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Portuguese Pages 141 [140] Year 2011
Johanna Oksala
Como ler Foucault Tradução:
Maria Luiza X. de A. Borges
Revisão técnica:
Alfredo Veiga-Neto Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Karla Saraiva Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil
^ZAHAR
Para Sid
Título original: How to read Foucault
Tradução autorizada da primeira edição inglesa, publicada em 2007 por Granta Books, de Londres, Inglaterra, na série How to Read, sob edição de Simon Critchley Copyright © Johanna Oksala, 2007 Johanna Oksala asserts the moral right to be identified as the author of this work.
Copyright da edição brasileira © 2011: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja | 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel (21) 2108-0808 | fax (21) 2108-0800 [email protected] | www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Preparação: Geísa Pimentel Duque Estrada | Revisão: Eduardo Monteiro, Sandra Mager Indexação: Nelly Praça | Capa: Dupla Design Foto da capa: © Bettmann/CORBIS/Corbis (DC)/Latinstock
CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
O36C
Oksala, Johanna, 1966Como ler Foucault / Johanna Oksala; tradução Maria Luiza X. de A. Borges; revisão técnica Alfredo Veiga-Neto, Karla Saraiva - Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
Tradução de: How to read Foucault Contém cronologia Inclui bibliografia e índice isbn 978-85-378-0520-6
constrói a realidade, os pós-estruturalistas julgaram que ai filosofia centrada no sujeito chegara ao fim. Para revitalizar
a filosofia eram necessárias abordagens radicalmente novas. Enquanto Derrida desenvolvia seu projeto de desconstrução,
concentrado na crítica textual de escritos filosóficos, Foucault se voltou para a história.
Ele fundiu filosofia e história de uma maneira nova, que re sultou numa estarrecedora crítica da modernidade. Chamou
suas obras de “histórias do presente” e tentou mapear o desen volvimento histórico, bem como as bases conceituais de algu mas práticas essenciais na cultura moderna — por exemplo
de punir e tratar aqueles percebidos como loucos. Os estudos mostram a natureza historicamente contingente e aleatória des
sas práticas e geram um efeito de profundo estranhamento: aspectos de sua cultura que antes negligenciava, o leitor passa
a vê-los não só como curiosos e contingentes, mas também, e
significativamente, como intoleráveis e demandando mudanças. A obra de Foucault costuma ser dividida em três fases dis tintas. A primeira, em que ele chamava seus estudos históricos
de arqueologia, é situada em geral nos anos 6o: as principais
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Como ler Foucault
obras desse período incluem História da loucura na Idade Clás sica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coi
sas (1966) e A arqueologia do saber (1969). A fase genealógica —
"genealogia” sendo o termo que Foucault escolheu para seus estudos do poder — situou-se nos anos 70 e abrange suas obras
mais conhecidas: Vigiar e punir (1975) e História da sexualidade, volume 1 (1976). Por fim, a fase ética, quando ele se voltou para a ética antiga, deu-se nos anos 80 e produziu os dois últimos
volumes de História da sexualidade: O uso dos prazeres e O cui
dado de si (1984). Embora esse esquema tripartite sem dúvida tome mais fácil para iniciantes mergulhar na vasta obra de Foucault, é importante tratá-lo como um modelo heurístico ou pedagógico, não como uma divisão estrita. As três fases
não se referem a três diferentes métodos ou objetos de estudo. O que marcou o início de cada “nova” fase foi a introdução de um novo eixo de análise, que resultou numa visão mais abrangente.
Além de inspirar discussões acaloradas entre acadêmicos profissionais sobre os diversos modos de ler e interpretar sua obra, o pensamento de Foucault alimentou controvérsias em debates culturais num nível mais geral. Sua ideia de poder
produtivo — poder que produz e incita formas de experiência
e conhecimento, em vez de reprimi-las e censurá-las — for neceu valiosas ferramentas para a contestação de idéias políti
cas conservadoras sobre sexualidade, gênero, delinquência e doença mental. Seu pensamento foi uma importante fonte de
inspiração intelectual e política para muitos ativistas gays, bem
como para outros radicais da cultura. Escrever livros críticos sobre tópicos como loucura, sexua
lidade e prisão provavelmente bastaria para criar uma aura
Introdução
ii
de subversão e controvérsia em torno de um pensador. No entanto, talvez tenha sido a vida privada de Foucault que pro
vocou as mais violentas tempestades. Pessoas que nunca le ram ou mesmo viram um só de seus livros muitas vezes têm conhecimento dos aspectos sensacionais de sua vida privada:
ele foi um homossexual que morreu de aids, experimentou di ferentes drogas e práticas sexuais sadomasoquistas, passou um
período numa instituição psiquiátrica na juventude, gostava de
andar em alta velocidade num Jaguar. Houve quem afirmasse
que tais “experiências-limite autodestrutivas”1 fornecem uma
chave para a resposta a como ler sua obra. O problema com a "leitura de sua vida”, contudo, é que, diferentemente dos seus
livros, ela não nos fornece nenhum texto determinado. Temos tão só uma série infinita de eventos fugazes, relatos contra
ditórios e lembranças, além de pensamentos e experiências privadas que jamais podem ser conhecidos ou interpretados. Escolhi ignorar em grande parte o pouco que sei sobre a vida de Foucault. Não por considerá-la irrelevante ou desinte
ressante: se o lemos com a devida atenção, torna-se evidente como sua obra também incorpora sua vida. A vida de um fi lósofo deve ser encontrada no ethos filosófico de seus livros,
e, para aqueles de nós que não conhecemos Foucault pes soalmente, talvez essa seja a única maneira de descobri-la. O próprio Foucault observou, acerca das conexões entre obra e
vida, que "a vida privada de um indivíduo, suas preferências
sexuais e seu trabalho são inter-relacionados não porque sua obra traduza sua vida sexual, mas porque a obra inclui toda a
vida tanto quanto o texto.”2
O pensamento de Foucault, tal como a sua vida, desafia a categorização sob um único tema — não porque ele tenha
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Como ler Foucault
malogrado muitas vezes e por isso mudado de opinião, mas
especialmente porque perseguiu questões que não têm respos
tas definidas e definitivas. Para ele, a filosofia não era um cor po de saber que se acumulava, mas um exercício crítico que
questionava de maneira incessante crenças dogmáticas e práti cas intoleráveis na sociedade contemporânea. Ele nos convidou
a continuar essa prática crítica: é para mudar o mundo, nada menos, que devemos lê-lo.
i. A liberdade da filosofia
O que está em julgamento não é apenas um sistema social em
geral, com suas exclusões e condenações, mas todas as provo cações — deliberadas e personificadas — graças às quais o sis tema funciona e assegura sua ordem, graças às quais ele fabrica
aqueles que exclui e condena em conformidade com uma política, a política do Poder, a polícia e a administração. Certo número
de pessoas é direta e pessoalmente responsável pela morte desse prisioneiro.3 Suicides de prison
Sobre o trabalho de um intelectual, eu diria também que é útil de certa maneira descrever aquilo-que-é fazendo-o aparecer como
algo que poderia não ser, ou que podería não ser como é. E por isso que essa designação ou descrição do real nunca tem um valor prescritivo do tipo "porque isto é, aquilo será”. E também por isso,
na minha opinião, que o recurso à história ... é significativo na medida em que ela serve para mostrar que aquilo-que-é não
foi sempre, i.e., que as coisas que nos parecem mais evidentes são sempre formadas na confluência de embates e acasos, durante o curso de uma história precária e frágil. É perfeitamente possível mostrar que o que a razão percebe como sua necessidade, ou
melhor, o que diferentes formas de racionalidade oferecem como seu ser necessário, tem uma história; e a rede de contingências da
qual isso emerge pode ser investigada. O que não significa dizer,
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Como ler Foucault
no entanto, que essas formas de racionalidade foram irracionais. Significa que elas residem na base da prática humana e da história humana; e que, uma vez que essas coisas foram feitas, elas podem ser desfeitas, contanto que saibamos como foram feitas.4 “Estruturalismo
e pós-estruturalismo”
O primeiro fragmento é de um panfleto publicado con
juntamente por três organizações que trabalhavam pela reforma das prisões na França em 1973. Elas estavam preo
cupadas com o brutal aumento dos suicídios nas prisões, e o panfleto documenta os 32 casos ocorridos em 1972: um quarto dos suicidas era imigrante, e a maioria estava na casa
dos 20 anos. Foucault foi membro fundador de uma das or
ganizações, o GIP, Groupe d’Information sur les Prisons, e o comentário não assinado que se segue ao relatório foi quase
certamente escrito por ele.5 Seu tom é polêmico e acusatório. Aqueles não eram suicídios que meramente aconteciam nas
prisões. Eram suicídios causados pelo sistema prisional, e
determinadas pessoas eram direta e pessoalmente respon
sáveis pelas mortes.
O segundo fragmento é de uma entrevista conduzida por Gérard Raulet e publicada em 1983. Raulet fez a Foucault a per
gunta que ele próprio formulara várias vezes e que considerava a questão essencial da filosofia: qual é a natureza do presente?
Ao responder, Foucault revela entender que a filosofia abre um
espaço para a liberdade. O papel do intelectual é expor novos modos de pensamento: fazer as pessoas verem o mundo à sua
volta sob uma luz diferente, perturbar seus hábitos mentais e convidá-las a exigir e instigar a mudança. O intelectual não
A liberdade da filosofia
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é a consciência moral da sociedade, seu papel não é emitir
julgamentos políticos, mas nos libertar, ensejando maneiras
alternativas de pensar. O contraste entre os dois textos é flagrante e ilustra a tensão
entre os papéis de Foucault como um ativista político engajado, por um lado, e um filósofo imparcial, por outro. Essa tensão se reflete também no acolhimento dado à sua obra. Por vezes
comenta-se criticamente que o ativismo político de Foucault
não se fundava numa posição teórica coerente e que nenhuma
política de fato eficaz emerge dele. De maneira inversa, sua po sição filosófica é julgada acrítica e politicamente vazia porque se abstém de julgamentos políticos explícitos.
O que tornou o pensamento de Foucault original e atraen te para muitos, porém, foi exatamente o novo modo como ele concebeu o papel da filosofia e sua relação com a política. Em vez de ser um intelectual universal, que falava para outros e
fazia julgamentos morais e políticos em nome de valores su
postamente universais, como justiça e liberdade, Foucault via a si mesmo como um intelectual específicb. Isso significava
que podia falar com franqueza e se engajar em lutas políticas movido apenas por sua própria posição dentro das práticas de poder. Seus estudos filosóficos, por outro lado, não podiam
fazer julgamentos políticos específicos, mas apenas fornecer ferramentas conceituais para as pessoas usarem em suas lutas
particulares. Enquanto para o Foucault ativista político era importante exigir melhoramentos concretos das condições
das prisões — os prisioneiros deveríam poder ler em suas ce las e as prisões ter aquecimento no inverno, por exemplo —,
o Foucault filósofo queria formular perguntas mais funda
mentais. Por que nossa sociedade pune pessoas mandando-as
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Como ler Foucault
para a prisão? E essa a única maneira pela qual podem ser punidas? Como a prisão opera? O que é um delinquente?
Embora essas perguntas não deixem de ter relação com exi
gências e julgamentos políticos, devem ser subjacentes a eles. O impacto crítico da filosofia de Foucault não se baseia
nos julgamentos explícitos que ele faz, mas na abordagem
que adotou para analisar nossa cultura. Enquanto a ciência e grande parte da filosofia pretendem decifrar, em meio à con fusão de eventos e experiências, aquilo que é necessário e pode
ser enunciado como lei universal, o pensamento de Foucault move-se exatamente na direção oposta. Ele tentou encontrar,
entre o que era considerado da ordem da necessidade, aquilo
que, a um exame filosófico mais detalhado, se revelava contin gente, fugaz e arbitrário. Para Foucault, o objetivo da filosofia
é questionar os modos como pensamos, vivemos e nos rela cionamos com outras pessoas e com nós mesmos no intuito de
mostrar como aquilo-que-é poderia ser diferente. Essa maneira de compreender a filosofia abre um espaço de
liberdade: expõe novos modos possíveis de pensar, perceber e viver. Mostrando como as coisas que consideramos óbvias e
necessárias emergiram de fato de uma rede de práticas hu manas contingentes, a filosofia viabiliza não só experimentos
mentais e especulações ociosas, mas mudança concreta: trans
formando modos de viver, relações de poder e identidades. Foucault comparou nossa difícil situação a ficar de pé numa
fila por não podermos ver que havia muito espaço vazio à nossa volta. Em vez de tentar organizar a fila numa configu
ração diferente que refletisse melhor a natureza da existência
ou da realidade humana, ele tentou nos mostrar o espaço vazio à nossa volta.
A liberdade da filosofia
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Uma maneira eficiente de questionar a inevitabilidade de nossas práticas correntes é investigar sua história. A história pode nos ensinar que muitas das coisas que hoje consideramos
evidentes por si mesmas — como a prisão — emergiram de fato há bem pouco tempo como resultado de eventos e cir
cunstâncias contingentes. Quase todos os livros de Foucault
são estudos históricos, desde História da loucura, do início de sua carreira, até suas últimas obras publicadas — o segundo e o terceiro volumes de História da sexualidade. Discutiu-se
muito se ele deveria ser considerado um filósofo ou um histo riador, mas está claro, ao menos, que suas histórias não repre
sentam historiografia convencional. Ele chamou seus estudos de arqueologias e genealogias para distingui-los, e observou
que eles eram mais um exercício filosófico que a obra de um historiador. O objetivo era “aprender em que medida o esforço para se pensar a própria história pode libertar o pensamento
do que ele pensa silenciosamente, e capacitá-lo a pensar de
maneira diferente”.6 O objetivo da história da prisão escrita por Foucault, Vigiar e punir, por exemplo, não é apenas compreen der o desenvolvimento histórico da prisão, mas libertar nosso
pensamento da ideia de que essa forma de punição é inevitável,
e com isso permitir-nos imaginar alternativas para ela. A historicização não é portanto um fim em si mesma, e o que é historicizado não é irrelevante. O que Foucault historiciza são sempre fatos aparentemente atemporais e inevitáveis. Ele toma por alvo objetos cujo significado e validade são afeta
dos pela revelação de sua historicidade. A história não é apenas educacional e interessante, nem se pretende com ela aumentar nosso saber sobre o passado. O objetivo é nos compreendermos
para sermos capazes de pensar e viver de maneira diferente. O
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Como ler Foucault
estudo da história é essencialmente uma ferramenta que nos
permite mudar a nós mesmos e ao mundo em que vivemos. Como Foucault observou no fragmento que abre este capítulo, a história era significativa para ele na medida em que servia
para mostrar como "aquilo-que-é não foi sempre” e como "as
coisas que nos parecem mais evidentes são sempre formadas na confluência de embates e acasos, durante o curso de uma
história precária e frágil”. Esse é o sentido da muito repetida caracterização que Foucault fez de seus livros como “histórias
do presente”. Suas histórias não tratam do passado, elas tratam
de nós, hoje, e representam uma tentativa de mostrar não só como nos tornamos o que somos, mas também como poderia mos ter nos tornado alguma outra coisa.
As histórias de Foucault não miram apenas a inevitabilidade
e a imutabilidade das coisas, mas também, de maneira im
portante, seu caráter natural. Seus livros História da loucura e
História da sexualidade foram tentativas capitais de desnaturali zar: de mostrar de que maneira fenômenos como a insanidade
e a sexualidade, que tendemos a considerar fatos naturais e biológicos, foram na verdade formados no curso da história
e da cultura humana. Nesse sentido, Foucault é claramente um construcionista social. O construcionismo social refere-se
a formas de pensamento que sustentam que os seres humanos e suas experiências são o resultado de processos sociais, não de processos naturais. Essas teorias tiveram extrema influência
na segunda metade do século XX e seu poder residiu exata
mente no esforço para desestabilizar necessidades e formas essencialistas de pensamento. Em geral elas pressupõem que
o que foi construído havia sido até então considerado natural
e dado por certo. A razão para se afirmar que alguma coisa
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é socialmente construída — dificuldades de aprendizagem, comportamento violento, QI, gênero ou raça — é em geral mostrar que, mudando a ordem social e política das coisas, seria possível mudar tal coisa também. Está identificada como
uma questão política: a existência e o valor de algo podem ser
debatidos e esse algo pode ser radicalmente transformado, ou
pelo menos modificado.
Mostrar que algo é socialmente construído e não biológico é também uma maneira de questionar todas as explicações puramente médicas do comportamento humano. Um exemplo
poderoso é a homossexualidade. Em História ãa sexualidade Foucault mostrou como emergiram no século XIX as expli cações científicas da homossexualidade como patologia. Essa
abordagem médica predominou em nossa cultura por longo tempo: só em 1974, por exemplo, a homossexualidade foi ex
cluída da categoria das doenças mentais da American Psychiatric Association. Foucault insistiu que “homossexual” não era
um nome que designava um tipo natural de ser. Era uma cons trução histórica e cultural que emergiu no século XIX e foi pro duzida por discursos científicos e relações de poder específicas.
As abordagens construcionistas sociais da sexualidade, das quais a História da sexualidade de Foucault pode ser conside
rada uma das mais importantes, foram decisivas para promo ver uma mudança no pensamento sobre a homossexualidade.
Foucault confirmou explicitamente o papel essencial e cons
titutivo de práticas sociais em numerosas ocasiões, e escolheu-
as como o objeto constante de seus estudos. Durante sua fase arqueológica nos anos 60, ele se concentrou sobretudo nas
práticas discursivas da ciência e nas regularidades que lhes
eram imanentes. Ao identificar as regras e limitações da prática
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Como ler Foucault
científica, tentou mostrar de que maneira domínios do conhe
cimento, como a biologia e a linguística, e seus objetos, a vida
e a linguagem, emergiram na história do pensamento. Em sua
fase genealógica nos anos 70, Foucault estudou práticas de po der e as formas de conhecimento que as sustentavam: como o
desenvolvimento da psiquiatria criminal, por exemplo, tornou possível o poder de médicos sobre delinquentes. Na última fase
de seu pensamento, estudou como as pessoas eram capazes de moldar a si mesmas através de práticas éticas e exercícios que
chamou de técnicas de si. Embora seus objetos essenciais de análise fossem práticas sociais, Foucault não afirmava que tudo era socialmente cons
truído da maneira como carros são produzidos numa fábrica. Dizer que a homossexualidade não existia antes que certas práticas científicas e desenvolvimentos históricos a tornassem
possível não é dizer que certas ações e sensações que hoje as
sociamos a ela não existiam: significa que elas foram formadas
como um objeto de análise científica — objetificadas — de diferentes maneiras em diferentes práticas históricas. Numa
época certas ações e sensações eram objetificadas como doença mental, em outra, concebidas como um pecado mortal, por
exemplo. As práticas científicas e as regras que as regulam permitem que certas entidades apareçam como objetos de in
vestigação científica apenas em certos momentos e sob certas condições. O modo como certas ações e sensações são cientificamente
objetificadas, contudo, tem enorme influência sobre seus su
jeitos, e portanto sobre essas próprias ações e sensações. Se uma pessoa é classificada como doente mental porque deseja
sexualmente um representante de seu próprio sexo, por exem-
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pio, é inevitável que essa classificação influencie o modo como ela se comporta e pensa sobre si mesma. Se ela é informada por um especialista de que seu desejo é patológico, terá um
poderoso incentivo para tentar alterá-lo. Observa-se muitas vezes que Foucault restringiu sua aná lise às ciências humanas porque os objetos e verdades gerados
nelas tinham efeitos constitutivos sobre os sujeitos estudados.
O modo como botânicos classificam plantas não tem nenhum efeito sobre o modo como as plantas “se comportam”; no caso
de seres humanos, porém, à medida que inventam novos ob
jetos, classificações e categorias, os cientistas geram tipos
de pessoas, e também tipos de ações e sensações. Categorias de pessoas passam a existir ao mesmo tempo em que as pessoas
que se enquadram nelas. Há uma interação dinâmica, de mão dupla, entre esses processos.7
As práticas constituem, portanto, a realidade social de ma neiras complexas e emaranhadas: elas são tanto os objetos de conhecimento — como a homossexualidade — quanto os su
jeitos conhecidos como homossexuais e que se comportam e agem de acordo com esse conhecimento. Esse efeito circular
é o que Foucault tem em mente quando afirma que relações de poder e formas de conhecimento criam sujeitos. Ele ten tou compreender e descrever, por meio de seus estudos histó
ricos, os processos pelos quais diferentes tipos de sujeitos eram
construídos: de que forma as identidades “delinquente” ou
"homossexual”, por exemplo, emergiram como classificações supostamente naturais, científicas.
Essa abordagem ao sujeito equivalia a uma crítica às “filo sofias do sujeito”, o que, no contexto dos círculos intelectuais franceses dos anos 6o, significava um ataque explícito à feno-
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Como ler Foucault
menologia e ao existencialismo. O primado do sujeito havia
encontrado uma poderosa expressão na ideia radical de Immanuel Kant de que todo conhecimento do mundo tinha de
se conformar às faculdades humanas de conhecimento. Para
compreender as estruturas fundamentais da realidade, não podemos ter acesso ao mundo em si e estudá-lo, mas somente
à maneira humana de experimentá-lo. Essa ideia foi mais de senvolvida por fenomenólogos — Edmund Husserl e Martin Heidegger na Alemanha, e seus seguidores Jean-Paul Sartre
e Maurice Merleau-Ponty na França. A afirmação central da
fenomenologia era que o ponto de partida de toda investiga ção filosófica, bem como de todas as teorias da ciência, era
a experiência vivida na primeira pessoa, pelo próprio sujeito. As teorias abstratas e as estruturas objetivas da filosofia e da
ciência baseavam-se num nível mais fundamental que, so mente ele, tornava-as possíveis: a experiência da realidade na
primeira pessoa. Foi essa “filosofia do sujeito” que Foucault quis contestar por meio de seu foco nas práticas. Ele estava interessado em práticas, categorias, conceitos e estruturas de pensamento
fundamentais, mas historicamente cambiantes, em termos dos quais as pessoas são capazes de perceber e agir de certas maneiras, e afirmava não ser possível revelar essas condições
históricas de experiência mediante a análise das experiências individuais que elas tornavam possíveis. Não podemos com
preender a homossexualidade apenas pela análise das experiên cias na primeira pessoa daqueles rotulados como homosse
xuais, por exemplo. O que temos de fazer é estudar as relações de poder homofóbicas que operam na sociedade, as concepções e teorias científicas culturalmente específicas que circulam por
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ela, bem como as práticas concretas de punição e cura. Todos esses diferentes eixos constroem a experiência subjetiva de um
homossexual, mas tais eixos não poderiam ser identificados por si mesmos, de uma maneira transparente.
As arqueologias e genealogias de Foucault são, portanto, es
forços explícitos para repensar o sujeito. O sujeito não é uma
fonte autônoma e transparente de saber — é construído em redes de práticas sociais que sempre incorporam relações de
poder e exdusões. Foucault caracterizou seu trabalho como
uma genealogia do sujeito moderno; uma história do modo pelo qual as pessoas são construídas como tipos diferentes
de sujeitos — delinquentes, homossexuais, doentes mentais
ou, através dessas exclusões, como normais e saudáveis. Tal história está essencialmente ligada a lutas políticas: é possí vel contestar e, por fim, transformar identidades opressivas e degradantes quando elas são expostas enquanto construções
sociais e não expressões de fatos naturais. Em outras palavras,
"uma vez que essas coisas foram feitas, elas podem ser desfeitas, contanto que saibamos como foram feitas”.
2. Razão e loucura
Um novo objeto acabara de aparecer na paisagem imaginária do Renascimento, e logo ocuparia nela um lugar privilegiado: era a
Nau dos Insensatos, um estranho barco bêbado que singra os rios largos e calmos da Renânia e os canais de Flandres.
A Narrenschiff, por certo, é uma composição literária, provavel mente sem dúvida tomada de empréstimo do antigo ciclo dos Argonautas que recentemente ganhara nova vida entre os grandes
temas mitológicos, e ao qual se acabava de dar figura institucional nos Estados da Borgonha. Estava em moda a composição desses
barcos, cuja tripulação de heróis imaginários, modelos éticos ou
tipos sociais embarcava numa grande viagem simbólica que lhes
trazia, se não a fortuna, pelo menos a figura de seu destino ou de sua verdade...
Mas, entre todos esses navios romanescos ou satíricos, a renschiff foi
Nar-
o único a ter uma existência genuína, porque eles
realmente existiram, esses barcos que levavam de uma cidade
para outra sua carga insensata. Os loucos tendiam a ter então uma existência errante. As cidades costumavam expulsá-los do
interior de seus muros, deixando-os correr pelos campos distan tes ou confiando-os aos cuidados de um grupo de mercadores ou
peregrinos. O costume era frequente sobretudo na Alemanha. Em Nuremberg, durante a primeira metade do século XIV, foi
registrada a presença de 62 loucos; 31 foram expulsos; no decorrer
dos cinquenta anos seguintes, há indícios de 21 partidas forçadas, e isso incluía apenas os loucos detidos pelas autoridades munici
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Razão e loucura
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pais. Ocorria muitas vezes que fossem confiados a barqueiros: em 1399, em Frankfurt, marinheiros foram encarregados de livrar a cidade de um louco que perambulava nu pelas ruas; nos primei
ros anos do século XV, um louco criminoso foi expulso da mesma
maneira de Mainz. Por vezes os barqueiros desembarcavam es ses incômodos passageiros mais cedo do que haviam prometido;
prova disso foi um ferreiro de Frankfurt, que duas vezes partiu e duas vezes retornou, antes de ser reconduzido definitivamente a Kreuznach. As grandes cidades da Europa deviam ver muitas vezes a chegada desses navios de loucos...
Trancado no barco de onde não se escapa, o louco era confiado
ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incer
teza que a tudo envolve. Era prisioneiro em meio à mais livre, à
mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à encruzilhada infinita. É o Passageiro por excelência, o prisioneiro da passagem.
E não se sabe em que terra desembarcará, assim como não se sabe,
quando ele aporta, de que terra vem. Ele só tem sua verdade e sua pátria nessa extensão infecunda entre duas terras que não lhe podem pertencer.8 História da loucura
Foucault observou certa vez que todos os seus livros haviam nascido de suas experiências pessoais e se relacionavam dire
tamente com elas: “Não escrevi um único livro que não fosse inspirado, pelo menos em parte, por uma experiência direta,
pessoal.”9 Enquanto estudava filosofia na altamente prestigiosa
e competitiva École Normale Supérieure em Paris nos anos 50, ele também fazia estudos sistemáticos de história da psicologia
e da psiquiatria. Em conexão com essa investigação, trabalhou
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Como ler Foucault
informalmente por mais de dois anos como interno no Hôpital
Sainte-Anne, à época um dos maiores hospitais psiquiátricos da
França. Isso lhe deu a oportunidade de observar não apenas os
pacientes, mas também o modo como eram tratados pelos fun
cionários. Foucault declarou mais tarde que sua própria expe riência com o tratamento dos dementes deixara nele uma forte impressão, e sua resposta a essa experiência tomou a forma da
crítica histórica.10 Todos os primeiros textos publicados por Foucault tratam
de psiquiatria e doença mental de diferentes maneiras. Sua primeira publicação incluiu uma longa introdução à tradução francesa do ensaio “Sonho e existência” (1954), do psiquiatra
alemão Ludwig Binswanger, e a monografia Doença mental e
personalidade (1954). Foi em História da loucura, porém, que ele desenvolveu sua abordagem característica.
A fenomenologia existencialista formava o horizonte inte lectual insuperável de todo aspirante a filósofo na Paris dos
anos 50. As obras que Foucault publicou antes de História da loucura foram fortemente influenciadas pela fenomenologia
existencial, seu ponto de partida. Na primeira edição de Doença mental e psicologia, por exemplo, ele afirmou que para com preender a doença mental temos de levar em conta a experiên
cia vivida do paciente, precisamos de "uma fenomenologia da doença mental". A segunda edição, publicada em 1962 e exten
samente reescrita, reflete as idéias revistas sobre doença mental que ele propusera em História da loucura em 1961: precisamos
de um estudo histórico das diferentes experiências culturais da loucura para poder compreendê-la.
Nos anos transcorridos entre uma edição e a outra, o pensa mento de Foucault sofreu uma importante mudança: da expe
Razão e loucura
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riência vivida para uma análise histórica e política mais ampla
de suas precondições. História da loucura assinala o início do esforço para questionar o status filosófico do sujeito racional, autônomo e constituinte. E também a primeira de suas histó
rias do presente.
A Nau dos Insensatos tornou-se o emblema famoso do livro. A poderosa imagem de um barco com sua “carga insensata”
a deslizar pelos rios livres e abertos da Europa renascentista forma o pano de fundo contra o qual a argumentação central sobre o confinamento do louco é projetada. A asserção his
tórica de Foucault nesse livro é que o tratamento dos loucos mudou de maneira abrupta e radical no espaço de alguns anos
durante o século XVII. De banidos das cidades e abandonados
a uma existência relativamente livre, eles passaram a ser con finados em casas de detenção. A escala desse confinamento foi sem precedentes: só em Paris, no intervalo de poucos meses,
mais de um em cada cem habitantes foi trancafiado.
Esse fato histórico, marcado pela fundação do Hôpital Général em Paris em 1656, funciona como uma ilustração da as serção filosófica mais ampla proposta no livro. Foucault afirma
que, em meados do século XVII, o modo como a loucura era definida sofreu profunda mudança: a loucura escapava ao que
era essencialmente humano e passou a ser associada à neces sidade de confinamento, uma ideia que, em grande medida,
prevalece ainda hoje e é considerada óbvia. Durante o Renascimento, a loucura havia sido compreen
dida como parte constituinte da vida cotidiana. Não havia uma tentativa de erradicar a loucura por completo da exis tência humana e da sociedade, ainda que se expulsassem os
loucos da cidade. Eles eram excluídos, mas não socialmente
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Como ler Foucault
temidos ou perseguidos. Ao contrário, reconhecia-se que
a loucura encarnava um tipo especial de sabedoria sobre a condição humana. Foucault menciona o tratamento que Cervantes e Shakespeare deram a seus personagens loucos: seus
heróis loucos falam na voz trágica da consciência, finitude humana e paixão desesperada.11 Durante o período clássico, que corresponde aproximada mente aos séculos XVII e XVIII, a loucura foi encarcerada e
ocultada. Estava presente na vida cotidiana apenas como o
oposto da razão humana, e apenas "atrás das grades”. "Quando
ela se manifestava, era a uma cuidadosa distância, sob o olhar vigilante de uma razão que negava todo parentesco com ela
e se sentia inteiramente a salvo de qualquer sombra de seme lhança.”12 A loucura não era mais concebida como parte cons tituinte da existência humana e como estando em diálogo com
a razão: era excluída pelo que era racional e essencialmente humano, e oposta a ele. Os loucos, portanto, não eram apenas confinados fisicamente em instituições isoladas e excluídos da
sociedade, sofriam também uma exclusão conceituai do domí nio da razão e da humanidade.
A loucura era ainda, cada vez mais, concebida dentro de um arcabouço moral. Era rejeitada e condenada porque violava a ética do trabalho da Idade Clássica. As casas de confinamento eram habitadas não só pelos loucos, mas também por pessoas que, a nossos olhos, pareceríam pertencer a categorias essen
cialmente diferentes: os pobres, os desempregados, infratores se xuais, condenados por profanação religiosa e livres-pensadores.
O que tinham em comum era a ociosidade, e portanto o desvio moral. Na experiência clássica, seu comportamento era considera
do uma violação da moralidade e representava o avesso da razão.
Razão e loucura
29
A próxima grande mudança na história da loucura ocorreu no final do século XVIII e marcou o surgimento do asilo psi
quiátrico. Foucault questiona a ideia prevalente na história da psiquiatria nos anos 60 de que os grandes reformadores do Ilu-
minismo — como Samuel Tuke na Inglaterra e Philippe Pinei na França — instigaram o tratamento humano e esclarecido
dos loucos porque finalmente compreenderam que a loucura era uma doença e não um defeito moral. Segundo os relatos
tradicionais, eles “libertaram” os dementes tirando-os da com panhia de criminosos e reconhecendo a verdadeira natureza de sua loucura como doença mental. Foucault afirmou que Pinei
e Tuke haviam se tornado figuras lendárias na história da psi quiatria, e que sua importância era aceita sem contestação, mas que sob esses mitos humanos havia uma série de opera
ções que organizavam o mundo do asilo psiquiátrico e os mé todos de cura segundo os mesmos princípios de medo, confinamento e condenação moral que prevaleciam na Idade Clássica.
Restrições externas ao corpo, como correntes e barras, fo
ram substituídas por mecanismos mais sutis de punição que tinham por alvo a mente. Isso só fez tornar o confinamento
mais total. Na Idade Clássica, embora os loucos ficassem acor rentados, ao menos suas mentes tinham rédeas soltas; no novo modelo, o louco é um paciente e seu pensamento e ação são
postos sob a abrangente autoridade do conhecimento psiquiá
trico. Tratamentos, terapias morais, educação e trabalho to maram o lugar da restrição violenta e funcionavam através da
dinâmica da culpa, da consciência e do autocontrole. Como
Foucault escreveu, “a loucura não iria mais infligir medo aos corações das pessoas, nem seria capaz disso — iria ela mesma
ficar amedrontada, indefesa, irrevogavelmente amedrontada,
3°
Como ler Foucault
inteiramente escravizada à pedagogia do bom senso, da ver dade e da moralidade”.13
A humanidade pretensamente maior de Pinei e Tuke foi, na
verdade, o correlato dos valores morais da sociedade burguesa
a que eles pertenciam, e a “libertação” dos dementes significou aprisioná-los sob as normas morais estritas dessa sociedade.
Eles rejeitaram a ideia da loucura como um desafio aos limites do convencionalismo e como um modo alternativo de exis
tência humana. Em vez disso, no asilo de Tuke os pacientes
eram obrigados a praticar a etiqueta social apropriada ao chá inglês: faziam o papel dos convidados e os funcionários, o dos
anfitriões. Para Foucault, essa farsa exemplificava o aprisiona-
mento da loucura num mundo burguês, moral, confinamento muito mais profundo que mediante correntes e barras. Essas afirmações históricas sobre o tratamento dos insa
nos não teriam a mesma agudeza provocativa e explosiva das
histórias do presente contadas por Foucault se fossem apenas curiosidades do passado distante. Embora Foucault estivesse
estudando as diferentes práticas históricas de tratamento dos loucos — como exclusão, confinamento e cura —, o que ele
tentava descrever através desse estudo era como certas expe riências culturais e atitudes em relação à loucura emergiram,
e como alguns de seus elementos essenciais continuam pre sentes em nossa experiência. Ele questiona nossa vaidosa con vicção da verdade inevitável e da maior humanidade de nosso
entendimento da loucura como doença mental mostrando,
por um lado, que historicamente nossas práticas psiquiátricas
emergiram a partir de práticas de confinamento, e, por outro, as formas possíveis e alternativas em que a loucura existiu no
passado: não como uma patologia e um objeto de investiga
Razão e loucura
3i
ção científica, mas como fortemente associada a formas de expressão artística, e também como parte da vida cotidiana. Como mostra a discussão de Foucault sobre o Renascimento, a loucura havia sido uma dimensão indispensável do que era
ser humano; havia residido “nos corações dos homens e no coração das coisas”.14
Para resumir o objetivo do livro, História da loucura tentou
desnaturalizar a loucura historicizando-a: ela deveria ser com preendida como um construto social variável, não um dado
científico anistórico. "A loucura só existe numa sociedade”, foi como Foucault resumiu o principal argumento do livro, “ela não existe fora das formas de sensibilidade que a isolam e das
formas de repulsão que a expelem ou a aprisionam.”15 A lou cura compreendida como doença mental é uma construção so
cial historicamente contingente que teve origem no século XIX. A História da loucura de Foucault foi lida de duas maneiras
diferentes. De início, como um estudo puramente acadêmico pertencente à tradição francesa da história da ciência. Embora
alguns historiadores profissionais louvassem a importância da
obra, ela foi também severamente criticada por sua imprecisão histórica. Afirmou-se que havia muitos erros na periodização de Foucault: evidências históricas mostram que os loucos já eram confinados no Renascimento, por exemplo. Alguns his toriadores chamaram a atenção para o fato de que a ideia da
loucura como doença remontava à medicina antiga, e não foi
consequência da sua medicalização.
A outra leitura concentra-se nas interpretações mais vastas do livro, e não nos detalhes históricos. O livro é admirado por sua profunda influência na esfera mais ampla dos movimentos
sociais e discussões sobre o papel da insanidade em nossa cul
32
Como ler Foucault
tura. Foucault foi legitimamente proclamado um pioneiro da ideia da construção social da loucura, bem como o fundador de
uma nova história da psiquiatria. Sua visão da doença mental
como uma construção social causou grande impacto no emer
gente movimento da psiquiatria alternativa da década de 6o, que contestava radicalmente a teoria e a prática da psiquiatria convencional da época. A antipsiquiatria logo se associou ao
movimento geral da contracultura dos anos 6o e início dos anos 70, opondo-se ao poder de instituições opressivas. Foi nessa época que o romance Um estranho no ninho tornou-se um best-seller e as idéias de Foucault encontraram claramente
um eco na preocupação pública com o tratamento de pacientes mediante medicação forçada, lobotomia e procedimentos de
eletrochoque.
O estilo literário do livro sugere que, ao escrevê-lo, Foucault
tinha em mente o público mais amplo, não o dos historiadores profissionais. Embora repleto de assombrosos detalhes históri
cos, não é escrito na linguagem seca, acadêmica, da erudição historiográfica. Está redigido como literatura, conforme mos tra o fragmento no início deste capítulo, repleto de metáforas e alusões líricas: rios de mil braços, terras desconhecidas e mares
indomados. Alguns dos críticos de Foucault sugeriram que a linguagem intricada e intensamente poética funciona como
um véu para confundir o leitor e ocultar as falhas históricas, mas eu argumentaria que essa forma de expressão dá maior peso aos objetivos centrais do autor. Se o objetivo das histórias
de Foucault é descrever formas de experiência, elas deveríam
também, de maneira igualmente importante, evocar uma experiência no leitor. O livro exige não só nossas faculdades
racionais de argumentação, mas também nossas faculdades de
Razão e loucura
33
imaginação e emoção. Ele nos transmite algo sobre a loucura — uma experiência que reside do outro lado dos limites da
razão —, e esse algo não pode ser expresso na linguagem ra
cional da filosofia. Foucault insistiu que, mais que escrever a história da linguagem da psiquiatria, que era “um monólogo
da razão sobre a loucura”, ele queria esboçar a arqueologia do silêncio da loucura.16
Para responder à pergunta óbvia de como o silêncio da lou
cura poderia ser escrito, Foucault recorreu à literatura. Obser
vou que o que o interessava e guiava ao escrever o livro eram certos traços de loucura presentes na literatura.17 Somente
um certo estilo de escrita literária poderia mostrar traços de loucura e evocar no leitor uma experiência capaz de contestar a idolatria da razão. Em História da loucura, Foucault toma nomes como Hõlderlin, Nerval, Nietzsche e Artaud como
exemplos de escritores que conseguiram mostrar o silêncio da loucura em seus escritos, mas não explora em detalhe a
natureza da linguagem literária no livro. Foi preciso esperar pela série de ensaios e artigos sobre literatura que ele publica
ria nos anos seguintes. Foucault comentou certa vez numa entrevista que, assim
como havia livros da verdade e livros de demonstração, os
seus eram livros de experiência. Queria dizer com isso que a
experiência de ler mudava potencialmente o leitor e o impe dia de "ser sempre o mesmo ou de ter a mesma relação com as coisas e com os outros”.18 Seu objetivo era que seus livros
contribuíssem para uma transformação e, em menor grau, fos sem agentes dela. Escrevia para partilhar “uma experiência do
que somos, não só nosso passado mas também nosso presente,
uma experiência de nossa modernidade, de tal maneira que
34
Como ler Foucault
possamos sair dela transformados”.19 Em História da loucura, seu objetivo foi em última instância mudar a maneira como
percebemos as pessoas que julgamos dementes — e isso não pode ser feito apenas com argumentos racionais.
3. A morte do homem
Ao distinguir entre o nível epistemológico do conhecimento (ou
consciência científica) e o nível arqueológico do conhecimento, estou ciente de estar avançando numa direção prenhe de gran
des dificuldades. Pode alguém falar da ciência e da sua história (e portanto de suas condições de existência, suas mudanças, os
erros que perpetrou, os súbitos avanços que a lançaram num novo curso) sem referência ao próprio cientista — e falo não ape
nas do indivíduo concreto representado por um nome próprio, mas de seu trabalho e da forma particular de seu pensamento? É possível tentar uma história válida da ciência que retraçaria
do início ao fim todo o movimento espontâneo de um corpo
de conhecimento anônimo? Será legítimo, será ao menos útil,
substituir o tradicional “X pensou que...” por “sabia-se que...”? Mas não era exatamente isto que eu pretendia dizer. Não desejo negar a validade de biografias intelectuais, ou a possibilidade de
uma história de teorias, conceitos ou temas. Pergunto-me sim plesmente se tais descrições são elas mesmas suficientes, se fazem
justiça à imensa densidade do discurso científico; se não haveria, fora de seus limites habituais, sistemas de regularidades que têm um papel decisivo na história das ciências. Eu gostaria de saber
se os sujeitos responsáveis pelo discurso científico não são deter minados em sua situação, sua função, sua capacidade perceptiva
e suas possibilidades teóricas por condições que os dominam e
até os esmagam. Em suma, tentei explorar o discurso científico
não do ponto de vista dos indivíduos que estão falando, não do
35
36
Como ler Foucault
ponto de vista das estruturas formais do que estão dizendo, mas do ponto de vista das regras que entram em ação na própria exis tência desse discurso: que condições Lineu (ou Petty, ou Arnauld) tivera de preencher, não para tornar seu discurso coerente e ver dadeiro em geral, mas para dar a ele, no momento em que foi
escrito e aceito, valor e aplicação prática como discurso científico
— ou, mais exatamente, como discurso naturalista, economista ou gramatical?20 Prefácio
à edição inglesa de
As palavras
e as coisas
Publicado em 1966, As palavras e as coisas, foi um best-seller
instantâneo que tornou Foucault famoso. A primeira impres são esgotou-se em uma semana. É sob muitos aspectos o livro
mais exigente de Foucault, quase impenetravelmente rico em camadas e detalhes e intrincado na concepção. Contém profun
das argumentações filosóficas abarcando a obra de pensadores
tão díspares quanto Descartes, Comte e Sade, e contribui para
a história da ciência oferecendo novas idéias acerca de tópicos variados, como a obra de naturalistas obscuros do Renasci
mento e teorias da linguística do século XIX. Essas argumen tações eruditas e detalhadas sobre a filosofia e a história da
ciência se misturam a belas descrições e elegantes discussões da literatura e da pintura. Não surpreende a abundância de diferentes interpretações
da obra. O livro é lido por vezes como um esforço fracassado para construir uma abordagem estruturalista à historiografia
e, por outras, como um confuso exercício formal. O fragmento que escolhi (do prefácio de Foucault para a tradução inglesa,
acrescentado quatro anos após a primeira publicação) poderia
A morte do homem
37
ser lido como um esforço desesperado de sua parte para corri gir interpretações incorretas. Ele reprova enfaticamente leitu
ras estruturalistas do livro e se refere a "certos comentadores imbecis” que insistem em rotulá-lo de estruturalista. O estruturalismo diz respeito a um conjunto de influentes pontos de
vista teóricos, prevalentes na França nos anos 6o, que tinham como principal objetivo explicar fenômenos sociais e cultu
rais em termos de estruturas inconscientes subjacentes. Era
não histórico, e sob esse aspecto opunha-se diametralmente à abordagem de Foucault. A principal asserção de Foucault em As palavras e as coisas, no entanto, é de caráter “estrutural”, na medida em que aborda
estruturas inconscientes de pensamento. Ele afirma haver um nível de ordem, “um inconsciente positivo do conhecimento”,
que, embora escape à consciência do cientista, é formativo do discurso científico. Trata-se do nível arqueológico do conhe
cimento em contraposição ao nível epistemológico, a que se refere no início do fragmento, e esse nível expõe os princípios
organizadores do conhecimento, as estruturas inconscientes
que ordenam os discursos científicos. Ainda que cientistas individuais nunca tenham formulado esses princípios, nem
tenham tido consciência deles na época, o nível arqueológico do saber define os objetos próprios para seu estudo: constitui as condições necessárias para a formação de conceitos e a cons
trução de teorias.
Se quisermos compreender por que a ideia de evolução, por
exemplo, foi impossível por séculos, não basta apenas tentar compreender o gênio de Darwin. Precisamos compreender
as estruturas subjacentes do pensamento que formavam o
contexto em que ele pensou. Foucault afirma que a ideia de
38
Como ler Foucault
evolução só se tornou pensável em razão de uma mudança mais profunda no pensamento que fez com que os objetos de conhecimento empírico passassem a ser suscetíveis ao tempo.
Tornou-se possível definir a vida como associada ao desenvol vimento histórico uma vez que os objetos empíricos passaram a ser definidos não mais por seu lugar num sistema atemporal
de classificação, mas por seu lugar na história. Essa mudança mais profunda no arcabouço conceituai não poderia ser indu
zida por nenhum cientista individual isolado, tendo sido antes
o resultado de uma multiplicidade de causas complexas que Foucault nem tenta enumerar. Ele quis estudar a história da ciência como um campo relativamente autônomo de unidades discursivas, regularidades e transformações, sem postular o
sujeito intencional — o cientista — como o principal fator explanatório. Seu objetivo não era fornecer explicações causais para mudanças na história, mas apenas descrever certas trans
formações nas estruturas profundas de pensamento. Foucault havia usado a metáfora arqueológica em diferentes
contextos em seus primeiros trabalhos, e começou a usá-la sistematicamente como um nome para sua abordagem em
seus livros O nascimento da clínica: Uma arqueologia da percep ção médica (1963), As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas (1966) e A arqueologia do saber (1969). O termo
“arqueologia ” já havia sido usado como uma metáfora meto dológica por adeptos dos dois movimentos franceses de es
tudo da história que tiveram maior influência sobre Foucault: a epistemologia histórica francesa, cujos representantes mais
conhecidos foram Gaston Bachelard e Georges Canguilhem, e a "nova história” da Escola dos Annales, uma escola de his
toriografia que se tornou dominante após a Segunda Guerra
A morte do homem
39
Mundial. Apesar de muitas diferenças, esses dois movimentos
partilharam um foco em descontinuidades, a rejeição da his toriografia narrativa e a consciência crítica de que a pesquisa
histórica estava sempre construindo parcialmente seu tema.
Não aceitando mais as periodizações usuais, evidentes por si mesmas, baseadas em acontecimentos tais como tratados e
batalhas, eles buscavam novos tipos de eventos e novas manei
ras de organizar séries de eventos, considerando períodos de tempo mais longos e rupturas, transformações e diversidades mais sutis.
A noção de arqueologia capta efetivamente as principais características da abordagem de Foucault à história da ciência
e realça os pontos em que ela difere da historiografia tradi
cional. Ele estava mais interessado em camadas de problemas que em realizações individuais, o que reflete o significado de arqueologia no sentido convencional. Sua arqueologia não é história biográfica e não diz respeito às descobertas individuais de grandes homens. Antes, escava as profundezas do solo de nosso pensamento para definir escalas de tempo mais amplas e
os modos mais gerais de pensar que jazem por trás das diversas
opiniões e ações dos indivíduos. Ela distingue entre diferentes níveis de análise na história da ciência e penetra sob as obser vações, os experimentos e as teorias do indivíduo.
Por isso, além do nível das descobertas científicas, discus
sões, teorias e idéias filosóficas, existe um nível arqueológico de pensamento que as forma. O objetivo de Foucault em As
palavras e as coisas foi revelar esse nível formativo do discurso científico, e ele inventou o conceito de episteme (épistémè) para
designá-lo. Revelando os embaraços e as condições necessárias à existência do pensamento de um período particular, ele bus
4°
Como ler Foucault
cou revelar as condições não subjetivas que tornavam possíveis experiências subjetivas de ordem e conhecimento. Descrever
a história em termos de epistemes foi antes de mais nada uma tentativa de mostrar que a história do pensamento não podia
ser compreendida apenas mediante o estudo do pensamento
de indivíduos. Devemos compreender as condições históricas e epistêmicas mais amplas que tornaram possível para sujeitos
individuais pensar e perceber o mundo à sua volta de certas
maneiras e através de certos conceitos, e também como de terminadas formas de pensar eram simplesmente impossíveis. Essa abordagem goza hoje de aceitação geral: é raro que a história das idéias ainda seja apresentada como uma sucessão de grandes pensadores que o impeliram adiante pela mera genialidade de suas mentes. As palavras e as coisas esteve na
vanguarda do movimento radical em direção à adoção de uma
perspectiva mais ampla da história das idéias, uma das qualida des menos controversas e mais amplamente reconhecidas do livro. Muito discutida, contudo, foi a maneira como Foucault
descreveu rupturas e descontinuidades fundamentais na his
tória do pensamento ocidental. Ele situa os pontos de descontinuidade, distinguindo os sistemas epistêmicos subjacentes
a três épocas históricas: o Renascimento, a Idade Clássica e a
Modernidade. A divisão é a mesma presente em História da loucura. A primeira ruptura ou descontinuidade em sua investi gação arqueológica situa a aurora da Idade Clássica por volta de meados do século XVII; e ele pôs sua segunda ruptura epistê-
mica no início do século XIX, o qual, acreditava ele, anunciara
a aurora da Idade Moderna. Ao documentar rupturas ou descontinuidades entre as epis
temes, Foucault estava se opondo ao desenvolvimento contí
A morte do homem
4i
nuo da ciência e da racionalidade europeias. Seu objetivo, sob a perspectiva da história da ciência, era mostrar como formas modernas de conhecimento se originaram de uma ruptura fundamental na história das idéias, não sendo simplesmente
desenvolvimentos mais avançados de modos anteriores de conhecimento. Certas controvérsias e oposições, tradicional
mente consideradas fundamentais por historiadores, eram de fato parte da mesma ordem epistêmica. Por outro lado, ho
mens comumente considerados predecessores de pensadores
modernos estavam, em alguns casos, a despeito de algumas
semelhanças superficiais, operando num arcabouço conceituai inteiramente diferente. Para tomar mais uma vez o exemplo de Darwin, sustentase com frequência que suas idéias evolucionárias haviam sido
antecipadas por Lamarck. Foucault afirma em As palavras e as
coisas que, embora Lamarck escrevesse sobre a transformação das espécies ao longo do tempo, seu pensamento era limitado
pela episteme da Idade Clássica e baseava-se numa compreen são inteiramente diferente da natureza. Na episteme clássica, a
natureza só era concebível como um painel unificado, anistó-
rico, e as mudanças que Lamarck estudou eram deslocamentos de todo o sistema rumo a um estado mais elevado de perfeição.
Essa ideia era fundamentalmente diferente do conceito mo
derno de vida, compreendida como um fenômeno histórico,
dinâmico. De maneira semelhante, as descobertas de Lamarck não tinham sido simples melhoramentos de teorias renascentistas
prévias, mas originaram-se de uma ruptura fundamental com
elas; “não se tornaram possíveis porque os homens examina ram de maneira mais rigorosa e atenta”,21 mas porque o modo
42
Como ler Foucault
de ser da ordem natural havia mudado. No Renascimento,
a natureza era compreendida como um organismo vivo, di
nâmico, e o método usado para conhecê-la era a interpretação dos significados ocultos que ela encerrava. Na Idade Clássica,
por outro lado, o mundo natural consistia de matéria e mo vimento mecânico sem significado, e conhecê-lo significava
ordená-lo e classificá-lo. O historiador Paul Veyne resumiu o modo como Foucault, seu grande amigo e colega no Collège
de France, revolucionou a história dizendo que ele abordava o passado não como uma narrativa com um enredo huma namente significativo, mas como se o observasse através de
um caleidoscópio, contendo inúmeros fragmentos discretos.
Este revelava um padrão, mas um padrão moldado pelo acaso. Passar de uma episteme para outra era girar o caleidoscópio e
criar um novo padrão.22 As apostas de Foucault são altas também na arena filosó fica. Seu objetivo era nada menos que mostrar como toda
a filosofia anterior era falha, para imprimir-lhe uma nova
direção e ímpeto. As palavras e as coisas foi seu ataque mais incisivo às filosofias do sujeito — formas de pensamento que
davam primazia ao estudo da existência humana — e contém
sua crítica mais explícita e veemente à fenomenologia. Sua principal afirmação foi que o pensamento filosófico caíra na armadilha da difícil e paradoxal situação da episteme
moderna, e chegara por isso a um beco sem saída. Imitando de maneira consciente e provocativa a famosa declaração de
Friedrich Nietzsche sobre a morte de Deus, Foucault anun ciou a morte do homem. Assim como Nietzsche anunciara
que a morte de Deus prometia ao pensamento filosófico um
novo começo, ele anunciou a morte do homem como um acon
A morte do homem
43
tecimento importante o bastante para inaugurar uma nova
episteme: “O vácuo deixado pelo desaparecimento do homem é o desdobramento de um espaço em que mais uma vez é
possível pensar.”23 Para Foucault, "homem” designa um ser humano, mas um
ser humano somente se compreendido de uma certa maneira,
a qual não era possível na Idade Clássica, por exemplo. Ele diz que o homem é um “duplo empírico-transcendental”, que
rendo dizer com isso que o homem é um ser que é a condição
transcendental de todo conhecimento — todo conhecimento do mundo tem de se conformar ao modo humano de expe
rimentá-lo — e, ao mesmo tempo, é um ser no mundo que pode ser empiricamente estudado e conhecido. O homem é
autônomo e racional e, ao mesmo tempo, o produto de for ças inconscientes e práticas culturais além de seu controle. É
formado por uma rede complexa de práticas sociais e fatos
históricos, e no entanto sua experiência é a possibilidade da elucidação deles mesmos.
Foucault afirma que essa forma de pensamento não é de maneira alguma necessária ou isenta de problemas. Embora
seja difícil para nós conceber qualquer outra forma de pensar
sobre as relações entre o sujeito, o saber e a história, Foucault diagnostica o homem como o problema da episteme moderna.
Um modo de pensamento que se centra no homem — um ser
humano tendo tanto a fonte do significado como o resultado
do mundo natural, da cultura e da história humanas — perma
nece necessariamente ambíguo e circular. Filosofias do sujeito, como a fenomenologia, podem apenas mostrar como "o que
é dado na experiência e o que torna a experiência possível correspondem um ao outro numa interminável oscilação”.24
Como ler Foucault
44
Para Foucault, as possibilidades para pensar, abertas pela morte do homem, estavam associadas a uma nova compreen são da linguagem. O nascimento do homem foi possível graças
ao colapso da episteme clássica, mas estávamos novamente à
beira de uma nova episteme. A questão da linguagem havia se tornado a mais importante questão com que nos confrontávamos. "Toda a curiosidade de nosso pensamento reside agora
na questão: o que é linguagem, como podemos encontrar uma
maneira de contorná-la para fazê-la aparecer em si mesma, em toda a sua plenitude?”25 Essa questão anunciava uma nova
episteme. Foucault sugeriu que as novas possibilidades para
o pensamento residiam na análise da linguagem como algo mais fundamental que o homem. Em vez de a linguagem ser
somente um instrumento que usamos para traduzir nossas ex
periências em palavras, as próprias experiências são formadas pelos modos como são conceituadas na linguagem. O reconhecimento de que a linguagem é fundamental
mente constitutiva de nossas experiências do mundo é muitas vezes chamado, na filosofia, de "virada linguística”. A ideia
fundamental é que a linguagem forma os limites necessários
de nosso pensamento e experiência: só podemos experimen tar alguma coisa que a linguagem torne inteligível para nós.
Por não termos, por exemplo, as palavras que os esquimós têm para descrever os diferentes tons de neve, tampouco os
distinguimos em nossa experiência. Ao enfatizar que a linguagem tem mais importância que o
homem, Foucault está afirmando, portanto, que ocorreu uma inversão fundamental no horizonte de nosso pensamento. O pensamento filosófico vê agora a análise da linguagem — e
não a experiência humana — como o mais fundamental para
A morte do homem
45
a compreensão da natureza da realidade. Mesmo que o livro de Foucault, ou o pós-estruturalismo como um todo, não te nha inaugurado uma nova episteme, desempenhou um papel
capital ao dar forma à virada linguística na filosofia — um dos mais importantes desenvolvimentos na filosofia ocidental
durante o século XX.
A ênfase em estruturas anônimas e não em indivíduos torna
difícil, no entanto, a avaliação da influência do livro e de Fou cault como um pensador individual. Numa entrevista após a
publicação de As palavras e as coisas, ele explicou sua posição como o autor dessa obra. Afirmou que ela devia ser compreen dida como anônima porque também ele estava situado dentro
de sua própria episteme. O livro pertencia à forma historica
mente específica de discurso que havia trazido a questão da linguagem para o primeiro plano de nosso pensamento. Fou
cault conscientemente situava sua análise no anonimato geral de todas as investigações de então a respeito da linguagem. O autor está “presente no livro todo, mas é o ‘alguém’ anônimo
que fala hoje em tudo que é dito”.26
Mesmo enfatizando seu anonimato, o livro começa com um relato na primeira pessoa de uma experiência transformativa, uma forma de escrever que Foucault raramente usava. Ele abre o livro descrevendo como este surgiu de uma passagem de um
ensaio de Jorge Luis Borges. Borges citou "certa enciclopédia chinesa”, que apresenta um sistema de pensamento inteira mente diferente do nosso, dividindo os animais em catego rias tais como “pertencentes ao imperador”, “embalsamados”, “fabulosos” e “cães perdidos”. A passagem fez Foucault rir por
muito tempo, e a experiência destruiu todos os pontos de re ferência familiares de seu pensamento — nosso pensamento,
46
Como ler Foucault
o pensamento que carrega o selo de nossa era”.27 Foi no assom bro suscitado por essa estranha taxonomia que a devastadora impossibilidade de pensar de certas maneiras forçou Foucault
a questionar os limites de seu próprio pensamento.
Este início bem-humorado aponta para o objetivo do livro. Mesmo que estejamos aprisionados de maneira inevitável den tro de nossa própria episteme, é possível, em certa medida, nos tornarmos cientes de seus limites. E por meio da comparação
com antecedentes que são inteiramente diferentes que as estru
turas inconscientes de nosso pensamento podem se manifestar. Fica claro que Foucault pretendeu que suas próprias descrições
de teorias científicas e classificações nesse livro funcionassem como a enciclopédia chinesa de Borges: elas se destinam a nos fazer perceber que há estruturas ocultas sob nossa própria ordem das coisas, e experimentar sua fragilidade. Quando lemos sobre o livro Historia serpentum et draconum,
do naturalista renascentista Aldrovandi, por exemplo, a expe
riência é quase tão desorientadora quanto a leitura da enciclo
pédia chinesa. Um dos capítulos no estudo de Aldrovandi sobre serpentes é organizado em tópicos que incluem a anatomia, a natureza e os hábitos delas, mas também mitologia, os deuses
aos quais são dedicadas, sonhos e o uso de serpentes na dieta humana. Ao distanciar o leitor de sua própria cultura, Foucault
pretendeu mostrar como formas de pensamento que agora
parecem impossíveis eram não apenas possíveis, mas também formas de saber plausíveis para aqueles que pensavam em ter mos de uma outra episteme. Isso significa que nossas formas atuais de pensamento poderão parecer igualmente risíveis e
impossíveis do ponto de vista do futuro. Nossas necessidades poderão igualmente se revelar não mais que contingências.
A morte do homem
47
Embora raras vezes isso seja reconhecido, As palavras e as coisas não é apenas uma tentativa de desenvolver uma alter
nativa às abordagens da filosofia e da história das idéias que se
centram no sujeito. A obra compreende também uma parte das histórias do presente de Foucault: o objetivo não é sim plesmente compreender o passado, mas também viver uma
experiência que contesta a autoevidência de nossos próprios
modos de pensamento.
4. O anonimato da literatura
O autor permite uma limitação da cancerosa e perigosa prolife ração de significações dentro de um mundo onde somos parci-
moniosos não só com nossos recursos e riquezas, mas também
com nossos discursos e suas significações. O autor é o princípio da parcimônia na proliferação de significado. Em consequência, devemos inverter por completo a ideia tradicional do autor. Es tamos acostumados, como vimos antes, a dizer que o autor é o
criador genial de uma obra em que ele deposita, com infinita opulência e generosidade, um mundo inexaurível de significações. Estamos habituados a pensar que o autor é tão diferente de todos
os outros homens, e tão transcendente em relação a todas as lin guagens que, assim que ele fala, o significado começa a proliferar,
a proliferar indefinidamente. A verdade é exatamente oposta: o autor não é uma fonte
indefinida de significações que preenchem uma obra; o autor não
precede as obras; ele é um certo princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, limitamos, excluímos e escolhemos; pelo qual, em
suma, impedimos a livre composição, decomposição e recompo sição da ficção. De fato, se estamos acostumados a apresentar o autor como um gênio, como uma perpétua explosão de invenção,
é porque, na realidade, nós o fazemos funcionar exatamente da maneira oposta.... O autor é portanto a figura ideológica pela qual
marcamos a maneira como tememos a proliferação de significado. Ao dizer isto, pareço exigir uma forma de cultura em que a
ficção não fosse limitada pela figura do autor. Seria puro roman-
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49
O anonimato da literatura
tismo, no entanto, imaginar uma cultura em que a ficção ope rasse num estado de absoluta liberdade, em que ela fosse posta à
disposição de todos e se desenvolvesse sem passar por algo como uma figura necessária ou restritiva. Embora, desde o século XVIII,
o autor tenha desempenhado o papel do regulador do ficcional, um papel muito característico de nossa era de sociedade indus
trial e burguesa, de individualismo e propriedade privada, ainda assim, dadas as modificações históricas em curso, não parece necessário que a função do autor permaneça constante na forma,
na complexidade ou mesmo na existência. Penso que, à medida que nossa sociedade mudar, no momento mesmo em que estiver
no processo de mudança, a função do autor desaparecerá, e de tal
maneira que a ficção e seus textos polissêmicos irão mais uma vez
funcionar segundo um outro modo, mas ainda com um sistema de restrições — um que não será mais o autor, mas que terá de ser determinado, ou, talvez, experimentado.
Todos os discursos, sejam quais forem seus status, forma, valor, e seja qual for o tratamento a que serão submetidos, se desenvolve
rão então no anonimato de um murmúrio. Não ouviriamos mais as perguntas tantas vezes formuladas: quem realmente falou? Foi
mesmo uma outra pessoa? Com que autenticidade ou originali dade? E que parte de seu eu mais profundo expressou em seu dis
curso? Em vez disso, haverá outras perguntas, como estas: quais são os modos de existência desse discurso? Onde ele foi usado, como
pode circular, e quem pode se apropriar dele para si? Quais são os lugares nele em que há espaço para possíveis sujeitos? Quem pode assumir essas várias funções do sujeito? E por trás de todas estas
perguntas dificilmente ouviriamos alguma coisa além da leve agi
tação de uma indiferença: que diferença faz quem está falando?28
"O
QUE É UM AUTOR?’
50
Como ler Foucault
Jean-Paul Sartre, o mais importante filósofo da geração pósguerra na França, escreveu em 1948 uma coletânea de ensaios
intitulada O que é a literatura?. Ele responde à sua própria per gunta de maneira inequívoca: o ponto de partida, o princípio norteador, bem como a meta final da literatura, é a liberdade. O autor deve guiar os pensamentos dos leitores para os opri
midos do mundo e descrever o mundo como necessitando de
uma liberdade sempre maior. Esse compromisso com a liber dade da parte do autor é uma condição da boa literatura. Um
bom romance sempre exige que o leitor se torne ciente da opressão e se comprometa a acabar com ela, tomando partido
da liberdade.29 E em contraste com o pensamento de Sartre que melhor
podemos compreender a novidade das idéias de Foucault sobre o papel do autor e a relação entre literatura e liberdade. Para Foucault e a geração que se seguiu à de Sartre, a ideia de que a
escrita literária havia se dissociado da dimensão da expressão
individual tornou-se capital. Em oposição a Sartre e às idéias
correntes sobre literatura, eles sustentaram que a escrita literá ria se referia apenas a si mesma, e que as intenções do escritor eram irrelevantes para o modo como ela devia ser avaliada e
lida. Obras literárias não eram determinadas pelos compromis sos, motivos e intenções do autor que confere significados. Que
o escritor estivesse comprometido com a liberdade ou não, por exemplo, era irrelevante para o valor da própria obra. É um
tanto irônico que, se a mensagem de Sartre se destinava a nos libertar, fosse de Sartre —junto com tudo que ele representou
para o jovem Foucault — que Foucault quisesse se libertar.
Além de estudar a história do pensamento e o funcionamento das práticas científicas, a investigação do discurso que Foucault
O anonimato da literatura
5i
levou a cabo nos anos 60 desenvolveu-se numa outra direção importante — a saber, a literatura —, e ele publicou vários en
saios influentes sobre o assunto. Por um breve período, esteve associado aos escritores agrupados em torno da revista literária Tel Quel, e de início seu pensamento se conformava em muitos aspectos às idéias do influente movimento que atribuía um papel
revolucionário à escrita de vanguarda. Esse movimento incluía pensadores famosos, como Julia Kristeva e Roland Barthes.
Os ensaios de Foucault sobre literatura complementam seus estudos de história da ciência, examinando a partir de um ou
tro ângulo a relação entre o sujeito individual e a linguagem.
Agora, em vez do cientista, o sujeito individual é o autor lite
rário; mas o objetivo de Foucault é mais uma vez questionar o
primado das intenções e experiências desse sujeito na análise do discurso. Deveriamos tentar compreender o significado, o
valor e o funcionamento dos próprios discursos, e não indagar
o que se passa na cabeça daqueles que os escreveram. As di
mensões filosóficas e literárias da obra de Foucault tornam-se completamente entrelaçadas.
Em seu ensaio seminal “O que é um autor?”, o ponto de partida de Foucault é a declaração de que o autor morreu — as intenções do escritor não podem mais funcionar como a
fonte suprema do significado e do valor da obra. Em vez disso, devemos analisar como seu nome funciona na organização de
discursos. Foucault sustentou que o nome do autor não era um nome próprio como qualquer outro. O nome desempenha certas funções únicas com relação à ficção narrativa: permite
que se agrupe certo número de textos, define-os, diferencia-os e compara-os com outros, por exemplo. Se viéssemos a desco
brir que Shakespeare não nasceu na casa em que pensávamos
52
Como ler Foucault
que nasceu, isso não afetaria a maneira como lemos as suas obras. Se descobrirmos que um manuscrito foi escrito por
Shakespeare e não por Bacon, por outro lado, essa descoberta afeta imediatamente a maneira como o lemos, avaliamos e
classificamos.
Apenas certos discursos em nossa cultura são dotados dessa função de autor”, enquanto outros são privados dela. Uma carta particular ou um contrato podem ter um signatário, mas não têm um autor. Um texto anônimo escrito no muro tem
um escritor — mas não um autor. A função do autor é carac terística apenas de certos discursos em nossa sociedade, e tais
discursos mudaram no curso da história. Houve tempo em que obras literárias — histórias e epopeias — eram aceitas e
apreciadas sem quaisquer indagações sobre a identidade dos
autores. Por outro lado, textos que hoje chamaríamos de cien tíficos, tratando de cosmologia e medicina, por exemplo, só
eram aceitos na Idade Média com o nome do eminente autor.
Desde então ocorreu uma inversão completa: hoje discursos científicos são aceitos não pelo nome do autor, mas pelo caráter anônimo e demonstrável de sua verdade. Discursos literários,
ao contrário, passaram a só ser aceitos quando dotados de um autor. Diferentemente de discursos científicos, seu significado,
status e valor dependem de quem os escreveu. Ser o autor de uma obra literária em nossa cultura, portanto, não significa
apenas tê-la produzido, significa também preencher, em relação a ela, uma função específica que é histórica e cultu
ralmente determinada. A morte do autor não significa, é óbvio, que não haja sujeitos
escrevendo os livros com suas canetas ou computadores. O que ocorre é que, longe de ser a origem suprema do significado e
O anonimato da literatura
53
do valor de obras literárias, o autor é um princípio contingente
de sua classificação e organização. A maneira aparentemente natural como lhe foi atribuído o poder supremo sobre o signi ficado de obras literárias não é em absoluto inevitável: é espe
cífica deste período histórico.
Na visão de Foucault, o papel do autor, nesta época histórica,
não é apenas uma contingência, mas também uma restrição. Lemos obras de literatura e filosofia para descobrir o que seus
autores quiseram dizer ao compô-las. Segundo Foucault, isso é problemático. Impede que a literatura seja lida de maneiras
radicalmente novas, não restringidas por essas considerações. O nome do autor não só organiza a obra de uma certa maneira,
com também limita, exclui e escolhe. Ele é o meio pelo qual a livre circulação, manipulação, composição, decomposição
e recomposição da ficção são impedidas. Embora nunca vá haver circulação completamente livre de textos, os modos de restrição são historicamente mutáveis, e é portanto possível
que um dia possamos viver numa cultura na qual, em vez
de limitados pela figura do autor, estaremos cercados por um murmúrio anônimo, uma interminável proliferação de signi
ficados. Hoje, na era da internet, a visão de Foucault parece impressionantemente profética.
A fascinação de Foucault pela capacidade que a linguagem
tem de produzir significados independentemente das inicia tivas do sujeito que escreve é visível também em seu único
estudo sobre literatura com extensão de livro, Raymond Roussel. É comum esse livro ser excluído do cânone das principais
obras de Foucault. Diferentemente destas, não é uma história, e em geral não é lido como uma explicação de sua posição filosófica. No entanto, foi claramente em razão das implica
54
Como ler Foucault
ções filosóficas da obra de Roussel, que fez experiências com
a natureza da linguagem, que Foucault se interessou por ele.30 Ao escrever alguns de seus livros, Roussel usou um método
que descreveu em sua obra póstuma, Commentj’ai écrit certains de mes livres (Como escrevi alguns de meus livros). O método
baseava-se em homônimos — palavras que são grafadas ou pronunciadas da mesma maneira, mas têm significados dife
rentes. Um exemplo seria a palavra "cara”: ela tanto pode signi
ficar “rosto” quanto “querida” quanto “de alto preço”. Roussel usava homônimos escolhendo uma palavra e associando-a a
outra com a preposição francesa à, e essas duas palavras, com
preendidas num sentido diferente do original, lhe forneciam uma nova criação ou personagem. A expressão "rnaison à espag-
nolettes”, por exemplo, significa uma casa com aldrabas, mas
Roussel a usou como base para um episódio sobre uma casa real descendente de um par de meninas gêmeas espanholas —
seu segundo sentido. Ele fez experimentos também com o segundo tipo de ho
mônimo — palavras que são pronunciadas da mesma maneira,
mas têm grafias diferentes, como "sinto” e “cinto”. Transfor
mava uma frase comum, uma canção ou um verso de poesia numa série de palavras com sons semelhantes. Essas novas
palavras seriam homônimas das palavras iniciais, mas, é ób
vio, totalmente heterogêneas entre si. O nome e endereço do sapateiro de Roussel, “Hellstern, 5 Place Vendôme”, seria trans
formado na frase "Hélice tourne zinc plat se rend dome”, porque ela é pronunciada da mesma maneira. No entanto, significa
algo completamente diferente: “Hélice torna-se zinco superfí cie plana transforma-se em cúpula.”
O anonimato da literatura
55
Os ácaros cantantes, o homem truncado que é uma banda de
um homem só, o galo que escreve seu nome cuspindo sangue, a água-viva de Fogar, os guarda-sóis gulosos ... estas monstruo sidades sem família ou espécie são associações necessárias; obe decem matematicamente às leis que governam os homônimos
e aos mais rigorosos princípios de ordem; são inevitáveis ... A
princípio nenhum instrumento ou estratagema pode prever seu resultado. Então, o maravilhoso mecanismo assume o comando
e as transforma, duplica sua improbabilidade pelo jogo de ho mônimos, traça um elo “natural” entre elas, e as entrega por fim
com meticuloso cuidado. O leitor pensa reconhecer os capricho
sos meandros da imaginação onde de fato há apenas linguagem aleatória, metodologicamente tratada.31
Foucault estava claramente fascinado pelos experimentos
de Roussel com a linguagem porque eles eram processos mecânicos que seguiam certas regras e princípios às cegas e,
ainda assim, eram capazes de criar novos e belos significados. A produção maquinai de beleza surreal ilustrava para ele a ideia de que a linguagem produz significados independen
temente das iniciativas do sujeito. Em oposição a Sartre — segundo o qual as belezas que aparecem nos livros nunca são acidentais, como o é a beleza na natureza, porque são
o resultado da intenção do sujeito que escreve —, foi exata
mente a criação acidental de beleza que encantou Foucault
nas obras de Raymond Roussel. Seus incríveis personagens e eventos eram combinações acidentais. Em vez de serem criações fantásticas de uma imaginação delirante e enge
nhosa, eram os resultados casuais do tratamento mecânico da linguagem.
56
Como ler Foucault
Embora o próprio Roussel estivesse afirmando a pura ima ginação do escritor acima da representação da realidade, Fou
cault rejeitou ambos os lados dessa oposição em razão da visão
filosófica da linguagem que lhe é subjacente. A seu ver, a obra
de Roussel não era nem uma representação da realidade, nem a expressão exterior dos meandros de sua imaginação. O que
fazia era demonstrar, no domínio da literatura, o que em filo sofia era chamado de virada linguística. Exemplificava a ideia
filosófica de que a linguagem não só descreve e "traduz” as ex
periências que o sujeito tem da realidade ou suas experiências interiores como fantasias e lembranças, mas também forma realidade. Isso significa que o objetivo da literatura é não ape
nas traduzir nossas experiências em palavras tão fielmente
quanto possível, mas sobretudo, na visão de Foucault, criar novas experiências. Os estudos de Foucault dos discursos científicos analisavam
o modo como a linguagem formava uma ordem ontológica das
coisas que estava implícita nas teorias e práticas científicas, mas
ele sustentou também que a linguagem da literatura era capaz de formar domínios ontológicos alternativos, não científicos e irracionais: diferentes experiências de ordem, com base em quais diferentes grades perceptivas e práticas se tornavam pos
síveis e novas maneiras de ver e experimentar emergiam. Em
As palavras e as coisas ele escreveu que a literatura formava "uma
espécie de contradiscurso” liberto dos princípios de ordem que regulavam tanto o discurso científico quanto o discurso coti
diano. Seu objetivo era precisamente transgredir os limites do discurso, torná-los visíveis e contestáveis, e descobrir uma “lou
cura” na linguagem como “aquela região informe, muda, não significativa onde a linguagem pode encontrar sua liberdade”.32
O anonimato da literatura
57
Em seus outros ensaios literários sobre escritores como
Georges Bataille e Maurice Blanchot, Foucault enfocou também a capacidade que a escrita experimental tem de transgredir os
limites de nossos conceitos e experiências comuns ao ponto do
paradoxo: a escrita apaga o sujeito unificador e deixa a lingua gem transbordar seus limites usuais. Embora só a linguagem
torne possível o conhecimento ordenado e racional do mundo, ela é também o nosso acesso ao irreal e irracional. A natureza constitutiva mas ao mesmo tempo ambígua e anônima da linguagem faz dela o horizonte em eterno recuo, o pano de
fundo infinitamente rico sobre o qual o sujeito pode pensar e experimentar o mundo de maneiras novas e criativas. Em seus estudos da literatura, Foucault suscitou questões
filosóficas sobre a natureza da linguagem e sobre o sujeito que escreve como a origem do significado. Buscando contestar o
privilégio fenomenológico concedido ao sujeito e à ideia de
linguagem que isso implica, ele mapeou também novas idéias
de liberdade não vinculadas à noção de um sujeito que con fere significado, sua natureza, suas iniciativas ou capacidades.
Diferentemente de Sartre, Foucault não concebia a liberdade como uma característica inerente ao sujeito: ela não era algo
que ele possuía e podia transferir para sua obra. A liberdade caracterizava antes a própria linguagem e as experiências que
ela tornava possíveis. A linguagem formava um horizonte ili mitado que possibilitava uma variedade de experiências.
Embora em geral se interprete que Foucault enfatizou as
estruturas necessárias de nosso pensamento e experiência e
negou nossa liberdade inerente, há, implicitamente salvaguar dada em seu pensamento, uma compreensão anti-humanista
da liberdade como uma proliferação ilimitada de significados
58
Como ler Foucault
e experiências. Ele tentou mostrar como nosso pensamento é sempre restringido por estruturas discursivas profundas, além
de nosso controle, mas também como podemos estender seus
limites através da escrita de vanguarda. Para ele, a literatura contestava determinações e revelava novos modos de experi
mentar o mundo.
5. Da arqueologia à genealogia
Como podemos definir a relação entre genealogia ... e história no sentido tradicional? Poderiamos, é claro, examinar as célebres
invectivas de Nietzsche contra a história, mas vamos deixá-las de lado por um momento e considerar aqueles casos em que ele concebe a genealogia como
wirkliche Historie.
... O significado
histórico torna-se uma dimensão da wirkliche Historie na medida em que inclui num processo de desenvolvimento tudo que é con
siderado imortal no homem. Acreditamos que os sentimentos são imutáveis, mas cada sentimento, particularmente os mais nobres
e mais desinteressados, tem uma história. Acreditamos na tediosa constância da vida instintiva e imaginamos que ela continua a
exercer sua força indiscriminadamente no presente como fez no passado. Mas um conhecimento de história desintegra facilmente essa unidade, descreve seu curso hesitante, localiza seus momen
tos de força e fraqueza, e define seu reinado oscilante. Apreende facilmente a lenta elaboração dos instintos e aqueles movimentos em que, ao se voltarem contra si mesmos, eles iniciam de maneira
incessante sua autodestruição. Acreditamos, em todo caso, que o
corpo obedece às leis exclusivas da fisiologia e escapa à influência
da história, mas isso também é falso. O corpo é moldado por
muitos regimes distintos; é derrotado pelos ritmos do trabalho, repouso e feriados; é envenenado por comida ou valores, através
de hábitos de alimentação ou leis morais; constrói resistências. A história “efetiva" difere da história tradicional por ser desprovida
de constantes. Nada no homem — nem mesmo seu corpo — é es
59
6o
Como ler Foucault
tável o bastante para servir de base para o autorreconhecimento
ou para a compreensão de outros homens. Os instrumentos tra
dicionais para se construir uma visão completa da história e para se reconstituir o passado como um desenvolvimento paciente e contínuo devem ser sistematicamente desmantelados. Precisa
mos, necessariamente, rejeitar aquelas tendências que encora
jam o jogo consolador dos reconhecimentos. O conhecimento, mesmo sob a bandeira da história, não depende da “redescoberta”, e exclui enfaticamente a “redescoberta de nós mesmos”. A his tória se torna eficaz à medida que introduz descontinuidade em
nosso próprio ser — que divide nossas emoções, dramatiza nos sos instintos, multiplica nosso corpo e o lança contra si mesmo.
A história “efetiva” priva o eu da tranquilizadora estabilidade da vida e da natureza, e não se permitirá ser transportada por uma obstinação sem voz rumo a um término milenar. Ela erradicará
suas fundações tradicionais e romperá incessantemente sua pre
tensa continuidade. Porque o saber não é feito para compreender; é feito para cortar.33 “Nietzsche,
a genealogia e a história”
O ensaio “Nietzsche, a genealogia e a história”, de Foucault, é muitas vezes interpretado como marco do início da fase ge
nealógica em seu pensamento. O texto introduz o conceito
de genealogia, um termo tomado de Friedrich Nietzsche, que posteriormente tornou-se o termo preferido de Foucault para
designar seu próprio projeto. O ensaio não é, contudo, uma ex
posição metodológica de sua genealogia, mas sim uma leitura meticulosa dos textos de Nietzsche, em particular seu ensaio
“Das vantagens e desvantagens da história para a vida”. O uso
Da arqueologia à genealogia
61
do conceito de genealogia já é complexo e incongruente no
pensamento de Nietzsche. Refere-se de maneira frouxa à historicização crítica de algo a que em geral não se atribuía uma
história, como o corpo e seus instintos e funções naturais, ou valores morais supostamente atemporais. O mesmo pode ser dito de Foucault. Ele nunca deu uma definição específica ou
sistemática de genealogia, e os traços essenciais de sua genea logia têm de ser reunidos a partir de diferentes livros, artigos
e entrevistas. Ela é mais bem-compreendida, portanto, como
uma prática crítica, com vários estratos, do que como um mé todo estrito.
O uso mais famoso do conceito de genealogia por Nietzsche
ocorre em seu livro A genealogia da moral, em que faz uma crítica radical da moralidade ao traçar sua história. A argu
mentação significava uma rejeição dos valores morais supos tamente eternos do cristianismo, mostrando sua emergência
histórica a partir dos atributos psicológicos dos escravos. A
moralidade cristã foi na origem a moralidade dos escravos, que transformaram os atributos que eram obrigados a adotar em
valores morais: humildade, modéstia, automortificação e man
sidão. A moralidade que Nietzsche defende é a moralidade dos
senhores. Seus valores — orgulho, glória e poder — parecem presunção pecaminosa aos olhos dos ressentidos escravos, mas
ele os considera afirmadores da vida e positivos. Embora os métodos de Foucault e Nietzsche tenham ele
mentos essenciais em comum — por exemplo o uso da história
como crítica —, a genealogia de Foucault não é uma adaptação fiel do pensamento de Nietzsche e não deveria ser interpretada como tal. Foucault não operou com explicações psicológicas ou
raciais como fez Nietzsche, por exemplo, mas questionou de
62
Como ler Foucault
maneira profunda a importância do sujeito individual e seus atributos psicológicos. Deixou claro também que estava mais
interessado em usar Nietzsche para objetivo próprio do que
em segui-lo fielmente.34
Ele escolheu, da genealogia de Nietzsche, alguns elementoschave que se tornaram decisivos para seu próprio pensamento.
Começa o ensaio “Nietzsche, a genealogia e a história” es crevendo que a genealogia "é cinzenta, meticulosa e pacien temente documental”. Essa caracterização já indica a oposição que pretendia estabelecer: de um lado estão os pretensiosos
sistemas filosóficos que advogam uma crença tranquilizadora
na "verdade eterna, na imortalidade da alma e na natureza
da consciência como sempre idêntica a si mesma”, e de ou tro está a genealogia, modesta e despretensiosa, mas eficaz e penetrante. Ela envolve o estudo da história e documenta
fatos detalhados, mas isso não significa que seja desprovida
de impacto filosófico ou crítico. De fato, exatamente o oposto é verdade: seu método historiográfico representa uma nova
maneira de fazer filosofia que contesta de maneira radical a especulação metafísica ociosa. O objetivo é historicizar para
questionar radicalmente o caráter atemporal e inevitável de
práticas e formas de pensamento. A passagem da arqueologia para a genealogia que ocor
reu no pensamento de Foucault nos anos 70 não significou o
abandono do uso da historiografia como método filosófico. Ele não abandonou tampouco nenhum dos importantes insights
metodológicos que caracterizavam a arqueologia. Isso teria
significado recuar para uma história tradicional, "ingênua". A mudança para a genealogia ocorrida no início dos anos 70 é uma mudança no foco do seu questionamento. O que lhe
Da arqueologia à genealogia
63
interessava na história da ciência não eram mais questões
concernentes às regras internas e condições da emergência de práticas discursivas, ou se o desenvolvimento da ciência era contínuo ou descontínuo. Ele se voltou, em vez disso, para o
estudo da conexão entre relações de poder e a formação do co
nhecimento científico. A principal asserção de sua genealogia
é que as regras que regulam as práticas científicas estão sem pre associadas às relações de poder da sociedade em questão.
Domínios de saber e relações de poder estão intrinsecamente relacionados, e esse entrelaçamento fundamental é o que Fou cault chama de o híbrido poder/saber.
Em seu livro Vigiar e punir, ele ilustra o entrelaçamento de formas de saber com práticas de poder discutindo a emergên
cia da criminologia como ciência no século XIX. Ele afirma
que ela se desenvolveu lado a lado com uma prática específica de poder: a prisão. O objetivo da prisão moderna não era sim plesmente punir, mas em última análise reeducar e reformar o criminoso. Para tanto, era importante reunir conhecimento
sobre ele: registrar seu comportamento, estado de espírito e melhora gradual, por exemplo. Foucault mostra como a prática
da redação de um relatório detalhado sobre cada prisioneiro foi introduzida e tornada compulsória nas prisões em meados do século XIX e afirma que esse conhecimento formou os dados empíricos da criminologia e tornou possível seu surgimento
como ciência.35 Os interesses e necessidades da justiça criminal estimularam o desenvolvimento de ciências como a criminologia, que podia
ser usada para facilitar o funcionamento das prisões. Foucault
afirma que mecanismos de poder são sempre utilizados de acordo com procedimentos, instrumentos e objetivos vali
64
Como ler Foucault
dados em sistemas de saber mais ou menos coerentes. Para o funcionamento eficaz da prisão, era importante haver um
corpo de saberes que regulasse e justificasse o exercício do poder punitivo. Ao mesmo tempo, o conhecimento científico possui necessariamente efeitos de poder pelo simples fato de
ser cientificamente validado, racional e aceito de maneira geral.
Mesmo quando não era usada de maneira direta para corrobo
rar os objetivos do poder punitivo, a criminologia moldava as maneiras de pensar e sentir das pessoas em relação ao crime,
aos criminosos e às prisões.
Essa maneira de compreender a relação entre conhecimento científico e seu contexto social e político é muitas vezes cha
mada de externa na filosofia da ciência. Significa que nossos
interesses e necessidades sociais e políticos influenciam o tipo de pesquisa científica que é financiado e estimulado e, inver samente, que verdades científicas moldam nossos interesses
e necessidades sociais e políticos, mas o conteúdo da própria ciência não fica comprometido por isso. Em outras palavras,
mesmo que os que estão no poder possam determinar que
tipos de questão são formuladas, as respostas que a ciência dá a essas perguntas são objetivamente verdadeiras. No caso da criminologia, o fato de que as práticas de punição requeriam
o conhecimento que ela fornecia não implicava, contudo, que
esse conhecimento fosse ele mesmo tendencioso de alguma maneira. A afirmação de Foucault sobre o entrelaçamento de poder e
saber é por vezes mais forte. A seu ver, a relação entre ambos
é interna: o contexto social e político do conhecimento cien tífico também molda o conteúdo do próprio conhecimento
científico. Em outras palavras, as respostas que a criminologia
Da arqueologia à genealogia
65
fornece para os que estão no poder são elas mesmas moldadas por estruturas de poder. A criminologia construiu classes de
delinquentes, por exemplo, cada qual dotada de características próprias e requerendo um tratamento específico. Essas classes
supostamente objetivas e científicas refletiam os preconcei
tos sociais e hierarquias da sociedade na época: os criminosos eram desviantes e perversos com predisposições e instintos pe rigosos. Foucault chama esse conhecimento de “uma zoologia de subespécies sociais” e cita as obras dos primeiros criminolo-
gistas como exemplos aterradores. Afirmava-se, por exemplo, que criminosos condenados comprovadamente dotados de
uma inteligência mediana, mas que haviam sido pervertidos por uma "moralidade iníqua”, exigiam tratamento diferente daqueles pertencentes a classes caracterizadas por incapacida-
des inerentes. Deveríam passar dia e noite isolados, e, “quando fosse inevitável pô-los em contato com outros, deveríam usar uma máscara leve feita de rede de metal”.36
Pode-se argumentar, é claro, que exemplos extremos como este ainda não provam que toda ciência é igualmente distor cida. Pode-se discutir em que medida Foucault está compro
metido com a ideia de que todas as verdades científicas são
construções sociais, e portanto necessariamente carregadas de
valores e interesses sociais e políticos. Ele sustenta com toda clareza que a ciência é uma prática social. Todas as sociedades têm práticas e instituições para a produção de saber, e o desen
volvimento da ciência é uma atividade necessariamente social, não individual. Os elementos do saber têm de se conformar
a um conjunto de regras e limitações características de um
dado tipo de discurso científico num dado período. Essa visão não implica, contudo, que todas as teorias sejam igualmente
66
Como ler Foucault
verdadeiras ou falsas: ela não exclui a possibilidade de se alcan çar verdades objetivas. Em vez de compreender a objetividade
como independência de todos os critérios socialmente forma
dos, podemos compreendê-la como um consenso consumado da comunidade científica. Enquanto a comunidade científica estiver aberta à crítica, as crenças — ou preconceitos — sociais
básicas que moldam as teorias científicas podem ser questio nadas e o consenso quanto ao que é objetivamente verdadeiro
pode ser transformado. As teorias dos primeiros criminologistas, por exemplo, foram substituídas por outras que corrigiam
suas tendenciosidades. Foucault restringiu de maneira explícita sua análise das conexões entre poder e saber às ciências humanas, aquelas
em que "o próprio sujeito é postulado como um objeto de co nhecimento possível”.37 Mesmo que seja inevitável que nossas
crenças básicas moldadas socialmente configurem todas as práticas científicas em alguma medida, é claro que no campo
das ciências humanas sua influência é particularmente forte
e perigosa. Nossos pressupostos tácitos sobre gênero, raça e classe, por exemplo, são menos perigosos quando tentamos
interpretar o comportamento de partículas subatômicas do
que quando tentamos interpretar o comportamento de seres humanos. Foucault nos desaconselha a adotar uma crença básica em particular, a saber, a de que existem universais antropológicos:
verdades sobre o ser humano que vigoram em todas as cultu ras e todos os tempos históricos. Assim que determinamos
que algo deve se aplicar a todos os seres humanos, criamos uma norma contra a qual o comportamento humano pode ser medido e julgado. Ao estabelecer uma concepção científica
Da arqueologia à genealogia
67
da sexualidade humana que a vê como um ímpeto natural e
universal para procriar, por exemplo, marginalizamos de fato toda uma série de comportamentos sexuais. Foucault insiste, portanto, que a genealogia deve ser desprovida de constantes e
que isso implica um ceticismo sistemático com relação a todos os universais antropológicos. No domínio de nosso saber, tudo que nos é apresentado como tendo validade universal, no que diz respeito à natureza humana ou às categorias que podem ser aplicadas ao sujeito, precisa ser
posto à prova e analisado: recusar os universais da “loucura”,
“delinquência” ou “sexualidade” não significa que essas noções
não se referem a coisa alguma, nem que são apenas quimeras inventadas no interesse de uma causa dúbia. A recusa acarreta, contudo, mais que a simples observação de que seu conteúdo
varia com o tempo e as circunstâncias; acarreta a reflexão sobre as condições que tornam possível, segundo as regras da veraci dade, reconhecer um sujeito como doente mental ou fazer com
que sujeitos reconheçam a parte mais essencial de si mesmos na
modalidade de seu desejo sexual. A primeira regra metodológica para esse tipo de trabalho é portanto a seguinte: evitar universais antropológicos tanto quanto possível, de modo a interrogá-los em
sua constituição histórica.38
Assim, as constantes ou universais antropológicos não são re jeitados a princípio, mas submetidos a um questionamento
histórico radical. Tudo, inclusive aquelas coisas que estamos convencidos de que não têm história, é esmiuçado. Entre elas,
uma de especial importância é o corpo. Acreditamos que
“o corpo obedece às leis exclusivas da fisiologia e escapa à
68
Como ler Foucault
influência da história”, mas Foucault afirma que isso não é
verdade. Nossos corpos, também eles, só existem em sociedade.
São moldados por normas de saúde, gênero e beleza, por exem plo. São concretamente moldados por dieta, exercício e inter venções médicas. Em suma, eles também têm uma história.
As genealogias são “histórias do corpo”: elas questionam tipi
camente todas as explicações puramente biológicas para áreas
complexas do comportamento humano como a sexualidade, a insanidade ou a criminalidade. Embora as concepções de poder e saber de Foucault tenham muito em comum com linhas influentes na filosofia da ciên
cia, segundo as quais a ciência é conhecimento social, suas genealogias têm características estilísticas que as distinguem
de todas as exposições filosóficas tradicionais. As genealogias podem ser interpretadas como exemplificando um gênero tex tual específico.39 Foucault partilha com Nietzsche um estilo de escrita extremamente retórico e hiperbólico que usa gestos
dramáticos e imagens chocantes. Vigiar e punir tem um início famoso: a descrição detalhada da tortura e execução públicas de Robert Damiens, condenado por regicídio em 1757. Foucault nos dá todos os detalhes horripilantes, tomados de relatos de testemunhas oculares, de como Damiens foi torturado com
tenazes em brasa, enxofre, chumbo derretido, óleo fervente e resina ardente, e de como seu corpo foi depois puxado e
esquartejado por quatro cavalos. As características dramáticas da genealogia são por vezes criticadas como desnecessárias e manipuladoras. Essa forma de
representação, contudo, é uma parte essencial da manifestação da crítica genealógica, porque a eficácia crítica da genealogia
decorre de sua capacidade de provocar uma experiência no
Da arqueologia á genealogia
69
leitor. Ela tem de nos obrigar, à força de um choque, a ver algo que até então nos recusávamos a ver. A descrição da tortura de Damiens exemplifica uma maneira de punir criminosos que nos parece horrenda e dramática, mas que foi considerada na tural numa época não tão remota. Ela forma o pano de fundo
para as afirmações de Foucault sobre os modos tipicamente modernos de punição que o livro focaliza.
Outra característica estilística que Foucault partilha com Nietzsche é a atitude de desconfiança e ironia. As genealogias caracterizam-se por uma atitude de ceticismo com relação ao que
é considerado mais venerável e nobre.40 No caso de Nietzsche, isso significou desmascarar as detestáveis origens da moralidade,
e no de Foucault tomou a forma do questionamento de todos os motivos puramente científicos e humanitários para reforma, bem como a noção de progresso. Em História da loucura, por
exemplo, Foucault afirmou que as reformas abrangendo as ins tituições psiquiátricas eram motivadas menos por preocupações humanitárias que pelo desejo de promover um sistema mais
eficiente de controle. A ironia é evidente em suas tentativas de inverter objetivos e propósitos abertamente proclamados para revelar seus opostos. Em sua história da prisão, Vigiar e punir, ele
afirmou que, a despeito de sua finalidade declarada, a função da prisão era, na verdade, produzir delinquentes e não prevenir o crime. Observa que "talvez devéssemos substituir a observação de que a prisão não consegue eliminar o crime pela hipótese de
que ela teve grande sucesso na produção de delinquência, um tipo específico, uma forma política ou economicamente menos
perigosa — e, por vezes, usável — de ilegalidade”.41 Apesar das influências nietzschianas abertamente proclama
das, os elementos essenciais do pensamento de Foucault não
70
Como ler Foucault
mudaram com a introdução da genealogia. O que distingue a genealogia, como a arqueologia, da historiografia tradicional
é que ela é wirkliche Historie, história efetiva: o que importa não é apenas compreender o passado, mas mudar a maneira
como vemos o presente. O objetivo é "libertar” não só grupos
marginais, como os doentes mentais e os prisioneiros, mas também o resto de nós, mostrando as contingências em jogo
na formação do que consideramos como verdades científicas.
6. A prisão
O Panóptico de Bentham é a figura arquitetônica dessa composi ção. Conhecemos seu princípio: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é perfurada por várias janelas que
abrem para a face interna do anel; a construção periférica é divi dida em celas, cada uma das quais atravessa toda a espessura da
construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspon
dendo à janela da torre; a outra, que dá para o exterior, permite
à luz atravessar a cela de uma ponta à outra. Basta então instalar
um vigia na torre central, e em cada cela encarcerar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Graças
ao efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se
exatamente sobre a luz, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. São como muitas gaiolas, muitos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e
constantemente visível. O dispositivo panóptico dispõe unida des espaciais que permitem ver constantemente e reconhecer de
imediato. Inverte-se, em suma, o princípio da masmorra; ou me
lhor, de suas três funções — encerrar, privar de luz e esconder —,
conserva-se apenas a primeira e suprimem-se as outras duas. A iluminação total e o olhar de um vigia captam melhor do que a
escuridão, que em última análise protegia. A visibilidade é uma armadilha.
Isso permite em primeiro lugar — como efeito negativo — evitar aquelas massas compactas, fervilhantes, tumultuadas que
encontrávamos nos locais de encarceramento, aqueles que Goya 7i
Como ler Foucault
72
pintava ou Howard descrevia. Cada um, em seu lugar, está segu
ramente confinado numa cela onde é visto de frente pelo vigia; mas as paredes laterais o impedem de entrar em contato com os companheiros. Ele é visto, mas não vê; objeto de uma informação, jamais sujeito numa comunicação. A disposição de sua câmara,
diante da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. E essa é a garantia da ordem ... A multidão, massa compacta, lugar de múltiplas trocas, individualidades que
se fundem, efeito coletivo, é abolida em benefício de uma coleção
de individualidades separadas. Do ponto de vista do guarda, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável;
do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e observada.
Daí o principal efeito do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o
funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo que seja descontínua
em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a
atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetônico seja
uma máquina para criar e sustentar uma relação de poder inde pendente daquele que o exerce; em suma, que os detentos sejam apanhados numa situação de poder de que eles mesmos são os
portadores. Vigiar e
punir
O projeto deJeremy Bentham para uma prisão ideal, o Panóp tico, datado de 1791, foi o paradigma de Foucault para um novo
tipo de poder que ele chamou de poder disciplinar. Bentham foi
A prisão
73
um jurista e filósofo político do Iluminismo, e seu projeto de
prisão era visto de modo geral com uma curiosidade histórica até que Foucault fizesse dele o foco de seu estudo genealógico.
Ele o viu como uma admirável ilustração, “um diagrama”, para uma nova maneira de conceber o poder. Em vez de basear-se
na figura de um soberano, como o monarca, esse novo tipo
de poder era anônimo e mecânico. Em vez de funcionar por meio de restrições externas e violência espetacular, operava
através da internalização de um olhar discreto, vigilante. Em vez de esconder e reunir seus sujeitos, tentava torná-los visíveis
e separá-los uns dos outros. A provocativa afirmação de Foucault nesta primeira obra importante de seu período genealógico é que, embora o Pa-
nóptico como tal não tenha sido construído, seus elementos
essenciais passaram a caracterizar uma nova forma de poder: o poder disciplinar. Esses elementos estão presentes no projeto
e na construção de numerosas instituições e espaços da socie dade moderna, como escolas, hospitais, fábricas e prisões. Vi
vemos numa sociedade disciplinar em que o poder é exercido mediante uma vigilância difusa, mas anônima. Hoje o poder
disciplinar assume a forma tecnologicamente mais sofisticada das câmeras automáticas, códigos de barra eletrônicos e telefo
nemas monitorados, mas os princípios operativos permanecem os mesmos. A discussão detalhada que Foucault faz do projeto arqui
tetônico de uma prisão ideal é também um exemplo de sua
preferência por modelos espaciais: para ele, pensar filosofica mente é pensar espacialmente. Numa entrevista, ele comentou suas “obsessões espaciais” observando que era através delas que encontrava uma maneira de pensar sobre as possíveis
74
Como ler Foucault
relações entre poder e saber.42 O Panóptico mostra em ter mos muito concretos como uma certa distribuição espacial
do poder torna possível um saber mais detalhado e preciso
de seus sujeitos. Quando a conduta de um indivíduo pode ser
constantemente observada, ela pode também ser avaliada em detalhe. É possível medir níveis, comparar comportamentos e
classificar desempenhos. Esse saber reforça os efeitos do poder, oferecendo novas ferramentas para imaginar maneiras cada vez mais detalhadas e sutis de moldar o comportamento, os
desejos, os objetivos e as experiências dos internos. Ele torna possível punir e recompensar até desvios insignificantes em relação à norma, por exemplo. Transforma cada indivíduo
num “caso” que pode ser descrito, medido e comparado com outros, mas também corrigido, excluído e normalizado. Como
Foucault escreve no fragmento citado, a visibilidade é uma armadilha, porque assegura o permanente controle do poder
sobre seus sujeitos. Ser constantemente visto mantém a relação de poder. O Panóptico revela a anatomia do poder moderno, demonstrando a interdependência essencial entre formas de
conhecimento, técnicas de poder e seus sujeitos. Em suas análises arqueológicas Foucault havia começado a
repensar o sujeito, questionando seu status fundador na produ ção de conhecimento científico. A adoção da genealogia como seu método, nos anos 70, permitiu-lhe apresentar uma descri
ção mais completa da constituição do sujeito — a subjetivação.
Sua principal asserção foi que ser um sujeito, um indivíduo socialmente reconhecível com intenções, desejos e ações in
teligíveis, só era possível dentro das redes de poder/saber de uma sociedade. Na sua visão, todas as identidades eram criadas
por meio de práticas de poder e saber. As relações de poder
A prisão
75
não existem entre sujeitos com identidades predeterminadas, mas são constitutivas dos próprios sujeitos, moldam condutas
e instilam formas de autoconsciência. Os sujeitos em relação aos quais a rede de poder é definida não podem ser concebidos
como existindo à margem dela. Em Vigiar e punir Foucault analisa as maneiras como sujei
tos criminosos — indivíduos que são entendidos e entendem a si mesmos como delinquentes — são constituídos em redes de poder/saber. Em primeiro lugar, as práticas na prisão ma nipulam e moldam concretamente seus corpos através de re gimes de exercício, regras minuciosamente detalhadas, vigi
lância constante, dieta e horários estritos. Hábitos e padrões
de comportamento são destruídos e reconstruídos de novas maneiras. Em segundo lugar, os corpos dos prisioneiros são
classificados e examinados cientificamente. Embora as tipolo gias dos primórdios da criminologia possam ter sido descar
tadas, os princípios de observação e avaliação prevaleceram. Os prisioneiros são casos a ser estudados cientificamente, bem como corrigidos institucionalmente.
Os processos de manipulação física concreta e objetificação científica reforçam-se um ao outro. A sujeição tornou possível a objetificação teórica, levando ao nascimento de ciências como
a criminologia e a psiquiatria criminal. O desenvolvimento dessas ciências, por outro lado, ajudou no desenvolvimento e
na racionalização de tecnologias disciplinares. Além disso, as duas dimensões foram efetivamente associadas por meio da normalização. Os discursos científicos produzem verdades que funcionam como a norma: eles nos dizem, por exemplo, qual
é o peso, a pressão sanguínea e o número de parceiros sexuais normais para certo grupo de idade e sexo. A subjetivação
Como ler Foucault
76
opera por meio da internalização dessas normas. Modificamos nosso comportamento numa incessante tentativa de nos apro ximarmos do normal, e nesse processo nos tornamos certo
tipo de sujeitos. As normas também promovem a objetivação ao reduzir a individualidade a uma medida comum: todos nós
podemos ser reduzidos a um ponto numa curva.
No que diz respeito a prisioneiros, o objetivo do poder dis ciplinar não é reprimir seus interesses ou desejos, mas cons
truí-los como normais. Ele não submete os corpos à violência
externa da mesma maneira que o poder pré-moderno mutilou o corpo de Damiens. O poder coercitivo é internalizado e o
prisioneiro torna-se seu próprio vigia. Embora no passado o corpo tenha sido também intimamente associado ao poder e à ordem social, Foucault afirma que o poder disciplinar nesse
sentido é, em essência, um fenômeno novo, moderno. Ao
contrário de outras formas de coerção física, ele não mutila o corpo do criminoso, mas molda-o de maneiras mais profundas e detalhadas. O criminoso literalmente incorpora os objetivos do poder, que se tornam a norma para seus próprios objeti vos e comportamento. Numa formulação poética, Foucault
escreveu que a “alma” do prisioneiro — aquela que é supos tamente sua parte mais autêntica — é de fato um efeito da
sujeição de seu corpo. O homem de que nos falam, e nos convidam a libertar, já é em si o
efeito de uma sujeição muito mais profunda que ele mesmo. Uma “alma” o habita e o traz à existência, que é ela mesma uma peça no domínio que o poder exerce sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo.43
A prisão
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Vigiar e punir não é apenas uma análise profunda e uma recon
sideração filosófica da relação entre poder, saber e o sujeito; é também uma crítica genealógica de nossas práticas de punição. Essa foi mais uma obra a emergir da experiência pessoal de
Foucault. Em 1971, ele formou, com alguns amigos e colegas, o GIP, Groupe d’Information sur les Prisons, cujo objetivo era
colher dados sobre as condições intoleráveis nas prisões fran cesas, particularmente junto a pessoas com experiência direta,
e divulgá-los. Esse objetivo refletia a ideia de Foucault sobre o
papel dos intelectuais nas lutas políticas: não era uma questão de sugerir reformas dizendo às pessoas o que fazer, mas de
usar seu status visível e respeitável para divulgar aspectos ina
ceitáveis da realidade. A violência da polícia, a pena de morte e as condições desumanas nas prisões francesas ganharam um lugar central na ordem do dia pública e política na França nos
anos 70, provocando tumultos e greves de fome dentro e fora
de prisões. Nesse contexto, Vigiar e punir foi lido de início em termos de suas implicações políticas contemporâneas. Sua pu
blicação foi cercada de considerável publicidade e descrita como
tendo gerado “ondas de choque” através dos setores prisionais
de educação e serviço social.44 Vigiar e punir exemplifica poderosamente as características essenciais de uma crítica genealógica. Tem a forma de um es
tudo histórico detalhado, documentando o desenvolvimento das instituições carcerárias modernas desde as masmorras e
os espetáculos públicos de tortura que as precederam. Ques tiona a inevitabilidade desse desenvolvimento, mostrando sua
contingência histórica, bem como as contradições internas no funcionamento das prisões modernas. Parece evitar o discurso
moralista, propondo em vez disso uma análise da racionali
78
Como ler Foucault
dade implícita e por vezes explícita das práticas punitivas mo dernas, numa linguagem puramente descritiva. Ainda assim, seu estilo e seus exemplos carregam claras implicações polí ticas e valores morais. Foucault referiu-se de passagem, por
exemplo, a uma execução que teve lugar na França em 1972. Observou que, ao contrário da de Damiens, esta ocorreu em
segredo: a guilhotina foi instalada dentro dos muros da prisão
e qualquer testemunha que descrevesse a cena seria proces sada. A pena de morte na França dos anos 70 constituía “um estranho segredo entre a justiça e aqueles que ela condena”.45 Foucault observou que não pretendia que Vigiar e punir fosse
uma obra de crítica — se crítica fosse entendida como mera denúncia de aspectos negativos do sistema penal vigente. Quis revelar o sistema de pensamento, a forma de racionalidade
que, desde o fim do século XVIII, sustentou a noção de que a pri são é de fato o melhor meio, ou um dos meios mais efetivos e racio
nais, de se punir delitos numa sociedade. Parece-me que quando
se tratou de reformar o sistema penal, os reformadores aceitaram com muita frequência, implícita e por vezes até explicitamente, o sistema de racionalidade que fora definido e estabelecido muito
antes, e que estavam apenas tentando descobrir quais deveríam
ser as instituições e práticas que lhes permitiríam realizar aquele
projeto de sistema e alcançar seus objetivos. Ao trazer à luz o sistema de racionalidade subjacente às práticas punitivas, eu quis
apontar quais eram os postulados de pensamento que precisavam ser reexaminados caso se pretendesse transformar o sistema penal
... Quais elementos desse sistema de racionalidade ainda podem ser aceitos? Qual é, por outro lado, a parte que merece ser posta de lado, abandonada, transformada, e assim por diante?46
A prisão
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A lição importante da crítica genealógica de Foucault é sinte tizada em sua afirmação de que tornar alguma coisa aberta
à crítica significa primeiro torná-la inteligível. Só se com preendermos a racionalidade subjacente de nossas práticas
poderemos almejar fazer mudanças substanciais e duradouras nelas, e não apenas substituí-las por outras práticas baseadas
nos mesmos princípios. A análise do poder disciplinar pode
aprofundar nossa compreensão de como as práticas coercitivas das instituições penais modernas operam com meios nota
velmente diferentes e através de uma racionalidade diferente daquelas que visavam unicamente à punição pela dor. Isso revela de maneira efetiva o duplo papel do sistema atual: ele
visa tanto a punir quanto a corrigir, e por isso mistura práticas jurídicas e antropológicas.
Segundo Foucault, a intervenção da psiquiatria no campo do direito ocorrida no início do século XIX, por exemplo, foi parte do deslocamento gradual na prática penal de um foco no crime para um foco no criminoso. A nova ideia do
"indivíduo perigoso” referia-se ao perigo potencialmente ine rente a ele, o que implicou que a finalidade do sistema penal
não era apenas punir, mas sobretudo corrigir. A mudança
em seus objetivos, em sua racionalidade ou lógica imanente, resultou no surgimento de novos tipos de instituições e prá
ticas carcerárias. A nova racionalidade não podia funcionar
de maneira eficaz no sistema existente sem a emergência de uma nova forma de conhecimento técnico — a psiquiatria criminal — que permitiu a caracterização do indivíduo cri
minoso em si, por sob os atos. Resultou também, no entanto, na emergência de novas e insidiosas formas de dominação e violência.
8o
Como ler Foucault
Foucault não analisou práticas de punição, portanto, com a finalidade de condená-las. Nem propôs nenhuma alternativa
concreta para elas. Ao questionar a racionalidade dessas prá
ticas, ele estava tentando provocar uma reação nos leitores. O impacto crítico, duradouro, de Vigiar e punir reside em sua
capacidade de revelar, numa extensão sem precedentes, os processos de subjetivação que operam nas instituições penais
modernas. Ao privar seus internos de liberdade, a prisão mo derna não pune apenas: ela produz sujeitos delinquentes, tipos
de pessoa com natureza perigosa, criminosa.
7- Sexualidade reprimida
Continuando esta linha de discussão, podemos avançar certo número de proposições:
• O poder não é algo que seja adquirido, tomado ou partilhado, algo que conservamos ou deixamos escapar; o poder é exer cido a partir de inúmeros pontos, na interação de relações não igualitárias e móveis.
• As relações de poder não estão numa posição de exterioridade
com respeito às de outros tipos — processos econômicos, rela ções de conhecimento, relações sexuais —, mas são imanentes a
estes; elas são os efeitos imediatos das divisões, desigualdades e desequilíbrios que ocorrem nestes outros tipos e, inversamente, são as condições internas dessas diferenciações; as relações de
poder não estão em posições superestruturais, tendo mera mente um papel de proibição ou acompanhamento; elas têm um
papel diretamente produtivo, onde quer que entrem em ação.
• O poder vem de baixo, isto é, não há uma oposição binária e abrangente entre governantes e governados na raiz das re
lações de poder, servindo como uma matriz geral — não há uma dualidade desse tipo estendendo-se de cima para baixo
e influenciando grupos cada vez mais limitados até o nível mais profundo do corpo social. Devemos supor, isto sim, que
as múltiplas relações de força que tomam forma e entram em ação no mecanismo de produção, em famílias, grupos limita
dos e instituições são a base para amplos efeitos de divagem
que atravessam o corpo social no seu todo... 81
82
Como ler Foucault
• As relações de poder são ao mesmo tempo intencionais e não subjetivas. Se de fato forem inteligíveis, não é por serem o
efeito de uma outra instância que as “explica”, mas por esta
rem completamente impregnadas de cálculo: não há poder que seja exercido sem uma série de intuitos e objetivos... • Onde há poder, há resistência, e no entanto, ou melhor, con sequentemente, essa resistência nunca está numa posição de
exterioridade em relação a ele. Deveriamos dizer que esta mos sempre “dentro" do poder, — que não há como “escapar”
dele, não há lado de fora absoluto no que lhe diz respeito — porque estamos de qualquer maneira sujeitos à lei? Ou que,
sendo a história a artimanha da razão, o poder é a artimanha
da história, sempre saindo vitorioso? Isso seria compreender mal o caráter estritamente relacionai das relações de poder. A
existência delas depende de uma multiplicidade de pontos de resistência: estes desempenham o papel de adversário, alvo,
apoio, ou instrumento em relações de poder. Tais pontos de
resistência estão presentes em toda parte na rede de poder. Por isso não há nenhum local singular de grande Recusa, nenhuma
alma da revolta, fonte de todas as rebeliões, ou pura lei do re volucionário. O que há é uma pluralidade de resistências, cada uma delas um caso especial: resistências que são possíveis, ne
cessárias, improváveis; outras que são espontâneas, selvagens, solitárias, combinadas, impetuosas ou violentas; outras ainda que se apressam em transigir, são interesseiras ou sacrificató-
rias; por definição, elas só podem existir no campo estratégico
das relações de poder.. ,47 História da sexualidade
Sexualidade reprimida
83
Uma das mais influentes teorias contemporâneas do poder é apresentada na forma de curtas proposições ao longo de três
páginas do primeiro volume da História ãa sexualidade. Em bora Foucault tenha elucidado e desenvolvido sua compreen são do poder em muitos ensaios, palestras e entrevistas pelo
resto de sua vida, foi nessas páginas que propôs suas idéias
decisivas. Ainda que possa parecer a princípio enganosamente
fácil de ler, História da sexualidade é uma obra densa e difícil.
Como as proposições sobre o poder demonstram, grandes
avanços teóricos são conduzidos em pequenos espaços, com lances rápidos.
A reconsideração a que Foucault submeteu o poder voltavase especificamente contra as concepções liberais e marxistas
de poder, os dois modelos conceituais dominantes nos anos 70. O problema era o "economicismo” dessas teorias: ambas as tradições viam o poder através de modelos econômicos. No
modelo “liberal” ou “jurídico”, ele era concebido como uma mercadoria, considerado como algo que podia ser possuído
e negociado, tal como se negocia uma mercadoria. Contra essa concepção, Foucault argumentou que o poder só existe
quando exercido. Não é como uma mercadoria, é antes uma
ação numa relação. Criticou também o foco excessivo da tra
dição liberal em contratos, direitos, a lei e a legitimação. Não é possível explicar as operações e os mecanismos sutis do poder
moderno dentro desse arcabouço conceituai. O poder discipli nar não funciona segundo a distinção dicotômica entre legal
e ilegal; usa distinções muito mais sutis, operando no eixo de saudável/doente e normal/anormal, por exemplo. O modelo marxista reduz as relações de poder a relações
econômicas: uma relação antagonística entre duas classes
Como ler Foucault
84
preexistentes definidas em termos econômicos. Foucault ob
jetou que, mais que uma estrutura dual de governantes e go
vernados, as relações de poder formam uma rede densa que atravessa o conjunto da sociedade. Aceitar a fórmula de uma
burguesia generalizada e seus interesses, por exemplo, signifi cava reduzir a multiplicidade e a variedade das relações de po der a uma oposição simplista entre duas classes. Não se deveria
começar procurando pelo centro do poder, ou pelos indivíduos, instituições ou classes que governam, mas antes construirse uma “microfísica do poder” com foco nas extremidades: famílias, locais de trabalho, práticas cotidianas e instituições marginais. Há que se analisar as relações de poder de baixo
para cima e não de cima para baixo, e se estudar a miríade de maneiras pelas quais os sujeitos são constituídos em redes diferentes, mas entrecruzadas.
Embora disperso entre várias redes entrelaçadas por toda a sociedade, o poder tem racionalidade, uma série de intenções e objetivos, e os meios de alcançá-los. Isso não significa que um sujeito individual os tenha formulado de maneira cons ciente. Como mostra o exemplo do Panóptico, o poder muitas vezes funciona segundo uma racionalidade clara, sejam quais
forem as intenções e motivos do indivíduo que vigia a prisão
a partir da torre. Qualquer indivíduo, escolhido de maneira quase aleatória, pode operar o sistema: a organização espacial
das celas assegura a visibilidade permanente e instila a cons
ciência dela nos internos. De maneira semelhante, nenhuma pessoa isolada dirige a complexa rede de relações de poder que
funciona numa sociedade. Tanto os que aparentemente detêm o poder, como os guardas da prisão, quanto os que estão sob vigilância estão presos na racionalidade da rede de poder. O
Sexualidade reprimida
85
comportamento de todos é regulado, e em grande medida determinado, por regras e práticas que eles não formularam e
das quais podem não estar sequer cientes.
O poder, contudo, não forma um sistema determinístico de restrições despóticas. Por ser compreendido como uma rede
instável de práticas, onde há poder, há sempre resistência. A resistência é parte dessas práticas e de suas dinâmicas, nunca estando portanto numa posição de exterioridade. Assim como
não há um centro do poder, não há um centro de resistência em algum lugar fora dele. A resistência é de fato inerente às
relações de poder, é "o outro termo nas relações de poder”.48 Embora as relações de poder permeiem todo o corpo da socie
dade, elas podem ser mais densas em algumas regiões e menos
densas em outras. As relações de poder não são tampouco todas qualitativa mente iguais. Numa de suas últimas entrevistas, Foucault fez uma distinção entre o que chamou de relações estratégicas en
tre indivíduos e estados de dominação.49 Relações estratégicas referem-se às maneiras como indivíduos tentam determinar a conduta de outros, e não são, de modo algum, necessariamente
perniciosas. Foucault dá como exemplo a relação entre um professor e um aluno. Trata-se claramente de uma relação de
poder em que o professor tenta determinar a conduta do aluno.
Contanto que essa relação seja baseada no consentimento mú tuo e possa ser invertida — os alunos são capazes de avaliar o desempenho do professor, por exemplo —, parece não haver
motivo para resistência. Estados de dominação, por outro lado, referem-se a situa
ções nas quais indivíduos são incapazes de subverter ou alte
rar relações de poder. Mesmo que estas sejam essencialmente
86
Como ler Foucault
fluidas e reversíveis, o que as caracteriza em geral é terem ganhado estabilidade através de instituições. Isso significa que
sua mobilidade é limitada, e que há redutos difíceis de suprimir
porque foram institucionalizados. Em outras palavras, as rela ções estratégicas entre as pessoas tornaram-se rígidas. Nessas
situações, deve-se tentar desenvolver formas de resistência que transformarão relações de dominação em relações estratégicas. Assim, embora seja impossível sair do campo social estru
turado pelas relações de poder, é possível efetuar mudanças
nelas: libertar sujeitos de estados de dominação e expô-los a uma situação em que as relações de poder sejam intercambiá-
veis, variáveis e permitam estratégias para alterá-las. Foucault chega a estabelecer isso como uma tarefa explícita: Não acredito que possa haver uma sociedade sem relações de po der, se as compreendermos como os meios pelos quais indivíduos
tentam guiar, determinar o comportamento de outros. O pro blema não é tentar dissolvê-las na Utopia de uma comunicação perfeitamente transparente, mas dar ao próprio eu as regras da
lei, as técnicas de controle, e também a ética, o
ethos,
a prática
de si, o que permitiría esses jogos de poder serem jogados com o mínimo de dominação.50
Embora não possa haver uma libertação total do poder, pode
haver e haverá emancipações “particulares” de diferentes esta
dos de dominação: de relações de poder opressivas e dos efeitos de certas técnicas normalizadoras. As proposições de Foucault sobre o poder pretendiam ser
apenas uma ferramenta conceituai para a reconsideração do tópico principal do livro — a saber, a sexualidade. O principal
Sexualidade reprimida
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objetivo do primeiro volume da História da sexualidade era
reconfigurar a relação entre sexualidade e poder: em vez de o poder reprimir as manifestações da sexualidade natural, ele
as produzia. O livro deveria ser uma breve introdução a um vasto corpo de obras composto por seis volumes. Os três volu
mes restantes nunca se materializaram, mas a introdução, de
menos de 200 páginas, transformou de maneira radical nossa concepção de sexualidade.
O livro começa com um repúdio à “hipótese repressiva”, a ideia de que na era vitoriana a sexualidade era reprimida e o dis
curso sobre ela, silenciado. Foucault afirma que o que caracteri zou a atitude básica da sociedade moderna em relação ao sexo não foi a repressão, mas o fato de a sexualidade ter se tornado
objeto de um novo tipo de discurso — médico, jurídico e psico lógico —, e de o discurso sobre ela ter de fato se multiplicado.
A sexualidade estava inextricavelmente ligada à verdade: esses
novos discursos foram capazes de nos dizer a verdade científica
sobre nós mesmos através de nossa sexualidade. A sexualidade tornou-se assim um construto essencial na
determinação não só do valor moral de uma pessoa, mas tam bém de sua saúde, de seu desejo e de sua identidade. Os sujeitos
são ademais obrigados a dizer a verdade sobre si mesmos, con fessando os detalhes de sua sexualidade. Segundo Foucault, a
sexualidade moderna caracterizou-se pela secularização de téc nicas religiosas de confissão: não confessamos mais os detalhes
de nosso desejo sexual para um padre; em vez disso, vamos
a um médico, um terapeuta, um psicólogo ou um psiquiatra. A sociedade que emergiu no século XIX — burguesa, capitalista ou industrial, chame-a como quiser — não opôs ao sexo uma
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Como ler Foucault
recusa fundamental de reconhecimento. Ao contrário, pôs em
operação toda uma maquinaria para produzir discursos verdadei ros referentes a ele. Não só falou de sexo e obrigou todos a fazê-lo;
esforçou-se também para formular a verdade uniforme do sexo.’1
Embora o livro seja um estudo histórico da emergência da
sexualidade moderna no século XIX, o alvo de Foucault mais uma vez eram as concepções contemporâneas. Segundo as con cepções sobre a sexualidade prevalentes nos anos 1960 e 1970,
haveria uma sexualidade natural e saudável que todos os seres humanos partilhavam em virtude do mero fato de serem hu manos, e essa sexualidade seria reprimida então por proibições
e convenções sociais como a moralidade burguesa e as estrutu
ras socioeconômicas capitalistas. A sexualidade reprimida seria a causa de várias neuroses e seria importante ter uma sexua
lidade ativa e livre. O discurso popular sobre sexualidade fazia,
portanto, uma fervorosa defesa da libertação sexual: tínhamos de libertar nossa verdadeira sexualidade dos mecanismos de
poder repressivos.
Foucault contestou essa visão mostrando como nossas con cepções e experiências de sexualidade são de fato sempre o resultado de convenções culturais e mecanismos de poder e
não poderíam existir independentemente deles. A sexualidade,
como a doença mental, só existe numa sociedade. A missão de
libertar nossa sexualidade reprimida era fundamentalmente
equivocada porque não havia nenhuma sexualidade autêntica ou natural a libertar. Libertar-se de um conjunto de normas
significava apenas adotar em seu lugar outras normas, que poderíam se revelar igualmente imperativas e normalizadoras. Em tom de zombaria, Foucault escreveu que a ironia de nossa
Sexualidade reprimida
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incessante preocupação com a sexualidade era acreditarmos ter ela alguma coisa a ver com nossa libertação.
Para contestar a relação aceita entre sexualidade e poder re pressivo Foucault teve de reconceber a natureza do poder. Sua principal asserção foi que o poder não era essencialmente repres sivo, mas sim produtivo. Ele não opera reprimindo e proibindo
as expressões verdadeiras e autênticas de uma sexualidade na tural. O que ele faz é produzir, através de práticas normativas
culturais e discursos científicos, as maneiras como experimen tamos e concebemos nossa sexualidade. Relações de poder são
as condições internas” de nossas identidades sexuais. No final da História da sexualidade, Foucault introduz o in
fluente conceito de biopoder, que aclara ainda mais a ideia de poder produtivo em vez de poder repressivo. O biopoder não é repressivo ou destrutivo, mas revela-se essencialmente
protetor da vida. Foca a saúde de corpos individuais e também
da população: desempenha o controle regulatório da reprodu ção, nascimento e mortalidade, bem como do nível de saúde
e expectativa de vida, por exemplo. Por ser explicitamente relacionado com saúde e bem-estar, o biopoder é uma forma
muito eficaz de controle social que assume a direção da vida dos indivíduos desde antes de seu nascimento até sua morte.
Um exemplo de biopoder não seria uma instituição repres
siva, como uma prisão ou um campo de trabalhos forçados, mas uma unidade de assistência, como uma clínica obstétrica. Embora tenham por objetivo declarado o bem-estar de mães
e bebês, essas clínicas também têm objetivos e efeitos mais problemáticos, como a medicalização da gravidez e a intensifi cação do controle social da vida familiar. Especialistas médicos
intervém em experiências e áreas da vida antes consideradas
9°
Como ler Foucault
privadas. O poder de tomar decisões sobre como dar à luz, por exemplo, foi transferido da mulher grávida para os especialis tas médicos.
A análise que Foucault faz do biopoder como uma forma particularmente moderna de poder prenunciou as críticas à
intervenção médica na sociedade atual: áreas cada vez maiores
da vida são medicalizadas e submetidas a controle biocientífico.
Ele não faz julgamentos explícitos sobre a medicalização, mas expõe os suportes teóricos e os processos históricos que tor
naram seu crescimento possível. A noção de biopoder realça
de que maneira o conhecimento biocientífico funciona como um importante instrumento de poder, e sustenta o controle sociopolítico das pessoas na sociedade moderna.
8. Um sexo verdadeiro
Precisamos de fato de um sexo verdadeiro? Com uma persistência
que beira a teimosia, as sociedades ocidentais modernas têm res pondido afirmativamente. Elas puseram obstinadamente em jogo
essa questão de um “sexo verdadeiro” numa ordem de coisas em que poderiamos imaginar que tudo que contava era a realidade do corpo e a intensidade de seus prazeres. Por um longo tempo, contudo, essa exigência não foi feita,
como o prova a história do status conferido aos hermafroditas pela medicina e o direito. De fato, passou-se um longuíssimo tempo antes que o postulado de que um hermafrodita deve ter
um sexo — um único, um verdadeiro sexo — fosse formulado. Por séculos, concordou-se simplesmente que os hermafroditas tinham dois...
Teorias biológicas da sexualidade, concepções jurídicas do in divíduo, formas de controle administrativo nas nações modernas
levaram pouco a pouco à rejeição da ideia de uma mistura dos dois sexos num único corpo e, por consequência, à limitação da livre escolha de indivíduos indeterminados. A partir de então,
todos deviam ter um, e apenas um, sexo. Todos deveríam ter sua
identidade sexual básica, profunda, determinada e determinante;
quanto aos elementos do outro sexo que poderíam aparecer, eles só poderíam ser acidentais, superficiais, ou até muito simples mente ilusórios. Do ponto de vista médico, isso significava que,
quando confrontado com um hermafrodita, o médico não mais se preocupava em reconhecer a presença dos dois sexos, justapostos 9i
92
Como ler Foucault
ou indeterminados, ou em saber qual dos dois prevalecia sobre
o outro, mas sim em decifrar o verdadeiro sexo oculto sob as aparências ambíguas. Tinha, por assim dizer, de despir o corpo de suas burlas anatômicas e descobrir o verdadeiro sexo sob órgãos
que poderíam ter simulado as formas do sexo oposto. Para quem soubesse como observar e conduzir um exame, essas misturas
de sexo não passavam de disfarces da natureza: os hermafroditas
eram sempre “pseudo-hermafroditas”. Essa, pelo menos, foi a tese que tendeu a ganhar crédito no século XVIII, através de certo número de casos importantes e apaixonadamente discutidos...
Tenho plena ciência de que nos séculos XIX e XX a medicina
corrigiu muitas coisas nesta supersimplificação redutiva. Hoje, ninguém diria que todos os hermafroditas são “pseudo”, mesmo
que se limite de maneira considerável uma área na qual muitos
tipos de anomalias anatômicas eram admitidas outrora sem dis criminação. Admite-se também, embora com muita dificuldade, que é possível para um indivíduo adotar um sexo que não é bio logicamente o seu. Apesar disso, a ideia de que se deve afinal ter um sexo verda deiro está longe de ter sido completamente rejeitada. Seja qual
for a opinião dos biólogos nesse ponto, a ideia de que existem
relações complexas, obscuras e essenciais entre sexo e verdade pode ser encontrada — pelo menos num estado difuso — não apenas na psiquiatria, na psicanálise e na psicologia, mas também na opinião corrente.52 O DIÁRIO DE UMA HERMAFRODITA — HERCULINE BaRBIN
Herculine Barbin
foi uma
hermafrodita que viveu no final
do século XIX, época em que teorias científicas sobre sexo e
Um sexo verdadeiro
93
sexualidade ganhavam proeminência. Designada como mu lher ao nascer, foi reclassificada pelos médicos como homem
quando tornou-se adulta. No entanto, ela/ele foi incapaz de se
adaptar à nova identidade, e suicidou-se aos 30 anos. Foucault descobriu suas memórias relatando sua trágica história nos arquivos do Departamento de Higiene Pública. Ele as editou
e elas foram publicadas com uma introdução escrita por ele.
Nessa introdução, curta, mas significativa, Foucault formula questões sobre hermafroditismo, debatendo se de fato precisa
mos da ideia de um sexo verdadeiro. Usando o exemplo de um hermafrodita, mostra quão profundamente a ideia de que to
dos têm um sexo definido e naturalmente dado está enraizada em nosso pensamento; de que nosso verdadeiro sexo é a causa
de nosso comportamento, bem como a causa de nossas carac terísticas sexuais observáveis. O verdadeiro sexo determina a
identidade de gênero do indivíduo, seu comportamento e seu desejo pelo sexo oposto. A história do hermafrodita demons tra que não há sexo verdadeiro a ser encontrado em nossos
corpos: essa ideia é de fato um produto do desenvolvimento
de discursos científicos e procedimentos jurídicos. Foucault refere-se à Idade Média, quando era prática comum
pensar que um hermafrodita era uma pessoa que combinava características tanto femininas quanto masculinas. Quando
atingia legalmente a idade adulta, ele/ela podia escolher que
sexo conservar. Essa concepção foi substituída por teorias cien tíficas sobre sexo que se desenvolveram por volta da mesma
época que os conceitos e práticas jurídicos relacionados à ideia
de um sexo verdadeiro. Todos tinham apenas um sexo ver dadeiro, que podia ser conclusivamente determinado por es
pecialistas. Todas as características do sexo oposto no corpo
Como ler Foucault
94
e alma de uma pessoa eram consideradas arbitrárias, imagi nárias ou superficiais. O sexo verdadeiro determinava ainda
o papel de gênero do indivíduo, que tinha a responsabilidade
moral de se comportar em conformidade com ele. O médico, como especialista em reconhecer esse sexo verdadeiro, tinha
de "despir o corpo de suas burlas anatômicas e descobrir o sexo verdadeiro sob órgãos que poderíam ter simulado as formas do sexo oposto”.
Foucault havia considerado a questão da possibilidade de
encontrarmos uma verdade científica e objetiva sobre o sexo no final de História da sexualidade. Ele inventou um opositor
imaginário que afirmava que sua história da sexualidade só conseguia defender a construção cultural da sexualidade
porque ele evadia "a existência biologicamente estabelecida de funções sexuais em beneficio de fenômenos que são variáveis,
talvez, mas secundários e em última análise superficiais”.53 O crítico imaginário levantou a questão de uma base natural e
necessária da sexualidade no corpo: ainda que as manifesta ções da sexualidade sejam culturalmente construídas e variá
veis, deve haver no entanto uma base biológica no corpo, um dado pré-cultural, encarnado, que não pode ser desviado à
vontade. Foucault respondeu a seu opositor negando em primeiro lugar que sua análise da sexualidade implicasse "a elisão do
corpo, da anatomia, do biológico, do funcional”.54 Ao contrá rio, o que se fazia necessário era uma análise que superasse a
distinção biologia/cultura. Em segundo lugar, refutou a afir
mação de que o sexo era uma base dada, biológica, e como tal independente do poder. A noção de um sexo natural e funda mental era um construto normativo, histórico, que funcionava
Um sexo verdadeiro
95
como um importante ponto de ancoragem para o biopoder. A ideia de que o "sexo” era a base científica, a origem verda deira, causai, de nossa identidade de gênero, identidade sexual
e desejo sexual tornava possível normalizar efetivamente o comportamento sexual e de gênero. Se cada um tivesse conhe cimento científico sobre seu sexo verdadeiro, a pessoa poderia avaliar, patologizar e corrigir seu comportamento sexual e de gênero vendo-o como "normal” ou “anormal”.
O objetivo de Foucault era estudar como a ideia científica de “sexo” emergiu nas diferentes estratégias de poder, e que papel
ela desempenhava. Numa passagem muito citada, ele escreve: Não devemos cometer o erro de pensar que o sexo é uma agên cia autônoma que produz secundariamente múltiplos efeitos de
sexualidade por toda a extensão de sua superfície de contato com
o poder. Ao contrário, o sexo é o elemento mais especulativo, mais ideal e mais interno numa utilização efetiva da sexualidade organizada pelo poder em seu domínio sobre corpos e sua mate
rialidade, suas forças, energias, sensações e prazeres.55
Ao afirmar que o sexo era imaginário, Foucault não estava de
clarando que, na realidade, não há homens nem mulheres. Es tava antes tentando problematizar um certo tipo de estrutura explanatória da sexualidade e do gênero: a ideia do sexo como
uma base ou causa invisível, que sustenta esses efeitos visíveis. Ele avalia de maneira crítica a ideia de um sexo verdadeiro na tural, cientificamente definido, ao revelar o desenvolvimento
histórico dessa forma de pensamento. Não sustenta que o sexo, compreendido como as categorias de masculinidade e feminilidade, foi inventado num período histórico particular
Como ler Foucault
96
e que poderiamos nos desvencilhar dele quando quiséssemos.
O que faz é analisar de que modo essas categorias foram cien tificamente fundadas e explicadas em discursos de verdade,
e como essa explicação “pura” de fato criou essas categorias de tal modo que elas foram compreendidas como "naturais”.
Representações científicas do sexo como uma base natural e necessária para identidades sexuais e de gênero tiveram uma
função normativa na estratégia de poder/saber que constituiu homens e mulheres "normais”. O objetivo de Foucault na História da sexualidade foi por
tanto historicizar não apenas a sexualidade, mas também o
sexo. Essa ideia influenciou profundamente a teoria feminista. A filósofa americana Judith Butler, com efeito, apropriou-se do pensamento de Foucault sobre a relação entre sujeito, po der e sexo para aplicá-lo à questão dos sujeitos generificados. Ela argumentou que não há, por trás da identidade de gênero,
um sexo verdadeiro que seria sua causa e base biológica. Ao
contrário, a identidade de gênero é construída como um ideal normativo e regulatório nas redes de poder e saber. Indivíduos desempenham o papel relativo ao gênero, que repete um com
portamento aproximado desse ideal. Embora esse comporta mento seja compreendido como a consequência inevitável e
natural de seu sexo, Butler afirma que ele é na realidade uma
performance sem nenhuma causa natural e fundamental. O comportamento feminino, por exemplo, não é o resultado de um sexo feminino verdadeiro e fundamental, mas o inverso é verdadeiro: a ideia de um sexo feminino verdadeiro e funda mental é o resultado do comportamento feminino. A ideia de
um núcleo estável do gênero é uma ficção sustentada por uma incessante performance.56
Um sexo verdadeiro
97
Foucault não influenciou apenas pensadoras feministas; suas
idéias sobre sexualidade e sexo também influenciaram muitos ativistas e intelectuais gays. Segundo escreveu David Halperin,
um teórico americano da sexualidade, o efeito da desnatura-
lização do sexo promovida por Foucault foi o surgimento de uma perspectiva crítica com relação ao poder dos especialistas
sobre sujeitos "anormais”. As implicações políticas de uma tal perspectiva não escaparam a lésbicas e homens gays. Eles já
haviam tido um número excessivo de experiências pessoais
negativas com discursos especializados da sexualidade — dis cursos patologizantes, criminalizantes e moralizantes da psi
quiatria, sexologia, criminologia e das ciências sociais — para
confiarem neles.57
Embora Foucault nunca tenha tomado uma posição em debates empíricos sobre a homossexualidade ser constituída social ou biologicamente e tenha escrito e falado em entrevis tas muito raramente sobre a própria homossexualidade, sua
vida e sua obra tiveram um profundo efeito sobre a disciplina
acadêmica de estudos gays e lésbicos. Sua concepção da se xualidade fundou, em grande medida, uma nova abordagem
teórica à sexualidade denominada teoria queer. Na História da sexualidade Foucault analisou brevemente o desenvolvimento
histórico que levou à emergência da identidade "homossexual”.
A nova classificação científica e a perseguição de sexualidades periféricas no século XIX acarretaram uma nova especificação
dos indivíduos. Enquanto a sodomia havia sido uma categoria de atos proibidos e seus perpetradores compreendidos como
nada mais que indivíduos que violavam a lei, o homossexual tornou-se “um personagem, um passado, uma anamnese e
uma infância, além de ser um tipo de vida, uma forma de
98
Como ler Foucault
vida, e uma morfologia, com uma anatomia indiscreta e pos sivelmente uma fisiologia misteriosa”. A pessoa homossexual tornou-se completamente definida por sua sexualidade, a qual era compreendida como a causa oculta e o princípio funda mental que explicava toda a sua personalidade e todas as suas
ações. Como Foucault escreve, “o sodomita havia sido uma aberração temporária; o homossexual era agora uma espé
cie”.58 Sua influente asserção foi que "homossexual” não era
um nome que designava uma espécie natural de ser. Era uma construção discursiva moldada por relações de poder espe cíficas que passara a ser compreendida como uma categoria
natural e cientificamente objetiva.
A principal ideia sob a concepção queer da sexualidade é que as identidades de gay e lésbica — bem como de heterossexual — não são naturais, essenciais, mas culturalmente construídas
através de discursos normativos e relações de poder que regu lam as expressões “saudáveis” e "normais” da sexualidade. Isso
não significa que a homossexualidade não exista "realmente”. O simples fato de algo ser construído não significa que não seja
real. As pessoas são definidas e devem pensar e viver segundo tais construções. O objetivo da política sexual, no entanto, não pode ser simplesmente encontrar a verdadeira identidade se
xual de alguém, que a abraça e exprime — “assumir-se” —, porque essa identidade é construída através das relações de
poder opressivas que ela quer contestar e rechaçar.
O objetivo da política queer deve ser mais complexo que a simples libertação do poder e a afirmação da homossexualidade
de alguém: devemos questionar e até negar as identidades que nos são impostas como naturais e essenciais tornando mani
festa sua construção cultural e sua dependência das relações
Um sexo verdadeiro
99
de poder vigentes na sociedade. Em vez de pensar em termos de categorias binárias estáveis tais como homem e mulher, he terossexual e homossexual, deveriamos estudar sua constitui
ção e as maneiras como a sexualidade emerge enquanto uma construção complexa apenas em relação a elas. O binário he
terossexual/homossexual é o resultado de relações de poder homofóbicas, exatamente como homem/mulher é a conceitua-
ção de uma sociedade sexista. Em ambos os casos, o primeiro
termo do binário refere-se ao que é a norma, privilegiada e não problematizada, ao passo que o segundo refere-se à aberração,
ao que difere da norma. Identidades sexuais e de gênero são construídas não como diferenças politicamente neutras e natu rais, mas como termos mutuamente exclusivos e extremamente
normativos que refletem as relações de poder de uma sociedade. Disto se segue que também temos de inventar novas estra tégias de resistência contra práticas e formas de pensamento se
xistas e homofóbicas. Foucault enfatizou que o movimento gay precisava “muito mais de arte de viver que de uma ciência ou conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é a
sexualidade”. Temos de compreender que com nossos desejos, através de nossos
desejos, se instauram novas formas de relações, novas formas de
amor, novas formas de criação. O sexo não é uma fatalidade: é uma possibilidade para uma vida criativa.59
A política queer assumiu muitas vezes a forma da apropriação criativa, proliferação e ressignificação teatral de nossas iden tidades e categorias de identidade. A sexualidade deveria ser
compreendida como uma prática ou uma maneira de ser que
100
Como ler Foucault
proporciona possibilidades para experimentação e múltiplos
prazeres, e não como uma condição psicológica sobre a qual
devemos revelar a verdade. Ela deveria ser transferida dos do mínios da patologia individual e da identidade verdadeira para
os domínios da política criativa e da experimentação pessoal.
9. Poder político, racionalidade e crítica
Creio que podemos dizer que, do século XV em diante, até a
Reforma, houve uma verdadeira explosão da arte de governar
os homens. Essa explosão se deu de duas maneiras: primeiro, por um deslocamento em relação à centralidade religiosa, que,
se desejarem, podemos chamar de secularização, expansão na sociedade civil desse tema da arte de governar os homens e dos
métodos de fazê-lo; e, segundo, a proliferação dessa arte de go vernar numa variedade de áreas — como governar as crianças, como governar os pobres e os mendigos, como governar a família,
uma casa, como governar exércitos, diferentes grupos, cidades, Estados e também como governar o próprio corpo e a própria
mente. Como governar era, creio, uma das questões fundamen
tais sobre o que estava acontecendo nos séculos XV e XVI. Essa questão fundamental foi respondida pela multiplicação de todas
as artes de governar — a arte da pedagogia, a arte da política, a arte da economia, se você preferir — e de todas as instituições
de governo, no sentido mais amplo que o termo “governo” tinha à época. Assim, essa governamentalização, que me parece bastante ca racterística dessas sociedades na Europa Ocidental no século XVI, não pode ser dissociada da questão "como não ser governado?”.
Não quero dizer que a governamentalização seria confrontada pela afirmação oposta, “não queremos ser governados, e não
queremos ser governados de maneira alguma”. Quero dizer que,
nessa grande preocupação com o modo de governar e busca por ioi
102
Como ler Foucault
meios de fazê-lo, identificamos uma questão perpétua que
seria: “Como não ser governado de tal maneira, por tal coisa, em nome de tais princípios, com tal e tal objetivo em mente e por
meio de tais procedimentos, não de tal maneira, não para tal, não por eles.” E se conferimos a esse movimento de governamentali-
zação, tanto da sociedade quanto dos indivíduos, a dimensão e a amplitude histórica que acredito que ele teve, creio que poderia
mos localizar aproximadamente nele o que poderiamos chamar
de atitude crítica. Opondo-se diretamente às artes de governar,
e como compensação, ou antes tanto como parceiro e adversário
delas, como um ato de desafio, como uma contestação, como um meio de limitar essas artes de governar e avaliá-las, transformá-
las, de encontrar uma forma de escapar delas ou, em todo caso, substituí-las, com uma desconfiança básica, mas também e pela mesma razão, como uma linha de desenvolvimento da arte de
governar, algo teria nascido na Europa nessa época, uma espécie
de forma cultural geral, uma atitude tanto política quanto moral,
uma maneira de pensar etc., e que eu chamaria simplesmente de a arte de não ser governado, ou melhor, a arte de não ser go vernado daquela maneira e àquele custo. Eu proporia, portanto,
como uma definição muito inicial de crítica, esta caracterização geral: a arte de não ser tão governado assim.60 “O QUE É A CRÍTICA?”
De 1970 até sua morte em 1984, Foucault ocupou a cátedra de
História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France, a instituição acadêmica mais prestigiosa do país. Em contraste com outras instituições acadêmicas, ela não requer nenhum
diploma de seus professores e não confere nenhum grau a seus
Poder político, racionalidade e crítica
103
alunos. Espera-se dos professores que ocupam as cátedras que
ministrem um curso anual de aulas no qual discutam suas pesquisas em andamento, e esses cursos são abertos ao pú
blico e não exigem nenhuma matrícula. As treze aulas anuais
dadas por Foucault eram verdadeiros eventos na cena acadê
mica francesa: a grande audiência lotava dois dos anfiteatros do Collège de France. Foi ali que ele desenvolveu muitas das idéias mais tarde elaboradas em seus livros; mas as aulas não eram simples esboços ou bosquejos dos livros. Continham
vasto material que Foucault nunca publicou sob forma escrita, e que possui por isso um status relativamente independente
em sua obra.
Durante 1978 e 1979, na série de aulas que se seguiu à publi cação do primeiro volume da História da sexualidade, Foucault voltou sua atenção para o estudo do governo e da governamentalidade.61 Na série de 1978 ele analisou o desenvolvimento his
tórico da arte de governar, desde os períodos clássicos grego e romano, passando pela orientação pastoral cristã, até a noção
de razão de Estado e a ciência da polícia, e nas aulas de 1979 dis cutiu as formas liberais e neoliberais de govemamentalidade. Apesar de a série completa só ter sido publicada recentemente, as idéias desenvolvidas por Foucault nessas aulas inspiraram
muitos estudos seminais, em particular nas ciências política
e social.
Embora historicamente “governo” designasse um conjunto variado de práticas, do controle de crianças à orientação re
ligiosa das almas, no contexto do Estado moderno ele assu miu a forma do governo de uma população. Foi esse desen volvimento histórico, “a genealogia do Estado moderno”, ou “a história da govemamentalidade” que Foucault tentou expor
104
Como ler Foucault
em suas aulas. Seu objetivo era expressar e revelar, através de uma análise histórica, o desenvolvimento do tipo específico
de racionalidade política e tecnologia do poder que foi imple mentado no exercício do poder do Estado moderno. Em vez de controlar um território e seus habitantes, as for
mas modernas de governo têm por objeto uma população: um objeto de análise estatística e conhecimento científico com
regularidades intrínsecas próprias. Para governá-la são ne cessárias formas de conhecimento específicas. É preciso co
nhecer, por exemplo, suas taxas de mortalidade, nascimento
e doenças, expectativa de vida, capacidade de trabalho e ri
queza. A população e seu bem-estar formam tanto o campo
de intervenção das técnicas governamentais quanto o objetivo final da racionalidade governamental. A governamentalidade
designa o desenvolvimento dessa forma de poder complexa e essencialmente moderna que tem por foco a população: ela é exercida através de instituições administrativas, formas de co
nhecimento, bem como táticas e estratégias explícitas. Em vez
de o poder político assumir principalmente a forma do poder
soberano — um soberano individual ou comunal governando sujeitos na sua dimensão jurídica com os instrumentos da lei —, vivemos numa sociedade em que um complexo aparato
gerencial e administrativo governa uma população mediante políticas e estratégias.
A análise de Foucault revela que a racionalidade governa
mental moderna tem duas características principais. Por um
lado, o desenvolvimento do Estado moderno é caracterizado
pela centralização do poder político: emergiu um Estado cen tralizado com uma administração e uma burocracia extrema
mente organizadas. Embora esse traço constume ser analisado
Poder político, racionalidade e crítica
105
e também criticado no pensamento político, Foucault identifica ainda a evolução de uma segunda característica que parece ser antagônica a esse desenvolvimento. Ele afirma que o Estado mo
derno é caracterizado por um poder individualizante — ou poder pastoral, como também o chama. Refere-se com isso ao desen volvimento de tecnologias de poder orientadas para indivíduos
numa tentativa de governar-lhes a conduta de maneira contínua e permanente. O objetivo é assegurar, sustentar e aperfeiçoar
constantemente a vida de cada uma das pessoas. E um poder que
se baseia no conhecimento individualizante sobre cada aspecto da vida e funciona através do controle político dos indivíduos. Esse poder individualizante está entrelaçado com os obje
tivos de centralização. O Estado tem de cuidar de seres vivos, compreendidos como uma população. Deve se concentrar na
vida e na saúde de seu povo, e por isso Foucault chama a polí
tica do Estado moderno de biopolítica. O resultado é a crescente intervenção do Estado na vida cotidiana dos indivíduos: sua
saúde, sexualidade, corpo e dieta.
O que Foucault afirmou foi que, para compreender a prática do governo no sentido amplo do controle da conduta das pes soas, precisamos estudar as tecnologias do poder e também a
racionalidade política que as sustenta. As práticas e instituições
de governo são permitidas, reguladas e justificadas por uma forma específica de raciocínio ou racionalidade que define os
fins e os meios adequados para alcançá-los. Compreender o poder como um conjunto de relações, conforme Foucault su
geriu repetidas vezes, significa compreender como tais relações são racionalizadas. Significa examinar de que modo formas de racionalidade se inscrevem em práticas e sistemas de práticas,
e qual papel desempenham dentro deles.
io6
Como ler Foucault
A exposição e análise das racionalidades governamentais historicamente cambiantes era um objetivo fundamental de
Foucault em suas aulas. Ele sustentava ser possível e necessá rio analisar, por meio da filosofia política, diferentes raciona
lidades políticas, assim como era possível analisar diferentes
racionalidades científicas por meio da filosofia da ciência, por exemplo. A análise do poder político não deveria, portanto,
concentrar-se em teorias políticas, escolhas políticas ou ins tituições políticas, ou no tipo de pessoa que as controla, mas incorporar também as práticas concretas que dão forma a racionalidades políticas específicas. O objetivo da análise de
Foucault não era planejar e legitimar a melhor forma de go verno, mas analisar historicamente a racionalidade imanente a diferentes práticas governamentais.
A análise da governamentalidade não substitui, contudo, a compreensão anterior do poder. Foucault ainda sustentava
que as formas de governo de homens por um outro homem, numa dada sociedade, são múltiplas e não podem ser reduzidas
a instituições políticas ou a uma única racionalidade política abrangente. O que deve ser analisado, mas também questio nado, são as racionalidades historicamente específicas intrín secas às práticas. Ele ainda estava usando um tipo de análise
semelhante ao que usara para estudar as técnicas e práticas
de poder no contexto de sujeitos individuais dentro de insti tuições locais, particulares: o primado das práticas sobre as instituições continuava sendo decisivo. Em sua análise do poder disciplinar Foucault deslocou a ênfase de instituições repressivas para práticas produtivas.
Estava tentando agora passar de uma teoria que focalizava a instituição do Estado para uma análise de práticas modernas
Poder político, racionalidade e crítica
107
de governo. Criticou a tendência do pensamento político de demonizar o Estado, de vê-lo como o simples inimigo na raiz de todos os problemas políticos. O Estado não exerce
apenas poder repressivo, negativo, sobre o corpo social, ele foi uma modalidade histórica de "governo” que refletiu mu danças na racionalidade das práticas governamentais.
Ao mesmo tempo, a análise da governamentalidade feita
por Foucault acrescenta à sua compreensão do poder algu mas dimensões novas e importantes que muitas vezes passam
despercebidas. Em primeiro lugar, se suas análises do poder disciplinar se restringiam a contextos institucionais especiali
zados, a ideia de poder como governo alarga o alcance de sua
compreensão de poder para o domínio do Estado. Com a no ção de governo ele foi capaz de estudar problemas mais amplos, estratégicos, com os quais sua “microfísica do poder” — um exame das formas de poder focadas no comportamento indi
vidual — não era capaz de lidar. Estudando o poder moderno do Estado ele pôde transpor sua compreensão do poder para o domínio tradicionalmente compreendido como o político.
Embora suas análises anteriores do poder disciplinar tivessem
aberto algumas linhas de abordagem para o pensamento po lítico, uma crítica comum fora que a atenção a práticas espe
cíficas e técnicas especiais não tinha sido capaz de tratar das
questões mais amplas do poder envolvidas na política. Suas aulas sobre governamentalidade podem ser lidas como uma
resposta a tais objeções. Em segundo lugar, foi através da ideia de poder como go
verno que Foucault conseguiu elaborar sua compreensão da resistência. Como governo diz respeito a modos de poder es
tratégicos, regulados e racionalizados que precisam ser legi
io8
Como ler Foucault
timados através de formas de conhecimento e asserções de verdade específicas, a ideia de crítica como forma de resistência
torna-se então crucial. Governar não é determinar fisicamente a conduta de objetos passivos. Envolve oferecer razões pelas quais os governados deveríam fazer o que lhes é dito, e isso
significa que eles podem também questionar essas razões.
Na preleção intitulada “O que é a crítica?”, realizada em maio
de 1978 para a Société Française de Philosophie, Foucault vin cula a questão “como governar” à outra questão que sempre a complementou no pensamento e na prática política ocidental:
como não governar, ou melhor, como não governar dessa ma neira. Ele deixa claro que não está se referindo aos fundamentos
do anarquismo, que seria absoluta e entusiasticamente resistente
a qualquer governamentalização, mas sim tentando identificar uma atitude específica que era crítica a ela e que se desenvolveu
ao mesmo tempo que ela. Essa atitude crítica em relação a for
mas de governo sustentou a prática da crítica política. As relações cambiantes entre poder e saber — a política da verdade — regulam os meios como os regimes políticos se justificam e eclipsam arranjos políticos alternativos, apresen
tando sua representação da ordem das coisas como verdadeira. A resistência não é portanto um ponto cego nas práticas de
poder, mas um aspecto importante das práticas de saber que justificam as relações de poder. A prática da crítica deve ques
tionar as razões para se governar de tal maneira: os princípios, procedimentos e recursos legítimos de governo. As aulas do próprio Foucault sobre governamentalidade
parecem, contudo, abster-se de crítica política. Ele discutiu textos históricos sobre poder pastoral e razão de Estado, que, segundo acreditava, marcavam a emergência das formas de
Poder político, racionalidade e crítica
109
poder especificamente modernas; mas não apresentou ne nhuma crítica política explícita. Observou também que, como
o Estado moderno é ao mesmo tempo individualizante e totalizador — o poder político é centralizado, mas focado nos
indivíduos —, não é suficiente criticar apenas um desses efeitos. Opor-se a ele com o indivíduo e seus interesses é tão arriscado
quanto opor-se a ele com a comunidade e suas exigências. Em vez disso, devemos expor e criticar a racionalidade política sub jacente às relações de poder do Estado moderno que produz
esses efeitos. "A libertação só pode ser alcançada mediante o ataque não apenas a esses dois efeitos, mas às próprias raízes
da racionalidade política."62 A crítica política que Foucault defende não é redutível, portanto, à emissão de julgamentos.
Devemos questionar nossas práticas de governo bem como os termos e categorias — o arcabouço avaliativo — através dos
quais julgamentos políticos são formulados. A crítica política e suas restrições continuaram sendo um
tópico repetidamente contestado pelos críticos de Foucault. Segundo eles, apesar das intenções explícitas de Foucault, seu pensamento torna a crítica política impossível em razão de sua falta de fundamento normativo filosoficamente expresso.
Para criticar as formas de poder modernas devemos mostrar
que elas são intoleráveis por meio de razões aceitáveis. Essas razões formam o fundamento normativo da crítica: podemos
argumentar, por exemplo, que seres humanos deveríam ser livres para fazer escolhas concernentes à sua saúde, e formas
de biopoder que restringem essa liberdade são portanto insu portáveis. Foucault não nos dá essas razões e nos estimula a
indagar por que deveriamos ler suas descrições da sociedade moderna como contendo algum grau de crítica.
IIO
Como ler Foucault
O mais conhecido desses críticos é Jürgen Habermas, im
portante filósofo alemão e o principal representante vivo da Escola de Frankfurt. Segundo ele, criticar, por definição, sig
nifica fazer asserções avaliativas, e estas devem ser justificadas, caso sejam contestadas, mediante o recurso a razões válidas. Foucault não é capaz de justificar suas asserções com razões
e por isso podia apenas posar como crítico da sociedade mo derna. Ao nos dizer por que deveriamos resistir ao poder de
um Estado ao mesmo tempo individualizante e totalizador, por exemplo, ele tem de defender valores ou direitos positivos
de algum tipo, como liberdade humana ou autonomia política.
O debate entre “habermasianos” e “foucaultianos” prosse gue desde o final dos anos 70, e a literatura que produziu é ex
tensa. Conforme muitos comentadores notaram, esse debate chegou muitas vezes a um beco sem saída, e foi interditado por mal-entendidos e ambiguidades. Uma maneira de superar o impasse do lado foucaultiano foi simplesmente redefinir o
que é crítica e negar que ela signifique a emissão de julgamen tos. O próprio Foucault escreveu: “Uma crítica não consiste
em dizer que as coisas não estão bem como estão. Consiste em ver em que tipo de pressupostos, de noções conhecidas, de
modos de pensar estabelecidos, e não examinados, as práticas
aceitas se baseiam.”63 Ele procurou diagnosticar nosso pre sente, nossa racionalidade política, as formas de subjetividade normalizada e o tipo de uso do poder que as produzia. Com
isso, abriu um espaço politizado que não prescreve programas
políticos explícitos, mas torna possível contestar necessidades reconhecidas. Como afirmei antes, podemos também ler as genealogias
de Foucault como tentativas não de nos convencer, mediante
Poder político, racionalidade e critica
ui
argumentos persuasivos, racionais, de que alguma coisa no presente é intolerável, mas de mostrá-lo. O fundamento nor
mativo não é expresso, mas isso não significa que não exista. A genealogia pode nos abrir os olhos para a necessidade de uma
crítica política de práticas atuais e a possibilidade de trans
formá-las, mas crítica e mudança não decorrem automati camente da genealogia. Foucault admitia sem objeção que crí tica e ação políticas eram necessárias para preencher a lacuna,
transformando as possibilidades geradas pela genealogia em
realidades. A política não é, contudo, a arena de um filósofo. Foucault sugeriu em vários contextos que a resistência con
creta tinha de ser conduzida por pessoas envolvidas, ao passo
que seu pensamento podia no máximo oferecer ferramentas para a instituição dessas resistências locais. Em nossas tentativas de avaliar a possibilidade de uma crí tica genealógica devemos também levar a sério a importância
que Foucault atribuiu ao Iluminismo como um evento não superado na história do pensamento e da política ocidental. Sua preleção "O que é a crítica?” (1978) deu início a uma série
de interrogações sobre o significado do Iluminismo, e prepa rou o caminho para seu ensaio crucial “O que é Iluminismo?”
(1984). O ponto de partida do ensaio é um curto artigo de jornal
escrito por Immanuel Kant em 1784 em resposta à pergunta: o que é Iluminismo? Segundo Foucault, esse texto aparente
mente sem importância marcou a discreta entrada na história
do pensamento de uma nova forma de reflexão filosófica que era uma crítica permanente de nossa própria era. Ele defendeu
o lema do Iluminismo — "ousar saber” —, um compromisso
com o livre uso da razão. Embora Habermas tenha permane cido profundamente cético com relação ao projeto de Foucault,
112
Como ler Foucault
este via a si mesmo como partilhando a mesma forma de pen
samento crítico e histórico que a Escola de Frankfurt. Para ele, o Iluminismo inaugurou uma tradição crítica de filosofia que
‘de Hegel até a Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e
Max Weber”, fundou a forma de reflexão em que ele próprio se situava.64
O ideal da liberdade como emancipação dos efeitos auto ritários do poder foi uma parte importante do pensamento
iluminista, e abriu caminho para a tradição subsequente de políticas emancipatórias exemplificadas pela Revolução Fran
cesa. Foucault se notabilizou, no entanto, por sua clara ob jeção ao discurso universalista da emancipação iluminista: não havia nenhuma natureza humana inerente justificando
a demanda de liberdade e igualdade humana ou garantindo a possibilidade de progresso. Além disso, o humanismo ilumi nista ou incorporava formas mascaradas de poder disciplinar
que operavam para produzir formas de individualidade mo derna, ou contribuía para a dominação de grupos e indiví duos marginais. Em consequência, o ensaio — em que ele se
situou francamente dentro da tradição iluminista da filosofia
e subscreveu seu lema — surpreendeu muitos de seus leitores. Ao ligar seu pensamento ao Iluminismo em seus últimos
ensaios, Foucault deu o importante passo normativo de adotar os ideais associados a ele — razão crítica e autonomia pes
soal — como o fundamento implícito em que repousavam
suas críticas da dominação e de formas abusivas de poder. Os ideais iluministas forneceram-lhe os valores históricos — não
universais nem atemporais — em que basear suas críticas. Diferentemente de Kant, ele endossou a liberdade não como
um ideal abstrato e universal, mas como o resultado de um
Poder político, racionalidade e critica
113
certo desenvolvimento histórico: fatos históricos e sociológicos. Sua crítica filosófica de formas de dominação e racionalidade política repousa na suposta desejabilidade da liberdade, mas esse ideal da liberdade não é eterno e universal. Ele emerge de
práticas historicamente concretas e específicas, e só delas pode emergir. A defesa da liberdade política no sentido moderno
não podia ser encontrada como tal em nenhuma tradição préiluminista; ela foi antes o produto de um tradição histórica específica de pensamento — o Iluminismo — do qual somos
parte de todo modo.
Partilhar o ideal da liberdade significa estar comprometido
com uma tradição histórica segundo a qual nós, hoje, no Oci dente, pensamos sobre a vida e a política. Foucault não defende
programas políticos universais, nem faz julgamentos morais explícitos, mas isso não significa que suas análises sejam acrí-
ticas. Ao expor formas específicas de racionalidade política e as formas correspondentes de subjetividade como restritivas,
e ao mesmo tempo como historicamente contingentes, suas
análises podem ser interpretadas como defendendo ativamente a mudança política na direção da “liberdade”. Ainda que tal mudança deva ser compreendida em termos de transforma
ções locais e parciais, e não de programas políticos universais, seu pensamento está longe do niilismo político. As análises de
nossos limites são análises da liberdade.
io. Práticas de si
Quanto à minha motivação, ela foi muito simples; eu gostaria que para alguns ela bastasse por si só. Foi a curiosidade — o único
tipo de curiosidade, em todo caso, que merece ser exercido com
algum grau de obstinação: não a que busca assimilar o que é apropriado para conhecermos, mas aquela que permite nos liber
tarmos de nós mesmos. Afinal, qual seria o valor da paixão pelo
saber se ela resultasse apenas numa certa soma de erudição, sem permitir ao conhecedor, de um modo ou de outro e na medida
do possível, libertar-se de si próprio? Há ocasiões na vida em que a questão de saber se é possível pensar diferentemente do que se
pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é absolutamente
imprescindível se quisermos continuar olhando e refletindo de al
guma maneira. Podem dizer, talvez, que seria melhor deixarmos essa peleja com nós mesmos nos bastidores; ou, na melhor das
hipóteses, que ela poderia fazer parte daqueles exercícios preli
minares que são esquecidos assim que serviram à sua finalidade. Nesse caso, porém, o que é a filosofia hoje — quero dizer, a ati
vidade filosófica — senão o trabalho crítico que o pensamento
exerce sobre si mesmo? Em que consiste ela senão no esforço para saber como e em que medida pode ser possível pensar de maneira
diferente, em vez de legitimar o que já é conhecido? Há sempre
algo ridículo no discurso filosófico quando este tenta, a partir de fora, impor-se aos outros, dizer-lhes onde está sua verdade e como encontrá-la, ou quando os acusa na linguagem da positi-
vidade ingênua. Mas ele está habilitado a explorar o que poderia
114
115
Práticas de si
ser mudado em seu próprio pensamento através da prática de um
saber que lhe é estranho. O “ensaio” — que deveria ser compre
endido como a prova ou teste pelo qual sofrem-se mudanças no jogo da verdade, e não como a apropriação simplista de outrem
para fins de comunicação — é a substância viva da filosofia, ao
menos se admitirmos que filosofia ainda é o que foi no passado, i.e., uma “ascese”, askesis, um exercício de si mesmo na atividade
do pensamento.
Os estudos que se seguem, como os outros que fiz anterior mente, são estudos de “história” em razão do domínio com que lidam e das referências a que recorrem; mas não são o trabalho
de um “historiador”. O que não significa que resumem ou sin
tetizam o trabalho feito por outros. Considerados do ponto de vista de sua “pragmática”, eles são o registro de um exercício
longo e experimental que precisou ser revisto e corrigido várias vezes. Foi um exercício filosófico. O objetivo era aprender em que medida o esforço para se pensar a própria história pode libertar o
pensamento do que ele pensa silenciosamente, e então capacitá-lo a pensar de maneira diferente.65 O USO DOS PRAZERES
Foucault
morreu de aids
no dia 25 de junho de 1984, aos
57 anos. Alguns dias após a sua morte, centenas de amigos e
admiradores aglomeraram-se no pátio em frente à capela mor
tuária do hospital para testemunhar a remoção de seu caixão e lhe prestar suas últimas homenagens. A multidão silenciou quando o velho amigo de Foucault, o eminente filósofo Gilles Deleuze, subiu num pequeno caixote num canto do pátio.
Com uma voz quase inaudível e tremendo de tristeza, ele co
116
Como ler Foucault
meçou a ler os parágrafos acima. O fragmento é do prefácio
ao segundo volume da História da sexualidade, um dos últimos textos que Foucault escreveu. Ele estivera trabalhando nos vo lumes 2 e 3 durante todo o curso de sua doença, e conseguira
vê-los publicados pouco antes de sua morte extemporânea.
O estilo desses dois últimos livros é muito diferente daquele
dos primórdios de sua obra: é surpreendentemente simples — alguns o qualificariam, talvez, de seco, outros de apressado. Não há emblemas impactantes nem imagens chocantes. O
período de tempo investigado é também pouco característico de Foucault: enquanto todos os seus outros estudos históri
cos focalizaram os períodos moderno inicial e moderno, seus
últimos livros dão um salto para a Grécia Antiga e o Império Romano. No mundo acadêmico, essa completa mudança de direção é arriscada. Foucault não era um especialista em pen
samento clássico e devia saber que provavelmente cometería enganos que o tornariam um alvo fácil de críticas. A escolha
de uma direção inteiramente nova iria também decepcionar os leitores que esperavam aprender mais sobre o poder moderno. Muita coisa devia estar em jogo para ele pessoalmente: o que precisava saber e queria dizer exigia um estudo da Antigui
dade. É contra esse pano de fundo que deveriamos ler suas
palavras no prefácio: “Afinal, qual seria o valor da paixão pelo saber se ela resultasse apenas numa certa soma de erudição,
sem permitir ao conhecedor, de um modo ou outro e na me
dida do possível, libertar-se de si próprio?” Os volumes 2 e 3 da História da sexualidade tratam basica
mente da moralidade sexual na Grécia Antiga e no Império
Romano. O foco da investigação recai sobre a maneira como
a sexualidade constituía um domínio moral e era problema-
Práticas de si
117
tizada como uma questão moral — sobretudo por filósofos e médicos em textos escritos como guias para outros. O vo lume 2, O uso dos prazeres, enfocou a cultura grega clássica do
século IV a.C., ao passo que o volume 3, O cuidado de si, trata
das mesmas questões no Império Romano nos dois primeiros séculos da era cristã.
O que emerge desses estudos históricos da moralidade sexual
é uma concepção particular de ética que Foucault atribui à An tiguidade. Ele começa fazendo uma distinção entre moralidade como um código moral e moralidade do comportamento. A pri
meira diz respeito ao conjunto de valores e regras de conduta
que são ensinados aos indivíduos pela Igreja ou a escola, por exemplo; por moralidade do comportamento refere-se ao com
portamento efetivo das pessoas em relação ao código: como
o comportamento real delas corresponde ou não às regras e valores que lhes são recomendados. Esses componentes da mo ralidade sexual são estudados através da história da moral e da
história social das práticas sexuais, respectivamente, mas eles não são o objeto dos estudos históricos de Foucault. Resta ainda um importante componente da moralidade, que ele estuda e chama de ética. A ética diz respeito à maneira como a pessoa forma a si mesma como um sujeito de moralidade, agindo em
referência a seus elementos prescritivos. Ela trata da maneira pela qual regras morais são adotadas e problematizadas por
sujeitos. Um indivíduo poderia escolher seguir a regra ética da
monogamia, por exemplo, por uma variedade de razões. Pode
ria fazê-lo para dar um exemplo para outros, para evitar puni ção ou para imprimir beleza moral à sua vida. Poderia também usar de diferentes exercícios para alcançar esses objetivos, como
a memorização de escrituras, meditações ou autopunições.
n8
Como ler Foucault
A importância do estudo da ética torna-se clara quando tentamos evidenciar a diferença entre a moralidade da Anti
guidade e a do cristianismo. Foucault argumenta que, ao con trário do que muitas vezes se acredita, no nível dos códigos
morais de comportamento há notáveis semelhanças entre a
Antiguidade e o cristianismo. Embora em geral se suponha que a moralidade da Antiguidade era muito mais promíscua e
permissiva por causa de sua tolerância a relações homossexuais, Foucault mostra que tanto a Antiguidade como o cristianismo
atribuíam uma imagem negativa às relações homossexuais. Além disso, ambos partilhavam uma preocupação, até medo,
quanto ao efeito do dispêndio sexual na saúde de um indivíduo
e valorizavam a fidelidade conjugal e a abstinência. O que gera um forte contraste entre essas duas culturas, no entanto, é o modo como esses ideais ou demandas morais são integrados
em relação ao sujeito. Na moralidade cristã, a principal ênfase
recai sobre o código, sua sistematicidade, sua riqueza e sua
capacidade de se ajustar a todos os casos possíveis e de abarcar cada área de comportamento. As regras nos mosteiros cris tãos, por exemplo, eram não só muito severas, mas também
extremamente detalhadas. A moralidade da Antiguidade, por outro lado, representa uma moralidade em que o código e as
regras de comportamento são rudimentares. Os textos antigos
que discutem moralidade formulam muito poucas regras ou pautas explícitas para o comportamento do indivíduo. Mais
importante que as regras ou conteúdos objetivos da lei é a relação da pessoa consigo mesma, a escolha de estilo de vida feita pelo indivíduo.66
Assim, apesar das semelhanças no nível do código, as formas como o comportamento sexual é problematizado são muito
Práticas de si
119
diferentes. Na Grécia Antiga, as questões relativas à austeri
dade sexual não eram uma expressão de proibição profunda ou
essencial, mas a elaboração e estilização de uma atividade. A moralidade fundava-se numa escolha pessoal de viver uma bela
vida e deixar para outros lembranças de uma bela existência.
Embora os volumes 2 e 3 da História da sexualidade nos ofere çam um estudo histórico das formas de uma problematização
ética de um passado remoto, o foco de Foucault, mais uma vez, está no presente. Ele admitiu ter escrito esses dois últimos volu mes a partir da perspectiva de uma situação contemporânea.67
Negou, contudo, que estivesse sugerindo que adotássemos a ética da Grécia Antiga. Condena de maneira aberta a ética
da sexualidade da Grécia Antiga como algo verdadeiramente
repugnante em muitos aspectos, e menciona como ela estava associada às idéias de uma sociedade viril, à dissimetria, à ex
clusão do outro e a uma obsessão com a penetração, por exem plo.68 As relações sexuais na Antiguidade não eram simétricas, recíprocas e, muitas vezes, sequer consensuais. O parceiro ativo era um homem livre e não se esperava que o parceiro passivo,
em geral um escravo, uma mulher ou um rapaz jovem, obti
vesse qualquer prazer com o ato. Contudo, Foucault sugere que podemos aprender alguma coisa com a ética sexual antiga: Minha ideia é que não é necessário relacionar problemas éticos
a conhecimento científico. Entre as invenções culturais da hu manidade há um tesouro de estratagemas, técnicas, idéias, pro
cedimentos, e assim por diante, que não podem ser exatamente reativados, mas ao menos constituem, ou ajudam a constituir,
um determinado ponto de vista que pode ser útil como uma ferramenta para analisar o que ocorre agora — e mudá-lo.69
120
Como ler Foucault
Na Grécia Antiga, a moralidade não estava relacionada à re ligião ou a preocupações religiosas, nem a sistemas sociais,
legais ou institucionais. Seu domínio era a relação de cada um consigo mesmo: a escolha de conferir beleza moral à pró pria vida. O que pareceu impressionante a Foucault foi a se
melhança entre esses problemas éticos com os da sociedade contemporânea. Pergunto a mim mesmo se nosso problema não é, de certo modo, similar a este, uma vez que a maioria de nós não mais acredita
que a ética se funda na religião, nem queremos que um sistema
legal interfira em nossa vida moral pessoal, privada. Os recentes movimentos de liberação sofrem por não poderem encontrar ne nhum princípio em que basear a elaboração de uma nova ética.
Eles precisam de uma ética, mas não conseguem encontrar ne nhuma outra senão a ética fundada em pretenso conhecimento
científico.70
Foucault aponta claramente para o potencial da ética compreen dido como uma prática pessoal em nossa sociedade secular. Segundo ele, herdamos a tradição da moralidade cristã com
seus valores de abnegação e sacrifício pessoal, bem como a tradição secular que vê a base para a moralidade na lei externa. Comparadas com essas tradições, as práticas de si aparecem
como imoralidade, egoísmo ou uma maneira de escapar de regras e responsabilidades com respeito a outros. As práticas de si que ele advoga deveríam ser compreendidas, contudo, como originando-se de uma concepção inteiramente diversa
de ética. Ética significa uma atividade criativa, o treinamento permanente de si mesmo por si mesmo.
Práticas de si
121
Os dois últimos livros de Foucault deveríam ser lidos como uma tentativa de dar uma contribuição à tarefa de repensar a
ética. Eles são também uma continuação de sua tentativa de
repensar o sujeito. O que está em foco agora são as formas do eu: as formas de entendimento que o sujeito cria sobre si e as
práticas mediante as quais ele transforma seu modo de ser. Em seu estudo da ética da Grécia Antiga e a correspondente
concepção do eu, ele quis claramente desenvolver sua ideia de
que não havia nenhum eu verdadeiro passível de ser decifrado
e emancipado, mas que o eu era algo que havia sido — e deve ser — criado. Há, no entanto, todo um novo eixo de análise
presente em seus últimos estudos do sujeito. Foucault observou que talvez tivesse insistido demais nas
práticas de dominação e poder, e que faltava um eixo analítico em seu trabalho anterior. Suas análises precisavam ser comple mentadas com um estudo das práticas de si, isto é, um estudo dos modos de ação que indivíduos exerciam sobre si mesmos.
Para ser capaz de estudar a história da “experiência de sexua lidade” ele precisava não apenas das ferramentas metodológi
cas que suas arqueologias e genealogias lhe haviam fornecido, mas também "estudar os modos segundo os quais indivíduos tendem a se reconhecer como sujeitos sexuais”.71 Ele passou a
estudar as formas históricas de entendimento que os sujeitos
criam a respeito de si mesmos, e as maneiras pelas quais eles
se formam como sujeitos de uma moralidade. Enquanto seus estudos genealógicos anteriores investigaram os modos como redes de poder/saber constituíram o sujeito, em seu trabalho
posterior a ênfase incide sobre o papel do próprio sujeito na
moldagem de si, o que oferece uma compreensão mais elabo rada do sujeito do que a encontrada em seus escritos anteriores.
122
Como ler Foucault
Em seu pensamento tardio Foucault retornou à noção, pre
sente em seu trabalho inicial, do papel subversivo da arte. Afir mou que as práticas éticas de si estavam estreitamente ligadas, ou até fundidas, com a estética, e chamou-as de estética da existência. O processo pelo qual sujeitos formam a si mesmos
como sujeitos éticos assemelha-se à criação de uma obra de arte. Quando lhe perguntaram que tipo de ética era possível
construir em nossa sociedade, ele respondeu: ... em nossa sociedade, a arte tornou-se algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida. Essa arte é algo espe cializado ou feito por especialistas que são artistas. Mas não
poderia a vida de todos tornar-se uma obra de arte? Por que a
lâmpada ou a casa deveríam ser um objeto de arte, mas não a nossa vida?72
Essa ideia de criar a si próprio como uma obra de arte alimen tou inúmeras críticas acaloradas a Foucault. Ele foi acusado de
se refugiar na estética amoral e privilegiar uma noção elitista
de estilização autocentrada. Sua estética da existência, no en tanto, não deveria ser compreendida como um empreendi
mento narcisista, ou puramente estético no sentido estrito da aparência ou da busca por parecer elegante. Foucault era muito
crítico do egocentrismo e da introspecção que caracterizam nossa cultura e ressaltou que as práticas de si antigas eram
quase diametralmente opostas à atual cultura de si. Nosso ego
centrismo deriva da ideia de que devemos descobrir nosso ver dadeiro eu, separá-lo do que poderia obscurecê-lo ou aliená-lo
e decifrar sua verdade graças à ciência psicológica ou psica-
nalítica. Os gregos antigos não estavam tentando descobrir
Práticas de si
123
sua verdade interior, mas criar a si mesmos como dignos de
respeito, glória e poder.73 A ênfase na estética não significa, portanto, que Foucault
propunha que procurássemos parecer belos. Sua ideia era que deveriamos nos relacionar com nós mesmos e com nossas vidas
enquanto algo que não era simplesmente dado, mas podia ser
formado e transformado criativamente. Em vez de tentar des cobrir a verdade científica sobre nossa sexualidade, por exem
plo, e depois nos aproximarmos do comportamento sexual normal do grupo de gênero e idade apropriado, deveriamos moldar criativamente nossa vida sexual imaginando novos ti pos de relacionamentos e maneiras de experimentar o prazer.
Ou, em vez de buscar um diagnóstico médico que explique
o modo como somos ou nos sentimos diferentes, poderia ser
melhor, por vezes, admitir a diferença e fazer dela, de maneira
criativa, uma característica singular e capacitadora de nosso ser. O objetivo não é a mera rejeição de todo conhecimento
científico relativo a nós, mas questionar constantemente a sua dominação. A resistência contra o poder normalizador consiste em práticas criativas de si, bem como no questionamento crí tico de nossas formas atuais de pensamento.
A noção foucaultiana de ética como estética foi essencial
mente uma continuação de sua preocupação com o poder normalizador. Ele não acreditava que a resistência pudesse
se estabelecer fora das redes de poder, pois só dentro delas era possível ser um sujeito. Ações significativas e eficazes só eram possíveis nas redes de poder que permeiam a sociedade.
Embora Foucault tenha insistido que a resistência era sempre inerente ao poder como seu corolário irredutível, sua expli
cação deixou basicamente em aberto a questão de como, por
124
Como ler Foucault
que meios concretos, os sujeitos deveríam formar e instigar a resistência. Em seu pensamento tardio ele elaborou sua com
preensão da resistência insistindo que os sujeitos não eram simplesmente construídos pelo poder, mas participavam eles
próprios dessa construção e podiam modificar a si mesmos através de práticas de si. Em outras palavras, os sujeitos não
são apenas corpos dóceis, mas recusam, adotam e alteram ati vamente as formas de ser um sujeito. Um modo de contestar
o poder normalizador é moldar criativamente a si mesmo e à própria vida: explorando oportunidades de novas maneiras de
ser, novos campos de experiência, prazeres, relações, modos
de viver e pensar. A busca da liberdade que caracteriza a filosofia de Foucault tornou-se, em seu pensamento tardio, uma tentativa de desen volver e encorajar modos de vida que fossem capazes de fun
cionar como resistência ao poder normalizador. O objetivo não é a autoestilização que conduz ao narcisismo, mas a prolife
ração da diversidade e da singularidade. O importante legado do pensamento de Foucault reside não em nos dizer quem ou o que deveriamos ser — cidadãos honrados, belos e vir
tuosos, sexualmente saudáveis e liberados —, mas em abrir espaços de liberdade que tornem possível um modo de viver
singular. Lendo-o, somos capazes de experimentar o mundo à
nossa volta de maneiras radicalmente novas, e nesse processo tornamo-nos nós mesmos algo diferente: sujeitos à procura de modos de pensar, viver e se relacionar com outras pessoas que
são, talvez, inimagináveis ainda hoje.
Notas
i. Ver James Miller, The Passion of Michel Foucault. Nova York, Simon & Schuster, 1993. 2. Michel Foucault, “PostScript, an interview with Michel Foucault by Charles Ruas”, trad. Charles Ruas, in Death and theLabyrinth: The World of Raymond Roussel. Nova York, Doubleday, 1986, p.184. 3. Michel Foucault, Suicides de prison. Paris, Gallimard, 1973, p.51, apud David Macey, The Lives of Michel Foucault. Nova York, Vintage Books, 1993, p.288. 4. Michel Foucault, “Criticai theory/intellectual history” (1983), trad. Jeremy Harding, in Lawrence Kritzman (org.), Michel Foucault, Politics, Philosophy, Culture, Interviews and Other Writings 1977-1984. Londres, Routledge, 1988, p.36-7. 5. Ver Macey, op.cit., p.288. 6. Michel Foucault, The History of Sexuality, vol.2: The Use of Pleasure (1984). Harmondsworth, Penguin, 1992, p.9. 7. Ver lan Hacking, Historical Ontology. Cambridge, MA, Harvard University Press, 2002. 8. Michel Foucault, History of Madness (1961), trad. Jonathan Murphy e Jean Khalfa. Londres, Routledge, 2005, p.8-11. 9. Michel Foucault, “Interview with Michel Foucault" (1978), trad. Robert Hurley, in James D. Faubion (org.), Power: Essential Works of Foucault 1954-1984, vol.3. Nova York, New Press, 2000, p.244. 10. Michel Foucault, “The minimalist self” (1983), in Lawrence Kritzman, op.cit., p.6. 11. Michel Foucault, History of Madness, op.cit., p.35-8. 12. Ibid., p.145. 13. Ibid., p.483. 14. Ibid., p.42. 15. Michel Foucault, "La folie n'existe que dans une société” (1961), in Daniel Defert e François Ewald (orgs.), Dits et écrits, 1954-1975, vol.i. Paris, Gallimard, 2001, p.197. 16. Michel Foucault, History of Madness, op.cit., p.xxviii.
125
126
Como ler Foucault
17. Michel Foucault, Dits et écrits, op.cit., p.196. 18. Michel Foucault, “Interview with Michel Foucault”, op.cit., p.246. 19. Ibid., p.242. 20. Michel Foucault, prefácio à edição inglesa de The Order of Things (1970). Londres, Routledge, 1994, p.xiii-xiv. 21. Michel Foucault, The Order of Things, op.cit., p.131-2. 22. Paul Veyne, “Foucault revolutionizes history” (1971), in Arnold I. Davidson (org.), Foucault and His Interlocutors. Chicago, University of Chicago Press, 1997, p.146-82. 23. Michel Foucault, The Order of Things, op.cit., p.342. 24. Ibid., p.336. 25. Ibid., p.306. 26. Michel Foucault, “On the ways of writing history" (1967), trad. Robert Hurley in James D. Faubion (org.), Aesthetica, Method and Epistemology: Essential Works of Foucault 1954-1984, vol.2. Nova York, New Press, 1998, p.286. 27. Michel Foucault, The Order of Things, op.cit., p.xv. 28. Michel Foucault, “What is an author?” (1963), trad. Josue V Harari, in Paul Rabinow (org.), The Foucault Reader. Harmondsworth, Penguin, 1984, p.118-20. 29. Jean-Paul Sartre, What Is Literature? (1948), trad. Bernard Frechtman. Londres, Methuen, 1950, p.45. 30. Michel Foucault, Death and the Labyrinth, op.cit., p.175. 31. Ibid., p.38. 32. Michel Foucault, The Order of Things, p.383. 33. Michel Foucault, “Nietzsche, genealogy, history” (1971), trad. Donald F. Bouchard e Sherry Simon, in Paul Rabinow (org.), The Foucault Reader, op.cit., p.86-8. 34. Ver, por exemplo, Michel Foucault, “Prison talk”, trad. Colin Gordon, in Colin Gordon (org.), Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, Brighton, Harvester Press, 1980, p.53-4. 35. Michel Foucault, Discipline and Punish (1975), trad. Alan Sheridan. Harmondsworth, Penguin, 1991, p.250. 36. Ibid., p.253. 37. Michel Foucault, "Foucault Michel, 1926-” (1984), trad. Catherine Porter, in Gary Gutting (org.), Cambridge Companion to Foucault. Cambridge, Cambridge University Press, p.315. 38. Ibid., p.317.
Notas
t-L-7
39. Ver Martin Saar, "Genealogy and subjectivity”, European Journal of Philosophy 10:2, 2002, p.231-45. 40. Ver Martin Kusch, Foucault’s Strata and Fields. An Investigation into Archaelogical and Genealogical Science Studies. Dordrecht, Kluwer, 1991, p. 186-92. 41. Michel Foucault, Discipline and Punish, op.cit., p.277. 42. Michel Foucault, “Questions of geography” (1976), trad. Colin Gordon, in Colin Gordon (org.), op.cit., p.69. 43. Michel Foucault, Discipline and Punish, op.cit., p.30. 44. Ver David Macey, The Lives of Michel Foucault, op.cit., p.335. 45. Michel Foucault, Discipline and Punish, op.cit., p.15. 46. Michel Foucault, “What is called punishing?” (1984), trad. Robert Hurley, in James D. Faubion (org.), Power, op.cit., p.383. 47. Michel Foucault, The History of Sexuality, vol.i (1976), trad. Robert Hurley. Harmondsworth, Penguin, 1990, p.94-6. 48. Ibid., p.96. 49. Michel Foucault, “The ethic of care for the self as a practice of freedom” (1984), trad. J.D. Gaulthier, in James Bernauer e David Rasmussen (orgs.), The Final Foucault. Cambridge, MA, MIT Press, 1988, p.19. 50. Ibid., p.18. 51. Michel Foucault, The History of Sexuality, op.cit., p.69. 52. Michel Foucault, introdução a Herculine Barbin: Being the Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth-Century French Hermafrodite (1978), trad. Richard McDougalL Nova York, Pantheon Books, 1980, p.vii-x. 53. Michel Foucault, The History of Sexuality, op.cit., p.150-1. 54. Ibid., p.151. 55. Ibid., p.155. 56. Ver Judith Butler, Gender Trouble. Londres, Routledge, 1991. 57. Ver David Halperin, Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography. Oxford, Oxford University Press, 1995, p.42. 58. Michel Foucault, The History of Sexuality, op.cit., p.42-3. 59. Michel Foucault, "Sex, power, and the politics of identity” (1984), in Paul Rabinow (org.), Ethics — Subjectivity and Truth: Essential Works of Foucault 1954-1984, vol.i. Nova York, New Press, 1997, p.163. 60. Michel Foucault, “What is critique?” (1990), trad. Lysa Hochroth, in Sylvere Lotringer e Lysa Hochroth (orgs.), Foucault, The Politics of Truth. Nova York, Semiotext(e), 1997, p.27-9.
128
Como ler Foucault
61. Michel Foucault, Security, Territory, Population — Lectures at the Collège de France, 1977-1978, trad. Graham Burchell. Nova York, Palgrave Macmillan, 2007; e Naissance de la biopolitique, Cours au Collège de France 1978-1979. Paris, Hautes Études, Gallimard/Seuil, 2004. 62. Michel Foucault, "Omnes et singulatim: toward a critique of political reason” (1979), trad. P.E. Dauzat, in James D. Faubion, Power: Essential Works of Foucault 1974-1984, vol.3, op.cit., p.325. 63. Michel Foucault, "So is it importam to think?” (1981), trad. Robert Hurley, in James D. Faubion, Power, op.cit., p.456. 64. Ver por ex. Michel Foucault, "The art of telling the truth” (1984), trad. Alan Sheridan, in Lawrence Kritzman (org.), op.cit., p.86-95. 65. Michel Foucault, The History of Sexuality, vol.2, The Use of Pleasure, op.cit., p.8-9. 66. Ibid., p.29-30. 67. Michel Foucault, “The concern for truth" (1984), trad. Alan Sheridan, in Lawrence Kritzman (org.), op.cit., p.263. 68. Michel Foucault, “On the genealogy of ethics: an OverView of work in progress” (1983), in Paul Rabinow (org.), TheFoucault Reader, op.cit., p.346. 69. Ibid., p.349-50. 70. Ibid., p.343. 71. Michel Foucault, The History of Sexuality, vol.2, The Use of Pleasure, op.cit., p.5. 72. Michel Foucault, “On the genealogy of ethics”, op.cit., p.350. 73. Ibid., p.362.
Cronologia
1926 Paul-Michel Foucault nasce a 15 de outubro numa família abas tada em Poitiers, pequena cidade do interior da França. Seu pai, Paul, é cirurgião e professor de anatomia na escola de medicina local. 1936-40 Faz a pré-escola e o primeiro grau no Lycée Henri-IV, um co légio jesuíta em Poitiers. 1940-45 Transfere-se para o Collège St. Stanislas, também em Poitiers, onde cursa o segundo grau. Interessa-se especialmente por história e obtém excelentes notas em história da literatura francesa e tradução do grego antigo e do latim. Em 1942 começa a estudar filosofia. Por causa da guerra, vários professores são presos pela Gestapo e ele recebe aulas particulares de filosofia. Lê Henri Bergson, Platão, René Descartes, Baruch Spinoza e Immanuel Kant, entre outros. Decide que quer estudar filosofia, e não medicina como desejava seu pai. 1945 Frequenta o Lycée Henri-IV em Paris a fim de se preparar para os exames de admissão à École Normale Supérieure. Seu professor de filosofia é Jean Hyppolite, cujas aulas sobre Hegel deixam no jovem aluno uma forte impressão. 1946 É aceito na École Normale Supérieure em Paris. Faz um curso sobre psicopatologia e visita hospitais psiquiátricos. 1947-48 Assiste às aulas de Maurice Merleau-Ponty na École. O título do curso é “A união do corpo e da alma em Malebranche, Maine de Biran e Bergson". Merleau-Ponty também apresenta a seus alunos as obras de Ferdinand de Saussure. 1948 Recebe a licence de philosophie (permissão para lecionar no curso secundário) da École Normale Supérieure. Assiste às aulas de Louis Althusser sobre Platão. Sofre de problemas mentais e emocionais e tenta o suicídio. É internado no Hôpital Sainte-Anne. 1949 Interessa-se pelo existencialismo e a fenomenologia. Começa a es tudar alemão e a filosofia de Heidegger. Através desse filósofo, tornase especialmente interessado na filosofia de Friedrich Nietzsche. Quando Jean Hyppolite é nomeado para a Sorbonne, Foucault volta 129
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Como ler Foucault
a acompanhar suas aulas. Recebe a licence de psychologie da École Normale Supérieure. 1950 Influenciado por Louis Althusser, ingressa no Partido Comunista. Torna-se cada vez mais crítico em relação à fenomenologia de Hegel e ao existencialismo. 1951 Recebe a agrégation de philosophie (permissão para lecionar na uni versidade) da École Normale Supérieure. Começa a ensinar psicolo gia na École. Jacques Derrida, entre outros, assiste às suas aulas. A exemplo de Althusser, leva seus alunos ao Hôpital Sainte-Anne para visitas educacionais. 1952 Recebe o diplome de psycho-pathologie do Institut de Psychologie em Paris. Começa a traduzir o artigo de Ludwig Binswanger “Traum und Existenz” (“Sonho e existência”) e escreve uma longa introdução ao texto. Lê Sigmund Freud, Jacques Lacan, Melanie Klein e Karl Jaspers em profundidade. 1952-55 Ensina psicologia na Universidade de Lille. Conhece Gilles Deleuze. 1953 Começa a se aprofundar na filosofia de Friedrich Nietzsche. Deixa o Partido Comunista. 1954 Publicação de Doença mental e psicologia. Participa das preleções de Jacques Lacan no Hôpital Sainte-Anne. 1955-58 Muda-se para a Suécia. Leciona cultura e língua francesa na Universidade de Uppsala. Começa a escrever História da loucura. Conhece Roland Barthes, que depois o visita em Uppsala. 1958 Deixa a Suécia e torna-se diretor do Centro Francês na Universi dade de Varsóvia, na Polônia. 1959 Muda-se para a Alemanha e torna-se diretor do Instituto Francês em Hamburgo. 1960 Retorna à França e leciona filosofia e psicologia na Universidade de Clermont-Ferrand. Conhece Daniel Defert, um estudante de 23 anos da École Normale Supérieure que se torna seu companheiro pelo resto da vida. Morre seu pai. 1961 Recebe o doctorat ès lettres (permissão para se tornar catedrático). Sua thèse primaire (tese primária) é apresentada sob o título História da loucura na Idade Clássica. Seu supervisor é Georges Canguilhem. Sua thèse complémentaire (tese complementar) consiste numa intro dução de 128 páginas a uma tradução de Antropologia de um ponto de vista pragmático, de Immanuel Kant. O supervisor é Jean Hyppolite.
Cronologia
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O livro História da loucura é publicado e recebe criticas tanto positivas quanto negativas. 1962 E promovido a professor titular na Universidade de ClermontFerrand. Leciona filosofia e psicologia até 1966. Dá aulas sobre temas que mais tarde comporão seu livro As palavras e as coisas. 1963 Publicação de O nascimento da clinica e de Raymond Roussel. Escreve artigos sobre Maurice Blanchot, Pierre Klossowski e Georges Bataille, entre outros. O nascimento da clínica é bem-recebido por Jacques Lacan, que discute o livro em seus seminários. 1965 Visita o Brasil por um período de dois meses e faz uma série de preleções em São Paulo. 1965-66 Afasta-se cada vez mais dos comunistas e dos marxistas e participa do planejamento das reformas educacionais do governo gaullista. Isso suscita amplos protestos entre estudantes e sindicatos de professores. 1966 Publicação de As palavras e as coisas. O livro se torna um best-seller. Por causa de sua crítica à fenomenologia, envolve-se num debate com Sartre que dura dois anos. 1966-68 Deixa a França e torna-se professor-visitante de filosofia na Univer sidade de Túnis, na Tunísia. Leciona estética, história, psicologia e filoso fia da linguagem, entre outros temas. Leciona também sobre Nietzsche e Descartes. Convida Paul Ricoeur e Jean Hyppolite para fazerem prele ções como visitantes na universidade. Em razão da instabilidade política do país, volta para a França antes do fim do prazo contratual. 1968 Atua como diretor do Departamento de Filosofia na nova Univer sidade de Paris VIII (Vincennes), uma instituição experimental. 1968-73 Após suas experiências com o ativismo político estudantil em Túnis, retorna à política de esquerda. Participa de ativismo radical, comparece a vários protestos de rua e assina petições. E também preso muitas vezes durante as manifestações. Daniel Defert, ligado a círculos maoistas, influencia suas idéias políticas. 1969 É eleito para o Collège de France. Intitula sua cátedra de História dos sistemas de pensamento. Publicação de A arqueologia do saber. 1970-83 Dá suas primeiras aulas nos Estados Unidos e no Japão. Faz visitas regulares aos Estados Unidos e visitas ocasionais ao Brasil, Canadá e Japão. 1971 Encontra-se com Sartre para planejar uma manifestação contra o racismo, após episódio em que um jovem argelino fora morto a tiros por guardas de segurança.
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Como ler Foucault
I97I-73 Funda, com Daniel Defert, o Groupe d’Information sur les Prisons (GIP), uma organização voltada para o estudo e o melho ramento das condições de prisioneiros e prisões na França. Gilles Deleuze, Jean-Paul Sartre e Hélène Cixous, entre outros, ingressam no grupo. O GIP torna-se um movimento nacional, vários protestos são organizados e petições, assinadas. Em 1972 visita a prisão estadual de Attica, em Nova York. Participa também ativamente de campa nhas contra a pena de morte. 1975 Publicação de Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Participa de protestos e assina petições contra as execuções de ativistas políticos pelo regime fascista de Franco na Espanha, e visita Madri para dar uma entrevista coletiva à imprensa sobre o assunto. Organiza ainda um protesto em frente à embaixada da Espanha em Paris. 1976 Publicação de História da sexualidade 1: A vontade de saber. 1978 Trabalha como jornalista e escreve vários artigos e reportagens sobre a revolução iraniana para o jornal italiano Corriere delia Sera. 1981 Com Pierre Bourdieu, escreve uma petição em apoio ao movi mento Solidarnost da Polônia. 1983 Leciona na Universidade da Califórnia em Berkeley e assume o cargo de professor-visitante da instituição em caráter permanente. 1984 Publicação de História da sexualidade 2: O uso dos prazeres e de História da sexualidade 3: O cuidado de si. Seu estado de saúde se agrava e é hospitalizado. Segundo seu amigo Paul Veyne e o parceiro Daniel Defert, Foucault sabia que tinha aids, mas não desejava que seus amigos soubessem. 1984 Morre em Paris a 25 de junho, aos 57 anos. Daniel Defert funda a primeira organização francesa de luta contra a aids, a Aides. 1994 Publicação de Ditos e escritos, a coleção de tudo que Michel Foucault escreveu além de suas monografias.
Sugestões de leituras adicionais
Textos primários Praticamente toda a obra de Foucault encontra-se traduzida para o português, com destaque para: Doença mental e psicologia.
História da loucura.
São Paulo, Perspectiva, [1961] 2004.
O nascimento da clínica.
Raymond Roussel.
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, [1954] 2000.
Rio de Janeiro, Forense Universitária, [1963] 2008.
Rio de Janeiro, Forense Universitária, [1963] 1999.
As palavras e as coisas.
Arqueologia do saber.
São Paulo, Martins Fontes, [1966] 2006.
Rio de Janeiro, Forense Universitária, [1969] 2008.
A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, [1970] 2005. Isto não é um cachimbo.
Vigiar e punir.
São Paulo, Paz e Terra, [1973] 1989.
Rio de Janeiro, Vozes, [1975] 2007.
História da sexualidade,
Microfísica do poder.
3 volumes. São Paulo, Graal, [1976,1984] 2010.
São Paulo, Graal, [1979] 2008.
volumes. Rio de Janeiro, Forense Universitária, [1994, 2001] 2000-2010.
Ditos e escritos, 6
A verdade e as formas jurídicas.
Rio de Janeiro, NAU, [1996] 2002.
Muitos dos cursos no Collège de France encontram-se publicados no Brasil, em versões integrais — Em defesa da sociedade, Os anormais, Hermenêutica do sujeito, O poder psiquiátrico, Segurança, território e po
(São Paulo, Martins Fontes, diversos anos) — e resumida — Resumo dos cursos do Collège de France 1970-1982 (Rio de Janeiro, Zahar, 1997).
pulação, Nascimento da biopolítica
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Como ler Foucault
Biografias
Há três biografias completas de Foucault: Didier Eribon, Michel Foucault (1926-1984). Paris, Flammarion, 1989. [Ed. bras.: Michel Foucault. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.] David Macey, The Lives ofMichel Foucault. Londres, Vintage, 1993. James Miller, The Passion of Michel Foucault. Cambridge, Nova York, Simon & Schuster, 1993.
Coletâneas de artigos sobre Foucault Arnold I. Davidson (org.), Foucault anã His Interlocutors. Chicago, University of Chicago Press, 1997. Gary Gutting (org.), The Cambridge Companion to Foucault. Cambridge, Cambridge University Press, 2a ed. 2005. David Couzens Hoy (org.), Foucault: A Criticai Reader. Oxford, Blackwell, 1986. Jeremy Moss (org.), The Later Foucault: Politics and Philosophy. Londres, Sage, 1998. Barry Smart (org.), Michel Foucault: Criticai Assessments, vols.1-3. Londres, Routledge, 1994. Bernard Waldenfels e François Ewald (orgs.), Spiele der Wahrheit. Michel Foucaults Denken. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991. Coletâneas publicadas no Brasil
Durval Muniz Albuquerque Jr., Alfredo Veiga-Neto e Alípio Souza Filho (orgs.), Cartografias de Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2008. Guilherme Castelo Branco e Luiz F. Baeta Neves (orgs.), Michel Foucault: Da arqueologia do saber à estética da existência. Londrina/Rio de Janeiro, NAU/Cefil, 1998. José Gondra e Walter Kohan (orgs.), Foucault 80 anos. Belo Horizonte, Autêntica, 2006. Izabel F. Passos (org.), Poder, normalização e violência: Incursões foucaultianaspara a atualidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2009. Michael Peters e Tina Besley (orgs.), Por que Foucault?. Porto Alegre, Artmed, 2008. Vera Portocarrero e Guilherme Castelo Branco, Retratos de Foucault. Rio de Janeiro, NAU, 2000.
Sugestões de leituras adicionais
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Margareth Rago, Luiz B.L. Orlandi e Alfredo Veiga-Neto (orgs.), Imagens de Foucault e Deleuze: Ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro, DP& A, 2002. Margareth Rago e Alfredo Veiga-Neto (orgs.), Figuras de Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2a ed. 2008. ___ , Para uma vida não fascista, Belo Horizonte, Autêntica, 2009. Tomaz T. Silva (org.), O sujeito da educação: Estudosfoucaultianos. Petrópolis, Vozes, 2005. Dossiês publicados no Brasil
“Dossiê Foucault”, Educação ir Realidade, vol.29, n.i, 2004. Porto Alegre, UFRGS. “Michel Foucault”, Educação, nov 2009. São Paulo, Segmento. “Governamentalidade e educação”, Educação ir Realidade, vol.34, n.2, 2009. Porto Alegre, UFRGS.
Referências gerais Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. Chicago, University of Chicago Press, 1982. [Ed. bras.: Michel Foucault: uma trajetóriafilosófica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.] Thornas Flynn, Sartre, Foucault, and Historical Reason, vol.2: A Poststructuralist Mapping ofHistory. Chicago, University of Chicago Press, 2005. Beatrice Han, Foucault’s Criticai Project. Between the Transcendental and the Historical. Paio Alto, Stanford University Press, 1998. Todd May, The Philosophy ofFoucault. Stocksfield, Acumen Publishing, 2006. Johanna Oksala, Foucault on Freedom. Cambridge, Cambridge University Press, 2005. John Rajchman, Michel Foucault: The Freedom of Philosophy. Nova York, Columbia University Press, 1985. [Ed. bras.: Foucault: A liberdade da filosofia. Rio de Janeiro, Zahar, 1987.] Referências gerais publicadas no Brasil
Inês L. Araújo, Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba, UFPR, 2008. Cesar Candiotto. Foucault e a critica da verdade. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2010. Edgardo Castro, Vocabulário de Foucault. Belo Horizonte, Autêntica, 2009.
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Como ler Foucault
Márcio A. Fonseca, Michel Foucault e o Direito. São Paulo, Max Limonad, 2002. ___ , Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo, Educ, 2003. Sylvio Gadelha, Biopolítica, govemamentalidade e educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2009. Roberto Machado. Foucault, a ciência e 0 saber. Rio de Janeiro, Zahar, 2006. ___ , Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro, Zahar, 2000. Alfredo Veiga-Neto, Foucault e a educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2006. Sobre arqueologia e genealogia Gary Gutting, Michel Foucault’s Archeology ofScientific Reason. Cambridge, Cambridge University Press, 1989. Martin Kusch, Foucault’s Strata and Fields: An Investigation into Archaological and Genealogical Science Studies. Dordrecht, Kluwer, 1991. Martin Saar, Genealogie ais Kritik, Geschichte und Theorie des Subjekts nach Nietzsche und Foucault. Frankfurt, Campus Verlag, 2007. Rudi Visker, Michel Foucault: Genealogy as Critique. Trad. Chris Turner. Nova York, Verso, 1990.
Sobre govemamentalidade
Andrew Barry, Thomas Osborne e Nicholas Rose (orgs.),
Foucault and
Political Reason. Liberalism, Neo-Liberalism and Rationalities ofGovernment.
Londres, UCL Press, 1996. Graham Bruchell et al. (orgs.), The Foucault Ejfiect: Studies in Govemmentality. With Two Lectures by and One Interview with Michel Foucault. Chicago, University of Chicago Press, 1991. Mitchell Dean, Govemmentality: Power and Rule in Modem Society. Londres, Sage, 1999. Thomas Lemke, Eine Kritik der politischen Vemunft: Foucaults Analyse der modemen Govemementalitãt. Hamburgo, Argument, 1997. Sobre estudos de gênero e da sexualidade I. Diamond e L. Quinby (orgs.), Feminism and Foucault: Reflections on Resistance. Boston, Northeastern University Press, 1988. David M. Halperin. Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography. Oxford, Oxford University Press, 1995.
Sugestões de leituras adicionais
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Susan J. Hekman (org.), Feminist Interpretations ofMichel Foucault. Pennsylvania State University Press, 1996. Lois McNay, Foucault and Feminism: Power, Genderand the Self. Cambridge, Polity Press, 1992. Ladelle McWhorter, Bodies and Pleasure: Foucault and the Politics ofSexual Normalization. Bloomington, Indiana University Press, 1999. Jana Sawicki, Disciplining Foucault: Feminism, Power and the Body. Nova York, Routledge, 1991.
Sobre ética antiga Wolfgang Detel, Foucault and Classical Antiquity: Power, Ethics and Knowledge. Cambridge, Cambridge University Press, 1998. Timothy O’Leary, Foucault and the Art ofEthics. Londres, Continuum, 2002.
Recursos na Web
http://www.michel-foucault.com/ O website da Foucault Resources, uma boa fonte de informação sobre a vida e a obra de Foucault, pu blicações recentes e eventos em curso sobre ele. http://www.siu.edu/~foucault/ O website do Foucault Circle, uma rede mundial de estudiosos e educadores que partilham um interesse pelo pensamento de Foucault. http://www.foucaultsociety.org/ O website da Foucault Society, uma sociedade interdisciplinar para estudiosos, estudantes, ativistas e artistas interessados em estudar e aplicar as idéias de Foucault num contexto contemporâneo.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a Simon Critchley e Bella Shand, não só por instigarem o projeto e me proporcionarem a oportunidade de escre ver este livro, mas também pela ajuda que me deram em todo o pro cesso. Discuti meus planos com vários amigos e colegas, e gostaria de agradecer em particular a Martin Saar e Jay Bernstein pelos conselhos e sugestões. Sou grata ajoan Nordlund, William Heidbreder e Julia Honkasalo pela excelente assistência editorial. Completei o manuscrito quando ministrava um curso sobre Foucault na New School for Social Research em Nova York; quero expressar minha gratidão a meus alunos pelas inspiradoras discussões e por confirmarem, com seu entusiasmo, como é empolgante ler Foucault.
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índice remissivo
aids, ii, 115-6 Aldrovandi, Ulisse, 46 anarquismo, 108-9 Annales, Escola dos, 38-9 antipsiquiatria, 32-3 Arqueologia do saber, A, 10,38 arqueologia, 9-10,17,19-20, 23,33,38-9, 62-3, 69-70, 74-5,121-2 Artaud, Antonin, 33 ativismo gay, 10-1, 97-8 ativismo político, 14-6 autor, 49-53 Bachelard, Gaston, 38 Barbin, Herculine, 92-3 Barthes, Roland, 51 Bataille, Georges, 57 Beauvoir, Simone, 8 Bentham, Jeremy, 72-3 Binswanger, Ludwig, 26 biopoder, 89-90 biopolítica, 105 Blanchot, Maurice, 57 Borges, Jorge Luis, 45-6 Butler, Judith, 96 Canguilhem, Georges, 38 Cervantes, Miguel, 28 ceticismo, 66-7 ciência, 21-2, 63-6, 67-8, 99-100 análise científica, 20 classificação, 21-2, 97-8 conhecimento, 63-7, 99-100,103-4 consciência, 37-8 discurso, 38-9, 52-3, 56-7, 75-6, 89-90 especialista, 20-1, 89-90, 93-4, 97-8 teorias, 22-3, 46, 56, 93-4, ciências humanas, 21, 66-7
Comte, Auguste, 36 confinamento, 27-30 confissão, 87-8 conhecimento, 42, 43-4, 57, 66-8, 73-5, 79, 107-8,116-7 científico, 19-20, 37-8, 63-4, 74-5, 94-5, 123 condições do, 39-40, 42-3 empírico, 37-8, 63-4 faculdades humanas de, 21-2 objetos de, 21-2, 66-7 psiquiátrico, 29-30 consciência, 14-5, 28, 29-30 construtivismo social, 18-20, 23,31-2 contingência, 9-10,16-7, 31, 52-3, 70,
77,113 contradiscurso, 56 corpo, 67-8, 75, 93-5,105 criminologia, 63-7, 75, 97 cristianismo, 61-2,118,120 crítica, 9-10, 21-2, 61-2, 68-9, 77-80,
107-13
Damiens, Robert, 68-9, 78 Darwin, Charles, 37, 41 Deleuze, Gilles, 8,115 delinquência, 10-1, 21-3, 68-70 Derrida, Jacques, 8-9 Descartes, René, 36 descontinuidade, 39-41 discurso, 50-2, 56, 87, 96, 98-9 Doença mental e psicologia, 26 doença mental, 10-1, 19, 23, 26-7, 28-30, 88-9 episteme, 39-45 nível epistemológico do conheci mento, 37
139
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epistemologia, histórica, 38-9 era vitoriana, 87 Escola de Frankfurt, no, 112 escrita de vanguarda, 50-1, 57-8 estética da existência, 122-3 estruturalismo, 36-8 estudos gays e lésbicos, 97-8 ética, 117-24 existencialismo, 8-9, 21-2, 26-7 experiência, 32, 43-5, 47, 68-9 clássica, 28-9 condições históricas da, 22 cultural, 26-7, 30 da sexualidade, 88-9,121 livros, 33-4 na literatura, 51-2, 56-8 na primeira pessoa, 22-3, 45 pessoal, 11, 77 subjetiva, 22-3,39-40 vivida, 26 fenomenologia, 21-2, 26, 42,43-4, 57-8 filosofia, como prática crítica, 12 da ciência, 64, 68 do sujeito, 21-2, 42, 43-4
genealogia, 9-10,16-7,18, 23, 60-3, 6670, 72-5, 77-8, 103-4, iio-i, 121 gênero, 10, 66, 67-8, 93-6, 122-3 G1P (Groupe d’lnformation sur les Prisons), 14, 77 governamentalidade, 104-9 governamentalização, 108 governo, 104-9 Grécia Antiga, 116-23
Habermas, Jürgen, no, m Halperin, David, 97 Hegel, G.W.F., 112 Heidegger, Martin, 22 hermafroditismo, 92-4 História da loucura, 10,17, 18, 26-34, 40, 69
Como ler Foucault
História da sexualidade, A, vol. I, II, III, 10,17, 18, 82-90, 96-7,103, 116-9 história, 17-8, 27-8, 31-2, 42-4, 53-4, 67-8,117-8 biográfica, 38-9 crítica, 60-2, 69-70 da ciência, 31, 36-40, 51-2, 62-3 da psicologia, 25-6,31-2 da psiquiatria, 24-6, 29 do presente, 9-10,17-8, 27, 47 historicidade, 17-8 historiografia, 8, 17, 32-3, 36, 38-9, 62-3, 69-70 Hõlderlin, Friedrich, 33 homofobia, 22-3, 98-9 homônimos, 54 homossexualidade, 19-23, 97-8,118 humano(a), 27-8,31-2, 66-7 ser, 8-9,17-8, 20-1, 42-3, 66-7, 88-9 existência, 8-9,16-7, 27-8,30, 42 finitude, 28 natureza, 8-9 maneira de experimentar o mun do, 22, 42-3 Husserl, Edmund, 22 Idade Clássica, 28-9, 40-3 Idade Média, 52, 93 identidade, 23, 52-3, 74-5, 87, 89-90, 93-6, 98-100 Iluminismo, 29,111-3 Império Romano, 116 inconsciente, 37-8 insanidade, 18, 30, 68 internet, 53
Kant, Immanuel, 22,111-3 Kristeva, Julia, 8, 51
Lamarck, Jean-Baptiste, 41 liberdade, 9-10, 50-1, 57-8,112-3,124 espaços de, 14-5,16,124 linguagem, 44-5, 51-2, 78 literária, 32-4, 54-8 linguística, 36-7
índice remissivo
literatura, 32-4,36-7, 50-4 loucura, 10-1, 26-34 na literatura, 56-7 luta política, 15-6, 23, 77 manicômio/asilo psiquiátrico, 28-9 medicalização, 19-20, 31-2, 89-90 Merleau-Ponty, Maurice, 8, 22 modernidade, 9-10, 40 moralidade, 28-9, 30, 61-2, 65-6, 69-70, 116-20 morte de Deus, 42 morte do homem, 42-4
Nascimento da clínica, 0,10, 38 Nau dos Insensatos, 27 Nerval, Gérard, 33 Nietzsche, Friedrich, 33, 42, 60-2, 68, 69,112 nível arqueológico do conhecimento,
37, 39-40 normalização, 74-6, 88-9, 94-5,123-4
objetificação, 20-1, 75-6 objetos de análise científica, 20, 31-2 Palavras e as coisas, As, 10, 36-47, 56 Panóptico, 72-5, 84 duplo empírico-transcendental, 43 Pinei, Philippe, 29, 30 poder, 82-90 científico, 19-20, 21, 29-30, 50-1, 56-7, 66-7 como produtivo, 10-1, 89-90 concepções liberais de, 83-4 concepções marxistas de, 83-4 de si, 20-1,120-4, disciplinar, 72-6,79, 83-4,106-8,112-3 discursivo, 19-20, 62-3 do poder, 10-1, 63,73-5, 84-5,106, 108-9,121-2 efeitos do, 62-3, 89-90 em contraposição a dominação, 84-6 governamental, 103-9 histórico, 20, 21-2
mecanismos de, 63-4, 88-9 microfisica do, 84,107 pastoral, 105,108-9 poder/saber, 62-8,74-5, 95-6,121 político, 104-9 práticas, 9-10,17, 21-2, 23, 43, 62-3, 79, 89-90,111-2 relações de, 21-3, 62-3,74-5, 85-6, 98-9,106,108-9 social, 19, 20-1,23,43-4,65-6 população, 89-90,103-5 pós-estruturalismo, 9, 44-5 prisão, 10-1,14-7, 62-4, 73-80, 84-5 psicanálise, 122-3 psicologia, 25-6,122-3 psiquiatria, 19-20, 25-6,31-3
Raulet, Gérard, 14 Raymond Roussel, 53-5 Renascimento, 27, 31, 36, 40, 42, 45-6 resistência, 85-6,107-9, ni, 123-4 Roussel, Raymond, 54-6 Sade, marquês de, 36 Sartre, Jean-Paul, 8, 22, 50, 55, 57 sexo, 92-6 sexualidade, 10-1, 66-7, 86-9, 93-ioo, 104-5,116-9,122-3 Shakespeare, William, 28,51-2 subjetivação, 74-6, 80 sujeito, 9, 20-3, 26-7, 38-9, 43, 51-3, 55-8, 74-5, 80, 84-5,120-1, 123-4
teoria feminista, 95-6 teoria queer, 97-100 Tuke, Samuel, 29, 30 universais antropológicos, 66-8 verdade, 20-1, 61-2, 63-6, 70, 75-6, 87, 93-4, 95-6,107-8, 122-3 Veyne, Paul, 42 Vigiar e punir, 10,17, 63, 68-9, 75-8° virada linguística, 44, 56
Weber, Max, 112