Como ler Foucault
 9788537805206

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Johanna Oksala

Como ler Foucault Tradução:

Maria Luiza X. de A. Borges

Revisão técnica:

Alfredo Veiga-Neto Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Karla Saraiva Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil

^ZAHAR

Para Sid

Título original: How to read Foucault

Tradução autorizada da primeira edição inglesa, publicada em 2007 por Granta Books, de Londres, Inglaterra, na série How to Read, sob edição de Simon Critchley Copyright © Johanna Oksala, 2007 Johanna Oksala asserts the moral right to be identified as the author of this work.

Copyright da edição brasileira © 2011: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja | 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel (21) 2108-0808 | fax (21) 2108-0800 [email protected] | www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Preparação: Geísa Pimentel Duque Estrada | Revisão: Eduardo Monteiro, Sandra Mager Indexação: Nelly Praça | Capa: Dupla Design Foto da capa: © Bettmann/CORBIS/Corbis (DC)/Latinstock

CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

O36C

Oksala, Johanna, 1966Como ler Foucault / Johanna Oksala; tradução Maria Luiza X. de A. Borges; revisão técnica Alfredo Veiga-Neto, Karla Saraiva - Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Tradução de: How to read Foucault Contém cronologia Inclui bibliografia e índice isbn 978-85-378-0520-6




constrói a realidade, os pós-estruturalistas julgaram que ai filosofia centrada no sujeito chegara ao fim. Para revitalizar

a filosofia eram necessárias abordagens radicalmente novas. Enquanto Derrida desenvolvia seu projeto de desconstrução,

concentrado na crítica textual de escritos filosóficos, Foucault se voltou para a história.

Ele fundiu filosofia e história de uma maneira nova, que re­ sultou numa estarrecedora crítica da modernidade. Chamou

suas obras de “histórias do presente” e tentou mapear o desen­ volvimento histórico, bem como as bases conceituais de algu­ mas práticas essenciais na cultura moderna — por exemplo

de punir e tratar aqueles percebidos como loucos. Os estudos mostram a natureza historicamente contingente e aleatória des­

sas práticas e geram um efeito de profundo estranhamento: aspectos de sua cultura que antes negligenciava, o leitor passa

a vê-los não só como curiosos e contingentes, mas também, e

significativamente, como intoleráveis e demandando mudanças. A obra de Foucault costuma ser dividida em três fases dis­ tintas. A primeira, em que ele chamava seus estudos históricos

de arqueologia, é situada em geral nos anos 6o: as principais

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Como ler Foucault

obras desse período incluem História da loucura na Idade Clás­ sica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coi­

sas (1966) e A arqueologia do saber (1969). A fase genealógica —

"genealogia” sendo o termo que Foucault escolheu para seus estudos do poder — situou-se nos anos 70 e abrange suas obras

mais conhecidas: Vigiar e punir (1975) e História da sexualidade, volume 1 (1976). Por fim, a fase ética, quando ele se voltou para a ética antiga, deu-se nos anos 80 e produziu os dois últimos

volumes de História da sexualidade: O uso dos prazeres e O cui­

dado de si (1984). Embora esse esquema tripartite sem dúvida tome mais fácil para iniciantes mergulhar na vasta obra de Foucault, é importante tratá-lo como um modelo heurístico ou pedagógico, não como uma divisão estrita. As três fases

não se referem a três diferentes métodos ou objetos de estudo. O que marcou o início de cada “nova” fase foi a introdução de um novo eixo de análise, que resultou numa visão mais abrangente.

Além de inspirar discussões acaloradas entre acadêmicos profissionais sobre os diversos modos de ler e interpretar sua obra, o pensamento de Foucault alimentou controvérsias em debates culturais num nível mais geral. Sua ideia de poder

produtivo — poder que produz e incita formas de experiência

e conhecimento, em vez de reprimi-las e censurá-las — for­ neceu valiosas ferramentas para a contestação de idéias políti­

cas conservadoras sobre sexualidade, gênero, delinquência e doença mental. Seu pensamento foi uma importante fonte de

inspiração intelectual e política para muitos ativistas gays, bem

como para outros radicais da cultura. Escrever livros críticos sobre tópicos como loucura, sexua­

lidade e prisão provavelmente bastaria para criar uma aura

Introdução

ii

de subversão e controvérsia em torno de um pensador. No entanto, talvez tenha sido a vida privada de Foucault que pro­

vocou as mais violentas tempestades. Pessoas que nunca le­ ram ou mesmo viram um só de seus livros muitas vezes têm conhecimento dos aspectos sensacionais de sua vida privada:

ele foi um homossexual que morreu de aids, experimentou di­ ferentes drogas e práticas sexuais sadomasoquistas, passou um

período numa instituição psiquiátrica na juventude, gostava de

andar em alta velocidade num Jaguar. Houve quem afirmasse

que tais “experiências-limite autodestrutivas”1 fornecem uma

chave para a resposta a como ler sua obra. O problema com a "leitura de sua vida”, contudo, é que, diferentemente dos seus

livros, ela não nos fornece nenhum texto determinado. Temos tão só uma série infinita de eventos fugazes, relatos contra­

ditórios e lembranças, além de pensamentos e experiências privadas que jamais podem ser conhecidos ou interpretados. Escolhi ignorar em grande parte o pouco que sei sobre a vida de Foucault. Não por considerá-la irrelevante ou desinte­

ressante: se o lemos com a devida atenção, torna-se evidente como sua obra também incorpora sua vida. A vida de um fi­ lósofo deve ser encontrada no ethos filosófico de seus livros,

e, para aqueles de nós que não conhecemos Foucault pes­ soalmente, talvez essa seja a única maneira de descobri-la. O próprio Foucault observou, acerca das conexões entre obra e

vida, que "a vida privada de um indivíduo, suas preferências

sexuais e seu trabalho são inter-relacionados não porque sua obra traduza sua vida sexual, mas porque a obra inclui toda a

vida tanto quanto o texto.”2

O pensamento de Foucault, tal como a sua vida, desafia a categorização sob um único tema — não porque ele tenha

i2

Como ler Foucault

malogrado muitas vezes e por isso mudado de opinião, mas

especialmente porque perseguiu questões que não têm respos­

tas definidas e definitivas. Para ele, a filosofia não era um cor­ po de saber que se acumulava, mas um exercício crítico que

questionava de maneira incessante crenças dogmáticas e práti­ cas intoleráveis na sociedade contemporânea. Ele nos convidou

a continuar essa prática crítica: é para mudar o mundo, nada menos, que devemos lê-lo.

i. A liberdade da filosofia

O que está em julgamento não é apenas um sistema social em

geral, com suas exclusões e condenações, mas todas as provo­ cações — deliberadas e personificadas — graças às quais o sis­ tema funciona e assegura sua ordem, graças às quais ele fabrica

aqueles que exclui e condena em conformidade com uma política, a política do Poder, a polícia e a administração. Certo número

de pessoas é direta e pessoalmente responsável pela morte desse prisioneiro.3 Suicides de prison

Sobre o trabalho de um intelectual, eu diria também que é útil de certa maneira descrever aquilo-que-é fazendo-o aparecer como

algo que poderia não ser, ou que podería não ser como é. E por isso que essa designação ou descrição do real nunca tem um valor prescritivo do tipo "porque isto é, aquilo será”. E também por isso,

na minha opinião, que o recurso à história ... é significativo na medida em que ela serve para mostrar que aquilo-que-é não

foi sempre, i.e., que as coisas que nos parecem mais evidentes são sempre formadas na confluência de embates e acasos, durante o curso de uma história precária e frágil. É perfeitamente possível mostrar que o que a razão percebe como sua necessidade, ou

melhor, o que diferentes formas de racionalidade oferecem como seu ser necessário, tem uma história; e a rede de contingências da

qual isso emerge pode ser investigada. O que não significa dizer,

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Como ler Foucault

no entanto, que essas formas de racionalidade foram irracionais. Significa que elas residem na base da prática humana e da história humana; e que, uma vez que essas coisas foram feitas, elas podem ser desfeitas, contanto que saibamos como foram feitas.4 “Estruturalismo

e pós-estruturalismo”

O primeiro fragmento é de um panfleto publicado con­

juntamente por três organizações que trabalhavam pela reforma das prisões na França em 1973. Elas estavam preo­

cupadas com o brutal aumento dos suicídios nas prisões, e o panfleto documenta os 32 casos ocorridos em 1972: um quarto dos suicidas era imigrante, e a maioria estava na casa

dos 20 anos. Foucault foi membro fundador de uma das or­

ganizações, o GIP, Groupe d’Information sur les Prisons, e o comentário não assinado que se segue ao relatório foi quase

certamente escrito por ele.5 Seu tom é polêmico e acusatório. Aqueles não eram suicídios que meramente aconteciam nas

prisões. Eram suicídios causados pelo sistema prisional, e

determinadas pessoas eram direta e pessoalmente respon­

sáveis pelas mortes.

O segundo fragmento é de uma entrevista conduzida por Gérard Raulet e publicada em 1983. Raulet fez a Foucault a per­

gunta que ele próprio formulara várias vezes e que considerava a questão essencial da filosofia: qual é a natureza do presente?

Ao responder, Foucault revela entender que a filosofia abre um

espaço para a liberdade. O papel do intelectual é expor novos modos de pensamento: fazer as pessoas verem o mundo à sua

volta sob uma luz diferente, perturbar seus hábitos mentais e convidá-las a exigir e instigar a mudança. O intelectual não

A liberdade da filosofia

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é a consciência moral da sociedade, seu papel não é emitir

julgamentos políticos, mas nos libertar, ensejando maneiras

alternativas de pensar. O contraste entre os dois textos é flagrante e ilustra a tensão

entre os papéis de Foucault como um ativista político engajado, por um lado, e um filósofo imparcial, por outro. Essa tensão se reflete também no acolhimento dado à sua obra. Por vezes

comenta-se criticamente que o ativismo político de Foucault

não se fundava numa posição teórica coerente e que nenhuma

política de fato eficaz emerge dele. De maneira inversa, sua po­ sição filosófica é julgada acrítica e politicamente vazia porque se abstém de julgamentos políticos explícitos.

O que tornou o pensamento de Foucault original e atraen­ te para muitos, porém, foi exatamente o novo modo como ele concebeu o papel da filosofia e sua relação com a política. Em vez de ser um intelectual universal, que falava para outros e

fazia julgamentos morais e políticos em nome de valores su­

postamente universais, como justiça e liberdade, Foucault via a si mesmo como um intelectual específicb. Isso significava

que podia falar com franqueza e se engajar em lutas políticas movido apenas por sua própria posição dentro das práticas de poder. Seus estudos filosóficos, por outro lado, não podiam

fazer julgamentos políticos específicos, mas apenas fornecer ferramentas conceituais para as pessoas usarem em suas lutas

particulares. Enquanto para o Foucault ativista político era importante exigir melhoramentos concretos das condições

das prisões — os prisioneiros deveríam poder ler em suas ce­ las e as prisões ter aquecimento no inverno, por exemplo —,

o Foucault filósofo queria formular perguntas mais funda­

mentais. Por que nossa sociedade pune pessoas mandando-as

i6

Como ler Foucault

para a prisão? E essa a única maneira pela qual podem ser punidas? Como a prisão opera? O que é um delinquente?

Embora essas perguntas não deixem de ter relação com exi­

gências e julgamentos políticos, devem ser subjacentes a eles. O impacto crítico da filosofia de Foucault não se baseia

nos julgamentos explícitos que ele faz, mas na abordagem

que adotou para analisar nossa cultura. Enquanto a ciência e grande parte da filosofia pretendem decifrar, em meio à con­ fusão de eventos e experiências, aquilo que é necessário e pode

ser enunciado como lei universal, o pensamento de Foucault move-se exatamente na direção oposta. Ele tentou encontrar,

entre o que era considerado da ordem da necessidade, aquilo

que, a um exame filosófico mais detalhado, se revelava contin­ gente, fugaz e arbitrário. Para Foucault, o objetivo da filosofia

é questionar os modos como pensamos, vivemos e nos rela­ cionamos com outras pessoas e com nós mesmos no intuito de

mostrar como aquilo-que-é poderia ser diferente. Essa maneira de compreender a filosofia abre um espaço de

liberdade: expõe novos modos possíveis de pensar, perceber e viver. Mostrando como as coisas que consideramos óbvias e

necessárias emergiram de fato de uma rede de práticas hu­ manas contingentes, a filosofia viabiliza não só experimentos

mentais e especulações ociosas, mas mudança concreta: trans­

formando modos de viver, relações de poder e identidades. Foucault comparou nossa difícil situação a ficar de pé numa

fila por não podermos ver que havia muito espaço vazio à nossa volta. Em vez de tentar organizar a fila numa configu­

ração diferente que refletisse melhor a natureza da existência

ou da realidade humana, ele tentou nos mostrar o espaço vazio à nossa volta.

A liberdade da filosofia

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Uma maneira eficiente de questionar a inevitabilidade de nossas práticas correntes é investigar sua história. A história pode nos ensinar que muitas das coisas que hoje consideramos

evidentes por si mesmas — como a prisão — emergiram de fato há bem pouco tempo como resultado de eventos e cir­

cunstâncias contingentes. Quase todos os livros de Foucault

são estudos históricos, desde História da loucura, do início de sua carreira, até suas últimas obras publicadas — o segundo e o terceiro volumes de História da sexualidade. Discutiu-se

muito se ele deveria ser considerado um filósofo ou um histo­ riador, mas está claro, ao menos, que suas histórias não repre­

sentam historiografia convencional. Ele chamou seus estudos de arqueologias e genealogias para distingui-los, e observou

que eles eram mais um exercício filosófico que a obra de um historiador. O objetivo era “aprender em que medida o esforço para se pensar a própria história pode libertar o pensamento

do que ele pensa silenciosamente, e capacitá-lo a pensar de

maneira diferente”.6 O objetivo da história da prisão escrita por Foucault, Vigiar e punir, por exemplo, não é apenas compreen­ der o desenvolvimento histórico da prisão, mas libertar nosso

pensamento da ideia de que essa forma de punição é inevitável,

e com isso permitir-nos imaginar alternativas para ela. A historicização não é portanto um fim em si mesma, e o que é historicizado não é irrelevante. O que Foucault historiciza são sempre fatos aparentemente atemporais e inevitáveis. Ele toma por alvo objetos cujo significado e validade são afeta­

dos pela revelação de sua historicidade. A história não é apenas educacional e interessante, nem se pretende com ela aumentar nosso saber sobre o passado. O objetivo é nos compreendermos

para sermos capazes de pensar e viver de maneira diferente. O

i8

Como ler Foucault

estudo da história é essencialmente uma ferramenta que nos

permite mudar a nós mesmos e ao mundo em que vivemos. Como Foucault observou no fragmento que abre este capítulo, a história era significativa para ele na medida em que servia

para mostrar como "aquilo-que-é não foi sempre” e como "as

coisas que nos parecem mais evidentes são sempre formadas na confluência de embates e acasos, durante o curso de uma

história precária e frágil”. Esse é o sentido da muito repetida caracterização que Foucault fez de seus livros como “histórias

do presente”. Suas histórias não tratam do passado, elas tratam

de nós, hoje, e representam uma tentativa de mostrar não só como nos tornamos o que somos, mas também como poderia­ mos ter nos tornado alguma outra coisa.

As histórias de Foucault não miram apenas a inevitabilidade

e a imutabilidade das coisas, mas também, de maneira im­

portante, seu caráter natural. Seus livros História da loucura e

História da sexualidade foram tentativas capitais de desnaturali­ zar: de mostrar de que maneira fenômenos como a insanidade

e a sexualidade, que tendemos a considerar fatos naturais e biológicos, foram na verdade formados no curso da história

e da cultura humana. Nesse sentido, Foucault é claramente um construcionista social. O construcionismo social refere-se

a formas de pensamento que sustentam que os seres humanos e suas experiências são o resultado de processos sociais, não de processos naturais. Essas teorias tiveram extrema influência

na segunda metade do século XX e seu poder residiu exata­

mente no esforço para desestabilizar necessidades e formas essencialistas de pensamento. Em geral elas pressupõem que

o que foi construído havia sido até então considerado natural

e dado por certo. A razão para se afirmar que alguma coisa

A liberdade da filosofia

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é socialmente construída — dificuldades de aprendizagem, comportamento violento, QI, gênero ou raça — é em geral mostrar que, mudando a ordem social e política das coisas, seria possível mudar tal coisa também. Está identificada como

uma questão política: a existência e o valor de algo podem ser

debatidos e esse algo pode ser radicalmente transformado, ou

pelo menos modificado.

Mostrar que algo é socialmente construído e não biológico é também uma maneira de questionar todas as explicações puramente médicas do comportamento humano. Um exemplo

poderoso é a homossexualidade. Em História ãa sexualidade Foucault mostrou como emergiram no século XIX as expli­ cações científicas da homossexualidade como patologia. Essa

abordagem médica predominou em nossa cultura por longo tempo: só em 1974, por exemplo, a homossexualidade foi ex­

cluída da categoria das doenças mentais da American Psychiatric Association. Foucault insistiu que “homossexual” não era

um nome que designava um tipo natural de ser. Era uma cons­ trução histórica e cultural que emergiu no século XIX e foi pro­ duzida por discursos científicos e relações de poder específicas.

As abordagens construcionistas sociais da sexualidade, das quais a História da sexualidade de Foucault pode ser conside­

rada uma das mais importantes, foram decisivas para promo­ ver uma mudança no pensamento sobre a homossexualidade.

Foucault confirmou explicitamente o papel essencial e cons­

titutivo de práticas sociais em numerosas ocasiões, e escolheu-

as como o objeto constante de seus estudos. Durante sua fase arqueológica nos anos 60, ele se concentrou sobretudo nas

práticas discursivas da ciência e nas regularidades que lhes

eram imanentes. Ao identificar as regras e limitações da prática

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Como ler Foucault

científica, tentou mostrar de que maneira domínios do conhe­

cimento, como a biologia e a linguística, e seus objetos, a vida

e a linguagem, emergiram na história do pensamento. Em sua

fase genealógica nos anos 70, Foucault estudou práticas de po­ der e as formas de conhecimento que as sustentavam: como o

desenvolvimento da psiquiatria criminal, por exemplo, tornou possível o poder de médicos sobre delinquentes. Na última fase

de seu pensamento, estudou como as pessoas eram capazes de moldar a si mesmas através de práticas éticas e exercícios que

chamou de técnicas de si. Embora seus objetos essenciais de análise fossem práticas sociais, Foucault não afirmava que tudo era socialmente cons­

truído da maneira como carros são produzidos numa fábrica. Dizer que a homossexualidade não existia antes que certas práticas científicas e desenvolvimentos históricos a tornassem

possível não é dizer que certas ações e sensações que hoje as­

sociamos a ela não existiam: significa que elas foram formadas

como um objeto de análise científica — objetificadas — de diferentes maneiras em diferentes práticas históricas. Numa

época certas ações e sensações eram objetificadas como doença mental, em outra, concebidas como um pecado mortal, por

exemplo. As práticas científicas e as regras que as regulam permitem que certas entidades apareçam como objetos de in­

vestigação científica apenas em certos momentos e sob certas condições. O modo como certas ações e sensações são cientificamente

objetificadas, contudo, tem enorme influência sobre seus su­

jeitos, e portanto sobre essas próprias ações e sensações. Se uma pessoa é classificada como doente mental porque deseja

sexualmente um representante de seu próprio sexo, por exem-

A liberdade da filosofia

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pio, é inevitável que essa classificação influencie o modo como ela se comporta e pensa sobre si mesma. Se ela é informada por um especialista de que seu desejo é patológico, terá um

poderoso incentivo para tentar alterá-lo. Observa-se muitas vezes que Foucault restringiu sua aná­ lise às ciências humanas porque os objetos e verdades gerados

nelas tinham efeitos constitutivos sobre os sujeitos estudados.

O modo como botânicos classificam plantas não tem nenhum efeito sobre o modo como as plantas “se comportam”; no caso

de seres humanos, porém, à medida que inventam novos ob­

jetos, classificações e categorias, os cientistas geram tipos

de pessoas, e também tipos de ações e sensações. Categorias de pessoas passam a existir ao mesmo tempo em que as pessoas

que se enquadram nelas. Há uma interação dinâmica, de mão dupla, entre esses processos.7

As práticas constituem, portanto, a realidade social de ma­ neiras complexas e emaranhadas: elas são tanto os objetos de conhecimento — como a homossexualidade — quanto os su­

jeitos conhecidos como homossexuais e que se comportam e agem de acordo com esse conhecimento. Esse efeito circular

é o que Foucault tem em mente quando afirma que relações de poder e formas de conhecimento criam sujeitos. Ele ten­ tou compreender e descrever, por meio de seus estudos histó­

ricos, os processos pelos quais diferentes tipos de sujeitos eram

construídos: de que forma as identidades “delinquente” ou

"homossexual”, por exemplo, emergiram como classificações supostamente naturais, científicas.

Essa abordagem ao sujeito equivalia a uma crítica às “filo­ sofias do sujeito”, o que, no contexto dos círculos intelectuais franceses dos anos 6o, significava um ataque explícito à feno-

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Como ler Foucault

menologia e ao existencialismo. O primado do sujeito havia

encontrado uma poderosa expressão na ideia radical de Immanuel Kant de que todo conhecimento do mundo tinha de

se conformar às faculdades humanas de conhecimento. Para

compreender as estruturas fundamentais da realidade, não podemos ter acesso ao mundo em si e estudá-lo, mas somente

à maneira humana de experimentá-lo. Essa ideia foi mais de­ senvolvida por fenomenólogos — Edmund Husserl e Martin Heidegger na Alemanha, e seus seguidores Jean-Paul Sartre

e Maurice Merleau-Ponty na França. A afirmação central da

fenomenologia era que o ponto de partida de toda investiga­ ção filosófica, bem como de todas as teorias da ciência, era

a experiência vivida na primeira pessoa, pelo próprio sujeito. As teorias abstratas e as estruturas objetivas da filosofia e da

ciência baseavam-se num nível mais fundamental que, so­ mente ele, tornava-as possíveis: a experiência da realidade na

primeira pessoa. Foi essa “filosofia do sujeito” que Foucault quis contestar por meio de seu foco nas práticas. Ele estava interessado em práticas, categorias, conceitos e estruturas de pensamento

fundamentais, mas historicamente cambiantes, em termos dos quais as pessoas são capazes de perceber e agir de certas maneiras, e afirmava não ser possível revelar essas condições

históricas de experiência mediante a análise das experiências individuais que elas tornavam possíveis. Não podemos com­

preender a homossexualidade apenas pela análise das experiên­ cias na primeira pessoa daqueles rotulados como homosse­

xuais, por exemplo. O que temos de fazer é estudar as relações de poder homofóbicas que operam na sociedade, as concepções e teorias científicas culturalmente específicas que circulam por

A liberdade da filosofia

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ela, bem como as práticas concretas de punição e cura. Todos esses diferentes eixos constroem a experiência subjetiva de um

homossexual, mas tais eixos não poderiam ser identificados por si mesmos, de uma maneira transparente.

As arqueologias e genealogias de Foucault são, portanto, es­

forços explícitos para repensar o sujeito. O sujeito não é uma

fonte autônoma e transparente de saber — é construído em redes de práticas sociais que sempre incorporam relações de

poder e exdusões. Foucault caracterizou seu trabalho como

uma genealogia do sujeito moderno; uma história do modo pelo qual as pessoas são construídas como tipos diferentes

de sujeitos — delinquentes, homossexuais, doentes mentais

ou, através dessas exclusões, como normais e saudáveis. Tal história está essencialmente ligada a lutas políticas: é possí­ vel contestar e, por fim, transformar identidades opressivas e degradantes quando elas são expostas enquanto construções

sociais e não expressões de fatos naturais. Em outras palavras,

"uma vez que essas coisas foram feitas, elas podem ser desfeitas, contanto que saibamos como foram feitas”.

2. Razão e loucura

Um novo objeto acabara de aparecer na paisagem imaginária do Renascimento, e logo ocuparia nela um lugar privilegiado: era a

Nau dos Insensatos, um estranho barco bêbado que singra os rios largos e calmos da Renânia e os canais de Flandres.

A Narrenschiff, por certo, é uma composição literária, provavel­ mente sem dúvida tomada de empréstimo do antigo ciclo dos Argonautas que recentemente ganhara nova vida entre os grandes

temas mitológicos, e ao qual se acabava de dar figura institucional nos Estados da Borgonha. Estava em moda a composição desses

barcos, cuja tripulação de heróis imaginários, modelos éticos ou

tipos sociais embarcava numa grande viagem simbólica que lhes

trazia, se não a fortuna, pelo menos a figura de seu destino ou de sua verdade...

Mas, entre todos esses navios romanescos ou satíricos, a renschiff foi

Nar-

o único a ter uma existência genuína, porque eles

realmente existiram, esses barcos que levavam de uma cidade

para outra sua carga insensata. Os loucos tendiam a ter então uma existência errante. As cidades costumavam expulsá-los do

interior de seus muros, deixando-os correr pelos campos distan­ tes ou confiando-os aos cuidados de um grupo de mercadores ou

peregrinos. O costume era frequente sobretudo na Alemanha. Em Nuremberg, durante a primeira metade do século XIV, foi

registrada a presença de 62 loucos; 31 foram expulsos; no decorrer

dos cinquenta anos seguintes, há indícios de 21 partidas forçadas, e isso incluía apenas os loucos detidos pelas autoridades munici­

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Razão e loucura

25

pais. Ocorria muitas vezes que fossem confiados a barqueiros: em 1399, em Frankfurt, marinheiros foram encarregados de livrar a cidade de um louco que perambulava nu pelas ruas; nos primei­

ros anos do século XV, um louco criminoso foi expulso da mesma

maneira de Mainz. Por vezes os barqueiros desembarcavam es­ ses incômodos passageiros mais cedo do que haviam prometido;

prova disso foi um ferreiro de Frankfurt, que duas vezes partiu e duas vezes retornou, antes de ser reconduzido definitivamente a Kreuznach. As grandes cidades da Europa deviam ver muitas vezes a chegada desses navios de loucos...

Trancado no barco de onde não se escapa, o louco era confiado

ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incer­

teza que a tudo envolve. Era prisioneiro em meio à mais livre, à

mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à encruzilhada infinita. É o Passageiro por excelência, o prisioneiro da passagem.

E não se sabe em que terra desembarcará, assim como não se sabe,

quando ele aporta, de que terra vem. Ele só tem sua verdade e sua pátria nessa extensão infecunda entre duas terras que não lhe podem pertencer.8 História da loucura

Foucault observou certa vez que todos os seus livros haviam nascido de suas experiências pessoais e se relacionavam dire­

tamente com elas: “Não escrevi um único livro que não fosse inspirado, pelo menos em parte, por uma experiência direta,

pessoal.”9 Enquanto estudava filosofia na altamente prestigiosa

e competitiva École Normale Supérieure em Paris nos anos 50, ele também fazia estudos sistemáticos de história da psicologia

e da psiquiatria. Em conexão com essa investigação, trabalhou

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Como ler Foucault

informalmente por mais de dois anos como interno no Hôpital

Sainte-Anne, à época um dos maiores hospitais psiquiátricos da

França. Isso lhe deu a oportunidade de observar não apenas os

pacientes, mas também o modo como eram tratados pelos fun­

cionários. Foucault declarou mais tarde que sua própria expe­ riência com o tratamento dos dementes deixara nele uma forte impressão, e sua resposta a essa experiência tomou a forma da

crítica histórica.10 Todos os primeiros textos publicados por Foucault tratam

de psiquiatria e doença mental de diferentes maneiras. Sua primeira publicação incluiu uma longa introdução à tradução francesa do ensaio “Sonho e existência” (1954), do psiquiatra

alemão Ludwig Binswanger, e a monografia Doença mental e

personalidade (1954). Foi em História da loucura, porém, que ele desenvolveu sua abordagem característica.

A fenomenologia existencialista formava o horizonte inte­ lectual insuperável de todo aspirante a filósofo na Paris dos

anos 50. As obras que Foucault publicou antes de História da loucura foram fortemente influenciadas pela fenomenologia

existencial, seu ponto de partida. Na primeira edição de Doença mental e psicologia, por exemplo, ele afirmou que para com­ preender a doença mental temos de levar em conta a experiên­

cia vivida do paciente, precisamos de "uma fenomenologia da doença mental". A segunda edição, publicada em 1962 e exten­

samente reescrita, reflete as idéias revistas sobre doença mental que ele propusera em História da loucura em 1961: precisamos

de um estudo histórico das diferentes experiências culturais da loucura para poder compreendê-la.

Nos anos transcorridos entre uma edição e a outra, o pensa­ mento de Foucault sofreu uma importante mudança: da expe­

Razão e loucura

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riência vivida para uma análise histórica e política mais ampla

de suas precondições. História da loucura assinala o início do esforço para questionar o status filosófico do sujeito racional, autônomo e constituinte. E também a primeira de suas histó­

rias do presente.

A Nau dos Insensatos tornou-se o emblema famoso do livro. A poderosa imagem de um barco com sua “carga insensata”

a deslizar pelos rios livres e abertos da Europa renascentista forma o pano de fundo contra o qual a argumentação central sobre o confinamento do louco é projetada. A asserção his­

tórica de Foucault nesse livro é que o tratamento dos loucos mudou de maneira abrupta e radical no espaço de alguns anos

durante o século XVII. De banidos das cidades e abandonados

a uma existência relativamente livre, eles passaram a ser con­ finados em casas de detenção. A escala desse confinamento foi sem precedentes: só em Paris, no intervalo de poucos meses,

mais de um em cada cem habitantes foi trancafiado.

Esse fato histórico, marcado pela fundação do Hôpital Général em Paris em 1656, funciona como uma ilustração da as­ serção filosófica mais ampla proposta no livro. Foucault afirma

que, em meados do século XVII, o modo como a loucura era definida sofreu profunda mudança: a loucura escapava ao que

era essencialmente humano e passou a ser associada à neces­ sidade de confinamento, uma ideia que, em grande medida,

prevalece ainda hoje e é considerada óbvia. Durante o Renascimento, a loucura havia sido compreen­

dida como parte constituinte da vida cotidiana. Não havia uma tentativa de erradicar a loucura por completo da exis­ tência humana e da sociedade, ainda que se expulsassem os

loucos da cidade. Eles eram excluídos, mas não socialmente

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Como ler Foucault

temidos ou perseguidos. Ao contrário, reconhecia-se que

a loucura encarnava um tipo especial de sabedoria sobre a condição humana. Foucault menciona o tratamento que Cervantes e Shakespeare deram a seus personagens loucos: seus

heróis loucos falam na voz trágica da consciência, finitude humana e paixão desesperada.11 Durante o período clássico, que corresponde aproximada­ mente aos séculos XVII e XVIII, a loucura foi encarcerada e

ocultada. Estava presente na vida cotidiana apenas como o

oposto da razão humana, e apenas "atrás das grades”. "Quando

ela se manifestava, era a uma cuidadosa distância, sob o olhar vigilante de uma razão que negava todo parentesco com ela

e se sentia inteiramente a salvo de qualquer sombra de seme­ lhança.”12 A loucura não era mais concebida como parte cons­ tituinte da existência humana e como estando em diálogo com

a razão: era excluída pelo que era racional e essencialmente humano, e oposta a ele. Os loucos, portanto, não eram apenas confinados fisicamente em instituições isoladas e excluídos da

sociedade, sofriam também uma exclusão conceituai do domí­ nio da razão e da humanidade.

A loucura era ainda, cada vez mais, concebida dentro de um arcabouço moral. Era rejeitada e condenada porque violava a ética do trabalho da Idade Clássica. As casas de confinamento eram habitadas não só pelos loucos, mas também por pessoas que, a nossos olhos, pareceríam pertencer a categorias essen­

cialmente diferentes: os pobres, os desempregados, infratores se­ xuais, condenados por profanação religiosa e livres-pensadores.

O que tinham em comum era a ociosidade, e portanto o desvio moral. Na experiência clássica, seu comportamento era considera­

do uma violação da moralidade e representava o avesso da razão.

Razão e loucura

29

A próxima grande mudança na história da loucura ocorreu no final do século XVIII e marcou o surgimento do asilo psi­

quiátrico. Foucault questiona a ideia prevalente na história da psiquiatria nos anos 60 de que os grandes reformadores do Ilu-

minismo — como Samuel Tuke na Inglaterra e Philippe Pinei na França — instigaram o tratamento humano e esclarecido

dos loucos porque finalmente compreenderam que a loucura era uma doença e não um defeito moral. Segundo os relatos

tradicionais, eles “libertaram” os dementes tirando-os da com­ panhia de criminosos e reconhecendo a verdadeira natureza de sua loucura como doença mental. Foucault afirmou que Pinei

e Tuke haviam se tornado figuras lendárias na história da psi­ quiatria, e que sua importância era aceita sem contestação, mas que sob esses mitos humanos havia uma série de opera­

ções que organizavam o mundo do asilo psiquiátrico e os mé­ todos de cura segundo os mesmos princípios de medo, confinamento e condenação moral que prevaleciam na Idade Clássica.

Restrições externas ao corpo, como correntes e barras, fo­

ram substituídas por mecanismos mais sutis de punição que tinham por alvo a mente. Isso só fez tornar o confinamento

mais total. Na Idade Clássica, embora os loucos ficassem acor­ rentados, ao menos suas mentes tinham rédeas soltas; no novo modelo, o louco é um paciente e seu pensamento e ação são

postos sob a abrangente autoridade do conhecimento psiquiá­

trico. Tratamentos, terapias morais, educação e trabalho to­ maram o lugar da restrição violenta e funcionavam através da

dinâmica da culpa, da consciência e do autocontrole. Como

Foucault escreveu, “a loucura não iria mais infligir medo aos corações das pessoas, nem seria capaz disso — iria ela mesma

ficar amedrontada, indefesa, irrevogavelmente amedrontada,



Como ler Foucault

inteiramente escravizada à pedagogia do bom senso, da ver­ dade e da moralidade”.13

A humanidade pretensamente maior de Pinei e Tuke foi, na

verdade, o correlato dos valores morais da sociedade burguesa

a que eles pertenciam, e a “libertação” dos dementes significou aprisioná-los sob as normas morais estritas dessa sociedade.

Eles rejeitaram a ideia da loucura como um desafio aos limites do convencionalismo e como um modo alternativo de exis­

tência humana. Em vez disso, no asilo de Tuke os pacientes

eram obrigados a praticar a etiqueta social apropriada ao chá inglês: faziam o papel dos convidados e os funcionários, o dos

anfitriões. Para Foucault, essa farsa exemplificava o aprisiona-

mento da loucura num mundo burguês, moral, confinamento muito mais profundo que mediante correntes e barras. Essas afirmações históricas sobre o tratamento dos insa­

nos não teriam a mesma agudeza provocativa e explosiva das

histórias do presente contadas por Foucault se fossem apenas curiosidades do passado distante. Embora Foucault estivesse

estudando as diferentes práticas históricas de tratamento dos loucos — como exclusão, confinamento e cura —, o que ele

tentava descrever através desse estudo era como certas expe­ riências culturais e atitudes em relação à loucura emergiram,

e como alguns de seus elementos essenciais continuam pre­ sentes em nossa experiência. Ele questiona nossa vaidosa con­ vicção da verdade inevitável e da maior humanidade de nosso

entendimento da loucura como doença mental mostrando,

por um lado, que historicamente nossas práticas psiquiátricas

emergiram a partir de práticas de confinamento, e, por outro, as formas possíveis e alternativas em que a loucura existiu no

passado: não como uma patologia e um objeto de investiga­

Razão e loucura

3i

ção científica, mas como fortemente associada a formas de expressão artística, e também como parte da vida cotidiana. Como mostra a discussão de Foucault sobre o Renascimento, a loucura havia sido uma dimensão indispensável do que era

ser humano; havia residido “nos corações dos homens e no coração das coisas”.14

Para resumir o objetivo do livro, História da loucura tentou

desnaturalizar a loucura historicizando-a: ela deveria ser com­ preendida como um construto social variável, não um dado

científico anistórico. "A loucura só existe numa sociedade”, foi como Foucault resumiu o principal argumento do livro, “ela não existe fora das formas de sensibilidade que a isolam e das

formas de repulsão que a expelem ou a aprisionam.”15 A lou­ cura compreendida como doença mental é uma construção so­

cial historicamente contingente que teve origem no século XIX. A História da loucura de Foucault foi lida de duas maneiras

diferentes. De início, como um estudo puramente acadêmico pertencente à tradição francesa da história da ciência. Embora

alguns historiadores profissionais louvassem a importância da

obra, ela foi também severamente criticada por sua imprecisão histórica. Afirmou-se que havia muitos erros na periodização de Foucault: evidências históricas mostram que os loucos já eram confinados no Renascimento, por exemplo. Alguns his­ toriadores chamaram a atenção para o fato de que a ideia da

loucura como doença remontava à medicina antiga, e não foi

consequência da sua medicalização.

A outra leitura concentra-se nas interpretações mais vastas do livro, e não nos detalhes históricos. O livro é admirado por sua profunda influência na esfera mais ampla dos movimentos

sociais e discussões sobre o papel da insanidade em nossa cul­

32

Como ler Foucault

tura. Foucault foi legitimamente proclamado um pioneiro da ideia da construção social da loucura, bem como o fundador de

uma nova história da psiquiatria. Sua visão da doença mental

como uma construção social causou grande impacto no emer­

gente movimento da psiquiatria alternativa da década de 6o, que contestava radicalmente a teoria e a prática da psiquiatria convencional da época. A antipsiquiatria logo se associou ao

movimento geral da contracultura dos anos 6o e início dos anos 70, opondo-se ao poder de instituições opressivas. Foi nessa época que o romance Um estranho no ninho tornou-se um best-seller e as idéias de Foucault encontraram claramente

um eco na preocupação pública com o tratamento de pacientes mediante medicação forçada, lobotomia e procedimentos de

eletrochoque.

O estilo literário do livro sugere que, ao escrevê-lo, Foucault

tinha em mente o público mais amplo, não o dos historiadores profissionais. Embora repleto de assombrosos detalhes históri­

cos, não é escrito na linguagem seca, acadêmica, da erudição historiográfica. Está redigido como literatura, conforme mos­ tra o fragmento no início deste capítulo, repleto de metáforas e alusões líricas: rios de mil braços, terras desconhecidas e mares

indomados. Alguns dos críticos de Foucault sugeriram que a linguagem intricada e intensamente poética funciona como

um véu para confundir o leitor e ocultar as falhas históricas, mas eu argumentaria que essa forma de expressão dá maior peso aos objetivos centrais do autor. Se o objetivo das histórias

de Foucault é descrever formas de experiência, elas deveríam

também, de maneira igualmente importante, evocar uma experiência no leitor. O livro exige não só nossas faculdades

racionais de argumentação, mas também nossas faculdades de

Razão e loucura

33

imaginação e emoção. Ele nos transmite algo sobre a loucura — uma experiência que reside do outro lado dos limites da

razão —, e esse algo não pode ser expresso na linguagem ra­

cional da filosofia. Foucault insistiu que, mais que escrever a história da linguagem da psiquiatria, que era “um monólogo

da razão sobre a loucura”, ele queria esboçar a arqueologia do silêncio da loucura.16

Para responder à pergunta óbvia de como o silêncio da lou­

cura poderia ser escrito, Foucault recorreu à literatura. Obser­

vou que o que o interessava e guiava ao escrever o livro eram certos traços de loucura presentes na literatura.17 Somente

um certo estilo de escrita literária poderia mostrar traços de loucura e evocar no leitor uma experiência capaz de contestar a idolatria da razão. Em História da loucura, Foucault toma nomes como Hõlderlin, Nerval, Nietzsche e Artaud como

exemplos de escritores que conseguiram mostrar o silêncio da loucura em seus escritos, mas não explora em detalhe a

natureza da linguagem literária no livro. Foi preciso esperar pela série de ensaios e artigos sobre literatura que ele publica­

ria nos anos seguintes. Foucault comentou certa vez numa entrevista que, assim

como havia livros da verdade e livros de demonstração, os

seus eram livros de experiência. Queria dizer com isso que a

experiência de ler mudava potencialmente o leitor e o impe­ dia de "ser sempre o mesmo ou de ter a mesma relação com as coisas e com os outros”.18 Seu objetivo era que seus livros

contribuíssem para uma transformação e, em menor grau, fos­ sem agentes dela. Escrevia para partilhar “uma experiência do

que somos, não só nosso passado mas também nosso presente,

uma experiência de nossa modernidade, de tal maneira que

34

Como ler Foucault

possamos sair dela transformados”.19 Em História da loucura, seu objetivo foi em última instância mudar a maneira como

percebemos as pessoas que julgamos dementes — e isso não pode ser feito apenas com argumentos racionais.

3. A morte do homem

Ao distinguir entre o nível epistemológico do conhecimento (ou

consciência científica) e o nível arqueológico do conhecimento, estou ciente de estar avançando numa direção prenhe de gran­

des dificuldades. Pode alguém falar da ciência e da sua história (e portanto de suas condições de existência, suas mudanças, os

erros que perpetrou, os súbitos avanços que a lançaram num novo curso) sem referência ao próprio cientista — e falo não ape­

nas do indivíduo concreto representado por um nome próprio, mas de seu trabalho e da forma particular de seu pensamento? É possível tentar uma história válida da ciência que retraçaria

do início ao fim todo o movimento espontâneo de um corpo

de conhecimento anônimo? Será legítimo, será ao menos útil,

substituir o tradicional “X pensou que...” por “sabia-se que...”? Mas não era exatamente isto que eu pretendia dizer. Não desejo negar a validade de biografias intelectuais, ou a possibilidade de

uma história de teorias, conceitos ou temas. Pergunto-me sim­ plesmente se tais descrições são elas mesmas suficientes, se fazem

justiça à imensa densidade do discurso científico; se não haveria, fora de seus limites habituais, sistemas de regularidades que têm um papel decisivo na história das ciências. Eu gostaria de saber

se os sujeitos responsáveis pelo discurso científico não são deter­ minados em sua situação, sua função, sua capacidade perceptiva

e suas possibilidades teóricas por condições que os dominam e

até os esmagam. Em suma, tentei explorar o discurso científico

não do ponto de vista dos indivíduos que estão falando, não do

35

36

Como ler Foucault

ponto de vista das estruturas formais do que estão dizendo, mas do ponto de vista das regras que entram em ação na própria exis­ tência desse discurso: que condições Lineu (ou Petty, ou Arnauld) tivera de preencher, não para tornar seu discurso coerente e ver­ dadeiro em geral, mas para dar a ele, no momento em que foi

escrito e aceito, valor e aplicação prática como discurso científico

— ou, mais exatamente, como discurso naturalista, economista ou gramatical?20 Prefácio

à edição inglesa de

As palavras

e as coisas

Publicado em 1966, As palavras e as coisas, foi um best-seller

instantâneo que tornou Foucault famoso. A primeira impres­ são esgotou-se em uma semana. É sob muitos aspectos o livro

mais exigente de Foucault, quase impenetravelmente rico em camadas e detalhes e intrincado na concepção. Contém profun­

das argumentações filosóficas abarcando a obra de pensadores

tão díspares quanto Descartes, Comte e Sade, e contribui para

a história da ciência oferecendo novas idéias acerca de tópicos variados, como a obra de naturalistas obscuros do Renasci­

mento e teorias da linguística do século XIX. Essas argumen­ tações eruditas e detalhadas sobre a filosofia e a história da

ciência se misturam a belas descrições e elegantes discussões da literatura e da pintura. Não surpreende a abundância de diferentes interpretações

da obra. O livro é lido por vezes como um esforço fracassado para construir uma abordagem estruturalista à historiografia

e, por outras, como um confuso exercício formal. O fragmento que escolhi (do prefácio de Foucault para a tradução inglesa,

acrescentado quatro anos após a primeira publicação) poderia

A morte do homem

37

ser lido como um esforço desesperado de sua parte para corri­ gir interpretações incorretas. Ele reprova enfaticamente leitu­

ras estruturalistas do livro e se refere a "certos comentadores imbecis” que insistem em rotulá-lo de estruturalista. O estruturalismo diz respeito a um conjunto de influentes pontos de

vista teóricos, prevalentes na França nos anos 6o, que tinham como principal objetivo explicar fenômenos sociais e cultu­

rais em termos de estruturas inconscientes subjacentes. Era

não histórico, e sob esse aspecto opunha-se diametralmente à abordagem de Foucault. A principal asserção de Foucault em As palavras e as coisas, no entanto, é de caráter “estrutural”, na medida em que aborda

estruturas inconscientes de pensamento. Ele afirma haver um nível de ordem, “um inconsciente positivo do conhecimento”,

que, embora escape à consciência do cientista, é formativo do discurso científico. Trata-se do nível arqueológico do conhe­

cimento em contraposição ao nível epistemológico, a que se refere no início do fragmento, e esse nível expõe os princípios

organizadores do conhecimento, as estruturas inconscientes

que ordenam os discursos científicos. Ainda que cientistas individuais nunca tenham formulado esses princípios, nem

tenham tido consciência deles na época, o nível arqueológico do saber define os objetos próprios para seu estudo: constitui as condições necessárias para a formação de conceitos e a cons­

trução de teorias.

Se quisermos compreender por que a ideia de evolução, por

exemplo, foi impossível por séculos, não basta apenas tentar compreender o gênio de Darwin. Precisamos compreender

as estruturas subjacentes do pensamento que formavam o

contexto em que ele pensou. Foucault afirma que a ideia de

38

Como ler Foucault

evolução só se tornou pensável em razão de uma mudança mais profunda no pensamento que fez com que os objetos de conhecimento empírico passassem a ser suscetíveis ao tempo.

Tornou-se possível definir a vida como associada ao desenvol­ vimento histórico uma vez que os objetos empíricos passaram a ser definidos não mais por seu lugar num sistema atemporal

de classificação, mas por seu lugar na história. Essa mudança mais profunda no arcabouço conceituai não poderia ser indu­

zida por nenhum cientista individual isolado, tendo sido antes

o resultado de uma multiplicidade de causas complexas que Foucault nem tenta enumerar. Ele quis estudar a história da ciência como um campo relativamente autônomo de unidades discursivas, regularidades e transformações, sem postular o

sujeito intencional — o cientista — como o principal fator explanatório. Seu objetivo não era fornecer explicações causais para mudanças na história, mas apenas descrever certas trans­

formações nas estruturas profundas de pensamento. Foucault havia usado a metáfora arqueológica em diferentes

contextos em seus primeiros trabalhos, e começou a usá-la sistematicamente como um nome para sua abordagem em

seus livros O nascimento da clínica: Uma arqueologia da percep­ ção médica (1963), As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas (1966) e A arqueologia do saber (1969). O termo

“arqueologia ” já havia sido usado como uma metáfora meto­ dológica por adeptos dos dois movimentos franceses de es­

tudo da história que tiveram maior influência sobre Foucault: a epistemologia histórica francesa, cujos representantes mais

conhecidos foram Gaston Bachelard e Georges Canguilhem, e a "nova história” da Escola dos Annales, uma escola de his­

toriografia que se tornou dominante após a Segunda Guerra

A morte do homem

39

Mundial. Apesar de muitas diferenças, esses dois movimentos

partilharam um foco em descontinuidades, a rejeição da his­ toriografia narrativa e a consciência crítica de que a pesquisa

histórica estava sempre construindo parcialmente seu tema.

Não aceitando mais as periodizações usuais, evidentes por si mesmas, baseadas em acontecimentos tais como tratados e

batalhas, eles buscavam novos tipos de eventos e novas manei­

ras de organizar séries de eventos, considerando períodos de tempo mais longos e rupturas, transformações e diversidades mais sutis.

A noção de arqueologia capta efetivamente as principais características da abordagem de Foucault à história da ciência

e realça os pontos em que ela difere da historiografia tradi­

cional. Ele estava mais interessado em camadas de problemas que em realizações individuais, o que reflete o significado de arqueologia no sentido convencional. Sua arqueologia não é história biográfica e não diz respeito às descobertas individuais de grandes homens. Antes, escava as profundezas do solo de nosso pensamento para definir escalas de tempo mais amplas e

os modos mais gerais de pensar que jazem por trás das diversas

opiniões e ações dos indivíduos. Ela distingue entre diferentes níveis de análise na história da ciência e penetra sob as obser­ vações, os experimentos e as teorias do indivíduo.

Por isso, além do nível das descobertas científicas, discus­

sões, teorias e idéias filosóficas, existe um nível arqueológico de pensamento que as forma. O objetivo de Foucault em As

palavras e as coisas foi revelar esse nível formativo do discurso científico, e ele inventou o conceito de episteme (épistémè) para

designá-lo. Revelando os embaraços e as condições necessárias à existência do pensamento de um período particular, ele bus­



Como ler Foucault

cou revelar as condições não subjetivas que tornavam possíveis experiências subjetivas de ordem e conhecimento. Descrever

a história em termos de epistemes foi antes de mais nada uma tentativa de mostrar que a história do pensamento não podia

ser compreendida apenas mediante o estudo do pensamento

de indivíduos. Devemos compreender as condições históricas e epistêmicas mais amplas que tornaram possível para sujeitos

individuais pensar e perceber o mundo à sua volta de certas

maneiras e através de certos conceitos, e também como de­ terminadas formas de pensar eram simplesmente impossíveis. Essa abordagem goza hoje de aceitação geral: é raro que a história das idéias ainda seja apresentada como uma sucessão de grandes pensadores que o impeliram adiante pela mera genialidade de suas mentes. As palavras e as coisas esteve na

vanguarda do movimento radical em direção à adoção de uma

perspectiva mais ampla da história das idéias, uma das qualida­ des menos controversas e mais amplamente reconhecidas do livro. Muito discutida, contudo, foi a maneira como Foucault

descreveu rupturas e descontinuidades fundamentais na his­

tória do pensamento ocidental. Ele situa os pontos de descontinuidade, distinguindo os sistemas epistêmicos subjacentes

a três épocas históricas: o Renascimento, a Idade Clássica e a

Modernidade. A divisão é a mesma presente em História da loucura. A primeira ruptura ou descontinuidade em sua investi­ gação arqueológica situa a aurora da Idade Clássica por volta de meados do século XVII; e ele pôs sua segunda ruptura epistê-

mica no início do século XIX, o qual, acreditava ele, anunciara

a aurora da Idade Moderna. Ao documentar rupturas ou descontinuidades entre as epis­

temes, Foucault estava se opondo ao desenvolvimento contí­

A morte do homem

4i

nuo da ciência e da racionalidade europeias. Seu objetivo, sob a perspectiva da história da ciência, era mostrar como formas modernas de conhecimento se originaram de uma ruptura fundamental na história das idéias, não sendo simplesmente

desenvolvimentos mais avançados de modos anteriores de conhecimento. Certas controvérsias e oposições, tradicional­

mente consideradas fundamentais por historiadores, eram de fato parte da mesma ordem epistêmica. Por outro lado, ho­

mens comumente considerados predecessores de pensadores

modernos estavam, em alguns casos, a despeito de algumas

semelhanças superficiais, operando num arcabouço conceituai inteiramente diferente. Para tomar mais uma vez o exemplo de Darwin, sustentase com frequência que suas idéias evolucionárias haviam sido

antecipadas por Lamarck. Foucault afirma em As palavras e as

coisas que, embora Lamarck escrevesse sobre a transformação das espécies ao longo do tempo, seu pensamento era limitado

pela episteme da Idade Clássica e baseava-se numa compreen­ são inteiramente diferente da natureza. Na episteme clássica, a

natureza só era concebível como um painel unificado, anistó-

rico, e as mudanças que Lamarck estudou eram deslocamentos de todo o sistema rumo a um estado mais elevado de perfeição.

Essa ideia era fundamentalmente diferente do conceito mo­

derno de vida, compreendida como um fenômeno histórico,

dinâmico. De maneira semelhante, as descobertas de Lamarck não tinham sido simples melhoramentos de teorias renascentistas

prévias, mas originaram-se de uma ruptura fundamental com

elas; “não se tornaram possíveis porque os homens examina­ ram de maneira mais rigorosa e atenta”,21 mas porque o modo

42

Como ler Foucault

de ser da ordem natural havia mudado. No Renascimento,

a natureza era compreendida como um organismo vivo, di­

nâmico, e o método usado para conhecê-la era a interpretação dos significados ocultos que ela encerrava. Na Idade Clássica,

por outro lado, o mundo natural consistia de matéria e mo­ vimento mecânico sem significado, e conhecê-lo significava

ordená-lo e classificá-lo. O historiador Paul Veyne resumiu o modo como Foucault, seu grande amigo e colega no Collège

de France, revolucionou a história dizendo que ele abordava o passado não como uma narrativa com um enredo huma­ namente significativo, mas como se o observasse através de

um caleidoscópio, contendo inúmeros fragmentos discretos.

Este revelava um padrão, mas um padrão moldado pelo acaso. Passar de uma episteme para outra era girar o caleidoscópio e

criar um novo padrão.22 As apostas de Foucault são altas também na arena filosó­ fica. Seu objetivo era nada menos que mostrar como toda

a filosofia anterior era falha, para imprimir-lhe uma nova

direção e ímpeto. As palavras e as coisas foi seu ataque mais incisivo às filosofias do sujeito — formas de pensamento que

davam primazia ao estudo da existência humana — e contém

sua crítica mais explícita e veemente à fenomenologia. Sua principal afirmação foi que o pensamento filosófico caíra na armadilha da difícil e paradoxal situação da episteme

moderna, e chegara por isso a um beco sem saída. Imitando de maneira consciente e provocativa a famosa declaração de

Friedrich Nietzsche sobre a morte de Deus, Foucault anun­ ciou a morte do homem. Assim como Nietzsche anunciara

que a morte de Deus prometia ao pensamento filosófico um

novo começo, ele anunciou a morte do homem como um acon­

A morte do homem

43

tecimento importante o bastante para inaugurar uma nova

episteme: “O vácuo deixado pelo desaparecimento do homem é o desdobramento de um espaço em que mais uma vez é

possível pensar.”23 Para Foucault, "homem” designa um ser humano, mas um

ser humano somente se compreendido de uma certa maneira,

a qual não era possível na Idade Clássica, por exemplo. Ele diz que o homem é um “duplo empírico-transcendental”, que­

rendo dizer com isso que o homem é um ser que é a condição

transcendental de todo conhecimento — todo conhecimento do mundo tem de se conformar ao modo humano de expe­

rimentá-lo — e, ao mesmo tempo, é um ser no mundo que pode ser empiricamente estudado e conhecido. O homem é

autônomo e racional e, ao mesmo tempo, o produto de for­ ças inconscientes e práticas culturais além de seu controle. É

formado por uma rede complexa de práticas sociais e fatos

históricos, e no entanto sua experiência é a possibilidade da elucidação deles mesmos.

Foucault afirma que essa forma de pensamento não é de maneira alguma necessária ou isenta de problemas. Embora

seja difícil para nós conceber qualquer outra forma de pensar

sobre as relações entre o sujeito, o saber e a história, Foucault diagnostica o homem como o problema da episteme moderna.

Um modo de pensamento que se centra no homem — um ser

humano tendo tanto a fonte do significado como o resultado

do mundo natural, da cultura e da história humanas — perma­

nece necessariamente ambíguo e circular. Filosofias do sujeito, como a fenomenologia, podem apenas mostrar como "o que

é dado na experiência e o que torna a experiência possível correspondem um ao outro numa interminável oscilação”.24

Como ler Foucault

44

Para Foucault, as possibilidades para pensar, abertas pela morte do homem, estavam associadas a uma nova compreen­ são da linguagem. O nascimento do homem foi possível graças

ao colapso da episteme clássica, mas estávamos novamente à

beira de uma nova episteme. A questão da linguagem havia se tornado a mais importante questão com que nos confrontávamos. "Toda a curiosidade de nosso pensamento reside agora

na questão: o que é linguagem, como podemos encontrar uma

maneira de contorná-la para fazê-la aparecer em si mesma, em toda a sua plenitude?”25 Essa questão anunciava uma nova

episteme. Foucault sugeriu que as novas possibilidades para

o pensamento residiam na análise da linguagem como algo mais fundamental que o homem. Em vez de a linguagem ser

somente um instrumento que usamos para traduzir nossas ex­

periências em palavras, as próprias experiências são formadas pelos modos como são conceituadas na linguagem. O reconhecimento de que a linguagem é fundamental­

mente constitutiva de nossas experiências do mundo é muitas vezes chamado, na filosofia, de "virada linguística”. A ideia

fundamental é que a linguagem forma os limites necessários

de nosso pensamento e experiência: só podemos experimen­ tar alguma coisa que a linguagem torne inteligível para nós.

Por não termos, por exemplo, as palavras que os esquimós têm para descrever os diferentes tons de neve, tampouco os

distinguimos em nossa experiência. Ao enfatizar que a linguagem tem mais importância que o

homem, Foucault está afirmando, portanto, que ocorreu uma inversão fundamental no horizonte de nosso pensamento. O pensamento filosófico vê agora a análise da linguagem — e

não a experiência humana — como o mais fundamental para

A morte do homem

45

a compreensão da natureza da realidade. Mesmo que o livro de Foucault, ou o pós-estruturalismo como um todo, não te­ nha inaugurado uma nova episteme, desempenhou um papel

capital ao dar forma à virada linguística na filosofia — um dos mais importantes desenvolvimentos na filosofia ocidental

durante o século XX.

A ênfase em estruturas anônimas e não em indivíduos torna

difícil, no entanto, a avaliação da influência do livro e de Fou­ cault como um pensador individual. Numa entrevista após a

publicação de As palavras e as coisas, ele explicou sua posição como o autor dessa obra. Afirmou que ela devia ser compreen­ dida como anônima porque também ele estava situado dentro

de sua própria episteme. O livro pertencia à forma historica­

mente específica de discurso que havia trazido a questão da linguagem para o primeiro plano de nosso pensamento. Fou­

cault conscientemente situava sua análise no anonimato geral de todas as investigações de então a respeito da linguagem. O autor está “presente no livro todo, mas é o ‘alguém’ anônimo

que fala hoje em tudo que é dito”.26

Mesmo enfatizando seu anonimato, o livro começa com um relato na primeira pessoa de uma experiência transformativa, uma forma de escrever que Foucault raramente usava. Ele abre o livro descrevendo como este surgiu de uma passagem de um

ensaio de Jorge Luis Borges. Borges citou "certa enciclopédia chinesa”, que apresenta um sistema de pensamento inteira­ mente diferente do nosso, dividindo os animais em catego­ rias tais como “pertencentes ao imperador”, “embalsamados”, “fabulosos” e “cães perdidos”. A passagem fez Foucault rir por

muito tempo, e a experiência destruiu todos os pontos de re­ ferência familiares de seu pensamento — nosso pensamento,

46

Como ler Foucault

o pensamento que carrega o selo de nossa era”.27 Foi no assom­ bro suscitado por essa estranha taxonomia que a devastadora impossibilidade de pensar de certas maneiras forçou Foucault

a questionar os limites de seu próprio pensamento.

Este início bem-humorado aponta para o objetivo do livro. Mesmo que estejamos aprisionados de maneira inevitável den­ tro de nossa própria episteme, é possível, em certa medida, nos tornarmos cientes de seus limites. E por meio da comparação

com antecedentes que são inteiramente diferentes que as estru­

turas inconscientes de nosso pensamento podem se manifestar. Fica claro que Foucault pretendeu que suas próprias descrições

de teorias científicas e classificações nesse livro funcionassem como a enciclopédia chinesa de Borges: elas se destinam a nos fazer perceber que há estruturas ocultas sob nossa própria ordem das coisas, e experimentar sua fragilidade. Quando lemos sobre o livro Historia serpentum et draconum,

do naturalista renascentista Aldrovandi, por exemplo, a expe­

riência é quase tão desorientadora quanto a leitura da enciclo­

pédia chinesa. Um dos capítulos no estudo de Aldrovandi sobre serpentes é organizado em tópicos que incluem a anatomia, a natureza e os hábitos delas, mas também mitologia, os deuses

aos quais são dedicadas, sonhos e o uso de serpentes na dieta humana. Ao distanciar o leitor de sua própria cultura, Foucault

pretendeu mostrar como formas de pensamento que agora

parecem impossíveis eram não apenas possíveis, mas também formas de saber plausíveis para aqueles que pensavam em ter­ mos de uma outra episteme. Isso significa que nossas formas atuais de pensamento poderão parecer igualmente risíveis e

impossíveis do ponto de vista do futuro. Nossas necessidades poderão igualmente se revelar não mais que contingências.

A morte do homem

47

Embora raras vezes isso seja reconhecido, As palavras e as coisas não é apenas uma tentativa de desenvolver uma alter­

nativa às abordagens da filosofia e da história das idéias que se

centram no sujeito. A obra compreende também uma parte das histórias do presente de Foucault: o objetivo não é sim­ plesmente compreender o passado, mas também viver uma

experiência que contesta a autoevidência de nossos próprios

modos de pensamento.

4. O anonimato da literatura

O autor permite uma limitação da cancerosa e perigosa prolife­ ração de significações dentro de um mundo onde somos parci-

moniosos não só com nossos recursos e riquezas, mas também

com nossos discursos e suas significações. O autor é o princípio da parcimônia na proliferação de significado. Em consequência, devemos inverter por completo a ideia tradicional do autor. Es­ tamos acostumados, como vimos antes, a dizer que o autor é o

criador genial de uma obra em que ele deposita, com infinita opulência e generosidade, um mundo inexaurível de significações. Estamos habituados a pensar que o autor é tão diferente de todos

os outros homens, e tão transcendente em relação a todas as lin­ guagens que, assim que ele fala, o significado começa a proliferar,

a proliferar indefinidamente. A verdade é exatamente oposta: o autor não é uma fonte

indefinida de significações que preenchem uma obra; o autor não

precede as obras; ele é um certo princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, limitamos, excluímos e escolhemos; pelo qual, em

suma, impedimos a livre composição, decomposição e recompo­ sição da ficção. De fato, se estamos acostumados a apresentar o autor como um gênio, como uma perpétua explosão de invenção,

é porque, na realidade, nós o fazemos funcionar exatamente da maneira oposta.... O autor é portanto a figura ideológica pela qual

marcamos a maneira como tememos a proliferação de significado. Ao dizer isto, pareço exigir uma forma de cultura em que a

ficção não fosse limitada pela figura do autor. Seria puro roman-

48

49

O anonimato da literatura

tismo, no entanto, imaginar uma cultura em que a ficção ope­ rasse num estado de absoluta liberdade, em que ela fosse posta à

disposição de todos e se desenvolvesse sem passar por algo como uma figura necessária ou restritiva. Embora, desde o século XVIII,

o autor tenha desempenhado o papel do regulador do ficcional, um papel muito característico de nossa era de sociedade indus­

trial e burguesa, de individualismo e propriedade privada, ainda assim, dadas as modificações históricas em curso, não parece necessário que a função do autor permaneça constante na forma,

na complexidade ou mesmo na existência. Penso que, à medida que nossa sociedade mudar, no momento mesmo em que estiver

no processo de mudança, a função do autor desaparecerá, e de tal

maneira que a ficção e seus textos polissêmicos irão mais uma vez

funcionar segundo um outro modo, mas ainda com um sistema de restrições — um que não será mais o autor, mas que terá de ser determinado, ou, talvez, experimentado.

Todos os discursos, sejam quais forem seus status, forma, valor, e seja qual for o tratamento a que serão submetidos, se desenvolve­

rão então no anonimato de um murmúrio. Não ouviriamos mais as perguntas tantas vezes formuladas: quem realmente falou? Foi

mesmo uma outra pessoa? Com que autenticidade ou originali­ dade? E que parte de seu eu mais profundo expressou em seu dis­

curso? Em vez disso, haverá outras perguntas, como estas: quais são os modos de existência desse discurso? Onde ele foi usado, como

pode circular, e quem pode se apropriar dele para si? Quais são os lugares nele em que há espaço para possíveis sujeitos? Quem pode assumir essas várias funções do sujeito? E por trás de todas estas

perguntas dificilmente ouviriamos alguma coisa além da leve agi­

tação de uma indiferença: que diferença faz quem está falando?28

"O

QUE É UM AUTOR?’

50

Como ler Foucault

Jean-Paul Sartre, o mais importante filósofo da geração pósguerra na França, escreveu em 1948 uma coletânea de ensaios

intitulada O que é a literatura?. Ele responde à sua própria per­ gunta de maneira inequívoca: o ponto de partida, o princípio norteador, bem como a meta final da literatura, é a liberdade. O autor deve guiar os pensamentos dos leitores para os opri­

midos do mundo e descrever o mundo como necessitando de

uma liberdade sempre maior. Esse compromisso com a liber­ dade da parte do autor é uma condição da boa literatura. Um

bom romance sempre exige que o leitor se torne ciente da opressão e se comprometa a acabar com ela, tomando partido

da liberdade.29 E em contraste com o pensamento de Sartre que melhor

podemos compreender a novidade das idéias de Foucault sobre o papel do autor e a relação entre literatura e liberdade. Para Foucault e a geração que se seguiu à de Sartre, a ideia de que a

escrita literária havia se dissociado da dimensão da expressão

individual tornou-se capital. Em oposição a Sartre e às idéias

correntes sobre literatura, eles sustentaram que a escrita literá­ ria se referia apenas a si mesma, e que as intenções do escritor eram irrelevantes para o modo como ela devia ser avaliada e

lida. Obras literárias não eram determinadas pelos compromis­ sos, motivos e intenções do autor que confere significados. Que

o escritor estivesse comprometido com a liberdade ou não, por exemplo, era irrelevante para o valor da própria obra. É um

tanto irônico que, se a mensagem de Sartre se destinava a nos libertar, fosse de Sartre —junto com tudo que ele representou

para o jovem Foucault — que Foucault quisesse se libertar.

Além de estudar a história do pensamento e o funcionamento das práticas científicas, a investigação do discurso que Foucault

O anonimato da literatura

5i

levou a cabo nos anos 60 desenvolveu-se numa outra direção importante — a saber, a literatura —, e ele publicou vários en­

saios influentes sobre o assunto. Por um breve período, esteve associado aos escritores agrupados em torno da revista literária Tel Quel, e de início seu pensamento se conformava em muitos aspectos às idéias do influente movimento que atribuía um papel

revolucionário à escrita de vanguarda. Esse movimento incluía pensadores famosos, como Julia Kristeva e Roland Barthes.

Os ensaios de Foucault sobre literatura complementam seus estudos de história da ciência, examinando a partir de um ou­

tro ângulo a relação entre o sujeito individual e a linguagem.

Agora, em vez do cientista, o sujeito individual é o autor lite­

rário; mas o objetivo de Foucault é mais uma vez questionar o

primado das intenções e experiências desse sujeito na análise do discurso. Deveriamos tentar compreender o significado, o

valor e o funcionamento dos próprios discursos, e não indagar

o que se passa na cabeça daqueles que os escreveram. As di­

mensões filosóficas e literárias da obra de Foucault tornam-se completamente entrelaçadas.

Em seu ensaio seminal “O que é um autor?”, o ponto de partida de Foucault é a declaração de que o autor morreu — as intenções do escritor não podem mais funcionar como a

fonte suprema do significado e do valor da obra. Em vez disso, devemos analisar como seu nome funciona na organização de

discursos. Foucault sustentou que o nome do autor não era um nome próprio como qualquer outro. O nome desempenha certas funções únicas com relação à ficção narrativa: permite

que se agrupe certo número de textos, define-os, diferencia-os e compara-os com outros, por exemplo. Se viéssemos a desco­

brir que Shakespeare não nasceu na casa em que pensávamos

52

Como ler Foucault

que nasceu, isso não afetaria a maneira como lemos as suas obras. Se descobrirmos que um manuscrito foi escrito por

Shakespeare e não por Bacon, por outro lado, essa descoberta afeta imediatamente a maneira como o lemos, avaliamos e

classificamos.

Apenas certos discursos em nossa cultura são dotados dessa função de autor”, enquanto outros são privados dela. Uma carta particular ou um contrato podem ter um signatário, mas não têm um autor. Um texto anônimo escrito no muro tem

um escritor — mas não um autor. A função do autor é carac­ terística apenas de certos discursos em nossa sociedade, e tais

discursos mudaram no curso da história. Houve tempo em que obras literárias — histórias e epopeias — eram aceitas e

apreciadas sem quaisquer indagações sobre a identidade dos

autores. Por outro lado, textos que hoje chamaríamos de cien­ tíficos, tratando de cosmologia e medicina, por exemplo, só

eram aceitos na Idade Média com o nome do eminente autor.

Desde então ocorreu uma inversão completa: hoje discursos científicos são aceitos não pelo nome do autor, mas pelo caráter anônimo e demonstrável de sua verdade. Discursos literários,

ao contrário, passaram a só ser aceitos quando dotados de um autor. Diferentemente de discursos científicos, seu significado,

status e valor dependem de quem os escreveu. Ser o autor de uma obra literária em nossa cultura, portanto, não significa

apenas tê-la produzido, significa também preencher, em relação a ela, uma função específica que é histórica e cultu­

ralmente determinada. A morte do autor não significa, é óbvio, que não haja sujeitos

escrevendo os livros com suas canetas ou computadores. O que ocorre é que, longe de ser a origem suprema do significado e

O anonimato da literatura

53

do valor de obras literárias, o autor é um princípio contingente

de sua classificação e organização. A maneira aparentemente natural como lhe foi atribuído o poder supremo sobre o signi­ ficado de obras literárias não é em absoluto inevitável: é espe­

cífica deste período histórico.

Na visão de Foucault, o papel do autor, nesta época histórica,

não é apenas uma contingência, mas também uma restrição. Lemos obras de literatura e filosofia para descobrir o que seus

autores quiseram dizer ao compô-las. Segundo Foucault, isso é problemático. Impede que a literatura seja lida de maneiras

radicalmente novas, não restringidas por essas considerações. O nome do autor não só organiza a obra de uma certa maneira,

com também limita, exclui e escolhe. Ele é o meio pelo qual a livre circulação, manipulação, composição, decomposição

e recomposição da ficção são impedidas. Embora nunca vá haver circulação completamente livre de textos, os modos de restrição são historicamente mutáveis, e é portanto possível

que um dia possamos viver numa cultura na qual, em vez

de limitados pela figura do autor, estaremos cercados por um murmúrio anônimo, uma interminável proliferação de signi­

ficados. Hoje, na era da internet, a visão de Foucault parece impressionantemente profética.

A fascinação de Foucault pela capacidade que a linguagem

tem de produzir significados independentemente das inicia­ tivas do sujeito que escreve é visível também em seu único

estudo sobre literatura com extensão de livro, Raymond Roussel. É comum esse livro ser excluído do cânone das principais

obras de Foucault. Diferentemente destas, não é uma história, e em geral não é lido como uma explicação de sua posição filosófica. No entanto, foi claramente em razão das implica­

54

Como ler Foucault

ções filosóficas da obra de Roussel, que fez experiências com

a natureza da linguagem, que Foucault se interessou por ele.30 Ao escrever alguns de seus livros, Roussel usou um método

que descreveu em sua obra póstuma, Commentj’ai écrit certains de mes livres (Como escrevi alguns de meus livros). O método

baseava-se em homônimos — palavras que são grafadas ou pronunciadas da mesma maneira, mas têm significados dife­

rentes. Um exemplo seria a palavra "cara”: ela tanto pode signi­

ficar “rosto” quanto “querida” quanto “de alto preço”. Roussel usava homônimos escolhendo uma palavra e associando-a a

outra com a preposição francesa à, e essas duas palavras, com­

preendidas num sentido diferente do original, lhe forneciam uma nova criação ou personagem. A expressão "rnaison à espag-

nolettes”, por exemplo, significa uma casa com aldrabas, mas

Roussel a usou como base para um episódio sobre uma casa real descendente de um par de meninas gêmeas espanholas —

seu segundo sentido. Ele fez experimentos também com o segundo tipo de ho­

mônimo — palavras que são pronunciadas da mesma maneira,

mas têm grafias diferentes, como "sinto” e “cinto”. Transfor­

mava uma frase comum, uma canção ou um verso de poesia numa série de palavras com sons semelhantes. Essas novas

palavras seriam homônimas das palavras iniciais, mas, é ób­

vio, totalmente heterogêneas entre si. O nome e endereço do sapateiro de Roussel, “Hellstern, 5 Place Vendôme”, seria trans­

formado na frase "Hélice tourne zinc plat se rend dome”, porque ela é pronunciada da mesma maneira. No entanto, significa

algo completamente diferente: “Hélice torna-se zinco superfí­ cie plana transforma-se em cúpula.”

O anonimato da literatura

55

Os ácaros cantantes, o homem truncado que é uma banda de

um homem só, o galo que escreve seu nome cuspindo sangue, a água-viva de Fogar, os guarda-sóis gulosos ... estas monstruo­ sidades sem família ou espécie são associações necessárias; obe­ decem matematicamente às leis que governam os homônimos

e aos mais rigorosos princípios de ordem; são inevitáveis ... A

princípio nenhum instrumento ou estratagema pode prever seu resultado. Então, o maravilhoso mecanismo assume o comando

e as transforma, duplica sua improbabilidade pelo jogo de ho­ mônimos, traça um elo “natural” entre elas, e as entrega por fim

com meticuloso cuidado. O leitor pensa reconhecer os capricho­

sos meandros da imaginação onde de fato há apenas linguagem aleatória, metodologicamente tratada.31

Foucault estava claramente fascinado pelos experimentos

de Roussel com a linguagem porque eles eram processos mecânicos que seguiam certas regras e princípios às cegas e,

ainda assim, eram capazes de criar novos e belos significados. A produção maquinai de beleza surreal ilustrava para ele a ideia de que a linguagem produz significados independen­

temente das iniciativas do sujeito. Em oposição a Sartre — segundo o qual as belezas que aparecem nos livros nunca são acidentais, como o é a beleza na natureza, porque são

o resultado da intenção do sujeito que escreve —, foi exata­

mente a criação acidental de beleza que encantou Foucault

nas obras de Raymond Roussel. Seus incríveis personagens e eventos eram combinações acidentais. Em vez de serem criações fantásticas de uma imaginação delirante e enge­

nhosa, eram os resultados casuais do tratamento mecânico da linguagem.

56

Como ler Foucault

Embora o próprio Roussel estivesse afirmando a pura ima­ ginação do escritor acima da representação da realidade, Fou­

cault rejeitou ambos os lados dessa oposição em razão da visão

filosófica da linguagem que lhe é subjacente. A seu ver, a obra

de Roussel não era nem uma representação da realidade, nem a expressão exterior dos meandros de sua imaginação. O que

fazia era demonstrar, no domínio da literatura, o que em filo­ sofia era chamado de virada linguística. Exemplificava a ideia

filosófica de que a linguagem não só descreve e "traduz” as ex­

periências que o sujeito tem da realidade ou suas experiências interiores como fantasias e lembranças, mas também forma realidade. Isso significa que o objetivo da literatura é não ape­

nas traduzir nossas experiências em palavras tão fielmente

quanto possível, mas sobretudo, na visão de Foucault, criar novas experiências. Os estudos de Foucault dos discursos científicos analisavam

o modo como a linguagem formava uma ordem ontológica das

coisas que estava implícita nas teorias e práticas científicas, mas

ele sustentou também que a linguagem da literatura era capaz de formar domínios ontológicos alternativos, não científicos e irracionais: diferentes experiências de ordem, com base em quais diferentes grades perceptivas e práticas se tornavam pos­

síveis e novas maneiras de ver e experimentar emergiam. Em

As palavras e as coisas ele escreveu que a literatura formava "uma

espécie de contradiscurso” liberto dos princípios de ordem que regulavam tanto o discurso científico quanto o discurso coti­

diano. Seu objetivo era precisamente transgredir os limites do discurso, torná-los visíveis e contestáveis, e descobrir uma “lou­

cura” na linguagem como “aquela região informe, muda, não significativa onde a linguagem pode encontrar sua liberdade”.32

O anonimato da literatura

57

Em seus outros ensaios literários sobre escritores como

Georges Bataille e Maurice Blanchot, Foucault enfocou também a capacidade que a escrita experimental tem de transgredir os

limites de nossos conceitos e experiências comuns ao ponto do

paradoxo: a escrita apaga o sujeito unificador e deixa a lingua­ gem transbordar seus limites usuais. Embora só a linguagem

torne possível o conhecimento ordenado e racional do mundo, ela é também o nosso acesso ao irreal e irracional. A natureza constitutiva mas ao mesmo tempo ambígua e anônima da linguagem faz dela o horizonte em eterno recuo, o pano de

fundo infinitamente rico sobre o qual o sujeito pode pensar e experimentar o mundo de maneiras novas e criativas. Em seus estudos da literatura, Foucault suscitou questões

filosóficas sobre a natureza da linguagem e sobre o sujeito que escreve como a origem do significado. Buscando contestar o

privilégio fenomenológico concedido ao sujeito e à ideia de

linguagem que isso implica, ele mapeou também novas idéias

de liberdade não vinculadas à noção de um sujeito que con­ fere significado, sua natureza, suas iniciativas ou capacidades.

Diferentemente de Sartre, Foucault não concebia a liberdade como uma característica inerente ao sujeito: ela não era algo

que ele possuía e podia transferir para sua obra. A liberdade caracterizava antes a própria linguagem e as experiências que

ela tornava possíveis. A linguagem formava um horizonte ili­ mitado que possibilitava uma variedade de experiências.

Embora em geral se interprete que Foucault enfatizou as

estruturas necessárias de nosso pensamento e experiência e

negou nossa liberdade inerente, há, implicitamente salvaguar­ dada em seu pensamento, uma compreensão anti-humanista

da liberdade como uma proliferação ilimitada de significados

58

Como ler Foucault

e experiências. Ele tentou mostrar como nosso pensamento é sempre restringido por estruturas discursivas profundas, além

de nosso controle, mas também como podemos estender seus

limites através da escrita de vanguarda. Para ele, a literatura contestava determinações e revelava novos modos de experi­

mentar o mundo.

5. Da arqueologia à genealogia

Como podemos definir a relação entre genealogia ... e história no sentido tradicional? Poderiamos, é claro, examinar as célebres

invectivas de Nietzsche contra a história, mas vamos deixá-las de lado por um momento e considerar aqueles casos em que ele concebe a genealogia como

wirkliche Historie.

... O significado

histórico torna-se uma dimensão da wirkliche Historie na medida em que inclui num processo de desenvolvimento tudo que é con­

siderado imortal no homem. Acreditamos que os sentimentos são imutáveis, mas cada sentimento, particularmente os mais nobres

e mais desinteressados, tem uma história. Acreditamos na tediosa constância da vida instintiva e imaginamos que ela continua a

exercer sua força indiscriminadamente no presente como fez no passado. Mas um conhecimento de história desintegra facilmente essa unidade, descreve seu curso hesitante, localiza seus momen­

tos de força e fraqueza, e define seu reinado oscilante. Apreende facilmente a lenta elaboração dos instintos e aqueles movimentos em que, ao se voltarem contra si mesmos, eles iniciam de maneira

incessante sua autodestruição. Acreditamos, em todo caso, que o

corpo obedece às leis exclusivas da fisiologia e escapa à influência

da história, mas isso também é falso. O corpo é moldado por

muitos regimes distintos; é derrotado pelos ritmos do trabalho, repouso e feriados; é envenenado por comida ou valores, através

de hábitos de alimentação ou leis morais; constrói resistências. A história “efetiva" difere da história tradicional por ser desprovida

de constantes. Nada no homem — nem mesmo seu corpo — é es­

59

6o

Como ler Foucault

tável o bastante para servir de base para o autorreconhecimento

ou para a compreensão de outros homens. Os instrumentos tra­

dicionais para se construir uma visão completa da história e para se reconstituir o passado como um desenvolvimento paciente e contínuo devem ser sistematicamente desmantelados. Precisa­

mos, necessariamente, rejeitar aquelas tendências que encora­

jam o jogo consolador dos reconhecimentos. O conhecimento, mesmo sob a bandeira da história, não depende da “redescoberta”, e exclui enfaticamente a “redescoberta de nós mesmos”. A his­ tória se torna eficaz à medida que introduz descontinuidade em

nosso próprio ser — que divide nossas emoções, dramatiza nos­ sos instintos, multiplica nosso corpo e o lança contra si mesmo.

A história “efetiva” priva o eu da tranquilizadora estabilidade da vida e da natureza, e não se permitirá ser transportada por uma obstinação sem voz rumo a um término milenar. Ela erradicará

suas fundações tradicionais e romperá incessantemente sua pre­

tensa continuidade. Porque o saber não é feito para compreender; é feito para cortar.33 “Nietzsche,

a genealogia e a história”

O ensaio “Nietzsche, a genealogia e a história”, de Foucault, é muitas vezes interpretado como marco do início da fase ge­

nealógica em seu pensamento. O texto introduz o conceito

de genealogia, um termo tomado de Friedrich Nietzsche, que posteriormente tornou-se o termo preferido de Foucault para

designar seu próprio projeto. O ensaio não é, contudo, uma ex­

posição metodológica de sua genealogia, mas sim uma leitura meticulosa dos textos de Nietzsche, em particular seu ensaio

“Das vantagens e desvantagens da história para a vida”. O uso

Da arqueologia à genealogia

61

do conceito de genealogia já é complexo e incongruente no

pensamento de Nietzsche. Refere-se de maneira frouxa à historicização crítica de algo a que em geral não se atribuía uma

história, como o corpo e seus instintos e funções naturais, ou valores morais supostamente atemporais. O mesmo pode ser dito de Foucault. Ele nunca deu uma definição específica ou

sistemática de genealogia, e os traços essenciais de sua genea­ logia têm de ser reunidos a partir de diferentes livros, artigos

e entrevistas. Ela é mais bem-compreendida, portanto, como

uma prática crítica, com vários estratos, do que como um mé­ todo estrito.

O uso mais famoso do conceito de genealogia por Nietzsche

ocorre em seu livro A genealogia da moral, em que faz uma crítica radical da moralidade ao traçar sua história. A argu­

mentação significava uma rejeição dos valores morais supos­ tamente eternos do cristianismo, mostrando sua emergência

histórica a partir dos atributos psicológicos dos escravos. A

moralidade cristã foi na origem a moralidade dos escravos, que transformaram os atributos que eram obrigados a adotar em

valores morais: humildade, modéstia, automortificação e man­

sidão. A moralidade que Nietzsche defende é a moralidade dos

senhores. Seus valores — orgulho, glória e poder — parecem presunção pecaminosa aos olhos dos ressentidos escravos, mas

ele os considera afirmadores da vida e positivos. Embora os métodos de Foucault e Nietzsche tenham ele­

mentos essenciais em comum — por exemplo o uso da história

como crítica —, a genealogia de Foucault não é uma adaptação fiel do pensamento de Nietzsche e não deveria ser interpretada como tal. Foucault não operou com explicações psicológicas ou

raciais como fez Nietzsche, por exemplo, mas questionou de

62

Como ler Foucault

maneira profunda a importância do sujeito individual e seus atributos psicológicos. Deixou claro também que estava mais

interessado em usar Nietzsche para objetivo próprio do que

em segui-lo fielmente.34

Ele escolheu, da genealogia de Nietzsche, alguns elementoschave que se tornaram decisivos para seu próprio pensamento.

Começa o ensaio “Nietzsche, a genealogia e a história” es­ crevendo que a genealogia "é cinzenta, meticulosa e pacien­ temente documental”. Essa caracterização já indica a oposição que pretendia estabelecer: de um lado estão os pretensiosos

sistemas filosóficos que advogam uma crença tranquilizadora

na "verdade eterna, na imortalidade da alma e na natureza

da consciência como sempre idêntica a si mesma”, e de ou­ tro está a genealogia, modesta e despretensiosa, mas eficaz e penetrante. Ela envolve o estudo da história e documenta

fatos detalhados, mas isso não significa que seja desprovida

de impacto filosófico ou crítico. De fato, exatamente o oposto é verdade: seu método historiográfico representa uma nova

maneira de fazer filosofia que contesta de maneira radical a especulação metafísica ociosa. O objetivo é historicizar para

questionar radicalmente o caráter atemporal e inevitável de

práticas e formas de pensamento. A passagem da arqueologia para a genealogia que ocor­

reu no pensamento de Foucault nos anos 70 não significou o

abandono do uso da historiografia como método filosófico. Ele não abandonou tampouco nenhum dos importantes insights

metodológicos que caracterizavam a arqueologia. Isso teria

significado recuar para uma história tradicional, "ingênua". A mudança para a genealogia ocorrida no início dos anos 70 é uma mudança no foco do seu questionamento. O que lhe

Da arqueologia à genealogia

63

interessava na história da ciência não eram mais questões

concernentes às regras internas e condições da emergência de práticas discursivas, ou se o desenvolvimento da ciência era contínuo ou descontínuo. Ele se voltou, em vez disso, para o

estudo da conexão entre relações de poder e a formação do co­

nhecimento científico. A principal asserção de sua genealogia

é que as regras que regulam as práticas científicas estão sem­ pre associadas às relações de poder da sociedade em questão.

Domínios de saber e relações de poder estão intrinsecamente relacionados, e esse entrelaçamento fundamental é o que Fou­ cault chama de o híbrido poder/saber.

Em seu livro Vigiar e punir, ele ilustra o entrelaçamento de formas de saber com práticas de poder discutindo a emergên­

cia da criminologia como ciência no século XIX. Ele afirma

que ela se desenvolveu lado a lado com uma prática específica de poder: a prisão. O objetivo da prisão moderna não era sim­ plesmente punir, mas em última análise reeducar e reformar o criminoso. Para tanto, era importante reunir conhecimento

sobre ele: registrar seu comportamento, estado de espírito e melhora gradual, por exemplo. Foucault mostra como a prática

da redação de um relatório detalhado sobre cada prisioneiro foi introduzida e tornada compulsória nas prisões em meados do século XIX e afirma que esse conhecimento formou os dados empíricos da criminologia e tornou possível seu surgimento

como ciência.35 Os interesses e necessidades da justiça criminal estimularam o desenvolvimento de ciências como a criminologia, que podia

ser usada para facilitar o funcionamento das prisões. Foucault

afirma que mecanismos de poder são sempre utilizados de acordo com procedimentos, instrumentos e objetivos vali­

64

Como ler Foucault

dados em sistemas de saber mais ou menos coerentes. Para o funcionamento eficaz da prisão, era importante haver um

corpo de saberes que regulasse e justificasse o exercício do poder punitivo. Ao mesmo tempo, o conhecimento científico possui necessariamente efeitos de poder pelo simples fato de

ser cientificamente validado, racional e aceito de maneira geral.

Mesmo quando não era usada de maneira direta para corrobo­

rar os objetivos do poder punitivo, a criminologia moldava as maneiras de pensar e sentir das pessoas em relação ao crime,

aos criminosos e às prisões.

Essa maneira de compreender a relação entre conhecimento científico e seu contexto social e político é muitas vezes cha­

mada de externa na filosofia da ciência. Significa que nossos

interesses e necessidades sociais e políticos influenciam o tipo de pesquisa científica que é financiado e estimulado e, inver­ samente, que verdades científicas moldam nossos interesses

e necessidades sociais e políticos, mas o conteúdo da própria ciência não fica comprometido por isso. Em outras palavras,

mesmo que os que estão no poder possam determinar que

tipos de questão são formuladas, as respostas que a ciência dá a essas perguntas são objetivamente verdadeiras. No caso da criminologia, o fato de que as práticas de punição requeriam

o conhecimento que ela fornecia não implicava, contudo, que

esse conhecimento fosse ele mesmo tendencioso de alguma maneira. A afirmação de Foucault sobre o entrelaçamento de poder e

saber é por vezes mais forte. A seu ver, a relação entre ambos

é interna: o contexto social e político do conhecimento cien­ tífico também molda o conteúdo do próprio conhecimento

científico. Em outras palavras, as respostas que a criminologia

Da arqueologia à genealogia

65

fornece para os que estão no poder são elas mesmas moldadas por estruturas de poder. A criminologia construiu classes de

delinquentes, por exemplo, cada qual dotada de características próprias e requerendo um tratamento específico. Essas classes

supostamente objetivas e científicas refletiam os preconcei­

tos sociais e hierarquias da sociedade na época: os criminosos eram desviantes e perversos com predisposições e instintos pe­ rigosos. Foucault chama esse conhecimento de “uma zoologia de subespécies sociais” e cita as obras dos primeiros criminolo-

gistas como exemplos aterradores. Afirmava-se, por exemplo, que criminosos condenados comprovadamente dotados de

uma inteligência mediana, mas que haviam sido pervertidos por uma "moralidade iníqua”, exigiam tratamento diferente daqueles pertencentes a classes caracterizadas por incapacida-

des inerentes. Deveríam passar dia e noite isolados, e, “quando fosse inevitável pô-los em contato com outros, deveríam usar uma máscara leve feita de rede de metal”.36

Pode-se argumentar, é claro, que exemplos extremos como este ainda não provam que toda ciência é igualmente distor­ cida. Pode-se discutir em que medida Foucault está compro­

metido com a ideia de que todas as verdades científicas são

construções sociais, e portanto necessariamente carregadas de

valores e interesses sociais e políticos. Ele sustenta com toda clareza que a ciência é uma prática social. Todas as sociedades têm práticas e instituições para a produção de saber, e o desen­

volvimento da ciência é uma atividade necessariamente social, não individual. Os elementos do saber têm de se conformar

a um conjunto de regras e limitações características de um

dado tipo de discurso científico num dado período. Essa visão não implica, contudo, que todas as teorias sejam igualmente

66

Como ler Foucault

verdadeiras ou falsas: ela não exclui a possibilidade de se alcan­ çar verdades objetivas. Em vez de compreender a objetividade

como independência de todos os critérios socialmente forma­

dos, podemos compreendê-la como um consenso consumado da comunidade científica. Enquanto a comunidade científica estiver aberta à crítica, as crenças — ou preconceitos — sociais

básicas que moldam as teorias científicas podem ser questio­ nadas e o consenso quanto ao que é objetivamente verdadeiro

pode ser transformado. As teorias dos primeiros criminologistas, por exemplo, foram substituídas por outras que corrigiam

suas tendenciosidades. Foucault restringiu de maneira explícita sua análise das conexões entre poder e saber às ciências humanas, aquelas

em que "o próprio sujeito é postulado como um objeto de co­ nhecimento possível”.37 Mesmo que seja inevitável que nossas

crenças básicas moldadas socialmente configurem todas as práticas científicas em alguma medida, é claro que no campo

das ciências humanas sua influência é particularmente forte

e perigosa. Nossos pressupostos tácitos sobre gênero, raça e classe, por exemplo, são menos perigosos quando tentamos

interpretar o comportamento de partículas subatômicas do

que quando tentamos interpretar o comportamento de seres humanos. Foucault nos desaconselha a adotar uma crença básica em particular, a saber, a de que existem universais antropológicos:

verdades sobre o ser humano que vigoram em todas as cultu­ ras e todos os tempos históricos. Assim que determinamos

que algo deve se aplicar a todos os seres humanos, criamos uma norma contra a qual o comportamento humano pode ser medido e julgado. Ao estabelecer uma concepção científica

Da arqueologia à genealogia

67

da sexualidade humana que a vê como um ímpeto natural e

universal para procriar, por exemplo, marginalizamos de fato toda uma série de comportamentos sexuais. Foucault insiste, portanto, que a genealogia deve ser desprovida de constantes e

que isso implica um ceticismo sistemático com relação a todos os universais antropológicos. No domínio de nosso saber, tudo que nos é apresentado como tendo validade universal, no que diz respeito à natureza humana ou às categorias que podem ser aplicadas ao sujeito, precisa ser

posto à prova e analisado: recusar os universais da “loucura”,

“delinquência” ou “sexualidade” não significa que essas noções

não se referem a coisa alguma, nem que são apenas quimeras inventadas no interesse de uma causa dúbia. A recusa acarreta, contudo, mais que a simples observação de que seu conteúdo

varia com o tempo e as circunstâncias; acarreta a reflexão sobre as condições que tornam possível, segundo as regras da veraci­ dade, reconhecer um sujeito como doente mental ou fazer com

que sujeitos reconheçam a parte mais essencial de si mesmos na

modalidade de seu desejo sexual. A primeira regra metodológica para esse tipo de trabalho é portanto a seguinte: evitar universais antropológicos tanto quanto possível, de modo a interrogá-los em

sua constituição histórica.38

Assim, as constantes ou universais antropológicos não são re­ jeitados a princípio, mas submetidos a um questionamento

histórico radical. Tudo, inclusive aquelas coisas que estamos convencidos de que não têm história, é esmiuçado. Entre elas,

uma de especial importância é o corpo. Acreditamos que

“o corpo obedece às leis exclusivas da fisiologia e escapa à

68

Como ler Foucault

influência da história”, mas Foucault afirma que isso não é

verdade. Nossos corpos, também eles, só existem em sociedade.

São moldados por normas de saúde, gênero e beleza, por exem­ plo. São concretamente moldados por dieta, exercício e inter­ venções médicas. Em suma, eles também têm uma história.

As genealogias são “histórias do corpo”: elas questionam tipi­

camente todas as explicações puramente biológicas para áreas

complexas do comportamento humano como a sexualidade, a insanidade ou a criminalidade. Embora as concepções de poder e saber de Foucault tenham muito em comum com linhas influentes na filosofia da ciên­

cia, segundo as quais a ciência é conhecimento social, suas genealogias têm características estilísticas que as distinguem

de todas as exposições filosóficas tradicionais. As genealogias podem ser interpretadas como exemplificando um gênero tex­ tual específico.39 Foucault partilha com Nietzsche um estilo de escrita extremamente retórico e hiperbólico que usa gestos

dramáticos e imagens chocantes. Vigiar e punir tem um início famoso: a descrição detalhada da tortura e execução públicas de Robert Damiens, condenado por regicídio em 1757. Foucault nos dá todos os detalhes horripilantes, tomados de relatos de testemunhas oculares, de como Damiens foi torturado com

tenazes em brasa, enxofre, chumbo derretido, óleo fervente e resina ardente, e de como seu corpo foi depois puxado e

esquartejado por quatro cavalos. As características dramáticas da genealogia são por vezes criticadas como desnecessárias e manipuladoras. Essa forma de

representação, contudo, é uma parte essencial da manifestação da crítica genealógica, porque a eficácia crítica da genealogia

decorre de sua capacidade de provocar uma experiência no

Da arqueologia á genealogia

69

leitor. Ela tem de nos obrigar, à força de um choque, a ver algo que até então nos recusávamos a ver. A descrição da tortura de Damiens exemplifica uma maneira de punir criminosos que nos parece horrenda e dramática, mas que foi considerada na­ tural numa época não tão remota. Ela forma o pano de fundo

para as afirmações de Foucault sobre os modos tipicamente modernos de punição que o livro focaliza.

Outra característica estilística que Foucault partilha com Nietzsche é a atitude de desconfiança e ironia. As genealogias caracterizam-se por uma atitude de ceticismo com relação ao que

é considerado mais venerável e nobre.40 No caso de Nietzsche, isso significou desmascarar as detestáveis origens da moralidade,

e no de Foucault tomou a forma do questionamento de todos os motivos puramente científicos e humanitários para reforma, bem como a noção de progresso. Em História da loucura, por

exemplo, Foucault afirmou que as reformas abrangendo as ins­ tituições psiquiátricas eram motivadas menos por preocupações humanitárias que pelo desejo de promover um sistema mais

eficiente de controle. A ironia é evidente em suas tentativas de inverter objetivos e propósitos abertamente proclamados para revelar seus opostos. Em sua história da prisão, Vigiar e punir, ele

afirmou que, a despeito de sua finalidade declarada, a função da prisão era, na verdade, produzir delinquentes e não prevenir o crime. Observa que "talvez devéssemos substituir a observação de que a prisão não consegue eliminar o crime pela hipótese de

que ela teve grande sucesso na produção de delinquência, um tipo específico, uma forma política ou economicamente menos

perigosa — e, por vezes, usável — de ilegalidade”.41 Apesar das influências nietzschianas abertamente proclama­

das, os elementos essenciais do pensamento de Foucault não

70

Como ler Foucault

mudaram com a introdução da genealogia. O que distingue a genealogia, como a arqueologia, da historiografia tradicional

é que ela é wirkliche Historie, história efetiva: o que importa não é apenas compreender o passado, mas mudar a maneira

como vemos o presente. O objetivo é "libertar” não só grupos

marginais, como os doentes mentais e os prisioneiros, mas também o resto de nós, mostrando as contingências em jogo

na formação do que consideramos como verdades científicas.

6. A prisão

O Panóptico de Bentham é a figura arquitetônica dessa composi­ ção. Conhecemos seu princípio: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é perfurada por várias janelas que

abrem para a face interna do anel; a construção periférica é divi­ dida em celas, cada uma das quais atravessa toda a espessura da

construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspon­

dendo à janela da torre; a outra, que dá para o exterior, permite

à luz atravessar a cela de uma ponta à outra. Basta então instalar

um vigia na torre central, e em cada cela encarcerar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Graças

ao efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se

exatamente sobre a luz, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. São como muitas gaiolas, muitos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e

constantemente visível. O dispositivo panóptico dispõe unida­ des espaciais que permitem ver constantemente e reconhecer de

imediato. Inverte-se, em suma, o princípio da masmorra; ou me­

lhor, de suas três funções — encerrar, privar de luz e esconder —,

conserva-se apenas a primeira e suprimem-se as outras duas. A iluminação total e o olhar de um vigia captam melhor do que a

escuridão, que em última análise protegia. A visibilidade é uma armadilha.

Isso permite em primeiro lugar — como efeito negativo — evitar aquelas massas compactas, fervilhantes, tumultuadas que

encontrávamos nos locais de encarceramento, aqueles que Goya 7i

Como ler Foucault

72

pintava ou Howard descrevia. Cada um, em seu lugar, está segu­

ramente confinado numa cela onde é visto de frente pelo vigia; mas as paredes laterais o impedem de entrar em contato com os companheiros. Ele é visto, mas não vê; objeto de uma informação, jamais sujeito numa comunicação. A disposição de sua câmara,

diante da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. E essa é a garantia da ordem ... A multidão, massa compacta, lugar de múltiplas trocas, individualidades que

se fundem, efeito coletivo, é abolida em benefício de uma coleção

de individualidades separadas. Do ponto de vista do guarda, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável;

do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e observada.

Daí o principal efeito do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o

funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo que seja descontínua

em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a

atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetônico seja

uma máquina para criar e sustentar uma relação de poder inde­ pendente daquele que o exerce; em suma, que os detentos sejam apanhados numa situação de poder de que eles mesmos são os

portadores. Vigiar e

punir

O projeto deJeremy Bentham para uma prisão ideal, o Panóp­ tico, datado de 1791, foi o paradigma de Foucault para um novo

tipo de poder que ele chamou de poder disciplinar. Bentham foi

A prisão

73

um jurista e filósofo político do Iluminismo, e seu projeto de

prisão era visto de modo geral com uma curiosidade histórica até que Foucault fizesse dele o foco de seu estudo genealógico.

Ele o viu como uma admirável ilustração, “um diagrama”, para uma nova maneira de conceber o poder. Em vez de basear-se

na figura de um soberano, como o monarca, esse novo tipo

de poder era anônimo e mecânico. Em vez de funcionar por meio de restrições externas e violência espetacular, operava

através da internalização de um olhar discreto, vigilante. Em vez de esconder e reunir seus sujeitos, tentava torná-los visíveis

e separá-los uns dos outros. A provocativa afirmação de Foucault nesta primeira obra importante de seu período genealógico é que, embora o Pa-

nóptico como tal não tenha sido construído, seus elementos

essenciais passaram a caracterizar uma nova forma de poder: o poder disciplinar. Esses elementos estão presentes no projeto

e na construção de numerosas instituições e espaços da socie­ dade moderna, como escolas, hospitais, fábricas e prisões. Vi­

vemos numa sociedade disciplinar em que o poder é exercido mediante uma vigilância difusa, mas anônima. Hoje o poder

disciplinar assume a forma tecnologicamente mais sofisticada das câmeras automáticas, códigos de barra eletrônicos e telefo­

nemas monitorados, mas os princípios operativos permanecem os mesmos. A discussão detalhada que Foucault faz do projeto arqui­

tetônico de uma prisão ideal é também um exemplo de sua

preferência por modelos espaciais: para ele, pensar filosofica­ mente é pensar espacialmente. Numa entrevista, ele comentou suas “obsessões espaciais” observando que era através delas que encontrava uma maneira de pensar sobre as possíveis

74

Como ler Foucault

relações entre poder e saber.42 O Panóptico mostra em ter­ mos muito concretos como uma certa distribuição espacial

do poder torna possível um saber mais detalhado e preciso

de seus sujeitos. Quando a conduta de um indivíduo pode ser

constantemente observada, ela pode também ser avaliada em detalhe. É possível medir níveis, comparar comportamentos e

classificar desempenhos. Esse saber reforça os efeitos do poder, oferecendo novas ferramentas para imaginar maneiras cada vez mais detalhadas e sutis de moldar o comportamento, os

desejos, os objetivos e as experiências dos internos. Ele torna possível punir e recompensar até desvios insignificantes em relação à norma, por exemplo. Transforma cada indivíduo

num “caso” que pode ser descrito, medido e comparado com outros, mas também corrigido, excluído e normalizado. Como

Foucault escreve no fragmento citado, a visibilidade é uma armadilha, porque assegura o permanente controle do poder

sobre seus sujeitos. Ser constantemente visto mantém a relação de poder. O Panóptico revela a anatomia do poder moderno, demonstrando a interdependência essencial entre formas de

conhecimento, técnicas de poder e seus sujeitos. Em suas análises arqueológicas Foucault havia começado a

repensar o sujeito, questionando seu status fundador na produ­ ção de conhecimento científico. A adoção da genealogia como seu método, nos anos 70, permitiu-lhe apresentar uma descri­

ção mais completa da constituição do sujeito — a subjetivação.

Sua principal asserção foi que ser um sujeito, um indivíduo socialmente reconhecível com intenções, desejos e ações in­

teligíveis, só era possível dentro das redes de poder/saber de uma sociedade. Na sua visão, todas as identidades eram criadas

por meio de práticas de poder e saber. As relações de poder

A prisão

75

não existem entre sujeitos com identidades predeterminadas, mas são constitutivas dos próprios sujeitos, moldam condutas

e instilam formas de autoconsciência. Os sujeitos em relação aos quais a rede de poder é definida não podem ser concebidos

como existindo à margem dela. Em Vigiar e punir Foucault analisa as maneiras como sujei­

tos criminosos — indivíduos que são entendidos e entendem a si mesmos como delinquentes — são constituídos em redes de poder/saber. Em primeiro lugar, as práticas na prisão ma­ nipulam e moldam concretamente seus corpos através de re­ gimes de exercício, regras minuciosamente detalhadas, vigi­

lância constante, dieta e horários estritos. Hábitos e padrões

de comportamento são destruídos e reconstruídos de novas maneiras. Em segundo lugar, os corpos dos prisioneiros são

classificados e examinados cientificamente. Embora as tipolo­ gias dos primórdios da criminologia possam ter sido descar­

tadas, os princípios de observação e avaliação prevaleceram. Os prisioneiros são casos a ser estudados cientificamente, bem como corrigidos institucionalmente.

Os processos de manipulação física concreta e objetificação científica reforçam-se um ao outro. A sujeição tornou possível a objetificação teórica, levando ao nascimento de ciências como

a criminologia e a psiquiatria criminal. O desenvolvimento dessas ciências, por outro lado, ajudou no desenvolvimento e

na racionalização de tecnologias disciplinares. Além disso, as duas dimensões foram efetivamente associadas por meio da normalização. Os discursos científicos produzem verdades que funcionam como a norma: eles nos dizem, por exemplo, qual

é o peso, a pressão sanguínea e o número de parceiros sexuais normais para certo grupo de idade e sexo. A subjetivação

Como ler Foucault

76

opera por meio da internalização dessas normas. Modificamos nosso comportamento numa incessante tentativa de nos apro­ ximarmos do normal, e nesse processo nos tornamos certo

tipo de sujeitos. As normas também promovem a objetivação ao reduzir a individualidade a uma medida comum: todos nós

podemos ser reduzidos a um ponto numa curva.

No que diz respeito a prisioneiros, o objetivo do poder dis­ ciplinar não é reprimir seus interesses ou desejos, mas cons­

truí-los como normais. Ele não submete os corpos à violência

externa da mesma maneira que o poder pré-moderno mutilou o corpo de Damiens. O poder coercitivo é internalizado e o

prisioneiro torna-se seu próprio vigia. Embora no passado o corpo tenha sido também intimamente associado ao poder e à ordem social, Foucault afirma que o poder disciplinar nesse

sentido é, em essência, um fenômeno novo, moderno. Ao

contrário de outras formas de coerção física, ele não mutila o corpo do criminoso, mas molda-o de maneiras mais profundas e detalhadas. O criminoso literalmente incorpora os objetivos do poder, que se tornam a norma para seus próprios objeti­ vos e comportamento. Numa formulação poética, Foucault

escreveu que a “alma” do prisioneiro — aquela que é supos­ tamente sua parte mais autêntica — é de fato um efeito da

sujeição de seu corpo. O homem de que nos falam, e nos convidam a libertar, já é em si o

efeito de uma sujeição muito mais profunda que ele mesmo. Uma “alma” o habita e o traz à existência, que é ela mesma uma peça no domínio que o poder exerce sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo.43

A prisão

77

Vigiar e punir não é apenas uma análise profunda e uma recon­

sideração filosófica da relação entre poder, saber e o sujeito; é também uma crítica genealógica de nossas práticas de punição. Essa foi mais uma obra a emergir da experiência pessoal de

Foucault. Em 1971, ele formou, com alguns amigos e colegas, o GIP, Groupe d’Information sur les Prisons, cujo objetivo era

colher dados sobre as condições intoleráveis nas prisões fran­ cesas, particularmente junto a pessoas com experiência direta,

e divulgá-los. Esse objetivo refletia a ideia de Foucault sobre o

papel dos intelectuais nas lutas políticas: não era uma questão de sugerir reformas dizendo às pessoas o que fazer, mas de

usar seu status visível e respeitável para divulgar aspectos ina­

ceitáveis da realidade. A violência da polícia, a pena de morte e as condições desumanas nas prisões francesas ganharam um lugar central na ordem do dia pública e política na França nos

anos 70, provocando tumultos e greves de fome dentro e fora

de prisões. Nesse contexto, Vigiar e punir foi lido de início em termos de suas implicações políticas contemporâneas. Sua pu­

blicação foi cercada de considerável publicidade e descrita como

tendo gerado “ondas de choque” através dos setores prisionais

de educação e serviço social.44 Vigiar e punir exemplifica poderosamente as características essenciais de uma crítica genealógica. Tem a forma de um es­

tudo histórico detalhado, documentando o desenvolvimento das instituições carcerárias modernas desde as masmorras e

os espetáculos públicos de tortura que as precederam. Ques­ tiona a inevitabilidade desse desenvolvimento, mostrando sua

contingência histórica, bem como as contradições internas no funcionamento das prisões modernas. Parece evitar o discurso

moralista, propondo em vez disso uma análise da racionali­

78

Como ler Foucault

dade implícita e por vezes explícita das práticas punitivas mo­ dernas, numa linguagem puramente descritiva. Ainda assim, seu estilo e seus exemplos carregam claras implicações polí­ ticas e valores morais. Foucault referiu-se de passagem, por

exemplo, a uma execução que teve lugar na França em 1972. Observou que, ao contrário da de Damiens, esta ocorreu em

segredo: a guilhotina foi instalada dentro dos muros da prisão

e qualquer testemunha que descrevesse a cena seria proces­ sada. A pena de morte na França dos anos 70 constituía “um estranho segredo entre a justiça e aqueles que ela condena”.45 Foucault observou que não pretendia que Vigiar e punir fosse

uma obra de crítica — se crítica fosse entendida como mera denúncia de aspectos negativos do sistema penal vigente. Quis revelar o sistema de pensamento, a forma de racionalidade

que, desde o fim do século XVIII, sustentou a noção de que a pri­ são é de fato o melhor meio, ou um dos meios mais efetivos e racio­

nais, de se punir delitos numa sociedade. Parece-me que quando

se tratou de reformar o sistema penal, os reformadores aceitaram com muita frequência, implícita e por vezes até explicitamente, o sistema de racionalidade que fora definido e estabelecido muito

antes, e que estavam apenas tentando descobrir quais deveríam

ser as instituições e práticas que lhes permitiríam realizar aquele

projeto de sistema e alcançar seus objetivos. Ao trazer à luz o sistema de racionalidade subjacente às práticas punitivas, eu quis

apontar quais eram os postulados de pensamento que precisavam ser reexaminados caso se pretendesse transformar o sistema penal

... Quais elementos desse sistema de racionalidade ainda podem ser aceitos? Qual é, por outro lado, a parte que merece ser posta de lado, abandonada, transformada, e assim por diante?46

A prisão

79

A lição importante da crítica genealógica de Foucault é sinte­ tizada em sua afirmação de que tornar alguma coisa aberta

à crítica significa primeiro torná-la inteligível. Só se com­ preendermos a racionalidade subjacente de nossas práticas

poderemos almejar fazer mudanças substanciais e duradouras nelas, e não apenas substituí-las por outras práticas baseadas

nos mesmos princípios. A análise do poder disciplinar pode

aprofundar nossa compreensão de como as práticas coercitivas das instituições penais modernas operam com meios nota­

velmente diferentes e através de uma racionalidade diferente daquelas que visavam unicamente à punição pela dor. Isso revela de maneira efetiva o duplo papel do sistema atual: ele

visa tanto a punir quanto a corrigir, e por isso mistura práticas jurídicas e antropológicas.

Segundo Foucault, a intervenção da psiquiatria no campo do direito ocorrida no início do século XIX, por exemplo, foi parte do deslocamento gradual na prática penal de um foco no crime para um foco no criminoso. A nova ideia do

"indivíduo perigoso” referia-se ao perigo potencialmente ine­ rente a ele, o que implicou que a finalidade do sistema penal

não era apenas punir, mas sobretudo corrigir. A mudança

em seus objetivos, em sua racionalidade ou lógica imanente, resultou no surgimento de novos tipos de instituições e prá­

ticas carcerárias. A nova racionalidade não podia funcionar

de maneira eficaz no sistema existente sem a emergência de uma nova forma de conhecimento técnico — a psiquiatria criminal — que permitiu a caracterização do indivíduo cri­

minoso em si, por sob os atos. Resultou também, no entanto, na emergência de novas e insidiosas formas de dominação e violência.

8o

Como ler Foucault

Foucault não analisou práticas de punição, portanto, com a finalidade de condená-las. Nem propôs nenhuma alternativa

concreta para elas. Ao questionar a racionalidade dessas prá­

ticas, ele estava tentando provocar uma reação nos leitores. O impacto crítico, duradouro, de Vigiar e punir reside em sua

capacidade de revelar, numa extensão sem precedentes, os processos de subjetivação que operam nas instituições penais

modernas. Ao privar seus internos de liberdade, a prisão mo­ derna não pune apenas: ela produz sujeitos delinquentes, tipos

de pessoa com natureza perigosa, criminosa.

7- Sexualidade reprimida

Continuando esta linha de discussão, podemos avançar certo número de proposições:

• O poder não é algo que seja adquirido, tomado ou partilhado, algo que conservamos ou deixamos escapar; o poder é exer­ cido a partir de inúmeros pontos, na interação de relações não igualitárias e móveis.

• As relações de poder não estão numa posição de exterioridade

com respeito às de outros tipos — processos econômicos, rela­ ções de conhecimento, relações sexuais —, mas são imanentes a

estes; elas são os efeitos imediatos das divisões, desigualdades e desequilíbrios que ocorrem nestes outros tipos e, inversamente, são as condições internas dessas diferenciações; as relações de

poder não estão em posições superestruturais, tendo mera­ mente um papel de proibição ou acompanhamento; elas têm um

papel diretamente produtivo, onde quer que entrem em ação.

• O poder vem de baixo, isto é, não há uma oposição binária e abrangente entre governantes e governados na raiz das re­

lações de poder, servindo como uma matriz geral — não há uma dualidade desse tipo estendendo-se de cima para baixo

e influenciando grupos cada vez mais limitados até o nível mais profundo do corpo social. Devemos supor, isto sim, que

as múltiplas relações de força que tomam forma e entram em ação no mecanismo de produção, em famílias, grupos limita­

dos e instituições são a base para amplos efeitos de divagem

que atravessam o corpo social no seu todo... 81

82

Como ler Foucault

• As relações de poder são ao mesmo tempo intencionais e não subjetivas. Se de fato forem inteligíveis, não é por serem o

efeito de uma outra instância que as “explica”, mas por esta­

rem completamente impregnadas de cálculo: não há poder que seja exercido sem uma série de intuitos e objetivos... • Onde há poder, há resistência, e no entanto, ou melhor, con­ sequentemente, essa resistência nunca está numa posição de

exterioridade em relação a ele. Deveriamos dizer que esta­ mos sempre “dentro" do poder, — que não há como “escapar”

dele, não há lado de fora absoluto no que lhe diz respeito — porque estamos de qualquer maneira sujeitos à lei? Ou que,

sendo a história a artimanha da razão, o poder é a artimanha

da história, sempre saindo vitorioso? Isso seria compreender mal o caráter estritamente relacionai das relações de poder. A

existência delas depende de uma multiplicidade de pontos de resistência: estes desempenham o papel de adversário, alvo,

apoio, ou instrumento em relações de poder. Tais pontos de

resistência estão presentes em toda parte na rede de poder. Por isso não há nenhum local singular de grande Recusa, nenhuma

alma da revolta, fonte de todas as rebeliões, ou pura lei do re­ volucionário. O que há é uma pluralidade de resistências, cada uma delas um caso especial: resistências que são possíveis, ne­

cessárias, improváveis; outras que são espontâneas, selvagens, solitárias, combinadas, impetuosas ou violentas; outras ainda que se apressam em transigir, são interesseiras ou sacrificató-

rias; por definição, elas só podem existir no campo estratégico

das relações de poder.. ,47 História da sexualidade

Sexualidade reprimida

83

Uma das mais influentes teorias contemporâneas do poder é apresentada na forma de curtas proposições ao longo de três

páginas do primeiro volume da História ãa sexualidade. Em­ bora Foucault tenha elucidado e desenvolvido sua compreen­ são do poder em muitos ensaios, palestras e entrevistas pelo

resto de sua vida, foi nessas páginas que propôs suas idéias

decisivas. Ainda que possa parecer a princípio enganosamente

fácil de ler, História da sexualidade é uma obra densa e difícil.

Como as proposições sobre o poder demonstram, grandes

avanços teóricos são conduzidos em pequenos espaços, com lances rápidos.

A reconsideração a que Foucault submeteu o poder voltavase especificamente contra as concepções liberais e marxistas

de poder, os dois modelos conceituais dominantes nos anos 70. O problema era o "economicismo” dessas teorias: ambas as tradições viam o poder através de modelos econômicos. No

modelo “liberal” ou “jurídico”, ele era concebido como uma mercadoria, considerado como algo que podia ser possuído

e negociado, tal como se negocia uma mercadoria. Contra essa concepção, Foucault argumentou que o poder só existe

quando exercido. Não é como uma mercadoria, é antes uma

ação numa relação. Criticou também o foco excessivo da tra­

dição liberal em contratos, direitos, a lei e a legitimação. Não é possível explicar as operações e os mecanismos sutis do poder

moderno dentro desse arcabouço conceituai. O poder discipli­ nar não funciona segundo a distinção dicotômica entre legal

e ilegal; usa distinções muito mais sutis, operando no eixo de saudável/doente e normal/anormal, por exemplo. O modelo marxista reduz as relações de poder a relações

econômicas: uma relação antagonística entre duas classes

Como ler Foucault

84

preexistentes definidas em termos econômicos. Foucault ob­

jetou que, mais que uma estrutura dual de governantes e go­

vernados, as relações de poder formam uma rede densa que atravessa o conjunto da sociedade. Aceitar a fórmula de uma

burguesia generalizada e seus interesses, por exemplo, signifi­ cava reduzir a multiplicidade e a variedade das relações de po­ der a uma oposição simplista entre duas classes. Não se deveria

começar procurando pelo centro do poder, ou pelos indivíduos, instituições ou classes que governam, mas antes construirse uma “microfísica do poder” com foco nas extremidades: famílias, locais de trabalho, práticas cotidianas e instituições marginais. Há que se analisar as relações de poder de baixo

para cima e não de cima para baixo, e se estudar a miríade de maneiras pelas quais os sujeitos são constituídos em redes diferentes, mas entrecruzadas.

Embora disperso entre várias redes entrelaçadas por toda a sociedade, o poder tem racionalidade, uma série de intenções e objetivos, e os meios de alcançá-los. Isso não significa que um sujeito individual os tenha formulado de maneira cons­ ciente. Como mostra o exemplo do Panóptico, o poder muitas vezes funciona segundo uma racionalidade clara, sejam quais

forem as intenções e motivos do indivíduo que vigia a prisão

a partir da torre. Qualquer indivíduo, escolhido de maneira quase aleatória, pode operar o sistema: a organização espacial

das celas assegura a visibilidade permanente e instila a cons­

ciência dela nos internos. De maneira semelhante, nenhuma pessoa isolada dirige a complexa rede de relações de poder que

funciona numa sociedade. Tanto os que aparentemente detêm o poder, como os guardas da prisão, quanto os que estão sob vigilância estão presos na racionalidade da rede de poder. O

Sexualidade reprimida

85

comportamento de todos é regulado, e em grande medida determinado, por regras e práticas que eles não formularam e

das quais podem não estar sequer cientes.

O poder, contudo, não forma um sistema determinístico de restrições despóticas. Por ser compreendido como uma rede

instável de práticas, onde há poder, há sempre resistência. A resistência é parte dessas práticas e de suas dinâmicas, nunca estando portanto numa posição de exterioridade. Assim como

não há um centro do poder, não há um centro de resistência em algum lugar fora dele. A resistência é de fato inerente às

relações de poder, é "o outro termo nas relações de poder”.48 Embora as relações de poder permeiem todo o corpo da socie­

dade, elas podem ser mais densas em algumas regiões e menos

densas em outras. As relações de poder não são tampouco todas qualitativa­ mente iguais. Numa de suas últimas entrevistas, Foucault fez uma distinção entre o que chamou de relações estratégicas en­

tre indivíduos e estados de dominação.49 Relações estratégicas referem-se às maneiras como indivíduos tentam determinar a conduta de outros, e não são, de modo algum, necessariamente

perniciosas. Foucault dá como exemplo a relação entre um professor e um aluno. Trata-se claramente de uma relação de

poder em que o professor tenta determinar a conduta do aluno.

Contanto que essa relação seja baseada no consentimento mú­ tuo e possa ser invertida — os alunos são capazes de avaliar o desempenho do professor, por exemplo —, parece não haver

motivo para resistência. Estados de dominação, por outro lado, referem-se a situa­

ções nas quais indivíduos são incapazes de subverter ou alte­

rar relações de poder. Mesmo que estas sejam essencialmente

86

Como ler Foucault

fluidas e reversíveis, o que as caracteriza em geral é terem ganhado estabilidade através de instituições. Isso significa que

sua mobilidade é limitada, e que há redutos difíceis de suprimir

porque foram institucionalizados. Em outras palavras, as rela­ ções estratégicas entre as pessoas tornaram-se rígidas. Nessas

situações, deve-se tentar desenvolver formas de resistência que transformarão relações de dominação em relações estratégicas. Assim, embora seja impossível sair do campo social estru­

turado pelas relações de poder, é possível efetuar mudanças

nelas: libertar sujeitos de estados de dominação e expô-los a uma situação em que as relações de poder sejam intercambiá-

veis, variáveis e permitam estratégias para alterá-las. Foucault chega a estabelecer isso como uma tarefa explícita: Não acredito que possa haver uma sociedade sem relações de po­ der, se as compreendermos como os meios pelos quais indivíduos

tentam guiar, determinar o comportamento de outros. O pro­ blema não é tentar dissolvê-las na Utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas dar ao próprio eu as regras da

lei, as técnicas de controle, e também a ética, o

ethos,

a prática

de si, o que permitiría esses jogos de poder serem jogados com o mínimo de dominação.50

Embora não possa haver uma libertação total do poder, pode

haver e haverá emancipações “particulares” de diferentes esta­

dos de dominação: de relações de poder opressivas e dos efeitos de certas técnicas normalizadoras. As proposições de Foucault sobre o poder pretendiam ser

apenas uma ferramenta conceituai para a reconsideração do tópico principal do livro — a saber, a sexualidade. O principal

Sexualidade reprimida

87

objetivo do primeiro volume da História da sexualidade era

reconfigurar a relação entre sexualidade e poder: em vez de o poder reprimir as manifestações da sexualidade natural, ele

as produzia. O livro deveria ser uma breve introdução a um vasto corpo de obras composto por seis volumes. Os três volu­

mes restantes nunca se materializaram, mas a introdução, de

menos de 200 páginas, transformou de maneira radical nossa concepção de sexualidade.

O livro começa com um repúdio à “hipótese repressiva”, a ideia de que na era vitoriana a sexualidade era reprimida e o dis­

curso sobre ela, silenciado. Foucault afirma que o que caracteri­ zou a atitude básica da sociedade moderna em relação ao sexo não foi a repressão, mas o fato de a sexualidade ter se tornado

objeto de um novo tipo de discurso — médico, jurídico e psico­ lógico —, e de o discurso sobre ela ter de fato se multiplicado.

A sexualidade estava inextricavelmente ligada à verdade: esses

novos discursos foram capazes de nos dizer a verdade científica

sobre nós mesmos através de nossa sexualidade. A sexualidade tornou-se assim um construto essencial na

determinação não só do valor moral de uma pessoa, mas tam­ bém de sua saúde, de seu desejo e de sua identidade. Os sujeitos

são ademais obrigados a dizer a verdade sobre si mesmos, con­ fessando os detalhes de sua sexualidade. Segundo Foucault, a

sexualidade moderna caracterizou-se pela secularização de téc­ nicas religiosas de confissão: não confessamos mais os detalhes

de nosso desejo sexual para um padre; em vez disso, vamos

a um médico, um terapeuta, um psicólogo ou um psiquiatra. A sociedade que emergiu no século XIX — burguesa, capitalista ou industrial, chame-a como quiser — não opôs ao sexo uma

88

Como ler Foucault

recusa fundamental de reconhecimento. Ao contrário, pôs em

operação toda uma maquinaria para produzir discursos verdadei­ ros referentes a ele. Não só falou de sexo e obrigou todos a fazê-lo;

esforçou-se também para formular a verdade uniforme do sexo.’1

Embora o livro seja um estudo histórico da emergência da

sexualidade moderna no século XIX, o alvo de Foucault mais uma vez eram as concepções contemporâneas. Segundo as con­ cepções sobre a sexualidade prevalentes nos anos 1960 e 1970,

haveria uma sexualidade natural e saudável que todos os seres humanos partilhavam em virtude do mero fato de serem hu­ manos, e essa sexualidade seria reprimida então por proibições

e convenções sociais como a moralidade burguesa e as estrutu­

ras socioeconômicas capitalistas. A sexualidade reprimida seria a causa de várias neuroses e seria importante ter uma sexua­

lidade ativa e livre. O discurso popular sobre sexualidade fazia,

portanto, uma fervorosa defesa da libertação sexual: tínhamos de libertar nossa verdadeira sexualidade dos mecanismos de

poder repressivos.

Foucault contestou essa visão mostrando como nossas con­ cepções e experiências de sexualidade são de fato sempre o resultado de convenções culturais e mecanismos de poder e

não poderíam existir independentemente deles. A sexualidade,

como a doença mental, só existe numa sociedade. A missão de

libertar nossa sexualidade reprimida era fundamentalmente

equivocada porque não havia nenhuma sexualidade autêntica ou natural a libertar. Libertar-se de um conjunto de normas

significava apenas adotar em seu lugar outras normas, que poderíam se revelar igualmente imperativas e normalizadoras. Em tom de zombaria, Foucault escreveu que a ironia de nossa

Sexualidade reprimida

89

incessante preocupação com a sexualidade era acreditarmos ter ela alguma coisa a ver com nossa libertação.

Para contestar a relação aceita entre sexualidade e poder re­ pressivo Foucault teve de reconceber a natureza do poder. Sua principal asserção foi que o poder não era essencialmente repres­ sivo, mas sim produtivo. Ele não opera reprimindo e proibindo

as expressões verdadeiras e autênticas de uma sexualidade na­ tural. O que ele faz é produzir, através de práticas normativas

culturais e discursos científicos, as maneiras como experimen­ tamos e concebemos nossa sexualidade. Relações de poder são

as condições internas” de nossas identidades sexuais. No final da História da sexualidade, Foucault introduz o in­

fluente conceito de biopoder, que aclara ainda mais a ideia de poder produtivo em vez de poder repressivo. O biopoder não é repressivo ou destrutivo, mas revela-se essencialmente

protetor da vida. Foca a saúde de corpos individuais e também

da população: desempenha o controle regulatório da reprodu­ ção, nascimento e mortalidade, bem como do nível de saúde

e expectativa de vida, por exemplo. Por ser explicitamente relacionado com saúde e bem-estar, o biopoder é uma forma

muito eficaz de controle social que assume a direção da vida dos indivíduos desde antes de seu nascimento até sua morte.

Um exemplo de biopoder não seria uma instituição repres­

siva, como uma prisão ou um campo de trabalhos forçados, mas uma unidade de assistência, como uma clínica obstétrica. Embora tenham por objetivo declarado o bem-estar de mães

e bebês, essas clínicas também têm objetivos e efeitos mais problemáticos, como a medicalização da gravidez e a intensifi­ cação do controle social da vida familiar. Especialistas médicos

intervém em experiências e áreas da vida antes consideradas



Como ler Foucault

privadas. O poder de tomar decisões sobre como dar à luz, por exemplo, foi transferido da mulher grávida para os especialis­ tas médicos.

A análise que Foucault faz do biopoder como uma forma particularmente moderna de poder prenunciou as críticas à

intervenção médica na sociedade atual: áreas cada vez maiores

da vida são medicalizadas e submetidas a controle biocientífico.

Ele não faz julgamentos explícitos sobre a medicalização, mas expõe os suportes teóricos e os processos históricos que tor­

naram seu crescimento possível. A noção de biopoder realça

de que maneira o conhecimento biocientífico funciona como um importante instrumento de poder, e sustenta o controle sociopolítico das pessoas na sociedade moderna.

8. Um sexo verdadeiro

Precisamos de fato de um sexo verdadeiro? Com uma persistência

que beira a teimosia, as sociedades ocidentais modernas têm res­ pondido afirmativamente. Elas puseram obstinadamente em jogo

essa questão de um “sexo verdadeiro” numa ordem de coisas em que poderiamos imaginar que tudo que contava era a realidade do corpo e a intensidade de seus prazeres. Por um longo tempo, contudo, essa exigência não foi feita,

como o prova a história do status conferido aos hermafroditas pela medicina e o direito. De fato, passou-se um longuíssimo tempo antes que o postulado de que um hermafrodita deve ter

um sexo — um único, um verdadeiro sexo — fosse formulado. Por séculos, concordou-se simplesmente que os hermafroditas tinham dois...

Teorias biológicas da sexualidade, concepções jurídicas do in­ divíduo, formas de controle administrativo nas nações modernas

levaram pouco a pouco à rejeição da ideia de uma mistura dos dois sexos num único corpo e, por consequência, à limitação da livre escolha de indivíduos indeterminados. A partir de então,

todos deviam ter um, e apenas um, sexo. Todos deveríam ter sua

identidade sexual básica, profunda, determinada e determinante;

quanto aos elementos do outro sexo que poderíam aparecer, eles só poderíam ser acidentais, superficiais, ou até muito simples­ mente ilusórios. Do ponto de vista médico, isso significava que,

quando confrontado com um hermafrodita, o médico não mais se preocupava em reconhecer a presença dos dois sexos, justapostos 9i

92

Como ler Foucault

ou indeterminados, ou em saber qual dos dois prevalecia sobre

o outro, mas sim em decifrar o verdadeiro sexo oculto sob as aparências ambíguas. Tinha, por assim dizer, de despir o corpo de suas burlas anatômicas e descobrir o verdadeiro sexo sob órgãos

que poderíam ter simulado as formas do sexo oposto. Para quem soubesse como observar e conduzir um exame, essas misturas

de sexo não passavam de disfarces da natureza: os hermafroditas

eram sempre “pseudo-hermafroditas”. Essa, pelo menos, foi a tese que tendeu a ganhar crédito no século XVIII, através de certo número de casos importantes e apaixonadamente discutidos...

Tenho plena ciência de que nos séculos XIX e XX a medicina

corrigiu muitas coisas nesta supersimplificação redutiva. Hoje, ninguém diria que todos os hermafroditas são “pseudo”, mesmo

que se limite de maneira considerável uma área na qual muitos

tipos de anomalias anatômicas eram admitidas outrora sem dis­ criminação. Admite-se também, embora com muita dificuldade, que é possível para um indivíduo adotar um sexo que não é bio­ logicamente o seu. Apesar disso, a ideia de que se deve afinal ter um sexo verda­ deiro está longe de ter sido completamente rejeitada. Seja qual

for a opinião dos biólogos nesse ponto, a ideia de que existem

relações complexas, obscuras e essenciais entre sexo e verdade pode ser encontrada — pelo menos num estado difuso — não apenas na psiquiatria, na psicanálise e na psicologia, mas também na opinião corrente.52 O DIÁRIO DE UMA HERMAFRODITA — HERCULINE BaRBIN

Herculine Barbin

foi uma

hermafrodita que viveu no final

do século XIX, época em que teorias científicas sobre sexo e

Um sexo verdadeiro

93

sexualidade ganhavam proeminência. Designada como mu­ lher ao nascer, foi reclassificada pelos médicos como homem

quando tornou-se adulta. No entanto, ela/ele foi incapaz de se

adaptar à nova identidade, e suicidou-se aos 30 anos. Foucault descobriu suas memórias relatando sua trágica história nos arquivos do Departamento de Higiene Pública. Ele as editou

e elas foram publicadas com uma introdução escrita por ele.

Nessa introdução, curta, mas significativa, Foucault formula questões sobre hermafroditismo, debatendo se de fato precisa­

mos da ideia de um sexo verdadeiro. Usando o exemplo de um hermafrodita, mostra quão profundamente a ideia de que to­

dos têm um sexo definido e naturalmente dado está enraizada em nosso pensamento; de que nosso verdadeiro sexo é a causa

de nosso comportamento, bem como a causa de nossas carac­ terísticas sexuais observáveis. O verdadeiro sexo determina a

identidade de gênero do indivíduo, seu comportamento e seu desejo pelo sexo oposto. A história do hermafrodita demons­ tra que não há sexo verdadeiro a ser encontrado em nossos

corpos: essa ideia é de fato um produto do desenvolvimento

de discursos científicos e procedimentos jurídicos. Foucault refere-se à Idade Média, quando era prática comum

pensar que um hermafrodita era uma pessoa que combinava características tanto femininas quanto masculinas. Quando

atingia legalmente a idade adulta, ele/ela podia escolher que

sexo conservar. Essa concepção foi substituída por teorias cien­ tíficas sobre sexo que se desenvolveram por volta da mesma

época que os conceitos e práticas jurídicos relacionados à ideia

de um sexo verdadeiro. Todos tinham apenas um sexo ver­ dadeiro, que podia ser conclusivamente determinado por es­

pecialistas. Todas as características do sexo oposto no corpo

Como ler Foucault

94

e alma de uma pessoa eram consideradas arbitrárias, imagi­ nárias ou superficiais. O sexo verdadeiro determinava ainda

o papel de gênero do indivíduo, que tinha a responsabilidade

moral de se comportar em conformidade com ele. O médico, como especialista em reconhecer esse sexo verdadeiro, tinha

de "despir o corpo de suas burlas anatômicas e descobrir o sexo verdadeiro sob órgãos que poderíam ter simulado as formas do sexo oposto”.

Foucault havia considerado a questão da possibilidade de

encontrarmos uma verdade científica e objetiva sobre o sexo no final de História da sexualidade. Ele inventou um opositor

imaginário que afirmava que sua história da sexualidade só conseguia defender a construção cultural da sexualidade

porque ele evadia "a existência biologicamente estabelecida de funções sexuais em beneficio de fenômenos que são variáveis,

talvez, mas secundários e em última análise superficiais”.53 O crítico imaginário levantou a questão de uma base natural e

necessária da sexualidade no corpo: ainda que as manifesta­ ções da sexualidade sejam culturalmente construídas e variá­

veis, deve haver no entanto uma base biológica no corpo, um dado pré-cultural, encarnado, que não pode ser desviado à

vontade. Foucault respondeu a seu opositor negando em primeiro lugar que sua análise da sexualidade implicasse "a elisão do

corpo, da anatomia, do biológico, do funcional”.54 Ao contrá­ rio, o que se fazia necessário era uma análise que superasse a

distinção biologia/cultura. Em segundo lugar, refutou a afir­

mação de que o sexo era uma base dada, biológica, e como tal independente do poder. A noção de um sexo natural e funda­ mental era um construto normativo, histórico, que funcionava

Um sexo verdadeiro

95

como um importante ponto de ancoragem para o biopoder. A ideia de que o "sexo” era a base científica, a origem verda­ deira, causai, de nossa identidade de gênero, identidade sexual

e desejo sexual tornava possível normalizar efetivamente o comportamento sexual e de gênero. Se cada um tivesse conhe­ cimento científico sobre seu sexo verdadeiro, a pessoa poderia avaliar, patologizar e corrigir seu comportamento sexual e de gênero vendo-o como "normal” ou “anormal”.

O objetivo de Foucault era estudar como a ideia científica de “sexo” emergiu nas diferentes estratégias de poder, e que papel

ela desempenhava. Numa passagem muito citada, ele escreve: Não devemos cometer o erro de pensar que o sexo é uma agên­ cia autônoma que produz secundariamente múltiplos efeitos de

sexualidade por toda a extensão de sua superfície de contato com

o poder. Ao contrário, o sexo é o elemento mais especulativo, mais ideal e mais interno numa utilização efetiva da sexualidade organizada pelo poder em seu domínio sobre corpos e sua mate­

rialidade, suas forças, energias, sensações e prazeres.55

Ao afirmar que o sexo era imaginário, Foucault não estava de­

clarando que, na realidade, não há homens nem mulheres. Es­ tava antes tentando problematizar um certo tipo de estrutura explanatória da sexualidade e do gênero: a ideia do sexo como

uma base ou causa invisível, que sustenta esses efeitos visíveis. Ele avalia de maneira crítica a ideia de um sexo verdadeiro na­ tural, cientificamente definido, ao revelar o desenvolvimento

histórico dessa forma de pensamento. Não sustenta que o sexo, compreendido como as categorias de masculinidade e feminilidade, foi inventado num período histórico particular

Como ler Foucault

96

e que poderiamos nos desvencilhar dele quando quiséssemos.

O que faz é analisar de que modo essas categorias foram cien­ tificamente fundadas e explicadas em discursos de verdade,

e como essa explicação “pura” de fato criou essas categorias de tal modo que elas foram compreendidas como "naturais”.

Representações científicas do sexo como uma base natural e necessária para identidades sexuais e de gênero tiveram uma

função normativa na estratégia de poder/saber que constituiu homens e mulheres "normais”. O objetivo de Foucault na História da sexualidade foi por­

tanto historicizar não apenas a sexualidade, mas também o

sexo. Essa ideia influenciou profundamente a teoria feminista. A filósofa americana Judith Butler, com efeito, apropriou-se do pensamento de Foucault sobre a relação entre sujeito, po­ der e sexo para aplicá-lo à questão dos sujeitos generificados. Ela argumentou que não há, por trás da identidade de gênero,

um sexo verdadeiro que seria sua causa e base biológica. Ao

contrário, a identidade de gênero é construída como um ideal normativo e regulatório nas redes de poder e saber. Indivíduos desempenham o papel relativo ao gênero, que repete um com­

portamento aproximado desse ideal. Embora esse comporta­ mento seja compreendido como a consequência inevitável e

natural de seu sexo, Butler afirma que ele é na realidade uma

performance sem nenhuma causa natural e fundamental. O comportamento feminino, por exemplo, não é o resultado de um sexo feminino verdadeiro e fundamental, mas o inverso é verdadeiro: a ideia de um sexo feminino verdadeiro e funda­ mental é o resultado do comportamento feminino. A ideia de

um núcleo estável do gênero é uma ficção sustentada por uma incessante performance.56

Um sexo verdadeiro

97

Foucault não influenciou apenas pensadoras feministas; suas

idéias sobre sexualidade e sexo também influenciaram muitos ativistas e intelectuais gays. Segundo escreveu David Halperin,

um teórico americano da sexualidade, o efeito da desnatura-

lização do sexo promovida por Foucault foi o surgimento de uma perspectiva crítica com relação ao poder dos especialistas

sobre sujeitos "anormais”. As implicações políticas de uma tal perspectiva não escaparam a lésbicas e homens gays. Eles já

haviam tido um número excessivo de experiências pessoais

negativas com discursos especializados da sexualidade — dis­ cursos patologizantes, criminalizantes e moralizantes da psi­

quiatria, sexologia, criminologia e das ciências sociais — para

confiarem neles.57

Embora Foucault nunca tenha tomado uma posição em debates empíricos sobre a homossexualidade ser constituída social ou biologicamente e tenha escrito e falado em entrevis­ tas muito raramente sobre a própria homossexualidade, sua

vida e sua obra tiveram um profundo efeito sobre a disciplina

acadêmica de estudos gays e lésbicos. Sua concepção da se­ xualidade fundou, em grande medida, uma nova abordagem

teórica à sexualidade denominada teoria queer. Na História da sexualidade Foucault analisou brevemente o desenvolvimento

histórico que levou à emergência da identidade "homossexual”.

A nova classificação científica e a perseguição de sexualidades periféricas no século XIX acarretaram uma nova especificação

dos indivíduos. Enquanto a sodomia havia sido uma categoria de atos proibidos e seus perpetradores compreendidos como

nada mais que indivíduos que violavam a lei, o homossexual tornou-se “um personagem, um passado, uma anamnese e

uma infância, além de ser um tipo de vida, uma forma de

98

Como ler Foucault

vida, e uma morfologia, com uma anatomia indiscreta e pos­ sivelmente uma fisiologia misteriosa”. A pessoa homossexual tornou-se completamente definida por sua sexualidade, a qual era compreendida como a causa oculta e o princípio funda­ mental que explicava toda a sua personalidade e todas as suas

ações. Como Foucault escreve, “o sodomita havia sido uma aberração temporária; o homossexual era agora uma espé­

cie”.58 Sua influente asserção foi que "homossexual” não era

um nome que designava uma espécie natural de ser. Era uma construção discursiva moldada por relações de poder espe­ cíficas que passara a ser compreendida como uma categoria

natural e cientificamente objetiva.

A principal ideia sob a concepção queer da sexualidade é que as identidades de gay e lésbica — bem como de heterossexual — não são naturais, essenciais, mas culturalmente construídas

através de discursos normativos e relações de poder que regu­ lam as expressões “saudáveis” e "normais” da sexualidade. Isso

não significa que a homossexualidade não exista "realmente”. O simples fato de algo ser construído não significa que não seja

real. As pessoas são definidas e devem pensar e viver segundo tais construções. O objetivo da política sexual, no entanto, não pode ser simplesmente encontrar a verdadeira identidade se­

xual de alguém, que a abraça e exprime — “assumir-se” —, porque essa identidade é construída através das relações de

poder opressivas que ela quer contestar e rechaçar.

O objetivo da política queer deve ser mais complexo que a simples libertação do poder e a afirmação da homossexualidade

de alguém: devemos questionar e até negar as identidades que nos são impostas como naturais e essenciais tornando mani­

festa sua construção cultural e sua dependência das relações

Um sexo verdadeiro

99

de poder vigentes na sociedade. Em vez de pensar em termos de categorias binárias estáveis tais como homem e mulher, he­ terossexual e homossexual, deveriamos estudar sua constitui­

ção e as maneiras como a sexualidade emerge enquanto uma construção complexa apenas em relação a elas. O binário he­

terossexual/homossexual é o resultado de relações de poder homofóbicas, exatamente como homem/mulher é a conceitua-

ção de uma sociedade sexista. Em ambos os casos, o primeiro

termo do binário refere-se ao que é a norma, privilegiada e não problematizada, ao passo que o segundo refere-se à aberração,

ao que difere da norma. Identidades sexuais e de gênero são construídas não como diferenças politicamente neutras e natu­ rais, mas como termos mutuamente exclusivos e extremamente

normativos que refletem as relações de poder de uma sociedade. Disto se segue que também temos de inventar novas estra­ tégias de resistência contra práticas e formas de pensamento se­

xistas e homofóbicas. Foucault enfatizou que o movimento gay precisava “muito mais de arte de viver que de uma ciência ou conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é a

sexualidade”. Temos de compreender que com nossos desejos, através de nossos

desejos, se instauram novas formas de relações, novas formas de

amor, novas formas de criação. O sexo não é uma fatalidade: é uma possibilidade para uma vida criativa.59

A política queer assumiu muitas vezes a forma da apropriação criativa, proliferação e ressignificação teatral de nossas iden­ tidades e categorias de identidade. A sexualidade deveria ser

compreendida como uma prática ou uma maneira de ser que

100

Como ler Foucault

proporciona possibilidades para experimentação e múltiplos

prazeres, e não como uma condição psicológica sobre a qual

devemos revelar a verdade. Ela deveria ser transferida dos do­ mínios da patologia individual e da identidade verdadeira para

os domínios da política criativa e da experimentação pessoal.

9. Poder político, racionalidade e crítica

Creio que podemos dizer que, do século XV em diante, até a

Reforma, houve uma verdadeira explosão da arte de governar

os homens. Essa explosão se deu de duas maneiras: primeiro, por um deslocamento em relação à centralidade religiosa, que,

se desejarem, podemos chamar de secularização, expansão na sociedade civil desse tema da arte de governar os homens e dos

métodos de fazê-lo; e, segundo, a proliferação dessa arte de go­ vernar numa variedade de áreas — como governar as crianças, como governar os pobres e os mendigos, como governar a família,

uma casa, como governar exércitos, diferentes grupos, cidades, Estados e também como governar o próprio corpo e a própria

mente. Como governar era, creio, uma das questões fundamen­

tais sobre o que estava acontecendo nos séculos XV e XVI. Essa questão fundamental foi respondida pela multiplicação de todas

as artes de governar — a arte da pedagogia, a arte da política, a arte da economia, se você preferir — e de todas as instituições

de governo, no sentido mais amplo que o termo “governo” tinha à época. Assim, essa governamentalização, que me parece bastante ca­ racterística dessas sociedades na Europa Ocidental no século XVI, não pode ser dissociada da questão "como não ser governado?”.

Não quero dizer que a governamentalização seria confrontada pela afirmação oposta, “não queremos ser governados, e não

queremos ser governados de maneira alguma”. Quero dizer que,

nessa grande preocupação com o modo de governar e busca por ioi

102

Como ler Foucault

meios de fazê-lo, identificamos uma questão perpétua que

seria: “Como não ser governado de tal maneira, por tal coisa, em nome de tais princípios, com tal e tal objetivo em mente e por

meio de tais procedimentos, não de tal maneira, não para tal, não por eles.” E se conferimos a esse movimento de governamentali-

zação, tanto da sociedade quanto dos indivíduos, a dimensão e a amplitude histórica que acredito que ele teve, creio que poderia­

mos localizar aproximadamente nele o que poderiamos chamar

de atitude crítica. Opondo-se diretamente às artes de governar,

e como compensação, ou antes tanto como parceiro e adversário

delas, como um ato de desafio, como uma contestação, como um meio de limitar essas artes de governar e avaliá-las, transformá-

las, de encontrar uma forma de escapar delas ou, em todo caso, substituí-las, com uma desconfiança básica, mas também e pela mesma razão, como uma linha de desenvolvimento da arte de

governar, algo teria nascido na Europa nessa época, uma espécie

de forma cultural geral, uma atitude tanto política quanto moral,

uma maneira de pensar etc., e que eu chamaria simplesmente de a arte de não ser governado, ou melhor, a arte de não ser go­ vernado daquela maneira e àquele custo. Eu proporia, portanto,

como uma definição muito inicial de crítica, esta caracterização geral: a arte de não ser tão governado assim.60 “O QUE É A CRÍTICA?”

De 1970 até sua morte em 1984, Foucault ocupou a cátedra de

História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France, a instituição acadêmica mais prestigiosa do país. Em contraste com outras instituições acadêmicas, ela não requer nenhum

diploma de seus professores e não confere nenhum grau a seus

Poder político, racionalidade e crítica

103

alunos. Espera-se dos professores que ocupam as cátedras que

ministrem um curso anual de aulas no qual discutam suas pesquisas em andamento, e esses cursos são abertos ao pú­

blico e não exigem nenhuma matrícula. As treze aulas anuais

dadas por Foucault eram verdadeiros eventos na cena acadê­

mica francesa: a grande audiência lotava dois dos anfiteatros do Collège de France. Foi ali que ele desenvolveu muitas das idéias mais tarde elaboradas em seus livros; mas as aulas não eram simples esboços ou bosquejos dos livros. Continham

vasto material que Foucault nunca publicou sob forma escrita, e que possui por isso um status relativamente independente

em sua obra.

Durante 1978 e 1979, na série de aulas que se seguiu à publi­ cação do primeiro volume da História da sexualidade, Foucault voltou sua atenção para o estudo do governo e da governamentalidade.61 Na série de 1978 ele analisou o desenvolvimento his­

tórico da arte de governar, desde os períodos clássicos grego e romano, passando pela orientação pastoral cristã, até a noção

de razão de Estado e a ciência da polícia, e nas aulas de 1979 dis­ cutiu as formas liberais e neoliberais de govemamentalidade. Apesar de a série completa só ter sido publicada recentemente, as idéias desenvolvidas por Foucault nessas aulas inspiraram

muitos estudos seminais, em particular nas ciências política

e social.

Embora historicamente “governo” designasse um conjunto variado de práticas, do controle de crianças à orientação re­

ligiosa das almas, no contexto do Estado moderno ele assu­ miu a forma do governo de uma população. Foi esse desen­ volvimento histórico, “a genealogia do Estado moderno”, ou “a história da govemamentalidade” que Foucault tentou expor

104

Como ler Foucault

em suas aulas. Seu objetivo era expressar e revelar, através de uma análise histórica, o desenvolvimento do tipo específico

de racionalidade política e tecnologia do poder que foi imple­ mentado no exercício do poder do Estado moderno. Em vez de controlar um território e seus habitantes, as for­

mas modernas de governo têm por objeto uma população: um objeto de análise estatística e conhecimento científico com

regularidades intrínsecas próprias. Para governá-la são ne­ cessárias formas de conhecimento específicas. É preciso co­

nhecer, por exemplo, suas taxas de mortalidade, nascimento

e doenças, expectativa de vida, capacidade de trabalho e ri­

queza. A população e seu bem-estar formam tanto o campo

de intervenção das técnicas governamentais quanto o objetivo final da racionalidade governamental. A governamentalidade

designa o desenvolvimento dessa forma de poder complexa e essencialmente moderna que tem por foco a população: ela é exercida através de instituições administrativas, formas de co­

nhecimento, bem como táticas e estratégias explícitas. Em vez

de o poder político assumir principalmente a forma do poder

soberano — um soberano individual ou comunal governando sujeitos na sua dimensão jurídica com os instrumentos da lei —, vivemos numa sociedade em que um complexo aparato

gerencial e administrativo governa uma população mediante políticas e estratégias.

A análise de Foucault revela que a racionalidade governa­

mental moderna tem duas características principais. Por um

lado, o desenvolvimento do Estado moderno é caracterizado

pela centralização do poder político: emergiu um Estado cen­ tralizado com uma administração e uma burocracia extrema­

mente organizadas. Embora esse traço constume ser analisado

Poder político, racionalidade e crítica

105

e também criticado no pensamento político, Foucault identifica ainda a evolução de uma segunda característica que parece ser antagônica a esse desenvolvimento. Ele afirma que o Estado mo­

derno é caracterizado por um poder individualizante — ou poder pastoral, como também o chama. Refere-se com isso ao desen­ volvimento de tecnologias de poder orientadas para indivíduos

numa tentativa de governar-lhes a conduta de maneira contínua e permanente. O objetivo é assegurar, sustentar e aperfeiçoar

constantemente a vida de cada uma das pessoas. E um poder que

se baseia no conhecimento individualizante sobre cada aspecto da vida e funciona através do controle político dos indivíduos. Esse poder individualizante está entrelaçado com os obje­

tivos de centralização. O Estado tem de cuidar de seres vivos, compreendidos como uma população. Deve se concentrar na

vida e na saúde de seu povo, e por isso Foucault chama a polí­

tica do Estado moderno de biopolítica. O resultado é a crescente intervenção do Estado na vida cotidiana dos indivíduos: sua

saúde, sexualidade, corpo e dieta.

O que Foucault afirmou foi que, para compreender a prática do governo no sentido amplo do controle da conduta das pes­ soas, precisamos estudar as tecnologias do poder e também a

racionalidade política que as sustenta. As práticas e instituições

de governo são permitidas, reguladas e justificadas por uma forma específica de raciocínio ou racionalidade que define os

fins e os meios adequados para alcançá-los. Compreender o poder como um conjunto de relações, conforme Foucault su­

geriu repetidas vezes, significa compreender como tais relações são racionalizadas. Significa examinar de que modo formas de racionalidade se inscrevem em práticas e sistemas de práticas,

e qual papel desempenham dentro deles.

io6

Como ler Foucault

A exposição e análise das racionalidades governamentais historicamente cambiantes era um objetivo fundamental de

Foucault em suas aulas. Ele sustentava ser possível e necessá­ rio analisar, por meio da filosofia política, diferentes raciona­

lidades políticas, assim como era possível analisar diferentes

racionalidades científicas por meio da filosofia da ciência, por exemplo. A análise do poder político não deveria, portanto,

concentrar-se em teorias políticas, escolhas políticas ou ins­ tituições políticas, ou no tipo de pessoa que as controla, mas incorporar também as práticas concretas que dão forma a racionalidades políticas específicas. O objetivo da análise de

Foucault não era planejar e legitimar a melhor forma de go­ verno, mas analisar historicamente a racionalidade imanente a diferentes práticas governamentais.

A análise da governamentalidade não substitui, contudo, a compreensão anterior do poder. Foucault ainda sustentava

que as formas de governo de homens por um outro homem, numa dada sociedade, são múltiplas e não podem ser reduzidas

a instituições políticas ou a uma única racionalidade política abrangente. O que deve ser analisado, mas também questio­ nado, são as racionalidades historicamente específicas intrín­ secas às práticas. Ele ainda estava usando um tipo de análise

semelhante ao que usara para estudar as técnicas e práticas

de poder no contexto de sujeitos individuais dentro de insti­ tuições locais, particulares: o primado das práticas sobre as instituições continuava sendo decisivo. Em sua análise do poder disciplinar Foucault deslocou a ênfase de instituições repressivas para práticas produtivas.

Estava tentando agora passar de uma teoria que focalizava a instituição do Estado para uma análise de práticas modernas

Poder político, racionalidade e crítica

107

de governo. Criticou a tendência do pensamento político de demonizar o Estado, de vê-lo como o simples inimigo na raiz de todos os problemas políticos. O Estado não exerce

apenas poder repressivo, negativo, sobre o corpo social, ele foi uma modalidade histórica de "governo” que refletiu mu­ danças na racionalidade das práticas governamentais.

Ao mesmo tempo, a análise da governamentalidade feita

por Foucault acrescenta à sua compreensão do poder algu­ mas dimensões novas e importantes que muitas vezes passam

despercebidas. Em primeiro lugar, se suas análises do poder disciplinar se restringiam a contextos institucionais especiali­

zados, a ideia de poder como governo alarga o alcance de sua

compreensão de poder para o domínio do Estado. Com a no­ ção de governo ele foi capaz de estudar problemas mais amplos, estratégicos, com os quais sua “microfísica do poder” — um exame das formas de poder focadas no comportamento indi­

vidual — não era capaz de lidar. Estudando o poder moderno do Estado ele pôde transpor sua compreensão do poder para o domínio tradicionalmente compreendido como o político.

Embora suas análises anteriores do poder disciplinar tivessem

aberto algumas linhas de abordagem para o pensamento po­ lítico, uma crítica comum fora que a atenção a práticas espe­

cíficas e técnicas especiais não tinha sido capaz de tratar das

questões mais amplas do poder envolvidas na política. Suas aulas sobre governamentalidade podem ser lidas como uma

resposta a tais objeções. Em segundo lugar, foi através da ideia de poder como go­

verno que Foucault conseguiu elaborar sua compreensão da resistência. Como governo diz respeito a modos de poder es­

tratégicos, regulados e racionalizados que precisam ser legi­

io8

Como ler Foucault

timados através de formas de conhecimento e asserções de verdade específicas, a ideia de crítica como forma de resistência

torna-se então crucial. Governar não é determinar fisicamente a conduta de objetos passivos. Envolve oferecer razões pelas quais os governados deveríam fazer o que lhes é dito, e isso

significa que eles podem também questionar essas razões.

Na preleção intitulada “O que é a crítica?”, realizada em maio

de 1978 para a Société Française de Philosophie, Foucault vin­ cula a questão “como governar” à outra questão que sempre a complementou no pensamento e na prática política ocidental:

como não governar, ou melhor, como não governar dessa ma­ neira. Ele deixa claro que não está se referindo aos fundamentos

do anarquismo, que seria absoluta e entusiasticamente resistente

a qualquer governamentalização, mas sim tentando identificar uma atitude específica que era crítica a ela e que se desenvolveu

ao mesmo tempo que ela. Essa atitude crítica em relação a for­

mas de governo sustentou a prática da crítica política. As relações cambiantes entre poder e saber — a política da verdade — regulam os meios como os regimes políticos se justificam e eclipsam arranjos políticos alternativos, apresen­

tando sua representação da ordem das coisas como verdadeira. A resistência não é portanto um ponto cego nas práticas de

poder, mas um aspecto importante das práticas de saber que justificam as relações de poder. A prática da crítica deve ques­

tionar as razões para se governar de tal maneira: os princípios, procedimentos e recursos legítimos de governo. As aulas do próprio Foucault sobre governamentalidade

parecem, contudo, abster-se de crítica política. Ele discutiu textos históricos sobre poder pastoral e razão de Estado, que, segundo acreditava, marcavam a emergência das formas de

Poder político, racionalidade e crítica

109

poder especificamente modernas; mas não apresentou ne­ nhuma crítica política explícita. Observou também que, como

o Estado moderno é ao mesmo tempo individualizante e totalizador — o poder político é centralizado, mas focado nos

indivíduos —, não é suficiente criticar apenas um desses efeitos. Opor-se a ele com o indivíduo e seus interesses é tão arriscado

quanto opor-se a ele com a comunidade e suas exigências. Em vez disso, devemos expor e criticar a racionalidade política sub­ jacente às relações de poder do Estado moderno que produz

esses efeitos. "A libertação só pode ser alcançada mediante o ataque não apenas a esses dois efeitos, mas às próprias raízes

da racionalidade política."62 A crítica política que Foucault defende não é redutível, portanto, à emissão de julgamentos.

Devemos questionar nossas práticas de governo bem como os termos e categorias — o arcabouço avaliativo — através dos

quais julgamentos políticos são formulados. A crítica política e suas restrições continuaram sendo um

tópico repetidamente contestado pelos críticos de Foucault. Segundo eles, apesar das intenções explícitas de Foucault, seu pensamento torna a crítica política impossível em razão de sua falta de fundamento normativo filosoficamente expresso.

Para criticar as formas de poder modernas devemos mostrar

que elas são intoleráveis por meio de razões aceitáveis. Essas razões formam o fundamento normativo da crítica: podemos

argumentar, por exemplo, que seres humanos deveríam ser livres para fazer escolhas concernentes à sua saúde, e formas

de biopoder que restringem essa liberdade são portanto insu­ portáveis. Foucault não nos dá essas razões e nos estimula a

indagar por que deveriamos ler suas descrições da sociedade moderna como contendo algum grau de crítica.

IIO

Como ler Foucault

O mais conhecido desses críticos é Jürgen Habermas, im­

portante filósofo alemão e o principal representante vivo da Escola de Frankfurt. Segundo ele, criticar, por definição, sig­

nifica fazer asserções avaliativas, e estas devem ser justificadas, caso sejam contestadas, mediante o recurso a razões válidas. Foucault não é capaz de justificar suas asserções com razões

e por isso podia apenas posar como crítico da sociedade mo­ derna. Ao nos dizer por que deveriamos resistir ao poder de

um Estado ao mesmo tempo individualizante e totalizador, por exemplo, ele tem de defender valores ou direitos positivos

de algum tipo, como liberdade humana ou autonomia política.

O debate entre “habermasianos” e “foucaultianos” prosse­ gue desde o final dos anos 70, e a literatura que produziu é ex­

tensa. Conforme muitos comentadores notaram, esse debate chegou muitas vezes a um beco sem saída, e foi interditado por mal-entendidos e ambiguidades. Uma maneira de superar o impasse do lado foucaultiano foi simplesmente redefinir o

que é crítica e negar que ela signifique a emissão de julgamen­ tos. O próprio Foucault escreveu: “Uma crítica não consiste

em dizer que as coisas não estão bem como estão. Consiste em ver em que tipo de pressupostos, de noções conhecidas, de

modos de pensar estabelecidos, e não examinados, as práticas

aceitas se baseiam.”63 Ele procurou diagnosticar nosso pre­ sente, nossa racionalidade política, as formas de subjetividade normalizada e o tipo de uso do poder que as produzia. Com

isso, abriu um espaço politizado que não prescreve programas

políticos explícitos, mas torna possível contestar necessidades reconhecidas. Como afirmei antes, podemos também ler as genealogias

de Foucault como tentativas não de nos convencer, mediante

Poder político, racionalidade e critica

ui

argumentos persuasivos, racionais, de que alguma coisa no presente é intolerável, mas de mostrá-lo. O fundamento nor­

mativo não é expresso, mas isso não significa que não exista. A genealogia pode nos abrir os olhos para a necessidade de uma

crítica política de práticas atuais e a possibilidade de trans­

formá-las, mas crítica e mudança não decorrem automati­ camente da genealogia. Foucault admitia sem objeção que crí­ tica e ação políticas eram necessárias para preencher a lacuna,

transformando as possibilidades geradas pela genealogia em

realidades. A política não é, contudo, a arena de um filósofo. Foucault sugeriu em vários contextos que a resistência con­

creta tinha de ser conduzida por pessoas envolvidas, ao passo

que seu pensamento podia no máximo oferecer ferramentas para a instituição dessas resistências locais. Em nossas tentativas de avaliar a possibilidade de uma crí­ tica genealógica devemos também levar a sério a importância

que Foucault atribuiu ao Iluminismo como um evento não superado na história do pensamento e da política ocidental. Sua preleção "O que é a crítica?” (1978) deu início a uma série

de interrogações sobre o significado do Iluminismo, e prepa­ rou o caminho para seu ensaio crucial “O que é Iluminismo?”

(1984). O ponto de partida do ensaio é um curto artigo de jornal

escrito por Immanuel Kant em 1784 em resposta à pergunta: o que é Iluminismo? Segundo Foucault, esse texto aparente­

mente sem importância marcou a discreta entrada na história

do pensamento de uma nova forma de reflexão filosófica que era uma crítica permanente de nossa própria era. Ele defendeu

o lema do Iluminismo — "ousar saber” —, um compromisso

com o livre uso da razão. Embora Habermas tenha permane­ cido profundamente cético com relação ao projeto de Foucault,

112

Como ler Foucault

este via a si mesmo como partilhando a mesma forma de pen­

samento crítico e histórico que a Escola de Frankfurt. Para ele, o Iluminismo inaugurou uma tradição crítica de filosofia que

‘de Hegel até a Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e

Max Weber”, fundou a forma de reflexão em que ele próprio se situava.64

O ideal da liberdade como emancipação dos efeitos auto­ ritários do poder foi uma parte importante do pensamento

iluminista, e abriu caminho para a tradição subsequente de políticas emancipatórias exemplificadas pela Revolução Fran­

cesa. Foucault se notabilizou, no entanto, por sua clara ob­ jeção ao discurso universalista da emancipação iluminista: não havia nenhuma natureza humana inerente justificando

a demanda de liberdade e igualdade humana ou garantindo a possibilidade de progresso. Além disso, o humanismo ilumi­ nista ou incorporava formas mascaradas de poder disciplinar

que operavam para produzir formas de individualidade mo­ derna, ou contribuía para a dominação de grupos e indiví­ duos marginais. Em consequência, o ensaio — em que ele se

situou francamente dentro da tradição iluminista da filosofia

e subscreveu seu lema — surpreendeu muitos de seus leitores. Ao ligar seu pensamento ao Iluminismo em seus últimos

ensaios, Foucault deu o importante passo normativo de adotar os ideais associados a ele — razão crítica e autonomia pes­

soal — como o fundamento implícito em que repousavam

suas críticas da dominação e de formas abusivas de poder. Os ideais iluministas forneceram-lhe os valores históricos — não

universais nem atemporais — em que basear suas críticas. Diferentemente de Kant, ele endossou a liberdade não como

um ideal abstrato e universal, mas como o resultado de um

Poder político, racionalidade e critica

113

certo desenvolvimento histórico: fatos históricos e sociológicos. Sua crítica filosófica de formas de dominação e racionalidade política repousa na suposta desejabilidade da liberdade, mas esse ideal da liberdade não é eterno e universal. Ele emerge de

práticas historicamente concretas e específicas, e só delas pode emergir. A defesa da liberdade política no sentido moderno

não podia ser encontrada como tal em nenhuma tradição préiluminista; ela foi antes o produto de um tradição histórica específica de pensamento — o Iluminismo — do qual somos

parte de todo modo.

Partilhar o ideal da liberdade significa estar comprometido

com uma tradição histórica segundo a qual nós, hoje, no Oci­ dente, pensamos sobre a vida e a política. Foucault não defende

programas políticos universais, nem faz julgamentos morais explícitos, mas isso não significa que suas análises sejam acrí-

ticas. Ao expor formas específicas de racionalidade política e as formas correspondentes de subjetividade como restritivas,

e ao mesmo tempo como historicamente contingentes, suas

análises podem ser interpretadas como defendendo ativamente a mudança política na direção da “liberdade”. Ainda que tal mudança deva ser compreendida em termos de transforma­

ções locais e parciais, e não de programas políticos universais, seu pensamento está longe do niilismo político. As análises de

nossos limites são análises da liberdade.

io. Práticas de si

Quanto à minha motivação, ela foi muito simples; eu gostaria que para alguns ela bastasse por si só. Foi a curiosidade — o único

tipo de curiosidade, em todo caso, que merece ser exercido com

algum grau de obstinação: não a que busca assimilar o que é apropriado para conhecermos, mas aquela que permite nos liber­

tarmos de nós mesmos. Afinal, qual seria o valor da paixão pelo

saber se ela resultasse apenas numa certa soma de erudição, sem permitir ao conhecedor, de um modo ou de outro e na medida

do possível, libertar-se de si próprio? Há ocasiões na vida em que a questão de saber se é possível pensar diferentemente do que se

pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é absolutamente

imprescindível se quisermos continuar olhando e refletindo de al­

guma maneira. Podem dizer, talvez, que seria melhor deixarmos essa peleja com nós mesmos nos bastidores; ou, na melhor das

hipóteses, que ela poderia fazer parte daqueles exercícios preli­

minares que são esquecidos assim que serviram à sua finalidade. Nesse caso, porém, o que é a filosofia hoje — quero dizer, a ati­

vidade filosófica — senão o trabalho crítico que o pensamento

exerce sobre si mesmo? Em que consiste ela senão no esforço para saber como e em que medida pode ser possível pensar de maneira

diferente, em vez de legitimar o que já é conhecido? Há sempre

algo ridículo no discurso filosófico quando este tenta, a partir de fora, impor-se aos outros, dizer-lhes onde está sua verdade e como encontrá-la, ou quando os acusa na linguagem da positi-

vidade ingênua. Mas ele está habilitado a explorar o que poderia

114

115

Práticas de si

ser mudado em seu próprio pensamento através da prática de um

saber que lhe é estranho. O “ensaio” — que deveria ser compre­

endido como a prova ou teste pelo qual sofrem-se mudanças no jogo da verdade, e não como a apropriação simplista de outrem

para fins de comunicação — é a substância viva da filosofia, ao

menos se admitirmos que filosofia ainda é o que foi no passado, i.e., uma “ascese”, askesis, um exercício de si mesmo na atividade

do pensamento.

Os estudos que se seguem, como os outros que fiz anterior­ mente, são estudos de “história” em razão do domínio com que lidam e das referências a que recorrem; mas não são o trabalho

de um “historiador”. O que não significa que resumem ou sin­

tetizam o trabalho feito por outros. Considerados do ponto de vista de sua “pragmática”, eles são o registro de um exercício

longo e experimental que precisou ser revisto e corrigido várias vezes. Foi um exercício filosófico. O objetivo era aprender em que medida o esforço para se pensar a própria história pode libertar o

pensamento do que ele pensa silenciosamente, e então capacitá-lo a pensar de maneira diferente.65 O USO DOS PRAZERES

Foucault

morreu de aids

no dia 25 de junho de 1984, aos

57 anos. Alguns dias após a sua morte, centenas de amigos e

admiradores aglomeraram-se no pátio em frente à capela mor­

tuária do hospital para testemunhar a remoção de seu caixão e lhe prestar suas últimas homenagens. A multidão silenciou quando o velho amigo de Foucault, o eminente filósofo Gilles Deleuze, subiu num pequeno caixote num canto do pátio.

Com uma voz quase inaudível e tremendo de tristeza, ele co­

116

Como ler Foucault

meçou a ler os parágrafos acima. O fragmento é do prefácio

ao segundo volume da História da sexualidade, um dos últimos textos que Foucault escreveu. Ele estivera trabalhando nos vo­ lumes 2 e 3 durante todo o curso de sua doença, e conseguira

vê-los publicados pouco antes de sua morte extemporânea.

O estilo desses dois últimos livros é muito diferente daquele

dos primórdios de sua obra: é surpreendentemente simples — alguns o qualificariam, talvez, de seco, outros de apressado. Não há emblemas impactantes nem imagens chocantes. O

período de tempo investigado é também pouco característico de Foucault: enquanto todos os seus outros estudos históri­

cos focalizaram os períodos moderno inicial e moderno, seus

últimos livros dão um salto para a Grécia Antiga e o Império Romano. No mundo acadêmico, essa completa mudança de direção é arriscada. Foucault não era um especialista em pen­

samento clássico e devia saber que provavelmente cometería enganos que o tornariam um alvo fácil de críticas. A escolha

de uma direção inteiramente nova iria também decepcionar os leitores que esperavam aprender mais sobre o poder moderno. Muita coisa devia estar em jogo para ele pessoalmente: o que precisava saber e queria dizer exigia um estudo da Antigui­

dade. É contra esse pano de fundo que deveriamos ler suas

palavras no prefácio: “Afinal, qual seria o valor da paixão pelo saber se ela resultasse apenas numa certa soma de erudição,

sem permitir ao conhecedor, de um modo ou outro e na me­

dida do possível, libertar-se de si próprio?” Os volumes 2 e 3 da História da sexualidade tratam basica­

mente da moralidade sexual na Grécia Antiga e no Império

Romano. O foco da investigação recai sobre a maneira como

a sexualidade constituía um domínio moral e era problema-

Práticas de si

117

tizada como uma questão moral — sobretudo por filósofos e médicos em textos escritos como guias para outros. O vo­ lume 2, O uso dos prazeres, enfocou a cultura grega clássica do

século IV a.C., ao passo que o volume 3, O cuidado de si, trata

das mesmas questões no Império Romano nos dois primeiros séculos da era cristã.

O que emerge desses estudos históricos da moralidade sexual

é uma concepção particular de ética que Foucault atribui à An­ tiguidade. Ele começa fazendo uma distinção entre moralidade como um código moral e moralidade do comportamento. A pri­

meira diz respeito ao conjunto de valores e regras de conduta

que são ensinados aos indivíduos pela Igreja ou a escola, por exemplo; por moralidade do comportamento refere-se ao com­

portamento efetivo das pessoas em relação ao código: como

o comportamento real delas corresponde ou não às regras e valores que lhes são recomendados. Esses componentes da mo­ ralidade sexual são estudados através da história da moral e da

história social das práticas sexuais, respectivamente, mas eles não são o objeto dos estudos históricos de Foucault. Resta ainda um importante componente da moralidade, que ele estuda e chama de ética. A ética diz respeito à maneira como a pessoa forma a si mesma como um sujeito de moralidade, agindo em

referência a seus elementos prescritivos. Ela trata da maneira pela qual regras morais são adotadas e problematizadas por

sujeitos. Um indivíduo poderia escolher seguir a regra ética da

monogamia, por exemplo, por uma variedade de razões. Pode­

ria fazê-lo para dar um exemplo para outros, para evitar puni­ ção ou para imprimir beleza moral à sua vida. Poderia também usar de diferentes exercícios para alcançar esses objetivos, como

a memorização de escrituras, meditações ou autopunições.

n8

Como ler Foucault

A importância do estudo da ética torna-se clara quando tentamos evidenciar a diferença entre a moralidade da Anti­

guidade e a do cristianismo. Foucault argumenta que, ao con­ trário do que muitas vezes se acredita, no nível dos códigos

morais de comportamento há notáveis semelhanças entre a

Antiguidade e o cristianismo. Embora em geral se suponha que a moralidade da Antiguidade era muito mais promíscua e

permissiva por causa de sua tolerância a relações homossexuais, Foucault mostra que tanto a Antiguidade como o cristianismo

atribuíam uma imagem negativa às relações homossexuais. Além disso, ambos partilhavam uma preocupação, até medo,

quanto ao efeito do dispêndio sexual na saúde de um indivíduo

e valorizavam a fidelidade conjugal e a abstinência. O que gera um forte contraste entre essas duas culturas, no entanto, é o modo como esses ideais ou demandas morais são integrados

em relação ao sujeito. Na moralidade cristã, a principal ênfase

recai sobre o código, sua sistematicidade, sua riqueza e sua

capacidade de se ajustar a todos os casos possíveis e de abarcar cada área de comportamento. As regras nos mosteiros cris­ tãos, por exemplo, eram não só muito severas, mas também

extremamente detalhadas. A moralidade da Antiguidade, por outro lado, representa uma moralidade em que o código e as

regras de comportamento são rudimentares. Os textos antigos

que discutem moralidade formulam muito poucas regras ou pautas explícitas para o comportamento do indivíduo. Mais

importante que as regras ou conteúdos objetivos da lei é a relação da pessoa consigo mesma, a escolha de estilo de vida feita pelo indivíduo.66

Assim, apesar das semelhanças no nível do código, as formas como o comportamento sexual é problematizado são muito

Práticas de si

119

diferentes. Na Grécia Antiga, as questões relativas à austeri­

dade sexual não eram uma expressão de proibição profunda ou

essencial, mas a elaboração e estilização de uma atividade. A moralidade fundava-se numa escolha pessoal de viver uma bela

vida e deixar para outros lembranças de uma bela existência.

Embora os volumes 2 e 3 da História da sexualidade nos ofere­ çam um estudo histórico das formas de uma problematização

ética de um passado remoto, o foco de Foucault, mais uma vez, está no presente. Ele admitiu ter escrito esses dois últimos volu­ mes a partir da perspectiva de uma situação contemporânea.67

Negou, contudo, que estivesse sugerindo que adotássemos a ética da Grécia Antiga. Condena de maneira aberta a ética

da sexualidade da Grécia Antiga como algo verdadeiramente

repugnante em muitos aspectos, e menciona como ela estava associada às idéias de uma sociedade viril, à dissimetria, à ex­

clusão do outro e a uma obsessão com a penetração, por exem­ plo.68 As relações sexuais na Antiguidade não eram simétricas, recíprocas e, muitas vezes, sequer consensuais. O parceiro ativo era um homem livre e não se esperava que o parceiro passivo,

em geral um escravo, uma mulher ou um rapaz jovem, obti­

vesse qualquer prazer com o ato. Contudo, Foucault sugere que podemos aprender alguma coisa com a ética sexual antiga: Minha ideia é que não é necessário relacionar problemas éticos

a conhecimento científico. Entre as invenções culturais da hu­ manidade há um tesouro de estratagemas, técnicas, idéias, pro­

cedimentos, e assim por diante, que não podem ser exatamente reativados, mas ao menos constituem, ou ajudam a constituir,

um determinado ponto de vista que pode ser útil como uma ferramenta para analisar o que ocorre agora — e mudá-lo.69

120

Como ler Foucault

Na Grécia Antiga, a moralidade não estava relacionada à re­ ligião ou a preocupações religiosas, nem a sistemas sociais,

legais ou institucionais. Seu domínio era a relação de cada um consigo mesmo: a escolha de conferir beleza moral à pró­ pria vida. O que pareceu impressionante a Foucault foi a se­

melhança entre esses problemas éticos com os da sociedade contemporânea. Pergunto a mim mesmo se nosso problema não é, de certo modo, similar a este, uma vez que a maioria de nós não mais acredita

que a ética se funda na religião, nem queremos que um sistema

legal interfira em nossa vida moral pessoal, privada. Os recentes movimentos de liberação sofrem por não poderem encontrar ne­ nhum princípio em que basear a elaboração de uma nova ética.

Eles precisam de uma ética, mas não conseguem encontrar ne­ nhuma outra senão a ética fundada em pretenso conhecimento

científico.70

Foucault aponta claramente para o potencial da ética compreen­ dido como uma prática pessoal em nossa sociedade secular. Segundo ele, herdamos a tradição da moralidade cristã com

seus valores de abnegação e sacrifício pessoal, bem como a tradição secular que vê a base para a moralidade na lei externa. Comparadas com essas tradições, as práticas de si aparecem

como imoralidade, egoísmo ou uma maneira de escapar de regras e responsabilidades com respeito a outros. As práticas de si que ele advoga deveríam ser compreendidas, contudo, como originando-se de uma concepção inteiramente diversa

de ética. Ética significa uma atividade criativa, o treinamento permanente de si mesmo por si mesmo.

Práticas de si

121

Os dois últimos livros de Foucault deveríam ser lidos como uma tentativa de dar uma contribuição à tarefa de repensar a

ética. Eles são também uma continuação de sua tentativa de

repensar o sujeito. O que está em foco agora são as formas do eu: as formas de entendimento que o sujeito cria sobre si e as

práticas mediante as quais ele transforma seu modo de ser. Em seu estudo da ética da Grécia Antiga e a correspondente

concepção do eu, ele quis claramente desenvolver sua ideia de

que não havia nenhum eu verdadeiro passível de ser decifrado

e emancipado, mas que o eu era algo que havia sido — e deve ser — criado. Há, no entanto, todo um novo eixo de análise

presente em seus últimos estudos do sujeito. Foucault observou que talvez tivesse insistido demais nas

práticas de dominação e poder, e que faltava um eixo analítico em seu trabalho anterior. Suas análises precisavam ser comple­ mentadas com um estudo das práticas de si, isto é, um estudo dos modos de ação que indivíduos exerciam sobre si mesmos.

Para ser capaz de estudar a história da “experiência de sexua­ lidade” ele precisava não apenas das ferramentas metodológi­

cas que suas arqueologias e genealogias lhe haviam fornecido, mas também "estudar os modos segundo os quais indivíduos tendem a se reconhecer como sujeitos sexuais”.71 Ele passou a

estudar as formas históricas de entendimento que os sujeitos

criam a respeito de si mesmos, e as maneiras pelas quais eles

se formam como sujeitos de uma moralidade. Enquanto seus estudos genealógicos anteriores investigaram os modos como redes de poder/saber constituíram o sujeito, em seu trabalho

posterior a ênfase incide sobre o papel do próprio sujeito na

moldagem de si, o que oferece uma compreensão mais elabo­ rada do sujeito do que a encontrada em seus escritos anteriores.

122

Como ler Foucault

Em seu pensamento tardio Foucault retornou à noção, pre­

sente em seu trabalho inicial, do papel subversivo da arte. Afir­ mou que as práticas éticas de si estavam estreitamente ligadas, ou até fundidas, com a estética, e chamou-as de estética da existência. O processo pelo qual sujeitos formam a si mesmos

como sujeitos éticos assemelha-se à criação de uma obra de arte. Quando lhe perguntaram que tipo de ética era possível

construir em nossa sociedade, ele respondeu: ... em nossa sociedade, a arte tornou-se algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida. Essa arte é algo espe­ cializado ou feito por especialistas que são artistas. Mas não

poderia a vida de todos tornar-se uma obra de arte? Por que a

lâmpada ou a casa deveríam ser um objeto de arte, mas não a nossa vida?72

Essa ideia de criar a si próprio como uma obra de arte alimen­ tou inúmeras críticas acaloradas a Foucault. Ele foi acusado de

se refugiar na estética amoral e privilegiar uma noção elitista

de estilização autocentrada. Sua estética da existência, no en­ tanto, não deveria ser compreendida como um empreendi­

mento narcisista, ou puramente estético no sentido estrito da aparência ou da busca por parecer elegante. Foucault era muito

crítico do egocentrismo e da introspecção que caracterizam nossa cultura e ressaltou que as práticas de si antigas eram

quase diametralmente opostas à atual cultura de si. Nosso ego­

centrismo deriva da ideia de que devemos descobrir nosso ver­ dadeiro eu, separá-lo do que poderia obscurecê-lo ou aliená-lo

e decifrar sua verdade graças à ciência psicológica ou psica-

nalítica. Os gregos antigos não estavam tentando descobrir

Práticas de si

123

sua verdade interior, mas criar a si mesmos como dignos de

respeito, glória e poder.73 A ênfase na estética não significa, portanto, que Foucault

propunha que procurássemos parecer belos. Sua ideia era que deveriamos nos relacionar com nós mesmos e com nossas vidas

enquanto algo que não era simplesmente dado, mas podia ser

formado e transformado criativamente. Em vez de tentar des­ cobrir a verdade científica sobre nossa sexualidade, por exem­

plo, e depois nos aproximarmos do comportamento sexual normal do grupo de gênero e idade apropriado, deveriamos moldar criativamente nossa vida sexual imaginando novos ti­ pos de relacionamentos e maneiras de experimentar o prazer.

Ou, em vez de buscar um diagnóstico médico que explique

o modo como somos ou nos sentimos diferentes, poderia ser

melhor, por vezes, admitir a diferença e fazer dela, de maneira

criativa, uma característica singular e capacitadora de nosso ser. O objetivo não é a mera rejeição de todo conhecimento

científico relativo a nós, mas questionar constantemente a sua dominação. A resistência contra o poder normalizador consiste em práticas criativas de si, bem como no questionamento crí­ tico de nossas formas atuais de pensamento.

A noção foucaultiana de ética como estética foi essencial­

mente uma continuação de sua preocupação com o poder normalizador. Ele não acreditava que a resistência pudesse

se estabelecer fora das redes de poder, pois só dentro delas era possível ser um sujeito. Ações significativas e eficazes só eram possíveis nas redes de poder que permeiam a sociedade.

Embora Foucault tenha insistido que a resistência era sempre inerente ao poder como seu corolário irredutível, sua expli­

cação deixou basicamente em aberto a questão de como, por

124

Como ler Foucault

que meios concretos, os sujeitos deveríam formar e instigar a resistência. Em seu pensamento tardio ele elaborou sua com­

preensão da resistência insistindo que os sujeitos não eram simplesmente construídos pelo poder, mas participavam eles

próprios dessa construção e podiam modificar a si mesmos através de práticas de si. Em outras palavras, os sujeitos não

são apenas corpos dóceis, mas recusam, adotam e alteram ati­ vamente as formas de ser um sujeito. Um modo de contestar

o poder normalizador é moldar criativamente a si mesmo e à própria vida: explorando oportunidades de novas maneiras de

ser, novos campos de experiência, prazeres, relações, modos

de viver e pensar. A busca da liberdade que caracteriza a filosofia de Foucault tornou-se, em seu pensamento tardio, uma tentativa de desen­ volver e encorajar modos de vida que fossem capazes de fun­

cionar como resistência ao poder normalizador. O objetivo não é a autoestilização que conduz ao narcisismo, mas a prolife­

ração da diversidade e da singularidade. O importante legado do pensamento de Foucault reside não em nos dizer quem ou o que deveriamos ser — cidadãos honrados, belos e vir­

tuosos, sexualmente saudáveis e liberados —, mas em abrir espaços de liberdade que tornem possível um modo de viver

singular. Lendo-o, somos capazes de experimentar o mundo à

nossa volta de maneiras radicalmente novas, e nesse processo tornamo-nos nós mesmos algo diferente: sujeitos à procura de modos de pensar, viver e se relacionar com outras pessoas que

são, talvez, inimagináveis ainda hoje.

Notas

i. Ver James Miller, The Passion of Michel Foucault. Nova York, Simon & Schuster, 1993. 2. Michel Foucault, “PostScript, an interview with Michel Foucault by Charles Ruas”, trad. Charles Ruas, in Death and theLabyrinth: The World of Raymond Roussel. Nova York, Doubleday, 1986, p.184. 3. Michel Foucault, Suicides de prison. Paris, Gallimard, 1973, p.51, apud David Macey, The Lives of Michel Foucault. Nova York, Vintage Books, 1993, p.288. 4. Michel Foucault, “Criticai theory/intellectual history” (1983), trad. Jeremy Harding, in Lawrence Kritzman (org.), Michel Foucault, Politics, Philosophy, Culture, Interviews and Other Writings 1977-1984. Londres, Routledge, 1988, p.36-7. 5. Ver Macey, op.cit., p.288. 6. Michel Foucault, The History of Sexuality, vol.2: The Use of Pleasure (1984). Harmondsworth, Penguin, 1992, p.9. 7. Ver lan Hacking, Historical Ontology. Cambridge, MA, Harvard University Press, 2002. 8. Michel Foucault, History of Madness (1961), trad. Jonathan Murphy e Jean Khalfa. Londres, Routledge, 2005, p.8-11. 9. Michel Foucault, “Interview with Michel Foucault" (1978), trad. Robert Hurley, in James D. Faubion (org.), Power: Essential Works of Foucault 1954-1984, vol.3. Nova York, New Press, 2000, p.244. 10. Michel Foucault, “The minimalist self” (1983), in Lawrence Kritzman, op.cit., p.6. 11. Michel Foucault, History of Madness, op.cit., p.35-8. 12. Ibid., p.145. 13. Ibid., p.483. 14. Ibid., p.42. 15. Michel Foucault, "La folie n'existe que dans une société” (1961), in Daniel Defert e François Ewald (orgs.), Dits et écrits, 1954-1975, vol.i. Paris, Gallimard, 2001, p.197. 16. Michel Foucault, History of Madness, op.cit., p.xxviii.

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Como ler Foucault

17. Michel Foucault, Dits et écrits, op.cit., p.196. 18. Michel Foucault, “Interview with Michel Foucault”, op.cit., p.246. 19. Ibid., p.242. 20. Michel Foucault, prefácio à edição inglesa de The Order of Things (1970). Londres, Routledge, 1994, p.xiii-xiv. 21. Michel Foucault, The Order of Things, op.cit., p.131-2. 22. Paul Veyne, “Foucault revolutionizes history” (1971), in Arnold I. Davidson (org.), Foucault and His Interlocutors. Chicago, University of Chicago Press, 1997, p.146-82. 23. Michel Foucault, The Order of Things, op.cit., p.342. 24. Ibid., p.336. 25. Ibid., p.306. 26. Michel Foucault, “On the ways of writing history" (1967), trad. Robert Hurley in James D. Faubion (org.), Aesthetica, Method and Epistemology: Essential Works of Foucault 1954-1984, vol.2. Nova York, New Press, 1998, p.286. 27. Michel Foucault, The Order of Things, op.cit., p.xv. 28. Michel Foucault, “What is an author?” (1963), trad. Josue V Harari, in Paul Rabinow (org.), The Foucault Reader. Harmondsworth, Penguin, 1984, p.118-20. 29. Jean-Paul Sartre, What Is Literature? (1948), trad. Bernard Frechtman. Londres, Methuen, 1950, p.45. 30. Michel Foucault, Death and the Labyrinth, op.cit., p.175. 31. Ibid., p.38. 32. Michel Foucault, The Order of Things, p.383. 33. Michel Foucault, “Nietzsche, genealogy, history” (1971), trad. Donald F. Bouchard e Sherry Simon, in Paul Rabinow (org.), The Foucault Reader, op.cit., p.86-8. 34. Ver, por exemplo, Michel Foucault, “Prison talk”, trad. Colin Gordon, in Colin Gordon (org.), Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, Brighton, Harvester Press, 1980, p.53-4. 35. Michel Foucault, Discipline and Punish (1975), trad. Alan Sheridan. Harmondsworth, Penguin, 1991, p.250. 36. Ibid., p.253. 37. Michel Foucault, "Foucault Michel, 1926-” (1984), trad. Catherine Porter, in Gary Gutting (org.), Cambridge Companion to Foucault. Cambridge, Cambridge University Press, p.315. 38. Ibid., p.317.

Notas

t-L-7

39. Ver Martin Saar, "Genealogy and subjectivity”, European Journal of Philosophy 10:2, 2002, p.231-45. 40. Ver Martin Kusch, Foucault’s Strata and Fields. An Investigation into Archaelogical and Genealogical Science Studies. Dordrecht, Kluwer, 1991, p. 186-92. 41. Michel Foucault, Discipline and Punish, op.cit., p.277. 42. Michel Foucault, “Questions of geography” (1976), trad. Colin Gordon, in Colin Gordon (org.), op.cit., p.69. 43. Michel Foucault, Discipline and Punish, op.cit., p.30. 44. Ver David Macey, The Lives of Michel Foucault, op.cit., p.335. 45. Michel Foucault, Discipline and Punish, op.cit., p.15. 46. Michel Foucault, “What is called punishing?” (1984), trad. Robert Hurley, in James D. Faubion (org.), Power, op.cit., p.383. 47. Michel Foucault, The History of Sexuality, vol.i (1976), trad. Robert Hurley. Harmondsworth, Penguin, 1990, p.94-6. 48. Ibid., p.96. 49. Michel Foucault, “The ethic of care for the self as a practice of freedom” (1984), trad. J.D. Gaulthier, in James Bernauer e David Rasmussen (orgs.), The Final Foucault. Cambridge, MA, MIT Press, 1988, p.19. 50. Ibid., p.18. 51. Michel Foucault, The History of Sexuality, op.cit., p.69. 52. Michel Foucault, introdução a Herculine Barbin: Being the Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth-Century French Hermafrodite (1978), trad. Richard McDougalL Nova York, Pantheon Books, 1980, p.vii-x. 53. Michel Foucault, The History of Sexuality, op.cit., p.150-1. 54. Ibid., p.151. 55. Ibid., p.155. 56. Ver Judith Butler, Gender Trouble. Londres, Routledge, 1991. 57. Ver David Halperin, Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography. Oxford, Oxford University Press, 1995, p.42. 58. Michel Foucault, The History of Sexuality, op.cit., p.42-3. 59. Michel Foucault, "Sex, power, and the politics of identity” (1984), in Paul Rabinow (org.), Ethics — Subjectivity and Truth: Essential Works of Foucault 1954-1984, vol.i. Nova York, New Press, 1997, p.163. 60. Michel Foucault, “What is critique?” (1990), trad. Lysa Hochroth, in Sylvere Lotringer e Lysa Hochroth (orgs.), Foucault, The Politics of Truth. Nova York, Semiotext(e), 1997, p.27-9.

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Como ler Foucault

61. Michel Foucault, Security, Territory, Population — Lectures at the Collège de France, 1977-1978, trad. Graham Burchell. Nova York, Palgrave Macmillan, 2007; e Naissance de la biopolitique, Cours au Collège de France 1978-1979. Paris, Hautes Études, Gallimard/Seuil, 2004. 62. Michel Foucault, "Omnes et singulatim: toward a critique of political reason” (1979), trad. P.E. Dauzat, in James D. Faubion, Power: Essential Works of Foucault 1974-1984, vol.3, op.cit., p.325. 63. Michel Foucault, "So is it importam to think?” (1981), trad. Robert Hurley, in James D. Faubion, Power, op.cit., p.456. 64. Ver por ex. Michel Foucault, "The art of telling the truth” (1984), trad. Alan Sheridan, in Lawrence Kritzman (org.), op.cit., p.86-95. 65. Michel Foucault, The History of Sexuality, vol.2, The Use of Pleasure, op.cit., p.8-9. 66. Ibid., p.29-30. 67. Michel Foucault, “The concern for truth" (1984), trad. Alan Sheridan, in Lawrence Kritzman (org.), op.cit., p.263. 68. Michel Foucault, “On the genealogy of ethics: an OverView of work in progress” (1983), in Paul Rabinow (org.), TheFoucault Reader, op.cit., p.346. 69. Ibid., p.349-50. 70. Ibid., p.343. 71. Michel Foucault, The History of Sexuality, vol.2, The Use of Pleasure, op.cit., p.5. 72. Michel Foucault, “On the genealogy of ethics”, op.cit., p.350. 73. Ibid., p.362.

Cronologia

1926 Paul-Michel Foucault nasce a 15 de outubro numa família abas­ tada em Poitiers, pequena cidade do interior da França. Seu pai, Paul, é cirurgião e professor de anatomia na escola de medicina local. 1936-40 Faz a pré-escola e o primeiro grau no Lycée Henri-IV, um co­ légio jesuíta em Poitiers. 1940-45 Transfere-se para o Collège St. Stanislas, também em Poitiers, onde cursa o segundo grau. Interessa-se especialmente por história e obtém excelentes notas em história da literatura francesa e tradução do grego antigo e do latim. Em 1942 começa a estudar filosofia. Por causa da guerra, vários professores são presos pela Gestapo e ele recebe aulas particulares de filosofia. Lê Henri Bergson, Platão, René Descartes, Baruch Spinoza e Immanuel Kant, entre outros. Decide que quer estudar filosofia, e não medicina como desejava seu pai. 1945 Frequenta o Lycée Henri-IV em Paris a fim de se preparar para os exames de admissão à École Normale Supérieure. Seu professor de filosofia é Jean Hyppolite, cujas aulas sobre Hegel deixam no jovem aluno uma forte impressão. 1946 É aceito na École Normale Supérieure em Paris. Faz um curso sobre psicopatologia e visita hospitais psiquiátricos. 1947-48 Assiste às aulas de Maurice Merleau-Ponty na École. O título do curso é “A união do corpo e da alma em Malebranche, Maine de Biran e Bergson". Merleau-Ponty também apresenta a seus alunos as obras de Ferdinand de Saussure. 1948 Recebe a licence de philosophie (permissão para lecionar no curso secundário) da École Normale Supérieure. Assiste às aulas de Louis Althusser sobre Platão. Sofre de problemas mentais e emocionais e tenta o suicídio. É internado no Hôpital Sainte-Anne. 1949 Interessa-se pelo existencialismo e a fenomenologia. Começa a es­ tudar alemão e a filosofia de Heidegger. Através desse filósofo, tornase especialmente interessado na filosofia de Friedrich Nietzsche. Quando Jean Hyppolite é nomeado para a Sorbonne, Foucault volta 129

13°

Como ler Foucault

a acompanhar suas aulas. Recebe a licence de psychologie da École Normale Supérieure. 1950 Influenciado por Louis Althusser, ingressa no Partido Comunista. Torna-se cada vez mais crítico em relação à fenomenologia de Hegel e ao existencialismo. 1951 Recebe a agrégation de philosophie (permissão para lecionar na uni­ versidade) da École Normale Supérieure. Começa a ensinar psicolo­ gia na École. Jacques Derrida, entre outros, assiste às suas aulas. A exemplo de Althusser, leva seus alunos ao Hôpital Sainte-Anne para visitas educacionais. 1952 Recebe o diplome de psycho-pathologie do Institut de Psychologie em Paris. Começa a traduzir o artigo de Ludwig Binswanger “Traum und Existenz” (“Sonho e existência”) e escreve uma longa introdução ao texto. Lê Sigmund Freud, Jacques Lacan, Melanie Klein e Karl Jaspers em profundidade. 1952-55 Ensina psicologia na Universidade de Lille. Conhece Gilles Deleuze. 1953 Começa a se aprofundar na filosofia de Friedrich Nietzsche. Deixa o Partido Comunista. 1954 Publicação de Doença mental e psicologia. Participa das preleções de Jacques Lacan no Hôpital Sainte-Anne. 1955-58 Muda-se para a Suécia. Leciona cultura e língua francesa na Universidade de Uppsala. Começa a escrever História da loucura. Conhece Roland Barthes, que depois o visita em Uppsala. 1958 Deixa a Suécia e torna-se diretor do Centro Francês na Universi­ dade de Varsóvia, na Polônia. 1959 Muda-se para a Alemanha e torna-se diretor do Instituto Francês em Hamburgo. 1960 Retorna à França e leciona filosofia e psicologia na Universidade de Clermont-Ferrand. Conhece Daniel Defert, um estudante de 23 anos da École Normale Supérieure que se torna seu companheiro pelo resto da vida. Morre seu pai. 1961 Recebe o doctorat ès lettres (permissão para se tornar catedrático). Sua thèse primaire (tese primária) é apresentada sob o título História da loucura na Idade Clássica. Seu supervisor é Georges Canguilhem. Sua thèse complémentaire (tese complementar) consiste numa intro­ dução de 128 páginas a uma tradução de Antropologia de um ponto de vista pragmático, de Immanuel Kant. O supervisor é Jean Hyppolite.

Cronologia

131

O livro História da loucura é publicado e recebe criticas tanto positivas quanto negativas. 1962 E promovido a professor titular na Universidade de ClermontFerrand. Leciona filosofia e psicologia até 1966. Dá aulas sobre temas que mais tarde comporão seu livro As palavras e as coisas. 1963 Publicação de O nascimento da clinica e de Raymond Roussel. Escreve artigos sobre Maurice Blanchot, Pierre Klossowski e Georges Bataille, entre outros. O nascimento da clínica é bem-recebido por Jacques Lacan, que discute o livro em seus seminários. 1965 Visita o Brasil por um período de dois meses e faz uma série de preleções em São Paulo. 1965-66 Afasta-se cada vez mais dos comunistas e dos marxistas e participa do planejamento das reformas educacionais do governo gaullista. Isso suscita amplos protestos entre estudantes e sindicatos de professores. 1966 Publicação de As palavras e as coisas. O livro se torna um best-seller. Por causa de sua crítica à fenomenologia, envolve-se num debate com Sartre que dura dois anos. 1966-68 Deixa a França e torna-se professor-visitante de filosofia na Univer­ sidade de Túnis, na Tunísia. Leciona estética, história, psicologia e filoso­ fia da linguagem, entre outros temas. Leciona também sobre Nietzsche e Descartes. Convida Paul Ricoeur e Jean Hyppolite para fazerem prele­ ções como visitantes na universidade. Em razão da instabilidade política do país, volta para a França antes do fim do prazo contratual. 1968 Atua como diretor do Departamento de Filosofia na nova Univer­ sidade de Paris VIII (Vincennes), uma instituição experimental. 1968-73 Após suas experiências com o ativismo político estudantil em Túnis, retorna à política de esquerda. Participa de ativismo radical, comparece a vários protestos de rua e assina petições. E também preso muitas vezes durante as manifestações. Daniel Defert, ligado a círculos maoistas, influencia suas idéias políticas. 1969 É eleito para o Collège de France. Intitula sua cátedra de História dos sistemas de pensamento. Publicação de A arqueologia do saber. 1970-83 Dá suas primeiras aulas nos Estados Unidos e no Japão. Faz visitas regulares aos Estados Unidos e visitas ocasionais ao Brasil, Canadá e Japão. 1971 Encontra-se com Sartre para planejar uma manifestação contra o racismo, após episódio em que um jovem argelino fora morto a tiros por guardas de segurança.

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Como ler Foucault

I97I-73 Funda, com Daniel Defert, o Groupe d’Information sur les Prisons (GIP), uma organização voltada para o estudo e o melho­ ramento das condições de prisioneiros e prisões na França. Gilles Deleuze, Jean-Paul Sartre e Hélène Cixous, entre outros, ingressam no grupo. O GIP torna-se um movimento nacional, vários protestos são organizados e petições, assinadas. Em 1972 visita a prisão estadual de Attica, em Nova York. Participa também ativamente de campa­ nhas contra a pena de morte. 1975 Publicação de Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Participa de protestos e assina petições contra as execuções de ativistas políticos pelo regime fascista de Franco na Espanha, e visita Madri para dar uma entrevista coletiva à imprensa sobre o assunto. Organiza ainda um protesto em frente à embaixada da Espanha em Paris. 1976 Publicação de História da sexualidade 1: A vontade de saber. 1978 Trabalha como jornalista e escreve vários artigos e reportagens sobre a revolução iraniana para o jornal italiano Corriere delia Sera. 1981 Com Pierre Bourdieu, escreve uma petição em apoio ao movi­ mento Solidarnost da Polônia. 1983 Leciona na Universidade da Califórnia em Berkeley e assume o cargo de professor-visitante da instituição em caráter permanente. 1984 Publicação de História da sexualidade 2: O uso dos prazeres e de História da sexualidade 3: O cuidado de si. Seu estado de saúde se agrava e é hospitalizado. Segundo seu amigo Paul Veyne e o parceiro Daniel Defert, Foucault sabia que tinha aids, mas não desejava que seus amigos soubessem. 1984 Morre em Paris a 25 de junho, aos 57 anos. Daniel Defert funda a primeira organização francesa de luta contra a aids, a Aides. 1994 Publicação de Ditos e escritos, a coleção de tudo que Michel Foucault escreveu além de suas monografias.

Sugestões de leituras adicionais

Textos primários Praticamente toda a obra de Foucault encontra-se traduzida para o português, com destaque para: Doença mental e psicologia.

História da loucura.

São Paulo, Perspectiva, [1961] 2004.

O nascimento da clínica.

Raymond Roussel.

Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, [1954] 2000.

Rio de Janeiro, Forense Universitária, [1963] 2008.

Rio de Janeiro, Forense Universitária, [1963] 1999.

As palavras e as coisas.

Arqueologia do saber.

São Paulo, Martins Fontes, [1966] 2006.

Rio de Janeiro, Forense Universitária, [1969] 2008.

A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, [1970] 2005. Isto não é um cachimbo.

Vigiar e punir.

São Paulo, Paz e Terra, [1973] 1989.

Rio de Janeiro, Vozes, [1975] 2007.

História da sexualidade,

Microfísica do poder.

3 volumes. São Paulo, Graal, [1976,1984] 2010.

São Paulo, Graal, [1979] 2008.

volumes. Rio de Janeiro, Forense Universitária, [1994, 2001] 2000-2010.

Ditos e escritos, 6

A verdade e as formas jurídicas.

Rio de Janeiro, NAU, [1996] 2002.

Muitos dos cursos no Collège de France encontram-se publicados no Brasil, em versões integrais — Em defesa da sociedade, Os anormais, Hermenêutica do sujeito, O poder psiquiátrico, Segurança, território e po­

(São Paulo, Martins Fontes, diversos anos) — e resumida — Resumo dos cursos do Collège de France 1970-1982 (Rio de Janeiro, Zahar, 1997).

pulação, Nascimento da biopolítica

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34

Como ler Foucault

Biografias

Há três biografias completas de Foucault: Didier Eribon, Michel Foucault (1926-1984). Paris, Flammarion, 1989. [Ed. bras.: Michel Foucault. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.] David Macey, The Lives ofMichel Foucault. Londres, Vintage, 1993. James Miller, The Passion of Michel Foucault. Cambridge, Nova York, Simon & Schuster, 1993.

Coletâneas de artigos sobre Foucault Arnold I. Davidson (org.), Foucault anã His Interlocutors. Chicago, University of Chicago Press, 1997. Gary Gutting (org.), The Cambridge Companion to Foucault. Cambridge, Cambridge University Press, 2a ed. 2005. David Couzens Hoy (org.), Foucault: A Criticai Reader. Oxford, Blackwell, 1986. Jeremy Moss (org.), The Later Foucault: Politics and Philosophy. Londres, Sage, 1998. Barry Smart (org.), Michel Foucault: Criticai Assessments, vols.1-3. Londres, Routledge, 1994. Bernard Waldenfels e François Ewald (orgs.), Spiele der Wahrheit. Michel Foucaults Denken. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991. Coletâneas publicadas no Brasil

Durval Muniz Albuquerque Jr., Alfredo Veiga-Neto e Alípio Souza Filho (orgs.), Cartografias de Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2008. Guilherme Castelo Branco e Luiz F. Baeta Neves (orgs.), Michel Foucault: Da arqueologia do saber à estética da existência. Londrina/Rio de Janeiro, NAU/Cefil, 1998. José Gondra e Walter Kohan (orgs.), Foucault 80 anos. Belo Horizonte, Autêntica, 2006. Izabel F. Passos (org.), Poder, normalização e violência: Incursões foucaultianaspara a atualidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2009. Michael Peters e Tina Besley (orgs.), Por que Foucault?. Porto Alegre, Artmed, 2008. Vera Portocarrero e Guilherme Castelo Branco, Retratos de Foucault. Rio de Janeiro, NAU, 2000.

Sugestões de leituras adicionais

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Margareth Rago, Luiz B.L. Orlandi e Alfredo Veiga-Neto (orgs.), Imagens de Foucault e Deleuze: Ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro, DP& A, 2002. Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto (orgs.), Figuras de Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2a ed. 2008. ___ , Para uma vida não fascista, Belo Horizonte, Autêntica, 2009. Tomaz T. Silva (org.), O sujeito da educação: Estudosfoucaultianos. Petrópolis, Vozes, 2005. Dossiês publicados no Brasil

“Dossiê Foucault”, Educação ir Realidade, vol.29, n.i, 2004. Porto Alegre, UFRGS. “Michel Foucault”, Educação, nov 2009. São Paulo, Segmento. “Governamentalidade e educação”, Educação ir Realidade, vol.34, n.2, 2009. Porto Alegre, UFRGS.

Referências gerais Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. Chicago, University of Chicago Press, 1982. [Ed. bras.: Michel Foucault: uma trajetóriafilosófica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.] Thornas Flynn, Sartre, Foucault, and Historical Reason, vol.2: A Poststructuralist Mapping ofHistory. Chicago, University of Chicago Press, 2005. Beatrice Han, Foucault’s Criticai Project. Between the Transcendental and the Historical. Paio Alto, Stanford University Press, 1998. Todd May, The Philosophy ofFoucault. Stocksfield, Acumen Publishing, 2006. Johanna Oksala, Foucault on Freedom. Cambridge, Cambridge University Press, 2005. John Rajchman, Michel Foucault: The Freedom of Philosophy. Nova York, Columbia University Press, 1985. [Ed. bras.: Foucault: A liberdade da filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 1987.] Referências gerais publicadas no Brasil

Inês L. Araújo, Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba, UFPR, 2008. Cesar Candiotto. Foucault e a critica da verdade. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2010. Edgardo Castro, Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2009.

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Como ler Foucault

Márcio A. Fonseca, Michel Foucault e o Direito. São Paulo, Max Limonad, 2002. ___ , Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo, Educ, 2003. Sylvio Gadelha, Biopolítica, govemamentalidade e educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2009. Roberto Machado. Foucault, a ciência e 0 saber. Rio de Janeiro, Zahar, 2006. ___ , Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 2000. Alfredo Veiga-Neto, Foucault e a educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2006. Sobre arqueologia e genealogia Gary Gutting, Michel Foucault’s Archeology ofScientific Reason. Cambridge, Cambridge University Press, 1989. Martin Kusch, Foucault’s Strata and Fields: An Investigation into Archaological and Genealogical Science Studies. Dordrecht, Kluwer, 1991. Martin Saar, Genealogie ais Kritik, Geschichte und Theorie des Subjekts nach Nietzsche und Foucault. Frankfurt, Campus Verlag, 2007. Rudi Visker, Michel Foucault: Genealogy as Critique. Trad. Chris Turner. Nova York, Verso, 1990.

Sobre govemamentalidade

Andrew Barry, Thomas Osborne e Nicholas Rose (orgs.),

Foucault and

Political Reason. Liberalism, Neo-Liberalism and Rationalities ofGovernment.

Londres, UCL Press, 1996. Graham Bruchell et al. (orgs.), The Foucault Ejfiect: Studies in Govemmentality. With Two Lectures by and One Interview with Michel Foucault. Chicago, University of Chicago Press, 1991. Mitchell Dean, Govemmentality: Power and Rule in Modem Society. Londres, Sage, 1999. Thomas Lemke, Eine Kritik der politischen Vemunft: Foucaults Analyse der modemen Govemementalitãt. Hamburgo, Argument, 1997. Sobre estudos de gênero e da sexualidade I. Diamond e L. Quinby (orgs.), Feminism and Foucault: Reflections on Resistance. Boston, Northeastern University Press, 1988. David M. Halperin. Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography. Oxford, Oxford University Press, 1995.

Sugestões de leituras adicionais

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Susan J. Hekman (org.), Feminist Interpretations ofMichel Foucault. Pennsylvania State University Press, 1996. Lois McNay, Foucault and Feminism: Power, Genderand the Self. Cambridge, Polity Press, 1992. Ladelle McWhorter, Bodies and Pleasure: Foucault and the Politics ofSexual Normalization. Bloomington, Indiana University Press, 1999. Jana Sawicki, Disciplining Foucault: Feminism, Power and the Body. Nova York, Routledge, 1991.

Sobre ética antiga Wolfgang Detel, Foucault and Classical Antiquity: Power, Ethics and Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1998. Timothy O’Leary, Foucault and the Art ofEthics. Londres, Continuum, 2002.

Recursos na Web

http://www.michel-foucault.com/ O website da Foucault Resources, uma boa fonte de informação sobre a vida e a obra de Foucault, pu­ blicações recentes e eventos em curso sobre ele. http://www.siu.edu/~foucault/ O website do Foucault Circle, uma rede mundial de estudiosos e educadores que partilham um interesse pelo pensamento de Foucault. http://www.foucaultsociety.org/ O website da Foucault Society, uma sociedade interdisciplinar para estudiosos, estudantes, ativistas e artistas interessados em estudar e aplicar as idéias de Foucault num contexto contemporâneo.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Simon Critchley e Bella Shand, não só por instigarem o projeto e me proporcionarem a oportunidade de escre­ ver este livro, mas também pela ajuda que me deram em todo o pro­ cesso. Discuti meus planos com vários amigos e colegas, e gostaria de agradecer em particular a Martin Saar e Jay Bernstein pelos conselhos e sugestões. Sou grata ajoan Nordlund, William Heidbreder e Julia Honkasalo pela excelente assistência editorial. Completei o manuscrito quando ministrava um curso sobre Foucault na New School for Social Research em Nova York; quero expressar minha gratidão a meus alunos pelas inspiradoras discussões e por confirmarem, com seu entusiasmo, como é empolgante ler Foucault.

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índice remissivo

aids, ii, 115-6 Aldrovandi, Ulisse, 46 anarquismo, 108-9 Annales, Escola dos, 38-9 antipsiquiatria, 32-3 Arqueologia do saber, A, 10,38 arqueologia, 9-10,17,19-20, 23,33,38-9, 62-3, 69-70, 74-5,121-2 Artaud, Antonin, 33 ativismo gay, 10-1, 97-8 ativismo político, 14-6 autor, 49-53 Bachelard, Gaston, 38 Barbin, Herculine, 92-3 Barthes, Roland, 51 Bataille, Georges, 57 Beauvoir, Simone, 8 Bentham, Jeremy, 72-3 Binswanger, Ludwig, 26 biopoder, 89-90 biopolítica, 105 Blanchot, Maurice, 57 Borges, Jorge Luis, 45-6 Butler, Judith, 96 Canguilhem, Georges, 38 Cervantes, Miguel, 28 ceticismo, 66-7 ciência, 21-2, 63-6, 67-8, 99-100 análise científica, 20 classificação, 21-2, 97-8 conhecimento, 63-7, 99-100,103-4 consciência, 37-8 discurso, 38-9, 52-3, 56-7, 75-6, 89-90 especialista, 20-1, 89-90, 93-4, 97-8 teorias, 22-3, 46, 56, 93-4, ciências humanas, 21, 66-7

Comte, Auguste, 36 confinamento, 27-30 confissão, 87-8 conhecimento, 42, 43-4, 57, 66-8, 73-5, 79, 107-8,116-7 científico, 19-20, 37-8, 63-4, 74-5, 94-5, 123 condições do, 39-40, 42-3 empírico, 37-8, 63-4 faculdades humanas de, 21-2 objetos de, 21-2, 66-7 psiquiátrico, 29-30 consciência, 14-5, 28, 29-30 construtivismo social, 18-20, 23,31-2 contingência, 9-10,16-7, 31, 52-3, 70,

77,113 contradiscurso, 56 corpo, 67-8, 75, 93-5,105 criminologia, 63-7, 75, 97 cristianismo, 61-2,118,120 crítica, 9-10, 21-2, 61-2, 68-9, 77-80,

107-13

Damiens, Robert, 68-9, 78 Darwin, Charles, 37, 41 Deleuze, Gilles, 8,115 delinquência, 10-1, 21-3, 68-70 Derrida, Jacques, 8-9 Descartes, René, 36 descontinuidade, 39-41 discurso, 50-2, 56, 87, 96, 98-9 Doença mental e psicologia, 26 doença mental, 10-1, 19, 23, 26-7, 28-30, 88-9 episteme, 39-45 nível epistemológico do conheci­ mento, 37

139

140

epistemologia, histórica, 38-9 era vitoriana, 87 Escola de Frankfurt, no, 112 escrita de vanguarda, 50-1, 57-8 estética da existência, 122-3 estruturalismo, 36-8 estudos gays e lésbicos, 97-8 ética, 117-24 existencialismo, 8-9, 21-2, 26-7 experiência, 32, 43-5, 47, 68-9 clássica, 28-9 condições históricas da, 22 cultural, 26-7, 30 da sexualidade, 88-9,121 livros, 33-4 na literatura, 51-2, 56-8 na primeira pessoa, 22-3, 45 pessoal, 11, 77 subjetiva, 22-3,39-40 vivida, 26 fenomenologia, 21-2, 26, 42,43-4, 57-8 filosofia, como prática crítica, 12 da ciência, 64, 68 do sujeito, 21-2, 42, 43-4

genealogia, 9-10,16-7,18, 23, 60-3, 6670, 72-5, 77-8, 103-4, iio-i, 121 gênero, 10, 66, 67-8, 93-6, 122-3 G1P (Groupe d’lnformation sur les Prisons), 14, 77 governamentalidade, 104-9 governamentalização, 108 governo, 104-9 Grécia Antiga, 116-23

Habermas, Jürgen, no, m Halperin, David, 97 Hegel, G.W.F., 112 Heidegger, Martin, 22 hermafroditismo, 92-4 História da loucura, 10,17, 18, 26-34, 40, 69

Como ler Foucault

História da sexualidade, A, vol. I, II, III, 10,17, 18, 82-90, 96-7,103, 116-9 história, 17-8, 27-8, 31-2, 42-4, 53-4, 67-8,117-8 biográfica, 38-9 crítica, 60-2, 69-70 da ciência, 31, 36-40, 51-2, 62-3 da psicologia, 25-6,31-2 da psiquiatria, 24-6, 29 do presente, 9-10,17-8, 27, 47 historicidade, 17-8 historiografia, 8, 17, 32-3, 36, 38-9, 62-3, 69-70 Hõlderlin, Friedrich, 33 homofobia, 22-3, 98-9 homônimos, 54 homossexualidade, 19-23, 97-8,118 humano(a), 27-8,31-2, 66-7 ser, 8-9,17-8, 20-1, 42-3, 66-7, 88-9 existência, 8-9,16-7, 27-8,30, 42 finitude, 28 natureza, 8-9 maneira de experimentar o mun­ do, 22, 42-3 Husserl, Edmund, 22 Idade Clássica, 28-9, 40-3 Idade Média, 52, 93 identidade, 23, 52-3, 74-5, 87, 89-90, 93-6, 98-100 Iluminismo, 29,111-3 Império Romano, 116 inconsciente, 37-8 insanidade, 18, 30, 68 internet, 53

Kant, Immanuel, 22,111-3 Kristeva, Julia, 8, 51

Lamarck, Jean-Baptiste, 41 liberdade, 9-10, 50-1, 57-8,112-3,124 espaços de, 14-5,16,124 linguagem, 44-5, 51-2, 78 literária, 32-4, 54-8 linguística, 36-7

índice remissivo

literatura, 32-4,36-7, 50-4 loucura, 10-1, 26-34 na literatura, 56-7 luta política, 15-6, 23, 77 manicômio/asilo psiquiátrico, 28-9 medicalização, 19-20, 31-2, 89-90 Merleau-Ponty, Maurice, 8, 22 modernidade, 9-10, 40 moralidade, 28-9, 30, 61-2, 65-6, 69-70, 116-20 morte de Deus, 42 morte do homem, 42-4

Nascimento da clínica, 0,10, 38 Nau dos Insensatos, 27 Nerval, Gérard, 33 Nietzsche, Friedrich, 33, 42, 60-2, 68, 69,112 nível arqueológico do conhecimento,

37, 39-40 normalização, 74-6, 88-9, 94-5,123-4

objetificação, 20-1, 75-6 objetos de análise científica, 20, 31-2 Palavras e as coisas, As, 10, 36-47, 56 Panóptico, 72-5, 84 duplo empírico-transcendental, 43 Pinei, Philippe, 29, 30 poder, 82-90 científico, 19-20, 21, 29-30, 50-1, 56-7, 66-7 como produtivo, 10-1, 89-90 concepções liberais de, 83-4 concepções marxistas de, 83-4 de si, 20-1,120-4, disciplinar, 72-6,79, 83-4,106-8,112-3 discursivo, 19-20, 62-3 do poder, 10-1, 63,73-5, 84-5,106, 108-9,121-2 efeitos do, 62-3, 89-90 em contraposição a dominação, 84-6 governamental, 103-9 histórico, 20, 21-2

mecanismos de, 63-4, 88-9 microfisica do, 84,107 pastoral, 105,108-9 poder/saber, 62-8,74-5, 95-6,121 político, 104-9 práticas, 9-10,17, 21-2, 23, 43, 62-3, 79, 89-90,111-2 relações de, 21-3, 62-3,74-5, 85-6, 98-9,106,108-9 social, 19, 20-1,23,43-4,65-6 população, 89-90,103-5 pós-estruturalismo, 9, 44-5 prisão, 10-1,14-7, 62-4, 73-80, 84-5 psicanálise, 122-3 psicologia, 25-6,122-3 psiquiatria, 19-20, 25-6,31-3

Raulet, Gérard, 14 Raymond Roussel, 53-5 Renascimento, 27, 31, 36, 40, 42, 45-6 resistência, 85-6,107-9, ni, 123-4 Roussel, Raymond, 54-6 Sade, marquês de, 36 Sartre, Jean-Paul, 8, 22, 50, 55, 57 sexo, 92-6 sexualidade, 10-1, 66-7, 86-9, 93-ioo, 104-5,116-9,122-3 Shakespeare, William, 28,51-2 subjetivação, 74-6, 80 sujeito, 9, 20-3, 26-7, 38-9, 43, 51-3, 55-8, 74-5, 80, 84-5,120-1, 123-4

teoria feminista, 95-6 teoria queer, 97-100 Tuke, Samuel, 29, 30 universais antropológicos, 66-8 verdade, 20-1, 61-2, 63-6, 70, 75-6, 87, 93-4, 95-6,107-8, 122-3 Veyne, Paul, 42 Vigiar e punir, 10,17, 63, 68-9, 75-8° virada linguística, 44, 56

Weber, Max, 112