

reprimir as mulheres. O relacionamento monogâmico somente seria um ato de vontade verdadeiramente livre e um comprometimento deliberado mediado pelo afeto numa realidade onde não existisse a propriedade privada, de sorte que, no capitalismo, não há como ser um puro ato de amor. O matrimônio, pois, só se realizará com toda a liberdade quando, suprimidas a produção capitalista e as condições de propriedade criadas por ela, forem removidas todas as considerações econômicas acessórias que ainda exercem uma in uência tão poderosa na escolha dos esposos. Então, o matrimônio já não terá outra causa determinante que não a inclinação recíproca.406

A despeito de ser bem razoável na relação que estabelece entre propriedade privada, herança e monogamia exclusivamente feminina, essa leitura de Engels não diferencia adequadamente o patriarcalismo capitalista dos modelos sociais pré-modernos, o que, na perspectiva scholziana aqui adotada, é um equívoco epistêmico. Esse mesmo molde de propriedade privada que ele identi ca em Roma pode ser encontrado em outras sociedades antigas e em todo o mundo feudal, inclusive, atrelado à sexualidade da mulher. Nessa toada, a sociedade burguesa patriarcal, pela hipótese de Engels, seria apenas uma continuidade mais depurada dos seus antecedentes históricos, dada a centralidade da propriedade privada no capitalismo. Porém, para começar, a importação dos modelos de propriedade e posse da Antiguidade e da Idade Média para a Modernidade é imprecisa, uma vez que as mercadorias, antes do capitalismo, estavam eivadas apenas de seu valor de uso. Essa visão restrita de Engels sobre a família se deve ao fato de que sua leitura de economia política não parte das formas sociais abstratas do capitalismo, mas trata a propriedade como um algo concreto desigualmente distribuído entre burguesia e proletariado. Advogando em favor de Engels (e de Marx), Maria Lygia Quartim de Moraes, a rma que a opressão feminina foi tratada por Marx e Engels no Manifesto Comunista e n’ A ideologia alemã, sendo que, nesta última obra, já havia vinculação entre a condição da mulher e a exploração do trabalho: “Em A ideologia alemã, de 1846, a instituição família aparece como um dos momentos de passagem para a sociedade de classes. Esta hierarquização se dá

no interior do próprio processo do trabalho (…)”.407 Isso signi caria que a percepção da relação entre trabalho abstrato e machismo, semelhante ao que propõe também Scholz, já estava em Marx e Engels, sim, e que as críticas de que olvidaram ou não compreenderam o tema seriam parcialmente injustas. No Manifesto Comunista, de 1848, Marx e Engels rea rmam a mesma identidade entre a opressão da mulher, família e propriedade privada, preconizando a abolição da família como meta dos comunistas. Assim, a ênfase na historicidade das instituições humanas permitiu a compreensão da família como fenômeno social do trabalho é também uma divisão sexual entre as funções femininas e masculinas. Mais do que isso: abriu espaço para novos tipos de projetos e relações entre os sexos. Com Engels e Marx, as feministas da esquerda europeia, nos anos 1960-70, puderam construir uma “teoria da opressão” a partir da luta.408

Na realidade, de fato, os textos marxianos não revelam uma compreensão diversa do que irão sustentar as feministas marxistas das décadas de 1960-70, que partem das ideias de “divisão sexual do trabalho” e “sexo da classe operária”. Inclusive, Marx reconhece o problema do trabalho doméstico, que, para ele, tende a ser substituído pela compra de mercadorias,409 quando percebe que certas funções da família, como o aleitamento e cuidados de bebês, não podem ser completamente suprimidas. As mães con scadas pelo capital precisariam de algum tipo de substituição, gerando o custo de produção da família da classe trabalhadora. Por certo que Marx e Engels apontavam para uma relação entre o patriarcado e a forma de exploração do trabalho abstrato – diferente para homens e mulheres –, mas jamais houve uma relação entre valor e machismo, demonstrando que a raiz do patriarcado capitalista está na produção, e não na história ou na sociedade. Por outro lado, em nenhum momento, Marx percebe a relação desse trabalho não remunerado com o trabalho assalariado, mediada pela questão de gênero. Segundo Silvia Federici, Marx não levou em consideração a força de trabalho feminina não explorada na forma do trabalho abstrato: Em nenhuma parte de O Capital, Marx reconhece que a reprodução da força de trabalho envolve o trabalho não remunerado das mulheres – preparar comida, lavar a roupa, criar

os lhos, fazer amor. Pelo contrário, ele insiste em retratar o assalariado como um reprodutor de si mesmo. Mesmo considerando as necessidades que o trabalhador deve satisfazer, ele o retrata como um comprador de mercadorias auto-su ciente; enumera entre outras necessidades para a vida os alimentos, abrigos, roupas, mas omite estranhamente o sexo, seja obtido dentro da con guração familiar ou comprado, o que sugere que a vida do trabalhador é imaculada enquanto a mulher só é moralmente manchada pelo trabalho industrial.410

Desta feita, Marx não teria vislumbrado a importância do alijamento feminino na reprodução do valor, ao passo que Engels reduziu a subjugação da mulher às questões sexuais com vistas à conservação da propriedade. Para Scholz, é tão-somente no modo produtivo da valorização do valor que a mercadoria deixa de ser apenas a coisa em si, objeto material dotado de utilidade real, para se desdobrar na forma-mercadoria abstrata, através da qual tudo se relaciona com tudo e o trabalho se abstrai para valorizar o valor. Essa é a diferença crucial entre Roswitha Scholz e todos os demais autores a autoras da epistemologia marxista que trataram do patriarcado, e isso coloca a teoria do valor-dissociação num degrau acima de todas as outras teorias. Não é possível transportar o patriarcado romano para sociedade burguesa, nem o sexismo do Medievo europeu, pois, seguindo o raciocínio de Scholz, a especi cidade da sociedade contemporânea é que ela se revela como uma sociedade de mercadorias fetichizadas na forma do valor, muito além de uma concepção de propriedade privada compreendida enquanto objetos concretos (terras, edi cações e bens móveis). Por isso, a teoria do valor-clivagem está alguns passos além da compreensão pioneira de Friedrich Engels, e também das feministas marxistas “clássicas”, como veremos. Embora se possa reconhecer a imensa contribuição de Engels no que concerne a um resgate histórico dos aspectos culturais do patriarcado ocidental relacionado à restrição da sexualidade feminina, do ponto de vista do próprio materialismo dialético, é imprecisa. Do mesmo modo, as feministas marxistas das décadas de 1960 e 70, bem como o feminismo marxista brasileiro, representado, principalmente, por Heleieth Sa oti, fazem algumas leituras um tanto falíveis do patriarcado capitalista. Esse tipo de visão associa o feminino apenas ao valor de uso das mercadorias, e ontologiza a

forma valor como se fosse uma categoria neutra, o que é inaceitável para o teorema do valor clivado. Seguindo a proposta de Engels e compreendendo que o patriarcado capitalista é um adensamento da escravização das mulheres pelos homens decorrente da propriedade privada, Heleieth Sa oti tratava o patriarcado como uma imensa ideologia de gênero, a qual inculca, em homens e mulheres, a inferioridade feminina, a m de conservar as estruturas opressoras e desiguais da sociedade capitalista. Considerada, nos meios acadêmicos e na esquerda em geral, uma das mais expressivas expoentes do feminismo marxista no Brasil, a autora acreditava que as relações de gênero são produtos de metadiscursos acerca da superioridade existencial do homem sobre a mulher. Integra a ideologia de gênero, especi camente patriarcal, a ideia, defendida por muitos, de que o contrato social é distinto do contrato sexual, restringindo-se este último à esfera privada. Segundo este raciocínio, o patriarcado não diz respeito ao mundo público ou, pelo menos, não tem para ele nenhuma relevância. Do mesmo modo como as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado. Ainda que não se possa negar o predomínio de atividades privadas ou íntimas na esfera da família e a prevalência de atividades públicas no espaço do trabalho, do Estado, do lazer coletivo, e, portanto, as diferenças entre o público e o privado, estão estes espaços profundamente ligados e parcialmente mesclados. Para ns analíticos, trata-se de esferas distintas; são, contudo, inseparáveis para a compreensão do todo social.411

Dessa forma, toda a sociedade e também o Estado, segundo Sa oti, seriam tragados por uma ideologia de gênero que determina a divisão sexual do trabalho, as hierarquias sociais, as relações patriarcais entre mulheres e homens, e também o Direito, que, por isso, opera numa diferença de tratamento entre os sexos no reconhecimento da subjetividade jurídica e dos direitos subjetivos. Assim, segundo ela, essa ideologia atravessaria toda a sociedade civil, o Estado e o Direito, constituindo culturalmente todas as relações no interior da vida capitalista. Embora recorra ao conceito de “ideologia”, reconhecido pela epistemologia marxista ao longo do século

XX, não há um aprofundamento teórico que o relacione aos conceitos mais densos de “razão esclarecida”, “fetichismo” e “alienação” (fundamentais para a nova crítica do valor), denotando que as proposições de Sa oti são, para a teoria do valor-clivagem, culturalistas, e muito mais próximas dos pósmodernismos estruturalistas do que do marxismo. A compreensão de Sa oti era de tal monta culturalista, que a autora acreditava que a violência de gênero decorre da “tradição cultural”, “regida pela gramática sexual” de superioridade do macho sobre a fêmea. Porém, devido ao papel social de gênero ser simbolicamente e culturalmente constituído, segundo ela, a violência de gênero poderia ultrapassar o sexo biológico, de modo que poderia ocorrer em outras modalidades, apesar da mais evidente ser aquela que o homem perpetra sobre a mulher. A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. Nas relações entre homens e entre mulheres, a desigualdade de gênero não é dada, mas pode ser construída, e o é, com frequência. O fato, porém, de não ser dada previamente ao estabelecimento da relação a diferencia da relação homem–mulher. Nestes termos, gênero concerne, preferencialmente, às relações homem–mulher. Isto não signi ca que uma relação de violência entre dois homens ou entre duas mulheres não possa gurar sob a rubrica de violência de gênero. A disputa por uma fêmea pode levar dois homens à violência, o mesmo podendo ocorrer entre duas mulheres na competição por um macho. Como se trata de relações regidas pela gramática sexual, podem ser compreendidas pela violência de gênero. Mais do que isto, tais violências podem caracterizar-se como violência doméstica, dependendo das circunstâncias. Fica, assim, patenteado que a violência de gênero pode ser perpetrada por um homem contra outro, por uma mulher contra outra. Todavia, o vetor mais amplamente difundido da violência de gênero caminha no sentido homem contra mulher, tendo a falocracia como caldo de cultura.412

Sa oti imaginava estar edi cando uma teoria materialista dialética das relações de gênero, mas, sob as lentes da dissociação-valor, acabou recaindo no culturalismo sociológico, ao colocar todas as idiossincrasias do patriarcado

na conta de ideologia. Obviamente, estava muito distante das propostas de Scholz e, se levarmos o rigor teórico à risca, era bem menos marxista do que supunha ser, pois não fez um esforço metodológico a partir das categorias da economia política marxiana, concentrando-se apenas na temática da ideologia. A obra de Heleieth sequer alcança re exões categoriais mais rigorosas do feminismo marxista dos anos 1960-70. O olhar de Heleieth Sa oti, louvável (no sentido de desnaturalizar a superioridade masculina), proclamava-se marxista porque, em boa medida, estava inserto na tradição clássica do feminismo marxista, que percorre um caminho epistemológico partindo de Engels e passa pelas feministas marxistas das décadas 1960 e 70, mas está aquém, categorialmente falando, do que se produziu, nesse período, nos EUA e na Europa. 4.1.1 Feminismo marxista ou marxismo feminista? Nas décadas de 1960 e 1970, o feminismo marxista, por nomes como James, Benston, DallaCosta e Vogel, cuidou de trazer à baila questões de gênero que nunca estiveram entre os objetos de investigação teórica na tradição marxista, entre as quais, a desconstrução da superioridade masculina e a desquali cação das atividades femininas. Enquanto Marx, como propulsor da “emancipação das mulheres” mediante sua participação na produção social entendida como trabalho industrial, inspirou gerações de socialistas, as feministas descobriram na década de 1970 um novo Marx: contra as tarefas domésticas, a domesticidade, a dependência econômica aos homens, apelaram para seu trabalho em busca de uma teoria capaz de explicar as raízes da opressão das mulheres a partir de uma perspectiva de classe. O resultado foi uma revolução teórica que mudou tanto o marxismo quanto o feminismo. A análise de Mariarosa Dalla Costa sobre o trabalho doméstico como elemento chave na produção da força de trabalho, a localização de Selma James da dona de casa em um continuum com os não assalariados do mundo – aqueles que, ainda assim, foram centrais no processo de acumulação de capital –, a rede nição de outros ativistas de movimento da relação salarial como instrumento para a naturalização de áreas inteiras de exploração, e a criação de

novas hierarquias dentro da proletariado: todos esses desenvolvimentos teóricos e as discussões que eles geraram foram descritos na ocasião como o “debate sobre o lar”, supostamente centrado na questão de saber se as tarefas domésticas são produtivas ou não.413

Esse debate se fortaleceu através da incorporação das categorias contidas na maior obra de Karl Marx (O Capital) às re exões sobre a opressão das mulheres, pois as autoras desse período (anos 1960/70), como a canadense Margaret Benston e a italiana Mariarosa Dalla Costa, começaram a considerar que o trabalho doméstico que a mulher desempenhava no lar fazia parte da estrutura da exploração, e que era totalmente usurpado, pois, a despeito de crucial para a reprodução social (considerado por elas trabalho reprodutivo), não era remunerado enquanto trabalho assalariado: Feminismos anteriores haviam identi cado o lar como um local de opressão às mulheres e alguns haviam relacionado vagamente a esfera doméstica com o âmbito da produção. Mas não foi até 1969, com a publicação do artigo de Margaret Benston “The Political Economy of Women’s Liberation” [A economia política da libertação feminina], que o trabalho que as mulheres executam no interior do lar se tornou um tema de indagação crítica. A originalidade de Benston reside em propor uma compreensão desse trabalho como trabalho produtivo – um processo ou conjunto de atividades das quais a reprodução da sociedade (capitalista) depende como um todo. De forma simples: sem trabalho doméstico, os trabalhadores não podem se reproduzir e, sem trabalhadores, o capital não pode ser reproduzido. Não se pode subestimar a importância deste simples movimento. A formulação de Benston introduziu um quadro analítico dentro do qual se podem situar as experiências que as feministas de uma geração anterior, como Simone de Beauvoir e Betty Friedan, só puderam descrever. Intuindo o poder desse quadro, feministas socialistas começaram, ao longo da década seguinte, a teorizar o trabalho doméstico como parte integrante do modo de produção capitalista.414

Radical America, New Left Review, Review of Radical Political Economics, Cambridge Journal of Nos jornais marxistas in uentes da época, como

Economics, Bulletin of the Conference of Socialist Economists,

entre outros, as feministas marxistas exploraram os conceitos de valor de uso e valor de troca, bem como força de trabalho e classe, para identi car o que podiam revelar sobre o signi cado político-econômico das tarefas do lar, como lavar, passar, cozinhar e cuidar de crianças.415 Os esforços teóricos de intelectuais feministas como Margaret Benston, Selma James, Peggy Morton, Mariarosa Dalla Costa e Lise Vogel já questionavam, então, se o trabalho doméstico produzia (mais-)valor – e suas contribuições conduziram a uma resposta negativa, tal qual a de Roswitha Scholz. Por isso é que Scholz (2000) a rma que os estudos desse período, abandonados desde a década de 1980, precisam ser retomados. Nesse contexto, a contribuição de Vogel, dentre as autoras que produziram durante a efervescência feminista marxista da década de 1960, é a mais próxima da teoria do valor-dissociação desse período e, por isso, merece destaque aqui. Ao analisar a obra de Lise Vogel, Ferguson e Mcnally416 argumentam que ela foi além das demais autoras, por seu esforço na compreensão do trabalho doméstico fora do trabalho abstrato assalariado, que gera mais-valor: Vogel faz uma contribuição crítica, argumentando que a organização social da diferença biológica constitui uma “précondição material para a construção social das diferenças de gênero” (VOGEL, 1983, p. 142). Ainda que homens possam assumir alguns dos trabalhos domésticos associados à criação dos lhos e à manutenção da casa, há processos cruciais para os quais eles não são biologicamente dotados. Aqui, no entanto, precisamos ter muita precisão. Não é biologia per se que dita a opressão às mulheres, mas, em vez disso, a dependência do capital dos processos biológicos especí cos das mulheres –gravidez, parto, lactação –para garantir a reprodução da classe trabalhadora. É isso que induz o capital e seu Estado a controlar e regular a reprodução feminina e o que os impele a reforçar uma ordem de gênero de dominância masculina. E este fato social, ligado à diferença biológica, compreende a fundação sobre a qual a opressão às mulheres é organizada na sociedade capitalista.

Essa leitura já se mostra bastante avançada e próxima dos paradigmas apresentados por Roswitha, todavia, o que diferencia Vogel de Scholz é que

a resposta encontrada pela primeira para o fato do trabalho doméstico não gerar valor reside no fato dele ter apenas valor de uso, e não valor de troca. Segundo Ferguson e Mcnally,417 a conclusão de Lise Vogel é de que “(…) o trabalho doméstico produz valor de uso, não valor de troca e, portanto, não produz diretamente mais-valor; e ‘possivelmente’, o trabalho doméstico é um modo de produção próprio, que opera de acordo com uma lógica distinta, pré ou não capitalista”. É justamente esse feminismo dos anos 1960 que Scholz sugere que seja retomado e aprimorado, mas, em sua opinião, somente sua teoria do valor-dissociação não apresenta equívocos, pois vimos que, para ela, a associação exclusiva entre o trabalho feminino doméstico e o valor de uso está errada.418 O que podemos a rmar é que Scholz reconhece a importância do esforço e das contribuições dessas autoras, milita pela retomada de sua leitura, mas vai além. Outra intelectual importante do período é a neozelandesa Juliet Mitchell, que publicara sua obra “Woman’s estate” em 1966, e foi precursora de uma análise crucial que toma a ideia de “divisão sexual do trabalho” não apenas no mundo do trabalho formal e abstrato, mas também considera o “trabalho doméstico” em suas re exões. Apesar de muito longe das proposições de Scholz, por não partir da crítica do valor, Mitchell, ao menos, vislumbra essa outra dimensão da exploração da mão de obra arraigada nos discursos sobre feminilidade.419 Suas contribuições vieram para evidenciar que a mulher é explorada de forma peculiar na sociedade de classe, pois, mesmo quando expropriada de mais-valor no mundo do trabalho, continua eternamente con nada à casa e assolada nas tarefas domésticas. Sempre se falou da mulher e da família como se fossem sempre as mesmas. Assim, a análise da feminilidade e da família partiam de um todo monolítico: mãe, lugar de mulher, destino natural. Isso era, segundo Mitchell, uma cegueira naturalizadora de relações históricas que contaminava, inclusive, a esquerda.420 Então, Mitchell é audaciosa, ao colocar o dedo numa ferida que toda a esquerda, sindical e partidária, bem como o marxismo acadêmico, insistiam em obliterar, que é a naturalização da condição existencial da mulher enquanto esposa e mãe. A ideia de destino natural tem de ser “desconstruída” e, nesse sentido, a teoria socialista do passado não chegou a isolar os

diferentes elementos da condição feminina que formam uma estrutura complexa e não uma unidade simples. Não é possível reduzir a opressão da mulher a uma única dimensão, como formula Engels, nem mesmo equacioná-la como símbolo da opressão geral, como a rma Marx em seus primeiros escritos. “É preciso pensá-la como uma estrutura especí ca, isto é, como unidade de elementos diferenciados”, preconiza Mitchell. De fato, as vicissitudes da condição feminina decorrem da complexa dialética entre os papéis e os lugares socialmente atribuídos às mulheres que dizem respeito, especialmente, ao lugar na produção dos bens (a esfera da produção), à sexualidade e ao cuidar das crianças. Juliet Mitchell constata os limites do marxismo para o entendimento das diferenças sexuais (…).421

Nesse ponto, Juliet Mitchell desbravou um caminho que continua sendo arduamente trilhado por todas as feministas marxistas até hoje, uma vez que o marxismo, enquanto tradição epistemológica e conjunto de intelectuais e ativistas, também é profundamente marcado por práticas machistas e opressão das mulheres que ousam se inserir nessa seara (haja vista a expulsão de Scholz do grupo Krisis). Porém, ao invés de radicalizar o marxismo e o feminismo ao mesmo tempo (como faz Roswitha), Mitchell acaba recaindo nas armadilhas social-democratas, ao a rmar que as lutas por emancipação feminina não precisam aguardar a revolução do proletariado e não precisam estar, necessariamente, inseridas na luta revolucionária. As reivindicações femininas sempre foram apresentadas como reformas. As posições da esquerda que a rmam indubitavelmente que elas são reformistas não apenas mimetizam a atitude da sociedade burguesa, mas também subestimam seriamente o papel do reformismo na política revolucionária. Apenas quando uma teoria e uma estratégia revolucionárias da opressão feminina que desa em os governos “democráticos” forem desenvolvidas, nós poderemos decidir quais questões são reformas e subordiná-las à luta pela liberdade e pelo socialismo. Na ausência dessa estratégia, essas “reformas” podem se tornar o primeiro trampolim.422

Para a autora, existem questões objetivas urgentes que concernem à dignidade, sobrevivência e subjetivação das mulheres, que podem, até mesmo, anteceder o m da sociedade burguesa, servindo para impulsionar a

superação das desigualdades no capitalismo. Todavia, ao fazer essa concessão e antecipar a luta de mulheres à superação do valor, Mitchell acaba recaindo no feminismo liberal, que acredita serem a forma política e a forma jurídica espaços de disputa para serem convertidas em ferramentas de emancipação. Por questão de justiça, cabe salientar que Juliet não estava propondo o abandono da luta contra o capital, mas que, não sendo objetivamente possível sua suplantação por conta de questões materiais no contexto histórico em que escrevia, não seria aceitável, para ela, a admissão da continuidade da opressão das mulheres até que a economia capitalista e a sociedade burguesa fossem efetivamente abolidas. Na visão de Mitchell, a imediatidade da agenda feminista não poderia ser tachada de reformista, inclusive, porque, se a emancipação feminina ocorresse, poderia alavancar a revolução socialista em de nitivo, uma vez que os acalcamentos de classe e gênero se superpõem. Com as conquistas das mulheres, a classe trabalhadora seria compelida à luta e à emancipação de nitiva, de modo que a priorização provisória das lutas feministas não seria, segundo ela, reformista, mas sim totalmente revolucionária. Juliet Mitchell não admitiu que essa prioridade das demandas femininas acabaria resvalando numa luta por “mais direitos” para as mulheres e se converteria num reformismo social-democrata, justamente porque partia de uma premissa teórica, que, segundo Scholz, é equívoca: o acoplamento da luta de classe e da luta feminista a partir de um olhar sociológico. Por certo que, na perspectiva de Scholz, as lutas por “emancipação” feminina que acabam caindo na vala comum do discurso por “direitos” jamais irão reverter a estrutura fundamental do valor dissociado, de modo que a inserção da mulher no mercado de trabalho, sua participação na política, a tutela de seus direitos individuais etc. são pautas liberais, que nada podem ter de revolucionárias. São importantes na conjuntura atual, mas são conservadoras: voltadas à conservação da reprodução do valor. Os momentos da reprodução que não podem ou só di cilmente podem ser representados em trabalho abstracto e maisvalia/dinheiro, sendo no entanto necessários, foram dissociados da socialidade o cial, banidos para o concreto imediato incapaz da generalidade e historicamente delegados nas mulheres. E nada de essencial se modi ca nesta relação fundamental se as mulheres se

ligam à esfera do trabalho abstracto ou da produção de valor sem perderem a atribuição do dissociado. Por isso a dissociação também não se localiza num domínio especial do que é próximo, do que é privado, pelo contrário, ela própria constitui um princípio geral, como tal não designado, que atravessa todas as esferas. Por isso ela também participa na mudança e deve ser concebida como processo histórico, de tal modo que ela assume faces diferentes nas diferentes épocas do desenvolvimento capitalista e portanto também na pós-modernidade, quando, por exemplo, as ideias tradicionais dos papéis sociais perdem força. No entanto a dissociação mantém-se como princípio através da mudança; é o caso da concentração da actividade pro ssional feminina na esfera da assistência, do pior pagamento às mulheres mesmo nos domínios pro ssionais não conotados como femininos etc. Assim se mostra que trabalho abstracto ou maisvalia e dissociação sexual estão numa relação dialéctica recíproca, que tem de ser teorizada como princípio da dissociação-valor fundamental e abrangente; apesar de toda a mudança e de todas as diferenciações, que só podem ser esclarecidas tendo como pano de fundo esta conceptualidade fundamental.423

Finalmente, entre as autoras que escolhemos trazer para o diálogo neste item, sem dúvida, uma das teóricas feministas marxistas que mais se aproxima da compreensão da teoria do valor-dissociação sobre as questões de gênero é Silvia Federici. As teses de Scholz e Federici convergem em dois aspectos: (i) na compreensão de que as tarefas femininas expurgadas da forma produtiva do valor são alijadas do trabalho abstrato; (ii) a crítica à razão esclarecida como fundamento ideológico da subjugação do feminino. Apesar de publicar o Calibã e a bruxa após a publicação d’O sexo do capitalismo de Roswitha Scholz, Federici não tem sua obra como referência; mesmo assim, encontramos esses pontos fulcrais de convergência entre ambas. Silvia Federici esclarece, no prefácio à edição estadunidense original, que seu trabalho foi, na realidade, construído desde a década de 1970, embora a obra tenha sido publicada originalmente em 2004.424 Desta feita, trata-se de um trabalho que também é fruto do movimento de ebulição de produções feministas marxistas da década de 1970. Nesse texto, Federici propôs-se a explorar elementos da acumulação primitiva que, segundo ela,

Marx não foi capaz de conceber, entre os quais, o sobrepujamento das mulheres.425 Descobrir a centralidade do trabalho reprodutivo para a acumulação de capital também levou à pergunta de qual seria a história do desenvolvimento do capitalismo se não fosse vista do ponto de vista da formação do homem proletário assalariado, mas do ponto de vista das cozinhas e quartos onde a força de trabalho é produzida diariamente, geração após geração. A necessidade de uma perspectiva de gênero para a história do capitalismo – para além da “história das mulheres” ou da história do trabalho assalariado – é o que me levou, entre outras coisas, a repensar a explicação de Marx sobre a acumulação originária e para descobrir a caça às bruxas nos séculos XVI e XVII como um momento fundacional na desvalorização do trabalho das mulheres e no surgimento de uma divisão do trabalho sexual especi camente capitalista.426

Federici acredita que a primeira condição sócio-histórica facilitadora da transição feudal-capitalista foi o cercamento das terras na Europa, que possibilitou a formação do proletariado rural, pela distribuição brutalmente desigual dos quinhões, assim como do proletariado urbano, devido ao êxodo rural decorrente da ausência de terras aráveis para todos, e consequente migração para os centros urbanos em busca de novas formas de subsistência.427 Silvia destaca que os efeitos dos cercamentos de terras para as mulheres, sem oportunidades de se sustentar quando as relações monetárias passaram a reger a vida econômica, foram mais devastadores do que para os homens. Uma vez afastadas de seus vilarejos, encontravam mais di culdades do que os homens para sobreviver, mais expostas à violência masculina nos movimentos migratórios de fuga da servidão.428 Com base nos escritos marxianos, a autora advoga que o desenvolvimento do capital produtivo da Revolução Industrial dependeu de um momento anterior, no qual se deu uma acumulação de riquezas reais na produção de mercadorias através, inclusive, da exploração de uma força de trabalho não assalariada. Assim, a escravização de povos originários no continente americano para extração de produtos como metais preciosos e madeira foi um momento prévio ao capitalismo industrial, importante para o

desenvolvimento deste. Da mesma forma, foi valorosa a comercialização de mercadorias oriundas das grandes navegações, que criou uma acumulação de capital pela via do lucro no mercantilismo. Também a produção de insumos agrícolas (como algodão, milho, cana-de-açúcar, cacau, café etc.), por meio da exploração de africanos sequestrados em sua terra natal e afrodescendentes escravizados na América, foi crucial para a cumulação primitiva de capital. Nesse sentido é que Silvia Federici429 utiliza o conceito de acumulação primitiva (enquanto concentração prévia de capital e trabalho), sustentando que a formação do proletariado não se deu apenas pelos cercamentos de terra europeus, mas também pela exploração e escravização dos povos tradicionais, e das mulheres. Ocorre que estes, diferentemente dos homens brancos europeus, tiveram sua mão de obra expropriada de maneira absoluta, sem nenhuma remuneração. Além de tudo isso, a autora traz outro elemento que considera central para a transição entre feudalismo e capitalismo: a mecanização do corpo do trabalho vivo.430 O trabalho dos artesãos nos primórdios do capital mercantil não tinha esse contorno de automação. Foi preciso forjar o corpo-máquina para que o capitalismo pudesse se assentar. Daí, para controlar e domesticar o corpo feminino a m de o converter em máquina, as perseguições às mulheres foram cruciais na transição entre a Idade Média e a Modernidade: Do mesmo modo que os cercamentos expropriaram as terras comunais do campesinato, a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres, os quais foram assim “liberados” de qualquer obstáculo que lhes impedisse de funcionar como máquinas para produzir mão de obra. A ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao redor dos corpos das mulheres do que as cercas levantadas nas terras comunais.431

A acumulação primitiva precisara transformar o corpo humano em máquina no período de transição do modelo feudal para o sistema capitalista ascendente como condição de desenvolvimento deste último. Para ela, essa automação do corpo dependeu, inclusive, da necessária supressão do poder das mulheres, sujeitando-as à reprodução da força de trabalho.432 Desta feita, Federici considera que vai além da compreensão do próprio Marx em relação à acumulação primitiva, argumentando que esta não foi apenas uma

concentração de força de trabalho a ser explorada junto com uma concentração de capital, mas uma “acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora”, estruturando “formas de escravidão mais brutais e mais traiçoeiras”,433 que passam pelas relações de raça e de gênero. A compreensão de Federici, nesse ponto, é um tanto problemática e idealista e acaba marcada pelo racionalismo iluminista que ela se dispõe a combater, na medida em que considera que teria havido um projeto racionalmente orientado de expropriação de valor absoluto nessas relações de exploração, já com vistas à formação do capitalismo desde o feudalismo, com uma espécie de intencionalidade histórica programada. Essa proposição trata a história como um movimento racional ordenado, ainda que dialético, num sentido mais hegeliano do que marxiano. Se a compreensão do processo histórico realmente partir da materialidade, sem ideais racionalistas, a conclusão seria a de que o capitalismo não precisaria, necessariamente, ter escravizado pessoas negras, ou queimado mulheres nas fogueiras, para se possibilitar, mas Federici parece sustentar que, necessariamente, uma coisa dependeu da outra com contornos teleológicos. Sob uma perspectiva mais althusseriana, ocorre que, eventualmente, foi dessa feita que se deu a conformação do valor, articulando-se o trajeto da razão ao modo de acumulação via racismo e misoginia, por um materialismo aleatório434, mas poderia ter sido de in nitas outras maneiras. No que se refere à exploração feminina, propriamente, a visão de Frederici aproxima-se do teorema de Scholz, pois percebe que não foi atribuído valor ao trabalho doméstico e reprodutivo, que restou invisibilizado por não se constituir de atividades inseridas na lógica econômica e nos domínios do mercado. Por isso, esse tipo de trabalho foi atrelado somente à “vocação feminina”, como um “trabalho de mulheres”, desconsiderando-se sua essencialidade para a reprodução da força de trabalho, e, consequentemente, para a estruturação do modelo capitalista.435 As tarefas domésticas, a gravidez, o parto, e o cuidado dos infantes sempre foram cruciais para que a massa trabalhadora continuasse se reproduzindo, para a existência permanente de trabalho vivo a ser explorado. Todavia, esse trabalho, reputado como obrigação das mulheres, nunca foi remunerado. Federici, numa abordagem próxima à de Roswitha Scholz, demonstra que,

sem as mulheres con nadas a atividades a que ela alcunha “trabalho reprodutivo” (em Scholz, seriam as atividades do valor-clivagem), para gerar e cuidar da nova força de trabalho, não teria se constituído a classe trabalhadora urbana.436 A diferença entre ambas neste ponto seria que Federici considera o trabalho feminino reprodutivo, e, em Scholz, tudo é trabalho produtivo, ainda que mediatamente. Consoante a autora italiana, enquanto, no período pré-industrial, havia a necessidade da mulher estar fora do seu ambiente doméstico para complementar a renda da família num trabalho sub-remunerado, sempre em empregos ligados ao trabalho reprodutivo, como cozinheira, arrumadeira, babá etc. (segundo ela, um terço da população feminina da Espanha, Inglaterra, França e Itália trabalhava como criada para as classes altas); no capitalismo industrial, a mulher foi realocada em sua casa.437 Conforme Federici,438 o con namento das mulheres em suas casas foi uma das consequências lógicas do cercamento dos campos, expurgando os camponeses do trabalho na terra. Com a migração das massas campesinas para as cidades, os homens foram absorvidos pela indústria, e às mulheres foi delegado o trabalho reprodutivo desvalorizado na consolidação da produção voltada para o mercado. Com o desaparecimento da economia de subsistência que havia predominado na Europa pré-capitalista, a unidade entre produção e reprodução, típica de todas as sociedades baseadas na produçãopara-o-uso, chegou ao m conforme essas atividades foram se tornando portadoras de outras relações sociais e eram sexualmente diferenciadas. No novo regime monetário, somente a produção-para-o-mercado estava de nida como atividade criadora de valor, enquanto a reprodução do trabalhador começou a ser considerada como algo sem valor do ponto de vista econômico e, inclusive, deixou de ser considerada um trabalho.439

Ao fenômeno que Scholz denomina dissociação do valor, Federici440 chama de “separação da produção e da reprodução”, o que causou a degradação social feminina, uma vez que colocou as mulheres numa posição de dependência nanceira dos homens (únicos assalariados). Enquanto os

homens eram subjugados pelos patrões, as mulheres dos patrões eram subjugadas no lar, e as mulheres pobres eram subjugadas pelos homens trabalhadores. Neste ponto, Silvia Federici converge razoavelmente com Scholz, compreendendo que o trabalho reputado como reprodutivo foi alijado da estrutura de reprodução do valor, e da própria compreensão do que viria a ser o trabalho, embora continuasse imprescindível para a reprodução social e também para a produção econômica, pois, sem ele, não haveria o trabalho vivo do proletariado.441 Sua reconstituição dessas formações sociais é bastante oportuna para que possamos compreender como se deu a clivagem descrita por Scholz. Como, nos seus primórdios, o capitalismo industrial esmerilhava a massa proletária, massacrando e ceifando a vida das pessoas nos insalubres ambientes fabris, a sociedade experimentou uma crise populacional, que foi objeto de uma política reprodutiva patriarcal capitalista fundada em dois pilares: a) o fortalecimento da família enquanto instituição protetora da propriedade e reprodutora da força de trabalho; b) a legitimação da intervenção estatal na sexualidade feminina (inclusive, com a retirada do controle das mulheres sobre seus próprios corpos, sobretudo, no tocante aos direitos reprodutivos).442 O corpo-máquina do homem estava destinado a ser triturado nas engrenagens da produção industrial, ao passo que o corpo-máquina da mulher era compelido a produzir novos homens. Daí o útero da mulher ser tratado como uma coisa, como se fora uma “caixa” que guarda bebês, desconectado da vida de um ser humano material com autodeterminação sobre sua existência. Os corpos femininos passam a ser tratados como bem comum da sociedade, controlado pelo Estado, através do Direito (penal). O útero, para Federici, é convertido em uma máquina de produzir trabalho vivo.443 Antes associado à força da vida e à inexorabilidade da natureza, no capitalismo, foi convertido em mais um recurso natural (como as águas, a ora, a fauna, os minerais etc.) para a exploração capitalista. É nesse sentido que o modo de produção capitalista escravizou as mulheres desde o período de acumulação primitiva, o que se acirrou com a expansão industrial, quando foram cerceadas em suas possibilidades existenciais, nos limites estritos da esfera privada familiar (a única

possibilidade na vida de uma mulher era ser esposa e mãe). Essa opressão na mulher nos limites domésticos não signi cou, contudo, que não fosse explorada na forma do trabalho abstrato. O que ocorreu foi que os trabalhos geradores de valor atribuídos às mulheres estavam especi cados também como atividades correlatas ao universo feminino. A esse fenômeno é que Federici denomina “divisão sexual do trabalho”, na mesma tradição terminológica de todo o feminismo marxista do século XX: Contudo, dentro da comunidade trabalhadora do período de transição, já podemos ver o surgimento da divisão sexual do trabalho que seria típica da organização capitalista – embora as tarefas domésticas tenham sido reduzidas ao mínimo e as mulheres proletárias também tivessem que trabalhar para o mercado. Em seu cerne, havia uma crescente diferenciação entre o trabalho feminino e o masculino, à medida que as tarefas realizadas por mulheres e homens se tornavam cada vez mais diversi cadas e, sobretudo, passavam a sustentar relações sociais diferentes.444

Importantíssimo assinalar que Federici, tal qual aponta Scholz, nota que a conversão do útero em máquina reprodutora de trabalho vivo só foi possível naquele momento da história da humanidade graças à escalada da razão iluminista. Um dos maiores propósitos da razão instrumental sempre foi converter a natureza em matéria útil e manipulável, através de uma verdadeira batalha da razão contra a natureza (que incluía a natureza humana), da qual, obviamente, essa saiu derrotada, na qualidade de matériaprima para a produção capitalista. O corpo humano, enquanto elemento natural, não escapou a essa lógica, e acabou convertido em máquina produtiva e reprodutiva. O que morreu foi o conceito do corpo como receptáculo de poderes mágicos que havia predominado no mundo medieval. Na realidade, este conceito foi destruído. Por trás da nova loso a encontramos a vasta iniciativa do Estado, a partir da qual o que os lósofos classi caram como “irracional” foi considerado crime. Esta intervenção estatal foi o “subtexto” necessário da loso a mecanicista. O “saber” apenas pode converter-se em “poder” se conseguir fazer cumprir suas prescrições. Isso signi ca que o corpo mecânico, o corpo-máquina, não poderia ter se convertido

em modelo de comportamento social sem a destruição, por parte do Estado, de uma ampla gama de crenças pré-capitalistas, práticas e sujeitos sociais cuja existência contradizia a regulação do comportamento corporal prometido pela loso a mecanicista. É por isso que, em plena Era da Razão – a idade do ceticismo e da dúvida metódica –, encontramos um ataque feroz ao corpo, rmemente apoiado por muitos dos que subscreviam a nova doutrina.445

Na abordagem de Federici, entretanto, foi central a associação do feminino ao diabólico para a mecanização do útero domesticado, que se deu pela caça às bruxas, como corolário simbólico histórico dessa empreitada. Para ela, a inquisição da Baixa Idade Média foi essencial para assentar essa projeção do feminino que a razão iluminista viria a delinear posteriormente. O ataque contra as mulheres que arderam em fogueiras se justi cou plenamente a posteriori, pela apropriação de seu trabalho pelos homens e pela criminalização de seu autocontrole sobre a reprodução sexual, oportunas ao capitalismo.446 A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista, rede nindo assim os principais elementos da reprodução social. A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista, rede nindo assim os principais elementos da reprodução social.447

Isso quer dizer que as re exões de Federici estão muito próximas do teorema do valor-clivagem de Scholz, pois, além de compreender que há diferentes esferas de trabalho (abstrato alocado na forma valor, na terminologia de Scholz, ou produtivo na de Federici, de um lado; e valordissociação e reprodutivo, respectivamente, de outro), também assinala a crucialidade das metanarrativas do esclarecimento totalitário (“Era da

Razão”) para o asseguramento da dualidade de papéis de gênero e posições existenciais delimitadas nas sociedades capitalistas. Na perspectiva da clivagem do valor, as relações de gênero hodiernas devem ser analisadas no contexto capitalista, pois o patriarcado produtor de mercadorias e gerador de valor é muito peculiar. Nesse passo, os movimentos feministas que tomam o sexismo como um fenômeno trans-histórico, descolado do sistema econômico, e paralelo às determinações estruturantes e superestruturantes da modernidade estão completamente cegos. Esse não é o caso das feministas marxistas. É certo que houve patriarcado antes do capitalismo, no entanto, sua égide associada ao domínio da razão esclarecida totalitária perfaz uma especi cação sui generis do machismo, aproveitando-se da subjugação da mulher, como um novo desenho que se pinta sobre um fundo já existente. É assim que, no capitalismo, o binarismo e a hierarquização de gênero são passíveis de sofrer múltiplas fragmentações e diversi cações, como com o advento do reconhecimento das identidades gay, lésbica, bissexual e transexual, mas isso não abala o valor-clivagem.448 Do mesmo modo que os âmbitos público e privado sofreram uma dicotomização449 no ocidente, o mesmo ocorreu com os papéis sociais de gênero. São duas clivagens de contornos culturais que recortam a sociabilidade de maneira binária, de modo que, quando se discute o binarismo de gênero, sociologicamente, não se trata das diferenças de sexo biológico, mas sim de construtos sociais que alocam a fêmea em seu papel feminino e o macho, em seu papel masculino, constituindo nosso patriarcado. Daí porque se falar em discriminação de gênero, violência de gênero – e não violência de “sexo” – uma vez que é a construção sócio cultural do gênero que situa a mulher num lugar de inferioridade, e não a sua biologia. A relação de cisão forma, aqui, a lógica geral da modernidade, a qual não deve ser confundida com a existência empírica e imediata das relações de gênero. A atribuição sexual tanto do universalismo do valor quanto da cisão não constitui, com efeito, uma objetividade efetivamente natural, senão que um construto social; não se trata, por certo, de um construto acidental e arbitrário, mas historicamente objetivado, que só pode ser rompido conjuntamente com a construção formal do valor (do

movimento de valorização do capital). Nessa medida, constitui igualmente um momento empírico e indemonstrável na identidade dos indivíduos, sem que entretanto estes fossem totalmente absorvidos por ele.450

A associação entre o masculino e a esfera pública confere ao varão a importância de quem ocupa Estado e a política, determinando os destinos de toda coletividade e, no capitalismo, também lhe incumbe da administração do capital e da organização do sistema produtor de valor. À mulher, restam atividades privadas que, culturalmente, são consideradas inferiores, porque comezinhas e triviais e, no capitalismo, não geram valor. Por isso, a partir do século XVIII, a inferiorização da mulher e o patriarcado (que obviamente não surgem com o capital) ganham nova força no seu domínio. Diante de visões como as de Vogel ou Federici, entre outras, podemos notar que Roswitha Scholz não inventou a roda ao demonstrar que as atividades reputadas como “femininas” e impingidas às mulheres, através de um discurso acerca da “feminilidade”, dependem de um binarismo de gênero narrado pela razão esclarecida. Diversas outras autoras (como Dalla Costa, Benston e Vogel) já haviam notado essa cisão da existência que sustenta o patriarcado capitalismo, especialmente, a sociedade industrial do século XIX e boa parte do XX. A diferença de Roswitha para as outras marxistas que denunciam a divisão do mundo em masculino e feminino, no contexto capitalista, é que a alemã parte mesmo d’O Capital, e de sua releitura perpetrada pela nova crítica do valor. Roswitha Scholz optou por dialogar mais proximamente com as autoras cuja costura teórica parte dos mesmos referenciais que ela: Marx (O Capital), Kurz e Adorno/Horkheimer. Mas, mais do que nesses autores homens, Roswitha menciona muitas autoras nas quais se inspirou em todos os seus textos. Além da beber um pouco em Nancy Fraser e bastante em Regina Becker-Schmit, a teoria do valor dissociação vincula-se a pensadoras como Gudrun-Axeli Knapp e Ursula Beer, pois todas elas tratam a relação entre os sexos como conexão social estrutural, ou seja, o sexo, o gênero e a sexualidade são categorias sociais estruturais, e não psíquicas e culturais.451 De Becker-Schmidt e Knapp, Scholz extrai sua leitura acerca da dupla socialização das mulheres como categoria social estrutural de socialização e

como resistência. Partindo da crítica dessas autoras acerca da lógica da identidade como “método” e a essência do patriarcado produtor de mercadorias, do todo social e da relação entre os sexos, Scholz articula os conceitos de troca, trabalho, dinheiro e sexo, para amarrar sua teoria do valor clivado. Scholz entende que a ideologia, nesse aspecto, deriva de uma “troca de mulheres”, através de uma lógica da identidade, que tem o androcentrismo como fenômeno infraestrutural psicogenético. Sua percepção de como a ideologia opera, na sustentação do patriarcado capitalista, dialoga proximamente com Regina Becker-Schmidt, em “Mulheres e desclassi cação” à escala universal, cuja pesquisa enfoca a teoria corporativa e de assuntos, a Teoria Crítica, a psicologia social de orientação psicanalítica e os estudos de gênero. Regina é considerada uma gura ovular na teoria crítica feminista, e seu esforço consiste em tomar os conceitos de Adorno e Horkheimer, mas, ao mesmo tempo, demonstrar que eles estavam equivocados no que tange às relações de gênero, pelo que Scholz parte de Becker-Schmidt para situar a ideologia sexista num caminho teórico desde a “dialética do esclarecimento”. Portanto, Roswitha Scholz não descarta a dimensão ideológica do machismo, mas compreende que a dissociação do valor é operada por meio de uma simbiose entre o dissociado da forma valor (em sentido econômico e estrutural) e as metanarrativas androcêntricas do iluminismo, ou seja, sua percepção de “ideologia” é conceitualmente mais profunda. De Elisabeth Beck-Gernsheim, Roswitha traz a dualidade de pro ssão e trabalho doméstico, a construção da sexualidade, o inconsciente social androcêntrico e a razão relativa da abordagem “valor de uso – valor de troca, feminilidade – masculinidade”. E é em Frigga Haug que Scholz busca as relações entre os sexos como relações de produção, e a especi cidade do patriarcado capitalista como modelo de civilização. A elaboração da dualidade “trabalho remunerado – trabalho doméstico” como uma metafísica do trabalho, em Frigga Haug, que resvala na ordem simbólica do patriarcado capitalista, é fulcral para que Roswitha Scholz elabore seu teorema. Assim, Scholz não cria suas ideias a partir do zero, mas está empenhada em dar continuidade a uma tradição de re exões feministas marxistas que nasceram nas décadas 1960 e 70, mas se re naram e se agudizaram recentemente com estas outras autoras.

Scholz não tem a pretensão de derrubar as demais autoras feministas marxistas; é exatamente o contrário: ela milita para que as teorias feministas marxistas, que eram signi cativas nas décadas de 1960 e 1970, sejam retomadas com força total. Apenas acrescenta que a melhor leitura é a que parte da crítica do valor e da crítica à razão de Adorno, para culminar no teorema do valor-clivagem. Por isso, este tópico não teve a pretensão de rebater nenhuma ótica, nem mesmo de realizar uma revisão bibliográ ca de todo o feminismo marxista, mas sim de mostrar em que aspectos a teoria de Scholz é única, e pode contribuir com mais assertividade nos diagnósticos do patriarcado capitalista, para que se organizem as lutas por sua superação. A teoria do valor-dissociação é inovadora e provocativa, na medida em que vincula o nosso machismo, estruturalmente, ao capitalismo, mas não é absolutamente pioneira. É apenas, sem dúvidas, mais bem acabada e estruturada. Como parte do processo econômico de produção, preferimos dizer que é um marxismo feminista, e não um feminismo marxista, embora, no teorema do valor-clivagem, a compreensão do machismo e do capitalismo só pode ocorrer simultaneamente, numa dialética de co-implicação permanente. Trata-se de uma diferença sensível de método, pois, ao invés de partir da ideologia binarista heterodeterminante para buscar as relações da cultura machista com a economia capitalista, Scholz inverte o prisma, e se empenha em demonstrar que as categorias abstratas da economia, alimentadas pela razão instrumental, dialeticamente, sobredeterminam os sujeitos concretos e as práticas sociais, em um movimento dialético permanente. Num contexto em que os descontentamentos e as radicalizações dos movimentos feministas só parecem aumentar e que os embates envolvendo sexo e gênero se tornam cada vez mais contundentes em todos os países do mundo, os diagnósticos de Scholz são muito relevantes, não porque sejam completamente inéditos, mas porque são estruturais e dialogam com o presente, com as demandas do século XXI. Ainda, propugnar um marxismo feminista consiste numa viragem discursiva e paradigmática, segundo a qual o materialismo histórico dialético precisa ser feminista. A clássica terminologia “feminismo marxista” parece partir da mesma lógica que há na sigla “LGBT”: o “L” vem em primeiro lugar para dar prioridade e protagonismo às mulheres. Mas essa espécie de ladies rst contestadora não é

necessariamente mais feminista porque o termo “feminismo” vem antes do termo “marxista”. A ideia de um “marxismo feminista” marca justamente a necessidade de que as compreensões de todas e todos os marxistas sejam, obrigatoriamente, feministas, já que será precária uma teoria de desvendamento do capitalismo que desconsidere as especi cações sexuais das formas sociais do capitalismo, bem como todas as relações de gênero na sociedade das mercadorias. A marcação desse termo quer dizer que o marxismo precisa ser feminista, não apenas por um compromisso ético, ou algo do tipo, mas por uma questão de rigor epistemológico. Cienti camente, não se pode compreender um fenômeno desconsiderando uma de suas dimensões fundamentais: não se pode tratar o capitalismo como se a misoginia e o racismo fossem detalhes secundários, e não seus componentes estruturais. Usar a expressão “feminismo marxista” para todos os debates epistêmicos que tratam as relações de gênero a partir de Marx é uma deturpação, pois faz parecer que se trata, primeiro, de um feminismo, tal qual o feminismo liberal, focado na ideia de busca por igualdade entre homens e mulheres, para, em segundo plano, emprestar categorias marxistas diversas para defender essa necessidade de equiparação subjetiva – tais como “luta de classes”, “ideologia”, “trabalho”, “exploração” etc. Essa abordagem pode levar (e tem levado) a enviesamentos e ecletismos, pelos quais qualquer feminista pós-moderna que se diga anticapitalista possa se atuproclamar uma “feminista marxista” (quando, no frigir dos ovos, muitas vezes, elas são, inclusive, liberais – esquerda liberal). Todavia, o método marxista requer profundo rigor, e deve partir da economia política e das formas sociais do capitalismo, para ser marxista e radical. Assim, será, lógica e necessariamente, feminista também, pois, consoante Scholz, não se compreende o valor sem sua clivagem. O rigor não é mero preciosismo cienti cista, mas condição para que não se recaia inadvertidamente no feminismo liberal, acreditando-se “de esquerda” ou até “marxista”, o que tem sido cada vez mais comum. Por isso, consideramos, com Scholz, crucial ter rigor teórico, método, e um referencial bastante delimitado. Frigga Haug452 entende que o termo “marxism-feminism” é a inserção das agendas das mulheres nos movimentos revolucionários. Contudo, essa é

uma característica do feminismo que remonta ao início do século XX, com ícones como Clara Zetkin e Alexandra Kollontai, ao passo que a terminologia foi proposta na década de 1970, justamente num sentido de uma remodulação teórica. Haug entende, por outro lado, que o desa o de converter as teorias feministas em práxis revolucionária é que seria o “feminismo marxista”453, o que parece bem interessante. Desta feita, o que propomos, na esteira das autoras da segunda metade do século XX, é que a epistemologia seja tratada pela alcunha “marxismo feminista”, com a observação de que, em verdade, trata-se de um pleonasmo proposital, no sentido de demarcar que não existe marxismo rigoroso que não seja feminista. Um marxismo que desconsidera o gênero e o valor-clivagem não é materialista, histórico nem dialético – amiúde, não é marxismo, mas mais uma falsi cação da ideologia. Quanto às lutas de mulheres por emancipação (que pressupõem o m do capitalismo, segundo o teorema de Scholz), podem ser tratadas como feminismo marxista ou marxismo feminista, como sinônimos. 4.1.2 Clivagem do valor e multiplicidade de opressões Boa parte do feminismo marxista (desde Engels, passando pelas revolucionárias bolcheviques, e pelas teóricas do século XX, como Mitchell, até o presente) insiste em trabalhar a partir da sobreposição entre as subjugações de classe e gênero (e, em algumas autoras, de raça). É como se houvesse várias camadas da opressão, que são alocadas uma sobre a outra, até se misturarem numa amálgama complexa: a sociedade desigual do capitalismo. Desse ponto de vista, primeiro, há a divisão social em classes, decorrente da desigual distribuição de capital e propriedade; sobre a cisão em classes, então, assentam-se outras opressões históricas (como o machismo e o racismo), as quais, mesmo que não tenham nascido com o capitalismo, são por ele oportunizadas para a sua reprodução. Desta forma, o capitalismo converteria uma já proclamada superioridade de homens (sobre mulheres) e brancos (sobre outras etnias) em ideologia conformadora da sociedade burguesa, por ser uma metanarrativa oportuna à desigualdade e à acumulação de capital. Essa é a leitura feminista marxista que ana por todos os espaços

desde o m do século XX, e que, enquanto método, recebeu a nomenclatura de “interseccionalidade”. Helena Hirata e Danièle Kergoat, por exemplo, que escreveram na década de 1990, são autoras dessa linha de re exão (embora não tenham usado esse termo), pois a rmam que acreditam na existência de classes sociais, mas que as relações sociais de classe e de sexo se sobrepõem, contestando o mito da unidade política da classe trabalhadora, fundamental para as ideias de solidariedade orgânica e integração social dos movimentos operários. A classe operária tem dois sexos: esta a rmação não contraria apenas a utilização corrente do masculino nos textos sobre a classe operária que falam de trabalhadores quando estão se referindo a trabalhadoras! Trata-se também de a rmar que as práticas, a consciência, as representações, as condições de trabalho e de desemprego dos trabalhadores e das trabalhadoras são quase sempre assimétricas e que raciocinar em termos de unidade da classe operária sem considerar o sexo social leva a um conhecimento truncado – ou pior – falso do que e uma classe social. Se consideramos errado tal procedimento, nem por isso, achamos que o patriarcado seja a estrutura essencial da sociedade nem que as relações sociais de sexo ou a sexagem sejam as relações predominantes em nossas sociedades. Os trabalhos que o a rmam esbarram numa di culdade proclamar a primazia ou a simultaneidade do sistema patriarcal em relação a organizaçao social no seu conjunto não basta para mostrar como esse sistema afeta os outros sistemas como se articula com eles. Como por exemplo articular o modo de produção doméstico com o modo de produção capitalista a sexagem com as relações de classe.454

Segundo elas, tais movimentos sempre funcionaram segundo a suposição de que a unidade política da classe operária poderia ser alcançada a despeito dos con itos e dos antagonismos entre os sexos. Nessa concepção contestada por Hirata e Kergoat, os socialistas evocariam o discurso de que o movimento revolucionário ocupar-se-ia, primeiro, de colocar m às desigualdades de classe e aniquilar a exploração, implantando o socialismo, para, posteriormente, resolver os problemas relacionados ao sexismo. Foi

assim que, segundo as autoras, a esquerda sempre ostracizou as lutas dos movimentos feministas.455 (…) por um lado todos os indivíduos são homens ou mulheres e por outro todos tem uma situação de classe a ser determinada (origem de classe inserção atual). As relações de classe e as relações de sexo são, portanto, relações estruturantes e fundamentais da sociedade em oposição a outras relações (professor/aluno médico/paciente jovens/velhos) que são relações contingentes. Entretanto, o conceito de gênero (ou de sexo social) e de origem bem mais recente que o de classe social.456

No entanto, segundo o ponto de vista delas, as relações de opressão e exploração de classe e de gênero se articulam, formando uma teia típica da complexidade da sociedade industrial. Por isso, tanto as questões de classe quanto de sexo seriam cruciais para as lutas da esquerda, o que começou a ser reconhecido na década de 1970, embora o conceito de interseccionalidade, propriamente, tenha sido mais espalhado na década de 1990.457 Diferente do que propõe Mitchell, então, sustentam que não é possível se realizar primeiro a agenda feminista e esperar que isso impulsione a revolução socialista. De outro lado, também divergem dos movimentos operários tradicionais e não aceitam que, primeiro, haja a revolução anticapitalista e, depois, a atenção às reivindicações das mulheres (o que vale para outros movimentos por igualdade, como movimento negro e LGBT). Para elas, todas as lutas só podem acontecer simultaneamente, pois a emancipação em relação ao capital só é plena se for emancipação total em relação a toda e qualquer opressão da sociedade burguesa. É assim que o conceito de interseccionalidade opera, enquanto metodologia e proposta de práxis, no interior do feminismo marxista. (…) os lugares nas relações de classe e de sexo são determinantes para as práticas e para as lutas. Na primeira metade da década de 70 período de fortalecimento das lutas a tendência era pensar que se o grau de combatividade feminista crescesse o da classe também cresceria. Ora essas relações mecanicistas não suportaram a prova dos fatos: não há correspondência entre os dois, mas sim coabitação por vezes difícil. Pois como lutar simultaneamente como mulher negra proletária? De fato, segundo os lugares e

momentos da vida, segundo as oportunidades políticas, luta-se primeiro como mulher ou como negra ou como proletária. En m, consideramos que os atores individuais e coletivos são ao mesmo tempo produtos e produtores das relações sociais. No estudo desse duplo movimento, as duas relações sociais de sexo e de classe devem estar integradas por causa de sua indissociabilidade e complementaridade. As relações sociais formam uma teia: há separação e entrelaçamento, contradição e coerência entre essas relações. Ambas são transversais ao conjunto da sociedade.458

Segundo Hirata e Kergoat, suas re exões coincidem com uma revisão do marxismo nos anos 60-70 do século XX, uma vez que compreender que a classe operária tem dois sexos bem como as relações racializadas foi imprescindível para re nar os diagnósticos acerca das opressões na sociedade de classe para além do que fora tratado n’O Capital. Nesse sentido, aproximam-se de Roswitha Scholz. As mulheres em O Capital não têm existência como sexo social mas fazem parte com outras categorias sociais do exército de reserva industrial. A construção do conceito de gênero data dos anos 70 e os antropólogos e sociólogos que estudaram essa noção zeram no quadro histórico do movimento das mulheres. As reivindicações desse movimento atestavam a que ponto a exploração, conceito chave do marxismo e base da relação antagônica entre as classes, era fundamentalmente insu ciente para mostrar a opressão sofrida pela mulher quanto as relações homem/mulher no seio da sociedade. Mesmo assim e em referência (ou em oposição) ao marxismo que os novos conceitos de modo de produção doméstica de categoria de sexo ou de sexagem foram elaborados. E essa e sem dúvida uma das diferenciações mais fortes entre o feminismo francês e o feminismo anglo saxão em particular o americano. Esses trabalhos tiveram importantes consequências sobre a maneira de conceitualizar toda uma serie de noções a começar pela de classes sociais foi preciso primeiro tornar visível a construção histórica cultural do sexo social (ou gênero) contra o naturalismo e o fatalismo que impregnam a representação da mulher como inferior subordinada por razões de ordem biológica e clara

analogia com a naturalização das raças dominadas a partir de diferenças biológicas.459

Essa visão não é totalmente incompatível com a teoria do valor clivado, desde que não se tome a categoria “classe” como um elemento da interseccionalidade e que não se abandone as re exões profundas sobre o fetichismo da sociedade das mercadorias e a dissociação do valor. O racismo e a lgbtfobia são preocupações constantes nos escritos de Scholz, assim como outros processos discriminatórios, como o antissemitismo e o anticiganismo, mais presentes na realidade da autora alemã.460 Isso não está fora do seu radar. Ocorre que o teorema do valor-dissociação parte de outro método para a compreensão desse fenômeno: uma rigorosa releitura econômica marxista do valor. A partir de Roswitha, seria necessário identi car outras clivagens no valor decorrentes da abstração do trabalho, que poderiam explicar múltiplas exclusões no interior da sociedade burguesa461. Na verdade, ao apontar que não se pode compreender a classe operária como uma abstração de conotação masculina (“o operário”, “o trabalhador”) e que as opressões sexistas e racistas não podem ser jamais ignoradas numa crítica ao capitalismo, essas feministas estão em certa congruência com Scholz, que também se dedica a desconstruir o universalismo da forma-valor, denunciando que não se trata de uma categoria sexualmente neutra, mas masculina. Todavia, Scholz entende a ideia de “luta de classes” como datada, uma vez que seria totalmente válida apenas para os modelos de acumulação liberal e fordista, e, ainda assim, problemática, porque, historicamente, todos os movimentos que partiram da “luta de classes” acabaram pelejando por distribuição do capital entre as classes, e nunca focaram na superação do valor. Por vias opostas, porém, todas possuem intenções parecidas. Hirata e Kergoat querem mostrar que a universalidade neutralizante da classe trabalhadora escamoteia as relações assimétricas de gênero em seu interior, ao passo que Scholz, ao dizer que o valor é o homem, quer demonstrar que existe um (não) lugar reservado à mulher no processo produtivo capitalista. A diferença é que, para tal, Scholz realmente revisita a economia política marxiana, especi camente, a teoria do valor, e essas outras feministas, não. O feminismo de Scholz contempla a multiplicidade de opressões sem se diluir em identitarismos.

Por conseguinte, este procedimento sem recurso à lógica da identidade não contradiz de modo nenhum o conceito de relação de dissociação-valor como princípio fundamental; revela-se, em todo o caso, que uma crítica adequada e su ciente do patriarcado moderno produtor de mercadorias, em conformidade com os seus pressupostos, e contrariamente a uma simples crítica da “forma vazia indistinta” – circunstância que também se tornou clara no caso de Agamben – tem de ter a capacidade de delimitar e reduzir o seu alcance e de pensar contra si própria, quando deixa incondicionalmente ao objecto particular do seu pensar o respectivo peso especí co. Este é o seu mais intrínseco pressuposto: para se poder a rmar como crítica do princípio fundamental do capitalismo, ela tem de se negar como entendimento no sentido dum conceito universalista regido pela lógica da identidade.462

Em Scholz, não se pode compreender as opressões de classe, raça, gênero, orientação afetivo-sexual, de PCD´s etc. em camadas sobrepostas, dimensões paralelas, ou atravessamentos múltiplos combinados. Primeiramente, para ela, o conceito de “classe” não pode mais ser invocado integralmente, sob pena de anacronismo, pois o desenho do capitalismo do século XXI não admite mais as mesmas leituras da sociedade capitalista dos séculos anteriores. Há uma tal complexidade nas relações que desdobram o valor, que o mundo praticamente se desenha numa imensa “classe média”, o que já afastaria Scholz dessas compreensões interseccionais que invocam tal categoria para tentarem se aninhar dentro do marxismo. Porém, mais do que isso, a leitura de Scholz afasta-se dessas percepções, não porque ela não compreenda que há múltiplas opressões experimentadas pelos mesmos sujeitos, mas porque a leitura acerca desse fenômeno, para ela, deve ser obrigatoriamente econômica, materialista. Se assim não for, sempre resvalará no identitarismo463 cultural individualista, como ocorre com os pósestruturalismos e, perdendo o olhar sobre a totalidade, volta a cair nas armadilhas do capital, como a “representatividade”, que nada mais é do que a explorações de novos motes capazes de impulsionar o consumo e criar valor. Com o começo da década de 2000 reforçou-se o tema da “interseccionalidade”, isto é, da relação sobretudo de “raça”,

classe, género, bem como da incapacidade e da velhice. Assim, reconheceu-se entretanto a relevância de outras determinantes; o fundo continua a ser portanto a preocupação, a identidade, a ligação à localização social e cultural, que agora no entanto é tratada num plano mesmo da estrutura sociológica. Assim, em Gudrun Axeli-Knapp, que não por acaso desempenha um papel signi cativo na paisagem do feminismo sociologista por cá, a sociedade surge, numa interpretação particular de Adorno, de modo reducionista e sociologista como mero conceito relacional, como contexto de entrelaçamento histórico, como relação recíproca de esferas sociais (economia, política, ciência, privacidade); ou seja, no fundo despida de qualquer princípio essencial e formal abrangente (ver Knapp, 2008, particularmente p. 141 sg.). Uma crítica fundamental do capitalismo e do patriarcado é assim mudada para um entendimento da sociedade sociologicamente minimizador, de oposição apenas aparente, porque no fundamental compatível com as piores situações.464

O identitarismo é efeito do m da estrutura tradicional classista do capital produtivo que marcou o liberalismo e o fordismo. Na medida em que o pós-fordismo pulverizou a produção e as relações de trabalho se exibilizaram pela precarização e informalidade, a identidade da classe operária vem, cada vez mais, do ponto de vista simbólico, desaparecendo. Praticamente, nenhum trabalhador e nenhum trabalhadora se identi ca mais como “proletariado”, de modo que a narrativa de enfrentamento a uma “classe burguesa” também se impossibilitou. De fato, uma valorização do valor que ocorre, muito mais, no plano da nanceirização e especulação do que na exploração do trabalho abstrato, gera um enfraquecimento do movimento sindical, pois, se o trabalho já não é mais crucial para a acumulação, os operários não possuem mais capacidade negocial, e os direitos trabalhistas e previdenciários desaparecem. Com as pulverizações, exibilizações e “uberizações”, sequer há um mesmo ambiente laboral em que o operariado se encontre para se reconhecer e se organizar. Isso sem contar a força da ideologia que se originou no toyotismo sobre “engajamento do colaborador”, “atitude de dono” ou “espírito empreendendor”. Nesse cenário, fortalecem-se movimentos sociais centrados na lógica de identidade de grupo, como movimento negro, movimento de mulheres,

movimento de rurícolas, movimento ambientalista, movimento de pessoas homoafetivas, movimento de pessoas transgênero, movimentos de pessoas com de ciência etc. Essas bandeiras identitárias se tornaram o cerne da esquerda no mundo todo, perdendo-se de perspectiva a luta contra o capitalismo, para um enfoque imediatista sobre agendas especí cas e urgentes construídas em torno das demandas de cada grupo. Ocorre que essa diluição da esquerda (que, bem ou mal, era anticapitalista) em in nitos movimentos identitários foi altamente propícia à regulação neoliberal (com o desmonte do Estado social), e à ideologia individualista do “cada um por si”, colada a uma acumulação que comprime o trabalho abstrato num máximo de extração de mais-valor, sem as contenções da forma jurídica típicas do fordismo. Ademais, as reivindicações dos diversos movimentos sociais identitários estão centradas na expansão de direitos formais, acesso ao trabalho abstrato e ao consumo, e representatividade na indústria cultural, convertendo toda a esquerda numa “new left” liberal e reformista. Para tentar reverter esse desmonte da esquerda e retomar a necessidade de luta contra o capitalismo no centro de todos os movimentos (identitários), houve um esforço na construção do conceito de interseccionalidade, que resgata a luta de classes como núcleo da organização de toda a esquerda contra a burguesia, mas defende que a “classe” não é uma categoria universal e homogênea, a rmando os atravessamentos peculiares da realidade material de cada grupo minoritário, como negros, mulheres, gays, pessoas com de ciência, povos tradicionais etc., com a possibilidade de uma sobreposição de opressões (um mesmo indivíduo pode pertencer à classe operária, ser negro, gay e pessoa com de ciência, ou pessoa transgênero e rurícola, ou mulher, sem-teto e lésbica, e assim in nitamente). Eis que, enquanto o mero identitarismo é um modelo liberal de militância, tendendo à direita (feminismo identitarista é feminismo liberal, portanto), a metodologia da interseccionalidade é uma tentativa importante de trazer os movimentos sociais de grupos identitários de volta para a esquerda. Num esforço por prover um referencial teórico para uma perspectiva de con uência de opressões que não abandone a luta de classes e a militância identitária pela esquerda (para não ser tragada pelo liberalismo, nem ser cooptada pela direita), a obra pioneira Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, escrita em 1981, foi resgatada. Com ampla divulgação desde a segunda

metade dos anos 1980, após um período de esquecimento, a obra de Davis foi retomada neste século XXI com bastante proeminência, especialmente, no Brasil.465 Angela Davis cou conhecida por sua militância junto aos “panteras negras” na década de 1970. Filiada ao partido comunista dos EUA desde então, quando foi presa, é reconhecida socióloga de vertente epistemológica marxista. Davis cuidou de estudar as relações de gênero nos EUA a partir de uma perspectiva racial, pois aponta que, enquanto as mulheres estadunidenses brancas passavam pelo processo de restrição à esfera privada através da gura da esposa domesticada, a mulher negra, escravizada, permanecia explorada na extração de mais-valia absoluta através da pesada labuta nas plantations.466 Comenta Scholz sobre essa temática: Desde a segunda metade dos anos oitenta também o tema “diferenças entre mulheres” se divulgou, tendo sido proclamada uma dependência do género do contexto histórico e cultural. Supostamente eram as objecções das “outras” mulheres não brancas que coagiam o movimento de mulheres brancas à autolimitação.467

Tal qual o homem negro escravizado, a mulher negra estava sujeita à expropriação absoluta de seu trabalho e, além disso, também era explorada no que Federici (2017) chama de trabalho reprodutivo e Scholz trata como valor clivado. Além de tudo isso, a mulher negra também era sujeitada à exploração sexual, com absoluta objeti cação de seu corpo. No que concerne às mulheres negras, sequer era reconhecida a condição humana (assim como ao homem negro e ao indígena escravizado, com a especi cidade da mulher ser ainda mais inferior por conta dos metadiscursos sobre o feminino). O sistema escravista de nia o povo negro como propriedade. Já que as mulheres eram vistas, não menos do que os homens, como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de escravos elas poderiam ser desprovidas de gênero. Nas palavras de um acadêmico, “a mulher escrava era, antes de tudo, uma trabalhadora em tempo integral para seu proprietário, e apenas ocasionalmente esposa, mãe e dona de casa”. A julgar pela crescente ideologia da feminilidade do século XIX, que enfatizava o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas de

casa

amáveis,

as

mulheres

negras

eram,

praticamente,

anomalias.”468

A mulher negra foi, portanto, invisibilizada na construção arquetípica do conceito de feminilidade por conta da negação da sua humanidade, o que perdurou até o século XX, principalmente nos países que usaram mão de obra negra escravizada, onde, até hoje, esses contornos culturais resistem em se modi car. Em consequência do apagamento acintoso da mulher negra na metanarrativa da clivagem de papéis existenciais pela dualidade de gêneros, os próprios movimentos de mulheres de primeira e segunda ondas reproduziram essa invisibilização. Por essa razão, enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e emancipação da restrição ao lar no início do século XX, ou pela inserção no mercado de trabalho, mais representatividade na esfera pública, e liberação sexual nos meados do mesmo século, as mulheres negras permaneciam reduzidas a criadas e objetos sexuais. Os movimentos feministas ignoraram as mulheres negras por muito tempo, quando elas sempre estiveram a serviço do capital patriarcal e branco, desde a acumulação primitiva, numa duplicidade de opressão. Proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa na vida das mulheres negras da atualidade reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, o trabalho compulsório ofuscava todos os outros aspectos da existência dessas mulheres. Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma valorização de seu papel como trabalhadoras.469

As relações entre homens negros e mulheres negras no interior da comunidade escrava não podiam, obviamente, corresponder aos padrões da ideologia dominante,470 e permaneceram resistentes a eles após a abolição legislativa. Em relação aos homens brancos, as mulheres negras eram apenas coisas úteis à exploração econômica, além de receptáculo de sua libido e violência. Por isso, se olharmos desde a perspectiva de Davis, o valorclivagem descrito por Scholz, no início da formação capitalista, aplica-se somente à condição das mulheres brancas, às quais, ainda que de forma

secundária, era concedida uma determinada posição na sociedade como “donas-de-casa”, embora estivessem relegadas à esfera privada e sujeitas à dominação do marido. Numa perspectiva próxima à de Roswitha Scholz, Angela Davis demonstra que houve uma clivagem entre a esfera pública (domínio dos homens) e a vida doméstica, onde uma nova ideologia acerca dos modelos de feminilidade se disseminou, por meio das revistas femininas e romances voltados às leitoras, mas essa era uma condição exclusiva das mulheres brancas, decorrente da economia industrial e da vida urbana. Sobre os espaços privados, escreve Scholz, citando Kurz: (…) Nos primórdios da Modernidade, o campo de concentração ainda tinha o nome de uma casa (…). “A casa dos pobres, a casa do trabalho, a casa de correcção, a casa dos doidos, a casa dos escravos – as ‘casas do horror’ nas quais se exercitava o trabalho abstracto sob mando alheio, o que assumia uma forma exemplar para a sociedade no seu todo, processo que se intensi cou nos campos de concentração das posteriores ditaduras de modernização e de crise. Este estado de excepção original tornou-se a normalidade moderna, que subjaz a qualquer ‘estado de direito’.” (Kurz, 2003, p. 354). Kurz refere, a este propósito, um “estado de excepção coagulado”. Apenas na esfera privada os indivíduos se encontram ao abrigo deste estado e desta coacção; dever-se-ia falar aqui mais precisamente, em termos estruturais, de indivíduos masculinos que contam com o papel desempenhado pela mulher como “ser natural domesticado”.471

Os arranjos econômicos da escravidão contradiziam os papéis sexuais hierárquicos incorporados na ideologia de gênero burguesa, pela qual as mulheres brancas passaram a ser vistas como habitantes de uma esfera totalmente separada do mundo do trabalho produtivo. Assim, Davis traz apontamentos cruciais para a compreensão do patriarcado racista produtor de mercadorias. Ocorre que a questão racial, inegavelmente relevante, ainda mais na realidade brasileira, não é ignorada por Scholz; ao contrário, Roswitha faz questão de trazer esse elemento para suas re exões. Essa é a principal característica de sua militância teórica, que, inclusive, custou-lhe a exclusão do grupo que ajudou a criar.

Roswitha Scholz assevera, o tempo todo, em diversos textos que escreve, que sua teoria do valor-clivagem vem justamente para dar conta de compreender as múltiplas dimensões da opressão e da exploração capitalista, uma vez que as questões de gênero e raça não podem continuar sendo ignoradas pelas compreensões marxistas. Porém, Scholz re ete, sempre, a partir da economia política, e não da sociologia ou da antropologia. Por isso, em sua visão, o sujeito universal masculino e branco era crucial para a sustentação da reprodução do valor na economia industrial, marcada pelo fordismo. Poderíamos dizer que o ponto nevrálgico que distancia Scholz de Davis é que esta opera com o conceito de “classe”, ao passo que aquela, como integrante da nova crítica do valor, não reconhece a categoria classe como permanente no capitalismo (com a surgimento de uma gigantesca “classe média amorfa” no pós-fordismo, teria se tornado obsoleta a insistência numa “luta de classes”). Ainda, o racismo, assim como o machismo, não são, para Scholz, mera ideologia, mas caracteres indeléveis da forma do valor, sem os quais o capital não poderia ter se reproduzido nos séculos XIX e XX. “O que durante muito tempo esteve no centro das análises da crítica do valor foi o sujeito do trabalho do fordismo, masculino e branco, que se esfuma no período da PósModernidade, na senda dos processos de individualização, à medida que o trabalho abstracto se vai tornando obsoleto”.472 Ora, na recon guração pósfordista da produção e a supremacia do capital nanceiro na autorreprodução do valor, as pessoas negras e as mulheres podem ultrapassar essa barreira e, até, eventualmente, alcançar representatividade, direitos, participação na política, ocupar altos postos do Estado ou das empresas, serem protagonistas na televisão e no cinema, mas a forma não se altera. Se, antes, a subjugação violenta de homens negros e de todas as mulheres ocorria em espaços determinados, como prática assentada culturalmente, legitimada socialmente, e garantida pelo Estado e pelo Direito, hoje, remanesce, sub-reptícia na forma estrutural do valor. A partir do teorema do valor-cisão, quando se fala em “racismo estrutural” e “machismo estrutural”, está se invocando a economia política para dar conta da “estrutura” produtiva, e nunca como cultura ou ideologia apenas. Pela intelecção de Scholz, o machismo e o racismo advêm da forma de um valor masculino e branco que se reproduz autonomamente, de

maneira fetichista, e, em interação dialética com a psique e a cultura, conforma as práticas sociais. Assim, para Scholz, as re exões acerca do gênero e da raça, na sociedade produtora de mercadoria, não se contrapõem, não se chocam e não se excluem. Os mesmos discursos iluministas de abstração do sujeito pretensamente universal, que, materialmente, sempre foi homem e branco, disseminaram-se nos fenômenos de marginalização das mulheres e dos homens de “outras raças” em relação ao trabalho abstrato capaz de gerar valor. Foi o suporte da razão totalitária do esclarecimento que possibilitou a edi cação de metanarrativas segundo as quais as mulheres, os povos originários e as pessoas negras não eram dotados de racionalidade e, não sendo, portanto, sujeitos racionais, estavam excluídos da subjetividade jurídica formal, e, consequentemente, do âmbito de reconhecimento e tutela dos direitos fundamentais das revoluções burguesas. Estruturalmente, o trabalho abstrato assalariado capaz de reproduzir o valor e de se inscrever da forma-mercadoria era apenas o masculino e, obrigatoriamente também, racialmente branco. O iluminismo possibilitou, discursivamente, cindir a humanidade em dois gêneros, constituindo semioticamente o “universo feminino” e “o universo masculino”, para possibilitar a clivagem do valor em forma-valor reprodutora do capital, de um lado, e valor-clivagem, não reprodutor de valor, de outro, mas imprescindível ao valor total. O mesmo iluminismo serviu de assoalho para a pauperização e destruição histórica das pessoas não brancas, que, utilíssimas como mão de obra escravizada no período de acumulação primitiva de capital, não foram absorvidas no mercado de trabalho fundado na exploração de mais-valor criado pelo trabalho abstrato, a partir da ideia de que somente sujeitos poderiam ser parte no contrato (inclusive, o contrato de trabalho). Na metanarrativa esclarecida, se o negro não era um ser racional, não poderia, sequer, celebrar um contrato de trabalho na condição de proletário explorado, alienando trabalho vivo. Todavia, a população negra permaneceu produzindo no âmbito “informal” e gerando mais-valor absoluto. Nem o sexo nem a “raça”, neste sentido especí co, podem ser hipostasiados e lançado um contra o outro; e o mesmo se deve a rmar também a respeito da dissociação-valor e do princípio do homo sacer, não se referindo este apenas ao termo criado por

Agamben como metáfora histórica, mas à constelação por ele designada na constituição da Modernidade. O anti-semitismo e outros racismos têm conteúdos diferentes, que não devem ser ignorados no seu signi cado ideológico próprio. Aos judeus, que também são considerados avessos ao trabalho e parasitas na projecção anti-semita, é imputado o poder, o domínio mundial, e os atributos de ultracivilizado e de super-homem negativo. Para a teoria da dissociação-valor não é admissível um procedimento de análise destes fenómenos baseado na lógica da identidade. Enquanto no processo moderno de conhecimento androcêntrico-universalista, o contingente, o individual, o particular cam na penumbra, por causa da dissociação do feminino, a teoria da dissociação-valor é obrigada a ter em conta os diferentes conteúdos de cada projecção racista e ideológica, sem perder de vista o contexto da totalidade histórico-social. A este respeito é necessário também criticar a ideia de que as mulheres, os negros, os selvagens e os ciganos signi quem do mesmo modo “natureza” e “sensualidade”, representando de igual maneira o reverso do “valor”. Ao contrário do negro, também considerado “sensual”, mas que se deixa escravizar, e do nativo das ilhas dos mares do Sul, também conotado com a “sensualidade”, o qual, inocente, ingénuo e de certo modo impoluto, deve ser a imagem do paraíso, o cigano representa o subhumano construído de modo racista no seio da própria sociedade, associado a atributos como a associalidade, a criminalidade etc. O negro foi construído como sub-humano no contexto de processos de colonização: ele representa em menor grau a associalidade, por isso faz menos medo aos membros da cultura dominante, é considerado em menor grau como parasita ou criminoso, não é ladrão “por natureza”, ou dizendo de outra maneira, isso não faz parte da sua “cultura”. Não é ele que abusa de “nós” e “nos” engana, “nós” é que ocupámos e pilhámos outros continentes, alegadamente para seu mais autêntico proveito civilizatório, ainda que hoje a nal ele acabe por “nos” ameaçar como “requerente de asilo” ou “refugiado económico”. Nada disto se altera por determinadas imputações racistas recaírem tanto sobre os negros como sobre os ciganos, nem pela circunstância de ambos serem considerados pobres de espírito, preguiçosos e dominados pelo instinto.473

Ou seja, existiu também uma clivagem racial na forma do valor, que é exclusivamente branco, já que a mão de obra negra ou indígena jamais poderia ser trabalho abstrato assalariado, não apenas durante a acumulação pré-capitalista, mas no alvorecer do liberalismo. Porém, diferentemente do valor-clivagem feminino, que reproduz o valor total indiretamente porque reproduz o trabalho vivo e porque realiza tarefas (no tempo) enquanto outro tempo paralelo é convertido em valor equivalente à quantidade de tempo dispendida para gerar mais-valor, o labor dos povos negros era absolutamente convertido em valor, como trabalho passado. Todos os trabalhos (o assalariado macho e branco abstraído como mercadoria – único reconhecido como trabalho e como valor –, o feminino no âmbito privado, e o negro cujo tempo era totalmente usurpado) podem perfeitamente coexistir e compor o valor total. Certamente, todas as opressões sociais também. Nunca é demais reforçar que, em Scholz, a compreensão dá-se sempre pela via da crítica do valor. Por isso, para ela, machismo e racismo fazem parte dos contornos da forma do valor, e não apenas de axiologia, história e cultura. É muito mais do que ideologia. O “racismo estrutural” está na estrutura do processo produtivo, assim como o “machismo estrutural”, que lançou a mulher para fora da estrutura da produção, alijada num reverso cindido do valor capitalista. Por isso, é lógico concluirmos que, pela teoria do valor-clivagem, a mulher negra está duplamente excluída: por ser mulher, está relegada ao plano do valor dissociado; por ser negra, não pode ser sujeito, e sua expropriação era absoluta. A condição da mulher negra é, assim, o não lugar na vida perversa engendrada pelo valor na sociedade das mercadorias. Raciocínio semelhante pode ser aplicado a outras exclusões no patriarcado produtor de mercadorias, sempre a partir do valor-clivagem. Portanto, embora a metodologia da interseccionalidade seja um avanço em relação aos identitarismos (facilmente capturados pela ideologia e potencialmente liberais), ainda não alcança a radicalidade de Roswitha Scholz. Esta mergulha na forma do valor para compreender a produção de mercadorias no capitalismo e demonstra que aí está a raiz de toda a desigualdade: na estrutura, e não apenas na cultura. Por isso, enquanto houver capitalismo, havará machismo, racismo e uma gama imensa de opressões.

4.2 Scholz e os debates feministas não marxistas Neste tópico, a proposta não é (e nem poderia ser, por questões objetivas de inviabilidade) trazer todas as teorias feministas não marxistas para que sejam confrontadas com o teorema de Scholz. Conforme dito na introdução, embora o título desta obra seja “crítica ao feminismo liberal”, não trataremos das grandes teóricas feministas conservadoras, uma vez que, desde o nosso ponto de vista, resta óbvio que qualquer teoria que não se coloque no campo da crítica ao capitalismo e à ordem das coisas, mas apenas reivindica uma igualdade entre homens e mulheres, no plano ideológico caudatário do iluminismo, é teoricamente desprezível. Feminismo que não é anticapitalista sequer é, de fato, feminista. Debates e movimentos para que a mulher (branca ou negra 474) também seja reconhecida enquanto “sujeito” (racional, de direito, burguês etc.) sempre só serviram para reforçar desigualdades e garantir privilégios. Esses “feminismos” só trouxeram vantagens para as mulheres brancas, não pobres, não periféricas, cis, sem de ciência, hetero, magras, dos grandes centros urbanos, dos países de capitalismo central, e assim por diante – ou seja, aquelas já incluídas socioeconomicamente. Se houve um suposto “avanço” na sua equiparação com os homens brancos isso se deu por ser oportuno aos novos regimes de acumulação capitalista ao longo do tempo, e não abalou o valor-cisão. Um “feminismo” que sequer se insere no espectro da esquerda não merece o esforço teórico de fôlego empregado nesta obra. Por isso, cuidaremos apenas dos feminismos que, embora intencionalmente rupturais, e até fulcrados em autoras que se declaram anticapitalistas, acabam por resvalar na reprodução do patriarcado produtor de mercadoria, por sua falta de radicalidade. Nesse sentido, o escopo aqui é tratar, apenas e exclusivamente, das autoras com as quais Roswitha Scholz escolheu debater diretamente em seus múltiplos textos. Embora a alemã mencione outras autoras, seus principais focos são, indubitavelmente, Simone de Beauvoir e Judith Butler. Por isso, focaremos nesses diálogos. 4.2.1 Simone de Beauvoir

Começando por Beauvoir (1980), segundo Roswitha, o livro O segundo sexo, “espécie de Bíblia” feminista nos anos 1970, assim como o marxismo, perdeu força nas décadas de 1980, 1990 e 2000; todavia, Simone de Beauvoir recuperou força, segundo Scholz, por ocasião de seus centésimo aniversário, em 2008, e dos 25 anos de seu falecimento em 2011. Isso porque a obra clássica de Beauvoir tem o potencial de estimular re exões importantes diante dos momentos críticos do capitalismo patriarcal no século XXI, mas, principalmente, porque, somente em 2009, houve uma segunda tradução da obra francesa para o inglês, para marcar o sexagésimo aniversário da publicação original, elaborada por Constance Borde e Sheila MalovanyChevallier. Os primeiros capítulos de Le deuxième sexe foram originalmente publicados na Les Temps Modernes, em junho de 1949, e o segundo volume veio poucos meses depois do primeiro, na França. O livro fora originalmente publicado, nos Estados Unidos, com o título The second sex, e, por todos esses anos, o primeiro editor estadunidense impediu que uma nova tradução mais precisa do trabalho de Beauvoir fosse feita, recusando todas as propostas. Essa tradução mais el e melhor acabada foi lançada apenas em 2010, com o restabelecimento de um terço da obra original.475 Sem dúvida, esse foi um fator crucial para o resgate da obra, mas, para Roswitha, o maior motivo de seu resgate é que Simone ainda é mais capaz de responder a angústias que o pós-estruturalismo levantou sem as conseguir atender. Para o movimento de mulheres na esteira de 1968 O Segundo Sexo foi uma espécie de Bíblia, como já foi dito muitas vezes. Isto é verdade para protagonistas como Sulamith Firestone e Alice Schwarzer, passando por Contra a nossa vontade (um livro antiviolação) de Susan Brownmiller, até Christina Thürmer-Rohr com sua tese da “cumplicidade”, que até hoje funciona como mera contraposição ao “feminismo da vítima”, em vez de ver que ambas as variantes do feminismo (o lado da vítima e o da cumplicidade) têm basicamente um fundamento existencialista.476

Consoante Roswitha, então, “O segundo sexo” foi emblemático na construção de um feminismo da igualdade (entre mulheres), com o escopo de fortalecer sua luta através da oposição mulheres x homens e dos discursos de sororidade.477 Entretanto, os feminismos da diferença, e desconstrutivistas,

dos anos 1990, vieram para censurar a obra, acusando-a de “aplicar às mulheres os critérios de normalidade masculinos” e de “estar presa a um pensamento dualista e operar uma nova produção de bissexualidade apesar de todas as críticas das relações de género”.478 Por isso, para a alemã, estamos num momento de balanço entre as contribuições existencialistas de Beauvoir e as duras críticas formuladas a ela, principalmente, pelas pós-estruturalistas. Para Scholz, o resgate de Simone, cada vez mais contundente nos dias presentes deve-se a um afã por responder a questões como “entre a ‘igualdade’ e a ‘desconstrução’, seria possível um outro caminho?” ou “será crucial a conceituação de gênero ou o melhor seria a destruição do ‘gênero’, por ser, a priori, uma abstração iluminista com vistas à opressão?”, e, assim, conciliar as visões identitárias queer com o materialismo histórico dialético.479 Simone de Beauvoir elabora, cuidadosa e metodicamente, a ideia de que a mulher não é o “segundo sexo” ou o “outro” por razões naturais e imutáveis, mas sim por uma série de processos sociais e históricos que sustentam o patriarcado. “A categoria do Outro é tão original quanto a própria consciência. Nas mais primitivas sociedades, nas mais antigas mitologias, encontra-se sempre uma dualidade que é a do Mesmo e a do Outro”.480 Em sua obra insuperável, Beauvoir explode os discursos biologizantes acerca da condição imanente da mulher, assim como as proposições metanarrativas que propugnam um “eterno feminino”.481 O essencialismo, a imanência, e os relatos acerca da “feminilidade”, tomada pela sociedade como algo intrínseco a qualquer mulher, são rigorosamente desmentidos pela autora através de teorizações profundas que passam pelas mais diversas áreas do conhecimento cientí co. A coerência, a clareza e a lucidez de Beauvoir são ímpares e tornam suas premissas metodologicamente inquestionáveis. Na primeira parte do livro, “Destino”, a autora analisa os aspectos biológico, e histórico (sob uma perspectiva materialista). Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico de ne a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que quali cam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente

diferençada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo.482

Já nessa primeira proposição clássica, a parisiense evidencia que não articula nenhuma sobredeterminação estrutural à condição subjugada da mulher, mencionando o fator econômico. É desde esse ponto fundamental que Scholz apresenta sua discordância, mas Beauvoir vai além, quando a rma que é, na relação de um indivíduo com o “outro”, através dos cinco sentidos do corpo, que a verticalidade social patriarcal se constitui. Na teoria do valor clivado, a ideia de que as relações são individuais e intersubjetivas é contestada desde pronto, pois é o valor que determina a sociedade, movida pelos movimentos das mercadorias em sua forma abstrata. Assim, há uma incongruência epistemológica óbvia entre Roswitha e Simone, uma vez que esta última não é marxista nas compreensões categoriais do capitalismo, apesar de tomar a compreensão da história a partir do materialismo dialético. Assim, todos os pontos entre Beauvoir e Scholz são inconciliáveis (por uma questão de lógica epistêmica), exceto aquele que tange à historicidade. “História” é o nome da segunda parte da obra imortal da francesa, que realizou um extenso trabalho desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, e chegando aos tempos em que viveu. Essa reconstrução da história do patriarcado ocidental moderno, num movimento dialético que articula economia, política e cultura, é o que, para Scholz, torna a obra de Beauvoir oportuna. Scholz apropria-se dos relatos beauvoirianos para sustentar historicamente seus argumentos acerca do patriarcado do valor, conforme tratado do capítulo anterior, quando compreende a raiz cultural do patriarcado ocidental na oposição publicista/privatista ateniense. Na terceira parte, Simone dedica-se aos mitos, sustentando que, até seus dias, as relações monogâmicas estavam visceralmente ncadas neles para poderem se equilibrar no o de uma navalha de frustrações. N’O segundo sexo, os dilemas experimentados por homens e mulheres, bem como as dores existenciais nauseabundas das mulheres pelo não reconhecimento de seu ser (sujeito), correspondem ao fenômeno de um patriarcado que dicotomiza a vida humana entre o ser (o homem) e o outro (a mulher), a quem se nega

ontologia. Essas relações, no existencialismo feminista francês, somente podem ser compreendidas nas interações reais interpessoais, sempre mediadas pelo corpo, até se desdobrarem em conteúdos psíquicos e construtos axiológicos, como o amor e o ódio. O “ideal” seria, ao contrário, que dois seres humanos, cada um deles se bastando a si próprio perfeitamente, se amarrassem um a outro por espontânea vontade. Tolstoi admira que o laço que une Natacha e Pierre seja algo “inde nível, mas rme, sólido, como a união de sua própria alma a seu corpo”. Se se aceita a hipótese dualista, o corpo só representa para a alma uma simples facticidade; assim, na união conjugal, cada um teria para o outro o inelutável peso do dado contingente; é enquanto presença absurda e não escolhida, condição necessária e matéria mesma da existência que seria preciso assumi-lo e amá-lo. Estabelece-se uma confusão voluntária entre essas duas palavras e é daí que nasce a misti cação: o que se assume não se ama. Assume-se o corpo, o passado, a situação presente: mas o amor é movimento para um outro, para uma existência separada da própria, para um m, um futuro; a maneira de assumir um fardo, uma tirania, não consiste em amá-lo e sim em se revoltar. Uma relação humana não tem valor enquanto é suportada no imediato; as relações dos lhos com os pais, por exemplo, só adquirem valor quando se re etem numa consciência; não se pode admirar nas relações conjugais que recaiam no imediato e que neste os cônjuges enterrem sua liberdade. Essa mistura complexa de apego, rancor, ódio, normas, resignação, preguiça, hipocrisia, que se chama amor conjugai, só o pretendem respeitar porque serve de álibi.483

As mulheres estariam, assim, escravizadas ontologicamente pelo ideal do amor romântico, capaz de as constranger, resignadas, à posição de objeto. Toda a percepção sobre si mesmas é totalmente dependente do olhar masculino, verdadeiro sujeito cognoscente proclamador de sua existência (inferior, rei cada). Enquanto objetos, precisam ser desejadas, puras, virgens, delicadas, submissas etc., para que possam atrair o interesse masculino e para que sejam capazes de “segurar um homem” consigo por toda a sua vida. Segundo o argumento de Beauvoir (1967), a mulher somente se reconhece enquanto sujeito no momento em que é sujeitada por um homem. Por essa

razão, a mulher é o “outro”, cuja existência depende da enunciação do verdadeiro sujeito cartesiano. Mesmo quando não conhecem tais obsessões, elas se assustam à idéia de que certas partes do corpo que não existiam nem para elas, nem para ninguém, que não existiam de modo algum, vão repentinamente emergir à luz. Essa gura feminina que a jovem deve assumir como sua, irá provocar nojo? Indiferença? Ironia? Não lhe cabe senão passar pelo julgamento do homem: nada lhe resta a fazer. Por isso é que a atitude do homem terá repercussões profundas. Seu ardor, sua ternura podem dar à mulher uma con ança em si mesma que resistirá a todos os desmentidos: tal ou qual mulher se acreditará uma or até aos 80 anos, um lindo pássaro que certa noite um desejo de homem fêz surgir. Ao contrário, se o amante ou o marido são inábeis, farão com que se desenvolva um complexo de inferioridade em que se enxertarão, por vezes, neuroses duradouras; e ela experimentará um rancor que se traduzirá por uma frigidez obstinada.484

Por isso, para compreendermos o pensamento de Simone, é necessário partirmos do seu fundamento losó co, que é o existencialismo sartreano. Segundo Scholz (2011a), Jean-Paul Sartre baseia-se nas preleções heideggereanas sobre o fenômeno para a rmar que o homem, no mundo, é um ser fenomenicamente lançado na existência, dispondo, portanto, de plena liberdade para realizar escolhas. Está condenado à liberdade. “Ele precisa de se inventar e é totalmente responsável. A dependência de condições externas para a sua decisão é, portanto, considerada como um mero subterfúgio”.485 Isso signi ca que não há essência humana (contrariando o imperativo categórico kantiano), uma vez que o ser (a existência) se revela (pelas) e se confunde com as escolhas e ações do sujeito. Para Roswitha, Esta ideia está também subjacente a O Segundo Sexo. O homem é aí considerado como sujeito, a mulher como o Outro/o particular. A categoria Outro marca a existência em geral. No entanto, se ela é comumente caracterizada pela reciprocidade, isso não acontece na relação entre os sexos. As mulheres consentem nesta relação unilateral. Sobretudo por razões de conveniência, portanto para fugir à responsabilidade, permanecem na imanência patriarcal. Ora, apesar de a opinião de De Beauvoir ser:

“Ninguém nasce mulher, faz-se mulher” (uma frase frequentemente citada), ela balança entre as explicações biológicas e sociais a que submete a sua visão do mundo existencialista. Biologia para ela é principalmente lastro que é preciso jogar fora se a mulher quiser chegar à transcendência. Por conseguinte ela apoiou decididamente campanhas pelo direito ao aborto e viu o amor lésbico como uma alternativa à relação heterossexual, porque o acto sexual heterossexual “representa sempre uma espécie de violação”. A questão decisiva para ela, no entanto, não é a prática sexual como tal, mas a exclusividade compulsiva da heterossexualidade (De Beauvoir, 2008, em resumo: HagemannWhite, 1992).486

Todavia, o próprio Sartre, bem como Beauvoir, acreditava que sua teoria possuía o condão da crítica e poderia ser vinculada ao materialismo histórico dialético, desde que, por materialismo, não se projetasse a compreensão vulgar que o associava às leis naturais.487 Scholz reconhece o esforço teórico de Sartre para escapar às armadilhas iluministas do tipo sujeito-objeto, e aproximar seu pensamento existencialista do marxismo teórico. Porém, para ela, ele falha, ao atribuir ao trabalho as caracterizações ontológicas típicas do marxismo tradicional, justamente o objeto primordial da crítica do valor: Do meu ponto de vista da crítica da dissociação e do valor, Sartre permanece, assim, preso num pensamento ontológico e, sobretudo, num insolúvel dualismo sujeito-objeto. Mesmo na sua ênfase marxista, ele tem, a nal, de tomar partido pelo agir existencialista, pelo projeto que, no fundo, é sempre o da ação do trabalho.488

À medida que Sartre trata seu existencialismo como um humanismo, perfaz uma ideologia de existência abstrata, tal qual qualquer ontologia que sustenta as relações fetichistas, o que, segundo Scholz, impacta o pensamento de Beauvoir, tornando-o inapto a historicizar as relações de gênero e compreender sua especi cação capitalista na clivagem operada pelo valor. O pensamento de De Beauvoir está enraizado no existencialismo, como se sabe, especialmente no existencialismo de Sartre; um pensamento que ela ajudou a construir com base num diálogo ao longo da vida. Ponto-chave aqui é que o homem está condenado

à “liberdade” por “ser lançado [Geworfenheit]” no mundo. Ele precisa de se inventar e é totalmente responsável. A dependência de condições externas para a sua decisão é, portanto, considerada como um mero subterfúgio. Não há nenhuma essência humana pressuposta, o homem e a sua existência coincidem no fundo com a sua “acção”, na qual ele se transcende a si mesmo; assim na acção ele vai além da sua existência. Isto vale não só para os indivíduos, mas para toda a humanidade.489

Scholz (2011a) adverte, porém, que através dessas concepções, de modo bastante perverso, o existencialismo pode acabar praticamente acusando a mulher de sua opressão, ao não realizar escolhas existenciais emancipadoras – e esse é o problema de não se compreender a determinação estrutural do machismo. Para Sartre o existencialismo é um humanismo (abstracto); o indivíduo em si, o “homem” no sentido da humanidade em geral, é aqui agarrado em falsa imediatidade. Nas mulheres, devido à história patriarcal, isto atinge talvez um terreno particularmente fértil, onde, no entanto, é preciso dizer que esta afectação imediata na acepção do existencialismo se torna um pouco piegas e tende a desaguar em pessimismo, como acontece com De Beauvoir, com uma quase acusação “à mulher” que se dá por satisfeita na imanência. O que é aqui objecto de acusação está incluído às escondidas nas suas próprias premissas teóricas. Devido a isso a mulher pode depois vergar-se às circunstâncias na imanência de modo sadomasoquista, como testemunha a tese da cumplicidade de Thürmer-Rohr humildemente se confessando existencialista, a qual não consegue localizar o problema estrutural e objectivamente num contexto social total, também anteposto à mulher que subjectivamente confessa a cumplicidade e carecendo realmente de ser criticado.490

No olhar de Scholz (2000), a crítica da clivagem do valor parte do princípio que as atividades de nidas como femininas (trabalho doméstico, cuidar, tratar etc.), atitudes reputadas como femininas (solicitude, pedagogia, paciência etc.), bem como qualidades narradas como femininas (sensualidade, emoção, fraqueza de caráter e intelectual etc.) – e, por isso, menosprezadas – são dissociadas do trabalho abstrato e da forma do valor varão, caracterizando

os contornos simbólicos essenciais do capitalismo, que, compreendido como patriarcado produtor de mercadorias, só pode ser analisado com os instrumentos conceituais do marxismo. O valor e a dissociação sexual são estabelecidos simultaneamente, pois, sem a dissociação, não há valor. Portanto, para a alemã, não se deriva um a partir do outro (seja o “Outro” masculino ou feminino), já que “ambos os momentos procedem e divergem um do outro, assim justi cando uma espiral progressiva historicamente dinâmica de extracção da mais-valia, sem paralelo na história”.491 Como a clivagem do valor é estrutural, atravessa todos os domínios, todas as esferas, e não pode ser dividida nos âmbitos do público ou privado (como em Atenas), também não pode ser dicotomizada entre as esferas da produção e reprodução. Por isso, quando as mulheres ingressam nas atividades produtivas como trabalhadoras, são duplamente socializadas, o que se convencionou denominar “dupla jornada” no feminismo atual. Embora as mulheres sejam hoje “duplamente socializadas”, sendo consideradas igualmente responsáveis pela família e pela pro ssão, como diz Becker-Schmidt, estando em grande parte integradas na sociedade o cial, elas continuam a ser as principais responsáveis pela casa e pelos lhos, ao contrário dos homens, ganham menos que os homens, embora os superem no nível de educação, e têm de lutar mais para alcançar os níveis superiores. Mesmo na actual invocação de quotas assoma sobretudo uma imaginação patriarcal tradicional, em que a mulher é declarada “mulher dos escombros nata” do social, competente para tudo, quando o patriarcado produtor de mercadorias está caindo aos pedaços. Neste contexto também poderia ser tematizado um inconsciente social androcêntrico que ainda hoje possibilita a relação patriarcal de produção de mercadorias. “A mulher”, portanto, no tecido material, da psicologia social e dos símbolos culturais da dissociação-valor como princípio fundamental, defronta tanto a imediatidade como o contexto total mediado de um modo diferente do que aparece em De Beauvoir, que transforma a “existência” abstracta em origem socialmente indeterminada, quando escreve, oscilando entre a relação biológica e a sua relativização (…) A abstracção a-histórica do ponto de partida e a indeterminação a ela associada do social apenas permitem a De

Beauvoir compreender insu cientemente as projecções no biológico.492

O que Scholz acata absorver de Beauvoir é considerar o “Outro” como o “Outro do valor”, na ideia de dissociação do feminino, de modo que o “Outro” não se constituiria na imediatidade existencial nem seria uma categoria ontológica abstrata, mas seria tratado como uma constituição histórica especí ca do contexto estrutural e processual do capital, que, amiúde, é a construção estrutural das relações de gênero como um produto necessário das relações sociais fetichistas em geral, que têm na dissociação um princípio fundamental. Se considerarmos que o homem se apresenta enquanto “sujeito universal” e a mulher como o “Outro” particular na sociedade burguesa, as ideias e Beauvoir não são tão distantes de Scholz. O problema é que o existencialismo trata a libertação como uma questão ontológica abstrata, e não como um fenômeno material. Libertar a mulher é recusar encerrá-la nas relações que mantém com o homem, mas não as negar; ainda que ela se ponha para si, não deixará de existir também para êle: reconhecendo-se mutuamente como sujeito, cada um permanecerá entretanto um outro para o outro; a reciprocidade de suas relações não suprimirá os milagres que engendra a divisão dos seres humanos em duas categorias separadas: o desejo, a posse, o amor, o sonho, a aventura; e as palavras que nos comovem: dar, conquistar, unir-se conservarão seus sentidos. Ao contrário, é quando fôr abolida a escravidão de uma metade da humanidade e todo o sistema de hipocrisia que implica, que a “secção” da humanidade revelará sua signi cação autêntica e que o casal humano encontrará sua forma verdadeira.493

A emancipação da mulher, para Simone, está na revolução das relações concretas entre homens e mulheres, mas, para Roswitha, está na destruição do valor. Então, pode-se absorver as ideias de Beauvoir na teoria do valorclivagem? Sim, desde que se considerem as relações de gênero como hierarquias de valorização do valor (por exemplo, trabalho abstrato X trabalho doméstico), e não como abstrações existencialistas. Roswitha também concorda com Simone no que concerne à recusa do papel da mulher como responsável pelo lar e pela família, e na imposição da maternidade e da

heterossexualidade. Ainda, reconhece que suas proposições são mais próximas à abordagem da dissociação do que os desconstrutivismos pós-modernos,494 que escamoteiam hierarquias estruturais rígidas, e se coloca ao lado da francesa nas críticas ao feminismo liberal, encantado pela ideologia de uma igualdade burguesa abstrata.495 Como Simone de Beauvoir foi pioneira em apresentar uma análise sistemática das relações de gênero, Scholz reconhece sua importância por realizar uma revisão dos pensadores homens acerca das questões feministas, bem como da atualidade de seu pensamento numa sociedade em que é cobrado das mulheres serem competentes para tudo, seja nas atividades do valor, seja nas dissociadas, devido à obsolescência do trabalho abstrato, que causou o esvaziamento dos símbolos sexuais no século passado, tornando-nos “mulheres dos escombros”.496 Nesse ponto, o pensamento de Beauvoir teria antecipado as re exões de gênero do contexto pós-fordista. Para Scholz, neste contexto, o resgate de Simone de Beauvoir, como base para a discussão de gênero, foi retomado com contornos fúteis por um pós-modernismo marcado por um ecletismo que, ao mesmo tempo, busca conciliar as mais variadas vertentes teóricas do feminismo, aceita a igualdade de direitos liberal-burguesa, e proclama a diferença a partir de uma perspectiva contingente e simbólica do gênero. Essas posturas arrogantes, no nal das contas, minam a agenda do feminismo. Para ela, após o auge dos 1970, os ataques de 1990 e o ostracismo dos anos 2000, Beauvoir foi retomada nos anos 2010 porque a fenomenologia que coloca “o homem no mundo” e trata todos os dilemas da vida como dramas existenciais é um prato cheio para a ideologia, a alienação e a frivolidade, afastando o debate de classes do feminismo. Tal afastamento foi facilitado, inclusive, pela complexidade social atual, na qual as classes já não são tão marcadas e estrati cadas, ao passo que as diferenças são celebradas. Essa pós-modernidade, na qual todas as promessas modernas se mostraram falaciosas ou irrealizáveis, dilui o mundo, liquefaz a vida, e tudo o que parecia sólido se desfaz – a pulverização do esclarecimento e da produção pós-fordista coincidem num mundo fragmentário, individualista e precário. Ao invés de materialismo histórico, pós-estruturalismo; ao invés de segurança jurídica liberal, decisionismo; ao invés de luta contra o capital,

identitarismo; ao invés de políticas públicas, austeridade, e assim por diante. Se tudo é possível e permitido, nada importa de fato. Se todos os caminhos estão abertos, na realidade, não há saída, o que se vincula facilmente ao “mal-estar”, à “náusea” existencialista. Então, nesse labirinto de in nitas possibilidades, resta apenas o consumo, porque a (forma)mercadoria é a última concretude a que se agarrar. Se a situação de vida se torna precária e literalmente “existencial”, é esse mesmo desenvolvimento de crise que traz consigo o facto de ser de novo repetidamente declarado um fenomenologismo de calibre universalista e às vezes até fútil. É neste contexto ideológico que também se pode ver um novo retorno a De Beauvoir, e justamente no que respeita aos seus fundamentos losó cos problemáticos. “O homem no mundo,” a questão mais absurda de todas, não por acaso voltou a ser actual; mesmo até voltada contra o pós-estruturalismo, sendo que agora a problemática da alienação é associada a novas estrati cações para lá da sociedade de classes tradicional. Assim também ganha força novamente um recurso a Heidegger no original, na senda do medo de queda da classe média. E, mesmo quando Heidegger não é mencionado explicitamente, no fundo trata-se dos seus questionamentos e da abordagem correspondente. Também Carl Schmitt e o seu decisionismo já há tempo que estão de volta na era pós-foucaultiana. Por outro lado, parece alastrar uma recepção pós-moderna optimista de Heidegger no sentido de “Vive la diference”, recorrendo por exemplo a Derrida, que ainda queria ultrapassar Heidegger com a sua própria crítica da metafísica; recepção que parece ter sido ainda agradável de ouvir na fase consumista do capitalismo pós-fordista de bolhas nanceiras.497

Scholz acredita que Sartre e Beauvoir ressurgem numa viragem existencialista e fenomenológica da esquerda, que aloca o sujeito na lógica existencial, afastando a compreensão da relação fetichista da dissociaçãovalor, manifestada na relação sujeito-objeto: Estruturalmente, portanto, tem de se assumir necessariamente a socialização da DISSOCIAÇÃO-valor como pressuposto, em primeiro lugar independentemente das mulheres (e homens) empíricas/os, que de facto individualmente não cam nela absorvidas/os, mas não podem no entanto escapar a este contexto

de constituição social. A síntese social fetichista da modernidade em sua totalidade concreta constitui em geral a razão mais profunda porque verdadeiramente surge o questionamento abstracto “da” existência “do” homem no mundo; pois na verdade não existe um homem abstracto a-histórico. O problema em si absurdo só pode ele próprio ser explicado históricoconcretamente e logicamente a partir da dissociação-valor e da sua história. Daqui decorre também uma perspectiva da crítica que, como eu gostaria de sublinhar novamente, se orienta para lá da igualdade, da diferença e da desconstrução de nidas à maneira capitalista, e portanto também para lá de atitudes existencialistas ou semelhantes, para abrir caminho ao radicalmente Outro. Trata-se de descon ar tanto das ideologias e abstracções de uma falsa ideia de transcendência como das de uma igualmente falsa de nição de imanência, as quais não conhecem os seus próprios pressupostos (…). O facto de ter de ser sempre necessariamente mantido um conceito de “existência” a-histórico constitui um mal-entendido da consciência dessas relações, que precisa de alicerces aparentemente ontológicos. (…) A conceptualidade da dissociação refere-se ao pressuposto tácito da modernidade como o “Outro” (aqui fala Simone de Beauvoir) da produção de mercadorias e do fetiche do capital, e como tal representa um plano estrutural fundamental completamente diferente – em certo sentido situado ainda mais fundo – que vai além do conceito de fetichismo marxiano. A dimensão da dissociação-valor, assim, não apenas abrange uma relação de género assimétrica, mas visa a sociedade como um todo. Transcendência no sentido da crítica da dissociação e do valor é, portanto, algo diferente de uma crítica do valor avaliada de modo universalista androcêntrico, mas também algo diferente da de De Beauvoir.498

Destarte, qualquer retomada ontológica abstrata do gênero é um desserviço para uma crítica que precisa ser estrutural. A retomada de uma perspectiva existencialista, na esquerda ou no feminismo, retira o caráter histórico que só pode ser evidenciado pelo teorema da dissociação-valor, capaz de evidenciar a socialização fetichista e atomizada do mundo burguês, caudatário da reprodução do valor. Em Roswitha, somente se compreende as relações de gênero na dialética complexa sujeito-objeto do capitalismo, pautada pela forma mercantil – jamais no dilema sujeito-sujeito do

existencialismo. Essa dialética sujeito-objeto, por sua vez, precisa ser abordada com especi cação de gênero, pois não é neutra nem assexuada. O valor é homem; o valor dissociado é mulher. Essa é a verdadeira abordagem radicalmente crítica e historicizada, materialista, que deve pautar a esquerda e o feminismo que pretenda ser verdadeiramente emancipador, pois, ainda que a sociedade mude, Roswitha considera que seu teorema sempre permanece atual: Passaram já alguns anos após a publicação das de nições de posição sobre a meta-estrutura abrangente da dissociação-valor aqui resumidamente referidas e há algumas coisas a modi car e precisar, como vou mostrar. Assim, por exemplo, cou entretanto mais claro para onde tende o desenvolvimento pós-moderno do patriarcado produtor de mercadorias: chega-se não só às referidas transformações e supra-formações, reacoplagens e inversões de pólos, mas, na onda da crise estruturalmente condicionada do sistema capitalista que cobre todo o mundo, também a um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias à escala global. Nas violentas rupturas sociais da crise mundial, as mulheres (e hoje mesmo na sua imagem ideal, ao contrário do que acontecia até à fase fordista) são responsabilizadas já não só pela esfera da reprodução, mas, ao contrário dos homens, são responsabilizadas em igual medida pela lida da casa e pelo ganhapão, sendo que se mantém o seu menosprezo, apesar ou talvez por causa disso. Assim se cobrem de ridículo aquelas apreciações optimistas que desde meados dos anos oitenta consideravam a emancipação das mulheres já realizada, ou que continuam mesmo agora a a rmá-lo. A posição da crítica da dissociação-valor opõe a estas tendências de asselvajamento o objectivo da superação do valor, da forma da mercadoria, da economia de mercado, do trabalho abstracto e da dissociação; uma perspectiva para a suplantação de toda a relação da produção de mercadorias, que tem de abranger não só o ponto de vista material, mas também o ideal e o psicossocial. Neste sentido radical, está em discussão a repartição destes planos e domínios em geral, o que inclui uma crítica da família nuclear, hoje simplesmente em decomposição. Trata-se, pois, da superação da “masculinidade” e da “feminilidade” no sentido até hoje vigente, e com elas das respectivas sexualidades compulsivas. 499

Essa vinculação necessária entre valorização e machismo foi olvidada tanto pelo marxismo do movimento operário e seus derivados como também pelo feminismo recente (apesar de todos os seus méritos e avanços). Por essa leitura, como sua crítica feminista ao sexismo está diretamente atrelada ao uma leitura radical das categorias marxianas e à compreensão dos processos de valorização no interior do sistema capitalista, Roswitha Scholz não admite os aspectos existencialistas do feminismo de Simone de Beauvoir, que estão desconectados da socialização capitalista consoante Scholz. O patriarcado moderno opera a partir do binarismo da humanidade: existe homem, de um lado, e existe mulher, do outro – duas formas ontológicas estanques, completamente cindidas. A mulher tem seus referencias identitários determinados pelas características do feminino, que remontam à antiguidade, associadas à esfera privada da vida, e são especi cadas no capitalismo como um ser dissociado da forma do valor. O homem tem sua ontologia fornecida pela projeção narrativa do que é ser macho, traçada a partir de um masculino que se vincula à esfera pública da vida desde a antiguidade, e se acopla à forma do valor na modernidade capitalista. Na década de 1970, a relação entre um patriarcado admitido à escala mundial e o capitalismo esteve no centro da elaboração teórica feminista – nesse contexto, tratou-se também da questão de saber se o trabalho doméstico criaria valor. Nas décadas de 1980 e, principalmente, 1990, as pesquisas queer e de gênero experimentaram uma ascensão meteórica, ao passo que as análises sociológicas, em geral, tornaram-se descritivas capazes de projetar a imagem de seriedade particularmente cientí ca, por conta de sua descrição precisa de contradições, diferenças, ambivalências e desigualdades. Desde então, qualquer esforço de conceito é acusado de inadmissível agravamento de um “essencialismo”, inviabilizando a teorização e o questionamento necessariamente radicais da relação hierárquica de gênero, que continua a dominar à escala mundial, mesmo na decadência do patriarcado produtor de mercadorias. Desde a segunda metade dos anos oitenta também o tema “diferenças entre mulheres” se divulgou, tendo sido proclamada uma dependência do género do contexto histórico e cultural. Supostamente eram as objecções das “outras” mulheres não

brancas que coagiam o movimento de mulheres brancas à autolimitação (cf. para uma crítica: Sommerbauer, 2003). A nal com preocupação é que se entende bem. Gudrun-Axeli Knapp falou da “diferença esquecida” no m dos anos oitenta (1988). No entanto pode supor-se que o próprio movimento ocidental das mulheres, na sequência de uma pluralização pós-moderna de projectos de vida baseados no consumo e de duvidosos direitos de participação alcançados, perdeu o interesse no seu tema em sentido estrito. 500

Por tudo isso é que, na década de 1990, a teoria feminista, transformada em teoria do gênero, sofreu uma mudança de paradigma: deixou de se denunciar a neutralidade sexual dos projetos teóricos e passou a focar-se a construção ou desconstrução da masculinidade e da feminilidade. De facto deveria ser entretanto atribuído às mulheres no período seguinte um papel reforçado de administradoras de crises e de “mulheres dos escombros”, de modo a torná-las simultaneamente responsáveis pelo dinheiro e pela sobrevivência; seja no plano inferior, como promotoras de grupos de ajuda e não só no chamado terceiro mundo, seja na economia e na política, campos em que nolens volens lhes são dirigidos cumprimentos pelo seu tipo de governamentalidade, tanto no nível inferior como no superior, agora que a ordem capitalista masculina está a desconjuntar-se (cf. Scholz, 2000). Poderia interpretar-se esta tendência no sentido de uma “revolução passiva”, na expressão de Frigga Haug com referência a Gramsci e tendo em conta as relações de género pós-modernas (Haug, 2009, p. 404). Desde o crash nanceiro de 2008 cresceu de modo particularmente suspeito o apelo á participação das mulheres no poder e à imposição legal de quotas; suspeito no sentido de atribuição de capacidades “femininas” de co-gestão “altruísta” de crises, mesmo fora dos estereótipos de género tradicionais.501

Na década de 2000, adensou-se o paradigma pós-estruturalista, fortalecendo o feminismo interseccional. Com o começo da década de 2000 reforçou-se o tema da “interseccionalidade”, isto é, da relação sobretudo de “raça”, classe, género, bem como da incapacidade e da velhice. Assim, reconheceu-se entretanto a relevância de outras determinantes; o

fundo continua a ser portanto a preocupação, a identidade, a ligação à localização social e cultural, que agora no entanto é tratada num plano meso da estrutura sociológica. (...) Uma crítica fundamental do capitalismo e do patriarcado é assim mudada para um entendimento da sociedade sociologicamente minimizador, de oposição apenas aparente, porque no fundamental compatível com as piores situações. (…) Mesmo nos círculos queer gostar-seia agora (a meu ver de forma simplista) de redescobrir a antiga tematização da relação entre as esferas da produção e da reprodução para a de nição teórica da relação hierárquica de género (vd., por ex., Winker, 2007). No entanto um pensamento em contradições, ambivalências, diferenças, particularidades etc. continua a dominar agora como antes o discurso do feminismo teórico, mesmo no interior desta re exão. Se olharmos a sua história mais recente, o feminismo parece doido precisamente pelo detalhado, pelo individual e pelo particular, muito longe de reconhecer a relação hierárquica de género como princípio social fundamental no nível de abstracção apropriado.502

Segundo Roswitha, é nesse mesmo momento que Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre são resgatados nos debates feministas, numa viragem existencialista e fenomenológica da esquerda.503 Para ela, as ideias losó cas dos franceses são problemáticas, pois as possibilidades reais de escolhas subjetivas não são existenciais, são concretamente determinadas, uma vez que se movem nos limites do contexto fetichista da sociedade das mercadorias. A compulsão fetichista é que condiciona as decisões, ainda que a responsabilidade sobre estas não possa ser imputada exclusivamente ao fetichismo, mas Roswitha admite aproveitar as bases de Beauvoir.504 O que ela não admite, de maneira alguma, é o identitarismo culturalista no qual degenerou a teoria de Judith Butler.505 Beauvoir é criticada por não hipostasiar totalmente o trilho cultural do género, como Butler considera que é decisivo! Muito pelo contrário, no entanto, a análise de De Beauvoir, com a sua insistência na tematização das hierarquias reais, é um pré-requisito para elucidar a constituição fundamentalmente patriarcal do capitalismo. Isto não pode ser revogado por uma mistura desconstrutivista super cial; mesmo abstraindo de que a própria Butler sucumbe ao dualismo mente-corpo, quando assume que o

sexo já é sempre género e que para ela a cultura, de modo muito classicamente patriarcal, triunfa sobre a natureza de maneira não dialéctica, sendo a principal mandante. Apesar de De Beauvoir, perante o seu fundo existencialista, tender na verdade em última análise para uma visão biologicamente ontológica da relação hierárquica de género, o que deve ser criticado, no entanto, uma vez que nessa assimetria para ela o género não está em harmonia inquestionável, ela tem mais razão do que Butler com a sua análise culturalista demasiado suave.506

Para Scholz, o problema dessas visões é que legitima atitudes voluntaristas num situacionismo vulgar, e, ao nal, acabam tragadas pelo individualismo neoliberal da identidade, tal qual as propostas queer. Do ponto de vista teórico, os esforços da “new left” chegam a tentar conciliar Sartre e Adorno, negando a dialética entre estrutura e ação individual, e dissolvendo o sujeito numa lógica existencial, que ignora a relação fetichista de dissociação-valor na relação sujeito-objeto.507 No m do século XX, os diagnósticos de Beauvoir perderam espaço para concepções feministas da diferença, pós-modernas e pós-estruturalistas, deslocando a centralidade do debate para uma perspectiva desconstrutivista. O que marca o debate feminista da diferença, consoante Roswitha, é a releitura que a belga Luce Irigaray fez acerca dos postulados da eminente francesa. Em Beauvoir, a mulher é alocada no lugar do “outro” existencialista, considerado incompleto e de ciente, cujos contornos existenciais são forjados pelo androcentrismo que considera o homem o verdadeiro sujeito existencial condenado à liberdade. Em Irigaray (1993), a mulher ainda é o “outro” existencialista, porém, um outro que conforma um lugar existencial absoluto, jamais precário. Ainda no feminismo da diferença, seja o de Irigaray ou o do chamado grupo de Bielefeld, o esboço patriarcal da mulher como ideia utópica é de certo modo desviado e pensado já sempre como transcendente, agora de facto a partir do próprio lado feminino – na realidade também já sempre imanente. Precisamente Irigaray e De Beauvoir devem ser consideradas complementares, na medida em que em De Beauvoir a mulher é de nida como o Outro de citário do sujeito masculino,

enquanto em Irigaray, pelo contrário, o Outro oculto feminino é que é o autêntico, ao qual é preciso mostrar respeito.508

Ocorre que, para Scholz, essas percepções acerca da mulher são problemáticas à medida que intentam estabelecer uma conceituação abstrata do que é ser “mulher”, tomada como uma categoria metafísica passível de ontologização. Esse apego ao “ser” abstrato é típico de um pensamento iluminista, que dicotomiza sujeito e objeto como os únicos lugares possíveis no mundo, e hierarquiza a existência através da supremacia subjetiva. Essa metanarrativa é o substrato racional que viabiliza o modo de produção capitalista e a reprodução da sociedade burguesa, de modo que qualquer debate feminista que parta dessas categorias não será idôneo a impulsionar a emancipação. Na minha apresentação há três questões: primeiro, o signi cado objectivo de De Beauvoir no contexto de uma crítica da socialização capitalista da dissociação e do valor; em segundo lugar, concordâncias e demarcações em relação a De Beauvoir a partir da perspectiva por mim representada da crítica da dissociação e do valor hoje; e, em terceiro lugar, as razões pelas quais De Beauvoir é agora de novo retirada do esquecimento e de que maneira. A meu ver, trata-se sobretudo de, no contexto de uma dialéctica sujeito-objecto historicamente especí ca do capitalismo, evidenciar os aspectos do objecto de certo modo autonomizados face ao sujeito, na sua ligação própria que hoje é em grande parte negligenciada. A solidão do sujeito, um importante ponto de referência do existencialismo (incluindo Sartre) na esteira de uma problemática recepção de Heidegger, é na minha opinião o resultado da socialização capitalista da dissociação e do valor, não constituindo o seu pressuposto a “existência” pensada a-historicamente de modo ontológico.509

Para Roswitha Scholz, se a socialização do valor clivado for assumida como pressuposto, a síntese social fetichista, em sua totalidade concreta, pode ser compreendida, independentemente das mulheres e homens de carne e osso, que, de fato, para ela, não cam completamente absorvidos(as) nas relações do valor. Ela a rma que não existe um homem abstrato a-histórico, um sujeito, e também não existe um “outro” abstrato. Porém, não é preciso tomar empiricamente cada homem e cada mulher real para demonstrar a

existência do ponto de vista material: “O problema em si absurdo só pode ele próprio ser explicado histórico-concretamente e logicamente a partir da dissociação-valor e da sua história”.510 Certamente, na visão da alemã, os grandes problemas de perspectivas feministas não marxistas (embora se considerem de esquerda, na maioria das vezes) são que não descon am das ideologias e abstrações que trazem falsas ideias de transcendência, igualdade e imanência. Para ela, a existência concreta só há no interior das condições fetichistas do valor-clivagem, que é o princípio social fundamental das relações assimétricas de gênero. Então, Roswitha Scholz fagocita toda a construção histórica que Simone de Beauvoir realiza acerca do patriarcado, forçando os conceitos da francesa para dentro do valor-dissociação e, ao cabo, a rma que a transcendência das estruturas do patriarcado não estará numa atitude existencialista feminista, mas na destruição do fetiche do capital. A dimensão do valor-clivagem, no pensamento scholziano, não engloba apenas uma relação assimétrica de gênero, mas a sociedade como um todo (sobredeterminada pelo valor total), de modo que a transposição dessas condições exige a compreensão da complexa dialética sujeito-objeto numa dada condição histórica e material (embora as re exões fenomenológicas e existencialistas não sejam completamente descartadas por ela – o problema é a abstração dessas visões e sua desconexão em relação à estrutura do valor). Portanto, para Scholz, a dialética sujeito-objeto deve ser lida sobre o pano de fundo do materialismo histórico dialético. Fora do marxismo, não há compreensão adequada e lúcida acerca do patriarcado. De outro viés, no entanto, não se pode ignorar a objetividade negativa dos sujeitos num “curto-circuito ontológico-existencial”511 de uma sociedade na qual são as mercadorias que se movimentam ontologizadas, enquanto os seres humanos se rei cam, e num contexto em que as crises objetivas geram sofrimentos subjetivos genuínos. 4.2.2 Judith Butler Podemos dizer que a perspectiva existencialista de Beauvoir não é de todo descartada por Scholz. É absorvida no teorema do valor-clivagem,

desde que o “outro” seja compreendido estruturalmente como o reverso do valor (o dissociado feminino), sendo a superação do patriarcado não uma atitude existencial voluntarista, mas um movimento concreto de destruição deste modo de produção. Assim, em relação a Simone de Beauvoir, Roswitha Scholz está até bem-disposta ao diálogo teórico e a absorver conceitos oportunos ao seu teorema. O mesmo não se pode dizer em relação a Judith Butler. Vejamos: (…) por isso, não apenas resta inútil a assunção do dever de desconstruir o dualismo de gênero moderno dos movimentos Queer, cuja referência teórica clássica é Judith Butler, mas resta também muito questionável. Esses movimentos consideram que a subversão interna do dualismo de gênero burguês, através de práticas periódicas repetitivas (como se podem encontrar nas culturas gay e lésbica), oferece uma possibilidade de desacreditar radicalmente a identidade sexual moderna. Todavia, o problema é que, aqui, a caricaturização desacredita algo que, em sentido capitalista, já está obsoleto. Faz tempo que se produziram “desconstruções reais”, observáveis, por exemplo, na “dupla socialização” das mulheres, mas também no modo de se vestir e de se comportar de homens e mulheres etc., sem que, por isso, tenha desaparecido a hierarquia entre os gêneros. Ao invés de questionar as concepções de gênero classicamente modernas e pós-modernas modi cadas ou exibilizadas, Butler limita-se a con rmar a perversa realidade pós-moderna (dos gêneros), de modo que a concepção culturalista de Butler não dá resposta alguma às questões atuais. Seu gesto progressista apresenta soluções para o problema autêntico das relações hierárquicas de gênero na pós-modernidade, assim como também para o problema da mulher (pseudo) intersexual. Entretanto, procura enriquecer a Teoria Queer com uma perspectiva material, especialmente, no que se refere a uma dimensão de cuidados. Na minha opinião, isso não supõe nenhum avanço. Não se trata de mesclar ambas as abordagens de maneira aparentemente sensível, mas é preciso incrementar toda a análise a partir de um novo fundamento, isto é, a partir da teoria da dissociação do valor, que também permite uma crítica à denominada heteronormatividade, bem como permite decifrar o queer como uma reelaboração da contradição adaptada ao capitalismo, que não arrefece sua imanência. Às vezes, tem-se a impressão de que, nesses círculos,

as identidades transgênero quase se confundem com a realização do ideal do “novo homem”. É de se supor, porém, que tudo isso [a desconstrução do binarismo] tem menos a ver com essas identidades e com as discriminações correspondentes do que com os próprios interesses do domínio hetero, que mudou de orientação.512

Roswitha Scholz deixa cristalino o seu ponto de vista nesse excerto. A teoria queer converteu as teorias feministas em teoria de gênero e propôs uma desconstrução da mesma categoria “gênero”, além do m do binarismo – máxima expressão do patriarcado. No olhar de Butler, a existência de um arquétipo “homem” e outro “mulher”, que cada ser humano concreto precisa performar, deve ser fulminada através da desconstrução simbólica cotidiana. Isto, na prática comezinha, só pode signi car que todes513 irão usar maquiagens; ter pelos aparentes e abundantes ou não conforme seu desejo; usar saias, vestidos, gravata, terno, salto alto etc. segundo sua vontade; ocupar os mais diversos postos de trabalho e espaços na grande mídia, e assim por diante, pois tudo isso nada tem a ver com a sexualidade e a afetividade (que devem ser livres e podem ser uidas), e o gênero (como o concebemos) precisa acabar. E foi mesmo com essa tônica que os movimentos LGBTQ absorveram essas teorias e performam o queer. Ocorre que, para Scholz, essas desconstruções propostas pelo queer já aconteceram ao longo do século XX e ainda acontecem por conta das recon gurações da acumulação; só que o resultado disso foi que as mulheres passaram a emular o que antes era narrado como masculino, e acabaram duplamente socializadas (em dupla jornada de trabalho – abstrato e clivado), sem que o patriarcado tenha sido abalado por isso. Segundo Roswitha, que também se inclina pelo m do binarismo, as propostas de Butler não apenas não oferecem soluções para os problemas reais das mulheres, como se coadunam a uma perspectiva de gênero pós-moderna individualista muito adequada ao pós-fordismo. Na pós-modernidade, após ser ovacionada nos anos 1970, auge da fase do feminismo da diferença, a própria Beauvoir passou a ser alvo de ataque das adeptas do feminismo queer.514 Em 1991, Teresa de Lauretis usou o termo “Queer Theory” para se referir aos escritos de Butler baseados no método

genealógico de Michael Foucault.515 Na teoria queer, cuja maior expoente é Judith Butler, com atualizações de autoras como Nikki Sullivan e Riki Wilchins, o gênero é tratado como inteiramente contingente, ao ponto de poder se tornar uido e transitório, o que, para Roswitha, é uma visão extremamente simplista. A obra emblemática de Judith Butler, Problemas de gênero, foi publicada originalmente em 1990 (Gender Trouble). Considerada revolucionária por questionar a distinção sexo/gênero, também problematiza o fato de que o sujeito do feminismo é “a mulher”, tomada enquanto categoria universal. “Mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um m. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e resigni cações”.516 Dessa forma, para as pós-estruturalistas, a referência ao termo “mulher”, por si só, é problemática, pois reforça o binarismo e não reconhece as múltiplas existências concretas de pessoas que se identi cam com o gênero feminino. A primeira limitação do conceito de “diferença(s) sexual(ais)”, portanto, é que ele con na o pensamento crítico feminista ao arcabouço conceitual de uma oposição universal do sexo (a mulher como a diferençado homem, com ambos universalizados; ou a mulher como diferença pura e simples e, portanto, igualmente universalizada), o que torna muito difícil, se não impossível, articular as diferenças entre mulheres e Mulher, isto é, as diferenças entre as mulheres ou, talvez, mais exatamente, as diferenças nas mulheres.517

Butler critica, ainda, a “heterossexualidade compulsória”, propondo uma “construção variável da identidade”, da afetividade, e da sexualidade, incluindo lésbicas, gays, transexuais, intersexuais, e outras identidades.518 Como, para o queer eye, o gênero é uma construção simbólica, está vinculado à cultura e à linguagem, e não à forma capitalista. O queer é o desvio insólito teórico e de militância estético-cultural para a desconstrução das determinações de gênero binaristas e heteronormativas, e por isso, a escolha dessa palavra do língua inglesa, cuja tentativa de tradução empobrece o conceito. Por isso, o LGBTQ (“Q” de queer) abrangeria, certamente, todas as

inclinações sexuais-afetivas não heterossexuais, como as lésbicas (o “L” vem primeiro para marcar a luta contra o machismo, ou seja, o protagonismo é das mulheres), os gays e as pessoas bissexuais. Porém, se a determinação da sexualidade é uma imposição da cultura, nada impede, no sentido ruptural, que se reorientem as catexias libidinais, de modo que, no limite, o queer pode acolher a assexualidade,519 e, forçando além do limite, talvez, abarcar a objeto lia.520 No âmbito dos papéis sociais de gênero, o queer preconiza a ruptura com o binarismo, ou seja, não é preciso que a existência humana seja dividida entre homens e mulheres, podendo-se admitir identidades andróginas, agênero, não-binárias, queer gender ou gender uid. Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma. Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz sentido de nir o gênero como a interpretação cultural do sexo.521

Isso faz também com que pessoas nascidas com qualquer identidade biológica sexual (mulher, com útero, ovários e prevalência de hormônio progesterona; ou homem, com pênis, testículos e prevalência de hormônio testosterona) não estejam obrigadas e assumir a identidade de gênero correspondente à sua compleição corporal e sua carga genética, possibilitando o reconhecimento da identidade trans (transhomem, transmulher e travesti), no interior do queer, pois o gênero é uma identidade social, que não se confunde com o corpo. “O gênero é uma complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer conjuntura considerada”.522 Aparece, então, outra identidade afetivo-sexual, a pansexualidade, que signi ca a possibilidade de amar e desejar qualquer pessoa, independente do gênero, e de ser cissexual ou transexual. Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos de verdade de um discurso sobre a identidade primária e estável.523

As identidades tradicionais (homem e mulher) não precisam estar determinadas pelo sexo biológico (macho, com anatomia masculina e carga genética XY, ou fêmea, com anatomia feminina e carga genética XX), possibilitando-se que pessoas nascidas com cara genética XY se identi quem com o gênero masculino (homens cisgênero) ou feminino (mulheres trangênero), e que pessoas nascidas com carga genética XX se identi quem com o gênero feminino (mulheres cisgênero) ou masculino (homens trangênero), com plena liberdade de escolha de identidade, optando ou não por terapias de hormonização e cirurgias de redesignação sexual. Por certo que sexualidade-afetividade não se confundem com identidade de gênero, sendo perfeitamente possível, por exemplo, um homem transgênero (nascido biologicamente mulher, mas com identidade egoica e social masculina) ser homossexual (sentir afeto e atração por homens – trans ou cisgêneros), e vice-versa. Para Butler, o gênero é uma “performance”, e a adesão a um papel de gênero, com suas roupas, gestos, atitudes etc. tem caráter “performativo”. Assim, é perfeitamente possível performar outras maneiras de ser/estar no mundo. Que performance inverterá a distinção interno/externo e obrigará a repensar radicalmente as pressuposições psicológicas da identidade de gênero e da sexualidade? Que performance obrigará a reconsiderar o lugar e a estabilidade do masculino e do feminino? E que tipo de performance de gênero representará e revelará o caráter performativo do próprio gênero, de modo a desestabilizar as categorias naturalizadas de identidade e desejo?524

Do mesmo modo, o queer acolhe as pessoas intersexuais,525 para que não sejam compelidas a escolher um único gênero, e, ao mesmo tempo, tenham liberdade para escolherem, se assim desejarem, ser homens ou mulheres em caráter de nitivo. Ainda, por intentar combater a heteronormatividade como imposição cultural opressora sobre a liberdade de escolha identitária, estética e o comportamento, o queer também pode abranger as travestis, as drag queens,526 os drag kings,527 os cross dressers528 etc. Na verdade, por se tratar de um debate cultural e simbólico, não há limites para a multiplicidade de identidades, afetividades, sexualidades e expressões no universo queer.529 Por

isso, a sigla LGBTQ tem na letra “Q” conteúdo correlato ao do “I+” (intersexual e mais) na sigla LGBTI+. Se o corpo pode ser desconsiderado na construção social e simbólica do gênero, por meio de performances sociais, perde o sentido falar-se, inclusive, em gênero. O que resta é uma porta aberta com in nitas possibilidades. Assim, se, de um lado, os discursos biologistas e essencialistas acreditam que o corpo determina o sexo e o gênero; de outro, as culturalistas eliminam a categoria gênero. Roswitha Scholz também é a favor do m do binarismo, na medida em que, pela clivagem, ele sustenta o capitalismo. Mas a mera proposta culturalista de eliminação do gênero gera um paradoxo, pois o “desconstrutivismo” precisa partir de algo que possa desconstruir. Se o gênero, na realidade, não existe, também não há desconstrução. O desconstrutivismo só faz sentido se o capitalismo for assegurado, pois este necessita da cisão binária. Em tempos de hegemonia do discurso pós-moderno, no entanto, parece que já não se consegue fazer a pergunta maldita sobre o corpo; por outro lado, este é um pressuposto teórico tácito em muitas concepções sobre o género. A partir deste dilema foram deduzidas re exões apenas não-essencialistas e não-biologistas para uma dialéctica sex-gender, as quais no entanto não se reduzem simplesmente a uma dimensão culturalista de race-class-gender e, portanto, também não têm nenhuma saída. A categoria “género [Geschlecht]” distingue-se radicalmente de tais entendimentos e não pode ser equiparada “desconstrutivamente” com outras formas de desigualdade. Só este ponto de vista poderá tornar possível uma mediação da questão do género com estas últimas como realmente “outras” em geral.530

O pós-estruturalismo, amiúde, opera com a existência de estruturas que precisam ser desconstruídas empiricamente, a partir de uma mudança comportamental, cujo sustentáculo teórico é a negação da existência dessas estruturas fora das metanarrativas culturais. Portanto, a abolição do gênero deve ser interpretada como um devir, a partir dos movimentos de desconstrução. Enquanto Simone de Beauvoir estava ocupada em tecer uma diacronia das relações de gênero para estabelecer parâmetros sincrônicos existencialistas do que causa a diferenciação opressora entre “ser homem” e

“ser mulher” no mundo, Judith quer extirpar as ideias “homem” e “mulher” do mundo e suas determinações sociais. Butler quer retirar do corpo humano a especi cação sexual vinculada a um papel social determinado, com tudo o que lhe seja inerente ou correlato. Assim, um dos ataques de Butler à Beauvoir, segundo Scholz, seria a a rmação de que a francesa deturpa a bissexualidade para reforçar a marcação identitária, afetiva e sexual do binarismo hétero. Roswitha Scholz reconhece que Judith Butler, assim como ela, lança críticas à compreensão existencialista-humanista de sujeito no feminismo de Simone de Beauvoir, porém, partindo de lugares completamente opostos. Para Butler, a totalidade social corresponde à totalidade da linguagem, perfazendo uma inversão entre estrutura e superestrutura, por crer que é o discurso que transforma a materialidade, e não que esta determina as relações sociais. O queer de Butler é uma nova espécie de idealismo. Falta uma compreensão abrangente da totalidade, como dialética sujeito-objecto da forma fetichista de relacionamento; na verdade, em Butler encontra-se praticamente uma simples inversão do esquema base-superstrutura, uma vez que cultura, discurso e linguagem são transformadas em certa medida na base da realidade material, como tem sido constatado frequentemente com razão. Assim, a sua teoria é falsa e, em última análise, “doida” numa ontologia do cultural, pós-modernamente saturada como de costume, que não é capaz de abordar a relação social real na sua mediação fetichista, enquanto socialização da dissociação e do valor. Identidade (cultural) em geral ou identidade cultural sexual/género, no entanto, não é para a crítica da dissociação e do valor o primeiro de todos os problemas. Esta preocupa-se em primeiro lugar com a forma fundamental de dissociação e valor como princípio social de base, que em si como tal constitui, ele sim, “formas objectivas de existência” (Marx) e, portanto, constitui o pressuposto da formação da identidade cultural. Sem a crítica e a análise deste pressuposto o desconstrutivismo ca a pairar no ar, tal como existencialismo.531

Scholz vai dizer, então, que, se a desconstrução de Butler tiver êxito, não sobra nada, apenas capitalismo.532 É uma proposição essencialmente utópica, no sentido lógico, e não no sentido das condições objetivas do presente

(como é o caso do marxismo). Porém, esse não é o principal problema do pós-estruturalismo para Scholz. Na sua perspectiva, trata-se de uma problematização típica de mulheres brancas e ricas, que vivem nos países de capitalismo central, pois se ocupa de perfumarias de gênero. Quem usará (ou não) saias, vestidos, maquiagens, perucas, saltos altos etc. é absolutamente secundário nas questões concretas das assimetrias de gênero. As questões profundas, que resvalam em violências de todas as espécies, estão calcadas em dados concretos que determinam a vida dos seres humanos, e que não podem ser “desconstruídos” simplesmente por uma mudança de atitude “lacradora”.533 Isto é muito claro quando o teorema de Scholz enxerga um machismo estrutural, enquanto Butler advoga a desconstrução pós-estrutural. Roswitha Scholz é materialista; Butler, idealista. Nesse sentido é que “O segundo sexo” é muito mais louvável e aproveitável, para Scholz, uma vez que Simone de Beauvoir realiza um profundo esforço losó co para dar conta da ideologia da divisão social binarista e verticalizada de papéis de gênero, levando em consideração a historicidade, a economia e a cultura. O problema de Beauvoir seria apenas o extremo idealismo abstrato de uma proposta existencialista que, porém, pode ser aparado pela teoria do valor-dissociação. Já o problema de Butler, para Roswitha, é que trata de questões estruturais como se fosse meros elementos de cultura, podendo ser suplantados com novos hábitos e práticas cotidianas. É muito importante frisar que Scholz não se coloca propriamente contra as práticas queer, e que ela também milita pelo m do binarismo heteronormativo, mas, para ela, homens-cis de saia e maquiagem, ou mulheres-cis de terno e gravata, tentando subverter o gênero, são uma “caricaturização” de uma “desconstrução real” que o próprio sistema capitalista já operou nas suas recon gurações de acumulação ao longo dos séculos XX e XXI,534 pois, no que diz respeito às mulheres, que é o foco de Roswitha, isso já aconteceu. As mulheres já vestem “terninhos” e ocupam postos no Poder Judiciário, no Ministério Público, na política, na grande mídia, nas grandes corporações transnacionais etc. há algum tempo, e isso não alterou o fato de que vivemos numa sociedade das mercadorias misógina e patriarcal.

Segundo Scholz (2011a), ensaios como Alles Gender? [Tudo é gênero?], Gender in Motion [Gênero em Movimento], Was kommt nach der Genderforschung? [O que vem depois da pesquisa sobre o gênero?] traduzem um ideologema da teoria do bem-estar social, adequado a uma fase em que as mulheres brancas ocidentais dos países de capitalismo central haviam conquistado direitos de participação política e colocação no mercado de trabalho, adotando uma atitude eumática, na pressuposição de que a igualdade plena seria alcançada, de modo que, após as pesquisas sobre gênero, o que esses feminismos pósmodernos geram são mais pesquisas sobre gênero, e nunca sua superação de fato. Para Scholz, é ridículo pensar que as relações entre os sexos se tratam de um antagonismo cultural, e que a representatividade feminina ou queer nos veículos midiáticos ou nos espaços de poder supera o patriarcado, até porque a representatividade opera com arquétipos ideais pretensamente universalistas, como se uma mulher negra na televisão representasse todas as mulheres negras, num sentido iluminista muito pueril.535 Todavia, isso não tem nada a ver com Scholz desquali car os movimentos LGBT, muito menos denota que ela seja lgbtfóbica. Scholz não tem nada contra a desconstrução e muito menos contra a homoafetividade, ela apenas percebe que os movimentos queer pautados pela representatividade e o identitarismo estão a serviço do capitalismo, e, ao nal, não destituem o binarismo inculcado no valor. Não se trata de ser contra as pessoas usarem barba e batom simultaneamente (na realidade, isso importa muito pouco) – a grande questão, aqui, é que não altera as relações estruturais incrustadas na sociedade. Talvez, seja o caso de salientar que a a rmação da identidade é altamente oportuna e necessária e, inclusive, num mundo verdadeiramente não capitalista, sem a subjugação que a forma do valor opera – fetichista – sobre nossas vidas, o binarismo heteronormativo tende a acabar junto com o patriarcado produtor de mercadorias. Na utopia comunista que vislumbramos, cada ser humano poderia ser o que quisesse, vestir-se como quisesse, identi car-se com o gênero que quisesse (ou com nenhum), relacionar-se com quem quisesse etc., porque esse sim seria o m do patriarcado, com todos os seus contornos. A emancipação é que proporciona o fortalecimento da identidade, mas muito mais que a individual, a identidade coletiva: de uma vida comunitária, coparticipativa e solidária. O

problema não é a identidade, e sim o identitarismo que dissolve o potencial revolucionário das lutas da esquerda em in nitas bandeiras, que, ao m, acabam alimentando um capitalismo rosa pós-fordista. No nal das contas, a mera mudança de comportamento não tem a menor possibilidade de reverter as opressões, porque elas são estruturais, e não culturais.536 Se sequer nos países de eixo-norte essa igualdade chegou, e as reproduções culturais da opressão remanesceram, assim como as estruturas de exploração mais acintosa da mulher através do trabalho abstrato, e sua exploração absoluta no que concerne ao valor dissociado pouco se alterou, que dirá nas margens do capital. Se levarmos em conta mulheres das periferias do capitalismo, o cenário é muito pior. Por isso, para Scholz, em Butler, “é evidentemente imperdoável o desleixo com a dimensão hierárquica de género, que continua como antes”.537 O esvaziamento que o desconstrutivismo causou aos modelos teóricos aniquilou os movimentos sociais estruturalmente rupturais para os converter apenas em atitude simbólica, estética e centrada na linguagem, pois, para Butler, o gênero é uma performance social. Isso é um imenso desserviço à emancipação, pois se cria a ilusão de que, se todxs estiverem desconstruídxs, de batom, salto e brilho, as opressões de gênero terão acabado. O fato de a realidade do gênero ser criada mediante performances sociais contínuas signi ca que as próprias noções de sexo essencial e de masculinidade e feminilidade verdadeiras ou permanentes também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das con gurações de gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculina e da heterossexualidade compulsória.538

Para afastar injustiças, é crucial admitir que Butler não ignora as dimensões materiais da vida, e não reduz a existência apenas ao plano simbólico, discursivo e cultural, mas sabe que vive numa sociedade materialmente complexa e desigual. Tanto é que se esforça em a rmar que sua proposta de desconstrução deve ser concomitante a um enfrentamento do sistema econômico e do sistema político da sociedade capitalista. Scholz539 a rma que a colega “procura enriquecer a Teoria Queer com uma

perspectiva material, especialmente, no que se refere a uma dimensão de cuidados”, mas que não reconhece muito avanço nessa tentativa de Butler, pois seria inviável mesclar a teoria materialista e a teoria queer. A única possibilidade, na perspectiva de Roswitha, é “incrementar toda a análise a partir de um novo fundamento, isto é, a partir da teoria da dissociação do valor, que também permite uma crítica à denominada heteronormatividade, bem como permite decifrar o queer como uma reelaboração da contradição adaptada ao capitalismo”.540 O maior problema das ideias de Butler, talvez, seja a redução que os movimentos sociais e, principalmente, a indústria cultural fez de seus escritos, criando a ilusão de que, se todas as pessoas assumirem estéticas andróginas e comportamentos ambíguos no que se refere às expectativas binaristas, o gênero será extirpado da face da terra. A propaganda queer e sua captura pela indústria cultural é muito mais problemática do que a teoria em si, e induz a crer que, se todas as pessoas usarem saias e calças, rosa e azul, batom e pernas peludas etc., as categorias “mulher” e “homem” irão desaparecer e as relações humanas serão (pelo menos, nesse aspecto) simétricas, uma vez que não mais marcadas pela hierarquia de gênero. Porém, a possibilidade de uma drag queen explorar outra nas relações de trabalho precarizadas, com o m dos “homens” e mulheres”, numa sociedade em que as hierarquias de gênero (e o próprio gênero) não mais existirem, não põe m à cisão do valor em (mais-)valor e seu reverso dissociado, intrinsecamente determinado pelos metarrelatos acerca do que é “trabalho (abstrato) de homem” e “tarefa de mulher” desde a estrutura histórica de formação do capitalismo industrial. O capitalismo produtivo precisa do binarismo. O capitalismo de cassino, com o desdobramento da forma-mercantil, também. Isso signi ca que, enquanto houver capital e valorização do valor, o binarismo de gênero persistirá, até porque há atividades reprodutivas (dissociadas, que não geram valor na forma do valor) que ainda são exclusivamente femininas. Engravidar e parir continuam sendo tarefas só das pessoas que têm útero (tradicionalmente, mulheres cisgênero), de modo que, para abolir o gênero, o queer dependeria de um avanço tecnológico que recriasse as possibilidades de gestação humana fora do corpo, uma vez que

advoga a desvinculação entre o útero e o gênero. Porém, ainda que houvesse tal tecnologia, e todas as tarefas pudessem ser desempenhadas por todas as pessoas, se nenhuma atividade dependesse do discurso binarista, o valor ainda dependeria de alguma forma de clivagem. Isto porque sempre haverá atividades que não reproduzem o valor (reputadas, até agora, como “coisas de mulher”), mas que são essenciais na sociedade. Nesse sentido, o valor manteria outros metarrelatos para realizar sua clivagem (se não fosse mais o gênero, poderia ser ainda o racismo, o capacitismo, o ageísmo etc.). Se uma violência desparecesse, outra, com certeza, tomaria seu lugar, pois essa é a dinâmica do valor. Isso é o capitalismo. O muito alardeado respeito pela diferença, as diferenças entre as várias concepções são assim eclecticamente aplanadas, no preciso momento em que não se podem esgotar num pluralismo não vinculativo, justamente para enterrar as diferenças num “anything goes” agora como antes pós-moderno. Diferentes concepções teóricas devem ser compatibilizadas quase à força e postas sob uma capa de reconciliação com corte de direita pós-moderno.541

Se o mal-estar de Beauvoir poderia ser reputado como um produto da socialdemocracia atinente apenas a mulheres brancas e nórdicas, nas décadas de 1960 e 1970, o queer é completamente compatível com o pós-fordismo e o neoliberalismo, e também só é um mote relevante para pessoas privilegiadas, pois fez com que a dimensão material das relações de gênero (do ponto de vista do modo de produção capitalista) fosse totalmente descartada ou escamoteada por um desconstrutivismo de arrogância culturalista que serve como uma luva à continuidade do capital, o qual se fragmenta para continuar criando valor. Quando as teorias queer fecham os olhos para a complexidade de múltiplas formas de opressão (para além do gênero), e para as relações estruturais entre subjugação (principalmente de gênero, na esteira de Scholz) e modo econômico de produção, acabam alienadas e fetichistas. No limite, servem à geração de pink money542 e ao esvaziamento dos debates profundos e radicais para a superação do patriarcado. Inclusive, todas as teorias pós-estruturalistas, a teoria queer, as desconstrutivistas, culturalistas, e diferencialistas, somente se tornaram possíveis desde os anos 1980 porque

foi exatamente quando o próprio capitalismo deixou de ser predominantemente industrial. Justamente porque o capitalismo produtivo ganhou uma nova con guração pós-fordista, com a pulverização da produção por todo o mundo globalizado, e as mercadorias do mercado de capitais ganharam um protagonismo na valorização do valor (no capitalismo de cassino), é que pôde haver a deglutição do queer pelo mercado, que ora se alimenta dessas novas possibilidades comerciais. 4.3 Scholz e o feminismo Neste tópico, trataremos o feminismo543 como movimento social, que articula a luta de mulheres desde o século XIX, utilizando sempre essa terminologia, embora ela também possa designar os debates feministas. Assim, ao tomar o vocábulo “feminismo” e não “movimentos feministas”, propositadamente, queremos nos referir aos movimentos sociais das três grandes “gerações”, mas também, certamente, às proposições teóricas que os inspiraram. Apesar do tratamento geracional do feminismo (enquanto movimento social) na tradicional sociologia de gênero ser tributário de um pensamento liberal e iluminista, partiremos dessa divisão com escopo pedagógico de ilustração dos movimentos feministas ao lingo do tempo. Podemos dizer, didaticamente, que o feminismo ocidental é sociologicamente dividido em três grandes gerações ou “ondas”, embora não seja historicamente verídico esse recorte, já que muitas mulheres do planeta não foram atingidas sequer pelas “conquistas da primeira onda” até o presente. Scholz também compreende os debates do feminismo teórico associado aos movimentos sociais através de um trajeto que parte da igualdade, passa pela diferença e culmina na desconstrução, o que coincide com o modelo de ondas (ou gerações) do movimento feminista. Vamos tomar essa percepção, mas com a ressalva de que o avanço teórico e militante em ondas se trata de uma peculiaridade do ocidente, e que essas ondas não atingiram igualmente todas as mulheres, para não cairmos nas armadilhas do pensamento esclarecido, pressupondo um universalismo irreal.

4.3.1 Movimentos do feminismo A chamada primeira onda do feminismo foi, então, uma busca pela igualdade conformada nos parâmetros universalizantes do sujeito de direitos moderno, que tem sua inspiração no sujeito kantiano da razão iluminista. Nesses primórdios do capital industrial, a cisão heteronormativa estava bem estabelecida, uma vez que o valor se encontrava em processo de robustecimento. Porém, ao longo do século XX, com a maturação do modo de produção e seus caracteres estruturantes, foi-se tornando possível uma exibilização da heteronormatividade, sem que isso afetasse a forma do valor. A primeira geração do feminismo refere-se a um período extenso de atividade feminista ocorrido durante o século XIX e início do século XX, no Reino Unido e nos Estados Unidos, que tinha, originalmente, o foco da promoção de igualdade nos direitos contratuais e de propriedade para homens e mulheres, e na oposição aos casamentos arranjados. No entanto, no m do século XIX, o ativismo passou a se focar principalmente na conquista de poder político, especialmente, no direito ao sufrágio por parte das mulheres. As sufragistas iniciaram seu movimento no Reino Unido, com a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino por uma educadora britânica em 1897. A maioria dos parlamentares britânicos acreditava, ainda respaldada nas ideias de iluministas como John Locke e David Hume, que as mulheres eram incapazes de compreender o funcionamento da política, por não serem agraciadas pela razão como os homens e, por isso, eles relutavam em reconhecer seu direito ao voto. Diz Leda Maria Hermann que “[a] efervescência dos ideais democráticos no século XIX fez da batalha pelo direito ao voto o impulso fundamental dos movimentos das mulheres. Equiparadas aos doentes e pcd’s (mental) e às crianças, as mulheres eram consideradas intelectualmente incapazes de exercer direitos políticos”.544 O movimento, então, que começou pací co, foi às ruas e suas ativistas foram detidas repetidas vezes pela polícia, o que ensejou a adoção da greve de fome como nova estratégia de pressão. Após a morte de uma manifestante que se atirou à frente do cavalo do rei da Inglaterra, o movimento obteve parcial sucesso, com a aprovação do Representation of the People Act, de 1918, o qual estabeleceu o voto feminino no Reino Unido. O advento da lei britânica motivou mulheres de diversos outros países a lutarem pelo sufrágio

em todo o ocidente. Nos Estados Unidos da América, a luta foi ainda mais contundente. O primeiro grupo norte-americano organizado, a “Sociedade Antiescravagista Norte-Americana”, tinha por mote principal a luta abolicionista, liderado por Susan B. Anthony, Lucretia Mott, Elisabeth Cady Stanton, Lucy Stone e Frances Wright, até que, em 1849, criou-se a “Associação Nacional dos Direitos da Mulher”, mas a luta das sufragistas norte-americanas só obteve êxito em 1920, com a Emenda Constitucional n. 19. 545 No Brasil, o voto feminino só foi previsto constitucionalmente em 1934.546 As pressões do feminismo de primeira onda causaram tensões no patriarcado, possibilitando que as mulheres ingressassem no mercado de trabalho, nas universidades, na ciência, na política, no Estado, no judiciário, no mercado nanceiro, nas grandes corporações etc. Ocorre que isso somente foi possível no interior do modo de produção capitalista porque o tensionamento responsável por essa remodelação do lugar da mulher no mundo não prejudicou, sequer minimamente, o incremento do valor. A estrutura produtiva remanesceu incólume, e a abstração do trabalho manteve o valor masculino, coagindo as mulheres a se adaptarem. Isso evidencia, claramente, a limitação do feminismo liberal, que jamais terá o condão de ser emancipador. Mas tem todo o feminismo da chamada primeira geração era liberal. Parte respeitável da historiogra a547 narra que, no dia internacional da mulher de 1917, tecelãs do distrito de Vyborg, na Rússia, entraram em greve e saíram às ruas, o que teria sido um dos motores da revolução daquele mesmo ano. Após a queda do czar, as mulheres bolcheviques permaneceram em luta: Cerca de quarenta mil trabalhadoras de serviços de lavanderia, membras de um sindicato liderado pela bolchevique So a Goncharskaia, entraram em greve por melhor pagamento, jornada de oito horas e melhorias nas condições de trabalho: melhores condições de higiene no trabalho, benefícios de maternidade (era comum que as trabalhadoras escondessem a gravidez até darem à luz no chão da fábrica) e m ao assédio sexual.548

As mulheres enfrentaram as tentativas do general Kornilov de frear a revolução, construindo barricadas em Petrogrado, o que gerou, no bolchevismo, um movimento inédito de representação feminina nos espaços de decisão e de luta,549 culminando em alguns avanços signi cativos para a época. Seis semanas após a Revolução de Outubro, o casamento foi substituído pelo registro civil e o divórcio tornou-se disponível a pedido de qualquer uma das partes. Essas medidas foram elaboradas um ano mais tarde no Código da Família, que tornou as mulheres iguais perante a lei. O controle religioso foi abolido, removendo de um só golpe séculos de opressão institucionalizada; o divórcio poderia ser obtido por qualquer uma das partes sem necessidade de qualquer razão; as mulheres tinham direito ao seu próprio dinheiro e nenhum dos parceiros tinha direitos sobre os bens do outro. O conceito de ilegitimidade foi erradicado – se uma mulher não sabia quem era o pai, todos os seus parceiros sexuais anteriores recebiam a responsabilidade coletiva pela criança. Em 1920, a Rússia tornou-se o primeiro país a legalizar o aborto mediante solicitação.550

Diante das críticas anarquistas ou socialistas já do início do século passado, o feminismo de primeira geração, burguês e liberal, sempre se mostrou inidôneo à libertação das mulheres das amarras do patriarcado (que é capitalista), pois deseja a reprodução do capital, com a única diferença que as mulheres teriam oportunidades de se imiscuírem nas classes, reproduzindo a opressão. Obviamente, está muito distante do que Scholz acredita ser emancipação. Todavia, sob a perspectiva de seu teorema, de outra banda, os movimentos revolucionários bolcheviques também estavam equivocados por acreditarem que a redistribuição do capital e do mais-valor por meio do aparato estatal, assim como o controle proletário sobre os meios de produção, reverteriam as perversidades do capitalismo. Scholz aponta que, se a valorização do valor (clivado) não for extirpada, as opressões fetichistas remanescem, especialmente, as de gênero, pelo que também está distante de revolucionárias como Kollontai ou Luxemburgo e de todo o feminismo socialista. Contudo, indubitavelmente, o movimento feminista mais importante do século XX foi o das revolucionárias russas. As

mulheres tiveram participação crucial no m do czarismo, pois seu levante foi o grande estopim revolucionário, além do motivo pelo qual se comemora o “dia internacional da mulher” em 8 de março. Esse é o movimento feminista que inspira o feminismo de esquerda mais fortemente até o presente. Há 100 anos atrás, acontecia a insurreição dos Bolcheviques, liderados por Vladimir Lenin, contra o governo provisório (25 outubro de 1917 pelo calendário juliano, e 7 de novembro pelo calendário gregoriano). Era dos momentos mais marcantes da história: a primeira revolução socialista, feita pela e para a maioria. As mulheres tiveram importância fundamental e foram as responsáveis pelo início do processo revolucionário, mas, apesar dos grandes direitos conquistados pós revolução, pouco se comenta sobre a sua participação decisiva no período. O grande estopim ocorreu justamente no dia 23 de fevereiro (no calendário juliano, correspondente a 8 de março no calendário gregoriano), o Dia Internacional da Mulher. Milhares de mulheres, que viviam em uma situação precarizada e miserável, foram às ruas, em uma greve geral pelos seus direitos mais básicos. Na Rússia de 1916, as operárias se concentravam no setor têxtil e eram a categoria mais explorada da classe operária. A média de seus salários chegava a menos da metade do salário dos operários do setor metalúrgico. A porcentagem de analfabetismo era de 17% entre os metalúrgicos e subia para 62% entre as têxteis. O enorme impulso que as trabalhadoras russas deram à revolução, combinado com a política revolucionária consequente dos bolcheviques, trouxe avanços que ainda hoje articulam mulheres internacionalmente.551

Já a chamada segunda onda do feminismo representa o período da atividade feminista que teria começado no início da década de 1960 e durado até o m da década de 1980, com o Women’s Liberation Front (Frente de Liberação das Mulheres), a “queima de sutiãs” e os protestos por liberação sexual. Situa-nos Eric Hobsbawm: (…) a partir da década de 1960, começando nos EUA, mas espalhando-se rapidamente pelos países ricos do Ocidente e além, nas elites de mulheres educadas do mundo dependente – mas não,

inicialmente, nos recessos do mundo socialista – encontramos um impressionante re orescimento do feminismo. Embora esses movimentos pertencessem, essencialmente, ao ambiente de classe média educada, é provável que na década de 1970, e sobretudo na de 1980, uma forma política e ideologicamente menos especí ca de consciência feminina se espalhasse entre as massas do sexo (que as ideólogas agora insistiam que devia chamar-se “gênero”), muito além de qualquer coisa alcançada na primeira onda de feminismo.552

A nova perspectiva adotada consistia em apartar a mulher de sua identi cação necessária com o papel social de guardiã do lar e da família, e da obrigatoriedade identitária de ser esposa e mãe para se reconhecer mulher. A mais ilustre representante dessa geração é Simone de Beauvoir, com sua obra emblemática. As feministas desejavam obter liberdade para formular qualquer escolha pro ssional sem serem achacadas por uma sociedade patriarcal tradicionalista, mas era central também a luta pelo reconhecimento da sexualidade feminina, a m de se romper com a visão tradicional religiosa maniqueísta de sexo pecaminoso ou sexo para procriação. A luta por liberdade sexual signi cou um ponto fulcral no processo de luta por emancipação feminina, que não está superado – ainda em decurso, mobiliza debates até os dias atuais. Ademais, as mulheres não queriam mais ser equiparadas a objetos sexuais, e decorativos, de propriedade masculina. A rma Helio Gallardo: Pode-se dizer, ao extremo, que, até a década de 1960, o século XX parecia dominado e caracterizado por mobilizações anticoloniais. Desde os anos setenta, no entanto, as lutas das mulheres com as teorias de gênero e movimentos ambientalistas adquiriram ressonância e projeção (…) a experiência de opressão de gênero no casal e no relacionamento familiar ajudou a decodi car o mundo predominante como uma ordem generalizada de violações e violências. A dominação patriarcal e masculina atacou as mulheres na área “íntima” do lar (…) Internalizaram-se no patriarcado maiorias femininas (…) as mulheres viram-se de fora delas mesmas, viram que se torturavam quando procuravam se transformar (ou pelo menos ngir) em objetos de sedução, de “encantamento”. A raiz libidinal da violência e da sujeição era talvez mais marcante do que a terceira

mundista para destruir a cultura falsamente universalista dos patriarcas, dos homens e das corporações, mas sem poder vinculála decisivamente à dominação geopolítica e econômica.553

Os corpos femininos intentavam ser livres, e não repositório dos desejos, fantasias e violências dos homens. É também nesse momento que se inicia o amadurecimento das discussões acerca da discriminação das mulheres, quando o “gênero” surgiu como uma categoria reivindicada pelo próprio movimento feminista. Naquele momento, estabelecer a diferença era estratégico para uma luta por reconhecimento, suplantando a falsa isonomia formal que vigorava desde as revoluções burguesas. Todavia, pela in uência de Beauvoir, o fundamento não era marxista, e sim existencialista. Para o movimento de mulheres na esteira de 1968 O Segundo Sexo foi uma espécie de Bíblia, como já foi dito muitas vezes. Isto é verdade para protagonistas como Sulamith Firestone e Alice Schwarzer, passando por Contra a nossa vontade (um livro antiviolação) de Susan Brownmiller, até Christina Thürmer-Rohr com sua tese da “cumplicidade”, que até hoje funciona como mera contraposição ao “feminismo da vítima”, em vez de ver que ambas as variantes do feminismo (o lado da vítima e o da cumplicidade) têm basicamente um fundamento existencialista.554

A segunda onda do feminismo, principalmente, pela contribuição de Simone de Beauvoir, teria marcado a diferença da construção cultural binarista de papéis de gênero, pela frase convertida em slogan “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” na década de 1970.555 Ocorre, todavia, que “o feminismo da diferença a acusou de aplicar às mulheres os critérios de normalidade masculinos. Finalmente, na década de 1990, foi-lhe censurado por um feminismo desconstrutivista estar presa a um pensamento dualista e operar uma nova produção de binarismo apesar de todas as críticas das relações de gênero”.556 Entramos agora num tempo de balanço/re exão: o que vem depois da igualdade, da diferença e da desconstrução? Até onde vai a investigação sobre o género, depois de, por um lado, ser posta em questão e, por outro, se postular ser inevitável mantê-la ainda de pé? Nestes tempos de incerteza também se volta às

clássicas, como De Beauvoir. No entanto por aí não se deve entrar em território novo; daí não surgem desejos de transcendência do pensamento existente nem do anterior. A teoria deve permanecer no habitual quadro de referência imanente. Assim se tenta desesperadamente tornar compatível o “queer” com as exigências de um feminismo materialista.557

Assim, o ocidente assistiu ao fortalecimento do processo produtivo industrial, à ampliação do domínio do capital nanceiro, e à expansão dos mercados no século XIX e início do século XX, marcados pela valorização do valor (androcêntrico), numa sociedade binarista, heteronormativa e heterossexual, que contava com o homem nas searas públicas, e a mulher no ambiente doméstico. Enquanto o homem provedor trabalhava, cuidava dos assuntos da política, da economia e do mercado, e conduzia o mundo moderno ao progresso, sua mulher devia car em casa, realizando as tarefas de cuidado afeitas à sua sensibilidade, esperando-o sempre prazenteira, doce, paciente, acolhedora e bela – era preciso estar sempre sensual para seu homem também, para não o perder para outra mulher, pois todas seriam rivais em potencial. O conceito de sensualidade é, ele mesmo, introduzido abstratamente enquanto a “sensibilidade em geral”, justamente porque a efetiva referência sensível permanece indiferente à abstração do valor. Dá-se, com isso, uma inversão paradoxal nos conceitos de sensualidade e natureza: por um lado, nega-se que o ‘processo metabólico com a natureza’ (Marx) é, ele mesmo, sempre culturalmente construído e, de modo algum, algo imediato; que a própria sensualidade se apresenta, pois, histórica e culturalmente distinta, inclusive a compreensão de tempo e espaço. Em vez disso, a sensualidade aparece a-historicamente, tal como a sempre indiferente e abstrata relação de valor. Por outro lado, como nenhuma outra formação histórica lhe antecedeu, a socialização do valor “trabalha” com o poder no intuito de igualar a inteira natureza e o mundo sensível, inclusive a sexualidade humana, factual e completamente ao seu próprio conceito; ou seja, para transmutar a própria natureza numa condição a-histórica totalmente compatível com a abstração do valor e a m de nivelar toda a diferença entre a natureza e a sociedade capitalista (num empreendimento necessariamente

condenado ao fracasso). Na medida em que objetiva, assim, a inteira natureza, e, com ela, a sensualidade dos indivíduos enquanto abstração do valor, a socialização do valor desintegra-se como um todo, bem como cada um de seus sujeitos, numa polaridade entre sujeito e objeto; a sociedade torna-se uma objetividade cega, a qual se contrapõe aos sujeitos que nela foram formados (estruturalmente masculinos e brancos) como um poder estranho (segunda natureza), enquanto momentos que não se incorporam a essa logica têm de ser cindidos e, com isso, “irracionalizados”.558

É perfeitamente possível que haja mulheres no mercado, nas corporações e nas instituições públicas, como tem ocorrido atualmente. Porém, segundo Roswitha, os espaços públicos e a geração de valor são domínios do masculino. Isso quer dizer que as mulheres, para obter pertencimento nesses espaços, têm de se empenhar muito mais, estudar mais, trabalhar mais, dedicar-se mais, provar-se mais e sempre, necessariamente, emular o masculino, o que signi ca incorporar a plêiade de características masculinas que o patriarcado associa ao domínio desses espaços.559 Ainda assim, encontram uma enorme resistência para ocuparem altos cargos de direção e comando, receberem os mesmos salários, o mesmo respeito, a mesma deferência. Ademais, mesmo que se coloquem vitoriosamente em “papéis masculinos” do valor varão, ainda terão a obrigação de realizar as tarefas não dotadas de valor. Por isso, surgem as problematizações acerca da dupla e da tripla jornada de trabalho da mulher. Parir, criar lhos e cuidar da casa – afazeres tratados socialmente como inferiores e, economicamente, fora da forma valor – são atividades femininas, de modo que, se a mulher quiser se arrogar papéis masculinos, terá que arcar com o ônus de realizar todas as tarefas (masculinas e femininas) ao mesmo tempo. Com a inserção massiva da mulher no mundo do trabalho, esses discursos se remodelaram, tornando-se ainda mais perversos. Mormente, o trabalho das mulheres carrega o estigma da desigualdade, oportunizando sua submissão social para uma exploração de seu trabalho mais cruel do que ocorre com os homens. Por isso, as mulheres estão mais sujeitas a trabalhar na informalidade, em domicílio, em atividades de tempo parcial e sem

regulamentação de jornada. Ainda, estão mais expostas à segregação ocupacional e ao desemprego. E, aqui no Brasil, tudo isso atinge as mulheres negras com ainda maior contundência. O que hoje dá o tom é o modelo mediático da “mulher que quer tudo”, que concilia carreira e família, e ainda se embeleza diariamente, para arrancar suspiros como “objeto do desejo”. Mas para a maioria isso é exigir muito, algo de todo inviável. A percentagem de mulheres que consegue tal espargata com pompa e circunstância é ín ma. Só uma reduzida minoria de ‘mulheres de carreira’ pode dar-se ao luxo de uma tal ilusão, delegando o fardo da administração do lar, dos cuidados com os lhos etc. a empregadas domésticas (migrantes, negras, desprivilegiadas) que, por sua vez, deixam de ter tempo para seus próprios lhos. A grande maioria das mulheres está absurdamente sobrecarregada com a tarefa de responder, ao mesmo tempo, pelo dinheiro, pelas atividades domésticas e pelo “amor”. Na pós-modernidade o patriarcado não desaparece, mas “se embrutece” e se estilhaça em formas múltiplas de barbárie, como escreve a feminista alemã Roswitha Scholz.560

A teoria de Roswitha deixa claro que, independente de se, na materialidade da vida, é um homem ou uma mulher quem realiza determinada atividade sobredeterminada como masculina ou feminina, a forma do valor não se altera. As atividades que, embora produtivas, ou seja, insuscetíveis de representação ou só di cilmente representáveis na forma do dinheiro, escapam à abstração mercantil do processo de valorização, passam a ser necessariamente identi cadas como atividades típicas do universo feminino, majoritariamente, no ambiente doméstico, onde a mulher tem licença para expressar sua “feminilidade”. O feminismo de segunda geração, então, foi capaz de recon gurar algumas determinações de comportamento da sociedade burguesa, possibilitando às mulheres maior amplitude de escolhas existenciais, embora, do ponto de vista estrutural, o valor-clivagem não tenha sido afetado. O que ocorreu é que, devido às lutas da segunda onda feminista, e à própria recon guração do capital para um modelo de cassino e pós-fordista, as escolhas femininas vinculadas aos desejos e afetos ampliaram-se. De outro lado, em relação aos homens, novos parâmetros de projeção egoica e

sexualidade surgiram junto com os das mulheres, com menos dureza nos padrões de conduta asseguradores de masculinidade. Tornou-se, assim, possível que o homem realizasse tarefas dissociadas do valor, como cuidar dos lhos e do lar, mas nada disso alterou a forma fundamental do valor, atrelado ao trabalho abstrato, e caudatário da concepção patriarcal ocidental de masculino. Não é porque as mulheres reais têm seu trabalho abstrato explorado ou porque homens de carne e osso realizam tarefas domésticas que a forma do valor deixou de ser dissociada. Sabemos que, em Scholz, o patriarcado é uma relação estrutural de valoração do valor total, que depende, inclusive, do valor clivado. Por isso, se há algum elemento psicossocial, ele é decorrente da estrutura produtiva, e não um fenômeno autônomo. Diante da teoria scholziana, os feminismos descolados da superação do capital jamais serão profícuos para emancipar as mulheres – a emancipação tem de ser completa, o que signi ca emancipação em relação à exploração capitalista. De outro lado, esta plena emancipação, que alcançaria mulheres e homens, somente se daria com o m do patriarcado. Para Roswitha, a clivagem do valor precisa ser entendida em um metanível, uma vez que sua teoria se movimenta por diversos planos distintos de abstração, cuja profundidade e complexidade afastam as feministas com tendências empiristas.561 Na perspectiva de Scholz, a clivagem de gênero na forma do valor operada pela estruturação do modo de produção é especí ca no capitalismo e na modernidade porque é estrutural, e não cultural. Todas as conquistas do século XX, referentes à sexualidade, ao mercado de trabalho e aos direitos subjetivos não alteraram o fato de que a mulher continua inferior, simbolicamente, subjetivamente, discursivamente e estruturalmente. Talvez, por isso, os movimentos feministas da atualidade mostram-se extremamente combativos, demandando do Estado novas formas de atuação, e recusando o discurso de que as mulheres alcançaram igualdade e conquistas reais tãosomente porque o aparato jurídico formal positivou determinados direitos. O recrudescimento de feminismos que se propõem radicais, no m do século XX, 562 com militantes em diversos países do mundo, evidencia que as conquistas legislativas não têm atendido su cientemente às reivindicações das mulheres. Além disso, tais movimentos não cobram apenas o Estado, mas

empreendem disputas culturais, linguísticas, estéticas e simbólicas nos mais diversos espaços sociais, alavancando ferrenhos debates e provocando reações na sociedade que desejam o retrocesso na positivação de direitos femininos.563 Podemos dizer que o feminismo radical nasce na segunda, mas também compõe a terceira onda, pois faz a defesa de que a própria categoria “gênero”, em si, precisa ser marretada. Assim, todas as categorizações do sistema binário, que possuem o escopo de situar homens e mulheres em papéis sociais especí cos, e esse dualismo, precisam ser destruídos através da desconstrução das categorias “homem” e “mulher”. Mas é o referencial pósestruturalista que mais inspira a chamada terceira onda, segundo o qual não se pode mais tomar a abstração “mulher” para representar todas as mulheres de carne e osso, uma vez que existem mulheres negras, indígenas, lésbicas, de esquerda, de direita, religiosas, agnósticas, veganas, trans, ricas, pobres, magras, obesas, jovens, velhas, intelectuais, campesinas, de lugares diferentes do globo etc. E, além dessas caracterizações poderem se mesclar, dentro de cada grupo, há pessoas reais, com demandas próprias... há a Mary, a Maria, a Luciana, a Potira, a Sheeba, a Rhasmye, a Shonda, a Anete, a Latifa, a Omikemi, a Sayuri etc. Essa perspectiva pode facilmente resvalar no individualismo capitalista. Houve, no m do século XX, a ascensão de um feminismo antibinarista e desconstrutivista, que preconiza a eliminação de parâmetros identitários de gênero, que chamamos de terceira onda do feminismo. Diante desse cenário, Scholz acredita ser necessário resgatar o pensamento de Beauvoir, para situar melhor a discussão feminista entre as percepções da diferença e da desconstrução, que marcam suas últimas ondas, porque a terceira onda é marcada pelo identitarismo. Isso signi ca a pulverização do movimento feminista em múltiplos coletivos reunidos em torno de identidades cada vez mais especí cas, como mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres semterra e sem-teto, mulheres com de ciência, mulheres trans, mulheres refugiadas, mulheres atingidas por barragens etc., possibilitando-se uma exacerbação da especi cidade que pode originar, por exemplo, um “movimento de mulheres negras, lésbicas, trans, com de ciência, sem-teto, refugiadas ambientais de barragens”, o que enfraquece a luta (quanto mais ampliada a luta, maior força). Esse processo ocorreu não apenas no

feminismo, gerando sua chamada terceira onda, mas em toda a esquerda, minguando a luta coletiva, pela fragmentação das mobilizações, quase sempre sectarista. Claro que o reconhecimento das necessidades concretas de cada mulher é crucial, mas a abordagem sempre deve ser dialética e con uente, nunca diaspórica, porque isso mitiga o vigor da luta contra um inimigo monumental. Para dar conta desse fenômeno sem perder a força plural das mobilizações, a interseccionalidade veio reorientar a terceira onda do feminismo quando se compreendeu que todos esses processos de opressão são sobrepostos e simultâneos. Pela esquerda, a interseccionalidade esforça-se por a rmar que, além de concomitantes, todas as opressões são articuladas pelo denominador comum do capitalismo. Numa perspectiva classista, ainda, a interseccionalidade entende que a luta de classes é a mais ampla e geral, mas que deve se permitir atravessar por essas especi cações (perspectiva a que Scholz não adere). Por isso, o feminismo de terceira onda pode tanto resvalar para o individualismo liberal de direita, para o reformismo social-democrata, por uma luta por direitos de grupos minoritários, ou para a luta contra o capitalismo. Tudo depende da ótica adotada. É muito mais palpável observar o machismo a partir de suas manifestações cotidianas e concretas, e culpabilizar os próprios homens individualmente, ou, num plano um pouco mais avançado, a “cultura”, pelo machismo. Todavia, essas compreensões sempre serão débeis, pois desconsideram a estrutura econômica que determina as relações sociais. Propomos que existe uma reciprocidade de implicações: se o capitalismo e patriarcado pressupõem-se, não há m da desigualdade de gêneros sem o m da forma-valor, e não há m do valor sem o m do machismo. Os movimentos feministas só alcançarão a máxima radicalidade e o máximo compromisso emancipador, portanto, quando também forem o movimento revolucionário pela destruição do capital. Fora disso, serão sempre só lacração564, brados, cartazes e seios. Nesse contexto, queremos propor uma luta feminista que seja obrigatoriamente uma batalha indômita contra a valorização do valor macho e seu reverso, que é o valor clivado. 4.3.2 Discussões e movimentos do feminismo

Em março de 1906, a feminista anarquista Emma Goldman publicou, na primeira edição de Mother Earth, o artigo “A tragédia da emancipação feminina”. Nesse texto, seguindo a mesma lógica do artigo “O sufrágio feminino”, Goldman dissertou sobre sua perspectiva em torno do movimento feminista e sufragista da época e criticou a militância por emancipação, dizendo: “a mulher agora se vê diante da necessidade de emancipar-se da emancipação, para se libertar. Pode parecer paradoxal, mas é exatamente assim”.565 Em sua opinião, uma emancipação essencialmente libertadora jamais ocorreria através da inserção das mulheres na esfera política do Estado, nem mesmo no mercado de trabalho, como propunham algumas sufragistas e intelectuais feministas liberais. A emancipação externa simplesmente fez da mulher moderna um ser arti cial, que lembra os produtos da arboricultura francesa, com suas árvores e arbustos fantasiosos podados em forma de pirâmides, cones, cubos, etc. E especialmente na pretendida esfera intelectual de nossa vida que podemos encontrar em grande número essas plantas femininas arti ciais.566

Para Emma, o fato de algumas mulheres terem conquistado a “igualdade econômica” em relação aos homens, por poderem trabalhar nas fábricas, não signi cou uma emancipação completa, pois ainda viviam uma “vida restrita e insuportável por conta dos preconceitos morais e sociais que mutilam e amarram a natureza das mulheres”.567 Certamente, o feminismo liberal sempre consistiu numa ilusão de igualdade, pois, até hoje, pressupõe que a representatividade na política formal e posições no alto escalão da produção capitalista podem emancipar as mulheres. Esse é o primeiro importante debate para uma crítica ao feminismo liberal. Na mesma primeira metade do século XX, Alexandra Kollontai também advertia sobre o feminismo liberal, de inspiração iluminista, cujo telos é encaixar as mulheres na subjetividade racional e jurídica da modernidade. A agenda das feministas burguesas desde o século XIX até os dias presentes consiste exatamente em conquistas os mesmos direitos formais que os homens, e emular o seu comportamento, inclusive, no que tange à opressão das pessoas mais pobres.

Qual o objetivo das feministas burguesas? Conseguir os mesmos avanços, o mesmo poder, os mesmos direitos na sociedade capitalista que possuem agora os seus maridos, pais e irmãos. Qual o objetivo das operárias socialistas? Abolir todo o tipo de privilégios que derivem do nascimento ou da riqueza. À mulher operária é-lhe indiferente se o seu patrão é um homem ou uma mulher. As feministas burguesas demandam a igualdade de direitos sempre e em qualquer lugar. As mulheres trabalhadoras respondem: demandamos direitos para todos os cidadãos, homens e mulheres, mas nós não somos somente mulheres e trabalhadoras, também somos mães. E como mães, como mulheres que teremos lhos no futuro, demandamos uma atenção especial do governo, proteção especial do Estado e da sociedade. As feministas burguesas estão lutando para conseguir direitos políticos: também aqui os nossos caminhos se separam. Para as mulheres burguesas, os direitos políticos são simplesmente um meio para conseguir os seus objetivos mais comodamente e com mais segurança neste mundo baseado na exploração dos trabalhadores. Para as mulheres operárias, os direitos políticos são um passo no caminho empedrado e difícil que leva ao desejado reino do trabalho.568

As feministas a que Kollontai denomina “burguesas” numa clara referência à luta de classes que marcou toda a sua trajetória revolucionária (mas que precisamente podem ser tratadas politicamente por “liberais”) almejam ocupar os espaços de poder reservados ao homem na dinâmica desigual e violenta da capitalismo, sem sequer suscitarem o m das desigualdades, das perversidades e das opressões logicamente decorrentes do modo de produção. Até hoje, o feminismo liberal demanda que as mulheres possam ser presidentes de grandes conglomerados de capital transnacional, exercerem altos cargos políticos (como primeira-ministra, presidenta da república, senadora, deputada etc.) e jurídicos (como magistrada, desembargadora, ministra da suprema corte, procuradora-geral etc.), que tenha representatividade no jornalismo, na televisão e no cinema (em posições de protagonismo e direção), sem que, em momento algum, seja delas exigido o compromisso de lutar contra a desigualdade estrutural, as injustiças e a miséria.569

Inicialmente simpatizante do socialismo agrário, Kollontai aproximou-se do marxismo muito por conta de sua admiração a Rosa Luxemburgo, até aderir nalmente à fração bolchevique em 1906, após ter participado de ações do partido socialdemocrata russo e de não ter tomado o lado dos bolcheviques no “domingo sangrento” de 1905. Kollontai sempre pensou a luta operária desde a perspectiva das mulheres trabalhadoras, tornando-se um ícone do feminismo socialista. De outro lado, embora Luxemburgo tenha inspirado a própria Alexandra Kollontai e inspire mulheres feministas de esquerda até os dias presentes, nunca se posicionou claramente sobre as questões de gênero nos seus discursos e textos o ciais, mas, a partir de suas cartas, podemos dizer que também era uma socialista feminista. Segundo Nancy Holmstrom, embora Rosa Luxemburgo seja um modelo para as feministas de todos os tempos devido ao seu comprometimento apaixonado com a luta contra as opressões do sistema capitalista, ela nunca escreveu nenhum texto sobre feminismo, não formulou proposições sobre a condição das mulheres e não participou de nenhum movimento de mulheres.570 Todavia, com base nas correspondências entre Luxemburgo e a grande feminista Clara Zetkin, Holmstrom571 a rma que Rosa era claramente uma feminista (ou uma socialista feminista, pois a autora trata esta expressão como atualização daquela). Segundo Holmstrom,572 o que caracteriza uma feminista socialista é o fato de ver a sociedade de classes como elemento central na vida das mulheres, e, ao mesmo tempo, não reduzir as opressões de sexo ou raça à exploração econômica. Em outras palavras, para ela, a classe é sexuada e racializada, e o que hoje se conhece por “interseccionalidade” era, de certo modo, reconhecido por Rosa à medida que, na perspectiva desta, algumas formas de opressão são comuns a todas as mulheres ao passo que outras variam conforme a raça, a classe ou a nacionalidade. Ainda, conforme a estudiosa de Nova Iorque, as demandas especí cas das mulheres operárias eram prioridade de Luxemburgo, para quem não podiam se confundir com as demandas das mulheres burguesas ou dos homens proletários. Rosa teria realizado também uma crítica à vinculação socialdemocrata da luta pelo sufrágio feminino com alianças eleitorais liberais, e acreditava que a inclusão da mulher na política era vantajosa por razões pragmáticas, uma vez que afastava a mulher dos “ares

sufocantes da família burguesa” que afetavam os homens socialistas também.573 Essas percepções foram retomadas nas décadas de 1960 e 1970, no intuito de se constituir uma robusta teoria do feminismo marxista. Ocorre que, com o desenrolar da luta feminista na segunda metade do século XX, outras demandas começaram a surgir, impulsionando os substratos teóricos do feminismo a romper com a categorização marxiana. Na terceira geração do feminismo, então, estudiosas como Judith Butler e Joan Scoth têm procurado ultrapassar as supostas limitações que identi cam no materialismo histórico, entendendo que a análise do sexismo precisa incluir categorias como “classe” e “trabalhador”, “homem” e “mulher”, numa perspectiva conjunta, suplantando as limitações de uma visão marxista que deu origem à categoria sociológica “gênero”. Enquanto a marcação do “gênero”, como uma nova possibilidade discursiva emancipatória da subjetividade, foi fundamental no feminismo de segunda onda, como uma tentativa de suplantar a hierarquização; na terceira onda, passou a ser considerada mais um universal abstrato decorrente da razão iluminista, que não representa pessoas reais. A emergência da categoria [gênero] representou, pelo menos para aquelas e aqueles que investiram na radicalidade que ela sugeria, uma virada epistemológica. Ao utilizar gênero, deixava-se de fazer uma história, uma psicologia, ou uma literatura das mulheres, sobre as mulheres e passava-se a analisar a construção social e cultural do feminino e do masculino, atentando para as formas pelas quais os sujeitos se constituíam e eram constituídos, em meio a relações de poder. O impacto dessa nova categoria analítica foi tão intenso que, mais uma vez, motivou veementes discussões e mesmo algumas fraturas internas. Também as relações de gênero passaram a ser compreendidas e interpretadas de muitas e distintas formas, ajustando-se (a) ou interpelando referenciais marxistas, psicanalíticos, lacanianos, foucaultianos, pósestruturalistas.574

Para as pós-estruturalistas, no momento histórico do feminismo de segunda geração, estabelecer a diferença entre os gêneros era estratégico para uma luta por reconhecimento, suplantando a falsa isonomia formal que

vigorava desde as revoluções burguesas. Por isso, não sem razão, para feministas como Guacira Lopes Louro, Teresa de Lauretis e Joan Scott, as feministas da segunda onda buscavam seu referencial teórico nos escritos marxistas (porque o que estava evidente era a visibilidade da mulher na luta de classes). Porém, para esse novo feminismo, pós-moderno, de terceira onda, toda a nossa cultura está fundada numa dicotomia entre homens e mulheres, sustentáculo da sociedade patriarcal, cujos referenciais identitários que separam masculino e feminino, situando cada qual em categorias apartadas e estanques, são construtos socioculturais. A marcação do “gênero”, como uma nova possibilidade discursiva emancipatória da subjetividade, na segunda onda, era uma tentativa de suplantar a hierarquização. A construção teórica de uma concepção de ‘gênero’ que transforma a mulher num sujeito político feminista universal emula os padrões totalitários do esclarecimento, corroborando uma nova excrescência da racionalidade instrumental. Esse sujeito “mulher”, como sujeito de direitos, não é capaz de absorver demandas de outros grupos étnicos e culturais que não se coadunem à universalização. As mulheres latinoamericanas possuem demandas por direitos muito diversas das mulheres norteamericanas ou europeias, assim como as mulheres negras possuem questões incompreensíveis para as brancas, e as lésbicas reivindicam direitos que não estão na pauta das heterossexuais. Essa concepção particular precisa ser levada em conta num processo de construção de direitos, pelo que as universalizações são malé cas se tomadas como categorias ‘a priori’. Então, as universalizações só podem ser tomadas como uma plataforma primeva de lutas, uma tela sobre a qual se podem pintar as mais diversos matizes de reivindicações consoante as especi cidades de cada sujeito e as idiossincrasias de cada grupo. É nesse sentido que o movimento feminista atual se pauta numa concepção pósestruturalista, sem, contudo, criar uma nova categoria universal que inviabilize direitos. Um feminismo pós-estruturalista precisa, portanto, partir de uma compreensão da constituição identitária do sujeito, compreendendo que a formação egoica se dá inserida em representações culturais superegoicas, pautadas em relações de poder, de modo que o escamoteamento das diferenças no interior

de cada grupo de gênero (entre ‘homens’ e ‘mulheres’) alimenta essas relações de poder e cristaliza as hierarquias.575

A partir dessa nova concepção, permitiu-se, segundo as feministas de terceira onda, uma visão plural acerca das possibilidades de se experienciar o feminino, de ser mulher e se saber mulher. Como todas as dinâmicas relacionais incrustadas no seio social se pautam em relações hierárquicas de poder, que passam também pela diferença de sexo, idônea a atribuir papéis sociais distintos a homens e mulheres, perfazendo sempre o empoderamento do masculino, as autoras pós-estruturalistas compreendem que tais dinâmicas remontam à formação moral do ocidente. Para elas, trata-se de construtos culturais engendrados no processo histórico de formação das sociedades e, por isso, podem muito bem ser desconstruídos. Dessas posições, derivam os feminismos interseccionais ecléticos, culturalistas, simbólicos, de desconstrução etc., inseridos nos chamados “novos movimentos sociais”. Esse feminismo, tal qual o liberal, acredita que o Direito é um caminho para o reconhecimento, demandando “mais direitos” para as mulheres e a criminalização das violências sexistas. Desde meados dos anos setenta deram que falar os chamados “novos movimentos sociais” (movimento alternativo, das mulheres, ecológico, da paz). A política já antes era proclamada na primeira pessoa, na sequência do movimento de 68, mas agora por maioria de razão. Foram discutidos acaloradamente os postulados metódicos da pesquisa cientí ca feminista das mulheres, então formulados por Maria Mies, cujo cerne reside no postulado da preocupação ou da parcialidade. Na discussão em torno da Casa das Mulheres de Colónia, as protagonistas ou cientistas feministas e as mulheres vítimas de violência foram declaradas atingidas e com os mesmos direitos, no sentido da investigação-acção (então em maré alta e não apenas no feminismo). Deste modo se deveria romper a relação sujeitoobjecto cientí co (Mies, 1978). Na minha opinião, este ponto de vista da preocupação imediata, para o qual não existe verdadeiramente uma totalidade social de algum modo supraindividual (cf. também Beer, 1987a), no fundo não foi abandonado, mas sim traduzido na forma das teorias do ponto de vista, também sobre as situações (das mulheres) à escala internacional (para artigo síntese cf. Seifert, 1992, p. 257 sg.),

mesmo se então se trata logo de insistir na objectividade cientí co-burguesa no contexto marxista (Beer, 1987).576

Roswitha Scholz discorda muito das pós-estruturalistas. Como vimos, para Scholz, o capitalismo necessita não apenas do sexismo, mas do binarismo, e da vinculação discursiva de papéis de gênero e sexualidade, para a reprodução mercantil e a continuidade da sociedade burguesa. É a dissociação operada pelo valor que determina o que é ser mulher e como se deve ser mulher na sociedade capitalista. Para Scholz (1996), no capitalismo, os momentos da reprodução não absorvidos no sistema do trabalho abstrato e da valorização do valor são dissociados da sociabilidade principal, historicamente delegados às mulheres e de nidos como inferiores. Por isso, a relação de dissociação sexual é sediada no mesmo plano de abstração em que operam as categorias funcionais vigentes, como valor, dinheiro e mercadoria, justamente porque o feminino constitui o seu reverso desprezado.577 Ora, no m do século XX e no século XXI, em que a presença das mulheres aumentou signi cativamente nos postos de comando da política e em posições de destaque no mercado, com altíssima participação da mão de obra feminina, as quali cações das mulheres seguiram o caminho de emular o masculino, para se igualarem aos homens, o que gerou uma suposta “confusão entre os sexos”. Segundo Roswitha, esse se tornou um dos temas prediletos da mídia porque a hierarquização sexual e a preterição de mulheres nunca despareceram.578 Há muito a esfera do “trabalho” abstrato deixou de ser propriedade exclusiva dos homens. O pressuposto patriarcal básico da relação de valor, porém, não foi por isso eliminado, mas apenas tornou-se precário e con ituoso. A despeito de toda atividade remunerada, o “trabalho” abstrato não possui até hoje para as mulheres o mesmo poder fundador de identidade que para os homens. Vê-se que o fetichismo do “trabalho” como “tautológico m em si mesmo” e os critérios de sucesso por ele implicados estão enraizados na personalidade de cada homem. Isso vale sobretudo, é claro, para os representantes de instituições político-econômicas e culturais, mas não raro para o teórico masculino (razão pela qual as mulheres que fazem carreira nessas áreas sujeitam-se a duras provas de adaptação).579

Outrossim, as mulheres continuam as principais responsáveis pelos lhos e pelos cuidados do lar, recebem menores salários que os homens para desempenhar a mesma função, e são absoluta minoria nos cargos de direção, o que, para a autora, ainda se deve às classi cações sexualmente especi cadas da modernidade clássica. As formações do trabalho abstrato e da dissociação, historicamente e logicamente originárias, continuam a fazer sentido no contexto pós-fordista. Para Scholz, trabalho (abstrato) e valor-clivagem são pressupostos um do outro. “Neste sentido, a relação dissociação-valor representa de certo modo uma meta-estrutura, contra a hipótese reducionista de que só o valor seria o princípio constitutivo, a essência da sociedade produtora de mercadorias”.580 Uma leitura acerca do patriarcado, no século XX, relativamente próxima à de Roswitha Scholz foi elaborada por Nancy Fraser, primeiramente, porque tem muita clareza na compreensão de que os problemas do capitalismo não são decorrentes da desigual distribuição, mas residem na própria estrutura produtiva. Fraser aponta, assim como Scholz e Kurz, que os movimentos de esquerda que não percebem esse fator acabam tragados por uma agenda socialdemocrata. Apenas a partir da segunda metade da década de 2000 ocorreu também de novo uma certa re exão sobre a relação de género fundamental no contexto da crítica do capitalismo, o que poderá dever-se a um agravamento da situação social e neste contexto também a um certo renascimento de Marx, na senda do desabar da crise massivamente nos últimos anos. “Mulheres, pensai economicamente” (Nancy Fraser) e outras palavras de ordem semelhantes foram desde então proferidas.581

Por isso, Scholz toma a crítica de Nancy Fraser ao feminismo pósmoderno como um ponto de partida, advertindo que esse feminismo (liberal) é absolutamente compatível com o capitalismo, pois amplia as possibilidades de nichos de mercado, cria novas mercadorias (culturais ou não), e fagocita as demandas com potencial emancipador. Ao m e ao cabo, serve apenas pare gerar mais e mais valor, as mulheres continuam duplamente socializadas e exploradas, e permanecem alvo de violências simbólicas, psíquicas, verbais, físicas, sexuais, obstétricas etc. O feminismo pósestruturalista, para Fraser e para Scholz, está a serviço do valor varão.

Eu daria um passo pra trás por um momento para contextualizar esses termos, reconhecimento e redistribuição, que tem sido termos chave para a forma que eu tenho tentado entender esses desenvolvimentos nas últimas décadas. Para mim o termo redistribuição já era, digamos, um compromisso, uma alternativa ao socialismo. Um socialismo-lite. É o socialismo envergonhado. Em outras palavras, quando movimentos operários e outros movimentos radicais, movimentos socialistas contestavam as regras básicas da sociedade capitalista, as relações de propriedade, a apropriação da mais valia etc., eles não falavam de redistribuição, eles falavam de transformação estrutural. Redistribuição é um termo que se desenvolveu dentro da social democracia e realmente presume que o problema é a injusta distribuição de bens divisíveis e não se preocupa mudar as regras básicas, digamos assim. Diria que após a segunda guerra mundial esse paradigma redistributivo se tornou dominante nos Estados Unidos e também nos países social democratas ricos ao redor do mundo, e inclusive em muitos estados em desenvolvimento que não eram tão ricos, de independência recente, e que tentavam se “desenvolver”, como dizem. E certamente importantes correntes do movimento operário e da esquerda, da esquerda social democrata, assumiram essa coisa de redistribuição. Agora, o problema é, existem vários problemas como pode ver, mas um problema adicional é que era um período, do pós guerra, em que esse modelo redistributivo começou a se sentir muito limitante. Numa sociedade rica, de consumo, onde tínhamos Betty Friedan escrevendo sobre a dona de casa presa no bairro suburbano de classe média, tem os princípios de uma nova esquerda que é contra o materialismo, a ética consumista e tudo mais. São aspirações diferentes de coisas como redistribuição justa de renda, salários, empregos e assim por diante.582

Não é à toa que as lutas por reconhecimento (inclusive dos movimentos feministas) associadas às lutas por redistribuição de capital e renda acabaram coincidindo com o m do capitalismo fordista e a transição para o capital pós-fordista e de predominância nanceira. Assim, se historicizarmos o fortalecimento das lutas por reconhecimento de diversos movimentos sociais, iremos notar que só foi viabilizado por uma permeabilidade na própria estrutura de reprodução do capital.

Aqui, porém, focar-me-ei no modo como a economia capitalista con a – pode-se dizer, passeios livres – em atividades de provisão, cuidado e interação que produzem e mantêm laços sociais, embora não lhes con ram valor monetário e trata-os como se fossem livres. Vividamente chamado de “cuidado”, “trabalho afetivo” ou “subjetivação”, essa atividade forma os sujeitos humanos do capitalismo, sustentando-os como seres naturais incorporados, ao mesmo tempo os constituindo como seres sociais, formando seu habitus e o ethos cultural em que se movem. O trabalho de parto e de socialização dos jovens é central nesse processo, bem como cuidar dos idosos, manter os lares, construir comunidades e sustentar os signi cados compartilhados, as disposições afetivas e os horizontes de valor que sustentam a cooperação social. Nas sociedades capitalistas, muito, embora nem toda, dessa atividade ocorre fora do mercado – em casas, bairros, associações da sociedade civil, redes informais e instituições públicas, como escolas; e relativamente pouco disso toma a forma de trabalho assalariado. A atividade sócio-reprodutiva não assalariada é necessária para a existência do trabalho assalariado, o acúmulo de mais-valia e o funcionamento do capitalismo como tal. Nenhuma dessas coisas poderia existir na ausência de tarefas domésticas, criação de lhos, educação, cuidados afetivos e uma série de outras atividades que servem para produzir novas gerações de trabalhadores e reabastecer os existentes, bem como para manter vínculos sociais e entendimentos compartilhados. A reprodução social é uma condição indispensável para a possibilidade de produção econômica em uma sociedade capitalista. Pelo menos da era industrial, no entanto, as sociedades capitalistas separaram o trabalho de reprodução social do da produção econômica. Associando o primeiro com as mulheres e o segundo com os homens, eles têm remunerado as atividades “reprodutivas” na moeda do “amor” e da “virtude”, enquanto compensam o “trabalho produtivo” com o do dinheiro. Dessa forma, as sociedades capitalistas criaram uma base institucional para novas formas modernas de subordinação das mulheres. Separando o trabalho reprodutivo do universo mais amplo de atividades humanas, no qual o trabalho das mulheres ocupava anteriormente um lugar reconhecido, eles o relegaram a uma “esfera doméstica” institucionalizada recentemente, onde sua importância social era obscurecida.583

Ademais, a intelectual estadunidense aponta, com clareza somente assemelhada à que encontramos no teorema de Scholz, que os trabalhos capazes de produzir mais-valor somente se possibilitam porque as tarefas domésticas cruciais para a reprodução da vida humana e da sociedade são imputadas às mulheres, sem remuneração. Segundo Fraser, há um “subsistema econômico” no capitalismo que depende de atividades sociais reprodutivas externas ao capital, mas que lhe são uma condição de possibilidade.584 Porém, Fraser ainda não chega à anatomia do valor, e continua pensando em termos de trabalho feminino reprodutivo. Ao lado de Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya, Nancy Fraser assina “Feminismo para os 99%: um manifesto”585, publicado, simultaneamente, em mais de vinte idiomas, no dia 08 de março de 2019. No seu manifesto, as autoras se empenham para desvencilhar o feminismo do neoliberalismo, sustentando que há “múltiplas formas de trabalho não assalariado e expropriado, incluindo muito do trabalho de reprodução social, ainda executado predominantemente por mulheres e muitas vezes sem compensação”586 num sentido muito próximo ao conceito de valor-cisão, mas sem focar o valor, propriamente, como Roswitha. Em suas teses, assim como Scholz, identi cam que a nova fase de acumulação capitalista tende a oprimir as mulheres ainda mais, que as esquerdas estão pulverizadas em lutas identitárias, e que o feminismo (predominantemente liberal) perdeu seu potencial revolucionário. Para superar os des os e resgatar um feminismo antirracista, anticapitalista e decolonial, sustentam que é preciso realizar uma aliança entre todos os movimentos, levando as diferenças a sério587. Embora, claramente, Fraser mantenha-se na perspectiva de que o trabalho feminino não assalariado é reprodução social, e não o anverso do próprio valor, suas contribuições são muito lúcidas, e o manifesto para os “99%” é revigorante diante de tanto equívoco liberal. Trata-se de uma perspectiva bastante congruente com a que vimos apresentando nesta obra, com características de programa, para traçar estratégias e recon gurar as agendas da luta feminista, enquanto, aqui, fazemos um esforço teórico radical de mergulho na economia política para a teoria inspirar a ação.

Outro debate é o do chamado feminismo radical, que tem, em Andrea Dworkin, sua principal expoente teórica. As radfem (radical feminists) dividemse em movimentos diversos, até antagônicos, mas estão, fundamentalmente, lastreadas na ideia ruptural de que a mulher pode se desagrilhoar de todas as opressões culturais, sociais e psicológicas que lhe são impostas, e se recusar a ser um objeto sexual de fruição masculina. A mulher, então, deve parar de se submeter a procedimentos dolorosos de embelezamento, apenas para ser desejada pelos homens, e deve parar de se colocar numa posição submissa e resignada de esposa e mãe. Pode resgatar sua identidade e sua subjetividade, negando sua rei cação, e, assim, assumir sua força, sua independência, sua liberdade. Para essas feministas, a emancipação começa pela recusa à reprodução dos padrões de comportamento impostos às mulheres pelo patriarcado. O argumento não é simplesmente que algumas mulheres não são bonitas, portanto, não é justo julgar as mulheres com base na beleza física; ou que os homens não são julgados com base nisso, portanto as mulheres também não devem ser julgadas com base nisso; ou que os homens devem procurar caráter nas mulheres; ou que nossos padrões de beleza são muito paroquiais em si e por si mesmos; ou mesmo que julgar as mulheres de acordo com sua conformidade com um padrão de beleza serve para transformá-las em produtos, bens móveis, diferindo da vaca favorita do fazendeiro apenas em termos de forma literal. A questão em jogo é diferente e crucial. Padrões de beleza descrevem em termos precisos o relacionamento que um indivíduo terá com seu próprio corpo. Eles prescrevem sua mobilidade, espontaneidade, postura, marcha, os usos a que ela pode colocar seu corpo. Eles de nem precisamente as dimensões de sua liberdade física. E, é claro, a relação entre liberdade física e desenvolvimento psicológico, possibilidade intelectual e potencial criativo é umbilical.588

Esses posicionamentos incitam comportamentos drásticos de negação dos símbolos e práticas do patriarcado, impulsionando, na segunda e na terceira ondas, os movimentos feministas mais demonizados pelo conservadorismo machista,que se retroalimenta pelo preconceito tacanho, propagandeando um estereótipo propositalmente ignorante e generalizante

da feminista “feia”,“gorda”, “peluda”, “masculinizada”, “bruta”, “violenta”, “fancha”, e que “odeia os homens”.589 Justamente por isso, sua radicalidade culturalista é de extrema importância tanto na re exão feminista quanto nas rupturas comportamentais, e na formação da agenda dos movimentos sociais, embora, muitas vezes, careçam de radicalidade anticapitalista. As radicais negam toda e qualquer forma de opressão real e simbólica às mulheres, até o limite de que toda relação (principalmente sexual) heterossexual é identi cada como assimétrica, vertical, opressora e violenta para as mulheres, subjugando-as aos homens. Amiúde, os movimentos radicais preconizam, inclusive, o “lesbianismo político”, pois a única forma de negar a opressão masculina por completo e, consequentemente, o patriarcado, seria negar-se às relações heterossexuais e heteronormativas. Eu de ni a heterossexualidade como o comportamento ritualizado construído na de nição de papéis polares. O relacionamento com homens como os conhecemos é cada vez mais impossível. Requer um aborto de criatividade e força, uma recusa de590 responsabilidade e liberdade: uma morte pessoal amarga. Signi ca permanecer a vítima, aniquilando para sempre todo o respeito próprio. Signi ca representar o papel feminino, incorporando o masoquismo, o ódio a si mesmo e a passividade que são centrais para ele. O comportamento heterossexual convencional não ambíguo é a pior traição de nossa humanidade comum.591

Esse feminismo radical tornou-se icônico, e gera as reações sociais mais adversas, em um movimento reacionário dos conservadorismos mais beócios. Por isso, do ponto de vista da cultura, cumprem um papel revolucionário e corajoso de enfrentamento do patriarcado. Todavia, seu grande equívoco, na perspectiva scholziana, é identi car que a perversidade machista e misógina está nas pessoas, especialmente, nos homens. Diante de Scholz, trata-se de uma visão enviesada, reducionista, e até mesmo ingênua, pois o patriarcado não é uma mera questão cultural, social ou simbólica, muito menos uma escolha psíquica/comportamental. O patriarcado é o capitalismo, e o capitalismo é o patriarcado. Dessarte, nenhum desses movimentos, por mais denodado que seja, será realmente radical sem o compromisso radical com a destruição do valor. É relevante, do ponto de vista psíquico e cultural,

recusar os símbolos e as práticas da opressão machista, e a “cultura do estupro”, mas isso não basta. É preciso voltar o olhar e a ação para a necessidade de superação do capitalismo e de seu valor dissociado. Outra polêmica em torno do feminismo radical é o reconhecimento das mulheres transexuais enquanto mulheres, embora a própria Andrea Dworkin não sustente essa ideia. Essa celeuma começou em 1969, quando algumas feministas radicais exigiram que a ativista Sylvia Rivera (mulher trans), uma das líderes do Stonewall Riots fosse expulsa da Plataforma no New York Pride. O feminismo radical trans-excludente acredita que a opressão das mulheres é inteiramente baseada em gênero e que a existência de pessoas transexuais é uma ilusão, que gera um novo modo de opressão às mulheres. Essa ideia é fortemente representada por Janice Raymond, em sua obra, de 1979, The Transsexual Empire: The Malking of The She-Male. É preciso a rmar, mais uma vez, que, do ponto de vista de Roswitha Scholz, essas disputas e debates identitários em nada abalam o valor clivado. Segundo ela, as lutas culturais por reconhecimento empreendidas por esses movimentos foram capazes de abalar estruturas culturais importantes do patriarcado moderno, impactando severamente os parâmetros de comportamento. No entanto, isso só foi possível porque fortaleceu o modo produtivo, gerando novos nichos de mercado, e novas expressões do fetichismo – “tal como no futebol feminino ou no striptease masculino, no casamento de gays e lésbicas ou nos shows transsexuais hoje midiaticamente em alta, para dar apenas alguns exemplos picantes”.592 O valor só ganhou valorização com a homoafetividade/homossexualidade, identidades trans, e, ainda assim, permaneceu androcêntrico. Portanto, jamais será razoável que Scholz se imiscua nessa celeuma. De outro lado, os movimentos de terceira onda fundados nas autoras pós-estruturalistas, principalmente em Judith Butler, reconhecem as transexualidades e propõem a ruptura dos padrões identitários binários, sustentando os movimentos gays e “trans”593, que reivindicam, entre outras agendas, o m da divisão dos seres humanos em homens e mulheres. Nesse cenário, além dos feminismos interseccionais, surge o transfeminismo, e ocorre a desconexão do feminismo negro em relação ao branco, e do feminismo lésbico em relação ao feminismo hétero etc., além da a rmação de

identidades queer e gender uid, não binaristas. Então, no m do século XX, com o feminismo de terceira onda e o crescimento dos grupos LGBT organizados, não apenas a heteronormatividade, mas também a heterossexualidade foi sacudida. Ora, já no século XXI, com o advento dos movimentos de drag queens, travestis, transexuais e outras expressões do que Judith Butler denominou como existência “queer”, o binarismo foi relativamente abalado (o que se aplica mais aos homens, pois já havia sido, pelas mudanças de acumulação, no que se refere à mulheres). Todavia, não se pode confundir o fato das esferas pública e privada serem idealmente concebidas como masculina e feminina, respectivamente, com uma visão simplista, estereotipada e estanque da participação de homens e mulheres nesses espaços, dialeticamente mediados, ou seja, é possível que haja mulheres atuando na esfera pública e homens, na privada, e queer genders em todos os espaços, o que, inclusive, tem aumentado signi cativamente nas últimas décadas de capitalismo. A dissociação do valor não é uma proibição de mulheres atuarem na esfera pública e de homens realizarem atividades privadas, como se determinasse o que é “brincadeira de menino” (jogos, veículos, aventuras etc.) e o que é “brincadeira de menina” (bonecas, limpeza, cuidado, beleza etc.), como os discursos toscos da direita proclamam, embora ainda haja essas construções discursivas na infância acerca do que é “ser homem” e “ser mulher” não apenas entre os reacionários. Não se pode encarar a teoria do valor dissociação com esse grau de infantilidade. Se as mulheres se vestirem de terno e os homens usarem saias, vestidos e maquiagem, para Scholz, a forma clivada do valor ainda não será afetada. Mesmo na pós-modernidade, em que a actividade pro ssional das mulheres aumentou cada vez mais, as suas quali cações igualaram as dos homens e a “confusão dos sexos” se tornou um tema querido da mídia, salta à vista que a hierarquia sexual e a preterição das mulheres de modo nenhum desapareceram no fundamental. As mulheres são sempre mais responsáveis pelos lhos e pelo trabalho doméstico na esfera privada, são mais mal pagas na esfera da actividade remunerada, é raro encontrá-las em posições públicas de direcção etc., o que sem dúvida radica nas atribuições e classi cações modernas “clássicas” sexualmente especi cadas e nas correspondentes responsabilidades reais das

mulheres pelos cuidados da reprodução privada, e continua a fazer-se sentir mesmo nos tempos pós-fordistas.594

A sociedade burguesa originária é, então, binária: concebe apenas dois gêneros possíveis, muito bem delimitados pelo valor e muito bemconceituados metanarrativamente (masculino e feminino). Nessa mesma toada, a sociedade burguesa é, também, heteronormativa: estabelece, com rigor, como se deve comportar um homem e como se deve portar uma mulher (agir, vestir, pensar, gesticular, falar, rir, comer, urinar, defecar, higienizar-se, andar, sentar, olhar, tocar, amar, chorar, desejar, deitar, sentir, correr, sofrer, en m, ser e existir no mundo); e, além de tudo, determina a obrigatoriedade heteroafetiva/heterossexual (homens devem amar romanticamente e desejar sexualmente às mulheres; mulheres devem amar romanticamente aos homens e buscar lhes despertar o desejo sexual sobre elas). Acontece que a grande di culdade de alterar isso, para Scholz, não é cultural, mas econômica: enquanto o capitalismo necessitar do binarismo, ele subsistirá. Isso é o que nenhum desses movimentos, radicais ou queer, são capazes de notar. Outras questões que pontuam signi cativamente o feminismo de terceira geração são a interseccionalidade, a pluralididade e o decolonialismo. Há o feminismo negro, o feminismo campesino, o feminismo indígena, o feminismo anticapitalista, o feminismo ecologista, e uma série de outros matizes, coexistindo em relação a um resistente feminismo liberal (ou neoliberal) que remonta à primeira onda dos movimentos de mulheres. Aqui deve ser sublinhado o contexto de dissociação-valor como princípio social fundamental, justamente por não ser empiricamente detectável de modo imediato. Isto também sob a impressão de que hoje já quase não se conseguem encontrar considerações teóricas fundamentais nem relativamente ao fetichismo social nem relativamente às relações de género assimétricas. O facto de as mulheres não terem sido escravizadas dentro da própria sociedade, como constata De Beauvoir, aponta para a relevância do corpo (cf. De Beauvoir, 2008, p. 15 sg. [1967, p. 12]). Uma comparação super cial com os judeus e os negros, como De Beauvoir faz, pode ser de facto adequada em alguns aspectos, mas não atinge a dimensão profunda da socialização da dissociação-valor. A nua “existência” como o

ponto de fuga máximo não tem sentido. Tais questões “interseccionais” (falando modicamente) apenas podem ser esclarecidas em referência a esta dimensão fundamental e apenas neste contexto, mesmo no seu signi cado próprio que nisso não ca absorvido.595

Para Roswitha, as demandas plurais e as diferenças precisam ser compreendidas a partir da dissociação-valor, mas, graças ao pósestruturalismo, os movimentos sociais foram reconformados por uma perspectiva desconstrutivista que acaba por gerar uma incontável multiplicidade de agendas e cisões nos movimentos sociais e nas lutas identitárias. Nesse tom, bell hooks formula uma dura crítica aos movimentos de mulheres incapazes de compreender o atravessamento das opressões de gênero pelas diferenças socioeconômicas relativas à classe, e as especi cações da subjugação e aniquilação subjetiva da mulher negra em contextos sociais nos quais os papéis são totalmente mediados pelo racismo. Em termos gerais, as feministas privilegiadas têm sido incapazes de falar a, com e pelos diversos grupos de mulheres, porque não compreendem plenamente a inter-relação entre opressão de sexo, raça e classe ou se recusam a levar a sério essa inter-relação. As análises feministas sobre a sina da mulher tendem a se concentrar exclusivamente no gênero e não proporcionam uma base sólida sobre a qual construir a teoria feminista. Elas re etem a tendência, predominante nas mentes patriarcais ocidentais, a misti car a realidade da mulher, insistindo em que o gênero é o único determinante do destino da mulher. Certamente, tem sido mais fácil para as mulheres que não vivenciam opressão de raça ou classe se concentrar exclusivamente no gênero. Embora se concentrem em classe e gênero, as feministas socialistas tendem a negar a raça ou fazem questão de reconhecer que a raça é importante e, em seguida, continuam apresentando uma análise em que a raça não é considerada.596

É certo que bell hooks, nos dias atuais, assume destaque nas abordagens dos feminismos plurais e protagoniza advertências à insu ciência dos feminismos liberais. Certamente, trata-se de um alerta importante que tem sido ignorado pelo feminismo negro, pois assim como o movimento feminista capitaneado por mulheres brancas tende a reproduzir racismo e a

oprimir mulheres negras, o feminismo que não se ata às re exões sobre as perversidades da economia capitalista não pode ser emancipador. As mulheres brancas podem ser vitimizadas pelo sexismo, mas o racismo lhes permite atuar como exploradoras e opressoras de pessoas negras. Ambos os grupos têm liderado os movimentos de libertação que favorecem seus interesses e apoiam a contínua opressão de outros grupos. O sexismo masculino negro prejudicou a luta para erradicar o racismo, assim como o racismo feminino branco prejudica a luta feminista. Enquanto de nirem a libertação como a obtenção de igualdade social com os homens brancos da classe dominante, esses dois grupos, ou qualquer outro, terão um grande interesse na exploração e opressão continuada de outros.597

É a partir de percepções como a de hooks, que surge o tão disseminado “lugar de fala”,598 concepção espraiada e aprimorada na construção diária dos debates cotidianos dos movimentos sociais, que chegou aos meios acadêmicos. Segundo essa percepção, quem sofre os efeitos materiais das opressões e violências (sexismo, racismo, lgbtfobia etc.) é que deve enunciar os conceitos teóricos que fundamentam a práxis transformadora, e protagonizar a luta social por emancipação. Essa ideia é problemática porque se submete a um movimento pendular, no qual nenhum dos extremos está correto. De um lado, o “lugar de fala” pode generalizar a experiência pessoal de um único indivíduo, buscando convertê-la numa nova universalidade, sem perceber, caudatária do iluminismo, pois o mero fato de se a rmar, por exemplo, “mulher lésbica moradora de periferia” não signi ca a legitimação obrigatória para que uma pessoa fale por todas as mulheres lésbicas moradoras de periferias. De outro lado, não se pode recair num particularismo individualista, que afasta a possibilidade de raciocínios indutivos, por uma perspectiva de que cada caso deve ser observado em recorte absoluto com relação ao todo. Essa preferência pelas dores e vivências singulares em detrimento do todo apenas enfraquece a luta coletiva e favorece o capitalismo, que é individualista. Por isso, há que se tomar a legitimidade do discurso conferida pela experiência de opressão cotejada dialeticamente com o aprofundamento

teórico, para uma práxis revolucionária. Por certo que não se pode mais tolerar, por exemplo, que intelectuais homens (e brancos) se arroguem o discurso sobre as opressões sofridas pelas mulheres (e nem mulheres brancas para mulheres negras) e propugnem receitas para o feminismo, mas as mulheres feministas dispostas a invocar esse discurso precisam se debruçar seriamente sobre as re exões teóricas sem abandonar a materialidade. De outro viés, não é razoável interditar a participação dos homens nos debates e seu apoio às lutas, desde que o protagonismo seja sempre das mulheres. Assim, é crucial, para citar uma dimensão, que as mulheres negras, consoante defende hooks, chamem para si a voz, mas também são cruciais o aprofundamento teórico e a militância, numa interação dialética entre experiência, pensamento e ação. Nós, mulheres negras sem qualquer “outro” institucionalizado que possamos discriminar, explorar ou oprimir, muitas vezes temos uma experiência de vida que desa a diretamente a estrutura social sexista, classista e racista vigente, e a ideologia concomitante a ela. Essa experiência pode moldar nossa consciência de tal maneira que nossa visão de mundo seja diferente da de quem tem um grau de privilégio (mesmo que relativo, dentro do sistema existente). É essencial para a continuação da luta feminista que as mulheres negras reconheçam o ponto de vista especial que a nossa marginalidade nos dá e façam uso dessa perspectiva para criticar a hegemonia racista, classista e sexista dominante e vislumbrar e criar uma contrahegemonia. Estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar na construção da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única e valiosa. A formação de uma teoria e uma práxis feminista libertadora é de responsabilidade coletiva, uma responsabilidade que deve ser compartilhada. Apesar de criticar aspectos do movimento feminista como o conhecemos até agora – crítica que às vezes é dura e implacável – eu o faço não em uma tentativa de diminuir a luta feminista, mas de enriquecer, de compartilhar o trabalho de construção de uma ideologia libertadora e de um movimento libertador.599

É preciso reforçar, contudo, que “lugar de fala” não é a representatividade, pois esta nunca será idônea a abalar as opressões, e não pode resultar numa proibição de que homens participem dos debates e das

lutas contra o patriarcado, pois, dessa forma, o “lugar de fala” seria uma alternância de silenciamentos, o que só traz perda para a luta. Roswitha Scholz, em certa medida, até está de acordo com hooks, e critica a “predileção”, mesmo entre as feministas pós-estruturalistas, por autores homens, o que, segundo ela, sustenta o pensamento universalista e negligencia a dissociação do valor. Essa aparente neutralidade antropocêntrica que, na realidade, é androcêntrica, gera distorções hermenêuticas dos fenômenos sexistas como se houvesse um suposto imaginário social, um inconsciente coletivo machista, responsável pelo patriarcado, quando, para autora,600 trata-se de relações fetichizadas diante de um valor dissociado. Mesmo em contextos históricos modi cados, a essência da dissociação-valor surge assim prática e teoricamente, e tem de ser nomeada, precisamente se a actual forma de manifestação não deve ser negligenciada. Pois juntamente com a referência temporal seria negada a verdade da “essência” enquanto processo, o qual no entanto terá de ser de nido apenas se com ele conseguir construir-se uma referência temporal. Neste contexto também poderia tematizar-se detalhadamente um inconsciente socialmente androcêntrico em sentido psicossocial, nomeadamente na medida em que ele na sua estrutura profunda possibilita hoje relações capitalistas patriarcais, mesmo em forma modi cada. Não posso aqui alongar-me sobre isso, mas a tematização deste problema continua a ser um desiderato. Pois a investigação mais precisa de tal inconsciente social poderia perfeitamente explicar porque se pode também constatar no feminismo até hoje essa tendência para o particular e para o detalhado, e porque se procura de preferência evitar a problematização das grandes estruturas abrangentes, mesmo até relativamente à própria relação hierárquica de género. No caso é estranha também a predilecção feminista por pensadores (masculinos) como teóricos de referência que por sua vez prestam homenagem às diferenças, às contradições, ao particular etc., fundamentando no entanto esta mesma orientação de modo geral e universalista; mesmo tendo como pano de fundo a linguagem e o discurso nas orientações pós-estruturalistas.601

O local de fala pode ser relevante não apenas para legitimar premissas teóricas, mas para dar voz e espaço a indivíduos historicamente silenciados,

revertendo sua invisibilidade. Nem por isso, os debates devem se super cializar, tendo como objeto apenas impressões e opiniões. Inclusive, o entendimento dos processos de subjugação das mulheres necessita de uma ferramenta metodológica e, para isso, propomos o marxismo, sob pena se jamais ser possível a libertação dos grilhões do patriarcado capitalista (racista). Dentro da epistemologia marxista, propomos esse referencial particular: a teoria da dissociação do valor. Neste início de século XXI, justamente quando a situação global se agudiza, com inúmeras guerras civis, grandes crises econômicas, sociais e ambientais, ressurgimento do nazifascismo com contornos do fundamentalismo religioso, e falência do Estado de bem-estar, as grandes teorias que realmente poderiam dar conta da complexidade do mundo caíram em descrédito. É como se a queda do muro de Berlim tivesse sido também o m do marxismo, de modo que o pós-modernismo culturalista dominou todos os espaços de debates, principalmente na esquerda, inclusive, o feminismo. A predominância pós-estruturalista diferencialista faz com que as discussões se concentrem no plano cultural, e não possam dar conta da totalidade do fenômeno. Ademais, as décadas de 1990 e 2000 recorreram a práticas neoliberais (mesmo na variante socialdemocrata) que operaram uma dialética entre o individual (como a meritocracia) e o coletivo (referente à nação, etnia, religião), de modo que qualquer luta por reconhecimento terminou se convertendo num fortalecimento da lógica neoliberal. Após a crise de 2008, vivemos um outro momento, pós-neoliberal, no qual esse identitarismo individualista, que pulveriza qualquer debate sobre as categorias abstratas da sociedade capitalista é ainda mais oportuno ao engessamento dos potenciais verdadeiramente rupturais do feminismo. Para escapar a essa armadilha, novamente, Roswitha Scholz adverte que um feminismo culturalista centrado em “libertação de papéis”, “individualização”, “representatividade”, “pluralização da vida”, “empoderamento pelas diferenças”, “desconstrução” etc., mediado sempre pela dimensão estético-simbólica das opressões, acaba por contribuir para que o neoliberalismo se aproprie do discurso das diferenças positivamente, ao invés de combatê-lo.602 Seja porque essa primazia estética desvie o foco da re exão radical sobre a origem das opressões e fortaleça ideais liberais de igualdade entre homens e mulheres, seja porque a panaceia estética acabe

apropriada pela indústria cultural e só reverta em novas formas mercantis, seja porque esse enfrentamento de superfície só alimente respostas reacionárias violentas dos novos nazifascismos fundamentalistas (que se coadunam ao extremismo de uma capitalismo de cassino cada vez mais selvagem), esse contorno pós-moderno do feminismo só tende a acirrar a violência machista e/ou fortalecer o capitalismo, agora, com contornos pós-neoliberais. ultraliberais.603 Se o pós-estruturalismo é interessante à medida que se esforça por fragmentar categorias universais para que atendam às demandas da vida concreta, em contrapartida, porém, sua extrema fragmentariedade perde de vista a historicidade e a totalidade de fenômenos que são estruturalmente dados pelas especi cidades do capitalismo. Do meu ponto de vista, nem os sujeitos modernos com as suas identidades (sexuais) xas nem os indivíduos exíveis pósmodernos podem ser contrapostos uns aos outros, como de algum modo melhores ou piores; sendo formas de sujeito patriarcalmente estruturadas na forma da mercadoria, nem uns nem outros podem deixar de ser denunciados. O novo sujeito forçosamente exível, inapelavelmente exigido pelo capitalismo de casino pós-moderno, não é senão a continuação do sujeito moderno numa forma fragmentada, exigindo uma superação emancipatória tal como antes. Como é sabido, o marxismo tradicional mainstream ignorava por princípio o plano dos símbolos culturais e as dimensões conexas da realidade social. Nesta crítica sem dúvida que os pós-modernos têm razão. Mas a hipostasiação do “cultural” desde os anos oitenta, em estreita conexão com as tendências de individualização pós-modernas, apoia os actuais desenvolvimentos bárbaros e há muito vem impossibilitando a abordagem dos desenvolvimentos económicosociais, a meu ver amargamente necessária justamente na era da globalização. Nestas circunstâncias, tratar-se-á de assumir na elaboração teórica os momentos pertinentes de negação determinada da argumentação culturalista, não enfática nem espectacularmente, pelo contrário, abandonando certa gritaria de mercado culturalista pós-moderna que se ouve por vezes repetidamente em círculos da esquerda pós-moderna contra a “velha esquerda” e o “velho feminismo”.604

Aqui, a teoria crítica frankfurtiana é um ponto de referência crucial para Scholz porque Adorno e Horkheimer denunciam que a razão esclarecida é totalitária, combatendo sempre o não-idêntico, numa busca perene de homogeneizar o mundo num discurso que caiba nos domínios do iluminismo. A diferença, o peculiar, o particular etc. não cabem no idealismo totalizante de uma razão que opera a partir de universais abstratos. A esquerda e o feminismo que prestam homenagens à identidade moderna ou à desconstrução da identidade pela exaltação das diferenças pósmodernas robustecem um espetáculo individualista. O que falta ao diferencialismo, para Scholz, é a capacidade de historicizar os fenômenos culturais, o que causa um prejuízo imenso, qual seja, a recaída, mais uma vez, na metanarrativa de uma “essência social”. Contudo, como o próprio marxismo tende a ontologizar determinadas categorias, como o trabalho abstrato, caindo em arapucas iluministas, a solução, para ela, é pegar o melhor dos dois lados. Decerto que não se pode desprezar por completo a contribuição pós-estruturalista ao tratar das diferenças culturais, nem tomar o mais-valor de modo sexualmente neutro como fazia o velho marxismo. É preciso sustentar a tensão entre o marxismo e o culturalismo, tratando ambos dialeticamente, vigilantemente e criticamente.605 Nesse ponto é que é preciso resgatar a economia política de Marx. É aí que Scholz adere à Wertkritik, porém, desenha uma especi cação de gênero na categoria do valor. Sua visão não é absolutamente nova, mas é única, e temos a convicção de que pode ser uma chave para tantos dilemas das mulheres, e, quiçá, possa abrir as portas para um outro viver. 391 SCHOLZ, Roswitha. “Não digo nada sem a minha alltours: A identidade (masculina) pósmoderna entre a mania da diferenciação e a segurança da teoria marxista vulgar; réplica às críticas à teoria da dissociação-valor”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2010. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz14.htm.htm. Acesso em: 09 jan. 2019. 392 Optamos pela terminologia “debates”, e não propriamente “teorias”, seguindo a sugestão de

Camilo Onoda Caldas (2015, p. 19), pois se, de um lado, a aglutinação de propostas num mesmo bloco teórico pode parecer forçosa quando as compreensões são tão fragmentárias, de outro, podemos agrupar os debates que possuem denominadores comuns. 393 São grandes nomes dessa geração: Margaret Benston, Selma James, Peggy Morton, Mariarosa Dalla Costa, Lise Vogel, Regina Becker-Schmidt, Frigga Haug, Elisabeth Beck-Gernsheim, Nancy Fraser,

Silvia Federici e Angela Davis, entre outras.

394 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 395 Frigga Haug propõe que a terminologia “Marxismo-Feminismo” se refere à inserção da revolução

feminista no interior do marxismo, ao passo que o “feminismo marxista” seria o desa o de converter a teoria em práxis. Os debates dos anos 1970 propuseram a terminologia “marxism-feminism”, por seu caráter teórico, mas inspiram a luta feminista marxista, de modo que não é equívoco tratar a teoria e a militância pela alcunha “feminismo marxista”. cf. HAUG, Frigga. “Historical-Critical Dictionary of Marxism: Marxism-Feminism”. Historical Materialism. Leiden, vol. 24, n. 4, pp. 257-270, 2016. Disponível em https://brill.com/view/journals/hima/24/4/article-p257_13.xml?lang=en. Acesso em 01.05.2019. Há, ainda, o “feminismo materialista”, com autoras como Rosemary Henessy e Christine Delphy. Adotaremos a expressão “feminismo marxista” para nos referirmos a todos os debates alheios à Scholz, ao passo que a “Teoria do valor-clivagem” seria, de outro lado, um marxismo feminista, embora a proposta desse termo já estivesse presente nas autoras do século passado. 396 SCHOLZ, Roswitha. “Crítica da dissociação-valor e teoria crítica”. Revista Exit!: crise e crítica da

sociedade

das mercadorias, Lisboa, 2017b. Disponível em: http://www.obecoonline.org/roswitha_scholz28.htm. Acesso em: 19.01.2019. 397 Por isso, mulheres notáveis, como Clara Zetkin, Sheila Rowbotham, Patrícia Galvão, Frida Kahlo,

Evelyn Reed, Clara Fraser, Chizuko Ueno, Claudia Jones, Vandana Shiva, Maria Mies, entre muitas outras, não foram trazidas para este trabalho. 398 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm . Acesso em: 19.02.2018. 399 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, 2009, p. 36. 400 MORAES, Maria Lygia Quartim de. “Marxismo e feminismo: a nidades e diferenças”. Crítica Marxista, São Paulo: Boitempo, n. 11, 2000, p. 89. 401 Tais institutos marcaram o direito de família brasileiro até recentemente. Pelo Código Civil

brasileiro de 1916, o homem possuía pátrio poder sobre a esposa, o que só foi mitigado pela Lei 4.121, de 1962, o “Estatuto da mulher casada”. A mulher saía do domínio de seu pai apenas para entrar na esfera de domínio (inclusive jurídico) de seu marido. Até a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a posterior edição do Código Civil de 2002, o direito de família brasileiro também concedia ao homem ‘pátrio poder’ sobre os lhos. Ora, com o reconhecimento da igualdade formal entre homens e mulheres (com busca de isonomia material) e dos direitos da infância e juventude, há o novo instituto “poder familiar”, que consiste na educação, proteção, condução e guarda que qualquer responsável legal tem como direito-dever sobre menores sob sua responsabilidade. 402 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, 2009, p. 48. 403 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, 2009, p.55. 404 ENGELS, p. 50.

Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, 2009,

405 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, 2009, p. 54. 406 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Escala, 2009, p.67. 407 MORAES, Maria Lygia Quartim de. “Marxismo e feminismo: a nidades e diferenças”. Crítica Marxista, São Paulo: Boitempo, n. 11, pp. 89-97, 2000. 408 MORAES, Maria Lygia Quartim de. “Marxismo e feminismo: a nidades e diferenças”. Crítica Marxista, São Paulo: Boitempo, n. 11, pp. 89-97, 2000. 409 Como foi, em boa medida, quando pensamos nas papinhas industrializadas para bebês, nas fraldas descartáveis industrializadas, ou até mesmo na compra do trabalho doméstico, mas isso não retirou a especi cação de gênero e de valor dissociado dessas atividades. 410 FEDERICI. Silvia. “Notas sobre gênero em “O Capital” de Marx”. Movimento: crítica, teoria e ação. São Paulo, set. 2017. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2017/09/genero-ocapital-marx-feminismo-marxista/. Acesso em: 20.03.2019. 411 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 54. 412 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004,

p. 71. 413 FEDERICI. Silvia. “Notas sobre gênero em “O Capital” de Marx”. Movimento: crítica, teoria e ação. São Paulo, set. 2017. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/ 2017/09/genero-ocapital-marx-feminismo-marxista/. Acesso em: 20.03.2019. 414 FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. “Capital, força de trabalho e relações de gênero”.

Revista Outubro, n. 29, pp. 23-59, nov. 2017. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wpcontent/uploads/2017/11/02_McNally-e-Ferguson_2017.pdf. Acesso em: 25.02.2019. 415 FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. “Capital, força de trabalho e relações de gênero”. Revista Outubro, n. 29, pp. 23-59, nov. 2017. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wpcontent/uploads/2017/11/02_McNally-e-Ferguson_2017.pdf. Acesso em: 25.02.2019. 416 FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. “Capital, força de trabalho e relações de gênero”.

Revista Outubro, n. 29, pp. 23-59, nov. 2017. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wpcontent/uploads/2017/11/02_McNally-e-Ferguson_2017.pdf. Acesso em: 25.02.2019. 417 FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. “Capital, força de trabalho e relações de gênero”. Revista Outubro, n. 29, pp. 23-59, nov. 2017. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wpcontent/uploads/2017/11/02_McNally-e-Ferguson_2017.pdf. Acesso em: 25.02.2019. 418 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias. Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 419 MITCHELL, Juliet. Woman’s estate. Maryland: Penguin Books, 1971. 420 MITCHELL, Juliet. Woman’s estate. Maryland: Penguin Books, 1971, p. 91.

421 MORAES, Maria Lygia Quartim de. “Marxismo e feminismo: a nidades e diferenças”. Marxista, São Paulo: Boitempo, n. 11, pp. 89-97, 2000, p. 91.

Crítica

422 “Women’s claims have always been presented as reforms. The positions of the left that undoubtedly a rm that they are reformists not only mimic the attitude of bourgeois society, but also seriously underestimate the role of reformism in revolutionary politics. Only when a revolutionary theory and strategy of female oppression that de es ‘democratic’ governments are developed can we decide which issues are reforms and subordinate them to the struggle for freedom and socialism. In the absence of such a strategy, these ‘reforms’ can become the rst stepping stone”. MITCHELL, Juliet. Woman’s estate. Maryland: Penguin Books, 1971, p. 73. [tradução livre]. 423 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias. Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 424 “Calibã e a bruxa apresenta as principais linhas de um projeto de pesquisa sobre as mulheres na ‘transição’ do feudalismo para o capitalismo que iniciei em meados doas anos 1970, em colaboração com a feminista italiana Leopoldina Fortunati. Os primeiros resultados apareceram em um livro que publicamos na Itália em 1984: Il Grande Calibano: Storia del corpo social ribelle nella prima fase del capitale [O grande Calibã: história do corpo social rebelde na primeira fase do grande capital] (Milão, Franco Agneli).” FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p. 16. 425 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p. 26. 426 FEDERICI. Silvia. “Notas sobre gênero em “O Capital” de Marx”. Movimento: crítica, teoria e ação. São Paulo, set. 2017. Disponível em: https://movimentorevista.com.br/2017/09/genero-ocapital-marx-feminismo-marxista/. Acesso em: 20.03.2019. 427 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p. 144. 428 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 145. 429 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 158. 430 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 159. 431 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São

Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante,

Paulo: Elefante, 2017, p. 330. 432 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p. 117. 433 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p. 119. 434 MASCARO, Alysson L; MORFINO, Vittorio. Althusser e o materialismo aleatório. São Paulo: Contracorrente, 2020. 435 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p. 146.

436 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 144. 437 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 197. 438 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 198. 439 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 145. 440 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 172. 441 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 121. 442 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 80. 443 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 262. 444 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 197. 445 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 257. 446 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São 2017, p. 203. 447 FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São

Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante, Paulo: Elefante,

Paulo: Elefante, 2017, p. 294. 448 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 449 Aliás, um construto do mundo antigo bastante anquilosado e de pouca aplicabilidade no mundo contemporâneo, devido ao seu anacronismo, que, no entanto, insiste em ser usado no Direito (Direito público e Direito privado), gerando falsos “problemas” teóricos, como, por exemplo, a classi cação do Direito do Trabalho, que nada agrega à teoria ou à sua aplicação. 450 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 49. 451 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 452 HAUG, Frigga. “Historical-Critical Dictionary of Marxism: Marxism-Feminism”. Historical

Materialism.

Leiden, vol. 24, n. 4, pp. 257-270, 2016. Disponível em https://brill.com/view/journals/hima/24/4/article-p257_13.xml?lang=en. Acesso em 01.05.2019.

453 HAUG, Frigga. “Historical-Critical Dictionary of Marxism: Marxism-Feminism”. Historical Materialism. Leiden, vol. 24, n. 4, pp. 257-270, 2016. Disponível em https://brill.com/view/journals/hima/24/4/article-p257_13.xml?lang=en. Acesso em 01.05.2019. 454 HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniele. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos feministas, n. 1, ano 2, pp. 93-100, 1994. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/viewFile/16291/14832. Acesso em: 30.01.2019. 455 HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniele. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos feministas, n. 1, ano 2, pp. 93-100, 1994. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/viewFile/16291/14832. Acesso em: 30.01.2019. 456 HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniele. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos feministas, n. 1, ano 2, pp. 93-100, 1994. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/viewFile/16291/14832. Acesso em: 30.01.2019. 457 O termo emergiu dos debates sociológicos dos anos 1970, em conjunto com os movimentos

feministas multirraciais, com destaque para o coletivo feminista negro Combahee River, de Boston, fundado por Barbara Smith, que entendia sua experiência de opressão pelo gênero, raça, classe e sexualidade. Tem origem no feminismo negro, mas foi difundido, na seara do Direito, quando a jurista estadunidense Kimberlé Williams Crenshaw publicou, em 1991, uma pesquisa sobre as múltiplas violências vividas pelas mulheres negras nos EUA. Interseccionalidade é uma ferramenta metodológica da sociologia que viabiliza o estudo das múltiplas formas de opressão, violência e discriminação. Para esse modelo sociológico, racismo, sexismo, patriarcalismo, lesbofobia, transfobia etc. se superpõe, formando um todo complexo a ser compreendido. Para as feministas marxistas adeptas ao modelo interseccional, como Angela Davis (2016), a sociedade de classe deve ser compreendida atravessada por essa outras múltiplas formas de opressão: assim, classe, raça e gênero só poderiam ser compreendidos juntos. 458 HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniele. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos feministas, n. 1, ano 2, pp. 93-100, 1994. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/viewFile/16291/14832. Acesso em: 30.01.2019. 459 HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniele. “A classe operária tem dois sexos”. Estudos feministas, n.

1, ano 2, pp. 93-100, 1994. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/viewFile/16291/14832. Acesso em: 30.01.2019. 460 SCHOLZ, Roswitha. “Homo Sacer e Os Ciganos: O Anticiganismo – Re exões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2007. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz7.htm. Acesso em: 02.03.2019. 461 Andreas Urban, por exemplo, usa o valor-clivagem para explicar o ageísmo em nossa sociedade. O mesmo poderia ser feito para fenômenos como o racismo e o capacitismo, por exemplo, desde que com o rigor do método e dos conceitos de Scholz. Cf. URBAN, Andreas. Velhice (envelhecimento) e dissociação-valor: linhas gerais para uma teoria crítica da velhice e do envelhecimento na sociedade produtora de mercadorias. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2018. Disponível em: http://www.obeco-online.org/andreas_urban1.pdf. Acesso em: 02.12.2019. 462 SCHOLZ, Roswitha. “Homo Sacer e Os Ciganos: o Anticiganismo – Re exões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2007. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz7.htm. Acesso em: 02.03.2019.

463 O identitarismo é um fenômeno ideológico que se tornou hegemônico nos movimentos sociais a partir do declínio fordista e o consequente enfraquecimento do movimento operário e sindical. Assim, as mobilizações sociais passaram a priorizar as agendas de determinados grupos étnicos e sociais, em torno da construção de uma ideia de identidade individual, em detrimento da lógica mais abrangente da “classe trabalhadora”. Identidade, enquanto categoria social, sempre haverá, mas o identitarismo é a dissolução da possibilidade de uma compreensão complexa e dialética dos fenômenos na direção de uma perspectiva individualista das vivências e das dores experimentadas por cada pessoa. 464 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 465 O que é bastante delicado, pois a formação das relações raciais no Brasil e nos EUA é muito

diferente, embora ambos os países tenham usado mão de obra de seres humanos negros escravizados no período de acumulação primitiva. 466 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 26. 467 DAVIS, Angela. Mulheres,

raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 26. ias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 468 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016, pp. 17-18. 469 DAVIS, Angela. Mulheres, Boitempo, 2016, p. 17. 470 DAVIS, Angela. Mulheres,

raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo:

raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 29. 471 SCHOLZ, Roswitha. “Homo Sacer e Os Ciganos: o Anticiganismo – Re exões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2007. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz7.htm. Acesso em: 02.03.2019. 472 SCHOLZ, Roswitha. “Homo Sacer e Os Ciganos: o Anticiganismo – Re exões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias. Lisboa, 2007. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz7.htm. Acesso em: 02.03.2019. 473 Note-se que Scholz usa a palavra raça entre aspas, pois se trata de uma construção discursiva feita

pelo desdobramento do Esclarecimento na ciência do século XIX, por meio da Antropologia biológica, que se dedicava a estudar a diferença entre as “raças”. SCHOLZ, Roswitha. “Homo Sacer e Os Ciganos: o Anticiganismo – Re exões sobre uma variante essencial e por isso esquecida do racismo moderno”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2007. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz7.htm. Acesso em: 02.03.2019. 474 No Brasil, o feminismo negro que “entrou na moda” e ganhou ampla projeção midiática é claramente liberal: reivindica que a mulher negra ocupe os mesmos espaços de poder que o homem branco, sem nenhum compromisso em aniquilar os espaços de poder, decorrentes do capitalismo. Os

feminismos negros revolucionários continuam silenciados pela mídia. Não bastasse, temos presenciado, por parte de algumas expoentes liberais do feminismo negro, contundentes ataques ao marxismo, com evidente desconhecimento da literatura marxista e marxiana. Ataques gratuitos à epistemologia marxista (sem conhecimento de seu teor) têm um único propósito: proteger o capitalismo. 475 No Brasil, sempre foi publicado em dois volumes: “Fatos e mitos” (volume um), que faz uma re exão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade e “A experiência vivida” (volume dois), que analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política. A edição pioneira é de 1967, pela “Difusão Europeia do Livro”, com tradução de Sérgio Milliet, que optamos por utilizar neste livro. 476 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 477 Sororidade é um termo constituído no feminismo a partir do vocábulo “sóror”, que signi ca “irmã”, em oposição à consagrada palavra “fraternidade”, que deriva do pre xo latino “frater”, “irmão”. Muito mais que uma conversão de gênero linguístico, o termo faz referência à urgência das mulheres se aliarem, constituírem redes de apoio mútuo, e se verem sempre como associadas e companheiras numa mesma trincheira, jamais como rivais, pois é o machismo que fomenta a competição entre mulheres – uma eterna rixa para ver quem reproduz mais as opressões do patriarcado, da qual só os homens saem vencedores. 478 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 479 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 480 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1980, p. 11. 481 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 17. 482 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. vol. 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 9. 483 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. vol. 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 234. 484 BEAUVOIR, Simone de.

O segundo sexo: a experiência vivida. vol. 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p.120. 485 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 486 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias. Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018.

487 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 488 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 489 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 490 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 491 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 492 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 493 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. vol. 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 500. 494 “Precisamente porque o saber e o conhecimento são sempre determinados por um contexto

histórico-social, condicionados como estão por formas sociais fetichistas que implicam dominação e relações de coacção (outras até à data não são conhecidas), também cam sempre sob a égide do pensamento apologético. Onde o saber é por si saber da dominação, as coisas nem podem ser de outro modo. No sistema produtor de mercadorias da modernidade esta apologética assume a forma da ideologia. Por isso, não basta simplesmente encarar o saber e o conhecimento apenas na sua relatividade (como faz em grande medida o pensamento pós-moderno); antes, e para além disso, esse condicionamento tem de ser sujeito a uma análise crítica da ideologia, sendo esta análise posta em relação com o respectivo processo histórico-social real. Em todo o caso é o que se impõe quando a re exão pretende inserir-se no contexto de uma necessidade emancipatória e crítica da dominação.” KURZ, Robert. “A substância do capital: o trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2005. Disponível em: http://www.obeco-online.org/rkurz203.htm. Acesso em: 13.12.2019. 495 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 496 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 497 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018.

498 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 499 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna

do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 500 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do

patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 501 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias. Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 502 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 503 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 504 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 505 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 506 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 507 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 508 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 509 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 510 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 511 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018.

512 “(…) por ello no sólo resulta inútil la asunción del deber de deconstruir el dualismo de género moderno por parte de los movimientos Queer, cuya teórica de referencia clásica es Judith Butler, sino también muy cuestionable. Estos movimientos consideran que la subversión interna del dualismo de género burgués a través de prácticas paródicas repetitivas, como se pueden encontrar en las subculturas gay y lésbica, ofrece una posibilidad de desacreditar radicalmente la identidad sexual moderna. Sin embargo el problema es que aquí la caricaturización desacredita algo que en sentido capitalista ya se ha vuelto obsoleto. Hace ya tiempo que se han producido “deconstrucciones reales”, observables por ejemplo en la “doble socialización”de las mujeres, pero también en el vestir y en el comportamiento de hombres y mujeres, etc., sin que por ello haya desaparecido la jerarquía de género. En lugar de cuestionar las concepciones degénero clásicamente modernas Y las postmodernas modi cadas o exibilizadas, Butler se limita a con rmar la mala realidad postmoderna (de los géneros). De modo que la concepción culturalista de Butler no da respuesta alguna a las cuestiones actuales, sino que más bien su gesto progresista presenta como solución el auténtico problema de las relaciones de género jerárquicas en la postmodernidad problema que también se muestra en la mujer (pseudo)hermafrodita. Entretanto se intenta enriquecer la Queer Theory con una perspectiva material, especialmente en el sentido de una dimensión de cuidados. En mi opinión esto no supone ningún avance. No se trata de entremezclar de manera aparentemente sencilla ambos planteamientos; más bien habría que plantear todo el análisis desde un nuevo fundamento, esto es, desde la teoría de la escisión del valor, que también permite una crítica de la denominada heteronormatividad y permite descifrar lo queer como una reelaboración de la contradicción adaptada al capitalismo y que no rebasa su inmanencia. A veces se tiene la impresión de que en estos círculos las identidades transgénero casi se confunden con la realización del ideal del “hombre nuevo”. Sin embargo, es de suponer que esto no tiene tanto que ver con esas identidades y con las discriminaciones correspondientes como con los intereses mismos de una cultura del dominio hetero que ha cambiado de orientación.” SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. (Tradução livre). Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 513 Os idiomas, como o português, são machistas e exionam a palavra “todos” sempre no masculino

para se referir a um grupo de pessoas, desconsiderando a presença das mulheres. Por isso, as feministas, a rmando a necessidade de repensar a língua como um instrumento de perpetuação das opressões, passaram a sempre usar “todas e todos” para se referir a uma coletividade. O queer, porém, que propõe o m do binarismo, utiliza expressões arti ciais sem marcação de gênero, inexistentes no português, como ferramenta de militância: na língua escrita, é usual encontrarmos tod@s, todxs; mas é mais adotado o todes, por ser possível também na língua falada. Isso vale para qualquer outro plural. 514 O vocábulo da língua inglesa “queer” pode ser traduzido mais proximamente para o português

como “insólito”. No interior da proposição aqui tratada, ganha o sentido de “excêntrico” para abarcar toda e qualquer identidade de gênero, afetividade e sexualidade que não corresponda ao binarismo de gênero e à heterossexualidade. 515 LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Coord.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, pp. 206-242. 516 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato

Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 59. Grifo da autora. 517 LAURETIS, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Coord.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.

207. 518 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 23. 519 Abstinência sexual voluntária.

520 Apaixonamento por objetos inanimados. É fundamental marcar que nenhum desses movimentos ou teorias aceita a pedo lia, a zoo lia e a necro lia, pois se trata de violações seríssimas a bens jurídicos alheios, com graves impactos psicológicos e imensos danos sociais. Qualquer discurso que promova essa falácia de que os movimentos LGBTQ fomentam ou são coniventes com essas violações é mentiroso e perverso. 521 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 25. 522 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 37. 523 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 195. 524 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 198. Grifos da autora. 525 As teorias diferencialistas de gênero propuseram esse novo vocábulo, em substituição ao

estigmatizado “hermafroditismo”, para que não se patologize mais essa condição, e não se obrigue a pessoas intersexual a corresponder a um dos gêneros escolhido arbitrariamente pelos pais desde a infância. 526 Geralmente, homem cisgênero que se veste com roupas, maquiagens e acessórios do vestuário feminino, hiperbolizando os aspectos estéticos da feminilidade, e se apresenta artisticamente com um alter ego “queen” (rainha). Na perspectiva queer, nada impede que a arte “drag queen” seja desempenhada por homens trans ou mulheres (trans ou cis). 527 Geralmente, mulher cisgênero que se veste com roupas, maquiagens e acessórios do vestuário masculino, hiperbolizando os aspectos estéticos da masculinidade, e se apresenta artisticamente com um alter ego “king” (rei). Na perspectiva queer, nada impede que a arte “drag king” seja desempenhada por mulheres trans ou homens (trans ou cis). 528 Cross-dressing é um termo que se refere ao ato de alguém (o cross-dresser) se vestir com roupas ou

usar objetos culturalmente associados ao sexo oposto, por isso, é típico de pessoas cisgênero. O crossdresser não se apresenta artisticamente; essa atividade costuma ser privada, destinada à satisfação psíquica e/ou sexual, mas não se relaciona com a homossexualidade. 529 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 530 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”.

Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 531 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018.

532 (SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 533 A crítica de Scholz ca ainda mais cristalina se pensarmos nos novos nichos de mercado criados a

partir dos desconstrutivismos “queer”. Desde reality shows que geram inúmeros dividendos em anúncios e produtos associados (como o “RuPaul’s drag race”, por exemplo), até processos de gentri cação imobiliária, grifes, agências de viagens e clínicas de fertilização in vitro especializadas no público gay, a valoração do valor apenas tem se apropriado dessas novas “performances” para se valorizar. A exploração do tema pela indústria cultural é vasta, e a vinculação de publicidade voltada ao público queer gerou a popular expressão de que o mercado está em busca de pink money. No Brasil, podemos citar o exemplo de uma nova música pupular queer representada por ícones como Pablo Vittar, Liniker, Gloria Groove e Linn da Quebrada, e atrizes como Glamour Garcia e Nany People, por exemplo, que têm espaço em grandes veículos de comunicação que foram cruciais para o golpe contra Dilma Rousse , a prisão de Lula, a consequente hecatombe política e social, bem como o m dos direitos trabalhistas e previdenciários no país. A incorporação dessas guras na grande mídia é extremamente festejada pela comunidade LGBTQ, embora, do ponto de vista dos dados concretos, não haja pesquisas comprovando que a “representatividade” reduz os índices de violência concreta, uma vez que o Brasil é o país onde mais se mata pessoas LGBT (https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-homossexuais-nomundo). Cabe mencionar que, nas eleições de 2018, a população brasileira elegeu à Presidência da República um candidato declaradamente contrário aos direitos lgbt e às reivindicaçãoes dos movimentos feministas, seguindo o exemplo de Donald Trump nos EUA, enquanto as imagens “empoderadas”, representativas e “lacradoras” eram exaustivamente veiculadas midiaticamente. 534 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 535 A representatividade é outro tema delicado, pois, em nenhum momento, a perspectiva marxista,

nossa, de Scholz, ou qualquer outra, será contra a participação de mulheres brancas, mulheres negras, pessoas LGBTQ, pessoas com de ciência etc. em qualquer aparato da indústria cultural, do Estado, ou das empresas. Obviamente, é bom e importante que todas as pessoas tenham oportunidade para se autodeterminar e estar em todos os espaços, e que as crianças vislumbrem a possibilidade de ser o que quiserem, mirando exemplos. E é claro que, se até meados do século XX, esses espaços eram apenas dos homens cis-hetero brancos e sem de ciência, é um avanço que esse exclusivismo excludente esteja sendo mitigado. A grande questão é que isso não emancipa nenhum dos grupos que essas pessoas individuais “representam”, ainda mais porque se trata de uma representatividade meramente estética, que nem exige um posicionamento militante da gura representativa. Para carmos com exemplos brasileiros, chegaríamos ao ponto de dizer que Maju Coutinho representa todas as mulheres negras, Fernanda Gentil representa todas as mulheres lésbicas e Cármen Lúcia representa todas as mulheres brancas, e seu “empoderamento”. Do ponto de vista psíquico, certamente tem um impacto e pode contribuir para a autoestima de algumas pessoas, mas de maneira alguma causa o mínimo abalo nas estruturas que suportam o racismo, a misoginia, a lesbofobia e o patriarcado. Os movimentos sociais que se pautam, exclusivamente, pela representatividade estão infantilizados. 536 Estamos nos tornando uma sociedade de mulheres (lésbicas ou hetero) que não se depilam, não usam salto alto, saias, nem maquiagem, e permanecem trabalhando em duplas jornadas (uma na formavalor, ainda que em postos de liderança, e outra em casa, no valor clivado), ou que terceirizam as

atividades domésticas a outra mulher (negra, pobre e excluída) em relações de trabalho precarizadas, e de homens hetero “em desconstrução de seu machismo” desempregados que fazem tarefas domésticas e trabalham sazonalmente em “home o ce” quando aparecem “jobs” esporádicos, enquanto pessoas queer, sem marcação de gênero ou trans entregam nossas refeições do “ifood” e nos conduzem de “uber”, ao passo que homens gays chiquérrimos comandam o capitalismo de cassino no mercado nanceiro; e os pós-modernismos pós-estruturalistas continuam acreditando que isso é emancipação. Acreditamos que não. 537 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 538 BUTLER, Judith. Problemas

de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 201. Grifos da autora. 539 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 540 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones

de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 541 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias. Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. Grifo da autora. 542 Gíria utilizada para se referir aos valores provenientes do consumo da “comunidade LGBT”.

543 “La palabra feminismo designa, en efecto, distintas cosas. Por un lado, hace referencia a la serie de movimientos sociales, encabezados principalmente por mujeres, cuya nalidad primordial ha sido conseguir que las mujeres obtengan un estatus — jurídico, económico, político, psicológico y social — de igualdad respecto de los hombres y hacer visible la situación de subordinación en la que se encuentran dentro de la sociedad. Movimientos como las manifestaciones por el derecho a decidir de las mujeres el número de hijos e hijas que quieren tener son un ejemplo de lo que feminismo en esta acepción quiere decir. Por otro lado, engloba a las distintas teorías que se han desarrollado para explicar la posición de desventaja de las mujeres respecto de los hombres, sus orígenes y consecuencias (…) Feminismo también hace referencia a una postura política. Esta acepción se vincula mucho a la de los movimientos sociales, pero hace. referencia a la actitud o conjunto de creencias que dan lugar a dichos movimientos. El feminismo como postura política persigue la igualdad de derechos — en todas las esferas — entre hombres y mujeres.” MACCISE, Regina L. “Feminismo(s), perspectiva de género y teorías jurídicas feministas”. Revista Derecho en Libertad, Facultad Libre de Derecho de Monterrey, pp. 132-157, jul. 2011.(Tradução livre). Disponível em: https://www.apmj.pt/images/documentos/pdfteoriafeminista/Feminismo(S)_Perspectiva_de_Genero_ y_Teorias_Juridicas_Feministas.pdf. Acesso em: 23.12.2017. 544 HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha, Lei com nome de mulher: (violência doméstica e familiar) – considerações à Lei n. 11.340/2006: comentada artigo por artigo. Campinas: Servanda, 2008, p. 68. 545 CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no Direito

Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 174.

546 Optamos por não tratar especi camente dos movimentos feministas brasileiros.

547 TRUDELL, Megan. “As mulheres de 1917: especial revolução russa”. Blog da Boitempo. São Paulo: 2017. Disponível em https://blogdaboitempo.com.br/2017/06/14/as-mulheres-de-1917especial-revolucao-russa/. Acesso em: 10.02.2018. 548 TRUDELL, Megan. “As mulheres de 1917: especial revolução russa”. Blog da Boitempo. São Paulo: 2017. Disponível em https://blogdaboitempo.com.br/2017/06/14/as-mulheres-de-1917especial-revolucao-russa/. Acesso em: 10.02.2018. 549 TRUDELL, Megan. “As mulheres de 1917: especial revolução russa”. Blog da Boitempo. São Paulo: 2017. Disponível em https://blogdaboitempo.com.br/2017/06/14/as-mulheres-de-1917especial-revolucao-russa/. Acesso em: 10.02.2018. 550 TRUDELL, Megan. “As mulheres de 1917: especial revolução russa”. Blog da Boitempo. São Paulo: 2017. Disponível em https://blogdaboitempo.com.br/2017/06/14/as-mulheres-de-1917especial-revolucao-russa/. Acesso em: 10.02.2018. 551 COSTA, Luna. “Revolução Russa: a revolução das mulheres”. Blog Marielle Franco, 2017. Disponível em: https://www.mariellefranco.com.br/blog/revolucao-russa-a-revolucao-das-mulheres. Acesso em 22.02.2019. Grifos da autora. 552 HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, p. 306. 553 “Podría decirse, em el extremo, que hasta la década de los sesenta el siglo XX parecía dominado y

caracterizado por las movilizaciones anticoloniales. Desde los setenta, en cambio, adquirem resonancia y projección las luchas de la mujer com teoría de género y los movimientos ecologistas (…) la vivencia de la opresión de género em la relación de pareja y de família ayudó a descodi car el mundo imperante como un orden generalizado de violaciones e violencias. La dominación patriarcal y masculina agredía desde luego a las mujeres en él ámbito ‘íntimo’ del hogar (…) Internalizado el patriarcado por mayorías femeninas (…) hacia verse desde fuera de sí mismas a las mujeres, las llevaba a torturarse, a buscar transformarse (o al menos pretenderlo) en objeto de seducción, de ‘encantamiento’. La raíz libidinal de la violencia y sujeción resultó tal vez más vistosa que la tercermundista para trizar la cultura falsamente universalista de patriarcas, varones e corporaciones, pero sin conseguir vincularla decisivamente con la dominación geopolítica y económica” GALLARDO, Helio. Teoría Crítica: matriz y possibilidad de derechos humanos. Cartagena: F. Gómez, 2005, p. 43. 554 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias. Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 555 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 556 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 557 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm. Acesso em: 19.02.2018. 558 KURZ, Robert. Razão sangrenta: ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais. Tradução de Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2010a, p. 53.

559 O que tem o seguinte efeito lógico e perverso: as mulheres que chegam a ocupar altas posições no

mercado e na política acabam por ser pessoas reprodutoras do machismo e do patriarcado, assim como entusiastas do modo de produção e sua superestrutura. Ou seja, as mulheres que chegam ao topo, em esmagadora maioria, estão comprometidas com a conservação das desigualdades. 560 KURZ, Robert. “Virtudes femininas: a crise do feminismo e a gestão pós-moderna”. Revista

Exit!:

crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz42.htm. Acesso em: 06.11.2016. 561 SCHOLZ, Roswitha. “El patriarcado productor de mercancías: tesis sobre capitalismo y relaciones de género”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, Madrid, vol. 1, n. 5, pp. 44-60, dez. 2013. Disponível em: http://constelaciones-rtc.net/article/view/815/869. Acesso em: 14.01.2019. 562 Organizações de feminismo radical, que acreditam haver uma “guerra contra as mulheres”, para

sua subjugação, a negação da sua humanidade, e sua conversão em objeto de uso dos homens. Homepages dos grupos radicais disponíveis em http://radfem.org/ e http://femen.org/>. Acesso em 13 abr.2016; 563 Exemplo signi cativo é a “Marcha das Vadias” (SlutWalk), que surgiu em Toronto em 2011 e se espalhou por todos os continentes, fomentando reações sociais e estatais. 564 Trata-se de uma gíria usada pela comunidade LGBTQ brasileira para designar uma atitude admirável e avassaladora. Tornou-se um modo de vida e de expressão, e também de uma estratégia de militância, que consiste em romper com as tradições do binarismo heteronormativo e chocar a sociedade conservadora. 565 GOLDMAN, Emma. “A tragédia de emancipação feminina”. São Paulo, Le Monde Diplomatique

Brasil, 2011. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-tragedia-da- emancipacao-feminina/. Acesso em: 19.02.2019. 566 GOLDMAN, Emma. “A tragédia de emancipação feminina”. São Paulo, Le Monde Diplomatique Brasil, 2011. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-tragedia-da- emancipacao-feminina/. Acesso em: 19.02.2019. 567 GOLDMAN, Emma. “A tragédia de emancipação feminina”. São Paulo, Le Monde Diplomatique

Brasil, 2011. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-tragedia-da- emancipacao-feminina/.

Acesso em: 19.02.2019. 568 KOLLONTAI, Aleksandra. “O dia da mulher”. Blog da Boitempo, São Paulo, 2017. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/03/08/aleksandra-kollontai-o-dia-da-mulher/. Acesso em: 08.03.2018. 569 Somente para carmos com exemplos brasileiros, basta veri carmos a atuação das ministras do Supremo Tribunal Federal e da ex-Procuradora Geral da República conivente com o golpe contra Rousse . 570 HOLMSTROM, Nancy. “Rosa Luxemburg: a legacy for feminists?” In: EHMSEN, Stefanie; SCHARENBERG, Albert (Coord.). RosarRemix. New York: Rosa Luxemburg Stiftung, 2016, pp. 3236. Disponível em: http://www.rosalux-nyc.org/wp-content/ les_mf/rosa_remixtxt_web.pdf. Acesso em: 31.01.2019. 571 HOLMSTROM, Nancy. “Rosa Luxemburg: a legacy for feminists?” In: EHMSEN, Stefanie;

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Disponível em: http://www.rosalux-nyc.org/wp-content/ les_mf/rosa_remixtxt_web.pdf. Acesso em: 31.01.2019. 572 HOLMSTROM, Nancy. “Rosa Luxemburg: a legacy for feminists?” In: EHMSEN, Stefanie;

SCHARENBERG, Albert (Coord.). Rosa remix. New York: Rosa Luxemburg Stiftung, 2016, pp. 32-36. Disponível em: http://www.rosalux-nyc.org/wp-content/ les_mf/rosa_remixtxt_web.pdf. Acesso em: 31.01.2019. 573 HOLMSTROM, Nancy. “Rosa Luxemburg: a legacy for feminists?” In: EHMSEN, Stefanie; SCHARENBERG, Albert (Coord.). Rosa remix. New York: Rosa Luxemburg Stiftung, 2016, pp. 32-36. Disponível em: http://www.rosalux-nyc.org/wp-content/ les_mf/rosa_remixtxt_web.pdf. Acesso em: 31.01.2019. 574 LOURO, Guacira Lopes. “Epistemologia feminista e teorização social – desa os, subversões e

alianças”. In: ADELMAN, Miriam; SILVESTRIN, Celsi Brönstrup (Coord.). Coletânea Gênero Plural. Curitiba: UFPR, 2002. pp. 11-22. 575 LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. “A construção cultural do gênero e a desconstrução dos sustentáculos da discriminação: uma concepção feminista pós-estruturalista para efetivação dos direitos da humana”. In: BORGES, Paulo César Corrêa (Coord.). Marcadores sociais da diferença e repressão penal. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. pp. 79-80. 576 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 577 KURZ, Robert. “Crise e Crítica: o limite interno do capital e as fases do de nhamento do marxismo”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2012. Disponível em: http://obeco.no.sapo.pt/rkurz409.htm. Acesso em: 06.11.2017. (KURZ, 2012). 578 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 579 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre

os sexos”. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, jul. 1996. 580 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 581 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do

patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 582 FRASER, Nancy. “Nancy Fraser: um feminismo para abolir as hierarquias”. Dossiê feminismo e

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New Left Review, jul/ago. 2016. Disponível em: https://newleftreview.org/issues/II100/articles/nancy-fraser-contradictions-of-capitaland-care. Acesso em: 09.03.2019. 584 FRASER, Nancy. “Contractions of Capital and Care”. New Left Review, jul/ago. 2016. Disponível em: https://newleftreview.org/issues/II100/articles/nancy-fraser-contradictions-of-capital-

and-care. Acesso em: 09.03.2019. 585 ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. manifesto. Trad. de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019. 586 ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy.

Feminismo para os 99%: um Feminismo para os 99%: um

manifesto. Trad. de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 102. 587 ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo

para os 99%: um

manifesto. Trad. de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 123. 588 “The argument is not simply that some women are not beautiful, therefore it is not fair to judge women on the basis of physical beauty; or that men are not judged on that basis, therefore women also should not be judged on that basis; or that men should look for character in women; or that our standards of beauty are too parochial in and of themselves; or even that judging women according to their conformity to a standard of beauty serves to make them into products, chattels, di ering from the farmer’s favorite cow only in terms of literal form. The issue at stake is di erent, and crucial. Standards of beauty describe in precise terms the relationship that an individual will have to her own body. They prescribe her mobility, spontaneity, posture, gait, the uses to which she can put her body. They de ne precisely the dimensions of her physical freedom. And, of course, the relationship between physical freedom and psychological development, intellectual possibility, and creative potential is an umbilical one”. DWORKIN, Andrea. Woman hating. New York: Penguin Books, 1974, p. 113. 589 No Brasil, basta observar os discursos acéfalos e bestializados de apoiadores do então candidato eleito à Presidência da República em 2018, quando os movimentos de mulheres chamaram os atos “Ele não” contra tal candidatura. 590 “The discovery is, of course, that “man” and “woman” are ctions, caricatures, cultural constructs. As models they are reductive, totalitarian, inappropriate to human becoming. As roles they are static, demeaning to the female, dead-ended for male and female both. Culture as we know it legislates those ctive roles as normalcy. Deviations from sanctioned, sacred behavior are “gender disorders,” “criminality,” as well as “sick,” “disgusting,” and “immoral.” Heterosexuality, which is properly de ned as the ritualized behavior built on polar role de nition, and the social institutions related to it (marriage, the family, the Church, ad in nitum) are “human nature.” Homosexuality, transsexuality, incest, and bestiality persist as the “perversions” of this “human nature” we presume to know so much about. They persist despite the overwhelming forces marshaled against them— discriminatory laws and social practices, ostracism, active persecution by the state and other organs of the culture—as inexplicable embarrassments, as odious examples of “ lth” and/or “maladjustment”. DWORKIN, Andrea. Woman hating. New York: Penguin Books, 1974, p. 174. 591 “I have de ned heterosexuality as the ritualized behavior built on polar role de nition. Intercourse with men as we know them is increasingly impossible. It requires an aborting of creativity and strength, a refusal of responsibility and freedom: a bitter personal death. It means remaining the victim, forever annihilating all self-respect. It means acting out the female role, incorporating the masochism, self-hatred, and passivity which are central to it. Unambiguous conventional heterosexual behavior is the worst betrayal of our common humanity”. (Tradução livre). DWORKIN, Andrea. Woman hating. New York: Penguin Books, 1974, p. 184. 592 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016.

593 De nição da identidade “trans” extraída do “espectro internacional. Disponível em https://internationalspectrum.umich.edu/global/worldwideorgs. Acesso em 13.04.2018. 594 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 595 SCHOLZ, Roswitha. “Simone de Beauvoir hoje”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das

mercadorias, Lisboa, 2011a. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz16.htm.

Acesso em: 19.02.2018. 596 HOOKS, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, 2015, pp. 193-210. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0103-33522015000200 193&lng =pt&nrm=iso. Acesso em: 30.01.2019. 597 HOOKS, Bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência

Política, Brasília, n. 16, 2015, pp. 193-210. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0103-33522015000200 193&lng =pt&nrm=iso. Acesso em: 30.01.2019. p. 208. 598 Outras autoras como Audre Lorde, Lélia Gonzalez, Linda Alco e Patrícia Hill Collins são inspirações importantes para a construção do “local de fala” pelos movimentos sociais. 599 HOOKS, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência

Política, Brasília, n. 16, 2015, pp. 193-210. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=S0103-33522015000200 193&lng =pt&nrm=iso. Acesso em: 30.01.2019. 600 SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre

os sexos”. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, ed. 45, vol. 2, pp. 15-36, jul. 1996. 601 SCHOLZ, Roswitha. “O tabu da abstracção no feminismo: como se esquece o universal do patriarcado produtor de mercadorias”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias. Lisboa, 2011b. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz15.htm. Acesso em: 19.02.2018. 602 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias. Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 603 O Brasil de 2019 é a demonstração mais emblemática dessa advertência de Scholz.

604 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016. 605 SCHOLZ, Roswitha. “O Sexo do Capitalismo: Teorias Feministas e Metamorfose Pós-Moderna do Patriarcado (Excertos)”. Revista Exit!: crise e crítica da sociedade das mercadorias, Lisboa, 2000. Disponível em: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz6.htm. Acesso em: 29.02.2016.

CONCLUSÃO O pensamento de Roswitha Scholz inicia seu período de maior fertilidade a partir da fundação do grupo Krisis, do qual fez parte até ser expulsa em 2004. Esse coletivo de intelectuais alemães estava reunido em torno da releitura da maior obra da maturidade de Marx, O capital, em paralelo com os textos de Moishe Postone, dando origem à Wertkritik, a “Nova Crítica do Valor”, a partir da década de 1980, mesmo período no qual os debates sobre a derivação do Estado já se encontravam avançados na própria Alemanha e na Inglaterra. Esse foi o período histórico no qual o modelo de “Estado de bem-estar”, que prometia a possibilidade de um capitalismo “mais humano”, com um Estado capaz de distribuir a riqueza através de arrecadação tributária progressiva e de políticas públicas de promoção da igualdade, de inclusão dos excluídos, chegou ao m. Desde o término da Segunda Guerra Mundial, o mundo ocidental experimentara uma con guração ímpar na relação entre o Estado e o capital que, supostamente, havia superado a “selvageria” da acumulação liberal, com signi cativa expansão de direitos coletivos, a começar pelos trabalhistas e previdenciários, até culminar na conversão do Estado na promessa de um grande realizador de direitos sociais, que promoveria educação, saúde, transporte, lazer, cultura, segurança, desporto e preservação ambiental, através do Direito e das políticas públicas. Além disso, paripassu com uma estrutura produtiva fordista, esse Estado fomentaria o desenvolvimento econômico através de políticas keynesianas, sempre marcado pela não ortodoxia econômica liberal. Porém, de repente, as crises da Alemanha e da Inglaterra na década de 1970, o rompimento de Richard Nixon com o acordo de Bretton Woods e o m da União Soviética (que também era dependente desse regime de acumulação fordista, sem nunca ter rompido com a lógica produtiva capitalista centrada no trabalho abstrato) evidenciaram que a

socialdemocracia, o capitalismo controlado (incluindo o capitalismo de Estado soviético) e o Welfare State estavam acabados. Ficou claro que não existe “capitalismo selvagem”, com a possibilidade de um “capitalismo domesticado” (ou “capitalismo humanizado”) – é sempre capitalismo (e o capitalismo é desumano). Por isso, ao mesmo tempo em que os autores e autoras dos debates da derivação retomavam Louis Althusser e Evguiéni Pachukanis para compreender a relação do Estado e do Direito para com o modo de produção, a Wertkritik dedicava-se a reler Marx, a m de demonstrar que o problema crucial do capital não se encontra nas estratégias de (re)distribuição, mas nas próprias formas abstratas que estruturam a produção, cuja culminância é o valor. Somente por essas razões, já seria imensamente relevante uma tese que intenta compreender os limites do Estado e do Direito nesta sociedade produtora de mercadorias. Neste ponto, é evidente que a principal conclusão deste trabalho é a de que não há outra possibilidade para a forma política e para a forma jurídica, enquanto derivadas das formas econômicas, além de uma eterna subserviência ao capital, sem receio de a rmarmos que qualquer percepção fora disso é mera ilusão. O capitalismo é homem. O Estado é homem. O Direito é homem. Adotando as ideias de Roswitha Scholz, concluímos que jamais haverá verdadeira emancipação das mulheres por meio da positivação de direitos e da tutela estatal, por uma questão lógica de que, estruturalmente, direito e Estados foram projetados para reproduzir um valor masculino. Destarte, nossa primeira tese conclusiva é a de que a forma jurídica (principal instrumento de regulação da forma política – também derivada da forma mercantil – para se adaptar aos novos regimes de acumulação capitalista pós-crises) é derivada da forma valor, que é exclusivamente masculina. A forma jurídica não tem relação com o valor dissociado, ou seja, com o feminino expurgado da forma do valor (atrelada ao trabalho abstrato). Por isso, o Estado e o Direito são misóginos em sua forma. Nessa toada, este trabalho suplanta a crítica marxista ao Estado e ao Direito, porque ele não é apenas marxista, pachukaniano e derivacionista – esta é, acima de tudo, uma tese feminista. É por isso que nosso grande referencial teórico é a alemã

Roswitha Scholz, que foi bem além do que os debates da derivação e a crítica do valor fundamental foram capazes de enxergar: Scholz demonstra que, de mais a mais, o valor é masculino e o capitalismo é patriarcal. Por isso, concluímos que o Estado e o Direito também o são. Embora seja patente que as mulheres tenham alcançado o reconhecimento formal de sua subjetividade jurídica na sociedade burguesa, que se fez acompanhar pela positivação de múltiplos direitos ao longo do século XX, nas cartas internacionais e nos ordenamentos jurídicos nacionais, a assimetria objetiva entre homens e mulheres remanesce. A modernidade negou a subjetividade à mulher, indo buscar fundamento em discursos biologistas, afeitos à razão, pois já não mais se podia a rmar que a mulher era um ser inferior pela vontade de deus, porque a racionalidade moderna não comporta outras miti cações que não a de si mesma, e, de algum modo, precisava sustentar as teias sociais construídas pela fantasmagoria da religiosidade, enquanto interessantes para a manutenção de estruturas concentradas de poder, de acordo com os interesses do capital. Mas assim que pôde exibilizar a dicotomização de gêneros, a própria metanarrativa da razão autorizou mesclagens e reacoplagens ao longo do tempo, que passaram, inclusive, pela forma jurídica e pela forma política. Se as mulheres conquistaram direito ao voto, ao trabalho assalariado regulamentado, aos negócios jurídicos etc. foi no mesmo sentido em que conquistaram o direito de poderem usar calças, cortar os cabelos, beber álcool ou morar sozinhas. Tudo isso só foi tolerado no momento em que contribuiu para a valorização do valor. Vimos, segundo Scholz, que os debates teóricos e os movimentos sociais feministas abandonaram a epistemologia marxista desde meados dos 1980, e se a liaram a um culturalismo diferencialista, que só faz alimentar o individualismo. Nesse período, em que o Welfare State morria para dar lugar ao neoliberalismo, e a produção taylorista/fordista era substituída pelo toyotismo, enquanto os marxistas se dedicavam a estudar mais a fundo as determinações estruturais do processo produtivo, do Estado (e do Direito), as feministas abandonavam o marxismo, para fazer um jogo identitário absolutamente propício ao regime de acumulação neoliberal então insurgente. O feminismo (que se convertia em “discussões de gênero”) ia na contramão das críticas radicais de um mundo em escombros.

A pós-modernidade, caracterizada pelo esfacelamento de todas as promessas modernas liberais, e pela morte das promessas do século XX, colocou a esquerda diante do desa o de refazer seus diagnósticos. Temos, então, a perspectiva de retomada da luta revolucionária, que não convive com as liberdades e formas democráticas liberais, e, em contraponto, uma esquerda (neo)liberal, que não aceita abrir mão desses elementos, como se fossem “conquistas históricas” da classe trabalhadora também. Ocorre que as duas perspectivas estavam (e ainda estão) equivocadas. Os derivacionistas observaram que nem mesmo Estado soviético havia rompido com a forma política derivada da forma mercantil, e que o Estado de bemestar só havia sido possível porque foi necessário ao regime de acumulação fordista. Em paralelo, a Wertkritik demonstrou que tanto a política econômica stalinista quanto o keynesianismo eram apenas recon gurações do valor que haviam chegado ao seu limite, para dar lugar ao capitalismo de cassino na acumulação pós-fordista, acompanhado pelo Estado de regulação neoliberal. Assim, sob a ótica marxista da crítica do valor, nem o marxismo tradicional nem a “esquerda democrática” apresentam saídas viáveis, as quais, aliás, já foram oportunas ao capital e experienciadas no século XX, mas se tornaram obsoletas. Por incrível que pareça, hoje, ser socialdemocrata é tão anacrônico quanto ser stalinista. Ambas as perspectivas são inócuas para promover a emancipação e estão historicamente superadas. Sabemos que quem se recusa a reconhecer isso se contorcerá ao ler este livro, mas advertimos que nossa coerência epistemológica no trato dos referenciais teóricos, ao longo de todo o trabalho, valida-o cienti camente, independente dos incômodos que possa gerar. E assinalamos que nossa intenção é fortalecer a luta anticapitalista, e não repreender as militâncias com a arrogância de quem detém a verdade, pois isso não existe. Tudo é dialético. Então, no m do século XX, o marxismo teórico voltou a se radicalizar, não no sentido de uma radicalidade bolchevique, e sim com uma leitura totalmente nova no interior da economia política metodologicamente rigorosa, e em suas relações de derivação com outras formas da sociabilidade capitalista. Esses referenciais que alicerçam esta tese, quais sejam, a crítica do valor e os debates da derivação do Direito e do Estado, trazem uma radicalidade nunca vista no marxismo e na esquerda em geral antes dos anos

1980, e dialogam muito tranquilamente entre si, apesar de algumas divergências pontuais que não foram objeto deste trabalho. No entanto, a esse despeito, os feminismos, no mesmo período de ascensão neoliberal, passaram a caminhar num sentido diametralmente oposto ao dessa radicalidade marxista, estonteados pelo derretimento pós-moderno de todas as certezas. Na contramão, têm corrido, até hoje, na direção de enganos que podem afastar, cada vez mais, as mulheres de uma possibilidade concreta de emancipação, e conduzir os movimentos LGBT à advocacia do “capitalismo rosa”. Ao notar esse imenso equívoco, Roswitha Scholz passou a dedicar toda a sua vida a incluir a questão de gênero nos diagnósticos lúcidos e radicais da nova crítica do valor, os quais, do nosso ponto de vista, são absolutamente congruentes com os debates da derivação, e também servem para explicar os fenômenos políticos e jurídicos da contemporaneidade. Ocorre que, ao se imiscuir nessa empreitada, Scholz tem implodido tantas convicções em tantas sendas distintas, que passou a ser persona non grata em todos os matizes da direita, bem como no feminismo, no marxismo, nos movimentos LGBTQ, na esquerda revolucionária, e na esquerda democrática. Foi, então, alijada num ostracismo perverso, sem o merecido reconhecimento do brilhantismo de suas proposições. Por isso, seu estudo é praticamente inédito no Brasil, assim como em vários lugares do mundo. Scholz é uma autora marginal e “maldita”. Tanto é que, mesmo nos círculos da esquerda mais atualizada com as produções teóricas do marxismo, seu nome é desconhecido, inclusive, entre intelectuais que conhecem a obra de Robert Kurz, o que torna ainda mais evidente se tratar mesmo de uma “questão de gênero”, uma vez que Kurz a acompanhou na saída da Krisis e na incorporação da dissociação à compreensão do valor. Obviamente que, ao trazer Scholz para os holofotes do marxismo brasileiro, e, especialmente, para re nar a crítica ao Estado e ao Direito, este livro será herdeiro dessa maldição; por isso, a verdadeira radicalidade requer coragem, uma coragem da qual só as mulheres são capazes, devido ao enfrentamento diuturno de todas as barreiras que reiteram nosso não-pertencimento aos espaços nãoclivados do valor, entre eles, certamente, a intelectualidade (também a marxista). Por isso, zemos questão de incluir nesta obra a narrativa do episódio de expulsão de Roswitha Scholz da Revista Krisis.

O expurgo de Scholz do grupo original da Wertkritik, do qual era cofundadora, denota o quanto a presença de mulheres audazes é indigesta ao marxismo, que (por mais paradoxal que isso pareça) é uma tradição teórica majoritariamente masculina (branca, ocidental e europeia). Porém, o maior incômodo gerado por Roswitha deve-se ao que escreve, vez que sua proposta de uma especi cação sexual em categorias abstratas supostamente neutras abala todas as fundações iluministas que conformam o pensamento contemporâneo, incluindo aquele que se pretende crítico, dialético e antiliberal. A razão totalitária do esclarecimento é implacável e estrutura de tal monta a nossa forma de cognição, que se torna quase impossível pensar fora dela. Daí, para Scholz, a importância de buscar os diagnósticos adornianos. Apesar de Adorno e Horkheimer serem considerados nãomarxistas pelo marxismo majoritário (e por isso, também, “malditos”, porque são muito marxistas para a direita, e pouco marxistas para a esquerda), Scholz compreende que a Dialética do Esclarecimento é uma obra central para libertar sua re exão do universalismo androcêntrico, lho da razão. Assim, para Scholz, a crítica à razão esclarecida deve ser tão central quanto a crítica ao valor, e a inserção da clivagem de gênero na compreensão deste último nos afasta do cativeiro daquela. Abandonando o sujeito (cognoscente, racional e “de direito”) pretensamente universal do iluminismo, ela demonstra que outras categorias também são pretensamente agênero e universais, como o valor (assim como, para nós, a forma política e a forma jurídica também), quando, na realidade, somente se referem, sempre, ao homem, branco, europeu, cissexual e heterossexual. Companheiros e companheiras de Scholz na Krisis que compreenderam tudo isso a seguiram quando de sua expulsão: Kurz, Bosse, Haarmann, Hausinger e Ortlieb perceberam os equívocos de um pensamento pretensamente radical no marxismo que não aceita debater machismo e racismo, e fundaram a Revista Exit! com Scholz, e com apoiadores em diversos países. Nesse sentido, tomamos as leituras da crítica do valor para compreender o trabalho abstrato como substância da valorização capitalista, mas não olvidamos as advertências de Roswitha Scholz. O trabalho inserido na forma da mercadoria abstrai-se das atividades humanas, tornando-se um m em si mesmo, mas esse trabalho, enquanto abstrata racionalidade nalista tautológica, é exclusivamente dos “homens”. As relações de troca mercantil

fazem nascer o valor, enquanto processo através do qual o capital se reproduz; porém, esse conceito de valor se refere, tão-somente, à dimensão masculina do valor. Como a mercadoria representa trabalho (abstrato e masculino) morto, o valor é homem e a valorização é uma relação social fetichista que exclui o feminino desde a sua forma, a partir de sua estrutura. Desta feita, com Scholz, tomamos o sentido “trabalho abstrato – forma mercadoria (trabalho morto) – trabalho vivo – (mais) valor” como um teorema eminentemente marcado por uma especi cação de gênero: “trabalho (masculino) abstrato – forma mercadoria (trabalho, masculino, morto) – trabalho, masculino, vivo – (mais) valor [homem]”. Fora dessas formas abstratas, estão as atividades femininas, clivadas, dissociadas. É preciso salientar que, para Scholz, entretanto, o valor dissociado é crucial para a reprodução do capitalismo e, mais do que isso, ele também gera valor, porém, fora das formas abstratas do processo produtivo. Por isso, o valor total é composto pela forma-valor varão, mais o valor-clivagem. São duas dimensões do fenômeno capitalista; todavia, uma delas é negada, ocultada, obscurecida. Todos os estudos marxistas sobre o modo de produção ignoram por completo esse anverso do valor, exceto o das feministas marxistas da segunda metade do século XX, e essa cegueira seletiva acometia também a nova crítica, a despeito de sua pretensão de entender O capital como ninguém antes fora capaz. Roswitha veio para desvendar esse lado encoberto do valor e demonstrar que, sem ele, não haveria capitalismo. Dessa maneira, ela se a lia completamente à Wertkritik, principalmente, no que tange aos apontamentos de Robert Kurz, que se desvia de Postone, uma vez que sua leitura da estrutura produtiva parte do capital total, e não da forma mercantil. Isso é crucial para o teorema do valor-clivagem porque, se Scholz desdobrasse o valor a partir da forma-mercadoria apenas, chegaria ao mesmo valor (forma), parcial, e destituído de gênero. Partindo do capital total, ela pôde compreender que o valor total é composto pelo valor dissociado, expurgado das formas econômicas e, por isso, não derivado da forma-mercadoria, e, de outro lado, pelo valor que se reproduz através da mercadoria (e esse é homem). É por esse motivo que o fetichismo lido pela crítica do valor fundamental também é central em sua análise, por se tratar de um fenômeno

decorrente das formas econômicas, e não da psicologia humana, evidenciando que as relações entre as pessoas são sobredeterminadas pelo modo produtivo, independente das suas vontades, pensamentos e atitudes. O valor total tem a característica de se reproduzir ininterruptamente e automaticamente, sem que ninguém controle esse processo. O automovimento do valor é, logicamente, automático, fazendo com que as formas abstratas se movimentem continuamente e se relacionem reciprocamente, prescindindo de sujeitos para operar ou constituir essas relações. A sociedade capitalista, então, torna-se uma sociedade de mercadorias, e não de pessoas. Como estas são destituídas de ontologia para que seu tempo médio de trabalho vivo caiba também na forma mercadoria, passam a ser uma coisa como qualquer outra, preci cável. Se as formas mercantis são exclusivamente masculinas porque o trabalho abstrato é androcêntrico e o valor que se desdobra através desse processo produtivo é homem, tudo que é feminino está defenestrado dessas relações. A sociedade das mercadorias, portanto, acrisola-se pela expulsão da feminilidade em relação às formas produtivas, de modo que as mulheres não pertencem ao universo do mercado e do capital. Sendo a forma jurídica e a forma política derivadas dessas formas econômicas, seguindo a mesma lógica de abstração e fetichismo, as mulheres também não pertencem ao universo do Estado e do Direito. A forma jurídica e a forma política movimentam-se e se relacionam entre si e com as formas econômicas na mesma cinesia automática, sem que nenhuma pessoa as precise operar ou manipular. Por isso, para a crítica do valor, é absurdo imaginar que os indivíduos possam se servir das formas econômicas do capitalismo, como o trabalho abstrato, a forma-mercadoria e a forma-dinheiro, para destruir o capitalismo. Isso é esdrúxulo, e, portanto, o “socialismo real” nunca foi outra coisa senão outra expressão do capitalismo, já que nunca rompeu com essas formas; ao contrário, acreditou-se ser possível se apropriar delas contra o capital, mas, na verdade, só zeram reproduzir o valor. De outro viés, é infantil acreditar que se pode apropriar da forma jurídica e da forma política contra o valor também, vencendo eleições “democráticas’. Positivar direitos ou incluir os excluídos na forma do sujeito de direitos em nada altera seu automovimento em favor da reprodução do valor. Seguindo esse raciocínio, não existe isso de a classe operária ocupar o poder

no Estado e, assim, transformá-lo num instrumento de emancipação popular e de destruição do capital, seja através de revoluções ou de eleições, pois a forma política se movimenta automaticamente para a reprodução do valor, independente de seres humanos exercendo controle sobre essa função. Os partidos de esquerda precisam se conscientizar disso, ou continuarão sofrendo golpes e fazendo um trabalho de Sísifo. Sem compreender o fetichismo nessa gravidade, corre-se o risco de recair nas ilusões de que é possível converter o modo de produção, o Estado e o Direito em instrumentos anticapitalistas, como acreditaram os soviéticos, e, até hoje, creem todos os movimentos sociais, sindicais e partidos políticos de esquerda em todo o mundo. A forma política do capitalismo não é a democracia, mas a alternância entre democracia formal burguesa e fascismo. O fascismo não é um desvio, mas um recurso de que o valor se serve quando a democracia começa a abrir ancos de vulnerabilidade na valorização permanente. O fetichismo não nasce da ideologia. Acreditar nisso é que serve à ideologia. O fetichismo é um fenômeno estrutural da produção (da reprodução do valor). Conquanto, sem as especi cações de gênero, ainda a compreensão mais lúcida e profunda do fetichismo remanesce insu ciente, pois todas essas formas que se movimentam e se relacionam autonomamente são exclusivamente masculinas. Os grandes metarrelatos que edi caram a modernidade foram responsáveis por essa abstração das formas, constituindo a economia capitalista. O Estado e o Direito também cumpriram outro papel: o de estabelecer uma dicotomia existencial entre feminino e masculino, determinando um corte binarista para os seres humanos se identi carem e se relacionarem com o entorno. Os relatos do que é ser homem e do que é ser mulher, de como devemos nos comportar, perceber-nos, pensarmos e agirmos, em todos os âmbitos da vida externa e da mente, são produtos da mesma razão iluminista totalitária que suporta as estruturas econômicas e as formas capitalistas. Essa razão sempre teve o condão de ser instrumental. Todos os seus caracteres identi cados pela Escola de Frankfurt, fonte teórica onde Roswitha Scholz foi beber, possuem um propósito: possibilitar a sociedade das mercadorias falocentrada.

Essa totalidade social, na qual as formas se movimentam sem o controle dos sujeitos, foi erigida, também, por meio de um discurso que especi cou o gênero das formas desde o ponto em que o trabalho abstrato foi identi cado como exclusivamente masculino, ao passo que as atividades clivadas foram reputadas como femininas. Do mesmo modo, o Estado não era lugar de mulher, assim como a política, a ciência, a universidade, o mercado, os partidos, os sindicatos etc. A razão instrumental iluminista opera com abstrações metafísicas totais, que excluem o alheio a ela, o não identi cável, o impassível de classi cação, quanti cação e manipulação. Seu principal escopo era derrotar todos os mitos, o inexorável e o incontrolável, como a natureza. Uma vez que, durante a Idade Média, a mulher era identi cada com as forças naturais, uma das tarefas da racionalidade moderna foi a de achacar o feminino, controlando e o submetendo. O arcabouço de qualidades femininas narrado por essa razão deslocou as mulheres das formas abstratas do capitalismo, o qual só funciona impulsionado por essa racionalidade peculiar do esclarecimento. Sendo as mulheres relatadas como seres irracionais, ou menos racionais, como as crianças, as pessoas com de ciência intelectual, e os homens não-brancos, foram alijadas (assim como todos esses outros seres humanos) das formas burguesas. O sujeito de direito, ente abstrato com pretensão universalista caudatário dessa mesma razão, também só absorvia o homem branco, e as narrativas que sustentavam o sistema econômico, o Estado burguês, e o Direito Positivo exclusivamente emanado desse Estado foram as mesmas que hierarquizaram a existência humana, subjugando mulheres, negros, indígenas, PCD’s, LGBT´s etc. Porém, para Roswitha Scholz, é preciso compreender, de uma vez por todas, que esse fenômeno é estrutural, que está no modo de produção, e, por isso, uma mudança de atitude ou a positivação de direitos desses grupos marginalizados na égide da sociedade burguesa em nada altera a forma. Nesse sentido, Scholz não usa o conceito de “divisão sexual do trabalho”, pois essa expressão pode dar a entender que tal divisão é social ou cultural. A verdadeira cisão está na forma mesma do capital, na forma do valor. O sexo do capitalismo é masculino, bem como o sexo do Direito e do Estado. A hierarquização de gêneros da sociedade das mercadorias, segundo a qual as mulheres são inferiores aos homens, é a própria funcionalidade do

valor clivado em forma-valor varão (que advém do trabalho abstrato) e valordissociação (que advém das “coisas de mulher”). Cabe obtemperar que, nesse ponto, Scholz afasta-se da compreensão de outros feminismos marxistas, porque não aceita qualquer proposição de que essas divisões derivam da cultura, assim como não concorda com o recorte “atividades femininas = valor de uso; trabalho abstrato masculino = valor de troca”. Para ela, não se trata de uma especi cação sexual vinculada à diferenciação entre valor de uso e valor de troca porque isso pressupõe, ainda, a neutralidade sexual da mercadoria. E a forma mercantil também é masculina, assim como todas as formas do capitalismo (forma-dinheiro, forma-valor, forma política, forma jurídica etc.). O que entra na forma é masculino. O que está fora é o dissociado (a mulher). Aqui está nossa segunda tese: a obra de Roswitha Scholz desponta como assoalho para que se possa edi car um marxismo feminista, destoando dos “feminismos marxistas” teóricos. O patriarcado capitalista não é mera continuação ou desdobramento dos patriarcados anteriores. Ele é outra coisa, muito mais profunda. Roswitha Scholz aceita que a simbologia cultural de todo o patriarcado ocidental tenha origem em Atenas, e que a própria razão iluminista que forjou a clivagem do valor e da existência tenha suas raízes no helenismo, enquanto racionalidade dotada do potencial de derrotar o mito e constituir um homem herói que subjuga até o inexorável com o poder da razão. Essa construção semiótica nasceu na Grécia e chegou ao iluminismo com um potencial destruidor, pois o totalitarismo dessa razão, atrelado ao seu condão instrumental voltado ao capitalismo, subjugou toda a existência desde o século XVIII. Para Roswitha, é, nesse mesmo centênio, que principia o binarismo capaz de atribuir à mulher o único papel existencial de esposa e mãe. Nem no Medievo havia essa divisão da existência entre homens e mulheres, onde vicejava um modelo monogênero: a mulher era apenas um homem incompleto e defeituoso (sem pênis), e, por isso, inferior. O binarismo inaugurado no século “das luzes” está arraigado na superioridade racional do homem sobre a mulher, responsável pela clivagem do valor capitalista em forma-valor (mais-valor extraído do trabalho abstrato assalariado) e dissociação-valor (valor decorrente de tarefas imprescindíveis para a reprodução social). Não seria equívoco, por isso, equiparar Scholz a

autoras feministas do marxismo, como Federici, quando partem do modelo “trabalho produtivo X trabalho reprodutivo”, mas, como Scholz se a lia à Wertkritik, por um rigor categorial, torna-se mais apropriado chamar de “trabalho” somente o abstraído na forma-mercadoria, portanto, masculino. Como, segundo o referencial adotado, a categoria “trabalho” só existe no capitalismo, e este depende da dissociação de gênero, seria mais adequado o binômio “trabalho produtivo X tarefas (clivadas) reprodutivas” – sendo que ambas as dimensões compõem o valor total. Roswitha Scholz constrói uma teoria materialista do patriarcado, por isso, não admite qualquer proposição de que este é um produto cultural, e, por isso, não pode ser uma continuidade histórica dos patriarcados anteriores, só que capitalista. Para ela, a cisão entre homens e mulheres, no capitalismo, está nas formas sociais que reproduzem o valor. Destarte, não se rompe com esse patriarcado através de uma mudança na cultura e nos comportamentos. Pensar que as ideias conformam a realidade é um idealismo, que não se encaixa no método materialista, histórico e dialético de compreensão da sociedade das mercadorias. Assim, pela Wert-Abspaltung, é inadmissível qualquer compreensão feminista que parta da cultura e não da materialidade. Por isso, Scholz rechaça os debates feministas não-marxistas, em sua maioria, ou aponta suas insu ciências, e, desde sua leitura, também optamos por apontar as falhas das abordagens feministas marxistas que imaginam que a ideologia é que hierarquiza as existências de homens e mulheres, quando, na realidade, estamos sempre diante de um dado estrutural. O que ocorre é uma interação dialética entre os metarrelatos da razão iluminista instrumental e as formas sociais do capitalismo, que se retroalimentam continuamente. Nesse sentido é que Scholz demonstra que as propostas de Beauvoir e Butler, que pareciam tão revolucionárias, estavam apenas fazendo o jogo das fases do capitalismo e ajudando a conformar as “ondas” feministas a elas. Apesar de emprestar a historicização e a crítica ao essencialismo do patriarcalismo ocidental que Beauvoir elabora, Scholz ataca sua abstração existencialista, de modo que a compreensão do “outro” feminino deve ser estrutural (enquanto dissociação-valor), e não existencial.

Essa perspectiva beauvoriana, que, amiúde, responsabiliza ( loso camente) as mulheres por sua posição nas relações de gênero, foi, no entanto, extremamente propícia à segunda onda do feminismo e à transição para a terceira. Por isso, Scholz credita o resgate de O segundo sexo, nos anos 2010, a essa proposta de que ser inferior ou não em relação aos homens é uma escolha existencial das mulheres. Se a reponsabilidade é de cada mulher, individualmente, cada uma lida com os seus problemas – esse mote também é oportuno para essa nova fase de acumulação pós-neoliberal que ainda não arriscamos nominar. Roswitha Scholz a rma que essa a leitura de Beauvoir foi, inclusive, ovacionada pelo pós-estruturalismo num primeiro momento, justamente porque nenhum outro modelo teórico se presta mais ao individualismo do que este último. Para os pós-estruturalismos, as relações de gênero são semióticas, de modo que sua transformação se dá pela via da alteração da cultura, o que começa numa mudança de atitude individual. Cada pessoa deve se desconstruir, rompendo com o binarismo e a heteronormatividade em si, para, então, militar pela desconstrução dos padrões sociais. A militância, por sua vez, dá-se na representatividade (na política, no Estado, no Direito, na indústria cultural, e no mercado de trabalho) e por uma atitude “lacradora”, que consiste, basicamente, em mudanças estéticas (nos penteados, nas roupas, nos calçados, na maquiagem etc.) que se re etem nas artes e nas diversas formas de expressão. Indubitavelmente, esse modelo queer que tem, em Judith Butler, sua principal expoente, é questionado por Scholz. Primeiro, porque preconiza que atitudes voluntaristas são capazes de alterar a realidade, ignorando por completo a materialidade das relações de gênero. Segundo, porque atribui exclusivamente à cultura a constituição dos papéis sociais “homem” e “mulher” como meras “performances” que podem ser revertidas a qualquer tempo, olvidando a verve estrutural da clivagem do valor para a produção capitalista. Terceiro, porque esse individualismo da identidade serve como uma luva ao abandono da “socialdemocracia” em direção a outros moldes mais perversos de capitalismo, como o neoliberalismo, e o incomensurável ultraliberalismo pós-2008. É importante observar, no entanto, que nem Scholz nem a presente obra se colocam contra a atitude queer e as desconstruções iconográ cas do

binarismo. Assim como a ruptura estética das feministas radicais (ao não se depilarem, não se maquiarem, não fazerem dieta etc., e ao se recusarem a ser “bonequinhas dóceis e sensuais” para a fruição masculina) é interessante, a desconstrução pós-estruturalista também é, porque é escandalosa para a direita tacanha e, por isso, ambas são formas de rebeldia louváveis, que podem, realmente, impactar a simbologia, a linguagem, a estética e a cultura em geral. Ocorre que essas alterações não abalam a estrutura da produção capitalista – e o capitalismo é o patriarcado, tal qual o patriarcado é o capitalismo. É a interação dialética entre o valor-clivagem e o binarismo heteronormativo que perpetua o machismo. E, de outro viés, como se trata de uma questão de forma, de estrutura formal abstrata, o fato de as mulheres trabalharem nada altera. A forma, que tem a pretensão de ser um universal abstrato, sempre se movimentará como um autômato na direção da valorização do valor varão. Aliás, as constantes crises do capital, que impactaram as diversas modalidades de acumulação (liberalismo, fordismo e pós-fordismo; sem contar a primitiva, pré-capitalista) ao longo das últimas décadas, e se zeram acompanhar por formas de regulação estatal e jurídicas correspondentes, culminaram, após 2008, num “turbocapitalismo”, cujo asselvajamento está entrando numa zona descontrolada, que alterna momentos racionais e irracionais. Essa nova forma de acumulação está mostrando sua face monstruosa, e seu modelo jurídico-político vem se apresentando como uma espécie de neofascismo, associado ao fundamentalismo religioso, ao recrudescimento dos conservadorismos moralistas mais extremos, ao racismo, à misoginia, à xenofobia, à lgbtfobia, e a outras barbáries. A militância estética é interessante, mas apenas é ruptural se for acompanhada por uma guerrilha contumaz contra o modo de produção capitalista e suas formas sociais. Sem a destruição da sociedade das mercadorias, não se supera o patriarcado, e as supostas “desconstruções de gênero” só gerarão outros nichos de consumo e outros motes para a indústria cultural. Pior que isso, além não romperem com a estrutura da opressão e só trazerem uma falsa sensação psicológica de “empoderamento”, fortalecem a reação de uma direita protofascista, violenta e machista, que, acossada por um fundamentalismo religioso neopentecostal torpe, quer forçar um

militarismo teocrático institucionalizado no interior da forma política. Como esse modelo é congruente com a acumulação pós-fordista, que, na sua recon guração pós-2008, é “turbocapitalista”, é preciso estarmos vigilantes. A “lacração”, o feminismo das diferenças, e o “radfem”, sem práxis revolucionária anticapitalista, só alimentam o “monstro da lagoa”. Se, após a decadência do Estado social de bem-estar, com o advento do neoliberalismo, acreditávamos que havíamos chegado ao extremo da malignidade capitalista, fomos inocentes. Sempre é possível piorar. Ora, estamos diante desse horror ainda inominável, que cresce lentamente diante de nossos olhos atônitos. É, através de suas crises cíclicas, que a valorização do valor se reinventa, metamorfoseia-se e se reacopla às transformações sociais que autoriza. E, ao cabo, são as mulheres que acabam sofrendo mais com as crises do capitalismo e as alterações nos seus métodos de acumulação. Quanto mais o capitalismo de cassino pode prescindir do trabalho, por um lado, por outro, é fundamental manter a retórica do trabalho digni cante, do trabalho essencial, de ter um trabalho enquanto vitória social, pois o trabalho abstrato nunca deixa de ser a base para a reprodução do valor, e ninguém é capaz de sobreviver sem vender o próprio trabalho vivo. Com a superação do modo de acumulação liberal, o keynesianismo estava ncado na ampliação do capital produtivo e, portanto, na expansão dos postos de trabalho – precisava de mais trabalho para manter seu regime de geração de mais (valor). Esse valor lastreado, do capital produtivo, por sua vez, possibilitou um Estado provedor de serviços públicos para adimplir direitos sociais, principalmente, através da tributação e da contribuição previdenciária dos trabalhadores e das trabalhadoras. Por esse motivo, é sintomático que tenha havido uma absorção massiva também das mulheres no mercado de trabalho, junto com um aumento de seus direitos formais em todo esse período. Porém, quando esse modelo fordismo/welfare se esgotou com a crise da década de 1970, despontou o pós-fordismo/neoliberalismo, no qual o individualismo se exacerbou, e cada um voltou a ser responsável por prover a própria educação privada, saúde privada, segurança privada, previdência privada etc. Se, no modelo liberal originário, era indesejável que as mulheres saíssem do lar para desempenhar trabalho não-clivado, nos dois formatos seguintes do capitalismo, tornou-se importantíssimo que toda e qualquer

pessoa pudesse ter seu trabalho vivo explorado na forma de trabalho assalariado. No fordismo, para a expansão do valor mesmo; no pós-fordismo, para a sobrevivência das pessoas. A pulverização das relações econômicas, que avança desde a segunda metade do século XX, retirou do homem a obrigação de ser o patriarca. Da mesma maneira que um trabalhador não ca mais a vida toda com o mesmo vínculo empregatício, também não permanece com o mesmo vínculo matrimonial. A lógica da produção pulverizada pós-fordista transportou-se para os relacionamentos afetivo-sexuais, abrindo espaço para novos ajustes e outras con gurações de família para além da tradicional heterossexual, monogâmica, formalizada na religião e no Direito, e com lhos. Porém, se o homem se desobrigou do sustento dos seus dependentes, a mulher não foi desobrigada do cuidado dos lhos, pois isso continuou no âmbito do valor dissociado (exclusivamente feminino). Assim, os homens passaram a, sequer, prestar alimentos para seus descendentes, o que impactou ainda mais a dupla socialização das mulheres. Então, se o trabalho feminino era indesejável no liberalismo, passou a ser estimulado no fordismo, e se tornou uma obrigação indelével no pós-fordismo, pois, nessa recon guração, se a mulher não trabalhar, nem ela nem seus lhos sobrevivem. É preciso compreender, portanto, que a possibilidade de a mulher trabalhar não é uma “conquista” dos movimentos feministas, mas uma necessidade do valor, nas suas reformulações, ao longo do século XX, para superar suas crises. É por isso que Scholz a rma que as crises do capital impactaram mais as mulheres do que os homens, trazendo imenso sofrimento psíquico a elas. Desde os anos 1980, toda mulher tem a obrigação de trabalhar. É-lhe cobrado, ideologicamente, além de que trabalhe, que estude, gradue-se, pós-gradue-se, ganhe mais, aumente a jornada, renda mais, produza mais, e sustente a si e a seus lhos. Mas, além disso, remanesce cobrada para que continue desempenhando as tarefas clivadas: ainda tem a obrigação existencial de ser mãe para ser uma “mulher completa” (engravidar e parir), e de cuidar dos lhos, dos inválidos, da louça, da roupa, da casa etc. Além de tudo isso, ainda por cima, tem a obrigação de ser linda, sensual, magra, atlética, feminina, depilada, maquiada, vestida conforme a moda, ter a pele e os cabelos hidratados etc. Então, na realidade, a mulher do m do século XX e do início deste é, segundo Roswitha, duplamente

socializada (valor e clivagem): (1) tem seu trabalho vivo expropriado na forma do trabalho abstrato para produzir mais valor; (2) desempenha todas as tarefas clivadas, fora do trabalho abstrato, para reproduzir a sociedade e o valor total; e (3) tem que ser um objeto sexual (de consumo) atraente, para fomentar a ampliação de mercados e a produção e circulação de mercadorias. É muita pressão, é muito sofrimento. Note-se que as três “ondas” do feminismo coincidem com as três grandes fases de acumulação do capital até o início do século XXI. O feminismo de primeira onda, marcado pelo sufragismo e pela luta por direitos civis, para escolher o marido e para poder trabalhar (com direitos), coincide com o liberalismo. O feminismo de segunda onda, para a conquista de liberdade sexual, reprodutiva e de realizar escolhas autodeterminadas coincide com o fordismo (e com o Estado social). O feminismo de terceira onda, com múltiplas identidades femininas, de raça, de sexualidade, socioeconômica, geopolítica, cultural etc., e primazia da representatividade, coincide com o neoliberalismo. Esta é nossa terceira tese: os movimentos feministas são, historicamente, rebocados pelas mudanças no regime de acumulação do capital, com suas correlatavas formas de regulação estatal. Portanto, não houve verdadeiras conquistas históricas oriundas das lutas sangrentas das mulheres heroínas do feminismo, e sim remodelações das relações de gênero a serviço de novas formas de valorização do valor, como resultado da fricção dialética entre lutas e formas sociais do capitalismo. Claro que os movimentos sociais empreenderam belas lutas, mas as mudanças somente aconteceram porque foram “autorizadas” dialeticamente pelo modo de produção, porque eram interessantes ao valor naquele momento histórico. Porquanto, urge a proposição de um feminismo que, de nitivamente, desprenda-se do valor, algo nunca antes experimentado. Um feminismo que passe por um modelo político descolado da forma política e da forma jurídica, e por um modo de produção de riquezas livre da forma mercantil, que possa, ao mesmo tempo, viabilizar a superação do sistema econômico capitalista, do patriarcado, e de todas as formas de opressão. A emancipação das mulheres só ocorre se o valor total acabar, porque ele é dependente da clivagem que nos inferioriza. Encontramo-nos num momento ímpar da história, em que a ascensão do (neo)fascismo é cada vez mais evidente, trazendo ainda mais

retrocesso nas ín mas conquistas decorrentes das lutas sociais, enquanto o “turbocapitalismo” se apresenta como uma nova forma mais perversa de reprodução do valor, ainda incipiente para ser detalhada. Diante desse cenário, a gana revolucionária deve permanecer e o fortalecimento teórico para a superação das mazelas contemporâneas é tarefa premente, pois o robustecimento da teoria marxista ainda acena como o melhor princípio do caminho, que, futuramente, possa conduzir-nos a um mundo mais humano. Todavia, esse modelo teórico deve se livrar das amarras da razão esclarecida, universalizante e androcêntrica. É preciso pensar dialeticamente, sempre partindo da materialidade da vida, e não das ideias ou da cultura. Não obstante, mesmo com a negação de todas as estratégias dos feminismos que, ao cabo, sempre acabam recaindo nas arapucas liberais, sejam radicais, interseccionais culturalistas, queer, decoloniais, plurais e até bolcheviques, pois não rompem com o valor-clivagem, ainda não somos capazes de formular uma receita de superação do capitalismo e do patriarcado. Esta é a dor mais profunda do marxismo, de quase impossível compreensão para a maioria das pessoas: o marxismo teórico é um método cientí co dialético de compreensão e análise, e não uma receita de como mudar a realidade. Nós fazemos os diagnósticos, destrinchamos cada minúcia da doença, fazemos prognósticos, mas não temos receita, remédio, tratamento prévio. Sabemos que, diante de todos esses apontamentos, certamente, surgirá a questão: se tudo que tem sido feito até aqui está equivocado, qual o trajeto correto? Ocorre que o marxismo não é propositivo de um método infalível, mas apenas aponta as falibilidades daquilo que, mesmo sem perceber, serve ao valor varão. A teoria, quando materialista e dialética (e não teorética e hermética), como é o caso do teorema do valor-clivagem, completa-se pela ação, mas não aponta um caminho perfeito previamente – nunca foi essa a sua teleologia. O materialismo histórico dialético é uma epistemologia cientí ca, e isso precisa ser compreendido, tanto nos meios acadêmicos, quanto na esquerda militante. Os debates teóricos têm papel diagnóstico, suas próprias dinâmicas e teleologias, mas podem servir como impulso à luta transformadora, já que

simplesmente compreender o mundo não basta. Como disse o velho Marx, é mesmo preciso transformá-lo. Como o método é materialista, as soluções precisam se dar na práxis, na concretude das transformações revolucionárias. Não são preestabelecidas cerebrinamente. Nesse ponto, acreditamos que, com Roswitha Scholz, trouxemos uma leitura muito mais lúcida, ácida e radical do patriarcado na sociedade das mercadorias, a partir da qual, talvez, possa ser engendrada uma práxis transformadora da realidade concreta, expurgando todo horror de uma sociedade das mercadorias, falocentrada, que nos oprime.

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Neste momento dramático da história nacional, as editoras Contracorrente e Boitempo lançam a coletânea Resgatar o Brasil, coordenada pelos professores Jessé Souza e Rafael Valim. Além deles, Gilberto Maringoni, Ladislau Dowbor, Maria Lucia Fattorelli, André Horta e Luis Nassif contribuem com artigos inéditos que dissecam, de maneira franca e acessível, os problemas centrais do Brasil e apontam os verdadeiros inimigos do povo brasileiro. O falso discurso contra a corrupção, o cínico estado de exceção jurisdicional implantado no país, as consequências geopolíticas do golpe de Estado de 2016, a rapinagem do sistema financeiro, o esquema espúrio da dívida pública, o injusto sistema tributário nacional que beneficia 1% da população e penaliza os outros 99% e a cartelização da mídia são analisados como parte da mesma engrenagem cujo resultado é o eterno atraso de nosso país e a exclusão social, econômica e política da maioria de sua população. Compre agora e leia

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Ribeiro Jansen Ferreira e André Luis Campedelli. Dos primorosos textos que compõem a obra se conclui que o crescimento econômico não pode ser medido somente com valores quantitativos, senão que deve levar em consideração também desempenhos qualitativos, como o nível da inflação, do emprego, dos salários reais, da distribuição de renda, além de outros dados macroeconômicos, como endividamento e déficit público relativamente ao produto gerado. Trata-se de leitura obrigatória a todos aqueles que estudam ou se interessam pelo assunto, bem como aos que estão dispostos a olhar de maneira crítica e objetiva – como propõem os autores – a questão da austeridade e das medidas tomadas pelos governos ao longo dos anos. Compre agora e leia

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Em ensaio original e atualíssimo, o Professor da PUC/SP expõe a teoria do estado de exceção e, à luz dela, empreende uma análise esclarecedora da atual realidade brasileira. Como diz o sociólogo Jessé Souza, em prefácio à obra, "daí que a reflexão que Valim nos propõe seja tão decisiva. Em meio à crescente insegurança econômica, política e jurídica que o país atravessa nos últimos anos, a tarefa ao mesmo tempo mais importante e mais difícil é fazer com que a reflexão crítica acompanhe a velocidade dos fatos. Esse é o grande mérito do presente trabalho". Compre agora e leia

Lawfare Martins, Cristiano Zanin 9788569220695 154 p�ginas

Compre agora e leia O termo "lawfare" conquistou o debate público na Europa e na América Latina desde que os advogados Cristiano Zanin Martins e

Valeska Teixeira Zanin Martins, em entrevista concedida no 10 de outubro de 2016, dele se valeram para explicar o caso Lula. Seu conceito, porém, tem sido frequentemente confundido com outros tópicos consagrados como a judicialização da política ou o estado de exceção. Agora, após anos de experiência e de reflexão teórica sobre o tema, os ilustres advogados Cristiano Zanin Martins e Valeska Teixeira Zanin Martins se unem ao Prof. Rafael Valim para oferecer ao público brasileiro uma obra que, mediante a análise do lawfare militar, político, comercial e geopolítico, abre um extraordinário campo de reflexões sobre o Direito, a economia e a política contemporâneos. Em resumo, um livro que já nasce clássico. Compre agora e leia

Pensando como um negro Moreira, Adilson José 9788569220589 312 p�ginas

Compre agora e leia Por meio de um estudo integrado entre narrativas pessoais e análises teóricas, este livro revela a importância do pertencimento

social na hermenêutica jurídica. Nele se aborda um tema ausente nas reflexões sobre hermenêutica no nosso país: o papel da raça no processo de interpretação jurídica. A relevância desse tópico decorre do seu lugar central na discussão sobre a legalidade de medidas de inclusão racial e também dos debates sobre as disparidades de tratamento entre grupos raciais no sistema penal. Afirma-se, com grande eloquência, a necessidade de considerarmos a experiência de minorias raciais como parâmetro normativo para a análise do princípio da igualdade, um requisito para o alcance da justiça racial na nossa sociedade. Compre agora e leia