Cinema de garagem: um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI

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CINEMA DE GARAGEM um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI

Dellani Lima

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Marcelo Ikeda

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INTRODUÇÃO

É possível afirmar que 2010 foi um ano paradigmático na renovação de um cinema brasileiro. Podemos escolher dois acontecimentoschave que simbolizaram esse momento: o primeiro, logo no início do ano, e o segundo, já em seu final: a premiação de Estrada Para Ythaca e O Céu Sobre os Ombros nos Festivais de Tiradentes e de Brasília, respectivamente. Essa premiação – mais do que meramente legitimar o valor ou a importância dos filmes – funcionou para dar visibilidade a uma produção que agora recebe destaque mas que na verdade possui uma trajetória muito anterior aos prêmios, que ainda permanece subterrânea, desconhecida. Se os festivais e a crítica brasileiros começam a reconhecer o amadurecimento dessa cena, é importante destacar que esse movimento de renovação do cinema brasileiro não está começando agora, mas que na verdade esses são os frutos de um processo que dura pelo menos dez anos. Esta publicação, carinhosamente intitulada de CINEMA DE GARAGEM, pretende apresentar um primeiro inventário do perfil dessa nova cena. Evidentemente, não temos a pretensão de “dar conta” da miríade de realizadores, tendências, características e filmes que surgiram nesse período, mas apenas apresentar exemplos da vitalidade dessa produção. As lacunas certamente são sentidas, e esperamos que sejam preenchidas por outras e outras e mais outras publicações. Os autores e filmes escolhidos não são necessariamente os

“melhores” ou “mais significativos” do período. Esta publicação é acima de tudo um trabalho perecível, emergencial, que busca radiografar, ainda que de forma incompleta, um movimento em formação, mas cujo amadurecimento é visível. Por isso, optamos por uma coletânea de textos, em que mostramos, por outro lado, que o nosso próprio trabalho no reconhecimento da vitalidade dessa cena também não vem de agora, na “carona dos modismos”: os textos aqui escolhidos foram escritos entre 2001 e 2010, no calor da descoberta e do acompanhamento desses primeiros passos. Dessa forma, as transformações no escopo dos próprios textos acompanham as transformações dessa produção vital, em ebulição. Procuramos apontar para essa proposta de renovação nos quatro cantos do país, citando filmes de Pernambuco (Confessionário), do Paraná (Outubro), do Rio Grande do Sul (Morro do Céu), entre outros estados. No entanto, escolhemos como foco os estados de Minas Gerais e Ceará, dada a expressividade de sua produção local. Ainda, foi nesses estados em que surgiu uma característica marcante: a organização de coletivos que se estruturam através de redes, como a Teia, em Belo Horizonte, e o Alumbramento, em Fortaleza. Apesar do destaque conferido às obras desses coletivos, é importante frisar que, em paralelo a eles, existe nesses locais um outro conjunto de realizadores e obras exemplares, como, por exemplo, as de Carlosmagno Rodrigues, Marcellvs L., Roberto Bellini, Ricardo Alves Jr., além da nova geração de A Produtora, em Minas Gerais, ou as de Salomão Santana, Hugo Pierot e Petrus Cariry, no Ceará. Em outros estados, houve lacunas consideráveis, como a recente produção de Recife (Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro, Tião, Leonardo Lacca, etc.) ou exemplos de estados como a Paraíba (Ana Bárbara, Bruno de Sales), Bahia (Cláudio Marques e Marília Hughes)

ou mesmo Brasília (os esquecidos filmes de R.C. Ballerini) e Rio de Janeiro (com coletivos como a Fora do Eixo ou a Raça Filmes). As lacunas são muitas, mas procuraram ser preenchidas com uma extensiva lista de obras realizadas nos últimos dez anos. Esta publicação é, portanto, nada mais que um primeiro passo, que confirma nossa vocação – na curadoria e na crítica – de um olhar radical, que vem apontando há um longo tempo, de forma sistemática, para as sementes de um movimento que, cada vez mais intensamente, vem desabrochando, em toda a sua difusa e irradiante beleza.

Dellani Lima e Marcelo Ikeda

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DELLANI LIMA

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Natural de Campina Grande, Paraíba. Formado em Dramaturgia e Realização em Cinema e TV pelo Instituto Dragão do Mar de Arte e Indústria Audiovisual do Ceará. Desde 2000, vive e trabalha em Belo Horizonte, onde realizou diversos projetos, inclusive ligados à música. Suas obras já foram incluídas em importantes mostras e festivais no Brasil e no exterior. Performer e fundador dos projetos de intervenção musical Em Dias de Surto (2004), E Disse que Era Economista (2007), Madame Rrose Selavy (2009) e Splishjam (2009). Curador do Programa “Horizontes Transversais” na Mostra Vídeo do Itaú Cultural, Belo Horizonte, MG e Belém, PA, 2007. Membro da Comissão de Seleção do III DOCTV, Belo Horizonte, MG, 2006. Curador convidado da Mostra Indie, Belo Horizonte e Júri do arte.mov 2010.

A PUBLICAÇÃO

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 CINEMA DE GARAGEM é um mapeamento da produção independente audiovisual brasileira da última década (2001-010). Imagens, sons e intervenções produzidos após os anúncios do fim da história e da arte. O registro de uma geração num período de rápidas e profundas transformações sociais, políticas e tecnológicas no Brasil e no mundo. Ainda que esta geração tenha importância significativa para a arte brasileira, sua história é difícil de esboçar, por causa de sua transitoriedade em variadas áreas da arte e pelo crescimento constante de sua produção. Não quer dizer que não seja possível configurar um cenário relevante no contexto da produção audiovisual brasileira do início do século XXI. Esta publicação busca as conexões para compreender esta geração, que apresenta conceitos e uma série de pesquisas, geralmente bastante distintas, que na maioria das vezes se opõem às práticas comerciais do mainstream. O mapeamento não pretende abranger todos os artistas, coletivos, obras ou ações do período, mesmo que aborde diversas manifestações do audiovisual. A intenção é abrir novos caminhos, novas indagações.

18 O CONTEXTO

Manifestações antiglobalização acontecem por todo o mundo. O temor do bug do milênio motiva uma corrida na renovação dos recursos de informática. O projeto Creative Commons é lançado oficialmente em 2001. Atentados com aviões destroem o World Trade Center e parte do Pentágono. É o início da guerra do Afeganistão e o fim do governo talibã. A China atinge um enorme crescimento econômico. O Euro é a moeda oficial da Europa a partir de 2002. O Brasil torna-se pentacampeão mundial de futebol. Chegam ao poder na América Latina políticos de esquerda como Hugo Chávez, Luiz Inácio Lula da Silva e Evo Morales. O formato televisivo reality show se transforma em um fenômeno notável de audiência. O programa Napster inicia a longa batalha jurídica entre as redes de compartilhamento de música na Internet e a indústria fonográfica. Amplia-se a utilização dos serviços de mensagens instantâneas, como o MSN. O disquete é substituído por CD, DVD, pen-drive e cartões de memória. O software livre é amplamente difundido. A indústria dos jogos eletrônicos cresce extraordinariamente. A banda larga tornase cada vez mais acessível. O Bluetooth amplia o conceito de rede sem fio. É aplicada a tecnologia de telefonia via Internet (VOIP). A Apple lança o iPod, o iPhone e o iPad. O Blu-ray substitui

o DVD, que tornou o VHS obsoleto. Mp3 players, mp4 players, celular, laptop, equipamentos com GPS (sistema de posicionamento global) e câmera digital se tornam populares. É possível captar imagens com altíssima qualidade através do vídeo de alta definição (HD). Cria-se o termo Web 2.0. Crescem os sites de compartilhamento de arquivos, as redes sociais e os softwares wiki: Youtube, MySpace, Orkut, Facebook, Wikipédia, Twitter, blogues e fóruns de discussão. A imprensa disponibiliza o material impresso em formato on-line. Populariza-se o conceito de compartilhamento de vídeos, especialmente através do site YouTube. São lançados os browsers Mozilla Firefox e Google Chrome. Em 2007 ocorre a famosa greve de roteiristas nos EUA. A TV digital é implantada no Brasil. A crise econômica de 2008-2009 coloca em risco a economia mundial e vários países entram em recessão. O Iraque é invadido, Saddam Hussein é deposto, condenado à morte e executado. A Influenza A H1N1 (conhecida como Gripe Suína) atinge a população de inúmeros países. Barack Obama é eleito o primeiro presidente negro da história dos EUA. Entra em funcionamento o Grande Colisor de Hádrons, na fronteira franco-suíça. É comum ouvir rádio e assistir televisão pela internet. Dilma Rousseff é eleita a primeira mulher presidente do Brasil.

20 A CENA

Uma das principais características deste cenário é a utilização de muitas técnicas - de suas múltiplas possibilidades e de suas experiências com a imagem e o som - através dos softwares e dos equipamentos tecnológicos aparentemente mais acessíveis, funcionais e, principalmente, econômicos. Não apenas para a produção – cada vez mais descomplicada e múltipla –, mas, principalmente, para a divulgação, a exibição e a construção de redes de contatos. Técnicas, softwares, hardwares e bastante troca de informação. A popularização dos computadores pessoais, das câmeras digitais e da Internet, possibilitaram finalmente uma realidade para a arte e para a contracultura, consolidando os modos de produção DIY (do inglês do it yourself: faça-você-mesmo) e homemade (feito em casa). Uma arte que produz encontros, que cria redes sociais e produtivas em todas as suas instâncias. Principalmente pelo imediatismo de se produzir, transmitir e adquirir mensagens, informações e novos paradigmas, graças à acessibilidade prática e econômica dos novos meios tecnológicos.

Mesmo que haja indícios, é inútil buscarmos a velha e esnobe necessidade da arte de experimentar ou falar de tudo apenas com o desejo de criar novidades e de se colocar à frente dos avanços políticos, sociais e tecnológicos. Diante da saturação dos “ismos” e radicalismos furtivos, o artista contemporâneo é consciente da importância da imagem e da informação no mundo atualmente. A resposta dos artistas será obviamente a crítica da massificação e da glorificação desta imagem e desta informação. Reflexões em torno da produção de novos significados, formas e sentidos. A intenção de reinventar as coisas, os sentimentos, o mundo e a si mesmo. Tradução, revisão e subversão. Depoimentos pessoais, coletivos, experimentações políticas, antropológicas, poéticas, viscerais, com o desejo de afetar o espectador de forma reflexiva e, ou, sensorial. Para isso são empregados diferentes dispositivos para se produzir imagens, como a 16mm, a Super-8mm, o vídeo, a webcam, o scanner e as câmeras de celulares. Assim há o hibridismo, tanto na forma - com a mistura de técnicas como a fotografia, a animação e o vídeo - quanto no conceito, com a influência das vanguardas artísticas, da contracultura e da cultura de massa, conteúdos amplamente disseminados na Internet. A experiência imagética não pertence mais ao campo específico das artes ou da comunicação. O meio-imagem atinge todas as esferas sociais, econômicas e científicas. As mensagens são múltiplas como os seus campos de pesquisa e experimentação: câmeras de vigilância, minidv, webcam, micro-câmera, dispositivos de celular, scanners, programação visual, imagens de arquivo e códigos open source, entre outros mecanismos de captação e de reinvenção. O próprio registro caseiro tornou-se produto

consumido em grande escala por públicos diversos e sem perfis preestabelecidos. O cotidiano é cooptado pela comunicação de massa em mídia expansiva, especificamente pela Internet. Grupos de ativistas, cientistas e filósofos utilizam a ferramenta audiovisual em manifestos, denúncias e experimentações: registros, documentos, simulações. Narrativas poéticas e experimentais são construídas com amigos e familiares, temas do cotidiano, questões caseiras. O enquadramento de situações da intimidade. As memórias são resgatadas, histórias a partir de imagens e lembranças perdidas. Além disso, inúmeras ações são realizadas por artistas guerrilheiros, documentaristas engajados e ativistas de mídias alternativas. Já outras obras retratam fantasias, desejos ocultos e o terror. Cenas de sangue, sexo e violência extravasam o imaginário caótico do mundo contemporâneo e criticam a saturação e a banalização das tragédias humanas pelo mass media e a espetacularização da desgraça. A baixa resolução dos recursos de produção da imagem e do som é assumida e representa para alguns artistas uma maneira de subverter o fetiche do mainstream por uma alta definição da imagem. Subversão esta que também já foi incorporada. Os artistas desta geração têm uma grande capacidade de observação e são bem informados a respeito de tudo. Algumas ações são bem simples, outras mais complexas. O olhar pretensiosamente impreciso é direcionado pela emoção, pela tensão afetiva, pela coreografia realizada pelo autor e pelo acontecimento fílmico. Captar com vivência, com a incorporação da câmera como extensão do próprio corpo. O autor presente e imagens com a potencialidade dessa presença.

São incorporadas com inteligência, todas as irregularidades rejeitadas pelo mainstream, imagens de diferentes origens, indícios e signos abandonados, paisagens imersas, enquadramentos impenetráveis, narrativas sob construção. Narrativas e crônicas com o que se tem com o que se pode. Experiências emocionais com o movimento, o ritmo, a luz e a composição, aproveitando o máximo de tudo para o êxito do conceito de cada obra. Muitos artistas experimentam diversos formatos da película e do vídeo e mesclam as possibilidades de texturas para alcançar reminiscências imagéticas e sensoriais. Realizam interferências por cima de imagens preexistentes, sejam de filmes clássicos, blockbusters, clipes musicais, noticiários de TV ou propagandas publicitárias. Aproveitam sobras de película ou negativos vencidos, câmeras cinematográficas abandonadas, restauradas, emprestadas e costuram suas narrativas ou propostas estéticas nessas superfícies. Usam câmeras digitais de baixa resolução para a construção de narrativas ainda mais autorais e anárquicas. A importância da arte para provocar uma transformação íntima, social e estética. Há ainda as reflexões sobre o pessimismo, a desilusão, o tédio e a melancolia, formas de expressar e tentativas de superar a vida solitária do homem na atualidade. Um desejo comum da transcendência do pensamento através do autoconhecimento. O uso da intuição e a sensação de intimidade com o meio para expressar uma idéia. Criar imagens que buscam afetar, experimentar linguagens coerentes com o conceito, alterar a percepção do olhar e exigir o envolvimento do espectador.

Explorar as inúmeras maneiras de fazer, de participar, de reagir aos absurdos do mainstream e do mass media. Encontrar as possibilidades pessoais ou coletivas de expressão, seja por meio de narrativas ou experimentações íntimas, formais, bizarras, egoístas, grotescas, sofisticadas, generosas, debochadas ou intrigantes. Expor qualquer idéia por qualquer meio à disposição da liberdade do artista. Um meio que possibilite obras afetivamente mais intensas, mais expressivas, mais visuais, nãonarrativas ou até mesmo de mau gosto. Uma arte despojada, antropofágica, mínima, iconoclasta, livre, niilista, ingênua, péssima, muitas vezes emocional e poética. Falar de si para falar dos outros, falar dos outros para falar de si, ou simplesmente não falar. A caracterização da década encerra-se com a consolidação das pesquisas que estavam em andamento, como as experiências com os novos recursos tecnológicos, sua incorporação e seus impactos. Paradigmas foram quebrados: o artista tem mais liberdade na produção e na distribuição; grandes espaços apóiam obras significativas e abrem suas sessões; a crítica desperta a curiosidade para a geração e suas ações inventivas. A questão do porvir se torna a autosuficiência da produção, sem a utilização dos recursos públicos ou dos próprios artistas – como viver somente de sua arte? Artistas começaram a transitar em projetos de outros artistas e de outros estados, em relações e processos de co-autoria e de co-produção. Fora o eixo RioSão Paulo, produções do Ceará, de Minas Gerais, da Paraíba, de Pernambuco e de Porto Alegre se destacaram na crítica e em importantes espaços no Brasil e no exterior.

A Internet estimulou a criação de sites e a difusão de blogues, nos quais uma jovem crítica amadureceu (Cinecasulofilia, Cineclick, Cinemascópio, Cinequanon, Cinética, Claquete, Coisa de Cinema, Contracampo, Curta o Curta, Filmes Polvo e Paisà). As tensões entre crítica, curadoria e artistas se acentuaram ainda mais nos últimos tempos e evidenciaram-se nos riscos, nas opiniões e nas escolhas para se pensar os novos paradigmas. Critérios de intenção, desenvolvimento da pesquisa, coerência da experimentação, alcance e comunicação dos signos. Para uma nova produção, uma nova crítica. Esta dinâmica dá fôlego e novas perspectivas para a produção contemporânea brasileira. Nessa diversidade há espaço para tudo. Pós-tudo. Posso tudo.

C CURTAS/MÉDIAS: ..., 2007, RJ, Juliano Gomes & Léo Bittencourt; 1976, 2009, MG, Carlosmagno Rodrigues & Alonso Pafyeze; 1986, 2004, RJ, Guilherme Whitaker; 4 Roteiros Para Perrier, 2007, MG, Pedro Bastos; 98001075056, 2009, SP, Felipe Barros; A Amiga Americana, 2009, CE, Ivo Lopes Araújo & Ricardo Pretti; A Curva, 2008, CE, Salomão Santana; A Espera, 2007, RJ, Fernanda Teixeira; A Idade do Homem, 2004, MG, Afonso Nunes; A Janela (Ou Vesúvio), 2009, MG, João Toledo & Leonardo Amaral; A Montanha Mágica, 2009, CE, Petrus Cariry; A Mulher Biônica, 2008, CE, Armando Praça; A Última Fábrica, 2005, RJ, Felipe Nepomuceno; A Velha e o Mar, 2005, CE, Petrus Cariry; A Verdade às Vezes Mancha, 2000, RS, André Arieta; A Verdadeira Historia de Tião Coió, 2003, MG, André Amparo; Abatedouro, 2007, MG, Vinícius Cabral; Abismo, 2005, RJ, Marcelo Ikeda; Abscessos, Aderências e Perfurações (Nunca Me Senti Tão Só), 2008, MG, Davi Fuzari & Rafael Schumacher; Ação e Dispersão, 2002, RJ, Cezar Migliorin; Acossada, 2006, RJ, Karen Akerman; Alma Nua, 2003, MG, Helvécio Marins Jr.; Alma, 2005, RJ, Rodrigo Modenesi; Almas Passantes, 2008, RJ, Cléber Eduardo & Ilana Feldman; Alto Astral, 2009, CE, Hugo Pierot & Glaucia Barbosa; Alvorecer, 2002, RJ, Marcelo Ikeda; América Ctrl+S, 2000, MG, Carlosmagno Rodrigues & Dellani Lima; Amor à Flor de Lá, 2006, MG, Gabriel Sanna; Amor ou Um Medo Muito Grande, 2002, RJ, Rodrigo Modenesi; Amor Só de Mãe, 2002, SP, Dennison Ramalho; Análise Combinatória, 2006, PE, TV Primavera; Antecipato Visione, 2004, MG, Eduardo Zunza; Antes do Sangue, 2007, CE, Thais Dahas; Anticristo (Um Vídeo Sobre a Minha Morte), 2005, MG, Carlosmagno Rodrigues & Dellani Lima; Aos Pedaços, 2009, PB/PE, Taciano Valério; Areia, 2008, SP, Caetano Gotardo; Artifícios do Olhar, 2005, MG, Joacélio Batista & Pablo Lobato; As Vilas Volantes, 2005, CE, Alexandre Veras; As Corujas, 2009, CE, Fred Benevides; As Justiceiras de Capivari, 2002, RJ, Felipe Nepomuceno; Às Vezes É Mais Importante

C Lavar a Pia do Que a Louça ou Simplesmente Sabiaguaba, 2006, CE, Irmãos Pretti; Até Que Chegue o Fresco do Dia, 2008, MG, Simone Cortezão; Através, MG, 2002, Sérgio Borges e Eva Queiroz; Autoconhecimento, 2004, RJ, Christian Caselli; Bainema, 2003, MG, Marília Rocha; Balsa, 2009, PE, Marcelo Pedroso; Banhos, 2004, MG, Louise Ganz; Bolívia te Extraño, 2009, MG, Dellani Lima & Joacélio Batista; Bomba!, 2008, SP, Lara Lima, Marcelo Lima & Renato Coelho; Brasiliapé, 2003, DF, R.C. Ballerini; Brutalmente as Superfícies, 2006, RJ, Cezar Migliorin; Cabaceiras, 2007, PB, Ana Bárbara Ramos; Cadernos de Viagem (Downloading Memories), 2009, MG, Alex Lindolfo; Cães da Vizinhança, 2009, MG, Gabriel Sanna; Carro, 2005, RJ, André Scucato & Cristina Pinheiro; Carta de Um Jovem Suicida, 2008, RJ, Marcelo Ikeda; Carvão Promíscuo, 2006, RJ, Cristiana Miranda; Casa da Vovó, 2008, CE, Vitor de Melo; Cemitério de Elefantes, 2001, SP, Rodrigo Lorenzetti; Cerrar a Porta, 2000, MG, Pablo Lobato; Chapa, 2009, SP, Thiago Ricarte; Ciranda, 2002, MG, Ana Siqueira & Leandro HBL; Confessionário, 2009, PE, Leonardo Sette; Contraponto e Fuga, 2001, DF, R.C. Ballerini; Convite Para Jantar Com o Camarada Stalin, 2007, MG, Ricardo Alves Júnior; Corpo, 2003, MG, Bruno Pacheco; Crisálidas, 2006, MG, Fernando Mendes; Cruzamento, 2007, CE, Pedro Diógenes & Guto Parente; Da Janela do Meu Quarto, 2004, MG, Cao Guimarães; Décimo Segundo, 2007, PE, Leonardo Lacca; Deleuze Enquanto Modelo Vivo, MG, 2002, Marcellvs L.; Demônios, 2004, SP, Christian Saghaard; Derivado da Minha Beleza, 2005, MG, Fernanda Gomes & Luciana Barros; Des Fantastik Sucric, 2001, SP, Claudio Nascimento & Victor-Hugo Borges; Desarmado, 2003, RJ, Walter Fernandes Jr; Deu no Jornal, 2005, RJ, Yanko del Pino; Deus é Pai, 1999, RJ, Allan Sieber; Dez Pro Inferno, 2004, RJ, Nilson Primitivo; Di Verdade, 2008, RS, Maurício Saldanha; Divergrandpa, 2008, MG, Igor Amin; Dois Castiçais de Prata Foram a Minha Vida, 2008, MG, Alex Lindolfo; É Hoje, 2006, RJ, Marcelo

C Ikeda; Eisenstein, 2006, PE, Leonardo Lacca, Raul Luna & Tião; El Chateau, 2002, SP, Claudio Nascimento & Victor-Hugo Borges; El Dia Que Me Quieras, 2009, MG, Ana Moravi & Dellani Lima; Elétrico Jardim da Escuridão, 2009, MG, Mariana Campos; Em Setembro, 2010, PR, Arthur Tuoto; Enquadrado, 2007, Finlândia/Brasil, Gisela Motta & Leandro Lima; Enquadros, 2004, RJ, Ivo Lopes Araújo;Ensaio de Cinema, 2009, RJ, Alan Ribeiro; Entre o Terreiro e a Cozinha, 2007, MG, Joacélio Batista; Esparadrapo, 2001, RJ, Walter Fernandes Jr; Espuma e Osso, 2007, CE, Guto Parente & Ticiano Monteiro; Estibordo, 2006, PB, Mariah Benaglia & Marcelo Coutinho; Eu Te Amo, 2006, RJ, Marcelo Ikeda; Faço de Mim o Que Quero, 2009, PE, Sergio Oliveira & Petronio Lorena; Fantasmas, 2009, MG, André Novais Oliveira; Felicidades Palestina!, 2004, MG, Alexandre Milagres; Fiat Lux, 2006, RS, Nelton Pellenz; Filme de Foda, 2006, SP, Wagner Morales; Fim, 2005, SP, Bruno Mitih; Flash Happy Society, 2009, CE, Guto Parente; Flores em Vida, 2009, SP, Rodrigo T. Marques & Eduardo Consonni; Força, 2005, RJ, André Scucato & Cristina Pinheiro; Fragmentos de Uma Vida, 2002, SC, Peter Baiestorf; Fräulein Gertie, 2005, RS, Tomás Creus & Lavinia Chianello; Gabinete das Figuras Variadas, 2006, MG, Fábio Carvalho; Gotículas Fogos de Artifício, 2007, MG, Daniel Carneiro; Hablar de Sueños, 2003, Cuba/Brasil, Joana Oliveira; Hotel Paradise, 2004, MG, Sara Ramo; I See You, 2008, SP, Arthur Tuoto; Igreja Revolucionária dos Corações Amargurados, 2006, MG, Carlosmagno Rodrigues; Imagem Pura, 2006, RJ, Thiago Arruda; Império das Pelúcias, 2005, RJ, Nilson Primitivo; Imprescindíveis, 2003, MG, Carlosmagno Rodrigues; Início do Fim, 2005, RS, Gustavo Spolidoro; Instruções Para Suicídio Doméstico, 2003, ES, Fabrício Coradello; Iracema Plaza Hotel, 2006, CE, Mariana Smith; Ismar, 2007, RJ, Gustavo Beck; Jarro de Peixes, 2008, CE, Salomão Santana; Kalashnikov, 2006, MG, Carlosmagno Rodrigues & Chico de Paula; KO, 2008, MG, Dellani Lima;

C Landscape Theory, 2005, EUA/BR, Roberto Bellini; Leito Suntuoso da Revolução, 2004, MG, Louise Ganz & Dellani Lima; Licor de Arbusto, 2001, RJ, Rafael Prata Duarte; Longa Vida ao Cinema Cearense, 2008, CE, Irmãos Pretti; Mais Velho, 2001, RJ, Nilson Primitivo; man.canoe.ocean, MG, 2004, Marcellvs L.; man.road.river, MG, 2004, Marcellvs L.; Marte, 2003, MG, Sávio Leite & Clécius Rodrigues; Material Bruto, 2006, MG, Ricardo Alves Jr; Matryoshka, 2009, CE, Salomão Santana; Mestre Humberto, 2005, RJ, Rodrigo Savastano; Meu Nome É Paulo Leminski, 2004, RJ, Cezar Migliorin; Minha Tia, Meu Primo, 2008, RJ, Douglas Soares; Miúdos, 2008, CE, Pedro Diógenes; Moça e Chita Não Tem Feia e Nem Bonita, 2007, MG, Alex Lindolfo; Mohammed Gameover (In Memoriam), 2008, MG, Nem Só O Que Anda É Móvel; Moradores do 304, 2007, MG, Leonardo Cata Preta; Moysés, Dentista, 2006, MG, Igor Amin e Rodrigo Pazzini; Mulher/Bomba, 2009, MG, Igor Amin; Muro, 2008, PE, Tião; Muzuane Emakuwa, 2007, MG, Bruno Ribeiro Profeta; Na Idade da Imagem ou Projeção nas Cavernas, 2002, RJ, Bruno Safadi; Nacos de Pele, 2008, Leonardo Barcelos & Hélio Lauar; Namorada Tristeza, 2001, RJ, Felipe Rodrigues; Nanofania, 2003, MG, Cao Guimarães; Nego Fugido, 2009, BA, Cláudio Marques & Marilia Hughes; Nem Marcha Nem Chouta, 2008, MG, Helvécio Marins Jr.; Ninguém Deve Morrer, SC, 2009 Petter Baiestorf; No Final do Mundo, 2009, MG, Gabriel Martins; No Infinito Oceano Da Multidão, 2007, MG, Ana Moravi; Nº27, 2008, PE, Marcelo Lordello; Noite de Sexta, Manhã de Sábado, 2006, PE, Kleber Mendonça Filho; Nosferatum, 2003, SC, Gurcius Gewdner; Nozes, 2004, RJ, Guiwhi Santos; O Amor e o Desejo Podem Ter Excesso, 2007, MG, Dellani Lima & Rodrigo Lacerda Jr.; O Arroz Nunca Acaba, 2005, RJ, Marão; O Cão Sedento, 2005, PB, Bruno de Sales; O Chapéu do Meu Avô, 2004, SP, Julia Zakia; O Exu do Amor, 2001, RJ, Nilson Primitivo; O Fim das Utopias, 2001-2006, RJ, Carlos Sansolo; O Fim do Homem Cordial, 2004, BA, Daniel Lisboa; O Irreconhecível, 2004, RJ, Felipe Rodrigues; O Latido do Cachorro

C Altera o Percurso das Nuvens, 2005, RJ, Raul Fernando, Camila Márquez, Rebecca Ramos, Estevão Garcia & Pedro Urano; O Lençol Branco, SP, 2003, Marco Dutra; O Maior Espetáculo da Terra, 2005, MG, Marcos Pimentel; O Mais Velho, 2000, RJ, Nilson Primitivo; O Menino Japonês, 2009, SP, Caetano Gotardo; O Menino Que Colhia Cascas, 2010, MG, Joacélio Batista; O Milagre de Dona Rita, 2003, MG, André Amparo & Cecilia Torquato; O Mundo Segundo Silvio Luiz, 2000, SP, André Francioli; O Plano do Cachorro, 2009, PB, Arthur Lins & Ely Marques; O Regresso de Ulisses, 2008, CE, Alexandre Veras Costa; O Som da Luz do Trovão, 2005, RJ, Petrônio Lorena & Tiago Scorza; Ocidente, 2008, PE, Leonardo Sette; Olhos de Quem Ama, 2007, MG, Tiago Carvalho; Orawa, 2010, SP, Felipe Barros; Os Boçais, 2008, RS, Lufe Bollini; Os Cantos da Casa, 2009, MG, Vinícius Cabral & Vinícius Túlio; Os Sapatos de Aristeu, 2008, SP, Luiz René Guerra; Outubro, 2007, PR, Murilo Hauser; Paisagem (Folhas), 2002, MG, Marco Paulo Rolla; Pass, 2006, MG, Cristiano Trindade; Passos no Silêncio, 2009, CE, Guto Parente; Pedro Pintor em Auto Retrato, 2001, RJ, Barbara Kahane; Pequeno Poema de Prata, 2006, RJ, Cristiana Miranda; Pequenos Reparos, 2008, RS, James Zortéa; Perto de Casa, 2009, MG, Sérgio Borges; Plano-(Con)Seqüência, 2005, MG, Rodrigo Minelli; Poeminha Biológico Para JB, 2006, RJ, Christian Caselli; Projeto Postcards, 2000, MG, Lucas Bambozzi; Projeto Vermelho, 2006, RS, Luiz Roque Filho; Quando Morri na Baía da Guanabara, 2005, MG, Dellani Lima; Quando o Amor Vem por Necessidade, 2002, RJ, Pablo Nery; Quarto de Espera, 2009, RS, Bruno Carboni & Davi Pretto; Que Buceta do Caralho, Pobre Só Se Fode!!!, 2007, SC, Petter Baiestorf; Resgate Cultural - O Filme, 2001, PE, Telephone Colorido; Rio de Mulheres, 2009, MG, Cristina Maure & Joana Oliveira; Rivadavia 2010, 2007, MG, Gustavo da Rocha Jardim & Aline X; Romeu É Um Peixe No Aquário, 2002, PR, Cristiano Balzan; Rua Governador Sampaio, 2009, CE, Victor de Melo; Saba, 2006, SP, Gregório Graziosi &

C Thereza Menezes; Sal Grosso, 2005, MG/RJ, André Amparo & Ana Cristina Murta; Saltos, 2008, SP, Gregório Graziosi; Sangre, 2009, MG, Cris Ventura; Satori Uso, 2007, PR, Rodrigo Grota; Saudosa, 2005, ES, Erly Vieira Jr e Fabrício Coradello; Sebastião, o Homem que Bebia Querosene, 2007, MG, Carlosmagno Rodrigues; Se Estou Certo, Porque Meu Coração Bate do Lado Errado?, 2004, MG, Joacélio Batista; Sensum At Practicum No Practice, 2009, CE, Uirá dos Reis; Sentinela, 2004, MG, Afonso Nunes; Sertão de Acrílico Azul Piscina, 2004, PE/ CE, Marcelo Gomes & Karim Aïnouz; Só, 2000, MG, Conrado Almada; Sonhozzz, 2005, RJ, Paulo Camacho; Sopro, 2000, MG, Cao Guimarães & Rivane Neuenschwander; Suco de Tomate, 2001, RS, Bia Werther; Sumi, 2008, Japão/Brasil, Marina Fraga; Superbarroco, PE, 2008, Renata Pinheiro; Supermemórias, 2010, CE, Danilo Carvalho; Sweet Karolynne, 2009, PB, Ana Bárbara Ramos; Tabu Totem, 2005, RJ, Bruno Safadi; Tainah, 2008, SP/ PI, Arthur Tuoto; Tarabatara, 2007, SP, Julia Zakia; Targa-Stalker, 2001, MG, Carlosmagno Rodrigues; Tauri, 2009, SP, Marcio Miranda Perez; Tchau, Pai, 2005, PR, Ricardo E. Machado & Lívia Izar; Terra, 2008, MG, Sávio Leite; Todo Punk é Católico, 2003, MG, Carlos Magno Rodrigues & Bruno Pacheco; Trecho, 2006, MG, Clarissa Campolina & Helvécio Marins Jr.; Três Tons Sobre o Poema de Um Pintor, 2005, RJ, André Scucato; Tripulante, 2007, RS, Dirnei Prates; Trópico de Capricórnio, 2005, SP, Kika Nicolela; Um Ramo, 2007, SP, Juliana Rojas & Marco Dutra; Um Sol Alaranjado, 2001, RJ, Eduardo Valente; Uma Folha Que Cai, 2003, RJ, Ivo Lopes Araújo; Uma Noite Com Buda, 2004, CE, Alexandre Veras; Unheimlich, 2006, MG, Ilan Waisberg; Veja & Ouça - Maria Baderna no Brasil, 2005, SP, André Francioli; Veluda, RJ, 2005, Ana Rieper; Vestes Recém Tiradas, 2003, MG, Daniel Saraiva; Vila Mimoza, 2001, RJ, Felipe Nepomuceno; Vinil Verde, 2004, PE, Kleber Mendonça Filho; Visita Íntima: Revista Corporal, 2006, BA, Isaac Donato; Vistamar, 2009, CE, Pedro Diógenes, Rúbia

C Mércia, Victor Furtado, Rodrigo Capistrano, Glaugeane Costa & Henrique Leão; Volver, 2009, MG, Cinthia Marcelle; What Do You Think Of Me?, 2010, SP, Kika Nicolela, (...) LONGAS: A Alma do Osso, 2004, MG, Cao Guimarães; A Casa de Sandro, 2009, RJ, Gustavo Beck; A Curtição do Avacalho, 2006, SC, Petter Baiestorf; A Falta Que Me Faz, 2009, MG, Marília Rocha; A Fuga, A Raiva, A Dança, A Bunda, A Boca, A Calma, A Vida da Mulher Gorila, 2009, RJ, Felipe Bragança & Marina Meliande; Aboio, 2005, MG, Marília Rocha; Acácio, 2008, MG, Marília Rocha; Acidente, 2006, MG, Cao Guimarães & Pablo Lobato; Adágio Sostenuto, 2009, RJ, Pompeu Aguiar; Ainda Orangotangos, 2007, RS, Gustavo Spolidoro; Amigos de Risco, 2007, PE, Daniel Bandeira; Avenida Brasília Formosa, 2010, PE, Gabriel Mascaro; Bitols, 2010, RS, André Arieta; Cafuné, 2005, RJ, Bruno Vianna; Conceição – Autor Bom é Autor Morto, 2006, RJ, Daniel Caetano, Guilherme Sarmiento, André Sampaio, Cynthia Sims & Samantha Ribeiro; Crítico, 2005, PE, Kleber Mendonça Filho; Desertum, 2007, RJ, Marcelo Ikeda; Diário de Sintra, 2007, RJ, Paula Gaitán; Dias em Branco, 2004, RJ, Irmãos Pretti; Ermo, 2008, CE, Salomão Santana; Estética da Solidão, 2001, RJ, Irmãos Pretti; Estrada Para Ythaca, 2010, CE, Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes, Ricardo Pretti; Estrada Real da Cachaça, 2008, RJ, Pedro Urano; Êxodo, 2008, RJ, Marcelo Ikeda; Favela On Blast, 2008, RJ, Leandro HBL & Wesley Pentz; Filme Estrangeiro, 2002, RJ, Irmãos Pretti; Intervalo Clandestino, 2006, RJ, Eryk Rocha; L.A.P.A., 2007, RJ, Cavi Borges & Emílio Domingos; Mangue Negro, 2008, ES, Rodrigo Aragão; Meu Nome é Dindi, 2008, RJ, Bruno Safadi; Mira!, 2001, Cuba/Brasil, Estúdio Mosquito; Morro do Céu, 2009, RS, Gustavo Spolidoro; Morte Densa, 2003, SP, Kiko Goifman & Jurandir Müller; Mulher à Tarde, 2009, MG, Affonso Uchoa; Netsplit (Queda de Conexão), 2003, MG, Dellani Lima; No Meu Lugar, 2009, RJ, Eduardo Valente; Nos Olhos de Mariquinha, 2008, MG, Cláudia

C Mesquita e Júnia Torres; O Céu Está Azul Com Nuvens Vermelhas, 2006, MG, Dellani Lima; O Céu Sobre os Ombros, 2010, MG, Sérgio Borges; O Fim da Picada, 2008, SP, Christian Saghaard; O Fim do Sem Fim, 2001, MG, Beto Magalhães, Cao Guimarães & Lucas Bambozzi; O General, 2004, MG, Fábio Carvalho; O Grão, 2007, CE, Petrus Cariry; O Quadrado de Joana, 2006, MG, Tiago Mata Machado; O Sonho Segue Sua Boca, 2008, MG, Dellani Lima; Os Residentes, 2010, MG, Tiago Mata Machado; Pacific, 2009, PE, Marcelo Pedroso; Pan-Cinema Permanente, 2007, SP, Carlos Nader; Performance, 2004, RJ, Irmãos Pretti; Praia do Futuro, 2008, CE, Armando Praça, Diogo Costa, Felipe Bragança, Fernanda Porto, Fred Benevides, Guto Parente, Ivo Lopes Araujo, Luiz Pretti, Mariana Smith, Pablo Assumpção, Ricardo Pretti, Rúbia Mércia, Salomão Santana, Thaïs Dahas, Thais de Campos, Themis Memória, Wanessa Malta, Ythallo Rodrigues; Redemoinho-Poema, 2008, MG, Gabriel Sanna & Lúcia Castello Branco; Ressaca, 2005, RJ, Bruno Vianna; Rumo, 2009, CE, Irmãos Pretti; Sábado À Noite, 2007, CE, Ivo Lopes Araújo; Semoventes, 2009, MG, Joacélio Batista & Daniel Saraiva; Serras da Desordem, 2006, SP, Andrea Tonacci; Sobre o Amor em Tempos Difíceis, 2004, MG, Dellani Lima; Sociedade dos Amigos do Crime, 2009, MG, Dellani Lima; Sumidouro, 2008, MG, Cris Azzi; Terras, 2009, RJ, Maya Da-Rin; Um Homem Sem Mulher, 2005, RJ, Irmãos Pretti; Um Lugar Ao Sol, 2009, PE, Gabriel Mascaro; Viajo porque Preciso, Volto porque Te Amo, 2010, PE/CE, Marcelo Gomes & Karim Aïnouz; Vigias, 2010, PE, Marcelo Lordello; (...)

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A GENEALOGIA DA COLETIVIDADE

Durante a década 00, coletivos, núcleos e produtoras independentes produziram inúmeras obras e intervenções significativas em nosso país. Projetos experimentais, bizarros, pornôs, documentários, programas para TV, videoclipes e cinema expandido foram realizados nestas redes.

C

Canibal Filmes (1992), Palmitos, SC; Paleo TV (1993), São Paulo, SP; Pepa Filmes (1996), Rio de Janeiro, RJ; Cavídeo (1997), Rio de Janeiro, RJ; Plus Ultra (1997), Niterói, RJ; xplastic (1998), São Paulo, SP; Brócolis VHS (1998), Campinas, SP; Cine 8 Núcleo de Cinema Desconstrução (1998), Porto Alegre, RS; Estúdio Mosquito (1998), Belo Horizonte, MG; Las Luzineides (1998), João Pessoa, PB; Cooperativa Fora do Eixo (1999), Rio de Janeiro, RJ; Associação Filmes de Quintal (1999), Belo Horizonte, MG; Mirabólica (1999), Vitória, ES; Snuffmovies (2000), Curitiba, PR; Bulhorgia Produções (2000), Florianópolis, SC; Telephone Colorido (2000), Recife, PE; Quase Cinema (2000), Brasília, DF; WSET Multimídia (2001), Rio de Janeiro, RJ; Feito a Mãos/FAQ (2001), Belo Horizonte, MG; Media Sana (2002), Recife, PE; ARNSTV - A Revolução Não Será Televisionada (2002), São Paulo, SP; TEIA (2003), Belo Horizonte, MG; Cinema de Poesia (2004), Rio de Janeiro, RJ; Símio Filmes (2004) Recife, PE; Clube Silêncio (2004), Porto Alegre, RS; Cactos Intactos (2004), Rio de Janeiro, RJ; TVPRMVR - TV Primavera (2006), Recife, PE; Cine Água (2006), Porto Alegre, RS; Alumbramento Filmes (2006), Fortaleza, CE; Complô (2006), São Paulo, SP; A PRODUTORA audiovisual (2007), Belo Horizonte, MG; Colégio Invisível (2008), Belo Horizonte, MG; Filmes de Plástico (2009), Contagem, MG; Sorvete Filmes (2009), Contagem, MG.

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CANAIS DE EXIBIÇÃO

Neste período houve um crescimento relevante na formação e incentivo de novos cineclubes, de alternativas de exibição e divulgação da produção contemporânea. Um marco, no que se refere à exibição – e a distribuição -, sem dúvidas, é a Internet. Mas a produção emergente teve, inicialmente, seu espaço em eventos públicos relacionados ao cineclubismo, à vídeoarte e ao documentário etnográfico, os pouquíssimos já existentes ou os que surgiram no início e fim da década. Com o reconhecimento internacional de algumas obras produzidas por esta geração, os grandes festivais reavaliaram seus regulamentos com relação às produções realizadas em vídeo. Além da abertura para os diversos formatos, a circulação dos artistas pelas mostras e festivais, foi facilitada pela adesão do DVD como mídia de seleção e do envio postal reconhecido como documento.

C Videobrasil (1983), São Paulo, SP; Fórum BHZ Vídeo - Festival Internacional de Vídeo de Belo Horizonte (1991), Minas Gerais; Vitória Cine Vídeo (1994); Festival Brasileiro de Cinema Universitário (1995); forumdoc.bh (1996), Belo Horizonte, MG; Mostra Vídeo Itaú Cultural (1997), São Paulo, SP; Fluxus - Festival Internacional de Cinema (2000) Belo Horizonte, MG; Curta o Curta (2000), Rio de Janeiro, RJ; Cineclube Curta Circuito (2001), Belo Horizonte, MG; Goiânia Mostra Curtas (2001); Panorama Internacional Coisa de Cinema (2002), Salvador, BA; NÓIA - Festival do Audiovisual Universitário (2002), Fortaleza, CE; Porta Curtas (2002), Rio de Janeiro, RJ; MÚMIA - Mostra Udigrudi Mundial de Animação (2003), Belo Horizonte, MG; Curtas na Prateleira (2004), Rio de Janeiro, RJ; prog:ME (2005), Rio de Janeiro, RJ; Beco do Rato (2006), Rio de Janeiro, RJ; arte.mov (2006), Belo Horizonte, MG; FAD - Festival de Arte Digital (2007), Belo Horizonte, MG; Perro Loco - Festival de Cinema Universitário Latino-Americano (2007), Goiânia, GO; Janela Internacional de Cinema do Recife (2008), Pernambuco; Cine Alumbramento (2008), Fortaleza, CE; Cine Molotov (2009), Fortaleza, CE; (...) A Organização (2002), Rio de Janeiro, RJ. Realizadores estreavam seus curtas de três a quinze minutos sobre qualquer assunto e em qualquer formato nas sessões deste evento que já ocupou o Odeon BR, no Rio de Janeiro. Quem se inscrevia, mas não entregava o curta no prazo, tornava-se tema de um filme difamatório. Os espectadores que ficavam até o fim de cada sessão, ganhavam um real na saída. Cachaça Cinema Clube (2002), Rio de Janeiro, RJ. Um cineclube que privilegia curtas-metragens brasileiros e após as sessões promove degustação de cachaça e uma festa com DJs e músicos.

C Cine Falcatrua (2004), Vitória, Espírito Santo. Cineclube e coletivo que pesquisava e publicava idéias ligadas a utilização de novas mídias aplicadas ao cinema. Os integrantes tinham um codinome coletivo: Gilbertinho. Iniciaram com exibições de filmes baixados da Internet em sessões semanais gratuitas. Por causa desse projeto, o Consórcio Europa pediu a abstenção das exibições públicas de obras por ela licenciadas e a destruição dos equipamentos usados para as exibições. Além disso, pediu indenização por danos patrimoniais e morais à Universidade Federal do Espírito Santo, onde eram realizadas as sessões do cineclube. O Cine Falcatrua também produziu outros projetos, como o Festival de Baixa Resolução, divulgado e produzido pela Internet. Podiam se inscrever vídeos encontrados na web, com conteúdo original ou alterado. O Festival CortaCurtas, cinema expandido e aos pedaços, onde o projecionista decidia o que exibir e como exibir, com total autonomia sobre a exibição, até mesmo de intercalar pedaços de obras diferentes e de exibir só o início, ou o fim, ou qualquer parte do curta. O Agosto Cinema Clube, festival para debater sobre cinema no bar. E a Mostra Falcatrua de Conteúdos Livres, uma seleção de mais de uma hora de vídeos produzidos e distribuídos livremente. Vale ressaltar a importância de iniciativas como a pioneira Mostra do Filme Livre (2002), Rio de Janeiro, RJ; o CineEsquemaNovo (2003), Porto Alegre, RS, o Festival do Livre Olhar - FLÔ (2003), Porto Alegre, RS e o Indie - Mostra de Cinema Mundial (2001) – Mostra Cinema de Garagem (2006), Belo Horizonte, MG, que desde o início de suas propostas, defenderam a abertura e o incentivo a qualquer formato e conceito. Já a Mostra de Cinema de Tiradentes (1997), Minas Gerais, é um dos primeiros grandes eventos da área que teve como temática as pesquisas contemporâneas do audiovisual brasileiro.

C Durante a década, obras realizadas com tecnologia digital também foram reconhecidas por eventos consolidados como a Mostra Internacional de Curtas-metragens de São Paulo - Curta Kinoforum (1990), o Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro – Curta Cinema (1991) e o Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (1994).

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A ANTROPOFAGIA

As influências desta geração são muitas, não há restrições quanto aos diálogos entre gêneros, linguagens ou períodos, as pesquisas transitam desde a vídeoarte, ao documentário etnográfico, às vanguardas artísticas, ao underground. A Internet possibilitou o acesso a importantes artistas e suas obras, antes dificílimas de conhecer.

C

Abbas Kiarostami, Akira Kurosawa, Alejandro Jodorowsky, Andrei Tarkovsky, Andy Warhol, Arthur Omar, Bill Viola, Bruce Conner, Bruce La Bruce, Bruce Nauman, Carlos Alberto Prates, Chantal Akerman, Chris Marker, David Lynch, Derek Jarman, Don Letts, Douglas Gordon, Dziga Vertov, Eder Santos, Eduardo Coutinho, Gary Hill, George Kuchar, George Melies, Glauber Rocha, Gus Van Sant, Guy Debord, Hans Richter, Harry Smith, Hou Hsiao-Hsien, Ingmar Bergman, Ivan Cardoso, Jack Smith, Jean Cocteau, Jean Vigo, Jean-Luc Godard, Jean Rouch, Joan Jonas, Joaquim Pedro de Andrade, Jonas Mekas, Joris Ivens, José Mojica Marins, Julio Bressane, Ken Jacobs, Kenneth Anger, Lars von Trier, Leon Hirszman, Luis Buñuel, Luiz Rosemberg Filho, Marcel Duchamp, Marina Abramovic, Mário Peixoto, Maya Deren, Michael Snow, Michelangelo Antonioni, Nam June Paik, Nelson Pereira dos Santos, Nicholas Ray, Norman McLaren, Ozualdo Candeias, Pedro Costa, Peter Greenaway, Pipilotti Rist, Robert Bresson, Rogério Sganzerla, Ruy Guerra, Sally Potter, Sergei Eisenstein, Shuji Terayama, Stan Brakhage, Tsai Ming-Liang, Wolf Vostell, Woody Allen, Wong Kar-Wai, Yasujiro Ozu, (...)

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SE O RÁDIO NÃO TOCA

Novamente a Internet – juntamente com as práticas DIY e homemade – marca a década. Expandiu-se o espaço para os selos, gravadoras, distribuidoras e artistas independentes. Músicas de todos os gêneros e estilos circulam digitalmente e nas bancas do mercado informal. Novos paradigmas emergem na indústria fonográfica. O mainstream enlouquece com os novos meios. Festivais de música independente crescem e outros surgem de norte a sul do país. Artistas, produtores e distribuidores do setor criam formas inventivas para afetar o público. Circulam suas produções em mp3, CD, retornam com o disco de vinil e até mesmo a fita cassete. Utilizam constantemente o audiovisual e a Internet na realização e na divulgação de videoclipes, de pequenos documentários de música, de bastidores de apresentações, de comentários sobre as cenas e de shows inusitados. Música brasileira para todos os gostos.

C

1/2 Dúzia de 3 ou 4, Academia da Berlinda, Apanhador Só, Astronauta Pingüim, Astronautas, Autoramas, Ava Rocha, Babi Jaques e Os Sicilianos, Bluesatan, Bonsucesso Samba Clube, Bonde do Role, Bruno Morais, Burro Morto, Canja Rave, Cansei de Ser Sexy, Cartolas, Cassim & Barbária, Catarina Dee Jah, Cérebro Eletrônico, Charme Chulo, China, Comboio Industrial Rap Terror, Curumin, Dead Lover’s Twisted Heart, Dead Rocks, Diego de Moraes e o Sindicato, Discarga, Em Dias de Surto, Ex-Exús, Fernando Catatau & Cidadão Instigado, Garotas Suecas, Glauco Neves e sua Orquestra Elegante, Graveola e o Lixo Polifônico, Grilowsky, Grupo Porco de Grindcore Interpretativo, Hurtmold, Instiga, Je Rêve de Toi, Júlia Says, Junkie Dogs, Karina Buhr, Karine Alexandrino, Kassin, Lê Almeida, Los Pirata, Los Porongas, Lucy and the Popsonics, Lulina, Macaco Bong, Madame Rrose Sélavy, Makely Ka, Mallu Magalhães, Merda, Marcelo Birck, Mirella Hipster, Mister Lúdico e os Morféticos, Mombojó, Monocoma, Montage, Moptop, Móveis Coloniais de Acaju, Multiplex, Nervoso e os Calmantes, No Focus Boy, O Jardim das Horas, O Quarto das Cinzas, Objeto Amarelo, Orquestra Abstrata, Orquestra Contemporânea de Olinda, Os Haxixins, Os the Darma Lóvers, Paranóia Oeste, Pata de Elefante, Pélico, pexbaA, Plástico Lunar, Porcas Borboletas, Pública, Relespública, Renegado, Retrofoguetes, Sabonetes, Satanique Samba Trio, Suéteres, Supercordas, Superguidis, Tetine, Tiê,Top Surprise, Tulipa Ruiz, Ü, Vanguart, Violins, Volver, Wado, Zefirina Bomba, Zumbis do Espaço, (...) Gravadora Discos, Midsummer Madness Records, Monstro Discos, Pecúlio Discos, Pisces Records, Pug Records, Senhor F Discos; Serrassônica, Transfusão Noise Records, Vinyl Land Records, (...)

C

Abril Pro Rock (Recife, PE), Bananada (Goiânia, GO), BH Indie Music (Belo Horizonte, MG), Calango (Cuiabá, MT), Coquetel Molotov (Olinda, PE), DoSol (Natal, RN), Eletronika (Belo Horizonte, MG), Festival Garimpo (Belo Horizonte, MG), Goiânia Noise Festival (Goiânia, GO), Indie Hip Hop (Santo André, SP), Jambolada (Uberlândia, MG), Mada (Natal, RN), Ponto.CE (Fortaleza, CE), Porão do Rock (Brasília, DF), Rec Beat (Olinda, PE), Roça ‘n’ Roll (Varginha, MG), Vaca Amarela (Goiânia, GO), (...)

45 BITOLAS CINEMATOGRÁFICAS

NN  tNN  tNN  tNN  t4VQFSNN 

46 FORMATOS DE ARMAZENAGEM DE VÍDEO (ANALÓGICOS E DIGITAIS)

7&3"   t 2VBESVQMFY   t "LBJ   t 6NBUJD   t 1IJMJQT 7$3   t #FUBNBY  t7)4  t-BTFSEJTD  t#FUBDBN  t-BTFSGJMN  t7JEFP  t47)4   t 47)4$   t )J   t %JHJUBM #FUBDBN   t 7$%   t %   t 87)4  t%7  t%JHJUBM4 %   t%7$130  t%7%%7%7JEFP  t#FUBDBN49   t%7$".  t)%$".  t%7$130  t %7)4  t.JOJ%7%t47$%  t%JHJUBM  t%7$130)%  t%)%57753  t )%7  t)%$".43  t9%$".  t)7%  t)%%7%  t#MVSBZ%JTD 

47 FORMATOS DE ARMAZENAGEM DE ÁUDIO (ANALÓGICOS E DIGITAIS)

'POBVUØHSBGP  t$JMJOESP'POPHSÈGJDP   t %JTDP EF (PNB-BDB   t (SBWBÎÍP FN 'JP   t 'JUBT EF 3PMP T  t 4PVOETDSJCFS  t(SBZ"VEPHSBQI  t%JDUBCFMU   t -POH 1MBZ   t %JTDP %F  3QN   t 'JUB .BHOÏUJDB EB 3$"   t 'JEFMJQBD   t 4UFSFP1BL   t $PNQBDU $BTTFUUF   t 4UFSFP  t1MBZUBQF  t.JOJ$BTTFUUF   t .JDSPDBTTFUUF   t 4UFOP$BTTFUUF   t &MDBTFU   t 4PVOETUSFBN   t 91SPEJHJ   t %"4)   t $PNQBDU %JTD  t1JDPDBTTFUUF  t%JHJUBM"VEJP5BQF  t"%"5  t.JOJEJTD  t%JHJUBM $PNQBDU $BTTFUUF   t &YUFOEFE 3FTPMVUJPO $PNQBDU%JTD  t)JHI%FGJOJUJPO$PNQBUJCMF %JHJUBM   t  .VTJD %JTD   t 4VQFS "VEJP $%   t %7%"VEJP   t , )JHI Definition (2007)

48 CONVERSAÇÕES INQUIETANTES

Helvécio Marins Jr.: A pergunta mais difícil: porque faço filmes? Acho que é mais por uma necessidade pessoal do que qualquer outra coisa. Acho que isso tem haver com uma inquietação que temos. Guilherme Whitaker: Cinema é questão de sobrevivência, faz parte da nossa vida. Às vezes é ótimo, às vezes é horrível. Não tem como abandonar. Enfim, é sua própria vida. Sua questão não só amorosa, como profissional. E você vive o tempo inteiro com isso. O cinema está na veia, não tem como não se respirar cinema. É esta cena e vai ser cada vez mais essa relação amorosa com tudo que ela tem de bom e nem tão bom assim. Tati Rabelo: Cinema chega a ser até um mito, porque pensar em cinema, as pessoas sempre pensam na película e nós temos outra relação com o cinema. Sou de uma geração digital, nunca trabalhei com película até hoje. Não que não tenha vontade, até penso em finalizar algo em película. Até porque tem uma visibilidade maior. Porque ainda acontece um grande preconceito entre magnético e película, celulóide. Nós brincamos que o magnético corre aqui na nossa veia em vez de sangue. Acho muito mais democrático, permite muito mais realizações do que com a película, que acaba sendo meio

opressor, o sistema que já é estabelecido. Como se tem que trabalhar, com milhares de pessoas, tudo bem segmentado. Como somos obsessivos e psicóticos, gostamos de monopolizar todos os processos. O magnético permite isso. Willian Hinestrosa: O cinema pode vir do caos, mas a emoção não vem do caos. A emoção vem da sensibilidade, sensibilidade do real. Isto é cinema: caos, realidade, sensibilidade. Enfim: é tudo. Telephone Colorido: Esse negócio de você não saber a mídia cinematográfica possível é bom porque te dá uma resposta. Muita gente tem achado tão legal esta estética da improvisação. Mas esse método vai sendo cada vez mais assimilado. Nossa inspiração para fazer cinema veio da nossa experiência de fazer vídeo. Temos o roteiro-princípio que vai se transformando com as intervenções de quem entrar. Mas como a coisa é toda tão democrática, e sempre foi assim, rola uma anarquia da criação. Gustavo Spolidoro: Sempre que faço um curta, penso que diferente será. Mas ao mesmo tempo, penso como as pessoas vão entender esse filme ou vão se identificar com ele. Não sou radical ao ponto de fazer algo só experimental, mas também não me sinto uma pessoa totalmente comercial, ao ponto de fazer um filme que é uma comédia barata e vazia. Então tento chegar mais ou menos no meio do caminho para as duas idéias. Fábio Carvalho: Acredito no cinema como forma de expressão. Como arte. Não acho que ele deva passar uma mensagem, ao contrário, prefiro que ele abra uma outra janela na imaginação. É assim com o cinema que faço e com o que vejo.

Rodrigo Lacerda, Jr: Descobri que tudo é uma farsa, que tudo é apenas uma picuinha nossa. Porque se você chegar em um açougue e pedir carne, não importa se você está dançando um tango, se você está fake ou extremamente natural. O cara só pode te servir carne. Agora dará algum problema, se você chegar no açougue e pedir uma caixa de lápis de cor. Aí não interessa se você está realista ou não, vai criar um conflito. Samir Abujamra: A inquietação, no meu caso, é basicamente contar uma história. Desde criança o que me interessa é o relatar coisas, ouvir coisas, viver coisas e passar isso para frente. Tem a questão do olhar também. Acho muito interessante esses trabalhos agora: vou sozinho para um lugar com uma pequena câmera e registrar. A inquietação é viver mesmo, se você não for inquieto, você está fodido. Cezar Migliorin: Talvez falar da inquietude, seja o que há para ser falado. A inquietude é o que há para ser falado, é o que há para ser resolvido. Mas é uma solução que nunca se faz. A inquietude é o que produz e o que mantém. A inquietude no caso, como artista, é pura solidão. A única forma de manter a inquietude, de manter um movimento, que não deixe essa inquietude tomar proporções agressivas, que corrompam o corpo, que machuquem, que perturbem o espírito, é um certo movimento, um movimento de artista. Um movimento de artista é que é um certo sair da solidão. A solidão é o que mais inquieta. O artista é uma tentativa de sair da solidão, uma tentativa bizarra, porque ao mesmo tempo que a arte comunica e se há alguma arte que interesse, é a arte do encontro, é a arte que é produzida pelo encontro, é a arte que se produz no encontro. Ao mesmo tempo, é só a solidão que produz o artista. O artista sem a

solidão não existe, é uma bifurcação com a qual nós temos que lidar. A solidão é o que produz, é o que produz o encontro, mas para o encontro ser produzido, é uma volta a solidão. Lidar com a inquietude então é isso, é uma manutenção da inquietude, porque o movimento é um só, mas um movimento que vai em duas direções, na direção do encontro e na direção da solidão. Marcelo Ikeda: É muito difícil dizer qual é o tipo de projeto que se busca: a princípio estou aberto ao maior escopo possível de experiências. Hoje, poderia dizer, se isso for possível, que busco um cinema da ética, que trabalhe a linguagem, mas não esqueça o Homem, sua solidão e seu espaço no mundo em que vive. As novas tecnologias sempre oferecem uma nova oportunidade ao realizador: é preciso, no entanto, que ele saiba distinguir os modismos, que ele aproveite o que há de melhor e que assuma seus pontos desfavoráveis. Cao Guimarães: Se imaginarmos a realidade como um imenso lago podemos nos relacionar com ele de 3 formas: Ficar sentado no barranco contemplando sua superfície, e acho que a pele das coisas é um universo imenso que revela muito do que no fundo se esconde. São frutos desta relação meus trabalhos mais contemplativos, plásticos e formais. Jogar uma pedra na superfície deste lago e observar a reverberação provocada por esta ação. A pedra sendo um conceito ou uma proposição que vai embaralhar determinada realidade. São meus trabalhos mais propositivos. Jogar-se no lago afundando em suas águas misteriosas. São meus trabalhos mais investigativos onde procuro me deixar levar por um determinado objeto ou assunto.

Pablo Lobato: A princípio pode não ser um lugar de fácil acesso. Se pensarmos em um abismo, precisaríamos eleger seu fundo ou suas paredes ou a lâmina de espaço que o cobre na altura de seu início mais próximo ao céu, como sendo sua superfície. Encontrando esse lugar percebemos que fomos e voltamos, algo reflexivo se deu e disso podemos falar. Todas as camadas de memória e pensamentos que se somam sem nada terem de estáveis são corpos sem fundo. Lembramos do que queremos e do que não queremos. Se investigarmos a superfície da tela de projeção que se transforma ao receber luz deixando um novo objeto surgir em nós, vemos que o vídeo só existe dentro em nós e não como objeto sozinho descolado. Agora ele está junto ao seu corpo e memórias, ele faz parte das marcas ou experiências ou entulhos que você pode carregar. Ele está na superfície de algo maior, ou já fundo se fundindo a pedaços esquecidos. Isso não importa aqui. Cinema de Poesia (André Scucato|Cristina Pinheiro): A câmera como escrita caligráfica que se utiliza da dança corporal do fotógrafo que, sincronizada com o ritmo da dança desloca o corpo da fotografia para, seguindo além, extrair da imagem a textura e a figura nua de um quadro em movimento! Esta arteplástica em transição que origina a tinta que, na montagem cinematográfica servirá novamente de texto e sub-textos, pronta para caminhar novamente entre a reescrita da interpretação cênica, dos sub-textos musicais, do movimento da dança na formação deste ballet sinestésicos de cores e formas? Há ainda na realidade tantos cantos e espaços poéticos a mostra que basta recolhê-los com este olhar ingênuo de sabê-los lá, como pesa-nervos ou nenúfares esperando a colheita da poesia para sua exibição, seja em tela, seja em tinta, seja em dança, fotografia ou nas plásticas artes. Todo esse movimento de

reconstrução compõe o sentido e a sensação do Cinema de Poesia, este intervalo, esta pausa, este entre-ato entre o que se acha ser Cinema e o que realmente o constitui. O cinema precisa ser sentido, não racionalizado. E nesta procura poética quanto mais se afasta do que se conhece hoje como cinema, talvez mais próximo esteja de encontrar sua especificidade como arte. Carlosmagno Rodrigues: O importante é que a realidade fílmica criada possibilite ao observador, sonhar de olhos abertos. Quando você entra em uma sala de exibição e ao assistir algo, perde a noção do tempo, o filme funcionou, podendo ser película ou digital. O que importa é o que tal realidade apresentada proporciona ao espectador. Minha influência é minha vivência cotidiana de Pierre Bordieu, as conversas de ponto de ônibus, dos sonhos às brigas corriqueiras das minhas convivências. O impacto das novas tecnologias levou os autores de arte eletrônica a uma maior autonomia, antes tudo, era muito caro e dependia de mecenato institucionalizado ou de uma colaboração patronal. Hoje, alguém que tenha algo a propor ou criar, basta fazer um esforço e comprar um computador mais uma câmera caseira. E como ficam aqueles que nem dinheiro para comprar comida tem? Ficam passando fome do mesmo jeito, mas em um mundo onde a arte burguesa perdeu mais um flanco. O acesso às novas tecnologias não garante a democratização dos meios, nem a popularização dos olhares transgressores. Estes olhares sempre serão restritos ao meio intelectual burguês. A diferença é que haverá menos barganha, menos mecenatos e mais transgressão. Transgressão para deleite burguês, mas agora ao valor de mil e quinhentos dólares. Tento ver o mundo, tento criticá-lo a partir de meu microuniverso, minha família. Exercendo minha individualidade, busco uma realidade espelhada em minhas ambições?

Humoradas? Graças à atual conjuntura, tenho o privilégio de tornar tais realidades, públicas pelos canais midiáticos e assim somá-las a outros olhares que fluem de diversas partes do mundo, de diversas argumentações intelectuais e emocionais. Sendo eu, militante de uma resistência anticolonial, antiburguesa, ao mesmo tempo sou vulnerável à proposição transgressora e aos meus próprios equívocos racionalistas e reacionários. Acredito que devemos falar mesmo que na manhã seguinte não concordemos mais. Se existe? Dramaturgia? Ela se dá pelo naturalismo próprio do documental. Sou um filmador, entre amigos ligo a câmera e deixo a vida rolar. Alexandre Milagres: Tenho tantos recursos aqui. Tenho à minha frente dois apontadores, um grampeador, uma caneta, um disquete, um DVD, um scanner e um computador... acho que já tenho mais do que o necessário.. e isso sem sair da cadeira. Lembro aqui de um trecho estranho, mas no qual me inspiro um pouco: “vivo à custa de minhas boas recordações de todos os bordéis e salões de luxo que freqüentei dos vinte aos trinta e cinco anos, na Europa, na Ásia, na Oceania, na América, na África, e sobretudo em sonho.” Sim... Em sonho, Campos de Carvalho me alegra com isso... O que me faz voltar onde estou, sentado e pensando que talvez tenha recursos até demais para a produzir minhas narrativas. Mas... Não sou tão bobo assim de achar que está falando em recursos somente neste sentido. Comecei falando a partir desse ponto de vista pois é o que gosto mais. Outro sentido, e esse sim muito mais discutido atualmente seria o dos recursos tecnológicos, de equipamento e de dinheiro (principalmente, pois é padrinho dos dois anteriores), mas ainda assim, fico aqui pensando que não consigo ver uma influência do pouco ou nenhum recurso nas narrativas que produzo. A influência recairia e ainda recai no

que não produzo, no que deixei e deixarei de produzir. Carlosmagno Rodrigues: Quero uma câmera de 3ccds, um G5, um bom microfone direcional e um projetor de alta luminosidade. Meu projeto audiovisual é minha vida. Sou um fazedor, trabalho, penso muito e crio muitas imagens, tento articulá-las e assim crio minhas realidades que disponibilizo em espaços como mostras, festivais e correspondências. Como muitos, adoraria ser dono de uma grande emissora de TV. Peter Baiestorf: Uma declaração de guerra dos que nada têm e tudo fazem contra os que tudo têm e nada fazem. Rodrigo Lacerda, Jr: O digital está transformando e rescrevendo os paradigmas do audiovisual. A facilidade de produção criou uma nova trincheira para os artistas. Isso associado à demanda da população por imagens mudou por completo a paisagem. As pessoas querem se ver e estão dispostas a dar sua contribuição para isso. Sou um artista dessa nova geração que está interessada em produzir. As novas tecnologias saem na frente das antigas por causa do acesso facilitado. É mais prático e menos burocrático produzir com uma digital que um amigo te emprestou do que capitar recursos pra queimar um rolo de filme. Com a distribuição acontece o mesmo. Você carrega o seu filme em um Cd. E não é necessário nenhum “trambolho” para exibi-lo, mas um simples telão. E o seu filme no Cd também pode ser visto em casa no aparelho de DVD ou até mesmo no computador. Quer facilidade maior que esta? Concordo que é difícil concorrer com a força que tem uma boa película em uma boa sala de exibição, como nos Shopping Centers. Mas é igualmente forte essa

outra alternativa. A questão é diversificar ao máximo, pois isso acaba personalizando. Todos querem poder ter escolha. A informação é livre e não mais privilégio dos acadêmicos. Quanto mais uso você faz da informação, mais você informa. Nada melhor que a sensação de poder realizar. A informação tem esta característica, ela te dá essa sensação. As produções que utilizam as facilidades tecnológicas incentivam direta e indiretamente as novas produções. Se você se sente capaz de produzir, você já está produzindo. Cláudio Santos: Sou totalmente a favor do hibridismo de tecnologias e da convergência de mídias, desde que se encaixe na proposta e não seja gratuita. E sobre a distribuição de trabalhos audiovisuais, acho que a mentalidade está mudando aos poucos. Hoje existem eventos (poucos) onde a música, a imagem, o design, o vídeo, as performances, a web e o cinema convivem e se integram pacificamente. Os próprios festivais de cinema, já estão incorporando (ou aceitando) o vídeo. Enfim, se tudo virar audiovisual acredito que os problemas de distribuição/ exibição possam diminuir para determinados formatos, como o vídeo single chanel, por exemplo. Agora penso muito num cinema expandido. Que extrapole a tela branca, que crie ambientes imersivos de verdade, com música e manipulação de imagens ao vivo e interação do público. O coletivo que penso hoje é realmente quando a autoria individual é quase que eliminada em prol de uma criação, onde há interferência e o produto final não tem a cara de ninguém. A idéia é levar algum questionamento relacionado a acontecimentos recentes ou a questões mais complexas, como o poder, a violência, a revolução e a situação do indivíduo na sociedade atual. A idéia é levar estas idéias para um ambiente sensorial, onde estes questionamentos possam ser percebidos, na música, nas imagens, nos textos,

na iluminação ou de que outra forma. Marcellvs L.: Não há investimento de forças em transcendências. Não há recalque. Elas produzirão sentidos por elas mesmas. Inevitavelmente. Sem necessidade de sublimações. Por isso não existe um ideal, mas uma constante variação de sensações e conseqüentes produções de sentido. Que muitas vezes são formalistas. André Amparo: Acho que é um lugar onde isso tudo se encontra. Claro que é diferente falar de literatura e de audiovisual. Mas ao mesmo tempo, acho que são coisas que se complementam de um jeito muito especial. E de música então, acho que são quase 70% do que se vê na imagem. Na verdade foi muito por causa disso que trabalhei com audiovisual. E é uma coisa que é meio um vício. Todos que trabalham com isso, reclamam, reclamam, reclamam, mas continuam trabalhando. Se esforçando e arrancando os cabelos para poder fazer suas coisas. É uma coisa que é assim mesmo, que nos alimenta, que alimenta do jeito mais louco do mundo, que alimenta e faz falta, dá carência. Mesmo aqueles que fazem muito, sentem falta, ainda sentem vontade de fazer mais. Fazemos porque não sabemos fazer outra coisa. Fazemos porque gostamos e é um privilégio. Peter Baiestorf: O cinema nacional tem salvação e ainda vou provar isto com meus filmes bagaceiros. Na minha opinião, em primeiro lugar este pessoalzinho deve esquecer o governo e fazer filmes com a grana própria. Assim, o cara que não tem retorno financeiro não consegue fazer mais filmes, e cai fora do barco. Quem faz cinema no Brasil deve passar fome pra saber o valor das coisas.

xplastic.net: Sentamos em bares pedimos algumas cervejas, olhamos pra rua e escrevemos. Depois selecionamos o que tem de melhor e gravamos.Imaginamos o audiovisual no futuro, digital e no bolso de um menino de 15 anos. Dellani Lima: A arte pela arte, o simples: fazer um carinho no outro. Arte como gesto, como afeto, transformar nosso cotidiano principalmente com as coisas simples. Usamos coisas como mecanismos, pequenos jogos, pequenas brincadeiras de relacionamento, inverter o processo: ao invés de bom dia, pegar uma foto de um nascer do sol e apontar para o rosto de um amigo ou de um vizinho, subversão da comunicação. Não importa o dispositivo, baixa tecnologia ou não, qualquer suporte, a mão, o gesto, o afeto como comunicação. A arte como operação e subversão da comunicação cotidiana. cineesquemanovo: Promover a desbitolação audiovisual. Ou seja, dar maior ênfase para o conteúdo, para a criatividade e para as técnicas de realização, tratando todos os trabalhos de forma idêntica, não importando a bitola/formato de finalização. Exibir trabalhos criativos, inovadores, diferentes, ousados, curiosos, trabalhos que apontem novos caminhos audiovisuais. Peter Baiestorf: Mas se lembrem que não ter equipamento não é desculpa para fazer filmes bobos e ruins, você pode fazer bons filmes com uma produção miseravelmente bem cuidada e original. Joacélio Batista: Quem inventou o lema punk, Faça você mesmo! Também poderia ter incluido mais algumas palavras e dito assim, “ Faça você mesmo e conte com os

amigos!”. Meus primeiros trabalhos não existiriam sem a ajuda de amigos. Marcelo Terça-Nada, Letícia Abreu, Kurt Navgator, Elton Amaral e Pedrinho Peixoto, publico aqui meu obrigado pelos empréstimos e colaboração na construção dos mesmos. Mesmo com a generosidade dos amigos tem uma hora que a indisponibilidade gera a impossibilidade. Até ser totalmente independente leva um tempo, se é que algum dia poderei realmente dizer que exista tal “independência”. Depois que experimentar a camera alheia para os primeiros passos no audiovisual, fica difícil, não querer fazer mais. Ter, qualquer que seja o equipamento de gravação de imagens e sons a mão, continua prevalecendo como a melhor opção. Agora portador da chama, troquei de papel e poderia possibilitar a entrada de outros amigos, também iluminados pela vontade de produzir, ao mundo do audiovisual, certo? Bem, não foi bem assim que eu fiz. Pouco depois de formado na EBA/UFMG, Alex Lindolfo me procurou, pedindo emprestado equipamento para fazer um documentário poético sobre sua mãe. A possibilidade de materializar o imaginário Minduriense, cidade natal do videomaker, já me dizia que ai vinha coisa boa dali. Preste a ceder ao pedido, perguntei a ele: - Você tem algum equipamento pra gravar audio e imagem? A resposta veio com a descrição uma camera fotográfica digital com baixa resolução de vídeo, que não gravava audio e um mp3 player que poderia resolver essa falha em um canal mono. Vendo essa limitação como uma potencial aliada, principalmente no fato que se ele realizasse algo com o próprio equipamento, ele poderia seguir com alguma autonomia no futuro. Disparei uma proposta sentido a cabeça do rapaz: - Porque você não faz o vídeo com o equipamento que tem, do jeito que der? Se não der certo eu te empresto minha câmera. Encafifado com a idéia Alex sumiu por uns tempos. Quando o reencontrei, ele numa postura insegura me chamou para ver o material coletado

em uma visita a casa da mãe. O material mesmo “precário” em qualidade imagem, era cheio de poética, apresentando um mundo que só Lindolfo conhecia. A imagem pixelada não nos priva em nenhum momento de sua potência poética. As coisas, os gestos, os fazeres, os causos da Mãe do artista. A canção “o pai Zé acendeu a luz e o Xicuro foi embora, pai zé apagou a luz e o xicuro chegou, “ nos remetem a maneira roseana de olhar para o próprio quintal e a partir de lá, expor toda sua beleza, sem nenhuma tentativa de facilitação ou aproximação de um contexto urbano. O que não significa que o vídeo seja hermetico, pelo contrario “Moça e chita, não tem feia nem bonita” (2007), é universal. Esse é um belo exemplo de que a falta de um bom equipamento não serve como desculpa para deixar de produzir. Acredito que o desafio de produzir com limitações técnicas pode ser um desencadeador de criatividade, pra quem se arrisca nessa frente. Alex Lindolfo segue produzindo sua obra. Eu fico feliz por ele ter topado o desafio. Gustavo Spolidoro: Acho que isso talvez seja o mais importante para a democratização do fazer cinema. (Montagem de trechos de entrevistas realizadas no período de 2004-008 por Dellani Lima através de email e telefone)

62 HORIZONTES TRANSVERSAIS: A MONTANHA E O ABISMO NA ESTÉTICA DO CENÁRIO AUDIOVISUAL CONTEMPORÂNEO MINEIRO

O audiovisual com visualidade, com estabilidade, com imutabilidade, híbrido de artes visuais e de narrativas influenciadas pelo cinema de vanguarda e a procura pela pureza da imagem, o cinema primitivo, mudo: da montanha ao abismo, da simplicidade à complexidade. Ascensão evidente de interiorização, a busca no sentido do conhecimento e das variações dos sentimentos. A imagem; como nos cultos pagãos, maioria celebrados em montanhas; a saída do infinito. Os sentimentos abertos ao desconhecido: aquilo que desemboca no oculto. O caminho natural da idéia: o acaso, o simples vazio, o nada e todas suas virtualidades. O interior ao exterior, o exterior ao outro. O mundo das profundezas ou dos estados inconstantes da existência. O autor e a procura de sua própria subjetividade, de um encontro com ele mesmo. A indiferenciação com a morte, com a decomposição de si, da sua individualidade, da própria exposição de sua vida cotidiana. O imenso e poderoso inconsciente, a exploração do abismo da alma. Paisagens imaginárias, plasticidades pessoais, discursos mínimos, potencialidades poéticas intensas, de forças profundas, do

próprio eu de cada autor. Uma procura de si na imagem, construída de uma realidade à ficção. Como pontos de referência: a própria imagem, de seus próximos, amigos ou familiares. A aproximação de sua própria existência como experiência de uma descoberta de si, do outro, do desconhecido. Mas é evidente que as ficções também penetram no inconsciente como desconstrução da própria imagem. A manipulação de um eu ficcional, um personagem determinado, elaborado, uma imagem forjada da realidade. A fuga de um mundo esquizofrênico, cristalizado em sutilezas quase despercebidas: a montanha, interiorização, e o abismo, desconhecido e profundo. Panoramas de gerações, desde conhecidos, aos que ainda buscam sua identidade, estéticas variantes, desconstruções narratológicas, temporais, os diversos suportes, a sutileza nas poéticas, nas quais convergem a indagação sobre a montanha e o abismo, o horizonte e suas transversalidades. Dellani Lima (Texto curatorial para a Mostra Vídeo Itaú Cultural, Novembro, 2007, Belo Horizonte, MG, Belém, PA)

64 Mostra Cinema de Garagem, Indie - Mostra de Cinema Mundial, Belo Horizonte, MG (Trechos de Textos Curatoriais/2006-09) (...) O contexto é de liberdade, de ação política, de resistência, de visceralidade, de descaso ao ideal de obra-prima, de experimentações lúdicas ou engajadas politicamente. Um caos organizado através de uma sintonia de informações, oriunda das características da contemporaneidade, como as tecnologias digitais que viabilizaram, de certo modo, essas produções, seus realizadores e suas propostas: explorar todas as possibilidades estratégicas do audiovisual, produções, distribuições e exibições inusitadas. A ênfase agora se situa na circulação de informações e na comunicação. Um comportamento irreverente em relação às novas tecnologias. Experiências estéticas em busca das máximas possibilidades da imagem através de poucos recursos: com os amigos, os vizinhos, os familiares e na garagem da própria casa. O que poderíamos nomear de um cinema mínimo: o fantástico universo do cotidiano, da memória pessoal ou coletiva, dos mínimos gestos, das distorções plásticas, de paisagens imaginárias, dos resquícios familiares ou caseiros. Pequenas manifestações transpostas em relevantes narrativas estéticas e conceituais: o belo e o processo. O hibridismo entre campos da arte, bitolas e formatos; questões entre arte e política, ou melhor, micropolíticas. Existem ainda os que satirizam o uso da imagem e debocham

do mercado convencional da arte, da publicidade e do próprio cinema; lugar de total carnavalização do audiovisual; a desconstrução do conceito acadêmico e da cultura popular pela exacerbação dos próprios clichês do que é ditado como erudito e popular; a tropicalização do humor negro; às superfícies: o proibido, o exagero, a violência, a arrogância, o ruído e o copo vazio cheio de ar; já que tudo foi feito, tudo será destruído; o niilismo e o momento de Shiva. Acima de tudo, o desejo de fazer cinema. Na Revista Wired, de fevereiro de 1997, George Lucas profetizou um futuro próximo, no qual todos realizariam cinema na garagem da própria casa. Este é o contexto do Cinema de Garagem. (2006)

(...) O primeiro jorro, ainda imaculado. Não poluído na fonte e ainda não ameaçado. Sensação de plena liberdade. Um privilégio. Criatividade sem limite. Subversão sem fim. Protesto e criação diretamente. Horas diferentes. Tudo o que trazemos no pensamento: apenas sonhar por um momento. A imagem nos deu muito. E nos fez viver um tempo precioso esquecido. Só andávamos pelas noites mais escuras. Na esquiva do perigo. Só depois quando acordamos, a imagem como água se esvai. E para nos conhecer, temos que nos achar. E a imagem não é só isso. Tem que se viver também. Mas os olhos não conseguem perceber. Nossas pupilas não ousam abrir. Nossos lábios recusam falar. Não sabemos se toda beleza sai apenas do coração ou da imagem. As imagens se movem. E as imagens não são vazias. Elas têm algo a dizer. Mas o que elas têm a dizer não é estabelecido. Dizem algo? Ou não dizem nada? A própria imagem, um processo onírico. No sonho eterno, a imagem é energia. O coração se foi. Mas

a imagem não pode ser tratada nem como algo nem como nada. Nem discurso, nem silêncio. A imagem se encontrará. Nem a imagem pode determinar o coração a pensar. Nem o coração pode determinar a imagem ao movimento ou ao repouso. O desejo é a própria essência do homem. À paixão do jogo. (2007)

(...) Aprender coisas novas e quebrar as regras. Tudo é questionado e reavaliado. E este processo é outra razão pela qual liberdade é importante. Contrária das castrações, na qual não se restringe os sonhos. Liberdade não é isolamento, mas interação. Autores que geram seus próprios destinos e suas próprias redes. Riscos são tomados, não importam as desaprovações. Os limites prescritos pelo gosto e pela moralidade são contestados. Nada é sagrado. Este ato de atitude é a transformação através da transgressão. Romper com aquilo que tem drenado nossas vidas.

(2008)

(...) As novas tecnologias permitiram a alguns artistas cortarem cada vez mais seus custos e experimentarem além de seus limites técnicos antes prescritos. Autores ou coletivos, bastante distintos, optaram por experiências opostas aos modelos do mercado convencional da arte. Ausência de narrativa linear, poética subjetiva, uso não diegético do som, ausência de trilha sonora ou

abordagens para a construção da própria narrativa, na qual o espectador é inserido de uma forma mais ativa e reflexiva com relação à arte e ao ato de realizá-la. A maioria desses realizadores constrói suas narrativas com baixos orçamentos, do próprio bolso ou financiados por meio de pequenas subvenções, com uma equipe mínima ou apenas de uma só pessoa, o próprio autor. Imagens sem nenhum diálogo, narrativas sem tramas explícitas, extremamente formais ou metalinguísticas. Exploram os limites do próprio meio, extrapolam as técnicas clássicas da dança, das artes plásticas e do próprio cinema. Belos, despojados, híbridos, patéticos ou ousados. Se a imagem não afetar, não vale a pena contemplar.

Dellani Lima (2009)

MARCELO IKEDA

Professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Mestrando em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenador Pedagógico da Escola do Audiovisual em Fortaleza, na Vila das Artes. Trabalhou na Agência Nacional do Cinema (ANCINE) entre 2002 e 2010, exercendo diversas funções. Ministrou cursos e palestras em instituições como o Instituto de Estudos de Televisão (IETV/RJ), Film & TV Business – Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e o Dragão do Mar (CE). Crítico de cinema, com ênfase na internet, mantém o blog ww.cinecasulofilia.blogspot.com desde 2004. Curador da Mostra do Filme Livre entre 2003 e 2007, retornando em 2010. Realizou diversos curtasmetragens, entre os quais destacam-se O Posto (2005), É Hoje (2007), Eu Te Amo (2007) e Carta de um Jovem Suicida (2008).

UMA CARTA DE INTENÇÕES

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Dez anos. Um passo no abismo. O futuro é agora mesmo. Um novo fin de siècle. Se nos anos noventa a regra era o surgimento de uma coletividade consciente, em sua maioria ligada às escolas de cinema, que se organizava para a consolidação das políticas públicas do audiovisual e da transparência dos editais, como única forma de sobrevivência, neste novo século houve a flexibilidade das relações de produção e difusão, com a proliferação dos meios digitais e a disseminação da internet. Não era mais preciso batalhar para ganhar nos editais federais a chance de fazer o seu curta em 35mm e se inscrever nos grandes festivais de cinema. Ou ainda, essa passou a não ser a única alternativa. Flexibilidade nos modos de produção (o digital) e flexibilidade nos meios de difusão (a ampliação do escopo dos festivais de cinema, a avalanche dos cineclubes, os novos canais da internet). A internet propiciou uma revolução em várias frentes. De um lado, a formação de redes, a aproximação de artistas alternativos nos quatro cantos do país. De outro, a consolidação de uma crítica alternativa aos grandes veículos impressos, que poderia pensar essa nova produção. E ainda, as ferramentas peer-to-peer, que popularizaram o download de filmes, formando uma nova tradição de cinefilia, revelando grandes cineastas desconhecidos. Novos tempos. A relação centro e periferia vem se desestabilizando, com a formação de redes, que interconectam realizadores de Fortaleza, Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Novos ares. Uma insatisfação com o cansaço de

um modo de produção do cinema brasileiro, com as leis de incentivo e os editais públicos, obsoletos diante das transformações dos novos tempos e da necessidade dos jovens realizadores emergentes. O futuro é agora mesmo. Se ganham novo contexto as intervenções videográficas, o cinema de galeria, o cinema expandido e as novas mídias (filmetes para internet e celular, mobisodes, mídias interativas, etc.), ainda persiste o cinema, o velho e tradicional cinema, mas agora um novo cinema. O jovem cinema contemporâneo brasileiro passou a dialogar com o cinema asiático, com o top do cinema europeu, passou a ser um cinema do mundo. Deixou a referência do cinema novo em segundo plano e se aproximou do cinema marginal. O desencanto com um mundo globalizado, em que as imagens banalizadas revelam-se quase um artefato publicitário, gerou uma inesperada nova forma de afetividade. De um lado, o encanto com o poder manipulatório dos sons e imagens, pelos filtros de cor e pelos efeitos do video. De outro, a opção por planos extremamente longos, por uma austeridade rigorosa e pela fixidez. O caminho não é um só, mas vários. Ou ainda, bifurcações de um mesmo caminho. O filme como fuga e como encontro de si mesmo. Um cinema de sombras e de cachoeira. Filmes caseiros, imagens de arquivo, found footage. Cinema feito por poucos e para poucos, mas vivido intensamente, como uma enorme aventura. Uma nova relação entre cinema e vida. Uma ilha deserta, cheia de mistérios e recantos paradisíacos. Mas é preciso querer desbravá-la, pois o acesso é de bote e não de avião de primeira classe. Uma ilha cuja topografia é irregular, arenosa. Como a vida. De superfície porosa, de pele oleosa, com as cicatrizes do tempo. É a expressividade das rugas que forma a beleza de um rosto, pois ele é autêntico. Sem botox, sem anestesia. Para caminhar para frente, é preciso deixar um monte de coisas para trás. Não que o passado não nos sirva, ao contrário, mas preso a ele como uma âncora não se pode avançar para o futuro.

“Saber filmar a revolução também é saber filmar o som do vento que balança a copa das árvores”. Fortaleza é mais próximo de Filipinas do que de Salvador. A potência do banal e o desejo pelas superfícies. Fazer cinema é espalhar dúvidas e não certezas. “Para saber o que é este filme, preciso fazer um outro”. O cineasta não sabe mais qual é o filme que ele acabou de concluir. O cineasta não constrói certezas sobre o mundo, sua função é pôr em crise, é desestabilizar os sentidos, permanentemente. Cada filme é um caminho sem volta, e é apenas mais um filme. Para um novo cinema, uma nova crítica. O crítico é aquele que foge das zonas de conforto, é o que problematiza as construções, e não o que organiza o caos para o leitor, mas o que oferece a possibilidade do mergulho no abismo. O crítico não sabe o que é o filme que ele pensou ter visto. Ele escreve para tentar decifrar, mas o filme permanece um enigma. O crítico, assim como o realizador, tem dúvidas, e as compartilha com o público, de uma forma digna. Uma democracia de olhares entre o realizador, o espectador e o crítico. O crítico como curador. O crítico como realizador. O realizador como crítico. O curador como realizador. “Lá fora ainda cantam os passarinhos”. O gosto pelo processo, mais que pelo produto final. Escrever mensagens em garrafas e atirá-las ao mar, sem rumo. O cinema não como profissão, mas como vocação. Uma nova resistência, através da política das imagens. “Do sublime ao ridículo é apenas um passo”. Um passo no abismo. A “dor e a delícia” de mergulhar de cabeça no abismo, sem tela de proteção e sem anestesia. Dez anos. O futuro é agora mesmo. E está apenas começando...

Fortaleza, 20 de novembro de 2010

80 A CRÍTICA (O CRÍTICO) COMO UM BARCO À DERIVA

Como escrever uma crítica? Me incomoda o fato de que alguns críticos, quando analisam obras cinematográficas vanguardistas, o façam a partir de um texto acadêmico, rançoso. Isso por mim já é uma contradição por si, ainda mais quando se investiga um cinema contemporâneo, um cinema grávido do hoje. Uma escrita acadêmica para se defender um cinema do futuro, um cinema que desafia as possibilidades? Quero uma crítica que vá além do filme, e para ir além do filme, ela precisa naturalmente ir além das palavras. As pessoas – e nisso incluo os próprios estudos de comunicação – ainda não conseguem perceber que para o texto ser rigoroso ele não precisa ser necessariamente acadêmico. Há uma defesa por uma “militarização da escrita”, por um “bom gosto” da escrita, que na verdade é o mesmo bom gosto academicista que recusou os quadros dos impressionistas e dos modernistas, por exemplo. É tão absurdo como se se dissesse que o cinema de Wiseman não é rigoroso porque sua câmera é trôpega. Há pessoas que escrevem sobre o cinema de James Benning como se estivessem escrevendo sobre o sétimo filme de Elia Kazan (e nem mesmo o sétimo filme de Kazan merece que se escreva desse jeito). O rigor do texto parte do olhar de quem o escreve, e não pela “militarização da escrita”. Como se pode defender um cinema antibelicista se se utiliza uma escrita militar? Como pensar o papel do crítico? Não me interessa o crítico que vomite verdades para o leitor, me interessa a

crítica que “tira o chão” do espectador, que o faz repensar o que é o filme, e não o que “o ensina o que ele deveria ter visto”. Não me interessa a crítica que “oriente”, “informe” o leitor, mas sim aquela que o “desoriente”, “desnorteie”, aquela que faça o espectador não mais saber o que é o filme que ele pensou ter visto. Uma crítica que espalhe incertezas, dúvidas. E acredito que isso só é possível de uma forma: a de que o leitor seja um cúmplice do escritor. A crítica como um barco à deriva, “totalmente” ao léu (“totalmente” em termos). Escrever passa a ser lançar-se a uma aventura na folha de papel em branco, guiada pelos sentimentos que o filme trouxe mas como ponto de partida, e não como destino de chegada. Não me interessa a crítica como um porto seguro, e sim como um barco à deriva. O crítico escreve sobre o filme, que ele no fundo não sabe bem como é. Ele escreve para tentar decifrar. Ele então divide com o leitor as suas dúvidas, as suas angústias. Ele no fundo escreve sobre si. Ele no fundo escreve para si. Ele escreve para tentar entender, mas não consegue, fracassa. “Decifra-me ou te devoro”, e o crítico é sempre devorado pela esfinge fílmica. A boa crítica é aquela preenchida pelo fracasso, consumida pelo sentimento do crítico de não conseguir dar conta do que é o filme. Como isso é possível? Através de uma escrita trôpega, e não cartesiana, retilínea, apolínea, academicista, militar. Toda a crítica é subjetiva, não existe um caráter científico, não existe método. Ou melhor, o único método válido para a crítica é a sinceridade, a honestidade, a franqueza. Espero que esteja claro que o que proponho para a crítica tem um sentido positivo, e não meramente niilista. Ou seja, o que venho falando evidentemente não significa que se pode escrever qualquer coisa, que se atirem pelo papel em branco as palavras soltas, sem encadeamento. Evidentemente não é isso o que quero defender. Mas sim a possibilidade da crítica ser algo

menos rançoso, que ela não deixa de ser rigorosa só porque fugiu do “vovô viu a uva”. O crítico deve descer do seu pedestal de “especialista” e se embrenhar na mata fechada que é o universo do filme. Deve ver o filme sentado na mesma poltrona dos espectadores, e não no camarote, convidado pelos príncipes palacianos. A crítica não deve ser usada como palanque de interesses além do filme, isto é, discursos politiqueiros (vejam bem, “politiqueiros”, e não políticos), brigas eleitoreiras, picuinhas acadêmicas, conchavos interesseiros, floreios parnasianos, etc. A crítica deve ser “desinteresseira”, e não “desinteressada”. Ou seja, a crítica não pode ser instrumento de exercício de poder (como “quem tem a razão?”, “quem tem o discurso dominante sobre tal filme?”, ou sobre “as tendências do momento”). O filme não pode ser mero joguete na briga de vaidade entre críticos. Da mesma forma que quando digo que o crítico no fundo fala de si – ou ainda, que escreve para si – com isso de modo algum quero dizer que se faz crítica por autoanálise, por mero exercício narcisista. Entender dessa forma é tão absurdo quanto alguém dizer que os filmes-diários de Jonas Mekas são meros exercícios exibicionistas, que não interessam a ninguém a não ser o seu círculo de amigos. Ao contrário, o crítico escreve para ser lido, mas que essa leitura torne o leitor mais ativo, e não meramente passivo, ou meramente apre(e)ndendo os “ensinamentos do crítico-especialista”. Essa sim é que é uma forma narcisista e egoísta de escrita. A que proponho, ao contrário, é uma forma livre, cuja leitura seja um ponto de partida para o leitor, que, a partir dela, formule o seu próprio filme. A crítica deve ser vista como um exercício impossível. Jornais, revistas, livros, sites, blogs, etc.: o meio de circulação da crítica é cada vez mais variado mas, se atentarmos bem, sua forma continua rigidamente cristalina: de um lado, a crítica como “entretenimento” ou

“informação”; de outro, a crítica como “ciência da comunicação” (a crítica acadêmico-escolar, de caráter apostolar e episcopal, formando “seitas” e “súditos” que devem se digladiar defendendo ou denegrindo o próximo filme do diretor beltrano, mesmo que ele ainda sequer tenha sido filmado). Já imagino que, a partir deste texto, as pessoas do meio já digam que estou acusando “beltrano, ciclano e fulano”, mas aqui não se trata de dar “nomes aos bois”. Não quero denegrir o trabalho de ninguém, mas apenas expressar minha insatisfação com o que leio sobre cinema. E não só no Brasil mas no mundo, já que muito do que se escreve no Brasil é copiado de um estilo de crítica que vem de fora, seja qual for o lado da moeda (é como os realizadores brasileiros que ou copiam hollywood ou copiam apichatpong). Se eu rotular, classificar, categorizar os veículos e os críticos em “A”, “B” ou “C”, estarei fazendo exatamente aquilo que eu tento combater neste texto. Não quero ensinar ninguém a escrever (este texto não pretende inaugurar um curso de “métodos como fazer uma escrita trôpega”, etc). Mas, ao contrário, esse texto pretende espalhar dúvidas, incertezas, dividi-las com o leitor. E não afirmar verdades sobre a crítica, ensinar às pessoas como se deve escrever. O máximo que esse texto pode ser é um ponto de partida, que leve a um questionamento de qual é o papel da crítica e do crítico. Se ele fizer isso, terá cumprido o seu papel. (Cinecasulofilia, 06/09/2010)

84 CASCADURA

Hoje, com a Internet, fazer uma lista de melhores filmes de 2009 segundo os filmes que estrearam comercialmente no RJ-SP faz tanto sentido quanto fazer uma lista de melhores peças de teatro de 2009 entre as que foram exibidas no bairro de Cascadura.

(Cinecasulofilia, 09/04/2010)

85 PRIMEIROS TEXTOS

[estes dois textos, escritos em 2001, marcam um momento de efervescência no cenário audiovisual carioca, em torno dos antecedentes de criação da Mostra do Filme Livre. Neles, procuro demarcar um território de crise, seja de um modelo de produção, seja de um modelo de difusão. A produção em 35mm e os grandes festivais já mostravam sinais de esgotamento.]

EXISTE CINEMA INDEPENDENTE NO BRASIL?

Afinal, existe cinema independente no Brasil? Mas, para começar, o que vem a ser cinema independente? Para alguns, cinema independente seria um cinema avesso ao modo de produção dos grandes estúdios. Nesse caso, todo o cinema brasileiro seria independente, porque parte de um projeto de cinema periférico. Ou, em outras palavras, todo o cinema que não seja hollywoodiano seria independente. Mas o que significaria o “independente”? Independência poderia se relacionar tanto a um conceito econômico quanto cultural. No caso econômico, seria um cinema que conseguiria prover os meios para se sustentar mesmo sem

a megaestrutura dos estúdios. Isto é, com orçamentos reduzidos, equipes mínimas, produção ágil, e atendendo a um público específico, com um interesse especial em projetos que fujam do protótipo do cinemão. Nesse caso, praticamente nenhum cinema brasileiro é independente. Porque, como sabemos, quase todo filme brasileiro para existir precisa de apoio governamental, já que sua bilheteria (por uma série de motivos) não paga nem 1% de seus custos. O lado mais complexo da questão no entanto é o conceito cultural. Um filme independente, nesse caso, seria um filme que abordasse valores, costumes, hábitos que não são abordados pelo cinemão. Enquanto o cinemão pensa exclusivamente nas leis de mercado, como um puro negócio cujo objetivo principal é a geração de lucros, o cinema independente pode exercitar linguagem, questionar a sociedade, as estruturas de poder, propor uma espécie de ensaio audiovisual, ser um cinema político, enfim, não ser primordialmente um produto a ser consumido. No entanto, muitas vezes se torna difícil definir se o filme é ou não independente tendo em vista este quesito. O verdadeiro cinema independente, portanto, deve unir esses três pontos: i) não vir de Hollywood, ii) ser financeiramente auto-sustentável e iii) não deve visar em primeiro lugar o lucro, mas sim um aspecto cultural. Desse ponto pergunto: qual é o cinema independente no Brasil? O próximo filme da Xuxa é independente? Sim, se pensarmos no primeiro critério, e talvez, se pensarmos no segundo. Estorvo, de Ruy Guerra, ou o próximo filme de Júlio Bressane, são independentes? Sim se pensarmos no primeiro e terceiro itens, mas não se pensarmos no segundo.

No entanto, são tipos completamente diferentes de independência, e isso deve ser repensado nas políticas de apoio governamental. A intervenção do Estado se justificaria para corrigir as ditas “falhas de mercado”, isto é, numa tentativa de corrigir ou equiparar nítidas discrepâncias. Por um lado, é claro que um filme brasileiro como Xuxa Requebra tem uma dificuldade natural para competir com um blockbuster americano como Jurassic Park, mas ambos têm o mesmo objetivo: o mercado. Mas se é difícil para a Xuxa, o que será para Ruy Guerra? Dessa forma, parece injusto que tanto o filme da Xuxa quanto o dito “filme de arte” tenham os mesmos privilégios e benefícios das leis de incentivo. Mas, por outro lado, existe um tipo de filme que ainda é “menos independente” que o filme da Xuxa, por mais incrível que isto a princípio possa parecer. Vejamos, por exemplo, o caso de filmes como Tolerância, A Hora Marcada, ou mesmo Guerra de Canudos. São filmes que só podem ser chamados de independentes se considerarmos o primeiro critério. São filmes caros, lentos, com cuidadoso processo de produção, e que visam essencialmente o mercado (No caso de um filme como Guerra de Canudos, ainda podese usar como desculpa a parte histórica como conceito cultural, mas isso é enganoso, já que o filme não se propõe a nenhuma reflexão crítica sobre o momento histórico, em contraste com Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro, por exemplo). Como é possível então defender o apoio estatal a este tipo de filmes? É preciso observar, então, que existe uma boa parcela de filmes brasileiros que fazem pose de independentes, mas no fundo é tudo pose. São no fundo puro cinemão feito no Brasil. É possível argumentar que, se houvesse um maior

número de salas de cinema, maior poder aquisitivo do consumidor, uma política cinematográfica mais ativa, etcetera, etcetera, esses filmes, no médio e longo prazo, poderiam ser rentáveis. Mas é um pensamento ainda muito distante da nossa realidade. No fundo no fundo, esses filmes só não são cinemão por pura incompetência de seus realizadores, que adorariam ter sua marca de enlatados “made in USA”. (Zine Incinerasta n. 11 – Agosto de 2001)

PRA QUE SERVE UM CURTA?

Atualmente, os realizadores independentes, isto é, aqueles que não possuem a estrutura de uma grande produtora ou que não receberam um prêmio de algum concurso ou das leis de incentivo, precisam praticamente vender a alma ao diabo para finalizar um filme em película. Além de gastar todas as suas economias (e o limite de seu crédito na praça), ficam devendo uma série de favores a Deus e ao mundo, perdem um semnúmero de amizades, brigam com os laboratórios e produtores. Por isso, uma pergunta é sempre relevante: pra que se faz um curta-metragem hoje no Brasil? Passados todos esses desafios, e finalmente finalizado o filme, uma luta adicional ainda deve ser enfrentada. Como fazer para que esse filme seja visto? Os únicos canais de exibição dos curta-metragens brasileiros são os festivais. Por isso, a participação de um curta, especialmente em 35mm, num festival de curtas passa a ser disputadíssima. Mas como um festival pode exibir um curta de um cineasta iniciante? Deixando de fora o novo curta do Jorge Furtado, ou da Rosane Svartman? Existem notáveis exceções, mas

raras, como a exibição de Cão Guia no Festival de Brasília. Mas apenas uma exceção. Como nenhum festival gostaria de deixar de exibir o novo curta do Jorge Furtado, na verdade é praticamente o mesmo grupo de curtas que circula em quase todos os festivais brasileiros, enquanto vários outros não conseguem participar de nenhum deles. Por isso, haveria um equilíbrio maior com a necessidade do ineditismo para a sessão competitiva desses festivais, exibindo os demais filmes numa mostra paralela. Mas por outro lado, para ter uma chance de disputar um grande festival, os novos cineastas muitas vezes acabam, ao realizar seus filmes, adotando uma escolha estética e ideológica que se encaixa no perfil geralmente conservador desses festivais. Caso consigam, ficam felizes, porque têm a oportunidade de serem vistos por um grande público, realizar contatos que poderão possibilitar a realização de novos projetos e garantir seu futuro no meio cinematográfico. Ou seja, sua decisão se ampara em um objetivo meramente político. Mas voltando à questão: pra que serve um curta? Pra isso? Apesar de todo o incentivo que esses festivais de cinema vêm dando para o formato do curta-metragem, possibilitando a discussão e a exibição de curtas de origens diferentes e fazendo despontar novos nomes no cenário da realização brasileira, é preciso ver que esse modelo pode causar algumas distorções. Assim sendo, um “bom curta” passa a ser o curta exibido nos festivais, especialmente o vencedor de prêmios. O curta-metragista precisa demonstrar que possui inevitável domínio narrativo e técnico, saber cativar a audiência e conquistar os bastidores, para “provar” que tem as condições para realizar seu primeiro longa-metragem. Fazer um curta premiado, então, muitas vezes passa a ser uma

condição obrigatória, um passo necessário para que o novo realizador possa sonhar com seu primeiro longa-metragem. Essa visão pragmática, apesar de eficiente no curto prazo, em geral leva os problemas para o longo prazo, quando o cineasta terá que resolver os problemas de seu primeiro longa em relação a como apresentar cinematograficamente uma visão de mundo e de cinema. Dessa forma, mais interessante que realizar um “bom curtametragem” é descobrir seus meios próprios de expressão, trabalhando com o formato específico do curta-metragem, ou seja, é descobrir-se. Um exemplo típico são os primeiros curtas de Wim Wenders. São curtas ousados, que isoladamente passariam desapercebidos em qualquer festival de curtas. No entanto, são o pontapé inicial de uma obra, isto é, já desenvolvem, ainda que de forma incipiente, uma série de conceitos e idéias que indiscutivelmente formam uma base para seus posteriores longa-metragens. Não importa que esses curtas, por si só, sejam bons ou discutíveis. Mais importante são que eles formam um caminho de aprendizado e aperfeiçoamento, de uma descoberta e um primeiro trabalho com questões que serão posteriormente seguidas. São curtas cujo valor só pode ser descoberto tendo-se uma visão de conjunto da obra do realizador, como parte de um processo. É essa característica que pode se perder com as medidas restritivas dos grandes festivais brasileiros. Mesmo que ainda se considere o curta-metragem simplesmente como um caminho para o longa, o que já envolve uma série de restrições, a necessidade de ser selecionado para os grandes festivais pode implicar no longo prazo uma limitação da ousadia e da descoberta que se refletem até mesmo no próprio longa-metragem nacional.

Mas é isso o que procuram os novos realizadores? Pra que serve um curta? É preciso antes de tudo ressaltar que uma boa parcela de realizadores tem como objetivo simplesmente participar dos festivais, fazer com que os filmes sejam feitos, receber os convites e estabelecer os contatos para que outro filme seja feito, de modo que seu ingresso no festival do ano seguinte esteja garantido. Porque, acima de tudo, e como sempre, há sonhos e sonhos que compõem o cinema brasileiro. (Site Curta o Curta - Outubro de 2001)

92 CURTAS

[os novos valores surgem em geral através de curtas, e o formato cada vez mais assume importância fundamental para se pensar uma produção contemporânea. No entanto, são raros os textos que se debruçam sobre esse formato, ainda marginal. Mas como é exatamente a marginalidade que aqui nos interessa, nada melhor que começar por eles, os curtas! Os textos selecionados não possuem a ambição de destacar os trabalhos mais relevantes dessa década, mas são simplesmente exemplos de olhares singulares que contribuem para o contexto de sua época].

UM SOL ALARANJADO, de Eduardo Valente

[minhas relações com a chamada ‘nova crítica’ nunca foram sem tensões. No entanto, eis um texto sobre o primeiro curta do crítico Eduardo Valente, escrito antes de sua consagração com a premiação no Cinéfondation no Festival de Cannes. Visto de hoje, o curta de Valente foi um dos primeiros dessa época a ter grande visibilidade internacional, associado a um modo de produção barato e simples, e um desejo de diálogo com uma cinefilia. Esse conjunto de fatores produziu um dos mais notáveis curtas dessa década]

Na primeira exibição pública no Rio de A Hora da Partida, último filme do taiwanês Tsai MingLiang, no horário de um jogo decisivo da seleção brasileira em sua campanha nas eliminatórias da Copa e na iminência da eclosão de uma guerra mundial, lá estava um jovem realizador, como de costume, na segunda fileira de poltronas, que provavelmente deveria estar soltando boas gargalhadas, embora silenciosas, com o filme. Era Eduardo Valente, que já tinha o seu Um Sol Alaranjado praticamente finalizado. Dada sua natural posição de liderança no cenário da UFF, seu papel como crítico, aliado à sua obsessiva e incansável cinefilia, e seu livre trânsito na organização de eventos e na coordenação de festivais de cinema, a expectativa em torno do projeto de realização de Valente era das maiores. No entanto, Valente conseguiu superá-las com a simplicidade e a serenidade que sempre lhe caracterizaram.

Um Sol Alaranjado é tudo o que o cinema universitário pode ser. Filmado em 16mm e pretoe-branco, com som direto, em locação, no interior de uma única casa, sem nenhum movimento de câmera, é um filme que, ao invés de tentar esconder sua suposta precariedade técnica, ao contrário, busca extrair suas virtudes exatamente a partir de um diálogo íntimo com suas impossibilidades. Trata-se de uma enorme lição para o atual cinema brasileiro, que cisma em varrer suas deficiências para debaixo do tapete. Valente vai ao cerne da questão quando nunca confunde simplicidade técnica com desleixo ou mau acabamento. É preciso observar que, apesar de toda a simplicidade técnica do filme, o ótico foi realizado nos Estados Unidos.

No entanto, Um Sol Alaranjado não é um exercício de linguagem, nunca é mero recurso esteticista, porque o que importa em cada fotograma do filme é a vida, o mundo, as pessoas. A influência do cinéfilo se faz presente quando o filme busca, para sua maior inspiração, os recursos do cinema japonês. A estrutura familiar, o conflito entre tradição e modernidade, a reavaliação da importância da rotina, a indireta referência à repressão sexual e a tragicidade do destino nos fazem lembrar de um leque que vai de Ozu, Oshima, Teshigahara até, é claro, o Tsai de A Hora da Partida. *

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Uma mulher (mulher?) que nada lhe resta a não ser o seu pai. Um pai, que nada lhe resta a não ser sua filha. Um equilíbrio. Do outro lado, o destino. A impossibilidade da imanência. A brevidade da vida. Como então é possível sobreviver ante nossa pequenez? O que nos desconcerta ao assistir a Um Sol Alaranjado é que todo o rigor que envolve o filme não consegue esconder uma profunda ternura. A imobilidade da câmara inspira um distanciamento e uma intimidade. De um lado, a ternura do amanhecer, a relação implícita entre filha e pai, a generosidade em aceitar os limites do outro, a tolerância. De outro, o enclausuramento, a austeridade da câmera imóvel e do preto-e-branco, a repetição. Evitando qualquer tentativa de explicitações psicológicas, a terrível presença do destino evidencia a difícil fragilidade que envolve nossa existência.

Por outro lado, Valente não busca nossa comoção, e não é apenas o distanciamento do filme que nos mostra isso. É preciso observar a ambiguidade dos personagens, e como o filme assume que às vezes eles se tornam incrivelmente patéticos. O crítico Fernando Veríssimo, em tom de claro exagero, chegou a confessar que a segunda parte do filme era uma comédia. E é exatamente isso o que o aproxima do cinema de um Tsai. É a partir da impossibilidade da permanência que buscamos subterfúgios para manter um equilíbrio que não pode mais ser mantido. Mas o que fazer sem ele? Como deixar de alimentar a saudade sem que definhemos? Muito mais haveria a ser dito sobre o filme de Valente. O belíssimo uso do som, o diálogo extremamente ambíguo entre o materialismo e o espiritual (a única palavra do pai ocorre no instante de sua morte), o caráter cíclico do filme, o papel da diferenciação de um e outro dia pelo plano geral e o plano próximo, a sugestão de um tempo e espaço pelo som do rádio e da televisão (a TV chega a falar em FHC), a sugestão quase freudiana de uma inclinação sexual, o final profundamente reticente, o desconcertante rockand-roll nos créditos finais. Neste breve espaço, só podemos deixar para a imaginação do leitor. Não podemos, no entanto, nos abster de um plano-síntese, daqueles que marcam anos nas salas de cinema. É a filha dando banho no pai morto. A ternura e o grotesco, a purificação e a sordidez, o desespero mudo e a fragilidade do Homem, a transcendência e o vazio da rotina, o caráter cíclico. São nesses momentos em que a vida e também o cinema nos parecem uma terrível circunstância, mas profundamente necessária. (Site Curta o Curta, 11/12/2001)

10 CURTAS BRASILEIROS RECENTES QUE VIRARAM A MINHA CABEÇA (SEM ORDEM DE PREFERÊNCIA)

Esses não são os melhores curtas dos últimos dez anos. São apenas filmes que viraram a minha cabeça, que não me deixaram dormir naquela noite após a exibição, que me transformaram numa outra pessoa após tê-los visto. São curtas de amigos ou conhecidos que me mostraram novas possibilidades para o audiovisual, que me ofereceram soluções para algumas questões estéticas sobre o cinema ou para algumas questões existenciais sobre a vida, o que no final das contas acaba dando no mesmo. São dez curtas brasileiros recentes que nunca mais sairão de mim, como se fosse uma tatuagem no meu corpo. Para o bem e para o mal. Ei-los: 1 - LICOR DE ARBUSTO, de Rafael Prata Duarte Rafael foi humilhado naquele Festival Universitário, porque ninguém poderia aceitar um filme como esse: uma ilha, um cometa, uma obra imperfeita, maldita. Ele teria que ser pisoteado e torturado pelo filme; ele não poderia escapar ileso, por sua audácia. Licor de Arbusto, estranho como o próprio título, é um filme sobre a fragilidade, sobre uma enorme busca por um cinema que não cabe nem na tela nem dentro de nós, e que nos deixa com muito mais perguntas que respostas. 2 - AMADOR, de Luiz Pretti A primeira vez que vi um filme dos Irmãos Pretti (foi em Estética da Solidão) eu descobri um mundo, eu vi a possibilidade de fazer trabalhos intimistas com os recursos que eram possíveis.

Era um cinema impossível com o que era possível. Em Amador todo o cinema dos gêmeos está lá: os planos extremamente alongados, essa visão do enorme vazio das coisas, essa dificuldade de dizermos uma palavra uns aos outros, esse enorme rigor com o quadro e com o tempo e esse eterno relaxamento com as aparências, porque o que importa, sempre, é a essência das coisas, mas ela é sempre fugidia e imperfeita. O título, extraordinário, é uma declaração de princípios sobre tudo o que está em jogo: o cinema amador, o amor e a dor. O filme, de cortante simplicidade, revela esse enorme abismo de meio metro entre a vida, a criação, o outro e a liberdade plena. 3 - ENQUADROS, de Ivo Lopes Araújo O cinema do Ivo é sempre recheado por um abismo, por uma distância de uma geografia física e pela distância de uma geografia íntima. Em Enquadros, essa falta de um mundo é associada com o processo de criação. Interior e exterior, rotina e improviso, luz e sombras, planos fixos e fusões, planos gerais e planos próximos: sem nenhuma palavra, Ivo percorre um estado de coisas do artista que vai além do descritivo para tocar uma metafísica do mundo, sempre a partir dessa doce distância em que realiza seus trabalhos sobre a solidão humana. 4 - O LIVRO, de Aleques Eiterer Incompreendido e pouco lembrado, este curta de Aleques tem uma historiazinha quase banal: um livro passa de mão em mão, dos jovens aos velhos. Mas a visão de mundo de Aleques joga a narrativa pro alto: lento, cíclico, fatalista, em pretoe-branco, toda a tristeza do mundo leva O Livro para o seu misterioso final, uma verdadeira obra-prima: os planos vazios, em que não há mais nada, nem livro nem pessoas nem vida, só o cinema talvez como testemunha mórbida do fim de tudo.

5 - AÇÃO E DISPERSÃO, de Cesar Migliorin Subversivo, irônico, provocador, Ação e Dispersão é um enigma, obra de várias camadas e significações, que se multiplicam, que se dobram sobre si mesmas, que se interpolam: de um lado, filme-manifesto sobre um cinema brasileiro; mas de outro, por trás desse verniz sarcástico, revela-se um retrato profundamente afetivo sobre o vazio de uma viagem, sobre a inutilidade da peregrinação humana e a fugacidade da memória. 6 - O LENÇOL BRANCO, de Marco Dutra e Juliana Rojas Doloroso, quase cruel, esse retrato extremamente cuidadoso e observador sobre a rotina de uma mãe logo após a perda de seu bebê recém-nascido se transforma aos poucos numa crônica familiar e num conto gótico de terror. Sua atmosfera sinistra é construída com um mínimo de elementos: basicamente a partir da maestria da direção e da decupagem, numa sinfonia de tempos, olhares e meios-gestos sempre exatos e sempre enigmáticos, como a própria natureza humana. 7 - NASCENTE, de Helvécio Marins Jr Nascente representa o cinema de BH, que é hoje o melhor cinema do mundo, um cinema que abraça um diálogo entre as artes plásticas e o audiovisual, que abraça um país sem paternalismo ou sem apologia da miséria, que abraça um cinema dos sentidos e das novas possibilidades de frescor da narrativa. Delicado, intimista, poético, Nascente é o que de melhor a Teia e o novo cinema mineiro têm feito por esses tempos. 8 - GUERRAS, de Luiz Rosemberg Filho O cinema de hoje dialoga com o de ontem, ou ainda, o cinema de ontem é o cinema de sempre, caso não se pare no tempo, caso ainda se queira dizer com a mesma intensidade de sempre. O veterano Luiz Rosemberg Filho realiza um vídeo artesanal

de grande impacto emocional, resgatando a força da palavra e do monólogo, combinando imagens de arquivo com jogos de luz e sombras, combinando a desilusão do terror do mundo capitalista com a paixão pelo ato de criar e de viver. 9 - QUEM NAVEGA NO MAR SEMPRE ENCONTRA UM LUGAR, de Dellani Lima O filme zen de Dellani Lima é mais um exemplar do cinema mineiro: um cinema de observação, deslumbrado pelas possibilidades da imagem e do registro como forma de iluminação. Um pouco atípico de seu trabalho posterior, Quem Navega no Mar é um filme de percurso: percurso dos animais, percurso da câmera, percurso do olhar, percurso da alma que, de um lugar a outro, se encontra por se perder, se acha porque existe como percurso, observando-se a si mesma como um enorme espelho por onde passam todas as coisas. 10 - COLEIRA DE ABUTRE, de Walter Fernandes Jr. Irreverente, fragmentado, provocador, o cinema de Walter Fernandes é o da crônica carioca farsesca, é o cinema marginal debochado, é a desconstrução da possibilidade do discurso. Quase surrealista, Coleira de Abutre provocou uma enorme interrogação no Festival Universitário quando exibido pela primeira vez, mas marcou um conjunto de pessoas que passou a admirar sua anarquia e seu inconformismo. (Cinecasulofilia, 29/01/2007)

AMADOR, de Luiz e Ricardo Pretti É um vídeo de oito minutos que se passa dentro de uma casa. Existem os cômodos dessa casa, o espaço lá fora da casa, sempre fora de quadro, os corredores. Esse espaço íntimo não se torna, no entanto, acolhedor. No plano que talvez mais represente a proposta do filme, Ricardo caminha pela sala com um bloco de notas à mão. Enquanto ele ziguezagueia entre o primeiro plano e o fundo, está construindo um campo de visão. Sua trajetória descreve um espaço. Seu deslocamento, no entanto, não delimita um percurso dramatúrgico, como no cinema hollywoodiano. Seu deslocamento revela um não-espaço, um não-estar lá. Ao mesmo tempo cria o espaço fílmico, em formação. Enquanto caminha num não-lugar, percorre esse espaço fílmico traçando as notas num bloco de papel. Amador Ama-dor Amor Morada Não é que eles não dialoguem com o mundo externo. Eles o fazem mas sempre de dentro desse casulo (o telefone, a janela). Se o mundo lá fora responde aos chamados deles, nós (os espectadores) não sabemos. Ao final, enfim, a criação. A criação a partir da matéria-prima do filme: o silêncio, a dor, a distância, a fixidez. A partir disso, a criação: a música, o amor, a intimidade, o movimento. Movimento dos músculos e do espírito. Metalinguagem, gênese do processo criativo, morfologia da vida. (Cinecasulofilia, 14/07/2006)

OUTUBRO, de Murilo Hauser O que pode ser um curta-metragem senão uma espécie de declaração de princípios do que se espera da vida e do cinema? O que ele pode ser a não ser um mergulho num sentimento de ser? Em Outubro, Murilo Hauser faz muitas coisas, sugeridas de forma indireta: primeira, um filme sobre jovens; outra, um filme sobre Curitiba. Mas essas duas coisas surgem através do filme, porque a natureza de Outubro é ser um filme sobre como as superfícies fracassam em mostrar a natureza do ser. “Leva-se muito tempo para ser jovem”. Tudo começa num primeiro plano, um dos mais exatos e perfeitos do curta-metragem brasileiro recente. A câmera começa lá fora e avança para o interior desse quarto, repartindo uma intimidade que parece não mais ser possível. A partir daí, morte, ressureição, confissão. Outubro é como o seu próprio título já anuncia, seja por meio de sua sonoridade, um som gutural, valorizado pelas vogais fechadas e pelas consoantes duras, seja por meio da analogia livre e aberta com a narrativa. Ou seja, um filme de contextos abertos e de sons fechados. Através de lentíssimos movimentos de câmera, temos impressões da vida dessa jovem, tentamos entender porque ela se suicidou (o que já é anunciado nesse primeiro plano do filme). E não temos respostas, mas compartilhamos uma sensação de melancolia e desalento. “Sempre seguir o seu coração”. Por trás do rigor de Outubro, da estética de planos longos, da simetria dos movimentos, um filme sobre viver, ou melhor, sobre não-viver, sobre estar cansado de tudo, sobre não mais suportar ter que se levantar da cama e enfrentar o dia-a-dia. Mas como fazer isso? Como é possível para o cinema, para o filme de curta-metragem, refletir esse desencanto, mas

sem deixar uma ternura respeitosa, sem virar exploração da miséria do mundo? As respostas que Outubro nos dá é que isso só é possível a partir de um mergulho, um mergulho profundo, mas acima de tudo um mergulho respeitoso às possibilidades do cinema e do mundo. (Cinecasulofilia, 24/02/2008)

MINHA TIA, MEU PRIMO, de Douglas Soares De desconcertante simplicidade e de rascante complexidade, esse vídeo de Douglas Soares já começa quase como um filme de Coutinho, mostrando o seu dispositivo: um sobrinho vai filmar sua tia. Mas o filme não se baseia numa entrevista, e sim numa possibilidade mágica para o documentário: não a possibilidade de “mostrar” ou “informar”, mas sim a de conviver. A tia vai viajar e o sobrinho (o diretor) vai tomar conta do passarinho dela, que ela chama de “meu neném”, trata como um filho. Esse pássaro vive numa gaiola e essa tia vive num apartamento, ou seja, essa tia se confunde com esse pássaro ao longo de todo o filme, porque todo o filme se passa nesse apartamento e a tia fala de uma viagem que nunca vem, como se fosse o passarinho que olha para fora da casa. Mas a coisa mais incrível é que todos nós vivemos nessa gaiola chamada mundo e Douglas enclausurou o próprio enquadramento de seu filme num quadro dentro do quadro, de modo que o que vemos é uma “gaiola” dentro do quadro da tela de cinema. A forma como Douglas filma essa tia é de uma incrível intimidade e de um enorme distanciamento crítico. O jeito extrovertido e falante da tia evidencia cada vez mais sua solidão e sua amargura diante da vida. Citações sobre o marido morto, e indagações sobre o propósito desse sobrinho

fazer esse filme. A posição do realizador diante dessa tia (falante e solitária, alegre e triste) é de enorme poesia, respeito e desencanto. A câmera, com recursos caseiros, nos aproxima desse universo com grande intimidade, o que só nos lembra das lições de Jonas Mekas sobre como um “filme caseiro” pode nos falar do que é o mundo. Tomar conta de um pássaro dentro de uma gaiola. Prender o pássaro nela. Dar comida, alimentar com uma rotina preestabelecida. Tomar conta: guardar algo dessa tia para si. Vem a minha hipótese (mero delírio): de que essa viagem da tia nunca aconteça, seja só um produto da sua imaginação. Ou ainda de que essa tia nunca volte dessa viagem. “Minha Tia, Meu Primo”. Ou ainda, “Minha Tia, Meu Primo, Eu”. Ou mais ainda “Minha Tia, Meu Primo, Eu, NÓS”. A gaiola do passarinho (o cinema de Humberto Mauro), o apartamento dessa tia, o “quadro dentro do quadro” desse cineasta. Mal ou bem, uma família, ainda que partida, distante, próxima. A tia fala muito, as pessoas gostam do filme pelos motivos errados, pelo tom jocoso das palavras da tia. Mas são palavras duras, ácidas, elas doem. Por que Douglas não desliga sua câmera? Por que não soltar esse passarinho? Por que não saímos desse nosso apartamento do dia-a-dia e vamos viajar, para torrar tudo nos cassinos estrangeiros, já que agora fecharam os bingos vizinhos? Minha Tia, Meu Primo é um grande filme, porque, não satisfeito em mostrar de forma simples, crua e nua essa personagem chamada “sua tia”, resolve falar nas entrelinhas do que são feitos o cinema e o mundo. Tudo isso em menos de 10 minutos. (Cinecasulofilia, 22/02/2008)

FESTIVAL DE CURTAS DE BH 2008: PRIMEIRAS IMPRESSÕES

ENCANTO, de Julia de Simone ISMAR, de Gustavo Beck PEIOTE, de Cao Guimarães CASA DE MÁQUINAS, de Daniel Herthel & Maria Leite MIRAVENTO, de Alexandre Brandão O olhar da câmera de ENCANTO observa menos os pássaros do que o olhar dos homens, “donos” dos pássaros. De que lado a câmera está? Estática, a princípio ela parece estar do lado dos pássaros, presos em sua gaiola. No entanto, os pássaros têm muito mais movimento que esses homens: movimento lépido dentro dos exíguos limites dados pela gaiola, movimento da modulação de seus timbres sonoros (movimento dado pela beleza, movimento de espírito). Os homens, velhos, parece que apenas aguardam a hora de morrer, e observam, estáticos, a beleza do canto dos pássaros, a qual eles tentam decifrar, em vão. De que lado então a câmera está? Ao observar esse olhar admirado mas inerte (extático e estático), a câmera parece ocupar uma distância justa, compartilhando de uma intimidade e inserindo um distanciamento crítico, que é o que nos permite afirmar que Encanto (um olhar sobre um olhar) é um filme sobre a (im)possibilidade de viver em liberdade e sobre (os limites d)a fruição do belo. ISMAR é um falso título (percebam, não um título falso), pois esse curta não é sobre o personagem-titulo e sim sobre o que a mídia faz com as pessoas, ou ainda, como a mídia usa o espetáculo para banalizar o sonho das pessoas. Imagens para falar de imagens, “discurso” para

falar de “discursos”, Ismar se utiliza das imagens de arquivo com força inegável porque opta em mostrar mais do que em dizer. Mas a grande virtude de Ismar me parece ser a de não construir um discurso de vitimização ou de mera crítica negativa a um sistema: seu enfoque intimista resgata justamente a possibilidade do indivíduo (ou talvez em última instância a possibilidade própria do cinema contra a TV) transcender a exploração da imagem através do sonho (isto é, como se pode ver pelo seu sugestivo final, Ismar também é sobre a liberdade do canto dos pássaros). PEIOTE é um trabalho menor dentro da vistosa filmografia de Cao Guimarães. No entanto, por outro lado, é um trabalho formidável exatamente pela sua possibilidade de ser “menor”, por ser um trabalho de enorme coerência e continuidade com muitos dos seus temas, em especial os de Da Janela do meu quarto: o acaso transformado pela lente da câmera, o balé dos corpos que transfigura o documentário quase como uma peça de ficção, um filme documentário ou uma videodança, a textura do Super8 e a idéia de duração, o final como tentativa de desfecho ficcional, a ingenuidade criativa do mundo das crianças, etc. A polêmica premiação do Festival de BH apontou para um conjunto de descontentamentos (de uma parte e de outra), mas talvez o prêmio mais equivocado tenha sido o de melhor filme mineiro para o CASA DE MÁQUINAS. Não que o filme seja um equívoco total, ao contrário, sua boa realização é incontestável, mas ele representa tudo o que o bom cinema mineiro não pretende ser: por trás de sua excelência técnica no manejo dos recursos da animação, Casa de Máquinas fala de uma complexa estrutura que funciona quase como um autômato, retroalimentando a continuação do seu processo, eminentemente mecânico. Frio,

tecnicista, mecanicista, é o avesso do melhor cinema mineiro, que vem se consagrando através da busca pelo risco, pela vida, pela poesia. Por outro lado, há um trabalho singelo, lúdico, em direto diálogo com o cinema mineiro e a videoarte, que é o MIRAVENTO. A fabricação de um artefato não assume o papel tecnicista e mecanicista de Casa de Máquinas, mas, ao contrário, o que importa aqui é um mergulho em um cinema poético em que o percurso e o processo revelam-se quase como que matérias-primas básicas para sua feição (isto é, é um curta sobre o seu próprio processo de criação, uma metalinguagem), além de permitir uma rica integração com um espaço físico (uma natureza) que o faz assumir outras proporções, maiores que o simples funcionamento deste artefato. Ou seja, é o antípoda de Casa de Máquinas. (Cinecasulofilia, 10/08/2008)

DOIS CURTAS O MENINO JAPONÊS, de Caetano Gotardo CONFESSIONÁRIO, de Leonardo Sette Não conseguirei escrever como gostaria sobre dois curtas que assisti no Curta Cinema. Tentarei aqui dar breves esboços porque esses são dois curtas tão exemplares. Para mim, foi muito impactante ter visto O MENINO JAPONÊS curiosamente logo depois de ter escrito um texto sobre o uso do contracampo em Não Amarás. Porque em grande medida esse belo curta do Caetano Gotardo faz o mesmo: usa o contracampo como uma ontologia de ver o mundo, como um processo de libertação do olhar em ver o outro, e, em vendo

o outro, acaba vendo mais sobre si mesmo. Para mim é muito significativa a escolha do próprio Caetano ser ator do filme, e seu personagem (personagem?) ser um cineasta. Vendo o próprio diretor ali, de corpo e alma, fica ainda mais clara essa relação de ver o outro como uma dobra de si mesmo. E nossa: como é lindo, como é maduro, dá gosto de ver a consciência do realizador sobre os elementos de linguagem. O Menino Japonês tem muitos paralelos com Areia, e a meu ver, avança muito em relação ao anterior: também é um filme sobre um diálogo tendo como contracampo agora não o mar de água e sim o mar de prédios. É lindo também como, à medida que vai anoitecendo, o filme vai trabalhando diferentes relações de espaço relativo à profundidade de campo, coisa que também era trabalhado em Areia (o foco). Como o filme retoma tanto o Feito Não Para Doer, o primeiro filme do Caetano (a dor, o ônibus) como também O Diário Aberto de R. ( o olhar, a relação homossexual). Ou seja, extremamente coerente com sua filmografia, Caetano ainda ousa avançar, problematizar, questionar, simplificar para complexificar. O Menino Japonês – filme japonês, filme paulista – é ainda metalinguagem, filme sobre o olhar, filme sobre o uso do contracampo, filme sobre o desejo, filme sobre a fabulação, filme sobre a adequação da voz off, filme sobre como “colocar-se em cena”, filme sobre em que medida se pode (ainda) fazer um filme pessoal. A singeleza com que Caetano consegue tudo isso sendo extremamente fiel à sua filmografia é absolutamente admirável. CONFESSIONÁRIO é um documentário em um único plano (sic), um depoimento de um padre jesuíta em contato com uma tribo indígena. Além da fascinante questão que o depoimento desse padre coloca, é um filme que acima de tudo aponta para o seu próprio processo de construção. É que o depoimento desse padre é subitamente interrompido

com um aviso do diretor que ele precisa parar para trocar a fita da câmera. Dessa forma, o curta de cerca de quinze minutos se encerra. Isso aponta para várias coisas. A primeira é o caráter peremptório, precário, do documentário, em que temos acesso sempre a um recorte, a uma fração incompleta de algo muito maior, que necessariamente será interrompido, pois a vida é um recurso escasso. Mas Confessionário vai mais além do que isso, é mais complexo em sua autoreferencialidade: isso ocorre pois, quando o diretor interrompe avisando que precisa trocar a fita, ele não o faz imediatamente, continua filmando o velho senhor se levantar da mesa e fechar a porta (ou seja, havia mais fita). Apontar de forma sutil essa “questão ética” nos faz refletir sobre a verdade, de que forma a verdade pode estar impressa em um documentário, ainda que o nível de “manipulação” do diretor seja mínimo (um plano de quinze minutos com câmera parada, um depoimento de um senhor para a câmera, em que a voz do realizador só é percebida no final). “Verdade” que pode ser pensada em várias medidas, pois o próprio depoimento do velho padre afirma, num determinado trecho, que, num certo dia, ele colhe um depoimento de um índio, e percebe que esse depoimento não era verdadeiro. Ou seja, o relato oral é falho, parcial, suscetível a manipulações de várias naturezas e, na mesma medida, aponta para nós o que o velho pode estar fazendo diante da câmera (pode estar, não sabemos ao certo), de modo que temos acesso apenas a uma visão dos fatos, parcial, incompleta e precária. Dessa forma, é brilhante como, se prestarmos bem atenção, na verdade Confessionário não é um filme de um único plano: no início há fotografias que mostram o padre e os índios, outros “documentos” que possam mostrar essa relação possível. No entanto, as fotografias nos dizem pouco, nos dão outras informações precárias e parciais. Há um momento em que Sette corta para um plano detalhe

da expressão do rosto do padre. Talvez o rosto, os olhos do padre possam nos dizer sobre seu verdadeiro sentimento em relação a esses índios. Mas o tempo foi “desbotando” a fotografia de tal forma que não conseguimos ver com precisão essa expressão: o close up acaba totalmente “pixelado”, desfigurando o rosto desse homem. Como saber a verdade então? Por trás da aparente simplicidade de Confessionário, Sette insere um conjunto de questões atuais sobre a natureza do documentário, problematizando a ingenuidade do registro, problematizando sua própria posição em relação ao entrevistado, de maneira absolutamente notável por seu enorme poder de concisão e economia. (Cinecasulofilia, 29/11/2009)

O MUNDO É BELO (OU O CÉU DE FORTALEZA)

O MUNDO É BELO, de Luiz Pretti Ontem eu tive uma breve conversa com a Natália Bezerra, e essa conversa me deu vontade de escrever um pouco sobre O Mundo é Belo, do Luiz Pretti, recém selecionado para o Festival de Veneza, e ainda inédito no Brasil. Tenho a impressão, ainda que possa ser um mero delírio egocêntrico – a ser confirmado pelo autor –, que esse curta é uma espécie de prolongamento de uma vídeo-carta que o Luiz mandou para mim. Essa carta, por sua vez, é uma resposta (um retorno, um diálogo) a uma série de vídeo-cartas que mandei para os amigos cearenses ao longo de

quase um ano, um conjunto de seis vídeo-cartas, e que geraram essa única resposta filmada. Ainda assim, acredito, como cheguei a falar anteriormente, que as respostas a essas cartas foram múltiplas e íntimas, ainda que não tenham gerado necessariamente outras vídeo-cartas, mas são retornos mais sutis e inconcrescíveis, que resultou também, em última instância, em minha própria presença física aqui no Ceará. De todo modo, a própria seleção de O Mundo é Belo para o Festival de Veneza sinaliza uma resposta concreta, se for possível essa associação entre essa vídeo-carta do Luiz com o curta em questão. A afirmação de que essa associação existe se baseia em três coisas, que na verdade são uma só, e são múltiplas: a de que ambos os curtas são cartas, feitas com uma câmera precária (uma cybershot ou uma câmera de celular, o que dá na mesma) e especialmente o singelo fato de que ambos os curtas são filmes sobre o céu de Fortaleza.

O Mundo é Belo é uma carta, ou seja, é um curta que poderia se chamar “crônica de uma separação”, ou ainda, “crônica de um relacionamento”. Com isso, quero dizer que uma outra forma de ver esse curta é considerá-lo como um epílogo, ou ainda, como um prelúdio. De outra forma, posso dizer que O Mundo é Belo é sobre não tanto a dificuldade mas essencialmente a necessidade de dizer uma palavra ao outro, e dessa forma, dizer uma palavra a nós mesmos. Para tanto, é preciso saber observar. Assim como a vídeo-carta, O Mundo é Belo é repleto de imagens de céus e uma voz-over confessional que expira os pensamentos do autor. Acontece que não são imagens de um céu qualquer, e sim imagens do céu de Fortaleza, e isso para o autor tem um sentimento particular, apesar de que a cidade não seja a sua cidade natal, mas talvez

seja mais forte do que isso. Não existe uma nostalgia, uma melancolia, mas um desejo de ver, um desejo de estar e um desejo de ser. Um desejo de pertencimento a algo que não necessariamente se é. As pessoas que moram ou que já passaram por Fortaleza sabem que é quase impossível caminhar pela cidade à tarde, quando o sol queima a moela dos passantes. A vídeo-carta era sobre, ainda assim, a possibilidade de ver esse céu e ver esse sol como uma potência. Uma possibilidade de conviver, de olhar para esse sol. Uma necessidade de continuar caminhando, apesar do sol, ainda com o sol. Mas o sol é duro, e a cidade é dura, tão dura quanto o sol. Ainda assim, é preciso continuar caminhando, continuar pensando sobre o sol. As imagens, da mesma forma, são tão duras quanto o sol. A câmera de celular, o cybershot, filmam o sol (o céu) sem lentes ou filtros que envolvam esse céu-sol numa beleza plástica, na plasticidade da imagem. Há um olhar duro, pixelado, fragmentado, para esse objeto-coisa. E ainda assim existe uma enorme beleza nesse solcidade. A seleção de O O Mundo é Belo para o prestigioso Festival de Veneza não faz o filme melhor ou pior. Mas aponta para uma coisa fantástica, destaca o curta num cenário da realização do audiovisual brasileiro, mostra caminhos e perspectivas concretas. E o mais importante: mostra que isso é possível sem “tapar o sol com a peneira”, olhando de frente para esse sol duro. O Mundo é Belo é um curta praticamente todo feito por uma única pessoa, com um câmera cybershot, sem leis de incentivo. Não é um cartão-postal do sertão cearense: é um filme duro e precário. Sim, precário, cru. Mas a

beleza desse curta é apontar que essa precariedade seja um sintoma da beleza do mundo. A beleza não está propriamente nos pixels que compõem a imagem (na imagem em si) mas essencialmente numa FORMA DE OLHAR para as imagens, que é em última instância UMA FORMA DE ESTAR NO MUNDO. Para ver a beleza de O Mundo é Belo, é preciso saber observar. Resta-nos saber se estamos preparados para isso. (Cinecasulofilia, 14/08/2010)

114 REALIZADORES

[os textos a seguir apontam para as características das obras de alguns realizadores. Esses textos não querem apontar necessariamente para os “melhores realizadores” no período, mas apenas são exemplos de um olhar atento para diretores ainda em processo de descoberta e amadurecimento.]

ANGÚSTIA E ESPERANÇA: OS VÍDEOS DE IVO LOPES ARAÚJO [este é um texto singelo sobre os primeiros curtas em video de Ivo Lopes Araújo, anteriores a seu primeiro curta em película, Uma Folha que Cai. Esses notáveis vídeos praticamente não circularam nos festivais nacionais de vídeo, que ainda permaneciam muito restritos. Nesses trabalhos, Ivo descobriu sua vocação pela fotografia, e desenvolveu o tema típico de sua filmografia: a precariedade do encontro.]

Em geral, as sessões de vídeos de realizadores independentes promovidas no Rio de Janeiro acabam em resultados desapontadores. São raros os vídeos que desistem de tentar esconder suas inevitáveis precariedades de produção para perseguir um caminho de busca por um cinema próprio. Ainda mais por sabermos que o espaço para os vídeos nos festivais brasileiros é cada vez menor e mais restritivo, o que é mais importante nesses primeiros vídeos de jovens realizadores é deixar claro o prazer pela descoberta e pelo processo do cinema. Nessas sessões de vídeos, em que se apresenta uma obra de cada realizador, existe um forte risco de se subestimar um certo vídeo, ignorando a trajetória particular de cada realizador. Esse é um caso típico dos vídeos de Ivo Lopes Araújo. O maior interesse desses vídeos está menos na qualidade individual de cada um deles, mas especialmente como eles configuram um processo de busca gradual e coerente. Exibidos separadamente, o projeto íntimo que costura cada vídeo tende a desaparecer. Daí sua recepção geralmente morna e a recusa nos cada vez mais tradicionais festivais brasileiros. *

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Ivo possui uma trajetória pessoal que está firmemente calcada em seus vídeos. Esse cearense veio para o Rio para estudar cinema na Estácio de Sá, deixando sua esposa grávida. Os três primeiros vídeos de Ivo marcam essa passagem. Por um lado, o encantamento com o cinema e a esperança de novos tempos. Por outro, um sentimento de distanciamento de seu íntimo e um desconforto. Os três vídeos - Amanhã Talvez, Reflexos de uma Reflexão e Fértil Distração mostram uma tentativa de libertação que acaba sufocada. O final pessimista insere sempre uma

idéia de ciclo. São as mãos que voltam a sufocar os sentidos em Reflexos, ou o rapaz que percebe que não saiu do interior do ônibus em Amanhã Talvez e, em Fértil Distração, o quarto e a cama que retornam ao final como inevitáveis. Esse distanciamento é marcado por um estranhamento em relação ao espaço físico. Se em Reflexos, o espaço físico é abstraído com o uso do fundo infinito, em Amanhã Talvez o cenário é a própria cidade urbana, com cenas em externas. Já Fértil Distração se passa todo no interior de um quarto, retomando a primeira parte de Amanhã Talvez. Nesse ponto, Amanhã Talvez é o mais sintomático. A tentativa de integração à natureza como possibilidade de libertação, em contraposição à caótica cidade urbana, acaba frustrada com o retorno às obrigações do cotidiano. É através, portanto, de um estranhamento em relação ao espaço físico que a impossibilidade de libertação dos vídeos de Ivo começa. Por outro lado, esse estranhamento é reforçado com um sempre criativo e cuidadoso trabalho de edição de som. É a função da música em Amanhã Talvez, os ruídos vertiginosos contrapostos com o silêncio em Fértil Distração, ou os sussurros de Reflexos. Nesse sentido, seu vídeo mais bem sucedido é Fértil Distração. Com uma estrutura dramática vigorosa, com um senso de urgência da câmera subjetiva, com o uso da dilatação do tempo sugerindo a inércia de seu protagonista, Ivo mostra a história de um jovem extremamente desconfortável em seu próprio quarto. Quando tenta sair, e finalmente consegue abrir a porta, o vídeo cada vez mais assume uma postura de enfrentamento pessoal e vigor psicológico. Vendo o seu próprio drama numa televisão, observado por olhares condenatórios de um grupo de amigos, o protagonista tem a reação que corrobora o clímax do filme. Seu desespero é completo, e a

honestidade com que Ivo aborda o transbordamento do protagonista é de fato comovente. Ao contrário do final de Não Amarás, de Kieslowski, em que a mulher imagina que o jovem a estaria socorrendo, em Fértil distração, é o próprio protagonista quem parte, em vão, para tentar socorrer a si mesmo. A personalidade, embora dividida, permanece única, e o sentimento de irreversibilidade que acompanha todos os vídeos de Ivo assume um ponto-limite. *

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Após esses três vídeos, Ivo retornou para um mês de férias no Ceará. O retorno para sua terra natal e especialmente o reencontro com sua filhinha recém-nascida marcaram profundamente seus vídeos posteriores. Eu Agora Só Vejo As Luzes Do Mundo é um terno vídeo que marca um descompromisso inédito em seus vídeos anteriores. Permeado pelo prazer da descoberta e entremeado com cenas de sua filhinha e sua esposa, a montagem não linear, o clima absolutamente pessoal e lúdico, formam um vídeo mais poético e menos fatalista que seus vídeos anteriores. Luzes é um passeio pelo imaginário desse feliz reencontro, que consegue uma intimidade e um sentimento de nostalgia profundamente cinematográficos. Mas o grande vídeo de Ivo ainda estava por vir. Dialogando diretamente com o atual cinema nordestino e especialmente com Passadouro, de Torquato Joel, é um vídeo no limite entre a ficção e o documentário. Filmado com uma digital 8 no interior do Ceará, Ivo consegue, mesmo com um equipamento restritivo, um resultado fotográfico primoroso.

Esperança consegue um tênue e íntimo diálogo com os humildes habitantes daquele longínquo local. No início, a imagem em preto e branco, as repetições, e o céu soturno parecem

anunciar um futuro nebuloso para os moradores da região. Um pobre menino é visto carregando uma enxada; pessoas trabalham ardentemente na terra. As imagens do céu ameaçador são contrastadas com raios de sol que percorrem a enxada e a terra seca. Nesse ponto, ocorre uma grande descontinuidade, com fragmentos de imagens que mal podem ser vistas, flashes na cerca e flashforwards. Quando tudo parece culminar para um desfecho fatalista como os típicos vídeos de Ivo, surge uma transformação absolutamente humana, que confirma toda a trajetória inicial do vídeo ao mesmo tempo que a transforma. Daí Ivo consegue de forma simples e absolutamente cinematográfica um diálogo praticamente improvável com o remoto imaginário específico daquela localidade. Ao mesmo tempo, esse mesmo diálogo reforça um sentido universal e de permanência de valores. Enquanto Esperança por um lado retoma a idéia de ciclo e retorno típicas dos primeiros vídeos de Ivo, agora o ciclo é revitalizado como parte da própria natureza (e daí pela primeira vez a integração ao espaço físico) e integrante do devir. Dessa forma, o interior do Ceará é para Ivo quase a terra de um Dovzhenko. Seu fatalismo se revigora, com a presença extremamente sutil mas bastante presente do espiritual. Apesar de todas as dificuldades daquela gente simples, é dali que surge a essência dos tempos, novidade e eternidade, realimentação e continuidade. Se por um lado o retorno à terra natal forma para Ivo a parte do ciclo como um processo de revigoração de forças, ainda que saiba que a separação desse seu mundo lhe é inevitável, o reencontro com sua filhinha parece ser uma experiência definitiva. A transcendência de Esperança, na parte em que o filme se torna colorido, é quando o velho senhor finalmente observa um bebê sendo banhado num rio, como uma

espécie de batismo implícito. A criança chora; a suposta mãe exibe feliz a criança para os olhos da câmera (e do espectador); num contracampo o velho observa a criança. O ciclo, a ausência de palavras, o banho como batismo e purificação, a integração com o espaço físico, são desenhados com maestria pelo realizador. O nascer (pôr) do sol, filmado num longo plano-seqüência como em A Idade da Terra, reafirma o delicado trabalho do diretor com o tempo e com a transcendência da natureza. Assumindo de forma corajosa - e radicalmente diferente de seus vídeos anteriores - essa Esperança possibilidade de transcendência, possui um final que pode até mesmo ser considerado ingênuo, mas que reafirma de forma essencial a possibilidade de captar a poesia dentro de uma realidade sofrida, ou seja, o impossível dentro do possível. Voto de fé para o nosso cinema e para o nosso país. (Site Curta o Curta - Junho de 2001)

Irmãos Pretti [o cinema dos Irmãos Pretti é bastante singular. Com vinte e poucos anos, esses gêmeos já haviam realizado cinco longas de forma completamente independente, praticamente sozinhos. Eram uma ilha à margem do cinema alternativo carioca. Esses seus primeiros trabalhos, que já apontavam para um grande refinamento estilístico, apesar de serem trabalhos de descoberta, foram exibidos única e exclusivamente na Mostra do Filme Livre. Hoje, a partir da reverberação da cena cearense e da repercussão de Estrada Para Ythaca e O Mundo é Belo, os Irmãos Pretti possuem uma posição de destaque no atual panorama contemporâneo brasileiro. Por isso, torna-se fundamental rever seus primeiros trabalhos, as sementes de uma obra que vem desabrochando cada vez mais intensamente].

O BRANCO EM FILME

DIAS EM BRANCO, dos Irmãos Pretti Há que ele branco”. sobre os fornecer cultural

um filme do Arthur Omar chamado Congo, próprio denominou como “um filme em Em branco, pois o que podemos saber congos, o que um documentário pode nos de informação sobre uma manifestação de nós tão distante, quase perdida?

Dias em Branco parte mais ou menos da mesma premissa: é um filme em branco. Mas há uma pequena diferença, sutil, mas que faz toda a diferença: um dia “em branco” é muito diferente de um “nãodia”. O “em branco” é sinal de construção. “Não sei o que fazer. Fico o dia todo olhando para a parede branca de meu quarto. Eu poderia filmar essa parede, já que a conheço bem.” Ou seja, i) a parede em branco significa que existe uma parede; ii) a parede não é motivo simplesmente de paralisia, mas motiva a ação de filmar essa parede. A partir desse dado simples, os i. pretti desenvolveram um trabalho em continuidade com todos os seus temas (a solidão, o rigor da estrutura, os tempos mortos, a duração) mas absolutamente transformador. Através de uma narrativa paralela mas que não necessariamente se cruza, Dias em Branco é um retrato íntimo de um deslocamento mas sem esbarrar na psicologia ou nas motivações de personagens. Acima de tudo, as pessoas são (isto é, antes de ser branca, a parede existe). Por isso, por trás de um cinema de inércia, da imobilidade e do desconsolo, existe um desejo que pulsa abaixo da superfície, um cinema que busca um caminho de construção por trás do cansaço. Existe uma comunhão implícita entre os

personagens, mesmo que eles não se encontrem. Uma proposta de um cinema contemporâneo, que tangencia os instigantes trabalhos de problematização da dramaturgia como os de Claire Denis e os filmes de reavaliação das potencialidades do cinema (e das pessoas) poderem expressar seus sentimentos, como os filmes orientais. Pela liberdade da câmera, pela sutileza dos contornos narrativos, pela liberdade da dramaturgia, pela força da estrutura, não seria exagero dizer que se Dias em Branco não é o melhor filme dos “meninos” (o que talvez até seja), é o que mais aponta para novas perspectivas e potenciais na filmografia dos diretores. (Cinecasulofilia, 10/12/2004)

UM HOMEM SEM MULHER, dos Irmãos Pretti “Tenho mais medo de viver do que de morrer” Ricardo Pretti em Um Homem Sem Mulher

Como um típico filme dos Irmãos Pretti, Um Homem Sem Mulher escapa às definições. É um filme de aprendizado, de busca, como se cada filme fosse sempre um primeiro filme. Aqui há um mergulho no desvelamento de uma intimidade, em que o improviso exerce um papel fundamental. É um filme que não poderia ter sido feito se não fosse a umbilical ligação da câmera com a direção e com o protagonista. E que também não seria feito dessa forma se fossem atores, ao invés de amigos, nos papéis dos personagens. Mas aqui o que eu quero dizer, vendo o filme pela terceira vez na Mostra do Filme Livre, é que Um Homem Sem Mulher, como o próprio título sugere, é um filme sobre a afetividade, ou melhor, sobre um processo de busca de um afeto perdido. Este

afeto é refletido através da própria participação da equipe (equipe?) na elaboração do filme, mas o interessante é que a busca por esse afeto se dá de forma desigual, ou ainda, de forma transversal à estrutura da narrativa. Passando pelo início (o desabafo com os amigos, com uma maior presença do improviso) até assumir um tom profundamente pessoal (o retiro na casa em Itaipava e a bonita seqüência do trajeto de carro até a casa), e, depois, voltando para o contato com os amigos, na apresentação de um sambinha e na visita ao filho de um amigo, Um Homem Sem Mulher faz um percurso íntimo, que, ainda assim, mantém o tom austero e rigoroso dos demais filmes da dupla. O encontro com esse afeto perdido acontece numa espécie de plano-síntese, mas que muitas vezes pode passar despercebido: é quando Ricardo – ator-autor-personagem – segura nos braços o filho de seu amigo. Ali ele consegue segurálo, já que antes falava sobre a fragilidade da condição humana, espelhada na fragilidade física do bebê recém-nascido. Imagem-síntese, imagem-espelho, Ricardo, segurando o bebê no colo, acaba por acalentar a si mesmo, como se observasse no espelho o reflexo tardio de sua própria fragilidade. E aqui poderíamos fazer referências que vão de Lacan a Freud. Ali Ricardo equilibra sua fragilidade, acalenta sua solidão, enfrenta face a face o dilema de escolher entre “viver e morrer”, a frase sombria “tenho mais medo de viver do que de morrer”. É como se todo o percurso de Um Homem Sem Mulher, mais do que conseguir finalmente “pegar alguém” (o que nunca acontece), fosse a possibilidade de abraçar a si mesmo no colo. Conseguir fazê-lo é como se já se estivesse preparado para morrer. (Cinecasulofilia, 23/02/2006)

DUAS VEZES MARCO DUTRA Ver em conjunto os dois recentes curtas de Marco Dutra (O Lençol Branco, co-dirigido por Juliana Rojas, e Concerto Número 3) nos dá a chance de perceber um trabalho em continuidade, e cada filme ganha um novo significado em particular. O principal tema desses trabalhos é a proximidade da morte, ou ainda, o impacto da certeza da morte no dia-a-dia das pessoas mais próximas. Ainda, um corolário desse tema principal é o relacionamento entre os membros da família, sua proximidade e sua distância. Mas o que encanta na visão de cinema de Marco Dutra é como ele trabalha dois pontos: o primeiro é o clima de tensão que emerge da própria mise-en-scène (tempos largos, silêncios, movimentos lentos dos personagens, o rigor do enquadramento) naturalmente, sem nenhum esforço, mas arquitetado de maneira muito cuidadosa; o segundo é a atenção minuciosa aos pequenos detalhes da rotina dessa família. A partir desses dois elementos, seus filmes revelam uma “crise”, sempre fruto da presença da morte, e se questionam até que ponto é possível “voltar à normalidade”, recuperar um antigo equilíbrio. Com seu cinema observador aos pequenos detalhes, dedicado ao relacionamento humano, e bastante rigoroso à sua estética, Marco Dutra acaba sutilmente promovendo um pequeno inventário das limitações da natureza humana, da dificuldade da busca de um sentido para a vida, e da importância da família e do calor humano para superá-las. Mais rigoroso e austero, o claustrofóbico O Lençol Branco torna a convivência com uma família que acaba de perder um filho recém-nascido quase insuportável. Assumidamente mórbido mas ao mesmo tempo profundamente afetuoso, extrai essa ambigüidade de um cinema que busca um distanciamento rigoroso

e uma proximidade quase como um consolo para a pobre família vítima do destino. Já Concerto Número 3 é mais esperançoso, com uma narrativa inventiva que vê a mesma situação por diferentes pontos de vista (o da mãe, o do pai e do filho). A presença dos exteriores (ainda que poucos), a câmera na mão e a trilha sonora dão ao filme uma ternura e um lirismo que o austero O Lençol Branco não pode ter. Mais radical, a tensão de O Lençol Branco tem sido menos aceita que a compaixão de Concerto Número 3. Mas ambos fazem parte de um mesmo projeto de cinema: um cinema humano talentoso, que evita o sentimentalismo simplório para, através de uma profunda consciência de uma mise-en-scène, compor um painel das sutilezas e dos pequenos dramas da existência humana. (Cinecasulofilia, 15/12/2004)

ANDRÉ SCUCATO E O CINEMA DE POESIA

Assisti mais uma vez, agora com um pouco mais de calma, o DVD dos curtas do André Scucato. Scucato apresenta um olhar profundamente encantado pelas possibilidades técnicas do cinema, especialmente as da edição não-linear que o vídeo possibilita. São os efeitos de cor, de textura, de corte e de sobreposição; são as possibilidades da própria câmera, o diafragma, o zoom, o foco, a portabilidade. É um trabalho muito fascinado com a possibilidade de fazer cinema, um trabalho com grande frescor, com grande energia. Mas ao mesmo tempo fica claro que Scucato não

é simplesmente um técnico, seu trabalho é um trabalho de construção particular e rigoroso, com as ferramentas do cinema, com a possibilidade de um cinema de linguagem, artisticamente estimulante. Então Scucato vai fazer um trabalho radical, que vai recusar tudo o que não seja essencial à sua busca, tudo o que possa fugir de um projeto de cinema que seja essencialmente experimental. Por outro lado, é um cinema prosaico, quase naive, no sentido de tentar buscar um sentido de poesia nas coisas mais prosaicas da vida e que acabam nos passando despercebidas. Um jardim, um elevador, um banheiro, um trem, tudo se revela como meio para o poeta recriar artisticamente um sentido da vida. Por trás da vida corrida da grande metrópole mecanizada, Scucato busca a sublimação de um desejo por um mundo transfigurado mas que ao mesmo tempo nos permita encontrar o sublime nas coisas mais simples. É nesse sentido um cinema puramente romântico, mas um romantismo de base materialista, porque os elementos de linguagem e a manipulação do material fílmico continuam sendo a base do seu cinema de investigação, um cinema de busca. São trabalhos que surpreendem porque são inacabados, daí o seu frescor. Talvez seu trabalho mais bem acabado seja o Três Tons Sobre O Poema De Um Pintor, porque a estrutura ternária já permite isso. A série Crisântemos relembra os recursos dos hand painted films do Brakhage. Ou seja, há sem dúvida ainda bastante a caminhar, mas é um trabalho extremamente promissor, porque já aponta tudo o que os primeiros filmes precisam ter: um olhar pelo cinema e pela vida, uma declaração de princípios do que o cinema pode ser, do que se busca no cinema, do que lhe interessa investigar em particular. Por fim, é curioso como seus vídeos são mal compreendidos, mesmo sendo trabalhos muito objetivos e muito simples num certo sentido. É incrível a resistência das pessoas a um tipo de cinema que realmente tenha sua coerência particular, seja uma investigação

cuidadosa. Se não for narrativo, tem que ser clipe, tem que ser fashion, tem que se engraçadinho, senão é muito chato, não serve. Ou seja, Scucato é um dos nossos, então junte-se aos bons! (Cinecasulofilia, 20/06/2005)

DOIS CURTAS DE GUTO PARENTE

Quando vemos em seguida os dois curtas de Guto Parente, não deixamos de nos espantar com essa diferença, que ressoa de diversas formas: de um modo de produção (o cinema em 35mm fruto de um edital e o curta em digital feito sem grana) a uma forma de estar no mundo. Ainda assim, há uma forma sempre frontal de encarar o mundo, um cinema de observação, um entrecruzamento de gêneros (um entre a ficção e o documental e outro entre o documental e o experimental), um olhar crítico sobre a cidade de Fortaleza, sobre a alienação das elites, ou ainda, a busca de um cinema sem palavras, feito apenas de imagem e som.

O Saco Azul é uma tentativa de dialogar com as contradições do modo de vida urbano da cidade de Fortaleza que possui muitas semelhanças com Quando o Vento Sopra, de Petrus Cariry. Guto compõe um painel da relação entre a classe média alta e a grande massa que vive na linha de pobreza – característica típica da cidade, considerada uma das mais desiguais do planeta – através de um saco azul, que armazena o lixo dos ricos que será aproveitado pelos pobres. O estranhamento desse curta é seu caráter austero: Guto não está

interessado em compor propriamente um discurso crítico em tom explícito, muito menos de exaltar uma certa poesia da miséria, um elogio ao sentido de sobrevivência dos catadores. Seu tom crítico está impresso no filme no total distanciamento do filme em relação a ambas as classes: as personagens são opacas para o espectador, que tem contato com elas apenas a partir de seu corpo, ou ainda, de seus deslocamentos. Com isso, nos passa um sentimento de esvaziamento do plano, que não raramente nos desconcerta, ainda que o projeto não se realize por completo. Mas se O Saco Azul não é mera metáfora da desigualdade das relações sociais, ou mero romantismo que aponta para uma solução conciliadora, ele tampouco é o cinema de Candeias: ao se manter tão distante, Guto fecha seu discurso diante de si mesmo, quase como se fosse impossível apontar caminhos. Prova disso é o desconcertante plano final, que apresenta no som, na imagem, no movimento, no cenário, o grande protagonista de seu filme: o lixo. O saco azul, quase como um Balthazar de Bresson, tornase uma testemunha muda da desumanização tanto de pobres quanto ricos, que aproveitam o que lhes serve e simplesmente se desfazem dos restos, convivendo com sua inexorável solidão. Já Flash Happy Society, do qual muito se falou por sua premiada carreira nos festivais nacionais e mesmo internacionais, nos desconcerta pela simplicidade do registro e pelo alcance de sua realização. Um filme que trafega entre a ficção, o documental e o experimental. Um curta que navega entre o cinema abstrato (um filme de Kubelka, baseado na repetição e na intervenção na superfície física do filme) e o cinema político (a alienação da sociedade do espetáculo). Uma política das imagens. Um bom uso do digital. Uma pessoa fotografando (filmando) pessoas que fotografam. Um bom uso do digital criticando um mau uso do digital; um bom uso da imagem

criticando um mau uso da imagem. Primeiro cinema aliado ao cinema contemporâneo: cinema da luz e das sombras, filme expressionista. Um filme de ficção científica (2001?). Mas aqui talvez Guto consiga o que não conseguiu em O Saco Azul: construir imagens afetuosas a partir do que não lhe serve, do que lhe incomoda. Por trás da banalização do uso da imagem, existe uma certa poesia, como ao final se constrói um universo de estrelas cadentes, ou um novo Big Bang. Talvez. O tom exato entre ironia, crítica e desejo torna Flash Happy Society um curta notável, rico, cuja percepção se amplia a cada nova exibição. (Cinecasulofilia, 01/07/2010)

UMA CARTA, DE LUIZ ROSEMBERG FILHO

[se os textos selecionados em geral apontam para os novos valores do cinema brasileiro contemporâneo, é fundamental perceber o diálogo com uma tradição de realizadores radicais veteranos. Nesse sentido, é singular a posição de Luiz Rosemberg Filho, que participou de festivais como Cannes e Berlim com os filmes Crônica de um Industrial e Jardim das Espumas. Atualmente, Rosemberg permanece com uma vasta produção de curtas em vídeo, que circula à margem dos festivais. Um grande exemplo de lucidez e resistência.]

Como é possível continuar criando quando vivemos em um mundo que cada vez mais nos elimina a possibilidade de criação e de viver pelo sublime? Quando cada vez mais o que se valoriza são as intrigas e as mesquinharias, o jogo do interesse pelo poder, a inveja e o “aqui-e-agora” ? Os

“vídeos experimentais” de Luiz Rosemberg Filho são, acima de tudo, um sinal de resistência. A partir dos anos noventa, o curta-metragem em vídeo foi a única forma encontrada pelo diretor de não se calar. E Rosemberg fala, através da leitura de “cartas-manifestos” que assumem a forma de ensaios fílmicos sobre o audiovisual e o mundo contemporâneo, sempre com um tom de indignação e protesto ao atual estado de coisas, claramente devoto ao cinema de Godard. A crescente produção do diretor – são mais de vinte curtas no formato desde então – evidencia sua irreverência e seu inconformismo, características típicas do cinema do diretor, desde seus longas-metragens dos anos setenta. No entanto, seu último curta, Uma Carta, surpreende com uma enorme lufada de vigor. Rosemberg encara o desafio de “mudar para continuar o mesmo”: ainda que no interior de seu típico dispositivo (a leitura de um texto), Rosemberg avança em relação a seus vídeos experimentais anteriores pela coragem em dar esse passo rumo ao desconhecido.

“Há silêncios e silêncios” Em Uma Carta vemos e ouvimos a leitura de uma carta, mas o que se diz é pouco em relação ao que não se diz. Uma Carta fala também pelos seus silêncios, pelo que é sugerido ao invés de mostrado. Dessa forma, inicia seu percurso de ambiguidades e sutilezas, que num primeiro olhar nos passam despercebidas. O rigor típico de seus experimentais se percebe no início do curta (pois é um trabalho de continuidade): uma panorâmica bastante lenta percorre as fotos numa estante, que revelam, de um lado, o trabalho de colagens típico de Rosemberg; por outro, a influência do cinema (uma metalinguagem), através de autores marcantes (Bergman, Welles, Godard, etc.). Mas subitamente a câmera revela uma terceira vertente:

um cinema pessoal, íntimo: a retrato do pai. Não satisfeita, uma quebra, uma fissura: um zoom foto e nos mergulha no universo curta.

câmera pára no a câmera revela nos aproxima da confessional do

“Não é à toa que Édipo furou os próprios olhos” É preciso que furemos os nossos próprios olhos, porque, de um lado, a visão de nosso mundo (como ele é) é por demais dolorida. Mas por outro somente furando nossos olhos é que podemos ver além desse mesmo mundo. Furar os olhos para chegar à alma: a natureza do cinema que está escondida, adormecida, pronta para ser descoberta por meio de delicados sopetões. Uma Carta é um trabalho de descontinuidade, de euforia, de uma agilidade cinética ausente de seus experimentais anteriores, mais straubianos: agora vemos a oscilação entre cor e P&B, vozes masculinas e femininas, entre o movimento de câmera e a fixidez da imagem. Movimentos dialéticos, como a própria frase de Eisenstein que abre o curta já nos sinaliza. É preciso ver além do que a imagem nos mostra. Mudar para continuar o mesmo Toda essa euforia do conjunto dos recursos de linguagem, amplificados pela presença ativa da montagem (e da voz) de Joana Collier, na verdade revela uma mudança que espelha um caminho de continuidade. Mas agora não há o subterfúgio da política, da miséria, da pornografia, do cinema, do Brasil. A matéria-prima de Uma Carta é si mesma. Dessa forma, o que nos salta aos olhos é a coragem de Rosemberg em mostrar-se nu diante de nós, a alma limpa, serena e madura. “Sei que hoje me conheço melhor e sei a barra que é conhecer-se mais” Por isso, Uma Carta é uma espécie de resposta aos que infligem uma sina

de fracassos a toda uma geração. “O homem é para sempre um ser trágico entre o que poderia ser e o que dramaticamente é”. É na consciência de sua própria tragicidade que Uma Carta se revela um trabalho confessional.

Um epílogo? É preciso caminhar: amadurecer e rejuvenescer. Sem deixar de dialogar com Eisenstein, Kubrick e Godard, e com o seu próprio cinema, Uma Carta é um filme generoso, porque se permite um diálogo com uma nova geração de realizadores, próxima mas completamente desconhecida. É o desnudamento do intimismo oriental de Marcelo Ikeda combinado com a plasticidade técnica do movimento e da cor do Cinema de Poesia (André Scucato e Cristina Pinheiro). Temos a coragem da confissão, o olhar nu para a câmera, o despir-se de corpo e alma. De outro lado, os movimentos de chicote, as cores, o deslumbramento técnico e rítmico. Novas formas de se falar do mesmo. Mas Uma Carta é misterioso: é um curta que esconde tanto quanto revela. Seu discurso é enigmático: em primeira ou terceira pessoa? Ao final, Rosemberg (o próprio) fita a câmera e anuncia que o texto é de autoria dela, “uma carta”. E em seguida, um mergulho no cinema puro, abstrato, de cores, luzes e formas: um retorno ao útero, ou simplesmente, a possibilidade de vivermos no reino da imaginação.

E nós? Falando de si, sem máscaras, Rosemberg paradoxalmente fez um curta que fala sobre uma geração, sobre um Brasil, sobre um cinema brasileiro, de uma forma madura e necessária. Fala de um fim, e de um começo, pois todo fim é uma forma de recomeçar. (Site Via Política - Maio de 2008)

132 CINEMA CONTEMPORÂNEO MINEIRO

[em meados dos anos 2000, as produções do coletivo cinematográfico Teia talvez fossem as que melhor sintetizassem a posição de um certo cinema mineiro, num diálogo vibrante entre o documental, a videoarte e as artes plásticas. Após o início, com videos poéticos mais radicais, a Teia partiu para a produção de curtas em película e de seus primeiros longas-metragens, com grande repercussão internacional. Paulatinamente, a crítica e os festivais brasileiros foram reconhecendo o indiscutível vigor dessa produção, especialmente a partir do prêmio de Aboio no É Tudo Verdade. Esse caminho de reconhecimento e de profissionalização prossegue até hoje, com a seleção de A Falta Que Me Faz, de Marília Rocha, e O Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges, para o Festival de Brasília em 2009 e 2010, respectivamente. Em paralelo aos longas com recursos incentivados, a Teia continua realizando pequenos belos vídeos baratos e ligeiros, como Nem Marcha Nem Chouta, de Helvécio Marins Jr., e Perto de Casa, de Sérgio Borges, comprovando o vigor e a flexibilidade do grupo]

ABOIO, de Marília Rocha Queria rever o Aboio para falar com mais calma, já que tem uns dois anos que o vi, na seleção da Mostra do Filme Livre. De qualquer modo, com o Festival do Rio aí na porta, não devo fazê-lo, então vai mais como registro: mais uma contribuição do cinema de BH e do pessoal da Teia dentro dessa nova safra de documentaristas brasileiros. Aboio é um olhar sobre um Brasil interior sem esse ranço do cinema político: uma investigação poética dos rastros da memória, do tempo e do percurso, e nada melhor que o som para registrar isso, essa possibilidade de perpetuação de uma “memória poética”. Os vaqueiros, o próprio aboio, rituais em vias de extinção, mas também se reformulando para poder continuar existindo, dados os novos tempos. Com um diálogo com a videoarte, típico dos trabalhos mineiros, com grande sensibilidade, Marília Rocha constrói um documentário em que o lado sensorial vale muito mais do que informações sobre esse universo: o importante é senti-lo, vivenciá-lo, experimentar essas sensações. Com isso, faz um retrato íntimo de um Brasil que se conhece de longe e, ao final do filme, por mais que se vivenciem esses momentos, permanecemos longe de compreender essa magia, esse feitiço. Que no fundo é intangível. Como o som. Daí essa é a grande contribuição de Aboio dentro do documentário brasileiro contemporâneo, de fugir do filme de entrevistas para fazer um cinema sensorial sobre um universo íntimo quase desconhecido. E ao mesmo tempo de falar sobre o Brasil (isso é importante pois o cinema experimental sempre é rotulado como uma fuga das questões coletivas, etc, etc). (Cinecasulofilia, 18/09/2007)

NÃO SOU EU QUEM ME NAVEGA, ... NASCENTE, de Helvécio Marins Jr. Através do Rio São Francisco, o filme é uma viagem poética por um Brasil interior (um Brasil verdadeiramente interior, e não o interior de Dois Filhos de Francisco, evidentemente). Nesse percurso cabe todo o cinema brasileiro: está lá o interior dos filmes de Candeias, a frágil canoa de Limite, o sertão-mar de Deus e o Diabo, está lá o mar revolto de alguns dos filmes do Bressane. Está lá o cinema brasileiro, puro e desvirginado, poluído e prostituído. Está lá pulsando discretamente todo um Brasil, um Brasil interior que percorre vários estados, de Minas a Bahia, mas sem nenhum “panfletarismo regionalista” que tanto tem assolado nosso cinema. Há também todo um cinema poético mineiro, todo um percurso de um certo cinema que se vem buscando, pelos membros da Teia, pela jovem vanguarda mineira. Está lá também um percurso individual, um percurso pessoal: não só do próprio personagem que navega o barco, mas deste autor que guia os rumos do barco-filme. Está lá também uma investigação humilde sobre a natureza (não só das coisas como da condição humana), sobre a solidão, sobre o destino, sobre a vida nossa. Está lá um sentimento de cinema que se articula de forma muito íntima com um sentimento de mundo. Esse rumo - poluído e puro, individual e coletivo, real e cinematográfico, poético e realista, ficcional e documental - também me fez colocar uma questão: é o homem que conduz o barco, ou o barco que é levado pela correnteza? Para sabê-lo, decerto que se deve fazer mais outro filme. Quiçá outros. (Cinecasulofilia, 14/02/2007)

TRECHO, de Campolina

Helvécio

Marins

Jr.

e

Clarissa

O que é fantástico em Trecho é que, ao vivenciar a trajetória solitária e errante de Libério, o filme é ao mesmo tempo tão errante quanto seu personagem-documentado e ao mesmo tempo não o é. Ele é solitário e errante porque é um mergulho de frente nessa estrada sem fim que é o cinema e a vida; é um filme em que o processo vale mais que o resultado porque é assim mesmo a vida de Libério e a nossa própria vida. Um filme sensorial em que as luzes da estrada, o movimento do corpo de Libério, suas palavras quase mal articuladas em que a fonética fala tanto quanto o sentido dessas palavras, dizem muito mais do que um discurso prévio sobre tudo isso. É um filme em que a narrativa mergulha de encontro ao que quer abraçar, um filme sobre isso, um filme sobre o processo próprio dessa realização, desse cinema, uma declaração de princípios de como o cinema deve ser. Caminhar sem fim, a estrada sem fim, o horizonte. Um caminho, um sonho sem sonho, o processo, o trajeto, a dificuldade e a necessidade do afeto, o dia e a noite, a poesia, o concreto, os carros passando e as flores do caminho. Tudo isso é o cinema de Trecho. Mas ao mesmo tempo Trecho não faz um caminho solitário e errante, porque tudo isso faz parte de um processo imenso, faz parte de uma pesquisa, de um caminho de contuinuidade de um conjunto de filmes do cinema poético mineiro e em especial desse grupo da Teia. Aboio, Nascente, Trecho e Acidente são um filme só, o mesmo processo e ao mesmo tempo vários processos, que dialogam, rimam, se entrelaçam e se metamorfoseiam, como o cinema e a vida.

Os membros da Teia são os pré-socráticos do cinema brasileiro contemporâneo: se em Aboio era o ar, em Nascente era a água, em Trecho é a terra, em Acidente é a dôxa. E tudo mais um pouco. São os elementos da natureza e da vida. A Teia é hoje o melhor cinema que se faz no Brasil. (Cinecasulofilia, 14/02/2007)

ACIDENTE, de Cao Guimarães e Pablo Lobato Texto que escrevi para o catálogo da Mostra do Filme Livre sobre Acidente, um dos grandes filmes do cinema brasileiro atual, junto com Serras da Desordem, do Tonacci.

Um filme documental feito pelo olhar e para o olhar. Uma proposta de um cinema contemporâneo riquíssimo.Um cinema sem esse papo de discurso didático sobre o Brasil. Um olhar para um Brasil interior bem distante do olhar didático do cinema novo, sem falar das babaoseiras de um Dois Filhos de Francisco. Esse sim é o Brasil interior que o cinema pode mostrar com dignidade, sem exploração da miséria ou culto romântico bucólico. Um Brasil que pulsa em sua poesia e em sua realidade, mas sempre A PARTIR DE UM OLHAR, a partir de UMA verdade, e não DA verdade. Um cinema do registro, apreender mais do que mostrar.

preocupado

em

Não quer ensinar, não quer denunciar, não quer explorar – e sim quer aprender, apreender, viver, respirar, tocar, sentir, viver uma possibilidade de um outro Brasil/mundo/cinema. Se o cinema é uma forma de experimentar as formas de viver, fazer, sentir, da vida e do mundo, então acredito que o cinema deva ser como Acidente. Um filme fantástico. “Oriundo de concurso público do DOCTV, a versão longa de Acidente é tudo o que não se espera de um documentário feito para televisão. Sem reportagens, sem um olhar didático para o seu tema, o filme percorre 20 cidades pelo interior de Minas à procura de algo que não se apresenta de imediato, mas que temos que descobrir ao longo do filme. Esse percurso vale tanto quanto o encontro, e Acidente, com um direto diálogo com outros filmes da Teia (Nascente, Trecho, Aboio) percorre um caminho íntimo entre a poesia e a memória, o imaginário e a realidade de um Brasil desconhecido. Abismo de um país e de um povo quase invisíveis, Acidente discute, entre os limites de um cinema experimental e documental, entre o cinema de registro e o de invenção, a possibilidade da surpresa e da descoberta, assumindo para o espectador que o documentarista “aprende” mais do que “ensina” sobre seu tema de estudo. Por fim, deve-se observar com atenção que Acidente não é totalmente “acidental”: um minucioso trabalho de construção de um olhar, a partir do enquadramento e da montagem, nos reconstrói esse processo de descoberta. Entre o improviso e o rigor, Acidente comprova que o melhor cinema feito no Brasil vem de BH e particularmente da Teia.” (Cinecasulofilia, 14/02/2007)

[em paralelo ao trabalho da Teia, há um conjunto de outros realizadores mineiros radicais que conjugam um olhar por um cinema inventivo. Entre eles, podemos citar Fábio Carvalho, André Amparo, Joacélio Batista, Igor Amin, entre diversos outros. São ainda mais radicais que os trabalhos da Teia. Entre eles, além da expressiva obra de Carlosmagno Rodrigues, destacam-se os de Dellani Lima. Com uma extensa produção, ainda pouco vista, inclusive com longas-metragens, Dellani se destaca na cena mineira por também contribuir de forma decisiva na crítica e na curadoria, sendo um grande “agitador cultural” e incentivador de novos talentos do cinema mineiro.]

DELLANI-ILHA

O SONHO SEGUE SUA BOCA, de Dellani Lima Depois de alguns dias vendo os filmes da Mostra do Filme Livre com a responsabilidade de “julgá-los”, ontem foi o dia da diversão: o mais aguardado longa da Mostra, pelo menos para mim, era aquele passando num dia de semana na discreta sala de vídeo do CCBB, escondido em meio a tantos curtas e panoramas da Mostra, passando quase despercebido. O Sonho Segue Sua Boca é o terceiro longa de Dellani que assisto, depois de Sobre o Amor em Tempos Difíceis e O Céu Está Azul com Nuvens Vermelhas. Ou seja, representa a continuidade do trabalho, ainda pouco (re) conhecido do mineiro Dellani Lima. Ao longo de sua projeção, uma sensação de fascínio e de maravilhamento despertou em mim, pois os filmes do Dellani têm muito em comum com os meus projetos, com a possibilidade de fazer “filmes caseiros” completamente dissociados do

esquema comercial de lançamento, para simplesmente se aventurar pela possibilidade de experimentar o cinema e a vida. Quando se fala em longa-metragem então, a tendência em se pensar em um formato para “exibição comercial” é inevitável. Ficamos pensando então na recepção dos filmes americanos de vanguarda, os filmes de um Jonas Mekas, Stan Brakhage e seus demais asseclas (Walden, por exemplo, tem mais de três horas de duração), que formaram um circuito alternativo às salas de cinema tradicionais.

O Sonho Segue Sua Boca já pelo título – aliás brilhante – apresenta suas intenções: ser um inventário em que o lado sensorial (a sinestesia, a aliteração) vale muito mais que o narrativo. Neste que é o seu melhor trabalho, Dellani realiza um cinema da afetividade: um quarto, um corredor, uma pia são a matéria-prima desse espaço físico que se confunde com a expressão de um clima particular, com uma forma de se inserir no mundo. E de um cinema de exposição pessoal. Num momento muito sugestivo, o próprio realizador aparece de frente para a câmera, entoando, a seu modo, uma canção. Por outro lado, o filme é uma espécie de crônica de costumes, inventário de sentimentos sobre a situação do cineasta independente no Brasil, e ao mesmo tempo filme sobre a amizade e a identidade na diferença. Dellani, Baiestorf e Gabriel Sanna (especialmente) falam, quase sempre, sobre criação, vida e cinema. O Sonho Segue Sua Boca, revela-se, então, um filme em processo de ser feito, um filme sobre sua própria condição, o que é confirmado ao final quando são mostradas cenas do próprio filme com bastidores de sua própria realização, como as que mostram Dellani orientando seus atores antes das gravações.

Viver criando, criar vivendo. O Sonho Segue Sua Boca acima de tudo encanta pela generosidade do olhar de Dellani para seu universo. Um “documentário” sobre o dia-a-dia de seu autor, mas sempre com enorme carinho pelas possibilidades do percurso. Um filme com o tempo da vida. Mas um tempo sempre delicado. A delicadeza de Dellani é reforçada por uma montagem livre e pelo rigor particular no tratamento das imagens, característica do cinema de Dellani que revela o diálogo com as artes plásticas e o cinema francamente experimental. Por fim, O Sonho Segue Sua Boca tem a estrutura de um sonho. E um sonho sempre se sonha sozinho, ainda que esse sonho seja povoado por dezenas de outros. O primeiro plano do filme mostra Dellani dançando freneticamente numa festa; o último, o mostra completamente chapado, talvez na mesma festa. Percurso do êxtase, do delírio e da fadiga. Necessidade de se alimentar e de se realimentar, de energia, de amor, de solidão. O Sonho Segue Sua Boca nos faz acreditar na possibilidade do cinema nos dizer tanto com tão pouco, e nos caminhos oferecidos pelo cinema digital em busca de uma intimidade perdida, que só os diários e os “filmes pequenos” podem nos dar. * * * Dellani Lima ocupa uma posição marginal dentro do cinema mineiro. O Sonho Segue Sua Boca não é um filme que terá a repercussão de um Andarilho, ou das demais obras experimentais do cinema mineiro, já consagradas no Brasil e no exterior. No entanto, o diálogo de Dellani com o cinema mineiro é indiscutível: a poesia com que se articulam imagem e som, o diálogo com as artes plásticas, a imbricação indissociável entre documentário e ficção. Distante e próximo

do cinema mineiro, o cinema de Dellani Lima e especialmente este O Sonho Segue Sua Boca são uma ilha dentro do cinema mineiro, dentro do cinema brasileiro, dentro do cinema do mundo. Uma ilha paradisíaca, lugar de encanto e pequenas descobertas impensáveis. Um filme com um enorme sentimento de liberdade, fertilizado pela vontade e pela necessidade de se expressar, através do cinema e da vida. Há de surgir uma geração de críticos realmente independente e descompromissada para dar o seu real valor a obras como essa. Interessada em descobrir autores verdadeiramente à margem do sistema, e não em fazer política através da crítica. E a única possibilidade de esta surgir é a partir da blogosfera. Que esta então seja uma semente! Quem sabe daqui a trinta anos este filme seja visto de forma análoga a como hoje vemos os filmes da vanguarda americana....

(Cinecasulofilia, 28/02/2008)

142 CINEMA CONTEMPORÂNEO CEARENSE

[uma nova geração de realizadores cearenses começa a ser reconhecida nacional e internacionalmente, num movimento com muitas semelhanças ao da Teia, em Belo Horizonte, guardadas as suas diferenças. O texto a seguir foi o primeiro a buscar dar conta do contexto em que surgiu essa produção e de suas principais características.]

OS “ALUMBRADOS” E O CINEMA CONTEMPORÂNEO CEARENSE

No cinema brasileiro atual, a maior parte das obras interessantes tem surgido de realizadores que desenvolvem uma obra autoral, mas que atuam em contextos isolados. Há, no entanto, juntamente com o cinema da Teia, em Belo Horizonte, talvez uma única exceção de relevo: o cinema cearense, que vem despontando com uma nova geração de realizadores que desenvolvem um trabalho conjunto. São cerca de quinze realizadores que trabalham como um grupo: freqüentemente um realizador trabalha num filme de outro realizador, ocupando uma função técnica (por exemplo, o diretor de um filme é o montador num filme de outro diretor). Esse fato comprova que, acima de tudo, esses realizadores são na verdade amigos, que não só fazem cinema juntos, mas vivem, respiram, divertem-se juntos, que possuem afinidades íntimas que vão além do “campo profissional”, mas que se estendem a um modo de viver.

Esse movimento no cinema de Fortaleza é bem recente, mas por outro lado já tem um histórico que se deve, ainda que brevemente, destacar. Iniciou-se com o estímulo de pioneiros como Alexandre Veras e Ivo Lopes Araújo. Alexandre Veras é um dos fundadores do Alpendre, associação que faz interagir diversas formas de manifestação artística num mesmo espaço. O próprio Veras vem se destacando como um dos mais criativos realizadores recentes de videodança. Além de organizar diversas oficinas e cursos de audiovisual, tanto na parte técnica quanto teórica, Veras foi um dos idealizadores da Escola do Audiovisual, cuja importância falaremos a seguir. Além disso, dirigiu e roteirizou um dos mais importantes trabalhos dessa nova safra de realizações cearenses: o documentário de médiametragem Vilas Volantes, contemplado pelo DOCTV. O impacto de Vilas Volantes, seu rigor formal e seu apelo visual, foram determinantes para tudo o que tem sido feito posteriormente em termos de audiovisual em Fortaleza. Ivo Lopes Araújo, após retornar a Fortaleza depois de ter estudado cinema no Rio de Janeiro, tornou-se uma das figuras de destaque da nova geração de realizadores cearenses. Ministrou com Veras diversas oficinas no interior do Ceará, e estabeleceu uma parceria com Veras, assinando câmera e fotografia em Vilas Volantes. A excelência do trabalho de Ivo como fotógrafo neste filme fez com que surgissem diversos convites, de modo que, em paralelo a seus projetos como realizador, Ivo tornou-se um dos mais promissores jovens diretores de fotografia do cinema brasileiro. Fotografou diversos curtas do também cearense Petrus Cariry, entre os quais se destaca Dos Restos e Das Solidões, pelo qual recebeu diversos prêmios de melhor fotografia em festivais de cinema brasileiros. Seu primeiro

longa como diretor de fotografia foi O Grão, também de Petrus Cariry. Recentemente, fotografou dois filmes produzidos pela Teia, em Belo Horizonte, dirigidos por Sérgio Borges e Marília Rocha, ainda em fase de finalização [obs: quando o texto foi escrito, os filmes O Céu Sobre Os Ombros e A Falta Que Me Faz não estavam concluídos]. Como realizador, seu trabalho mais conhecido é Sábado à Noite, que na linha aberta por Vilas Volantes, é mais um trabalho radical contemplado pelo DOCTV. Pelo filme, Ivo recebeu o prêmio de melhor filme do júri jovem do Festival de Tiradentes em 2008. Junto aos dois realizadores, Gláucia Soares, que também veio do Rio de Janeiro para morar em Fortaleza, foi figura central nesse movimento, como uma das principais responsáveis pela montagem do projeto da Escola do Audiovisual, um curso de extensão com duração de dois anos que, aliando disciplinas teóricas e práticas, recebeu grandes profissionais vindos de todo o país (de João Luiz Vieira a Karim Ainouz) para que cada um desse uma semana de aulas para uma turma de cerca de 20 alunos. O caráter inovador da ementa de disciplinas da Escola fez germinar um ambiente receptivo para os alunos, que rapidamente começaram a realizar seus próprios trabalhos, alguns deles que vieram a circular com sucesso nos festivais de cinema no país. A construção da Escola do Audiovisual, como parte integrante da Vila das Artes, complexo cultural ligado à Prefeitura de Fortaleza que integraria diversas formações artísticas, mas cujo projeto não conseguiu se viabilizar em sua totalidade, foi desenhada graças à estratégica posição de Beatriz Furtado, então Secretária de Cultura de Fortaleza, grande articuladora dos movimentos culturais da cidade.

Após o término da primeira turma da Escola do Audiovisual, alguns alunos e mais outros integrantes (como também Ivo e Gláucia) formaram o Alumbramento. Mais que uma produtora registrada (o que até de fato vieram a se tornar), o Alumbramento funciona como ponto de encontro dessa nova geração de jovens realizadores, para troca de idéias, reuniões e projetos conjuntos, que continuam a crescer, exponencialmente. Um dos projetos centrais para a consolidação do Alumbramento é o longa-metragem Praia do Futuro, projeto coletivo composto por 16 realizadores que dirigiram episódios de cerca de 5 minutos, livremente inspirados por um dos mais típicos cenários de Fortaleza: a Praia do Futuro. É dessa forma que vem surgindo um grande conjunto de filmes feitos por realizadores em Fortaleza, com grande liberdade formal. Apesar de ser um grupo, e pessoalmente muito próximos, uma interessante característica do cinema do Alumbramento é a diversidade estilística entre os filmes. Ao invés do típico cinema autoral em que os filmes são identificados por imprimir certa marca reconhecível, que afirma a singularidade desse grupo em particular, ou mesmo de um realizador, é como se o projeto do cinema de Fortaleza fosse uma eterna metamorfose, um constante vir-a-ser, cujos limites nunca são previamente demarcados, mas, ao contrário, sempre questionados, ampliados pelo filme a seguir. Em comum, uma característica constante é o diálogo com a videoarte e as artes plásticas, presente seja pela própria formação da Escola do Audiovisual, seja pelo próprio diálogo com outros movimentos artísticos da cidade, além da admiração por realizadores da vanguarda americana como Jonas Mekas, Bill Viola, Maya Deren, Stan Brakhage, Peter Kubelka e Kenneth Anger, entre outros. Outra característica é o diálogo com o cinema contemporâneo, possibilitado

pela profusão da internet, especialmente as ferramentas peer-to-peer, que têm tornado possível o acesso a filmes raros. Se alguns anos atrás era impossível para o público de Fortaleza conhecer filmes mais obscuros da mesma forma que o público de Rio e São Paulo, hoje, essas barreiras se quebraram. É comum ouvir nas reuniões do Alumbramento discussões sobre o novo filme de Pedro Costa, Bela Tarr, Albert Serra, Apichatpong, entre outros. É como se, através da internet, o cinema de Taiwan fosse muito mais próximo do que o cinema de Salvador, por exemplo. De fato, outra característica do grupo é a ausência das representações tradicionais do Nordeste, seja de questões sociais, ou mesmo “folclóricas” ou “exóticas” ligadas a um interior rural. É um cinema, sobretudo de linguagem cinematográfica, que certamente está entre as mais instigantes experiências realizadas hoje no Brasil. A seguir, destaco alguns filmes singulares nessa safra diversa e prolífica. Esta lista servirá na verdade como primeira aproximação ao cinema contemporâneo cearense. Aqui estarão ausentes nomes que têm realizado trabalhos exemplares, como os de Salomão Santana, Victor de Melo, Mariana Smith, Victor Furtado, Thaïs Dahas, Hugo Pierot, Gabriel Martins, Ticiano Monteiro, Ythallo Rodrigues e Uirá dos Reis, entre outros.

IVO LOPES ARAÚJO: SÁBADO À NOITE

Sábado à Noite é um dos mais exemplares filmes da nova safra audiovisual de Fortaleza. Ivo, que havia fotografado Vilas Volantes, de Alexandre Veras, outro DOCTV, realizou um projeto em continuidade com Vilas Volantes no que tange ao essencial: a possibilidade de, mesmo diante de um média destinado para a televisão, realizar um projeto de refinada linguagem cinematográfica, radicalizando o enfoque do filme anterior. Mas se Vilas Volantes se passa no litoral praieiro cearense, em encontro com um interior, em Sábado à Noite, Ivo mergulha no coração do centro urbano de Fortaleza. O dispositivo do seu filme está no acaso: seguir pessoas encontradas pela equipe sem arranjo prévio ao longo de um sábado à noite pelas ruas de Fortaleza. Com isso, o olhar de Ivo Lopes está repleto por um sentimento pela cidade, sentimento de um vazio e de um distanciamento, que rompe com os estereótipos de um sábado à noite: o único encontro verdadeiro da câmera, mais do que com “personagens exóticos” é com um conjunto de pombos ao amanhecer do dia, em plena Praça do Ferreira, já ao final do filme. Por outro lado, Sábado à Noite dialoga com filmes experimentais vanguardistas que observavam o fluxo das cidades como um inventário, como Berlim, Sinfonia da Metrópole. Com isso, a opção de Ivo Lopes é por um cinema de apuro formal, aprofundado pela fotografia em preto-e-branco, em consonância com o documentário contemporâneo que, mais que oferecer informações e dados sobre o objeto documentado, procura, através de planos alongados e um olhar singular para esse espaço físico, promover uma reflexão sobre os próprios limites do documentário e sobre a posição do realizador diante de seu objeto.

Com isso, Sábado à Noite quebra todas as expectativas sobre um possível “documentário para a TV”, apresentando-se com uma proposta instigante, um trabalho de ponta com o que se vem pensando em termos de linguagem no cinema contemporâneo. Um documentário livre, que surpreende primeiro pelo que ele não é. É, como já dissemos, um “anti-doc-para-TV”, no sentido de recusar o tom didático sobre o tema e a ênfase em entrevistas. Apresenta também, uma visão completamente distante do estereótipo do Nordeste que temos contato através do cinema brasileiro. Apesar de Fortaleza estar o tempo todo no filme, num certo sentido, o filme poderia ter sido realizado em qualquer outra metrópole brasileira. Aqui, estamos diante de uma Fortaleza urbana, longe do discurso de um Nordeste rural ou da exploração da miséria. Além disso, é um “antiSábado à Noite”, pois tudo aquilo que a princípio poderíamos esperar de um sábado à noite não está lá (as festas, a diversão, a alegria, a surpresa, o encanto, a vida). Mas então o que está no filme de Ivo? Estão a cidade, os carros, as coisas e (às vezes) as pessoas que passam e que ficam. A cidade em preto-e-branco em seus planos estáticos e alongados. O percurso, de carro, ônibus ou van. Há um enorme sentimento e uma enorme tristeza em pertencer àquela cidade. Há um olhar íntimo e ao mesmo tempo um olhar distante de tudo aquilo. Há uma enorme solidão num sábado preto-e-branco em que o esperado encontro nunca acontece. Há um fiapo de narrativa, um “discurso do acaso” que permeia Sábado à Noite, mas no fundo nada é por acaso: nesse sábado à noite o realizador encontra exatamente aquilo o que ele já esperava. Ou seja, não encontra nada. Sábado à Noite é um percurso pela noite e pelas ruas de Fortaleza à procura de um encontro. Encontro que nunca se realiza até o

final do dia, quando, num relance de poesia e de ironia, a câmera fica com os pombos, elementosíntese dessa mistura de liberdade e solidão que o filme tanto procura.

Sábado à Noite também foi importante porque gerou uma ampla discussão com a própria cidade e com os realizadores cearenses, despertando certa polêmica. Isso porque Ivo e os integrantes do Alumbramento organizaram uma sessão de lançamento do filme no maior cinema da cidade, o Cinema São Luiz, localizado na Praça do Ferreira. Considerado um “cinema decadente”, por ser um cinema de rua no centro da cidade, a exibição fez parte de um conjunto de iniciativas desses realizadores no sentido de despertar o interesse para a região central da cidade (vale a pena citar outros filmes, como Rua Governador Sampaio, e o próprio fato de vários dos realizadores terem se mudado para o Centro). Com uma estratégia de divulgação agressiva, com panfletos e cartazes, apesar de contar com pouquíssimos recursos, a exibição lotou o cinema São Luiz, reunindo mais de 600 pessoas, atraindo atenção para o movimento audiovisual de Fortaleza e gerando uma grande controvérsia, estimulada inclusive pelos jornais locais, sobre o suposto tom hermético do filme, que se afastaria do tradicional “documentário para televisão”. Discussão que comprovou a posição singular dessa nova geração de realizadores, que “vieram para ficar”. IRMÃOS PRETTI

Os cariocas Luiz e Ricardo Pretti ocupam uma posição estratégica no contexto do novo cinema fortalezense. No Rio de Janeiro, já possuíam uma filmografia extensa, realizando, de forma completamente solitária e artesanal, um sem-

número de curtas e, inclusive, longas-metragens. Desiludidos com a superficialidade do cinema alternativo carioca, foram morar em Fortaleza, e, incentivados por Ivo Lopes Araújo, entraram em contato com a efervescência da cena audiovisual da cidade. Começaram a promover oficinas, palestras e cursos sobre audiovisual, entre os quais se destacam os cursos sobre cinema contemporâneo. Com ampla formação de cinefilia, foram grandes incentivadores dos jovens realizadores locais, especialmente estimulando a discussão sobre os primeiros vídeos que surgiam em espaços como o Cineclube Cine Caolho. Além disso, permanecem com um ritmo frenético de realização, sempre com filmes sem nenhum incentivo estatal ou de editais públicos, de forma completamente independente. Apenas recentemente seus trabalhos vêm sendo descobertos pelos festivais de cinema brasileiros, em especial após a seleção de seu curta Sabiaguaba para o Festival de Oberhausen. Apenas no primeiro semestre de 2009, finalizaram um longa totalmente captado por um aparelho celular (Rumo, possivelmente o primeiro longa-metragem brasileiro totalmente captado por um celular, a ser exibido no Cine Ceará), e “colocaram na lata” mais dois longas-metragens: Road Movie, um projeto coletivo de quadro diretores e Filme de Maio [obs: Road Movie era o título inicial de Estrada Para Ythaca e Filme de Maio ainda não se encontra concluído]. Esse breve panorama fornece um espelho de sua compulsiva e urgente produção. Em paralelo a isso, participam como membros da equipe (edição, câmera, assistência, etc.) de grande parte dos curtas cearenses recentes, de modo que é bastante improvável que seus nomes estejam ausentes dos créditos de qualquer um dos filmes realizados na cidade, ainda que simplesmente nos agradecimentos.

ÀS VEZES É MELHOR LAVAR A PIA DO QUE A LOUÇA, OU SIMPLESMENTE SABIAGUABA, selecionado para o Festival de Oberhausen, é um filme pessoal, o que já é revelado pelos créditos, que indicam que toda a equipe do filme é composta exclusivamente pelos dois irmãos, inclusive participando como atores, representando os papéis de si mesmos. Como trabalho pessoal, o curta é uma reflexão sobre a própria trajetória dos Irmãos Pretti e sobre o sentido de seu “êxodo urbano”. Chegando em Fortaleza, os irmãos se retiram no interiorano bairro de Sabiaguaba. O curta se passa num único dia, quando os irmãos acordam, e esperam os donos da casa, moradores locais, chegarem. Enquanto esperam, eles convivem com esse novo espaço físico e convivem consigo mesmos. Os irmãos (autoresatores-personagens) são, portanto, estrangeiros em relação a essa casa e a esse espaço físico. No entanto, a visão desses estrangeiros é totalmente diferente de um olhar exótico ou curioso em relação a esse lugar outro, a que eles não pertencem. Seu olhar em relação a esse novo espaço não possui uma ânsia de uma descoberta, ou um senso de novidade, mas evidencia uma monotonia e um sentido de inércia, cristalizados nessa eterna espera dos amigos que nunca vêm. Enquanto “esperam Godot”, ambos vivem “dias em branco”: cochilam, acordam, fazem exercícios, preparam comida, cantam, criam. Fugindo das estruturas narrativas mais convencionais, em Sabiaguaba os dois irmãos “são”, mais do que “representam que são”, o que dá ao filme um aspecto contemporâneo que se insere num limite tênue entre a ficção, o documentário e o experimental, numa vertente estilística que se alinha às discussões estéticas de cineastas tão diferentes quanto Apichatpong Weerasethakul, Pedro Costa ou Claire Denis. Esse tom da melancolia da espera é, no entanto, quebrado com uma abordagem irônica, como uma profunda autocrítica do que se busca nesse

lugar outro. O humor surge, como no cinema de João César Monteiro, ou ainda mais explicitamente no de Buster Keaton, da ingenuidade desses personagens e da disjunção dos movimentos do corpo e do uso da palavra. Enquanto riem de si mesmos, os Irmãos Pretti apresentam um cinema inventivo em continuidade com seus trabalhos anteriores: o íntimo diálogo com o cinema contemporâneo, os tempos alongados, o corte seco de imagem e som, uma estética da solidão e um questionamento sobre a natureza da imagem e da representação diante desse profundo desafio de viver. Em LONGA VIDA AO CINEMA CEARENSE, os Irmãos Pretti fazem uma espécie de inventário pessoal sobre o movimento de jovens realizadores de Fortaleza. Já pelo título – uma referência implícita a um filme de Raya Martin – é possível rastrear o conjunto de referências de cinefilia que surgem a partir do filme, que passam por Shinji Aoyama, Kiyoshi Kurosawa (o final de Água Viva) e até mesmo a um certo cinema narrativo norte-americano. Mais que o cinema, ou ainda, o processo da tentativa frustrada de tentar se inserir em um contexto oficialesco sem perder uma dignidade, Longa Vida reforça que mais que pessoas que trabalham juntas, o cinema cearense é composto de amigos, numa trajetória em que o percurso é o próprio caminho em si, mais importante que seu destino (ou ainda, que o destino é o próprio percurso em si). Daí a importância de um humor atípico que irrompe no filme, que, além de paradoxalmente afirmar certa melancolia, por outro lado aponta que sempre o mais importante é seguir caminhando, sem se preocupar com um “reconhecimento”.

EM GRUPO

A facilidade de trabalhar em grupo é uma característica destes fortalezenses. Como dissemos, em geral um realizador trabalha numa função técnica num filme de outro realizador. Isso é comprovado quando vemos trabalhos assinados por dois diretores. Característica rara, resulta frequentemente em um encontro feliz, de duas personalidades em torno de um mesmo projeto. Aqui, cito três curtas com essa característica: diretores que se unem a outro diretor para realizar um filme “a quatro mãos”. CRUZAMENTO, de Pedro Diógenes e Guto Parente, é um trabalho produzido na Escola de Audiovisual de Fortaleza, mero trabalho de uma das disciplinas do curso, mas que assume uma dimensão mais ampla, pelo envolvimento de toda a equipe de realizadores. Trata-se de um trabalho singular, de cunho narrativo, mostrando o contato visual entre um limpador de pára-brisas em um sinal de Fortaleza e um motorista solitário. Todo o filme se passa através do ponto-de-vista do motorista e em como ele estabelece uma necessidade de ligação afetiva com esse limpador de pára-brisas que, primeiro ele encontra ao acaso e depois, cada vez mais, arma um conjunto de subterfúgios para cruzar com ele. Essa distância afetiva entre esses dois mundos (o interior e o exterior do carro, classes sociais) cruza com um espaço físico da cidade através de um espaço público, marcado pelo trânsito e pelo deslocamento (ou seja, por relações essencialmente transitórias). Ainda, os dois diretores dialogam com o cinema de Kiarostami, seja pelo uso do carro e pela “abordagem”, que nos lembra de filmes como O Gosto da Cereja ou Dez. No entanto, sem nunca emular uma estética, e sim a absorvendo segundo suas influências pessoais específicas.

ESPUMA E OSSO, de Guto Parente e Ticiano Monteiro, é um dos mais formidáveis trabalhos dessa nova geração. A base de inspiração para este trabalho vem do cinema de Pedro Costa, especialmente pela iluminação e pela forma característica de utilizar o digital em ambientes fechados, e o de Chantal Akerman, especialmente Je Tu Il Elle. Mas não esperem a desenvoltura da protagonista de No Quarto da Vanda: em Espuma e Osso, o mote é a solidão de um personagem que vagueia por sua própria casa, em movimentos rotineiros comuns. No entanto, um dado a mais se apresenta: o humor, que surge justamente a partir de um recurso surrealista. O personagem veste uma máscara de Mickey (?!). Mas o que poderia ser um recurso que beira o “trash” é reassimilado pela elegância e pelo rigor da miseen-scène, que, diante desse paradoxo, aprofunda o distanciamento e a solidão desse personagem. Espuma e Osso é um típico exemplar em como os filmes fortalezenses conseguem unir, de forma improvável, radicalidade e um enorme rigor. A AMIGA AMERICANA, de Ricardo Pretti e Ivo Lopes Araújo, apresenta-se, a princípio, como um filme um tanto atípico desta safra, por sua inclinação para um cinema mais narrativo. No entanto, o encanto de sua narrativa vem justamente da desconstrução de um certo tipo de narrativa clássica, com a busca de um humor inspirado no cinema de Jim Jarmusch, ou ainda no de Wes Anderson ou de Aki Kaurismaki. Paris, uma americana, chega ao aeroporto de Fortaleza, mas não encontra quem a princípio estaria lhe esperando. Casualmente conhece uma moradora local (Thaís) e acaba se hospedando na casa dela, conhecendo seu filho de três anos de idade. O que é curioso em A Amiga Americana é que o tom de humor do filme surge justamente de uma extrapolação do uso dos clichês da narrativa clássica, que, como no cinema de Kaurismaki, espelha no fundo uma enorme melancolia.

Melancolia expressa na relação com o espaço físico, dominada por uma Fortaleza ora vazia ora repleta de grandes edifícios indiferentes ao que se passa ao seu redor, filmados em contraplongée. Mesmo diante desse abandono (uma mãe solteira e uma estrangeira abandonada), surge uma improvável amizade, que nasce a partir de línguas, culturas e classes sociais diferentes. Delicado, íntimo, A Amiga Americana afirma que uma amizade pode surgir nas circunstâncias mais inóspitas, sendo um retrato do próprio sentimento que une essa geração de realizadores fortalezenses. Encontro singelo, que espelha num certo sentido a própria trajetória pessoal de amizade entre Ivo e Ricardo. PRAIA DO FUTURO Primeiro longa-metragem da Produtora Alumbramento, Praia do Futuro é um projeto coletivo, que reúne 16 realizadores cearenses. Cada diretor realizou um curta de cerca de 5 minutos, tendo como ponto de partida a Praia do Futuro, um local típico da cidade. No entanto, ao invés de documentários, ou de curtas que buscassem retratar o local, cada diretor transfigurou a Praia segundo seu próprio imaginário. Dessa forma, Praia do Futuro é um retrato do cinema da nova geração fortalezense, em seu desejo pela linguagem, por sua radicalidade, e mesmo por sua anarquia libertária. Não deixa de ser curioso o título de Praia do Futuro para o longa que consagra a consciência do despertar de uma nova geração no cinema cearense. É a partir do desejo pelo futuro, pelo que a vista (e os olhos) não consegue alcançar, pelo que está além do quadro, que se organizam cada um dos episódios de Praia do Futuro. Ou seja, por um desejo de esperança,

por uma vontade tamanha de tornar o cinema algo menos esquemático, mais vivo, curioso, estranho, movediço, indefinível. Se esse desejo é vivido de forma singular por cada um dos realizadores, ele é, por outro lado, parte de um desejo coletivo, parte de um caminhar, que vem agora fornecer seu primeiro produto definitivo. O primeiro elemento de Praia do Futuro é, portanto, o da consciência desse sonho: é possível dizer que no Ceará vem surgindo um movimento, uma geração que pensa, cresce, filma e vive juntos, cuja raiz está na presença de pioneiros como Alexandre Veras e Armando Praça, que passa pela estratégica posição de Ivo Lopes Araújo, pelo “êxodo urbano” e pelo conhecimento do cinema contemporâneo dos Irmãos Pretti, e encontrou sua reverberação nos (infelizmente finados) cursos do Instituto Dragão do Mar e na primeira turma da Escola do Audiovisual. Ali surgiu um cinema do futuro cuja principal raiz é o diálogo com o presente. De um lado, todo um sentimento de distância em relação a uma cidade e a um cinema brasileiro: distância das representações usuais do Nordeste, reminiscentes seja do cinema novo seja das releituras do cinema brasileiro da retomada; distância física do cinema do eixo Rio-São Paulo e das leis de incentivo; distância do cinema politiqueiro, da necessidade de engajamento institucional para auto-promoção. Distantes de tudo, mas perto do mundo, perto de si mesmos. Para essa geração, as distâncias se tornaram relativas: é possível dizer que o Ceará é mais próximo de Taiwan do que do Rio de Janeiro, ou ainda, é mais próximo de BH do que de Recife. Essa ausência é contrabalançada por um sentimento de pertencimento, a um cinema do mundo, a um cinema de hoje. Distância dos “ruídos de sempre”, aproximação do cinema contemporâneo. A internet propiciou um enorme canal de proximidade com o mundo, com a libertação da dependência do circuito de festivais ou do próprio circuito comercial

para se ter contato com “o melhor cinema do mundo”: o próximo filme do Pedro Costa está logo ali, ao alcance do mouse, e ele paradoxalmente parece mais próximo de quase tudo o que vem sendo feito no cinema brasileiro. A partir desse diálogo com o cinema contemporâneo, o cinema do futuro se traduz em um cinema do presente. Uma espécie de ilha, isolada geográfica e politicamente, onde surgiu veio fértil para que uma geração pudesse se expressar. Mas como é possível que uma idéia de liberdade possa se manifestar em um grupo a não ser pela possibilidade da diferença, pela manifestação das suas singularidades? Por isso, nada mais coerente que um filme de episódios, cuja fragmentação é o retrato da multiplicidade de olhares e de influências distintas. Por trás dessa fragmentação, é possível identificar uma certa identidade na diferença, que se estabelece através de um processo de diálogo e de troca: não é à toa que o diretor de um dos episódios apareça como montador de outro, e assim sucessivamente, de forma que as equipes todas se revelem uma só. Unidade que também surge de uma certeza, de que todos (ou quase todos) respiram os ares de um cinema cearense contemporâneo. Por isso, a base do filme está num espaço físico definido – a Praia do Futuro – que estabelece a premissa para o filme. Os episódios, de certa forma, refletem muitos dos elementos citados acima que compõem uma espécie de painel das inquietações do grupo: o cinema feminino e o diálogo com a videoarte (Chama Violeta, de Thaís de Campos, e Mar Morto, de Mariana Smith), a sensação de estrangeiro (em episódios tão distintos quanto o choque entre a imagem panorâmica e voz íntima de Eu Errei, Você Errou, de Wanessa Malta, e a alegoria do excesso como diálogo com a ficção científica de Valores Imaginários, de Ricardo Pretti), o mar como situação-limite (Aprenda a Nadar, de Salomão

Santana, e Vídeo 2008, de Pablo Assumpção), o cinema sensorial que flerta com o narcisismo (p.f, de Fred Benevides), o despojamento e a intimidade do “cinema caseiro” de Castelo de Areia, de Guto Parente e Thaïs Dahas, a negação dos típicos elementos nordestinos e o cinema dos espaços (Pequena Grande História, de Luiz Pretti), a sensação de imobilidade e o cinema gráfico (as fotos de Depois do Fim, de Ythallo Rodrigues), a metalinguagem como sinal de encontro e a mistura de texturas (A Linha da Pipa, de Themis Memória), o humor debochado de Já Era Tempo, de Armando Praça, a fragmentação de Banho de Sol para Dinossauros, de Felipe Bragança, o desencontro como símbolo de um nãopertencimento em A Pedra, de Rúbia Mércia, ou o cinema (justo) de espaço e tempo, imagem e som de Onde o Tempo Se Perdeu, de Ivo Lopes Araújo. Elementos que não estão isolados, mas perpassam os episódios, estando também, em maior ou menor grau, presentes aqui ou acolá, garantindo uma espécie de diálogo subterrâneo entre eles. Por isso, de certa forma, buscar definir o que seja o filme Praia do Futuro como um todo, acaba se revelando, ao final de todo esse processo, uma tarefa um tanto despropositada. Porque sua essência é nitidamente fugidia, como uma ilha misteriosa, em que cada um dos espectadores pode se aventurar por um recanto particular, que deve ser percorrida sem bússola, sem mapa, sem relógio (uma boa sugestão é que a ordem dos episódios pudesse ser randômica, diferente a cada exibição…): deve-se ter a consciência que ao ver Praia do Futuro o espectador nunca procure se encontrar e sim deve se deixar perder. Pois não é essa a verdadeira lição do cinema contemporâneo? (Parte do texto publicado no site da Revista Etcetera em julho de 2009)

EM CARTAZ NA TERRA DO SOL

[Texto escrito para o Catálogo da Mostra Cena Cearense no Curta Cinema 2009, é um resumo, com pitadas de irreverência, do impacto do cinema cearense contemporâneo. Essa sessão representou um importante marco inicial de um reconhecimento do amadurecimento dessa cena.] “Quer desfrutar de momentos inesquecíveis em um cenário paradisíaco e cheio de surpresas, onde vive um povo hospitaleiro e gentil por natureza?” Então venha para o Ceará, a Terra do Sol. Mas se você ficar mais de uma semana e resolver caminhar pelas ruas, verá as contradições que assolam o lugar: no ranking dos 27 estados brasileiros, o Ceará aparece em 22º lugar quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) (dados de 2005). Na capital de Fortaleza convivem grandes arranhacéus à beira-mar e o grande mar de prostituição a céu aberto que se tornou a Praia de Iracema, antes centro da intelectualidade e da jovem boemia da cidade. É nesse cenário que desponta o mais interessante movimento audiovisual do cinema brasileiro de hoje: o Alumbramento, que sintetiza toda a efervescência da cena audiovisual em Fortaleza, além de um conjunto de outros realizadores que, embora não diretamente ligados ao Alumbramento, convivem com essa influência agregadora e se reúnem para sorver doses fartas da cachaça Mangueira e um arroz de arraia no bar do Arlindo. Embora relacionada a uma tradição mais antiga, que passa pelo Alpendre e pelos pioneiros cursos no Dragão do Mar, a nova cena cearense despontou para fora do Estado com a realização de três documentários do DOC-TV: Vilas Volantes (de Alexandre Veras) – possivelmente a mais importante obra audiovisual cearense de todos os tempos – seguido de Sábado à Noite (de Ivo

Lopes Araújo) e Uma Encruzilhada Aprazível (de Ruy Vasconcelos). Com a fundação da Escola do Audiovisual e seu currículo inovador, trazendo professores de todo o país, para módulos de uma semana, surgiu uma leva de jovens inconformados com a mesmice da cena cultural da cidade e ao mesmo tempo com um enorme sentimento afetuoso em relação às imagens, aos sons e a si mesmos. Esse caldeirão ferveu ainda mais com o “êxodo urbano” de Luiz e Ricardo Pretti, que desistiram da “politicagem mauricinha” do cinema carioca e desembocaram em Sabiaguaba, bairro interiorano de Fortaleza. Nos intervalos de um curso sobre cinema contemporâneo, realizaram Sabiaguaba, sendo selecionados simplesmente para o Festival de Oberhausen. Essa nova geração de realizadores começou a produzir um conjunto de curtas de diferentes visões de mundo e de cinema. Com a difusão da internet e as ferramentas peer-to-peer de visualização de filmes, reúnem-se, após as sessões do antigo Cine Caolho, hoje Cine Alumbramento, para discutir os novos e antigos filmes de Pedro Costa, Chantal Akerman e Agnès Varda, entre tantos outros, de forma que temos a impressão que as Filipinas se tornaram muito mais perto que Recife. Não possuem um “projeto” de cinema, ou melhor, esse projeto se limita ao próximo filme, ao próximo encontro no Arlindo ou na casa de alguém, para ver as últimas imagens recém-captadas. É dessa forma que se aproximam os membros de uma “geração amadora” que não só fazem cinema juntos, mas vivem, respiram, dormem, divertem-se juntos, que possuem afinidades íntimas que vão além do “campo profissional”, mas que se estendem a um modo de viver. Nesta sessão, veremos o cinema particular dos Irmãos Pretti, que vivem de “esperar Godot” como se fossem João Cesar Monteiro em Sabiaguaba,

a singular reavaliação do material de arquivo em A Curva, típico dos trabalhos de Salomão Santana, a textura do celular em Alto Astral, a ironia inicial e a questão ética centrais a Vista Mar, a irreverente oscilação entre o cinema de gênero (o terror, o melodrama) e o documentário contemporâneo em Miúdos, o jogo improvável entre Peter Kubelka, o sci-fi e o cinema político em Flash Happy Society, e, para fechar a sessão, um abraço afetuoso, uma enorme declaração de sentidos, através da caminhada noturna (soturna mas esperançosa) dos jovens realizadores do Alumbramento no final de Longa Vida ao Cinema Cearense. Isso você só vê em Fortaleza, no Ceará, na Terra do Sol. Então, o que você está esperando? Venha você também conhecer as maravilhas da nova cena cearense, em cartaz no Curta Cinema. E NO INÍCIO FEZ-SE O VERBO (CONTRA O VENTO) VILAS VOLANTES - O VERBO CONTRA O VENTO, de Alexandre Veras Escrevi numa ocasião, para o catálogo da mostra “nova cena cearense” para o Curta Cinema de 2009, que Vilas Volantes era a mais importante obra audiovisual da história do cinema cearense. Hoje, um ano depois, percebo cada vez mais intensamente que essa expressão não contém nenhum exagero. E o mais curioso disso é que essa obra não é um longa-metragem em 35mm mas simplesmente um média-metragem feito para televisão. Ou ainda, uma obra que não recebeu nenhum prêmio nos festivais de cinema nacionais ou internacionais, pois sequer foi exibida. Mas então o que faz Vilas Volantes adquirir tamanho status? Acredito que a relevância de uma obra aconteça não apenas por suas qualidades intrínsecas mas por sua capacidade de ressoar,

de influenciar a gestação de outras obras, de ser a ponta de lança de tendências de seu tempo. E, sem dúvida, nenhuma outra obra teve tamanha repercussão nos rumos futuros do cinema cearense quanto essa obra de Alexandre Veras.

Vilas Volantes apresenta-se como um documentário sobre algumas vilas pesqueiras do Ceará, em especial na região de Tatajuba, que foram transformadas pela ação do vento, deslocando dunas e soterrando casas, igrejas, memórias. Acontece que Alexandre Veras, cujos trabalhos anteriores dialogavam com a videoarte e a videodança, resolveu passar um mínimo de informações para preferir mergulhar nos tempos e nas sonoridades daquela região. Influenciado pelo cinema de Kiarostami e com uma pontinha de Tarkovsky e Sokurov, Vilas Volantes, beneficiado por um obsessivo trabalho de pesquisa da região, cristalizado na dissertação de mestrado de Ruy Vasconcelos, cuja contribuição para a obra foi fundamental, aposta num tipo de imersão, numa outra relação entre tempo e espaço, que evidencia o desejo do realizador de observar de forma respeitosa um modo de vida e registrá-lo no filme. Alexandre Veras e sua reduzida equipe (o fotógrafo Ivo Lopes Araújo e o técnico de som Danilo Carvalho) ficaram mais de um mês coletando imagens e sons em Tatajuba, revendo o material captado, vendo filmes e fotos para preparar o espírito para ir a campo. Veras diz que Vilas Volantes poderia ter sido filmado em duas semanas se primasse por outro ritmo de produção, mas não seria esse filme, e sim outro. A ampla repercussão de Vilas Volantes, considerado um protótipo de excelência do concurso DOCTV, mostrou para uma jovem geração de Fortaleza que o futuro estava ali, que era possível realizar uma obra de grande potencial estético através

de um modo de produção particular, sem grandes equipamentos ou recursos, essencialmente guiado pela afetividade. O carinho, a delicadeza, o cuidado com os detalhes, o envolvimento da equipe foram tão irradiantes que se revelaram uma base para o florescimento de outros e mais outros filmes e videos, completamente diferentes entre si, mas que tinham em comum uma potência, um desejo de se aventurar pelo audiovisual estabelecendo uma outra forma de relação com o produto final e com o próprio processo de elaboração do filme e da relação entre a equipe. Essa é a maior das contribuições de Vilas Volantes no atual cenário de produção cearense: ser um exemplo de uma possibilidade efetiva de articular um desejo (um pensamento, uma intenção) e um processo de realização (um modo de produção, uma relação menos pragmática com o fazer) para viabilizar uma obra de grande potência artística e de visibilidade no cenário nacional, também fora do Ceará. Ou seja, Vilas Volantes abriu um caminho. Vilas Volantes não possui a radicalidade de Uma Encruzilhada Aprazível ou Sábado à Noite, outros DOCTVs realizados logo em seguida a Vilas, mas o impacto de Vilas está todo lá nesses filmes. Esses filmes não poderiam ter sido feitos da forma como o foram sem que Vilas tivesse existido antes deles. É como se diante de toda a precariedade da atual Tatajuba, mais que lamentar de forma nostálgica o passado soterrado pelo vento, Alexandre Veras visse no abandono do presente uma potência renovada de apontar para o futuro. A elegância e a beleza desse gesto contagiaram toda uma geração. E no início fez-se Vilas Volantes. (Texto escrito em 16/11/2010 para o blog da Mostra Cinema Contemporâneo Cearense, como parte da Mostra Sesc Cariri de Cultura 2010)

166 DOIS FILMES SOBRE A JUVENTUDE

MORRO DO CÉU, de Gustavo Spolidoro Ainda que tímida, é interessante observar que, nos anos de 2009 e 2010, tem existido uma tendência no cinema brasileiro recente de fazer filmes sobre jovens. Uma outra questão – que o Felipe Bragança apontou há alguns anos no Festival de Tiradentes, ainda que não exatamente dessa forma – é se os filmes que falam sobre jovens são efetivamente jovens, mas, de qualquer forma, o que quero apontar aqui é a existência, num período curto de tempo, de um conjunto de longas-metragens brasileiros que se debruçam sobre os rumos da juventude, fato raro no cinema brasileiro em geral. São eles: Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro, Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho, As Melhores Coisas do Mundo, de Laís Bodansky, A Fuga da Mulher Gorila, de Felipe Bragança e Marina Meliande, e Estrada Para Ythaca, dos Irmãos Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes. São filmes complementares na forma como observam os caminhos para a juventude, e como se utilizam dos elementos da linguagem cinematográfica para refletir sobre suas visões de mundo e de cinema. Mas, cada um à sua maneira, e em maior ou menor grau, são filmes notáveis,

estimulantes, que em geral buscam uma certa lufada de ar fresco. Acredito que a juventude, com suas angústias, dúvidas e inseguranças, mas também sua paixão, autenticidade e verdade, parece ser um bom caminho para se pensar em possibilidades para o mundo. Morro do Céu foi realizado pelo gaúcho Gustavo Spolidoro num pequeno vilarejo no interior do Rio Grande do Sul, que dá título ao filme, financiado pelo DOCTV. É curioso pensar Morro do Céu como produto do DOCTV, já que a formação de Spolidoro é quase toda da ficção, e, talvez por isso, Morro do Céu, seja um filme praticamente ficcional. É incrível como Spolidoro trabalha no tênue limite entre a ficção e o documental. Ainda que trabalhe registrando o cotidiano de alguns dos moradores do local, em especial um jovem chamado Bruno Storti, Morro do Céu apresenta elementos ficionais na forma como estrutura sua narrativa, e como utiliza habilmente artifícios como uso da trilha sonora, convenções de personagens, paralelismos que são retornados adiante no filme, diálogos que revelam motivações que “levam o filme para frente”, etc. Com isso, Morro do Céu mostra que Spolidoro, talvez pela influência da mostra de cinema que organiza, o CineEsquemaNovo, é um bom leitor do cinema contemporâneo, não só pela forma sutil com que articula a ficção e o documentário, mas essencialmente porque soube absorver a principal lição desse cinema: a sabedoria de saber observar, articulando de maneira orgânica uma geografia física e uma geografia interior. Nesse aspecto é extraordinário o amadurecimento de Spolidoro: enquanto sua filmografia anterior preocupava-se, acima de tudo, com os fetiches do processo de filmagem, em especial os planossequência, agora Spolidoro utiliza a sutileza e a sugestão, com planos de câmera parada, um cinema que aponta pouco para si e para o seu processo de construção, ainda que na verdade,

se revele de um profundo e complexo processo de elaboração estilística. Essa transformação de uma estética revela no fundo uma transformação de uma possibilidade de ver o mundo. O cinema de Spolidoro quase sempre falou sobre jovens, mas sua “linguagem jovem” era repleta de excessos, atitudes radicais, um humor escrachado, um movimento incessante muitas vezes para lugar nenhum. Mas a diferença é que agora Spolidoro passava a inclinar sua câmera para o interior, um canto recôndito, desconhecido e misterioso: agora seria necessário primeiro observar, e não apontar de antemão. Morro do Céu é bonito porque é um filme que sabe observar. Observar de forma íntima, delicada, profunda, sugerindo mais do que dizendo. Observar sempre de muito perto mas mantendo uma certa distância, uma distância respeitosa, delicada, eu diria quase oriental. Nunca invadindo uma intimidade, machucando, apontando para o espectador as dificuldades e os dilemas daquele menino, daquela comunidade, mas sempre observando, dialogando, sugerindo. Isso tudo foi possível porque, além de um sentimento pelo mundo, existia uma técnica, que se espelha num modo de realização. Praticamente todo o filme foi feito apenas pelo próprio Gustavo, que, “sozinho”, pôde acompanhar seu tímido protagonista de maneira delicada, deixando-o à vontade. Esse filme foi possível porque Gustavo encontrou uma handycam HD full de enormes possibilidades técnicas e intimistas: uma VIXIA HG-21, que custa cerca de US$1000. Ainda assim, Spolidoro não buscou os maneirismos da câmera digital, mas optou por um certo distanciamento, um certo rigor, baseados na não-intervenção e na opção pela câmera parada. Mas falando de tudo isso, deixamos de ir ao essencial: quem é Bruno Storti? Quais são os seus sonhos, seus desejos, o que lhe afeta? O filme mostra o seu cotidiano entre o final do

período de aulas e as férias escolares, até o Carnaval. Spolidoro observa o cotidiano de Bruno: o estudo para as provas, seu trabalho amador como mecânico, seu grupo mais próximo de amigos, a vontade de ter uma namorada. De alguma maneira, Morro do Céu me lembrou de um filme muito íntimo para mim: Kes, o primeiro filme de Ken Loach, que mostra um menino que resiste a ter a vida de seus pais e a trabalhar na mina de carvão e que nas horas vagas tenta adestrar um pássaro. Mas em Morro do Céu não se trata disso: é quase como se esse “romance de formação de consciência” fosse composto a partir de uma “decantação” e não de uma “agitação”. O desejo de Bruno está no extracampo, talvez perdido entre as folhagens reveladas nos belos grandes planos gerais do filme, que permitem um respiro adequado a essa reflexão, ou mesmo entre os abandonados caminhos dos trilhos do trem (Suzaku?), que possam leválos para o além: desejo pela “borboletinha de Cotiporã”, que nunca vemos, nem mesmo no Carnaval, desejo pela fábrica na Itália, que nunca vemos, desejo pelo fora e pelo dentro, desejo por ser outro, desejo por ser si mesmo, desejo tímido, interior, libertário, humano, que revela no fundo que a grande sabedoria de Spolidoro não é escancarar, arrancar de dentro da dramaturgia essas dificuldades, mas simplesmente em respirar de uma maneira muito respeitosa e delicada uma possibilidade de ser. (Cinecasulofilia, 23/03/2010)

ESTRADA PARA YTHACA, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti

Dos quatro filmes, o mais radical é, sem sombras de dúvidas, Estrada Para Ythaca, de Guto Parente, Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti. A radicalidade já está impressa no filme (ou melhor, gravada na fita, ou ainda, salva no HD) por compor um projeto coletivo, assinado por quatro diretores, experiência cada vez mais rara nos dias de hoje, em que o “cinema de autor” representa o trunfo do cineasta solitário, da “câmera-caneta”. Os quatro diretores não assinam somente a direção mas praticamente todas as funções técnicas. Dessa forma, é um projeto essencialmente coletivo. A coletividade de seu modo de produção (o filme é todo financiado pelos realizadores, sem editais ou leis de incentivo) combina de forma orgânica com o próprio objetivo do filme, já que Ythaca é um filme sobre a amizade, a amizade entre os quatro diretores, e um quinto membro, cuja figura “fantasmagórica” paira durante todo o filme, ainda que eventualmente apareça: sua ausência física é compensada por uma presença marcante ao longo de todo o filme. Falo de Ythallo Rodrigues (cuja estranha grafia do primeiro nome inspirou a tresloucada grafia de Ythaca), amigo supostamente morto, que estabelece o mote para o filme: os quatro amigos embarcam em uma viagem de conotações físicas e metafísicas.

Falo “supostamente”, pois Ythallo está morto apenas na diegese: apenas o personagem de si mesmo jaz, mas ele está “vivinho da silva” lá no Cariri, inclusive dirigindo seus próprios filmes. Essa ambigüidade entre as influências da representação e do real é uma das mais fortes marcas do filme. Se em Morro do Céu o gaúcho Spolidoro vai ao interior do Rio Grande do Sul para, sozinho, observar o tímido cotidiano do jovem Bruno Storti, num projeto viabilizado pelo DOCTV, Estrada Para Ythaca em várias medidas pode ser visto como um filme oposto, apesar de um diálogo marcante: são quatro diretores que, num projeto coletivo, bancado por eles mesmos, adentram pelo interior do Ceará, num autêntico road movie, a fim de encontrar algo que não se sabe muito bem, talvez rastros do amigo morto, talvez no fundo, apenas um passeio de fuga e de encontro de si mesmos. Se Morro do Céu é um filme “introvertido”, que observa de forma delicada e discreta a vida de Storti, Ythaca é um filme “extrovertido”, irreverente, absolutamente radical em sua narrativa estilhaçada, profundamente debochado e autocrítico. Ythaca dá continuidade ao maravilhoso cinema produzido pelo Ceará. Aqui, o uso da palavra “continuidade” é curioso, pois justamente o que surpreende na atual “cena cearense” é a negação de uma “escola cinematográfica” em que cada diretor precisa se estabelecer na “cinematografia mundial” ao adotar determinados tiques ou cacoetes que os identifiquem com uma marca autoral, e que serão reproduzidos ad nauseam nos filmes seguintes. Ao contrário, cada filme é uma “metamorfose ambulante”, com viradas e mudanças radicais de um filme para o outro, ou mesmo dentro de um filme. Vejamos por exemplo a virada dentro de Passos no Silêncio, de Guto Parente, do interior para o exterior. Vejamos a “virada a cada plano” de um

filme como Miúdos, de Pedro Diógenes. Ou ainda, a filmografia dos Irmãos Pretti, que sintetiza esse desejo da transformação e do gosto pelo processo, mais que o resultado final. Mas falávamos que Estrada Para Ythaca é um filme sobre a amizade, espelhada na escolha radical dos quatro diretores em serem os protagonistas do próprio filme. Filme que é absolutamente ficcional mas ao mesmo tempo uma autobiografia. São nesses entremeios entre o documentário, o experimental e o cinema de ficção que os quatro diretores se filiam a uma certa tradição do cinema contemporâneo. Vendo Ythaca também parece claro que os diretores pisam num grande terreno de referências, que vão desde filmes americanos high school dos anos oitenta até ícones do cinema contemporâneo como Gerry, de Gus Van Sant, ou o cinema do catalão Albert Serra, ou mesmo uma direta citação a Vento do Leste, numa cena que deslumbrou os críticos presentes em Tiradentes (onde recebeu o prêmio de melhor filme) pelas possibilidades de leituras. Mas acima de tudo – e esse é o objetivo desse texto – Ythaca é um filme jovem. Filme feito por jovens, todos diretores abaixo dos trinta anos, que brincam de fazer cinema, e enquanto brincam fingindo ser, acabam sendo. Ou ainda, por trás de suas barbas postiças e de seu jeito canastrão, os quatro diretores são jovens que não querem crescer, que não fazem planos para o futuro. Nessa fase fugidia que é a juventude, esses diretores são adolescentes tardios que não só se assumem jovens mas principalmente se orgulham disso (Rushmore??) Eles se preocupam em viver o presente, intensamente, em saborear os percursos desse caminho que os leva a lugar nenhum a não ser a si mesmos (como aliás uma cartela ao fim do filme aponta, uma citação de Kaváfis).

Essa despretensão e essa ingenuidade por sua vez são acompanhadas por um cinema extremamente sofisticado de referências, permeado de uma certa melancolia, expressa num desejo pelos grandes planos gerais e tempos mortos, num deslocamento entre o corpo e a paisagem, num cinema sobre a amizade composto de poucos diálogos e preenchido por silêncios. É na forma particular como o filme trata essa necessidade de um afeto distante, esse desejo de fuga e de encontro, através de um cinema “leve e engraçadinho” (diria “cool”), que faz o seu encanto particular, um filme misterioso, irregular, difuso, talvez como o cinema e a vida. (Cinecasulofilia, 06/04/2010)

Dedico esse livro a Beatriz Furtado e Alexandre Veras Ivo Lopes Araújo, Luiz e Ricardo Pretti José Carlos Monteiro, Pedro Camargo e Luiz Rosemberg Filho Marcelo Ikeda

ÍNDICE

A PUBLICAÇÃO _ 17 O CONTEXTO _ 18 A CENA _ 20 A GENEALOGIA DA COLETIVIDADE _ 34 CANAIS DE EXIBIÇÃO _ 36 A ANTROPOFAGIA _ 40 SE O RÁDIO NÃO TOCA _ 42 BITOLAS CINEMATOGRÁFICAS _ 45 FORMATOS DE ARMAZENAGEM DE VÍDEO _ 46 FORMATOS DE ARMAZENAGEM DE ÁUDIO _ 47 CONVERSAÇÕES INQUIETANTES _ 48 HORIZONTES TRANSVERSAIS: A MONTANHA E O ABISMO NA ESTÉTICA DO CENÁRIO AUDIOVISUAL CONTEMPORÂNEO MINEIRO _ 62 Mostra Cinema de Garagem, Indie - Mostra de Cinema Mundial, Belo Horizonte, MG (Textos Curatoriais/2006-09) _ 64 UMA CARTA DE INTENÇÕES _ 77 A CRÍTICA (O CRÍTICO) COMO UM BARCO À DERIVA _ 80 CASCADURA _ 84 PRIMEIROS TEXTOS _ 85 .EXISTE CINEMA INDEPENDENTE NO BRASIL? .PRA QUE SERVE UM CURTA?

CURTAS _ 92 .UM SOL ALARANJADO, DE EDUARDO VALENTE .10 CURTAS BRASILEIROS RECENTES QUE VIRARAM A MINHA CABEÇA

.AMADOR, DE LUIZ E RICARDO PRETTI .OUTUBRO, DE MURILO HAUSER .MINHA TIA, MEU PRIMO, DE DOUGLAS SOARES .FESTIVAL DE CURTAS DE BH 2008: PRIMEIRAS IMPRESSÕES .DOIS CURTAS .O MUNDO É BELO (OU O CÉU DE FORTALEZA)

REALIZADORES _ 114 .ANGÚSTIA E ESPERANÇA: OS VÍDEOS DE IVO LOPES ARAÚJO .IRMÃOS PRETTI .DUAS VEZES MARCO DUTRA .ANDRÉ SCUCATO E O CINEMA DE POESIA .DOIS CURTAS DE GUTO PARENTE .UMA CARTA, DE LUIZ ROSEMBERG FILHO

CINEMA CONTEMPORÂNEO MINEIRO _ 132 .ABOIO, DE MARÍLIA ROCHA .NASCENTE, DE HELVÉCIO MARINS JR. .TRECHO, DE HELVÉCIO MARINS JR. & CLARISSA CAMPOLINA .ACIDENTE, DE CAO GUIMARÃES & PABLO LOBATO .DELLANI-ILHA

CINEMA CONTEMPORÂNEO CEARENSE _ 142 .OS “ALUMBRADOS E O CINEMA CONTEMPORÂNEO CEARENSE” .EM CARTAZ NA TERRA DO SOL .E NO INÍCIO FEZ-SE O VERBO (CONTRA O VENTO)

DOIS FILMES SOBRE A JUVENTUDE _ 166 .MORRO DO CÉU, DE GUSTAVO SPOLIDORO .ESTRADA PARA YTHACA, DE GUTO PARENTE, LUIZ PRETTI, PEDRO DIÓGENES E RICARDO PRETTI

FICHA TÉCNICA Textos: Dellani Lima & Marcelo Ikeda Editor Responsável: Pórtico Silvestre Dzgn: o fantasma Le glitterfinger para SuburbanaCo. capa: fragmento de making-of X-Plastic http://www.xplastic.net

Editoração Eletrônica: Uirá dos Reis

Agradecimentos: Alex Pix, Ana Moravi, Beth Miranda, Breno Silva, Carlosmagno Rodrigues, Chico de Paula, Daniela e Francesca Azzi, Eder Santos, Igor Amin e A PRODUTORA, Jô Moraes, Joacélio Batista, Lucas Bambozzi, Maurice Capovilla, Orlando Senna, Roberto Moreira S. Cruz, Rodrigo Lacerda, JR, Rodrigo Minelli, Simone Cortezão. A todos os artistas que cederam suas imagens e depoimentos para o livro.

este livro foi publicado sob licença creative commons, permitindo a qualquer pessoa copiar, utilizar e compartilhar seu conteúdo, desde que obedeça à mesma licença, sempre citando a fonte original, e nunca para fins comerciais. qualquer alteração nos textos não será permitida sem o consentimento do autor. para conseguir uma cópia desta licença, acesse o endereço http://creativecommons. org/licenses/by-nc-sa/2.5/br

as fotos usadas neste livro são de still ou frames dos filmes (em ordem de aparição): Dois Castiçais de Prata Foram a Minha Vida (Alex Lindolfo), Acidente (Cao Guimarães e Pablo Lobato), Entre O Terreiro e a Cozinha (Joacélio Batista), Cartas ao Ceará nº 3 (Marcelo Ikeda), Requiem (Cinema de Poesia – André Scucato e Cristina Pinheiro), O Lençol Branco (Marco Dutra), Alma do Osso (Cao Guimarães), Sábado À Noite (Ivo Lopes Araújo), Às Vezes é Melhor Lavar a Pia do que a Louça, ou Simplesmente Sabiaguaba (Irmãos Pretti), A Superfície do Abismo (Pablo Lobato), Supermemórias (Danilo Carvalho), Quando Morri Na Baia da Guanabara (Dellani Lima), Outubro (Murilo Hauser), Vaidade (Thais de Campos), Estrada Para Ythaca (Irmãos Pretti & Primos Parente), Material Bruto (Ricardo Alves Jr.), Passos No Silêncio (Guto Parente)