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Portuguese Pages [100] Year 2011
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Cartografia da ação e movimentos da sociedade: desafios das experiências urbanas Catia Antonia Da Silva; Ana Clara Torres Ribeiro; Andrelino Campos (orgs.) © Lamparina editora Revisão Luísa Ulhoa Projeto gráfico Fernando Rodrigues
Cartografia da ação e movimentos da sociedade: desafios das experiências urbanas Catia Antonia Da Silva Ana Clara Torres Ribeiro Andrelino Campos (orgs.)
O texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, que começou a vigorar em 1º de janeiro de 2009. Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se também às características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos autorais é punível como crime (Código Penal, art. 184 e §§; lei 6.895 / 1980), com busca, apreensão e indenizações diversas (lei 9.610 / 1998 – Lei dos Direitos Autorais – arts. 122, 123, 124 e 126). Catalogação na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros C316 Cartografia da ação e movimentos da sociedade: desafios das experiências urbanas / Catia Antonia da Silva (org.), Ana Clara Torres Ribeiro (org.), Andrelino Campos (org.); Alberto Toledo Resende… [et al.]. – Rio de Janeiro: Lamparina: Faperj: Capes, 2011. 2.000 exemplares. 200 p.; il.; 12,6 × 20,7cm Trabalhos apresentados no III Seminário Nacional Metrópole: Governo, Sociedade e Território, e, no II Colóquio Internacional Metrópoles em Perspectivas. Inclui bibliografia ISBN 978-85-98271-89-7 1, Sociologia urbana. 2, Regiões metropolitanas – aspectos sociais. 3, Regiões metropolitanas – aspectos econômicos. 4, Renovação urbana. 5, Planejamento urbano. I; Silva, Catia Antonia da. II; Ribeiro, Ana Clara Torrres. III; Campos, Adrelino, 1949–. 11-4442. CDD: 307.76 CDU: 316.334.56
Lamparina editora Rua Joaquim Silva 98 2º andar sala 201 Lapa cep 20241-110 Rio de Janeiro rj Brasil Tel./fax: (21) 2252 0247 (21) 2232 1768 www.lamparina.com.br [email protected]
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Autores Ana Clara Torres Ribeiro (org.) é graduada em Ciências Políticas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), possui mestrado em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução (SBI/IUPERJ) e doutorado em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo (USP). É também professora adjunta da UFRJ, pesquisadora 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); membro da Red Iberoamericana de Investigadores sobre Globalización y Territorio e coordenadora do GT Desenvolvimento Urbano do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais. Andrelino Campos (org.) possui graduação em geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrado em geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorado em geografia pela mesma instituição. É também professor adjunto do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (dgeo/FFP/ Uerj), coordenador do Núcleo de Estudos Sociedade, Espaço e Raça (NoSER) e autor do livro Do quilombo à favela: a produção do “espaço” criminalizado no Rio de Janeiro (Bertrand Brasil, 2010). E-mail: . Catia Antonia da Silva (org.) é professora adjunta, pesquisadora e coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Território e Mudanças Contemporâneas (DGEO/FFP/Uerj). É graduada em geografia (UFRJ), com mestrado em Planejamento Urbano e Regional e doutorado em geografia, todos pela mesma instituição. É lider do Grupo de Pesquisa e Extensão: Urbano, Território e Mudanças Contemporâneas, onde desenvolve o Laboratório de Estudos metropolitanos. É pesquisadora do PROCIENCIA/UERJ.
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Alberto Toledo Resende é graduado em geografia (Uerj), possui especialização em Planejamento e Uso do Solo Urbano (UFRJ) e é mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social (FFP/Uerj). Atualmente é professor docente 1 da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro, coordenador de campo do Federação dos Pescadores do Estado do Rio de Janeiro e professor substituto (FFP/Uerj). Anita Loureiro de Oliveira fez graduação em geografia, mestrado em geografia, ambos pela UFF, e doutorado em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Trabalha desde 2010 no Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). É Tutora do PETGeografia-IM/UFRRJ. E-mail: . Fábio Tozi é doutorando do Programa de Pós-Graduação em geografia da USP, é doutorando em geografia humana (FFLCH/USP) com estágio (PDEE/CAPES) na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris. Possui graduação e mestrado em geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Felippe Andrade Rainha é graduado em geografia (FFP/Uerj) e pesquisador Técnico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Ivy Schipper possui licenciatura em geografia e mestrado em Planejamento Urbano e Regional, ambos pela UFRJ. Atualmente é da UFRJ e participa do Laboratório da Conjuntura Social (LASTRO).
Jorge Luiz Barbosa é graduado em geografia pela UFRJ, possui mestrado em geografia na mesma universidade, doutorado em geografia pela USP e pós-doutorado em geografia humana pela Universidade de Barcelona, Espanha. É professor Departamento de Geografia da UFF e coordenador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. E-mail: . Marcia Soares de Alvarenga é professora da graduação e do mestrado em educação da FFP/Uerj e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Vozes da Educação (DEDU/FFP/Uerj). Graduou-se em direito pela UFF, licenciatura em pedagogia pela Uerj, doutorado em educação pela UFRJ e pós doutorado em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (uFMG) e em educação pela Universidade de Évora. E-mail: . Maria Tereza Goudard Tavares possui graduação em pedagogia, pós-graduação lato sensu em Metodologia do Ensino Superior, mestrado em educação pela UFF e doutorado em Educação pela UFRJ. É professora e diretora (2008–2011) do Programa de Pós-Graduação em educação da FFP/Uerj. Pesquisadora do prociencia/UERJ nos períodos 1999–2002, 2005–2008 e 2008– 2010, e líder do Grupo de Pesquisa Vozes da Educação. E-mail: . Renato Emerson dos Santos é graduado em geografia, com mestrado em Planejamento Urbano e Regional, ambos pela UFRJ, e doutorado em geografia pela UFF. Atualmente é professor adjunto da Uerj, e ocupa a posição de chefe do DGEO/FFP, no campus de São Gonçalo (RJ).
Joana Bahia é graduada em ciências sociais com mestrado em sociologia e antropologia social, ambos pela UFRJ. É também professora adjunta da FFP/Uerj e pesquisadora associada ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios Niem/Ippur/UFRJ, doutora em antropologia social PPGAS / Museu Nacional e investigadora visitante da Universidade de Lisboa.
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Apresentação 11 Cartografia da ação e desafios contemporâneos A metrópole significante: usos rebeldes do território e a efervescência de novas racionalidades 19 Fábio Tozi Alberto Toledo Resende Cartografia da ação e a juventude na cidade: trajetórias de método 28 Ana Clara Torres Ribeiro Catia Antonia da Silva Ivy Schipper Cartografias e lutas sociais: notas sobre uma relação que se fortalece 41 Renato Emerson dos Santos O retorno ao território como condição da democratização da gestão da metrópole 59 Jorge Luiz Barbosa Cidade e compartilhamentos da vida coletiva Os pequenos e a cidade: o município de São Gonçalo como um livro de espaços 81 Maria Tereza Goundard Tavares Brasileiros no mundo: novas construções identitárias do “salsa american way” 96 Profª Drª Joana Bahia Projeto Baía Limpa: um exercício de mapeamento dos resíduos sólidos pelo olhar dos pescadores 118 Catia Antonia da Silva Felippe Andrade Rainha Alberto Toledo Resende
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Metrópole e o movimento da sociedade A particularidade do Movimento Negro enquanto sujeito da história brasileira 131 Andrelino Campos Leituras sobre movimentos sociais e ações organizadas em contextos urbanos: notas de diálogos sobre método 159 Marcia Soares de Alvarenga Arte, educação e cidadania: diálogo de saberes na metrópole 169 Anita Loureiro de Oliveira
Apresentação Este livro tem a intenção de publicar artigos criados e inspirados em debates, reflexões e estudos apresentados durante os eventos III Seminário Nacional Metrópole: Governo, Sociedade e Território e II Colóquio Internacional Metrópoles em Perspectivas, ambos ocorridos de 1 a 3 de dezembro de 2010, na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e que tiveram como tema central “Território usado e cartografia da ação: por outra gestão urbano-metropolitana”. O evento foi promovido pelo núcleo de Extensão e Pesquisa: Urbano, Território e Mudanças contemporâneas Programa de Pós-Graduação em História Social (área de concentração: história social do território) e Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Uerj, pelo Laboratório da Conjuntura Social: tecnologia e território do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Coordenação de Geografia Departamento de Educação e Sociedade Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). O tema central dos eventos foi o debate de orientações conceituais e diretrizes teórico-metodológicas que hoje reconstroem a análise da dinâmica metropolitana. Trata-se fundamentalmente dos desafios relacionados ao reconhecimento das complexas relações entre sociedade, Estado e território, em seus vínculos com a urbanidade. A questão metropolitana confunde-se com a questão nacional. Junto com a consolidação democrática, conformam-se outros determinantes da última fase do capitalismo, portadora de profundas contradições: entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social; entre avanço técnico-industrial e precariedade da vida coletiva; entre multiplicação dos mecanismos de controle social, reinvenção de insurgências e afirmação de novos movimentos sociais. O tema deste livro está voltado para a problemática de novas metodologias referentes à possibilidade de novos olhares e novas formas de representação da sociedade e do território em contex11
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tos urbanos e metropolitanos que possibilitem novas formas de experiências e novos formatos para pensar o desenvolvimento social. Deseja-se contribuir para o campo da gestão urbana com base em múltiplas metodologias e experiências sociais urbanas. Ao tratarmos de trajetórias de pesquisadores populares, de crianças, de pescadores, do movimento negro, de lutas identitárias e de musicalidades, podemos compreender a complexidade da metrópole e ver nela novos devires. Este livro orienta-se pela compreensão do sentido das ações sociais na produção do espaço urbano com base nas seguintes categorias centrais: movimentos sociais, ações espontâneas e identitárias, cartografia da ação e território. Pretendemos, com articulação de ideias oriundas de pesquisadores das áreas de geografia, sociologia e educação, ter nesse produto material do evento, elementos contribuidores para o desafio contemporâneo que consiste na compreensão da metrópole e da vida urbana em uma conjuntura atravessada pela perturbação no entendimento do mundo. Este livro divide-se em três seções. A primeira busca reconhecer a cartografia da ação como desafio contemporâneo e tem a finalidade de colaborar com novas referências metodológicas que ajudem a novas formas de alargamento do pensar e do fazer da luta social. Fábio Tozi e Alberto Toledo Resende demonstram suas leituras com base na coordenação conjunta do grupo de trabalho “Cartografias rebeldes e (re)invenção do território”, ocorrido durante os eventos do III Seminário Nacional Metrópole: Governo, Sociedade e Território. É no diálogo entre as diversas pesquisas e áreas, filiadas a diferentes leituras da cidade, da metrópole e do urbano que identificaram caminhos possíveis que nos ajudam a compreender a complexidade do presente, combatendo as visões simplistas acerca do território e da sociedade. O artigo de Ana Clara Torres Ribeiro, Catia Antonia da Silva e Ivy Schipper, fruto de pesquisa do Laboratório de Conjuntura Social: Tecnologia e Território, do Ippur/UFRJ, e do Laboratório de Estudos Metropolitanos, do Núcleo de Pesquisa Urbano, Território e Mudanças Contemporâneas do PPGHS e do Departamento de Geografia / FFP / Uerj, busca identificar novas possibilidades 12
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sobre a problemática do direito da juventude à cidade com base nas trajetórias de jovens moradores da periferia da metrópole do Rio de Janeiro. A análise da apropriação do espaço urbano por jovens que residem, estudam e/ou trabalham no município de São Gonçalo, situado a leste da baía de Guanabara, teve como pressuposto o diálogo entre sociologia, geografia e educação. Recorre-se a diferentes métodos e técnicas de pesquisa, entre os quais as metodologias da cartografia da ação e a técnica dos grupos focais. O artigo de Renato Emerson dos Santos analisa quando os novos atores utilizam a cena cartográfica. Para ele, o campo da cartografia tem sido tensionado por diversos sentidos. Toma alguns exemplos em curso no Brasil e em outras partes do mundo. Identifica o uso crescente de objetos cartográficos como instrumento de luta por movimentos e articulações de movimentos sociais. Os objetos cartográficos vêm sendo utilizados como leituras sociais do território que são confrontadas às leituras oficiais e/ou de atores hegemônicos, mas também como instrumentos de fortalecimento de identidade social e de articulações políticas – ou seja, na sua plenitude de instrumento de representação que exprime a realidade (segundo pontos de vista, posições definidas) e também ajuda a construir a própria realidade. Jorge Luiz Barbosa apresenta em seu artigo o resultado do projeto Rio Democracia, uma programação para o desenvolvimento sustentável da metrópole, desenvolvido pelo Observatório de Favelas do Rio de Janeiro no período de outubro de 2007 a agosto de 2009. O projeto visava à construção de inventários críticos de políticas públicas em favelas e periferias urbanas da metrópole do Rio de Janeiro, tendo como referência os 20 anos de promulgação da atual Constituição Brasileira e, com base em suas conclusões, contribuir para a elaboração de uma agenda propositiva de superação de desigualdades sociais, enfatizando as possibilidades de democratização da gestão urbana. Foram realizados mapeamentos cognitivos do inventário de gestão de políticas públicas. O inventário realizado contemplou mapeamentos cognitivos de práticas sociais – concepções, percepções, vivências e experiências – construídas e afirmadas no contexto Apresentação
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da gestão de políticas públicas, em particular aquelas voltadas às comunidades populares localizadas nos municípios que compõem o arco metropolitano do Rio de Janeiro. Na segunda seção, intitulada “Cidade e compartilhamentos da vida coletiva”, encontra-se o artigo de Maria Tereza Goudard Tavares que realiza, com base nessa breve contextualização, uma análise sobre a natureza educativa da cidade, que segundo ela implica admitir no âmbito político e epistemológico a intencionalidade formadora que a metrópole pode assumir na contemporaneidade, sobretudo por ser o meio tecnico-cientifico-informacional por excelência, locus da densidade comunicacional, reforçando a texturologia da cidade enquanto conteúdo alfabetizador. Diz que a cidade é educadora e ressalta seu caráter de agente educativo, uma ideia-força que intenciona ser compartilhada e assumida pelos diferentes atores sociais, apesar das contradições nodais que tornam a cidade cenário dos conflitos e confrontos sociais. A professora Joana Bahia analisará, por meio do artigo “Brasileiros no mundo: novas construções identitárias do ‘salsa american way’”, a formação identitária de brasileiros que migram para o exterior por diferentes motivos, sendo o principal a busca de oportunidade. A professora parte de um paradoxo: um país que até a década de 1980 era receptor de mão de obra, em 30 anos torna-se exportador desse material humano. Para tal empreitada, a pesquisadora parte de algumas variáveis que evidenciarão alguns aspectos: questões de classe entre a população imigrante, de temporalidade da imigração, de gênero e sexualidade, de ascendência europeia (diferenciada por graus diferentes de ascendência), de cor/raça, de ocupação no mercado de trabalho, de origem regional, de religião, entre outras possíveis. Uma colcha de retalhos identitários. A proposta da professora elucidará problemas de quem precisa e/ou escolhe ser estrangeiro em outras terras, demonstrando também que os “sonhos” podem se distanciar da realidade. O artigo seguinte expressa a preocupação de Catia Antonia da Silva, Felippe Andrade Rainha e Alberto Toledo Resende em conjugar esforços entre pesquisadores e pescadores artesanais (elo frágil na cadeia produtiva da pesca, localizado na 14
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baía de Guanabara). Eles focam como base para o desenvolvimento da análise do projeto, os “Princípios de cidadania e qualidade ambiental (qualidade de vida e trabalho) como direitos universais, direitos humanos essenciais”. Os autores invertem a lógica, fazendo dos pescadores artesanais protagonistas da ação, abrindo condições de tratá-lo no contexto de uma cartografia participativa, em que a ação dos pescadores é que conduz o rumo da “prosa”, e não o saber oriundo da academia. Ao longo das páginas que tratam do projeto, os pesquisadores mostrarão que, apesar das dificuldades, a baía de Guanabara pode se tornar um lugar de esperança, tanto para os trabalhadores da pesca artesanal quanto para quem admira os contornos cantados em versos e prosas ao longo de muitos anos de história. A terceira e última seção trata do entendimento da “Metrópole no movimento da sociedade”. O artigo de Andrelino Campos analisa o movimento negro como sujeito histórico no contexto brasileiro. No decorrer da história brasileira, o ativismo de negros, que vem se destacando pela longevidade das suas atividades, deixa de ser apenas um conjunto de pessoas para se tornar projeto de mudança da sociedade. Em função desses elementos, formam-se as perguntas: como são formados os sujeitos? Qual é a importância da dimensão da particularidade em sua formação? Essas são questões centrais que nos ajudam a refletir sobre os sentidos das ações em contexto político-urbano. Marcia Soares de Alvarenga terá sua análise voltada para as questões que envolvem cidadania e desenvolvimento econômico acelerado, sendo este responsável pelo alargamento das desigualdades sociais. A preocupação da autora nos leva a refletir sobre alguns aspectos da vida urbana e o distanciamento da justiça social, visto que as bases tanto do desenvolvimento econômico quanto da construção da cidadania são criadas de forma “arcaica”, uma vez que um conduz com suas práticas a tentativa de anulação e exclusão do outro. É possível sintetizar a análise da autora com a seguinte preocupação: “Podemos dizer que a ausência deste estatuto impetrou relações contraditórias entre cidadania e vida urbana. Populações inteiras foram deslocadas pelo poder político ou mobilizaram resistências diante destes deslocaApresentação
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mentos ao ocuparem espaços sem cidadania”. A autora permitirá que cheguemos a conclusões diferentes daquelas às quais estamos habituados. A jovem professora Anita Loureiro de Oliveira tem sua trajetória acadêmica ligada a questões urbanas. Um dos pressupostos que movem a pesquisadora é pensar que a “cidadania é uma ferramenta a ser aprendida, buscando como meio a educação libertária”. Para tanto, não conta apenas com a formalidade da escola, mas com a experiência acumulada das pessoas, visto que a “rua” emana saberes dos quais a teoria, no seu isolamento epistêmico, não daria conta, necessitando então das “práticas” da rua. “Fazer arte”, expressão popular que os adultos dizem para os mais jovens, guarda na dimensão da rua a possibilidade de educação, pois, assim como a arte das crianças, sempre acontece o inesperado. A autora nos convidará a uma reflexão bem sustentada teoricamente construída sobre o quarteto: vida urbana, cidadania, arte e educação, onde as ruas, por meio de seus atores, passam a ser o cenário perfeito para outras vivências. Para exemplificar, destacamos de seu texto a seguinte passagem: “Buscamos refletir neste artigo o caráter múltiplo resultante de experiências que evidenciam o modo pelo qual os territórios urbano-metropolitanos constituem a base de um processo educativo que vai muito além dos espaços institucionais de aprendizagem e pode trazer contribuições significativas para a renovação da vida urbana”. Este livro conta com o estimável apoio de Capes, que também patrocinou os eventos junto com a Faperj e a SR3 – Sub-Reitoria de Extensão e Cultura. Agradecemos ainda a Direção da FFP/Uerj, Cepuerj e Comuns/Uerj pelo apoio recebido, proporcionando a infraestrutura para os eventos, ricos em debates, ideias e proposições.
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A metrópole significante: usos rebeldes do território e a efervescência de novas racionalidades Fábio Tozi Alberto Toledo Resende
Em certas tardes nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro. (Melo Neto, 1994) Uma introdução: a cidade, a metrópole e as disciplinas científicas Qual a sobrevivência possível, não burocrática e repetitiva, de ciências cujos fundamentos estruturadores referem-se a datas e lugares de pouca equivalência com o Brasil contemporâneo? Tal questão, longe de querer resumir em uma única frase os debates a seguir expostos, aponta, ao contrário, para um tema central que envolve o rigor de todo trabalho científico nas ciências humanas. O período tumultuado que nos acompanha, misto de globalizações e fragmentações, parece sinalizar a efervescência de novas formas de vida cujo entendimento analítico é débil se os conceitos e categorias adotados não forem formulados a partir do momento presente da formação socioespacial brasileira. Vale retomar a fala da professora Ana Clara Torres Ribeiro na conferência de abertura do III Seminário Nacional Metrópole: Governo, Sociedade e Território e II Colóquio Internacional Metrópoles em Perspectivas, cobrando uma necessária interdisciplinaridade científica, especialmente entre geografia e sociologia. Essa interdisciplinaridade deve ser traduzida na superação do pensamento instrumental e operacional herdado das ideias filo-
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sóficas do século XIX, matrizes das disciplinas que hoje trabalhamos. Souza afirma que o iluminismo tem muito a ver com o desenvolvimento das ciências humanas e, muito especialmente com a geografia, à medida que ela se funda como ciência humana. Fundandose no racionalismo absoluto, fundamentado no desenvolvimento científico e tecnológico, ele vai alimentar a esperança, para a humanidade, de um mundo melhor a partir da melhoria das condições materiais da existência (2003, p. 2). Tal esperança, no entanto, não se realizou, o que traz um desafio evidente às ciências como um todo e às ciências humanas em especial. Não obstante viver um período científico, tecnológico e informacional, a humanidade sofre com desigualdades extremas, pobreza crescente e uma desvalorização da comunicação em benefício da repetição. É no diálogo entre as diversas pesquisas e áreas, filiadas a diferentes leituras da cidade, da metrópole e do urbano, que reside um dos caminhos possíveis que nos ajudam a compreender a complexidade do presente, combatendo as leituras simplistas acerca do território e da sociedade. Lefebvre (1969), numa aula de método, ensina que a cidade filosoficamente pensada é uma totalidade não apenas abstrata, mas também concreta, cuja compreensão exige que todos os instrumentos metodológicos devam ser utilizados conjuntamente; discernidos, mas não dissociados: forma, função, estrutura, instituições, linguagens, significados. Esse espírito esteve presente durante todo o seminário, e, particularmente, no Grupo de Trabalho (GT) “Cartografias rebeldes e a (re)invenção do território”. A cidade, a metrópole e o urbano, mais do que temas ou objetos de estudo de tal ou qual ciência, são condições da vida social, sendo, por isso, um objeto interdisciplinar de estudo. As situações abordadas no grupo de trabalho trataram de cidades e municípios em áreas metropolitanas, ou seja, em grandes aglomerações populacionais, informacionais, materiais. Santos já alertava que
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a cidade grande é um grande espaço banal, o mais significativo dos lugares. Todos os capitais, todos os trabalhos, todas as técnicas e formas de organização podem aí se instalar, conviver, prosperar. Nos tempos de hoje, a cidade grande é o espaço onde os fracos podem subsistir (1996, p. 258). Acreditamos, cada uma à sua maneira, que as pesquisas apresentadas revelam manifestações concretas desse espaço banal, as complexas estruturas presentes nas tramas cotidianas às quais o olhar desatento nem sempre permite vislumbrar. A riqueza na diversidade: um sobrevoo por 2 dias de reflexão Em 2 dias de apresentações e debates, o grupo de trabalho “Cartografias rebeldes e a (re)invenção do território” revelou, com base em diversas leituras, os caminhos entrecruzados da geografia e da sociologia, sem, no entanto, resumir-se a elas. Distintos recortes temáticos e posicionamentos teórico-metodológicos possibilitaram um debate científico de alta qualidade, do qual as ideias e os relatos aqui contidos são uma amostra. O trabalho apresentado por Anita Rink analisa o grafite na cidade do Rio de Janeiro, buscando entendê-lo para além do seu possível enquadramento ou não como arte, para examinar a cidade como uso e como meio de expressão cultural. Assim, arte e uso tornam-se, nesse caso, sinônimos, pois o ato de criar é indissociável a ambos: criar é dar forma a algo novo, respondendo, subjetivamente, por instituir novas conexões que se estabelecem para a mente humana, novas relações e nova compreensão, como sugere Ostrower (1987, p. 9), bem como, objetivamente, oferecendo novas coerências aos objetos e às normas. Essa compreensão promovida pelo “ato criador”, que relaciona, ordena, configura e significa (ib.), é uma dimensão não apenas individual, mas geográfica, posto que se dá com o indivíduo em sua condição espacial da existência: o lugar. Demais, as consequências do ato criativo não se resumem ao indivíduo como agente social isolado, influenciando o sistema de relações
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dos lugares. Ou seja, o lugar exerce um dado ativo na criação e na criatividade. Inspirados em Benjamin e sua discussão sobre a autenticidade (aura) da obra de arte, que é o seu hic et nunc (aqui e agora), não poderíamos argumentar ser o grafite uma manifestação representante do lugar e do tempo convergidos? Ou, nas palavras do próprio autor, “a unidade de sua presença no próprio local onde se encontra. É a esta presença, única, no entanto, e só a ela que se acha vinculada toda a sua história” (1975, p. 13). Cidade e arte também foi o tema do trabalho apresentado por Francisco Ottoni, que reflete sobre o Viradão Carioca realizado pela prefeitura do município do Rio de Janeiro, concentrando centenas de atividades culturais em 3 dias do ano. Aqui, é o par dialético “continuidade e ruptura” que se faz evidente, pois há um papel ativo do poder público na normatização do que seja a arte, acompanhado da deslegitimização dos processos criativos que não coincidam com a política pública.1 É latente a contradição que há entre a difusão da arte, por um lado, e o controle das manifestações artísticas, por outro, o que permite a transformação do Viradão em um artefato do marketing territorial. A arte, mais uma vez, não existe imune à cidade, à totalidade social:2 os equipamentos públicos, sua distribuição e centralidade, os sistemas de transporte, as praças e os sítios capazes de abrigar determinadas manifestações artísticas (como salas de cinema ou de teatro, por exemplo) se impõem à definição da programação. Embora tenha havido uma distribuição territorial das atividades do Viradão, as materialidades da cidade, os deslocamentos que ela permite ou inibe, são constrangimentos irremovíveis do dia para a noite. 1 Veja-se o relato do caso (ocorrido em julho de 2010) do artista que representava uma estátua viva no largo da Carioca: foi impedido de trabalhar sob a alegação de que sua arte contraria os usos estipulados à calçada pela municipalidade. Esse acontecimento contrasta com o incentivo ao uso artístico dos espaços públicos, incluindo as calçadas, nos 3 dias do Viradão Carioca. 2 Para Kosik (2002, p. 121), a arte é uma realidade humana, tal qual a economia, porém com tarefa e significados diferentes. No entanto, não é a economia que gera a arte, nem direta nem indiretamente: é o homem que cria a economia e a arte como produtos da práxis humana.
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Esse papel ativo das materialidades citadinas nas atividades artísticas também foi marcante nos trabalhos de Henrique Jacintho, tomando a realização do XII Salão do Livro para Crianças e Jovens como objeto empírico, e de Vinícius Lima, com sua análise dos movimentos sociais de Nova Iguaçu e os pontos/teias da cultura. Em ambos os trabalhos revelam-se, através da cidade, as imbricações entre geografia, sociedade, cultura e arte, combatendo as visões simplistas e setoriais sobre o espaço e a sociedade. Os usos marginalizados do território aparecem na exposição de Fábio Tozi que discute os conteúdos geográficos da pirataria. O período e o meio técnico científico informacional, propostos por Milton Santos (1996), são pontos de partida para desmistificar o senso comum que trata a pirataria como crime ou como uma questão meramente econômica. A expansão do meio geográfico modernizado traz consigo a possibilidade da realização de novos usos do território, abarcando novas racionalidades na lida com os objetos e as informações. Portanto, a pirataria é entendida como um uso da técnica e das informações que caracterizam o período histórico atual, tendo na metrópole o lugar privilegiado dessa situação, que, contudo, se interioriza pelo país junto à urbanização da sociedade e do território, compondo o aspecto nacional de um fenômeno de dimensões globais. A cartografia da ação e as cartografias participativas foram o tema central de alguns dos trabalhos, como os apresentados por Ivy Schipper, Lya Boynard, Fabiane Bertoni, Rafaela Torres e Diego Borges, que contribuíram com um debate riquíssimo acerca do que é a geografia e quais são os seus instrumentos técnicos, ou, dizendo de outra maneira, como representar os fenômenos espaciais tendo como orientação uma teoria crítica do espaço. A cartografia da ação é um exercício teórico-metodológico de observação dos conflitos sociais no território (leitura de jornais, leitura sociológica e criação de bancos de dados), enquanto a cartografia participativa trata das maneiras comunitárias de produção de mapas com base em valores e definições imanentes aos próprios lugares, que podem, assim, representar-se. Ambas, no entanto, trazem um debate fundamental, especialmente nesse A metrópole significante
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presente histórico no qual a exacerbada instrumentalização da vida produz cartografias e cartogramas tecnicamente mais eficientes, todavia, esvaziados de sentidos e de conflitos. Coincidem e contribuem também para a percepção do território usado em processo, representando-o em mapas que trabalham com o movimento da sociedade. Evidenciaram-se as contribuições geográficas e sociológicas à proposição de outras cartografias nas quais a vida real e suas manifestações são fontes inspiradoras, rompendo com o determinismo estatal e/ou corporativo na eleição das representações, dando atenção não somente ao que é perene, mas também ao passageiro e ao transitório, igualmente significantes. Nesse movimento intelectual, os trabalhos apresentados por Alberto Toledo, Igor Queiroz e Felippe Rainha buscam dar visibilidade à pesca e aos pescadores artesanais da baía de Guanabara, mostrando a importância de práticas antigas que sobrevivem em uma área metropolitana que sofre vigoroso processo de modernização. Nesse local, pequenos barcos convivem, nem sempre harmoniosamente, com grandes navios cargueiros. A pesquisa por eles desenvolvida revela outro aspecto perverso manifestado pela incapacidade de uma gestão de uma região metropolitana: os resíduos sólidos dos diferentes municípios se depositam na baía, gerando formas de poluição que afetam diretamente a atividade pesqueira tradicional. Nessa situação, a luta para preservar o ambiente é a própria luta para preservar a atividade artesanal. Por isso, a importância em conhecer, mapear e quantificar esses resíduos é muito mais do que um levantamento, é a preservação de uma atividade que gera não somente a continuidade de uma cultura, mas a existência de uma produção renovável extremamente importante para a cidade. Algumas considerações finais A vida urbana, e mais que isso, a vida nas grandes cidades, é um fato que se acentua na formação espacial brasileira: o recenseamento de 2010, realizado pelo IBGE, mostra que mais de 84%
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da população nacional é urbana.3 O processo de urbanização da sociedade e do território é um desafio analítico para as ciências sociais, mas também para os governos e para a própria sociedade. Sempre incompleto, esse processo cria incessantemente novas desigualdades, uma vez que há uma perpetuação da reprodução da pobreza. A cidade, especialmente a metrópole, é o lugar da construção das alternativas, pois, “cheia de atividades suspeitas, ela fermenta delinquências, é um centro de agitação” (Lefebvre, 1969, p. 76), traz sempre o novo. O território e a cidade estão disponíveis para os diversos usos, obedientes a distintas racionalidades, embora nem todos os agentes sociais disponham da mesma capacidade de mobilizar, para a realização dos seus desígnios, os conteúdos e as materialidades neles presentes. A condição brasileira na era da globalização é esquizofrênica, uma vez que somos impulsionados à modernização de alto nível sem termos alcançado direitos e objetos sociais básicos. A cidade revela esse processo. Nas palavras de Santos, Na cidade “luminosa”, moderna, hoje, a “naturalidade” do objeto técnico cria uma mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa. Essa historização da metafísica crava no organismo urbano áreas constituídas ao sabor da modernidade e que se justapõem, superpõem e contrapõem ao resto da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas “opacas”. Estas são os espaços do aproximativo e da criatividade, opostos às zonas luminosas, espaços da exatidão (1996, p. 261). 3 O conceito de “urbano” adotado pelo IBGE não é o mesmo que temos adotado ao longo do artigo, pois, para aquele instituto, trata-se de habitar áreas institucionalmente definidas como urbanas, enquanto para nós o modo de vida urbano passa a existir mesmo nas áreas onde a materialidade do urbano (a cidade) não está presente. Um bom exemplo são as áreas de agricultura moderna, extremamente urbanizada, mesmo se realizando em porções agrícolas do território. Essa divergência não impede o uso, tampouco diminui a legitimidade dos dados fornecidos pelo IBGE.
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Nas insignificâncias, diz Ana Clara Torres Ribeiro, residem novas formas de experimentar a vida. Dar visibilidade a elas é uma tarefa científica das mais nobres, a despeito do seu desconhecimento pelo restante da população ou do discurso único e repetitivo da mídia, que se autodenominou como a opinião pública. Afinal, o que se denomina racionalidade nada mais é do que o controle “racional” pelo capital, que, como nos alerta Smith (1988), se concentra na “anarquia” do privado, o que transforma a cidade numa irracionalidade para si mesma, uma autodesregulação. Há que se destacar também a importância desse seminário como uma construção da memória em relação às diversas formas de se viver e estudar o espaço urbano, como Pollak nos lembra bem: A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis (1989, p. 7).
Referências Walter Benjamin. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In: Textos escolhidos. São Paulo: Ed. Abril, 1975. Karel Kosik. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Henri Lefebvre. O direito à cidade. São Paulo: Editora Documentos, 1969. João Cabral de Melo Neto. O engenheiro. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Fayga Ostrower. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987. Michael Pollak. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro: v. 2, n. 3, 1989. Milton Santos. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. Niel Smith. Desenvolvimento desigual: natureza, capital e a produção do espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. Maria Adelia Souza. Geografia, paisagens e a felicidade. In: ii Colóquio Internacional Sobre a Ideia de Felicidade. Fortaleza: 10, 11 mar. 2003.
Devemos valorizar os estudos apresentados nesse seminário e mantê-los vivos na construção constante da memória dos grupos que participaram de cada etapa da pesquisa para não cairmos no vazio do esquecimento. As ciências e os cientistas devem dialogar com o que existe nos lugares, com rigor e seriedade, cumprindo e retribuindo a confiança que a sociedade em nós depositou.
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Cartografia da ação e a juventude na cidade: trajetórias de método Ana Clara Torres Ribeiro Catia Antonia da Silva Ivy Schipper
Introdução A pesquisa “Cartografia da ação da juventude em São Gonçalo” encontra-se em andamento com apoio da Faperj (2009–2011) e nesta seção intencionamos apresentar proposta analítica, metodológica e os resultados preliminares. Os pressupostos analíticos visam justamente conhecer e estimular a reflexão do espaço em que vive essa juventude e, ao mesmo tempo, formar os jovens envolvidos no projeto no domínio de informações e técnicas de expressão de sua experiência urbana. Compreender as práticas, as táticas, os vínculos sociais, os desencantos e os desejos dos jovens exige uma análise contextualizada de ações sociais e o mapeamento (objetivo e subjetivo) de (des)encontros com a cidade. O mapeamento orienta-se por uma geografia da existência e por uma cartografia que valoriza cada gesto, iniciativa e projeto dos sujeitos sociais. Nesta direção, a denominada cartografia da ação possibilita o exame simultâneo de formas de apropriação do espaço urbano e de sentidos da ação, incluindo as suas origens, objetivos, formas de manifestação e simbologia. A investigação é feita por dois grupos de pesquisa: Laboratório da Conjuntura Social: Tecnologia e Território (Lastro), do Ippur/UFRJ, e Laboratório de Estudos Metropolitanos (Leme), do Grupo de Pesquisa Urbano, Território e Mudanças Contemporâneas, da Faculdade de Formação de Professores (FFP), da Uerj / São Gonçalo. O Lastro possui uma década de experiência no desenvolvimento da metodologia da cartografia da ação e tem permitido que esse exame aconteça por meio de uma rede 28
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de conceitos que valorizam os nexos entre tecido social e espaço urbano como indicam, entre outras, as seguintes noções: microconjuntura urbana; superficialidade de relações sociais; território praticado; espaço público provisório e tentativo; arena oculta; impulso global; circuito perverso; humanismo concreto; sujeito corporificado; mercado socialmente necessário. Estes conceitos têm sido utilizados para a análise crítica de informações veiculadas pela grande imprensa e para a identificação de atores sociais e políticos que, de fato, estão “nas ruas”. A experiência desse trabalho em conjunto com o Leme/FFP/Uerj tem como finalidade o aprofundamento do debate acerca de conceitos da geografia e de experimentações, bem como ser a FFP um dos pontos de partida da pesquisa em São Gonçalo. Este texto tem a intenção de analisar a cartografia da ação junto à juventude em São Gonçalo, município periférico da metrópole do Rio de Janeiro, apresentando os princípios analíticos e metodológicos e resultados preliminares do grupo focal realizado com estudantes de graduação da Faculdade de Formação de Professores, que se encontravam a partir do sétimo período, em março de 2010. Compreendendo a cartografia da ação Os contextos, a vida de relações que as novas cartografias devem valorizar, são o próprio espaço. Deve-se valorizar a experiência social, traçar realmente a transformação do território em usado, praticado e vivenciado. A cidade viva e experimental não morreu, apesar de todas as afirmações em contrário, feitas pelo discurso da crise: ela é fortíssima, muito resistente. Daí a importância dos sujeitos sociais que de fato existem, nas suas condições eventuais de sujeitos da sua própria ação, e que, na verdade, são as pessoas que estão nas ruas, falando, acontecendo, dizendo, agindo, fazendo. É essa a cartografia da ação que nos referimos. Queremos saber dessa cartografia, e de outras dos territórios usados, de maneira a resistir ao pagamento da vida de relações, o qual cada vez mais, achamos, vai ser a forma dominante, a forma hegemônica de ver e de ler as relações entre a sociedade e Cartografia da ação e a juventude na cidade
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o Estado. E com isso, sim, nós podemos correr o risco, de ver crescer e se afirmar quase exclusivamente a leitura militar das relações sociais ou o crescimento dos ativismos. Em ambos os casos, a imposição política deseja ser dominante, caso contrário, à negociação teremos o extermínio do opositor. O que agora aconteceu, pode acontecer muitas outras vezes mais, e isso com o apoio produzido por uma sociedade em grande parte envolvida num universo informacional que é muito difícil de analisar e criticar. É necessário, assim, alargar os diálogos não só com as disciplinas, mas também com outros saberes, com a fala do outro, com a leitura do outro, para que a banalização que está no espaço banal não seja também a do controle, e sim a necessária ao diálogo. E nos parece que mais do que nunca se faz necessária a episteme dialógica e a democrática, efetivamente democrática, que procure realmente fazer representar todos os outros, os muitos outros, para que todos nós, ou a maior parte possível, estejamos nas nossas representações do espaço e da sociedade. Assim, se poderá contrariar a ação que se dá de cima para baixo. Para descobrir como realizar isso, é necessária a leitura horizontal e a de baixo para cima. Aderimos à proposição de Max Weber (2000) de que nem todo tipo de ação é ação social. A ação externa é aquela orientada exclusivamente pela expectativa de determinado comportamento de objetos materiais, projetos não ditos, que estimulam consumos e comportamentos. A ação social é aquela que pressupõe sentidos (racional, emocional, orientada por valores), sentidos de imanência, mas também sentido de transcendência, portando sentidos de consciência. A cartografia da ação social refere-se, sobretudo, às formas de protestos, reivindicações, vínculos sociais que acabam por desenhar novas configurações espaciais e sociais, representações espaciais de trajetos vividos e experimentados. Eles acontecem, sobretudo, nos contextos periféricos metropolitanos, de espaços carentes de bens culturais e de formas de expressão da juventude, esta atravessada pelas dúvidas, incerteza de trabalho, de futuro, de sociabilidades (Ribeiro, 2000, 2003 e 2004, Ribeiro et al. 2001 e 2002, 2005–2006, Ribeiro e Silva, 2000).
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A trajetória da pesquisa A análise da apropriação do espaço urbano por jovens que residem, estudam e/ou trabalham no município de São Gonçalo (RJ), situado a leste da baía de Guanabara da metrópole do Rio de Janeiro, teve como pressuposto o diálogo entre sociologia, geografia e educação. Recorre-se a diferentes métodos e técnicas de pesquisa, entre os quais se destacam as metodologias da cartografia da ação e da pesquisa-ação e, ainda, a técnica dos grupos focais. Em articulação com estas opções de método foram utilizados o geoprocessamento de estatísticas referidas às condições de vida, à estrutura urbana e ao transporte público; mapas mentais; entrevistas abertas e questionários. A investigação é dedicada à juventude de São Gonçalo (RJ), destacando as suas condições de vida e anseios relacionados à apropriação do espaço urbano. Em um contexto marcado pela violência que atinge, sobretudo, os jovens entre 14 e 24 anos e pela carência de oportunidades de trabalho e de formação intelectual, propõe-se a realização de uma pesquisa que valoriza o protagonismo da juventude no desvendamento de intervenções urbanas. Intervenções estas que reduzem as desigualdades sociais, a fragmentação territorial e as diversas formas de espoliação (Kowarick, 1975) que se repetem no cotidiano de municípios periféricos da região metropolitana do Rio de Janeiro. Trata-se, portanto, de um município submetido a fortes pressões sociais, que se sobrepõem à carências urbanas acumuladas em sua trajetória histórica recente (Cordeiro, 2009). No município de São Gonçalo, que apresenta o quarto produto interno bruto e abriga o terceiro colégio eleitoral do estado, a juventude das classes populares tem os seus anseios de realização individual tolhidos pela pobreza e pelo isolamento, em comunidades que mais enclausuram do que ensinam e libertam (Carrano, 2002; Bauman, 2003). É esta trajetória que conduzirá a integração entre técnicas quantitativas e qualitativas de pesquisa utilizadas no treinamento e no diálogo com os jovens integrantes da equipe do projeto e dos diferentes grupos focais. Esta integração de técnicas corresponde
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tanto à natureza dos fenômenos estudados quanto ao intuito de apoiar, com informações consistentes e convincentes, as reivindicações urbanas da juventude do município de São Gonçalo (Bobbio, 1992 e 1997). O desafio técnico do projeto decorre dos nexos espaço-temporais da ação social (Santos, 1996), cuja consideração é cada vez mais indispensável às intervenções no presente que visam o alcance de uma vida urbana mais justa e solidária. Os tempos da periferia, refletidos a partir dos tempos da juventude, formam territorialidades geradas por limites, projetos, desejos e também pelo imaginário, o que impõe que a ação social, predominantemente estudada pela sociologia, não seja desconectada da teoria crítica do espaço. Como adverte Boaventura de Souza Santos: “Começamos a ver que cada um destes tempos é simultaneamente a convocação de um espaço específico que confere uma materialidade própria às relações sociais que nele têm lugar” (1991, p. 63). Identificar essas relações, sustentando sua compreensão em análises de contextos que contemplem meios e obstáculos à ação social, corresponde, na perspectiva do projeto, a uma real possibilidade de apoio à construção de vínculos sociais entre diferentes segmentos da juventude de São Gonçalo e à concepção de projetos que possam enriquecer a vida cotidiana no município. Por fim, a experiência construída pela pesquisa, com seus instrumentos e produtos, formará um acervo documental que permitirá sua reprodução em outros municípios da periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro. As fraturas e as desigualdades sociais transformaram a região metropolitana do Rio de Janeiro, nas últimas décadas, em um real epicentro da crise societária. Neste tipo de crise, obstáculos à socialidade e, portanto, à construção de vínculos sociais, manifestam-se por impedimentos à socialização (compartilhamento de valores) e à sociabilidade (interações sociais). Nestas circunstâncias, o esgarçamento do tecido urbano inclui a redução da adesão às instituições sociais, o que, na ausência de novos processos instituintes, significa aumento da violência, inclusive simbólica (Lojkine, 2002). As ciências sociais
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têm indicado a gravidade desta crise por meio dos seguintes deslocamentos conceituais: da segregação à fragmentação e da marginalização à exclusão. Compreendendo os contextos sociais e espaciais A multiplicação de conflitos sem tradução em projetos defendidos na esfera pública, observada na região metropolitana do Rio de Janeiro, constitui-se num dos mais claros sintomas da crise societária. Da mesma forma, são seus sintomas: a militarização do cotidiano e o encerramento da experiência urbana das classes populares em espaços isolados e submetidos a formas paralelas de poder e ao medo (Delumeau et al., 2002; Caldeira, 2000; Souza, 2008). São erguidas, por estes processos, novas e quase intransponíveis barreiras físicas e socioculturais, que reduzem as perspectivas de futuro da juventude a um “aqui e agora” precário e incerto. Estes processos adquirem especial intensidade em municípios periféricos, como é o caso de São Gonçalo (ver Cordeiro, 2008 e 2009). Nesses municípios, a vulnerabilidade das famílias soma-se à pobreza do ambiente construído, gerando um acúmulo de fatores responsáveis pela exclusão social e pela manutenção de preconceitos. Refletindo essas condições do presente, o projeto destaca o território como uma dimensão da experiência urbana que adquire grande centralidade para a compreensão das carências coletivas e das representações sociais que orientam a vida cotidiana. Compreende-se que as qualidades do território e as territorialidades construídas pela juventude das classes populares formam uma mesma realidade que precisa ser reconhecida para que o jovem amplie a sua capacidade de ação e, em consequência, de conquista de seus direitos de cidadania, onde se incluem os direitos urbanos. Para isto, é indispensável contrapor ao predomínio do espaço concebido (Lefebvre, 1969 e 2000), do espaço abstrato, as representações do espaço vivido que incorporem o território usado e praticado (Santos, 1987 e 1993; Ribeiro, 2003) pela juventude. A valorização dessas representações, conjugada a infor-
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mações que viabilizem o conhecimento multiescalar do espaço urbano, permitirá aos jovens participantes do projeto ter acesso a uma cartografia detalhada e ativa do espaço em que habitam, estudam e/ou trabalham. Este acesso será acompanhado de oportunidades de exposição e debate de dificuldades vividas no cotidiano e de anseios relacionados à dinâmica da vida urbana. Nesta direção, o uso de instrumentos de pesquisa (ver metodologia e metas) que articulam tecnologia e cognição (Dupuy, 1996), constitui um compromisso do projeto, viabilizando a superação de mecanismos culturais que tendem a limitar anseios ao que é considerado como imediatamente disponível ou alcançável (Certeau, 1994 e 1998). O desenho do projeto expressa a compreensão de que a pesquisa precisaria ser concebida de forma a integrar avanços no processo de conhecimento à ampliação da participação social na esfera pública e à oferta de subsídios para a implementação de intervenções urbanas que reduzam desigualdades sociais; estimulem a sociabilidade e possibilitem o usufruto do espaço urbano pela juventude – de 15 a 29 anos. Há a necessidade de uma nova episteme, dialógica e aberta, que desvende espaços de esperança, como propôs David Harvey (2004), no cerne das diferentes faces da crise societária. O olhar da juventude residente em São Gonçalo Com base no grupo focal realizado em 31 de março de 2010, com graduandos veteranos da Faculdade de Formação de Professores da Uerj, foi possível conhecer um pouco o universo desses jovens de 20 a 26 anos, compreender as suas trajetórias sociais e espaciais. Para eles, estar ligado a São Gonçalo é fazer parte da história do lugar e, ao mesmo tempo, compartilhar diferentes modos de vida; pois, os diferentes lugares fazem parte também da própria história do indivíduo. É reviver, pela visita ou nos percursos, os lugares que ligam a lembrança às atividades da infância e da adolescência e, ainda, os lugares que ligam as novas atividades ao presente do sujeito. A experiência universitária a partir da Faculdade de Formação de Professores da Uerj (FFP/Uerj) em 34
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São Gonçalo, que reúne pessoas de diferentes origens municipais, relativiza e articula o estar ligado pelas perspectivas de dentro e de fora, da casa e da cidade. Para o grupo, São Gonçalo é o lugar das igrejas e da sinagoga, onde amizades, identificações e investigações podem ser construídas nos bairros de Porto Novo, Porto Velho, Santa Izabel, Alcântara e Patronato. O lugar da faculdade é da vida universitária, por unanimidade, o melhor lugar, onde os locais e os de fora, que moram em repúblicas, se encontram, numa das escassas redondezas em que estabelecimentos ficam abertos até mais tarde, permitindo que pessoas de origens diversas possam se conhecer e a outros frequentadores populares. Aí, até a ciclovia faz parte do lugar. Este é o centro, já que São Gonçalo é um lugar de poucos bares com música e boates. Academias de musculação e artes marciais localizam-se perto de outras atividades: a faculdade, o trabalho ou a moradia. As pracinhas e os campinhos deveriam ser os lugares catalizadores da convivência, da diversão; mas eles são inexistentes. Se as crianças usam canteiros entre pistas de automóveis para se divertirem com bola, é porque faltam os campinhos de terra batida. Quando eles existem, como no Mutondo, o campo de futebol passa a ser o lugar de encontro no fim de semana entre turmas de amigos, com idades variadas, envolvendo o jogo, a cerveja e, até mesmo, as brigas de turma. São Gonçalo também pode ser repulsivo para estudantes de fora do município que para lá se mudam durante os períodos letivos: a cidade enseja experiências de estranhamento e rejeição para quem vem de “lugares pacatos, onde as pessoas moram com pelo menos 50m de distância umas das outras”. Em São Gonçalo, esses estudantes vivem em bairros aglomerados, em prédios onde a vizinhança está colada e os vizinhos costumam ter contato visual constante entre si, mesmo estando dentro de casa. Ou ainda, o estranhamento e a rejeição advém do tempo despendido no trajeto para o trabalho nos horários de pico entre o bairro aglomerado de Porto Novo e a área comercial e de trabalho de Alcântara. Aqui, somam-se a hora e meia no transporte à extrema exploração a que é submetido o trabalhador do comércio tradiCartografia da ação e a juventude na cidade
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cional, chegando a trabalhar diariamente, de forma ininterrupta, até 10 horas. Para o grupo, Alcântara é também o lugar da desigualdade, onde meninos permanecem nas ruas, em frente às lojas, usando a praça para solucionar todas as suas necessidades de sobrevivência: “Onde também é um inferno, onde a gente se aglomera, quente, imundo”. Outros lugares hostis reconhecidos, além das aglomerações de Alcântara e Porto Novo, são: Galo Branco (constantes assaltos), Colubandê, Tribobó (falta de asfaltamento e iluminação). O tempo despendido na circulação e no trabalho acaba, segundo os depoentes, por inviabilizar o próprio usufruto da vida doméstica. Em outro sentido, a vida universitária incluindo o deslocamento diário até o bairro Patronato consome o tempo que poderia ser aproveitado na circulação livre e com intuito exploratório ou, mesmo, para atividades culturais. No entanto, a vida universitária colocaria os alunos em contato com um circuito específico de atividades e compromissos, fazendo com que a experiência universitária surja como matriz da identidade espacial e norte da circulação. Por outro lado, a possibilidade de uma vida coletiva em outros municípios, como o Rio de Janeiro e Niterói, onde estão concentradas as atividades culturais e econômicas, na visão dos estudantes, é compensada pelo o ritmo de vida mais calmo da cidade de São Gonçalo, que tem origens e história de vida diferente. O estresse do trabalho em outros municípios da metrópole do estado é compensado por uma circulação em diversos bairros onde a sensação é de “estar em casa”, em oposição à estranheza causada por estar frequentando e vivenciando ambientes análogos, em outros municípios. Os estudantes do grupo focal declararam que na arquitetura da cidade surge outro indicador visível do modo de vida em São Gonçalo. As diferenças de concepção da moradia entre as classes sociais, materializadas no aproveitamento dos terrenos residenciais com suas construções, produzem fortes contrastes: nas áreas populares, os terrenos são mais baratos e as construções são intensivas e ocupam ao máximo o lote adquirido, em contraste 36
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com aqueles terrenos onde são construídas casas espaçosas, que dividem o terreno com varandas, pátios e quintais, dando outro recorte ao modo de vida local. Indicaram ainda que parece existir um desconhecimento dos moradores de bairros populares sobre o seu lugar no espaço urbano. Qualquer pequena melhoria relativa às más condições de vida é vista como uma grande contribuição do poder público. Segundo os depoentes, movimentos de bairro deveriam se associar de forma autônoma a assessorias técnicas, para que, por exemplo, o asfaltamento seja acompanhado por infraestruturas independentes de esgotamento fluvial do sanitário. Caso contrário, os problemas decorrentes ultrapassam os anteriores. Por isso, a estrutura de São Gonçalo não se compara à de Niterói. Falta infraestrutura e lugares de encontro e atividades culturais. Na verdade, o município deve ser equiparado a outro tipo de município, como Cabo Frio, por exemplo, para, depois, confrontá-los a Niterói. A questão debatida pelo grupo focal como desdobramento tratava dos determinantes do pertencimento: será a densidade de equipamentos urbanos que qualifica os pertencimentos ou são as relações sociais estabelecidas a partir do lugar de existência que possibilitam o convívio, os momentos de reflexão sobre as condições de vida e a luta por melhorias? Ficou esta questão no ar. As mobilizações políticas em São Gonçalo foram debatidas sob o ângulo do tempo da organização de lutas: 1 Em função da momentaneidade com que se experimenta a indignação frente a transtornos permanentes e recorrentes; quando (e onde) a indignação pode durar dois ou três dias. Em resposta, os depoentes salientaram que os compromissos do cotidiano impedem qualquer possibilidade de mobilização ampliada ou coletiva, em termos de reunião de pessoas que compartilhem as mesmas dificuldades. 2 Por meio do aprendizado de quais condições desfavoráveis, experimentadas individual e coletivamente, podem levar as pessoas à associação, iniciando procedimentos de mobilização para a conquista de melhores condições de vida. A participação das classes médias na luta por melhorias em Cartografia da ação e a juventude na cidade
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seus bairros (Camarão, Centro, Patronato, Alcântara etc.) são travadas na esfera jurídica e anunciadas em faixas penduradas nas vias de maior circulação e visibilidade. Já as formas mais indignadas e populares de protesto e a luta por melhorias das classes populares por melhorias adquirem a forma de incêndios de lixo e de objetos de médio e grande porte nas ruas de maior movimento dos bairros desassistidos. Entre os estudantes, a mobilização política em São Gonçalo parece obedecer a uma lógica na qual os alunos do ensino médio se mobilizam mais que os do ensino superior. Por outro lado, o movimento universitário recebe maior adesão dos universitários que vem de fora de São Gonçalo. Também há uma grande expectativa desses setores mobilizados pelo alcance de compromissos com a produção acadêmica e com a educação pública, gratuita e socialmente referenciada. No momento propositivo da sessão, surgiram duas demandas: a primeira, pela transformação de São Gonçalo em um município formador de atletas por meio da multiplicação dos centros ou quadras poliesportivas, incluindo áreas menos urbanizadas e acessíveis, geridas pelas comunidades via associação de moradores e apoiadas ou supervisionadas por entidades tais como universidades, Sesc etc., com clara autonomia em relação ao governo municipal. A segunda diz respeito à inclusão da antropologia na formação aos futuros professores e bacharéis, fazendo com que esses passem um semestre dedicados ao envolvimento vivencial com o tema a ser trabalhado em suas monografias de final de curso. Algumas considerações Trata-se de uma proposta metodológica da cartografia ação junto à juventude em municípios periféricos, levando em conta a abordagem crítica em que as metrópoles devem ser averiguadas como lócus de contradições entre inovações, modernização e pobreza; são lugares de aglomeração urbana, concentração demográfica e centralização das atividades secundárias e terciárias. Ouvir os jovens e conhecer suas trajetórias, suas formas de compreensão e
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de apropriação da cidade e da metrópole é um desafio importante para orientar a gestão territorial e abrir novos caminhos para possibilitar novas formas de sociabilidades. Referências Zygmunt Bauman. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003. Norberto Bobbio. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campos, 1992. — Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. Cahiers de la recherche architecturale et urbaine. L’espace anthropologique. Paris: Éditions du Patrimoine, n. 20/21, 2007. Teresa Pires do Rio Caldeira. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Ed. 34 / Edusp, 2000. Paulo Cesar Rodrigues Carrano. Os jovens e a cidade: identidades e práticas culturais em Angra de tantos reis e rainhas. Rio de Janeiro: Relume Dumará / Faperj, 2002. Michel de Certeau. La prise de parole et autres écrits politiques. Paris: Seuil, 1994. — A invenção do cotidiano: artes do fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. Denise Cordeiro. Juventude nas sombras: capturas e devires de jovens pobres. Niterói: UFF (PPG em Educação), 2008. Tese de doutorado. — Juventude nas sombras. Rio de Janeiro: Lamparina e Faperj, 2009. Jean Delumeau, et al. El miedo: reflexiones sobre la dimensión social y cultural. Medellín: Corporación Región, 2002. Jean-Pierre Dupuy. Nas origens das ciências cognitivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996. David Harvey. Espaços de esperança. São Paulo: Loyola, 2004. Lucio Kowarick. Capitalismo e marginalidade na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. Henri Lefebvre. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969. — La production de l’espace. 4. ed. Paris: Economica Editions, 2000. Col. Anthropos. Cartografia da ação e a juventude na cidade
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Cartografias e lutas sociais: notas sobre uma relação que se fortalece Renato Emerson dos Santos
A cartografia, como corpo disciplinar acadêmico e científico, tem seu desenvolvimento atrelado ao processo de eurocentrismo do mundo, num período histórico conhecido como modernidade. Seu desenvolvimento foi também, portanto, associado ao estabelecimento de uma ordem e à afirmação de hegemonias em relações de poder, o que a tornou historicamente um instrumento de dominação e controle. Como nos mostrou, entre outros, Lacoste (1988), a representação cartográfica do espaço sempre foi um trunfo de grupos hegemônicos. O controle do instrumento cartográfico, dos processos de produção e das formas de representação (postulados, concepções etc.) durante muito tempo despertou pouca atenção de forças e grupos contra-hegemônicos. Isto permitiu que, por séculos, a cartografia se mantivesse praticamente incólume frente às disputas sociais nas quais ela era um instrumento a serviço de forças dominantes, o que serviu para reforçar um discurso (positivista) de que ela era apenas uma técnica calcada na neutralidade de suas bases. Permitiu também o amplo desenvolvimento de formas de “mentir com os mapas” (Monmonier, 1996). No período recente, entretanto, um conjunto cada vez maior de experiências vem indicando transformações (ou ao menos tendências) no campo da cartografia. Diversas experiências de cartografias vinculadas a movimento sociais vêm mostrando que parece haver algo novo no campo. O “novo” parece ser o uso da cartografia como instrumento de lutas de grupos socialmente desfavorecidos e não apenas um instrumento de dominação, como historicamente foi desenvolvida a cartografia moderna. Apontamos, entretanto, que esta dimensão conflituosa do “uso” da cartografia também vem envolvendo transformações no próprio “objeto” cartográfico, e no “processo” de produção deste objeto. Processo, objeto e uso cartográfico são três dimensões da 41
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cartografia que vêm sendo tensionadas por e com base em jogos de poder. Diversos atores vêm se inserindo em disputas que articulam cartografias e relações de poder onde o que está em jogo pode ser, por exemplo, o controle do território, de propriedade, de comportamentos e relações sociais, de processos políticos ou, das próprias formas e instrumentos de representação. A valorização política e analítica da dimensão espacial de fenômenos, processos, objetos e atores transforma os instrumentos de representação espacial cada vez mais no centro de disputas de poder. Esta valorização do espaço é que faz com que a cartografia cada vez mais se cruze com jogos e disputas, ou, ela própria se torne objeto de disputa. Sem a pretensão de esgotar o debate, trazemos aqui alguns exemplos de ações nestas disputas.1 Novos atores na cena cartográfica O campo da cartografia está sendo tensionado por (e em) diversos sentidos. Tomemos alguns exemplos em curso, no Brasil e em outras partes do mundo, que provocam nossa reflexão. Um primeiro fenômeno é o uso crescente de objetos cartográficos como instrumento de luta por movimentos e articulações de movimentos sociais. Os objetos cartográficos estão sendo utilizados como leituras (sociais) do território que são confrontadas às oficiais e/ ou de atores hegemônicos, mas também como instrumentos de (fortalecimento de) identidade social e de articulações políticas – ou seja, na sua plenitude de instrumento de representação que exprime a realidade (segundo pontos de vista, posições definidas) e também ajuda a construir a própria realidade. Estes usos cartográficos podem ser exemplificados com o caso do “Mapa dos conflitos socioambientais da Amazônia Legal: degradação ambiental, desigualdades sociais e injustiças ambien1 Valemo-nos aqui das análises que realizamos no relatório da pesquisa “Cartografagens da ação e dos conflitos sociais: análise comparativa de observações e representações do espaço-tempo do fazer político”, coordenado por nós e apoiado pela Faperj. Neste, coletamos e analisamos 34 experiências de cartografias relacionadas a lutas, movimentos sociais e disputas sociais e cartográficas.
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tais vivenciadas pelos povos da Amazônia”, central na campanha “Na floresta tem direitos: justiça ambiental na Amazônia” uma iniciativa de movimentos sociais, entidades, ONGs e redes da Amazônia. O mapa foi elaborado sob responsabilidade técnica da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase),2 por meio de uma metodologia participativa: foram coletadas informações fornecidas pelos próprios movimentos, em encontros e eventos. A coleta foi executada principalmente por meio da exposição de mapas impressos aos participantes e lideranças dos movimentos que nele indicavam os conflitos vivenciados e suas localizações. A indicação ia além, na verdade: eles também qualificavam os conflitos socioambientais, apontando as atividades e práticas que causam tal degradação, sua localização e os atores aí envolvidos. Abrangendo toda a Amazônia Legal, o mapa foi utilizado como um instrumento de denúncia e pressão junto ao Ministério Público Federal e outras autoridades competentes, e também para a articulação de organizações, entidades, movimentos sociais na luta por alternativas locais que assegurem o desenvolvimento da Amazônia com justiça ambiental e garantia dos direitos humanos. O mapa opera com uma classificação dos conflitos por agenda, do que são definidas 14 modalidades: recursos hídricos; queimada e/ou incêndios provocados; pesca e/ou caça predatória; extração predatória de recursos naturais; desmatamento; garimpo; pecuária; monocultivo; extração madeira; grandes projetos; regularização fundiária; ordenamento territorial; violência física declarada; moradia. Foram identificados 675 focos de conflitos socioambientais por todo o território da Amazônia Legal que, classificados e associados cada qual a um símbolo, têm a sua espacialização (e, consequentemente, identificados os focos de concentração) expressa no mapa. Outro aspecto interessante do mapa é o conjunto de 2 As informações a seguir, bem como o mapa, foram extraídos da página de internet da Fase. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2006). Cartografias e lutas sociais
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objetivos elencados como motivadores para sua confecção, que denotam as decisões estratégicas tomadas em torno dele: 1 dar visibilidade aos conflitos socioambientais na região; 2 ser instrumento de pressão e denúncia; 3 auxiliar no diagnóstico local, desmistificando o que tem sido chamado de “desenvolvimento e progresso para a Amazônia”; 4 caráter educativo no sentido de possibilitar a organização e mobilização; 5 viabilizar o diálogo com dados oficiais; 6 contribuir no planejamento das ações das organizações populares, indicando caminhos estratégicos e alianças/parcerias. A estes, agrega-se um aspecto concernente à própria forma como o mapa é construído: a metodologia participativa, “em que os próprios sujeitos coletivos, que conhecem e vivenciam os impactos negativos das atividades degradantes existentes em suas localidades, identificam os conflitos e constroem o mapeamento”. Isso se constitui, cabalmente, num aprendizado da operação de referências espaciais no pensar e no fazer da sua experiência de luta: ao indicarem sobre um mapa os conflitos vivenciados, sua localização, quais são as “agressões” e os sujeitos coletivos envolvidos, os participantes estão aprendendo e apreendendo novas formas de pensar para agir, o pensar no espaço, e o pensar com o espaço. Neste caso, o objeto cartográfico é instrumento de identidade e articulação, e também de disputa nas leituras e representações da realidade que servem de base para tomadas de decisão e ações. Tal quadro também aparece em recentes iniciativas de mapeamento de casas de religiões africanas, que estão sendo realizados, por exemplo, no Rio de Janeiro e em Salvador, como resultado da luta de setores do Movimento Negro Brasileiro contra a intolerância religiosa, por meio do levantamento e visibilidade das casas religiosas que o mapa promove. No Rio de Janeiro, o mapeamento está sendo realizado através da parceria entre a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir, do Governo Federal, que é conhecida como o “ministério da igualdade racial”), a PUC-Rio e movimentos sociais
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antirracismo, e, em Salvador, pela prefeitura e o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, com recursos da Seppir e da Fundação Cultural Palmares. O ponto de partida para a elaboração do mapeamento é a constatação e a reivindicação dos movimentos sociais sobre a invisibilidade das religiões afro-brasileiras nos cadastros oficiais. Essa invisibilidade aparece como uma dimensão institucional da negação da herança africana pelo Estado brasileiro, o que ao longo da história já assumiu a forma da perseguição policial, fechamento de casas e mesmo assassinatos de praticantes. Hoje ela aparece na forma do desconhecimento que este mesmo Estado sustenta em relação a estes grupos, muitos então colocados na condição de ilegalidade por conta desta violência espiritual, religiosa e epistêmico-cultural. A ausência de informações sobre estas religiões nos formulários censitários, que só foi revertida no censo 2010, impossibilitava reivindicações de ações do Estado em relação aos praticantes destas religiões. Esta falta de informações sistemáticas e reconhecidas, ao contribuir para a invisibilidade destas religiões, concedia terreno para a reprodução de violências e perseguições às religiões de matriz africana, que vêm se avolumando nos últimos anos no Brasil. A cartografia neste caso é, portanto, um instrumento de reconhecimento estatal dos grupos envolvidos, instrumento de fortalecimento de articulações e identidades, e também uma ferramenta para a promoção de políticas públicas. Essas dimensões aparecem também numa série de iniciativas de mapeamento participativo nucleadas pelo projeto “Nova Cartografia Social da Amazônia”, coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, vinculado ao PPGSCA/Ufam (Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia), financiado pela Fundação Ford e que já gerou quase duas centenas de fascículos resultantes de oficinas de mapeamento participativo. Trata-se de uma cartografia elaborada pelos próprios grupos sociais que ela representa no mapa, um processo no qual membros de um determinado grupo registram quem são, onde e como vivem. O que se busca, portanto, não é mapear
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os grupos, mas sim, permitir aos grupos que eles próprios se mapeiem, e este processo de (auto)mapeamento é denominado, segundo o próprio núcleo, de “mapeamento situacional”. Este processo de mapeamento traz nítida influência do pensamento situacionista, que pregava o combate à alienação produzida pela sociedade capitalista por meio da valorização das visões dos indivíduos que vivem as relações. Com isto, buscava-se romper com a passividade inerente à “sociedade do espetáculo” (Debord, 2003), dentro da qual indivíduos e grupos desfavorecidos são transformados em espectadores e participantes passivos diante de um roteiro sobre o qual não têm qualquer influência. Com base nessa influência, a cartografia do PNCSA vai valorizar as visões da realidade daqueles que a vivem, mas são destituídos de fala na construção das representações hegemônicas. Como esta matriz combate a rigidez na compreensão da realidade (sobretudo, das matrizes estruturalistas e funcionalistas), a cartografia situacional vai se propor também uma representação transitória e parcial de uma realidade. Como afirma Alfredo Wagner (2009, p. 4), o mesmo grupo pode num outro momento refazer um mapa e gerar um produto cartográfico completamente diferente. A valorização de identidades inerente à construção dos mapas enquanto representações ganha um componente centralmente político, pois é na vivência de conflitos, interlocuções, embates e articulações que são engendrados os esforços mobilizadores de ação coletiva que constituem os grupos que se põem em processo cartográfico. Cada mapa produzido trata-se, portanto, de uma leitura contextualizada da realidade. O PNCSA é, sem dúvida, a maior articulação de experiências de mapeamento participativo no Brasil e na América Latina. É, para nossa análise, um grupo concentrador de experiências sociais de mapeamento, que difunde objetos cartográficos para a luta e também difunde um modelo de construção de representações cartográficas. Para os grupos (auto)mapeados, esta ação constrói um instrumento útil em suas lutas, além de transmitir aprendizados sobre como elaborar (participativamente) um mapa e sobre como raciocinar por meio do espaço sobre suas problemáticas e lutas. Mas esta difusão de um “modelo” de constru46
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ção de representações configura uma forma distinta de “ativismo cartográfico” do núcleo. Todas essas experiências que acabamos de analisar têm, em maior ou menor grau, uma tensão em relação ao objeto cartográfico, ao seu uso e, sobretudo no caso do PNCSA, ao processo de produção cartográfica. Elas têm também em comum o fato de que, em sua maioria, um dos interlocutores fundamentais é o Estado. Mas, se de um lado elas nos mostram que uma crítica à(s) cartografia(s) oficial(s) vem se fortalecendo, de outro elas nos chamam a atenção para um olhar sobre como o Estado vem reagindo neste debate sobre objetos, usos e processos de produção cartográfica. E o Estado se revela fundamentalmente uma complexa e múltipla “arena”, muito mais do que um ator. Verificam-se diversas formas de “reação” do Estado às disputas em curso no plano da produção cartográfica. Uma delas é a reação negativa: nas tramas de poder em que atores contra-hegemônicos se utilizam de instrumentos cartográficos, o setor do Estado diretamente envolvido pode adotar a negação, a desqualificação, ou a notável ignorância em relação àquilo que é trazido pelos movimentos na forma da representação cartográfica. Entretanto, o que nos chama mais atenção é o fato de que, dentro do próprio Estado, de maneiras ambíguas, multilocalizadas e contraditórias, também há variados graus de permeabilidade a processos e objetos cartográficos assemelhados àqueles que estão no núcleo da convergência entre cartografia e lutas sociais. Políticas públicas recentes começam a incorporar processos de mapeamentos participativos. Este não é um processo linear, unidirecional, nem isento de contradições. Ele envolve, na verdade, múltiplas dimensões: incorporação da participação de grupos que são chamados de “público alvo” em processos de formulação e/ou execução de políticas públicas – ou, quase sempre, em partes bem definidas destes processos, e com restrita capacidade de decisão e interferência; incorporação de elementos, linguagens e visões de mundo tradicionalmente excluídos de cartografias oficiais – o que envolve diálogos interculturais em alguns processos. Um exemplo de política pública que incorpora mapeamentos participativos é o projeto Maplan (também chamado de proCartografias e lutas sociais
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jeto Mapear), uma parceria do Governo do Estado do Ceará com a Universidade do Arizona, para a elaboração de diagnósticos participativos como ferramentas para o planejamento do desenvolvimento local. A previsão era de realização dos trabalhos em 14 municípios, mas, pelas informações disponíveis, podemos confirmar sua execução em 8. Os municípios foram escolhidos a partir da gravidade de seu quadro social, medido pelos índices de desenvolvimento humano e condições da população local. A abordagem do trabalho parte do entendimento de que o processo de planejamento local deve, obrigatoriamente, incluir a opinião das populações que porventura sofrerão a intervenção de políticas públicas. Foram escolhidas regiões no interior do Ceará que, dentre outros problemas, sofrem com a fome e a seca. Os idealizadores do projeto acreditam que os residentes das comunidades possuem um entendimento próprio sobre inúmeros fatores que oferecem desafios frente ao processo de desenvolvimento da sua região. Além disso, há um consenso geral sobre a necessidade de estimular uma prática de planejamento local que tenha como base a participação ativa das comunidades em todo o processo. O nível de participação almejado deveria abranger tanto a definição e descrição da problemática local, quanto a discussão em torno das metas prioritárias e a própria elaboração dos planos. Enquanto tecnologia de gestão social, o diagnóstico participativo serviria como instrumento para a descentralização da execução das políticas, e este projeto ofereceria então uma ferramenta inovadora de diagnóstico participativo que poderia subsidiar e estimular um processo de desenvolvimento local. É neste sentido que os mapas são usados: para promover as discussões de grupo, para auxiliar a identificação de condicionantes e potencialidades nas comunidades do interior, e para discutir sobre as metas de desenvolvimento das populações. Ressaltase que todas as informações contidas nos mapas são fornecidas pelos próprios residentes. Os mapeamentos são, portanto, instâncias de construção coletiva e participação aberta, que permitem conhecer a realidade por meio das memórias cotidianas de indivíduos que convergem para um mesmo espaço horizontal. 48
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O diagnóstico participativo aparece, na perspectiva indicada, como um instrumento de valorização da voz e da fala de grupos desfavorecidos, portanto, um instrumento de equilíbrio democrático; e um instrumento de enquadramento desta fala em formatos (ou, meios) válidos de conhecimento. Com isto, torna-se também paradoxalmente um instrumento de desqualificação das falas que não se encontram enquadradas neste mesmo formato, como as próprias formas de expressão dos grupos a quem se pretende dar voz. Torna-se, portanto, uma tecnologia de gestão social que, se no discurso (e, por que não, também na prática) é instrumento de fortalecimento e luta de grupos, também o é de desqualificação de outras falas e expressões dos mesmos grupos. Dentro deste paradoxo, opera-se a junção das técnicas de Sistema de Informações Geográficas Participativo, conhecido como SIG Participativo, dos métodos de diagnóstico participativo, e de um cuidadoso arranjo pluri-institucional que garanta a utilidade do processo para fins de planejamento. Este arranjo permite a participação com controle das relações de poder envolvidas no processo de construção da política pública, limitando a capacidade (ou o poder) dos grupos não hegemônicos. Estes paradoxos vêm aparecendo também em processos de reconhecimento territorial baseado em pertencimento étnico e cultural, como com populações indígenas e quilombolas no Brasil e em outros países da América Latina. Correia (2007) analisa estes dilemas, realçados enquanto ainda se desenrolam, num quadro de diálogo/conflito intercultural, em casos de reconhecimento de terras indígenas no Acre. Ele mostra em casos empíricos aquilo que analisa Hale (2002), que associa as práticas participativas de mapeamento à emergência de políticas baseadas no multiculturalismo, afirmando a existência de um “multiculturalismo neoliberal”, um paradigma de políticas estatais inserido na onda neoliberal que opera direitos culturais e à diferença, mas de caráter essencialmente conservador. Acselrad vai apontar “diferentes apropriações das práticas de mapeamento com inclusão de populações locais, ora por desenvolvimentistas “participacionistas”, ora por ambientalistas ou por agentes das políticas da diferença cultural e territorial” (2010, p. 23). Cartografias e lutas sociais
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Em meio a estas disputas de paradigmas (e, evidentemente, envolvidas nelas) estão os grupos desfavorecidos, diante de novos processos de modernização e neocolonização chamados de “participativos”. A participação é um procedimento que está se consolidando como um princípio na execução de políticas públicas, e isso se dá de maneira essencialmente paradoxal. Nas últimas décadas, diferentes núcleos sociais de enunciação têm problematizado, reivindicado, difundido e criado canais e mecanismos de participação – de diferentes matizes ideológicos. Esses canais e mecanismos são criados pela tensão entre limites estabelecidos pelo formatos representativo e participativo instituídos pela democracia. Avritzer e Santos (2003), discutindo a ideia e experiências democráticas em alguns países selecionados, dialogam com o conceito de que a chamada democracia representativa, historicamente, além dos representantes delegados com mandatos, gerou também uma poderosa burocracia, ou, tecnoburocracia, responsável por definir prioridades e tomar decisões, que iam então se afastando do próprio povo. Para nossa discussão, podemos inserir também os técnicos mapeadores dentro desta burocracia: são aqueles que têm o poder de definir critérios de verdade (o que é plotado no mapa, e o que não é) que servem de base para tomadas de decisão. Este afastamento do anseio de grupos não representados no Estado fortalece a crítica e a proposição de canais orientados para o incremento da participação direta. É nesta seara que emergem práticas e formatos institucionais voltados para uma concepção participativa de democracia, o que será marcado por profundas tensões. As práticas e instituições de participação criados no bojo destes processos são a resultante possível entre a diretriz de equilíbrio democrático – conferindo a grupos minoritários (ou, dominados) a possibilidade de influir em processos decisórios – e o risco (evitado pelos grupos dirigentes) de que novos modelos democráticos ameacem interesses hegemônicos. A disseminação crescente de cartografias participativas no período recente deve ser analisada à luz destas contradições. Elas 50
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vêm emergindo como instrumentos de luta de grupos historicamente excluídos de processos de representação e tomada de decisão, mas, ao mesmo tempo, aparecem como tecnologia de gestão em diferentes processos de planejamento estatal, e nem sempre beneficiando a real democratização do acesso a recursos. A relação entre cartografias e lutas sociais está profundamente mergulhada nesta bifurcação – instrumento de dominação versus instrumento de luta de grupos desfavorecidos. Ela transforma o próprio processo de desenvolvimento das técnicas e tecnologias cartográficas em objeto de disputa. Outra forma de “ativismo cartográfico” que tem sido desenvolvida é exatamente a disputa na criação, difusão e hegemonia sobre os meios, formas e instrumentos de produção cartográfica. Já comentamos este ativismo como algo inerente ao trabalho do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Entretanto, há muitos outros atores que disputam a construção de instrumentos tecnológicos (como softwares, programas, ambientes, instrumentos como GPS etc.) e também de procedimentos (criando, por exemplo, manuais para mapeamentos participativos) para as cartografias participativas. Vejamos alguns exemplos. Uma das maiores articulações de fazedores de mapas participativos do mundo é aquela centrada em torno do Iapad / PPGIS / Mapping for Change. Iapad Participatory Avenues (Integrated Approaches to Participatory Development, ),3 que é uma página na internet, criada em 2000, para compartilhamento de conhecimento sobre mapeamento comunitário (community mapping). PPGIS (Open Forum for Participatory Geographic Information Management and Communication, ) é outra página, um fórum de executores de mapeamento participativo baseado em GIS, que reúne técnicos de todos os continentes. Ambas as iniciativas foram criadas pelo mesmo técnico, o 3 Merece destaque, nesta página, uma extensa bibliografia disponibilizada, organizada por ano de publicação, com mais de mil textos entre artigos, teses, livros, trabalhos de congressos etc., sobre mapeamento participativo (experiências, problematizações, políticas públicas etc.) em todos os continentes – e, nas línguas originais de escrita dos textos. Cartografias e lutas sociais
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italiano Giácomo Rambaldi. Especialista em mapeamento comunitário em países em desenvolvimento desde a década de 1980, Rambaldi trabalha no Centro Técnico para Agricultura e Cooperação rural, na Holanda, ligado à União Europeia. Dentre suas parcerias, está o IIED (International Institute for Environment and Development), uma agência de cooperação inglesa. Entre as linhas de trabalho do IIED, está a “governança”, o que contempla também o desenvolvimento e a difusão de tecnologias sociais baseadas na participação. Neste bojo, aparece a dimensão do mapeamento participativo. O trabalho de articulação, atraindo outros pesquisadores e executores de mapeamento participativo em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos culminou na realização, em 2005, em Nairóbi, no Quênia, da “Mapping for Change International Conference on Participatory Spatial Information Management and Communication”, uma reunião com técnicos apresentando experiências em vários continentes. No ano de 2008, a articulação promoveu um novo encontro na sede do CTA, na Holanda. Neste, o propósito foi dar cabo de um dos objetivos delineados na conferência de Nairóbi, que era gerar um “kit” modelo para práticas de mapeamento participativo. A partir da constatação da diversidade de procedimentos adotados nas diferentes experiências apresentadas na primeira conferência, com acertos e desafios a serem compartilhados, alguns dos participantes indicaram a necessidade de uma síntese dos problemas e soluções em práticas de mapeamento. Questões como: quais são as soluções tecnológicas para cada mapeamento, definição e estabelecimento de relações entre os técnicos e os grupos sociais mapeados, propriedade e uso da informação sistematizada no objeto cartográfico; eram alguns dos desafios enfrentados nas práticas que, na primeira conferência, apareceram com múltiplos caminhos de enfrentamento. Um kit modelo poderia oferecer, para o praticante do mapeamento participativo, conjuntos de soluções para cada um dos desafios apontados. Todas estas iniciativas (as páginas para compartilhamento de ferramentas, a conferência, a revista e outras publicações,
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o kit etc.) são voltadas para o desenvolvimento e a difusão do mapeamento participativo. Este é, portanto, o cerne do ativismo cartográfico desempenhado por esta (ou nesta) rede. Mas, a Mapping for Change e o projeto Nova Cartografia Social da Amazônia não são os únicos atores (atores-rede ou rede de atores) a propor e disputar a forma de construção de mapeamentos participativos. Dentre diversos outros, podemos também citar a Asocioación de Proyectos Comunitarios (APC), uma entidade sem fins lucrativos que atua com fortalecimento de processos organizativos comunitários, dando assessoria para formação de lideranças de outras entidades, no Pacífico Sul colombiano, no vale do Rio Cauca. Uma de suas principais atividades é a formação para a cartografia participativa. A APC trabalha articulada a um conjunto de entidades de campesinos, afrodescendentes, indígenas e populações urbanas, o que tem relação com marcos multiculturalistas. Ela indica como seus princípios fundamentais a equidade de gênero; inclusão social, econômica e política; respeito à diferença; multiculturalidade e interculturalidade; a convivência comunitária e a autonomia. Opera com processos formativos em três linhas fundamentais: formação intercultural comunitária; autonomia, território e produção; e gestão para o desenvolvimento comunitário. A entidade foi formada em 1992, mas um marco importante para o nosso debate foi a realização, em 2005, do curso “Fortalecimiento de las organizaciones pertenecientes a la Asociación de Proyectos Comunitarios (APC)”, no qual foram publicados 8 módulos de trabalho e estudo, espécies de apostilas para a formação. A primeira apostila, numerada como “módulo 0”, tinha o título de “Território e cartografia social”, onde se trabalhava um diálogo intercultural com base no mapeamento participativo (Santos, 2010). A experiência da APC tem como objetivo formar lideranças para o diálogo com o Estado. É, neste sentido, um ator dentro de um paradigma de diálogo entre Estado e sociedade civil que, a partir do compartilhamento de responsabilidades (mas, quase nunca, dos recursos), molda o perfil das lideranças dos movimentos sociais. Contraditoriamente, este processo é constituído por
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meio da concessão de direitos aos grupos e do reconhecimento de matrizes culturais marcadas pela diversidade. Cabe também ressaltar que esta sociodiversidade tem um papel fundamental na região, pois as culturas lá existentes são as formas de relação com a natureza que mantém a área como uma das maiores reservas de biodiversidade relativa do planeta. Concessão de direitos caminha, aí, com a apropriação de saberes. E, a cartografia participativa é um dos elos entre estas duas vertentes do processo. Os instrumentos tecnológicos de produção cartográfica também tem sido objeto de disputa. Os avanços técnicos no campo do geoprocessamento – que são fruto mais da valorização analítica do espaço enquanto chave de leitura da realidade, do que do desenvolvimento tecnológico no campo da informática4 – vêm permitindo a associação de 1 complexos bancos de dados e informações de distintas naturezas,5 com 2 formas de representação da realidade em diversas dimensões espaciais e temporais (do plano ao 3D, do estático à representação intertemporal), e 3 diferentes formas e graus de interação com o “leitor” (que em diversos casos é, ele próprio, o produtor). A difusão destes instrumentos (que são chamados de “interativos”), como o Google Maps e o Google Earth coloca em cena novas possibilidades de constituição de visões de mundo, o que reposiciona a educação cartográfica e o ensino/aprendizagem de geografia. 4 Castro (1999, 2000) aponta a distinção entre Sistema de Informação Geográfica (sig) e sintetizador de ilusões geográficas (SIG). Debatendo a diferenciação ontológica entre o ente e o ser, ele aponta que entre o sig (pacote ou conjunto de pacotes tecnológicos da informática) e o SIG (substância, forma de representação), há uma dissociação necessária entre, de um lado, o que é a funcionalidade, a estrutura e as aplicações do pacote e, de outro, a dimensão dos impactos filosóficos, éticos e estéticos sobre a produção geográfica da difusão do SIG enquanto sistema de informação. 5 Strauch, Matoso e Souza (1996) discutem esta inter-relação entre dados e informações de distintas naturezas (“combinações entre dados gráficos e não gráficos georreferenciados em relação a um sistema de coordenadas”) apontando seis tipos de “conflitos” comuns: conflitos entre dados gráficos e não gráficos; conflitos semânticos; conflitos sintáticos ou estruturais; conflitos entre dados gráficos; conflitos contextuais; e conflitos genéricos.
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O mundo da educação já está sendo profundamente impactado por novas tecnologias associadas à informática, as quais ocupam cada vez mais espaço na comunicação e interações sociais, e o campo cartográfico se torna cada vez mais importante nisto – por isso, é objeto de disputa. Ver a própria casa ou rua num mapa, plotar informações sobre o espaço de vivência neste mapa e relacionar tais elementos com o mundo é uma operação de raciocínio espacial, que molda visões de mundo e pode permitir a atores a concentração de informações. Controlar os instrumentos de produção destes processos cartográficos (“espontâneos”, “interativos” e “participativos”) pode significar a definição de possibilidades e limites a estas operações de raciocínios espaciais – ou seja, um controle social. É neste sentido que vemos grandes corporações, como a Microsoft, Macintosh e a Google investindo pesado em softwares, serviços de mapas on-line, convergência entre representações cartográficas, bancos de dados, fotos, computação gráfica, entre outros. Controlar o instrumento é definir a linguagem, o ambiente dialógico – poderíamos dizer o “meio”, num sentido geográfico, na medida em que as técnicas contemplam sistemas de objetos e também de ações. Lembremo-nos do importante debate de Milton Santos (2002) sobre a relação entre a “tecnosfera” e a “psicosfera”, para perceber a relação entre o controle da definição dos instrumentos técnicos válidos (ou, considerados superiores) e o controle de racionalidades, irracionalidades e contrarracionalidades, enquanto controle e adequações comportamentais. Se há grandes corporações nesta disputa, também há redes de ativistas, como a MapOMatix, um ambiente colaborativo para a criação e edição de mapas.6 Desenvolvido e sustentado por ativistas, ele se propõe a ser um espaço onde colaboradores geram e complementam mapas, produzem cartografias que se confrontam, utilizam bases para suas cartografias, dialogam sobre processos, fenômenos e ações por meio dos mapas gerados na base. É, portanto, uma ferramenta técnica, mas também uma ferra6 O software encontra-se disponível para download em . Cartografias e lutas sociais
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menta política, no sentido de que se pretende um instrumento para os grupos e também um potencializador de diálogos entre grupos sociais ativistas. O desenvolvimento do MapOMatix, voltado para dar voz e permitir a comunicação política de grupos desfavorecidos, parte de uma crítica às tecnologias cartográficas que priorizam a precisão locacional (“GPS sense”), mas que não são capazes de apreender as formas espaciais que estruturam narrativas, sentimentos (como as espacialidades de afetividades, do medo), imaginações geográficas – e estas, ao serem condicionantes de comportamentos humanos individuais e coletivos, bem como de interações entre sujeitos, são cruciais na formação e estruturação da ação coletiva. Aqui vale destacar este cruzamento promovido entre as chamadas “cartografias sentimentais” – por meio da ideia de “psicogeografia” e a dimensão política e ativista do fazer cartográfico. Esta convergência, que é resultado de influência de Deleuze e Guattari,7 permite uma repolitização de elementos simbólicos, emocionais e subjetivos da experiência espacial humana, por meio da cartografia. Cartografar a psicosfera se torna, mais do que nunca, um instrumento de lutas políticas. Notas finais O olhar sobre a relação entre cartografias e lutas sociais é tarefa crucial, sobretudo para aqueles que têm entre suas premissas o comprometimento com as lutas de grupos socialmente desfavorecidos – esta é a posição que assumimos. Os exemplos que trabalhamos aqui nos evidenciam que este campo é, fundamentalmente, marcado por tensões, disputas e apropriações variadas do que é desenvolvido em campos políticos e tradições dialógicas distintas e antagônicas. A vigilância se torna, portanto, ainda mais importante. Ativemo-nos aqui às experiências práticas, propositadamente passando ao largo dos debates acadêmicos que já vêm se 7 Ver, no Brasil, por exemplo, o livro Cartografias do desejo, de Guattari e Rolnik (2005).
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delineando na própria cartografia. Nossa intenção foi mostrar os dilemas políticos engendrados, não trabalhar os embates de concepções sobre cartografias e representações sociais que não caberiam nos limites deste artigo. Neste processo em que atores sociais subalternos começam a criar suas próprias cartografias, com diferentes formas de interação entre seus conhecimentos e saberes tradicionais e os conhecimentos técnicos, as possibilidades e os limites da representação cartográfica clássica são questionados. Isso devido às novas formas e aos novos instrumentos de representação da realidade, que passam a comportarem também concepções de espaço e de tempo não apreensíveis pela racionalidade dominante, racionalidade tecnicista ocidental subjacente à cartografia tradicional. Trata-se de uma busca não apenas de captar de outras racionalidades, mas de deixá-las construir as próprias formas de representação. O campo do ativismo cartográfico é, portanto, uma importante chave de leitura para compreender a complexidade dos processos que vem provocando tensões na cartografia, a despeito da notável postura de indiferença que ainda predomina entre muitos cartógrafos. Apesar de hegemônica, esta postura não é unânime, e acreditamos que cada vez mais cartógrafos, e mais processos de formação e educação cartográfica (envolvendo o ensino de geografia) atentarão para a relação entre cartografias e lutas sociais, formando para novas possibilidades de raciocínios centrados no espaço. Referências Henri Acselrad. Mapeamentos, identidades e territórios. In: Henri Acselrad (org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: Ippur/UFRJ, 2010. Alfredo Wagner Berno de Almeida. Nova cartografia social da Amazônia. Manaus: PPGSCA/UFAM (Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia), 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2011. Cartografias e lutas sociais
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Leonardo Avritzer e Boaventura de Sousa Santos. Para ampliar o cânone democrático. Eurozine: 2003. Disponível em: . Murilo Cardoso de Castro. sig – Sistema de Informação Geográfico ou sig – sintetizador de ilusões geográficas: desconstrução de uma forma discursiva. Rio de Janeiro: UFRJ (PPG em geografia), 1999. Tese de doutorado. — Sistema de Informação Geográfico (SIG) ou sintetizador de ilusões geográficas (sig): desconstrução de uma forma discursiva. In: Jornal da agb -Rio de Janeiro, ano 2, n. 2, jul. 2000. Cloude de Souza Correia. Etnozoneamento, etnomapeamento e diagnóstico etnoambiental: representações cartográficas e gestão territorial em terras indígenas no estado do Acre. Brasília: UnB (em Antropologia Social), 2007. Tese de doutorado. Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. Felix Guattari e Suely Rolnik. Micropolítica: cartografias do desejo. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. Charles Hale. Does multiculturalism menace? Governance, cultural rights and the politics of identity in Guatemala. In: Journal of Latin American Studies, n. 34, p. 485–524. Cambridge: Cambridge University press, 2002. Yves Lacoste. A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Ed. Papirus, 1988. Mark Monmonier. How to lie with maps. Chicago: University of Chicago Press, 1996. Milton Santos. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. Renato Emerson dos Santos. Cartografagens da ação e dos conflitos sociais: análise comparativa de observações e representações do espaço-tempo do fazer político. Rio de Janeiro: Faperj/Uerj, Relatório de pesquisa, 2010. Julia Celia Mercedes Strauch, Marta Lima de Queirós Mattoso e Jano Moreira de Souza. Interoperabilidade de bases de dados espaciais heterogêneas e distribuídas. I Semana Estadual de Geoprocessamento (I SEGeo/RJ), 1996. 58
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O retorno ao território como condição da democratização da gestão da metrópole Jorge Luiz Barbosa
Introdução Este artigo é um dos produtos do projeto Rio Democracia,1 desenvolvido pelo Observatório de Favelas do Rio de Janeiro2 no período de outubro de 2007 a agosto de 2009. O projeto em tela visava à construção de inventários críticos de políticas públicas em favelas e periferias urbanas da metrópole do Rio de Janeiro,3 tendo como referência os 20 anos de promulgação da atual Cons1 O projeto “Rio Democracia: uma agenda para democracia e o desenvolvimento sustentável da metrópole” foi desenvolvido por uma equipe multidisciplinar de trabalho constituída por estudantes universitários oriundos dos espaços populares dos municípios estudados (oitenta bolsistas), orientadores de pesquisa bibliográfica, documental e de campo (Cátia Antonia da Silva, Eblin Joseph Farage, Ecio Salles, Ricarda Tavares, Simone Rocha, Marcus Vinicius Faustini e Verônica dos Anjos), consultores de formação acadêmica e de pesquisa (Ivaldo Lima, Ana Torres Ribeiro e Raquel Willardino), coordenação executiva (Alberto Aleixo e Fernanda Gomes) e coordenação geral (Jorge Luiz Barbosa). Os resultados dos estudos estão disponíveis no site . 2 O Observatório de Favelas do Rio de Janeiro é uma organização social de pesquisa e ação pública dedicada à produção de conhecimento e de proposições de políticas de direitos sociais. Criado em 2001, o Observatório de Favelas () se tornou um organização da sociedade de interesse público (Oscip) em 2003. 3 Os territórios de morada constituintes da linha de base da pesquisa foram os seguintes: Maré, Rocinha, morro do Dendê, Cidade de Deus, morro do Pereirão, morro da Providência, Cidade Alta e Anil (Rio de Janeiro); Jardim Leal, Jardim Gramacho, Vila Itamaraty, favela do Lixão, Parque Fluminense e Nova Campina (Duque de Caxias); Comendador Soares e Posse (Nova Iguaçu); bairro Vermelho e Lote XV (Belford Roxo); Vila Rosali, morro das Pedras e Parque Araruama (São João de Meriti); Cabral e Chatuba (Mesquita); Colubandê e Jardim Catarina (São Gonçalo): Vila Ipiranga, Cafubá, morro do Ingá, morro do Estado, morro da Penha (Niterói).
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tituição brasileira e, com base em suas conclusões, contribuir para a elaboração de uma agenda propositiva de superação de desigualdades sociais, enfatizando as possibilidades de democratização da gestão urbana. Os estudos foram dedicados a um conjunto de experiências selecionadas em nove municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro: Niterói, São Gonçalo, Belford Roxo, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, São João de Meriti, além da capital. O inventário em destaque abrigou levantamentos diretos com gestores públicos e organizações da sociedade civil, estudos documentais e pesquisa bibliográfica, dedicados à gestão de políticas sociais, notadamente no campo da educação, da geração de trabalho e renda, saúde, segurança, habitação, assistência social e cultura. Para tanto, a realização dos inventários contou com a participação ativa de uma equipe de pesquisadores populares, constituído por oitenta estudantes universitários residentes em favelas nos municípios selecionados, devidamente orientados por coordenadores temáticos e com apoio de consultores e da coordenação geral do projeto Rio Democracia. Além da contribuição na pesquisa documental e direta (formulação e aplicação de entrevistas com gestores públicos e atores sociais), o envolvimento dos estudantes em oficinas de vivência e seminários de pesquisa foi decisivo para os resultados gerais e os produtos mais específicos do projeto, dentre estes, o presente artigo. Mapeamentos cognitivos do inventário de gestão de políticas públicas Como informamos, o inventário realizado contemplou mapeamentos cognitivos de práticas sociais – concepções, percepções, vivências e experiências – construídas e afirmadas no contexto da gestão de políticas públicas, em particular aquelas voltadas às comunidades populares localizadas nos municípios que compõem o arco metropolitano do Rio de Janeiro. Ao enfatizar a construção de práticas sociais, a pesquisa inventariante valorizou as relações entre o estado e a sociedade 60
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em diferentes cenários institucionais e políticos. Sem desprezar outros aspectos relevantes, como os de ordem quantitativa dos investimentos públicos setoriais, o desafio assumido priorizou responder como a gestão de políticas públicas permite a invenção da democracia em uma sociedade profundamente marcada pela desigualdade socioeconômica e pela distinção territorial dos direitos, cuja expressão mais relevante pode ser identificada nas condições sociais das favelas e das periferias urbanas. Como proposta de reflexão e prática de desvelamento da gestão de políticas públicas, o inventário realizado no âmbito do projeto Rio Democracia exprimiu uma reconstrução qualitativa de processos de formulação, organização e execução de políticas públicas sociais, sublinhando as dimensões territoriais em que estão inseridas e da garantia de direitos sociais declarados constitucionalmente. Essa proposta se efetivou a partir da pesquisa realizada tendo como objeto a implementação de programas e projetos públicos em favelas e periferias urbanas localizadas em municípios anteriormente discriminados. A metodologia utilizada permitiu a construção de mapas sensíveis, realizados a partir das contribuições dos cursos de formação de pesquisa ministrados pelos coordenadores temáticos em estações de trabalho dos pesquisadores populares, servindo também como um exercício de cotejamento entre os estudos de caráter teórico-conceitual e documental com a realidade imediatamente vivida pelos estudantes/pesquisadores. Privilegiando a relação sujeito-território, o trabalho de produção do conhecimento visava promover uma apuração da observação analítica de políticas sociais – moradia, educação, saúde e assistência social, trabalho, cultura e segurança – em cada espaço popular de vivência dos pesquisadores. Considerando a complexidade do inventário de políticas públicas em foco, buscou-se combinar a escala dos espaços populares com a escala de comando institucional mais imediata: a gestão municipal. Para tanto foram elaborados e aplicados um conjunto de entrevistas dedicadas à produção de conhecimento inédito sobre conceitos, práticas e intencionalidades das polítiO retorno ao território como condição de democratização…
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cas públicas sobre ótica de agentes governamentais e de atores sociais diretamente envolvidos em sua realização prática. A pesquisa inventariante abrigou diferentes ações públicas e instituições diversificadas – secretarias municipais e órgãos executores de políticas sociais, organizações não governamentais, Conselhos de Direitos da sociedade civil, Associações de Moradores e entidades associativas – com o objetivo de construir um mapa cognitivo da garantia de direitos e da participação social. Foram realizadas 210 entrevistas estruturadas com dois grupos principais: agentes (secretários e subsecretários municipais, gestores e operadores de programas e projetos) e atores (membros de Conselhos de Direitos, lideranças de organizações da sociedade civil e dirigentes de organizações não governamentais). A diversidade de agentes e atores foi considerada como um filtro importante para a leitura das ações e das percepções da gestão de políticas sociais, permitindo apreender o universo complexo de sua materialidade no território. Das conclusões relevantes do estudo realizado podemos destacar, especialmente no que concerne à gestão, o empenho e o compromisso político-institucional de diversos agentes na formulação e execução de políticas no âmbito da governabilidade municipal. Todavia, se tornaram evidentes as diversas lacunas, descontinuidades e fragilidades particulares ao desempenho das políticas públicas como garantia e promoção de direitos para o conjunto de cidadãos, particularmente quando se trata de sua inscrição em espaços populares: 1 Os municípios são recorrentemente instâncias administrativas de execução de políticas federais. O papel na formulação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas ainda não são escalas acessíveis à esfera municipal. Não há uma plena e efetiva descentralização que garanta ao “poder local” um papel mais abrangente em termos de concepção, definição de recursos e execução de políticas públicas. Na prática, os municípios não conseguem converter políticas, programas e projetos federais em políticas municipais fundamentadas em suas prioridades, particularidades e demandas locais. Essa situação ressalta a incompletude do pacto federativo preconizado pela Constituição de 1988. 62
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2 Os enlaces institucionais entre os municípios e o governo estadual são frágeis e quando existem são pouco duradouros, mesmo em se tratando de ações governamentais que são estabelecidas nos limites territoriais da administração municipal, a exemplo da educação, da saúde e da assistência social. Há inclusive dificuldades extremas de compartilhamento de equipamentos para a execução de serviços governamentais. Essa frágil articulação denota uma fragmentação de programas, projetos e ações governamentais, cujos resultados são os baixos impactos positivos nas condições de vida e na experiência democrática de realização de direitos constitucionalmente consagrados. Por outro lado, os programas e projetos são descontínuos no tempo e no espaço por sua característica dominante de ações de governo e não de políticas de estado. 3 A descontinuidade das políticas públicas – ou melhor, de programas e de projetos – tem sido notória entre gestões que sucedem e dentro de uma mesma gestão municipal. Tal fato corresponde à inconsistência de ações governamentais na atenção aos cidadãos, à pulverização de recursos de financiamento e ao emprego seletivo de recursos de pessoal em determinadas ações. 4 Os municípios pouco desenvolvem articulações horizontais de gestão entre si, no sentido de estabelecer políticas comuns, restringindo suas ações aos seus limites territoriais administrativos. Trata-se de uma realidade criada não exclusivamente pela limitação de recursos de financiamento e/ou de pessoal, mas de entendimento do sentido da gestão pública e da primazia do particularismo sobre a universalização dos direitos. São poucos os gestores que têm conhecimento das questões mais relevantes para o desenvolvimento integrado de políticas públicas em seus municípios, mesmo quando se trata de questões de transversalidade mais explícita, a exemplo do saneamento ambiental, do transporte coletivo e dos serviços de promoção à saúde e à assistência social. 5 Os instrumentos reguladores municipais – dentre eles o Plano Diretor – ainda são ineficazes pelo seu descompasso com a concretude da dinâmica do território usado e incapazes de operar mudanças substanciais diante da fragmentação e da descontinuidade de suas atribuições normativas. O retorno ao território como condição de democratização…
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6 Há um conflito anunciado entre a Lei de Responsabilidade Fiscal e as demandas sociais por equipamentos e serviços, fazendo com que a gestão municipal não responda adequadamente à garantia, à promoção e à reparação de direitos, face às desigualdades socioeconômicas e à distinção territorial vivida, em particular no que diz respeito aos cidadãos e cidadãs dos espaços populares. 7 A esfera municipal ainda não se efetivou como forma privilegiada de participação, acompanhamento e controle social democrático de políticas públicas. Conselhos e fóruns de direitos e de controle social permanecem, em sua expressiva maioria, com limitações da sua representação de ordem política no que concerne a contemplação de demandas, reivindicações e valores da sociedade civil diante de executivos e legislativos municipais. 8 É notoriamente inconsistente o diálogo e a interação entre secretarias de um mesmo município, reproduzindo concepções e práticas setoriais na formulação, gestão e execução de políticas, programas e projetos, cujas repercussões mais evidentes são o parcelamento/sobreposição das ações e a seletividade discricionária/atomização do público beneficiado. 9 O uso do território pela gestão municipal – assim como os praticados pela gestão estadual e federal –, no tocante à formulação e à execução de políticas públicas, continua a ser mobilizado como palco de ações isoladas e de interesses dispersos de agentes governamentais e atores sociais. Não se observam políticas para uma verdadeira efetividade socioespacial, aqui entendida como processo e conteúdo de mobilização das oportunidades presentes no território de modo equitativo e integrador de políticas e ações públicas, o que conduziria à justiça territorial. 10 Uma lacuna também em comum na administração dos municípios é a insuficiência de estudos em relação às demandas presentes nos espaços populares em relação às políticas públicas. A ausência de diagnósticos participativos limita a realidade das favelas e de periferias a uma peça de informações secundárias – e genéricas – que pouco contribui para a identificação dos problemas e as potencialidades vividas em cada comunidade e no conjunto territorial formado por elas. 64
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11 O acompanhamento, monitoramento e avaliação de políticas, programas e projetos implementados ainda são extremamente limitados e pouco consistentes para definir resultados e impactos com maior precisão em termos de seu alcance, validade e oportunidade de promoção de direitos sociais. 12 Há uma nítida falta de reconhecimento por parte dos gestores municipais, estaduais e federais do capital material e simbólico das comunidades populares, situação que implica a recorrente assistencialização como matriz de políticas, programas e projetos de distintas naturezas, inclusive as de educação, trabalho e cultura. 13 Ainda permanecem formas clientelistas de relação entre beneficiados e beneficiadores de projetos e programas públicos, reproduzindo situações onde serviços são prestados como favor e não como direitos sociais constitucionalmente protegidos. Essas formas clientelistas são diretamente responsáveis pela fragmentação das ações de programas e projetos, além de estabelecer uma percepção ofuscada do direito social por indivíduos e grupos sociais, particularmente os residentes em espaços populares. A necessária redefinição do sentido do público na gestão pública Os termos básicos da equação – gestão pública e garantia de direitos – estão localizados em movimentos que abrigam distintas tensões no campo da formulação e da execução de políticas públicas. Estas, por sua vez, resultam da presença de diferentes protagonistas – instituições governamentais, representações da sociedade civil, partidos políticos, movimentos sociais, entidades profissionais, organismos multilaterais – envolvidos em arenas de poder pela definição de instrumentos normativos, dos princípios regulatórios, do uso de recursos financeiros e da execução propriamente dita de políticas públicas. Nesse percurso, multiplicam-se os agentes governamentais em instâncias hierárquicas de gestão de políticas públicas, reiterando a fragmentação notoriamente identificada em programas e projetos setoriais. Acrescenta-se, ainda, que no campo da execuO retorno ao território como condição de democratização…
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ção também se amplia a presença de atores não governamentais encarregados pela realização de parte do processo, notadamente no que concerne aos programas e projetos inscritos em espaços populares. Observa-se, portanto, uma tensa e contraditória rede de mediações institucionalizadas entre as legítimas demandas de direitos sociais e as políticas (programas, projetos, ações) públicas em curso, inclusive fazendo dessas mediações um capital político personalizado para agentes governamentais e atores da sociedade civil em sua ação no território. Por outro lado, se localiza no campo dos direitos uma institucionalidade política relevante, cuja matriz é a própria Constituição cidadã, com seus desdobramentos em conteúdos de promoção e proteção social (Loas, SUS, Suas). Emergentes da luta pelo reconhecimento de novos direitos, as reivindicações e proposições sociais (traduzidas em conferências setoriais, Conselhos de Direitos e movimentos sociais) expressam a entrada na cena política de novos sujeitos sociais, implicando a construção de garantias para efetividade de políticas públicas face a face com as desigualdades profundas da sociedade brasileira. Entende-se o porquê do uso da expressão “arena de poder” para definir com maior precisão o sentido da gestão pública em nosso país. Conhecer o significado da relação entre a garantia (promoção e reparação) de direitos e a política pública é, em termos mais abrangentes, observar em que momento e em quais lugares o significado do público comparece de modo efetivo no desenho global e/ou temático da política. E, consequentemente, indagar pelas normativas éticas que permitem garantir ao público o seu estatuto de cidadania. A conclusão dessas questões certamente fará do público não mais uma figura de retórica ideológica, mas uma referência concreta de sujeitos socialmente situados no mundo. Busca-se, portanto, reconhecer a complexidade do sentido político e social do público, superando suas definições de objeto/ alvo, assim como o seu tratamento usual de consumidores ou cliente no seio de políticas governamentais. Entretanto, quem
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conforma e configura o público? O público pode ser revelado pelas suas manifestações concretas de relações e de intencionalidades. O público é uma figura da construção política da democracia, portanto uma expressão de poder político. A distinção daquilo que é privado do que é público é decisivo na consolidação de democracias liberais. Recorre-se a essa separação em tais sociedades como dispositivo de abrigar o mercado e a propriedade privada em um estatuto próprio, sem as devidas referências de universalidade para o compromisso ou função social. Por outro lado, sua indistinção sob a leitura do público como estatal, instância por excelência de todos, consagra a ideia de público como sendo o comum, pois o que tornaria comum (e comuns) aos indivíduos e grupos sociais seria a sua posição de igualdade afigurada com o uso de bens, serviços e equipamentos estatais. No extremo da definição, podemos inferir que o mercado e a propriedade privada particular não precisam responder por nada que se possa equivaler ao bem estar social fora de sua própria e individual esfera: a privacidade. Em seu sentido mais óbvio, o público aparece sempre como inconcluso, provisório e flexível. Por isso, geralmente abstrato e, assim sendo, perfeitamente moldável às retóricas discursivas e à codificação estatística. Definir com clareza quem é e o que é o público das/nas políticas públicas se torna imperioso, na medida em que seu curso inicial e final será delimitado (e demarcado) com intencionalidades, relações e articulações que envolvem indivíduos, grupos e classes sociais em inscrições territoriais distintas e desiguais. E, além dos papéis assumidos por cada das uma personas sociais na arena de poder das políticas públicas se faz necessário balizar direitos e as instâncias como possibilidade de criação do público em sua plena dimensão de cidadania. Considerando que os princípios constitucionais e os marcos regulatórios são orientações fundamentais para a formação de instâncias de definição de investimentos, de controle social e de execução de políticas governamentais, a questão da legalidade torna-se inseparável dos processos de legitimidade das instâncias de decisões. A participação cidadã como expressão popular é por
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si uma expressão do direito, pois nos remete ao ato de substancializar direitos e responsabilidades com o outro. Cabe ainda indagar qual seria o sentido dessa participação e, sobretudo, quais são os seus fóruns adequados de representatividade e de poder político. É preciso insistir, ainda, que a institucionalização da política pública dependerá do conteúdo de sua afirmação legal e de sua legitimidade social, definindo o modo pelo qual os propósitos, as práticas e as experiências ganham materialidade no espaçotempo da existência humana. Redefinir o modo de concepção e de formulação de políticas públicas é decisivo, uma vez que corresponde a distintas leituras do significado de democracia e, portanto, de cidadania e da participação social. A interpretação e a representação vigente nas instâncias da concepção e formulação de políticas governamentais, definidas como públicas, se afirmam realmente como espaço público de tomada de decisões participativas? Ainda são frágeis os fóruns onde as políticas públicas governamentais são abordadas em dimensões socialmente abrangentes. Embora se reconheça o aumento quantitativo de Conselhos de Controle Social (saúde, educação, assistência social, cultura, dentre outros) nos municípios estudados, a sua atuação vem se limitando a interpretação de controle social como mera fiscalização, reiterando o seu ofuscamento como instância de participação social no momento de concepção e de formulação de políticas públicas, momento essencial para validação da democracia e da participação cidadã. Em entrevistas realizadas com membros de Conselhos de Controle Social, assim como para os Conselhos de Direitos, se evidenciaram ambiguidades, distorções e conflitos no exercício de seus papéis. A ambiguidade se reproduz cotidianamente no seu funcionamento, ora como instância de executivos municipais ora como fórum de demandas populares. Advém daí as distorções, uma vez que são assumidos papéis excessivamente comprometidos com a aprovação do uso de recursos sem a devida e efetiva formulação das políticas e não
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com a sua acomodação às demandas localizadas. Acrescenta-se o conflito de tais instâncias serem organizadas por meio de pautas setoriais e, evidentemente, em desarticulação recorrente quando se trata da elaboração de uma agenda comum de direitos. Reproduz-se no âmbito dos Conselhos a divisão técnica/setorial que permeia os programas e projetos governamentais. E, como situação suplementar das dificuldades vividas nos Conselhos, destacam-se os limites políticos, materiais e funcionais identificados para o exercício da sua autonomia, como elementos decisivos para o ainda frágil cumprimento do papel que lhes foram outorgados pela Constituição. Para tanto, o fortalecimento dos Conselhos de Direitos será – no sentido mais amplo e pleno de uma cidadania participativa – uma das medidas práticas das mais importantes para a articulação dos direitos constitucionais às políticas públicas. Contudo, quais são as outras esferas possíveis do processo de afirmação do público como orientação e instância de articulação dos direitos sociais com as políticas públicas? Pautar essas novas instâncias em uma agenda de promoção de direitos nos parece imperiosamente necessário. Não se trata, entretanto, de denominar instituições cujo notório compromisso com as causas populares as autoriza e/ou as evidencia como representativas do público. A proposta aqui defendida é outra! É ir além de indicações formais para encontrar possibilidades de produção de espaços para (re)união de práticas exemplares e referências legítimas para a articulação desejada entre direitos sociais e políticas públicas. Para tanto, as instâncias estatais (federais, estaduais e municipais) de formulação, regulação e execução de políticas públicas precisam exercer um diálogo mais profícuo e, por isso, mais democrático, com as instâncias participativas da sociedade civil, sobretudo as criadas com objetivo de aperfeiçoar democraticamente as ações e intenções da gestão pública. Trata-se, portanto, da reinvenção do público como lugar do exercício pleno da cidadania e das escolhas políticas em relação ao tempo presente, aos territórios vividos e, sobretudo, ao futuro da sociedade.
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O retorno ao território como possibilidade de gestão democrática da metrópole No campo das relações das distintas personas envolvidas na formulação, gestão e execução de políticas públicas, em particular as sociais, podemos afirmar que princípios, normas e instrumentos somente podem ser efetivamente observados quando territorializados. É no uso do território pela política pública que emergem (e convergem) intencionalidades, disputas e negociações políticas que envolvem, inclusive, a relativização desses mesmos princípios e práticas confrontando normas e instrumentos criados para viabilizar as ações públicas. Há uma dimensão da realização da vida em sociedade que nomeamos de território; espaço-tempo demarcado pelas intenções e ações humanas, emergindo como recurso e abrigo que exterioriza a existência individual e coletiva (Santos, Souza e Silveira, 1994). A sociedade, ao se apropriar e fazer uso de um território, compartilha o domínio das condições de produção e reprodução da vida. O território significa a constituição necessária de laços que se definem pela apropriação e uso das condições materiais, e também dos investimentos simbólicos, estéticos e éticos que revelam o sentido da própria sociedade instituída (Santos, 2002). Pertencemos a um território, o guardamos, o habitamos e nos impregnamos dele ao realizar nosso modo de existir. Podemos afirmar, então, que há uma forte relação entre cidadania e território. A primeira delas é que, quando vivemos em um mesmo território, não é possível admitir a distinção entre categorias inferiores e superiores de cidadãos, sendo assim a questão da igualdade é um princípio irrefutável. Afirmar que a cidadania significa o exercício de direitos e deveres é falar da busca permanente por sua efetivação, sobretudo quando vivemos em sociedades marcadas por profundas desigualdades sociais e distinções territoriais. É nesse campo de forças que emerge o sentido mais rico do debate a respeito da gestão pública como mediação possível da efetivação territorial da cidadania. O retorno ao território é o fundamento para pensar a gestão urbana democrática, uma vez que o cotidiano de todos os sujei70
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tos, de todas as ações e todas as intenções humanas possui a sua vivência real da política em espaço/tempos demarcados. Esses encontros no território também expressam permanente tensão e, não raramente, conflitos, o que resulta em possibilidades, as quais o mundo nos apresenta e onde são vividas distintivamente, segundo as relações entre os sujeitos sociais em diferentes escalas geográficas da vida em sociedade. Retomando o debate das políticas públicas – e sua direta relação com o território –, é necessário observar que as políticas (programas, projetos) públicas, ao incidirem seletivamente no espaço geográfico, (re)configuraram territórios. Isto significa dizer que a política pública implica o estabelecimento de formas e conteúdos que mobilizam e conduzem fluxos materiais e imateriais do e no território e, por isso, redefinem sentidos e expectativas sociais. O território tem, portanto, centralidade, já que é nele que, como visto, se concretiza o mundo, onde se recebe seus impactos das intervenções do Estado e das corporações e onde substancializamos os direitos sociais. É também onde residem as possibilidades reais da construção da política como exercício da cidadania. Reconhecendo o importante papel do território para a realização da vida, vislumbra-se a sua necessária incorporação no processo de formulação, execução e avaliação de políticas públicas e da própria construção do significado do público. E, no que concerne às favelas e às periferias da metrópole, as seguintes premissas de uma agenda participava são extremamente valiosas: 1 Reconhecer a legitimidade dos espaços populares: Promover a superação das representações hegemônicas dos espaços populares como territórios sem ordem, sem lei, sem civilidade; ou seja, uma não cidade marcada pela violência, pelo caos e pela miséria. A construção de representações públicas positivas em relação aos espaços populares é fundamental para a qualidade de bens e serviços destinados às comunidades. Em outras palavras, romper com o estigma de coisas de pobres e para pobres muda o sentido das políticas públicas em termos de eficácia e efetividade, criam-se compromissos políticos e vínculos de afetividade entre os agentes operadores locais (servidores do Estado) e os grupos locais, além de mobilizar a autoestima da comunidade nas ações públicas. O retorno ao território como condição de democratização…
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2 Mobilizar o capital social das comunidades populares: Criar condições locais para o desenvolvimento autônomo e emancipador da situação de vulnerabilidade social como matriz de orientação da formulação de conceitos, ações e metas das políticas públicas, ao incentivar o protagonismo e a cooperação, ensejando a captação e multiplicação de recursos (humanos, materiais e simbólicos) endógenos na solução de problemas locais. 3 Estimular a articulação sociopolítica entre as organizações locais e destas com as do Estado em seus diversos níveis federativos (federal, estadual e municipal): Para criar condições de ampliar o escopo social e integrar políticas públicas se faz indispensável à articulação das organizações populares com o Estado, tendo no município sua escala de relação privilegiada, promovendo maior integração entre agentes e atores de ações públicas no território. A integração proposta deverá, entretanto, ser praticada preservando a autonomia das organizações locais na diversidade de representações comunitárias e, ao mesmo tempo, superando a fragmentação de responsabilidades no tocante à execução de ações, programas e projetos de origem governamental, hoje tão comum aos espaços populares. 4 Garantir a continuidade e a ampliação das ações públicas exemplares realizadas nas comunidades populares: Trata-se da retomada da confiança dos moradores nos agentes e nos atores das instituições envolvidas diretamente com o fazer das políticas públicas. Para além da garantia de continuidade das atividades, é criado um sentimento de reconhecimento de suas demandas e a percepção de direitos individuais e coletivos é ampliada. Por outro lado, o reconhecimento das experiências poderão ser referências para renovar a formulação e a execução de políticas públicas consistentes e duradouras. 5 Desenvolver metodologias participativas de acompanhamento e de avaliação de políticas públicas: Consiste em fortalecer a atuação de instituições locais e de cidadãos para um efetivo controle social de aplicação de recursos, de eficácia das ações, do cumprimento de metas e da realização de objetivos estabelecidos nas políticas. Deve-se ter em conta a preparação dos cidadãos
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no que tange à sua capacitação para a função de protagonistas de políticas públicas. O acompanhamento e a avaliação processual dessas políticas figura, então, como um coroamento do exercício pleno da cidadania, com base em ações válidas e validadas, que corporificam sujeitos de direitos. 6 Construir redes de participação social: Mobilizar diferentes sujeitos sociais por meio das instituições locais, buscando estabelecer o reconhecimento político de intervenções diretas nas políticas públicas, promovendo o exercício da cidadania como o de direitos e responsabilidades comunitárias. Ao ampliar os níveis decisórios, criam-se espaços públicos para além da esfera estatal, contribuindo para uma democracia participativa legítima e não meramente de processos formais de consulta, pois trata-se da criação permanente e diferenciada de compartilhamento de decisões e responsabilidades. Essa dimensão inclui os compromissos cívicos, centrados no processo público de participação ética que, por sua vez, confere a identidade de pertencer a uma mesma coletividade territorialmente inscrita. Conclusões propositivas Na especificidade do projeto Rio Democracia, a Constituição de 1988 foi o marco temporal da leitura da conquista de direitos – na forma da lei – por parte da sociedade. Por outro lado, a metrópole do Rio de Janeiro foi o marco espacial da efetivação das conquistas de direitos como conteúdo da vida social. Esse recorte espaço-temporal de garantia e realização dos direitos abrigados na letra constitucional, como já aludimos, conduziu distintas experiências de políticas públicas em territórios da metrópole ainda profundamente marcados pela desigualdade social e, cuja presença soberana e republicana do Estado ainda é pouco expressiva na sua missão democrática de promoção e reparação de direitos sociais. A construção de uma agenda de gestão urbana democrática nos termos aqui propostos advém dos inventários de políticas públicas realizados em diferentes contextos de espaços popula-
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res. O conhecimento oferecido pela pesquisa inventariante permitiu a formulação de proposições nascidas do empenho articulado da prática teórica, metodológica e empírica da investigação, envolvendo a tríade política pública – direitos sociais – território, sob a dimensão da experiência democrática em favelas e periferias da metrópole. A proposta a seguir é fruto e semente do empenho traduzido pela equipe de pesquisadores do projeto Rio Democracia. Pretende-se com essa proposta oferecer subsídios às instituições da sociedade civil, aos movimentos sociais e ao conjunto de cidadãos e cidadãs, no sentido de qualificar e ampliar os processos de participação social como possibilidade da garantia, promoção e reparação de direitos sociais, em particular no que concerne às favelas e periferias da metrópole do Rio de Janeiro. 1 A afirmação de sujeitos corporificados de direitos: É imperioso considerar os moradores dos espaços populares como cidadãos que devem ter seus direitos sociais garantidos na forma de políticas públicas afeiçoadas aos seus territórios. Trata-se, portanto, de um princípio da validação plena da vida social, democraticamente orientada e configurada nos usos legítimos do território por grupos sociais marcados por profundas desigualdades sociais. Deve-se entender, portanto, que a garantia dos direitos a partir do reconhecimento das demandas e das necessidades apresentadas pelos próprios sujeitos desses territórios é o caminho mais preciso para se alcançar a justiça territorial, que assegure aos diferentes territórios instituintes da cidade as condições para a construção do cidadão pleno e da integralidade dos direitos sociais. 2 A cidade como diversa, una e plural: Compreender a cidade de forma ampla e plural, portanto composta por diferentes territórios que fazem parte de uma mesma totalidade, é reconhecer as especificidades de cada espaço construído histórica e socialmente. Isto pressupõe efetivação dos direitos dos seus habitantes de modo indivisível. Assim como a cidade, na perspectiva da democracia territorial, precisa ser considerada de modo integral, moradores dos diferentes espaços populares devem ser considerados em suas múltiplas dimensões: social, econômica, biofísica,
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ética e estética. Dimensões que compõem o ser social de forma integral e indivisível e que devem orientar a formulação e execução de políticas públicas como instrumento de garantia, promoção e reparação de direitos sociais. 3 A efetividade da legislação e dos instrumentos regulatórios: Nas últimas décadas, houve um importante avanço na elaboração de legislação pertinente aos direitos sociais e em seu consequente desdobramento em marcos regulatórios de políticas públicas. Pode-se afirmar, inclusive, que, em termos de saúde e assistência social, a legislação brasileira é uma das mais completas do mundo. Entretanto, a eficácia e a efetividade de leis e normas regulatórias ainda não são integralmente realizadas. Essa limitação não está contida na oportunidade maior ou menor de recursos disponíveis para substancializar a legislação. Há atravessamentos de ordem política, ideológica e social que interferem na aplicação completa e/ou progressiva da legislação. O fortalecimento da esfera pública de decisão e controle de políticas sociais se faz imediatamente necessário para o cumprimento democrático dos avanços no plano dos instrumentos normativos institucionais. 4 A produção, sistematização e democratização das informações: No mundo contemporâneo, a informação é um dos principais atributos de poder político e social. Portanto, a sua produção, sistematização e, principalmente, a sua difusão democrática se configuram como condição do exercício pleno da cidadania. As informações sobre a gestão pública não podem estar confinadas em segmentos burocráticos de poder. Além de produzidas e sistematizadas, situação ainda distante em muitas esferas da gestão do Estado, a informação precisa circular como um bem público, possibilitando ao cidadão não somente fiscalizar o poder público, mas também contribuir de modo eficaz nas escolhas e decisões de importância para seu bairro, sua cidade, município, estado e país. É preciso compreender, entretanto, que estamos nos referindo não exclusivamente à informação produzida por gestores e agências de pesquisa, mas àquela gerada também por e para a diversidade de territórios que compõem a metrópole, em especial os espaços populares. Espaços estes que, na maioria das vezes, apa-
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recem nos dados estatísticos apenas como foco de problemas. É fundamental que um novo olhar seja lançado sobre esses espaços, com a utilização de sistemas mais complexos e completos de informação, visando ao desenvolvimento das potencialidades neles existente e a sua integração ao espaço metropolitano. Para tanto, é necessário considerar as experiências e percepções que os moradores acumulam na vivência cotidiana de sua comunidade, capacitar esses sujeitos para que sejam também produtores de informação, diminuindo as chances de sua manipulação ou da apropriação utilitária de seus saberes. 5 Justiça territorial e gestão democrática da metrópole: A justiça social constitui um elemento complexo e indissociável da construção da democracia em sua concretude, o que exige a reflexão do significado do conceito de justiça territorial. A distinção da garantia e a distribuição de direitos que marca a vida social da metrópole e nela, nos conduz à superação das leituras do território como um mero conjunto de objetos socialmente produzidos, os quais devem ser repartidos e rearrumados de forma equânime. Para tanto, se faz decisiva a articulação entre concepção e prática política em relação ao uso do território como distribuição justa dos direitos sociais. Justiça territorial é, pois, uma das concretizações da democracia e uma das condições para o exercício pleno da cidadania. A justiça territorial reconhece a relevância das diversas escalas de ação entrecruzadas no território metropolitano. As escalas territoriais – de concepção, de ação e da vida – são efetivas arenas políticas, configurando-se como contextos sociais específicos e propícios ao diálogo, à convivência e à negociação democrática das diferenças (exprimindo, portanto, o sentido político do público). Entendemos, por isso, que não haverá gestão democrática da metrópole que se pretenda transformadora sem levar em consideração a complexidade de contextos e das escalas das relações humanas mediadas pelo território, com suas demandas de direitos, seus sujeitos sociais corporificados e seus horizontes cívicos. Isso é o que viabiliza o encontro da justiça social com o território, em um processo de construção plural e diverso, onde protagonistas atuam criativamente na elabo-
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ração de seus modos de vida compartilhados. Em síntese, a gestão democrática da metrópole deve reconhecer e mobilizar os diferentes sujeitos sociais em seus contextos territoriais, em uma perspectiva sistêmica e ampliada da justiça social. Referências Jorge Barbosa (org.). Rio democracia: relatório final. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas. Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2010. Quim Brugué e Ricard Gomà (orgs.). Gobiernos locales y políticas públicas. Barcelona: Editorial Ariel, 1998. Adolfo Ignacio Calderón. Democracia local e participação popular: a lei orgânica paulistana e os novos mecanismos de participação popular. São Paulo: Cortez Editora, 2000. José Murilo de Carvalho. Cidadania no Brasil: longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Maria do Carmo Carvalho e Ana Cláudia Teixeira. Conselhos gestores de políticas públicas. São Paulo: Polis, 2000. Joan Botella Corral (org.). La ciudad democrática. Barcelona: Ediciones del Sebral, 1999. Henri Lefebvre. O direito a cidade. São Paulo: Documentos, 1969. Silvana Maria Pintaudi. Participación ciudadana en la gestión pública: los desafíos políticos. Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, v. IX, n. 194, 1 ago. 2005. Milton Santos. O retorno do território. In: Milton Santos, Maria Adélia de Souza e Maria Laura Silveira (orgs.). Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Editora Hucitec, 1994. — O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2002. Jailson de Souza e Silva e Jorge Luiz Barbosa. Favela: alegria e dor da cidade. São Paulo / Rio de Janeiro: Senac/X, 2005.
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Os pequenos e a cidade: o município de São Gonçalo como um livro de espaços Maria Tereza Goundard Tavares
(…) Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grandes janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serraduras, entalhes, esfoladuras… (Calvino, 1998) Viver nas cidades hoje é a realidade de mais de 80% dos brasileiros (IBGE, 2010). Segundo os números oficiais dos últimos censos demográficos, nas grandes cidades brasileiras, denominadas de megalópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e outras, vivem milhões de pessoas, o que torna essas cidades verdadeiros formigueiros humanos. A enorme concentração demográfica nas cidades – o estado do Rio, por exemplo, registra a maior taxa de urbanização do Brasil, tendo 91% de sua população vivendo em cidades –, ocorrida especialmente nos últimos 30 anos, relaciona-se com os complexos processos de transformação territoriais advindos do nosso modelo de desenvolvimento capitalista concentrador, de sua ação perversa nas áreas rurais. O processo acelerado de urbanização brasileira vem atingindo, nesse começo de século, índices insuportáveis, agravando uma desigualdade urbanística que se manifesta em uma apropriação desigual das metrópoles e, sobretudo, na violência urbana, que envolve a todos, em maior ou menor intensidade, independente de seu contexto espacial. A questão urbana, em especial o inchamento das metrópoles1 1 Os índices demográficos do IBGE (2010) apontam o crescente número de cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes, sendo que, em 2002, 30% da população brasileira urbana aglomera-se em apenas nove cidades do país, o que torna o direito à cidade um constante desafio.
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e a degradação ambiental a elas associadas, vêm exigindo que a discussão sobre a habitabilidade da cidade transcenda o meio técnico (dos especialistas), tornando-se uma discussão política de toda a sociedade, uma vez que nossa histórica desigualdade social e econômica (renda, escolaridade, desemprego, violência) é complexificada pela nossa desigualdade urbanística (condições de moradia, saneamento, transporte etc.). Esta constatação implica a afirmativa da inseparabilidade dos aspectos sociais, econômicos, jurídicos e culturais dos aspectos urbanísticos e ambientais (Maricato, 2000). Portanto, é a cidade um dos lugares onde o mundo se move mais, pois as ruas da metrópole têm sido, especialmente para as camadas populares o lugar mais apropriado do “correr atrás”.2 Correr atrás do emprego, da escola, do posto de saúde, do lazer, do espaço para se ganhar algum trocado, passear ou simplesmente zoar, como nos contam muitas das crianças com as quais trabalhamos em escolas públicas dos bairros da periferia de São Gonçalo. Quantas vezes eu já saí por aí, pedindo, correndo atrás… não tem arroz, não tem feijão… eu boto a mão na cabeça… Fulano, o problema é o seguinte: Tô com um monte de crianças lá em casa. Você não tem uma roupinha pra eu lavar? Tô precisando… pra comprar um quilo de arroz, um quilo de feijão… quando eu vejo, eu lavo, passo… quando venho, já venho com dinheiro pra comprar as coisas. Isso não é feio, não! (…) (fala extraída da entrevista realizada com C., da “família Barbosa”, mãe de quatro crianças da escola, em julho de 2002). Na atualidade, em termos populacionais, o município de São Gonçalo representa o segundo município do estado do Rio de 2 A expressão correr atrás faz parte do vocabulário das camadas populares urbanas, denotando a “gramática da viração” que as mesmas materializam na cidade em busca de sua sobrevivência. Como em nosso país, os(as) pobres, os(as) oprimidos(as) e os(a)s subalternos(as) historicamente dependem de suas astúcias para a materialização de suas condições da vida, correr atrás expressaria uma tática-síntese dessas operações de caça (Certeau, 1994) na cidade.
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Janeiro em densidade demográfica. De acordo com os dados preliminares do último censo (IBGE, 2010), estimou-se um total de 999.901 mil habitantes na cidade. Desse total, 475.336 mil do gênero masculino, e 524.565 mil são do gênero feminino. A questão do real número de habitantes do município talvez seja um dos primeiros dilemas que a cidade tenha de investigar e administrar, pois existe um grande contraste entre os números oficiais de sua população, apontados pelo IBGE (999.901), e aqueles estimados extraoficialmente por meio da imprensa local, dos órgãos da prefeitura municipal, dos empresários e demais instituições da cidade. Para os últimos, a cidade teria quase um milhão e trezentos mil habitantes. O fato é que, com essa imprecisão quantitativa, o município deixa de receber do estado e da União um montante considerável de recursos financeiros que poderiam e deveriam ser utilizados em políticas sociais na cidade, visando melhorar a qualidade de vida do(a) gonçalense. Concretamente, esse déficit de recursos, com certeza, contribui para que a cidade, apesar de ser a segunda em termos demográficos-populacionais, ocupe a posição de vigésimo segundo (22º) município em qualidade de vida, entre os 91 municípios do Estado do Rio de Janeiro.3 Os indicadores sociais recentes do município, aliados à taxa média de crescimento anual de 1,48% da população gonçalense, apontam a necessidade urgente de um debate e de um (re)planejamento urbano, tendo em vista que o Plano Diretor, ainda vigente na cidade, foi elaborado no começo da década de 1990. O sistema de saneamento, de saúde, de educação, de tráfego, de trabalho, de cultura e lazer, de segurança, enfim, a infraestrutura urbana do município encontra-se totalmente em crise, dificultando – senão impedindo – uma melhor qualidade de vida na cidade, colocando em risco sua própria habitabilidade. Essas questões não são recentes, possuem explicações e 3 Dados retirados do relatório do índice de qualidade de vida no Estado do Rio de Janeiro, elaborado pelo Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro (Cide), dezembro de 2001. Os pequenos e a cidade
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interpretações sociológicas, antropológicas, políticas, econômicas, culturais, entre outras. que se imbricam na genealogia da cidade, em sua formação histórico-social, pois as marcas da exclusão social na materialidade urbana podem ser consideradas muito mais estruturais do que conjunturais. Para melhor compreendê-las, foi fundamental realizar um inventário (no sentido gramsciano) do município, investigar seu passado “nas linhas de suas mãos”, perscrutando os indícios, as evidências, os vestígios dos processos constitutivos da cidade. Foi necessário ler a cidade pelo avesso, a contrapelo, como nos ensinou Benjamin, procurando realizar nesse processo permanente de reinterpretação do passado um diálogo auspicioso com o presente. Temos consciência, porém, de que os problemas que atravessam as cidades brasileiras, especialmente as grandes áreas metropolitanas, como é o caso de São Gonçalo, não são recentes. As questões referentes à expansão urbanística desenfreada e à ausência de infraestrutura se inscrevem no bojo do perverso modelo de urbanização implementado no país, principalmente nas últimas décadas do século passado. Na cidade de São Gonçalo, local de minhas atuais “andanças interessadas” como professora-pesquisadora, o projeto neoliberal em curso vem acelerando a desestruturação da cidade, acentuando sua fragmentação, buscando consolidar as fronteiras objetivas e subjetivas entre cidadãos e não cidadãos, entre incluídos e excluídos, entre o povo do asfalto4 e o povo da periferia, dificultando, senão impedindo, a edificação de uma cultura urbana mais identificada com a democracia e a inclusão. Com base em minha experiência na cidade5 e na tentativa 4 Estou denominando povo do asfalto os moradores da cidade que habitam os espaços dotados de infraestrutura urbana e considerados não degradados aos olhos do capital. O povo do asfalto caracterizaria os habitantes da cidade formal, dos espaços (material e simbolicamente) estruturados da metrópole. Aqueles que de certa forma estariam incluídos no “direito à cidade”. 5 Meu contato com São Gonçalo se deu apenas recentemente, a partir da minha inserção profissional na FFP, no bairro do Paraíso. Apesar de ter morado parte da vida em Niterói, meu imaginário sobre São Gonçalo foi constituído a partir de outros registros semióticos, reportagens, fala de amigos e/ou de alunos(as), excluindo uma vivência pessoal, isto é, uma experiência da cidade.
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de delimitação da pesquisa, venho refletindo algumas questões acerca do impacto da cidade na alfabetização de crianças das classes populares, buscando discutir, entre outras coisas, as possibilidades educativas da metrópole e suas inter-relações com a escola, na expectativa de contribuir para a ampliação do que seja alfabetização, bem como sua problematização à luz de outra epistemologia, a epistemologia da complexidade (Morin, 2000; Morin e Le Moigne, 1999). Historicamente, o pensamento ocidental moderno especializou-se em separar e isolar as coisas, os objetos de seus contextos, na crença cartesiana de que, compartimentando a realidade em disciplinas isoladas, maior e melhor seria a inteligibilidade da realidade investigada. Segundo Morin e Le Moigne (1999), a tradição cartesiana deixou como herança à modernidade um tipo de pensamento disjuntivo, que fundamentalmente separaria o sujeito-pensante (res cogitans) da coisa externa (res extensa), colocando como princípio de verdade um paradigma de conhecimento “claro e distinto”, cujo objetivo científico seria a eliminação da complexidade dos fenômenos, visando revelar a ordem simples a que estão submetidos. A este modelo de pensamento que rege o pensamento ocidental desde o século XVII, Morin (ib.) vai opor a necessidade de um pensamento complexo que procuraria integrar modos simplificadores de pensar, recusando, porém, suas consequências redutoras, fragmentadoras e unidimensionadoras. O pensamento complexo, na perspectiva “moriniana”, não teria a pretensão de controlar, mutilar, dominar o real. Sua perspectiva é o estabelecimento de um diálogo com o real, uma negociação na busca de sua compreensão, com todas as suas ambiguidades e incertezas: À primeira vista, a complexidade é um tecido (complexus: o que é tecido em conjunto) de constituintes heterogêneos inseparavelmente associados: coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Na segunda abordagem, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroaOs pequenos e a cidade
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ções, de terminações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal (Morin e Le Moigne, 1999, p. 20). O pensamento complexo proposto por Morin implicaria a recuperação da unidade e diversidade do todo-partes, já que complexus significa “o que é tecido em conjunto”, o que nos exige o esforço de construção de sistemas de pensamento que superem o paradigma da disjunção e da clássica redução interpretativa na arquitetura do pensamento e superem as formas de conhecimento modernas que remetem a forte simplificação e abstração na compreensão de mundo. O pensamento complexo é o pensamento que se esforça para unir e diferenciar, pois se: Tentarmos pensar no fato de que somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a complexidade é aquilo que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos esses aspectos, enquanto o pensamento simplificante separa esses diferentes aspectos, ou unifica-os por uma redução mutilante. Portanto, é evidente que a ambição da complexidade é prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre as disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento (Morin e Le Moigne, 1999, p. 176–7). Pensar a alfabetização e, de forma mais ampla, a própria cultura escrituralística ocidental (Certeau, 1994), à luz da complexidade, implica compreendê-la para além das questões metodológicas que dominam as discussões no cotidiano escolar, polarizando professores(as), especialistas e familiares em torno do(s) método(s). A alfabetização em uma perspectiva complexa exige o rompimento com uma concepção clássica, escolar, que só faz referência ao mundo impresso, à cultura letrada, onde o livro e as tecnologias da palavra a ele associadas ocupam uma centralidade no mundo da escola. Centralidade que embora há muito já tenha sido abalada e descentrada pelo meio técnico-científico-informa-
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cional, pelas mass medias, pelas texturologias6 da cidade e, como nossa pesquisa faz crer, continua sendo reforçada na cultura escolar, com poucos indícios (pelo menos na rede municipal de São Gonçalo – espaço de minha investigação interessada) de um maior questionamento e complexificação. Portanto, ao relacionar infância, alfabetização e cidade, visando à complexificação do que seja alfabetizar na contemporaneidade, estamos defendendo que a cidade é como um livro de espaços, onde os diferentes textos, imagens, mensagens, corpos, fluxos se hibridizam, configurando uma poderosa mídia, cujos significados atravessam o sujeito citadino, exigindo outras formas de percepção, leitura, de ensino e aprendizagem. O meio tecnico-cientifico-informacional que a cidade contemporânea condensa, e do qual a escola também é uma dimensão, expõe ao sujeito citadino uma proliferação de signos, mensagens, imagens, fluxos que o hábito de habitabilidade da cidade (Ferrara, 1993), na maioria das vezes, dificulta (e na maior parte das vezes impede): a sua percepção, leitura e compreensão. Entendo, assim, que aprender a reparar a cidade contemporânea implica em enxergar a multiplicidade dos fluxos de significações que a constituem. A heterogeneidade desses fluxos (comunicacionais, políticos, econômicos, disciplinares, ritualísticos etc.), bem como seus impactos nas subjetividades contemporâneas, nos remetem ao exercício de refletir e vivenciar a cidade como um dos espaços privilegiados de educação. La ciudad, en la perspectiva educativa, puede ser considerada a partir de tres dimensiones distintas pero complementarias. En primer lugar, como entorno, contexto o contenedor de instituciones y acontecimientos educativos: “Educarse o aprender en la ciudad”, sería el lema que describe esta dimensión. 6 Para Certeau (1994, p. 46), a texturologia de uma cidade, de um bairro e/ou rua, se exemplifica pelo seu labirinto de imagens. Essa texturologia “tem grafia própria, diurna e noturna, que dispõe um vocabulário de imagens sobre um novo espaço de escritura. Uma paisagem de cartazes organiza a nossa realidade. É uma linguagem mural com o repertório de suas felicidades próximas”.
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En segundo lugar, la ciudad es también un agente, un vehículo, un instrumento, un emisor de educación (aprender de la ciudad). Y, en tercer lugar, la ciudad constituye en sí misma un objeto de conocimiento, un objetivo o cotidiano de aprendizaje: aprender la ciudad (Trilla apud Zainko, 1990, p. 16). A afirmativa de que, para as classes populares, a cidade representa um livro de espaços, nutre-se do pressuposto de que, na busca de sua sobrevivência, a metrópole e os espaços públicos e/ ou privados da cidade ocupam uma centralidade histórica. Para as camadas populares em suas táticas de (sobre)vivências, as ruas, os espaços públicos, as áreas menos controladas pela racionalidade urbana se tornam espaços privilegiados do correr atrás. Correr atrás do emprego, do benefício, das trocas, da venda de sua força de trabalho, do negociar e/ou do simplesmente mendigar, roubar, “achar algum otário”, “praticar algum conto do vigário”, “dar pinta”, zoar, enfim, circular, transitar, bater perna, se virar… A fala de Singer é ilustrativa da “gramática do correr atrás” impressa pelas classes populares na e da cidade: Os pobres raramente podem se dar ao luxo de ficar “desempregados”. Os pobres ficam “parados” quando a procura por serviços cessa, mas eles não podem permanecer nesta situação por muito tempo. Se não conseguem ganhar a vida na linha de atividades que vinham se dedicando, tratam de mudar de região, caso contrário, correm o risco de morrer de fome (1998, p. 31–32). Entendo que, na multiplicidade de usos que as camadas populares materializam nos territórios da cidade, vai sendo gestada certa “gramática da viração”, isto é, determinadas operações materiais e simbólicas, determinadas táticas e astúcias que, no sentido dado por Certeau (1994, p. 175), poderiam ser traduzidas à luz de uma teoria das práticas cotidianas, no espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade.
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Às vezes eu tenho que ir ao conselho tutelar. Que às vezes eu preciso pedir alguma coisa. Vou ao PETI resolver pro Moisés. Tem a dona Júlia do conselho tutelar de São Gonçalo, no centro empresarial. Eu vou muito lá. Às vezes eu tenho que assinar a folha da APAE da Joeli; tenho de ir na prefeitura. Eu vou muito (…). Vou de ônibus. Geralmente eu vou com eles… Joeli tem passe. Como eles é tudo parecido uns com os outros (…) aí eu ando com o passe do ônibus com o Moisés. A passagem é muito cara, como eu não posso pagar a passagem, eu boto a blusa delas da escola (…) passo pela porta da frente. Eu dou o meu jeito! (fala de C., mãe das crianças da “família Barbosa”, em julho de 2002). Acredito que, justamente nos territórios da cidade, premidas por uma vida de urgências, as camadas populares urbanas vão construindo práticas de leitura e escrita que, fundadas em outros regimes semióticos, não só aqueles oriundos da cultura escolar, lhes permitem “correr atrás”, ler a rua, ler o espaço público, decifrar seus códigos surrealistas, escrever com seus corpos o espaço urbano, marcar com seus passos, seus trajetos, a epiderme da cidade, inscrevendo seus signos na multiplicidade de signos que transitam e (re)definem a paisagem urbana. Meu nome é Douglas eu tenho 8 anos agora vamos a o assunto no meu Bario não tem cinema policiamento nem asfauto (…) (trecho de uma carta escrita por D., aluno da alfabetização, junho de 2000). A cidade é um sistema aberto e complexo, cheio de instabilidade e contingência. Cenário dos fixos e dos fluxos (Santos, 1979) no qual as camadas populares urbanas, de modo geral, com poucos anos de escolarização, são desafiadas constantemente por uma texturologia que, somente pelos modos de uso cotidianos, se torna legível, compreensível, decifrável, familiar. Para as camadas populares especialmente (embora essa concepção de leitura seja aplicável a qualquer sujeito / grupo social),
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a leitura do mundo/cidade precede e acompanha a leitura da palavra (Freire e Macedo, 1990) e as suas práticas do espaço remetem a uma forma específica de “operações” (“maneiras de fazer”) e a “outra espacialidade” (uma experiência “antropológica”, poética e mítica do espaço) e a uma modalidade opaca e cega da cidade habitada. Uma cidade transmutante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível (Certeau, 1994, p. 172). Para as crianças com as quais venho trabalhando e pesquisando, ler e escrever a cidade e nela implica operar tipos de conhecimentos de quem constrói e utiliza os espaços vividos dos territórios citadinos. Assim, viver a cidade e nela como um livro de espaços requer astúcia, intuição, aprendizagem, disciplina, boa dose de sorte e capacidade de frustração, especialmente para decifrar as armadilhas e desviar das páginas que não trazem felicidade. Não dá pra brincar de noite, é muito perigoso. Só brinco na rua quando a minha mãe tá na calçada… Já teve caso de violência, de estupro de uma moça lá na 43. De noite não ando sozinha nem de bicicleta porque tem roubo, é perigoso por causa de uns caras que vêm lá da pica-pau.(fala transcrita da entrevista realizada com T., aluna da 1ª série, junho 2002). No itinerário de meu trabalho junto aos setores denominados populares, venho observando que os conteúdos alfabetizadores7 transbordantes da cidade deveriam fazer parte do universo das práticas materiais e simbólicas em tensão nos territórios escolares: Quando a gente andou pelas ruas próximas à escola para conhecer um pouco o bairro (…) a gente tava estudando o bairro, eu pensava nos conteúdos que podia trabalhar com 7 Estou denominando conteúdo alfabetizador todo e qualquer dispositivo de significação negociado em uma cultura. Não faz sentido falar em conteúdo alfabetizador no singular, e sim conteúdos alfabetizadores em um nível mais complexo, pois nossa concepção ampliada de alfabetização possibilita integrar todo (con)texto como linguagem, como mensagem, como significação.
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as crianças (…) não dava para trabalhar só por área, tipo português, matemática, estudos sociais (…) um assunto entrava no outro, se relacionava (…) a rua da escola, a Correia D’Ávila, eles desenharam, contaram as casas pares e ímpares, os tipos de casas, reclamaram do lixo e dos orelhões quebrados (…) perguntaram do homem bêbado estirado do lado da pizzaria (…) Tá tudo ligado, o conhecimento das coisas, como separar? (fala transcrita da entrevista realizada com a profª A. C., em agosto de 2002). Quando crianças, como, por exemplo, N., J. e M. da “família Barbosa” falam de seu caminho casa–escola, de suas andanças no bairro, de suas paisagens preferidas, descrevendo-as, desenhando-as, escrevendo-as com as suas possibilidades, elas oferecem a oportunidade de que seu grupo de referência – sua classe, turma escolar – estimulado pela professora. Trata-se da possibilidade de produzir a geografia do percurso, construindo saberes transversais que migram da sociologia para a política, para a ecologia, para a estética, para a semiótica etc. Assim, tensionam-se as fronteiras rígidas que (ainda) disciplinarizam, desistoricizam e despolitizam o conhecimento no mundo da escola. Se na semiótica urbana, as ruas da cidade sempre foram atrativas para as pessoas, pois nelas estão presentes, muitas vezes, de forma conflitante, o mistério, o perigo, a ordem e a desordem, os diferentes fluxos da vida citadina. Por que será que na escola pouco discutimos e problematizamos a experiência de viver na cidade? Por que pouco se fala sobre o direito das crianças (pré)escolares viverem e usufruirem dos espaços culturais e das paisagens naturais que constituem sua cidade? Se a escola é uma paisagem da cidade, e se, a caminho da escola, as crianças se relacionam com outras paisagens do entorno, por que essa experiência urbana não é (ou quase nunca é) complexificada, tornada conteúdo alfabetizador na instituição escolar? Essas questões vêm me intrigando e me desafiando a investigar as formas pelas quais as crianças, principalmente as das
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camadas populares, imaginam, vivem, inventam a cidade, muitas vezes de forma muito dolorosa, como era possível constatar em São Gonçalo.8 O C. H. já está na rua novamente. A mãe disse que não tem jeito não, que ele já tá na vida (…) falaram que viram ele em Alcântara perto do Extra (…) acho que perdemos mais um! (fala de V., orientadora educacional da escola, em maio de 2002). Na cidade de São Gonçalo, com base em nosso mergulho na paisagem cotidiana da pesquisa, foi rapidamente possível a difícil (porém inevitável) constatação de que os poderes locais da cidade, pouco ou nada implementavam para discutir e garantir o direito da infância à cidade. As estratégias institucionais, quando existiam, eram fragmentadas, episódicas, restritas aos eventos oficiais da cidade, como, por exemplo, os festejos comemorativos da emancipação da cidade, no mês de setembro, e as comemorações da semana da criança no mês de outubro. Apesar da Secretaria Municipal de Educação local utilizar, desde 2000, dois projetos que davam centralidade à cidade – os projetos Meu Brasil começa aqui e Orgulho de ser gonçalense, efetivamente, no chão das escolas – como carro-chefe de suas políticas para a rede municipal, até agora, além de uma retórica ufanista, pouco ou nada foi concretizado. Seja qual foi o peso da presença do discurso da cidade educadora nos documentos oficiais da SME, nenhuma política ou ação mais sistemática foi efetivada visando dar suporte material 8 Em São Gonçalo, apesar da retórica oficial dos poderes públicos, é crescente o descaso com as crianças e jovens pobres da cidade. Segundo dados da Fundação da Infância e da Adolescência (FIA) polo da articulação leste, de 93 óbitos registrados, na faixa etária dos 15 aos 19 anos em 2000 na cidade, 78 foram de menores assassinados na guerra do tráfico no município. Segundo a juíza da Vara de Infância e da Juventude do município, de janeiro a agosto de 2001, 240 adolescentes (de 9 aos 17 anos) se envolveram com a criminalidade; 98% das infrações estavam relacionadas ao tráfico de drogas.
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e simbólico às interfaces entre escola e cidade, garantindo as condições político-culturais para a escola ensinar a e na cidade. De modo geral, a retórica da cidade educadora e da educação na e pela cidade, apesar de bem fundamentada nos projetos de governabilidade urbana, concretamente só propiciou a criação de um símbolo próprio e a padronização da pintura dos equipamentos públicos municipais. A ideia-força de um sistema educativo integrado que colocasse em interlocução as escolas e as demais instituições socioculturais da cidade ainda não passava de uma proposta (uma carta de intenções) baseada em experiências a princípio bem-sucedidas das metrópoles vizinhas (Niterói e Rio de Janeiro). A proposta da escola ensinar a cidade, de torná-la um livro de espaços para se escrever (se inscrever) o orgulho de ser gonçalense (ainda) era um horizonte complexo e distante do movimento cotidiano das escolas da cidade. Com base nessa breve contextualização, afirmar a natureza educativa da cidade implica admitir, no âmbito político-epistemológico a intencionalidade formadora que a metrópole pode assumir na contemporaneidade, sobretudo por ser o meio técnicocientífico-informacional por excelência, locus da densidade comunicacional. O que mais uma vez reforça a texturologia da cidade como conteúdo alfabetizador. Dizer que a cidade é educadora é ressaltar seu caráter de agente educativo, é uma ideia-força que busca ser compartilhada e assumida pelos diferentes atores sociais (Trilla, 1997), apesar das contradições nodais que tornam a metrópole cenário dos conflitos e confrontos sociais, que a tornam lugar das disputas. Milton Santos (1994, p. 83) define a cidade como o lugar em que o mundo se move mais, e os homens também. De acordo com essa concepção, ela seria um dos lugares da educação, pois, quanto maior a cidade, mais numeroso e significativo o movimento, mais vasta e densa a copresença e também maiores as lições e o aprendizado (ib.). Para a escola, a cidade e seus fluxos podem ser extremamente educativos, pois ao caminhar pela rua é possível reconhe-
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cer os atores que produzem a cidade enquanto uma cena cultural (Morse, 1996). A cidade é formada por múltiplas e complexas ações de muitos agentes e é formada também pelas práticas escolares, pois são elas que possibilitam a percepção das diferenças do estar no mundo. A densa rede de sociabilidade nas cidades oferece, sobretudo, no contexto das metrópoles, possibilidades privilegiadas de aprendizado da alteridade e da problematização das desigualdades sociais, historicamente presentes na formação social brasileira. Referências
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Brasileiros no mundo: novas construções identitárias do “salsa american way”1 Profª Drª Joana Bahia
Introdução O Brasil, que foi, por mais de um século, um típico país de imigração, tornou-se, a partir de 1980, um exportador de mão de obra, um país de emigração. O fenômeno da emigração é algo novo para um país que se constituiu historicamente como área de destino de imigrantes. Esta mudança não é apenas demográfica, mas denota um fato social e político complexo com implicações diversas. Uma delas é do próprio imaginário popular que se espanta diante do fato de sempre ver o Brasil como país receptor, no qual “todo mundo vem pra cá, acha tudo uma maravilha e vira brasileiro”. Como pode então a tal da “pátria amada” mandar os seus filhos embora? Parafraseando a música, o que os brasileiros trazem nos seus tabuleiros? E de que modo há diversos arranjos identitários? Nas bagagens se carregam não só símbolos, mas processos de escolha e seleção de elementos que são moldados em uma nova realidade. Há inúmeras variáveis que devem ser consideradas ao tratarmos do fenômeno migratório, pois não abordamos apenas uma identidade brasileira, mas sim várias. A heterogeneidade dessa população emigrante pode ser analisada considerando os seguintes aspectos: questões de classe entre a população imigrante; questões de temporalidade da imigração; de gênero e sexuali1 Carmen Miranda, ao cantar South American Way, trocava propositadamente à letra para “salsa”, essa troca sutil é pensada aqui como marcação identitária, como sinal diacrítico nos termos descritos por Barth (2000). Pensamos o que os brasileiros trazem consigo quando migram e de que modo reelaboram suas identidades em novos contextos. Como vemos nos versos: “E o que traz no seu tabuleiro. Vende pra ioiô. Vende pra iaiá. In South American Way”.
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dade; de ascendência europeia (diferenciada por graus variados de ascendência); de cor/raça; de ocupação no mercado de trabalho; de origem regional; e, finalmente, de religião, entre outras possíveis. Uma colcha de retalhos identitários. Estas diferenças não aparecem em muitas fontes. Muitas estatísticas, variando de país receptor e do tempo em que o grupo migrou, transformam os brasileiros em “nosotros” (latinos). E somam-se colombianos, peruanos, chilenos, todos metidos em um balaio de latinos. São classificados ao lado de asiáticos e africanos, todos postos em blocos, em categorias abrangentes nas quais as representações em si são mais importantes para o pesquisador do que os próprios números. A lógica subjacente às fontes é o desafio com o qual nos deparamos na sua desconstrução crítica. Lemos o que não está escrito. Exceção das emigrações incentivadas pelos governos receptores, a ilegalidade é parte da realidade de alguns números e também do cotidiano dos brasileiros.2 Os casamentos mistos e a formação de novas gerações complexificam as relações sociais que devem ser percebidas pelo pesquisador e que não constam das fontes. Podemos afirmar que, fazer a história das migrações, em muitos casos, é fazer uma história da clandestinidade. Mas que para, além disso, dependemos também da compreensão das motivações de saída para entendermos quando se é clandestino e quando se deixa de ser por assumir novas identidades, sem deixar de lado o que é levado na bagagem. A construção de locais de sociabilidade e de motivações de saída depende do que é chamado de redes sociais. Os laços de família e de amizade são vínculos de ordem afetiva, econômica e simbólica que constroem pontes entre os países de saída e de entrada. Não obstante as remessas de dinheiro e a formação de empresas serem importantes para pensarmos o quanto os processos 2 De acordo com o Registro Central de Estrangeiros (Ausländerzentralregister), vivem 31.461 brasileiros na Alemanha. Segundo os dados da Subsecretaria Geral das Comunidades Brasileiras no Exterior (sgeb), 89 mil vivem atualmente no referido país. Entre as duas fontes há uma defasagem de quase 60 mil indivíduos, o que demonstra a complexidade do fenômeno ao tentarmos precisar o número de migrantes. Brasileiros no mundo
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migratórios movimentam economias, o migrante é usado como bode expiatório nas explicações sobre os índices de desemprego. Além dessa questão, temos os problemas de adaptação mal sucedida, da constante ideia de migração como algo temporário, as diferenças geracionais e principalmente as dificuldades de inserção no sistema escolar dos países receptores. A exemplo, temos o caso do Japão (Sasaki, 2010) e da Alemanha (Bahia, 2010). Brasileiros pelo mundo Segundo Teresa Sales (1999, p. 20–1), é a partir de meados dos anos 1980 que a emigração brasileira assume proporções significativas. Essa afirmação é confirmada pelo World Economic and Social Survey 2004, relatório elaborado pela ONU (2004).3 De acordo com tal estudo, desde o primeiro quinquênio dos anos 1980, o Brasil começa a ter saldos migratórios constantemente negativos, característica que lhe dá, atualmente, a classificação de “país de emigração”. De acordo com a autora: Essa é uma migração típica de trabalhadores, em busca de ascensão social e econômica que começaram a sair do Brasil durante a década de 1980, a chamada “década perdida”, não apenas fugindo da crise econômica e das altas taxas de inflação que caracterizaram o período, mas também da frustração de promessas não cumpridas de sucessivos planos econômicos que fracassaram como foi o caso mais conhecido do Plano Cruzado (2006). 3 Também o World Migration Report – 2005 da IOM reconhece o expressivo aumento da emigração brasileira nos EUA, sobretudo na virada do milênio: “Like its northern neighbour, Brazil is also witnessing an emigration trend. The us has become one select destination, as legal and irregular immigrants make homes in states such as Florida, Massachusetts and New York. Inflows of Brazilian immigrants into the us have risen steadily since 1999, from slightly less than 4,000 to nearly 9,500 in 2002. According to us census figures, the stock of Brazilians, too, has been rising from 82,500 in 1995 to 212,400 in 2000. (Note that the inflow numbers do not capture unauthorized entries)” (IOM. World Migration Report – 2005. Costs and benefits of international migration. v. 3, p. 93. Disponível em: . Acesso em: 6 mai. 2011).
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Segundo Sales (op. cit.), tanto a migração para os países europeus quanto para os Estados Unidos é uma migração de trabalhadores, de pessoas originárias da classe média e que vão trabalhar nesses países em serviços não especializados.4 Contudo (op. cit.), o perfil ocupacional dos imigrantes brasileiros tanto nos Estados Unidos, como na Europa e no Japão, mostra um declínio no status de sua ocupação, quando comparada com a que tinham no Brasil. Antes da emigração, eles eram professores de ensino básico e médio, bancários, estudantes e até profissionais de nível superior. Nos demais países trabalham em áreas tais como limpeza de residências e escritórios, como lavadores de prato e em outros serviços em restaurantes que não exigem o uso do inglês e de outras línguas, na construção civil, arrumação de hotel etc. No caso americano, alguns montam seus próprios negócios de limpeza de escritórios ou residências, pequenos reparos e pintura, ou comércio de produtos brasileiros. A ascensão econômica é representada, sobretudo, pela possibilidade de consumo, levando em conta o aumento substancial de ganho financeiro. Entretanto, não somente a crise econômica impulsiona a evasão. Torresan ao estudar os brasileiros em Londres mostra que eles “foram para reinventar sua identidade e criar novas oportunidades de vida, foram buscar algo além dos motivos alegados para os empreendimentos da viagem” (1994, p. 5–6). Viver novas experiências caracteriza o grupo por ela estudado, e mostra claramente que, para além de escolhas racionais (como fazer poupança e estudar), justificativas subjetivas são oferecidas. Muitos querem começar a vida longe de “padrões de comportamento impostos pela sociedade brasileira, num país que considerava ser modelo de modernidade” (op. cit., p. 146). Frigério (1999, p. 76) mostra que as redes sociais são construídas pelos imigrantes entre lugares de origem e de destino na direção e volume dos fluxos migratórios. Estas redes sociais propiciam aos migrantes recursos na forma de assistência e infor4 Não é objeto de estudo deste projeto a emigração orientada para a prostituição, mas ela vem sendo estudada tanto por pesquisadores brasileiros (ver Piscitelli) e portugueses (ver ISCTE: Lisboa). Lembramos que o mesmo ocorre na Alemanha, entretanto há poucos estudos sobre o referido país. Brasileiros no mundo
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mação e permitem entender o fenômeno da migração em cadeia (chain migration), pela qual migrantes novos são levados ao lugar de destino por iniciativa dos que ali já se encontram. Sales indica que situações de crise no país não são motores suficientes para levar a decisão de migrar quando não há redes estabelecidas de amizade, parentesco e conhecimento (ib.). Conforme vimos, há muitos modos e formas de emigração. Estas formas podem ser inicialmente mapeadas como sendo importantes na diferenciação do grupo. Como no caso da Alemanha, uma grande maioria está relacionada ao casamento entre brasileiros e alemães. Há uma emigração por conta das empresas alemãs que atuam no Brasil. Mas também há um modo de emigração que passa pelos estudos de língua alemã e inserção na estrutura acadêmica, especialmente nas profissões técnicas (engenharia, áreas que envolvam uso de tecnologia de ponta).5 As variações na composição dos fluxos migratórios de brasileiros para Alemanha extrapolam os registros oficiais e evidenciam a complexidade do tema.6 5 Muitas vezes, os brasileiros estão invisíveis aos fluxos de maior intensidade e, conforme vimos, são muitas vezes confundidos com os demais latinos e também os caribenhos. De acordo com o Registro Central de Estrangeiros (Ausländerzentralregister), viviam na virada de 2007, 31.461 brasileiros na Alemanha, dos quais 52% eram casados (na maioria dos casos com alemães ou cidadãos europeus, constituindo famílias binacionais). Deste total, 73% eram mulheres. Este número, porém, ilustra apenas meia-verdade, pois não se levam em consideração os brasileiros registrados sob alguma outra cidadania, em geral europeia, obviamente nem os brasileiros em situação irregular. Os dados publicados tampouco consideram o número de crianças binacionais, que muitas vezes só são registradas sob a cidadania alemã. 6 No Statistisches Amt für Hamburg und Schleswig-Holstein 2010, temos atualmente na região de Hamburgo e Schleswig-Holstein, 15.646 latinos e caribenhos, sendo que os grupos majoritários nesta mostra são advindos do Brasil, Chile e Peru. Não há números que tratem separadamente de cada um desses grupos. Não obstante constatar a presença de brasileiros em cidades como Frankfurt am Main e Düsseldorf em várias fontes e documentos levantados, não foi possível precisar o número exato, apenas o número geral de estrangeiros. O mesmo ocorre na área bávara da Alemanha. Na região da Baviera são 1.164.027 estrangeiros, porém não são especificadas as nacionalidades, sendo que as cidades de Munique, Nurenberg e Augsburgo são as que possuem os maiores números, sendo respectivamente 305.327, 82.681 e 45.179.
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Muitos emigrantes não fogem da realidade descrita por Salles (op. cit.), entretanto muitos brasileiros também trabalham com expressões da arte e cultura brasileiras. Músicos, dançarinos, professores de dança, capoeira e fotografia são profissões presentes entre aquelas exercidas pelos brasileiros de camadas médias da população. Mas muitos possuem outros empregos na área de serviços, especialmente em empresas de limpeza, escritórios, bares e restaurantes e call centers para dar continuidade financeira aos trabalhos e projetos na área cultural até que montem uma empresa e consigam ganhar sua autonomia. Em 2003, o Ministério das Relações Exteriores estimava em 1,9 milhão o número de brasileiros vivendo no exterior. A essa realidade de âmbito internacional, somam-se os movimentos migratórios internos. Atualmente as estimativas são de 3.040.993, sendo que 816.257 na Europa. Segundo os dados do Ministério das Relações Exteriores (2009), essa população tem se direcionado em maior proporção para os Estados Unidos (1,28 milhão), seguido de Paraguai (300 mil), Japão (280 mil) e vários países da Europa (Reino Unido, Portugal, Espanha e Alemanha são os de maior fluxo). Os fluxos restantes distribuem-se em vários outros países, entre os quais se destacam Argentina (43 mil), África do Sul (30 mil), Canadá (26,3 mil), Suriname (20 mil) e Guiana Francesa (19 mil). Ainda que bastante diversificados quanto à origem geográfica, nota-se que três países alimentam o fluxo com aproximadamente 60% do volume total: Paraguai, Japão e Estados Unidos (Fusco e Souchaud, 2010). Cada um desses fluxos tem a sua especificidade. A migração para o Paraguai, que na verdade antecedeu às demais em uma década (começa nos anos 70, enquanto as demais começam nos anos 80), é caracteristicamente uma migração de fronteira e que começou a ocorrer em face do incentivo paraguaio para que fazendeiros brasileiros comprassem terras e produzissem naquele país. A esses se seguiu o maior contingente de emigrantes, que é formado pelos trabalhadores rurais, também chamados de “brasiguaios”.
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A emigração para o Japão também foi estimulada por um programa do governo e de empresas japonesas para atrair descendentes de japoneses (principalmente do Brasil e do Peru) para trabalhar na área industrial, numa tentativa de acabar com a imigração ilegal dos vizinhos países asiáticos. Uma das características desse fluxo migratório é que ele é inteiramente legal, ao contrário das migrações para Europa e Estados Unidos, nas quais é muito comum o imigrante brasileiro deixar expirar o visto de turista e permanecer trabalhando como imigrante ilegal. Para Bosi, os efeitos causados por tão grande êxodo não são apenas de ordem econômica: “Problemas de identidade cultural e de comportamento afloram em todos os polos visados pelas migrações” (2006, p. 220). Carvalho mostra que o Brasil, entre 1980 e 1990, teria experimentado uma perda líquida de 1.800 mil pessoas por meio de fluxos internacionais: 1.050 mil homens e 750 mil mulheres. Essas estimativas correspondem à média dos valores máximo e mínimo estimados pelo autor e nelas não estão incluídas as crianças nascidas durante o decênio (1996, p. 220–221). Patarra (1987) afirma que a questão migratória internacional “explodiu” e sua governabilidade passa pelos movimentos sociais. Esta explosão de emigrados pelo mundo pode ser percebida na importância dos direitos humanos como instrumento legítimo contra as dimensões dos racismos e xenofobias resultantes destes movimentos. Bosi (2006) contempla diversos aspectos dessa globalização forçada, que evidencia agudos desequilíbrios regionais. Por exemplo, a necessidade de articulação de políticas de migração internacional com esforços para o desenvolvimento econômico e social dos países envolvidos, os impactos da imigração para os EUA e França nos processos políticos e sociais dos dois países e os efeitos (negativos e positivos) da remessa de dinheiro para a economia dos países de origem dos imigrantes são alguns dos aspectos de caráter internacional que devem ser estudados. Em relação ao Brasil, vários autores mostram as relações 102
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migratórias do Brasil com o Japão (Sasaki, 2010), da emigração para Portugal (Machado, 2006), para Itália (Póvoa Neto e Ferreira, 2005; Póvoa Neto, 2006; Póvoa Neto, Seyferth, Santos e Zanini, 2007), da organização dos brasileiros em Boston (Sales, 1999), EUA (Assis, 1999), e de questões ligadas aos países sulamericanos: situação social dos brasileiros e descendentes no Paraguai (Sprandel, 2006); mobilidade de populações na tríplice fronteira de Brasil, Peru e Colômbia (Oliveira, 2006) e nas fronteiras Brasil–Guiana (Pereira, 2006) e Brasil–Venezuela. Não obstante vários autores problematizarem os fluxos descritos acima, especialmente os que se referem ao relacionamento dos brasileiros no continente americano e no Japão, lembramos também da importância dos trabalhos que abordam a situação dos brasileiros no sudoeste (Portugal e Espanha) (Cavalcanti, 2004) e oeste da Europa (França) (Reis, 2006). Entretanto a quantidade de estudos sobre os brasileiros nesta área da Europa (especialmente em Portugal) é recorrente (Feldman-Bianco, 2001; Padilha, 2004; Padilha e Xavier, 2009; Pordeus Jr., 2009; Mafra, 2002; Machado, 2003, 2004 e 2006), sendo necessários mais estudos sobre a presença dos mesmos no norte da Europa e uma análise comparativa entre estas distintas sociedades. A presença de brasileiros na Europa tem sido expressiva desde as mudanças socioeconômicas ocorridas no contexto internacional, mas especialmente no que se refere às políticas de imigração nos EUA (consequência do 11 de setembro de 2001). Essa imigração cresceu tanto nos países do oeste e sudoeste (França, Portugal, Espanha e Itália) quanto no norte da Europa (Alemanha, Inglaterra7 e Suíça8). Entretanto há poucos trabalhos sobre a comunidade brasileira nos países do norte europeu. 7 Sobre a presença brasileira na Inglaterra ver Torresan (1994). 8 Segundo Marinucci (2008), “podemos conferir uma avaliação diacrônica comparativa da presença de brasileiros em alguns países da União Europeia e na Suíça. Assim, se em 2002 as mais numerosas comunidades residiam em Portugal, Itália, Alemanha e Suíça, em 2007, o primado passou ao Reino Unido, seguido por Portugal, Itália e Espanha. Chama a atenção o expressivo crescimento do número de brasileiros no Reino Unido, na Espanha, na Bélgica e na Irlanda. No país ibérico, por exemplo, passou-se de 20 mil em 2002, para 110 mil em 2007. Já no Reino Unido, no mesmo período, o aumento foi de → Brasileiros no mundo
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Singularidades dos brasileiros no mundo Não obstante haver pouca visibilidade nas estatísticas e na política europeia em relação aos países de maior fluxo migratório, os brasileiros tem maior presença no cenário cultural. A demanda por aumento de produtos nacionais cresce conforme há um aumento no crescimento populacional, alimentando o chamado “mercado da saudade”. Este envolve bares, restaurantes, mercearias, cafés, salões de beleza e eventos culturais e bens culturais como escolas de samba (a exemplo temos a Paraíso Samba School e Sapu Caiu no Samba), grupos de forró e grupos de capoeira tanto administrados por brasileiros, portugueses como por outras nacionalidades. A “fome de casa” cria novas geografias nos lugares onde se situam, produzindo sentidos de brasilidade para brasileiros e outros grupos (Brightwell, 2010). Estas novas geografias marcam não apenas um mercado brasileiro voltado para o público europeu, mas locais de sociabilidade brasileira por onde circula uma diversidade de representações sobre o que é o Brasil, sendo também momentos de reforço das redes sociais. Outro modo de lembrar que a imigração é um networking process é mostrar o papel das redes sociais mantidas por intermédio das religiões que atribuem vários significados a emigração. A inserção dos brasileiros não se dá apenas no mercado de trabalho, mas também nas reconstruções simbólicas do campo religioso. Mas além do trabalho árduo, o que os brasileiros levam consigo? Vimos em vários estudos a importância da rede de relações, sociabilidades e também a mudança do campo social e religioso nos países em que se instalam (Saraiva, 2010). A participação das igrejas nos movimentos de migração internacional é um fenômeno milenar (Martes, 1999). Entretanto, este tema não tem merecido a devida atenção dos movimentos migratórios mais → 30 mil para cerca de 150 mil”. Não obstante os dados apontarem para uma forte presença de brasileiros na Alemanha, não há estudos suficientes sobre este fluxo migratório. Trata-se de dados estatísticos produzidos pelos relatórios consulares referentes aos anos de 2002–06 e estimativas gerais referentes ao ano de 2007.
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recentes. As igrejas e centros religiosos são, por definição, instituições expansionistas: é preciso levar a palavra de Deus aos mais recônditos cantões. Lembramos que, a partir da década de 1980, são os missionários brasileiros e demais agentes religiosos que saem pelo mundo seguindo os fluxos dos emigrantes. A religião vai na bagagem dos brasileiros, quer como símbolo de fé, quer como “capital” étnico e identitário. Desde os anos 60, a prática e expansão das religiões afrobrasileiras na América Latina (Uruguai e Argentina) foram estudadas por Frigério (1999), Segato (1991 e 1997) e Oro (1998). A partir dos anos 1970, estas cruzam o Atlântico e se expandem por Portugal (Pordeus Jr., 2009, e Saraiva, 2010) e hoje se encontram na Espanha, Bélgica, Itália, França (Capone e Teisenhoffer, 2001– 2002), Alemanha e nos Estados Unidos. Atualmente se contabilizam 40 terreiros em Portugal (Saraiva, 2010). Saraiva (ib.) mostra que a imigração mudou a face de Lisboa, transformando a cidade em lócus de uma sociedade multiétnica e multicultural não apenas no sentido religioso. As novas religiões emergem em um momento em que são protegidas pela lei de liberdade religiosa sancionada em 2001. Segundo a autora, no século XXI Portugal possui judeus, grupos islâmicos (majoritariamente sunitas e ismaelis), igrejas evangélicas (igreja de Nazaré), várias pentecostais e neopentecostais (incluindo a Igreja Universal do Reino de Deus / IURD, Assembleia de Deus e Maná), algumas igrejas africanas (quimbandistas) e práticas animistas trazida por uma variedade de migrantes africanos (Bastos e Bastos, 1999; Vilaça 2008; Mafra, 2002; Pordeus Jr., 2009; Saraiva, 2010). Muitos desses movimentos religiosos aparecem como novas formas de cultos que se apresentam como práticas terapêuticas alternativas, como é o caso dos cultos afro-brasileiros. Cabe também ressaltar a importância da presença da religiosidade e o modo como os imigrantes a dispõe. Temos a presença do fenômeno da religiosidade afro-brasileira nas sociedades ibé-
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ricas (Mafra, 2002) e do norte da Europa. Quais religiões aí se desenvolvem? Por exemplo, como se dá a participação de outros grupos étnicos nestas religiões e como esses se relacionam? Por razões históricas, não temos a mesma construção simbólica em cada país receptor. Será diferente e consequentemente marcará os modos de inserção religiosa brasileira. Não obstante os brasileiros não terem uma proximidade linguística ou mesmo uma perenidade ou continuidade de um pensamento colonial, pois o Brasil não foi colônia nem da Inglaterra e nem da Alemanha, esses não deixam de ser “exotizados”. Em cada país há uma determinada possibilidade de expansão religiosa, entretanto a grande maioria dos brasileiros que migram se convertem às igrejas evangélicas. O que não minimiza a presença de outras religiões tais como: catolicismo, santo daime, kardecismo, religiões afro-brasileiras e outras. Se os brasileiros levam a religião para os países para onde vão, eles também trazem consigo a diferenciação interna da comunidade brasileira, que não é nem um pouco homogênea (Machado, op. cit.). Muitos brasileiros em Portugal não pertencem aos cultos afro-brasileiros, sendo a maioria de seus frequentadores e partícipes portugueses. Muitos frequentam as igrejas neopentecostais, sendo os responsáveis pela sua expansão em Portugal (Mafra, 2002), demais países europeus e Estados Unidos. Muitos brasileiros não querem ser relacionados a uma religião associada a um passado africano e escravo, e, somados a isso, a estereotipagem e estigmatização, que se tornaria maior caso fossem adeptos destas religiões (Saraiva, 2010). Muitos já ocupam estratos sociais mais inferiorizados no processo migratório e “não podem ser dar ao luxo” de pertencer a cultos que os tornariam mais “exotizados” do que já são. Além disso, as igrejas evangélicas se diferenciam das católicas no modo como representam a ideia da emigração. São igrejas descentralizadas e que não dependem da hierarquia para tomar decisões ou promover mudanças necessárias ao seu cotidiano que viabilizem a sua própria manutenção e a expansão, tanto das suas unidades (cada igreja depende do financiamento dos mem-
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bros locais) quanto do funcionamento das mesmas como redes sociais (auxílio na busca de emprego e melhor inserção na sociedade receptora). A ideia de teologia da prosperidade é fundamental na classificação do emigrante não como migrante, mas sim como um empreendedor. A emigração é estimulada como modo de ascensão social, pois reafirma a mesma como um valor religioso. Ganhar dinheiro é expressão de um reconhecimento divino do esforço e do mérito de cada um. Sua teologia estimula o aumento da renda, a reorientação dos gastos, o esforço da poupança e a entrada das mulheres no mercado de trabalho. A ascensão é reforçada pela ideia de um ethos capitalista, que se coaduna especialmente em países de forte influência protestante. O uso do espaço da igreja é, ao contrário da católica, semelhante a um clube. O templo católico é apenas o espaço do culto e da residência dos padres. No caso da igreja católica, conscientizar o brasileiro de sua condição de imigrante é parte fundamental do trabalho. Seguindo a doutrina da teologia da libertação, muitas igrejas católicas substituem a identidade de pobre (acionada nas comunidades eclesiais de base no Brasil) pela identidade de trabalhador imigrante. Isto os distancia da base de catolicismo popular, originária de parte das trajetórias destes imigrantes. Estas reproduzem a ideia de comunhão com o sagrado como parte de um sujeito coletivo. O ator básico que permite a referência ao sagrado é a comunidade e não o indivíduo. Na literatura sobre expansão do candomblé, tanto na America Latina quanto em Portugal, é ressaltada a capacidade plástica e altamente flexível da religião se adaptar a diferentes contextos e sociedades. Conforme vimos, essa expansão transforma o Brasil na “Meca” da religião, não relacionando esta a África como lócus produtor central de símbolos afro-religiosos. Devido à raiz comum do catolicismo popular brasileiro e do português, se torna possível um processo de adaptação e hibridismo destes aos cultos afro-brasileiros. Os portugueses, italianos e franceses de classe média dirigentes e frequentadores dos cultos afro-brasileiros são atraídos
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por aquilo que consideram a sua quintessência brasileira, pelo lado exótico do candomblé e pela proximidade que fazem ao panteão católico (Saraiva, 2010). Segundo Mauss, “quem fala são os deuses, que falam por suas bocas. Não são simples indivíduos, eles mesmos são forças sociais” (1981, p. 205). Nesse caso, para muitos europeus o “ser estrangeiro” é uma força que lhes confere poder (Segato, 1997): o poder da alteridade. Conforme relata Pordeus Jr. a capacidade de hibridismo, de bricolagem do candomblé o aproxima ao panteão católico português: Nalguns terreiros portugueses, a música dos atabaques é bem mais lenta que no Brasil, o ritmo é diferente, mais cadenciado, como no vira. Nos terreiros que não utilizam atabaques, somente canto e palmas, se fecharmos os olhos tem-se a impressão de estar perante a um ritual da igreja católica (2009, p. 148). Cabe ressaltar a importância da rede de relações familiares e de amizade na construção do processo migratório. Temos que considerar a ideia de família de santo e de parentesco simbólico. Muitos autores mostram o carisma e a tolerância dos cultos afro-brasileiros em relação às demais práticas religiosas, que não são excluídas do novo cotidiano religioso. Na Alemanha, por exemplo, a preocupação pode ser vista a partir da questão ecológica. Atualmente o candomblé no Brasil e no mundo se volta para uma apropriação romântica da ideia de natureza a fim de responder as demandas do atual discurso ecológico e ambiental (Machado e Sobreira, 2008). De que modo este discurso se aproxima de uma discussão presente e, digamos, moderna da mentalidade europeia sobre ambientalismo? As forças da natureza no candomblé são representadas por orixás que são também tão imperfeitos quantos homens e mulheres mortais. Essa concepção de mágico que correlaciona sagrado e profano e que os interliga à natureza se torna interessante para um imagi-
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nário, no caso alemão, que se construiu em torno das influências da chamada Lebensreformbewegung (movimento da reforma da vida).9 Dentre as influências mais sentidas por esse movimento temos, atualmente, o discurso ecológico na Alemanha e em vários países europeus, o que Castells nomeia por “o enverdecimento do self” (1999, p. 121). Segundo o autor, o fator que unifica os movimentos ambientalistas é uma temporalidade alternativa, que pede que a sociedade e as instituições aceitem a realidade do lento processo evolutivo de nossas espécies no seu meio-ambiente, sem um fim para o nosso ser cosmológico, enquanto o universo se expande desde o momento e o local de sua/nossa origem comum. Além das limitações do submetido tempo do relógio ainda vivenciado pela maior parte das pessoas no mundo, a disputa histórica por uma nova temporalidade ocorre entre a anulação do tempo nas redes de computação e a realização do tempo glacial na tomada de consciência de nossa dimensão cosmológica (cosmological self). Por meio dessa disputa pela apropriação da ciência, do espaço e do tempo, os ecologistas induzem a criação de uma nova identidade. Uma identidade biológica, uma cultura das espécies humanas como componentes da natureza. Esta identidade sociobiológica não implica em negar a cultura histórica. Os ecologistas respeitam as culturas folk e toleram a autenticidade cultural de várias tradições. Estas possíveis correlações não significam que os processos de hibridismo e transnacionalização da religião não sofram problemas e impasses em seus novos contextos nacionais. Estes problemas estão presentes nos vários processos de adaptação reli9 Lebensreformbewegung (reforma da vida) designa vários tipos de reformas presentes na Alemanha e na Suiça que foram iniciados em meados do XIX, decorrentes do romantismo alemão e que influenciaram algumas comunidades na virada de século. Movimento crítico aos excessos do industrialismo e aos males causados por este a saúde e ao corpo humano e que ratifica certo retorno a uma vida natural. Teve influência nos movimentos new age, hippie, na formação de comunidades alternativas e em várias formas de misticismo. Muitas das ideias deste movimento ressurgem atualmente no discurso ecológico, na agricultura orgânica e a um modo de vista autossustentável.
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giosa: as diferenças linguísticas (domínio da lógica do português e do yorubá), os objetos utilizados nos rituais que não são facilmente encontrados e a concepção de sacrifício presente em tais práticas religiosas que envolvem a morte de animais. O Xangô de Baker Street10 Uma das evidências de que o Brasil se tornou um país de emigração é a recente criação, junto ao Ministério das Relações Exteriores, da Comissão do Regimento do Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE) homologada, em 11 de novembro de 2010. Como informado pela nota à imprensa 637, de 29 de outubro, a criação do CRBE amplia o conjunto de ações que o ministério desenvolve com o objetivo de aprimorar a assistência consular e o apoio aos cerca de 3 milhões de compatriotas que vivem fora do Brasil. Foram criadas representações divididas em quatro regiões: Américas do Sul e Central, América do Norte e Caribe, Europa, Ásia, África, Oriente Médio e Oceania. Para cada uma das regiões foram eleitos quatro representantes e três suplentes. Não obstante o trabalho desta representação junto ao ministério, há de se ressaltar a importância crescente dos movimentos sociais e das militâncias locais. A formalização política ainda é recente neste fluxo migratório, que variam de acordo com as interações entre as políticas de governo brasileiro e os governos dos países receptores, e ainda não foi tema de investigação. Para além da recente estruturação do processo político, a objetividade da cultura está no corpo, na musicalidade e na religiosidade. São estes os espaços ocupados pelos brasileiros e consumidos como bens culturais pelos grupos receptores. Os brasileiros encarnam o que culturalmente seus corpos representam,
10 No livro escrito pelo humorista Jô Soares, Dr. Watson incorpora Xangô depois de tomar várias caipirinhas a fim de solucionar o caso policial do que trata o livro. Enquanto o delegado Mello Pimenta busca pistas, Holmes e Watson desembarcam no Rio de Janeiro sem saber “os perigos que os esperam”: feijoadas, caipirinhas, vatapás, pais de santo e o poder de sedução das mulatas locais.
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muitas vezes reforçando suas identidades sociais, mas também estereótipos dos outros sobre si mesmo.11 Religiões que a princípio os adaptariam a sociedade receptora, no caso as evangélicas e especialmente as neopentecostais, e não os tornariam “exotizados” (especialmente nos EUA), em outro país possuem forte marca étnica, sinal de brasilidade, e são associadas a uma fala de telenovela (especialmente em Portugal) e a uma língua que “invade o país e lhe fere os ouvidos”. Essas associações e exotismos novamente dependem das conexões históricas e processos sociais dos países envolvidos12 e muitas relações podem ser em alguns momentos subvertidas. A Iurd usa Portugal como porta de entrada da Europa e inverte, de certa forma, o tradicional fluxo metrópole-colônia. Mafra descreve esta inversão: Nas cruzadas de outros tempos (…) não é o centro que vai em direção da periferia para civilizá-la, organizá-la, retirá-la das brumas da decadência, mas são os moradores dos subúrbios das cidades, dos países de periferia que embarcam em aviões e navios para fundar templos, falar nas praças públicas, disputar espaços na TV, nos países do centro. A renovação agora vem das margens (2002, p. 36). A religião, além de renovar o campo religioso local, possibilita abertura social, implica com a intolerância do outro, abrindo suas portas para este outro ser convertido. 11 O estereótipo é uma forma de descrever o “outro” por meio de uma série de características generalizantes (habitualmente, depreciativas). A eficácia do estereótipo – exemplarmente descrito por Said (1995), como conhecimento que não conhece, mas se justifica como um conhecimento empírico – resulta na (e da) hierarquização do campo das alteridades, restando ao estereotipado um lugar inferior em relação ao estereotipador, quando o estereótipo é um consenso na sociedade que abriga os diferentes grupos. 12 Lembramos o caso do Coliseu do Porto em que muitas matérias de jornais portugueses (ver O Público) afirmavam que a Iurd fala a mesma linguagem das telenovelas. O sotaque ganha uma conotação de óbvia intenção de gerar uma emoção que engana, como nas telenovelas. O caso “Coliseu” foi um movimento de protesto que ocorreu no Porto, em 1995, quando membros da Iurd se envolveram na compra do local, fato considerado uma afronta, tendo em vista a importância do Coliseu. Brasileiros no mundo
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O trabalho é outro caminho para os processos de exotização, já que os lugares oferecidos pelo mercado de trabalho são relativos aos estereótipos: animadores, músicos, capoeiristas, dançarinos, jogadores de futebol e atendentes ao público em geral. Esse mercado varia de país a país, mas em grande parte é o mesmo (Machado, 2006). O trabalho no “mercado da alegria” se refere aos empregos que envolvem a animação e também o atendimento ao público, porque os empregadores europeus pressupõem que, de alguma forma, os brasileiros são mais adequados para qualquer profissão que exija o trato com clientes, por conta da simpatia, cordialidade e alegria que esperam de qualquer brasileiro. Como o trabalho da maioria está ligado às imagens essencializadas/estereotipadas do Brasil, os imigrantes procuram reforçar sua autenticidade enquanto brasileiros, articulando o jogo de centralidades. Quanto mais abrasileirados aparentarem ser, maior influência exercerão sobre os seus compatriotas e maior legitimidade ganharão entre os outros face aos quais se encontram em posição simbolicamente subordinada, já que os empregos são mais facilmente conquistados por “aqueles que sabem seu lugar”, ou seja, aqueles que se encaixam nos estereótipos sobre o Brasil. Diferentes exotismos são construídos e desconstruídos tanto pelos brasileiros quanto pelos outros. Espera-se deles que se ocupem artisticamente do corpo13 e dos sentidos, objeto de exotização dos brasileiros. O Brasil é o lugar do sonho, do tropical, da floresta, do desconhecido. Dos corpos em movimento e também de múltiplas identidades para além destas. Se por um lado buscam uma zona de conforto nas redes sociais para amenizarem as agruras do trabalhador migrante e clandestino, por outro buscam espaços de compreensão e resignificação da cultura do outro, reforçando ou se afastando de imagens que constroem a seu res13 De acordo com Machado (op. cit., p. 177) ideias sobre o corpo brasileiro “que são sempre exemplificadas pela ginga do jogador de futebol, pelo jogo de cintura das prostitutas brasileiras. A construção de um corpo, de uma forma de estar e agir, movimentar, olhar, pegar, é fundamental na construção de uma identidade ou de uma cultura. No caso de brasileiros ela é implacavelmente evidente”.
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peito e ainda promovendo novos arranjos identitários nas sociedades dos outros in “salsa american way”. Jenkins (1997, p. 14) afirma que a etnicidade é uma identidade social coletiva e individual, sendo externalizada na interação social e internalizada na autoidentificação pessoal. Em sua elaboração são eleitos elementos culturais que melhor expressam a identidade. Referências Gláucia de Oliveira Assis. Estar aqui, estar lá…: uma cartografia da emigração valadarense para os EUA. In: Rossana Rocha Reis e Teresa Sales (orgs.). Cenas do Brasil migrante. São Paulo: Boitempo, 1999. p. 45–85. J. Bahia. Brasileiros em Berlim: sociabilidades e identidades em construção. Trabalho apresentado no 34º Encontro Anual da Anpocs. Caxambu, Minas Gerais, 2010. Fredrik Barth. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa editora, 2000. José Gabriel Pereira Bastos e Susana Pereira Bastos. Portugal multicultural. Situação e Identificação das minorias étnicas. Lisboa: Fim de século, 1999. — Filhos diferentes de deuses diferentes: manejos da religião em processos de inserção social difererenciada: uma abordagem estrutural dinâmica. Portugal: Observatório da Imigração, 2006. Alfredo Bosi (ed.). Estudos avançados. São Paulo: USP, 2006. Maria das Graças Brightwell. Saboreando o Brasil em Londres: comida, imigração e identidade. In: Dossiê brasileiros em Londres. Revista Travessia. CEM, Revista do Migrante. n. 66, jan.–jun. 2010. Herausgegeben von Kai Buchholz, Rita Latocha, Hilke Peckmann e Klaus Wolbert. Katalog zur Ausstellung im Institut Mathildenhöhe Darmstadt. Darmstadt, 2001. Stefania Capone. A busca da África no candomblé: tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2004.
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Projeto Baía Limpa: um exercício de mapeamento dos resíduos sólidos pelo olhar dos pescadores Catia Antonia da Silva Felippe Andrade Rainha Alberto Toledo Resende
O projeto Baía Limpa ocorreu entre 5 de janeiro de 2009 e 5 de fevereiro de 2010. Foi protagonizado pelos pescadores artesanais, em destaque pelo pescador e presidente da colônia Z8, senhor Gilberto Alves, que a mais de uma década desejava ver o projeto em andamento. A articulação do saber acadêmico geográfico, relacionado com o conhecimento popular e o conhecimento científico, envolveu milhares de pescadores homens e mulheres e 16 pesquisadores para realizar uma atividade de coleta de resíduos sólidos na baía de Guanabara. Tinham como objetivo: 1 Monitorar quantitativamente e qualitativamente os resíduos sólidos na baía de Guanabara. 2 Mapear os resíduos sólidos na baía a partir do saber cotidiano do pescador. 3 Dar visibilidade social às condições de trabalho do pescador artesanal. O presente texto, pelo limite de suas linhas, apresentará a metodologia e os resultados da pesquisa. Introdução Princípios de cidadania e qualidade ambiental (qualidade de vida e trabalho) são direitos universais, direitos humanos essenciais, são as referências desse projeto. A metodologia do projeto fundamenta-se na pesquisa-ação, orientada por Thiollent (1985), que relaciona pescadores e pesquisadores, sendo os pescadores protagonistas. Trata-se referência fundamental para estabelecer os estágios de vivência, a relação ciência e conhecimento popular 118
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podem possibilitar melhoria das condições ambientais, de vida e de trabalho dos pescadores, cujo saber se dá pela oralidade, um saber passado por várias gerações. A pesca artesanal é de origem pré-colonial, anterior à urbanização e à industrialização brasileiras, remonta ao Brasil colônia e foi se readaptando às condições econômicas atuais do país. Trata-se de comunidades tradicionais que vem passando por um processo profundo de crise, precarização do trabalho e do ambiente de labor. A metodologia, portanto, baseia-se em princípios de tecnologias sociais, ou seja, na maior compreensão do ambiente por parte dos saberes dos pescadores, utilizando esses saberes em consonância com o conhecimento científico na investigação de campo. Também compreendem características e especificidades do ambiente da baía de Guanabara e a grande concentração de poluentes – destacando os resíduos sólidos – que são a referência de estudo da nossa pesquisa. Intenciona-se alterar visões das comunidades de pescadores e população vizinhas e envolver os mesmos em todo o processo da pesquisa. Criar condições de buscar novas iniciativas e melhorias nas condições de ambientais e, portanto, do habitat, tendo como referência a importância da atividade da pesca, referência de memória e de identidade, histórica e social. Logo no início de pesquisa, na fase de elaboração do projeto e antes da atividade ocorrer, foi iniciada a elaboração da logo referência do projeto, feita por um especialista em programação visual, mais orientada pela percepção, sentidos e referências simbólicas dos pescadores. Outra referência fundamental para a pesquisa consiste na compreensão do diagnóstico processual para a gestão ambiental. Na primeira fase da pesquisa, ficou notável que a existência de resíduos sólidos na baía deve-se a vetores de drenagem, tais como rios, ruas e nas praias. Esse material é deslocado pelas correntes marinhas e oscilações de marés dentro da baía, chegando até ao fundo da baía (Magé). Os principais vetores de comando são provenientes da Baixada Fluminense, São Gonçalo e Rio de Janeiro. O período de 12 meses, com acompanhamento dos pescadores foi possível ver o pré e pós-coleta, e estes espaços, após três Projeto Baía Limpa
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Figura 1 Logomarca do projeto – dezembro 2008. Figura 1 Logomarca dos projetos 2009–2010.
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Projeto Baía Limpa
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meses em média sem coleta, voltavam a acumular resíduos. Esse acúmulo acontecia apesar de algumas barreiras, como nas fozes de rios oriundos da Baixada Fluminense, porque nos dias de chuvas fortes com maior vazão, essas redes de drenagem fazem chegar grande quantidade de resíduos flutuantes e de fundo na baía. O projeto, portanto contribui também para a identificação de que a coleta é uma das etapas do processo de produção urbana dos resíduos que necessita de políticas públicas, ações processuais e mudanças de hábitos da população e alteração na legislação que atue e interfira da nos vetores geradores. Por isso que, reforçando aqui na seção de metodologia, o projeto original que tem como finalidade contribuir com a(s) melhoria(s) das condições ambientais da baía de Guanabara e da vida dos pescadores artesanais. Por meio de coleta de resíduos sólidos na baía de Guanabara, elaboração de radiografia qualitativa e quantitativa desses resíduos; de atividades que visem sensibilizar, com base na melhoria do ambiente, a sociedade e poder público; de instrumentos de visibilidade da atividade da pesca artesanal e das condições ambientais de trabalho, contribuindo para o fornecimento de subsídios para a elaboração de políticas públicas. A proposta tem a intenção de gerar um diagnóstico qualitativo e quantitativo dos resíduos sólidos na baía de Guanabara, feita com apoio de pescadores que contribuíram em todas as etapas da pesquisa, como a demonstração dos pontos e dos vetores de concentração, da coleta e do transporte. Trabalharam junto com a equipe técnica composta por pesquisadores graduados e estudantes universitários que monitoraram os trajetos, os pontos, mapearam o grau e os pontos de maior concentração de poluição. Esses diagnósticos contribuíram para maior compreensão do universo da problemática dos resíduos sólidos na baía de Guanabara. Estudos mais aprofundados sobre metais pesados e nível de indicadores bacteriológicos nos resíduos e nas águas da baía foram descartados pelo patrocinador, que apontou o desenvolvimento desses estudos em outras instituições ligadas diretamente a análise bioquímica de poluentes e que a inserção dos mesmos encareceria muito o projeto. Projeto Baía Limpa
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Resumo da metodologia prevista e executada no projeto original
sitiva a ser desenvolvida e apresentada por meio de um seminário aos conselhos legislativo de meio ambiente.
Retirada dos resíduos sólidos depositados no litoral (praias, manguezais, etc.) e de fundo e mensuração das etapas com a utilização de embarcações pequenas, que retiraram os resíduos sólidos do litoral, das ilhas e em alguns casos resíduos flutuantes. Foram previstos 1.152 pescadores, mas por motivo de problemas organizacionais da colônia Z12, seus pescadores não participaram do projeto, com isso, de fato foram cerca de 1.080 de pescadores, divididos em quatro grupos trabalhando uma média 3 meses cada. Os pescadores iam a campo três vezes por semana, coletando resíduos sólidos e trazendo aos pontos de coleta, onde o material depois de pesado, catalogado, fotografado (por amostragem) foram encaminhados às secretarias municipais de limpeza pública e as cooperativas de reciclagem patrocinadas pela Petrobrás. Os pontos de amostragem e embarque das atividades de campo foram: 1 Praia de Ipiranga (Mauá, colônia Z9); 2 Praia de Gradim (São Gonçalo, colônia Z8); 3 Área da colônia Z11; 4 Praia da Bica (Ilha do Governador, colônia Z10). O mapa a seguir mostra as dezenas de pontos de coleta de resíduos sólidos em praias, mangues continentais e ilhas e as áreas em que houve arrasto de fundo. Foi realizado também, de forma inicial, o programa de educação ambiental, a partir dos dados do projeto no colégio Carlos Maia, situado no município de São Gonçalo, bairro Porto Velho, área tradicional de comunidades de pescadores. Trabalhamos com quatro turmas do primeiro ciclo fundamental (em 2010) e o trabalho foi muito produtivo, pois identificamos a importância de, por meio da educação, de mudar olhares sobre o mundo e possibilitar outra postura frente a sociedade, o Estado e o meio ambiente, buscando compreender e buscar mecanismo de proteção ambiental, tal como a coleta seletiva, não jogar lixo nos rios, nas encostas e na baía. Foi realizada também uma agenda propo-
Resultados da pesquisa
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O período de atividade compreendeu de janeiro de 2009 a fevereiro de 2010, com três encontros semanais e, ao final deste período, foram contabilizados 734.208kg de material sólido, distribuídos em 90.540 sacos de 200 litros. Os pescadores da colônia Z8 retiraram 343.376kg com 50.106 sacos de 200 litros. Nas colônias Z10, praia de Tubiacanga (Ilha do Governador, Rio de Janeiro), foram coletados 88.834kg em 7.435 sacos de 200 litros. Nas colônias Z10/Z11, Ilha do Fundão (Ramos, Rio de Janeiro), foram coletados 127.043kg em 15.704 sacos de 200 litros. Na colônia Z9, Magé, foram coletados 174.955kg em 17.295 sacos de 200 litros. Características do material recolhido e áreas de atuação Observando pelo aspecto do barco, a maioria deles recebeu em média 12 sacos por dia de atividade, devido à limitação, tanto do transporte quanto da capacidade de queima da parceira “Usina Verde”, uma usina termoelétrica (protótipo) que funciona a partir da queima de resíduos sólidos cuja reutilização ou reciclagem não é possível. As áreas que tinham maiores quantidades de resíduos sólidos coletados no período de agosto de 2009 até fevereiro de 2010 foram: Coroa Grande, Carrefour, Ilha do Pontal, Manchete, praia da Beira, praia da Luz, praia das Pedrinhas, rio Imbuassú e rio Marimbondo (áreas de abrangência da colônia Z8); praia de Tubiacanga, praia do Galeão, Ramos, Catalão, Ilha do Fundão – cidade universitária, próximo do prédio da educação física da UFRJ (área de abrangência da Z11 e Z10)– morro Grande, praia de São Francisco, praia do Anil, rio Suruí e praia do Ipiranga, praia de Olaria, foz do rio Suruí e canal de Magé (área de abrangência da Z9). De acordo com cada área e respectivos períodos selecionamos as três principais áreas de concentração em cada ponto de coleta.
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Mapeamento dos dados
Análise qualitativa dos resíduos coletados
Os dados quantitativos foram tratados por meio do GPS e de programa de geoprocessamento, para serem georeferenciados. Foram construídos dois mapas. A seguir será visto o mapa que trata da localização dos pontes de coletas de resíduos sólidos apontados pelos pescadores e mensurados pelo grupo de pesquisadores.
A maioria dos resíduos coletados é de origem industrial – mercadorias de bens de consumo durável e não durável. São em sua maioria formados por garrafas pet, pneus, plásticos em geral (copo, boneca, cadeira, bacia, balde, vasilha de manteiga, entre outros), tecido (roupas, lençóis), latas (óleo, sardinha em lada, cerveja, refrigerante), garrafas de vidro (cerveja, aguardente) e sacos plásticos (supermercados, lojas). Encontra-se em menor escala resíduos perigosos – hospitalares: bolsas de sangue, agulhas e seringas.
Figura 2 Projeto Baía Limpa. Pontos de coleta de resíduos sólidos na baía de Guanabara.
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Figura 3 Atividade do projeto no campo, 2010.
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Considerações finais O presente texto apresenta somente uma parte muito limitada do projeto que, por envolver a experiência de troca de saberes do pescador e do geógrafo, ampliou em muito a nossa compreensão sobre o cotidiano, o território, o conhecimento coletivo vivido e aprendido a partir da oralidade e da experiência espacial. O projeto, neste sentido, constitui em pesquisa e extensão, com atividades de campo e de laboratório, de organização de pessoas e de dados, de captura de saberes, imagens e construção primária de dados analíticos. Trata-se de uma atividade na qual pensávamos e repensávamos o tempo todo o método dialético no sentido de permitir a compreensão de conflitos políticos, conflitos entre saberes e tensões do próprio cotidiano da metrópole fluminense, na sua relação com os poderes públicos e a percepção da sociedade urbana que veem a baía de Guanabara como “quintal dos fundos”, uma espécie de “espaço público invisível”. No entanto, para os pescadores artesanais que moram próximo, navegam e/ou pescam na baía, esta é seu lugar de abrigo e de trabalho, referência cotidiana, memória e território de auferir sua renda e sustentação familiar. Por isso, a visibilidade aos problemas da baía de Guanabara é tão vital para eles e é igualmente fundamental ao saber científico compreender essa dimensão que brilhantemente Milton Santos (1996) denominava de espaço banal (espaço de todos). Referências
Figura 4 Atividade do projeto Baía Limpa: acondicionamento e transporte do lixo marinho de São Gonçalo para colônia Z11, para a coleta feita pela comlurb-Rio, 2010. Figura 5 7kg de tampas de garrafas recolhidas no Catalão no dia 1 jul. 2009. Fonte: Jamylle de Almeida Ferreira Cezar.
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Adriana Bernardes, et al. O papel ativo da geografia: um manifesto. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales, n. 270. Barcelona: Universidad de Barcelona, 24 jan. 2001. Disponível em: . Feperj. Relatórios trimestrais de monitoramento. Niterói: Feperj/ Petrobras, 2009 e 2010.
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— Relatórios trimestrais complementares. Niterói: Feperj/Petrobras, 2009 e 2010. María del Carmen Francioni e Héctor Atilio Poggiese. Relocalización de la comunidad indígena pilquiniyeu del Limay: articulación institucional y planificación participativa de nuevos asentamientos para la población mapuche de la provincia de Río Negro, alcanzada por la represa Piedra del Aguila Viedma / Buenos Aires. Buenos Aires: Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales. out. 1996. Petrobras. Relatório de instalação do terminal aquaviário da Ilha Comprida: adaptações do Terminal Aquaviário da Ilha Redonda e Dutos de glp na baía de Guanabara. Rio de Janeiro: Petrobras, 2007. Michel Thiollent. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, Autores associados, 1985. Michael Storper e Anthony J. Venables. O burburinho: a força econômica da cidade. In: Clélio Campolina Diniz e Mauro Borges Lemos (eds.). Economia e território. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p. 21–56. Catia Antonia da Silva, et al. Projetos de modernização, território usado e metrópole do Rio de Janeiro: tendências da reestruturação produtiva na baía de Guanabara e seus impactos junto aos trabalhadores da pesca artesanal – desafios para a gestão urbana. In: xi Colóquio Internacional de Geocrítica. Buenos Aires, 2010.
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Metrópole e o movimento da sociedade
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A particularidade do Movimento Negro enquanto sujeito da história brasileira Andrelino Campos
Introdução Compreender a formação do sujeito não é – nem nunca foi – uma das tarefas fáceis na história socioespacial brasileira. Se, por um lado, os discursos qualificam os sujeitos hegemônicos por meio da história oficial; por outro, a desqualificação de todos e quaisquer movimentos populares acabam tornando esse movimento legítimo, visto que não se constrói oposição à ação hegemônica. Sem resistência, não há ponto de vista divergente, ocasionando movimentos convergentes. Os sujeitos tornam-se universais e o ativismo popular um particular invisível na história da sociedade brasileira. As lutas contidas nesses ativismos sociais, por exemplo, dos negros, dos sem-terra, do feminismo, são travadas por pessoas que, reunidas em dado momento da história, iniciaram e/ ou mantiveram um determinado interesse em assuntos que estavam (e continuam) fora de seu controle pessoal. Os espaços de resistência constituídos por estes grupos, dada a longa trajetória, necessitam ser examinados de forma direta para determinar a importância enquanto fazedores de história coletiva. Estes espaços de resistência constituídos pelos grupos subalternos sofrem pela invisibilidade, pela mudez, pela pouca acessibilidade ao mundo do trabalho, pela pseudoeducação progressista, pela saúde combalida e, fundamentalmente, associada a estes fatores a falta de importância social apenas reconhecido por aquilo que os grupos hegemônicos acreditam não ter importância. Ressalta-se o ativismo de negros ao longo da história brasileira, que vem, através da história socioespacial urbana, destacando-se no âmbito dos movimentos sociais pela longevidade da suas atividades, deixando de ser apenas um conjunto de pessoas para se tornar projeto de mudança da sociedade brasileira. 131
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Em função destes elementos, pergunta-se: como são formados os sujeitos? Qual é a importância da dimensão da particularidade em sua formação? Este ensaio será apresentado em duas partes: a primeira tratará da transformação da pessoa em sujeito do conhecimento e da história e a segunda parte levará em consideração ação do sujeito e a sua atuação do no urbano. Entre a pessoa e o sujeito do conhecimento ou a sociedade em movimento As expressões “somos todos iguais” ou “somos todos seres humanos” embutem uma pseudouniversalidade do sujeito, onde a história parece ser uma história comum. Contudo, ela não é tão comum: a universalidade como fenômeno não dita a história de todos, visto que cada um de nós, apesar de viver fora da reunião (Castoriadis, 1986), é na reunião com o grupo que aprendemos, tomamos consciência do “eu”, pessoa-para-si, do “outro” que em articulação com “eu”, torna-se pessoa-para-o-outro (Vaz, 1992) e das coisas. Desta maneira, a família, o grupo da escola, o trabalhador, o integrante de movimentos sociais (sindicalistas, movimentos semterra, sem-tetos), apesar de conter elementos da universalidade, possuem uma distinção, que se faz pela particularidade da família, dos grupos de escolas, da localização dos movimentos sociais que atuam no Brasil, distinguindo dos movimentos localizados em outros lugares. Se o sujeito da história tem seu princípio básico nesta, a história de todas as pessoas também é universal? Então, como os grupos se tornam e se reconhecem produtores da história na cidade e no campo? Como negros e negras podem ser sujeitos da história se não são sujeitos universais? Como encontrar diferença entre os movimentos sociais, se os tornamos universais? Estas perguntas não têm nenhuma possibilidade de resposta, se adotarmos os esquemas que produzem sujeitos no contexto da universalidade da história, seja ela brasileira, norte-americana, sul-americana. Precisamos de mediações para encontrar o ethos de cada um dos sujeitos responsáveis pela história. 132
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Se quisermos descobrir pretos e pardos como sujeitos da história, precisamos vê-lo em movimento com os outros sujeitos que produzem o espaço urbano. A passagem de indivíduo1 a sujeito tem algumas mediações que necessitam ser feitas para que se possa compreender melhor o movimento entre um e outro, para que, a partir de então, possa acontecer a relação com a sociedade. Apesar da tradição nos remeter a uma polissemia, a palavra indivíduo torna-se, dependendo de seu emprego, mais nebulosa do que esclarecedora. Etimologicamente, o termo deriva do latim e significa aquilo que é indivisível, uno, que não foi separado, mas o indivíduo-homem não se torna diferente do elefante ou de uma árvore isolada ou em uma floresta. Todos são únicos, portanto singulares. Segundo Elias, “Não há duvida de que cada ser humano é criado por outros que existam antes dele; sem dúvida, ele cresce e vive como parte de uma associação de pessoas, de um todo social – seja este qual for” (1994, p. 19). Contudo, mesmo no senso comum, capitaneada pela influência da biologia, fala-se em ser humano, que de alguma forma é para distinguir esse ser dos demais na dimensão do indivíduo. O primeiro nível de distinção é do indivíduo para indivíduo humano. Em qualquer situação, enquanto espécie, o indivíduo humano será diferente dos demais indivíduos, não havendo possibilidade de colocá-lo em qualquer esquema de natureza, sendo um passo da transcendência para construção de o próprio “ser”. Essa é uma das possibilidades de se constituir toda cadeia ascen1 Quando a literatura trata do tema sujeito e objeto, em geral, a referência é da indissociabilidade dos dois – Schopenhauer (2001); Castoriadis (1986); Elias (1994) e, de certa forma também Santos (2008) – é para reafirmar que não há possibilidade de um existir ou deixar de existir sem a presença do outro. Nesses termos, apesar das adaptações aqui e acolá, os autores referemse ao conhecimento, sendo então esse termo da indissociabilidade. No caso específico tratado por Santos em diferentes ocasiões, o que é relevante são os objetos materiais colocados na escala singular ou particular. Para que os objetos materiais (singular ou em sistema) possam se constituir em elemento fundamental para a análise, o movimento entre indivíduo-pessoa-sociedade precisa de estágios diferentes, para que o objeto passe a condição de representação. Isto não pode (e não deve) ser atributo do indivíduo humano, mas da pessoa em sua condição de existência na particularidade (Chaui, 1995; Schopenhauer, 2001; Castoriadis 1986; Elias, 1994). A particularidade do Movimento Negro…
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dente em movimento incessante e constante. Porém, apesar do Ser constituir-se em um abismo indecifrável, o indivíduo, ao se transformar em indivíduo humano, é vedada a condição de fazer o movimento descendente, por livre vontade, em direção à condição natural de tornar-se indivíduo como todos os outros. O movimento posterior ao estado de indivíduo humano, como dito acima, é constituído à medida que ele “é criado por outros que existam antes dele; sem dúvida, ele cresce e vive como parte de uma associação de pessoas, de um todo social – seja este qual for” (Elias, 1994). Esse movimento é a chave. Em movimento ascendente de transformação-alteração2 constante, de indivíduo humano-pessoa chega-se a possibilidade tornar-se sujeito, sendo que esse, segundo Castoriadis (1986) e Schopenhauer (2001), só ocorrerá pela história. Ainda de acordo com o primeiro, só aqueles (grupos) que constroem seus projetos poderão completar esse movimento. Expõe-se uma polêmica: onde poderão enquadrar-se os indivíduos que fazem o primeiro movimento de indivíduo a indivíduo humano e por condições biológicas e psicológicas não adquirem consciência de si nem dos outros? Como vamos tratá-los do ponto de vista conceitual? Diferente do tratamento que cada grupo ou sociedade lhe dispensa? Essa é uma questão polêmica, visto que, para ser considerada sociedade, a produção de preconceito, discriminação e segregação lhe é inerente, seja ela qual for, longe do que pretende Castoriadis (1986) quando disserta sobre a autonomia. Pelo estatuto “natural” da sua forma, homem é dado a si mesmo na complexidade das suas estruturas somática, psíquica e espiritual, do seu “estar no mundo” e seu “estar com o outro”, do seu abrir-se para a transcendência. A transição entre a forma 2 Entendemos que o movimento alteração-transformação tem fases distintas. A alteração diz respeito ao sentido, à posição, à situação entre outras possibilidades que se encontra o “ser”, ou o objeto, ou qualquer coisa que conhecemos. A transformação nos dirá se há permanência ou mudança do “ser”, do objeto, ou de qualquer coisa que conheçamos. No que refere à permanência, quando se trata de estrutura societária mais atrasadas, acredita-se que carregam fortemente as tradições, homens lentos (Santos, 2008), portando os movimento são pouco perceptíveis em comparação, por exemplo, com os atores que vivem espaços luminosos (ib.).
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natural dada, indivíduo da espécie humana, diferente de outras formas de vida, para “pessoa-para-si” que “está no mundo”, juntamente com outras “pessoas-para-o-outro”, deve ser ponto chave desse movimento. Este estágio, primário e singular, permite que as materialidades das coisas e dos objetos materiais, em conjunto com suas próprias materialidades, façam de suas existências uma existência concreta, visto que “pessoa-para-si” e objetos (isolados), ou considerados em seu conjunto (sistema de objetos), são elementos concretos. As pessoas, em suas singularidades, apenas utilizam as informações que são produzidas: cadeiras, carros, casas, ratos, elefantes, Joaquim, Rosi, Arion Abaáde, Pedro etc.; são designações que nos ajudam a reconhecer a todos e tudo, faz com que não criemos confusão. Contudo, que não esqueçamos, essas designações são herdadas e a recebemos quando somos inseridos no grupo maior do que nós mesmos, como apontam Vaz (1992), Elias (1994) e Castoriadis (1986). A “pessoa-para-si” ou “pessoa-para-o-outro”, apesar de suas condições de indecifrável tem, por meio de sua materialidade, uma única possibilidade ser tratada como indivíduo, como qualquer outro indivíduo. Nesta condição, não há como a “pessoapara-si” ou “pessoa-para-o-outro” transformar-se em indivíduo, mas cada um dos viventes é transformado em indivíduo para que possa ser mensurado, classificado, objetivado, entre outras possibilidades, portanto conhecível em toda sua totalidade, função que dificilmente poderá ser exercida para a dimensão da pessoa ou da sociedade, apenas cabendo ao individuo tal situação (Vaz, 1992, p. 213). Segundo o autor, o que faz a diferença entre indivíduo e pessoa, é que o primeiro pode ser desvendado em toda a sua extensão, enquanto a pessoa é inatingível em seu “ser”, seja qual for o esquema científico. Neste sentido, uma ciência da pessoa mostrarse-ia inexequível, pois a pessoa não pode ser aplicada a nenhum conceito operacional, construído segundo um modelo que a submeta a objeto ou a regras de experimentação a partir das quais se obtenham resultados indefinidamente repetíveis (ib., p. 213). Enquanto a razão dessacraliza tanto a natureza quanto o A particularidade do Movimento Negro…
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indivíduo na passagem à pessoa, o mesmo não ocorre na passagem de pessoa em sua transcendência cristológica e trinitária para um ser historico-social. Essa, segundo Vaz (1992, p. 206), será feita em dois movimentos: heurístico e normativo. O arquétipo teológico desempenhou uma função ao mesmo tempo heurística3 e normativa na configuração histórica da “experiência da pessoa” – que se tornou para o homem ocidental a experiênciafonte da sua autocompreensão –, sem a qual dificilmente poderíamos compreender o sentido profundo da preeminência da pessoa no centro do universo simbólico da nossa civilização. A função heurística, em primeiro lugar, foi sem dúvida a revelação da pessoa no mistério cristológico e trinitário que apontou para o núcleo essencial a partir do qual foi possível pensar a analogia entre a pessoa divina e a pessoa humana. Esse núcleo, no qual Deus é afirmado na profundidade inalcançável do mistério – e dessa profundidade irradia para o homem, envolvendo com um reflexo do mistério divino a intimidade inviolável da pessoa humana –, é constituído justamente pela “unidade de oposição”. Segundo esta, a pessoa se realiza no próprio princípio de inteligibilidade do seu “ser”, ou seja, na sua essência, a identidade paradoxal do absoluto “ser em si” e do absoluto “ser para outro”, assim como a pessoa divina se revela no mistério da encarnação e na circunsessão da vida trinitária. Esse foco primeiro de inteligibilidade da analogia da pessoa ilumina definitivamente o centro mais íntimo da natureza da pessoa humana que é – ou deve ser –, na unidade de um mesmo existir ou no movimento da sua realização, a inviolável identidade em si (estruturas) e a radical abertura para o outro (relações). Em segundo lugar, a função normativa que se dá na (e pela) história que foi desenvolvida na tradição ocidental, teve inicialmente como princípio a suposição de que somos todos constituídos “a imagem e semelhança do criador”, sendo este processo mediatizado pelo tema da imagem metafísica, fora da história humana. Neste sentido, o passo seguinte foi criar referências com esta 3 Conjunto de regras e métodos que conduzem à descoberta, à invenção e à resolução de problemas.
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norma, onde a ideia de pessoa passa a ocupar a centralidade do universo simbólico em nossa civilização. A pessoa enquanto “ser para o outro” (ou “pessoa-para-ooutro”), movimenta-se entre a singularidade e a particularidade, sendo que, na dimensão escalar da singularidade, encontra-se com outras “pessoas para si”, em reunião para se tornar “pessoa-para-o-outro”. Ainda nesta dimensão, por meio do corpo de cada “pessoa-para-si”4 em reunião com outras e os objetos materiais (isolados ou em sistemas), a relação é estritamente concreta. Desta forma, são absorvidos os fluxos enviados da particularidade pelo sujeito por meio da ação de “pessoa-para-o-outro”. É nesta dimensão da relação que acontecem as mediações entre tudo que pertence ao imaginário social – mitos, lendas, conceitos, compreensão de si e dos outros, ou seja, tudo que faz parte do sistema simbólico e seus desdobramentos – para a “pessoa-para-si”. Contudo, a existência desse movimento só pode ocorrer dessa maneira em função do sujeito, mediador entre a particularidade e a universalidade, que ratifica os fluxos de todo imaginário social para moldar a sociedade. Se a sociedade, o sujeito e a pessoa são inatingíveis em função do que Castoriadis (1986) estabelece como abismo, não sendo possível nenhuma operação ou estudo para desvendá-las, então como se operam as estatísticas populacionais? O movimento que se faz é descendente, torna-se o sujeito em pessoapara-o-outro, desta em pessoa-para-si, onde são encontradas as possibilidades da não reunião. Mas, ainda assim, enquanto pessoa-para-si ainda não há como desvendá-la, sendo necessário ainda o movimento derradeiro, torná-la individuo humano. Enquanto indivíduo humano, existe a possibilidade de ser mensurado, compreendido em grandes conjuntos matemáticos, ser contado, transformado em parte, 1⁄3, quase todos: portanto constitui uma totalidade. Nesta dimensão, não há história e nem há lugar, portanto não se pode falar da dimensão do tempo, nem de espaço, nem tampouco de sociedade. 4 Adiante, a corporeidade será tratada como uma dimensão importante para constituir o lugar. A particularidade do Movimento Negro…
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A “pessoa-para-si” – em sua singularidade – inicia a mudança ao se movimentar com outras “pessoas para si”, tornando-se então “pessoa-para-o-outro”. Neste estágio de transformação, a escala da singularidade inicia seu movimento para a particularidade, tendo como lastro o movimento das pessoas. O fato de constituir-se em “pessoa-para-o-outro”, no limite superior da singularidade, necessita de alguns atributos que os distinguem de atividades ocasionais. Quando as torcidas de grandes times de futebol se movimentam para os estádios em dias jogos com rivalidades extremas, confrontam-se aqui ali, provocando mortes, quebra-quebras em transportes públicos, patrimônios públicos etc. Algumas horas depois da partida, contam-se prejuízos e as mortes, situação essa que exemplifica bem o estágio de fraqueza da reunião da “pessoa-para-o-outro”, onde o passo seguinte é retorna à escala da singularidade de cada um dos participantes. Outra situação bem diferente é quando pessoas se movimentam em protesto contra a violência policial, o descaso com a educação, a saúde pública ou outras ações de cunho mais político, constituindo em possibilidade real de se tornar a frente em ativismo social. Com esta perspectiva, Souza (2006, p. 280) reconhece que há dificuldades em distinguir entre os diferentes ativismos urbanos, em função de suas práticas. Neste sentido, dirá o autor, há de se fazer uma distinção entre “ativismos urbanos stricto sensu e ativismo urbano lato sensu”. Os primeiros, em sentido forte, giram muito e explicitamente em torno de problemas diretamente vinculados com as práticas socioespaciais, como, por exemplo, o acesso aos equipamentos de consumo coletivo e, mais abrangentemente, às condições de reprodução da força de trabalho que assumem importância central nesta relação. Por outro lado, os ativismos urbanos lato sensu, “em sentido amplo e fraco, são aqueles que, embora tenham as cidades como seu palco preferencial (e, às vezes, quase exclusivo), se referenciam apenas indiretamente pela espacialidade urbana. Sua existência gravita em torno de questões ‛setoriais’ (melhores condições de trabalho e resistência contra a exploração e a opressão na esfera da produção, luta contra a desigualdades e injustiças
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de gênero etc.)” (ib., p. 281). Estes ativismos sociais permanecem enquanto tal quando as ações são regulares, mas não têm como base o tempo histórico que possa ser reconhecido como importante do ponto de vista social. Mesmo sendo importante em suas posturas, ainda não podem ser reconhecidos como movimento social em seu sentido stritu, como, por exemplo, o movimento sem-terra, movimento negro, sindicatos de trabalhadores que, um dia, reuniam “pessoas para outro”, mas não podiam ser classificados no sentido forte. Desta forma, podem ser classificados no nível intermediário da particularidade. Entre uma escala e outra (particularidade/universalidade), na ação da “pessoa-para-o-outro”/sujeito/sociedade, são criadas/ produzidas uma gama de elementos que compõem o sistema simbólico, a emoção e todo tipo de sentimentalidade que interfere na compreensão dos objetos que fazem parte do mundo material, inclusive de “si mesmo”. Na relação espaço-temporal, os eventos se sucedem dentro de alguma lógica que envolva a cronologia entre diferentes elementos: sujeito da ação,5 as representações do objeto e/ou do sistema de objetos materiais. Neste caso, para a dimensão espacial, o lugar ocorre pela copresença da “pessoa-para-si” e da “pessoapara-o-outro” na escala singular juntamente com os objetos mate5 Quer se colocar em discussão a denominação de Santos (2008, p. 61–87) “sistema de ação”. No primeiro momento, é necessário apontar a ação (capacidade de mover-se, de agir; movimento, funcionamento). Essa perspectiva diz respeito ao sujeito. Contudo, quando vamos examinar o sistema de objeto também, segundo Schopenhauer (2001), tanto na sua singularidade como inserido em contexto mais amplo, a sua essência é a atividade. A explicação mais geral, de acordo com o autor, é a existência da substância, fundamento para a existência da matéria. Sem movimento, não há substância, sem substância não existe matéria, sem matéria não há objeto. Como, de acordo com que acreditamos, não há como rediscutir o princípio da matéria, é mais prudente propor novos entendimentos no que concerne à relação entre o sujeito da ação / sistema de objeto com intuito de reduzir sensivelmente as contradições existentes no sistema de ação / sistema de objetos de Santos (2008). Lembrar que esta discussão precisará ainda de muita reflexão para que possa chegar ao bom termo para a aceitação razoável. Voltaremos ao tema em outros momentos.
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riais, mas, de certa forma, essa relação não poderá ser constituída por meio de a priori, visto que ela é histórica. O lugar, de acordo com Silva (1988), é a maior e a menor dimensão em que pode ocorrer o evento (social-histórico e/ou “natural”). Neste sentido, ele não é apenas lócus, mas onde são abrigadas as pessoas e tudo que as cercam, incluindo neste o sistema simbólico que é atribuído ao que se conhece. Desta forma, tempo não é simplesmente tempo, por que o lugar não é lugar de todos os seres, mas apenas de “pessoa-para-si” em reunião consubstanciada de “pessoa-para-o-outro”. Tal movimento se desdobra em história da relação de uma pessoa com as outras, possibilitando cumprir a transição entre a singularidade e a particularidade (“pessoa-para-si” e “pessoa-para-o-outro”). É nesta dimensão do tempo que ocorre o movimento que caracteriza o esquema da sucessão. Castoriadis nos dirá que: “O que se dá em (e pela) história não é uma sequência determinada do determinado, mas emergência radical, criação imanente, novidade não trivial. É isto que manifestam tanto a existência de uma história in tato como aparecimento de novas sociedades” (1986, p. 220) e de novas pessoas e a fabricação também de novos indivíduos humanos. A sucessão6 enquanto processo temporal é responsável pelo cotidiano das pessoas em suas singularidades, pois de certa maneira as submetem a rotinas repetitivas, cortadas muito eventualmente pelo inesperado. Ou seja, em geral saímos pela manhã para nossas atividades e, em algum momento do dia esperamos voltar (sem que tenhamos nenhuma surpresa). Sobre o tema, recorremos a Karel Kosik (1976, p. 68–71), quando afirma que a vida cotidiana é antes de tudo organização, dia a dia, da vida individual dos homens; a repetição de suas ações vitais é fixada na repetição de cada dia, na distribuição do tempo o em cada dia. Na cotidianidade, tudo está ao alcance das mãos 6 A sucessão, nesse esquema proposto pelo autor, encontra a diacronia, visto que naquilo que trabalha a diacronia, horizontalidade e a corporeidade no contexto do lugar. Parte desta relação será tratada neste texto, enquanto a referente às horizontalidades/verticalidades como dimensão da espacialidade e diacronia/sincronia, pertencentes ao tempo serão abordadas em outra ocasião.
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e as intenções de cada um são realizáveis. Por esta razão, ela é o mundo da intimidade, da familiaridade e das ações banais. Assim, como a sucessão/cotidiano expressam a organização de atividades das pessoas, a dimensão espacial que melhor representa é o lugar, onde as práticas espaciais podem ganhar ritmo de acordo com o tempo. Ainda pensando a não-relação do cotidiano e da história, o autor entenderá que a guerra é a história. No choque entre a guerra (a história) e a cotidianidade, a cotidianidade é dominada: para milhões de pessoas cessa o usual ritmo de vida. Mas também a cotidianidade dominará a história: até a guerra tem a sua própria. No choque da cotidianidade com a história (com a guerra), no qual a (primeira) cotidianidade foi destruída e a outra (a nova) ainda não se formou, porque a ordem da guerra ainda não se estabilizou bem como ritmo de ação e de vida – habitual, mecânico e instintivo. Neste vácuo se descobre o caráter da cotidianidade e da história e, concomitantemente, se revela o seu relacionamento recíproco. Essa possibilidade que permite ao autor afirmar que história não pode ser (e nunca será) uma repetição. Como na guerra que rompe a cotidianidade, cortada pela simultaneidade da primeira. Exemplificando: João sai de casa para ir ao trabalho. Para que chegue ao trabalho, ele fez uma série de movimentos sucessivos em tempos/espaços diferentes. Sem levar em conta a dimensão do devir, apenas executou os movimentos, como acordar (em algum lugar), ficar sentado (na cama ou algo que o valha), levantar-se (nesse e desse lugar), andar (…) sair de casa (lugar) chegar ao trabalho (lugar). Há sempre a indissociabilidade entre espaço/tempo, ou, melhor dizendo, entre o cotidiano/lugar7 para a pessoa. 7 A dimensão da sucessão/simultaneidade não deve (e não pode) ser considerada sem a sua dimensão espacial, horizontalidade/verticalidade do fenômeno. Santos (2008, p. 284) diz: “As segmentações e partições presentes nos espaços sugerem, pelo menos, que se admitam dois recortes. De um lado, há extensões formadas de pontos que agregam sem descontinuidades, como na definição tradicional de região. São as horizontalidades. De outro lado, há pontos no espaço que, separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da sociedade e da economia. São as verticalidades. O espaço se compõe de uns e de outros desses recortes, inseparavelmente”. A particularidade do Movimento Negro…
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Porém, se João tem família, ela também, em movimentos sucessivos de cada “pessoa-para-si”, torna-se movimento “pessoa-para-o-outro”, então de uma simples sucessão de tempo, cotidiano/lugar singulares, sucessão de tempos cotidianos/lugares singulares, transformam-se em história particular de uma família. A dimensão de “pessoa-para-o-outro”, constituída no contexto da família de João, ou seja, o estado de reunião, é a simultaneidade espaço/tempo, possibilidade de encontros em que ocorre a história de alguém em dado lugar. O trabalho de João, a situação é também de encontro, de reunião de múltiplos tempos/espaços e de múltiplas “pessoas para si”, tornando-se na reunião “pessoa-para-o-outro”. Neste sentido, o esquema da sucessão (cotidiano) torna-se esquema da simultaneidade. Assim, a dimensão espacial, também em movimento, transforma-se, mesmo que seja apenas pelas mudanças de lugares, visto que cada “pessoa-parasi” tem história e lugar singular. Os movimentos sociais negros e a produção de sujeitos no espaço urbano Todas as mulheres, homens, estudantes, professores, escolas e movimentos sociais são fatos universais que não há como determinar nem lugar, nem história. Nesse caso, o sujeito é difuso, por isso, o conhecimento produzido por eles, também é difuso. Para que possamos entender a ação do sujeito em toda a sua extensão, é necessário compreendê-lo em escalas menores: as particularidades. Nesta escala, as práticas socioespaciais dos sujeitos tornam mais próximos dos eventos, ou seja, de suas histórias e das dimensões espaciais onde ocorrem os fenômenos. Desta maneira, podemos distinguir os movimentos sociais de escala local, regional, ou continental sem que tenhamos generalizar atuação de cada grupo pela dimensão da universalidade. É, neste sentido, que podemos compreender os movimentos sociais urbanos de negros, das mulheres sem-tetos do Rio de Janeiro, dos professores públicos de Araruama, dos alunos das escolas públicas de Vassoura que, pela suas atuações, possuem 142
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algumas particularidades que não repetem em parte alguma. Alguns elementos da universalidade, como o caso dos movimentos sociais, são transferidos dessa à particularidade (e vice-versa). Contudo, outros elementos são retidos na escala da particularidade para serem compreendidos em toda a sua extensão. Ao pensar “pessoa-para-si” em movimento para a reunião com “pessoa-para-o-outro”, permite que as diferentes associações não se repliquem, visto que os grupos constituem metas distintas para viabilizar a sua reunião. Por exemplo, o sindicato de metalúrgicos do ABC paulista convoca uma greve de seus trabalhadores associados, ao mesmo tempo em que sindicato de metalúrgicos de Berlim, apesar da universalidade de ser sindicalizado metalúrgico, as pautas de reivindicações se aproximam aqui e acolá, mas cada qual terá as especificidades pelas quais serão identificados como metalúrgicos do ABC paulista, diferentes dos trabalhadores de Berlim. Cada grupo precisa, desta maneira, de particularidade (ou melhor, de particularidades). A particularidade, enquanto movimento social urbano, age no espaço geográfico recortado no território, pois além das hierarquias, encontramos fortes correlações de conflito. Porém, a “pessoa-para-si” e a “pessoa-para-o-outro”, sobretudo a primeira, tem como campo de atuação inicial o lugar, onde é encontrando a dimensão do tempo da cotidianidade, Neste sentido, por meio da corporeidade da “pessoa para si” articulada com o sistema de objetos materiais cria-se identidade singulares para si. Isto é o lugar. Como cada “pessoa para si” tem história e localização, a relação irá acontecer primeiro consigo mesmo, para depois ocorrer “pessoa para o outro” e, posteriormente com as coisas e objetos isolados ou articulados – sistema de objetos (Santos, 2008). A relação inicial é da “pessoa para si” consigo que é resultado da sua corporeidade. Assim, a noção de corporeidade: (…) mais que a materialidade do corpo, que o somatório de suas partes; é o contido em todas as dimensões humanas; não é algo objetivo, pronto e acabado, mas [um] processo contínuo de redefinições; é o resgate do corpo, é o deixar fluir, falar, viver, escutar, permitir ao corpo ser o ator princiA particularidade do Movimento Negro…
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pal, é vê-lo em sua dimensão realmente humana. Corporeidade é o existir, é a minha, a sua, é a nossa história (Polak, 1997; apud Scorsolini-Comin e Amorim, 2008, p. 208). Aceitando que tudo se encontra em movimento, representado em larga medida pela história, entendemos que a corporeidade se faz pela ação de corporificação do ser em sua materialidade, sendo a primeira responsável pelas imaterialidades que dão sentido ao segundo movimento, a corporeidade. Em uma visão mais complexa, Kolyniak (2008, p. 338–339), em artigo publicado pós-revisão de Scorsolini-Comin e Amorim (2008), definirá a noção de corporeidade da seguinte maneira (comentários do autor entre colchetes): Nascemos como corpo, em torno do qual e com o qual construir-se-á uma história pessoal, inserida na história familiar e cultural. Desde o momento do nascimento, o corpo vaise conformando como corporeidade, por meio da atividade [movimento] e da consciência. Por meio da ação [que também é movimento] e da percepção multissensorial (visão, audição, tato, gustação, olfato, cinestesia, propriocepção), aprendemos a perceber e a sentir. Esse processo vai se desenvolvendo ao longo de toda a nossa vida, no processo continuo de humanização, no convívio social. A corporeidade pode ser observada tanto na forma [aparência?] como em seu movimento, expressividade, postura, em seu padrão estético e, em especial, nos significados e valores a ela atribuída. Assim como em Scorsolini-Comin e Amorim (ib.), Kolyniak (2008) pensa que o sentido de corporeidade diz respeito ao movimento desde indivíduo humano até a “pessoa-para-si”, contemplando a relação em todas as outras dimensões. Cada família, escola, empresa, ativismo social (sindicatos, movimento social contra a propriedade rural e/ou urbana, associações de vários matizes etc.) têm histórias e lugares ditados pela “pessoa-parao-outro” em reunião. Contudo, nem todos os grupos se constituem em sujeito do conhecimento e da história. É continente que 144
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tenham projetos, nos termos como nos ensina Castoriadis (1986), em que a “pessoa-para-o-outro” se reúna para alcançar um dado objetivo e que seja historicamente demarcado pela ação. Não é qualquer encontro que cumprirá esse objetivo, são os grupos que tem a vontade de mudança e, pela sua disposição, rejeitam a condição do movimento alteração-transformação da permanência, como, por exemplo, a escola, a família, igreja, o Estado constituído, sindicatos legitima e são legitimados pelo capital. Para entender a preocupação, seguimos Souza (2006, p. 273) quando afirma que: A expressão “movimento social”, que soa simpática à maioria dos ouvidos dos acadêmicos, notadamente àqueles minimamente educados para apreciar o protagonismo popular e as abordagens críticas do status quo capitalista/heterônomo, tem sido usada de numerosas maneiras. No Brasil, em particular, onde a literatura sobre os movimentos sociais urbanos produzida nos anos 70 e 80 [século XX] caracterizou-se fortemente por empirismo e escassez (ou rarefação analítica) de referenciais teóricos, além de inconsistência e pouco vigor políticofilosófico (simpatia um pouco ingênua por quase quaisquer “movimento popular urbano”), praticamente “tudo” passou a ser denominado movimento social: de uma organização paroquial e puramente reivindicatória de bairro ou favela, às vezes até criada e/ou manipulada por políticos clientelista, até organizações e mobilizações muito mais abrangentes, contestatórias e capaz de contextualizar os problemas urbanos dentro da preocupações com a política e a economia em escalas supralocais. As diferenças foram pouco ou muito pouco estudadas, balanços sóbrios do alcance e das contribuições dos movimentos raramente foram feitos e análises sensíveis e “realistas da dinâmica e do significado próprio de cada situação singular foram prejudicadas por prejulgamento teórico e wishful thinking político (inserção do autor entre colchetes). Essa longa citação espelha que o autor entende que a reunião, sobretudo no espaço urbano, não constitui movimento social, A particularidade do Movimento Negro…
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mas necessita ter radicalidade e predisposição da alteração-transformação da mudança, estabelecendo o conflito. O recorte espacial estabelecido no urbano será o território onde o sujeito fará a sua história. Entendemos, ainda de forma muito preliminar, que o sujeito acontece em duas dimensões: 1.1 Na universalidade, onde são constituídas as histórias dos grupos hegemônicos que, na disputa de sentido da existência humana, difundem, quase sempre, a homogeneidade na formação do conhecimento e da história, não reconhecendo ou invisibilizando a atuação de outros segmentos sociais. 1.2 Os discursos sobre a verdade, sobre a vida; ou, ainda, sobre tudo que possamos imaginar está contido de acordo com o sistema simbólico assentado por aqueles que acreditam dominar a estrutura de classe social. 1.3 Observa-se que estas verdades só passam a ter efetividade à medida em que os grupos não hegemônicos as legitimam por meio de sua ação não contestatória. 2.1 A formação de sujeito na dimensão da particularidade só pode ser entendida na relação direta com a totalidade da universalidade. 2.2 Como a toda totalidade é vedada atuação homogênea, para tanto, é necessário que ela (universalidade) seja constituída de partes, onde podemos explicar a existência da particularidade e dos sujeitos particulares. 2.3 Por isto ser metalúrgico (universal), tem algumas diferenças de ser metalúrgico brasileiro ou metalúrgico berlinense, para tanto precisamos distinguir a relação espaço/tempo entre os brasileiros e os berlinenses. 2.4 A diferença da atuação do sujeito não se faz pela universalidade, mas pela sua particularidade. Os movimentos sociais, nos termos compreendidos por Souza (2006), tem o caráter da radicalidade e continuidade histórica. Também pela natureza de sua atuação e disputa de projeto de sociedade, tem como recorte espacial privilegiado o território,8 8 Ver Campos, França Filho e Fernandes (2010), quando tratam da dimensão socioespacial do agir da pessoa ao sujeito.
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sendo que este também é transferido a “pessoa-para-o-outro” quando considerado como ativistas sociais. Apesar de não estar explicitada a disputa de projetos de sociedade, existem interesses conflitantes entre diferentes grupos sociais, sobretudo na reunião de “pessoa-para-o-outro”. Neste sentido, como particípe da “inauguração do novo” Castoriadis (1986), a “pessoa-para-o-outro” não vive o cotidiano, pois tem como localização privilegiada o território. Por outro lado, para um grupo de pessoas reunidas em manifestação religiosa, apesar da reunião, o recorte espacial privilegiado é o lugar, pois o movimento anterior, “pessoa-para-si” advém das práticas socioespaciais individuais. Desta forma, propomos um quadro-síntese (na p. 148) da relação entre sujeito e recorte espacial de atuação. A representação que sai e volta à pessoa em sua singularidade de forma continua, tem como princípio a reunião de “pessoas-para-o-outro”, caracterizando-se o primeiro estágio da particularidade. Nesta dimensão, o movimento seguinte é a transformação do conjunto de pessoas em sujeito. Neste sentido, a produção de representação tem movimento entre a “pessoa-parasi” (em sua vida concreta com objetos concretos) ao sujeito criador de representações. A vida real da pessoa em sua singularidade (lugar/cotidiano) alimenta (e é alimentada) pela representação criada no âmbito da experiência sócio-histórica do sujeito. É justamente nesse nível que a relação espaço-tempo pode ser constituída. Desta forma, os lugares e suas histórias tornam-se uma redução da realidade, uma inversão da lógica, visto que são as pessoas que fazem o lugar, com todo o sistema de objetos presentes. Neste sentido, a pessoa/cotidiano/lugar ocupa a escala da singularidade; enquanto a reunião de pessoas (como possibilidade de encontros, simultaneidade) transita entre o lugar/cotidiano e o território/história (particularidade). Pois, neste movimento, a reunião de pessoas pode também se converter em movimento para o se tornar sujeito e ainda assim continuará na particularidade. O sujeito, nesta escala, guarda uma especificidade que o diferencia de outros sujeitos, mas interage com a universalidade permitindo que o reconheçamos como parte do sujeito universal. Por exemplo, ser trabalhador metalúrgico (universalidade, em A particularidade do Movimento Negro…
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Sujeito
“Pessoa-para-o-outro”
“Pessoa-para-si”
Explicado pela corporeidade em seu movimento descendente, a “pessoa-para-si” tem relação direta com o lugar – constituído pelo sistema de objetos (Santos, 2008) e sistema simbólico – para que possa juntar-se a outras pessoas e constituir-se em “pessoa-para-o-outro”, seja como ativista social de alguma causa ou interesse coletivos, seja como massa que se desloca para atingir um determinada posição geográfica ou situação social. A particularidade do Movimento Negro…
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Tabela 1 Base de atuação e os recortes socioespaciais da pessoa ao sujeito.
Nas dimensões espacial e territorial, os elementos da história são percebidos em quase toda parte. Contudo a história não pertence a todos os sujeitos, mas aos grupos hegemônicos e legitimados pela dimensão da “pessoa-para-o-outro” sem projeto de transformação radical da mudança. Movimento ascendente de “pessoapara-o-outro”, na condição de ativista social se coloca na posição/ situação da transformação social, política e espacial. A temporalidade da ação, inscrita na (e da) história é que permitirá a construção do sujeito nesta escala. Os valores da universalidade transitam na particularidade sendo aceitos aqui e acolá, mas também são rejeitadas para que a particularidade se torne alvo de identidade única, pois na dimensão da universalidade, vivese a dimensão do geral.
Universalidade Particularidade Singularidade
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quase todas as partes do mundo reconhecemos um metalúrgico); ser trabalhador metalúrgico brasileiro (existe um qualitativo: brasileiro, portanto uma particularidade). Observe que não estamos tratando ainda do ativismo social, apenas que apontando que, enquanto trabalhador, se diferencia nos termos de ser trabalhador metalúrgico; que é diferente de ser trabalhador metalúrgico brasileiro (universal para o particular). Ao tratar do sujeito universal / sociedade / tempo / espaço encontramos uma conjunção de imaterialidade que só pode ser apreendida de forma conceitual, por isto a sua universalidade (ver tabela ao lado: “Base de atuação e os recortes socioespaciais da pessoa ao sujeito”). Neste sentido, a atuação dos contingentes negros na história permite afirmar que, estes, em sua ação coletiva, ao longo da história, tem atuado no sentido de mudar/contestar a história hegemônica e produzir conhecimento sobre si mesmo e sobre os outros. O ativismo negro, desde o Brasil colonial, passando pelo império, até a república, vem buscando uma sociedade diferente daquela em que vivemos. O fato marcante é que, ao longo de muitos anos de história, o negro e o ativismo negro (enquanto movimento social urbano) tornaram-se objeto do conhecimento de outros. Pesquisadores (e os grupos hegemônicos em diferentes situações) interpretam e fizeram dos negros e seus ativismos sociais objeto de seus conhecimentos. Entretanto, esta postura não reduziu a força constitutiva desse sujeito. A reação é sempre presente na história, seja por meio da ação quilombola,9 seja pela via dos movimentos sociais. Para que se possa destacar atuação diferenciada na dimensão de “pessoa-para-o-outro” no movimento para se constituir em sujeito, Cardoso (2002, p. 27), escreve que: 9 Um bom exemplo deste ativismo, ver Campos (2010), é quando se faz a trajetória da estrutura quilombola até produção do das favelas. Ao contrário dos quilombolas, este autor irá considerar que a dimensão da segregação socioespacial, uma das dimensões do espaço urbano brasileiro, é despolitizada, pois o deslocamento dos pobres em direção a tais espaços são isolados (ver Campos, 2006). Mesmo que parte significativa da população de uma dada favela seja negra, este aspecto é invisibilizado pela condição da pobreza. Desta forma, criam possibilidade de “despolitizar” a ação de morar e ser negro invisibilizado em prol de ser pobre – análise pelo “viés” economicista (ver Campos, 2007). A particularidade do Movimento Negro…
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No período anterior a abolição da escravatura, homens e mulheres negros escravizados, encontraram inúmeras formas para confrontar com a classe dos senhores de escravos. Entre algumas dessas, podemos destacar o banzo – espécie de greve de fome –, o assassinato individual do senhor pelo escravo, a fuga isolada, o aborto praticado pela mulher negra escrava, o suicídio, a organização de confrarias religiosas, manutenção das religiões africanas, as guerrilhas e insurreições urbanas: Alfaiates, Balaiada (1838–1841), Cabanagens (1835–1840), Farroupilha, Revolta da Chibata (1910), Malês (1835), Carrancas (1833). Em nosso entendimento, nem todas as revoltas são exclusivas de negro, mas contaram com participação deste contingente, pois o interesse extrapolava as lutas de pretos e pardos. Um exemplo desta parceria é Alfaiates, uma revolta de cunho nativista em 1798 teve a participação de negros, mas não pode ser creditado aos ideais contestatórios como os quilombos. Da mesma maneira, a Praieira (1848) e Farroupilha (1845) têm a mesma classificação das Sabinadas (1837): revoltas regionalistas que buscaram lutar contra o sistema imperial. Em contexto, a Revolta da Chibata, posterior a proclamação da república, é de responsabilidade dos marinheiros que lutavam contra a situação desumana a que eram submetidos pelos superiores da marinha, mas apenas contavam com participação de negros. Entretanto, cabanagens, malês, irmandades religiosas e estruturas quilombolas (rurais ou periurbanas, de resistência ou abolicionistas) são lutas libertárias, em favor da libertação de escravos. Quilombo, sobretudo o dos Palmares, passou ao imaginário de toda população de descendentes de escravos e, por meio da tradição oral, transpôs barreiras de gerações. De acordo com Cardoso (2002, p. 75): No final do século XIX, o quilombo já significava reação contra todas as formas de opressão. Sua mística povoava o sonho, o imaginário coletivo de milhares de escravos nas plantações e em diversas outras atividades econômicas. Mui150
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tos quilombos organizavam-se, dentro desse contexto ideológico, onde as fugas implicavam numa reação ao colonialismo. Já existia naquele momento a tradição oral ao lado de referências literárias da experiência quilombola do passado. A instituição quilombo, pelo que representou ao longo de três séculos, livre, com designação paralela ao sistema dominante, é o que irá alimentar os anseios de liberdade de parte do povo negro e outras pessoas que se sentiam oprimidas pelo julgo colonial/imperial. Essa passagem de instituição em si para símbolo de resistência inaugura ideologicamente o movimento de espírito de combate à opressão do século, às vezes mais evidente, outras latentes, sem grandes assunções. A longa duração de luta contra a opressão – quase sempre sem aceitar, nem propor negociação para amenizar as lutas – faz com que os negros passem a história na condição de sujeitos e prontos para ingressar no pós-abolição. Contudo, os termos da luta mudaram, outras formas de lutas necessitavam ser criadas. Um dos problemas que foi percebido é que, nos primeiro 40 anos da república, os negros desapareceram do cenário político, intelectual e administrativo do país, da mesma maneira que relatado acima. Eles participaram, mas perderam a centralidade do movimento, mesmo se considerarmos a Revolta da Chibata com João Candido como revolta negra. Tal marasmo será rompido a partir da segunda década com a fundação de diversos jornais que tratavam da questão negra, como O Clarim (1824). De acordo com Oliveira (2002, p. 15–20): As associações de negros vinham sendo fundadas desde 1902, todavia, inicialmente, não se propunham à arregimentação da raça negra, possuindo um caráter mais cultural e beneficente. Essas associações, mesmo não propondo uma luta política organizada, foram de vital importância para a ressocialização do negro, cultivando o autorrespeito e a solidariedade. De acordo com a autora, a imprensa negra era consideravelmente influenciada pela imprensa operária. Ambas possuíam o mesmo objetivo: denunciar os problemas vividos pelo seu grupo. A particularidade do Movimento Negro…
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Embora, vale ressaltar, as denúncias e reivindicações das lideranças negras eram bem mais modestas, na medida em que estavam em estágio embrionário e não recebiam instruções de nenhum órgão ou movimento internacional (ib., p. 49). Em outubro de 1926, é fundado O Centro Cívico Palmares, associação que, segundo expressões da época, reunia a “nata” do elemento negro paulistano. O próprio jornal Progresso exalta o CCP, reconhecendo a sua importância para a integração do negro na sociedade. Não apenas o “meio negro” o reconhecia, outros segmentos da sociedade paulistana também reconheceram a seriedade e competência da associação em representar os interesses dos negros. Numa passagem bastante reveladora dos hábitos mentais da época, Vicente Cardoso abordou o assunto, nas páginas do jornal Progresso, em 1928; A Frente Negra Brasileira foi fundada nesta cidade de São Paulo em reunião efetuada no salão das classes laboriosas, à rua do Carmo nº 25, perante regular assistência no dia 16/09/1931. No dia 12 de outubro, no mesmo local, perante mil e tantos negros, foi lido e aprovado por unanimidade o presente estatuto. Publicados no Diário Oficial e registrado em 4 de novembro de 1931 (ib. p. 57–58 apud A Voz da Raça, n. 5, 1933). Na verdade, a luta da Frente Negra Brasileira não era exclusivamente contra o preconceito racial. O seu interesse maior era a união dos negros com o objetivo de superar as dificuldades decorrentes do passado escravista. A sua orientação e atuação não estava centrada no passado, nas injustiças e desumanidades cometidas pelos “brancos”. Sua preocupação era com o presente e o futuro, apagando definitivamente as “marcas da escravidão”. Em agosto de 1936, a Frente Negra transforma-se oficialmente em partido político e, por ter delegações em vários estados, torna-se um partido de proporções nacionais, o que não era comum na época. A vida do partido, contudo, é efêmera, pois todos os órgãos políticos são dissolvidos em 1937 pela lei do Estado Novo (ib. p. 81). 152
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Ao fim da Frente Negra Brasileira,10 os negros continuam ativos na produção de conhecimento sobre si e a sociedade. De acordo com Nascimento e Nascimento (2000, p. 206), o negro estava totalmente excluído, no sentido stritu do termo, do teatro brasileiro: não entrava nem para assistir ao espetáculo, muito menos para atuar no palco. O Teatro Experimental do Negro (TEN) nasceu menos de 10 anos depois da extinção da FNB, em 1944. O seu objetivo maior foi contestar essa discriminação, formar atores e dramaturgo afro-brasileiros e resgatar uma tradição cultural cujo valor foi sempre negado ou relegado ao ridículo pelos nossos padrões culturais: a herança africana na sua expressão brasileira. O TEN tem atuação destacada até 1968, quando seu mentor foi obrigado a abandonar o país. Segundo Nascimento e Nascimento: O centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), convidou Abdias do Nascimento em 1968 para falar sobre negritude, uma noção que começou a fazer a cabeça dos que militavam no movimento negro naquele momento em função da repercussão da atitude dos que confrontavam a política norte-americana de discriminação racial por meio dos punhos cerrados bradaram, por ocasião da festas das medalhas Black power. O Diretor da faculdade proibiu o uso do auditório, e a palestra foi realizada no pátio interno da escola, sob constante ameaça de repressão (ib. p. 216–7). O fim do TEN não significou o fim da atuação do professor Abdias. Em julho de 1978, voltou ao Brasil para a fundação do Movimento Negro Unificado. Em 1980, o professor Abdias colocava para debate, no Movimento Negro, uma proposta que denominou de quilombismo – um conceito científico emergente do processo histórico-cultural do estado brasileiro, colônia, império e república – que significava terror organizado contra a população negra, o proponente buscava um conceito que sistematizasse a experiên10 Ainda sobre a Frente Negra Brasileira, ver Velasco (2009). A particularidade do Movimento Negro…
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cia histórica do povo negro, que pudesse ser uma ferramenta teórica do Movimento Negro e alavancar a mobilização das massas negras oprimidas no Brasil (Cardoso, 2002, p. 78). Dedicar algumas poucas palavras sobre este grande brasileiro é muito pouco, visto a sua importância na luta contra a desigualdade. Contudo, é necessário destacar, nos idos da década de 1970, a atuação também de duas grandes brasileiras negras: Maria Beatriz do Nascimento (1942–1995)11 e Lélia Gonzalez (1935–1994),12 que inspiraram jovens e conduziram as reflexões sobre a mulher (sobretudo a mulher negra), o preconceito e a discriminação sofrida por negros de forma geral. Portanto, a trajetória do Movimento Negro, com mais de 470 anos (em 1532 aconteceram as primeiras incursões quilombolas, de acordo com a literatura, sendo a principal delas a república Palmares – 1595–1695) nos mostra que a atuação dos negros condiz com a sua condição de sujeito da história e do conhecimento de si, dos outros e das coisas. No que diz respeito à constituição do sujeito, explanados até aqui, o conjunto de movimentos negros podem se arrogar como legítimo sujeito da história brasileira. Diga-se de passagem, se o sujeito é constituído nas particularidades do movimento da sociedade, então se entende que os sujeitos se legitimam pela sua atuação política, cultural, espacial, educação e em tantas outras áreas da vida social. Considerações finais A proposta do ensaio teve como objetivo principal compreender a formação do sujeito no contexto dos movimentos sociais urbanos, sobretudo o sujeito negro. Ser negro, branco, indígena não cobre a universalidade do fenômeno de homem ou mulher, ou ainda criança. O movimento que acompanha do nascimento passando pela vida até a morte é inexorável, da mesma forma que a transformação do ser. Não nascemos pessoa ou sujeito, nascemos indivíduos humanos, nos tornamos parte do sujeito que é cole11 Ver Ratts, 2006. 12 Ver Ratts e Rios, 2010.
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tivo, ele se faz pela história por meio de projetos que, em conjunto, traça para si e a para a sociedade que pretende. Compreender esta dimensão da vida é compreender que a sociedade é uma arena em constante disputa, pois somos constituídos de diferentes interesses e psiques. Entendemos que tratar a diferença é fundamental e saudável para qualquer sociedade, visto que nascemos diferentes e nos tornamos parte de sujeitos também diferentes. Se assim é verdade, então a universalidade também se constitui de sujeitos diferentes. Como vimos, o negro se constitui como um dos sujeitos legítimos da sociedade brasileira, não reconhecer esse fato é ignorar a própria história nacional. São “pessoa-para-si” que se tornam “pessoa-para-o-outro” e constroem a vida desde muito tempo. Demonstrou-se ao longo deste ensaio, que a melhor maneira de aprendermos o sujeito é na particularidade. Se negarmos as evidências, criamos falsas verdades, tentando homogeneizar aquilo que por essência é outro. Por mais próximo que estejam os grupos que buscam justiça e superação da sociedade hierarquizada produtora de heteronomia, há sempre muita discrepância e diferença no tratar de si e do outro. O exemplo que pode ser suscitado aqui é Movimento Sem Terra, apesar de ter inúmeras pessoas negras, o princípio que dirige a luta contra a propriedade, e não passa pela questão étnicorracial, mesmo que o militante seja preto. O sujeito dos movimentos sociais forma-se na dimensão da particularidade, onde história e projetos são gestados para estágios descendentes ao seu, a “pessoa-para-o-outro” até outra vez a condição de ser mensurado como indivíduo humano. Muitas “pessoas-para-si” que se tornaram emblemáticas no contexto de “pessoa-para-o-outro”, foram importantes para formar o sujeito do movimento social negro e se tornaram sujeito da história, como: Ganga Zumba, Andalaquituche, Dandara, Acoitirene, Aqualtune Danbraganga, Zumbi (Cardoso, 2002, p. 65), Abdias Nascimento, Arthur Ramos, Arlindo Veiga dos Santos, Lélia Gonzales, Maria Beatriz Nascimento e tantos milhões de pretos e pretas: Joãos, Marias, Josés, Cosmes de sobrenomes Silva, Santos, Oliveira, que lutaram, viveram, morreram e desapareceram ao longo desses 478 anos de combates (1532–2010). A particularidade do Movimento Negro…
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Leituras sobre movimentos sociais e ações organizadas em contextos urbanos: notas de diálogos sobre método Marcia Soares de Alvarenga
As capacidades produtivas e criadoras nascem humildemente ao nível do chão; logo emergem do cotidiano e do vivido, se erguem, se ampliam, e por último se desprendem e se tornam autônomas. (Henry Lefebvre1) Primeiras aproximações O desafio em promover o diálogo com e entre jovens pesquisadores que dinamizaram o GT 7 “Movimentos Sociais e Cartografias das Ações Organizadas”, no III Seminário “Metrópole, Governo e Sociedade”2 se traduz em tentativas de fazermos aproximações entre objetos de pesquisas, cujas abordagens teóricas e metodológicas são orientadas pela inquietude de interrogar as tensões entre estrutura e conjuntura deflagradas pelas lutas sociais agenciadas, constrangidas e/ou confrontadas por sujeitos sociais em diferentes contextos urbanos. As pesquisas compartilhadas no seminário reafirmam que, diferentemente da República Velha constituída pelas oligarquias agroexportadoras, o Brasil de hoje é urbano, porém sem ter rompido com o modelo de desenvolvimento desigual capitalista. Este modelo, ao combinar, contraditoriamente, o arcaico e o moderno 1 Em Martins (1996) para o debate sobre a dialética do cotidiano e do vivido em Henri Lefebvre. 2 O III Seminário “Metrópole, Governo e Sociedade” e Ii Colóquio “Metrópoles em Perspectivas” 2010 foi realizado na Facudade de Formação de Professores da Uerj, 1–3 dez. 2010.
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produz desigualdades sociais, não como anomalia (Martins, 1993) inerente a um determinado espaço-regional, mas como composição orgânica da qual se sustenta, reproduz e acumula o capital. Santos (1994) analisa que a grande crise econômica do capitalismo de livre mercado levou, sobretudo, os países do chamado “terceiro mundo” a retrocederem em certas – embora nem sempre extensivas – conquistas sociais e políticas dos seus povos. O caso brasileiro toma magnitude no pensamento deste autor para quem (e estamos de acordo) em nenhum outro país do mundo os processos de desruralização, de migrações brutais desenraizadoras, de urbanização, expansão do consumo de massas, entre tantos outros fatores, se efetivaram de forma tão concomitante e contemporânea quanto no Brasil. Tais processos, alicerçados pela suspensão das liberdades civis e democráticas, contribuíram para a “elaboração brasileira do não cidadão”. Santos atribui ao modelo político-econômico, particularmente àquele relacionado ao “milagre brasileiro”, a responsabilidade pela eliminação do embrião de cidadania que no Brasil se gestava. O “milagre” operou pelo alargamento de uma nova classe média em detrimento das massas pobres e populares, aumentando as disparidades sociais e econômicas entre estes segmentos. Durante esse período, o desenvolvimento econômico acelerado dispensou a redistribuição de renda e diminuiu a capacidade do Estado de fazê-la. Todo o equipamento do país destinado ao escoamento rápido e mais fácil da produção serviu ao modelo econômico que o gerou, para a criação do modelo territorial a ele correspondente: as grandes migrações (muito mais de consumo do que de trabalho, esvaziamento demográfico de inúmeras regiões, concentração da população em crescimento, principalmente em áreas urbanas e formação de grandes metrópoles em todas as regiões). O que passamos a assistir foi o crescimento econômico baseado em certos setores produtivos e em certos lugares, agravando a concentração de riqueza e a ampliação das injustiças entre as pessoas, entre os lugares. Nessa medida, a dimensão do lugar nos leva ao encontro da
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“epistemologia existencial” de Milton Santos (1994) e nos instiga a realizar o exercício de estudar o que cada lugar tem de singular, de específico, de diferente para compreendermos como os sujeitos agem e produzem modos de vida, resistências e práticas sociais. Inspiradas na generosidade desta formulação teórica, as pesquisas brevemente resenhadas neste ensaio, possuem muitos pontos que se interconectam, a começar pelos objetos e os percursos metodológicos que são construídos pelos seus autores, cujo trabalho reflexivo tem como lugar os contextos urbanos nos quais se movem sujeitos sociais que, em suas diversidades, buscam (re)criar condições de vida e de direitos. Movimentos sociais e cartografia das ações organizadas: contribuições de um grupo de trabalho As desigualdades se multiplicam e se diversificam nas esferas da produção e da acumulação de bens simbólicos e econômicos. Intensifica-se, ao mesmo tempo, a criação de modos de resistências produzidas pelos sujeitos, no limite da exclusão destes bens. Desse modo, buscando identificar a relação entre desigualdade e lutas por direitos, as pesquisas que integraram o eixo temático nos avivam sobre os movimentos sociais no Brasil contemporâneo que, residual ou em seu conjunto, tomam a forma de uma espiral crescente e complexa graças aos recursos e estratégias criados e/ou (re)inventados por homens e mulheres na mobilização de energias criativas que embalam seus projetos de vida. Pesquisas sobre movimentos e ações sociais organizadas expressam um potencial inesgotável em termos de requererem a continuidade de investimentos tanto teóricos quanto metodológicos. Esse potencial é ainda maior especialmente se considerarmos as consequências geradas pela reestruturação pós-fordista3 que, ao atingirem profundamente o mundo do trabalho e as sociabi3 Frigotto (1994) adverte que a expressão “pós-fordismo” assume particularidades em realidades diferentes. Para este autor, no Brasil predominou o fordismo periférico, tendo predominado as relações tayloristas de organização produtiva e de controle do trabalho, associadas ao populismo e clientelismo.
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lidades das classes trabalhadoras, tentam se apropriar de espaços de autorrepresentação,4 estratégias de lutas sociais das classes populares. Os desafios postos aos pesquisadores para realizar leituras compreensivas e formular perspectivas metodológicas, tanto para a ciência quanto para a política, sobre ações engendradas pelos sujeitos sociais em conjunturas que se movem, já haviam ocupado o pensamento de Gramsci ao nos descrever, por meio de bela metáfora, que todo raio passa por prismas diferentes e produz refrações diversas de luz (…) Encontrar a efetiva identidade na aparente diversidade e contradição, e a substancial diversidade na aparente identidade, eis o mais delicado, incompreendido e, não obstante, essencial dom do crítico das ideias e do historiador do desenvolvimento social (2000, p. 132). Para Gramsci, a premissa da “difusão orgânica, por um centro homogêneo, de um modo de pensar e de agir homogêneo” consistia em “erro iluminista” dos intelectuais ao desconsiderarem que a vida social, os fatos particulares comportam, como interpreta Baratta, “o movimento de circulação do empírico e do individual ao universal e total e vice-versa, sem nunca fechar o círculo ou chegar a uma conclusão definitiva ou peremptória” (2004, p. 18). No tempo presente, Ribeiro (2009, p. 148) recupera que, tanto as análises críticas dirigidas aos modelos de desenvolvimento econômicos que se mantiveram descolados dos desafios estruturais das sociedades latino-americanas, quanto a “resistência à abstração das condições de vida impostas pelo neoliberalismo” tiveram impactos nas ciências sociais. Tais impactos exi4 Em relação à questão da autorrepresentação, Spivak (2010) interroga sobre a possibilidade das classes subalternas falarem sobre si sem a intermediação dos intelectuais. Esta problemática suscita não apenas desdobramentos teóricos e metodológicos que envolvem a ação das classes subalternas, mas também epistemológicos sobre os modos de conhecer e se apropriar da realidade.
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giram acuidade no tratamento dos contextos nos quais “são vividas as transformações do capitalismo” e a velocidade com que se ampliaram os processos de exclusão social. Em torno das questões metodológicas suscitadas pelo III Seminário, a escala das temporalidades dos eventos que tomaram a cidade como sujeito da modernidade, sem as pessoas (os cidadãos), ou ao menos sem parte delas, Teixeira (2010) descreve os descompassos entre as teorias europeias sobre processo de urbanização e reforma social levadas a cabo no Brasil nos anos de 1920 e 1930, sem que o país fosse urbano e industrial. Este descompasso, no entanto, não foi obstáculo para o planejamento e organização hierárquica da cidade, com vistas a forjar um “corpo urbano”, excluindo as populações, em especial os trabalhadores, das decisões em torno do pacto de um estatuto sobre o “direito à cidade” (Lefebvre, 1991). Vale dizer de fruição criativa do espaço da cidade e sua relação com os equipamentos, bens, serviços, entre outros que nutrem a vida cotidiana. Podemos dizer que a ausência deste estatuto impetrou relações contraditórias entre cidadania e vida urbana. Populações inteiras foram deslocadas pelo poder político ou mobilizaram resistências diante destes deslocamentos ao ocuparem espaços sem cidadania,5 redesenhando-os por ações sociais que não se comprimem em uniformes estratégias de lutas. A “leitura de contextos”, como propõe Ribeiro (ib.) reaviva a compreensão “dos sentidos da ação social, o que implica nos estudos dos vínculos entre sujeito social, conjuntura e lugar”. As leituras nos convocam à realização de esforços não somente teóricos, mas também metodológicos, que possibilitem “desvendar contextos e antecipar atos” (Almeida apud Ribeiro, 2001, p. 45). Isto significa tanto a contextualização veloz da ação hegemônica, cada vez mais estrategicamente localista, quanto a valorização imaginativa dos lugares vividos, onde a vida escorre ou ganha 5 Para Santos (1994), olhando-se o mapa do país e as plantas das cidades em cujas periferias há densidades demográficas, é fácil constatar áreas desprovidas de serviços essenciais à vida social e à vida individual. Para este autor, “É como se as pessoas nem lá estivessem” (p. 43).
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força reflexiva e transformadora. Como carta, o mapa não aparece como instrumento isolado ou como bela ilustração analítica e como sustento da memória dos outros. Perspectivas sobre a produção do espaço pelos sujeitos das ações organizadas revelam o crescente compromisso teóricometodológico dos pesquisadores sociais no esforço em problematizar os vínculos e a produção de sentidos que emergem dos contextos analisados. Sobre isso, Vale (2010) discute que as reformas neoliberais que atingiram o mundo do trabalho, acarretando desemprego em massa e flexibilizando os estatutos de proteção dos trabalhadores, tem intensificado o interesse, tanto da academia, quanto dos sindicatos e organizações da sociedade civil, pelas formas de trabalho associado e cooperado. A autora analisa que em São Gonçalo, município do leste metropolitano do estado do Rio de Janeiro, a expansão dos empreendimentos econômicos solidários encontra no Fórum Municipal de Economia Solidária uma importante instância de articulação entre a sociedade civil organizada, iniciativa privada e o poder público local com o objetivo de construir políticas públicas de trabalho. No entanto, adverte que o maior desafio dos projetos de economia solidária é superar a fragmentação e o isolamento das ações com objetivo de consolidar projetos sustentáveis de desenvolvimento local, o que requer a continuidade de pesquisas na (re)leitura de contextos em mudanças, jogos de poder e relações de força que envolvem a formulação destas políticas. Esta perspectiva também pode ser vista no estudo de Dionísio (2010), pois o autor não descuida de refletir sobre as percepções construídas pelos pesquisadores populares sobre os sentidos de “espaço popular”. Ao trabalhar a concepção de “espaço popular” e a relação do direito à educação de jovens e adultos como direito humano, percebemos que, ao lerem os espaços populares, os pesquisadores entrevistados se confrontam não apenas com a lógica hegemônica das diferentes formas de segregação, entre as quais a gramática normativa do direito à educação se confronta
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as próprias marcas de origem e identidade territorial dos sujeitos de direitos. Essas marcas iluminam modos de compreender e orientam suas decisões na construção de vínculos com outros sujeitos de origens sociais, étnico-raciais e culturais diversas; com sujeitos portadores de aspirações, compartilhadas ou não, que pela diversidade do “popular” traçam e fazem o espaço hibridizado. Por sua vez, Pereira (2010) analisa os conflitos de longa duração da apropriação do uso de um terreno localizado no centro da cidade de São Paulo, envolvendo, por um lado, um grupo empresarial do ramo das comunicações e seu intuito em construir um shopping center e, por outro, um grupo vinculado às políticas de patrimônio cultural da cidade com o objetivo de concluir o projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi no terreno em questão. As dificuldades em entrevistar as partes em conflito levaram a autora a optar, metodologicamente, pela coleta de dados em fontes documentais diversas como jornais e suportes midiáticos e imagéticos que expressavam a situação de disputa. Eles foram fonte para análises sobre os sentidos produzidos pelos grupos litigantes e os modos particulares de atribuir significados à cidade. A perspectiva metodológica que envolve materiais discursivos/enunciativos como fontes de pesquisa, também é empregada por Silva (2010) ao analisar as condições de criação do Sindicato Estadual do Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe), tendo como contexto as mudanças sociais e políticas no Brasil no final da década de 1970 e início da década de 1980. No confronto entre o velho e o novo sindicalismo, Silva analisa o Sepe como um dos frutos deste último na composição de movimento de classe sem as correias de transmissão que atrelaram o sindicalismo brasileiro transformado em um hóspede do governo populista de Vargas, nos anos 1930. Baseada em estudos que abrangem o movimento sindical dos professores na década de 1980, a autora rememora a disputa entre as diversas orientações políticas de esquerda pela hegemonia do sindicato. O que não invalida o esforço em se construir a unidade do movimento em torno das reivindicações de defesa
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dos interesses de uma categoria profissional diante das tentativas neoliberais de destruir/desidratar as sociabilidades e solidariedade entre os trabalhadores e, no caso estudado por Silva, de uma categoria profissional. Estas abordagens nos levam a encontrar apoio em Bakhtin (1992 e 2000), para quem um objeto de pesquisa e seus sentidos só podem ser compreendidas com base em contextos tanto quanto forem estes possíveis. Em nossa tentativa de diálogo com as pesquisas do seminário, buscamos compreender os contextos, não simplesmente colocá-los em relação de justaposição. Consideramos, pois, a existência de diversos contextos de interação e as visões de mundo implicadas que expressam o lugar social ao qual pertencemos e de onde partimos. Para uma conclusão provisória As pesquisas que integraram a temática do GT 7 do III Seminário nos ajudam a ler que os cotidianos da vida nas cidades acusam os efeitos do desenvolvimento desigual como anomalia estruturante. As abordagens metodológicas dos textos expressam profunda capacidade de diálogo, pois contribuem para a sistematização de memórias de lutas pretéritas, das ações do presente vivencial como reservas de energias para antecipação do futuro. As pesquisas nos ajudam a realizar leituras compreensivas de que a diversidade de sujeitos e contextos possuem rugosidades, trabalho para uma “cartografia das ações organizadas” que tem a dimensão molecular como um dos planos das análises sociais desenvolvidas. É neste plano que a vida de homens e mulheres representa a dramaticidade de seus sentimentos, capacidade, ideias, paixões e ideologias. É por meio das relações dialógicas com o mundo que as pessoas atualizam sentidos sobre a realidade vivida, objetivando-a de forma humanizada. Esta atualização percorre todo o sentir e o imaginar humano, pois é humanizando os sentidos e a sensibilidade que inscrevemos nossa riqueza humana: “Ver, ouvir, cheirar, gostar, apalpar, pensar, contemplar, sentir, querer, agir, amar (…). É assim múltipla, tanto quanto as determinações
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e as atividades do homem: a ação e a paixão humanas” (Marx apud Lefebvre, 1964). Perscrutar os sentidos da cartografia das ações organizadas é acolher a possibilidade de pensar a relação entre sujeitos, movimentos, contextos, não como relação determinista e funcional, mas como relação que ativa a ação e as paixões humanas concretas e imaginárias, descortinando cenários às ações nas pequenas e grandes lutas que movem o cotidiano. Referências Giorgio Baratta. A rosa e os cadernos. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. Mikhail Bakhtin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. — Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. T. Dionísio. Cidadania não territorializada: a educação de jovens e adultos nos espaços populares. In: Anais do iii Seminário Metrópole: Governo, Sociedade e Território. Uerj/FFP, 2010. Gaudêncio Frigotto. Educação e formação humana: ajuste neoliberal e alternativa democrática. In: Pablo Gentili e Tomaz Tadeu da Silva. Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis: Vozes, 1994. Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. v. 2. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Henri Lefebvre. Marx. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1964. — O direito à cidade. São Paulo: Ed. Moraes, 1991. José de Souza Martins. O poder do atraso. São Paulo: Hucitec, 1993. — Henri Lefebvre e o retorno da dialética. São Paulo: Hucitec, 1996. R. P. Pereira. Os conflitos na apropriação e usos dos espaços da metrópole de São Paulo: artistas, empreendedores e Estado. In: Anais do iii Seminário Metrópole: Governo, Sociedade e Território. Uerj/FFP, 2010.
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Ana Clara Torres Ribeiro. Cartografia da ação social, região latino-americana e novo desenvolvimento urbano. In: Héctor Poggiese e Tamara Tania Cohen Egler (orgs.). Otro desarrollo urbano: ciudad incluyente, justicia social y gestión democrática. Buenos Aires: Clacso, 2009. p. 147–156. Ana Clara Torres Ribeiro, et al. Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio de método. Cadernos Ippur, ano 15, n. 2, ano 16, n. 1, 2001 e 2002. Milton Santos. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. — Técnica espaço tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994. Rita de Cassia da Silva. O velho e o novo sindicalismo e a criação do Sindicato dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro. In: Anais do iii Seminário Metrópole: Governo, Sociedade e Território. Uerj/FFP, 2010. Gayatri Spivak. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Vitor Hugo Teixeira. A idealização funcionalista do espaço: gênese, implementação e conflitos no território urbano da cidade do Rio de Janeiro. In: Anais do iii Seminário Metrópole: Governo, Sociedade e Território. Uerj/FFP, 2010. M. Vale. Dialogando com o movimentos de Economia Solidária em São Gonçalo: perspectivas na produção do espaço. In: Anais do iii Seminário Metrópole: Governo, Sociedade e Território. Uerj/FFP, 2010.
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Arte, educação e cidadania: diálogo de saberes na metrópole Anita Loureiro de Oliveira
Introdução: cidadania se aprende? A presente reflexão sugere uma proposta de educação libertária que pretende colaborar com o fortalecimento das lutas por justiça social na metrópole. Ao contrário do imobilismo e da apatia provocados por discursos representativos do pensamento único, a proposta desta reflexão é tentar enriquecer o conhecimento teórico produzido academicamente com a multiplicidade de ideias que vêm da experiência vivida nas ruas, de modo a intensificar relações entre teoria e prática. Outro objetivo desta reflexão é evidenciar o papel da educação no incentivo ao diálogo e ao aprendizado da cidadania. Em “O espaço do cidadão”, Milton Santos (1987) afirma que a cidadania se aprende e pode se tornar um estado de espírito enraizado na cultura. As práticas educativas que buscamos refletir neste artigo têm um caráter múltiplo resultante de experiências que evidenciam o modo pelo qual os territórios urbanometropolitanos constituem a base de um processo educativo que vai muito além dos espaços institucionais de aprendizagem e pode trazer contribuições significativas para a renovação da vida urbana. Tal como propõe Carrano (2003), a educação é entendida como um amplo processo social, que não se resume aos cotidianos institucionais de aprendizagem. Para o autor, o cultivo da racionalidade crítica, em conjunto com o refinamento de nossas capacidades éticas e sensíveis, pode representar um efetivo combate aos racionalismos que dificultam a apreensão da multiplicidade da realidade cotidiana, podendo se constituir também como condição para o diálogo com a dinâmica que produz múltiplos processos sociais educativos que se desenvolvem na cidade
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(ib.). Ainda de acordo com Carrano, para além do texto visível da racionalidade urbanística, insinua-se um texto composto pelas práticas concretas dos habitantes das cidades e é sobre este movimento do real que buscamos refletir. A proposta de uma educação voltada para a vida urbana indica a necessidade de ampliarmos as possibilidades de afirmação de uma cidadania ativa e que seja construída cotidianamente com base no diálogo de saberes. A compreensão de direitos e deveres relacionados à cidade parece ganhar profundidade e gerar consequências positivas quando um processo educativo se instaura com o propósito de viabilizar uma vida urbana renovada e transformada. Tal como ressaltamos em trabalho anterior (2008), mesmo em uma “cidade-espetáculo”, a arte torna possível reconhecer contradições que marcam o espaço urbano e que evidenciam a complexidade da espacialidade capitalista em constante transformação. É nesse sentido que sugerimos um conhecimento territorializado, com forte apoio nas artes, para a construção de formas de aprendizado significativas para a conquista da cidadania plena. A reflexão lefebvreana sobre a potencialidade transformadora da arte para a vida urbana renovada também nos inspira. Para o autor, a arte cria momentos de negação que apontam para transformações em curso e, assim, obras de “desconstrução construtiva” que manifestam o devir do mundo (Lefebvre apud Barbosa, 2000). Assim, buscamos reconhecer que os habitantes da cidade não se submetem ao ideário racionalizante do urbanismo disciplinar e suas técnicas de impor uma ordem verticalizante e inflexível. Numa cidade como o Rio de Janeiro, os habitantes nem sempre apoiam medidas baseadas em “choques de ordem” e a arte pode evidenciar momentos de negação e imprevisibilidade. É preciso ampliar as possibilidades de reflexão da cidade, articulando a técnica e o conhecimento científico à sensibilidade dos que escolheram a arte como meio de sobrevivência e/ou manifestação e que experimentam a vida urbana como homens comuns, não especialistas. Torna-se cada vez mais urgente e necessário reconhecer as formas de existência (e de resistência)
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que caminham no sentido da criatividade, da coletividade e da solidariedade horizontal. Tal como nos lembra Carrano (2003), a cidade educativa não é a cidade-conceito impregnada de utopismo urbanístico como aqueles que pregam tolerância zero – eufemismo pós-moderno, antiético e antipopular, da velha intolerância com os marginalizados – para combater a violência e higienizar as ruas de uma metrópole. Concordamos com o autor quando sugere que as práticas educativas em uma cidade ocorrem no terreno da pluralidade do real e são compostas por pequenos gestos, práticas microscópicas, singulares, espontâneas e plurais que se articulam como educadores coletivos em redes sociais que, por vezes, conseguem escapar aos controladores da ordem. Espaço público, arte e diálogo: a cidadania numa perspectiva geográfica Recentemente, um artista de rua que atuava como estátua-viva no largo da Carioca, no centro da cidade do Rio de Janeiro, foi impedido de exibir sua performance artística em um espaço público ao ser abordado por um guarda-municipal orientado para retirar trabalhadores informais das ruas do centro da cidade. Diante da cena incomum, uma força coletiva e espontânea surgiu dos transeuntes armados de câmeras de celulares que registravam a opressão sem argumentos do “choque de ordem” e argumentaram em favor do artista de rua, até o recuo da ação opressiva do guarda. Esta cena, que acabou virando um vídeo postado no YouTube com o título “Proibido Parar”, exemplifica como a arte é capaz de emocionar e mobilizar, inclusive politicamente, não só o artista como, principalmente, o público. O exemplo serve para pensarmos sobre o que Carrano (2003), num sentido próximo, diz sobre as ruas serem laboratórios de inovações (não necessariamente projetadas, mas praticadas) e de experiências concretas. Lefebvre (2001), em outro contexto, afirma que os habitantes reconstituem centros e utilizam certos
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locais para promover encontros negados pela cidade. É sobre processos espontâneos, que surgem no cotidiano das ruas, que propomos uma reflexão sobre práticas educativas, cujo caráter libertário pode ser significativo para a renovação da vida urbana. O uso da rua e a apropriação simbólica do espaço urbano para manifestações artístico-culturais potencialmente críticas, evidenciam lutas simbólicas pelo direito à cidade, tal como destacamos em trabalho anterior (Oliveira, 2008) e podem evidenciar o diálogo no espaço público e uma ação libertária em contextos metropolitanos. Para Lefebvre (2001), o direito à cidade significa a constituição ou a reconstituição de uma unidade espaço-temporal, de uma união, em vez de fragmentação. Segundo o autor, esta unidade não elimina em absoluto os confrontos e as lutas. Muito pelo contrário. O direito à cidade implica e aplica um conhecimento sobre a produção do espaço (Lefebvre, 2001), que envolve a produção social do espaço e a produção política do espaço, porque “o espaço é política” (ib., p. 52). Lefebvre (2001) ressalta também a possibilidade de pensarmos outra cidade, cujos planos, projetos e ações possam ter outras finalidades e outras intencionalidades distanciadas das normas e regras da acumulação capitalista ou de suas formas de disciplinarização de corpos e sujeitos. Em um contexto no qual se pretende solucionar problemas urbanos por meio de “choques de ordem”, que visam à preparação da cidade para o abrigo de eventos internacionais, acreditamos que uma reflexão sobre a produção do espaço pelos habitantes possa ser muito proveitosa para uma renovação urbana baseada na horizontalidade e na criatividade espontânea do habitante. Lefebvre (1987) afirma que o espaço contém as relações sociais (ib.) e também representações dessa dupla ou tripla interferência das relações sociais – de produção e reprodução (ib.). Segundo os autores, Lefebvre alerta para o fato de que tais relações podem ser tanto frontais, públicas e declaradas, quanto ocultas, clandestinas, reprimidas e capazes de conduzir à transgressões. A cidade é obra dos citadinos, mas nem sempre existe diálogo entre o habitante e as grandes instituições que se afirmam sobre a realidade prático-sensível. O Estado, principal responsável pelo planejamento urbano, e as empresas privadas, 172
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principais beneficiárias da ação do Estado, fazem do espaço urbano o lugar preferencial da acumulação capitalista, e muitas vezes isso depende de formas de convencimento opressivas e não abertas ao diálogo. Em tempos de preparação da cidade do Rio de Janeiro para sediar megaeventos internacionais (copa do mundo, olimpíadas e afins), cabe refletirmos sobre as formas de apropriação e dominação da cidade e nela. Ainda que o discurso dominante procure ordenar as ações sociais, a vida pulsa nas ruas para dizer que a desordem pode ser mais rica e fértil do que o ordenamento artificial que se projeta quando se busca vender a imagem da cidade para o exterior. Ainda que muitas formas de arte e comunicação sejam esvaziadas e espetacularizadas para servirem de base para a criação ou fortalecimento de uma imagem forjada da cidade, acreditamos que a vida que pulsa nas ruas é sempre mais rica e complexa. Tal como Ribeiro (2006a) afirma, áreas da cidade, monumentos naturais e artificiais, corpos e gestos transformam-se em focos (ou nichos) da acumulação primitiva de capital simbólico. Os impulsos globais que atingem a cidade de um país periférico submetida a longo processo de involução urbana (Santos, 1997), como é o caso do Rio de Janeiro, criam excepcionais oportunidades de acumulação primitiva de capital simbólico (Ribeiro, 2006a, p. 48). Por meio do uso instrumental da administração pública, ocorre a realização de investimentos que organizam a vida espontânea na cidade em direção à realização do lucro global e a subordinação da vida espontânea a imposições da economia globalizada, alterando usos do espaço urbano (Ribeiro, 2006a). Legitimada por noções neutras, do tipo parcerias públicoprivadas, a ação considerada eficaz permite a fragmentação do espaço urbano, por meio da criação de barreiras sociais visíveis e invisíveis, e a implementação de políticas públicas que geram intolerância e interrompem o diálogo interclassista espontâneo. Este diálogo, agora enfraquecido, constitui um dos elementos mais relevantes da singularidade do Rio de Janeiro, como demonstra a riqueza da música criada na cidade (Ribeiro, 2006a). Arte, educação e cidadania
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Entretanto, se as cidades, no contexto de um mercado globalizado, assim transformadas, sobretudo devido ao turismo, tornam-se imagens espetaculares, outdoors, imagens sem corpos, espaços desencarnados, simples cenários (Jacques, 2006), a existência de manifestações culturais contrárias à sua espetacularização evidencia a complexidade da espacialidade capitalista. Existem sujeitos que não se conformam com a limitada função de espectador de ações alheias e muitos outros sujeitos que ganham visibilidade e legitimidade social por meio de suas formas de manifestar outras leituras de mundo. A educação tem papel importante na formação do sujeito e na ampliação de suas formas de não conformação com uma realidade que cria barreiras sociais e dificulta a aproximação social. Trata-se, portanto, de pensarmos como – frente à dominação capitalista do espaço urbano –, práticas artístico culturais podem ser educativas do ponto de vista de uma ação renovada na cidade e importante quando pensamos a copresença. A estigmatização territorial que atinge moradores das favelas ou das periferias esconde as estratégias criativas, complexas e heterogêneas acionadas por estes sujeitos para enfrentar suas dificuldades do dia a dia. A postura ativa e contrastante dos espaços populares na produção cultural das metrópoles revela movimentos que podem contribuir para romper o isolamento destes territórios e legitimar a presença do outro, sua atividade criativa e seu direito de manifestar leituras próprias do “seu mundo” (Oliveira, 2008). Para pensar a cidadania do ponto de vista da educação é necessário considerar que o cidadão é o indivíduo em um lugar (Santos, 1997) e, ainda, que há desigualdades sociais que são, em primeiro lugar, desigualdades territoriais, porque derivam do lugar onde cada qual se encontra. Isto significa que, para os pobres, estar excluído dos “processos globais” não é a pior das exclusões, pois tal como Santos (ib.) alerta, a carência de todos os tipos de consumo, seja ele material ou imaterial, não é a única. Há também a carência de participação política, de direitos básicos, enfim, de cidadania, entendida de forma ampliada. Para Santos (1997), o valor do indivíduo depende, em larga
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escala, do lugar onde está, já que o acesso aos bens e serviços essenciais, públicos e até mesmo privados é tão diferencial e contrastante, que uma grande maioria de brasileiros acaba por ser privada desses bens e serviços. Por vezes, bens e serviços não existem em áreas de favelas e periferias ou não podem ser alcançados por questão de tempo ou de dinheiro. A reflexão sobre cidadania não pode ignorar o lastro espacial e nos parece relevante à análise das consequências no espaço público da afirmação positiva de territórios que não recebem investimentos adequados em políticas públicas, mas que evidenciam sua vitalidade e criatividade por meio da arte e da comunicação. A produção criativa e crítica de ações como o Imagens do Povo – que desenvolve ações nas esferas da educação, comunicação e cultura com objetivo de democratizar o acesso à linguagem fotográfica, apresentando a fotografia como técnica de expressão e visão autoral da sociedade – ressalta os movimentos de costura do tecido social por meio da valorização destes territórios estigmatizados. Um olhar atento a estas formas de afirmação vinculadas a territorialidades insurgentes tem a ver com o processo educativo mais amplo de que estamos tratando. No livro Favela: alegria e dor, os autores Jailson Souza e Silva e Jorge Barbosa (2005) apresentam um olhar próprio da dinâmica do espaço favelado, em termos temporais e espaciais e optam por tornar mais visível o cotidiano plural destes espaços populares. A proposição principal é de que só teremos uma cidade marcada pela possibilidade do encontro das diferenças quando pensarmos uma cidade e um cidadão, sem que se deixe de reconhecer a pluralidade das identidades, práticas e territórios, o que significa dizer que é preciso ver, efetivamente, a favela como parte da cidade. Tal como Gomes (2002), acreditamos que não pode haver cidadania sem democracia, não pode haver cidadania sem espaços públicos, e o espaço público não pode existir sem uma dimensão física. Assim, um olhar geográfico sobre o espaço público deve considerar sua configuração física e as práticas e dinâmicas sociais que nele se desenvolvem. Para Gomes (ib.), ser cida-
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dão é pertencer a uma porção territorial e o autor adverte que as discussões sobre cidadania e democracia não devem ignorar a dimensão espacial, pois as disputas socioterritoriais correspondem a disputas de um espaço, que é condição e meio para o exercício da cidadania. Segundo Gomes, o espaço público é a arena de problematizações, debates e diálogo e, assim, a redefinição dos quadros da vida social que modificam as práticas – processo que o autor denomina de “recuo da cidadania” – é paralela ao recuo do espaço público. Para Gomes (ib.), ser cidadão corresponde a um estatuto derivado de um contrato social e, a cada momento, sua definição foi construída de maneira diversa e com manifestações próprias. Gomes não compreende a cidadania como uma relação distante e abstrata entre Estado nacional e os indivíduos de uma coletividade. O autor destaca que no próprio conceito de cidadão existe uma matriz territorial, o que faz com que a geografia gere contribuições efetivas sobre este fenômeno no quadro da dinâmica territorial cotidiana da sociedade. Tal como aponta Gomes, o espaço público, dentro de uma perspectiva geográfica, tem uma centralidade absoluta na condição de uma análise sobre a apreciação da cidadania. De acordo com o autor, o encolhimento do espaço público corresponde a um recuo na vivência da cidadania. Conforme aponta Gomes (ib.), o “recuo da cidadania” corresponde a um recuo paralelo do espaço público e a uma redefinição nos quadros da vida social coletiva que evidencia um “encolhimento” do projeto social e espacial – apropriação privada dos espaços comuns; amuralhada da vida social; e o crescimento das ilhas utópicas. O espaço público, como espaço da possibilidade da ação política na contemporaneidade, é visto também como espaço simbólico, da reprodução de diferentes ideias de cultura, da intersubjetividade que relaciona sujeitos e percepções na produção e reprodução dos espaços banais e cotidianos (Serpa, 2007). Nesta perspectiva, o que está sendo proposto é a articulação entre leituras de cunho intersubjetivo e simbólico, com o pensamento crítico que sustenta a teoria crítica do espaço. A opção por refletir sobre a possibilidade de territórios estigmatizados serem efe176
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tivamente tratados como parte da metrópole e não à parte dela, é uma forma de evidenciarmos que o analista separa do imenso devir do mundo, da totalidade do devir, certos fragmentos, certos “objetos” e, ainda que esta demarcação ocorra no plano teórico, o conhecimento inicia-se no vivido (Lefebvre, 1987). Segundo Sartre (1967, p. 23), o pensamento concreto deve nascer da práxis e voltar-se sobre ela para iluminá-la. Consideramos relevante o fato desta reflexão poder fazer parte de uma pesquisa que se desdobra em ações práticas que podem favorecer uma transformação efetiva da vida urbana por meio do que consideramos como processo educativo ampliado. Também nos inspira a proposta de Harvey (2004), que no livro Espaços de esperança trata da força política da mudança e da busca por alternativas que contraponham à lógica destrutiva inerente ao processo de globalização contemporânea. Ao longo de sua argumentação, Harvey propõe um projeto político emancipatório, de ideais utópicos e recorre a Lefebvre e a Foucault para evidenciar sua contestação à visão mecanicista por meio da qual o corpo é disciplinado. Harvey critica a produção do espaço e do tempo propostos por visões cartesianas e newtonianas que dificultam a elaboração de estratégias emancipatórias. O autor propõe utilizarmos nossos trabalhos para a promoção de uma política regeneradora; sugerindo como passo inicial desta regeneração a leitura da produção do espaço humano (ib.) e aqui apontamos a importância de praticas educativas voltadas para tal leitura. Estes referenciais teóricos colaboram para uma reflexão sobre o papel da espacialidade nas dinâmicas que envolvem a cidadania. Santos (1987) alerta que a cidadania pode começar com definições abstratas, mas tem seu corpo e seus limites como situação social, jurídica e política e, por esta razão, para ter eficácia, ser fonte de direitos e ser válida às sucessivas gerações deve se manter nas letras das leis. Entretanto, para tratarmos a cidadania como conquista da liberdade, é preciso considerar que a situação dos indivíduos está sujeita a possibilidades de retrocessos e avanços e, assim, a educação – vista como amplo processo de aprendizado – tem papel relevante nesta conquista. Tal como Gomes (2002) demonstra, o debate sobre cidadaArte, educação e cidadania
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nia em uma perspectiva geográfica nos convida a refletir sobre o conceito de espaço público; pois os atributos destes espaços têm relação direta com a vida pública e com a noção de copresença. O espaço público é o lugar do discurso político e, para que o diálogo possa ocorrer de modo satisfatório entre os indivíduos, é necessário que os discursos sejam veiculados por meio de uma língua pública que é parte de uma cultura pública, que, por sua vez, permite que os indivíduos apresentem sua razão em público, sem obstáculos, podendo confrontá-lo à opinião pública e instituir um debate (ib.). Para Gomes, é no espaço público que os problemas se apresentam, ganham dimensão pública e, simultaneamente, são resolvidos. O espaço público, além de lugar no sentido material, é também imaterial, abstrato, espaço que se constrói no diálogo (ib.). A arte no espaço público colabora para a criação ou fortalecimento desta cultura pública e facilita a instituição do debate. A arte é trabalho da expressão que constrói um sentido novo (a obra) e o institui como parte da cultura (Chaui, 2003). O sujeito, tendo a oportunidade de se expressar com arte e construir novos significados, busca exprimir seu modo de estar no mundo na companhia dos outros seres humanos, refletindo sobre a sociedade, voltando-se para ela, seja para criticá-la, seja para afirmála, seja para superá-la e é aqui que a arte tem uma função social relevante. Para Chaui, a arte é expressão e construção; expressão de um sentido novo, escondido no mundo, e um processo de construção do objeto artístico. Segundo Chaui (ib.), a arte inventa um mundo de cores, formas, volumes, massas, sons, gestos, texturas, ritmos, palavras, para nos dar a conhecer nosso próprio mundo. Por ser expressiva, é alegórica e simbólica. A arte estimula experiências e vivências que podem ser de grande relevância para a afirmação de valores culturais que orientam a convivência entre os diferentes segmentos sociais, ainda que em muitos momentos o acesso à arte seja mediado pelo consumo. Santos (1997) lembra que o cidadão é não raro ofuscado pelo usuário e pelo consumidor, afastando para muito depois a construção do homem público. Daí a busca de privilégios em vez de direitos. Há décadas, Santos (1987) afirma que no Brasil não 178
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há cidadãos e sim consumidores insatisfeitos. Cada vez mais as empresas hegemônicas produzem o consumidor antes mesmo de produzir os produtos; cada vez mais governos inspiram-se no mercado para gerir cidades; e se utilizam de um discurso convincente, cuja base é a ideologia tecida ao redor do consumo e da informação ideologizados (Santos, 2007). Toda a vida em sociedade pressupõe linguagens que traduzam valores compartilhados. A arte, enquanto recurso da apreensão da complexidade da vida urbana, sugere práticas que incentivam uma leitura renovada do urbano, enquanto realidade densa e diversa. Algumas expressões artísticas, especialmente criadas em territórios estigmatizados, evidenciam um descontentamento ativo, capaz de retratar o cotidiano com base em outros ângulos de observação. Tais expressões revelam uma atitude contestadora e propositiva que indica que o aprofundamento da crise social não elimina a inventividade permitida pela experiência social (Ribeiro e Lourenço, 2005). E este seria o sentido amplo do processo educativo que a arte no espaço urbano pode promover. Diálogos e saberes na metrópole do Rio de Janeiro Tal como Ribeiro (2004a) propõe, algumas ideias e conceitos sinalizam rumos possíveis para a ação social e que correspondem a verdadeiras ferramentas para a elaboração de projetos voltados ao desvendamento de relações sociedade-espaço, conduzidas por racionalidades alternativas. Para a autora, por meio da ideia-conceito de saber manifesta-se a frente de investimentos reflexivos voltada ao diagnóstico dos efeitos nocivos da tecnociência, associada ao esmaecimento da pauta humanista e da produção científica que, abrigada nos códigos do racionalismo ocidental, nega o diálogo com o senso comum (ib., p. 54). Tal como propõe Carrano (2003), inspirado em Bakhtin, a complexidade da vida social nas cidades necessita ser compreendida em sua dimensão comunicacional dialógica. A cidade polifônica Arte, educação e cidadania
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abriga múltiplas vozes que se cruzam, relacionando-se por sobreposição e contrastes. Assim, “a autoria é múltipla” e a organização democrática de espaços e tempos das cidades identifica-se com a instauração de práticas educadoras orientadas para a produção continuada do humano segundo as necessidades sociais concretas e as trocas comunicativas que produzem sentidos culturais. A promoção de circunstâncias e ações transformadoras é potencializada por práticas educativas que caminham no sentido da produção de subjetividades múltiplas, que incorporam a complexidade da vida social, os conflitos e os diálogos que a cidade pode promover e incentivar. O reconhecimento e o incentivo ao diálogo de saberes colabora com a consolidação de uma episteme sensível e dialógica, que não só é necessária, como é urgente para pensar o urbano. Tal como indica Souza em sua crítica ao planejamento e à gestão urbanos, é necessário “debruçar-se sobre as possibilidades de ação, refletindo sobre perspectivas, limitações e potencialidades” (2004, p. 36), de um ângulo que denomina de dialógico. Para o autor, a missão do intelectual/pesquisador/planejador passa por chamar a atenção para aqueles que, para ele, são, ao mesmo tempo, objeto de conhecimento e sujeitos históricos, cuja autonomia precisa ser respeitada e estimulada. A ideia é dar voz ao outro, reconhecendo-o por meio de sua própria fala, de modo que seja possível aproximar o senso comum dos acúmulos teóricos abarcados na pesquisa sobre a vida urbana. O adjetivo dialógico usado por Souza é tomado de empréstimo de Paulo Freire, cuja obra possui um destacado alcance político-filosófico que, de acordo com o geógrafo, é simbolizado pela sentença “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; os homens se libertam em comunhão” (2000, p. 58). O ensinamento de Freire sobre o ato de educar reside em vê-lo não apenas como dialético, mas verdadeiramente como dialógico, isto é, fundado no diálogo. Ensinamento que possui nítida relevância para a ação coletiva em geral que, para Souza (ib.), inclui o planejamento urbano crítico e qualquer processo organizado de mudança social. O diálogo proposto por Freire tem um sentido político filosófico próximo ao indicado por Lefebvre (2001), quando este autor 180
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sugere que uma teoria geral da cidade e da sociedade urbana utilize recursos da ciência e da arte. Apreender as formas pelas quais a arte nos permite reconhecer apropriações e diferentes racionalidades constitutivas da vida social em uma cidade como o Rio de Janeiro, é, portanto, uma opção de método que enxerga na arte um importante recurso para a apreensão das ações daqueles que efetivamente estimulam diálogos sobre (e no) espaço urbano. Alguns sujeitos, em suas ações cotidianas, criam uma forma comunicação sensível que traduz necessidades e desejos, muitas vezes desvalorizados pelos técnicos e teóricos que se negam a ouvir as vozes do homem comum – não especialista em planejamento urbano. A ação conjunta entre cidadãos, pesquisadores e planejadores urbanos é ressaltada por Souza (2004, p. 69), que, inspirando-se em Chaui (apud Souza, 2004), destaca o risco do “discurso competente” revelar-se como uma ideologia tecnocrática e, em última instância, autoritária, quando nega aos não especialistas em uma dada matéria o direito de participarem ativamente da produção daquele saber e da sua aplicação, mesmo quando esta aplicação afeta a vida e os interesses de muitos, como é o caso do planejamento urbano. Em concordância com este autor, afirmamos que o saber popular sobre a vida cotidiana pode ser importante para refletirmos a própria maneira como fazemos ciência e nossa formação enquanto técnicos e cientistas sociais. Para Souza, mesmo que pareçam termos antagônicos, “técnica/ciência” versus “política”, “reforma” versus “revolução”, “planejamento” versus “liberdade”, podem e devem ser integrados não apenas retoricamente – o que para o autor já seria válido –, mas conceitual, teórica e metodologicamente. Acreditamos que, para superar a racionalidade dominante, é preciso ver o planejamento como algo bem mais amplo do que uma ação estatal baseada em uma técnica puramente objetiva. Tal como afirma Souza (2004, p. 37), um planejamento crítico não arrogante não pode simplesmente ignorar saberes locais e mundos da vida de homens e mulheres concretos, como se suas aspirações e necessidades devessem ser definidas por outros que não eles mesmos. As artes podem sugerir formas de resistência às leituras do Arte, educação e cidadania
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urbano que transformam a grande cidade no cenário sem história dos interesses hegemônicos. A proposta de consolidar uma episteme dialógica e criativa que permita desvendar a complexidade do (e com o) outro (Ribeiro, 2004b) parte do pressuposto de que é por meio do diálogo entre ciência e política que vai se dar a superação de um pensamento pragmático e operacional que ainda é dominante, mas não único. Para Ribeiro (2004a), lugar e saber são ideias-conceitos e também ideias-projetos. Segundo a autora, na obra de Milton Santos, são indicadas experiências e expectativas que, desdobradas nos espaços opacos (antagônicos aos espaços luminosos do agir operacional, estratégico e do marketing), propiciam a resistência social (Santos apud Ribeiro, 2004b). Para a autora, tais noções indicam contextos propícios à descoberta de temas que devem ser incorporados à pesquisa socialmente comprometida, além de orientar a busca do sujeito da transformação e de um modelo cívico que favoreça a real experiência da cidadania. Como afirma Porto-Gonçalves (2006), novos territórios epistêmicos estão tendo que ser reinventados juntamente com outros territórios de existência material silenciados pela escrita da história. Enfim, são novas formas de significar nosso estar-no-mundo, de grafar a terra, de inventar novas territorialidades, enfim de geo-grafar (ib.). E essa geografia transformada em ação evidencia aquilo que Santos (apud Ribeiro, 2004a) falava acerca da existência como produtora de sua própria pedagogia. De acordo com Ribeiro, assumindo tarefas conceituais associadas à valorização do lugar, Milton Santos reposicionou a categoria território na teoria crítica do espaço, alertando para sua relevância na ação política, por meio da compreensão do território usado. Assim, Ribeiro nos chama atenção para o fato de que “o saber é a força dos lugares, da mesma forma que o lugar é a seiva de diferentes saberes” (2004a, p. 47). Para a autora, ambas as ideias (conceitos e projetos) correspondem à tenacidade do existir, à insistência do fazer a vida, à riqueza do agir realmente experimentado. São ideias que conduzem, sem separá-los para além do que a ética exige, conheci182
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mento e ação política, e que, ao trazerem concretude à luta por cidadania, obrigam o repensar de relevantes fenômenos sociais (Ribeiro, 2004a, p. 53). Racionalidades alternativas frente à razão instrumental O aprofundamento das relações capitalistas em todos os ângulos da vida social está associado ao triunfo da supremacia da razão instrumental ocidental, mesmo que não seja possível reduzir o ocidente ao sistema econômico hegemônico. A razão instrumental de base ocidental alcançou a supremacia produzindo fragmentação não apenas como projeto dominante, mas também como fato (ib.). Na base do pensamento ocidental, encontra-se um racionalismo centrado na obtenção do lucro e do poder. Para Morin, o economicismo torna-se ideologia racionalizadora e o desenvolvimento economico-tecnoburocrático das sociedades ocidentais tende a instituir uma racionalidade “instrumental”, em que eficácia e rendimento parecem trazer a realização da racionalidade social (2002, p. 160). Sob a égide do individualismo e da competitividade e orientada para a dominação, essa razão oculta mecanismos garantidores da permanência de formas tradicionais de estratificação social e divisão territorial, contribuindo para que a superação da crise pareça ainda mais distante e difícil de ser alcançada. No entanto, este pensamento dominante mostra-se desgastado e incapaz de promover integração, exatamente pelo fato de partir do imperativo da dominação e do medo do outro. Ainda assim, Santos (2007) alerta para o fato de que o medo e o desamparo se criam mutuamente, fazendo com que a busca desenfreada pelo dinheiro seja tanto causa como consequência deste desamparo e medo. Não à toa, Garaudy (1983) considera que o ocidente é um acidente. Para o autor, o ocidente não é apenas uma entidade “geográfica” e sim um estado de espírito que se orienta para a dominação da natureza e dos homens. Uma nova episteme torna-se necessária e urgente para o Arte, educação e cidadania
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reconhecimento de toda a complexidade e a diversidade da vida urbana atual; não somente pelo fato da ordem hegemônica não ser uma ordem total, mas também pela limitação do modelo mecanicista de leitura da sociedade. É necessário ter uma imaginação analítica mais ampla, no que diz respeito a teorias e métodos, para que seja possível realizar uma reflexão crítica e consistente sobre as alternativas existentes à racionalidade dominante. Tal como havíamos ressaltado (Oliveira, 2008), a emergência poética do novo exige uma postura aberta a uma nova atitude diante do mundo, especialmente no que se refere à relação sociedade-natureza e no que tange as relações entre os homens. Garaudy (1983) sugere a abertura do horizonte reflexivo para novos possíveis, capazes de orientar a concepção de um mundo diferente e um crescimento econômico com face humana. O autor ainda afirma que para que o “projeto esperança” possa criar um tecido social novo e um conceito inusitado de política, é preciso superar a concepção da teoria política como instrumento de poder ao dispor de instituições e aparelhos exteriores ao homem. Uma nova reflexão precisaria surgir, portanto, apoiada no engajamento pessoal e interior de cada um com o todo e é justamente porque estamos falando de formação do sujeito que as práticas culturais e educativas na cidade tornam-se mais necessárias e urgentes rumo a uma cidadania ativa. A reflexão de Garaudy aproxima-se muito da “nova visão” proposta pela música de BNegão, a partir da qual o compositor propõe uma mudança nos valores que estão na base das relações humanas. Nesta letra, BNegão fala da força da ação individual e também da força que vários sujeitos adquirem ao se unirem em um projeto comum. O verso que fala de uma nova geração que faz do “microfone um megafone”, que “passando de mono pra estéreo a sua compreensão” sugere uma ampliação da forma de ver os fatos, por meio de mais de um canal de comunicação, de escuta. Esta metáfora do mono para o estéreo evidencia que “uma nova visão” só pode ser construída por meio da escuta das múltiplas vozes que nos permitem ver o mundo para além do que oferece o pensamento único (mono). Para o músico BNegão, na raiz dos problemas da humanidade 184
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está a “supervalorização da matéria” e o individualismo, que sustentam o consumismo e a competição por uma “vitória a qualquer custo” geradores de miséria e violência. Para o compositor, o valor individual está longe de ser traduzido pelo que a pessoa tem. Este valor surge no que a pessoa é, na sua existência e ação cotidiana. Ao questionar o comportamento individual, o compositor sugere uma nova visão: “antes de querer que a humanidade mude, que tal mudar um pouco nosso próprio ponto de vista?”. A “nova visão” de BNegão inclui a superação da hipocrisia ou da tendência de exigir dos outros aquilo que não fazemos e, também, a não reprodução no cotidiano dos deslizes morais que estão na base de uma sociedade injusta, como a hierarquização desnecessária e a exploração “do mais fraco”. Destacam-se na letra os seguintes versos: “Nada muda, enquanto não mudarem os valores na raiz de todos, eu disse todos – exploradores e explorados, violentadores e violentados – tudo é meio a meio, tudo caminha lado a lado”. O estímulo ao consumismo, ao individualismo e à competitividade tende a ameaçar o compartilhamento de valores e códigos comportamentais, provocando conflitos e desagregação social (Ribeiro, 2004a). Mas é preciso estar atento para não ocultar as formas por meio das quais o capitalismo se preserva, como a que envolve a generalização da certeza de que as pessoas são competitivas, individualistas e consumistas (ib.). Para Milton Santos, Neste mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão dos espíritos constituem baluartes do presente estado de coisas. A competitividade comanda nossas formas de ação. O consumo comanda nossas formas de inação. E a confusão dos espíritos impede o nosso entendimento do mundo, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós mesmos (Santos, 2007, p. 120). O contexto espaço-temporal que estimula a presente reflexão é a cidade do Rio de Janeiro do início da década de 1990 aos dias atuais. Nesse período, em que ocorre a combinação entre política neoliberal e o avanço de novas tecnologias, o capitalismo reorganiza-se na escala mundial, revelando o aumento da concentraArte, educação e cidadania
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ção do poder econômico, da desigualdade social, enquanto variadas formas de violência evidenciam, por sua vez, o predomínio de uma ação pragmática em relação ao território – cujos princípios são orientados pela lógica da troca e da propriedade. Sobre a violência, Santos (2007) alerta para a existência de uma violência estrutural que evidencia o fato de que vivemos em uma época de globalitarismo muito mais do que de globalização. A violência difusa, mas estrutural, que é típica de nosso tempo, permite que Santos afirme que a realidade é uma fábrica de perversidades. O autor nos fala ainda da perversidade sistêmica, cuja causa essencial é a instituição da competitividade como regra absoluta, fazendo do outro uma coisa a ser removida. Daí decorrem: a celebração do egoísmo, do narcisismo, da corrupção e o abandono da solidariedade entre pessoas, grupos e lugares. Para Santos, estas são as causas da submissão da vida de todos os dias a uma violência estrutural, que é mãe de todas as outras formas de violência. A violência urbana é, portanto, um sintoma desse mal maior, que muitos buscam confrontar por meio de ações e gestos desvalorizados pelo pensamento acadêmico dominante. Quando se pretende refletir as consequências de um planejamento urbano de cunho empresarial, (Souza, 2004) a cidade do Rio de Janeiro oferece um bom caso para exame. Segundo o referido autor, No Brasil, as perspectivas mercadófilas têm se aninhado, a partir da década de 90, no discurso dos “planos estratégicos”. O mais conhecido exemplo é o Rio de Janeiro, elaborado durante a administração do prefeito César Maia pela prefeitura em parceria com numerosas entidades da sociedade civil (ib.). De acordo com dados apresentados por Souza (2004), “tentase criar a sensação de um firme consenso”, quando em realidade “linhas de tensão e conflito são escamoteadas em favor de uma imagem de unidade”. O modelo de gestão urbana adotado na cidade do Rio de Janeiro tem favorecido os interesses privados – empresariais – em detrimento dos interesses coletivos. Este 186
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modelo de gestão urbana está conectado ao metabolismo do capital e fortalece a lógica da competitividade, por visar tornar a cidade competitiva e “preparada” para o abrigo dos megaeventos internacionais, enfraquecendo o diálogo entre segmentos e grupos sociais, justamente no momento em que este diálogo precisa ser estimulado para que seja contido o aumento da violência urbana (Ribeiro, 2006b). A crise – que altera a dinâmica do capital e produz fragmentação socioterritorial para a garantia do lucro – reflete-se na adesão do modelo da cidade-marketing-espetáculo, cujo estilo de intervenção cosmética, estética e imagética reforça os contrastes sociais, com as suas consequências mais perversas, como a indiferença e o medo do outro. Os modelos de gestão urbana interessam a essa análise por interferirem fortemente no uso e na apropriação dos lugares da cidade, por evidenciarem suas consequências nas práticas culturais e educativas e por revelarem a materialização da razão global no território. Segundo Garcia (1997), para forjar um consenso em torno do modelo dominante de gestão urbana, governo locais e agentes econômicos evocam a exigência da economia competitiva. São assim elaborados projetos de renovação urbana, por meio de estratégias transescalares, que buscam projetar positivamente a imagem da cidade. Este modelo produz representações que obedecem a uma determinada visão de mundo e a uma série de imagens-síntese (Ribeiro, 1991) sobre a cidade que muitas vezes não corresponde à realidade sentida nos lugares menos luminosos. São assim criados discursos referentes à cidade, de forma a encontrar na mídia e nas políticas de city marketing, os instrumentos para a sua difusão e afirmação urbana (Garcia, 1997). A retórica planetária dos atores hegemônicos (Paraire apud Garcia, 1997) tende a instaurar o pensamento único – uma ideologia que, em sua vertente urbana, configura uma agenda para as cidades, com pautas e programas definidos para a promoção e a legitimação de determinados projetos, como sediar megaeventos internacionais. Suas imagens publicitárias baseiam-se nas chamadas “cidades-modelo” e seus pontos de irradiação coincidem com as instâncias políticas de produção de discursos: goverArte, educação e cidadania
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nos locais em associação com as mídias; instituições supranacionais, como a Comunidade Europeia; agências multilaterais como o Banco Mundial, o BID ou a ONU. As agências de cooperação e instituições multilaterais têm grande comprometimento com a difusão deste modelo e seu ideário. Ainda segundo Garcia (ib.), a identificação destes elos políticos entre as agências multilaterais de cooperação e alguns dos principais ideólogos encarregados da difusão do “novo modelo de gestão urbana” nos permite o entendimento das conexões entre o chamado “pensamento global” e a ideologia neoliberal. Tal como afirma Garcia, esse modelo propõe mudanças tanto no nível das práticas espaciais (infraestruturas, isenções e favores fiscais) quanto no nível das representações do espaço (imagens, discursos), que fazem da mercadoria cidade, um palco onde o espetáculo é conduzido por atores que cumprem o papel de consumidores específicos e qualificados: o capital internacional, os turistas e os cidadãos “solváveis”. Tal como afirma Ribeiro, o discurso que difunde novos ideários para a gestão urbana, realçando o mercado e a iniciativa empresarial, não deve ser compreendido, apenas, como sinal de alienação; pois, concretamente, este discurso defende interesses que conectam a vida urbana ao metabolismo do capital (Ribeiro, 2006a, p. 45). No discurso que busca interferir no senso comum, o modelo da cidade competitiva aparece como resultado do desempenho dos governos de cidade que, por meio das denominadas boas práticas, conseguiram destacar-se na ação urbanística, ambiental ou na gestão urbana. Esta aparência esconde um complexo mercado onde as imagens são construídas e postas em circulação em variadas escalas, com mútuas influências de diversas ordens, e o conjunto de agentes e estratégias territoriais interescalares comparecem para gerar o convencimento de que as ações ocorrem de dentro para fora, a partir da ação local de governos e habitantes (Garcia, 1997). A perversidade da tentativa de implantar este modelo está 188
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no fato de que os governos municipais tendem a se desfazer de sua responsabilidade com relação a toda a área urbana e a concentrar investimentos em fragmentos centrais, obedecendo à lógica de uma política de localização que segue critérios econômicos no contexto de uma competição entre as cidades criada com o objetivo de gerar a máxima produtividade e lucratividade. Em trabalho anterior (Oliveira, 2004), identificamos as desigualdades que marcam as políticas culturais da cidade do Rio de Janeiro, enfatizando o acesso à cultura como um direito à vida urbana renovada, em que são mais equilibradas as oportunidades de produção e uso da cultura. Destacamos que esta renovação da vida urbana exige uma postura ativa do sujeito na luta para que a produção cultural não seja definida exclusivamente por uma política cultural orientada pela lógica da troca e do mercado hegemônico, que vê no lucro imediato o motor principal da ação. No caso do Rio de Janeiro, o Rio Cidade é o plano de reforma urbanística que buscou obedecer ao signo da ordem e ao signo do embelezamento, atingindo a cidade de modo pontual e diferenciado (Oliveira, 2002). Tal como afirma Oliveira, a reforma da cidade, a criação ou a recriação do solo urbano, o embelezamento e a adequação da cidade a novas situações mundiais, aparece recorrentemente no discurso de políticos, engenheiros, arquitetos e urbanistas. As atividades instigadas por interesses econômicos são pertinentes à análise por seus efeitos em práticas mais subjetivas, já que projetos culturais dessa perspectiva perdem grande parte da relevância intrínseca (Pallamin e Ludemann, 2002). Assim, concordamos com a autora quando esta diz que práticas que promovem a espetacularização da cidade atuam no sentido da crescente legitimação de valores que disciplinam e dominam as esferas do cotidiano, em vez de lhes abrir novos campos de autonomia. Tais práticas caminham no sentido oposto aos sugeridos pelas práticas educativas que afirmam de maneira plena a cidadania. Os processos de formação da subjetividade e dos valores sociais ocorrem de modo diferenciado em variadas partes da cidade. A opção por privilegiar o homem lento, habitante das áreas opacas da cidade, que vivencia o espaço do aproximativo Arte, educação e cidadania
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(Santos, 1997), parte da necessidade de considerarmos a voz do sujeito que resiste, ainda que não de forma completamente consciente, às imposições de um modo de vida que já dá sinais de esgotamento. Tal como Ribeiro e Lourenço (2005), entendemos o homem lento como uma síntese político-filosófica do outro e da sua capacidade de criar o discurso que exprime suas carências e de criar caminhos para sua sobrevivência. Assim, o homem lento sintetiza sentidos mais amplos da organização social e da participação política daqueles que, por habitarem as áreas opacas da cidade, são os mais prejudicados pela lógica hegemônica do capital. O homem lento desvenda o espaço enquanto o mundo impõe a adesão à velocidade, ao individualismo e à competitividade. Tal como Ribeiro, acreditamos que “são os que experimentam a escassez que precisam desvendar as múltiplas ações possíveis permitidas pelo espaço herdado e costurar projetos num tecido social esgarçado e precário” (2005b). Considerações finais A identificação da “polifonia urbana”, isto é, do reconhecimento da existência de ações insurgentes, cujo sentido político estaria na propagação de outras falas sobre o urbano – artes que evidenciam insatisfação frente a uma ordem específica e, ainda, o potencial de renovação da vida na cidade – constitui a base de uma leitura da dialética entre objetividade e subjetividade. Muitas vozes querem estabelecer o diálogo, o encontro das diferenças para que a vida urbana possa ter um sentido mais positivo. Algumas buscam dar visibilidade a uma existência negligenciada e fazer poesia a partir dos conflitos experimentados no urbano. Em comum, estas expressões artísticas vindas “de baixo” têm a capacidade de criar outros imaginários que revelam territorialidades, identidades, lugares escondidos e práticas socioespaciais bastante relevantes para a reflexão sobre a vida na metrópole e o aprendizado da cidadania. A proposta concreta que desenvolvemos busca evidenciar como a arte parece gerar um sentido novo – criativo, inventivo e libertário – para o sujeito que busca questionar e romper os meca190
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nismos de fragmentação do espaço. Trata-se de buscar compreender como a arte pode enriquecer essa linguagem que os agentes acionam no espaço público e como este aprendizado pode ser fortalecedor das lutas por justiça social. Tal como sugere Carrano (2003), uma pauta alternativa à hegemonia neoliberal aponta para o reconhecimento da cidade como espaço legítimo e necessário à educação em condições de pluralismo cultural e como processo social de compartilhamento de significados e sentidos culturais. O diálogo de saberes parte do pressuposto de que o potencial educativo das formas descontínuas de aprendizagem cria numerosas possibilidades para a incorporação do inesperado e da flexibilidade educacional em diferentes âmbitos da vida social. Tal incorporação considera os sentidos e interesses das diferentes subjetividades como vitais para a afirmação de uma cidadania ativa. Para Carrano (2003) “as ruas, transformadas em espaços de sociabilidade cidadã podem ser, ao mesmo tempo, educativas e culturalmente públicas”. Para o autor, a perda da cultura pública leva ao desconhecimento do próprio sentido de cidade e “as cidades violentamente protegidas e vigiadas, o próprio corpo tende a tornar-se também hermético e impermeável a outros corpos” (ib.). A cidade que educa não é apenas a que planeja pedagogicamente os espaços de aprendizagem: as relações podem ser educativas também no contexto de redes informais de sociabilidade e conhecimento (ib.) e as artes evidenciam formas difusas assumidas nos espaços praticados e reveladoras de experiências criativas e não planejadas de produção do espaço urbano. A arte no espaço público pode, ainda, revelar o sentido libertário da ação social e formas singelas de expressão de lutas pelo direito à cidade, como no caso da estátua-viva que ganhou apoio popular e conseguiu se livrar do choque de ordem, e cuja sensibilidade analítica permite a construção de novos conhecimentos sobre a vida urbana.
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Dia a casa Noite a rua Os músicos da rua Todos tocam e perda de silêncio Sob o céu negro nós vemos claro A lamparina está cheia de nossos olhos Nós habitamos nosso vale Nossos muros nossas flores nosso sol Nossas cores e nossa luz A capital do sol É a imagem de nós mesmos E no asilo de nossos muros Nossa porta é a dos homens Paul Éluard, “Por um beijo”, em Últimos poemas de amor
Lamparina (Do esp. lamparilla) S. f. 1. Pequena lâmpada. 2. Pequeno recipiente com um líquido iluminante (óleo, querosene, etc.) no qual se mergulha um pequeno disco de madeira, de cortiça ou de metal traspassado por um pavio que, aceso, fornece luz atenuada […]. Novo Aurélio – O dicionário da língua portuguesa
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Esta obra foi composta em Charter e impressa em papel offset 75g/m2 pela Vozes para a Lamparina editora em setembro de 2011
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