Carlos Nelson Coutinho e a Renovação do Marxismo no Brasil [1 ed.] 9788577432134


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Carlos Nelson Coutinho e a Renovação do Marxismo no Brasil [1 ed.]
 9788577432134

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Elaine Rossetti Behring

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E A RENOVAÇÃO DO MARXISMO NO BRASIL

Francisco de Oliveira

Marcelo Braz (org.)

C

arlos Nelson Coutinho nos deixou e é uma lástima que o livro em sua homenagem somente venha a luz depois de sua morte. Não por vaidade, pois Carlos foi poupado desse duvidoso sentimento de autoelogio, teria sido bom que ele pudesse ler o que seus amigos, admiradores e seguidores pensavam dele. Do que ele fez para nos melhorar a cada um de nós e de sua obra de esclarecimento – sim, na melhor tradição do Esclarecimento – do mundo e do Brasil, de nossa sociedade. Agora, fica para nós a missão de prosseguir com sua luta incansável, mas bem humorada, na melhor tradição socialista. Lembro-me de ter lhe dito, numa das vezes em que estivemos juntos – e foram muitas nos últimos tempos: “Carlos, o mundo só vai melhorar quando todos formos socialistas”. Ele me corrigiu: “quando todos formos comunistas”. Aproveito, sem nenhuma culpa de plágio, o que Eduardo Suplicy disse por ocasião do enterro do grande Octavio Ianni, já há muitos anos: “Uma salva de palmas para alguém que melhorou a nossa espécie!”. É isso que sentimos todos nesse momento. Não vou comentar a grandeza da obra intelectual de Carlos, nosso Carlito, pois isso os anos vindouros farão. Mas lembrar o homem que brindou nossas vidas com inteligência, alegria e socialismo.

CARLOS NELSON COUTINHO

A coletânea que o leitor tem em mãos reúne depoimentos e textos de gerações diferentes de intelectuais e militantes vinculados à tradição marxista e que comentam a vida e a obra de Carlos Nelson Coutinho, um comunista irredutível. Seu legado para a emancipação humana e brasileira é debatido a partir dos eixos da introdução de Gramsci no Brasil, da crítica à miséria da razão a partir de Lukács, também introduzido no país com sua contribuição. Mas nos deparamos também com comentários densos acerca de suas reflexões sobre a cultura e a literatura, e de um balanço de sua enorme contribuição para a formação na área do Serviço Social nas últimas décadas. Seus textos hoje são verdadeiros clássicos do pensamento crítico e cada linha desta obra introduz os leitores no seu universo de reflexão, como uma antessala muito qualificada para o mergulho em textos imprescindíveis, instigantes, polêmicos e de combate, a exemplo de Democracia como Valor Universal e O Estruturalismo e a Miséria da Razão. Temos, então, uma merecida homenagem a este grande mestre, que tenho a felicidade de compartilhar e recomendar de forma apaixonada, pois política e teoria não caminham sem emoção, conforme aprendi com Antonio Gramsci pelas mãos de Carlos Nelson Coutinho.

Marcelo Braz (org.)

CARLOS NELSON COUTINHO E A RENOVAÇÃO DO MARXISMO NO BRASIL

O poeta João Cabral de Melo Neto dizia que o que vive não entorpece, o que vive fere porque se choca com que está vivo. Carlos Nelson Coutinho, baiano de Itabuna, viveu entre o que está vivo, incomodando de vida o que silencia, chocando com arestas as certezas retas, porque vivo, chocou-se com o que vive. Quem o conheceu testemunha sua imensa generosidade, mas sabe que sob a baianidade acolhedora fervilhava o propagandista de convicções sinceras, sempre disposto a provocações, polêmicas e debates dos quais os mais empedernidos adversários saiam como que de uma conversa com um velho amigo ou parente querido. A multifacetada obra deste grande marxista que reflete desde os temas da cultura, da particularidade da formação social brasileira, da filosofia política até os temas da conjuntura, da teoria literária à estratégia da revolução brasileira, ainda merecerá estudos e aprofundamentos, mas de uma coisa temos certeza: estamos diante de um pensador unitário e coerente. Seu corpo foi carregado sob a bandeira vermelha por militantes do MST, acompanhado em sua última homenagem por colegas, amigos, alunos, poetas militantes de vários partidos e de todas as gerações. Cantamos a Internacional e repetimos esperançosos: “paz entre nós, guerra aos senhores”. Assim, este livro é mais que uma justa homenagem, é um ponto de partida de um estudo necessário sobre sua obra. Mauro Luis Iasi

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Marcelo Braz (org.)

CARLOS NELSON COUTINHO E A RENOVAÇÃO DO MARXISMO NO BRASIL Aloísio Teixeira Celso Frederico Eduardo Granja Coutinho Gaudêncio Frigotto Giovanni Semeraro Henrique Wellen Ivete Simionatto José Paulo Netto Leandro Konder Marildo Menegat Mavi Rodrigues Michael Löwy Milton Temer Ranieri Carli Rodrigo Castelo Virgínia Fontes

1ª edição Expressão Popular São Paulo – 2012

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Copyright © 2012, Expressão Popular

Revisão: Maria Elaine Andreoti e Miguel Cavalcanti Yoshida Capa, e diagramação: Zap Design Projeto gráfico: Krits Estúdio Impressão: Cromosete Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) C258 Carlos Nelson Coutinho: e a renovação do marxismo no Brasil. / Marcelo Braz (org.); Aloísio Teixeira, Celso Frederico, Eduardo Granja Coutinho...[et al.]—1.ed. — São Paulo : Expressão Popular, 2012. 432 p. : fots.

Vários autores. Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br Textos em português e espanhol. ISBN 978-85-7743-213-4

1. Marxismo - Brasil. 2. Carlos Nelson Coutinho e marxismo. 3. Intelectuais e marxismo - Brasil. I. Braz, Marcelo, org. II. Teixeira, Aloísio. III. Frederico, Celso. VI. Coutinho, Eduardo Granja. V. Título. CDD 305.520981 Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora. 1ª edição: outubro de 2012 EXPRESSÃO POPULAR Rua Abolição, 201 – Bela Vista CEP 01319-010 – São Paulo – SP Fone: (11) 3105-9500 / 3522-7516 / Fax: (11) 3112-0941 www.expressaopopular.com.br editora.expressaopopular.com.br [email protected]

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Sumário

NOTA EDITORIAL...................................................................................... 9 NOTA DO ORGANIZADOR...................................................................... 11 TESTEMUNHOS Leandro Konder .............................................................................................. 17 Michael Löwy.................................................................................................. 27 Aloísio Teixeira................................................................................................ 33 Milton Temer................................................................................................... 45

AS IDEIAS MARXISTAS Breve nota sobre um marxista convicto e confesso........................................... 51 José Paulo Netto “Figura de exceção”: dois momentos de Carlos Nelson Coutinho.................... 85 Celso Frederico Gramsci no Brasil: a contribuição de Carlos Nelson Coutinho........................ 99 Giovanni Semeraro Carlos Nelson Coutinho: a crítica marxista da literatura................................. 121 Henrique Wellen e Ranieri Carli “O estruturalismo e a miséria da razão”: bases para uma crítica a Foucault..... 145 Mavi Rodrigues

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A ANÁLISE MARXISTA DO BRASIL Carlos Nelson Coutinho: intérprete do Brasil.................................................. 175 Virgínia Fontes Carlos Nelson e o Brasil contemporâneo......................................................... 205 Marildo Menegat “A democracia como valor universal”: um clássico da esquerda no Brasil......... 237 Marcelo Braz Carlos Nelson Coutinho e a controvérsia sobre o neoliberalismo..................... 287 Rodrigo Castelo Carlos Nelson Coutinho e a “questão cultural” no Brasil................................ 321 Eduardo Granja Coutinho

INFLUÊNCIA NA EDUCAÇÃO E NO SERVIÇO SOCIAL Carlos Nelson Coutinho e a educação como espaço de luta contra-hegemônica.......................................................... 343 Gaudêncio Frigotto Carlos Nelson Coutinho e a incidência de Gramsci no Serviço Social............. 365 Ivete Simionatto ENTREVISTA Conversa com um “marxista convicto e confesso”........................................... 387 Sobre os autores............................................................................................... 423

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Vale a pena viver quando se é comunista. Antonio Gramsci

A primeira coisa fundamental para minha formação foi ter descoberto, aos catorze anos, na biblioteca do meu pai, o Manifesto do partido comunista e Do socialismo utópico ao socialismo científico. (...) Li o Manifesto de um só fôlego (...) e, tão logo terminei a leitura, já era comunista.

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Nota editorial

Amigos, companheiros e alunos de Carlos Nelson Coutinho, no Brasil e no exterior, organizavam, para junho de 2013 (quando Carlos Nelson completaria 70 anos), um seminário internacional em sua homenagem. O seu falecimento, no Rio de Janeiro, na manhã do dia 20 de setembro do corrente ano, interrompeu os preparativos em curso. Dos textos publicados neste livro, todos redigidos antes da sua morte, vários constituem materiais que seriam objeto de discussão no seminário planejado. Para divulgá-los agora, sob os cuidados do Professor Marcelo Braz – ex-aluno de Carlos Nelson e depois seu colega de trabalho na Universidade Federal do Rio de Janeiro –, não foi possível contar com a contribuição dos intelectuais estrangeiros que já estavam contactados para participar do evento. Com a rápida produção deste livro, a Expressão Popular associa-se aos muitos e merecidos preitos de homenagem (no Brasil e noutros países) a Carlos Nelson Coutinho, que, nos últimos cinco anos, colaborou ativamente conosco, em seu trabalho solidário e militante. Os Editores

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Nota do organizador

Há muito, Antonio Candido, numa entrevista a uma outrora credível revista semanal (Veja, São Paulo, edição de 15 de outubro de 1975), indagado acerca da crítica cultural relevante que se operava no Brasil, respondeu sem vacilar: “Fora da universidade, eu mencionaria o grupo em torno do jovem Carlos Nelson Coutinho”. Estava Carlos Nelson Coutinho, então, com 32 anos. Não foi Candido o único grande intelectual brasileiro a reconhecer seus méritos – fizeram-no, igualmente e entre outros, Nelson Werneck Sodré, Alfredo Bosi e Raymundo Faoro. Corridas quase quatro décadas desde o juízo enunciado por Candido, a respeitabilidade e o prestígio de Carlos Nelson – mercê da sua atividade intelectual em todos esses anos – tornaram-se ainda mais reconhecidos. É consensual, na intelectualidade brasileira, que ele, pioneiro na introdução, em nosso país, da obra de pensadores do peso de György Lukács e de Antonio Gramsci, contribuiu decisivamente para a renovação do marxismo no Brasil, quer pela sua difusão teórica, quer pela sua criativa utilização na análise da nossa cultura e da nossa história. E mais: mesmo aqueles que discordam de suas ideias concedem na admissão da sua relevância e na admiração por sua coerência, uma vez que Carlos

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Nelson não é um simples teórico – é um intelectual que sempre soube articular o seu pensamento com a sua intervenção política. Sua extensa e diversa produção intelectual se inicia no final dos anos 1960 e cobre quase meio século de trabalho ininterrupto. Alguns dos seus textos e livros consagraram-se como verdadeiros clássicos da ensaística brasileira – Graciliano Ramos (1966), O estruturalismo e a miséria da razão (1972), O significado de Lima Barreto na literatura brasileira (1974) e A democracia como valor universal (1979) –, com enorme ressonância. Pensador de alto nível, com intervenção que ultrapassa as fronteiras nacionais, militante social e político por toda uma vida, professor universitário, Carlos Nelson vinha sendo, quando já se aproximava do seu septuagésimo aniversário, objeto de várias homenagens. Este livro pretende ser, no marco dos tributos à sua destacada personalidade, mais um documento da sua importância na cultura e na política brasileiras. Ele articula depoimentos e ensaios – de autores de várias e distintas gerações e posições – que seguramente auxiliam a iluminar as condições em que se realizou a obra polifacética de Carlos Nelson, ao mesmo tempo em que esclarece os seus núcleos constitutivos. Cada uma das faces de sua obra é objeto dos autores aqui reunidos. Mas o livro quer ser mais que uma justa homenagem a Carlos Nelson. Pretende contribuir para que as novas gerações de intelectuais brasileiros, conhecendo a sua obra para avaliá-la na sua fecundidade e nos seus limites, reconheçam sua coragem na “batalha das ideias” que travou ao longo de tempos difíceis e possam entender que nenhuma batalha desenrola-se como preveem aqueles que armam os planos (Tolstoi). Agradecimentos

A organização do livro não me seria possível sem o apoio de alguns amigos e amigas que desde o início o estimularam. Dentre 12

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tantos, não poderia deixar de lembrar Mavi e Leila, queridas amigas que participaram da germinação da ideia. Os companheiros do Conselho Diretor da Escola de Serviço Social da UFRJ, especialmente Eduardo, Luis, Sara, Marcos e Rodrigo e, ainda, José Maria, Zezé, Carlos e Rauta. Andrea Teixeira que, mesmo diante do momento difícil que vive, conseguiu reunir forças para apoiar o projeto. Zé Paulo, que, com sua experiência e disponibilidade, deu-me dicas preciosas. E minha companheira, Viviane, que, além de me incentivar com seu amor, ajudou-me na preparação do texto de Aloísio Teixeira e na reprodução do texto de Leandro Konder. Rio de Janeiro, setembro de 2012 Marcelo Braz

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TESTEMUNHOS

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Leandro Konder*

Está chegando às livrarias uma coletânea de ensaios intitulada Cultura e sociedade no Brasil 1. Quero dar meu testemunho sobre o autor do livro, que é meu amigo há quase 30 anos. Em 1961, a revista Ângulos, editada pelo Centro Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, em seus números 16 e 17, publicou dois ensaios escritos por um jovem de 17 anos chamado Carlos Nelson Coutinho. Desde então, esse ensaísta vem marcando presença, com crescente vigor, tanto na vida teórico-política como na reflexão filosófica e cultural da sociedade brasileira. E é interessante notar que, desde os primeiros passos, ele fazia uma clara opção pelos dois campos de trabalho aos quais haveria de se dedicar ao longo das três décadas subsequentes. O artigo do n. 16 de Ângulos se intitulava “O processo

Texto originalmente publicado na Tribuna da Imprensa (RJ), edição de 7/9/1990. Extraído de Konder, Leandro, Intelectuais brasileiros & marxismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991 (p. 117-124). 1 Leandro se referia à primeira edição do livro, de 1990 (Belo Horizonte: Oficina de Livros). A última, a 4ª edição ampliada, saiu há pouco com a chancela da Expressão Popular (São Paulo, 2011). (N. O.) *

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das contradições e a revolução brasileira”. E o artigo do n. 17 estava dedicado à “Problemática atual da dialética”. Havia, certamente, traços de ingenuidade nos dois ensaios. Mas havia, também, elementos de uma aguda percepção de problemas que seriam retomados no pensamento elaborado nas épocas posteriores. No primeiro se acha formulada uma pergunta dramática: “O que de realmente científico foi escrito sobre a pequena burguesia e a burguesia industrial brasileira?” Os avanços das ciências sociais brasileiras nas décadas que se seguiram a essa indagação se debruçariam sobre a questão proposta pelo teórico neófito (mesmo ignorando o texto em que ela estava feita), confirmando a justeza de sua inquietação. E no segundo dos dois artigos, além de uma retomada das preocupações teóricas de Caio Prado Júnior em polêmica com a filosofia oficial da “diamat” (dialética materialista adotada pelo “marxismo-leninismo” soviético), encontra-se a primeira expressão de uma assimilação efetiva da perspectiva do pensador húngaro György Lukács e do seu aproveitamento como um todo no esforço de pensar a realidade contemporânea de um ângulo brasileiro. Guerreiro Ramos, Vamireh Chacon e Nelson Werneck Sodré, entre outros, tinham tomado consciência da existência de Lukács, lido e aproveitado seus escritos. Nelson Werneck Sodré, em especial, na sua História da literatura brasileira (na terceira edição, lançada pela José Olympio em 1960), manifesta grande apreço por Lukács, chamando-o de “mestre”. Contudo, não creio que possa haver dúvida quanto ao pioneirismo de Carlos Nelson Coutinho na assimilação do método de Lukács. Carlos Nelson foi, de fato, o primeiro lukacsiano brasileiro. Quer dizer: foi o primeiro a se servir do instrumental conceitual lukacsiano em seu conjunto, extraindo proveito da coerência interna da filosofia do pensador húngaro, de sua maneira de abordar as relações da literatura com a sociedade. Essa disposição à coerência não é comum na nossa história cultural. Sob a pressão das exigências da nossa sociedade – tão

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dilacerada –, o pensamento costuma transigir, dobrar-se à conciliação de pontos de vista contraditórios, esgarçando-se em combinações ecléticas e desperdiçando suas possibilidades de aprofundamento nas facilidades da “colcha de retalhos”. Carlos Nelson Coutinho foi, desde o início, uma figura de exceção: mergulhou, de corpo e alma, no universo de Lukács, para voltar à tona em condições de extrair todas as consequências de uma reflexão filosófica rigorosa, “intransigente”. Ele sempre soube que não se pode fazer filosofia com a mesma desenvoltura com que se pode fazer uma salada, combinando alfaces com tomates e batatas, cebolas e pepinos, azeite e vinagre. As ideias não se ajustam umas às outras com a mesma facilidade com que se juntam os legumes e as verduras. A busca do conhecimento não trilha os caminhos explorados pela conquista do sabor, pela produção de efeitos gustativos na arte culinária. O conhecimento é intrinsecamente totalizante e depende de muito trabalho: a compreensão de cada aspecto particular depende de uma visão global que seja capaz de situar o fenômeno no seu contexto; e, ao mesmo tempo, essa visão global precisa ser sempre revista, reelaborada, à luz dos novos aspectos particulares descobertos em cada setor. Essa constante articulação do todo e da parte exige muito rigor, muita persistência. Não tem nada a ver com o improviso fácil das saladas. No entanto, a perseguição da coerência comporta um risco óbvio: perigo do enrijecimento doutrinário. Apoiando-se num sistema teórico, o pensador está sempre sujeito a ficar preso às esquematizações que se adequam à sua doutrina, deixando de lado (ou distorcendo) tudo aquilo que, nos movimentos sempre surpreendentes da realidade infinita, escapa à competência das explicações adotadas. Carlos Nelson Coutinho deixou transparecer, em alguns momentos, certo receio filosófico de permanecer preso às concepções lukacsianas que lhe eram tão caras e fez movimentos pelos

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quais tentava trazer para seu arsenal armas teóricas obtidas em outras fontes. Nesse sentido, é sintomático seu encontro com Sartre, do qual resultou um ensaio publicado originalmente na revista Estudos Sociais n. 18 (novembro de 1963). Ele buscou no existencialismo marxistizante de Sartre elementos capazes de revitalizar a dialética no interior do marxismo e chegou a ver na Crítica da razão dialética uma verdadeira autocrítica do marxismo. O golpe de Estado de 1964 forçou-o a sair da Bahia e o trouxe para o Rio de Janeiro. Aqui, nas duras condições da repressão desencadeada pelo ciclo das ditaduras militares, o jovem ensaísta passou a combinar o trabalho de tradutor e a militância política da resistência com a atividade de escritor: novos ensaios foram redigidos e reunidos no livro Literatura e humanismo, lançado pela editora Paz e Terra em 1967. Eram tempos sombrios, o marxismo era estigmatizado como pensamento demoníaco, comprometido com uma vasta conspiração mundial urdida pelas forças do mal. Carlos Nelson se empenhou numa demonstração prática convincente de que o legado de Marx, na linha em que Lukács o reassumira, passava por uma clara recuperação dos valores do humanismo e do racionalismo. Numa polêmica permanente, tanto contra o stalinismo como contra as manifestações de capitulação de algumas tendências da cultura ocidental diante das distorções provocadas pela ideologia dominante (de caráter conservador) imposta pela burguesia à sociedade, o nosso crítico analisava, em seu livro, os romances de Dostoievski e Semprun, os romances de Graciliano Ramos e Soljenitzin, bem como as ideias de Lukács e de Zhdanov (o teórico “clássico” da estética stalinista). Paralelamente à redação de seus ensaios, ele se dedicava a traduzir diversos volumes de um autor cujo pensamento viria mais tarde a marcar profundamente as discussões teórico-políticas travadas no Brasil: o italiano Antonio Gramsci. O editor Ênio Silvei-

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ra, à frente da editora Civilização Brasileira, decidiu, corajosamente, lançar Gramsci em português, numa época em que ele ainda não tinha sido “descoberto” pelos franceses, ingleses e norte-americanos. E Carlos Nelson se incumbiu da tradução de Concepção dialética da história, Os intelectuais e a organização da cultura e Literatura e vida nacional. (Completando a série que chegou a ser editada, Luiz Mário Gazzaneo traduziu Marquiavel, a política e o Estado moderno, e Noênio Spínola traduziu as Cartas do cárcere.) A edição dos Cadernos do Cárcere ficou interrompida, porque os volumes de Gramsci, na ocasião, venderam pouco: encalharam nas livrarias. Além disso, no final de 1968, desabou sobre nós a calamidade do Ato Institucional n. 5, que deu início à fase mais braba da repressão. Carlos Nelson ficou no Brasil enquanto pôde. Viu a radicalização da campanha de “demonização” do marxismo pelas forças mais truculentas da direita. Viu os políticos liberais, centristas e “moderados”, salvo raras e honrosas exceções, conciliarem com a ditadura. Viu multiplicarem-se os casos de tortura e “desaparecimento” de presos políticos. E viu, também, crescer no âmbito do pensamento universitário a presença de uma linha teórica que, em nome da busca do rigor, desviava a reflexão das questões mais dramáticas da intervenção do sujeito humano na história: a linha do estruturalismo. O estruturalismo ameaçava “desistoricizar” a nossa produção de conhecimento numa hora em que nós estávamos sendo rudemente desafiados a compreender a história que outros estavam fazendo conosco, a fim de podermos reagir contra ela e passarmos a fazer – libertariamente – nossa própria história. Carlos Nelson reagiu contra isso: escreveu o ensaio O estruturalismo e a miséria da razão, que encontrou, na época, grandes dificuldades para ser publicado e só saiu, depois de dois anos, graças ao empenho do então diretor da editora Paz e Terra, o poeta Moacyr Félix.

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Depois do combativo ensaio contra o estruturalismo (editado em 1972), o nosso crítico, cada vez mais pressionado pelas exigências imediatas da luta política, sentiu necessidade de se ocupar dos problemas da relação entre a literatura e a democracia na obra de um autor brasileiro. E, assim como tinha feito uma análise lukacsiana da obra romanesca de Graciliano Ramos, dispôs-se fazer uma abordagem lukacsiana da obra de Lima Barreto. Preparou um ensaio intitulado “O significado de Lima Barreto na literatura brasileira”, carro-chefe do volume coletivo Realismo & antirrealismo na literatura brasileira, que a Paz e Terra editou em 1974. Mostrou como Lima, tanto na vida quanto na arte, repeliu as tentativas de cooptação sutil que o sistema elitista da nossa sociedade costuma fazer, insurgiu-se vigorosamente contra a conciliação dos letrados com os poderosos e se recusou a cultivar qualquer modalidade de “intimismo à sombra do poder”. Lima Barreto pagou um preço muito alto por sua independência, pela preservação de seu espírito crítico, insubordinável. As classes dominantes são, habitualmente, implacáveis nas punições que aplicam aos que questionam seu domínio. No Brasil, especialmente durante os surtos de autoritarismo mais extremado, os de “cima” se tornam espantosamente truculentos na perseguição aos representantes dos de “baixo”. Graciliano Ramos se deu conta disso durante a onda de repressão que se seguiu ao levante de 1935, quando estava sendo preparado o Estado Novo getulista e a polícia o prendeu. Carlos Nelson foi forçado a sair do país quando os agentes do Estado devastaram a cúpula do Partido Comunista Brasileiro, matando diversos dos seus dirigentes (como Luiz Inácio Maranhão, David Capistrano da Costa, Célio Guedes, João Massena Melo e Orlando Bonfim). Nesse período extremamente doloroso, o nosso ensaísta teve o conforto moral de se ver citado por mestre Antonio Candido, que, sempre solidário, numa entrevista concedida à revista Veja (em 15/10/1975), referiu-se ao que

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estava acontecendo de importante na crítica cultural feita na área universitária, no Brasil, e acrescentou: “Fora da universidade, eu mencionaria o grupo em torno do jovem pensador Carlos Nelson Coutinho”. No exterior, Carlos Nelson viveu na Itália, em Portugal e na França. Ficou impressionado com as exigências de renovação que se manifestavam no chamado “eurocomunismo”. Aprofundou seus vínculos com o Partido Comunista Italiano. E, relendo Gramsci, extraiu das posições do fundador do PCI implicações e consequências que iam além do alcance das interpretações feitas na época em que o havia traduzido para o português. Voltou ao Brasil em final de 1978, quando já se percebia a chegada da anistia. Lançou, então, um ensaio que repercutiu como uma verdadeira “bomba” no pensamento de esquerda brasileiro: “A democracia como valor universal” (publicado no n. 9 da revista Encontros com a Civilização Brasileira e depois incluído no livro A democracia como valor universal e outros ensaios, que teve duas edições, uma pela Livraria Editora Ciências Humanas e outra pela Salamandra). Nesse ensaio – como notou Francisco Weffort –, um marxista empreendia sobre a questão democrática uma reflexão mais vigorosa do que aquela que até então vinha sendo feita pelos liberais. Fazia uma opção radical pela democracia, que trazia com ela uma proposta de socialismo necessariamente nova (capaz de absorver elementos provenientes da tradição liberal, como a preservação dos direitos e garantias individuais, o fortalecimento da cidadania, a proteção das minorias, o pluripartidarismo, o respeito à alternância do poder etc.). Apoiado em Lukács, educado nas formulações rigorosas do pensador húngaro, Carlos Nelson podia ler Gramsci sem se iludir quanto às limitações do grande teórico italiano; ao mesmo tempo, entretanto, encontrava em Gramsci os estímulos de que precisava (e que Sartre não tinha chegado a proporcionar-lhe 16 anos antes)

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para escapar a algumas esquematizações demasiado fechadas da filosofia lukacsiana. Então, o movimento do seu pensamento, tal como se expressou no ensaio de 1979, lhe permitiu ir além dos horizontes tanto de Lukács como do próprio Gramsci, ultrapassando as fronteiras do leninismo. Afastando-se das fórmulas envelhecidas do “marxismo-leninismo” e, simultaneamente, deixando os quadros do PCB, Carlos Nelson iniciou a trajetória que haveria de levá-lo ao PT. Procurou sublinhar, cada vez mais, a importância do compromisso do socialismo renovado com a modernidade e com o abandono de quaisquer “modelos” externos, implícitos ou explícitos. Numa declaração à revista IstoÉ (28/7/1982), fixou em palavras sugestivas seu ideal: “O socialismo brasileiro precisará ter a cara de Leila Diniz e Ipanema, nunca a de Leonid Brejnev”. A produção ensaística de Carlos Nelson nestes últimos dez anos tem sido intensa. Um livro introdutório intitulado Gramsci foi lançado em 1981 pela editora gaúcha L&PM e mereceu uma resenha altamente elogiosa de Raimundo Faoro. Outros textos vieram a ser dedicados à relação das ideias de Gramsci com a sociedade brasileira: em uma intervenção feita num seminário do Cedec, incluída no volume coletivo As esquerdas e a democracia (Ed. Paz e Terra, 1986), Carlos Nelson esclareceu, com todas as letras, que, “embora necessário, Gramsci não é suficiente para resolver todas as questões que hoje se colocam para nós, marxistas, diante do desafio democrático”. Não basta contribuir para o fortalecimento da “sociedade civil”; é preciso encaminhar ações das forças democráticas no interior do aparelho do Estado, travando uma luta prolongada e difícil para modificá-lo (já que o Estado não vai ser pura e simplesmente “quebrado” através de uma “explosão”). Em polêmica com Teotônio dos Santos, por outro lado, Carlos Nelson sustentou – apoiado nas categorias de Gramsci – que não se podia considerar desejável “qualquer socialismo”, que era impres-

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cindível lutar por um socialismo efetivamente democrático, basea­ do na “construção de uma sociedade civil rica e pluralista”, com “um sistema partidário definido e moderno”, capaz de evitar um “corporativismo selvagem” (em Crítica marxista, número especial sobre “As antinomias de Gramsci”, Ed. Joruês, 1986). Num artigo escrito para um seminário internacional realizado em Ferrara, na Itália, e publicado no Brasil pela revista Presença (n. 8), com o título “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira” (depois incluído no volume Gramsci e a América Latina, Ed. Paz e Terra, 1988), Carlos Nelson insistiu na tese de que a sociedade brasileira, apesar do peso enorme do atraso, já está bastante “ocidentalizada” em suas condições objetivas, institucionais, porém – no plano subjetivo – ainda resta um “longo caminho a percorrer na luta pela ampliação da socialização da política”. A ampliação da “socialização da política” só poderá ser devidamente conquistada por um processo no qual, a despeito de previsíveis tumultos e inevitáveis rupturas, será impossível, para os revolucionários, promover de uma hora para outra a transformação do modo de produção capitalista e a construção de uma sociedade genuinamente socialista e democrática. Carlos Nelson procurou extrair algumas consequências dessa constatação no livro A dualidade de poderes (Ed. Brasiliense, 1985), cujo subtítulo é: “Introdução à teoria marxista de Estado e revolução”. Mais recentemente, o nosso ensaísta reescreveu o livro introdutório de 1981 sobre Gramsci, refundiu-o, desenvolveu-o e acabou redigindo um trabalho novo, que foi publicado pela editora Campus com o título Gramsci – um estudo sobre seu pensamento político. E na semana passada começou a ser distribuída às livrarias sua mais recente obra, a coletânea Cultura e sociedade no Brasil (Ed. Oficina de Livros), que reúne os antigos ensaios “clássicos” dedicados a Graciliano Ramos e a Lima Barreto, acrescentando-lhes outros textos: “Os intelectuais e a organização da cultura”;

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“Cultura e sociedade no Brasil”; “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”; “Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt”; e “A recepção de Gramsci no Brasil”. É uma excelente oportunidade para os leitores da nova geração entrarem em contato com as ideias de um pensador marxista brasileiro que não está prostrado nem acabrunhado diante da atual “crise do socialismo”, porque já a vinha discutindo e estudando muitos anos antes de ela se explicitar. Há três décadas, ele vem analisando, com espírito crítico, as contradições do processo da revolução brasileira e os problemas internos do desenvolvimento do marxismo (isto é: a “problemática atual da dialética”).

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Conheci o Carlos Nelson – “Carlito” para os amigos – no início dos anos 1970 – já não lembro a data exata – por ocasião de uma de suas passagens por Paris, a caminho de Roma: ele sempre teve muito interesse pelo Partido Comunista Italiano. Apesar de nossas afiliações políticas bastante diferentes – ele, intelectual orgânico do PCB, eu, vinculado à Quarta Internacional –, logo simpatizamos e encontramos uma linguagem comum e um terreno de afinidade eletiva: o marxismo humanista/historicista, inspirado por Lukács e Gramsci. Nesse primeiro encontro me impressionou a altura de Carlito, não só física como, sobretudo, intelectual. Partilhávamos a alergia pelo estruturalismo, e achei muito útil seu livro de polêmica impiedosa contra esta corrente, ilustrado, se bem me lembro, por uma célebre gravura de Goya (“O sonho da razão gera monstros”)1. Na época eu estava trabalhando minha tese sobre Lukács e morria de inveja de Carlos Nelson; ele não só conheceu pessoalmente o mestre, mas intercambiou com ele uma importan A primeira edição brasileira d’O estruturalismo e a miséria da razão (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972) tinha como capa a gravura de Goya evocada por Löwy. (N. O.)

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te correspondência (publicada anos depois)2. Eu nunca teria conseguido isto, já pela razão evidente de que eu me interessava quase que exclusivamente pelo “jovem Lukács”, preferência considerada pelo “Velho” como perfeitamente ilegítima. Esta correspondência com o grande pensador húngaro ilustra um outro aspecto da personalidade de CNC: a independência intelectual. Apesar de todo seu respeito e admiração por Lukács, ele não deixa de manifestar suas dúvidas e desacordos. Anos mais tarde, Carlos Nelson redige um brilhante ensaio sobre Kafka – para mim, um dos seus mais belos escritos –, em que utiliza o método lukacsiano para desconstruir os argumentos muito discutíveis de Lukács em seu texto “Kafka ou Thomas Mann?”, que tenta opor os dois escritores como se suas obras fossem opções incompatíveis. Minha simpatia por Carlos Nelson e seu inseparável amigo e camarada de lutas políticas e intelectuais Leandro Konder – “Leo” para os amigos – se consolidou com uma revelação: o samba lukacsiano ferozmente antipositivista que os dois compuseram, a partir de um “clássico” da música popular dos anos 19303. Uma pequena obra-prima de filosofia lúdica... A partir dos anos 1980, quando voltei a visitar regularmente o Brasil, não deixava de encontrar o Carlos Nelson e o Leandro a cada vez que vinha ao Rio de Janeiro; tínhamos longas conversas, em torno de uma, ou melhor, várias caipirinhas, discutindo a situação política brasileira e europeia, e invocando nossos orixás preferidos: São Jorge (György Lukács) e Santo Antonio (Gramsci) – assim como, bem entendido, os evangelistas São Carlos e São Frederico. Brincando “Correspondência com György Lukács”, in M. O. Pinassi e S. Lessa (orgs.), Lukács e a atualidade do marxismo, São Paulo: Boitempo, 2002, p. 133-156 [com L. Konder]. (N. O.) 3 A letra do samba referido, brincadeira de Carlos Nelson e Leandro Konder, encontra-se na obra deste último, Memórias de um intelectual comunista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 262). (N. O.) 2

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comigo, Carlito e Leo comentavam: “teu Panteão, Michel, é como o dos Romanos antigos: a cada tantos anos, entram novos deuses (Walter Benjamin, José Carlos Mariátegui), mas os antigos (Rosa Luxemburgo, Lucien Goldmann) não saem – acaba então ficando lotadíssimo...” Se eu pudesse resumir em uma frase o que foi o papel de CNC no campo do marxismo brasileiro, diria o seguinte: ele foi não só um dos primeiros a estudar Gramsci no Brasil – bem antes da publicação, sob sua direção, das Obras Completas em português –, mas também alguém capaz de repensar, em termos gramscianos, a política brasileira. Mais importante ainda: Carlos Nelson foi o inventor – no sentido alquímico da palavra – do que se poderia chamar um marxismo democrático-socialista brasileiro, de inspiração gramsciana. O ato inaugural desta invenção foi, como se sabe, um artigo que é um ponto de inflexão na história do marxismo no Brasil e na América Latina: A democracia como valor universal (1979). Um documento polêmico, que rompe com o stalinismo e critica o “marxismo-leninismo” da Terceira Internacional, mas, também, o que se leva menos em conta, acerta implicitamente contas com o déficit democrático das tradições da esquerda no Brasil, do tenentismo ao populismo. Partidário das ideias de Rosa Luxemburgo, em particular sobre a vinculação entre socialismo e democracia – em sua famosa crítica aos revolucionários russos –, não pude deixar de simpatizar com as teses iconoclastas do amigo Carlito. É importante enfatizar que este ensaio foi um ponto de chegada – no caminho da dissociação de Carlos Nelson com o marxismo de fatura “soviética” –, mas também um ponto de partida, para uma reflexão que foi se aprofundando e se enriquecendo. Nas novas versões de seu texto, CNC volta a enfatizar que “não há socialismo sem democracia”, mas agora completa, dialeticamente, o argumento: sem socialismo, não pode existir democracia autêntica. Em outras palavras: entre capitalismo e democracia,

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existe uma contradição intrínseca, que ora é oculta, ora se manifesta de forma brutal e espetacular. Dito isto, seria um equívoco reduzir a contribuição de CNC à renovação do pensamento marxista brasileiro a este ensaio capital e seus prolongamentos; sua obra abre inúmeras pistas importantes e produtivas, seja sobre a obra de Gramsci, sobre a teoria política marxista, sobre a política brasileira, sobre a contrarreforma neoliberal, ou sobre a literatura. Carlos Nelson nunca foi um intelectual de gabinete, ou um “marxista acadêmico”: sua ação e seu pensamento são inseparáveis de um compromisso político com a causa do “pobretariado” e com a luta pelo socialismo. Durante anos militou nas fileiras do PCB, mas no final dos anos 1970 se afastou, junto com Leandro, de um partido que iria, pouco depois, terminar numa triste caricatura (o assim chamado “Partido Popular Socialista”, PPS). No começo dos anos 1980, por ocasião de uma visita ao Brasil, tentei convencer CNC e Leandro de aderir ao PT, cujos primeiros passos eu seguia com grande entusiasmo. Leandro era o mais proclive a esta proposta, mas Carlos Nelson resistia... Lembro-me de uma conversa com o seguinte teor, que ilustra bem o humor e a autoironia do Carlito: “Sabe, Michel, quando eu tomo algumas caipirinhas, fico mesmo com vontade de aderir ao PT. Mas, logo depois, quando fico mais sóbrio, voltam as dúvidas...”. CNC achava o PT muito “esquerdista”, isto é, demasiado radical; eu argumentava que se tratava de um partido amplo, em que cabiam muitas tendências, até mesmo correntes eurocomunistas como a dele. Afinal, os dois acabaram entrando no Partido dos Trabalhadores, onde tiveram um papel notável como instigadores de uma reflexão marxista inovadora. No começo se posicionaram junto aos setores menos radicais do Partido, mas, com o passar dos anos, iam ficando cada vez mais na ala esquerda, até que, finalmente, no início do governo Lula, rompem com o PT e aderem ao novo Par-

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tido do Socialismo e da Liberdade (Psol), que se apresenta como uma alternativa radical ao reformismo lulista. Explicação sarcástica do Carlos Nelson: “Não fui eu que mudei! Sempre mantive a mesma posição, gramsciana, marxista e democrática; o problema é que essa turma foi tanto para a direita que acabei ficando na ponta esquerda...” Durante todos esses anos, nossas reflexões se aproximaram bastante, tanto do ponto de vista “filosófico” quanto político. O que não quer dizer que não tenhamos preocupações e avaliações diferentes – e às vezes discordantes. Algumas são antigas, por exemplo, sobre a obra do “velho” Lukács, ou sobre Leon Trotsky; outras são mais recentes, sobre a centralidade da ecologia no projeto socialista. Desconfio que Carlos Nelson, homem das Luzes, não partilha meu entusiasmo pelo romantismo revolucionário ou pelo surrealismo. E, assim por diante, temos alguns desacordos (reais ou imaginários). Lembro-me de uma conversa com Ernst Bloch em 1974, em que ele me dizia, referindo-se à sua amizade por Lukács em seus anos de juventude: nosso acordo era tão grande que tratamos de criar um parque natural protegido para preservar nossas diferenças... Muitos intelectuais brasileiros que se reclamavam do marxismo acabaram se reconciliando com o sistema, limitando suas ambições a “melhorar” ou “humanizar” o capitalismo e/ou o neo­ liberalismo, com a ajuda de doses homeopáticas de “justiça social”. Não vou citar nomes porque a lista é bastante longa, seriam necessárias várias páginas e muitas notas de rodapé; alguns pretendem não ter modificado suas opiniões, outros pedem ao público que “esqueça” seus escritos de juventude... Carlos Nelson Coutinho é um personagem de outra fibra: sem temer ir “contra a corrente” – título de um de seus mais belos livros recentes –, sempre foi, e ainda é, de uma coerência e uma integridade sem falhas. Não é que seu pensamento não tenha mudado, buscando integrar

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novos desafios, repensando questões antigas e reformulando a estratégia do combate: afinal, o que é o marxismo senão um pensamento dialético/revolucionário em movimento constante? Mas, neste processo de reavaliação e de reconstrução permanente, o fio condutor nunca se interrompeu: recusando a “falsa ideia de que haveria identidade entre socialismo e ditadura, entre socialismo e estatismo, ou que o socialismo seria (...) uma fatalidade inexorável”, CNC se mantém obstinadamente fiel ao “projeto comunista de superação da alienação e de construção de uma sociedade autônoma e autogovernada”. Vou terminar este breve testemunho com uma citação de Brecht (estou citando de memória): Há aqueles que lutam um dia; e por isso são muito bons; Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são ótimos; Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda; Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.

Carlos Nelson Coutinho é dos imprescindíveis.

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Aloísio Teixeira*

Inicialmente, penso que Carlos Nelson merece mais do que vou dizer aqui. Pelo valor, pela consistência e pela importância de sua obra, merece um estudo sobre a sua contribuição para o desenvolvimento do marxismo. O Leandro [Konder] já escreveu um artigo, alguns anos atrás, que dá a partida nessa discussão sobre a importância da obra de Carlos Nelson. Certamente o Zé Paulo [José Paulo Netto], assim como os demais integrantes dessa mesa, vai abordar sua contribuição nessa direção, mas eu quero recuperar uma dimensão da minha relação com Carlos Nelson que acho importante. *

Palestra realizada na homenagem prestada a Carlos Nelson pela Escola de Serviço Social no dia 3 de julho de 2012, em evento que contou com uma mesa-redonda formada, além dele mesmo, por Milton Temer, José Paulo Netto e Maria Helena Rauta Ramos. Vinte dias após ter feito sua intervenção no evento, Aloísio faleceu, abruptamente, aos 67 anos, vítima de um ataque cardíaco. A transcrição do essencial de sua alocução – realizada por Viviane Azevedo – não se deve apenas à importância do seu conteúdo, mas também ao justo tributo de reconhecimento de sua trajetória, toda ela voltada à construção de uma sociedade justa e igualitária em nosso país. Os esclarecimentos entre colchetes são da minha responsabilidade. Conservei o tom coloquial e às vezes irônico da intervenção de Aloísio Teixeira.

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Eu teria muitos pontos a falar, inclusive sobre sua atuação na editora1. Mas não vou tratar disso, pois seria reduzir minhas relações com o Carlos Nelson a um período muito pequeno. Não abordarei essa convivência recente, pois quero me remeter a um tempo passado que já vem sendo envolvido nas brumas do esquecimento. Eu fiz questão de organizar essas notas para não me perder. Assim, caso me emocione e, como Andrea 2, me derrame em lágrimas – e se elas não borrarem o papel –, eu poderei continuar aqui meu roteiro. E resolvi falar de um tempo passado, porque quero tratar da importância que o Carlos Nelson teve para os comunistas da minha geração. Portanto, eu estarei falando para homens e mulheres da minha geração que conheceram as pessoas e viveram os fatos que eu vou mencionar. Mas, falando para as pessoas da minha geração, eu espero de alguma forma que isso seja útil, também, para os jovens que estão aqui participando dessa homenagem. Aqui, estarei falando de um tempo em que éramos militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). E o partido, para minha geração, foi o partido que existiu depois do XX Congresso do PCUS3, em 1956; depois da Declaração de Março4 do Partido Comunista, que é de 1958; e depois do V Congresso do PCB, de 1960. Editora da UFRJ, da qual Carlos Nelson foi Diretor entre 2004 e 2011. (N. O.) Andrea Teixeira, Professora da ESS/UFRJ, companheira de Carlos Nelson. (N. O.) 3 O XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (o PCUS), em 1956, foi aquele no qual Nikita Krushev divulgou as informações de um relatório secreto que denunciava os crimes da era stalinista. Seu impacto foi tão significativo que transcendeu àquele evento e produziu, além de consequências políticas e ideológicas, intensos processos de crise em todos os PC’s do mundo, alterando os rumos do movimento comunista internacional, inclusive no Brasil. (N. O.) 4 O documento ficou conhecido como aquele que expressava as primeiras consequências do impacto do Relatório Krushev sobre o movimento comunista brasileiro. Exprimiu um primeiro esforço do PCB para redirecionar sua atuação em tempos que 1 2

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Fiz questão de não discutir nenhum dos livros do Carlos Nelson e enaltecer, exclusivamente, a memória. Pensei que, se eu fosse consultar os livros, perderia o sentido do depoimento pessoal­, que é o que estou fazendo. Naquele XX Congresso havia um cidadão que se chamava Nikita Krushev que denunciou em sessão secreta do congresso as violências do período de Stalin, usando a famosa expressão “culto da personalidade”. No dia seguinte, os jornais de Nova York publicaram o discurso de Nikita. Os nossos dirigentes que cá estavam acharam que aquilo era uma falsidade, uma falsificação da imprensa burguesa, e correram para explicar que tudo era mentira e que jamais poderia ter ocorrido. Mas o fato é que o discurso havia sido publicado e tornado público, embora o relatório completo, o dossiê que serviu de base para o discurso de Krushev (o congresso foi em 1956) só tenha sido publicado em 1989. Eu estou lembrando isso porque hoje é fácil falar da União Soviética, do querido camarada Stalin. Hoje sou muito moderado nas críticas, coisa que a juventude atual não é, pois acho que o episódio, para usar uma expressão maldita, ganhou um caráter de classe que me parece muito complicado. O segundo evento que mencionei, a Declaração de Março de 1958, foi um momento importante na história do Partido Comunista no desdobramento dos debates internos que se seguiram ao XX Congresso e uma tentativa de romper com as práticas erradas do passado (stalinistas, e vou usar essa expressão pela última vez). Foi anunciada uma nova política – a ampliação da frente única; a luta por um governo nacionalista-democrático – diretivas e decisões políticas que foram confirmadas no V Congresso do parcomeçavam a abrir as vias para um processo de desestalinização. A Declaração de Março de 1958 muda a estratégia revolucionária que vinha de 1950 e 1954, atribuindo à “questão democrática” um peso que ela não tinha nos documentos anteriores. (N. O.)

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tido. E, o que não é pouca coisa, o que permitiu a aprovação da Declaração de Março e das posições políticas do V Congresso foi a adesão de Prestes a essa nova linha. Muito provavelmente, se a adesão de Prestes tivesse sido ao outro lado, outros teriam sido os resultados da história. Então, a partir de 1956, do XX Congresso, mais particularmente a partir de 1958, iniciou-se uma grande luta interna no Partido Comunista, da qual resultou a saída de vários dirigentes. Em 1962, muitos dos que se opuseram à nova orientação política romperam com o partido e adotaram a sigla PCdoB, que até hoje utilizam5. Eles chegaram a participar do V Congresso, mas, depois do que lá se decidiu, resolveram romper. Foi um momento importante para os marxistas, comunistas, jovens brasileiros que se aliavam àquelas posições, pois foi um período de abertura. Abria-se a possibilidade de avançar no sentido de construir uma teoria própria da revolução brasileira. É nesse processo que se tem o golpe de 64, que, talvez – diga-se talvez, pois nunca se sabe –, tenha interrompido ou dificultado extremamente esse processo de renovação. Quando veio o golpe de 1964, estava já convocado um novo congresso, já havia um documento de teses circulando. E, com o golpe, é claro que, se já havia uma luta interna intensa em razão desses acontecimentos, essa luta se tornou mais intensa ainda, e vários dirigentes foram sucessivamente rompendo com o partido. No Rio de Janeiro, no movimento no qual eu militava, essa luta foi mais intensa ainda. Daqui surgiu uma dissidência em meio a um protagonismo histórico da esquerda com o sequestro do embaixador americano. Em dezembro de 1961, após divergirem das resoluções do V Congresso de 1960, alguns dirigentes (dentre os quais Maurício Grabois, João Amazonas e Diógenes de Arruda Câmara) lançaram um documento de crítica ao PCB. Foram expulsos e, em fevereiro de 1962, fundaram o PCdoB (Partido Comunista do Brasil). (N. O.)

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Então, os anos 1960, para jovens como nós, que estávamos chegando ao socialismo, chegando ao comunismo, chegando ao marxismo, foram anos de intensa luta teórica (teórico-ideológica) e luta política, animados por esse espírito de renovação que havia soprado desde meados da década anterior. Essa década de abertura, diga-se essa “primavera brasileira”, em meu ponto de vista, foi interrompida em 1968, notadamente pelo Ato Institucional n. 5, de dezembro de 1968, que agravou imensamente as condições da luta política e mesmo da atividade teórica e intelectual. Mas, antes disso, outro fato já havia sinalizado que os ventos que sopravam para lá talvez agora estivessem soprando para cá: foi a invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia, pondo fim à Primavera de Praga6. Ou seja, mesmo antes desses fatos, já vinha se formando entre os comunistas da minha geração a ideia de que talvez aquela primavera havia ficado no meio do caminho. Esses fatos foram marcantes e confirmaram tudo que estava acontecendo. Minha geração de comunistas, como disse ainda há pouco, enfrentou uma intensa luta política desde o início dos anos 1960, e mais amplamente depois de 1969, na resistência à ditadura, no enfrentamento à repressão; e, também, uma luta teórico-ideológica muito intensa contra as mais variadas formas de pensamento, de direita e de esquerda. Assim, me interessa recuperar aqui um pouco desses aspectos disso que estou chamando de luta teórico-ideológica. Eu me espanto hoje, quase 50 anos depois, de como líamos naquela época: líamos de tudo, de filosofia à ciência política. Essas questões, que faziam parte do nosso debate no dia a dia, parece A Primavera de Praga foi liderada pelas orientações reformistas de Alexander Dubček, do Partido Comunista da Tchecoslováquia. As reformas se iniciaram em janeiro de 1968 e foram abortadas em 21 de agosto do mesmo ano. (N. O.)

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que se perderam hoje. Perdeu-se a noção de que era preciso conhecer um pouco o pensamento do outro lado para se estabelecer e reforçar a sua própria posição. De quem e de quê eu estou falando? Do existencialismo, por exemplo, lia-se tudo. Eu li Sartre de uma ponta a outra – romance, teatro, filosofia. E, se havia posições antimarxistas – existiam, vamos falar claramente! –, as proposições do Sartre nesse início dos anos 1960 já eram de quem queria se aproximar do marxismo (a Crítica da razão dialética é do início dos anos 19607). E o estruturalismo não nos assaltava apenas pelo lado de fora, ou seja, não só pela polêmica com as figuras da crítica literária. Ele nos assaltava por dentro, com o Althusser. Era parte do nosso cotidiano a leitura deles e do debate teórico-ideológico em relação às ideias que colocavam. A Igreja Católica, em várias tentativas renovadoras (lembro que li Teilhard de Chardin, O fenômeno humano) que inspiraram muitos católicos brasileiros, buscava conciliar a ideia de religião com a ciência, e tínhamos que tratar dessa discussão. Isso para não falar de funcionalistas, marxistas weberianos e de outras influências perversas – positivismo, evolucionismo – sobre o marxismo; tudo isso estava lá, e esse era o nosso debate. Nesse contexto – confesso que me lembro muito dessas coisas e fico pensando: a gente fez muita coisa, Carlos Nelson! – foi que conheci o Carlos Nelson. Na verdade, conhecia-o antes de conhecê-lo. Eu o conheci através de dois textos. O primeiro sobre o Sartre8 – que saiu antes do golpe, em 1963, em Estudos Sociais, uma revista do Partido9. E o segundo, depois do golpe, em 1965 A Critique de la raison dialectique é de 1960. (N. O.) Aloísio se refere ao artigo de CNC, “A trajetória de Sartre”, publicado em 1963 no número 18 da revista Estudos Sociais. O texto foi inteiramente reescrito pelo autor para o seu livro Literatura e humanismo. Ensaios de crítica marxista (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967). (N. O.) 9 Órgão do PCB editado entre 1958 e 1964, dirigido por Astrojildo Pereira. (N. O.) 7 8

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ou 1966 (na Revista Civilização Brasileira), sobre Graciliano Ramos10. Esses dois artigos abriram um mundo para nós. Quando li o texto da [revista] Estudos Sociais, disse pra mim – “Esse cara deve ter uns 300 anos de idade!” – porque era de uma erudição, de um conhecimento, de uma intimidade com as coisas que ele falava. Depois me disseram: “É um cara uns seis meses mais novo que você”. Aquilo me encheu de inveja! Pode ser que, lendo hoje, poderia fazer um ou outro reparo, ou ter uma leitura diferente. Mas, na época, [o texto] foi de um impacto fortíssimo para mim e para minha geração de comunistas cariocas. Eram textos marxistas, claramente marxistas, mas que enfrentavam a discussão com outras correntes de pensamento nos seus aspectos substantivos, e era preciso conhecer aquilo, dominar a argumentação do antagonista, para poder dizer alguma coisa e afirmar a superioridade do nosso pensamento. Não partíamos de uma condenação, mas de uma visão receptiva à ideia que nos era contrária para poder criticá-la e apontar sua insuficiência. Estávamos de portas abertas para o diálogo, mas é claro que às vezes a crítica era pesada, como no caso do estruturalismo. Era uma posição de defesa daquilo que achávamos que era nossa teoria, mas uma defesa capaz de entender o que o outro estava dizendo, e que não era só um “pequeno-burguês vagabundo”. O texto foi escrito em 1965 e publicado por CNC na Revista Civilização Brasileira em março de 1966 (número 5-6), sob o título “Graciliano Ramos”, e saiu também, praticamente inalterado, no livro Literatura e humanismo, op. cit.. Coutinho o publicou também na coletânea de seus textos intitulada Cultura e sociedade no Brasil, que conheceu sua primeira edição em 1990 (Belo Horizonte: Oficina de Livros). Uma edição revista e ampliada saiu pela DP&A (em 2000), e uma nova veio a lume em 2011 com a chancela da Expressão Popular. Todas as novas edições mantêm as ideias originais do texto, à exceção, como esclareceu Coutinho no Prefácio ao livro em 2000, da “supressão de uma formulação que hoje julgo claramente equivocada (isto é, a caracterização do Brasil como ‘semifeudal’, contida na primeira versão do ensaio sobre Graciliano)”. (N. O.)

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Isso para nós foi muito importante, e Carlos Nelson se tornou uma referência para outros comunistas da minha geração que ainda não o conheciam, e que o fizeram através desses artigos. Carlos Nelson foi também muito importante porque nos trouxe Lukács e Gramsci. Só vim conhecê-lo, pessoalmente, um pouco mais adiante. Nem sei se ele gosta dessa história de como nos conhecemos em duas atividades que ocorriam paralelamente: o grupo de leitura d’O capital e a assessoria que se prestava à Comissão Executiva do Comitê Central [do PCB]. Foi uma sorte nossa aquilo tudo ter dado errado, pois, se estivéssemos no Comitê Central, talvez tivéssemos morrido. Como nada deu certo, ficamos na assessoria e depois não fomos para outro lugar. Essas atividades foram muito ricas, pois conhecemos a primeira tradução integral para o português d’O capital (naquela tradução do nosso Reginaldo Santana, publicada pela Civilização). Montamos o grupo de leitura e tivemos que interrompê-lo, porque parte desse grupo foi à União Soviética fazer um “pós-doutorado” em O capital e, depois, no final de 1974 e início de 1975, começou a perseguição mais pesada contra o Partido: sua direção foi praticamente dizimada, muitos foram presos, e a Voz Operária11 “caiu” (tentamos retomá-la, mas ela “caiu” novamente). Foi uma coisa horrorosa! Eu estou lembrando essas histórias não por esses aspectos, mas para entender o que fazíamos naquela assessoria, onde havia uma luta interna. O VI Congresso que estava convocado, mas que, em 1964, não pôde se realizar, ocorreu em 1967. Foi um congresso em condições muito adversas, que na verdade referendou a linha do Partido, mesmo após o golpe, e procurou curar as feridas das sucessivas dissidências. Quando ficou clara a necessi Órgão oficial do PCB, que, a partir de 1975, passou a ser editado no exterior. (N. O.)

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dade de um novo congresso, na entrada dos anos 1970, o papel daquela assessoria era o de colaborar para a preparação das teses congressuais. Essa questão [a relação entre a “questão nacional” e a “questão democrática”12] se colocou com muita intensidade no final da ditadura de Getúlio, com o regime do Estado Novo agonizando, o povo na rua e a conspiração militar. Prestes estava preso, o Partido estava muito desorganizado, desorientado, quase que dizimado pela repressão. Vários dirigentes presos, mortos ou no exílio, mas, quando começaram a soprar novos ventos – após 1942, quando a guerra começou a mudar o seu curso, e depois, em 1943, quando o Brasil entra na guerra ao lado dos aliados –, iniciaram-se tentativas isoladas de reorganização do Partido no Rio de Janeiro, em São Paulo, Minas Gerais e Bahia. Então, existiam duas tendências. Uma era de um grupo baiano, que se junta à CNOP [Comissão Nacional de Organização Provisória], que achava que, como o Brasil tinha entrado na guerra contra o nazifascismo, o Partido deveria lutar pela formação de um governo de união nacional com Getúlio. Refiro-me a [Maurício] Grabois, Mário Alves, que era jornalista, Diógenes [Arruda Câmara], que não era baiano, mas que se considerava da Bahia e que lá entrou para o Partido, e Giocondo [Dias], que era baiano e que foi o único que continuou nele. Havia outra tendência, que era o Comitê de Ação, que achava que não fazia sentido lutar contra o nazifascismo no exterior e aceitar a ditadura do Estado Novo no Brasil. Essa polêmica, mais uma vez, foi resolvida quando Prestes, preso, mandou um recado dizendo que o golpe militar ocorreria, 12

Nos cinco parágrafos seguintes, Aloísio discute a primazia, no PCB, da “questão nacional” sobre a “questão democrática”. Por isso a menção de Aloísio à conjuntura dos anos 1940. (N. O.)

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que a conspiração contra Getúlio era apoiada pelo grande capital internacional, que a luta deveria ter um caráter anti-imperialista e que era preciso organizar um [contra]golpe junto com Getúlio, e que a palavra de ordem seria: “Constituinte com Getúlio”. Na verdade, engrossava-se o chamado “queremismo”. Estou lembrando isso porque, para a CNOP, assim como para Prestes, a questão central era a “questão nacional”, e não a “questão democrática”. Eles defendiam a aliança com as forças que depois se organizaram na UDN. Penso que a própria UDN, se não foi o Caio Prado [Jr.] que inventou aquele nome, foi alguém daquele grupo.13 Estou lembrando estas histórias nessa homenagem a Carlos Nelson porque essa é uma questão [democrática] política atual, que não está superada. Não faz parte daquele conjunto de problemas que a história se encarregou de resolver. Isso se constitui numa interseção entre a “questão nacional” e a “questão democrática”. Vou cometer uma ousadia para os comunistas da minha geração: a principalidade concedida à “questão nacional” encobriu todos os desvios golpistas e sectários de sucessivas direções do Partido. Quero dizer que ela foi uma forma de escamotear a “questão democrática” em sua importância. Quando falamos da assessoria para o VII Congresso14, a questão era que estávamos ali radicalizando a “questão democrática”, esse era nosso papel. Esse era o papel do Carlos Nelson, que estava ali para isso, para radicalizar. Diria radicalizar a “questão democrática” no sentido de formular uma nova teoria da revolu Caio Prado Jr. vinculou-se inicialmente ao Comitê de Ação, que teve relações com liberais que se opunham ao Estado Novo e depois constituíram a União Democrática Nacional/UDN, partido que fez do antigetulismo sua bandeira ao longo de sua história, derivando abertamente para a direita. (N. O.) 14 O VII Congresso a que Aloísio se refere estava previsto para o início dos anos 1970, mas se realizou em 1982, noutra conjuntura. (N. O.) 13

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ção brasileira que destacasse a principalidade deste aspecto, e não de outro. Mariátegui dizia que o socialismo na América Latina não poderia ser uma cópia, e sim uma criação heroica. Era dessa criação heroica que se tratava ali naquele momento, dessa necessidade que se tinha de avançar no sentido de ter uma teoria marxista para a revolução brasileira. Para mim, essa teoria não está oculta em nenhuma nota de rodapé d’O capital ou do Manifesto, nem nas contribuições de Lenin, de Lukács, de Gramsci ou de outros. É indispensável conhecer o pensamento deles e a forma como eles pensavam a realidade, mas deve haver um pensamento profundo e, portanto, muito estudo da realidade brasileira, das peculiaridades, das singularidades da nossa formação histórica e social. Diria que, se as categorias dos clássicos não derem conta, criaremos outras, marxistas também, para dar conta dessa realidade. Essa questão enfrentada pelos comunistas da minha geração permanece atual, tanto do ponto de vista teórico-ideológico quanto do ponto de vista político. Isso foi o que o Carlos Nelson nos mostrou desde a sua juventude, sempre avançando no sentido de entender a importância do marxismo como instrumento vivo de conhecimento da realidade – e por isso ele é importante para os comunistas do Brasil.

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Conheço Carlos Nelson Coutinho há mais de 40 anos. Cheguei a ele por intermédio de Leandro Konder, amizade que herdei de Valério Konder1, o bravo médico e militante comunista; tutor, na origem desse meu novo ciclo de vida, após ter sido cassado como oficial da Marinha, no golpe de 64. De lá para cá, vivemos os três uma identidade política que, se teve arranhões, foram insignificantes. Não deixaram lembranças. Da condenação do golpe contra a Primavera de Praga, em 1968 – para mim, a marca inicial da derrocada da União Soviética –, à renúncia ao saudoso Partido dos Trabalhadores e à fundação do Psol, estivemos sempre no mesmo barco. Constituindo, sem intenção, a talvez menor tendência política na militância da esquerda socialista e democrática deste país. Sim, esquerda socialista e democrática, porque nos identificávamos, os três e mais um simpatizante bem próximo – o sociólogo Leo Lince –, com as bases do ensaio produzido por Carlito no início dos anos 1980: “A democracia como valor universal”. Ensaio polêmico, Valério Konder (1911-1968), pai de Leandro Konder, comunista histórico, militante do Movimento Mundial da Paz. (N. O.)

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ao tempo em que a esquerda revolucionária, e principalmente o então nascente Partido dos Trabalhadores, tinha uma maioria interna optando pela ruptura contra os que eram tachados de reformistas. Hoje, o próprio Carlito aceita que o conceito mais apropriado ao valor universal seria o processo de democratização. A apropriação do conceito de democracia, resultante da derrubada das ditaduras, revelou nuances complexas, sendo mantida, no mais das vezes, no limite da questão eleitoral. O autoritarismo se transferia para outras formas de manutenção da hegemonia capitalista que não a dos tanques na rua – os meios de comunicação na defesa dos “choques de ordem” para a implantação do neoliberalismo predador, quase absoluto nas décadas de 1980 e 1990. Entre 1968 e a fundação do Psol, vivemos juntos o exílio. Por um curto período inicial, em países distintos – Leandro, na Universidade de Bonn; Carlito, em Bologna; e eu em Moscou, primeiro, e Budapeste depois –, mas terminando por nos juntarmos em Paris, onde produzíamos e editávamos, sob a tutela de Armênio Guedes, e com a companhia de Mauro Malin, Aloísio Nunes Ferreira e Antonio Carlos Peixoto, a Voz Operária. Nesse período, a partir de Roma, incorpora-se ao grupo a melancolia humorística do saudoso Ivan Ribeiro. Era ele que fornecia o aparelho onde eu me abrigava, ali juntinho do Campo de Fiore, no Trasteveri, uma semana por mês, para aguardar que a Voz, impressa na gráfica do também saudoso PCI, nos fosse entregue para ser enviada e distribuída no Brasil, a partir dos vários postos do Correio francês nos subúrbios de Paris. Carlito era o articulista infalível e indispensável na formulação de propostas alinhadas com o que então nos norteava: uma crescente proximidade com o eurocomunismo. O que só seria surpreendente se não estivesse Carlito entre os precursores da introdução de Gramsci no Brasil. Começou aí, creio – unidos na concepção dos caminhos da revolução –, o que nos diferenciava na ação prática. Nas tarefas da

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militância. A eles, a formulação que me orientava, tirando o atraso dos anos em que não tive acesso à teoria; em que praticamente por instinto, e por influência de meu pai, imigrante sírio, autodidata e simpatizante do PC, me alinhava entre os militares legalistas que defendiam o programa de reformas radicais preconizadas pelo governo João Goulart. A mim, a disciplina da rotina militante. A responsabilidade pela edição e diagramação da Voz, limitando-me aos artigos mais conjunturais. A eles, a formulação. Mas começou aí também o que diferenciava a ação prática entre Carlito e Leo. Leo, sem nenhuma paciência para o dia a dia, mas sempre pronto para qualquer faina rotineira. Muito mais preo­cupado com a filosofia do que com a participação nas reuniões­por vezes maçantes e inócuas (onde se abstraía nas caricaturas sobre os participantes), era o mais militante dos três. Carlito, diferente. Sempre teve preocupação com o papel do Partido, sua organização, suas iniciativas, é verdade. Tudo com uma pequena ressalva. Que não lhe cobrassem reuniões matutinas, nem responsabilidades de direção. Nada de rotina militante. Era a distinção entre os dois marxistas convictos e “confessos” como os repressores da ditadura os classificavam. Um, o germânico, disciplinado e cumpridor de tarefas. O outro, exemplo maior da baianidade “caymica”. Mas, indiscutivelmente, Carlito era o maior poder de fogo entre nós, quando se tratava da mobilização através dos debates e conferências, aos quais nunca se furtou. Sempre foi aí o seu terreno de luta. Aí, sim, seu campo de militância. Lembro-me ainda de episódio, marcante para mim, da palestra dada num auditório lotado da Uerj, pouco após nossa adesão ao PT – então tratados com imensa desconfiança e até desprezo, por conta da origem “reformista” no Partidão –, no momento em que o debate era “aberto ao plenário”. Uma jovem bem típica do PT, de sonhos que abrigava despojados e “descolados”, se di-

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rige a ele de forma solene-gozativa: “Professor; afinal, o senhor é socialista ou social-democrata?” Carlito faz uma pausa, como que medindo a intensidade do contragolpe: “Antes de tudo, não estou aqui como professor. E, quanto ao questionamento, muito simples: Não sou uma coisa, nem outra, camarada. Sou um comunista”. Aplausos retumbantes, pela declaração num momento em que a transição pelo alto ainda não deixara espaços tranquilos para tal definição. A este, que marca o combatente sempre ativo e de posição coerente ao longo de toda a vida, se contrapõe o episódio que marca o papel de cada um na nossa Troika. Governo Lula se iniciando, Meirelles, banqueiro predador, é pragmaticamente indicado para dirigir a política macroeconômica do governo; os primeiros sinais, consolidando a continuidade das políticas neoliberais de FHC com a contrarreforma da Seguridade Social; Carlito se inquieta. É o primeiro de nós três a explicitar uma decisão, e a impor tarefas. E lembro-me ainda do telefonema em tom dramático: – Não dá mais para a gente continuar no PT! Temos que fundar um novo partido! – vociferou –, emitindo a seguir, quase no mesmo tom, sem me consultar: – Você vai ter muito trabalho! Começou a nascer o Psol para nós. Eu, enfrentando reuniões e tarefas, mesmo depois de abrir mão dos mandatos de deputado estadual e federal; Leandro atendendo a todas as convocações; e Carlito pedindo para sair da Direção Nacional eleita no Primeiro Congresso, após a segunda reunião. Mas perguntem a qualquer militante do Psol, ou do aliado PCB, que opinião tem sobre Carlos Nelson Coutinho? Certamente haverá unanimidade: é uma das principais referências na elaboração da proposta de lutas das esquerdas combativas em nosso país. E eu estou aí para confirmar.

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Breve nota sobre um marxista convicto e confesso José Paulo Netto

Ao cair da tarde de 29 de junho de 2012, o Magnífico Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Dr. Carlos Levi, presidiu, no Salão Pedro Calmon, do Palácio da Cultura/ Praia Vermelha, a cerimônia solene em que o Conselho Universitário da UFRJ atribuiu a Carlos Nelson Coutinho o título de Professor Emérito, a mais elevada honraria concedida pela universidade a um docente. Na semana seguinte (3 de julho), a comunidade acadêmica da Escola de Serviço Social, também em ato oficial na Praia Vermelha, homenageou Carlos Nelson com uma emocionada sessão de despedida pelos seus 25 anos de magistério na unidade. Uma mesa de debates reuniu alguns de seus amigos mais próximos, e Aloísio Teixeira, ex-reitor da UFRJ, abriu-a com uma bela intervenção sobre as condições da formação intelectual da geração a que ambos pertenciam – a última intervenção pública que lhe foi dado fazer: vítima de um infarto fulminante, Aloísio faleceria 20 dias depois, aos 67 anos de idade. Este alto reconhecimento institucional poderia oferecer de Carlos Nelson a imagem de um acadêmico típico. E, de fato, na academia por um quarto de século, Carlos Nelson revelou-se um es-

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trito cumpridor dos deveres e dos ritos próprios a ela: querido e respeitado pelos estudantes, foi professor que não faltava às aulas, que dialogava com todos os seus colegas sem se omitir nos confrontos internos, que intervinha nos órgãos colegiados, que participava de bancas (de concursos públicos, de avaliação docente, de julgamento de dissertações e teses), que orientava mestrandos e doutorandos... Tal imagem, contudo, não seria verdadeira – porquanto muito unilateral: tudo o que esta imagem expressaria corresponde à realidade; porém, ela deixaria na sombra dois fatos cruciais. Primeiro: Carlos Nelson não é um “produto” ou “resultado” da academia; com efeito, fez-se intelectual fora dela. Segundo: Carlos Nelson só serviu à academia, não se serviu da instituição para nada – não se valeu do prestígio dela para tornar-se “consultor” ou “assessor” de órgãos estatais ou empresas privadas; nunca viajou ao exterior com recursos públicos; e jamais socorreu-se dela como elegante refúgio para, em nome do estatuto “científico” da vida universitária, afastar-se dos seus grandes compromissos societários, assumidos na juventude e aos quais permanece, na teoria e na prática, irredutivelmente fiel – compromissos próprios de quem se refere a si mesmo com a frase célebre de Mariátegui: “Eu, marxista convicto e confesso...” A academia não constituiu, para Carlos Nelson, a ilhota para escusar-se ao preço de uma claríssima opção teórico-política centralizada pela luta socialista; ao contrário, o seu ingresso, aliás tardio, na academia foi a extensão, para uma instância específica da divisão sociotécnica do trabalho, da trajetória que há muito ele já vinha percorrendo. Na verdade, Carlos Nelson esteve na academia, não foi da academia. A limitada pretensão desta breve nota, inserida em volume que festeja este destacado protagonista da cultura brasileira contemporânea, é, conferindo algum fundamento a esta última afirmação, fornecer ao leitor uns poucos e sintéticos subsídios complementares para a apreciação da obra de Carlos Nelson Coutinho.

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O intelectual produtivo

Pelos padrões vigentes do fordismo intelectual acadêmico, registrado no Currículo Lattes, Carlos Nelson seria excelentemente avaliado... com o pequeno detalhe de ele jamais ter concedido qualquer importância a esse tipo de “instrumento de avaliação”. De qualquer maneira, a produção de Carlos Nelson – baiano de Itabuna, filho do advogado, intelectual e político Nathan Coutinho do Rosário e da grande dama Elza de Souza Coutinho, nascido a 28 de junho de 1943, educado em colégio marista e graduado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia em 1965 (na qual ingressou, primeiramente, como estudante de Direito) –, tal produção, ainda que referida tão só e incompletamente a elementos quantitativos, é respeitável. Sobre isto, alguns dados – enfatizo: parciais – são eloquentes (relacionados abaixo até o primeiro trimestre de 2012). Carlos Nelson publicou treze (13) livros: Literatura e humanismo. Ensaios de crítica marxista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967; O estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972; A democracia como valor universal. Notas sobre a questão democrática no Brasil. São Paulo: Ciências Humanas, 1980; Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1981; A dualidade de poderes. Introdução à teoria marxista de Estado e revolução. São Paulo: Brasiliense, 1985; Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1989; Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990; Democracia e socialismo. Questões de princípio & contexto brasileiro. São Paulo: Cortez-Autores Associados, 1992; Marxismo e política. São Paulo: Cortez, 1994; Contra a corrente. Ensaios sobre socialismo e democracia. São Paulo: Cortez, 2000; Lukács, Proust e Kafka. Literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; Intervenções. O marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006; De Rousseau a Gramsci. En53

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saios de teoria política. São Paulo: Boitempo, 2011. Quase todos estes títulos, aqui assinalados em sua primeira edição, foram subsequentemente reeditados (e alguns em versões substantivamente ampliadas). No exterior, seis (6) livros seus foram editados: El estructuralismo y la miseria de la razón. Trad. de Jaime Labastida. México: Era, 1973; Introducción a Gramsci. Trad. de Ana María Palos. México: Era, 1986; Literatura e ideología en Brasil. Tres ensayos de crítica marxista. Trad. de Julia Calzadilla. La Habana: Casa de las Américas, 1987; Il pensiero politico di Gramsci. Trad. de Ambra Pelliccia. Milano: Edizioni Unicopli, 2006; Marxismo y política. La dualidad de poderes y otros ensayos. Trad. de Paula Vidal Molina. Santiago de Chile: Lom Ediciones, 2011; Gramsci’s Political Thought. Trad. Pedro Sette-Câmara. Leiden-Boston: Brill, 2012. A produção de Carlos Nelson, só parcialmente recolhida nos títulos acima citados, é todavia extensíssima: iniciada precocemente no fim dos anos 1950/princípios dos anos 1960 (nas revistas Ângulos, de Salvador, e Estudos Sociais, do Rio de Janeiro) e logo continuada na Revista Civilização Brasileira (Rio de Janeiro, cidade para onde se transferiu em finais de 1965), envolve mais de meia centena de ensaios de fôlego, publicados em dezenas de volumes de autoria coletiva, no Brasil e no exterior (Inglaterra, França, Itália, México, Chile, Japão e Romênia). Não se incluem, aí, incontáveis textos divulgados, de finais dos anos 1960 aos anos 2000, na imprensa diária e/ou semanal do Rio de Janeiro (Folha da Semana, O Jornal, Opinião, Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, O Globo), de São Paulo (Visão, República, Leia Livros), de Minas Gerais (Diário Mercantil), de Salvador (A Tarde, Jornal da Bahia) etc. Do final dos anos 1970 em diante, outros ensaios seus saíram em revistas brasileiras – por exemplo, Temas de ciências humanas (São Paulo); Encontros com a Civilização Brasileira (Rio de Janeiro); Escrita-Ensaio (São Paulo); Presença (Rio de Janeiro); Teoria & Debate (São Pau-

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lo); Lua Nova (São Paulo); Serviço Social & Sociedade (São Paulo), Margem Esquerda (São Paulo) e também em periódicos do exterior (Portugal, Itália, Cuba, França e México). Igualmente, inúmeros textos seus, assinados com pseudônimos (Carlos Nelson, à época da ditadura, valeu-se de vários: Luís Augusto do Rosário, Guilherme Marques, Jorge Gonçalves, Josimar Teixeira, Norberto Teles), circularam no Brasil e no exterior. E, desde 1968, além de organizar antologias (de Lukács, Togliatti e Gramsci), preparou dezenas de prefácios e introduções a livros de outrem. Outra parcela de textos de Carlos Nelson dos anos 1990 em diante – também não computados aqui – apareceu em periódicos acadêmicos (Praia Vermelha, da UFRJ; Em pauta, da Uerj; Libertas, da UFJF; Katálysis, da UFSC). No conjunto da atividade intelectual de Carlos Nelson, sobreleva o seu trabalho como tradutor – foi como tradutor que, de fato, sobreviveu economicamente no Rio de Janeiro, entre fins da década de 1960 e, salvo o período do seu exílio, até meados dos anos 1980. É da sua lavra a versão ao português (a partir do francês, do castelhano, do italiano e do inglês) de mais de sessenta (60) títulos de autores expressivos, entre os quais Raymond Aron, C. Lévi-Strauss, Norberto Bobbio, J. Habermas, A. Heller, C. Castoriadis, E. Morin, e de marxistas como Lucien Goldmann, Henri Lefebvre, Palmiro Togliatti, Pietro Ingrao, Luciano Gruppi, Adolfo Sánchez Vázquez e Herbert Marcuse. Também Carlos Nelson, com o apoio de outros tradutores, respondeu pela versão ao português, em 12 volumes, da importantíssima obra coletiva, organizada por Eric J. Hobsbawm, História do marxismo (Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 1980-1989). Neste ofício, dois autores foram especialmente objeto do trabalho de Carlos Nelson – ele não apenas os traduziu, mas transformou-os em referências essenciais da sua própria elaboração intelectual: por ordem, digamos cronológica, György Lukács e Antonio Gramsci.

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Leandro Konder, sabe-se, foi o primeiro na divulgação do pensamento estético de Lukács no Brasil. Nos anos 1960, estabeleceu-se entre ele e Carlos Nelson uma parceria intelectual que, assim como a amizade que os une, se prolonga até hoje. À época, Carlos Nelson traduziu e organizou, de Lukács, com a colaboração de Leandro, os volumes Introdução a uma estética marxista e Marxismo e teoria da literatura (ambos lançados no Rio de Janeiro, pela Civilização Brasileira, em 1968); e, num trabalho individual, Realismo crítico hoje (Brasília: Coordenada, 1969). Na década seguinte, também coube a ele a pioneira tradução de dois capítulos da Ontologia... de Lukács, então praticamente desconhecida no Brasil: Os princípios ontológicos fundamentais de Marx e A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel (ambos publicados em São Paulo, pela Ciências Humanas, em 1979). E, cerca de 30 anos depois, na direção da Editora UFRJ (cargo que ocupou entre 2004 e 2011), Carlos Nelson, criando a coleção “Pensamento crítico”, organizou e traduziu, juntamente com este escriba, três volumes de ensaios de Lukács: O jovem Marx e outros escritos de filosofia, Socialismo e democratização e Arte e sociedade (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007-2008-2009). A relação de Carlos Nelson com a obra de Lukács foi objeto de vários de seus ensaios, publicados em volumes de autoria coletiva (por exemplo: Ricardo Antunes e Walquíria L. Rêgo [orgs.], Lukács. Um Galileu no século XX. São Paulo: Boitempo, 1996; sobre tal relação, cf. o depoimento de Carlos Nelson in M. O. Pinassi e S. Lessa [orgs.], Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002). Na abertura da segunda metade dos anos 1960, quando Antonio Gramsci ainda não se tornara moda entre os brasileiros, Carlos Nelson participou ativamente da divulgação do seu pensamento no país: traduziu Concepção dialética da história (título dado por Ênio Silveira a Il materialismo storico... Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966) e Os intelectuais e a organização da cultura (Rio

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de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968), além de organizar e traduzir uma seleta de Literatura e vida nacional (idem). E, no fim dos anos 1990, caberia a ele (com a colaboração de M. A. Nogueira e L. S. Henriques) a organização geral (tradução, introduções e notas) dos seis volumes dos Cadernos do cárcere (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002) e dos dois volumes dos Escritos políticos (idem, 2004), ademais da edição dos dois volumes das Cartas do cárcere (idem, 2005). A excelência e o caráter paradigmático do trabalho editorial que resultou nestes dez volumes são internacionalmente reconhecidos e valeram a Carlos Nelson, inclusive, a vice-presidência da International Gramsci Society (IGS). Ainda em 2011, ele preparou a antologia O leitor de Gramsci (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011). E muito da sua vinculação com o pensamento gramsciano, em medida bem maior que no caso de Lukács, foi objeto de inúmeros estudos seus, publicados igualmente em volumes de autoria coletiva (por exemplo: João Quartim de Moraes [org.], História do marxismo no Brasil. Campinas: Unicamp, v. 3, 1998; G. Baratta e G. Liguori­[orgs.], Gramsci da un secolo all’altro. Roma: Riuniti, 1999; E. Borgiani e C. Montaño [orgs.], Metodología y servicio social. Hoy en debate. São Paulo: Cortez, 2000; Dora Kanoussi [org.], Gramsci en América. II Conferencia Internacional de Estudios Gramscianos­. México: Plaza y Valdés, 2000; M. E. Green [org.], Rethinking Gramsci­: London-New York: Routledge, 2011). É de observar-se, pois, que o ofício de tradutor não significou, para Carlos Nelson, um simples “meio de vida” por quase duas décadas. Serviu-lhe, sobretudo, para alimentar a sua própria reflexão, pessoal e autônoma – Lukács e Gramsci, como já assinalei, constituem os parâmetros centrais da sua própria obra. Por agora, bastou-me apenas indicar o imenso trabalho desenvolvido por Carlos Nelson ao longo de sua vida. Poucos intelectuais brasileiros da segunda metade do século XX produziram

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tanto e com tanta qualidade – e note-se que não estão relacionadas, nestas páginas que o leitor acabou de percorrer, nem a totalidade dos escritos de Carlos Nelson, nem as dissertações e teses que orientou nem, menos ainda, a larga série de conferências que proferiu em mais de dez Estados brasileiros e no exterior (Itália, México, Cuba, Argentina e Chile). Um marxista em movimento

Mas não é suficiente caracterizar Carlos Nelson como um intelectual produtivo; é preciso qualificá-lo: trata-se de um intelectual marxista de vasta produção. Como ironizava o saudoso Nelson Werneck Sodré, ainda não se inventou o “marxímetro” – de modo que não é possível aferir o “grau” de marxismo eventualmente “contido” em algum pensador. Mas, se se quiser conferir a qualificação de marxista a alguém como mais que um mero rótulo político ou puramente ideológico, parece-me que alguns parâmetros podem e devem ser estabelecidos – afinal, ou o marxismo tem fronteiras ou a referência a ele carece de qualquer relevância (e, neste caso, bem ou mal e indiscriminadamente, seríamos todos pós-marxistas). Não é esta a ocasião, obviamente, para fundamentar a determinação da pertinência ao marxismo, mesmo que se o considere – como, aliás, eu o compreendo – um campo teórico-prático que comporta distintas e até mesmo conflitantes concepções. De qualquer maneira, para simplificar muito, direi que, como denominador comum necessário para circunscrever este campo, a pertinência ao marxismo supõe simultaneamente: 1) a incorporação do método dialético marxiano (tal qual Lukács o esclareceu desde 1923) como o método adequado para compreender a sociedade burguesa; 2) a crítica da economia capitalista assentada na teoria marxiana do valor e 3) a perspectiva da revolução (logo, das lutas

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de classes) como inarredável para a ultrapassagem da ordem burguesa. É supérfluo aduzir que, mesmo postas estas três condições, é possível problematizar a pertinência ao campo marxista – porque mesmo elas podem ser pensadas e processadas diversamente. Porém, bastam-me minimamente, aqui, para caracterizar aquela pertinência. Ora, a meu juízo, ao longo de mais de quatro décadas de atividade intelectual (e política), Carlos Nelson tem se mantido clara e inequivocamente no campo do marxismo assim compreen­ dido. Mas a sua inserção no campo teórico-prático do marxismo – como, aliás, a de muitos pensadores importantes – nunca se expressou como aderência cristalizada monotematicamente ou a uma única e cerrada interpretação do próprio marxismo. Como sinalizarei a seguir nesta nota, Carlos Nelson tem sido um marxista em movimento; mais precisamente, um marxista para o qual o marxismo implica também colar-se ao movimento do mundo. Dos anos 1960 ao exílio

Na entrada dos anos 1960, Carlos Nelson vinculou-se à tradição marxista – que, como sua opção teórico-política existencial, desenvolveria e consolidaria ao longo da década e da vida. À parte a sua inteligência, a sua dedicação e o seu esforço pessoal neste sentido, o espírito da época contribuiu decisivamente para a sua adesão ao marxismo. Foi aquele o tempo em que as lutas de classes no país ascendiam dramaticamente a um novo patamar, em que os quadros da democracia restrita que vinha de 1945-1946 eram tensionados pela vitalidade do movimento operário e sindical, em que o campesinato avançava organizadamente, em que o movimento estudantil se encorpava (com a UNE e os CPCs ganhando forte audiência), em que boa parte das várias correntes da esquerda brasileira rei-

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vindicava o pensamento de Marx. Para além das nossas fronteiras, Sartre afirmava então que “o marxismo é (...) insuperável”. Movimentos de libertação nacional sacudiam o “Terceiro Mundo”, e a Revolução Cubana imantava a América Latina. Ganhava visibilidade a New Left, o movimento comunista se fraturava (lembre-se o conflito sino-soviético), mas experimentava renovações especialmente no Ocidente, de que era prova, por exemplo, a influência cultural e o crescimento dos PCs da França e da Itália e, ainda, no Oriente, do PC japonês. Era constatável uma hegemonia da esquerda no “mundo da cultura” brasileira, que o golpe de 1964 (como o demonstrou Roberto Schwarz num justamente célebre ensaio de 1969, publicado em Les temps modernes, acessível hoje em O pai de família e outros estudos. São Paulo: Cia das Letras, 2008) não liquidou imediatamente – o que veio a ocorrer na sequência do Ato Institucional n. 5/AI-5 (dezembro de 1968), provocando o que Alceu Amoroso Lima designaria por “vazio cultural”. Militando no movimento estudantil universitário, em 1961 Carlos Nelson já era membro do ilegal (porém, não mais clandestino até 1964) Partido Comunista Brasileiro (PCB), no qual permaneceria até 1982. De 1964 até 1976, quando se viu forçado ao exílio, participou ativamente da resistência à ditadura na frente cultural; sempre um comunista disciplinado, nunca foi um “incondicional” (por exemplo, manifestou-se publicamente, em 1968, contra a intervenção soviética na Tchecoslováquia, que a direção do PCB apoiou – cf. o seu texto, firmado juntamente com Leandro Konder, “Tchecoslováquia: a crise de agosto”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 8/12/1968). Essa primeira metade dos anos 1960 foi de essencial importância para a formação de Carlos Nelson. Se a sua opção comunista se construía na militância estudantil (cf., por exemplo, o seu artigo “Novos rumos para a política estudantil”. A Tarde, Salvador, 21 de

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agosto de 1961), a sua adesão ao marxismo faz-se através da leitura direta e intensiva do próprio Marx – já então lê, entre outras obras, O capital (leitura que aprofundaria depois no Rio de Janeiro, num grupo de estudos formado por seus camaradas de partido, e que consolidaria num curso teórico específico, de alguns meses, sobre O capital, em 1968, realizado em Moscou). O sólido conhecimento de Marx por Carlos Nelson não se evidencia apenas na segurança teórico-metodológica com que conduz, já na segunda metade dos anos 1960, os seus trabalhos – revelar-se-ia, inteiro, nos muitos textos em que, posteriormente, trataria do próprio Marx (por exemplo, no citado A dualidade de poderes e em suas contribuições a Por que Marx, L. Konder, G. Cerqueira Filho e E. L. Figueiredo [orgs.], Rio de Janeiro: Graal, 1983, e a O Manifesto Comunista 150 anos depois, Daniel Aarão Reis Filho [org.], Rio de Janeiro-São Paulo: Contraponto-Fundação Perseu Abramo, 1998). Por outra parte, inicia a leitura sistemática de Lukács – e este é um aspecto importante não só pela aproximação a uma fonte seminal da tradição marxista, mas também pela incorporação de uma interpretação do marxismo caracterizada pela sua riqueza cultural: quaisquer que sejam as críticas dirigidas a Lukács, jamais se lhe negou a amplitude de seus horizontes no domínio da filosofia, da arte e da literatura. É no campo da crítica literária que a produção autoral de Carlos Nelson florescerá na segunda metade dos anos 1960 e na entrada da década de 1970: é quando publica Literatura e humanismo, com o antológico ensaio sobre os romances de Graciliano Ramos e quando começa seus estudos sobre Proust e Kafka (que, revisados, farão parte do bem ulterior Lukács, Proust e Kafka). A sua afirmação como crítico literário de alto quilate virá com a elaboração, em 1973, de outro ensaio antológico, desta vez sobre Lima Barreto (publicado primeiro em Carlos Nelson Coutinho et alii, Realismo e antirrealismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974).

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Na esteira de Lukács, Carlos Nelson, à época, opera também no marco da crítica filosófica. Prossegue interessado especialmente na filosofia francesa (já redigira sobre Sartre um ensaio que saiu em Estudos Sociais. Rio de Janeiro, v. 5, n. 18, novembro de 1963, e a ele retornaria outras vezes, como num texto divulgado em Hora. Universidade Federal de Juiz de Fora, ano I, n. 1, 1971) e é sobre um veio então nela florescente e com forte influência no Brasil que publica um de seus livros mais importantes, O estruturalismo e a miséria da razão (para a segunda edição – São Paulo: Expressão Popular, 2010 –, redigi um longo posfácio, no qual procurei situar a sua relevância). É de observar que, na sequência do AI-5, bastante isolado, com camaradas presos, “desaparecidos” e/ou compelidos ao exílio e com o PCB submetido a dura repressão, que culminaria em 1974-1975, Carlos Nelson dedicou-se por quase dois anos a um intensivo estudo da filosofia grega – planejava, àquele tempo, escrever sobre ela um livro, nunca elaborado (no momento em que esta nota é redigida, Carlos Nelson, mesmo com a sua imensa capacidade de trabalho afetada por um câncer pulmonar, prepara uma “breve história da filosofia”, que, certamente, será uma síntese dos seus estudos filosóficos). Duas notações são significativas acerca deste primeiro momento da produção de Carlos Nelson. Uma diz respeito à sua relação com Lukács: então discípulo assumido do filósofo húngaro, Carlos Nelson o era com grande autonomia intelectual e criatividade. Atesta-o, por exemplo, a sua avaliação já formulada da obra de Kafka (que só foi primeira e tardiamente dada a público num ensaio em Temas de Ciências Humanas. São Paulo, n. 2, 1977), em que discrepa do juízo lukacsiano sobre o autor d’A metamorfose; ou, ainda, a sua criativa elaboração categorial da “miséria da razão” – central em O estruturalismo e a miséria da razão –, ausente na obra de Lukács (mesmo que aprovada por ele).

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A segunda relaciona-se a um certo viés “culturalista” que limitava os seus escritos, tal como se apresentaram em Literatura e humanismo e na sua imediata sequência, mesmo que a gravitação das dimensões sociopolíticas constitutivas do fenômeno estético incidissem na sua análise literária e filosófica (e não seria diferente, em se tratando de um marxista e discípulo de Lukács). Pode-se supor, como hipótese explicativa desta verificação, que Carlos Nelson movia-se considerando que lhe cabia, numa espécie de “divisão de trabalho” entre os intelectuais do PCB – que, de fato, gozavam de inteira liberdade de criação e expressão, superados desde 1956-1958 os constrangimentos da hipoteca stalinista –, operar exclusivamente na frente cultural. Tratava-se de um espaço de intervenção bastante amplo, sustentado pela flexível política cultural do PCB, que vinha desde 1958 e que acabou por ser claramente articulado às análises de conjuntura que o partido fazia, na continuidade do seu V Congresso (1960) e antecipando-se à ou baseando-se na Resolução Política do seu VI Congresso (1967), resolução que Carlos Nelson não questionou – e que lhe serviu também para recusar as tentações do forte esquerdismo que, na sequência do golpe de 1964, vicejou entre influentes círculos intelectuais. Se, para essa escolha ou decisão, pesava a sua própria formação acadêmica, tal “divisão do trabalho” como que alargava a autonomia afirmada para os intelectuais do PCB depois da Declaração de Março (1958). Foi na condição de membro da frente cultural que, na passagem dos anos 1960 aos 1970, participou do grupo de intelectuais que assessorou os dirigentes partidários na preparação do que seria o VII Congresso do PCB – congresso que não se realizou à época, dado o nível da represssão (de fato, só em dezembro de 1982 o PCB haveria de reunir o seu VII Congresso). A partir de 1969 (mais precisamente, das imediatas implicações do AI-5), esse “culturalismo” vai ser deslocado por uma reflexão cada vez mais tendencialmente determinada pela política.

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Num texto que circulou clandestinamente – e, é óbvio, muito restritamente – em 1972, firmado com o pseudônimo de Guilherme Marques, intitulado “Cultura e política no Brasil contemporâneo” (e seguramente redigido com vistas a influir na reelaboração da política cultural que resultaria do planejado, mas não efetivado, VII Congresso), Carlos Nelson avança, a meu juízo, o seu primeiro tratamento histórico-político do Brasil – mas é um trato ainda tímido. Somente no já citado ensaio sobre Lima Barreto (“O significado de Lima Barreto na literatura brasileira”) surge a matriz da tese que Carlos Nelson desenvolverá sistemática e aprofundadamente nos anos seguintes – inspirada originalmente no tratamento que Lukács oferecera no capítulo de abertura d’A destruição da razão e que, expressamente, Carlos Nelson credita a Lenin; a tese segundo a qual a formação social brasileira se caracteriza pela sua constituição moderna enquanto resultante da “via prussiana”. Salvo erro de minha parte, foi Carlos Nelson o primeiro, no Brasil, a explicitamente utilizar com rigor esta chave heurística a que, posteriormente e com impostações diversas, expressivos estudiosos da nossa história haveriam de recorrer diferencialmente (p. ex., Luiz Werneck Vianna e José Chasin). Se estas observações são corretas, pode-se legitimamente considerar que, na entrada dos anos 1970, o pensamento de Carlos Nelson tendia a transladar-se – ou, se se quiser, a deslizar – para o domínio histórico e sociopolítico. A experiência do exílio: a dimensão da política e a aposta perdida

Entre inícios de 1976 e dezembro de 1978, Carlos Nelson viveu na Europa (primeiro na Itália, em seguida um breve período em Portugal e, enfim, na França). Depois dos terríveis golpes que a repressão assestou no PCB entre 1974 e 1975, a sua vida estava em risco – viu-se compelido ao exílio.

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Inicialmente, durante cerca de um ano, residindo em Bolonha, a sua atividade política limitou-se ao trabalho de solidariedade aos brasileiros perseguidos e à denúncia da ditadura – e fez o mesmo nos poucos meses que passou em Lisboa. Já em Paris, onde ficou de setembro de 1977 a dezembro de 1978, envolveu-se nos embates que se travavam entre os dirigentes do PCB no exílio, intervindo na orientação da Voz Operária, mensário da direção partidária editado no exterior; em artigos firmados com pseudônimos, publicou no periódico textos significativos – assim como em Études Brésiliennes, revista teórica do PCB editada na Bélgica. Apesar do afastamento físico do Brasil, não perdeu seus contatos no país, a partir de meados de 1977 estimulados pela relação estabelecida com o grupo de marxistas que a iniciativa de Raul Mateos­Castell articulava em São Paulo em torno da Editorial Grijalbo, logo transformada em Livraria Editora Ciências Humanas (responsável por Temas de Ciências Humanas, revista com a qual Carlos Nelson começou a colaborar) – em especial com Marco Aurélio Nogueira. Nesses quase três anos no exterior, Carlos Nelson estudou – como sempre – intensivamente: aprofundou principalmente a sua análise econômico-política do capitalismo contemporâneo, com ênfase no tratamento que marxistas franceses davam ao capitalismo monopolista de Estado (CME), categoria que considerará adequada para pensar o Brasil, e, por outra parte, examinou em detalhe autores esconjurados pela dogmática “marxista-leninista” (Kautsky, Bernstein, Bukharin e os “austro-marxistas”). Porém, buscando claramente responder aos problemas postos aos comunistas brasileiros (basicamente a compreensão da derrota orgânica sofrida pelo Partido, que obrigou parte da direção à vida no exterior, e a preparação do Partido para enfrentar as tarefas da sua reconstrução, que já se operava autonomamente no Brasil sob a crise do regime ditatorial), a sua reflexão volta-se diretamente para

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o debate político. O deslizamento dos seus interesses intelectuais para o campo da história e das suas dimensões sociopolíticas, já mencionado, ganha então um novo ritmo: sem prejuízo da sua atenção à literatura e à filosofia, Carlos Nelson volta-se para o estudo da formação do Brasil moderno. Em um processo que vai ocupá-lo sistematicamente até os anos 1990, iniciará um reexame da bibliografia histórica e socioeconômica brasileira (Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, Celso Furtado, Raymundo Faoro, mas também de grandes conservadores, como Oliveira Viana) e mergulhará na leitura dos nossos melhores cientistas sociais (Florestan Fernandes, Octavio Ianni). Investirá ainda na leitura de autores de outras latitudes, como Barrington Moore. E pesquisará o debate que então se processava na Europa Ocidental acerca de uma teoria política marxista. Como se sabe, este debate se desenvolvia especialmente na Itália (mas também na França, na Espanha e na Inglaterra), no marco da discussão do malchamado eurocomunismo. Carlos Nelson debruçou-se sobre a evolução recente dos PCs europeus, aprofundou a sua crítica ao “marxismo soviético” e convenceu-se de que a elaboração conduzida pelos italianos, na trilha do pensamento de Togliatti, poderia levar a uma renovação da teoria política marxista (é sintomático que, logo após o seu retorno ao Brasil, tenha selecionado e traduzido textos do dirigente italiano: Palmiro Togliatti, Socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Muro, 1980). De fato, ele se aproximou inequivocamente das proposições eurocomunistas – não conforme a vulgarização à moda de um Santiago Carrillo, mas muito chegado às posições mais à esquerda de um Pietro Ingrao (de quem traduziria a famosa entrevista, de 1978, a Romano Ledda: Crise e terceira via. São Paulo: Ciências Humanas, 1981). É neste quadro, que certamente a favorecia, que Carlos Nelson retoma a sua interlocução com Gramsci, que vinha desde a segunda metade dos anos 1960. Retoma-a, porém, no ní-

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vel de uma exegese meticulosa, que seria aprofundada nos 20 anos seguintes. Exegese que daria excelentes frutos de precisão teórico-filológica, patenteados na produção madura de Carlos Nelson (e que se podem comprovar também nos vários verbetes que redigiu para a obra dirigida por G. Liguori e P. Voza, Dizionario Gramsciano. Roma: Carocci, 2009). Na polêmica interna que se travava na direção exilada do PCB, Carlos Nelson participa ativamente e, no núcleo aglutinado em torno de Armênio Guedes (constituído, entre outros, por seus camaradas e amigos Leandro Konder e Milton Temer), desempenha um protagonismo expressivo na vertente que se reivindicava como “renovadora” do PCB (num movimento que, por outro lado e por outras razões, já se esboçava, autonomamente, no interior do partido no Brasil). Salvo erro de interpretação, foi neste processo de luta interna, em Paris, que Carlos Nelson – em estreita relação com os estudos que desenvolve à época – assume a dimensão específica da política e a situa no centro da sua reflexão. Os artigos que então escreve para a Voz Operária indicam com nitidez o giro que se opera na sua vida intelectual. Mas o primeiro marco substantivo do novo patamar da reflexão teórico-política de Carlos Nelson, produzido ainda em Bolonha, é o texto, firmado com o pseudônimo de Guilherme Marques, “Économie et politique au Brésil aujourd’hui” – que sai em Études Brésiliennes (Leuven, ano 3, n. 4, 1977); abordando as ideias expostas por Fernando Henrique Cardoso em Autoritarismo e democratização (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975), realiza delas uma crítica brilhante e radical. A meu juízo, é nesta peça importante que o pensamento de Carlos Nelson se translada centralmente para o domínio da teoria política (translação que ainda não se verifica em um ensaio anterior, também importante, “Culture et idéologie. Le problème de la culture brésilienne: ‘nationalisme culturel’ ou assimilation

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créatrice de la culture universelle”, igualmente sob a firma de Guilherme Marques e publicado em Études Brésiliennes, 1, n. 1, 1975). No que diz respeito à luta interna no PCB, que prosseguirá no Brasil até 1982, quando se realiza o seu VII Congresso (dezembro de 1982), Carlos Nelson faz uma aposta alta: joga o seu empenho e o seu prestígio no que pretendia ser a renovação do partido. O complicado processo dessa luta interna – que ainda é objeto de ampla polêmica – envolverá dilacerações intestinas, a autoexclusão da figura maior de Prestes e, ao fim e ao cabo, a saída do partido de militantes expressivos, inclusive intelectuais do porte de Carlos Nelson. Os “renovadores” perderam, do ponto de vista orgânico, a sua aposta, embora, ironicamente, a resolução política aprovada pelo VII Congresso (Uma alternativa democrática para a crise brasileira. São Paulo: Novos Rumos, 1984) consagre várias das teses defendidas por eles. Com esta derrota orgânica e depois de 20 anos de vida partidária, Carlos Nelson sai do PCB. Mas levava consigo, assimilada, a “cultura comunista” própria do PCB, que o acompanha até os dias de hoje – ninguém, com seriedade, passa impunemente por duas décadas num partido comunista sério. E sai no mesmo compasso em que sua reflexão teórico-crítica deixava de dar prioridade ao tratamento dos fenômenos estético-culturais para cuidar preferencialmente da história da formação social brasileira contemporânea. Do debate sobre democracia e socialismo às novas apostas

O deslocamento do foco das reflexões de Carlos Nelson da crítica literária e filosófica para o terreno da teoria política, sob o direto influxo de Gramsci e voltado para a atenção ao Brasil contemporâneo – deslocamento que, iniciado no exílio, será consolidado no curso dos anos 1980 –, não significou o

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abandono das suas preocupações estéticas nem, segundo ele próprio, a substituição das suas referências lukacsianas pelas gramscianas. Quanto ao primeiro aspecto, é verdade que Carlos Nelson continuou tematizando problemas de teoria estética e até mesmo a crítica literária – veja-se, por exemplo, o tardio e breve ensaio “O povo na obra de Jorge Amado” (já esboçado em “Jorge Amado, o povo e a literatura”. O Diário, Lisboa, 13 de agosto de 1977, e hoje no volume coletivo Um grapiúna no país do carnaval. Salvador: FJCA/EdUFBA, 2000) ou, substantivamente, as reservas a Lukács e a revisão a que submeteu os textos reunidos em Lukács, Proust e Kafka (2005). Entretanto, parece-me possível afirmar que mesmo este interesse – prosseguimento da sua problematização do “mundo da cultura” –, crescentemente secundarizado nos anos 1980, estará a partir daí submetido a um registro diferente, sobredeterminado pelas suas preocupações teórico-políticas. O registro teórico próprio do pensamento de Carlos Nelson que chamarei de maduro (vale dizer: do pensamento que elabora desde o início dos anos 1980, quando se aproximava da casa dos 40 anos de idade) no trato do “mundo da cultura” aparece, inquestionavelmente, numa conferência que pronunciou em 1980, em São Paulo (“Os intelectuais e a organização da cultura”, depois recolhida em Cultura e sociedade no Brasil), consolidando a matriz analítica avançada num texto de pouco antes (1977-1979), “Cultura e sociedade no Brasil” (também coligido neste último livro). O segundo aspecto – seu caminho de Lukács a Gramsci – é mais polêmico. Para alguns analistas, entre os quais se inclui o signatário da presente nota, este trânsito não é algo pacífico, mas, ao contrário, carregado de problemas e tensões. Carlos Nelson – sem ignorar as profundas diferenças entre os dois pensadores – tem sustentado, desde os anos 1980, a compatibilidade entre as concepções de ambos (fê-lo, ainda recentemente, num belo ensaio – “Lukács e

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Gramsci: apontamentos preliminares para uma análise comparativa” – publicado em De Rousseau a Gramsci). Eis, em resumidas contas, a conclusão do seu argumento: é falsa a alternativa Lukács ou Gramsci, sendo mais cabível a fórmula Lukács e Gramsci. Para além de quaisquer outras notações, o fato é que a referência reiterada do pensamento maduro de Carlos Nelson é mesmo Antonio Gramsci (de 1980 a 2005, para além do que já listei, contabilizo pelo menos outras quinze (15) intervenções textuais expressamente dedicadas ao comunista sardo) – respondendo diretamente à natureza de suas novas preocupações de pesquisa. Mas é preciso sublinhar que o seu universo intelectual continuou a enriquecer-se (sempre mercê de um estudo sistemático), seja por releituras, seja por novas leituras. No primeiro caso, está a revisitação a seus queridos Hegel e Rousseau (revisitação efetivada a partir dos anos 1980, mas cuja objetivação textual específica é posterior – cf. “Crítica e utopia em Rousseau”. Lua Nova. Cultura e política. São Paulo: Cedec, 37, 1996; Hegel e a democracia. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados/USP, Coleção Documentos, Série Especial 1.6, julho de 1997; e “A dimensão objetiva da vontade geral em Hegel”. Lua Nova. Cultura e política. São Paulo: Cedec, 43, 1998) e também a Weber (atendendo especialmente aos cursos acadêmicos que começou a ministrar). No segundo caso, o exame mais acurado dos teóricos de Frankfurt, especialmente Adorno (porque já conhecia Horkheimer e Benjamin, se é que este pode ser pensado como frankfurtiano, e também Habermas), refratado só parcialmente, por exemplo, no pequeno artigo “A Escola de Frankfurt e a cultura brasileira” (Presença. Revista de política e cultura. Rio de Janeiro, 7, março de 1986) e, ainda, de autores tão distintos como H. Arendt, J. Rawls, R. Dahl, C. Offe, C. B. Macpherson e C. Lefort. Na primeira metade dos anos 1980, praticamente toda a produção (ensaios, conferências, intervenções políticas, artigos na

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grande imprensa) de Carlos Nelson estará voltada para a problematização da relação entre democracia e socialismo – e será precisamente neste período que os influxos eurocomunistas mais se farão sentir sobre a sua reflexão, influxos que, posteriormente, especialmente na segunda metade da década de 1990, irão se esbater (o que, certamente, não é alheio à flagrante constatação do inteiro fracasso das propostas eurocomunistas na Europa). Ninguém, ao que eu saiba, contesta que foi Carlos Nelson aquele que colocou a discussão da relação democracia/socialismo no coração da agenda da esquerda brasileira, com o ensaio “A democracia como valor universal” (Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 9/3/1979; depois objeto de reedições). Publicado já na agonia do regime ditatorial (agonia que se prolongaria até 1985), quando as forças democráticas brasileiras experimentavam um movimento ascendente, e se estruturavam novos instrumentos de intervenção social e político-partidária, este ensaio tornou o nome de Carlos Nelson conhecido para muito além dos círculos do “mundo da cultura”. Imensa foi a sua repercussão política – e o autor ganhou a notoriedade que toda a sua intervenção cultural anterior não lhe havia granjeado. Nas fronteiras da compósita frente antiditatorial, o ensaio provocou frisson: enfim, dizia-se, um comunista rende-se aos valores democráticos; na esquerda, também ela heteróclita, armou-se uma polêmica que não se viu livre de equívocos; mas, nela, desde então, a questão democrática ficou cravada de forma definitiva e não mais pôde ser eludida – e talvez resida aí o mérito substantivo que se deve atribuir ao texto tornado famoso. É óbvio que a um autor não podem ser debitados os abusos operados a partir de uma tese, de uma ideia, mormente quando conquista grande ressonância. Ao longo dos anos 1980 (e não só), “A democracia como valor universal” serviu a quase tudo e a quase todos: ao repensamento sério do projeto socialista, à retomada da

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inspiração de “clássicos” da tradição revolucionária, à rendição ao liberal-democratismo burguês, a democratas sinceros e a outros nem tanto, a marxistas de ocasião e a ex-guerrilheiros convertidos ao credo da cidadania liberaloide, ao ambientalismo dentro da ordem e à promoção de ONGs. Carlos Nelson não pode ser responsabilizado por alguns usos e os muitos abusos de que o seu ensaio foi objeto e pretexto à direita e à esquerda. Mas continuamente insistindo na validez do núcleo duro de “A democracia como valor universal”, ele discretamente parece admitir que a sua formulação original de 1979 não foi das mais precisas e felizes – quando, por exemplo, concede, recolhendo a inspiração do último Lukács, que o valor universal não é a “democracia”, mas a “democratização” (cf., entre outras manifestações suas, “Democratização como valor universal”. Proposta. Rio de Janeiro: Fiocruz, 61, junho de 1994, retomado na entrevista a P. C. C. Bocayuva e S. M. Veiga [orgs.], Afinal, que país é este?. Rio de Janeiro: DP&A Editores, 1999); entretanto, é preciso convir, a meu juízo, que as duas palavras (no limite, os dois conceitos) não podem ser tomadas(os) como sinônimos. De qualquer forma, nos anos imediatamente seguintes e depois, em inúmeras intervenções, Carlos Nelson tratou de enfatizar que a sua defesa da democracia era parte inerente ao seu ideário socialista, que a consequência radical do princípio democrático era a proposta socialista; enfim, tratou de explicitar, com itálicos no original, “que, se sem democracia não há socialismo, tampouco há democracia plena e consolidada sem socialismo, ou seja, sem a superação da sociedade de classes, fundada na exploração do homem pelo homem e na alienação” (Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2ª ed., 2008, p. 17). O mote segundo o qual “sem democracia não há socialismo” (sempre e sempre reiterado – cf., por exemplo, “Sem socialismo não há democracia”. Caros Amigos. São Paulo, n. 153, dezembro de

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2009) permite-me abrir aqui um parêntese para já antecipar a rea­ ção de Carlos Nelson ao colapso, na passagem dos anos 1980 aos anos 1990, do chamado socialismo real – cujo déficit democrático sempre lhe saltou à vista. Sem questionar o significado histórico da Revolução de Outubro, reconhecendo a importância da contribuição soviética à defesa da civilização ameaçada pelo nazifascismo, os impactos positivos da União Soviética sobre a própria democratização do Ocidente e a sua ativa solidariedade às lutas de libertação nacional e anti-imperialistas, Carlos Nelson sempre se mostrou suficientemente crítico diante dos enormes limites do “degelo” promovido a partir do XX Congresso do PCUS (dos seus textos sobre a literatura soviética, ainda de meados dos anos 1960, à sua avaliação de Soljenitsin, na entrada dos anos 1970, este posicionamento é nítido; e já mencionei, no que toca à política externa do Estado soviético à época, a sua atitude diante da invasão da Tchecoslováquia em 1968). Desde meados dos anos 1970 – e a mim me parece que, neste aspecto, os rumos tomados pela URSS sob Brejnev e a relação de Carlos Nelson com a versão italiana do eurocomunismo foram decisivos –, contudo, ele foi aprofundando a sua crítica ao socialismo real (que aparece como tal, por exemplo, no artigo “A Polônia e o futuro do comunismo”. Folha de S.Paulo, 14/1/1982; e depois em “A esquerda revê Moscou”. Jornal do PT, São Paulo, n. 3, agosto de 1988). Valeu-se muito, neste aprofundamento, da inspiração gramsciana acerca da estatolatria para pensar (e criticar) a experiência soviética. Se Carlos Nelson viu com simpatia a tentativa de autorreforma de Gorbatchev, não se surpreendeu com o seu fracasso, embora o lamentasse. No entanto, não foi tomado por “perplexidades” nem involuiu para a cantilena da “necessidade de novas utopias”: compreendeu o colapso do socialismo real como exaurimento de uma experiência histórica extremamente relevante, da qual há que extrair lições para a reconstrução, sobre novos fundamentos, do projeto socialista e do movimento

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comunista (é o que se infere de textos, entre muitos, como “Crise e reconstrução do projeto socialista”, in J. Almeida e V. Cancelli [orgs.], Estratégia. A luta política além do horizonte visível. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998; “O socialismo hoje: entre crise e reconstrução”. in Vv. Aa., O significado da Revolução Socialista de 1917. São Paulo: Centro de Estudos Sindicais, 1998, e “Crise e perspectivas do socialismo”, in V. Iorio [org.], Conversas na Biblioteca. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2009). E, expressamente quanto ao marxismo, em 2000 continuou insistindo que ele “conserva seu valor analítico e sua atualidade prática, mesmo ou sobretudo depois do colapso do socialismo real” (prefácio à 1ª ed. de Contra a corrente. São Paulo: Cortez, 2000). Cumpre notar ainda que, em visceral relação com o debate sobre democracia e socialismo, Carlos Nelson formulou – ao que me parece, conclusivamente – a sua concepção acerca do pluralismo tanto no plano teórico (cf. “Pluralismo: dimensões teóricas e políticas”. Cadernos ABESS 4. Ensino em Serviço Social: pluralismo e formação profissional. São Paulo: Cortez, 1991) quanto no político (que ele tematiza, creio que pela derradeira vez, num ensaio contido na 2ª ed. de Contra a corrente). Retomemos o fio da meada. A problematização operada por Carlos Nelson da relação democracia/socialismo também se vinculava estreitamente ao quadro político da transição do regime ditatorial à democracia política em curso no Brasil – e que ele, em suas análises da conjuntura da época, qualificou e caracterizou como “transição fraca” (cf. o item 1 de “Democracia e socialismo no Brasil de hoje”, in Democracia e socialismo). Em vários dos seus escritos dos dois primeiros terços da década de 1980, Carlos Nelson apresenta a sua interpretação do processo que se desenrolava no Brasil, na qual muitas das principais categorias gramscianas são empregadas como fundamentais instrumentos heurísticos (Estado ampliado, sociedade civil, revolução passiva, hegemonia, nacio-

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nal-popular, bloco histórico, guerra de movimento/guerra de posição, transformismo etc.); já se viu que não foi o único a fazê-lo, mas foi aquele que mais sistemática e rigorosamente o fez. Privilegiando a relação Estado/sociedade civil, esforçou-se por compreendê-la, em profundidade e nas concretas condições do nosso país, em suas dimensões sincrônica e diacrônica – aqui se voltando novamente para a documentação histórica e sociológica brasileira e reinterpretando a obra de autores fundamentais (cf., por exemplo, “Uma via ‘não clássica’ para o capitalismo”, in Maria Ângela d’Incao [org.], História e ideal. Ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense-Unesp, 1989; “Marxismo e ‘imagem do Brasil’ em Florestan Fernandes”, in Cultura e sociedade no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2ª ed., 2000; e também “Uma imagem marxista do Brasil”, in M. V. Iamamoto e E. R. Behring [orgs.], Pensamento de Octavio Ianni. Um balanço de sua contribuição à interpretação do Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009). É desnecessário relembrar nesta nota a efervescência social e política dos anos 1980, do agravamento da agonia da ditadura à sua derrota e às eleições de 1989: reingresso aberto da classe operária na cena política, revitalização do movimento sindical e sua expansão para muito além das fronteiras proletárias, vigorosa emersão de movimentos sociais, legalização dos partidos comunistas e formação de outros partidos, potencialidades para construir na sociedade brasileira novas vontade e hegemonia políticas... Então, pela primeira vez desde 1964, Carlos Nelson pôde fazer a experiência, em seu país e com a sua identidade teórico-política posta à luz do sol, de buscar sujeitos coletivos sobre os quais calçar a sua reflexão teórica, que o quadro sociopolítico, por seu turno, estimulava e exigia, permitindo-lhe articular as suas ideias com tendências objetivamente dadas e operantes na realidade social, tendências que expressavam as longa e duramente reprimi-

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das demandas de democracia e transformações sociais. Naqueles breves anos, Carlos Nelson pôde imaginar que vivia a situação (que o jovem Marx tão sugestivamente figurara) de que tanto o seu pensamento se dirigia à realidade quanto esta se dirigia ao seu pensamento. Parecia que, novamente, o espírito da época estava a favorecê-lo – e, em parte, favoreceu-o efetivamente: propiciou-lhe, então, as condições para que se constituísse uma afinada sintonia entre as suas preocupações teóricas, a sua participação política (ainda não necessariamente partidária, mas esta logo se manifestaria) e demandas democrático-populares expressas mobilizadoramente. Em suma, nos anos 1980, o pensamento maduro de Carlos Nelson pôde contar com evidências para desenvolver muito propriamente as ideias no seu lugar – se evocarmos a polêmica desatada nos anos 1970 por outro texto célebre de Roberto Schwarz (“As ideias fora do lugar”. Revista Cebrap. São Paulo: Cebrap, 3, 1973), polêmica da qual Carlos Nelson também participou (cf. “Cultura brasileira: um intimismo deslocado à sombra do poder”. Cadernos de debate. História. São Paulo: Brasiliense, 1, 1976). Também não há espaço, nesta nota necessariamente limitada, para referir o largo rol de intervenções (artigos, ensaios, conferências, entrevistas) que Carlos Nelson dedicou a esta quadra da vida brasileira, demonstrando a intensidade com que ele a viveu – parte significativa dos materiais que então produziu está coligida em alguns de seus livros (por exemplo, Democracia e socialismo, Contra a corrente, Intervenções). O importante a salientar é que, no processo de elaboração desses materiais – cujo objeto primeiro, frequentemente, foi a conjuntura política –, Carlos Nelson consolidou a sua interpretação do Brasil contemporâneo. E isto porque suas análises da conjuntura não se limitaram direta e pragmaticamente à microavaliação das forças das classes em presença, à perspectivação dos interesses em contradição, à detecção de conflitos de poder. Foi além dos epifenômenos e da imediaticidade:

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procurando prospectar as tensões, as possibilidades e as alternativas que se desenhavam no horizonte da grande política (parece-me comprovada factualmente a sua projeção acerca do embate entre os projetos “liberal-corporativo” e de “democracia de massas” – cf. o item 2 do já citado “Democracia e socialismo no Brasil de hoje”), também as chances de constituição de um novo intelectual coletivo, Carlos Nelson articulou, criativamente, os componentes de uma original teoria do Brasil contemporâneo. E foi exatamente no curso deste processo que, já completados os seus 40 anos, moveu-se em direção à instituição acadêmica. Após uma breve passagem, no início dos anos 1980, pelas Faculdades Bennett (RJ), Carlos Nelson, em 1986, através de concurso público, obteve a livre-docência em Política Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tornando-se, na Escola de Serviço Social, professor titular do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado. O movimento de Carlos Nelson não decorreu apenas em função da abertura das universidades aos novos ventos democráticos: é que tais ventos, então, sopravam muito peculiarmente na UFRJ – dirigia-a um reitor atípico, o primeiro no Brasil eleito por voto direto, cientista e professor respeitado, químico de nomeada e violinista nas horas vagas, o histórico comunista Horácio Macedo (1925-1999). E na Escola de Serviço Social vivia-se uma verdadeira revolução, conduzida pelo grupo das professoras Maria Helena R. Ramos e Maria Inês S. Bravo, que rompia com o tradicionalismo e o corporativismo até então característicos do Serviço Social brasileiro e dominante na instituição. Por um quarto de século, Carlos Nelson, emprestando seu prestígio intelectual àquela unidade acadêmica, desfrutou ali de um ambiente de trabalho acolhedor. E, ainda no final dos anos 1980, fez outra aposta político-partidária: ingressou no Partido dos Trabalhadores (PT), acompanhando Leandro Konder e Milton Temer. Lastreado pela “cul-

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tura comunista” que assimilou em 20 anos de PCB e coerente com a sua convicção acerca do papel necessário e insubstituível do partido como instância de universalização das demandas político-sociais, viu no PT o partido de novo tipo e o instrumento adequado para a militância socialista nas condições brasileiras – militância que poderia exercitar o que ele formulava (1989) como reformismo revolucionário, no quadro da sua concepção processual de revolução (cf. “Democracia e socialismo: questões de princípio”, in Democracia e socialismo). Intelectual eminente entre os muitos intelectuais eminentes que se filiaram ao PT, ao longo de mais de dez anos – tendo feito parte do “governo paralelo” (coordenando a “Secretaria de Relações Exteriores”) que o partido montou na sequência da eleição de Collor de Mello –, Carlos Nelson participou dos debates intrapartidários e sempre marcou posição em seus fóruns nacionais. A trajetória do PT, contudo, deixou-o progressivamente descoroçoado; o limite da sua tolerância chegou quando o partido, com um centralismo personalista que operava ao arrepio de instâncias efetivamente democráticas, rendeu-se de fato e no governo à vaga neoliberal (cf. “As metamorfoses do PT e o governo Lula”, in Intervenções). Recorde-se, aliás, que Carlos Nelson, a partir do fim dos anos 1980, contribuíra para desvelar o caráter medularmente antidemocrático, e lesivo aos interesses imediatos e mediatos dos trabalhadores, da ofensiva neoliberal; uma síntese das suas ideias sobre esta problemática, ele a ofereceu na conferência “A época neo­liberal: revolução passiva ou contrarreforma?” (publicada primeiro em italiano e depois recolhida na 2ª ed. de Contra a corrente). Em 2004, o “marxista convicto e confesso” (talvez exatamente por sê-lo) abandonou as fileiras do PT e fez nova aposta: foi, como outros intelectuais significativos, um dos fundadores do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) – ao lado, outra vez, de

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Leandro Konder e Milton Temer. Eles são os três mosqueteiros da esquerda marxista no Brasil. Para a avaliação da obra de Carlos Nelson

A obra de Carlos Nelson é caracteristicamente ensaística – mas não creio que a sua opção pela forma do ensaio tenha sido uma escolha apenas consciente e puramente individual: ela, seguramente, insere-se nos, e deve-se sobretudo aos (como diria um ilustre sociólogo ignorado pelas gerações mais novas, G. Gurvitch­), quadros sociais da inteligência brasileira ao tempo dos seus anos de formação. O trânsito dos anos 1950 aos anos 1960 – com o panorama sociopolítico que sinalizei muito esquematicamente linhas acima, indicador das profundas mudanças por que passava o país: auge da industrialização substitutiva de importações (a que logo se seguiria a industrialização pesada), crescimento do proletariado, urbanização acentuada, movimentos de mobilidade ocupacional, social e espacial, ampliação de oportunidades de educação formal etc. – implicou importantes alterações na dinâmica cultural brasileira. Uma dentre tais e muitas alterações foi a renovação (inclusive por razões geracionais) do ensaio como forma de expressão intelectual; já com larga tradição e um elenco de grandes cultores na inteligência brasileira, ele então se redimensiona vigorosamente, diferencia-se, amplia o universo dos seus objetos e as suas áreas temáticas. No âmbito em que o ensaio mais dispunha de história entre nós – o da crítica literária –, esta renovação é saliente. Em meados da década de 1960, estreiam em livro três jovens autores que marcariam indelevelmente a história do ensaísmo brasileiro e atestam a renovação a que me refiro: José Guilherme Merquior (1941-1991), com Razão do poema, Roberto Schwarz (1938), com A sereia e o desconfiado (ambos editados no Rio de Janeiro

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pela Civilização Brasileira, em 1965) e Carlos Nelson, que publica Literatura e humanismo em 1967. Três talentosas trajetórias que se cumpriram (embora seja aqui incorreto o pretérito, uma vez que Schwarz e Carlos Nelson continuam vivos e a produzir) mediante inserções sócio-ocupacionais e inspirações diversas – Merquior no serviço diplomático, Schwarz na academia e Carlos Nelson só ingressando nela tardiamente. O primeiro inscrevendo progressiva e conscientemente a sua produção em um marco de referência liberal (ele, certamente, dir-se-ia um “social-liberal”); Schwarz desenvolvendo seu trabalho sobre um terreno em que decisivos componentes marxistas (lukacsianos) confluem com fortes impostações de Frankfurt (Adorno); e Carlos Nelson, em um espaço marxista balizado por Lukács e Gramsci. Na diferenciada evolução dos três, verifica-se – também diversamente – que o trato originalmente direcionado para a literatura desbordou este objeto e incidiu sobre a filosofia e a teoria política (expressamente em Merquior e Carlos Nelson, mais matizadamente em Schwarz). Todos eles tiveram/ têm no ensaio a sua forma expressiva essencial e a contribuição que ofereceram/oferecem à cultura brasileira ainda aguarda, parece-me, uma avaliação cuidadosa que dê conta das suas respectivas importâncias. No caso de Carlos Nelson, a meu juízo, esta necessária avaliação deverá distinguir na sua obra três níveis. O primeiro é o que chamarei de publicístico: nele se encontra o conjunto de textos, de maior ou menor fôlego, em que Carlos Nelson tem por objetivo resumir uma determinada problemática ou esclarecer as ideias/teses centrais de um grande intelectual. São numerosos os seus textos que se enquadram neste tópico – mas, entre tantos, considero típicos, por exemplo, “O realismo como categoria central da crítica marxista” (Literatura e humanismo), a “introdução” aos textos gramscianos coligidos no Gramsci (L&PM, 1981) e, igualmente, a “introdução” a’O leitor de Gramsci. Compulsando-se estes títu-

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los, ver-se-á que a publicística de Carlos Nelson não consiste na simples (e, em geral, útil e necessária) divulgação de ideias e/ou de autores, embora a tenha realizado – difere dela pelo fato de sempre conter componentes de problematização e crítica. Um segundo nível, muito mais substantivo e denso, é o da crítica literária e filosófica stricto sensu. Aqui, os ensaios sobre estética e literatura de Carlos Nelson, sempre pautados pela inspiração lukacsiana (e, progressivamente, desenvolvendo mais criadoramente o método de Lukács), constituem magníficas interpretações de autores brasileiros (Graciliano, Lima Barreto) e estrangeiros (Proust e Kafka) – não se esqueça, porém, de que, em peças menores, ele dedicou atenção não só a autores “clássicos”, como Dostoievski, mas a contemporâneos como Soljenitsin, Jorge Semprun, J. D. Salinger e William Styron. A explicitação do essencial da crítica filosófica (mas só a explicitação, uma vez que ela comparece, subjacente, no seu tratamento de Marx, de Lukács e de Gramsci) de Carlos Nelson está no paradigmático O estruturalismo e a miséria da razão. Quer num âmbito como noutro (literatura e filosofia), o trabalho – autoral, original – de Carlos Nelson contribuiu decisivamente para elevar o pensamento marxista no Brasil a um plano que, antes dele, não fora atingido. O terceiro nível é o da sua interpretação do Brasil – que, a meu juízo, constitui mesmo uma teoria do Brasil contemporâneo. Já salientei (o que, ademais, é sobejamente conhecido) que a referência teórica maior de tal interpretação é Gramsci (e também assinalei que não foi ele o único a valer-se dela). Entretanto, é preciso frisar, com igual ênfase, que Carlos Nelson está longe da mera “aplicação” das concepções gramscianas ao Brasil (em especial, o Brasil do século XX): recorrendo a elas como seu principal instrumento heurístico, Carlos Nelson – no conjunto dos seus textos sobre o Brasil redigidos a partir de 1980 – elaborou uma visão articulada e sistemática da constituição do Estado burguês no Bra-

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sil e suas relações com a sociedade civil, apreendendo preferencialmente as suas modificações no período pós-1930. Nesses textos, ele construiu o que, ao referir-se a Octavio Ianni, designou como uma “imagem do Brasil”, ou seja, “não a descrição de elementos parciais de nossa realidade social, ou mesmo de nossa realidade global, mas a tentativa de compreender a gênese histórica desta realidade e de identificar as tendências contraditórias que ela comporta no presente e que apontam para o futuro” (“Uma imagem marxista do Brasil”, in Pensamento de Octavio Ianni, cit., p. 57). A tal imagem estou chamando a sua teoria do Brasil contemporâneo; seu núcleo duro pode ser sintetizado nas palavras do próprio autor: (...) Cabe insistir que a nação brasileira foi construída a partir do Estado, e não a partir da ação das massas populares. Ora, isso provoca conse­ quências extremamente perversas, como, por exemplo, o fato de que tivemos, desde o início da nossa formação histórica, uma classe dominante que nada tinha a ver com o povo, que não era expressão de movimentos populares, mas que foi imposta ao povo de cima para baixo ou mesmo de fora para dentro e, portanto, não possuía uma efetiva identificação com as questões populares, com as questões nacionais. Para usar a terminologia de Gramsci, isso impediu que nossas ‘elites’, além de dominantes, fossem também dirigentes (Contra a corrente. São Paulo: Cortez, 2ª ed., 2008, p. 111). (...) Empenho-me sempre por demonstrar que o problema central da cultura brasileira (...) tem sua gênese na ausência de um ‘grande mundo’ democrático em nossa sociedade (...), ausência que resulta dos processos de transformação pelo alto (‘via prussiana’, ‘revolução passiva’) que marcaram a história brasileira (...) (Cultura e sociedade no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2ª ed., 2000, p. 10). (...) O Brasil se modernizou ‘pelo alto’, prussianamente, passivamente, gerando com isso formas extremamente perversas de desigualdade social, tremendos déficits de cidadania; mas o fato é que, malgrado isso, nosso

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país se modernizou, tornou-se o que Gramsci chamaria de uma ‘sociedade ocidental’. E isso nos obriga a novas reflexões e desafios teóricos. (...) Torna-se agora urgente uma reflexão que busque elevar a conceito (como Hegel gostava de dizer) a especificidade do Brasil contemporâneo (Intervenções. São Paulo: Cortez, 2006, p. 148).

A sua teoria do Brasil constitui, exatamente, a sua contribuição no sentido de “elevar a conceito” a nossa especificidade contemporânea. Espero tenha ficado claro, pelas minhas observações precedentes, que este terceiro nível concretiza o deslizamento operado pela sua reflexão na segunda metade dos anos 1970, tanto no que diz respeito às suas referências teóricas (de Lukács a Gramsci) quanto ao direcionamento da sua pesquisa (da focagem literário-filosófica à teoria política centrada no Brasil). Tal deslizamento, como igualmente procurei sugerir, não se produziu apenas em razão da experiência do exílio, ainda que esta tenha desempenhado nele um papel relevante – mas já se esboçava no segundo terço da década de 1970, por razões imanentes à maturação do seu pensamento e por imperativos do conhecimento de um Brasil em profunda transformação. Esta derradeira notação me parece decisiva para quando se apresentar a oportunidade de avaliar, com cuidado e muito rigor, a totalidade dos escritos de Carlos Nelson – porque então, e esta é a minha hipótese básica, verificar-se-á a unidade que, tecida por um contínuo fio vermelho, articula dialeticamente os diferentes momentos e níveis da sua produção e lhes confere a inteireza de uma obra.

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Uma sociologia da intelligentsia brasileira que se preocupasse com as condições de produção do trabalho intelectual certamente revelaria o caráter excepcional da trajetória de Carlos Nelson Coutinho, situação compartilhada com alguns autores de sua geração. Trajetória que difere, e muito, do panorama atual. Vivemos hoje um momento marcado pela extrema burocratização do trabalho intelectual, pelo produtivismo tacanho imposto pelas agências financiadoras de pesquisa e aceitos passivamente pela universidade. Nesse ambiente, sufocante e competitivo, fica difícil para os mais jovens entenderem o percurso daquela geração: o trabalho intelectual era realizado fora das instituições acadêmicas, sem os financiamentos, que facilitam os estudos e, também, interferem nos conteúdos da pesquisa – era, portanto, guiado pela necessidade imposta pelo objeto estudado, e não pelos prazos artificiais da burocracia. Os resultados transpareciam em livros densos, traduções cuidadosas, e o cultivo do ensaio, gênero literário posteriormente substituído pelos insípidos “artigos para periódicos” ou, o que é pior, pelos famigerados papers – a “forma trash” do ensaio, como alguém já observou.

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Ressalte-se, ainda, o compromisso militante de quem estudava para orientar a prática política e que, por causa disso, pagou um alto preço: cadeia e exílio. Pensar, naquelas condições, era algo perigoso. Apesar das adversidades, esses intelectuais marcaram com seu pioneirismo as gerações futuras. O caso de Carlos Nelson Coutinho é exemplar e merece ser realçado. Numa quadra histórica em que o Partido Comunista Brasileiro era hegemônico junto à esquerda, e seus intelectuais davam o tom nos debates sociais, tornou-se inadiável a tarefa de renovar a cultura marxista em nosso país. Já em fins dos anos 1950 e início dos anos 1960, a efervescência política e cultural contrastava com a pobreza teórica dos manuais de “marxismo-leninismo” divulgados pela Academia de Ciências da União Soviética. Aqueles manuais, convém lembrar, tiveram um aspecto positivo em geral negligenciado: formaram milhares de militantes com uma linguagem comum, com uma visão do mundo coerente, o que facilitava uma unidade no plano de ação (basta comparar, por exemplo, com o descaso do Partido dos Trabalhadores, que não soube – ou não quis? – firmar uma orientação ideológica que servisse de guia para a ação). Sem uma visão de mundo minimamente coerente e compartilhada por todos, a luta pela hegemonia torna-se inviável. Por outro lado, as obras grandiosas de Marx e Lenin eram apresentadas numa versão simplificada e dogmática conhecida pela expressão “marxismo-leninismo”. A divisão do unitário pensamento de Marx em duas “disciplinas” (materialismo histórico e materialismo dialético), as três leis da dialética, os cinco modos de produção etc. deixavam os trabalhadores intelectuais comunistas numa situação difícil para enfrentar o desafio da peculiaridade da situação brasileira. E isto ocorria num momento em que se realizavam intensos estudos reflexivos sobre a realidade brasileira, se-

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jam os promovidos pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), sejam os desenvolvidos em torno de Florestan Fernandes na Universidade de São Paulo. Nesse cenário, a renovação da cultura marxista entrou na ordem do dia. Coube a Carlos Nelson Coutinho e a Leandro Konder o gesto pioneiro de introduzir entre nós a obra de György Lukács e, por meio dela, procurar pensar a produção cultural brasileira. Nascia, assim, a colaboração de dois notáveis pensadores e, também, a história de uma bela amizade que desconhecia o caráter competitivo e as invejas que caracterizam o meio intelectual. Lukács, então, gozava de grande prestígio e, além disso, era referenciado como uma figura histórica do movimento comunista. Desde a década de 1930, ele havia incorporado aos estudos literários a defesa da “política de frente” – a união de forças díspares –, aí incluídos os setores democrático-burgueses. Sua defesa do realismo, expressão nos estudos literários da “política de frente”, procurava resgatar a herança cultural da burguesia, negada, tantas vezes, pelos defensores do “realismo socialista”, pelas vanguardas formalistas e pelos adeptos da prolet-kult – tendências sempre presentes no interior da esquerda. Essa concepção geral – política e literária – encaixava-se com perfeição na orientação da linha política do Partido Comunista Brasileiro, à época lutando pelas “reformas de base” e pela construção de um conjunto de forças capazes de viabilizá-las. Lembremos que “reforma”, naquele momento, designava principalmente a reforma agrária: só muito tempo depois a palavra, por meio da “pirataria semântica”, passou a designar a reforma do Estado pregada pelos neoliberais. A estratégia seguida pelos comunistas contrariava a orientação de outros agrupamentos de esquerda que se formaram a partir do final da década de 1950, principalmente os defensores da chamada “posição classista”, que advogavam a política de “classe

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contra classe” e criticavam as alianças políticas com os setores democráticos para se efetivarem as “reformas de base”1. Os comunistas mantiveram sua estratégia política durante os longos anos da ditadura. A “política de frente” foi, então, atua­ lizada visando a isolar e derrotar a ditadura. Tratava-se, na nova conjuntura, de “acumular forças” e isolar o regime politicamente. A convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, o fim da censura da imprensa e a promulgação da anistia seriam o caminho desejável para se pôr fim ao regime militar. Tal orientação contrariava o conjunto das agremiações políticas que apostavam no confronto armado para derrubar, e não simplesmente derrotar a ditadura. A luta pela redemocratização do país deixou os “trabalhadores intelectuais” do partido numa situação favorável para desenvolver, com liberdade, sua atuação. Os dirigentes partidários concentravam-se na formulação da ação e não interferiam no trabalho dos intelectuais. Vivia-se, assim, um período de plena liberdade de pensamento, situação que contrastava com os períodos anteriores do partido marcados pelo stalinismo ou pelo obreirismo. Em tais perío­dos, a direção partidária imiscuía-se desastradamente no trabalho intelectual. Basta lembrar a censura imposta a Raquel de Queiroz ou a truculência generalizada que se seguiu após a cassação do registro do partido: jogado na clandestinidade em 1947, ele se isolou e, como costuma acontecer em tais circunstâncias, o isolamento produziu o sectarismo no plano político e um rígido controle sobre o trabalho dos intelectuais e artistas ligados ao partido2.

Para uma análise das relações do Partido Comunista Brasileiro com a cultura no período 1958-1974, ver Celso Frederico, “A política cultural dos comunistas”, in João Quartim de Moraes (org.), História do marxismo no Brasil. Campinas: Unicamp, V. 3, 1988. 2 Veja-se, a propósito, o excelente livro de Leandro Konder A democracia e os comunistas no Brasil (Rio de Janeiro: Graal, 1980). 1

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A convivência pacífica entre dirigentes e intelectuais tinha, contudo, um preço: os primeiros cuidavam da linha política, e os intelectuais restringiam-se às atividades culturais sem se “intrometer” na chamada “grande política”. Veremos que, tempos depois, no final da ditadura, o desejo de participação política dos intelectuais levou-os ao confronto com a direção partidária. Lukács: a renovação da cultura marxista

A renovação da cultura marxista apoiou-se inicialmente em Lukács. A tradução de algumas de suas obras, por iniciativa de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, encontrou boa repercussão nos meios intelectuais, dentro e fora do Partido. Um fato surpreendente foi o entusiasmo que Lukács despertou entre os jovens intelectuais. Uma obra tão erudita e difícil fora acolhida com paixão por uma juventude comunista empenhada na renovação do marxismo – em geral, jovens em torno dos 20 anos de idade! Tratava-se de uma intelectualidade al primo canto que despertava para os temas da cultura e encontrava no pensador húngaro o elo de passagem para a grande literatura. A defesa lukacsiana da “herança cultural” tinha, entre outras, a vantagem de pôr o leitor em contato com o que de melhor se escreveu no passado. Essa ampliação de horizontes não ocorreria, por exemplo, com os jovens que estudaram o marxismo através da leitura estruturalista de Louis Althusser – autor empenhado em realçar apenas a cientificidade do legado marxiano, rejeitando suas implicações filosóficas e suas ligações com a cultura. Ainda na Bahia, em 1961, Coutinho havia publicado dois ensaios teóricos. Com apenas 17 anos, já revelava sua vocação para a filosofia ao polemizar contra a “filosofia oficial” dos manuais de marxismo-leninismo. Leandro Konder, referindo-se a essas primeiras investidas, constatou que nelas se encontra “a primeira

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expressão de uma assimilação efetiva da perspectiva do pensador húngaro György Lukács e do seu aproveitamento como um todo no esforço de pensar a realidade contemporânea de um ângulo brasileiro”. E concluiu: “Carlos Nelson foi, de fato, o primeiro lukacsiano brasileiro”3. A divulgação das ideias do pensador húngaro foi tarefa rea­ lizada com grande entusiasmo por Coutinho e a jovem intelectualidade. O canal privilegiado para isso eram as revistas, como ensinava a tradição leninista: a “agitação” cabia aos jornais, a “propaganda” doutrinária, às revistas. Em 1959, a revista Estudos Sociais, dirigida por Astrojildo Pereira, se encarregou de publicar o primeiro texto de Lukács em nosso país. A mesma revista, ainda no pré-64, voltou a publicar outros dois textos de Lukács e uma crítica ao realismo socialista, de clara inspiração lukacsiana, feita por Leandro Konder4. A partir daí, diversas revistas serviram para a divulgação de Lukács. Entre outras, a Revista Civilização Brasileira, dirigida por Ênio Silveira, que se tornou um caso raro de sucesso editorial. Aglutinando os intelectuais contrários ao regime militar, a revista foi porta-voz da oposição, alcançando grandes tiragens e sendo vendida em bancas de jornal. Em Juiz de Fora, os intelectuais comunistas editaram a revista Hora & Vez (posteriormente batizada de Hora). Em São Paulo, Raul Mateos Castell lançou a revista Temas de Ciências Humanas e, depois, Novos Rumos. Leandro Konder, Intelectuais brasileiros & marxismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991, p. 117-118. [Da obra de Konder foi extraído o capítulo sobre CNC que aparece na primeira parte deste livro – Testemunhos, cf. p. 15-24. N. O.]. 4 Para uma visão geral da divulgação das ideias lukacsianas entre nós, ver Celso Frederico, “A presença de Lukács na política cultural do PCB e na universidade”, in João Quartim de Moraes (org.), História do marxismo no Brasil. Os influxos teóricos. Campinas: Unicamp, V. 2, 1995. 3

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Carlos Nelson Coutinho marcou presença ativa em todas essas revistas, seja como tradutor, seja como ensaísta diretamente influenciado por Lukács. Como ensaísta, Coutinho diferenciava-se de seus pares: era, como lembrou Leandro Konder, “ figura de exceção”. A originalidade e sofisticação fizeram com que suas reflexões saíssem do campo marxista (onde sempre foi referência) e ganhassem prestígio junto ao público culto não marxista e à universidade. Literatura e humanismo, publicado em 1967, reuniu ensaios sobre questões estéticas, sobre Sartre e estudos sobre o romance, destacando-se o estudo magistral sobre Graciliano Ramos5. Em 1974, no auge da repressão, os intelectuais comunistas publicaram a coletânea Realismo & antirrealismo na literatura brasileira6. Nela, Coutinho compareceu com o ensaio “O significado de Lima Barreto na literatura brasileira”. Os estudos sobre Graciliano e Lima Barreto ganharam destaque nos debates literários e até hoje são lidos e discutidos. Esse prestígio, que diferenciou o autor de seus pares, tem uma explicação. A partir da década de 1930, Lukács havia desenvolvido uma rica defesa do realismo como o método adequado para se retratar artisticamente a realidade. O realismo, para ele, deveria ser visto como uma atitude perante a realidade (e não uma escola literária). Apesar disso, Lukács tinha como modelo insuperável de rea­ lismo o romance do século XIX (Balzac, em especial). A ênfase nesse modelo e sua utilização nos combates literários trouxeram uma ambiguidade no interior da obra lukacsiana: nos melhores momentos, Lukács enfatizava a atitude, isto é, a flexibilidade perante a matéria a ser retratada literariamente; nos piores, contudo, Carlos Nelson Coutinho, Literatura e humanismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. Carlos Nelson Coutinho, Gilvan P. Ribeiro, José Paulo Netto, Leandro Konder, Luiz Sergio Henriques, Realismo & antirrealismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

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utilizava o “modelo” canônico para criticar os escritores que dele se desviavam. Como resultado, Lukács escreveu páginas infelizes sobre Proust, Kafka etc. A grandeza de Carlos Nelson Coutinho consistiu em saber aproveitar o que havia de melhor em Lukács e separar-se de seus traços dogmáticos. Exemplo brilhante disso foram suas análises de Kafka e Proust, em que, apropriando-se do método literário do mestre, foi além dele e de suas análises dogmáticas, simplistas e condenatórias.7 Essa capacidade de discernimento é artigo raro: os discípulos de Lukács, muitas vezes, apegaram-se ao cânon realista e o utilizaram como arma de combate na luta ideológica contra os artistas que não se alinhavam com aquela estética. A defesa intransigente do realismo naquela conjuntura opressiva tinha como estímulo a luta contra a propaganda massiva da ditadura que se impôs aos meios de comunicação. Os setores oposicionistas reagiram chamando a atenção sobre a realidade brasileira e suas mazelas. Desde o golpe de 1964, a expressão “realidade brasileira” fora amplamente empregada em todos os eventos culturais (ciclos de cinema, de palestras etc.). Focar a realidade era, assim, opor-se à propaganda enganosa, e, nesse combate, o realismo passou a ser cobrado dos escritores. Usar uma teoria estética como arma de combate na luta ideológica não costuma dar bons resultados, como atesta a obra coletiva Realismo & antirrealismo na literatura brasileira. De novo, a sofisticação da análise de Coutinho, diferenciando-se de seus pares, reafirmava sua condição de “figura de exceção”. A “realidade brasileira” só piorou após o Ato Institucional n. 5, editado em fins de 1968. Nos anos de chumbo que se seguiram, assistiu-se a uma transformação no clima cultural, marcado Essas análises foram reunidas em Lukács, Proust e Kafka. Literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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a partir daí pela hegemonia do estruturalismo. Mesmo em sua versão marxista (aquela representada pelos discípulos de Althusser), o estruturalismo confrontava-se abertamente com o legado lukacsiano­. A ênfase na “rigidez” e “imutabilidade” das estruturas era reivindicada como objeto preferencial de estudo, ocupando, assim, o lugar central da historicidade no pensamento marxista. Nos estudos literários, o foco se desviou para a linguística, abandonando-se as questões de “conteúdo”, vale dizer, das relações entre literatura e realidade social. Finalmente, o estruturalismo voltava-se contra o humanismo, considerado, sem mais, como uma ideologia burguesa. A celebração da “morte do homem” foi o topos recorrente em todas as áreas do conhecimento. Fim da história, reinado da linguística, crítica ao humanismo: tudo isso formava um pano de fundo desolador que desarmava ideologicamente os críticos da ditadura militar. Coutinho foi um dos raros intelectuais a enfrentar o combate ideológico contra aquele pensamento conformista. No início dos anos 1970, no calor da hora, publicou O estruturalismo e a miséria da razão.8 Nesta obra corajosa, debruçou-se sobre o empobrecimento da razão no estruturalismo e as condições históricas que propiciaram aquela corrente de pensamento. As obras recentes de Lévi-Strauss, Roland Barthes, Michel Foucault e Althusser foram analisadas com rigor, e devidamente criticadas a partir da perspectiva lukacsiana (o livro, aliás, foi dedicado à memória do mestre Lukács e ao amigo Leandro Konder). Infelizmente, Coutinho nunca pensou em atualizar a obra: os autores estudados continuaram escrevendo e, alguns, como Barthes e Foucault, retificaram suas ideias. Os novos rumos do pensamento de Foucault são os mais interessantes: o Carlos Nelson Coutinho, O estruturalismo e a miséria da razão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. Em 2010, o livro foi reeditado pela Expressão Popular, enriquecido com um Posfácio de José Paulo Netto.

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apego à rigidez das estruturas, a partir de certo momento, foi substituído pelo estudo das “práticas discursivas”. Com isso, consolidou-se a “virada linguística” e abriu-se o caminho para uma nova moda intelectual que iria se tornar hegemônica: o pós-modernismo, como foi chamada na França, ou pós-estruturalismo, como preferem os norte-americanos. Essa mutação, contudo, significou apenas mais um capítulo da “miséria da razão”, tão bem caracterizada em seu momento inicial por Coutinho. Com a repressão generalizada, o nosso autor exilou-se na Itália e lá enfronhou-se na obra de Antonio Gramsci. Gramsci: a renovação da política

Gramsci já era um velho conhecido: Coutinho havia traduzido Concepção dialética da história, Os intelectuais e a organização da cultura e Literatura e vida nacional ainda nos anos 1960. Essas traduções foram pioneiras, pois à época Gramsci continuava sendo desconhecido na França, nos Estados Unidos e, também, no Brasil (os livros pouco venderam: só muitos anos depois passaram a ser procurados nos sebos ou circularam em cópias xerografadas). Gramsci recebeu de Coutinho o mesmo tratamento por ele dispensado a Lukács: um estudo aprofundado aliado à aguda consciência dos limites de cada um daqueles grandes pensadores. Durante longos anos, Coutinho empenhou-se na tradução das obras de Gramsci, tarefa trabalhosa que resultou na publicação dos seis volumes dos Cadernos do cárcere e dos dois volumes dos Escritos políticos, e mais dois volumes das Cartas do cárcere. Não é preciso dizer da importância da empreitada e de seu pioneirismo: finalmente, a obra do pensador sardo podia ser estudada através de uma cuidadosa tradução feita por um grupo competente liderado por Coutinho. Em que país Gramsci mereceu uma atenção tão cuidadosa?

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Explicar a contribuição de Gramsci ao marxismo, utilizar seus insights para pensar a realidade brasileira e propor estratégias políticas: um novo momento da trajetória intelectual se iniciava. Diversos livros foram então escritos: Gramsci, A democracia como valor universal e outros ensaios, Gramsci. Um estudo sobre o seu pensamento político, Gramsci e a América Latina, A dualidade de poderes, Contra a corrente, Marxismo e política e De Rousseau a Gramsci. Com esses escritos, Coutinho tornou-se também o primeiro gramsciano brasileiro. O texto que se tornou mais famoso e que propiciou acalorados debates foi o ensaio “A democracia como valor universal”, publicado em 1979, fase final da ditadura em que novas perspectivas se abriam para os setores oposicionistas. A experiência do “eurocomunismo” incentivou Coutinho a propor a renovação do PCB: a via democrática era apresentada como o caminho e o fim do socialismo, tese que confrontava os defensores da “ditadura do proletariado”. Naquele momento de grande fermentação política, o texto tornou-se o centro de um acalorado debate e de um estrondoso sucesso, o que deixou o autor no epicentro das polêmicas. Desde A revolução brasileira, de Caio Prado Jr., um texto político não tivera tamanha repercussão. Nos dois casos, os “mal-entendidos” se multiplicaram. O historiador Caio Prado Jr., ao negar a existência de relações feudais no campo, pretendia apenas afirmar o caráter desde sempre capitalista da formação social brasileira. No ambiente voluntarista da época, diversos setores da esquerda, que pregavam o início imediato da luta armada, tiraram daquela constatação sociológica uma orientação política estranha às ideias do autor: se não há feudalismo, não há “etapas intermediárias”, e o caráter da revolução é desde já socialista, e a forma de luta principal é a guerrilha. Carlos Nelson Coutinho, por sua vez, também foi vítima de todo tipo de incompreensão. As críticas vieram de todos os lados:

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abandono da perspectiva socialista, reformismo, adesão à social-democracia, capitulação ideológica etc. A democracia, para ele, não era vista, como foi frequentemente acusado, como uma forma já existente à qual se devesse aderir acriticamente. Talvez, se tivesse falado em democratização (e não democracia) para enfatizar o processo de socialização da política, tivesse sido melhor compreendido. Pior que as críticas, porém, foram as adesões equivocadas. Para uns, o texto sugeria uma interpretação politicista de um marxismo acomodado à ordem burguesa. Gramsci, erroneamente, foi visto como uma alternativa a Lenin e o texto de Coutinho, como um manifesto em prol da social-democracia. Personalidades apareciam na televisão dizendo que depois que leram a tese sobre o valor universal da democracia puderam, finalmente, livrar-se do marxismo. Confundiram, assim, valor universal com valor de troca: a senha para aderir à ordem burguesa... Outros intelectuais, empenhados em “modernizar” o marxismo, exaltavam a força das categorias de Gramsci, que, para serem atuais, deveriam, contudo, deixar de lado as referências datadas e envelhecidas às classes sociais e à luta de classes. Essa reabilitação de um Gramsci sem luta de classes serviu para animar o coro dos críticos mal informados de Coutinho, que viam, aí, a prova da capitulação ideológica. Criticado por todos os lados, vendo suas ideias serem defendidas por inconvenientes “discípulos”, Coutinho manteve com firmeza suas ideias. Voltou à tese da democracia como valor universal diversas vezes, reafirmando sua imperturbável coerência: Gramsci não era um adversário de Lenin e nem uma alternativa light a Lukács. A capacidade de acompanhar a reflexão desses autores e de apontar seus limites propiciou uma aproximação teórica fecunda entre ambos, presente nas últimas obras de Coutinho. A admiração pela teoria estética de Lukács não impediu Coutinho de assinalar a ausência da política em sua obra tardia.

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Os difíceis contextos políticos vividos por Lukács levaram-no a abandonar a militância político-partidária e a dedicar-se aos estudos literários. Lukács continuou sempre sendo um leninista, e essa declaração de fidelidade ao revolucionário russo dispensou-o da reflexão política. Tanto na sua monumental Estética como nas páginas da Ontologia do ser social, a luta de classes é uma apagada e distante referência. Coutinho também percebeu os limites da reflexão filosófica de Gramsci. Sendo assim, por que não assimilar o que os dois pensadores têm de melhor numa síntese brilhante? Fazer síntese, contudo, não é aderir ao ecletismo que consegue a discutível proeza de juntar aquilo que não é essencial nos autores. Fazer sínteses é privilégio de “figuras de exceção” como Carlos Nelson Coutinho, o nosso primeiro lukacsiano e o nosso primeiro gramsciano.

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O tradutor da obra de Gramsci

Antonio Gramsci e Carlos Nelson Coutinho tornaram-se, inquestionavelmente, duas figuras indissociáveis no Brasil. Ainda que algumas referências ao fundador do Partido Comunista Italiano (PCI) tivessem já entrado no país1, a avenida principal da difusão dos seus escritos e do seu pensamento começou a ser explanada por C. N. Coutinho. Desde os anos 1960, seu nome se notabiliza no Brasil como o “tradutor” da obra de Gramsci. O que é, por si só, um mérito incalculável. Conforme relata ele mesmo, na “Introdução”

No Brasil, referências ao encarceramento de Gramsci aparecem em publicações comunistas ainda nos anos 1930. Em 1950, as Cartas do cárcere haviam sido já publicadas em Buenos Aires pelas Ediciones Lautaro. Esta mesma editora, entre 1958 e 1962, publica também os Cadernos do cárcere. Cf. a respeito: José Aricó, “Geografia de Gramsci na América Latina”, in C. N. Coutinho e M. A. Nogueira (orgs.), Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 27-32. Sobre a difusão de Gramsci no Brasil, cf. I. Simionatto, Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no serviço social. São Paulo: Cortez, 1995, p. 89-170; e C. N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 279ss.

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aos Cadernos do cárcere2: “[em 1964] logo depois do golpe, Leandro Konder, Luiz Mário Gazzaneo e C. N. Coutinho, reunidos no Rio, haviam conversado sobre a necessidade e a urgência de publicar Gramsci no Brasil e, sem que tivessem nenhum conhecimento de que Ênio já iniciara contatos nesse sentido, resolveram sugerir-lhe a publicação das obras do nosso autor”. É possível – observa C. N. Coutinho – que essa sugestão tenha motivado Ênio Silveira, diretor da Editora Civilização Brasileira, a retomar os contatos com o Instituto Gramsci de Roma, iniciados desde outubro de 1962, e que tenha apressado a decisão da publicação3. Ainda muito jovem, portanto, e já vinculado a L. Konder com uma parceria intelectual e uma amizade que foram se aprofundando de forma indelével ao longo dos anos, Coutinho faz parte do projeto da primeira divulgação no Brasil da obra parcial de Gramsci. Nessa pioneira e arriscada empreitada, vai ser designado pelo editor para traduzir Concepção dialética da história e fazer a apresentação (junto com L. Konder) desse primeiro livro, publicado em1966; para traduzir e escrever as contracapas de Os intelectuais e a organização da cultura e para selecionar as partes, traduzir e elaborar o texto das contracapas de Literatura e vida nacional, ambos publicados em 1968. Por conta de L. M. Gazzaneo ficaram a tradução e as contracapas de Maquiavel, a política e o Estado moderno (1968)4, e de N. Spínola a seleção, tradução e apresentação das Cartas do cárcere (1966)5. A. Gramsci, Cadernos do cárcere. Ed. C. N. Coutinho, M. A. Nogueira e L. S. Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. I, 1999, p. 34. 3 Nessa preciosa “Introdução”, C. N. Coutinho documenta a correspondência epistolar, à qual teve diretamente acesso nos anos 1990, entre a Editora Civilização Brasileira e a Fondazione Istituto Gramsci de Roma. 4 Esses quatro volumes reproduzem parte considerável da “edição temática” Quaderni del carcere, 6 v., organizada por P. Togliatti e F. Platone e publicados entre 1948 e 1951 pela Editora Einaudi, de Turim. 5 Nesta edição resultam 233 cartas selecionadas com base na primeira edição de Lettere­dal carcere, publicada em 1947 pela Editora Einaudi, de Turim, e na edição 2

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Em um texto com o título muito sugestivo Gramsci e nós, posteriormente reescrito, Coutinho retrata assim aquele momento: Entre 1966 e 1968, no período em que as contradições internas ao regime ditatorial brasileiro instaurado em 1964 ainda permitiam uma relativa margem de liberdade no campo cultural, verificou-se uma corajosa iniciativa editorial: em apenas três anos foram publicadas no Brasil cinco das mais importantes obras de Antonio Gramsci, até então inédito em língua portuguesa. O leitor brasileiro tinha assim a sua disposição um corpo de escritos gramscianos que, por sua amplitude, não era então acessível nem mesmo ao leitor de língua francesa, inglesa ou alemã6.

Ao longo dos anos, esse empreendimento de Coutinho continua e se amplia com a tradução de outros escritos de Gramsci7, ao mesmo tempo em que se dedica também a divulgar livros e textos da literatura interpretativa de conceituados estudiosos de Gramsci. Nessa tarefa, valeu-se muito da experiência adquirida na Itália principalmente durante seu período de exílio, que lhe permitiu conhecer in loco a língua, a história e a cultura política do país de Gramsci e onde fervilhavam intensamente suas ideias nos estudos e nas organizações políticas. O acúmulo desses conhecimentos e da sua notável experiência editorial foram decisivos no empreendimento da tarefa maior que o levou a organizar e traduzir, juntamente com Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques, a nova edição das obras de Gramsci, mais ampla organizada por S. Caprioglio e E. Fubini, Turim: Editora Einaudi, 1965. 6 C. N. Coutinho, “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, in: C. N. Coutinho e M. A. Nogueira (orgs.), Gramsci e a América Latina, op. cit., p. 103. Cf. também C. N. Coutinho, “Gramsci e nós”, in A democracia como valor universal. São Paulo: Ciências Humanas, 1980, p. 45. 7 Por exemplo: A questão meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; Novas cartas de Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; “Textos selecionados de Gramsci”, in C. N. Coutinho, Gramsci. Porto Alegre: L&PM Editores, 1981, p. 131-232.

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recentemente publicada pela Civilização Brasileira em dez volumes. Um trabalho ciclópico iniciado em 1999 e terminado em 2006 que coloca à disposição do público brasileiro um material de fundamental importância para o estudo, a pesquisa e a compreensão mais completa do pensamento de Gramsci. Na organização dos primeiros seis volumes, dedicados aos Cadernos do cárcere, Coutinho opta por um caminho inusitado ao combinar os critérios de agrupamento por assuntos utilizados pela “edição temática” (aos cuidados de Palmiro Togliatti e Felice Platone8), a reconstrução filológica que consta nos textos B e C da “edição crítica” (organizada por Valentino Gerratana9) e algumas sugestões da cronologia estabelecida por Gianni Francioni, que se baseia na divisão fundamental entre “cadernos miscelâneos” e “cadernos especiais”, sinalizada pelo próprio Gramsci10. As Cartas do cárcere (2 v.) reproduzem integralmente a edição completa organizada por Antonio A. Santucci11. Os dois volumes dos Escritos políticos trazem para o público brasileiro uma seleção de textos entre os 1.700 títulos produzidos por Gramsci essencialmente em sua atividade jornalística, de 1910 até 1926, ano em que foi preso pelo regime fascista. Mas a importância de Coutinho não se restringe apenas ao montante considerável de traduções, às iniciativas editoriais, às atividades acadêmicas e às relações nacionais e internacionais disseminadas na sua intensa trajetória intelectual12. Sua outra grande con A. Gramsci, Quaderni del carcere, a cura di F. Platone-P.Togliatti. Torino: Ed. Einaudi, 1948-51. 9 A. Gramsci, Quaderni del carcere, a cura di V. Gerratana. Torino: Ed. Einaudi, 1975. 10 G. Francioni, L’officina di Gramsci. Ipotesi sulla struttura dei “Quaderni del carcere”. Napoli: Bibliopolis, 1984. 11 A. Gramsci, Lettere dal carcere, a cura di A. A. Santucci. Palermo: Ed. Sellerio, 2 v. 1996. 12 Deve se considerar que C. N. Coutinho tem sido vice-presidente da International Gramsci Society (IGS); participou de muitos eventos nacionais e internacionais; manteve contatos contínuos com intelectuais da América Latina, da Itália e de diversos países; tem diversos artigos e ensaios publicados fora do país, e o seu livro 8

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tribuição, ainda mais valiosa, encontra-se no conjunto de estudos, ensaios e escritos produzidos sobre Gramsci, publicados em diversos livros, revistas e jornais e irradiados em inúmeras palestras dentro e fora do Brasil. Ao longo dos anos, com uma cuidadosa e perspicaz investigação, Coutinho conseguiu se adentrar como poucos no labirinto dos escritos e anotações do marxista italiano, realizando a difícil arte de reconstruir as linhas fundamentais do seu pensamento político, situando-o no contexto histórico e cultural do seu tempo, montando o quebra-cabeça do significado de complexas categorias e estabelecendo brilhantes nexos interpretativos no extenso “canteiro de obra” legado em grande parte de forma exploratória e inacabada. Nesta “oficina” de Gramsci, “intérprete de um mundo que, na sua essência, continua a ser o nosso mundo de hoje”13, Coutinho encontra preciosos instrumentos analíticos que o levam a desenvolver uma peculiar interpretação da realidade brasileira, tornando-se referência marcante de muitos estudos e pesquisas. Neste sentido, além do trabalho de tradução, promoveu uma delicada operação de “transplante” do pensamento de Gramsci no Brasil, contribuindo, assim, para a renovação da tradição marxista, a compreensão da história política nacional e uma fecunda interlocução com diversas correntes de pensamento. A fertilização do pensamento de Gramsci na realidade brasileira

Nesta complexa tarefa de “ler Gramsci, entender a realidade”14 para transformá-la, o grande gramsciano brasileiro segue os critéGramsci­. Um estudo sobre seu pensamento político, op. cit., tem sido traduzido em diversos idiomas. 13 C. N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, op. cit., p. 256. 14 Título do livro organizado por C. N. Coutinho e A. de Paula Teixeira, contendo as palestras do Seminário Internacional “Ler Gramsci, entender a realidade”, realizado

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rios desdobrados de forma peculiar pelo seu mestre com base no método dialético do materialismo histórico. Em diversas ocasiões, de fato, Gramsci aborda a questão da hermenêutica e do rigor “filológico” no trato com a herança teórica dos fundadores da “filosofia da práxis” e da sua reinterpretação em diferentes contextos históricos15. Para Gramsci, juntamente com a fidelidade à letra dos textos e aos princípios do marxismo, é preciso também levar em conta as interpelações da realidade histórica, aprendendo a descobrir suas contradições, a conectar suas partes, a agir politicamente “para revolucionar o estado atual das coisas”. Por isso, o comunista italiano não se limita a “transladar” textos e reproduzir mecanicamente ideias formuladas em experiências não repetíveis do passado, mas se dedica a recriar em outro contexto o referencial teórico e o método dialético delineados pelos fundadores do marxismo. Como poucos, Gramsci havia aprendido com Marx que, para ser efetivo, o pensamento deve traduzir-se na prática16, e que “a filosofia deve tornar-se política para ser verdadeira, para continuar a ser filosofia”17, operando uma incessante “tradutibilidade” das linguagens da teoria para a prática e vice-versa18. Neste sentido, Coutinho não cansa de observar que Gramsci é um autêntico marxista porque aprofunda com uma coerência isenta de dogma-



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na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre 19 e 21 de setembro de 2001. [O autor se refere ao volume organizado por C. N. Coutinho e A. de P. Teixeira: Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (N. O.)]. Cf., a respeito, G. Baratta, As rosas e os Cadernos. O pensamento dialógico de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 109ss. K. Marx, “Teses sobre Feuerbach”, in K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 100. A. Gramsci, Quaderni del carcere, a cura di V. Gerratana, Torino: Ed. Einaudi, 1975, Q 11, § 49, p. 1.472. De agora em diante, citados com Q, seguido pelo número do caderno, do parágrafo e da página, de modo a facilitar a localização nas traduções brasileiras. Q 11, §§ 46-49, p. 1.468-1.473.

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tismos e coloca em prática com criatividade os caminhos abertos por Marx e Lenin e, mesmo quando chega a questionar com espírito livre falhas no interior do marxismo e do seu partido, “permaneceu, inclusive em suas críticas, um socialista revolucionário, um comunista”19. Do mesmo modo, sem evadir da irrecusável responsabilidade frente aos desafios do próprio tempo e lugar, Coutinho não apenas “verteu” materialmente para a língua brasileira os escritos do marxista italiano, mas os “traduziu” concretamente com a sua prática de intelectual e de militância política. Uma das suas mais notáveis contribuições, de fato, foi mostrar a fecunda atualidade do pensamento de Gramsci em relação à realidade brasileira e combater lugares-comuns que o reduziam a um “clássico” ou o desfiguravam como “sociólogo da cultura”. Longe de mumificar o fundador do PCI, resgata-o como “o maior teórico marxista da política”, como um autor que critica o economicismo e o positivismo cientificista, colocando em evidência que a política é o ponto focal de onde Gramsci analisa a totalidade da vida social, os problemas da cultura, da filosofia etc. É na esfera da teoria política – ou, de modo mais amplo, na elaboração de uma ontologia marxista da práxis política – que parece consistir a contribuição essencial de Gramsci ao marxismo20.

A partir desse ponto nodal, que articula e confere sentido aos demais aspectos abordados pelo marxista italiano, iluminam-se também as interpretações e as posições políticas assumidas pelo marxista brasileiro. Um exemplo disso pode ser verificado na maneira como Coutinho reconstrói o conceito de “Estado ampliado” e a concepção “processual” de revolução delineada por Gramsci e C. N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, op. cit., p. 260. C. N. Coutinho, Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981, p. 12. Um livro que foi se ampliando e consolidando em sucessivas edições publicadas, a partir de 1999, pela Civilização Brasileira.

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como os coloca de forma inovadora como fundamento das análises histórico-políticas da formação social brasileira e da renovação das esquerdas no país. Como se sabe, um dos mais importantes objetivos de Gramsci­ havia sido investigar as razões do fracasso da revolução socialista no “Ocidente” e o esforço de pensá-la em uma realidade complexa marcada pela evolução do capitalismo, pela complexidade das suas instituições, pelos imponentes fenômenos do fascismo e do fordismo. Nesta busca, havia observado que nas sociedades chamadas “ocidentais”, de capitalismo mais avançado, o Estado não podia ser entendido simplesmente como aparelho burocrático-coercitivo e agente exclusivo na produção e reprodução das relações materiais e sociais. Dialética e inseparavelmente vinculada a ele, havia se formado uma complexa e “robusta” sociedade civil, uma arena de luta formada por organizações voluntárias de diversos grupos sociais, de associações profissionais, de organismos culturais, instituições científicas, de meios de comunicação, de sindicatos e partidos de massa que elaboravam e disputavam ideologias, promoviam a socialização da política e se materializavam em verdadeiros “aparelhos privados de hegemonia”. Diversamente das definições dos “clássicos” da política e dos próprios fundadores do marxismo, Coutinho mostra que nos escritos de Gramsci emerge uma inovadora configuração do Estado retratado como uma unidade dialética de “sociedade política + sociedade civil”, ou seja, uma composição de coerção e consenso, de dominação e direção. Para Gramsci, na “estrutura maciça” das democracias modernas21, a intervenção externa e o recurso à força não eram mais suficientes para a manutenção do poder. Tornava-se cada vez mais necessário conquistar também o consenso de largas faixas da população no âmbito da sociedade civil onde o Estado se ramificava. Com essa visão ampliada de Estado – observa Coutinho 21

Q 13, § 7, p. 1.566.

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– Gramsci explicava não apenas por que as irrupções das crises “catastróficas” tornavam-se improváveis, mas mostrava também que para os “subalternos” se abriam inéditos espaços para se organizar autonomamente e disputar a hegemonia com “qualidades excepcionais de paciência e espírito inventivo”22, tanto na sociedade civil como na sociedade política. Nessa nova e complexa concepção de Estado e de sociedade civil delineada por Gramsci, Coutinho encontra fecundos pontos de contato com a história do Brasil, um país que estava saindo da dura experiência da ditadura e vinha sendo impulsionado por um capitalismo de Estado que operava aceleradas mudanças econômicas e sociais e que, ao mesmo tempo, se deparava com fortes movimentos populares e organizações políticas. Frente a esse quadro, o teórico político brasileiro torna-se cada vez mais “convencido de que – com as necessárias mediações – as indicações de Gramsci­podem ser de grande valor para um reexame de nossa história passada e presente”23 e podem se constituir como referência “para a elaboração de uma estratégia de transição brasileira para o socialismo”24. A incapacidade de entender essas novas perspectivas, para Coutinho, explica as razões da modesta recepção da primeira difusão das ideias de Gramsci no Brasil. Diversamente dos que atribuíam tal resultado exclusivamente ao regime militar e ao seu recrudescimento a partir do Decreto AI-5, instituído em dezembro de 1968, Coutinho argumenta que havia também resistências no Partido Comunista Brasileiro (PCB), orientado essencialmente pelo marxismo cientificista e positivista da Segunda e Q 6, § 138, p. 802. C. N. Coutinho, “Gramsci e nós”, in A democracia como valor universal. São Paulo: Ciências Humanas, 1980, p. 58. 24 Ibid., p. 59. Ver também C. N. Coutinho, “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, in C. N. Coutinho e M. A. Nogueira (orgs), Gramsci e a América Latina. op. cit., p. 106.

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Terceira Internacional, e na “nova esquerda” brasileira influenciada pelo estruturalismo de Althusser e a onda das “contraculturas” dos anos 1970. Só a partir do final dos anos 1970, com o declínio da ditadura e a crise dessas orientações na esquerda, assiste-se às surpreendentes reedições dos escritos de Gramsci, um autor que começa a ser reconhecido pela sua concepção histórico-dialética da realidade e pelas suas posições contra “as incrustações positivistas e naturalistas” no marxismo. O seu pensamento difunde-se, assim, na academia e nos ambientes políticos, nas organizações sociais e nos meios de comunicação, tornando-se “uma força viva e um ponto obrigatório de referência no complexo processo de renovação teórica e política que hoje envolve a esquerda brasileira”. Daqui, a pergunta de Coutinho: “Mas o que explica essa ‘adoção’ brasileira de Gramsci, de um autor que – nas mais de duas mil páginas dos Cadernos – refere-se ao Brasil uma única vez?”25 Pelas argutas análises das novas morfologias das classes dominantes na Itália e pela capacidade de apontar com ousadia e originalidade os rumos da política dos subalternos nas sociedades “ocidentais”, Gramsci havia renovado o marxismo manejando como poucos o método dialético, que “permite-lhe pensar de modo não mecânico a relação entre economia e política, entre infraestrutura e superestrutura”26. Neste sentido, ao abordar complexas questões sociais e políticas, muito próximas à realidade brasileira, Gramsci havia produzido um rico manancial de reflexões e de conceitos de grande atualidade (Estado ampliado, sociedade civil, hegemonia, guerra de posição, revolução passiva, nacional-popular etc.) que se revelavam surpreendentes instrumentos ana C. N. Coutinho, “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, in C. N. Coutinho e M. A. Nogueira (orgs), Gramsci e a América Latina. op. cit., p. 105. 26 C. N. Coutinho, “Gramsci e nós”, in A democracia como valor universal. São Paulo: Ciências Humanas, 1980, p. 48. 25

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líticos que “nos ajudam a compreender importantes características da nossa particularidade histórica”27. Divergindo da visão predominante nas esquerdas brasileiras, que viam o país como uma formação social “atrasada”, semicolonial e semifeudal e apostavam nos modelos revolucionários de assalto frontal ao poder, Coutinho está convencido de que “o Brasil experimentou um processo de modernização capitalista sem por isso ser obrigado a realizar uma ‘revolução de libertação nacional’ segundo o modelo jacobino”28. Além disso, o forte impulso da industrialização e urbanização, implementadas essencialmente “pelo alto”, pela ação de um Estado que se sobrepunha à burguesia brasileira e neutralizava a participação popular, apresentava os traços de uma “revolução passiva”. Uma categoria importante que Gramsci utiliza em diversas circunstâncias e diferentes acepções; entre outras, para retratar o período que levou à unificação da Itália em 1860 e à formação do seu moderno Estado burguês, cujas análises encontram-se particularmente condensadas no Caderno “especial” 19 (1934-1935): “O Risorgimento italiano”. Mas Gramsci designava também como “revolução passiva” o fascismo e o “americanismo e fordismo”, fenômenos contemporâneos de forte impacto que introduziam incisivas modificações sociopolítico-econômicas, nas quais as pressões vindas “de baixo” eram astutamente capturadas e parcialmente atendidas pelas classes dominantes que se reorganizavam no poder, obtendo um consenso passivo da população29. Na prática, as mudanças e a modernização que ocorrem pela via da “revolução passiva” (ou “revolução-restauração” ou “revolução sem revolução”), apesar de alguns avanços, não operam uma efetiva transformação C. N. Coutinho (org.), O leitor de Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 13. 28 C. N. Coutinho, “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, in C. N. Coutinho e M. A. Nogueira (orgs), Gramsci e a América Latina. op. cit., p. 106. 29 Q 15, § 11, p. 1.766-1.769. 27

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das estruturas básicas da sociedade nem atingem os interesses dos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, mas se mostram um hábil processo de desmobilização dos elementos revolucionários e de assimilação “molecular” de alguns segmentos da oposição, incorporados de forma subalterna ao bloco de poder. Na análise genial que Gramsci faz desses processos, Coutinho enxerga argutamente uma profunda analogia com a história recente do Brasil. Não apenas nos eventos da instauração da República (1889), mas, principalmente, nos marcantes períodos históricos do governo Vargas (1930-1945 e 1950-1954) e da ditadura militar (1964-1985), quando ocorrem uma intensa modernização do país e a implantação de um capitalismo monopolista de Estado. Tais períodos são decisivos na estruturação da moderna nação brasileira porque é particularmente nessa época que se consolida um Estado que, de um lado, implementa reformas “progressistas” no campo econômico e social e, por outro, recorre ao “transformismo” político para controlar a sociedade civil e reprimir os setores mais radicais, impedindo uma efetiva emancipação das massas populares, subjugadas pelo autoritarismo ou seduzidas por diversas formas de populismo. A construção processual e democrática do socialismo no Brasil

Não obstante a forte concentração do poder no Estado, as manobras pelo alto e a condição de dependência, Coutinho chama a atenção sobre a formação de uma significativa sociedade civil no Brasil que, além de exigir reformas, veio se organizando para reivindicar a socialização do poder econômico e político30. 30

C. N. Coutinho, “La società civile di Gramsci e il Brasile di oggi”, in: Critica marxista. Roma: maio-agosto 2000, p. 67-80.

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Ao longo do século XX, de fato, despontam movimentos populares e organizações sociais, surgem novos sindicatos, multiplicam-se greves e se formam partidos de massa que geram uma considerável fermentação política. As mobilizações na sociedade civil adquirem uma efervescência particular entre os anos de 1955 e 1964, amadurecem e se fortalecem mesmo nos anos da ditadura e explodem nos anos 1980, quando assumem proporções impressionantes na reorganização do país. É principalmente nesse contexto que se desenvolve a interpretação de Gramsci feita por Coutinho, concentrado mais intensamente sobre o processo de democratização do Brasil e a construção do socialismo no novo quadro nacional estruturado pelas complexas relações que se estabelecem entre Estado e sociedade civil. São muito evidentes as analogias com a tarefa que Gramsci havia se proposto ao elaborar uma nova teoria do Estado e novas estratégias de lutas das classes trabalhadoras diante de um marxismo cristalizado e das profundas transformações sociopolíticas na Europa. Da mesma forma, frente às velhas esquerdas brasileiras, que acreditavam estar em uma sociedade de tipo “oriental” e centravam seus esforços na “guerra de movimento”, na centralidade das vanguardas e na tomada abrupta do aparelho do Estado, Coutinho procura mostrar que o Brasil mudara e apresentava as características de uma moderna nação “ocidental”, ainda que periférica, com um complexo “Estado ampliado” e uma dinâmica sociedade civil tornada arena fundamental de luta política e um espaço decisivo na conquista da hegemonia pela via da “guerra de posição”31. Tais considerações o levam a observar que: É daqui que se origina a crise dos modelos interpretativos terceirointernacionalistas próprios da velha esquerda. Se o Brasil é hoje uma so-

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Q 6, § 138, p. 801-802.

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ciedade ‘ocidental’, então não mais se podem imaginar formas de transição ao socialismo centradas na ‘guerra de movimento’, no choque frontal com os aparelhos coercitivos de Estado, em rupturas revolucionárias entendidas como explosões violentas e concentradas em um breve lapso de tempo. Começa a emergir também no Brasil uma esquerda moderna, disseminada em vários partidos e organizações, mas que tem em comum o fato de haver assimilado uma lição essencial de estratégia gramsciana: o objetivo das forças populares é a conquista da hegemonia, no curso de uma difícil e prolongada ‘guerra de posições’. Ora, no caso brasileiro, isso significa que a consolidação da democracia pluralista, bem como seu ulterior aprofundamento numa ‘democracia de massa’32, devem ser considerados ponto de partida e, ao mesmo tempo, condição permanente de nosso caminho para um socialismo democrático33.

Neste processo, para Coutinho, é indubitável a grande influên­cia do pensamento de Gramsci no Brasil. “Mas – continua – os que ‘adotaram’ Gramsci no Brasil e buscam ‘traduzi-lo’ em brasileiro não podem esquecer uma de suas mais lúcidas advertências metodológicas”. Além de aprender a analisar a configuração do Estado, diferente em cada país, Coutinho alerta que é necessário realizar uma investigação dos elementos estratégicos existentes na sociedade, ou, com as palavras de Gramsci, realizar “um cuidadoso reconhecimento de caráter nacional”, empreendimento que, “no caso brasileiro, ainda está em grande parte por ser feito”34. A essa grande tarefa de “reconhecimento de caráter nacional”, Coutinho dedica muitas das suas energias intelectuais e políticas. Voltado a decifrar os dilemas, as contradições e as potencialidades do Brasil, não se limita à investigação do terreno mais espe Utilizo o conceito de “democracia de massa” no sentido que lhe é atribuído por Pietro Ingrao (cf., por exemplo, Masse e potere. Roma: Ed. Riuniti, 1977, p. 223 e ss). 33 C. N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, op. cit., p. 218. 34 Ibid., p. 219. 32

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cificamente histórico e político. Como havia apontado Gramsci, envereda também no estudo das obras literárias, das produções artísticas, da função dos “intelectuais”, da relação entre “cultura e sociedade no Brasil”, pesquisando ideias e formas enquanto fenômenos “relacionados dialeticamente com a realidade social da qual são, simultaneamente, expressões e momentos constitutivos”35. Inspirado em Gramsci, que mostrara quão fatal, para uma nação moderna e democrática, havia se tornado a distância entre os intelectuais e as camadas populares, Coutinho elabora notáveis ensaios sobre o realismo literário e o caráter popular em Lima Barreto, Graciliano Ramos e Jorge Amado, sobre a influência da Escola de Frankfurt no Brasil, sobre o pensamento social e político de Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Octavio Ianni. Um conjunto instigante de leituras sobre intelectuais brasileiros que apresenta uma visão crítica das problemáticas sociais, uma compreensão do país a partir das classes subjugadas em contraposição à literatura “intimista” e “ornamental” das elites que sofreram “os efeitos da ‘via prussiana’”36. Diante das débeis formas de “revolução burguesa” e da modernização capitalista ocorrida pelo alto no Brasil, resgata as criações de caráter “nacional-popular” que buscam uma interação dialética entre a modernidade e a valorização das lutas político-culturais “da própria história, que é acima de tudo história popular”37. É a partir, portanto, da contraditória realidade brasileira e do referencial teórico de Gramsci que Coutinho se envolve no tenso processo de democratização que o Brasil passa a experimentar com o fim da ditadura. Desde seu pioneiro e impactante ensaio C. N. Coutinho, Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 9. 36 Ibid., p. 45. 37 Veja-se, a respeito, as páginas dedicadas a C. N. Coutinho em G. Baratta, As rosas e os cadernos, op. cit., p. 218-223. 35

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“A democracia como valor universal”38 até as intensas atividades político-acadêmicas e os diversos escritos que abordam a relação entre marxismo e democracia, se faz insistente a busca de um socialismo não recalcado sobre o modelo soviético nem desfigurado nos moldes da social-democracia. Em oposição aos que viam na democracia uma mera expressão das instituições burguesas, Coutinho resgata as conquistas históricas da democracia realizadas pelas batalhas dos trabalhadores ao longo da modernidade e sustenta que para aqueles que “lutam pelo socialismo, a democracia política não é um simples princípio tático: é um valor estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista quanto para a consolidação e o aprofundamento dessa nova sociedade”39. Critica, com isso, tanto a visão de democracia reduzida ao simples respeito das “regras do jogo” da tradição liberal como os que encaram a “democracia como um caminho para o socialismo, e não como o caminho do socialismo”40. Convencido de que “sem democracia certamente não há socialismo, tampouco existe plena democracia sem socialismo”41, Coutinho se bate pela consolidação democrática das organizações dos trabalhadores, recupera as posições da “Democracia progressiva” delineada por P. Togliatti42, defende um “processo multiforme e prolongado de transformação revolucionária da sociedade”, conforme a proposta de G. Amendola43 e sustenta que “a democracia de massa (a expressão é de Ingrao)... seja a portadora da hegemonia dos traba Publicado inicialmente na revista Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, n. 9, março de 1979, p. 33-48. Ver também C. N. Coutinho, Democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 1992. 39 Ibid., p. 37. 40 C. N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, op. cit., p. 271. 41 Ibid., p. 278. 42 Ibid., p. 161-2 e 185-6. 43 Citado por C. N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, op. cit., p. 163. 38

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lhadores sobre o governo da sociedade como um todo. O que se propõe, em outras palavras, é a constituição do ‘autogoverno dos produtores associados’, a que se referiam Marx e Lenin”44. Na realização desse processo, diversamente do assalto repentino e frontal para se apropriar do poder central, a construção da “democracia de massa” torna-se uma conquista que implica a árdua transformação dos governados em governantes, dos dirigidos em dirigentes, uma profunda revolução voltada não mais a reproduzir a concepção “natural” de poder, mas a promover o “autogoverno de cidadãos”45 que aprendem a criar a “sociedade regulada”46, pseudônimo, para Coutinho, inventado por Gramsci para indicar o comunismo47. Uma referência imprescindível nos estudos de Gramsci e nas lutas políticas

Concorde-se ou não com suas posições políticas, é inegável a inestimável contribuição de Coutinho seja no gigantesco trabalho de tradução, seja na incisiva interpretação e difusão do pensamento de Gramsci em osmose dialética com as problemáticas políticas do Brasil. Pelo rigor do seu trabalho e pelo método cuidadoso das suas análises, conseguiu esculpir no Brasil os traços mais constitutivos de uma figura fundamental do marxismo contemporâneo, colocando-o em estreita ligação com o pensamento de Marx e Lenin e mostrando que a sua concepção de revolução e de sociedade socialista são “de tipo novo, já que baseadas no consenso, na hegemonia, ou seja, no aprofundamento e na radicalização da democracia”48. 46 47 48 44 45

C. N. Coutinho, “A democracia como valor universal”, op. cit., p. 39. Q 8, § 130, p 1020. Q 6, § 88, p. 764. C. N. Coutinho, De Rousseau a Gramsci, São Paul: Boitempo, p. 114. C. N. Coutinho, Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político, op. cit., p. 299.

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Distante tanto de posições doutrinárias como de modismos e sectarismos, o retrato de Gramsci que Coutinho entrega ao Brasil é de um autêntico “intelectual orgânico” voltado a construir a revolução socialista juntamente com as classes trabalhadoras e em profunda relação dialética com a realidade histórica. Os leitores brasileiros são postos, assim, não apenas diante de um extraordinário teórico político que chegou a pensar de forma original os grandes temas do nosso tempo e tornou-se uma referência mundial pela renovação do marxismo. São interpelados, principalmente, a enfrentar os problemas cruciais do Brasil e a criar construções conceituais capazes de estabelecer os vínculos estreitos entre os processos reais e a elaboração teórica, entre os fermentos de transformação que germinam nas lutas populares e as formas mais avançadas da organização política. Ao salientar os aspectos mais inconfundíveis do marxista italiano, Coutinho ensina a não dirigir-se à realidade com ideias preconcebidas e esquemas pré-constituídos. Mas mostra também como é ilusório lançar-se na revolução sem se dedicar a uma análise crítica e rigorosa dos fatos, sem estudar o emaranhado das “relações de forças” e das conflituo­sas concepções de mundo que se chocam nas modernas sociedades, sem construir coletivamente uma visão “coerente e unitária” de mundo, sem superar a dispersão e o imediatismo, de modo a tornar-se “fundador de Estados”49 firmados sobre a hegemonia de uma democracia de massa que se educa a socializar o poder e se autogovernar. Não surpreende, portanto, se a intensa dedicação à obra de Gramsci tenha concorrido a fazer de Coutinho um dos mais destacados “intelectuais orgânicos” marxistas no Brasil. Um estudioso que desempenhou brilhantemente seu trabalho no mundo das ciências humanas e um militante que não hesitou em se envolver 49

Q 3, § 48, p. 330.

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na incandescente arena política, na batalha das ideias travadas nos labirintos das correntes do marxismo, na interlocução com diversos intelectuais e no embate com propostas antagônicas de sociedade. Não é por acaso que, à semelhança do autor do Cadernos do cárcere, nos escritos do marxista brasileiro percebe-se a formação de um pensamento que foi se forjando no campo concreto da política, concentrando os esforços sobre temas estratégicos, em um movimento dialético que o levou a escrever e reelaborar suas reflexões até alcançar níveis elevados de clareza e precisão teórica. Acima de tudo, assim como o encarcerado pelo fascismo, que nunca barganhou sua liberdade intelectual ou largou as suas “profundas convicções para agradar a patrões”50, também o maior gramsciano brasileiro não se curvou diante de nenhum tipo de autoritarismo nem aderiu a fáceis modismos, enfrentando não só a ditadura militar e as tempestades ideológicas, mas, principalmente, os insidiosos “tempos neoliberais”, quando uma decepcionante debandada afetou consideráveis setores de esquerda. Não é menos importante observar que, em sintonia com o espírito gramsciano, Coutinho mostrou que o socialismo e a democracia se constroem pagando o caro preço de uma vida inteira posta à disposição da “elevação intelectual e moral” das classes dominadas, e que tanto no labor científico como na luta política é necessário vivenciar novos modos de pensar e agir, sem alarde nem vaidade, mantendo a elegância nos debates e o respeito nas divergências e aprendendo, mais uma vez com Gramsci, que compreender e valorizar com realismo a posição e as razões do adversário (e o adversário é, em alguns casos, todo o pensamento do passado) significa justamente estar liberto da prisão das ideologias, isto é, significa

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A. Gramsci, Lettere dal carere. Palermo: Sellerio, p. 478, carta de 12/10/1931.

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colocar-se em um ponto de vista ‘crítico’, o único fecundo na pesquisa científica51.

Naturalmente, como no caso de qualquer autor e do próprio Gramsci, ao se adentrar no pensamento de Coutinho, é sempre necessário realizar um trabalho de contextualização e de hermenêutica. Tal cuidado ajudará a descobrir as muitas marcas indeléveis da sua contribuição legada ao Brasil e também a entender porque o enfoque prevalente dos seus estudos sobre Gramsci o levou a uma “concentração na teoria política [que] obrigou-me a deixar de lado, ou a tratar apenas de passagem, muitos aspectos importantes da reflexão gramsciana”. Longe de ser um limite essa concentração, “que me parece justificada pela própria estrutura interna da obra de Gramsci”52, colhe perfeitamente os sinais do “autorretrato” intelectual que o autor do Cadernos do cárcere deixou transparecer indiretamente quando anota, por exemplo, que “em cada personalidade há uma atividade dominante e predominante, e é nesta que é preciso buscar o seu pensamento”. Assim, “quando um político escreve sobre filosofia, pode ser que a sua ‘verdadeira’ filosofia deva ser procurada nos escritos de política”53. Indicações sutis como essas não escaparam à aguda percepção de C. N. Coutinho, que concentrou boa parte das suas energias para mostrar exatamente como a maior característica de Gramsci tem sido a elaboração de uma nova concepção política “adequada à filosofia da práxis” e em condições de dar conta da totalidade social que é sempre atravessada pela política54. Ao focalizar esta dimensão nevrálgica na obra do comunista italiano, voltado a “afirmar Q 10, § 24, p. 1.263. Prefácio ao livro Gramsci. Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 1-2. 53 Q 11, § 65, p. 1493. 54 C. N. Coutinho, Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994, p. 106. 51

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o papel criador da práxis humana na história, sua percepção das ‘relações de força’ como momento constitutivo do ser social”55, C. N. Coutinho aponta que os estudos e as investigações sobre os mais diversos aspectos que emergem no “laboratório” de Gramsci não podem ignorar a sua inovadora concepção política, imprescindível, acima de tudo, no processo “catártico” que, nas lutas hegemônicas dos subalternos, deve realizar “a passagem do momento meramente econômico, ou egoístico-passional, para o momento ético-político (...) a passagem do ‘objetivo’ ao ‘subjetivo’, da necessidade à liberdade”56.

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C. N. Coutinho, De Rousseau a Gramsci. op. cit., p. 107. Q 10, § 6, p. 1.244.

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Introdução

A crítica literária promovida por Carlos Nelson Coutinho possui, entre outros méritos, o de se respaldar de forma pioneira nas categorias da estética de Lukács para compreender a literatura brasileira (não somente ela, como veremos). Por certo, Coutinho não foi cronologicamente o primeiro dos críticos brasileiros a mencionar Lukács. Esta posição desbravadora cabe a Nelson Werneck Sodré, que publicou em 1960 a terceira edição de sua História da literatura brasileira usando Lukács especialmente em sua introdução para demarcar as fronteiras da autenticidade artística (Sodré, 2002). No entanto, estamos diante de dois projetos distintos: ao passo que, em Sodré, Lukács serve somente como um suporte inicial para se delinearem os caminhos da literatura brasileira e, por isso, aparece esporadicamente ao longo do texto, a não ser em seu estudo introdutório, em Coutinho, Lukács é uma presença orgânica: as suas categorias se exaurem em seus estudos, permitindo-lhe saturar de determinações a arte literária e suas leis estruturais. À guisa de exemplo, observa-se em determinado trecho de Literatura e humanismo, de 1967, o caráter da posição de Lukács

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não apenas no âmbito da estética marxista, mas também na história da filosofia estética: Lukács foi o único pensador a desenvolver coerentemente a estética marxista no sentido e na direção indicados por Marx e por Engels. E, na medida em que o marxismo lhe proporcionou a assimilação da herança válida do passado, seu pensamento estético aparece como a culminação e como a forma contemporânea da tradição revolucionária e humanista que – de Aristóteles aos democratas revolucionários russos, passando por Lessing, Goethe, Hegel e tantos outros – compreendeu e valorizou a arte como uma das mais altas manifestações da grandeza e do poderio do homem na luta contra a destruição da sua integridade (Coutinho, 1967, p. 135).

Lukács é alocado por Coutinho no lugar de um autêntico continuador das ideias de Marx e Engels, distanciando-o da estética do marxismo oficial de Zdhanov e da estética do marxismo liberal de Garaudy. As palavras citadas são claras a este respeito: segundo Coutinho, Lukács é a culminação do desenvolvimento da filosofia estética que remonta às origens com Aristóteles e passa pelo período heroico da burguesia; seria a síntese última de todo este longo e rico processo. Franz Kafka e Marcel Proust

Isso não significa que a recepção de Lukács por parte de Coutinho tenha sido sempre concordante. Embora enalteça as conquistas obtidas pelo pensamento do marxista húngaro, Coutinho não fecha os olhos para alguns problemas que nascem da estética lukacsiana. Há os instantes de crítica, ainda que permaneçam dentro dos limites da estética do pensador húngaro. Quer dizer, as ressalvas feitas a Lukács são elaboradas com o seu próprio arcabouço categorial. Estamos falando exatamente da interpretação lukacsiana da obra de Kafka e de Proust.

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Como se sabe, inicialmente, a leitura que Lukács faz destes romancistas é exageradamente severa. Kafka e Proust são ao mesmo tempo considerados tanto fenômenos da decadência ideológica da burguesia imperialista quanto antecipações preparatórias da mística fascista. Eis uma passagem da obra de Lukács (1991, p. 100-101) em que esta relação é levada a cabo: Não pretendemos dizer, evidentemente, que os escritores mais notáveis da decadência estejam pessoalmente ligados à política hitleriana ou da guerra fria. Ninguém ignora que um Joyce ou um Kafka escreveram as suas obras – imensamente significativas – muito antes dos acontecimentos que acabamos de referir, que Musil era pessoalmente um antifascista etc. Mas, se não pretendemos imputar-lhes uma tomada de posição diretamente política, devemos notar, no entanto, a sua responsabilidade, na medida em que a sua concepção de mundo serviu de quadro a toda uma literatura, enquanto reflexo da realidade efetiva, e particularmente desta realidade atual, onde a sua maneira de refletir o mundo e de o julgar ocupa um lugar tão importante. Que este ou aquele escritor tire daí conclusões práticas de caráter político, neste ou naquele sentido, não interessa no momento. Trata-se somente de saber se, na imagem do mundo que estes autores oferecem, e que é reflexo da realidade objetiva, o caos, o sentimento de perdição, o desespero, a angústia, são realmente os fatores essenciais que determinam subjetivamente os comportamentos correspondentes, isto é, justamente os aspectos intelectuais e emocionais da interioridade humana, cuja predominância permite que as propagandas do fascismo e da guerra fria exerçam o seu pleno efeito.

De acordo com esta passagem extraída de Realismo crítico hoje, a imagem de mundo oferecida por Kafka, Proust e demais escritores permitiu que as ideologias do fascismo e da guerra fria exercessem o seu pleno efeito; assim, esta imagem de mundo encontrada na sua literatura detém responsabilidades quanto ao devir das lutas que abriram espaço para o advento de Hitler e seus

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consortes, uma vez que teriam iluminado as sendas pelas quais a barbárie fascista caminhou. Esta avaliação de Lukács não é aceita por Coutinho desde a juventude, em Literatura e humanismo, o que motivou inclusive a troca de correspondência entre o mestre e o seu seguidor (ver Coutinho e Konder, 2002). Muito embora aceite a posição geral de Lukács face à literatura de vanguarda1, Coutinho desvia-se da rejeição absoluta que há em Lukács diante de Kafka e Proust. A sua sentença é definitiva: “entre os escritores ligados à vanguarda, Kafka­ foi talvez o único a criar uma forma verdadeiramente original para representar os problemas de nosso tempo” (Coutinho, 1967, p. 34). O interessante da posição de Coutinho é que a sua aceitação de Kafka­e Proust não o leva a aceitar as experimentações formalistas da vanguarda, produzidas à maneira de Joyce; ao contrário, a tarefa de que se incumbe é precisamente distinguir aqueles dois romancistas destas experimentações vazias de conteúdo realista 2. O caso de Kafka é muito claro para Coutinho (2005, p. 130): o narrador tcheco representa realisticamente em sua obra o avanço do capital monopolista e o “paulatino estreitamento dos espaços individuais de manobra”. A trajetória concreta dos seus principais personagens demonstraria, ainda segundo Coutinho, “A posição negativa de Lukács em face da arte moderna só pode ser devidamente compreendida a partir de sua concepção humanista do estético: ele exige que a arte contemporânea continue a desempenhar para a humanidade o mesmo papel que ela desempenhou no passado, desenvolvendo todas as imensas possibilidades que lhe são inerentes, em vez de renunciar a este papel em troca da elaboração de depoimentos pessoais sobre o desespero e a impotência diante das tendências desumanizantes do capitalismo” (Coutinho, 1967, p. 135-136). 2 “Podemos observar que a chamada arte de vanguarda – não obstante as inúmeras, e mesmo excessivas, variações ‘formais’ – tem como visão do mundo subjacente os postulados básicos da concepção irracionalista da vida. Toda arte de vanguarda se caracteriza, em primeira instância, por tratar como eternos e metafísicos, como fetiches desligados de seu contexto histórico, os temas da solidão e da falta de perspectivas concretas do homem ‘privado’ no mundo de hoje” (Coutinho, 1967, p. 25). 1

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“o poder esmagador” da realidade estranhada do capitalismo tardio sobre a ação humana; a temática da burocracia não é casual, portanto. O caso de Proust explica-se com a menção ao período de crise do capitalismo liberal, até então estabilizado, que culminaria “na época ‘explosiva’ do capitalismo monopolista, do imperialismo, das guerras mundiais” (Coutinho, 2005, p. 52). Este é o cenário no qual atuam os destinos narrados na obra Em busca do tempo perdido. Daí a sentença: “Proust é o romancista dessa época de crise e de transição” (Coutinho, 2005, p. 53). A partir destas contextualizações, Coutinho estava apto a tratar Kafka e Proust enquanto instantes vigorosos do realismo crítico. Ambos se portam como a apropriação do movimento do real, fixando em suas respectivas criações literárias a autoconsciência do gênero. Esta distinção entre Kafka e Proust, de um lado, e o irracionalismo vanguardista, de outro, é sentida como uma necessidade orgânica para a crítica literária de Coutinho, inclusive porque Lukács não a fez. No grosso de sua obra, o pensador húngaro tratava a vanguarda como um bloco unitário, o que implicou frequentemente tomar Kafka por Joyce e vice-versa. A ausência desta distinção favorável a Kafka determinou a seguinte repreensão de Coutinho destinada a Lukács: “é bastante estranho que Lukács tenha feito (...) esta opção infeliz [eleger Kafka o maior representante da decadência]; é evidente que não é Kafka, mas James Joyce, o mais típico representante do anti-humanismo e do antirrealismo no romance moderno” (Coutinho, 1991, p. 10). Em 1968, Coutinho (1991, p. 10) alegava que, “antes de 1956, Lukács jamais falara em Kafka”. Isso não é exatamente correto. Realismo crítico hoje não é a primeira menção de Lukács ao escritor tcheco. Com efeito, na maturidade de 2005, Coutinho corrigiria a informação: a primeira menção acontece em 1953, no problemático prólogo de A destruição da razão: “atualmente, os representantes literários da economia política diretamente apolo-

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gética, da filosofia semântica, são os quadros do desespero niilista; é Kafka, é Camus” (Lukács, 1959, p. 330). Lukács não havia considerado o autor de O processo na breve história da literatura alemã que escreveu em meados da década de 1940. Este fato indica que o confronto de Lukács com os romances de Kafka se deu tardiamente, depois que o pensador húngaro já havia lido os filósofos existencialistas citando Kafka para respaldar suas ideias sobre a angústia humana, como o Sartre de O ser e o nada (o que acabou por influenciar a leitura lukacsiana). Conforme a interpretação de Coutinho, Lukács deixou-se carregar pelas lutas da década de 1930, quando o movimento comunista e as forças progressistas da burguesia republicana uniram-se nas denominadas Frentes Populares contra o assalto nazista ao poder. Nesse caso, a estratégia era resguardar as instituições democráticas burguesas como o palco mais apropriado para a atuação revolucionária da classe trabalhadora. Para Lukács, a defesa das instituições da democracia burguesia abrangia tanto o parlamento político, a filosofia do período revolucionário da modernidade (de Maquiavel a Hegel), como as tradições do romance, esta épica burguesa que se consolidou desde Cervantes até Thomas Mann. Cabia, então, proteger das distorções nazistas o parlamento liberal, a filosofia progressista da burguesia, o romance do realismo crítico etc. Lukács terminou por lutar por uma verdadeira “frente popular na literatura”, segundo a expressão de Arvon (1970). Aos olhos de Coutinho, a luta pelas Frentes Populares explicaria a exigência da totalidade que Lukács estabelece para o romance e, daí, a sua crítica à vanguarda, que terminou por atingir também Kafka e Proust3. Isso explica aquela passagem de Realis “Esta batalha estética [contra as vanguardas] liga-se, de certo modo, a uma longa batalha política e ideológica travada por Lukács desde 1929, ano em que apresenta as suas famosas Teses de Blum: a batalha por uma ‘frente popular’ na cultura, por uma aliança de todas as forças progressistas, democráticas e socialistas, no combate

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mo crítico hoje mencionada acima: a vanguarda dissolve as tradições do realismo crítico e, portanto, a sua atitude é correlata à dos fascistas, que dissolvem as tradições do parlamento liberal; Lukács conclui a fórmula de modo tão simples quanto insatisfatório: a vanguarda literária abre as portas para a política fascista. Contudo, é preciso ponderar com atenção a propósito desta associação que Coutinho efetua entre as Frentes Populares e a exigência da totalidade que existe na teoria do romance em Lukács. O fato é que Lukács sempre exigiu a perspectiva da totalidade para a criação estética, mesmo antes das Frentes Populares. Sabe-se que, em seu texto juvenil A teoria do romance, a sua grande crítica à forma do romance é justamente a ausência da segurança que se lê nas epopeias homéricas; para o Lukács do período hegeliano, o romance nasce numa época em que a insegurança prepondera, em que os homens estão em “desabrigo transcendental”, sem a ajuda dos deuses para enfrentar as lutas cotidianas4. Não haveria para a sociedade burguesa e sua épica a totalidade imediata da vida típica das sociedades antigas5. Derivam daqui os elogios utópià reação e à decadência. A tradição do realismo ligado ao humanismo democrático foi desde então, para Lukács, uma das mais importantes entre as forças progressistas. No plano literário, o inimigo principal desta ‘frente popular’, desta aliança de realismo crítico e realismo socialista, é precisamente a vanguarda decadente, irracionalista e anti-humanista” (Coutinho, 1991, p. 9) 4 “O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido da vida tornou-se problemática, mas que ainda assim têm por intenção a totalidade” (Lukács, 2000, p. 35). 5 “Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá de buscar-se. Essa é a era da epopeia. Não é a falta de sofrimento ou a segurança do ser que revestem aqui homens em ações em contornos jovialmente rígidos (o absurdo e a desolação das vicissitudes do mundo não aumentaram desde os inícios dos tempos, apenas os cantos de consolação ressoam mais claros ou mais abafados), mas sim a adequação das ações às exigências intrínsecas da alma: à grandeza, ao desdobramento, à plenitude. Quando a

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cos que Lukács confere a Dostoievski, por julgar que este escritor anuncia em sua arte uma época em que a segurança imediata da vida retorna à superfície. A seu modo, A teoria do romance exigia a totalidade para a criação estética. Não é preciso dizer que o ensaio foi escrito antes das Frentes Populares; antes inclusive que Lukács se convertesse à teoria social de Marx. Ademais, ele persistiu em defender as tradições progressistas do romance burguês depois das Frentes Populares. No que tange aos seus últimos artigos sobre literatura, datados da década de 1960, comparece neles a sempre atualizada defesa da estrutura interna ao romance concernente à apropriação do movimento do real. Basta ler as resenhas lukacsianas sobre Soljenitsin, por exemplo. Outra ilustração: na grande Estética, de 1963, a teoria sobre a aquisição de um mundo próprio para o estético, com o fim do comunismo primitivo, não é compreensível sem a referência à totalidade de conteúdo e forma para a arte; é bastante difícil de acreditar que a interpretação de Lukács acerca das pinturas rupestres esteja condicionada pelas Frentes Populares. Enfim, a associação entre a exigência da totalidade para o romance e as lutas das Frentes Populares indicaria erroneamente que Lukács submeteu as suas teses estéticas aos conflitos políticos mais imediatos. Efetivamente, ocorre que a defesa das tradições do realismo crítico é uma constante em sua estética; sem dúvida, esta defesa é bastante reforçada por ele durante as Frentes Populares, o que fez com que Coutinho se equivocasse, associando-as como se constituíssem entre si uma relação de causa e efeito. alma ainda não conhece em si nenhum abismo que se possa atrair à queda ou a impelir alturas ínvias, quando a dignidade que prescinde o mundo e distribui as dádivas desconhecidas e injustas do destino posta-se junto aos homens, incompreendida mas conhecida, como o pai diante do filho pequeno, então toda ação é somente um traje bem talhado da alma. Ser e destino, aventura e perfeição, vida e essência são então conceitos idênticos” (Lukács, 2000, p. 26-27).

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Coutinho (1991, p. 9) acredita que era justa a luta de Lukács pelas Frentes Populares: “a justeza essencial dos princípios que informam esta política cultural ‘frentista’ parece-me indiscutível”. Mesmo não concordando com os excessos de Lukács, os princípios desta política cultural lhe pareciam corretos na sua juventude de 1968. O que Coutinho reprova em Lukács é que, depois do nazismo, continuasse a balizar-se numa espécie de Frentes Populares fora de tempo para ler as vanguardas, colocando o socialismo real como o farol deste movimento. Parece que, depois da Segunda Guerra, aqueles que defenderam os experimentos formais necessariamente estariam do lado da guerra fria, assim como, entre as décadas de 1920 e 1940, aqueles que defendiam os mesmos experimentos foram colocados nas trincheiras do nazismo. A partir de 1950, dada a correlação de forças, “tornava-se agora impossível – sem cometer uma clara violência contra os fatos – colocar a vanguarda ao lado dos que defendiam a guerra ou a julgavam inevitável e o realismo ao lado dos defensores da paz” (Coutinho, 2005, p. 35-36). Enfim, de tudo, resta a certeza de que Coutinho foi um lukacsiano “ortodoxo” ao analisar o par formado por Kafka e Proust, sendo que, aqui, a ortodoxia precisa ser compreendida no mesmo sentido dado pelo próprio Lukács referindo-se a Marx em História e consciência de classe: ser um ortodoxo é manter-se fiel ao método, ainda que haja discordâncias quanto a afirmações laterais sobre o objeto apreendido; ainda que a história posterior negue os dizeres de Lukács a propósito da literatura, seu método permanece como o ponto de partida para a autêntica apreciação da reflexão estética. Kafka e Proust foram os objetos capturados pela crítica literária de Coutinho sob o suporte necessário do método histórico-sistemático de Lukács, muito embora o devir histórico tenha negado aquilo que o filósofo húngaro afirmou sobre ambos.

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Contudo, dissemos na linha inicial deste ensaio que o grande mérito de Carlos Nelson Coutinho é trazer as categorias da estética lukacsiana para as fronteiras da literatura brasileira. Dois romancistas foram o veículo que possibilitou este movimento: Graciliano Ramos e Lima Barreto. Se, por um lado, não existe uma relevante diferença entre os períodos históricos de escrita dos ensaios abordados anteriormente (Proust em 1967, Kafka em 1970) e aqueles relativos aos escritores brasileiros (Graciliano Ramos em 1965 e Lima Barreto em 19726), uma característica se destaca nos textos sobre Graciliano Ramos e, especialmente, sobre Lima Barreto: uma análise que privilegia a relação mais concreta do escritor com a sua realidade social. Não que Coutinho, nos casos anteriores, tenha rea­ lizado uma crítica que supostamente tratasse a literatura como autônoma dos vínculos societários, pois, como analista estético vinculado ao método marxista de Lukács, a teoria do reflexo fez-se presente. Mas, pelo conhecimento particular da nossa história e das características essenciais que consubstanciam nosso desenvolvimento peculiar, as avaliações realizadas sobre os romancistas brasileiros apresentam relações mais mediatizadas, ora descortinando marcas do passado, ora apontando para possibilidades concretas do nosso horizonte. No que toca aos momentos de publicação, ressalte-se que ocorreram algumas alterações em relação à sequência da escrita: o texto sobre Graciliano Ramos foi inicialmente publicado em 1966 na Revista Civilização Brasileira e depois fez parte do seu livro Literatura e humanismo, publicado no ano seguinte; o texto sobre Lima Barreto integrou, ao lado de ensaios de outros autores brasileiros filiados à matriz lukacsiana, o livro Realismo & Antirrealismo na literatura brasileira, publicado em 1974; o texto sobre Franz Kafka foi publicado, inicialmente, em 1977 na Revista Temas de Ciências Humanas; já o texto sobre Marcel Proust só foi publicado, depois de um processo de revisão, em 2005, no seu livro Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX.

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Parte-se, então, de um princípio elementar para a estética marxista de Lukács: como o escritor realista apropria-se do movimento do real em suas obras, é imperativo avaliá-las, sobretudo, a partir da sua relação com a realidade ela mesma e, para tanto, é preciso conhecê-la. Exige-se, assim, da criação estética a expressão de características essenciais nas suas relações diretas com o núcleo das vidas humanas. Duas grandezas em uma unidade: o real em movimento expresso a partir da reflexão estética. Respeitando e cumprindo as determinações próprias da legalidade estética, cabe à criação literária apropriar-se, sob a perspectiva antropomorfizadora, da realidade em que se insere. Nem uma cópia, nem uma abstração: a exata medida da realidade na relação com o humano concreto, apresentada com destinos cruzados de seus personagens típicos. Por isso que, como afirma Coutinho (1967, p. 107), “uma obra de arte é realista quando manifesta em sua conformação singular a totalidade das determinações do reflexo estético da realidade objetiva”. Como não poderia deixar de ser, o desenvolvimento da nossa literatura faz parte da totalidade da formação histórica do Brasil, e, se a contradição é uma marca estrutural desta, a existência da mesma característica naquela não pode ser vista com espanto. Tradições literárias tais como a francesa (de Stendhal e Balzac a Roger Martin du Gard) ou a russa (de Púshkin e Gogol a Dostoievski e Tolstoi) não tiveram paralelo similar em países como o Brasil. Isso se deve ao nosso desenvolvimento histórico peculiar, marcado, dentre outras qualidades, pela ausência da formação de um sujeito nacional e popular que alcançasse uma unidade na luta pelo progresso social e pela acentuada separação entre os intelectuais e o povo. Não obstante, esse quadro histórico não apenas impossibilitou a criação de uma tradição literária do realismo crítico como, no seu interior, dificultou a expressão de personagens típicos e exemplares que, conectados diretamente às forças sociais

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democráticas, fossem portadores de um horizonte progressista. A ausência daquelas qualidades inviabilizou, em grande medida, a existência destes, e, assim, em países como o Brasil, “o realismo assume quase sempre um caráter excepcional, não apenas no estrito sentido de não habitual, mas também naquele de fenômeno irrepetível” (Coutinho, 1974, p. 12). Na ausência de um sujeito e de um projeto nacional que unificassem as forças democráticas brasileiras em torno de progressivas rupturas com a ordem dada, tanto os intelectuais se alocaram em um limbo ideológico7, delimitando uma suposta autonomia perante o povo, como as diferentes fragmentações entre classes e franjas de classe ficaram fortalecidas em detrimento de um vínculo orgânico com este projeto nacional, democrático e popular de que fala Coutinho. Além de a fragmentação das forças sociais ter servido para aprofundar os elos de exploração e subordinação do Brasil aos países imperialistas, o outro resultado característico foi a cristalização da dominação das elites locais e regionais, perpetuando determinações típicas de uma sociedade aristocrática. Daí o caráter contraditório da nossa formação econômica, sobre o qual uma vasta literatura sociológica já se debruçou: uma sociedade estruturada pela exploração nacional e internacional do capital sobre o trabalho, mas envolvida por laços políticos e ideológicos de cunho aristocrático. O reflexo de tais determinações sobre as artes não se fez ausente e, no campo da literatura, um grande personagem típico, que expressa em seu destino concreto a particularidade da nossa formação social, encontra-se em São Bernardo, de Graciliano Ramos. A vida, as escolhas e o destino de Paulo Honório não representam um tipo isolado nas personalidades brasileiras, pois é nele Como veremos, Coutinho aprofunda essa análise ao incorporar a categoria “intimismo à sombra do poder”, utilizada, por exemplo, no ensaio sobre Lima Barreto.

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que se encontram as qualidades principais que fermentam a essência da nossa realidade, marcada pela mistura entre modernidade burguesa e arcaísmo aristocrático. A intenção de Coutinho é precisamente desvendar as conexões entre o tipo Paulo Honório e as forças sociais da vida brasileira que estão representadas por ele. É nesta direção que Coutinho (1967, p. 155) avalia a exemplaridade desse personagem: O caráter excepcional de Paulo Honório, entre outras coisas, expressa-se na complexa integração dos valores feudais e dos valores capitalistas que formam a sua personalidade. Movido por uma sede de lucro e de domínio que é própria do capitalista, Paulo Honório é, no essencial – um burguês típico; mas permanecem em sua mentalidade certos aspectos feudais, como, por exemplo, o seu apego à vida rural e a sua incapacidade de ambientação na cidade.8

Em Paulo Honório, movimentam-se num só ritmo a modernidade do burguês ávido por lucro e o apego às tradições arcaicas das oligarquias rurais. Para criar este autêntico personagem-tipo, Graciliano promoveu uma fusão entre indivíduo e classe social, entre singular e universal, expressando não somente as ações comuns a grupos sociais historicamente determinados, como também as possibilidades presentes nas suas relações com o restante das classes em sociedade. É nesse sentido que, sob a ótica de Coutinho, Graciliano Ramos apresenta os personagens de São Bernardo. E, no caso particular de Paulo Honório, se, por um lado, o personagem é dotado de uma grande ambição por acúmulo de riquezas, por outro, ele guia parte das suas ações e relações sociais por uma consciência Em edição mais recente, Coutinho (2005a, p. 177) altera algumas palavras dessa passagem, substituindo os termos que remetem ao sistema feudal por “valores pré-capitalistas” e “aspectos arcaicos”. No prefácio desta nova edição, Coutinho avisa que já não avalia o passado brasileiro como “semifeudal”.

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típica de sociedades pré-capitalistas. O papel subordinado e atrasado de nossa classe dominante é o grande exemplo desse quadro social, e Paulo Honório, como “representante típico da burguesia brasileira, de uma burguesia que se ligou à mesquinhez da sociedade semifeudal”, expressa, na sua particularidade, uma renúncia, talvez definitiva, “aos princípios democráticos e humanistas do seu período de ascensão revolucionária nos países hoje desenvolvidos” (Coutinho, 1967, p. 155-156). Mas, no que concerne à consecução de tipos, nem sempre Graciliano obteve sucesso, pois, como demonstra Coutinho (1967, p. 147), a sua primeira obra literária, Caetés, está mais próxima de um relato jornalístico da realidade do que de uma arte realista, uma vez que “o universo deste romance não ultrapassa a representação da superfície da realidade; trata-se de uma crônica, do relato quase jornalístico de uma cidade do interior nordestino”. Contudo, ainda que não tenha atingido o resultado realista que Lukács acreditava tão necessário à criação artística, o processo de realização desse romance foi essencial para o literato alagoano alcançar êxito nos seus romances posteriores, ainda que representado como um momento a ser superado. Em germe, a obra já apresentava uma tentativa de superação do naturalismo, especialmente nas duas características centrais que marcaram essa perspectiva literária no Brasil: tanto nas suas formas de descrição superficial da realidade como na incorporação de condições humanas patológicas e exóticas para explicar o caráter do personagem. Isso não há em Caetés, como explica Coutinho. Nesse caso, este romance permanece como sendo um grande ensaio daquilo que virá depois na evolução literária de Graciliano, à maneira das primeiras investidas de Thomas Mann, por exemplo, que ensaiou temas na juventude, em Sua alteza real, que ganhariam o estatuto de grandes sinfonias na maturidade de Doutor Fausto.

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O desenvolvimento desigual do capitalismo brasileiro adquire, em algumas de suas regiões, contornos mais dramáticos. Esta é a circunstância em que se põe o Nordeste, região em que os efeitos da decadência da sociedade colonial brasileira foram sentidos com mais intensidade. Grande parte dos habitantes desta região, na sua maioria desprovidos das mínimas condições de sobrevivência, ficou obrigada a cumprir a sina da migração. Esse é o quadro que compõe o drama do êxodo rural e, dentro dele, o flagelo da seca se interpõe como um dos seus ingredientes. Narrando a trajetória característica de indivíduos envolvidos nessa mesma situação, Vidas secas, outro romance de Graciliano Ramos, toma este tema como seu objeto de reflexão: Como dissemos acima, só aparentemente o nomadismo de Fabiano [personagem central de Vidas secas] decorre de um fenômeno natural, da seca: ele se liga, em primeira instância, ao fato de não ser Fabiano um proprietário, o que o impede de vincular-se definitivamente à terra; e, em seguida, ao baixo nível tecnológico da exploração agropecuária, o que torna os homens impotentes na luta contra os fatores naturais (como a seca) (Coutinho, 1967, p. 173).

Por causa destas determinações, as condições de vida destas classes subalternas tornam-se mais precárias e, portanto, distantes da realidade vivenciada em regiões e países desenvolvidos que passaram pela via clássica de transição para o capitalismo. Ainda que movida por contradições, a sociedade burguesa conseguiu, em sua fase nascente, ampliar os horizontes humanistas. O próprio romance, esta epopeia moderna, é um fenômeno que nos é legado pela burguesia em sua fase heroica. O “herói problemático”, em cujo destino se centra o romance, representa justamente este movimento: na órbita artística, instaurou-se o caminho contraditório do personagem em busca da realização de uma vida autêntica e da necessária luta contra os obstáculos sociais erguidos à sua fren-

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te. Este herói romanesco, sobre o qual nos falava o jovem Lukács tendo à mão Dom Quixote, pretende sempre conferir um caráter humano à vida que o cerca. Todavia, se essa foi a expressão estética capaz de refletir a realidade objetiva dos países capitalistas desenvolvidos (é claro, antes de sua fase de decadência ideológica), seria problemática a sua aplicação ipsis litteris para tipificar a realidade narrada em Vidas secas. Diferentemente de um personagem que, inconformado com a ordem vigente, estabelece uma problemática luta por valores capazes de superar as formas de alienação reinantes (o que nos é ilustrado por Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, por exemplo), os personagens centrais do romance de Graciliano Ramos são caracterizados por um conteúdo mais elementar: o desejo de subsistir, a mera sobrevivência física. Como observa Coutinho (1967, p. 175), é justamente “este simples desejo de viver, de autoconservar-se, que o opõe decisivamente a um mundo inóspito, a um sistema de morte e destruição – pois a acomodação ao sistema latifundiário significa, para o camponês brasileiro, uma morte lenta e inexorável”. Portadora de um conteúdo humanista, a trajetória de Fabiano, além de fomentar a esperança na construção de uma sociedade superior, também combate ilusões perigosas, como as que atribuem uma espécie de progresso à atuação política das oligarquias aristocráticas nordestinas. São tais razões que levam Coutinho (1967, p. 183; grifos originais) a afirmar que o escritor alagoa­ no seria portador da visão humanista mais ampla de seu tempo, integrando-se à perspectiva socialista: Ao que nos parece, o humanismo de Graciliano, sua visão de mundo, são o máximo de consciência possível do povo brasileiro, isto é, do conjunto das classes sociais que se opõem à nossa realidade semicolonial e que lutam pelo desenvolvimento independente – nacionalista e democráti-

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co – de nosso país, não hesitando, nesta luta, em formular uma perspectiva socialista, ainda que abstrata (tal como as próprias condições permitiam).

Assim, com Coutinho servindo-se da estética de Lukács, a crítica literária se liga diretamente à busca pela apreensão das determinações fundamentais que consubstanciam a realidade brasileira. Analisar o romance de Graciliano seria, portanto, uma forma de pensar sobre o caráter da formação histórica do nosso país. Como vimos, Coutinho escreveu esse ensaio sobre Graciliano Ramos em 1965, um momento em que o debate sobre o caráter da formação social brasileira representava uma esfinge a ser resolvida. A questão central era entender se a essência do sistema social brasileiro seria feudal ou capitalista, para, a partir desse ponto, verificar quais forças sociais seriam progressistas e subsidiárias da participação democrática e de cunho popular. A complexidade maior desse dilema incidiu sobre a análise da burguesia nacional, quando ocorreu uma separação dos analistas de esquerda entre aqueles que defendiam ou negavam o papel progressista de tal classe social9. Coutinho parece, nesse momento, oscilar entre essas duas posições, uma vez que, se no ensaio estudado anteriormente aponta para a renúncia dos princípios democráticos e humanistas por parte da burguesia brasileira, por outro lado, num texto escrito no ano seguinte (que também faz parte de Literatura e humanismo), crê na possibilidade de a burguesia vir a ser uma força social progressista, ou até mesmo que representasse “uma poderosa arma de mobilização popular na luta contra as formas semifeudais e imperialistas da reação” (Coutinho, 1967, p. 21). Entretanto, essa oscilação ficaria superada nos anos seguintes, não se repetindo, por exemplo, em sua crítica sobre Lima Barreto, Um conjunto de ensaios sobre esse tema que apresenta, dentre outros, textos de Nelson Werneck Sodré e de Caio Prado Júnior, encontra-se em Stedile (2005).

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escrita em 1972, em que o autor incorpora a tese de Lenin sobre a “via prussiana”10. Em oposição a críticos de Lima Barreto (que o julgaram a partir de um parâmetro que não apenas destina seus esforços rumo a uma apreensão de sua arte baseada na sua biografia, como também a trataram desligada dos eventos históricos que o envolveram), Coutinho se propôs a examinar os romances do escritor carioca segundo o que Lukács denominou de mímese, a saber: a representação típica da realidade dada. Continuou, portanto, fiel à crítica literária que se sustenta na categoria do realismo. Contudo, tanto a ampliação do arsenal de categorias e seu manuseio mais preciso quanto a maior sensibilidade histórica sobre os problemas sociais brasileiros possibilitaram ao crítico marxista apreender de forma mais concreta as relações entre as obras literárias de Lima Barreto e seu contexto social. E duas grandes categorias se destacam para basilar essas análises, pois, ao lado da já mencionada categoria de “via prussiana”, encontra-se a do “intimismo à sombra do poder”. Empregada originalmente por Lenin (1981) para apreender as diferenças essenciais que distinguiram o desenvolvimento econômico da Alemanha (que, até 1871, era dividida em Estados independentes, sendo a Prússia o mais importante) dos países de capitalismo clássico (centralmente Inglaterra, França e EUA), a categoria “via prussiana” passou a ser utilizada por intelectuais brasileiros, a partir da segunda metade do século passado, na tentativa de determinar melhor o caráter de nossa formação econômica. Diferenciando-se dos países que tiveram, graças a uma revolução burguesa com ampla Pelas restrições do espaço e do enfoque de nossa análise, não nos propomos a examinar a relação, utilizada posteriormente por Coutinho, entre a categoria da “via prussiana” e a de “revolução passiva”, nem os impactos dessa relação em suas obras ulteriores, especialmente em A democracia como valor universal, publicada originalmente em 1979.

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participação popular (cujo exemplo máximo é a francesa de 1789), uma ruptura com os padrões econômicos, sociais e políticos vigentes no sistema feudal, o Brasil se aproximaria da Alemanha, marcada por um caminho de conciliação entre as classes dominantes: as novas (burguesas) e as antigas (junkers, ou aristocráticas e latifundiá­ rias). Deste modo, ao tratar da realidade brasileira refletida na obra de Lima Barreto, declara Coutinho (1974, p. 3): O caminho do povo brasileiro para o progresso social – um caminho lento e irregular – ocorreu sempre no quadro de uma conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lenin chamou de ‘via prussiana’ para o capitalismo. Em vez das velhas forças e relações sociais serem extirpadas através de amplos movimentos populares de massa, como é característico da ‘via francesa’ ou da ‘via russa’, a alteração social se faz mediante conciliações entre o novo e o velho, ou seja, tendo-se em conta o plano imediatamente político, mediante um reformismo ‘pelo alto’ que exclui inteiramente a participação popular.

Tendo como ponto máximo de sua obra a narrativa da trágica trajetória de Policarpo Quaresma, Lima Barreto, segundo Coutinho, teria conseguido fixar de maneira realista algumas das maiores contradições que perpassam uma sociedade que caminha pela “via prussiana”. Constituindo-se em um dos momentos literários mais importantes de nossa história, o escritor carioca, especialmente nas páginas de sua obra principal, Triste fim de Policarpo Quaresma, fez figurar em seu romance uma aberta ironia contra os valores, costumes e instituições do arcaís­ mo brasileiro. Ridicularizando tanto a variante aristocrática e agrária quanto a industrial e burguesa, Lima condenou de maneira universal o modelo prussiano, enfileirando seus principais sintomas na forma estética. Lima Barreto, ao agir assim, distancia-se de intelectuais característicos do nosso romantismo (embora não lhe seja exclusi-

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vo), que se imaginavam desvinculados das forças populares, que, em verdade, movem a história. Pensavam-se alheios às lutas que compõem a vida pública. Isso é algo bastante presente no Brasil, diga-se de passagem. Erguendo-se a partir de condições objetivas ainda mais intensas que as da Alemanha, pois o Brasil encontrou-se na condição de nação capitalista mais que tardiamente, a formação de nossa intelectualidade foi refratária aos anseios populares. Desenvolveu-se, entre nós, aquilo que Thomas Mann, ao referir-se a intelectuais alemães, chamou de “intimismo à sombra do poder”. Não é fora de propósito que os grandes romances de Machado de Assis tenham como principal objeto justamente a crítica dos comportamentos que nascem com essa cultura; a veraz compreensão de Memórias póstumas de Brás Cubas dá-se apenas sob esta ótica, por exemplo. Portanto, é, de acordo com Coutinho (1974, p. 4), essa unificação entre resignação e elitismo que marca o comportamento de certa intelectualidade brasileira: Descrentes da possibilidade de influir decisivamente sobre as mudanças sociais, que se processam sempre mediante acordos de cúpula entre as classes dominantes, os intelectuais tendem a evadir-se da realidade concreta, a colocar-se num terreno aparentemente autônomo, mas cuja autonomia é respeitada precisamente na medida em que não se põem em jogo as questões decisivas da vida social, as concretas relações de poder.

Diversa é a situação de Lima Barreto. Ao lado de personagens como Paulo Honório, Madalena, Luís da Silva e Fabiano (presentes nas obras de Graciliano Ramos), Policarpo Quaresma é também um caso raro desse realismo brasileiro que, na sua tipicidade estética, representa o símbolo das contradições humanas e sociais impostas pelo capitalismo de ‘via prussiana’ no Brasil. Como afirma Coutinho (1974, p. 35), com a narrativa do trágico destino de Policarpo, Lima Barreto executa “uma demolidora e implacável

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crítica àquela sociedade que condenava ao ridículo, à extravagância e à bizarrice as mais profundas e autênticas inclinações do nosso povo no sentido da realização humana”. E se, ao cabo de seu romance, é possível se questionar o que realmente pode ser rotulado de ridículo ou bizarro (a luta incansável por uma vida autêntica lastreada pela relação recíproca entre indivíduo e gênero humano, ou a submissão aos valores, costumes e leis sociais que destroem as esperanças de progresso e realização do homem), é porque o escritor carioca alcançou êxito na sua práxis humanista. A falência de Policarpo, quando este sucumbe diante das amarras sociais, é uma das grandes conquistas do realismo de Lima Barreto. Ao fazer sucumbir o seu maior personagem em suas intenções mais honestas, humanamente autênticas, Lima Barreto comportou-se à maneira de Balzac em As ilusões perdidas, uma vez que, assim, conseguiu desvelar as leis férreas desta realidade que impede realizações humanas; é necessário perder as ilusões quanto às possibilidades dadas por estas forças societárias que não se controlam. Quando Policarpo decai, surgem à tona as desumanidades da modernidade arcaica colocada em prática no Brasil. A autocrítica de Policarpo – expressa não apenas na patética carta à irmã, mas sobretudo em suas reflexões finais antes de ser executado – converte-se numa violenta acusação à realidade social ‘que se vai fazendo inexoravelmente, com sua brutalidade e fealdade’. Embora já demasiadamente tarde, Policarpo descobre no fim do romance – tal como o Quixote – que norteara a sua vida por uma ilusão: o seu fanático nacionalismo ufanista, como ele agora compreende, baseava-se num mito, em um conceito de pátria que ‘certamente era uma noção sem consistência e que precisava ser revista’ (Coutinho, 1974, p. 44).

A derrota de Policarpo é um instrumento estético usado por Lima Barreto para estampar às claras as formas de alienação que impedem que os homens se identifiquem com as suas criações. As

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ações de Policarpo são bizarras porque, em sua bizarrice, denunciam um tempo que deforma os homens de honestidade exemplar. Diante de tudo isso, Policarpo não poderia sair vitorioso. Se o desfecho positivo fosse concedido a ele, o triunfo de uma figura humana nos daria a falsa impressão de que esta realidade estranhada permitiria realizações autenticamente genéricas a todos os seus membros. Para que o realismo crítico de Lima Barreto se comportasse como um efetivo conhecimento sobre seu tempo particular, Policarpo deveria ser necessariamente derrotado. Por fim, se Coutinho (1974, p. 54) afirma que, “apesar das trágicas contradições que ainda dilaceram a sociedade, Lima nos ensina a confiar nos recursos de que a humanidade dispõe para superar essas contradições”, e que, como um dos seus personagens principais, “sem alimentar ilusões, pôde ele confiar serenamente no futuro dos homens”. Conclusão

Estes pares de romancistas não foram os únicos a receberem a crítica de Coutinho. Ao lado de Kafka e Proust, e Graciliano e Lima Barreto, outros foram seu objeto, como Dostoievski, por exemplo. A escolha não é gratuita: um exegeta demonstra a amplidão de seus projetos já no instante em que seleciona o material sobre o qual investirá seus esforços. Coutinho participa de uma época em que a crítica literária no Brasil era feita com o respaldo de categorias filosóficas, com a concretude que se ausenta hoje boa parte da crítica literária, marcadamente jornalística. Não é novidade que Lukács tenha sido o grande antídoto contra tais deformações, mesmo quando a divergência fez-se necessária. Não é à toa que Coutinho escreveu como epígrafe de dois de seus livros uma passagem de outro lukacsiano, o italiano Cesare

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Cases (1963, p. 302), que demandava da crítica literária a seguinte postura: A fundação da crítica na filosofia e não na linguística é constitutiva de sua essência. Com efeito, somente o crítico de formação filosófica pode movimentar-se livremente em meio aos problemas suscitados pelas conexões da obra de arte com a totalidade da vida e da sociedade, sem cair, por um lado, no formalismo e, por outro, na separação positivista entre os elementos conteudísticos e sua funcionalidade estética.

Não há sombra de formalismo ou positivismo na crítica de formação filosófica de Coutinho. Sua crítica literária é, assim, capaz de evoluir por entre as grandes questões suscitadas pela obra investigada, de movimentar-se em meio às conexões que o romance estabelece com a parcela do real apreendido, de capturar o que a criação literária comporta de autêntica fixação da autoconsciência do gênero humano. Referências: ARVON, Henri. Lukács ou a frente popular em literatura. Lisboa: Estúdios Cor, 1970. CASES, Cesare. Saggi e note di letteratura tedesca. Torino: Einaudi Editore, 1963. COUTINHO, Carlos Nelson. Literatura e humanismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. _______. Introdução. In: LUKÁCS, György. Realismo crítico hoje. Brasília: Thesaurus, 1991, p. 7-20. _______. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. _______. O significado de Lima Barreto na Literatura Brasileira. In: COUTINHO, Carlos Nelson et al. Realismo e antirrealismo na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. _______ e KONDER, Leandro. Correspondência com György Lukács. In: LESSA, Sérgio e PINASSI, Maria Orlanda (orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 133-155.

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LENIN, V. I. El programa agrario de la social-democracia rusa. In: LENIN, V. I. Obras completas. URSS: Editorial Progresso, 1981, p. 321-370. v. 6. LUKÁCS, György. La destruction de la raison. Paris: L’Arche Editeur, 1959. v. 2. _______. Estética I: La peculiaridade de lo estético. Barcelona, México: Grijalbo, 1966. 4 v. _______. Realismo crítico hoje. Brasília: Thesaurus, 1991. _______. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Graphia, 2002. STEDILE, João Pedro (org.). A questão agrária no Brasil: o debate tradicional: 1500-1960. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

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Considera-se como clássica aquela publicação cuja validade das suas teses desborda o período histórico no qual emergiu. É justamente esse o caso de O estruturalismo e a miséria da razão, que, ao laborar uma apreciação crítica rigorosamente marxista do estruturalismo, atinge também o que desde o último quartel do século XX vem se constituindo como o segundo ópio dos intelectuais: o pós-modernismo. A força desse clássico é produto do talento pessoal de seu autor. Publicado em 1972, atesta a coragem e a genialidade de um jovem intelectual que, sem chegar aos 30 anos de idade e num período em que a ditadura do grande capital já havia revelado sua genuína face fascista, “enfrentou, praticamente sozinho, a vaga estruturalista que assolava o país” (Frederico, 2007). Porém, expressa também, e essencialmente, a qualidade alcançada pela tradição marxista emergente no Brasil na “década longa dos anos de 1960” (Coutinho, 2006), conjuntura que, aberta em 1956 no XX Congresso do PC da URSS e terminada em meados dos anos 1970, favoreceu – em meio às agitações de estudantes e trabalhadores em 1968, o terceiro-mundismo, o eurocomunismo, a Primavera

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de Praga – os melhores anos de florescimento e renovação do marxismo. É exatamente como “obra essencial, absolutamente indispensável [à análise crítica da] regressão ídeo-teórica que hoje impera nos círculos intelectuais da sociedade tardo-burguesa e campeia (...) nos meios acadêmicos brasileiros”, que O estruturalismo e a miséria da razão é tratada no impecável Posfácio, escrito por José Paulo Netto, quando da feliz iniciativa da editora Expressão Popular em republicá-la (Netto, 2010, p. 234). Livro, todavia, que na batalha contemporânea das ideias, revela-se também insuficiente – conforme adverte Netto –, uma vez que seu autor não pôde examinar o desenvolvimento teórico ulterior dos autores estruturalistas que submeteu à crítica, quando da época da publicação de sua obra: a evolução posterior aos anos 1970 de Louis Althusser e, especialmente, de Michel Foucault. Sem desconsiderar tais limites, pretendemos demonstrar que, ao caracterizar a produção do filósofo, que fora chamado de o niilista de cátedra (Merquior, 1985), como uma versão radical do anti-humanismo estruturalista – “que se compraz na constatação da manipulação e da dissolução do homem” –, O estruturalismo e a miséria da razão não apenas acerta no essencial da crítica à obra de Foucault. Antecipa também de forma magistral o papel que viria a ser desenvolvido pelo projeto teórico-político foucaultiano nos anos posteriores à sua fase arqueológica. Tanto é assim que Coutinho chega mesmo a sustentar a possibilidade – se confirmada a capacidade do capitalismo contemporâneo de elevar ao extremo a sua tendência manipulatória e frustrada à expectativa de superação da contrafração stalinista burocrático-manipulatória “do socialismo real” – de Foucault desempenhar, tal como o irracionalismo de Nietzsche cumpriu outrora, “a função de profeta [de uma época de] barbárie” (Coutinho, 2010, p. 174).

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Tomado como um pensador coerente e sistemático – a despeito de todos os seus deslocamentos temáticos, conceituais e metodológicos –, Michel Foucault pode ser caracterizado como um pensador proto pós-moderno. Mesmo não contendo explicitamente os argumentos pós-modernistas tão em voga na produção acadêmica e cultural da virada do século XX para o XXI – tais como a defesa de uma transição paradigmática societária e epistemológica, a celebração do sujeito descentrado, o apelo a um novo irracionalismo, a ênfase no caráter retórico da verdade etc. –, sua obra antecipa, em mais de uma década, o duplo caráter regressivo da lógica cultural do capitalismo tardio1. Precursor de uma espécie de um novo irracionalismo, um irracionalismo que encarna aspirações progressistas e de esquerda, Foucault realizou com muito mais êxito aquilo que muitos pensadores de sua geração, e até anteriores a ela, intentaram: uma desconstrução racional da razão moderna e a formulação de uma proposição política transgressiva, viável à intervenção social de uma O presente texto é uma versão bastante reduzida da que se encontra em Rodrigues (2006) na qual sustentamos a tese de que Foucault é um pensador proto pósmoderno. Para tanto, submetemos à exegese praticamente a totalidade da produção foucaultiana editada em língua portuguesa: os principais livros escritos pelo filósofo francês – da sua História da loucura à história da sexualidade III; a publicação destinada à literatura de Raymond Russel, os livros intitulados Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio do século XIX e Doença mental e psicologia; um número representativo de conferências e entrevistas, concedidas ao longo de sua trajetória, reunidas nos cinco volumes de Ditos & escritos pela Forense Universitária; A verdade e as formas jurídicas, conjunto de conferências proferidas na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em maio de 1973; a coletânea de artigos e palestras, publicada no início dos anos 1980, pela Editora Graal, sob o título de Microfísica do poder (versão ampliada da edição original italiana); a publicação da sua aula inaugural, no Collège de France, intitulada Ordem do discurso. Além do Resumo dos cursos do collège de France, adicionamos também três versões integrais dos referidos cursos, publicados pela Martins Fontes, sob os títulos Em defesa da sociedade, Os anormais e A hermenêutica do sujeito.

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esquerda que no pós-1968 passa a descrer do socialismo, mas se põe numa postura rebelde e transgressora do sistema. O acerto da prospecção contida em O estruturalismo e a miséria da razão não é exercício de futurologia, nem tampouco produto do acaso. Resulta antes da incorporação consequente e rigorosamente ontológica do legado de Marx que Carlos Nelson Coutinho, como o “primeiro lukacsiano brasileiro” (Konder, 1991, p. 118), inicia de forma pioneira. O trabalho intenso e militante de divulgação da filosofia do pensador húngaro no Brasil, empreendido junto a outros, alguns mais jovens2, lhe rendeu a condição de já ter acumulado nos anos 1960 a apreensão do que existia de mais substancial do último Lukács, daquela produção que a partir dos anos 1930 é marcada por uma explícita ênfase ontológica (Netto, 2002). O vigor d’O estruturalismo e a miséria da razão advém, portanto, da filiação do seu autor a Lukács, porém – como faz notar Netto (2010, p. 243) – de uma filiação originalíssima, axiomática quando se leva em conta a categoria miséria da razão, criação pessoal de Coutinho elaborada para tratar daquela racionalidade formalista, empobrecida, aferrada à imediaticidade, típica das correntes positivistas e neopositivistas, e que somente receberá a atenção devida do comunista húngaro na obra conclusiva do seu itinerário – a Ontologia, publicada integralmente em edição italiana tempos depois, entre 1976-1981. A criatividade se revela ainda nas conexões que o autor de O estruturalismo e a miséria da razão estabelece entre essa racionalidade miserável e as correntes filosóficas conexas com o que Lukács denominou de destruição da razão – elucidadas através do agnos Dentre eles Leandro Konder, José Chasin, J. Carlos Bruni, José Paulo Netto, Gilvan Procópio Ribeiro e Luiz Sérgio Henriques. Junto de Coutinho, esses camaradas integraram uma “geração de ouro” que, enxergando em Lukács uma via fecunda de contraposição à dogmática stalinista e de resgate da riqueza do legado marxiano, se empenhou em divulgar a sua obra no país (Frederico, 2007).

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ticismo – e, ainda, com o caráter manipulatório do capitalismo, característica própria do capitalismo em sua fase tardia, ressaltada por Lukács em textos e entrevistas, escritos e concedidas, na fase da elaboração da sua obra maior. E são esses três elementos – miséria da razão, agnosticismo e sistema manipulatório do capitalismo tardio – que, como veremos a seguir, permitem atualizar a crítica de Carlos Nelson Coutinho às produções foucaultianas dos anos 1970 e 1980. A exacerbação da razão miserável em Foucault

O estruturalismo e a miséria da razão caracteriza corretamente o estruturalismo foucaultiano como uma versão mais radical da razão miserável, acentuadamente agnóstica, que, identificando ainda mais a razão com as regras intelectivas, permitiu a Foucault levar a cabo o projeto político de seu visceral anti-humanismo: a afirmação do homem num puro objeto manipulado. Embora se limite à análise daquelas produções foucaultianas restritas a sua fase arqueológica, Coutinho (2010) acerta no essencial da crítica rigorosamente marxista a essa versão radicalizada da miséria da razão. E mais: tal crítica é duplamente importante. Ela se mostra inteiramente compatível com a evolução posterior de Foucault, porque em todas as suas fases – a estruturalista, a pós-estruturalista e uma última, próxima à sua morte – o filósofo francês permaneceu fiel à racionalidade miserável e ao seu projeto anti-humanista. E também porque foi essa hipertrofia da intelecção e do agnosticismo que permitiu a Foucault erigir um novo irracionalismo que encarna aspirações progressistas e de esquerda. Inspirados nesses acertos é que nos propomos demonstrar, no espaço que aqui nos cabe, o quanto esse projeto foucaultiano condensando, ao mesmo tempo, aspectos do irracionalismo moderno, orientação filosófica que Lukács (1968) designou de “des-

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truição da razão”, com uma forte dose de uma racionalidade miserável, de tipo estruturalista, pôde celebrar o irracional por meio de uma desconstrução racionalista formal da ratio moderna. Entretanto, antes disso, julgamos ser necessária uma breve digressão sobre a produção foucaultiana tomada em sua totalidade, o que permite não só evidenciar os nexos que ligam as suas publicações juvenis às do último Foucault; possibilita, ainda, especialmente, apresentá-lo como um pensador coerente que erigiu um projeto teórico-político irracionalista e transgressivo que pode ser lido como atualização do legado de Nietzsche. Projeto cujo objetivo foi o de justamente inserir no seio da esquerda, da sua teoria e prática, o irracionalismo e a transgressão. Para além da fase arqueológica, que se restringe a publicações dos anos 1960, nas quais o filósofo francês professava abertamente sua adesão ao estruturalismo – tal como em sua História da loucura (1961), As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969) –, estudiosos de Foucault (Portocarrero & Castello, 2000; Ortega, 1999) indicam a existência de duas outras3: a genea­lógica condizente com a constituição de uma concepção positiva do poder, período da elaboração de Vigiar e punir (1975) e sua História da sexualidade I (1978); e a da ética correspondente à edição da História da sexualidade II e III (ambas em 1984), quando Foucault parece afastar-se ainda mais de sua produção primeira, ao sugerir a retomada do sujeito e a busca da construção de uma estilística da existência4. Tal periodização dista daquelas análises da obra foucaultiana que sinalizam apenas a existência de duas fases (Ferry & Renaut, 1988; Dosse, 1993 e 1994; Lash, 1997; Merquior, 1985; e Rabinow & Dreyffus, 1995): a arqueológica ou estruturalista, preponderantes nas publicações datadas até final dos anos 1960, e a genealógica ou pós-estruturalista, referentes aos livros e textos elaborados dos anos 1970 em diante. 4 A este terceiro Foucault, tais analistas aduzem também as publicações relativas às aulas ministradas no Collège de France e os textos e entrevistas consumados no período 3

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Na contramão da tendência preponderante de acentuar os cortes e as mutações operadas na produção foucaultiana, autonomizando cada uma de suas fases e sustentando, assim, a existência de múltiplos Foucault, preferimos considerar o filósofo francês como um pensador sistemático e coerente. Longe de qualquer arbítrio, tal preferência se assenta em duas certezas principais. A primeira é que, por trás das sucessivas mutações de campos, temas de pesquisa e formas de abordagens, há uma espécie de fio condutor que liga toda a sua produção. A existência desse fio fica patente quando consideramos as diversas ocasiões nas quais o filósofo francês traça um balanço de sua obra, especialmente em suas entrevistas, quando seus depoimentos deixam entrever, por trás das sucessivas variações de campos e temas de pesquisas e dos diversos giros, empreendidos no curso de sua trajetória investigativa, a permanência de uma inquietude: a relação entre o saber, o poder e a genealogia do sujeito moderno. Um cotejamento entre o que Foucault sustenta nas suas entrevistas – grande parte delas reunidas em Ditos & escritos – e as teses centrais de seus livros pode comprovar que este fio condutor não deriva de nenhuma intenção de deturpar a nosso favor o que disse o filósofo francês acerca de si mesmo, nem tampouco de aprisionar seu pensamento num esquematismo absurdo e simplista. No período arqueológico – destinado a pesquisa dos solos epistemológicos, dos a priori das formações discursivas –, Foucault pretendia analisar as possibilidades nas quais um certo saber (sobre a loucura, a doença ou o homem) pôde emergir como dominante. Seu intuito era desvelar de que modo as formações discursivas repercutem em práticas sociais de dominação. Ao se próximo a seu falecimento, quando a Aids interrompeu a tentativa da constituição de uma estética da existência por meio da amizade. Parte deste material pode ser encontrada nos diversos volumes de Ditos & escritos, recentemente vertidos para o português pela Forense Universitária.

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concentrar na investigação do poder – dos seus modos de funcionamento e suas relações de força –, em sua genealogia, Foucault não descartou sua preocupação com o saber. Nesta fase, sua intenção é compreender de que forma o poder domestica os corpos e constrói um saber sobre os indivíduos. Nesse momento, práticas de poder e produção do saber estão organicamente vinculadas. A mesma advertência pode ser feita quanto ao último período da produção foucaultiana. Quando se volta para a questão da ética, o que ambiciona o filósofo francês é a investigação acerca do “governo de si” enquanto uma arte de viver que possa apresentar uma forma alternativa de construção de si. É aí que, em íntima relação com a questão do poder e com a produção do saber ou da verdade, emergem os temas do “cuidado” e do “domínio de si”. A segunda certeza é que, longe de corresponder à negação de um programa filosófico coerente e sistemático, as mutações foucaultianas deixam entrever o esforço do autor em elaborar um projeto teórico-político que, ambicionando atualizar o legado de Nietzsche, busca inserir no seio da esquerda, da sua teoria e práxis, o irracionalismo e a transgressão. Considerando os principais momentos da trajetória intelectual e política do filósofo francês e os dilemas vividos por sua geração, podemos situar Michel Foucault como um intelectual e um militante de esquerda; porém, de uma esquerda muito singular. A posição política com a qual o filósofo francês se vincula, íntima e ativamente, contém duas peculiaridades, se comparada ao mundo das ideias e da práxis claramente identificado como de esquerda, ao longo de todo o século XIX e grande parte do século XX: o irracionalismo e a ênfase na transgressão. Foucault, ao longo de seu trajeto, muda para continuar a ser o mesmo. Cada fase de sua biografia revela um movimento duplo: por um lado, a tentativa de acompanhar as alterações processadas na cultura e na política e, por outro, a busca interna da coerência

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intelectual, do aparar de arestas, do preenchimento de lacunas. Foi assim na passagem dos anos 1960 para os 1970, quando introduziu a questão do poder e se engajou nas lutas políticas abertas no roldão de Maio de 68. O mesmo movimento ocorreu na última fase da vida e da obra de Foucault entre os anos 1970 e 1980. Todas as inflexões do último Foucault se concentram na recuperação da importância do sujeito. O retorno deste recalcado, que o estruturalismo foucaultiano ajudara a matar em 1966, tem um duplo selo: o das mutações históricas e o das alterações operadas na vida do filósofo. O sujeito retorna, por um lado, como resposta às críticas das insuficiências das análises foucaultianas sobre o poder e, por outro, como expressão da derrota do comunismo, da perda das oportunidades em reformá-lo e do início da hegemonia neoliberal. Ademais, pistas que podem elucidar os nexos entre o primeiro Foucault, claramente estruturalista, aquele arqueológico, que, em As palavras e as coisas (1966), professa abertamente a morte do homem, e o da última fase, que se propõe recuperar o sujeito, com uma clara preocupação ética, podem ser encontradas tanto em Ferry & Renaut (1988) quanto em Dosse (1994), autores que, a partir de espectros teóricos e políticos bastante distintos, se debruçaram sobre a evolução da produção filosófica francesa após o declínio da hegemonia estruturalista, nos anos pós-1970. Ao analisar o anti-humanismo francês das décadas de 1960 e 1970, oriundo de démarches filosóficas diversas – tanto aquele de inspiração nietzscheana/heideggeriana, que se processa não só em Foucault, mas também em Derrida, Deleuze e Lacan, quanto o estrutural marxista, representado por Althusser e Bourdieu –, Ferry & Renaut (1988) demonstram o quanto a “morte do sujeito” anunciada por esta geração favoreceu, ao contrário do que podia parecer, o advento do individualismo. O nexo entre o anti-humanismo dos filósofos franceses dos anos 1960 – que os autores supracitados denominam “sixties” – e o

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individualismo que emerge com toda força nos anos 1980 se deve, em grande parte, à particularidade desse primeiro elemento. Não é em nome da barbárie ou da preservação da opressão de classe que os “sixties” combateram o humanismo; ao contrário, identificando o humanismo como causa da opressão, da violência e selvageria, os estruturalistas franceses puderam inscrever, pela primeira vez em toda a história da filosofia, o anti-humanismo no campo das preo­ cupações progressistas e libertárias. Foi por meio desta manobra espetacular que eles conseguiram apresentar a dissolução das promessas da modernidade como uma perspectiva radicalmente emancipatória. E é isto que explica por que os “sixties”, não pretendendo apresentar um humanismo superior ao que encontraram – mas abandonar o sujeito moderno –, tiveram tanta acolhida em meio aos movimentos/organizações de esquerda surgidos/redimensionados após a débâcle das expectativas revolucionárias que povoaram o final da década de 1960 e início dos anos 1970 e hegemonizaram a cena política quando, logo após o fim da experiência socialista, o domínio do capital parece ter se tornado absoluto e intransponível. Argumentos semelhantes podem ser encontrados em Dosse (1994), que demonstra como o retorno do sujeito em meados dos anos 1970, sobretudo entre os novos filósofos – cujas perspectivas estruturalistas podem ser consideradas como abertas ou pós-estruturalistas (são os casos do próprio Foucault, de Derrida, de Deleuze e de Barthes) –, não significou um resgate do humanismo. Este ente recalcado pelo anti-humanismo estruturalista – que regressa não só em Foucault, mas também no biografema de Roland Barthes, numa nova geração de docentes de sociologia recém-ingressa na universidade francesa e convertida a um esquerdismo contracultural e, ainda, entre os etnólogos, através da etnometodologia e do etnorromance, não indica qualquer ruptura com o anti-humanismo. Calcado em Nietzsche, destruindo a ideia de uma universalidade da verdade e considerando a razão moderna como um obstáculo, o re-

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torno ao sujeito do pós-estruturalismo é, antes de tudo, um culto ao indivíduo, cujo triunfo se localiza de forma clara, nos anos de 1980, no pensamento pós-moderno que se deleita no efêmero e na concepção do indivíduo como uma mônada social. O mesmo ocorre com a ética, que, diferente daquela que prevalecia no período anterior ao domínio do pensamento estruturalista, volta à cena como uma ética de si mesmo, sem ego, sem sujeito, desembaraçada de qualquer perspectiva humanista (Dosse, 1994, p. 315). Um balanço da trajetória intelectual e política do filósofo francês permite evidenciar três momentos significativos. O momento de sua juventude, no início dos anos 1960, quando Foucault empreende uma dupla subversão: por um lado, depurar o reacionarismo teórico-político do pensamento nietzscheano e, por outro, derruir a crítica racional e humanista que tem sua base na concepção materialista da história, ou seja, o legado progressista do pensamento filosófico do século XIX. O segundo momento, no período pós-1968, quando o filósofo, tornando-se um intelectual militante, se esforça em construir uma proposição política transgressiva compatível com os anseios de uma esquerda que refuta tanto a via social-democrata quanto a via revolucionária socialista. Na sua última fase, interrompida por uma morte prematura, o filósofo francês, buscando resolver as antinomias decorrentes da combinação de uma ética de esquerda com uma epistemologia de direita, aproxima-se ainda mais de Nietzsche e envereda pelo curso de uma estetização da política que deixa em aberto o sentido aristocrático do seu projeto. A chave para elucidar o mistério dessa vertente foucaultiana da razão miserável, ou, em outros termos, de como Foucault pôde se apresentar simultaneamente como um pensador racional e irracionalista, reside no agnosticismo, ponte entre a “miséria da razão” e a “destruição da razão” e que acaba por torná-las complementares (Coutinho, 2010, p. 17).

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O estruturalismo e a miséria da razão demonstra, com precisão, que o irracionalismo e o racionalismo formal, visivelmente opostos do ponto de vista filosófico, têm uma atitude similar em face do problema da razão. Ambos negam que a totalidade do real possa ser objeto de uma apreensão racional e, operando com um conceito limitado da razão – reduzindo-a à mera intelecção, a um conjunto de regras formais subjetivas –, declaram como incognoscíveis ou como falsos problemas esferas fundamentais da vida, tornando, assim, irracionais todos os momentos significativos da vida social. Irracionalismo e racionalismo formal correspondem, portanto, a variações de um pensamento fetichizado, isto é, um pensamento que, incapaz de apreender a totalidade concreta, preso à imediaticidade dos fatos, se fixa no dilaceramento histórico da vida social provocado pela alienação capitalista. Sua cisão em duas orientações filosóficas aparentemente antagônicas lembra as duas cabeças de Janus, mas a bipartição das faces não anula a unidade do corpo: tanto a perspectiva da destruição quanto a da miséria da razão podem ser tomadas como posições teórico-ideológicas conservadoras. Como variantes de uma “filosofia da decadência”, ambas operam um abandono mais ou menos integral das conquistas filosóficas empreendidas por um pensamento burguês revolucionário5 que, indo dos renascentistas a Hegel, orientava-se no sentido da elaboração de uma racionalidade humanista e dialética6. Como Lukács (1968), Coutinho (2010) demonstra que, anteriormente à conquista de sua hegemonia política e econômica, a burguesia era uma classe revolucionária. Nesse período, os seus ideólogos, em face do obscurantismo feudal, conseguiram formular uma racionalidade progressista. Ao tornar-se classe dominante, a burguesia transforma essa racionalidade revolucionária numa racionalidade limitada e conservadora. O positivismo foi a expressão direta dessa virada filosófica. 6 Foi Hegel que, embora numa perspectiva idealista, teve o mérito de sintetizar os aspectos revolucionários dessa tradição filosófica, desenvolvendo uma teoria humanista, que afirma o homem como um produto de sua atividade histórica e coletiva, e a tese racionalista de que a autoprodução humana é um processo submetido a leis objetivas 5

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Essa duplicidade de orientações aparece mais claramente no período de suas elaborações iniciais, logo após a deflagração da Revolução Francesa, quando emergem o anticapitalismo romântico e a apologia vulgar do progresso capitalista (Coutinho, 2010, p. 44-59): enquanto a primeira somente enxergava nas formas econômicas a causa de uma ameaça mortal para a subjetividade espiritual do homem, a segunda, negando a contraditoriedade objetiva da economia capitalista, afirmava sua tendência ao equilíbrio e ao progresso linear. Todas as filosofias ligadas à “destruição da razão” – do irracionalismo de Kierkegaard à do primeiro Sartre – podem ser concebidas como manifestações do anticapitalismo romântico. Todas, ao mesmo tempo em que denunciavam a realidade social, considerada como fonte de desumanização e de dissolução da subjetividade, rejeitavam a razão por confundi-la com as regras intelectivas formais predominantes nas práxis técnica e burocrática.7 e dialéticas. A contribuição hegeliana pode ser sintetizada em três núcleos categoriais: “o humanismo, a teoria de que o homem é um produto de sua própria atividade, de sua história coletiva; o historicismo concreto, ou seja, a afirmação do caráter ontologicamente histórico da realidade, com a consequente defesa do progresso e do melhoramento da espécie humana; e, finalmente, a razão dialética, em seu duplo aspecto, isto é, o de uma racionalidade objetiva imanente ao desenvolvimento da realidade (que se apresenta sob a forma de unidade de contrários) e aquele das categorias capazes de apreender subjetivamente essa racionalidade objetiva, categorias estas que englobam, superando, as provenientes do ‘saber imediato’ (intuição) e do ‘entendimento’ (intelecto analítico).” (Coutinho, 2010, p. 27-28). Em linhas gerais, para os pensadores pertencentes a essa tradição filosófica progressista, a razão não se limitava à classificação do existente. Ao contrário, tendo o poder de apreender o mundo em seu permanente devenir, permitia compreender o real como uma totalidade concreta em constante mutação, como síntese de possibilidade e realidade (Ibid.). 7 Há, nos filósofos que compõem a corrente da destruição da razão, um clamor pelo combate à burocratização da vida social em nome de uma subjetividade e de valores autênticos. O problema é que a subjetividade reclamada por esta corrente filosófica como única fonte de valores autênticos é uma subjetividade inteiramente vazia, desprovida de qualquer fundamento racional objetivo, de qualquer relação ética com

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Essa visão limitada da razão esteve presente também naquelas orientações filosóficas vinculadas à “miséria da razão”. Todavia, sua base de argumentação corresponde à apologia vulgar do capitalismo. Afastando de suas preocupações qualquer referência à objetividade das contradições do capitalismo e transformando a filosofia em pura epistemologia, tal perspectiva filosófica não apenas limita a validade da razão àqueles domínios do real que podem ser homogeneizados, formalizados e manipulados, como também condena como irracionais e incognoscíveis todos os momentos ontológicos da realidade.8 Por essa via, a razão deixa de ser a imagem da legalidade objetiva da totalidade do real para ser reduzida a regras formais que manipulam arbitrariamente dados extraídos da objetividade, a um tipo de racionalidade que desempenha um papel destacado na dominação da natureza9. Essa versão empobrecida da razão tem como primeiro representante consciente Augusto Comte, cuja indicação metodológica postula o abandono do exame da gênese dos fenômenos sociais valores objetivos. Ao condenar o mundo cotidiano e todas as possibilidades de uma vida vivida na realidade objetiva como inautênticos, a destruição da razão converte a subjetividade em mera negação abstrata do real, no desprezo de todas as mediações sociais concretas (Coutinho, 2010, p. 46-50). 8 Diferente do racionalismo da época clássica, que buscava conquistar terrenos cada vez mais amplos para e através da razão, o racionalismo próprio desta orientação filosófica ocupou-se apenas em estabelecer limites para o conhecimento. 9 O estruturalismo e a miséria da razão não segue o caminho fácil da condenação tout court da manipulação. Em todas as atividades que proponham um domínio imediato da natureza, a práxis manipulatória revela-se eficaz e progressista. Ela, no entanto, se converte em limite real, em obstáculo à verdadeira realização humana, quando se torna o tipo dominante da práxis humana. Neste caso, a manipulação não somente impede uma apreensão rica da objetividade, mas também uma correta consciência do significado humano e social da práxis. A generalização da manipulação como forma dominante do relacionamento social – tanto entre os homens como destes e as coisas – é uma tendência espontânea do sistema capitalista reforçada em sua fase tardia, quando o consumo é invadido pela lógica da produção do capital (Coutinho, 2010, p. 93-94).

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em troca da ênfase na descrição de suas leis invariáveis de manifestação, isto é, a metodologia positivista substitui a pesquisa da essência ontológica do real pela reprodução imediata e aparente do objeto. Tal princípio também comparece no estruturalismo, versão moderna da “miséria da razão”. Como o positivismo, o estruturalismo toma a história como algo superficial e irracional. Mas não é somente a gênese histórica que as diferentes versões da racionalidade miserável vedam à razão; também a finalidade social dos atos humanos vai sendo progressivamente afastada do domínio da racionalidade. Dürkheim, ao tratar os fenômenos sociais como “coisas”, tal como o faz a burocracia, despoja-os daquilo que lhes confere especificidade: o momento criador da práxis, a teleologia como forma de causalidade superior. Ao sustentar que o fim último das ciências sociais é dissolver o homem, o estruturalismo, como versão moderna da miséria da razão, leva mais longe esse agnosticismo. Ao considerar o projeto teórico foucaultiano em sua totalidade, é razoável dizer que a radicalização do agnosticismo e do anti-humanismo permitiu a Foucault operar uma junção entre as correntes da “destruição da razão” e da “miséria da razão”. Usando a mesma metáfora de Coutinho (2010), pode-se dizer, então, que o pensador francês, operando com um conhecimento extremamente fetichizado do real, pretendeu comportar em seu corpo filosófico as duas cabeças de Janus. Esta junção só fora possível pela exacerbação daquilo que liga as duas variantes da filosofia decadente: o agnosticismo, que a obra foucaultiana eleva à quinta potência. Foi dessa forma que Foucault pôde apresentar-se – e ser acolhido por toda uma geração – como o portador de uma nova filosofia, uma filosofia que, parecendo romper com os estreitos limites do saber moderno, oferece fartos argumentos pós-modernos. Assim sendo, Foucault pode ser compreendido tanto como um pensador ligado à “destruição da razão” quanto um filóso-

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fo vinculado à “miséria da razão”. Aprofundando a identificação reducionista da razão ao intelecto, a obra foucaultiana, por meio de uma forma sui generis, pela via da racionalidade miserável, deu continuidade à perspectiva da “destruição da razão”. A singularidade de Foucault frente aos demais filósofos irracionalistas, adeptos da “destruição da razão”, reside, sobretudo, no fato de sua contraposição à razão não conter qualquer apelo à restituição de uma subjetividade autêntica; simplesmente porque, para ele, que era um confesso neonietzscheano, o homem não devia ser o fundamento de nada, o homem devia morrer. Para tanto, Foucault teve que banir das versões irracionalistas que compuseram o legado da “destruição da razão” as noções da “essência do ser”, do “tempo vivido”, de um “sujeito autêntico” – noções que, aludindo a um humanismo, ainda que abstrato e a-histórico, reclamavam por uma verdade profunda do homem. Diferente dos demais pensadores que compõem a “destruição da razão”, Foucault não denuncia a realidade social como fonte de desumanização ou de dissolução da subjetividade; o que ele considera inautêntico é a construção da noção do homem, é o próprio humanismo. É curioso notar como Foucault inverte aquilo que o irracionalismo no período imperialista clássico valorizou. Lukács (1968, p. 155-156) demonstra como o irracionalismo moderno representado pela “filosofia da vida” ressaltou o tempo – princípio de vida – em detrimento do espaço – princípio do que não vive, do morto. Ao contrário, a filosofia foucaultiana privilegiou o espaço, quer nos anos 1960, através da relevância concedida às estruturas epistêmicas, ou na década seguinte, quando constitui uma concepção panóptica do poder. A razão desta inversão é muito clara. Ao tomar o espaço nos mesmos termos postos pelo irracionalismo que o antecedeu, Foucault, coerente com seu anti-humanismo, buscava expurgar da vertente filosófica irracionalista toda e qualquer forma de transcendência, o que em A arqueologia do saber (1969) apresen-

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tou como a tarefa de “libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental” (Foucault, 2002a, p. 230)10. Todavia, com esse irracionalismo Foucault manteve uma afinidade essencial. Tal como a perspectiva da “destruição da razão”, o pensamento foucaultiano mostrou um enorme desprezo pelas mediações sociais. Mesmo não sendo um defensor da subjetividade, o filósofo francês rejeitava o mundo da comunidade social, da vida vivida na objetividade. Foi esse ódio às mediações sociais que permitiu a Foucault retomar o sujeito em suas últimas produções. Coerente com sua fase arqueológica, a terceira fase da produção foucaultiana continua a repudiar o indivíduo social. O que o último Foucault restitui é o indivíduo como mestre de si mesmo. Numa espécie de ateísmo religioso, próprio das correntes que compõem a “destruição da razão”, sua concepção de mundo alude a uma vida religiosa na qual o indivíduo é divindade de si mesmo. Já em face dos pensadores vinculados à “miséria da razão”, a excepcionalidade de Foucault diz respeito à amplitude e ao grau de seu agnosticismo. Semelhante aos autores que compuseram a vertente da “miséria da razão”, a obra foucaultiana opera com uma racionalidade reduzida a regras formais típicas de uma racionalidade burocrática capitalista. Entretanto, se os demais racionalistas miseráveis preocupavam-se em reservar algum grau de validade ao conhecimento científico e racional – mesmo que ao preço do afastamento do domínio da razão de todos aqueles conteúdos afetos à ontologia do ser social –, Foucault, estendendo ao máximo a racionalidade formal manipulatória, obstinava-se em fundar a total O privilégio do espaço em detrimento do tempo foi explicitamente defendido por Foucault em Outros espaços. Neste texto, de 1967, o filósofo francês sustenta, inclusive, que “talvez se [possa] dizer que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desencadeiam entre os piedosos descendentes do tempo e os habitantes encarniçados do espaço” (Foucault, 2001a: 411 – grifos nossos).

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impossibilidade de um conhecimento racional sobre o real. Não há no pensamento foucaultiano qualquer reivindicação por racionalidades parciais, ou por esferas limitadas de cientificidade. Ao contrário, o que seu projeto filosófico pretendeu sistematicamente colocar em xeque foi a faculdade humana de conhecer o real em sua objetividade. Coutinho (2010) demonstra como sua concepção de epistémê, funcionando como uma espécie de estrutura transcendente, toma o lugar dos sujeitos históricos concretos. Mais tarde, em sua fase genealógica, quando Foucault formula a hipótese de um biopoder11, o filósofo francês nos fornece uma versão diferenciada da mesma perspectiva manipulatória que formulara outrora12. A despeito de seu esforço em oferecer em suas análises alternativas de resistência à dominação, sua concepção pancrática do poder, que tudo envolve e domina, revela-se como algo tão tenebroso e monolítico quanto aquele descrito em sua fase arqueológica, sobretudo porque sua genealogia sustenta uma concepção de um poder transcendente sem sujeito.13 Sobre o biopoder, conferir a análise meticulosa da genealogia foucaultiana feita por Rabinow & Dreyfuss (1995, p. 113-227). 12 É na fase de sua genealogia que, priorizando a análise das tecnologias disciplinares do mundo moderno, Foucault enfatiza a existência de um poder, imanente à vontade de verdade, que tudo manipula. A despeito de sua intenção em fornecer alternativas políticas que pudessem afastá-lo da perspectiva niilista da sua produção arqueológica, o filósofo francês aprofundou ainda mais a concepção de um mundo manipulado e tenebroso. Tanto é assim que em Vigiar e punir (1975) e História da sexualidade I (1977) Foucault mostra que o sujeito que fala, pensa e age é puro produto de um jogo de poder. 13 Tal concepção de poder que Foucault quis conscientemente alargar e tornar positiva e produtiva, em contraposição a uma concepção meramente restritiva, negativa e proibitiva, não tem qualquer ponto de apoio em sujeitos concretos, em relações objetivas entre classes ou entre Estado e sociedade civil. Para o filósofo francês, o poder deve ser compreendido “como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização, o jogo que, através de 11

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Se o estruturalismo, em face das versões anteriores da “miséria da razão”, teve a faculdade de juntar à miséria da metodologia a miséria do objeto (Coutinho, 2010, p. 80), a obra foucaultiana, esgarçando ao máximo essa orientação filosófica, se propôs a dissolver o objeto da filosofia. Tal dissolução em Foucault se deu por meio de uma radicalização extremada do epistemologismo do estruturalismo. Ao conceber a realidade social como um conjunto de sistemas simbólicos, ou de formas de comunicação, e a linguística como a ciência básica capaz de esclarecer o modo de ser da realidade social, os estruturalistas transportaram o debate filosófico do plano da ontologia para o da epistemologia. Em vez de enfatizarem uma análise do objeto, se concentraram na descrição formal dos processos racionais. Como os demais pensadores da “miséria da razão”, Foucault substitui a ontologia pela epistemologia. Porém, numa perspectiva ainda mais agnóstica, busca empreender uma epistemologia da epistemologia, ou seja, seu projeto teórico não se propõe a uma análise formal dos limites do conhecimento, mas a uma crítica das condições do conhecimento14 que acaba dissolvendo todos os nexos com a realidade objetiva. lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte” (Foucault, 2003a, p. 88). O ponto de vista que permite tornar inteligível seu exercício não deve se ater “na existência de um ponto central, num foco único de soberania”, seu suporte é móvel e instável. 14 As condições de conhecimento que Foucault obstinou-se ao longo de sua trajetória em desvelar não têm qualquer fundamentação objetiva, seu fundamento é pura epistemologia, como ilustra a introdução de As palavras e as coisas: “Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade” (Foucault, 2000b, p. XVIII-XIX).

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Em As palavras e as coisas (1966), o pensador francês não só saúda a linguística como uma perspectiva filosófica sem sujeito; há também, nas críticas dirigidas contra as epistémês clássica e moderna, uma tentativa de resgatar a importância da linguagem como uma forma de ser primitivo e místico que se expressava livremente no Renascimento; há no pensamento foucaultiano a ambição de fundar em bases essencialmente epistemológicas uma “ontologia do ser da linguagem” (Machado, 2001)15. Por meio da hipertrofia do epistemologismo estruturalista, Foucault desenvolve aquilo que será mais tarde a base da cultura pós-moderna. Preso a um mundo simbólico autorreferente, a um jogo de espelhos no qual a razão miserável se torna a medida de tudo, o pensamento foucaultiano anula a realidade e funda aquilo Em sua fase genealógica, quando se volta para a discussão do poder e das práticas disciplinares, o filósofo francês permanece fiel ao privilégio da epistemologia. Em História da sexualidade I, as condições do surgimento das práticas disciplinares que incidem sobre o sexo são localizadas numa relação imanente com uma vontade de saber: “o postulado inicial que gostaria de sustentar o mais longamente possível é que esses dispositivos de poder e de saber, de verdade e de prazeres, esses dispositivos tão diferentes da repressão, não são forçosamente secundários e derivados (...) Trata-se, portanto, de levar a sério esses dispositivos e de inverter a direção da análise: em vez de partir de uma repressão geralmente aceita e de uma ignorância avaliada de acordo com o que supomos saber, é necessário considerar esses mecanismos positivos, produtores de saber, multiplicadores de discursos, indutores de prazer e geradores de poder. (…). Em suma, trata-se de definir as estratégias de poder imanentes a essa vontade de saber. E, no caso específico da sexualidade, construir a ‘economia política’ de uma vontade de saber” (Foucault, 2003a, p. 71). 15 Mesmo depois de Vigiar e punir (1975), quando Foucault parece ter abandonado a preocupação com a construção de uma “ontologia do ser da linguagem”, o sujeito continua a ser concebido como uma demiurgia do saber. Na sua fase genealógica, o sujeito é concebido como produto de um poder imanente a uma vontade de verdade. Cf., em especial, o papel que História da sexualidade I (1977) credita à confissão na formação do sujeito moderno; e o papel de uma determinada verdade na constituição do sujeito temperante e de uma estética da existência em História da sexualidade III (1984).

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que sustentará a principal premissa pós-moderna: a de que a verdade ou a objetividade científicas são apenas produtos virtuais do saber. Pela via de um acentuado agnosticismo, o sistema foucaultiano joga a razão num jogo de espelhos, isto é, tomando “a razão instrumental como o único padrão de racionalidade possível e existente na sociedade capitalista” (Guerra, 1993, p. 107), ele confronta a racionalidade miserável consigo mesma e, assim, elide a possibilidade de, pela verdade e validade científicas, retratarmos a objetividade do real. É interessante notar a semelhança deste jogo de espelhos com a definição da cultura pós-moderna feita por Harvey (1996, p. 291-396), para quem a cultura pós-moderna, imersa no fetiche do capital, pode ser compreendida como o “espelho dos espelhos”, isto é, como cultura que, abandonando os fundamentos materiais e político-econômicos do real, considera, equivocadamente, as práticas políticas e culturais como algo autônomo e autorreferente. Foucault e o mundo manipulado da sociedade tardoburguesa

A evolução teórica do niilista de cátedra ulterior à década de 1970 não é a única prova do vigor d’O estruturalismo e a miséria da razão; a história, a sucessão dos fatos econômicos, políticos e sociais posteriores à obra de Carlos Nelson Coutinho (publicada em 1972), consumando os condicionantes sócio-históricos capazes de converter Foucault em profeta da barbárie, de um mundo inteiramente manipulado, atestam o acerto da previsão de Coutinho.16

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Não devemos nos esquecer de que, no decurso dessas quatro décadas, a dissolução da URSS deixou frustrada a expectativa de renovação do “socialismo real”.

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Ainda que movimentos identificados, integral ou parcialmente, com ideias fascistas tenham resurgido com força nos últimos 40 anos, a barbárie da qual Foucault se constitui como profeta não corresponde de modo algum à tese de que estaríamos assistindo, na contemporaneidade, a uma reedição do fenômeno do fascismo tal qual o ocorrido no entreguerras. Ademais, há que se considerar, ainda, que a base de sustentação do sentimento de segurança, da ideologia de um mundo inteiramente manipulado, sofreu um duro golpe quando, na segunda metade dos anos 1970, se esgotou a longa onda expansiva da dinâmica do capital. Não à toa é a sociedade do risco que, como ideia-força, domina as elaborações teóricas contemporâneas desde confessos apologetas do sistema até os pós-modernos de esquerda, que, como Boaventura de Sousa Santos, dedicam grande parte de sua energia à construção de um outro mundo. A barbárie que o sistema teórico foucaultiano anuncia tem estreita vinculação com a face regressiva da ordem burguesa tornada visível na primeira década do século XXI, quer consideremos a gravidade da devastação ecológica ou o trato assistencial-penal dispensado à massa de excedentários aos interesses imediatos do capital. Tal face é o resultado mais evidente do esgotamento das potencialidades civilizatórias do modo de produção capitalista, decorrente da sua natureza destrutiva, como destacado por Mészáros (2002). Além disso, ao elevar a um patamar sem igual o processo de concentração e centralização do capital, ao acentuar, ainda mais, a penetração da organização capitalista em todos os espaços de existência dos indivíduos sociais e ao exacerbar, como corolário de tudo isso, a reificação das relações sociais, a fase atual do capitalismo, aberta desde o último terço do século XX como terceira fase da etapa imperialista (Netto & Braz, 2010), só confirma a vitalidade da tese lukacsiana acerca da constituição de um sistema de

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manipulação como característica inédita e central do capitalismo tardio. Segundo Lukács, em sua busca para evitar as crises e assegurar a dominação dos monopólios, o capitalismo tardio tendeu a racionalizar – submeter a regras do cálculo racional-formal – o setor de consumo, erigindo um sistema vasto e diversificado de manipulação da vida dos indivíduos que, generalizando-se para além da economia, abarcando as esferas da cultura, da ideologia e da política, teria no neopositivismo sua expressão teórica (Coutinho, 1996, p. 17) Ora, é justamente essa tese, cujas indicações esparsas foram recolhidas por Coutinho de textos e entrevistas de Lukács dos anos 1960, a base da engenhosa análise genético-histórica do estruturalismo presente em O estruturalismo e a miséria da razão. É ela também que pode nutrir a apreensão dos nexos entre o pensamento pós-moderno e suas conexões com a realidade sócio-histórica e demonstrar como o inteiro Foucault, atuando na fronteira entre a miséria e a destruição da razão, ou, ainda, entre o sentimento de segurança e de angústia, foi um precursor da cultura regressiva da sociedade tardo-burguesa. É como profeta desse mundo, ou, em outros termos, como sintoma da sociedade tardo-burguesa que Foucault deve ser lido. O que equivale dizer que os problemas que se pôs não são meramente especulativos. Ao contrário, refletindo necessidades e sofrimentos reais, são legítimos do ponto de vista objetivo; porém, as respostas que formula refletem a realidade deformando-a e distorcendo-a. O sistema filosófico foucaultiano tem estreita relação com a inteira absorção do consumo pelo processo capitalista na segunda metade do século XX, quando a manipulação domina todas as expressões da vida social. Ao captar os riscos deste momento, sua obra expressa uma reação à progressiva desumanização manipulatória da vida no capitalismo tardio, mas representa também a sua

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mais plena incorporação, a transformação deste processo real, histórico e mutável em algo intransponível e ontológico (Coutinho, 2010, p. 168-169). Reduzindo a razão à intelecção ou entendimento e, portanto, deixando de fora a razão dialética, o sistema filosófico foucaultiano se aferra a uma modalidade operativa racional essencialmente limitada, cujos procedimentos dedutivos e lógico-matemáticos que lhes são próprios – a distinção, a classificação, a decomposição de conjuntos em suas partes – deixam escapar a dinâmica contraditória e processual dos fenômenos (Netto, 1994)17. Além de um agnosticismo radical, o sistema teórico-político foucaultiano nutre-se de um visceral anticomunismo, que o priva – especialmente sua genealogia – das condições de apontar uma alternativa concreta ao mundo manipulado. Como se recusa a encontrar um ponto de apoio numa perspectiva fora do capitalismo, a crítica da coisificação do homem – veiculada por meio de suas teses de uma total disciplinarização e controle da vida – acaba, a despeito da sua intenção, por eternizar uma condição histórica ligada a uma fase transitória da evolução da humanidade. Formulações marxistas acerca da reificação, como as de Netto (1981), demonstram que a base do fenômeno manipula O pensamento foucaultiano é duplamente inundado pela intelecção. Por um lado, Foucault raciocina no puro nível do entendimento. A todo tempo, como um típico positivista, ele recorta e classifica o real – ora em epistémês, ora em técnicas de poder ou, ainda, em formas de experimentar o sexo ou de cuidar de si. Por outro, toda sua obra visa conscientemente a vulnerabilizar a razão. Seus principais livros podem ser lidos como histórias que denunciam a manipulação da loucura, da morte, do conhecimento sobre os homens, do delinquente e do sexo. Em todas estas histórias, a razão, reduzida à sua versão mais empobrecida, é condenada como responsável pelas agruras que a era moderna conheceu. Reduplicada num espelho, a razão miserável de Foucault tem um efeito devastador: ela não só esgota e reduz a racionalidade aos comportamentos manipuladores; ela consome o inteiro mundo dos homens em regras manipulatórias.

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tório próprio do capitalismo tardio, da sociedade burguesa consolidada, não se situa – como o faz crer Foucault – na relação poder-saber nem tampouco num poder imanente à vontade de saber. O que permite à “manipulação desborda[r] a esfera da produção, penetra[r] a circulação e o consumo e articul[ar] uma indução comportamental” que objetiva administrar “o inteiro cotidiano dos indivíduos” – “destilando um terrorismo psicossocial (...) [em] todas as manifestações anímicas” e “[convertendo] em limbos programáveis” todas as instâncias, “a constelação familiar, a organização doméstica, a fruição estética, o erotismo, a criação de imaginários, a gratuidade do ócio etc.”, nas quais outrora o indivíduo podia exercer sua relativa autonomia – é a penetração da organização capitalista em todos os poros da vida social no capitalismo monopolista avançado, “que universalizou, na imediaticidade da vida social, os processos alienantes e alienados peculiares ao modo de produção capitalista, os que se encontram na base do mistério [o fetiche] da forma mercadoria” (Netto, 1981, p. 81-82). Justamente por estar ancorado nas formulações marxianas sobre o fetichismo, Netto pôde, num horizonte diametralmente oposto à consagração foucaultiana da manipulação, apanhar as contradições de um fenômeno peculiaríssimo do mundo burguês consolidado: o esvanecimento do poder opressivo (outrora identificado no capitalista). O exame em Netto (1981, p. 82-83) desse “poder, desta weberiana autoridade ‘racional’ e sem rosto, [que] se instala nos trilhos por onde escorre o cotidiano” não tem nada a ver com a genealogia que – aferrada ao nível da aparência caótica, à exterioridade de um “poder [que] está em toda parte (...) provém de todos os lugares” (Foucault, 2003, p. 89) – não consegue compreender que a “ubiquidade do poder – inconcreto, gasoso e onipotente – esconde o poder [do capital] na ubiquidade” (Netto, 1981, p. 83).

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Aquilo que o niilista de cátedra desenvolve e elabora no plano analítico em sua “filosofia” é a experiência fetichizada da realidade vista em sua superfície. Como sintoma da reificação das relações sociais da sociedade burguesa consolidada, não há no mundo foucaultiano (que expressa um movimento de absolutização tão radical do objeto que o sujeito que retorna é pura coisa) lugar para a práxis livre e criadora a não ser a do indivíduo concebido como um mônada social. É exatamente aí que repousa a sua afinidade principal com o pós-modernismo de contestação ou inquietação. Referências CASTELO BRANCO, G. “As lutas pela autonomia em Michel Foucault”. In: RAGO, M.; ORLANDI, L. B. L.; e VEIGA–NETO, A. (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. _______. & PORTOCARRERO, V. (orgs.). Retratos de Foucault. Rio de Janeiro: Nau, 2002. COUTINHO, C. N. Literatura e humanismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. _______. “Lukács, a ontologia e a política”. In: ANTUNES, R. & RÊGO, W. L. Lukács, um galileu no século XX. São Paulo: Boitempo, 1996. _______. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006. _______. O estruturalismo e a miséria da razão. São Paulo: Expressão Popular, 2010. COUTINHO, C. N. & KONDER, L. “Correspondência com György Lukács”. In: PINASSI, M. O & LESSA, S. (orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002. DOSSE, F. História do Estruturalismo: o campo do signo, 1945-1966. São Paulo: Ensaio, 1993. _______. História do Estruturalismo: o canto do cisne, de 1967 a nossos dias. São Paulo: Ensaio, 1994. DREIFUSS, R. A. A época das perplexidades, mundialização, globalização e planetarização: novos desafios. Petrópolis: Vozes, 2001. FERRY, L. & REANUT, A. O pensamento 68: sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo: Ensaio, 1988.

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O estruturalismo e a miséria da razão: bases para uma crítica a Foucault

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Vivemos um período complexo, no qual a expansão da dinâmica societária capital-imperialista parece reproduzir os mesmos e velhos moldes da formação histórica brasileira: dependência e subalternização frente aos países centrais, desigualdades sociais gritantes, escasso avanço na conquista e consolidação de direitos para a classe trabalhadora. Para alguns pensadores críticos, não só permanecemos no passado tradicional como o processo contemporâneo estaria apenas exacerbando suas características mais anacrônicas, através de reprimarização, recolonização, populismo (nomeado agora como neopopulismo) etc. Buscando evitar a excessiva linearidade e ausência de efetividade do processo histórico no caso brasileiro, outros – com especial ênfase para Francisco de Oliveira – sublinham a emergência de novas características, porém elas ocorreriam sem os parâmetros históricos capazes de nos auxiliar a deslindar seus atributos. Teríamos assim configurado um ornitorrinco, um verdadeiro impasse evolutivo. Tratando dessa difícil correlação entre as profundas marcas da tradição autocrática e a emergência de transformações significativas, Carlos Nelson Coutinho, atento leitor dos autores clássicos, teceu interessante comentário sobre dois dos mais importan-

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tes pensadores do marxismo no Brasil. Após ressaltar sua enorme contribuição para a compreensão da via não clássica da “revolução burguesa” no Brasil, Coutinho comenta como a capacidade arguta de identificar os traços fundamentais dos processos históricos nem sempre se acompanha da identificação da emergência de situações de novo tipo: “Ora, tanto em Caio Prado Jr. quanto em Florestan [Fernandes] constata-se uma tendência a sublinhar os momentos em que o velho permanece no novo e, frequentemente, em consequência, a subestimar este novo” (Coutinho, 2006, p. 147). Carlos Nelson empreende, pois, a urgente tarefa que deve ser realizada coletivamente: a retomada e releitura cuidadosa de nossos clássicos, que, porém, não pode se limitar a tomá-los de maneira imediata e, menos ainda, a utilizá-los de maneira mecânica. Mariátegui denunciava o “calco y copia” ao reclamar da adesão acrítica a conceitos e categorias não pertinentes à realidade latino-americana. Ampliando o alcance do alerta mariateguiano para a releitura de clássicos num mesmo país, também a transferência acrítica de questões, conceitos e categorias plenamente válidos em um dado período histórico para outras circunstâncias e períodos pode apagar ou obscurecer os processos reais de emergência de novos problemas e novas situações. Portanto, a leitura de nossos clássicos é fundamental desde que seja atrelada aos contextos históricos aos quais as obras foram escritas, de maneira a evitar que o necessário aprendizado se converta em anacronismo. Tal aprofundamento não deve, porém, reter nossos clássicos num escafandro “temporal”, isolá-los num passado já terminado, uma vez que isso seria retirar-lhes o poder de nos ensinar a pensar com o já pensado, dar-nos fios da meada de estruturas profundas e renitentes, conectar-nos com as lutas que foram e seguem sendo as nossas. A permanente retomada dos clássicos deve ser dupla: apreen­ der as bases conceituais e a interpretação do Brasil e, por outro lado, observar atentamente a emergência de novas contradições,

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exigindo-nos, mais do que uma releitura, a superação dos limites históricos que são os nossos. Nesse viés, não basta nos assenhorearmos de maneira sólida de nossa tradição. Coutinho provocativamente sugere que o marxismo é um “revisionismo”. Mesmo discordando do termo empregado por ele (pois a maior parte dos revisionismos resultou em afastamento do marxismo), é preciso levar em consideração a pertinência de sua ponderação: Afinal, o que é o método de Marx? É a fidelidade ao movimento do real. E o que é o real? É uma permanente dialética de conservação e renovação; usando uma bela expressão do jovem Lukács, o real é o jorrar incessante do novo. Portanto, se não renovo minhas categorias, se não as reviso para poder conceituar o real em seu incessante devir, sou infiel ao método histórico-dialético de Marx.1

É à luz da difícil compreensão da emergência de situações novas que este artigo parte de algumas importantes contribuições de Carlos Nelson Coutinho como intérprete do Brasil ou, mais precisamente, como fino analista dos processos históricos brasileiros, para ajudar-nos a enfrentar os desafios atuais, em especial sobre o tema da democracia. A emergência do novo, como as conquistas resultantes das importantes lutas dos trabalhadores e dos subalternos nas últimas décadas, nem sempre tem o aspecto que gostaríamos. Inversamente, a reprodução do velho – da dinâmica societária sob o jugo do capital – pode trazer, sob suas contradições, novos desafios e novas formas de enfrentá-los. Este artigo é uma conversa com Carlos Nelson Coutinho, um amigo raro, de inteligência e generosidade extremas. Não estou preocupada em entabular um debate formalizado com suas opções estratégicas e suas interpretações, mas em aprender com “Conversa com um ‘marxista convicto e confesso’”. In: Intervenções. O marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006, p. 191.

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ele, revirando algumas de suas proposições, entre concordâncias e discordâncias. Coutinho conserva o sopro fundamental da interrogação sobre a totalidade, a permanente elaboração da compreensão da formação social brasileira e, acima de tudo, a clareza de que se trata de processos históricos, cambiantes, nos quais o protagonismo central é da luta de classes. Carlos Nelson Coutinho é um dos pensadores mais relevantes para pensar o Brasil, e uma de suas características mais importantes é a de atuar num largo espectro, atravessando as disciplinas. Sua contribuição não se limita a uma área demarcada e entrincheirada. Com extrema sensibilidade e rara erudição, Coutinho escreve sobre sociedade, cultura, política, filosofia, teoria e historiografia. Procura capturar uma formação social específica, porém banhada de uma historicidade que, ao mesmo tempo, lhe é própria e a integra numa totalidade mais ampla desde seus primórdios. Carlos Nelson tem expressiva influência nas interpretações históricas sobre o Brasil, que, por sorte, não são exclusividade de historiadores. As cisões disciplinares tendem a resultar em estratégias de produção de conhecimento defendidas corporativamente, como se apenas os iniciados pudessem interferir nos seus territórios específicos. Disso decorre, muitas vezes, um certo ensimesmamento mais profissional e/ou pedante do que curioso e, no caso da história, uma produção histórica correta tecnicamente, porém mais obediente do que impertinente; uma historiografia muitas vezes descomprometida com a compreensão mais ampla dos processos sociais. Ora, a ampla cultura de Carlos Nelson, sua trajetória intelectual peculiar e sua permanente intervenção política transformaram-no num pensador que rompe – na prática – tais fronteiras. Em primeiro lugar, conservou e permanece atualizando uma bela tradição do pensamento brasileiro – e não só brasileiro, mas do pensamento crítico internacional – ao nos brindar com formidá-

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veis ensaios. Enganam-se os que imaginam serem mais difíceis ou completos alguns dos pomposos artigos escolares que alguns nomeiam como acadêmicos. Desiludam-se: estes exigem disciplina e obediência a formatos previamente traçados. Ao contrário, a elaboração de ensaios exige longa maturação de temas densos e tensos, exige a ousadia de caminhar no terreno das sínteses que procuram – mais do que apenas costurar citações, como os artigos escolares – compreender um processo vivo, escorregadio e complexo e, nele, tomar posição. Carlos Nelson, de maneira gentilmente infratora frente às imposições produtivistas, persiste enfrentando o desafio do marxismo, o de envolver-se plenamente com o processo de emancipação da humanidade. Não enumerarei a longa lista de contribuições de Carlos Nelson assim como não pretendo listar – mesmo se criticamente – seus numerosos artigos sobre a democracia (sobre o que, aliás, já correu muita tinta). Meu intuito é experimentar a impregnação das diferentes formulações, interrogações e, sobretudo, da sensibilidade de Coutinho para prosseguir um debate a cada dia mais urgente e inquietante sobre a questão da democracia no Brasil e no mundo contemporâneo. Revolução burguesa e democracia

O ponto de partida do debate sobre a democracia é uma grande interrogação histórica, que sua obra compartilha com os mais importantes de nossos pensadores clássicos: a revolução burguesa no Brasil, seus percalços, características e limites. O aporte leniniano (expresso através do emprego da “via prussiana”) e, sobretudo, gramsciano (a “revolução passiva”) lhe permitiu precocemente compreender que, mesmo se por vias não clássicas, não apenas as relações capitalistas (no sentido econômico) já se haviam disseminado como também as relações burguesas

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(de uma certa sociabilidade), com um significativo crescimento de movimentos – mesmo se esporádicos – de luta dos trabalhadores que reivindicavam, embora sistematicamente golpeados e retardados, uma socialização da política. Para Coutinho a dominação burguesa no Brasil se consolida em 1930, reproduzindo modalidades­de revolução passiva, presentes desde o século XIX, ao longo do século XX. Assim, a admissão da efetivação do capitalismo no Brasil – desde 1964, já sob formato monopolista – eliminava uma espécie de dúvida tradicional, pois, para muitos autores e organizações políticas, o caráter da dependência, a truculência social das classes dominantes e o papel do imperialismo seriam obstáculos à difusão das relações de produção capitalistas no país. A revolução burguesa aqui, entretanto, divorciava-se profundamente dos modelos revolucionários clássicos: como em outros países retardatários, ela se realizava através de acordos pelo alto, entre os diferentes setores da classe dominante, em especial a grande propriedade fundiária e a burguesia industrial. De forma mais gritante do que outros países retardatários, aqui o atraso se expressaria na derrogação da realização dos mais comezinhos direitos democráticos, mesmo aqueles de cunho burguês. O direito ao voto para os analfabetos, que constituíam parte expressiva da população, somente foi conquistado na Constituição em 1988; os direitos sociais, formalmente proclamados no mesmo ano, seriam cotidianamente atacados pelos sucessivos governos. A processualidade da expansão capitalista no Brasil deixaria uma dívida democrática permanente. Carlos Nelson é reconhecido como um dos mais persistentes defensores da democracia e da democratização no Brasil. Uma das mais candentes questões atuais e que, por essa razão, deve ser nosso ponto de partida, é a hesitação sobre a definição conceitual do processo político brasileiro contemporâneo. Para alguns, estando cumpridas as formalidades constitucionais, já estaríamos em ple-

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na democracia e a ela se deveria apenas obediência. Na contraface de tal interpretação, permanecem dúvidas sobre a incompletude da revolução burguesa no Brasil, em função de sua impotência no terreno democrático. O elo comum a essas duas teses, no demais opostas, é que a questão democrática obnubila o debate sobre a socialização da existência social, debate execrado para uns e precoce para outros. Haveria em Carlos Nelson Coutinho a suposição de que a revolução burguesa estaria incompleta mesmo após a disseminação das relações econômicas que lhe correspondiam, pela não realização plena de uma democracia ampla, plural, povoada de entidades populares e com forte e autônomo movimento operário? Seria possível imputar a Carlos Nelson a suposição de uma necessária etapa democrática prévia à luta socialista? Em sua interpretação histórica do Brasil, a formação de uma cultura nacional-popular plural, forte e vigorosa poderia substituir ou empalidecer a necessidade de transformações substantivas nas relações de produção capitalistas? Antecipemos a resposta, transparente no conjunto de sua obra e de sua atuação, ainda que extrações de citações isoladas possam eventualmente confundir o leitor: inexiste na reflexão de Carlos Nelson a suposição de uma etapa prévia, democrática, apresentada como uma precondição para a luta socialista. Carlos Nelson defenderá permanentemente a proposição – apresentada como a estratégia de base gramsciana e como devedora das formulações eurocomunistas – de uma revolução socialista processual, através da conquista progressiva de posições na sociedade civil e na sociedade política, com um crescimento da organização política dos subalternos e a construção de uma contra-hegemonia majoritária. Na virada da década de 1970 para 1980, ele condicionaria a realização do socialismo a um exercício de paciência, com vistas à construção de uma unidade estratégica em prol de um consenso majoritário contra-hegemônico por den-

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tro da institucionalidade democrática, e defenderia então o polêmico ensaio sobre o valor universal da democracia, modificado posteriormente para o valor universal da democratização. Nele, rompe – e reafirmará diversas vezes essa ruptura – com as posições lenineanas e da Terceira Internacional de defesa de uma revolução definida como assalto ao poder, adotando dali em diante uma concepção que reúne estreitamente democracia, reforma e revolução. Essa opção atravessa o conjunto de suas intervenções e segue reafirmada até a atualidade, embora com algumas pequenas diferenças e nuances. Ele se refere à sua própria posição como reformismo-revolucionário. Vejamos em rápidas pinceladas sua visão geral do processo histórico brasileiro. As sucessivas revoluções passivas brasileiras se traduziriam num lento processo de ocidentalização, com uma aceleração do crescimento da sociedade civil – arena privilegiada da luta de classes, como Coutinho enfatiza em diversos momentos – no período anterior ao golpe civil-militar de 1964. O objetivo da ditadura de sufocá-la resultaria em seu contrário. Se a repressão às formas de expressão popular assegurou plenas relações de um capitalismo de cunho monopólico e dependente (implantando aqui um capitalismo monopolista de Estado), essa mesma modernização capitalista traria como resultado não desejado da ditadura empresarial-militar a expansão da sociedade civil, como sua contraparte ineliminável. O processo de ocidentalização experimentado pela sociedade brasileira trazia novas possibilidades, mas também renovava as dificuldades no sentido da expansão de uma contra-hegemonia nacional-popular2. De um lado, mantinham-se heranças da via Uma cultura nacional-popular, tal como explicitada por Coutinho, recusa o nacionalismo cultural por ser anacrônico e por valorizar exatamente o atraso, sendo “uma das principais manifestações ideológicas da ‘via prussiana’ antipopular”. A cultura nacional-popular, ao contrário, mergulha na cultura universal e implica a “capaci-

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prussiana e da dependência, que conformara uma cultura ornamental, brotando sob um “intimismo à sombra do poder”, modalidade de cooptação e incorporação de intelectuais que atualizava para o século XX o formato anterior do “favor”. De outro, generalizavam-se novas modalidades já plenamente capitalistas de cooptação e de deslocamento dos intelectuais, afastando-os de suas bases populares. O assalariamento da indústria cultural, a qual já nascia monopolista, aprofundava diferenças entre os altos salários e os que integravam o “exército cultural de reserva”, além da introdução de uma “racionalização” de cunho capitalista, que invadia também as universidades no período ditatorial, priorizando o valor de troca frente ao valor do uso. No entanto, a reprodução da forma anterior de cooptação ou do “intimismo à sombra do poder”, assim como as novas teias de subordinação à indústria cultural ou à exposição aos pseudoprodutos culturais importados, traziam também novas e explosivas contradições. Sua preocupação maior com as condições das lutas dos subalternos no Brasil e sua permanente intervenção – assumindo conscienciosamente o papel de intelectual orgânico – leva Carlos Nelson a averiguar a expansão da sociedade civil de base nacional-popular, rastreando a afirmação crescente da presença subalterna e da classe trabalhadora sob inúmeras formas – plurais – de expressão de interesses, tanto de âmbito econômico como político e cultural, estimulando sua convergência na direção de uma musculosa teia de entidades e de lutas, capazes de impor – de baixo para dade de distinguir entre o válido e o não válido no seio do patrimônio cultural universal” (144). Envolve uma “concepção humanista e historicista do mundo (…) que afirma o papel da práxis na transformação das estruturas sociais...” (145). “A cons­ciência artística nacional-popular se manifesta não só na temática, mas sim no ângulo de abordagem, no ponto de vista a partir do qual o criador estrutura sua obra” (146). Cf. “Cultura e democracia no Brasil”. In: A democracia como valor universal e outros ensaios. 2a ed., Rio de Janeiro: Salamandra, 1984. Texto de 1977/1979.

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cima – conquistas substantivas na socialização da existência. Refinadíssimo leitor de Gramsci e com forte ênfase na necessidade da organização social e política, sua obra se interessa em identificar as tendências na luta social, a irrupção de sensibilidades diversas no campo dos subalternos, apontando sempre para um foco unificador capaz de polarizar o conjunto das lutas. A sociedade civil expressa o aumento da organização dos diferentes setores e interesses sociais; daí a importância sempre atribuída por Coutinho ao partido contra-hegemônico, que precisa atuar como agregador da multiplicidade plural das reivindicações populares, unificando-as na luta pela socialização da existência. É desde o ponto de vista dos subalternos, de suas expectativas, valores e anseios, que Carlos Nelson procurou balizar seus escritos sobre a democracia. É ainda desse ponto de vista que critica e assinala os limites econômicos, sociais e políticos impostos à democratização brasileira, identificando as modalidades pelas quais a tradição da revolução passiva, do “intimismo à sombra do poder” (ou a tradição autocrática), se recompõe e procura golpear as iniciativas populares. Esse é talvez o ponto central, sobre o qual vale a pena insistir: leitor ávido de Lukács e de Gramsci, militante comunista dentro ou fora de um partido comunista, é exatamente essa sensibilidade peculiar para as dinâmicas, expectativas, anseios, formas de organização e elaboração cultural dos subalternos em direção a uma cultura nacional-popular que pretendemos reter como uma de suas mais importantes contribuições. Acrescente-se a isso a permanente atenção à historicidade, o que o leva a intervir em situações conjunturais, com seguro rigor teórico, porém conseguindo escapar de interpretações coaguladas. Por essa atenção especial ao nacional-popular e à sua complementar organicidade, não é central na obra de Coutinho, embora mais recentemente o agregue, o tema dos aparelhos privados de hegemonia burgueses, voltados não apenas para a dominação, mas

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também para a direção. É possível supor que a tripla característica das burguesias brasileiras – “prussiana”, dependente e truculenta – o tenha afastado desse tema, embora não o tenha afastado da atenção à configuração do Estado no Brasil. Sua análise das formas específicas da ampliação do Estado no caso brasileiro e da democracia tem como foco central a produção de uma contra-hegemonia nacional-popular. A análise do processo histórico de constituição do Estado brasileiro, e de sua ampliação seletiva, acolhendo aparelhos privados de hegemonia burgueses, mas amputando a expressão popular, foi empreendida sobretudo por René Armand Dreifuss e por muitos dos estudiosos de Gramsci e leitores de Carlos Nelson Coutinho, entre os quais se destacam Sonia Regina de Mendonça, Álvaro Bianchi, Lúcia Neves, dentre outros. Em diversos momentos, Carlos Nelson trouxe elementos cruciais para a compreensão do Estado brasileiro exatamente por conservar o foco na necessária correlação de classes (e de lutas de classes) que o Estado expressa. Escrevendo no conturbado período dos anos 1976-1979, em artigo sobre o capitalismo monopolista de Estado3, Coutinho desmontou duas suposições, ambas com veleidades críticas, mas incapazes de alcançar as formas concretas da dominação burguesa. Na primeira, Fernando Henrique Cardoso, em conhecido e divulgado trabalho, Autoritarismo e democratização, publicado em 1975, procurou explicar as tensões internas à ditadura através da contraposição entre uma “burguesia de Estado”, forjada à sombra das empresas estatais, e uma burguesia de mercado. A fração burguesa “de Estado” agregaria militares e gerentes, burocratas detentores de competências técnicas, com pretensões hegemônicas apoiadas pelo “expansionismo estatal” e pelo “O capitalismo monopolista de Estado [CME] no Brasil: algumas implicações políticas”. In: A democracia como valor universal e outros ensaios. 2ª ed., Rio de Janeiro: Salamandra, 1984. Texto de 1976-1979.

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autoritarismo. A essa “burguesia de Estado nacional-estatista” se contraporia uma burguesia privada, defensora de um “capitalismo de empresa” de teor liberal-imperialista. Facilmente se observa em nossos dias a aproximação de Cardoso com esse “capitalismo privado”. A crítica realizada por Carlos Nelson desarmava já então – com dados – a hipótese de FHC. Queremos destacar de sua análise a clareza teórica de que o conjunto do Estado e de suas empresas integrava uma totalidade capitalista monopólica. Para Coutinho, o Estado e as empresas estatais agiam, ao contrário, no sentido de “desvalorizar o capital público”, visando a assegurar a máxima valorização tanto do capital privado nacional quanto internacional. A função das empresas estatais não era a de “maximizar seus próprios lucros”. Consistia, ao contrário, em favorecer os mecanismos de acumulação do capital privado, garantindo-lhe altas taxas de lucro. Dessa forma, demonstrava ainda na década de 1970 – precocemente – como a contraposição realizada por FHC entre autoritarismo e liberalismo ocultava uma concepção liberal do Estado. Enfrentando a segunda suposição então em voga, Carlos Nelson criticava os que consideravam o regime da ditadura civil-militar como fascista ou semifascista, posto que sua sustentação dependeria de uma única política econômica, a da superexploração dos trabalhadores e de todas as camadas não monopolistas4. Ele combate o mecanicismo da imediata correlação entre monopólios e fascismo e entre política e economia, sublinhando o desaparecimento, nesse tipo de reflexão, do papel das lutas de classes e de sua capacidade de arrancar vitórias econômicas. Tendo clareza sobre o papel do Estado – como garantidor em última instância A crítica de Coutinho dirige-se explicitamente a Rogério Freitas, ‘Il capitalismo monopolistico de Stato in Brasile”. In: Nuova Rivista Internazionale, ed. Italiana, n. 3, 1976.

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da reprodução do conjunto do capital –, conclui lembrando não haver impedimento estrutural para que a burguesia monopolista desses países [que recorreram à ditaduras na implantação e consolidação do capitalismo monopolista de Estado] – sob pressão de condições objetivas tanto nacionais quanto internacionais – não possa ser obrigada a ‘mudar de pele’ e a adotar formas mais ou menos democráticas de dominação.5

Em outros ensaios, reafirma – com algumas variações – o papel que atribui à democracia, defendendo a preservação e a conquista de direitos sociais. Retoma então mais explicitamente o pensamento liberal, no contexto de crescente ataque aos direitos sociais da década de 1990. Vale destacar que mesmo posteriormente insistirá na importância da leitura e do conhecimento dos pensadores inaugurais do liberalismo – a meu juízo, corretamente, pela extrema importância da plena compreensão da historicidade do processo de lutas sociais no solo das revoluções burguesas, que configuram ainda as bases intelectuais das formas atuais de dominação. Coutinho vai além e destaca o aporte liberal a uma reflexão de âmbito universal, considerando um grosseiro equívoco, tanto teórico quanto histórico, falar em ‘democracia burguesa’. Pode-se certamente caracterizar o liberalismo como uma teoria e um regime político burgueses [embora haja no liberalismo elementos que] transcendem esse vínculo genético com a burguesia e adquirem valor universal.6

“O capitalismo monopolista de Estado [CME] no Brasil: algumas implicações políticas”. In: A democracia como valor universal e outros ensaios. Ed. cit., p. 192. Texto de 1976-1979. 6 “Notas sobre cidadania e modernidade” (conferência maio de 1994). In: Coutinho, Carlos Nelson. Contra a corrente. Ensaios sobre democracia e socialismo. 2a ed. revista e atualizada, 2008 [1a edição, 2000], p. 62. 5

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Insurge-se contra leituras mecanicistas, que encaram as políticas sociais como mero instrumento burguês de legitimação da dominação, insistindo na unilateralidade dessa posição, pois toda a vida social e “também a esfera das políticas sociais é determinada pela luta de classes” 7. Sabe que, sob a dominação burguesa, a fragilização dos subalternos na correlação de forças permite à burguesia utilizar as políticas sociais para desmobilizar a classe trabalhadora ou cooptá-la. O desmonte do Welfare State e dos direitos sociais mostraria que eles não interessam à burguesia. Chega, então, a sinonimizar democracia e cidadania, confiante em que a ampliação da cidadania, como um “processo progressivo e permanente de construção dos direitos democráticos que atravessa a modernidade, termina por se chocar com a lógica do capital”.8 Nos anos 2000, sobretudo após a vitória de Lula e do PT ao governo federal, Carlos Nelson assinala que “estamos assistindo a uma aberta manifestação de uma das características mais significativas dos processos de ‘revolução passiva’, àquilo que Gramsci chamou de ‘transformismo’, ou seja, a cooptação pelo bloco no poder das principais lideranças da oposição”. No entanto, emitia reservas quanto a julgar tal processo como revolução passiva. Considera haver – no Brasil e no mundo – dois modelos em dispu­ ta: o de uma democracia de massas próxima do exemplo europeu, caracterizada por fortes organizações populares, contraposto ao modelo americano, de padrão liberal-corporativo. Enquanto o primeiro asseguraria a possibilidade da expansão democrática pela pressão da grande política, traduzida pelo embate entre grandes opções de organização da vida social (capitalismo e socialismo), o segundo encolheria o espaço da luta social, reduzindo-a à pequena Ibid. p. 65, itálicos do autor. Ibid., p. 68.

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política, “que não põe em discussão as questões substantivas da formação econômico-social brasileira”9. A exceção a essa quase regra de sucessivas revoluções passivas no Brasil seria, pois, o período recente, posterior à década de 1990, quando ocorreria uma contrarreforma. Inexistiria na atualidade o acolhimento de “uma certa parte das exigências que vêm de baixo”, que Gramsci considerava (...) uma característica essencial das revoluções passivas”, ocorrendo uma “tentativa de supressão radical daquilo que (...) Marx chamou de vitórias da economia política do trabalho.” (...) “De resto, pelo menos nos países ocidentais, não se trata de uma contrarrevolução: em tais países, o alvo da ofensiva neoliberal não são os resultados de uma revolução propriamente dita, mas o reformismo que caracterizou o Welfare State.10 Reafirma novamente sua convicção à adesão democrática, enquanto luta pela redefinição do Estado e da esfera pública, através do aumento dos mecanismos de participação, de socialização da política, lutando por construir os meios e os caminhos pelos quais o aprofundamento da demo­cracia nos conduza não apenas a um novo modelo de Estado, mas também a uma sociedade de novo tipo, à sociedade socialista, única capaz de garantir as condições de um efetivo predomínio do interesse público na esfera da vida social e política.11

Como se observa em diferentes momentos de sua obra, Carlos Nelson Coutinho não pressupõe a democracia como uma etapa prévia a realizar, mas como uma luta constantemente levada por dentro e para além – revolucionária – das limitações do regime li “O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas”. In: Contra a corrente, p. 142. “Contrarreforma – A época neoliberal: revolução passiva ou contrarreforma?” (2007) In: Coutinho, Carlos Nelson. Contra a corrente, p. 102-103. 11 “O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas”, publicado originalmente em 2006. Contra a corrente, cit., p. 146. 9

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beral. Não se trata, pois, para ele, de uma revolução burguesa que teria sido interrompida ou quedado incompleta, mas uma revolução burguesa que, por vias não clássicas, se completa em simultaneidade com um avanço de contrarreformas no âmbito mundial e internamente. Nem uma democracia acabada, como sugerem os antidemocráticos que sustentam uma posição de congelamento das lutas e conquistas sociais, nem, ao contrário, a inexistência dela no Brasil. Ao integrar as conquistas democráticas sob o regime liberal, e ao caracterizar fundamentalmente a democracia pela expansão da sociedade civil – em sua face contra-hegemônica –, Coutinho opera em outro registro, no qual as lutas pela socialização da política (e da existência tout court) precisam empurrar, tensionar as conquistas democratizantes. As condições múltiplas da luta pela socialização

Vale agora pontuar a sua reflexão, procurando explicitar e debater alguns dos fundamentos que a lastreiam, para extrair o que mais nos instiga de seu aporte e que nos parece extremamente fértil para compreender as lutas de classes contemporâneas, tanto no âmbito nacional quanto internacional. A interpretação histórica de Carlos Nelson está profundamente marcada pela opção estratégica por uma forma específica de revolução socialista, atuando simultaneamente como conservação e superação (aufhebung). O reformismo revolucionário envolve duas correlações importantes: a primeira pressupõe uma correspondência entre a forma social (a socialização das forças produtivas, característica do capitalismo) e a reivindicação de uma correlata socialização da política. Não há nenhum mecanicismo nessa formulação: trata-se de considerar que uma certa forma de ser social, ainda que embebida­ de alienação, contém contradições nas quais a experiência real vi-

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vida (a da socialização truncada pelo mercado) abre ou permite fissuras frente às formas de pensar o mundo dominantes; e, expressando-se sob formas ideológicas, fissuras que atuam como fermento, nas quais a luta pode ser conduzida até o seu desenlace. Assim, a classe trabalhadora, expropriada das suas condições de existência e homogeneizada no mercado, acata a figuração idealizada de uma correspondência política “cidadã”, na qual a “igualdade” de mercado se duplica numa igualdade jurídica. Adere, pois, aos fundamentos liberais, que acenam com a fórmula abstrata de uma política esvaziada da capacidade de transformar as relações de produção. Tal pensamento liberal não é, entretanto, desprovido­de efeitos sociais (ideopolíticos), podendo ser empolgado pelas massas subalternas, fato que leva, em diversas circunstâncias, ao seu truncamento e mutilação pelas próprias burguesias. As lutas históricas concretas da classe trabalhadora romperam em diversos momentos os limites antidemocráticos constitutivos do liberalismo, impondo conquistas em direção a processos democratizantes mais significativos. A própria luta econômica da classe trabalhadora pressiona no sentido de uma “economia política do trabalho”, impondo uma historicização à economia política do capital que se arvora como lei fixa e imutável de uma economia que encontraria seus fundamentos na natureza. A segunda correlação supõe que tais conquistas da economia política do trabalho constituam novos patamares, uma espécie de processo “pedagógico” realizado no interior do capitalismo, através do qual os subalternos não apenas se encharcam do fetichismo da mercadoria, mas também se organizam e apreendem os elementos sociais que podem permitir enfrentar a lógica social que vela as relações reais. Nas lutas, compreendem que a riqueza existente resulta de seu trabalho, o qual nutre o capital, e não o inverso, tal como se apresenta na imediaticidade. Mas podem compreender também, através de sua prática reivindicativa, que a

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política pode duplicar a expropriação econômica. Nesse sentido, a luta política precisa combater duplamente o capital, tanto no terreno das grandes opções sociais quanto no das econômicas e jurídicas. Aqui, o papel da organização da classe trabalhadora assume todo o seu sentido. A reflexão subjacente à defesa do reformismo revolucionário envolve sustentar que os processos históricos de reforma social, mesmo não alterando as relações sociais de produção, correspondem a vitórias pedagógicas da economia política do trabalho, não resultando de iniciativas burguesas. Desse ponto de vista, tende a considerar como reformas apenas aquelas que extrapolam os limites interpostos pela dinâmica liberal e pela reprodução do capital, impondo, portanto, conquistas que conservam estreita relação com uma direção claramente socializante. De maneira similar, considera que as conquistas com teor democratizante (aquelas que, mesmo contidas no âmbito limitado­das instituições liberais, ampliam sua participação efetiva), por nascerem no solo escassamente fértil das instituições liberais – mantendo com elas, portanto, uma relação estreita de conservação e superação –, resultam de lutas dos subalternos, nada devendo nesse sentido aos epígonos da “economia política do capital.” Dependem, assim, da capacidade de auto-organização popular e de sua unificação na diversidade, da produção de uma cultura nacional-popular de teor internacionalista, promovendo diuturnamente a organização dos subalternos e opondo obstáculos crescentes à dominação. A convicção expressa por Coutinho de que a luta de classes e as múltiplas lutas levadas a efeito pelos subalternos não são inócuas é crucial, assim como sua ênfase na existência de múltiplas reivindicações, não apenas corporativas (econômicas ou de interesse imediato). Para Marx, em “Salário, preço e lucro”, as lutas por conquistas pontuais são fundamentais e, se resultam em vitó-

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rias parciais, consolidam, entretanto, as próprias organizações da classe e demonstram praticamente a possibilidade de outra “Economia Política” – a do trabalho ou, melhor dizendo, a da emancipação de todos os trabalhadores do jugo do capital. A aderência às reivindicações dos trabalhadores – mesmo se limitadas a conquistas no interior da dominação capitalista, quer como aumento de salários, quer como ampliação de direitos – é a condição pela qual a experiência concreta da contradição social se põe em marcha convertendo-se em luta. A primeira condição, para Marx, é não permitir que o argumento burguês da “impossibilidade” ou “inutilidade” das conquistas desarme a própria luta e deseduque os subalternos. Nesse sentido, as lutas democráticas, se aderidas à concretude social, e não apenas a expressões abstratas genéricas, são decerto uma das modalidades pelas quais as exigências concretas da igualdade e da socialização da existência encontram uma via de expressão e de consolidação da organização dos subalternos frente à dominação do capital. Mas há também um limite a esse argumento. Marx não encerrou sua reflexão com a conquista do aumento salarial pelos trabalhadores e, portanto, com a vitória de uma economia política do trabalho. Após defender duramente a luta pelo aumento de salários, contra os argumentos do sindicalista que a considerava inútil, Marx sublinhou não apenas seu caráter parcial, mas demonstrou que a essa vitória corresponde a tendência à constituição de novas formas de subordinação do trabalho ao capital, pelo aprofundamento do mais-valor relativo, através de uma “mudança progressiva na composição do capital ”, cujo intuito é desvalorizar a força de trabalho. Conclui destacando a importância dos sindicatos como centro de resistência contra as usurpações do capital, mas apontando seus limites, tanto por usar “pouco inteligentemente a sua força” quanto por uma deficiência de cunho geral, “por se limitarem a uma luta de guerrilhas contra os efeitos

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do sistema existente, em lugar de, ao mesmo tempo, se esforçarem para mudá-lo...”12 As conquistas da luta econômica impõem modificações na composição orgânica do capital e repõem em patamares mais agudos, pois mais extensos, a contradição entre trabalho e capital. Seria possível supor, de forma similar, que as conquistas democratizantes sob o capital envolvam uma tendência à mudança na composição da política? A análise de tendências – e de leis tendenciais – compreende que há formas nas relações sociais que impelem à reprodução, à repetição, mas que se defrontam com modificações que essas próprias relações sociais introduzem. Em sociedades de classes, por exemplo, uma dupla e contraditória tendência tantaliza os integrantes dos setores dominantes: por um lado, pretendem aumentar suas riquezas e poder, o que significa aumentar e aprofundar as formas de extração de sobretrabalho dos subalternos. Por outro, tendem a conservar como intocáveis os pressupostos sobre os quais repousa essa mesma sociedade. Essa contradição se torna ainda mais explosiva no capitalismo: a velocidade e voracidade da expansão da lógica social (e não meramente econômica) do capitalismo não têm similar histórico anterior. A própria reprodução do capital – ou a reprodução do velho – frequentemente se reveste de novas características. Ela é expansiva, ampliada tanto do ponto de vista das proporções da extração de valor dos trabalhadores (de maneira absoluta ou relativa) e quanto do ponto de vista territorial, quanto, sobretudo, do ponto de vista social, com massas crescentes da população humana do planeta convertendo-se (ou reconvertendo-se) celeremente em seres “livres como os pássaros”, disponíveis e necessitados de mercado, impelidos a vender, sob condições cada vez 12

Marx, K. “Salário, preço e lucro”. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 98-99. Itálicos nossos.

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mais difíceis, sua capacidade de trabalho. Assim, sob a dinâmica capitalista, a reprodução do velho traz incessantemente novos elementos, inclusive pela escala em que subordina e mescla tradições, culturas e sociabilidades, amalgamando-as sob o jugo de um mercado difuso no qual atuam forças derivadas de uma propriedade cuja concentração se dá hoje em escala faraônica. É evidente que essa expansão capitalista modifica sem cessar o conjunto das relações sociais, ao mesmo tempo em que procura manter o formato social que a sustenta, ou seja, a estrutura de classes. A escala sempre crescente do processo, porém, aporta não apenas um aguçamento da contradição entre reproduzir ampliadamente (portanto, modificar), contraposta a conter e conservar, mas repõe o problema para âmbitos cada vez mais amplos, ao incorporar países e territórios e, sobretudo, ao integrar em cadeias produtivas (ou extratoras de mais-valor) cada dia mais complexas populações as mais diversas, com experiências, trajetórias históricas e tradições culturais fortemente diversificadas. Num plano mais político, isso significa que as lutas dos trabalhadores assumem múltiplas dimensões. Ao extraírem conquistas efetivas, impelem tendencialmente o capital a reforçar os meios de adequação e apassivamento, resultando em enorme concentração de recursos voltados para produzir novos consensos dos subalternos com vistas à neutralização de suas vitórias parciais. Ao fazê-lo nos moldes formalmente democráticos e parlamentares, modificam as condições de ingresso para o reencetamento do enfrentamento de classes não apenas através da cooptação, mas do custo efetivo da manutenção de organizações aptas a construir a unidade dos subalternos, como partidos e campanhas políticas. A contra-hegemonia se torna, portanto, mais difícil e árida nas condições da ordem dominante. Em outra – e contraditória – dimensão, entretanto, as experiências concretas dos trabalhadores, traduzidas em lutas e eventuais conquistas, convertem-se mais ra-

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pidamente em formas exemplares para os demais, dentro e fora de fronteiras nacionais. Mesmo as lutas por conquistas imediatas exigem crescentemente uma avaliação mais precisa dos contextos internacionais, assim como a organização de contatos e conexões mais ou menos constantes entre trabalhadores e subalternos de diferentes procedências regionais e nacionais, detentores de tradições culturais diversas. Exemplifiquemos com alguns casos mais próximos: a luta contra a atuação do BNDES em prol da concentração de capitais impeliu a uma unificação dos atingidos por essa entidade que reagrupa desde populações tradicionais até trabalhadores brasileiros de grandes obras, além de estrangeiros, operários ou camponeses atingidos por expropriações. Em outro recorte, a constituição da Via Campesina aproxima experiências extremamente diversas de trabalhadores do meio rural, mas também incide sobre as populações urbanas, ao ter como palavra de ordem, por exemplo, a “soberania alimentar” ou o “direito à alimentação sem veneno” (sem agrotóxicos). O internacionalismo parece brotar como condição para as lutas dos trabalhadores. Opõe-se ao cosmopolitismo das diversas classes e frações dominantes, que produzem repertório comum voltado para o apassivamento, a contenção e a repressão. A complexidade da forma específica e avassaladora da expansão capitalista repete seus procedimentos fundacionais, como a expropriação do povo do campo e a extração de mais-valor através do trabalho livre, porém jamais de maneira idêntica, uma vez que sua origem e expansão não são homogêneas, nem igualmente distribuídas entre os países, assim como os territórios sobre os quais se expande detêm tradições e formas sociais diversas, mais ou menos porosas ou resistentes. Desde os primórdios, essa expansão ocorreu de maneira desigual, pois as burguesias das primeiras regiões e países industrializados dispunham de meios econômicos – e militares – mais robustos. Também essas regiões originárias do

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capital experimentaram precocemente distúrbios intestinos, que precisaram ser mais ou menos neutralizados e/ou incorporados (de forma subalterna) para possibilitar sua continuação. Expande-se, pois, o capitalismo, multiplicando os polos contraditórios que, ao atingirem o planeta, envolvem classes dominantes e países (Estados e governos) profundamente desiguais, nos quais classes dominadas e dominantes internas com expectativas contraditórias incorporam e/ou reagem a essa expansão. A expansão capital-imperialista é um processo de imposição de uma mesma relação de subalternização em escala sempre mais ampla e uma tentativa de frear as formas de resistência e de luta, que se tornam sempre mais complexas, abrangendo desde as resistências locais até as lutas com escopos regional, nacional, continental e, mesmo, internacional. Os processos históricos nos colocam diante desse múltiplo desafio, no qual tendências opostas agem simultaneamente: uma reprodução do mesmo promove contínuo aumento de escala; uma socialização da produção contraposta à sempre mais brutal concentração da propriedade; a modernização do capital travestida de revolução contraposta à luta revolucionária pela plena socialização da existência; uma intensa homogeneização contraposta à mais extrema fragmentação da existência social, do espaço e da política. Tais tendências contraditórias atuam em espaços e territórios não homogêneos ou contínuos – posto que já desfigurados pela própria produção capitalista, sob seus diversos formatos –, assim como sob condições políticas e culturais extremamente heterogêneas­(local, infranacional, nacional, regional e internacional). Ao contrário do que muitos afirmaram, os Estados nacionais não apenas conservaram, mas tiveram sua importância acrescida. Precisam condensar em seu interior volume crescente de interpelações cruzadas, interesses díspares e tensões intraclasses dominantes, atuando no sentido de assegurar a reprodução do capital em seu conjunto, capital de origem nacional e internacional extrema-

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mente desigual. Sobretudo, precisam conter um crescente conjunto de expectativas e de reivindicações dos subalternos em contexto de expropriação de direitos, ao mesmo tempo em que asseguram sua neutralização futura – em especial, através das crescentes dívidas públicas. A ampliação do Estado, apontada por Gramsci, expressa não só o aprofundamento da democracia, mas também a complexificação dos meios de dominação de classes na atualidade. As conquistas dentro da ordem política democrática – sem ampliar seu escopo para a superação da ordem social burguesa – exasperam formas cada vez mais abstratas e abrangentes de integração subalterna à ordem, obstaculizando sua superação. Em outros termos, a expansão econômica do capitalismo coligada à expansão de uma democracia marcadamente liberal e decididamente avessa às conquistas socializantes oporia mais obstáculos – práticos, organizativos e pedagógicos – para a organização dos subalternos. O avanço do capitalismo sob sua roupagem democrática pode constituir-se, em vez de um efetivo avanço gradual da socialização, numa reafirmação crescente e expansiva (inclusive através de práticas repressivas e/ou militares, recobertas pela legalidade formal) da redução dos espaços da política, da imposição da pequena política, mascarada embora por uma participação emasculada de sua capacidade de transformação. Essas interrogações dizem respeito tanto à interpretação histórica contemporânea quanto a uma intensa reivindicação democratizante que emerge de forma esporádica, sobretudo na última década. No caso da interpretação histórica, o Welfare State é apontado corretamente por Coutinho como conquista dos trabalhadores e como conquista de reformas resultantes de uma forte pressão socializante. Ainda que circunscrito a alguns países centrais, teve efeitos difusos – embora escassos – em países periféricos, resultantes das diferentes correlações de força dos trabalhadores, que se expressavam também no âmbito internacional. As circunstân-

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cias de seus primórdios – a grande crise iniciada em 1929, continuada pela Segunda Guerra Mundial – e as de sua efetivação, a da Guerra Fria, limitaram-no, porém, a uma conquista dentro da ordem, ainda que expressiva (direito à saúde, à educação etc.). A democratização concretizada nas conquistas, ao permanecer alvo da segmentação entre as instâncias da vida social, foi reapresentada em seu sentido mais abstrato (o do critério de eleição e o da igualdade cidadã) passando a predominar sobre seu sentido concreto (o da socialização do conjunto da existência). Dessa forma, as lutas principais dos subalternos – com exceções, é claro – passaram a defender aquela ordem como um todo homogêneo (com seus pressupostos da garantia da acumulação capitalista). Ora, em paralelo ocorria uma efetiva recomposição da política, na qual apenas os interesses mais ou menos imediatos eram reconhecidos como legítimos. A socialização das lutas precedentes perdia terreno frente aos ganhos imediatos. Sindicatos e entidades associativas se expandiam, inclusive nos principais países europeus, porém cada vez mais limitados à defesa de interesses específicos. A luta de classes, ao ater-se, sobretudo, às conquistas dentro da ordem – manten­do-as ou ampliando-as –, gerava conquistas, mas resultava também numa recomposição da política, que poderíamos chamar de orgânica (similar às da centralização e concentração de capital), com recursos crescentes de manipulação em todos os sentidos – propaganda, mídia etc. (Lukács) – através da orquestração de entidades de origem empresarial, encasteladas “democraticamente” no Estado como defensoras ativas da ordem burguesa13. Neste caso, a interpretação de Carlos Nelson, assim como sua estratégia, demonstram limites, posto que a Este tema foi magistralmente trabalhado por Poulantzas no livro O Estado, o poder e o socialismo (Rio de Janeiro: Graal, 1980), no qual aponta para o fenômeno de deslocamentos sucessivos ocorridos no interior do Estado, reduzindo o alcance das vitórias políticas dos subalternos, que, mesmo detendo posições no Estado, encontravam-se à míngua de recursos.

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pedagogia das reformas não atua apenas em sentido socializante, mas pode ser revertida e crispar-se na defesa da ordem burguesa, exigindo poderosa organicidade dos subalternos para o enfrentamento mais árduo, onde o teor socializante precisa galvanizar em longa duração grandes extensões de trabalhadores apenas para assegurar as conquistas já realizadas. Essa interpretação poderia também ser aplicada ao caso brasileiro, no qual ocorreu intenso processo de enquadramento das lutas socializantes num âmbito mais estreito, abstratamente democratizante. Tal enquadramento não ocorreu apenas por conversão ideológica, mas também por forte repressão, sobretudo econômica, através de massivas demissões na década de 1990 e por pressões de âmbito internacional. Aprofunda-se o uso manipulativo de expressões clássicas da luta socializante. O golpe empresarial e militar de 1964 recorreu à “revolução” e à “democracia”, expondo­de maneira gritante as contradições com o processo ditatorial real. O recurso das últimas décadas ao termo “reforma” expressa um refinamento manipulatório, pois a reforma contém a admissão prévia da manutenção da ordem. Não por acaso, aliás, ele é a expressão mais corriqueira desde a década de 1990 nas agressivas campanhas burguesas de expropriação de direitos sociais. Formulações como de uma “terceira via”, de radicalização da democracia, ou democratizar a democracia, foram expressões evidentes para eliminar a socialização e para aprofundar a conformação às condições mais amplas da ordem burguesa. A manutenção do adjetivo revolucionário ao lado do termo reformismo, assim como o conteúdo socializante das reformas propostas, garante à interpretação de Carlos Nelson o teor de superação subversiva, para além da conservação da ordem. Mas talvez não seja suficiente para assegurar a compreensão dos novos patamares da luta de classes e da própria configuração do capital-imperialismo.

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No segundo ponto, porém, sua intervenção demonstra enorme capacidade de incorporação de fortes tendências presentes nas lutas sociais contemporâneas. Trata-se do que denomino provisoriamente como democratismo-subversivismo esporádico, que vem brotando em planos nacionais, com forte elaboração e alcance internacional. Os conflitos contra a OMC (como os enfrentamentos de Seattle e Gênova), a constituição do Fórum Social Mundial e, mais recentemente, manifestações como Occupy Wall Street e os massivos movimentos ocorridos na Espanha (M-15) ou em Portugal (Geração à rasca) demonstram escassa organicidade, porém uma intensa reivindicação da socialização efetiva da política. Em alguns casos, ainda que de maneira confusa, as reivindicações começam a incidir também sobre as condições econômicas. São movimentos que emergem marcados pelo enquadramento na recomposição orgânica da política já mencionado, razão talvez de suas hesitações, com atuação por enquanto ainda mais voltada para a redução de danos­do que para o enfrentamento das formas de produção, consideradas em suas dimensões econômicas, políticas, culturais e sociais. Emergem, pois, ainda marcados pelos traços de uma política abstrata, integrativa e fragilmente socializante. Não obstante suas limitações, há algo que as incessantes referências de Carlos Nelson à questão democrática deve nos fazer refletir: trata-se de uma tendência – ainda frágil – a superar a distinção entre socialização econômica e socialização da existência. A referência à democracia já – em países onde predomina de longa data a institucionalidade liberal-democrática burguesa, como os EUA – vem sendo utilizada como uma maneira de romper com as fronteiras idealizadas, implementadas entre uma economia aparentemente alijada da existência, uma política expressa sob formulações abstratas e uma sociabilidade marcada pela mercantilização.

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A insistência de Carlos Nelson na socialização da política deve relembrar, recuperando Marx, Gramsci e Lukács14, que inexiste uma economia à parte, que deva sustentar uma tática revolucionária específica, separada do conjunto da sociabilidade que nela se forma e a ela se amolda. As lutas pela socialização da política, menos do que uma tática específica, precisam carrear as exigências profundas de socialização da existência; e, ao infringirem os limites econômicos, políticos e sociais impostos pela sociabilidade dominante do capital, elas permitem entrever as fissuras que exigem a elaboração de uma associatividade que em todas as lutas realizadas dentro da ordem coloquem, simultaneamente, a necessidade e a urgência da superação dessa mesma ordem burguesa. A aderência às lutas de classes concretas é a condição para que a questão da socialização da existência possa furar os bloqueios interpostos à organização e ao enfrentamento da ordem burguesa como um todo. Em texto mais recente, Carlos Nelson apresentou a democracia como um conceito em disputa, no que tem razão: “a disputa hodierna não tem tanto como objeto a oposição explícita entre democracia e antidemocracia, como ocorria até meados do século XX, mas sim a oposição entre diferentes conceitos de democracia”15. Essa afirmativa implica que a adjetivação da democracia é uma condição para a definição de seu campo conceitual, político e social. A conservação do caráter “subversivo e anticapitalista” da democracia exige, assim, que ela integre plena e permanentemente a luta pelo socialismo, única forma social na qual pode plenamente realizar-se e, assim, contribuir para a emancipação humana. Ver especialmente Lukács, G. Socialisme et démocratisation. Paris: Messidor/Ed. Sociales, 1989, passim. [Cf. Lukács, G. Socialismo e democratização. Org. e trad. de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008, p. 83-206. (N. O.)] 15 “Democracia: um conceito em disputa”. In: Intervenções: O marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez, 2006, p. 26-27. 14

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Através de nossa fraterna e amiga discordância, chegamos mais uma vez a um ponto comum. Apesar de sua coerência, parece-me que há outros elementos a agregar. Mesmo com nuances e cautelas, essa reflexão pode conduzir à formulação de modelos, que tendem a gerar a suposição de que um certo desenvolvimento mais ou menos normalizado do capitalismo conduzirá, mesmo se com restrições, à disseminação de condições similares às dos exemplos modelares, em especial na generalização de direitos e na democracia. Aqui, a defesa de que o impulso popular por reformas sempre mais democratizantes e sua concretização – mesmo se parcial – expressaria uma capacidade organizativa crescente para cessar a dominação do capital e a alienação embutida já na própria existência de uma vida pautada pelas mercadorias. O que falta, pois? A incorporação das modificações reais que a mudança de escala no processo de ampliação do capital – freio das expressões populares – aporta ao novo conjunto, pois a totalidade abrangida agora por tais relações, dada as suas dimensões, implica novas e complexas determinações e contradições. Se a contradição central – entre a socialização da existência e a apropriação privada cada dia mais concentrada do excedente – permanece e se expande, as duas pressões já mencionadas – a da expansão/contenção – também se agudizam. Em outros termos, de que conquistas populares já integradas ou incorporadas numa certa “normalidade” dos países centrais, conquistas democratizantes que pareciam indicar uma certa elasticidade do liberalismo e do próprio capitalismo, se convertam agora em obstáculos para sua própria reprodução. O mais do mesmo exigiria agora menos.

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Sobre essa história que termina antes do fim1.

A interpretação das vicissitudes históricas e sociais de uma nação como a brasileira apenas por distração poderia utilizar os moldes clássicos das nações europeias. Este problema foi um teste importante para a aclimatação do marxismo no Brasil. Por décadas ele seguiu os trilhos da colagem e da insignificância, em que a realidade se adequava aos conceitos já estabelecidos da experiência dos países colonizadores. O que sobrava era posto na conta da nossa defasagem, do atraso que envergonhava todo esforço fracassado de encaixar teses universais em fatos particulares tão pouco classificáveis. A obra de Caio Prado Jr., neste sentido, valeu tanto pela libertação de esquemas teóricos, que entortavam toda iniciativa de se pensar livre de moldes uma realidade original, quanto pelas contribuições que trouxe para alargar as bases de uma crítica da sociedade burguesa desde a periferia. Depois dele, a exigência de se pensar o Brasil na chave conceitual do marxismo passou a ser Do poema de Torquato Neto, “Marginália II”: eu, brasileiro, confesso/ minha culpa meu pecado/ meu sonho desesperado/ meu bem guardado segredo/ minha aflição/ (...) aqui o terceiro mundo/ pede a bênção e vai dormir/ entre cascatas e palmeiras/ araçás e bananeiras/ ao canto do juriti/ aqui meu pânico e glória/ aqui meu laço e cadeia/ conheço bem minha história/ começa na lua cheia/ e termina antes do fim.

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bem mais elevada. Até os anos 1960, ele foi um marco relativamente solitário neste campo. Foi o grande acontecimento da derrota da esquerda com o golpe militar em 1964 que abriu espaço para renovações desta tradição e esforços de continuidade do legado de Caio Prado Jr. Para a geração que, ainda jovem, viveu estes acontecimentos se impuseram duas tarefas bastante exigentes: buscar outras explicações dentro da tradição do marxismo para entender o Brasil que não apenas a do marxismo-leninismo, dominante no PCB; e entender as razões da derrota de 1964. Em resumo, renovação teórica para compreender os desafios postos pela práxis. No mais importante livro de elaboração desta passagem da história, de Leandro Konder2, este desafio é apresentado como um “esforço em compreender por que a esquerda avaliara tão mal a situação e fora derrotada” (1988, p. I). Carlos Nelson Coutinho é um dos autores mais bem-sucedidos no enfrentamento a este desafio. Sua obra não apenas realiza uma síntese da dupla tarefa, como também apresenta formulações atinadas que ultrapassavam o primeiro projeto da sua geração, que é o entendimento das especificidades do Brasil depois de 20 anos de ditadura. Penso ser este último aspecto o maior sinal do alcance e da profundidade que sua obra atingiu. A mudança de influência dentro da tradição marxista, o abandono do marxismo-leninismo em favor do que hoje chamamos de marxismo ocidental3, como um novo quadro referencial para entender o Brasil contemporâneo, tem como elemento primordial uma avaliação cuidadosa da realidade do país e menos um desejo de estar de acordo com formulações gerais, como as do Comintern, que moldavam as deliberações do PCB. Autores Cf. A derrota da dialética; a recepção das ideias de Marx no Brasil até o começo dos anos trinta. Rio de Janeiro: Campus, 1988. 3 Cf. Anderson, P. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Brasiliense, 1989. 2

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como Lukács ou Gramsci, que passaram a servir de referência, viveram em sociedades em que as formas sociais do capitalismo estavam mais amplamente desenvolvidas e realizadas. A formação intelectual do primeiro, apesar de ter nascido no Império Austro-Húngaro, esteve permanentemente conectada com a Alemanha do início do século XX, enquanto Gramsci é um produto da parte mais moderna da Itália de sua época. Estas experiências trouxeram outros conceitos, para a compreensão da sociedade burguesa, mais próximos da realidade em que o Brasil entrou desde os anos 1930, quando um acelerado processo de industrialização e urbanização foi deixando para o passado o domínio das estruturas agrárias. Nos anos 1960, a compreensão de uma sociedade em pleno processo de modernização, apesar de periférica, se impôs com uma força evidente. Não por acaso, esta questão foi comum aos melhores intelectuais da geração que apareceu depois de 1964 e que fizeram outros caminhos para chegar a novas formulações conceituais do marxismo4. Invariavelmente elas representaram um confronto com o PCB ou com a sua direção. Considero ser este um batismo importante da personalidade intelectual de Carlos Nelson: uma tradição vale para ser modificada. Não são poucas suas manifestações favoráveis ao revisionismo ao longo de sua obra, no sentido de que todo pensamento é histórico e precisa ser testado em ato e, para isso, deve permanentemente ser atualizado. É uma postura essencialmente antidogmática e que o levou distante das formulações, por exemplo, economicistas e deterministas do marxismo O famoso Seminário Marx em São Paulo, formado por professores e estudantes da USP de diferentes áreas, na segunda metade dos anos 1950, foi outra entrada neste universo conceitual, através de autores marxistas distintos daqueles tomados como referência no PCB por Leandro Konder, Carlos Nelson etc. Participaram deste Seminário, dentre outros, J. A. Giannotti, F. H. Cardoso, Octavio Ianni, Roberto Schwarz, Michael Löwy etc.

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esclerosado dominante no Partido Comunista. A crítica ao determinismo não era uma escolha arbitrária em função de uma disputa, em si estéril, contra o gosto por dogmas de uma direção política pouco dada a grandes voos teóricos. Conforme as diferentes respostas a este debate, elas implicavam modos distintos tanto de organização dos atores da revolução como da afirmação da sua necessidade. Não era, portanto, um simples problema de melhor identificar as classes e grupos sociais em contradição com uma sociedade burguesa periférica, brutalmente desigual, autoritária e violenta, mas também uma discussão do tipo de práxis que comportava esta revolução. Além disso, um outro conjunto de temas que era afetado negativamente pela hegemonia da direção do PCB e seu modelo de marxismo se referia à análise das transformações do capitalismo, em particular o tema do capitalismo monopolista e seus desdobramentos na periferia, o que ajudava a se entender as transformações que o Brasil passava desde 1930 e os impasses que produziram os acontecimentos de 1964. As contribuições de Carlos Nelson

Se o termo “novos baianos” não tivesse sido apropriado por um grupo específico, cujo sentido de uma experiência ampla ficou por isso restringido, ele poderia ser muito explicativo para designar o ponto de partida de Carlos Nelson. E isto não é uma inflexão folclórica que visa demonstrar a origem ilustre do autor, mas um desses importantes indicativos de formação comum com outros próceres do debate cultural de então. Ter sido contemporâneo e amigo de Glauber Rocha, Caetano Veloso, Capinan, Tom Zé, entre outros, reforça com um dado biográfico o quanto as matrizes da elaboração do PCB careciam de bases mais consistentes para enfrentar os novos desafios que a urbanização de uma sociedade de terceiro mundo colocava. O fato de ser “um novo baiano” ex-

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plica bem o porquê das primeiras aproximações à obra de Lukács. O recorte do que deste interessava, novamente, se sustenta pelo cuidado de compreensão da realidade e da intervenção a que era chamado. Num país em que a modernização não permitiu consolidar um núcleo nacional-popular de referências culturais, discutir este tema era contribuir um pouco com as novas faces da práxis. Sem entrarmos em detalhes dos usos de Lukács neste contexto, ele permitiu afirmar um nexo em torno da defesa do realismo na literatura, numa linha em que se reconhecem as correspondências entre a narrativa realista e a dialética moderna, assim como a crítica da decadência ideológica burguesa que se oculta por detrás das correntes irracionalistas da cultura. Mas estes debates, apesar de importantes, são marginais para o desafio da dupla tarefa. Parece que foi mais ou menos por essa altura que Carlos Nelson começou a estudar Gramsci. Em Lukács, como ele diria, não se produz uma teoria política – uma vez que este não é o seu objeto central. E a derrota de 1964 exigia uma autocrítica política. Num contexto histórico mundial encharcado de experiências autoritárias, em que o próprio aprofundamento de algumas delas em fenômenos totalitários mostrava não ser um acidente de percurso, mas uma tendência das contradições do processo de modernização mundial, pensar o valor da democracia poderia ser um caminho de crítica tanto à realidade predominante nas sociedades periféricas como também uma diferenciação com as experiências do Leste europeu. (...) nem objetivamente, com o desaparecimento da sociedade burguesa que lhes serviu de gênese, nem subjetivamente, para as forças empenhadas nesse desaparecimento, perdem seu valor universal inúmeras das objetivações ou formas de relacionamento social que compõem o arcabouço constitucional da democracia política (Coutinho, 1979, p. 36).

A democracia, portanto, está longe de ser uma propriedade da sociedade burguesa. Como forma de organização política, é anterior,

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como atestam os gregos na Antiguidade, e deve por certo permanecer no centro de qualquer vir a ser de uma sociedade auto-organizada e emancipada. Além disso, as formas da democracia moderna são permanentemente contidas pelo domínio do interesse privado que resulta de mediações sociais hipostasiadas pela troca abstrata de valor. Neste sentido, a reflexão em torno da democracia estabelece uma ligação entre meios e fins que, desdobrada de suas fórmulas mais gerais, traz elementos para se proceder a uma crítica e autocrítica acerca de 1964. No pouco mais de um século de soberania política da sociedade brasileira, os momentos democráticos foram exceções, o que explica o modus operandi das formas de dominação imperantes no país. Por outro lado, esta reflexão problematizava também concepções etapistas ou blanquistas presentes na esquerda dos anos 19605. Ao incorporar elaborações já clássicas em nosso pensamento social, como as de Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque, que afirmam ser processual o caráter das transformações do país numa nação moderna, Carlos Nelson podia insistir numa reflexão que, sem deixar de ser eminentemente política, abarcasse a totalidade da sociedade. O debate sobre o nacional-popular, por exemplo, era uma parte relevante de um processo de democratização da cultura brasileira, obviamente inserida no caráter autoritário da sociedade, que podia ser observado, entre outras coisas, pelo número gigantesco de analfabetos. Assim, a crítica a partir da reflexão sobre a democracia no Brasil não se efetivava num exercício de melhoramento das formas, mas no confronto ao necessário estabelecimento de padrões minimamente razoáveis de existência de uma sociedade moderna. Em outros termos, o reconhecido autoritarismo das relações sociais não seria superado simplesmente “Apesar de substanciais divergências táticas e estratégicas, havia algo que ligava o ‘gradualismo’ do PCB ao ‘militarismo’ dos grupos de ultraesquerda: ou seja, a convicção de que o Brasil, enquanto país atrasado, deveria adotar os modelos revolucionários próprios do bolchevismo, do maoismo ou do castrismo” (Coutinho, 2007, p. 194).

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com as formas de um Estado democrático de direito, mas exigia um conjunto de reformas democratizadoras do acesso dos indivíduos àqueles recursos materiais e espirituais que permitem sustentar sua existência em padrões civilizatórios elementares e, por conseguinte, a autonomia de suas escolhas políticas e ideológicas. O incômodo que este tema produz em diversas esferas da sociedade brasileira se deve basicamente a três fatores. O primeiro deles é que, a despeito de sermos profundamente modernos, relações de dominação pessoal, que pressupõem uma situação de violência, ao menos implícita, são comuns. Se o estado de menoridade da humanidade, na formulação clássica de Kant sobre o esclarecimento, é concebido como a impossibilidade do exercício público dos recursos racionais da personalidade de cada um para os fins do entendimento, é forçoso constatar que, ainda hoje, esta é a condição de amplas massas no Brasil. O segundo fator: o critério de democratização da sociedade implica obrigatoriamente uma melhor distribuição de sua riqueza. Estes dois fatores estão na raiz de um importante debate realizado nos países centrais ainda no século XIX. E o terceiro: o capital, sem a imposição de limites, é uma forma social de regressões permanentes e assustadoras. A discussão e mitigação – no mínimo – da barbárie da sociedade burguesa periférica em que nos constituímos tornava-se inadiável. Por estas razões, a democratização, e não a mera democracia, para Carlos Nelson, tornava-se um feixe crítico indo para muito além de uma exigência liberal ilustrada de que as ideias ocupassem seu devido lugar entre nós – apesar de poder haver algo de iluminista nesta posição, que espera das “objetivações de valores universais” uma isenção das mediações particulares da história6. Em certas circunstâncias, como no debate sobre cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, o particular pode ser mais amplo e democrático do que declarações em abstrato de meios aparentemente universais, como o mérito.

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Nos países do centro, depois de suprimida a sociedade aristocrática – ou tendo esta se incorporado à dinâmica da sociedade burguesa –, o poderoso instrumento que serviu de luta para a burguesia legitimar suas aspirações permaneceu ativo, apesar da troca de cadeiras. Agora eram as classes subalternas que voltavam contra a ordem política sua luta por reconhecimento e suas exigências distributivas. Por isso, a capacidade de organização e de luta destes estratos sociais é um fator essencial do modo como o processo de modernização se realizou. No Brasil, como decorrência da lógica das relações entre centro e periferia, que Trotsky chamou de “desenvolvimento desigual e combinado”, cabia às massas ao mesmo tempo mitigar os horrores do capital e impulsionar seu amplo desenvolvimento. A fórmula é em si um paradoxo, mas encontrou no próprio processo histórico condições para ser aplicada. No entanto, invariavelmente, este duplo movimento acabou cedendo ao grosseiro realismo de que todos os sacrifícios realizados para garantir o desenvolvimento das forças produtivas tinham em si um valor emancipatório, o que fazia com que a mitigação da barbárie se tornasse adiável em nome da sua futura supressão, quando os resultados deste desenvolvimento seriam distribuídos. O futuro, porém, demora muito tempo, principalmente quando se observa que a permanente revolução das técnicas produtivas se explica mais pelas necessidades de acumulação de capital, uma simples tautologia imprescindível a esta dinâmica social, do que a uma pressuposta teleologia da história. Desse modo, a introdução de um critério para o processo de modernização da periferia, que é o processo de democratização, permitia expor, em tese, com vantagens sobre outros eixos da crítica social, os limites da sociedade burguesa – e seus impasses que se transformam, não somente na periferia, em monstruosidades objetivadas. Mas há também armadilhas neste critério, como a esperança de que o paradoxo da modernização pudesse se resolver nas condições históricas em que

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se realizou. Neste caso, o empenho ilustrado, que é um lugar de observação imanente à sociedade burguesa e a concebe como um progressivo desenvolvimento, supera as fontes da crítica social presentes na análise do processo de democratização. A reflexão sobre a democracia se impôs por razões históricas tanto no centro como na periferia. No Brasil, quando esteve vinculada a um projeto de crítica ao processo de modernização, produziu momentos de conhecimento bastante amplos da nossa sociedade e seus impasses. Caio Prado Jr. já havia realizado um imponente esforço de incluir a compreensão da formação nacional no movimento de expansão do mercado europeu nos séculos XVI-XVII. Este esforço também implicava medir nossas idades com as diferentes fases históricas do capitalismo e tentar deduzir das premissas de cada uma dessas etapas – que se impunham à nossa sociedade de fora para dentro, encontrando aqui, porém, correspondências e suportes próprios para a sua realização – as adequações que estas requeriam para prosseguir seu desenvolvimento. Tal construção de um pensamento dialético que permitisse compreen­ der a periferia desde suas condições de existência, entendidas no quadro desta imposição das medidas do trabalho social determinadas pelos países centrais, que impulsionavam o processo de mundialização do mercado, para posteriormente se avaliarem as alternativas e eventuais resistências, foi igualmente o lugar de Carlos Nelson. Na sua obra repercute o tempo todo o entendimento do modo de produção capitalista em seu desenvolvimento como uma realidade mundial, com suas leis gerais abstratas, das quais o Brasil é um momento determinado, uma formação social particular e adequada a estas leis. A escravidão é um exemplo do que aqui vai dito: produção para o mercado mundial em bases arcaicas. Não se trata de reduzir o Brasil ao mero determinismo da lógica do processo social de expansão do mercado; mesmo porque suas particularidades, em diferentes momentos da história, consistiram

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na possibilidade de outros caminhos; no entanto, inclusive eles, estavam condicionados por esta imposição da medida social das relações de troca. Isto obrigou o marxismo brasileiro, em sua fase de maturidade atingida na prosa de autores como Carlos Nelson, a se pensar como um momento da história mundial. Momento articulado e combinado às abstrações gerais do modo de produção com as interpretações concretas da nossa formação. A crítica da política

Além deste sentido histórico de crítica ao processo de modernização, a radicalização democrática se impunha também porque ela seria o modo de autogestão da sociedade emancipada. No Iluminismo, a crítica gira em torno da ideologia. Como seu intuito é desmistificar as formas de dominação pessoais e obscurantistas, liberando a subjetividade dos indivíduos para que se entreguem inteiramente às relações de troca, livres de entraves, ele toma a emancipação política como a finalidade da emancipação humana. Foi dessa maneira que se processou a ruptura com a velha sociedade tradicional do Antigo Regime e se afirmaram as relações sociais burguesas. Por isso, para esta sociedade, a norma legal e a forma abstrata do valor circulam pela mesma vereda da racionalização, em que a legitimidade do Estado se ancora na efetivação e na dinâmica da realidade estruturada pela lei do valor. Quando esta entra em crise, todo castelo de cartas é reduzido ao coringa da exceção. Marx fez da crítica um confronto destrutivo com as formas objetivas da economia política7, em cujas categorias encontramos “Na luta contra esta situação, a crítica não é paixão da cabeça, mas cabeça da paixão. (...). O seu alvo é um inimigo que ela procura não refutar, mas destruir. (...). A crítica já não necessita de ulterior elucidação do seu objeto, porque já o entendeu. A crítica já não é fim em si, mas apenas um meio; a indignação é seu modo essencial de senti-

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o modo objetivo de como se sustém a realidade do mundo burguês. Esta crítica não se dirige somente à objetividade das “leis naturais” de uma sociedade alienada, mas inclui aquela subjetividade reificada pelas relações de troca. Desse modo, a crítica da economia política é sempre uma leitura da totalidade da sociedade, e não apenas de um de seus aspectos parciais, como a vida econômica. Não obstante isso, Carlos Nelson julga ser um momento importante da crítica, sempre entendida como práxis, voltar às formas da política como mediação social8. Assim, para além da crítica da economia política, seria necessária uma crítica da política. Para ele, esta é a grande contribuição de Gramsci: ter colocado a política na altura das formulações da crítica da economia política, fazendo dela uma mediação da supressão das práticas sociais que reproduzem a dominação. Para a Ilustração, esta sociedade, por ser a realização da liberdade abstrata de todos, possui um estatuto trans-histórico. A crítica da economia política desloca esta perspectiva primeiro mostrando que suas formas de dominação impessoal são tão ou mais cruéis e destrutivas que as das sociedades anteriores, o que torna esta modalidade de liberdade uma quimera. A possibilidade de um holocausto nuclear, por exemplo, é uma particularidade histórica sem paralelos. Segundo, para a crítica da economia política, a sociedade burguesa é histórica, portanto, transitória. É deste segundo aspecto que Gramsci deriva sua crítica da política como a luta incessante pelo fim do Estado como modo constrangedor de mediação social. Algo em torno do que Marx afirmou na décima tese sobre Feuerbach: “O ponto de vista do antigo materialismo mento, e a denúncia, a sua principal tarefa”. (Marx, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 147 – grifos meus). 8 Mesmo não concordando com esta abordagem de Carlos Nelson, o que pouco importa neste contexto, o que merece ser destacado – e isso vale para todo o ensaio – são os resultados a que ele chegou.

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é a sociedade civil burguesa; o ponto de vista do novo é a sociedade humana ou a humanidade social”. A economia como uma esfera autônoma da sociedade, que determina sua dinâmica com leis objetivas, é o que Marx chamou nesta tese de sociedade civil burguesa. A crítica da política seria este movimento no qual “a economia [que] condiciona o âmbito das alternativas que se colocam à ação humana” (Coutinho, 2007, p. 97) é suprassumida na forma autorregulada da sociedade humana ou humanidade social. A autogestão da sociedade seria, então, um passo supressor tanto do Estado como desta forma de produção da vida material. Carlos Nelson concebe a mediação da crítica da política não só como um momento articulado à demolição que a crítica da economia política realiza, mas também como necessário, devido ao entorpecimento cognitivo que a alienação do processo social impôs aos indivíduos. Uma purificação dos sentimentos e dos sentidos [catarse], dominados neste modelo de intuição a priori em que a experiência, nesta sociedade, é formatada e limitada às formas da vida privada, se apresenta como uma condição imprescindível para a superação da dominação do capital. O conceito de catarse foi utilizado inicialmente, como sabemos, por Aristóteles na sua obra Política (1342 – b). Ele aparece no contexto de recomendações sobre a educação dos jovens, em que discute a pertinência da aprendizagem ou não de certos instrumentos musicais, como a flauta. Ao defender a educação pelos sentidos, que implicava conhecer e tocar um instrumento, Aristóteles faz a descrição do estado de serenidade experimentado após se ouvir alguns hinos religiosos. Deste estado ele destaca o efeito moral que produz sobre os indivíduos uma forte emoção compartilhada. Por ser uma experiência de sentir coletivo que altera o estado de ânimo do indivíduo, ela pode o predispor à realização de grandes atos. Em outra obra, a Poética, este conceito é retomado como um efeito da mimesis de uma obra de arte. Durante o Renascimento se pro-

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duziu uma tradição de interpretação deste passo que restringiu o efeito da catarse às formas da estética. Na nascente sociedade burguesa, a arte já estava se distanciando da vida pública, por isso a catarse parecia descrever exclusivamente os sentimentos produzidos pela cena dramática em oposição ao sentir coletivo. Apenas muito recentemente se voltou a pensar a catarse como um conceito presente e recomendado à formação daquele que deve atuar politicamente9. Por tudo isso, é surpreendente a perspicácia de Gramsci, para quem, muito antes desta revisão, o termo catarse já servia (...) para indicar a passagem do momento econômico (ou egoístico passional) para o momento ético-político, ou seja, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto significa também a passagem do objetivo ao subjetivo e da necessidade à liberdade. A estrutura, de força exterior que esmaga o homem, que o assimila a si, que o torna passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em origem de novas iniciativas (Quaderni, p. 1.244; apud Coutinho, 2007, p. 91).

A purificação dos sentimentos, que realiza a liberação dos sentidos das formas apriorísticas transcendentais da experiência determinada pela “estrutura, de força exterior que esmaga o homem”, liberta os indivíduos para a ação. Ela desinibe os impulsos para relações sociais diretas, não mediadas por coisas, mobilizando os sentimentos para este tipo de sociabilidade solidária que é a humanidade social. Por isso, ela requer a disposição das capacidades humanas, que durante milênios estiveram submetidas a formas de dominação, para que o desenvolvimento destas, uma vez liberadas das travas que as limitavam, possa se dar numa direção Cf. Reale, G. e Antiseri, D. História da filosofia, v. 1. São Paulo: Paulus, 1990, p. 220-221; e Pesce, D. “Saggio introduttivo”. in: Aristóteles, Poética. Milano: Rusconi Libri, 1995, p. 7-47.

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criadora de um modo de produção da vida social totalmente novo. O passado incrustado nos hábitos e costumes, como uma segunda natureza aderida aos músculos e nervos, ou nas membranas veladas sobrepostas ao olhar, que a tudo responde pelo imperativo do valor, precisa ser processado na experiência vital dos indivíduos, sacudido como parte da demolição das relações sociais sob domínio do capital. E isto deve se realizar no processo de crítica enquanto práxis emancipatória. Caminhos do Brasil à modernidade

Carlos Nelson procurou, diante dos acontecimentos de 1964, tanto uma renovação conceitual quanto um eixo de reflexão que pudesse expor criticamente as diversas faces de uma sociedade moderna periférica. Daí sua leitura de Gramsci não o tornar tão somente um gramsciano – como há muitos deles Brasil afora –, mas um intérprete original desta sociedade numa chave comum ao universo conceitual do marxista italiano. A forma como desenvolveu a reflexão sobre o processo de democratização, a meu ver, alcançou uma visada suficientemente ampla sobre o presente, construído desde sua gênese na longa duração, estruturado a partir de movimentos internos da sociedade que não podem voltar suas costas às imposições externas da dinâmica do mercado mundial, que o tornam um clássico da tradição crítica brasileira. Sua contribuição específica nesta tradição, que resulta do modo como elaborou a derrota, é a análise da via de transição do Brasil ao processo modernizador, que marca de forma indelével todo o percurso. A passagem do Brasil da fase mercantilista do capitalismo para a industrial – ou de livre concorrência –, que coincide com o fim do período de colonização portuguesa, no início do século XIX, guardou especificidades que a torna distinta de modelos clássicos como o dos EUA, França ou Inglaterra. Esta especifi-

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cidade não se deve apenas à “via de transição”, como se diz no jargão da teoria política, mas à própria novidade que a formação da sociedade brasileira – e a da América espanhola – representava. Num misto entre alto preço a ser pago pelo sucesso de seu pioneirismo, ainda na fase do capitalismo comercial, e o fracasso que isto implicava para o desenvolvimento das formas mais dinâmicas do capitalismo de livre concorrência, a transição da colônia de exploração para a independência preservou um imbróglio de questões a serem desatadas posteriormente. A principal delas é a dependência econômica da exportação para o mercado europeu de monoculturas produzidas por trabalho escravo. A força deste tipo de produção, derivada do peso que os produtos da ex-colônia atingiram no mercado externo, principalmente o açúcar, era também, por outro lado, sua fragilidade, o que tornava difícil criar outras alternativas de sustentação da economia nacional. O fato de a terra ser o meio de produção por excelência de uma sociedade rústica como o Brasil, recém-saída do antigo sistema colonial, e um privilégio de poucos, assim como a forma de trabalho dominante ser a escravidão, tornava a disposição de ações autônomas da massa de homens livres pobres, subordinados a relações de favor com os grandes proprietários, bastante difícil. Este imbróglio foi sublinhado por Carlos Nelson justamente na leitura de suas afinidades com Caio Prado: “Característica da via ‘não clássica’, ou prussiana, é precisamente essa complexa articulação de ‘progresso’ (a adaptação ao capitalismo) e conservação (a permanência de importantes elementos da antiga ordem)” (Coutinho, 2000a; p. 226). A força de imposição conservadora da oligarquia escravocrata, interessada nos bons negócios que a independência proporcionaria – em especial livrar-se do monopólio metropolitano, sem que isso exigisse mudanças bruscas do seu modo de ser – fez com que este processo importante da formação da nação estivesse mui-

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to longe da participação e compreensão das massas. Na verdade, em diferentes momentos, como no período regencial, o Estado não passou de um reles instrumento brutal contra as massas em rebeliões sem um eixo comum. O modo como se deu esta transição, realizada pelo alto, e que voltará a se repetir em diversos momentos decisivos da história do país, por exemplo, no fim da escravidão e proclamação da República, tem por exemplo no centro os impasses de uma sociedade que faz do arcaico um modo de ser moderna. Entre nós, o moderno apenas subsiste por meio do arcaico. Como esta é uma situação que não pode voltar suas costas às pressões que vêm de fora, isto é, não é uma mera patologia local, pode-se dizer que neste caso o moderno mostra a verdade que nos países centrais pode ficar encoberta. Carlos Nelson viu na persistência deste tipo de forma de mudança, pelo alto, uma característica fundamental da sociedade brasileira. Por se tratar de um mecanismo, no sentido literal do termo, não basta analisar a forma e constatar as inúmeras repetições. Como na anedota do escorpião e do elefante, em que este desconfia dos bons modos com que aquele lhe pede uma ajuda para atravessar um rio, não basta saber que as mudanças pelo alto fazem parte da natureza das classes dominantes. Tão importante quanto isso é compreender de que elementos da formação social estas tendências arregimentam suas forças e como eles podem ser neutralizados. A resposta inserida na análise do processo de democratização vai exatamente nesta direção: O conceito de revolução passiva constitui (...) um importante critério de interpretação [... de] todo o processo da transição de nosso país à modernidade capitalista e, mais recentemente, ao capitalismo monopolista de Estado. Disso resulta (...) que ele pode (...) nos proporcionar instrumentos analíticos capazes de indicar traços decisivos de nossa formação política e social (Coutinho, 2007, p. 203).

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A oposição às análises do PCB fica bastante evidente. O partido, ao manter sua fidelidade ao Comintern, avaliava predominantemente a forma. Por isso, pressupunha, em consonância aos modelos clássicos europeus, que o processo sociopolítico deveria passar por uma etapa democrático-burguesa, na qual as presenças das formas arcaicas seriam eliminadas da formação social. O latifúndio, por exemplo, em sua aliança com o imperialismo, deveria ser combatido como uma anomalia que impedia o desenvolvimento pleno das forças produtivas de uma nação moderna e soberana. Decorria desta tarefa a avaliação de uma aliança necessária das forças democráticas e populares com a burguesia nacional. Em resumo, para o PC era a hora e a vez da revolução burguesa. Contudo, como ficou demonstrado pelos acontecimentos de 31 de março de 1964 e posteriormente, nada mais adequado ao horizonte social e político da burguesia brasileira do que o suposto arcaísmo das relações de propriedade do campo. Ao contrário do que pensava o Partido, as transições pelo alto, tão abundantes na história do país, não foram um adiamento destas “tarefas históricas”, mas somente o modo acanhado da sua efetivação: essa modalidade antijacobina de transição ao capitalismo não significa absolutamente que a burguesia brasileira não tenha levado a cabo sua ‘revolução’: fez isso, precisamente, através do modelo da revolução passiva, que tomou entre nós a forma (...) de uma ‘contrarrevolução prolongada (...)’ ditadura sem hegemonia (Coutinho, 2007, p. 204-205).

No caso da ditadura militar, esta “contrarrevolução” assumiu contornos mais traumáticos que as anteriores porque a mobilização das camadas populares estava num processo crescente de radicalização. Algo inédito na história do país, as lutas não estavam restritas a uma parte da sociedade ou a uma região. As Ligas Camponesas eram a mais urgente, talvez, mas as greves frequentes de trabalhadores urbanos não passavam desapercebi-

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das; mesmo porque ambas as lutas eram dois lados de uma moeda puída que foi o arranjo da modernização posta em curso pelo Estado Novo e mantida pelos governos do período democrático, que se sustentava na negação de direitos e reformas modernizantes no campo e na superexploração da força de trabalho na cidade. Como observou Ruy Fausto10, o polo mais arcaico da moderna sociedade brasileira, os camponeses do Nordeste, acabou tendo o papel de detonar as contradições de todo o processo de modernização. Sua disponibilidade de radicalização tinha algo a ver, provavelmente, com a espontaneidade que se libera do esgotamento de certas relações de dominação pessoal que existiam no campo. Neste sentido, este polo tinha uma dinâmica diferente das lutas por melhores salários da cidade, mas a solução de ambas esbarrava neste cobertor curto que é a modernização tardia de países periféricos. As reformas de base que organizavam e davam unidade programática a estas lutas, dando-lhes abrangência em todo território nacional, uma vez realizadas, pressupunham uma dinâmica democratizadora que dificilmente passaria à margem dos grandes combates da Guerra Fria. (...) a ditadura é ‘apenas’ a expressão atual (...) de uma tendência dominante na história brasileira. (...) o caráter elitista e autoritário que assinalou toda a evolução política, econômica e cultural do Brasil, menos em seus breves períodos ‘democráticos’. (...) as transformações políticas e a modernização econômico-social no Brasil foram sempre efetuadas no quadro de uma via prussiana, ou seja, através da conciliação entre frações da classe dominante, de medidas aplicadas ‘de cima para baixo’, com a conservação essencial das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução ampliada da dependência do capitalismo internacional; essas transformações (...) tiveram como causa e efeito principais Cf. Fausto, R. “A revolução brasileira de Caio Prado Jr.” In: Teoria e prática. São Paulo: Teoria e Prática, s/d, p. 8-23.

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a permanente tentativa de marginalizar as massas populares (...) (Coutinho, 1979, p. 41).

Dessa maneira, não seria diletantismo comparar estes impasses com os processos de modernização do século XX de países como a Itália ou a Rússia, por exemplo. Salvo engano, somadas todas as ressalvas, uma das críticas endereçadas aos planos quinquenais de industrialização de Stalin foi relacionada aos enormes sacrifícios que exigiram das massas camponesas. Chegou-se inclusive a falar de uma necessária acumulação primitiva de capital no campo para financiar os saltos das forças produtivas na indústria11. A intenção não é sugerir familiaridades entre regimes políticos e seus resultados, mas situações semelhantes de um processo que se impunha de fora para dentro à dinâmica destas sociedades e que foram respondidas em cada uma delas de formas diferentes. O que cabe destacar são estes enormes esforços de emparelhamento, como Celso Furtado12 concebia estes processos em que os países retardatários da corrida do mercado mundial pretendiam alcançar os países centrais, que expõem as condições em que Cf. Carr, E. H. La revolucion rusa: de Lenin a Stalin, 1917-1929. Madri: Alianza Editorial, 1985, “Numa sessão crucial do Comitê Central do Partido [bolchevique], em julho de 1928, se criou uma divisão entre aqueles que desejavam diminuir a pressão sobre o campesinato, inclusive ao preço de tornar mais lento o ritmo da industrialização, e aqueles que davam prioridade incondicional à industrialização, por mais severas que fossem as medidas de coerção impostas ao campesinato” (p. 164). “Se a primeira condição da industrialização, ainda que não explicitada, era que o campesinato entregasse sua produção às cidades em troca de um modesto pagamento; a segunda, abertamente confessada, era que a produtividade dos trabalhadores cresceria mais rapidamente que seus salários, de forma que a expansão industrial poderia ser financiada em parte a partir dos lucros da própria indústria (...)” (p. 173). 12 Cf. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional – PubliFolha, 2000. Ao comentar os padrões de financiamento da acumulação de capital no Brasil da década de 1930, Francisco de Oliveira diz: “Sob certos aspectos, esta estratégia de industrialização parece muito com o modelo de Dobb para a primeira fase da expansão da economia soviética; essa semelhança é apenas teórica (...)”. Cf. A economia da dependência imperfeita. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 80. 11

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estas possibilidades se realizavam, pois elas tinham que se dar – sem poder suspendê-lo – no regime de concorrência deste mercado mundial. O isolamento de uma nação dentro de um sistema em que suas partes – isto é, os Estados nacionais – são um produto da divisão mundial do trabalho é algo impossível de ocorrer. Daí a irrevogável “necessidade histórica”, dentro destas condições, de sacrifícios brutais e de adiamentos eternos do gozo de seus resultados.13 Talvez Carlos Nelson não concorde com todas as consequên­ cias deste raciocínio, mas, de certo modo, ele observou com clareza que a intervenção militar não foi uma pitoresca quartelada, e sim o encaminhamento pelo alto do ancestral imbróglio da formação nacional. Em termos mais simples, uma solução obviamente conservadora, portanto autoritária e violenta ante os limites das condições de modernização tardia nos marcos de um regime de concorrência mundializado: (...) os objetivos do regime ditatorial instalado no Brasil depois de 1964. (...) ele não pode ser caracterizado como um regime fascista ‘clássico’, mas seus objetivos de política econômica têm fortes semelhanças com os do fascismo italiano: as forças produtivas da indústria, através de uma forte intervenção do Estado, desenvolveram-se intensamente, com o objetivo de favorecer a consolidação e a expansão do capitalismo monopolista (Coutinho, 2007, p. 201).

O elemento comum destas experiências é a transformação – o caso da Itália foi de consolidação – destas sociedades em “tipos ocidentais”. Neste caso, os esforços de emparelhamento passam obrigatoriamente pelo salto no desenvolvimento das forças produ Outro exemplo que pode ser retirado da experiência soviética sobre este tema: “O chamado a ‘alcançar e ultrapassar’ o Ocidente já havia sido lançado pelos partidários da industrialização. Stalin tratou do tema num importante discurso ao Comitê Central. Sustentou que o avanço da tecnologia ‘simplesmente disparou’ nos países capitalistas avançados: ‘ou nós conseguimos ou nos destruirão’” (Carr, 1985, p. 182).

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tivas que, ao que parece, somente pode ser dado em condições de exceção da “lei natural” de desenvolvimento do capital, exigindo amplos sacrifícios das camadas populares. Na referida conjuntura histórica das sociedades centrais, na segunda metade do século XIX – época em que a Itália ainda estava excluída deste seleto grupo –, quando começou a se realizar um programa de mitigação da barbárie cotidiana da sociedade burguesa, com a limitação da jornada de trabalho, a acumulação primitiva de capital já estava por lá encerrada. O desenvolvimento desigual e combinado permitiu então aos capitais dessas nações abocanharem imensos lucros no mercado mundial a partir das diferenças de desenvolvimento com as bases de produção dos países retardatários. Por isso, o bem-estar conquistado pelas classes trabalhadoras dos países centrais, fruto de longas e duras lutas, não pode ser universalizável numa sociedade mundial regida pela batuta constrangedora do tempo de trabalho socialmente necessário. Isto não foi possível ou porque estas sociedades retardatárias estavam sempre numa situação desfavorável na concorrência pela apropriação dos lucros produzidos – cuja base é o desenvolvimento das forças produtivas – ou porque o emparelhamento da medida de tempo de trabalho – que é o que ocorre na globalização – se torna impossível14, e por isso se inicia a ruína desta forma social desde a periferia, seu elo mais fraco15. Na medida em que, para Carlos Nelson, a “ocidentalização” – entendida como “um fenômeno potencialmente universal” (2007, p. 211) – e o processo de modernização correspondem ao mesmo movimento histórico das sociedades burguesas, a sua identificação se torna um importante critério de compreensão das dinâmicas políticas e Cf. Oliveira F. de. Crítica da razão dualista – O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 139. 15 Cf. Menegat, M. “Sem lenço nem aceno de adeus”. Praia Vermelha - Estudos de Política e Teoria Social. Rio de Janeiro, v. 1, n. 18, p. 146-177, 1º semestre/2008. 14

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sociais que estas realizam em consonância com as distintas fases do capitalismo contemporâneo. Nesta perspectiva, a forma que adquiriu a solução dos impasses das lutas sociais do período pré-1964, na violenta imposição de uma ditadura militar, aponta tanto para a repetição de um mecanismo interno da dinâmica social, que a força da mobilização popular não pôde impedir, conforme já sublinhado acima, como para os constrangimentos externos de um sistema de relações econômico-políticas que submete suas partes à sua lógica e hierarquia. Paradoxalmente, a ditadura contribuiu até mesmo para reforçar e consolidar essa tendência à ‘ocidentalização’. (...) esse regime (...) foi uma forma política de que (...) se valeu o grande capital (nacional e internacional) para consolidar definitivamente o modo de produção capitalista no país, já agora em sua etapa de capitalismo monopolista de Estado (Coutinho, 2000b, p. 89).

Dissociar o processo de “ocidentalização-modernização” de um ideal foi um grande passo para se perder o hábito, próprio de um pensamento colonizado, de pensar que bastava esta passagem para se obterem todas as condições de existência dos países centrais. Em outras palavras, se uma das tarefas da revolução burguesa no Brasil foi liberar o desenvolvimento das forças produtivas, impulsionando a passagem – mesmo que tardia – de uma sociedade rural para uma formação urbano-industrial, na medida em que esta ocorre como uma “via não clássica” de uma sociedade periférica, ela não necessariamente se realiza como uma elevação dos “padrões civilizatórios”. O resultado final da ditadura atesta o modo como foram ampliadas pelo alto as contradições do processo de modernização, prolongando seu impasse. Porque o Brasil tem a peculiaridade de ser uma sociedade ‘ocidental’ (...), ou seja, com uma sociedade civil já bastante articulada e pluralista, mas, ao mesmo tempo, de conter dentro de si, também, essa ampla faixa de exclusão social, esse grande ‘oriente’ miserável e marginalizado. De certo

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modo, estamos numa encruzilhada onde se encontram e se integram as contradições do Primeiro Mundo com as contradições do Terceiro Mundo. Acho que Trotsky não hesitaria, diante do Brasil de hoje, em falar de desenvolvimento desigual e combinado (Coutinho, 2000b, p. 146).

Esta dualidade constitutiva, que em outros períodos da história parecia ser “a contramola” que impulsionava o processo de modernização democrático-popular, após as duas décadas de ditadura militar adquiriu outro significado. A ampla faixa de exclusão social, esse oriente dentro do “extremo ocidente” que é a América Latina, não representa mais, tanto objetiva como subjetivamente, um desvio de percurso da modernização. É seu resultado histórico. Isso porque o capitalismo chegou a um estado de fadiga de sua expansão ilimitada. As barreiras que se impõem a este processo neste contexto histórico exigem níveis elevados de destruição social e da natureza sem que seus resultados sejam “progressistas”, como se apresentaram no passado. Este legado repercutiu dramaticamente no período da redemocratização do país nos anos 1980. Penso que a dialética formulada por Carlos Nelson, em que o processo de democratização deveria servir de medida à ocidentalização do país, lhe forneceu matéria crítica para acompanhar com inquietante lucidez o que talvez seja o período mais difícil da história do Brasil contemporâneo. O elemento inquietante gira em torno da não realização da potencialidade universal do processo de ocidentalização no momento em que estas formações nacionais periféricas entraram numa fase de desmonte nos anos neoliberais, como veremos. Democracia de massas

O imbróglio não desatado da formação social, em que o processo de gênese constituiu um mecanismo de exclusão permanente das massas, ao chegar num período da história mundial da

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sociedade burguesa marcado pelo início de uma crise estrutural, definida por barreiras incontornáveis ao seu necessário e inexorável movimento de expansão, tende a se tornar um processo aberto de regressão social. Esta regressão somente ficou visível no andar dos anos 1990. Nos momentos finais da ditadura, pela criadora oposição entre o projeto de abertura dos militares e o processo social e político de luta pela abertura da sociedade civil brasileira, foi possível se produzir uma expectativa distinta com o futuro próximo. Não somente pelo fim de um regime de horrores, mas pela auspiciosa perspectiva presente na fundação de organizações como PT, CUT e MST. Esta perspectiva indicava um amadurecimento da formação das classes trabalhadoras e a potencialidade de se realizar finalmente uma série de conquistas que representassem a democratização da (...) economia nacional, criando uma situação na qual os frutos do trabalho do povo brasileiro – que se torna cada vez mais produtivo – revertam em favor da grande maioria da população. Isso aparece como pressuposto indispensável para integrar a sociedade nacional, na condição de sujeitos, enormes parcelas da população hoje reduzidas a uma condição subumana, e, desse modo, destruir pela raiz os processos marginalizadores que caracterizam a ‘via prussiana’ (Coutinho, 1979, p. 43).

A redemocratização, portanto, no cenário de intensa luta das classes subalternas, que pareciam transbordar os limites acanhados do controle projetado, depois de uma acelerada modernização excludente, apontava para a possibilidade histórica de uma democracia de massas. Ou seja, um acerto de contas com a história em que as reformas estruturais desta monstruosa sociedade que o Brasil se tornara pudessem enfim ser realizadas. No entanto, as raízes sociais do mecanismo de exclusão não foram tocadas, tendo, em diversos aspectos nos anos de modernização conservadora da ditadura, se aprofundado de forma patológica. Este beco sem

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saída foi se apresentando nas confrontações do primeiro período da redemocratização. Se, por um lado, toda uma nova gama de organizações de massa havia surgido no período recente, de outra parte a capacidade de enfrentamento das classes dominantes, com seu peso conservador e conhecida habilidade de cooptação, encontrou eco profundo na sociedade. Neste sentido, muito cedo a expectativa da democracia de massas, inspirada no modelo europeu de conquistas de direitos sociais, dividiu o espaço político com o modelo americano liberal-corporativo. Não só a transição democrática foi fraca, novamente acordada pelo alto, como as ruí­ nas do processo de modernização, visíveis pelas “enormes parcelas da população reduzidas a uma condição subumana”, começava a se tornar um desafio programático de “proporções amazônicas” para a esquerda. Este desafio se tornou um verdadeiro exercício de Sísifo com o colapso social decorrente da crise da dívida externa, no inicio dos anos 1980. Desta crise resultaram ao menos duas décadas seguidas que os economistas não titubearam em definir como ‘perdidas’. Esta situação paralisante era formada por um coquetel explosivo de estagnação econômica com inflação fora de controle. Somada a isto, uma conjuntura externa marcada pela queda do muro de Berlim, com a posterior dissolução da URSS, e o início do desemprego estrutural, que paradoxalmente alavancou as forças neoliberais aos governos dos países centrais, transformou o desafio programático numa situação de crise aguda da esquerda16. Esta crise tinha como fundamento, e isto será importante para entender as análises de Carlos Nelson nesse período, a im16

“O movimento socialista, particularmente após os eventos do Leste europeu, atravessa uma das mais profundas crises de sua história, crise que envolve não só as sociedades que se identificaram (...) como ‘socialistas’ (ainda que essa identificação possa e deva ser qualificada), mas também (...) a capacidade projetual e programática dos vários movimentos políticos que reivindicaram e reivindicam a tradição da esquerda” (Coutinho, 2000b, p. 103).

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possibilidade de se continuar articulando o processo de ocidentalização com o de democratização radical. As barreiras internas à expansão do capitalismo, decorrentes do estágio alcançado pelo desenvolvimento das forças produtivas, e as externas, presentes no fato de que não existem mais alternativas concorrentes a este modo finalmente universal de acumulação de capital, tornam esta situação um abismo que tudo arrasta. O processo de modernização correspondeu à fase histórica de afirmação do capitalismo industrial, que se baseou na urbanização e no alto desenvolvimento das técnicas produtivas por meio da ciência. Esta fase do capitalismo conseguiu a proeza de fazer esta forma social chegar a praticamente todos os cantos do planeta, transformando todas as relações humanas em relações de troca. A forma mercadoria-dinheiro imantada pelos movimentos do capital é o modo de ser das relações de qualquer sociedade mundo afora. Há pelo menos quatro décadas que a modernização não corresponde mais a outro fenômeno do que à “encruzilhada onde se encontram e se integram as contradições do Primeiro Mundo com as contradições do Terceiro Mundo” – inclusive na fronteira interna dos países centrais. Na década de 1990, o domínio de políticas neoliberais, que são um sintoma do limite do processo de modernização, levou à ampliação do modelo da “americanização” do Brasil, com o consequente desmonte das condições objetivas para uma democracia de massas. [a contrarreforma] tem dois objetivos prioritários: por um lado, em nome da ‘modernização’, anular as poucas conquistas do povo brasileiro no terreno dos direitos sociais; e, por outro, em nome da ‘privatização’, desmontar os instrumentos de que ainda dispúnhamos para poder nos afirmar como nação soberana em face da nova fase do imperialismo, a da mundialização do capital (2000b, p. 123).

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Esta situação ampliou os pontos de tensão da ‘encruzilhada’ dos dois mundos. Em vez de se criarem formas de “ interlocução entre os setores organizados da sociedade e os setores excluídos” 17, capazes de impulsionar novas modalidades de organização e ação política que resultassem em saídas aos impasses programáticos, o que se verificou foi o recrudescimento do impressionante aparato policial do Estado e a consensualização de políticas de exceção contra as massas excluídas. A crescente barbárie

As contradições da sociedade brasileira se aprofundaram sem que impulsionassem um salto progressivo. Em diferentes aspectos, essenciais à história da nossa formação social, resultantes de um tenaz esforço coletivo, houve exatamente o seu inverso: um “desmonte da nação”18. A expressão é do próprio Carlos Nelson e serve para indicar um quadro generalizado de regressão que se realiza nos marcos das “insanáveis contradições do capitalismo”, nas quais se atualiza uma ‘velha’ tese de Marx, segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas (que vem gerando uma diminuição cada vez maior do tempo de trabalho socialmente necessário à produção do gênero humano) entra em contradição com a conservação de relações de produção fundadas na propriedade privada (...) (Coutinho, 2000b, p. 82).

São estas contradições que permitem assinalar o alcance estrutural da crise em curso e a separação entre processo de mo Cf. Coutinho, C. N. 2000b, p. 128. “O destino da democracia no Brasil está hipotecado: ele depende da nossa capacidade de impedir que o neoliberalismo conduza (...) ao definitivo desmonte da Nação brasileira” (2000b, p. 124).

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dernização e processo de democratização. Na medida em que as forças produtivas se tornam amplamente forças de destruição, e que o seu desenvolvimento se realiza nos marcos intransponíveis da regressão social e da destruição ecológica, a democratização só pode ser a forma através da qual a humanidade vai suplantar este modo de produção. Ela já não encontra um elo progressivo na sociedade burguesa, mas se volta abertamente contra esta que tende cada vez mais a se transformar num estado de exceção. Numa das obras que cobre justamente estes acontecimentos dos anos 1990 – portanto, já à luz das elaborações dos acontecimentos de 1964 – Carlos Nelson passa a utilizar com relativa frequência o termo barbárie19, que penso ser uma adequada qualificação a esta regressão. Este termo, relativamente ausente na sua prosa anterior, foi sugerido por este desenlace das forças que impulsionaram a fase anterior da história. Ele serve para assinalar uma escolha que se impôs à humanidade, na chave primeiro enunciada por Engels e depois retomada com toda sua verdade trágica por Rosa Luxemburgo: (...) o socialismo se tornou não só uma possibilidade cada vez mais objetiva e concreta, como também uma necessidade, já que cada vez mais se revela como a única alternativa sensata que hoje se apresenta à crescente barbárie produzida pelo novo estágio ‘globalizado do capitalismo’ (2000b, p. 84).

É numa situação como esta que se podem observar as inúmeras rupturas que a leitura do marxismo realizada por Carlos Nelson efetivou. Longe do determinismo do marxismo vulgar dominante no PC dos anos anteriores ao golpe de 1964, sua No seu livro Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo (São Paulo: Cortez; 2000), Carlos Nelson faz um uso mais frequente do termo barbárie que em qualquer outra parte da sua obra. Aqui foi usado quatro vezes.

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compreensão do processo de regressão, além de ser uma notável lição de dialética, por entender que os saltos qualitativos na história dependem basicamente das condições de escolha dos indivíduos associados, é uma atenta síntese das vicissitudes históricas do país, onde este estado de barbárie foi uma regra para amplos setores das classes subalternas, a começar pelos escravos. A comunhão conceitual com Gramsci lhe franqueou este importante mirante do processo social. Para o autor dos Cadernos do cárcere, o socialismo é obra dos homens. Não é uma necessidade objetiva (...); mas é certamente uma necessidade subjetiva, na exata medida em que só por intermédio de sua realização os homens podem efetivamente livrar-se da barbárie e cumprir as promessas da emancipação contidas na modernidade (2000b, p. 175)20.

A temática de um estado regressivo como uma característica imanente a nossa formação social esteve, de certa forma, sempre presente na tradição crítica brasileira. Se observarmos os termos com que Caio Prado Jr. analisou este processo, veremos que o problema deste estado e a sua supressão era uma dimensão programática fundamental. Em Sérgio Buarque de Holanda ou Antonio Candido não é muito diferente. Para estas gerações que co20

Os outros usos do termo barbárie estão num artigo sobre o Manifesto Comunista, de maio de 1998, em que ele diz, ao analisar uma das frases do texto de Marx e Engels: “‘o livre desenvolvimento de cada um é o pressuposto para o livre desenvolvimento de todos’. É uma frase densa de significado, que fornece aos marxistas de hoje critérios para avaliar as razões do fracasso do ‘socialismo real’ (...) para resgatar a dimensão libertária do comunismo, esse ‘espectro’ que continua sendo (...) a única alternativa racional e sensata à crescente barbárie capitalista” (2000b, p. 168); e num artigo sobre Gramsci, de 2000, ele diz: “essas personalidades de esquerda parecem querer recusar liminarmente a única alternativa exequível à barbárie em que estamos cada vez mais envolvidos, ou seja (...) uma sociedade socialista” (2000b, p. 174). A atenção e o uso com maior frequência deste conceito sugere que algo ocorreu na sociedade, entre o intervalo da publicação de Marxismo e política, de 1994, e a destes ensaios, que passou a exigir esta [nova] qualificação.

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meçaram a pensar o Brasil antes dos acontecimentos de 1964, a barbárie era os resquícios ou as raízes do passado que ainda não havia sido extintas do processo social. O presente, para estes autores, se apresentava como a projeção possível de um futuro em que o passado pudesse ser liquidado. Na geração de Carlos Nelson, e isto está longe de ser um entendimento comum a todos, o que distingue mais ainda o alto nível que sua obra atingiu, a barbárie, é percebida como um resultado do presente – claro que organicamente ligado ao passado, mas essencialmente um modo de ser atual. Neste sentido, os desafios de se entender e interpretar a sociedade ganham novas e complexas dimensões. O horizonte realizado da sociedade burguesa nos países centrais deixa de ser um telos para ser parte desta dimensão que produz a barbárie. Em outros termos, este não é um problema exclusivamente brasileiro, de uma realidade particular inclassificável, mas a mais perfeita caracterização do que é o capitalismo se não for transformado: uma sociedade fundada em formas regressivas de sociabilidade. Breve nota sobre a escrita

Formada por um rico universo conceitual de crítica a esta sociedade e escrita numa prosa bastante elegante, a obra de Carlos Nelson apresenta para as gerações que surgiram depois da ditadura militar um caso instigante do que significa pensar diante da barbárie. O destaque da forma de sua escrita indica um esforço bem contornado na busca de representações de uma realidade que sobrava quando submetida aos conceitos transpostos a ela desde outras experiências sociais. Seus ensaios nunca são prolixos e parecem sempre dominar o segredo do atalho, que faz do tema central o ponto em torno do qual os argumentos devem ser organizados. Nada mais distante do intelectual bacharel da Velha República ou do bate-boca descritivo do parecerista bem informado da pós-

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-modernidade. Enfrentando o arbítrio da ditadura ou confrontado com a escolha da luta armada feita por importantes estratos da esquerda dos anos 1960, sua escrita bem esculpida demonstra uma impressionante confiança na palavra, investida da capacidade de elucidar realidades abjetas e de abrir caminhos onde a desrazão parecia ser o regime comum, mesmo que com sinais invertidos, entre o horror do Estado de exceção e a luta heroica, mas impotente, dos que queriam agora um pouco do mundo que imaginavam reservado ao futuro. Muitos anos deste futuro depois, é necessária esta redobrada confiança para confrontar a realidade de horrores do capitalismo em crise. Referências COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. _______. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2000a. _______. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000b. _______. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994. _______. “A democracia como valor universal”. In: SILVEIRA, E. et al. Encontros com a civilização brasileira; v. 9. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 33-47.

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“A democracia como valor universal”: um clássico da esquerda no Brasil Marcelo Braz

O texto que o leitor verá aqui trata do conhecido e difundido ensaio citado no título acima. Dado seu caráter extremamente polêmico, assumi um caminho que julguei ser necessário: busquei circunscrever o texto de Carlos Nelson Coutinho (usarei aqui para nomeá-lo as letras CNC) no contexto histórico em que veio à luz e no conjunto de sua obra. Isto não me impediu (ao contrário, abriu-me caminhos) de examinar as questões “internas” que dizem respeito apenas ao clássico ensaio “A democracia como valor universal”. Em uma declaração publicada em um dos seus livros, CNC se reconhece como um “propagandista e agitador” que fez da batalha das ideias a sua vida. Dentre tantas e sempre instigantes ideias se encontra uma que se tornou, talvez, a de maior repercussão: o valor universal da democracia ou, mais precisamente, a relação democracia/socialismo, talvez um dos temas mais importantes de sua vida. É impossível dissociar o autor da obra, ainda mais quando se trata de uma parte dela que é a mais conhecida, difundida e influente. É bem provável que CNC, quando publicou, no longínguo

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1979, na revista Encontros com a Civilização Brasileira, o ensaio “A democracia como valor universal”, não imaginasse que sua trajetória não mais seria dissociada dele e da temática que sugeria. Há casos de autores que são “menores” que um determinado trabalho (um ensaio, um livro), mas que, por razões as mais diversas, parece ser maior do que quem o criou. Entretanto, estamos diante um caso diferente: não há nenhum demérito à relevância de “A democracia como valor universal” em afirmar que CNC, tomado na grandeza e na diversidade de sua obra, é bem maior que aquele ensaio. Também em declarações publicadas, CNC costuma dizer que é um “produto” dos longos anos 1960, a “década longa” que foi o palco de inúmeros acontecimentos históricos de largo alcance societário, compreendida entre 1956 (o ano em que uma “bomba” chamada Relatório Krushev caiu sobre os comunistas, causando uma profunda crise político-ideológica) e meados dos anos 1970 (quando se difundem as polêmicas ideias eurocomunistas). Se considerarmos a trajetória estritamente política e intelectual de CNC, a “década longa” tem uma cronologia um pouco diferente, pois compreende o ano de 1958 (quando, de fato, a “bomba” caiu entre nós, e os comunistas brasileiros tentaram se erguer por meio da famosa Declaração de Março do PCB, daquele mesmo ano) e o final dos anos 1970/início dos anos 1980 (quando, em 1978, ao regressar do exílio e publicar no ano seguinte seu ensaio, CNC aprofunda suas posições situadas entre os chamados “renovadores” no interior da luta interna do PCB, deixando o partido em 1982). Não hesitaria em afirmar que “A democracia...”1 é um produto dos longuíssimos anos 60 no Brasil (1958-1979...), vividos por CNC em seu peculiar percurso desde a juventude na Bahia e no Rio (início Referência ao ensaio “A democracia como valor universal”. Utilizei neste texto a versão de 1980 (Coutinho, C. N. A democracia como valor universal. Notas sobre a questão democrática no Brasil. São Paulo: Editora Livraria Ciências Humanas), que praticamente não altera a primeira, de 1979.

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da década de 1960) até seu exílio na Europa, em Portugal, França e Itália, entre 1976 e 1978. O ensaio de 1979 exprime um ponto de chegada e de síntese de um autor que já era maduro teórica e politicamente, resultado do longo período basilar e estruturador de sua formação. Para entendê-lo um pouco melhor, devemos fazer algumas, mesmo que sintéticas, considerações sobre o contexto aludido, especificamente aquele que dizia respeito à relação dos comunistas do PCB com a “questão democrática”2. O final dos anos 1970: luta pela democracia e reflexos da renovação do PCB

A brutal investida repressora que dizimou importantes dirigentes do PCB3 e mais aqueles que já o haviam abandonado entre o período 1962-19674 impôs ao partido enormes dificuldades para enfrentar uma nova realidade social que se erguia no país no incipiente processo de autorreforma do governo Geisel. No período entre 1969 e 1975, de absoluto terrorismo de Estado, os comunistas e demais forças progressistas, de alguma maneira, lutaram para sobreviver às perseguições, prisões, exílios, torturas e assassinatos. Com o período que se abre em 1974, as forças de oposição (onde militava boa parte dos comunistas), aproveitando as mínimas “li Relação que exploro num estudo de maior envergadura cujos primeiros resultados, que estão longe de esgotá-lo, aparecem aqui abreviados. 3 “David Capistrano da Costa, Luis Ignacio Maranhão Filho, João Massena, Walter Ribeiro; pouco depois, Elson Costa, Jaime Miranda, Hiram Lima Pereira, Itair Veloso e Orlando Bonfim Júnior. Marco Antonio Tavares Coelho e Osvaldo Pacheco também foram presos e barbaramente torturados. A circulação da Voz Operária foi interrompida” (Konder, 1980, p. 123) 4 Dentre outros que deixaram o partido por razões diversas, destaquem-se os mais experimentados: Diogenes Arruda, João Amazonas, Pedro Pomar, Mauricio Grabois, Mário Alves, Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho, Jover Teles, Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. 2

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berdades democráticas” consentidas, participam ativamente dos espaços nos quais se podia exercer algum tipo de atividade política. Nesse contexto, o PCB foi duramente golpeado por sequestros e assassinatos dirigidos aos quadros do Comitê Central ou próximos a este. Parte essencial da direção da organização é forçada a deixar o país, transferindo suas atividades para o exterior, de onde buscava resistir e seguir formulando análises que continuavam a colocar a “questão democrática” no centro da estratégia de enfrentamento da ditadura, cuja crise se aprofundava desde o ocaso do “milagre econômico”. Entretanto, na segunda metade da década de 1970, o assim chamado “etapismo”5 que conduzia a estratégia do PCB levou o partido a se distanciar de novas forças progressistas que surgiam do desenvolvimento capitalista promovido pela ditadura. Renovadas camadas médias urbanas e um operariado numeroso e qualitativamente distinto indicavam uma maior complexificação da sociedade civil brasileira, ao mesmo tempo em que colocavam demandas sociais de novo tipo, adicionando questões particulares ao processo de redemocratização. Foi, então, na afluência desse novo cenário que o PCB, ainda preso a uma estratégia que parecia não dar conta da complexidade do momento, afastou-se gradualmente dos setores que se colocavam mais à esquerda da luta democrática, mostrando-se relativamente incapaz de liderar o processo político posto pela nova realidade e pelos chamados “novos sujeitos”.

O chamado “etapismo”, que também só empregarei entre aspas, é expressão usada por praticamente todos os mais sérios e honestos analistas do PCB. Esta expressão designa aquela estratégia do PCB que se centrou na noção de que a revolução socialista no Brasil dependeria de uma etapa anterior, de tipo democrático-burguesa, como condição para seu desenvolvimento ulterior. A expressão foi objeto de usos e abusos, para além das análises mais credíveis. Serviu mesmo à luta ideológica que, à direita e à esquerda, usava o termo para atacar o PCB.

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Em verdade, a “persistência do PCB na orientação política definida em 1958, sob as novas condições de um regime de ditadura militar burguesa, possibilitou que a política de amplas alianças, particularmente com setores burgueses liberais, aparecesse como claramente vitoriosa na segunda metade dos anos 1970” (Del Roio, 2003, p. 289). Entretanto, o “etapismo” persistente na estratégia do partido não permitiu que ele fosse capaz de apreender as novas determinações das lutas de classes dinamizadas por um novo, massivo e vigoroso proletariado industrial, cujas demandas mais urgentes, predominantemente econômicas e atadas às condições gerais de trabalho, obstaculizavam o desenvolvimento de formas de consciência de classe mais avançadas6. Como a centralidade da atuação dos comunistas estava na luta pelas liberdades democráticas, ainda entendidas como a complementação democrática da revolução burguesa que se levava a cabo, [tal estratégia] em nenhum momento se preocupou com a organização autônoma da classe operária e da sua proposição como sujeito de uma nova hegemonia que contestasse aquela liberal-burguesa, que vinha se impondo no espaço deixado pelo recuo manobrado da ditadura” (Del Roio, 2003, p. 289).

Num primeiro momento, entre 1978 e 1979, o partido percebe a força do movimento como reação legítima dos trabalhadores à política salarial da ditadura que aprofundou as desigualdades sociais e aguçou os antagonismos de classe. Propunha-se uma articulação desse novo proletariado urbano-industrial com os trabalhadores Como observou Santana, é “em fins da década de 1970 que toda uma série de movimentações ganha visibilidade e rompe o silêncio geral e a invisibilidade imposta pelo regime aos trabalhadores. Isto ocorrerá com as mobilizações dos metalúrgicos do ABC paulista. O movimento dos trabalhadores brasileiros reassume, a partir de 1978, o lugar que já tivera no cenário político nacional. Este ressurgimento do movimento sindical coloca novos dilemas para o PCB na sua tentativa de ser a liderança política dos trabalhadores” (Santana, 2003, p. 190).

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rurais, com vistas a ampliar a força da frente política democrática. Contudo, ainda que se avaliasse positivamente a luta dos trabalhadores reunidos no novo movimento sindical, os documentos políticos do PCB assinalavam uma constante preocupação da articulação necessária entre “as lutas operárias e as lutas mais gerais pela democracia”, no sentido de reforçar o centro da estratégia da luta democrática como sua primeira e principal etapa. Essa orientação conduziu o partido a se afastar das demandas imediatas que se apresentavam mais radicalizadas, interpretando-as como possíveis ameaças que poderiam desestabilizar o processo de democratização em curso. Em decorrência disso, na “greve de 1980, o tom passará a ser mais crítico [acirrando-se] em movimentos futuros, na medida em que ele também tinha ligação com a consolidação de um bloco alternativo7 às posturas do PCB” (Santana, 2003, p. 191-193). Ademais dessas dificuldades frente ao novo perfil da classe operária e do movimento sindical, a violenta repressão imposta ao PCB na primeira metade da década de 1970 foi também decisiva para a crise que abateu o partido ao longo dos anos 1980, dificultando sobremaneira as atividades de seus quadros, além dos problemas ideológicos e políticos relacionados aos limites da problemática estratégia sustentada. Tal “crise orgânica do PCB se agravou, inicial Santana identifica a formação de dois blocos: “de um lado, os chamados ‘autênticos’, reunidos em torno dos sindicalistas metalúrgicos do ABC, agregando sindicalistas de diversas categorias e partes do país, os quais, com os grupos integrantes das chamadas Oposições Sindicais, compunham o autodenominado bloco ‘combativo’. Tendo sindicalistas como Lula (metalúrgicos de São Bernardo), Olívio Dutra (bancários de Porto Alegre) e Jacó Bittar (petroleiros de Campinas) como nomes de ponta, esse setor formaria a base do chamado ‘novo sindicalismo’ e seria um dos impulsionadores da criação do Partido dos Trabalhadores (PT). De outro lado, a Unidade Sindical, que agrupava lideranças tradicionais no interior do movimento sindical (...) como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Estes dois blocos seriam as bases de sustentação dos organismos intersindicais de cúpula que desempenharam seu papel na recomposição das forças que disputavam a liderança do movimento que emergia (Ibid., p. 194).

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mente, com o desmantelamento de sua organização por parte dos órgãos de repressão do regime e pelo exílio de parte da sua direção e, em seguida, pelas divergências estratégicas sobre as formas de levar a ditadura militar à derrocada” (Del Roio, 2003, p. 289). Para além das demandas mais imediatas vinculadas às relações de trabalho que emergiam das novas bases operárias, o que se explicitava era o caráter classista que começava a ter um peso maior nas lutas pela democracia e que tendia a deslocar seu eixo para as bases econômicas do regime. O enfrentamento da ditadura ganhava, assim, elementos menos politicistas potenciados pelas próprias consequências sociais da acumulação de capital monopolista, amplamente expandida a partir de 1964. Ao final dos anos 1970 ocorre, então, uma convergência que alteraria substancialmente os rumos das forças democráticas que atuavam no processo de transição: convergem nesse momento lutas especificamente políticas, voltadas ao campo político-institucional e lideradas pelas forças de oposição ao regime, e lutas econômicas tendencialmente reativas e de caráter espontaneísta, mas que demonstravam potencial para avançar, uma vez que atacavam o regime em suas bases econômicas8. No âmbito das bases operárias, tal ofensiva exigia uma direção política que dotasse as lutas sindicais de um projeto societário transformador, o que elas não eram capazes de apresentar. Mesmo assim, como sustenta Mazzeo, a (...) crítica efetuada à ditadura pelo movimento operário, por meio do confronto direto com o governo, após a organização autônoma dos trabalhadores, além de superar o politicismo, realizando a luta no âmbito de Frederico acrescenta: “(...) é necessário assinalar que nesse momento consolidou-se o divórcio entre o PCB e o novo movimento operário (o jornal Voz da Unidade, por exemplo, lançado durante a greve do ABC em 1980, referia-se a ela como se estivesse ocorrendo em algum planeta distante, além de insistir em chamar o seu principal líder de ‘Sr. Luiz Ignácio da Silva’...)” (Frederico, 1995, p. 205).

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sua base de sustentação – a econômica –, adquire também um conteúdo de profundo questionamento dos projetos e programas políticos das esquerdas, sejam as ligadas à vertente comunista histórica do PCB – e suas variantes, como o PCdoB –, sejam as que assumiram perspectivas ‘vanguardistas’ ao criticar, de um lado, uma esquerda que ainda raciocinava no sentido de manter a oposição ao bonapartismo nos moldes anteriores, ou seja, dando continuidade à política de frente ampla, quando aquela forma de luta política encontrava-se esgotada, na medida em que o núcleo de sustentação política da forma-Estado militar-bonapartista vivia um processo de esgarçamento (...) (Mazzeo, 1999, p. 158-159).

O desafio que se colocava às esquerdas consistia justamente em, a partir da compreensão da convergência aludida acima, criar uma estratégia de novo tipo capaz de promover, num só tempo, a superação tanto do “politicismo”, dominante na estratégia das esquerdas tradicionais, quanto do “economicismo” de tendência espontaneísta, que limitava a ação das mobilizações operárias que eram, em si, os germes de uma nova esquerda no Brasil. Tal superação poderia criar condições de disputar a hegemonia da frente ampla no sentido de aluir, ou, pelo menos, arrefecer o predomínio dos setores burgueses que costuravam uma transição “pelo alto”, como acabará ocorrendo durante os anos 1980, resultando num processo de “transição fraca” (na expressão usada por CNC) ou, quando se analisa o seu desdobramento, numa “transição incompleta”, como cunhou Florestan Fernandes. Tal alternativa exigiria a constituição de um “bloco histórico” reunindo forças de “contraposição à ditadura pela hegemonia operário-popular”, capaz de dirigir a “luta pela democracia da frente ampla, concentrada então no MDB, para uma alternativa política que contemplasse o elemento classista” (Mazzeo, 1999, p. 159). No entanto, (...) a esquerda em seu conjunto, dados os instrumentais teórico-analíticos utilizados, que oscilavam entre as teorias das ‘etapas’ do processo

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revolucionário, que determinavam a realização da ‘etapa democrático-burguesa’ da revolução, de conteúdo nacional-libertador – característica histórica das interpretações do PCB e determinante para seu deslocamento em apoio à transição ‘pelo alto’9 –, e o ‘imediatismo voluntarista’, informado por visões analíticas profundamente influenciadas pelas teorias ‘foquistas’ e ‘vanguardistas’ dos anos 1960, não foi capaz de construir uma alternativa que unificasse os segmentos democráticos e populares da sociedade num bloco de caráter histórico que se constituísse em instrumento político para operar a desarticulação não somente da tática da transição pactuada “pelo alto”, mas também a própria estratégia da hegemonia burguesa, que caminhava para recompor seu caminho político, de viés prussiano-colonial, institucionalizando a autocracia burguesa. (Mazzeo, 1999, p. 166-167) O autor conclui suas análises acerca da transição à democracia destacando o desfecho trágico da atuação dos comunistas e afirmando: “Efetivamente, realizou-se a transição pactuada sob a ótica de uma autocracia burguesa, que objetivamente implementou seu projeto de autorreforma do regime. O PCB, uma vez legalizado, em 1985, continuou a desenvolver sua política de aliança com a ‘burguesia nacional’ para consolidar a ‘revolução democrático-burguesa’ e tentou subordinar o movimento sindical ao projeto do governo Sarney por meio de sua política sindical realizada na CGT. Em função de sua postura de adesão ao governo, um número bastante expressivo de quadros partidários começa a abandonar o partido, constituindo, assim, o início de uma melancólica desagregação política e ideológica. Objetivamente, o processo de lutas e divisões internas que se intensificam na década de 1980, com a explicitação das críticas de Prestes à linha política partidária, constituía-se no desdobramento de uma crise que havia ficado suspensa no ar, com o golpe de 64, pois, como pudemos verificar, a crise político-organizativa do PCB, inicia-se, de fato, com as inúmeras defecções dos anos 1960. A saga do proletariado escrita sob a ótica do instrumental de 1958-1960 parecia ter encontrado um novo caminho, com a candidatura de Roberto Freire à presidência da República em 1989, mas na verdade era o último suspiro de um esgotado instrumental teórico-analítico, exaurido com o alargamento dos espaços postos pela legalidade burguesa (...). A partitura da sinfonia cuja composição o PCB havia iniciado em 1922, e que foi retocada em 1958-1960, ficaria inacabada, pois seus compositores – o grupo dirigente tardio – perderam-se nos emaranhados das notas, tantas vezes refeitas, reescritas e revisadas, e terminaram por ruir juntamente com o Muro de Berlim e com a velha e carcomida burocracia soviética (Mazzeo, 1999, p. 175-176).

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Foi no interregno desse impasse que se estruturou a formulação de Carlos Nelson Coutinho. Através de um exame do debate em torno da democracia nos clássicos do marxismo – desde Marx-Engels até os gramscianos, passando por Lenin, Gramsci e Togliatti – e de uma problematização da formação social brasileira, nosso autor escreveu um texto que, a despeito de ser um produto do contexto que envolvia os debates da esquerda brasileira do final dos anos 1970, supera o momento histórico imediato apontando questões para além dele, indicando problemas que seriam objeto do futuro da esquerda no Brasil. Pretendendo superar, de uma só vez, o esgotamento da estratégia do PCB e os limites do “imediatismo voluntarista” de uma “nova esquerda” que surgia, indicava que a sociedade brasileira apresentava elementos de modernidade capitalista (monopolista) que exigiriam uma nova estratégia, a qual para além do momento imediato da transição democrática, deveria apontar para o socialismo. O caminho indicado por Carlos Nelson colocaria o acento na democracia, cujas mediações e elementos constituintes deveriam compor tanto o momento de construção do “bloco histórico” hegemonizado pelos trabalhadores, como forma de torná-los “classe dirigente”, quanto o próprio momento posterior de transição socialista, até constituir-se um dos fundamentos da futura sociedade comunista. Em seguida, veremos como CNC sustentou tal caminho através da exposição dos objetivos, argumentos e propostas de seu notável texto. Mas, antes, é preciso situar um pouco mais o texto na história. “A democracia como valor universal”: condicionantes históricos, políticos e ideológicos

Na abertura do texto afirmei, num paralelo com o depoimento do próprio Carlos Nelson, que ele era “produto” não apenas dos longos anos 1960 (1958/meados dos anos 1970), que, numa paráfrase

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a Eric Hobsbawm, CNC chamou de a década longa. A década longa brasileira, para pensar a trajetória de CNC, se estende até a difusão, entre nós, das ideias eurocomunistas10, que efetivamente ganham densidade teórica quando o autor publica o seu famoso texto em 1979. O final dos anos 1970 estava fortemente marcado por uma conjuntura que colocava a democracia no centro da agenda política, ao mesmo tempo em que revelava uma nova e densa “sociedade civil” formada por movimentos sociais de novo tipo, incluindo entre eles um novo movimento operário. Tal realidade social é decisiva para interpretar o sentido de “A democracia como valor universal”. Precisamente no ano de 1979, o Brasil viveria uma etapa decisiva de seu processo de redemocratização, com a anistia pactuada entre o governo militar e as oposições democráticas. Nesse mesmo período, o PCB estava imerso numa luta interna que resultaria em fraturas e em defecções já na primeira metade dos anos 198011, Em outro trabalho aprofundo uma caracterização e uma crítica ao eurocomunismo: para “Mandel, o eurocomunismo é resultante de processos históricos que fizeram parte da trajetória do movimento comunista internacional. Assenta-se em três raízes históricas que lhe emprestam identidade e o explicam: uma tendência à social-democratização, portanto, ao reformismo; uma adaptação nacional da política de coexistência pacífica; e uma forma de atualização da ‘estratégia de esgotamento’ de Kautsky. Esta última se expressava, no eurocomunismo, na estratégia que apregoava uma espécie de transformação gradual do capitalismo, a partir da realidade nacional das relações capitalistas” (Braz, 2011, p. 268). 11 De acordo com Celso Frederico, o “PCB, nesse momento, vivia uma luta interna de consequências drásticas para o seu futuro. Três facções disputavam o poder partidário: os eurocomunistas, a direção partidária recém-chegada do exílio e a ala comandada por Prestes. As duas primeiras correntes defendiam a renovação do PCB contra o continuísmo de Prestes e suas práticas mandonistas. Prestes, por sua vez, criticava todos por ‘oportunismo de direita’: abandono da luta operária e a adoção de uma linha conciliatória e democratista. Tal crítica incidia na visão da história brasileira existente na tradição recente do PCB (a qual passava pela ideia da via prussiana como chave explicativa de nossa formação social e pelas conclusões políticas dela decorrentes)” (Frederico, 1995, p. 204-205). 10

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como foi o caso de Carlos Nelson, que rompe com o partido em 1982. Tal período do PCB já apresentava os elementos necessários para uma ruptura de novo tipo, pleiteada pelas correntes às quais se vinculava CNC, que visava girar o eixo estratégico da revolução reforçando a centralidade da “questão democrática” no sentido de associá-lo ao par socialismo/democracia como uma alternativa à clássica etapa democrático-burguesa. É importante observar que essa preocupação (com a “questão democrática”) não se esgotava na corrente eurocomunista que acabou sendo derrotada no interior do partido. O documento “Uma alternativa democrática para a crise brasileira”12 – que saiu em 1984 como resultado do Encontro Nacional pela legalidade do PCB – sustentava, por caminhos diferentes da estratégia eurocomunista, mas incorporando-a criticamente no que se julgava de seu potencial revolucionário, uma orientação na qual a “questão democrática” é central no quadro das transformações sociais promovidas no Brasil. O texto do documento expõe uma análise que apreende as consequências econômicas, políticas e sociais da expansão do capital monopolista entre nós, que, ao aprofundar a dominação imperialista, promoveu inúmeras modificações na estrutura social de classes no país. A partir desse quadro, identifica possibilidades novas postas pela intensificação das lutas de classes desenvolvidas entre os diversos grupos que compõem a chamada sociedade civil, abrindo espaços para se projetar um “movimento de massas” que apontaria para a construção de um “bloco de forças democrático e nacional” necessário à conquista da hegemonia pelo proletariado. Para tanto, os comunistas do PCB defendiam a constituição de um “regime político caracterizado pela democracia de massas” (p. 158; grifo meu) como uma das condições para o avanço das 12

São Paulo: Novos Rumos, 1984.

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transformações revolucionárias favoráveis ao socialismo. Numa clara expressão do debate em torno da “questão democrática”, diz o documento: Segundo a nossa concepção revolucionária consequentemente democrática, os comunistas não emprestamos à democracia um significado apenas tático, mas estratégico: lutamos não só para que o povo brasileiro conquiste o Estado, o poder político, mas também para que os cidadãos brasileiros possam expressar as suas ideias e aspirações através de uma rede de organizações de base (...) e de instituições políticas e sociais, partidos e agrupamentos capazes de intervir na solução dos problemas específicos que lhes dizem respeito e na decisão das grandes questões nacionais, no controle do Estado e na gestão social. Transformando radicalmente o Estado, modificando o caráter e as funções das instituições estatais e conjugando-as com a rede de organizações de base, respeitadas em sua autonomia, a democracia de massas – organizada de baixo para cima – garantirá as alterações revolucionárias e a ultrapassagem do capitalismo (p. 158-159; grifo meu).

Tal “questão” era entendida pelos comunistas como decisiva para “o avanço do processo revolucionário brasileiro [que] exige a mais ampla democracia política”. Sua consecução dependeria da construção de um novo bloco histórico na vida brasileira, um bloco anti-imperialista, antimonopolista e antilatifundiário, democrático e nacional. A constituição e o desenvolvimento deste bloco de forças têm o seu eixo de gravidade na centralidade da classe operária na sociedade brasileira e, logo, na essencialidade da questão democrática13, organicamente articulada com as demais questões que afetam os interesses do povo brasileiro (p. 162-163). “Questão” que no documento não aparece dissociada da conquista da hegemonia do proletariado e cujos avanços, que eram observados em todo o mundo, constituíam “aspectos de um só processo: o do progresso social e político”. Em consonância com o

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Tais propostas guardam algumas relações com as que veremos no texto de “A democracia...”, convergências que não elipsam seus pontos discordantes. Dentre eles, seguramente encontra-se o papel do partido: para o PCB, “a hegemonia do proletariado (...) é inseparável do papel dirigente, organizador e educador do partido comunista”, que, atuando junto ao “bloco de forças”, deve buscar a união dos “partidos políticos representativos dos interesses democráticos e nacionais para construir blocos parlamentares e governos, em todos os níveis – comprometidos com as mesmas causas (...)” (p. 163-164). Outro aspecto colidente certamente se encontra no peso atribuído pelos comunistas à “questão nacional” pela qual ainda enxergavam nas “contradições interimperialistas”, materializadas entre nós, espaços possíveis para avanços democrático-nacionais, explorando o conflito entre os múltiplos interesses do imperialismo e a relação deles com os setores da burguesia no Brasil. O texto “A democracia...” veio a público (em 1979) nesse contexto que adentraria os anos 1980, expressando, simultaneamente, um ponto de partida e um ponto de chegada do debate que postulava a associação entre transição socialista e democracia. Um ponto de partida porque o ensaio avançava na proposição que articulava o par socialismo/democracia, pendor que se movia entre os comunistas brasileiros, mas que, até então, não havia obtido – além dos embates político-ideológicos expressos nas instâncias e nos documentos do partido – uma formulação teórica de maior fôlego: CNC emprestou um tratamento teórico sistemático e consistente ao debate que já ocorria e que não se esgotava no seu texto. histórico dirigente do PCI, afirma-se no documento que os avanços “ratificam a observação do camarada Togliatti: ‘Hoje não existe progresso democrático que não seja, ao mesmo tempo, progresso social e que possa ser alcançado, consolidado, desenvolvido sem que se lute para renovar a estrutura econômica da sociedade’” (p. 167).

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E um ponto de chegada porque concluiria um processo iniciado no Brasil em 1958 e que, a partir de seu texto, estabelece uma ruptura significativa e, em alguns casos, definitiva, para muitos dos comunistas do PCB egressos de seu processo renovador. A década de 1980 seria o palco de uma renovação político-ideológica da esquerda brasileira que encontraria escoadouro organizacional fora do PCB14. Este praticamente encerraria o seu ciclo de renovação (a “renovação pecebista”15) inaugurada entre 1956-1958. Como pontos de partida e de chegada, “A democracia...” é produto de uma tentativa de superação dialética que, através de seu autor – encarnação (não exclusiva) pessoal, política e intelectual de toda uma época –, adquire uma narrativa que procurava sintetizar os momentos de eliminação, conservação e ultrapassagem dialéticas inerentes às questões teóricas, políticas e ideológicas que envolviam o debate dos comunistas. As ideias de CNC aparecem como expressão condensada daquelas questões, trabalhadas pelo autor como esboço de um projeto teórico-político que seria explorado pelo autor em diversos outros textos, conforme veremos. Para além do juízo que possamos ter dele (do ensaio de 1979) – cujo exame crítico será exposto aqui –, não há dúvidas de que acabou sendo responsável por abrir um novo ciclo no debate da esquerda brasileira. “Os grupos que defendiam a renovação partidária uniram-se para derrotar Prestes e, em seguida, em 1982, durante o VII Congresso do partido e na sua sequência imediata, enfrentaram-se numa inglória batalha, sem que nenhuma questão substantiva, além da luta sem princípios pelo poder, separasse os contendores. Alguns antigos e novos lukacsianos, agora devotos de Antonio Gramsci, travaram uma desastrada ‘guerra de movimento’ contra direção do partido” (Frederico, 1995, p. 205) 15 Santos, 1988; op.cit. O que o autor designou “renovação pecebista” cobre o período imediatamente posterior a 1956. Os anos seguintes, fundamentalmente os da década de 1960, são tratados por Segatto em dois trabalhos: Breve história do PCB, Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989, 2ª edição; Reforma e revolução: as vicissitudes políticas do PCB (1954-1964), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. 14

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Poucos anos depois da publicação de “A democracia...”, CNC faz a seguinte declaração autobiográfica: (...) o ensaio se insere numa polêmica importante que se travou, no final dos anos 1970, no seio do Partido Comunista Brasileiro. Formou-se no Partido uma massa crítica de pensamento renovador, uma certa preocupação que era comum a um grupo de militantes e dirigentes, no exílio e no interior, entre os quais, seguramente, estava o Armênio Guedes. O meu ensaio foi uma espécie de condensação do pensamento comum desse grupo de pessoas então ligado ao PCB, e que depois seria derrotado na luta interna (Coutinho, 1986, p. 61).

Os temas centrais do ensaio de 1979 – a relação entre socialismo e democracia e a redefinição da revolução brasileira – se articulam perfeitamente com a análise reproduzida abaixo, que se coaduna com a hipótese que sustento de que as ideias de CNC expressam uma tentativa de superação dialética do debate dos comunistas aberto desde 1958-1960. Ao longo dos anos 1960 e 1970, (...) delineou-se uma tendência que pretendia radicalizar a estratégia política esboçada em 1958 e depois utilizada com relativo sucesso no curso da resistência e da luta contra a ditadura. Inspirada na experiência recente do comunismo euro-ocidental, o entendimento era aquele de que as liberdades democráticas e sua definição institucional deveriam ser a meta imediata da ação política dos comunistas. Com uma leitura que enfatizava a modernidade capitalista que emergira no país no período ditatorial, augurava-se a possibilidade de inserção de um renovado partido comunista de massas na classe operária fordista e também no proletariado agrícola, além de uma reconhecida importância do tema dos intelectuais e da cultura. Com o tema da democracia ocupando o cerne da elaboração teórico-estratégica, foi amplamente privilegiada a aliança com a burguesia liberal e priorizado o caminho

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das instituições. Em busca da coerência passou-se também a contestar a tradicional política externa do partido [o PCB], de alinhamento com a URSS. Derrotada na luta interna que se prolongou de 1978 a 1983, essa vertente de ponderável influência intelectual se diluiu nas organizações que se consolidavam com o avanço democrático, particularmente entre o PMDB e o PT (Del Roio, 2003, p. 290; grifo meu).

Imagino que, a esta altura, já tenhamos reunido, de modo aproximativo, os elementos históricos e políticos necessários para conhecer as ideias contidas no polêmico ensaio de 1979. O que passaremos a ver a seguir, dando “voz” ao próprio CNC. “A democracia como valor universal”: um breve inventário do ensaio

O ensaio conheceu três publicações16. A última é de 1984 e, desde então, não conhecemos outras. Isto não significa, como revelaria o próprio autor em 1992, que houvera o abandono das ideias seminais do clássico ensaio, mormente porque elas foram na verdade aprofundadas em textos posteriores: As resistências que essas teses encontraram e ainda encontram, mas também e sobretudo as muitas simpatias e apoios que despertaram e conti16

A primeira veio à luz em 1979, publicada na famosa revista Encontros com a Civilização Brasileira, arrimo do debate das esquerdas do país, coordenada pelo editor Ênio Silveira (Rio de Janeiro, n. 9, março de 1979, p. 33-48). Numa segunda publicação – que traz uma nova versão do texto cuja reelaboração (com a qual trabalho aqui) mantém o essencial da primeira versão –, o texto é o primeiro de um conjunto de quatro ensaios reunidos sob o título A democracia como valor universal. Notas sobre a questão democrática no Brasil (São Paulo: Ciências Humanas, 1980, p. 17-41). A terceira e última publicação é de 1984, saiu como uma segunda edição ampliada da anterior, intitulada A democracia como valor universal e outros ensaios (Rio de Janeiro: Salamandra, 1984, p. 17-48). Há, ainda, um extrato do ensaio publicado por Michael Löwy, organizador da antologia O marxismo na América Latina (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006; 2ª edição ampliada, p. 447-454).

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nuam a despertar, têm fortalecido a minha convicção de que, no essencial, eu estava no caminho certo. Contudo, relendo hoje o velho ensaio, percebo que ele era ainda insuficiente em suas propostas de autocrítica e, em consequência, era tímido diante da revisão radical, que hoje julgo necessária, dos paradigmas analíticos que provêm dos bolcheviques e da Terceira Internacional. Foi por isso que, apesar da insistência nesse sentido de alguns amigos (sobretudo alunos), decidi não republicá-lo em sua forma original, mesmo sabendo que estão esgotadas suas três edições (Coutinho, 1992, p. 7-8; grifo meu)17.

O texto não foi reeditado “em sua forma original”, mas fez carreira, e o autor trabalharia com suas ideias ao longo de todo um peculiar percurso político e intelectual. Não hesito em afirmar que “A democracia...” foi, em si, um projeto teórico-político que se desdobrou em inúmeros outros textos do autor que retomam (e remontam) as questões matriciais ali balizadas, aprofundando-as e adequando-as, de acordo com as perspectivas do autor, às exigências teóricas postas pelas condições históricas da luta pelo socialismo no Brasil, objetivo precípuo que as germinou. Prefaciando seu livro Contra a corrente, CNC explicita o projeto teórico-político ao qual me refiro, justificando sua opção de não republicar o texto de 1979 “em sua forma original”. Tal projeto se expressa no desenvolvimento teórico-conceitual das teses daquele ensaio em diversos outros artigos reunidos em (...) novos textos escritos entre 1989 e 1999, os quais retomam os principais temas tratados em cada uma das duas partes que compõem o velho ensaio de 1979. (...) O primeiro deles, Democracia e socialismo: questões de princípio, busca superar algumas limitações do velho ensaio de 1979

Extraído do “Prefácio” de Democracia e socialismo: questões de princípio e contexto brasileiro. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1992 (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; v. 51).

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em sua parte teórica, encaminhando o que me parece ser agora um claro acerto de contas com a tradição bolchevique, em face da qual ‘A democracia como valor universal’ manifestava uma atitude ainda ambígua. O segundo, Notas sobre cidadania e modernidade, tenta agregar algumas novas determinações à reflexão teórica sobre a democracia, tomando como tema central a questão da cidadania (...). Outros textos da coletânea – Democracia e socialismo no Brasil de hoje, O governo Cardoso e a ‘contrarreforma’ do Estado brasileiro e A democratização como valor universal – atualizam algumas análises e propostas contidas na segunda parte do ensaio de 1979, precisamente aquela referente ao ‘caso brasileiro’ (Coutinho, 2000, p. 11-12).

Justamente por considerar que “A democracia...” inaugurou um campo de debates para a esquerda e para o próprio autor e, também, por tomá-lo como um projeto teórico-político que norteou a trajetória de CNC é que não me limitarei às ideias contidas nele. Assim como o autor sugere em diversas de suas declarações publicadas18, lidarei com a substância do ensaio, que, em sua essência, Dentre tantas, apresentaria duas delas separadas no tempo em 20 anos. Uma primeira, de 1980, na imediata sequência da primeira publicação de 1979, onde diz: “algumas das críticas e sugestões recebidas foram incorporadas ao texto que apresento agora. Mas, embora parcialmente reelaborado, não alterei nem o seu conteúdo essencial nem o caráter exploratório e questionador de suas teses principais” (“Prefácio”, A democracia como valor universal. Notas sobre a questão democrática no Brasil; op.cit., p. 15); uma segunda declaração, que saiu em Contra a corrente duas décadas depois, corrobora a primeira adicionando elementos de adequação histórico-conjuntural: “(...) quando escrevi, em 1979 – portanto, há 20 anos –, ‘A democracia como valor universal’, a grande batalha política que eu pretendia enfrentar se tratava no interior da própria esquerda. (...) O ensaio escrito ainda sob a ditadura tinha então um alvo polêmico muito claro, pois valorizava elementos que, naquele momento, colocavam-se contra a institucionalidade vigente no Brasil, mas também contra uma difusa cultura de esquerda. Nenhum dos conceitos fundamentais formulados naquele velho artigo deve ser abandonado, mas temos um terreno novo de luta política e ideológica. A esquerda hoje precisa definir o que efetivamente entende por democracia e, particularmente, em que sentido se pode falar hoje que a democracia tem valor universal” (Coutinho, 2000, p. 130-131).

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não sofreu modificações; ao contrário, CNC a reafirma através de elaborações que, como já afirmei, aprofundaram a formulação seminal de 1979. No “Prefácio” da segunda edição de 1980, O autor nos dá o ambiente político-ideológico no qual o texto se inscrevia e se tornaria um marco do debate da esquerda brasileira: Numa época em que os rótulos apressados e jornalísticos estão em moda, certamente não faltarão os que – como elogio ou reprimenda – falarão em ‘eurocomunismo’ para caracterizar muitas das posições que defendo (...). Não tenho a menor intenção de negar que as reflexões aqui apresentadas receberam um estímulo importante da elaboração teórica e da prática dos partidos marxistas hoje designados como ‘eurocomunistas’. (...) Mas o estímulo realmente decisivo me parece ter vindo de um conjunto de ideias e experiências políticas que já há algum tempo são patrimônio de setores fundamentais da esquerda brasileira. Leandro Konder indicou com precisão como a questão democrática, pelo menos a partir de 1958, vem merecendo um tratamento novo, progressivamente liberto de instrumentalismos, na elaboração política de uma das mais expressivas forças da esquerda em nosso País, o Partido Comunista Brasileiro. Um dos pontos altos e definitivos desse novo tratamento é a dura crítica – realizada em 1967, no VI Congresso desse Partido – de uma concepção ‘golpista’ do processo de transformação social (...) (Coutinho, 1980, p. 13-14).

As afirmações acima não deixam dúvidas de que o ensaio de 1979 se tratava de um “texto de combate”, inserido num debate de intensa luta política entre os militantes mais destacados que repercutia o processo da renovação do PCB iniciado ainda nos anos 1950. A menção ao rótulo “eurocomunista” se devia à resistência daqueles que mais se ligavam à manutenção das interpretações marxista-leninistas, que, ainda que tivessem se enfraquecido desde as teses de março de 1958, persistiam entre muitos dos quadros partidários. Não à toa, imediatamente após a publicação de “A de-

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mocracia...”, sucederam-se dois artigos que faziam duras críticas a CNC, ambos publicados no mesmo ano, e deflagrou-se, nos anos 1980, um processo que envolveu lideranças intelectuais de variadas filiações teóricas19, inclusive de origem liberal, como no caso da crítica de José Guilherme Merquior20. Um deles foi “Contra o revisionismo”, uma pequena brochura, assinada com o nome Otávio Rodrigues, um duro ataque ao ensaio de Carlos Nelson (s.1., s.e., dez./1979, 55 p.). Outro foi o artigo de Adelmo Genro Filho, irmão de Tarso Genro e vereador eleito pelo MDB em Santa Maria-RS entre 1976 e 1982, intitulado “A democracia como valor operário e popular” (Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n. 17, nov. 1979, p. 195-202). Ainda no mesmo ano, 1979, José Paulo Netto escreve “Notas sobre democracia e transição socialista”, um ensaio que discute as teses eurocomunistas quando elas ainda não haviam naufragado (incluído no volume Democracia e transição socialista. Escritos de teoria e política, Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990). No livro há também outro texto do autor que retoma a problemática da “questão democrática”, preparado em 1986, intitulado “A redefinição da democracia”. Também preparado e saído no calor da hora (ainda em 1980) daquele debate foi o livro de Leandro Konder (A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980). Na sequência do debate aberto por CNC, dois ideólogos do PT publicam textos sobre o tema. Francisco Weffort escreve Por que democracia? (São Paulo: Brasiliense, 1984) e Marco Aurélio Garcia organiza As esquerdas e a democracia (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986), fruto de um seminário organizado pelo Cedec e Anpocs. No mesmo período, Daniel Aarão Reis (que também participa do projeto de Garcia) e Jair Ferreira de Sá organizam uma antologia comentada de textos que retratam o debate das esquerdas brasileiras entre 1961-1971 (Imagens da revolução. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985). Há ainda o livro de Décio Saes (Democracia. São Paulo: Ática, 1987). Dentre os textos mais recentes, destacaria alguns que repõem o tema: o de Caio Navarro de Toledo (“A modernidade democrática: adeus à revolução?” In: Crítica Marxista, n. 1, 1994); e o de João Quartim de Moraes (“Contra a canonização da democracia”. Crítica Marxista, n. 12, 2001). Em 1980, saem dois textos que não discutem diretamente as teses de Coutinho, mas refletem o debate socialista do momento: são os casos do texto de Paul Singer (O que é socialismo hoje, Petrópolis: Vozes, 1980) e o de Mário Pedrosa (Sobre o PT, São Paulo: Ched Editorial, 1980). 20 Em um dos ensaios de As ideias e as formas (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981), Merquior polemiza com CNC fustigando-o com uma crítica dirigida ao leninismo que, supostamente, ainda persistia no pensamento de CNC e com uma provocação relacionada à questão do eurocomunismo: “Se Carlos Nelson Coutinho tivesse de19

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CNC define dois objetivos principais que o levaram ao seu ensaio: o primeiro deles diz respeito à necessidade de discutir a relação entre socialismo e democracia partindo de Marx, Engels e Lenin até chegar aos marxistas que foram além deles, dentre os quais Gramsci e Togliatti. O segundo envolve a questão da revolução brasileira. Em suas palavras, o (...) objetivo básico era reavaliar essas duas ordens de questões. Primeiro, eu pretendia discutir uma concepção, que me parecia estreita, do que é democracia e da importância da democracia para o socialismo. E, segundo, buscava abandonar essa visão da realidade brasileira como a de um país atrasado, semicolonial, ainda carente de uma revolução de libertação nacional (Coutinho, 1986, p. 61).

A essência do texto está ancorada justamente na associação entre socialismo e democracia. Ele expressa uma tentativa de adefendido sua concepção da democracia como valor universal só com a ajuda de seu querido Gramsci, sua tarefa teria ficado bem mais fácil. Mas, com a de Lenin, realmente não dá pé. Nem com a maior boa vontade do mundo se pode considerar o pai da Revolução Russa um democrata. (...) Por que se obstina alguém tão próximo do marxismo crítico quanto Carlos Nelson Coutinho a obter a quadratura do círculo, tentando em vão democratizar a imagem do leninismo? Por que – em vez de repelir, indignado, a etiqueta eurocomunista – não faz como Santiago Carrillo e não desleniniza de vez seu marxismo?” (Merquior, 1981, p. 236-237). A menção a Carrillo, eurocomunista espanhol cujas propostas mais destoaram (à direita) daquelas que circulavam originariamente no PCI, não parece ser um despropósito do crítico. Carlos Nelson, em nenhum de seus escritos, esforça-se para afastar de si a influência eurocomunista, autodeclarada em diversas ocasiões. Quanto ao leninismo, reconheceu nosso autor que, à época, ainda não havia se afastado dele, afirmando: “sou obrigado a reconhecer hoje, tantos anos depois [em 2000], que Merquior tinha boa dose de razão (...)”. E justifica-se em seguida: “em 1979, quando escrevi “A democracia como valor universal”, ainda era militante do PCB e acreditava em sua renovação” (“Prefácio” a Contra a corrente, op.cit., p. 11).

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quação da estratégia revolucionária no Brasil que, retomando os aspectos centrais que estruturam a formação social do país, põe a “questão democrática” no centro da estratégia. CNC procura compreender o processo revolucionário brasileiro partindo de uma original interpretação de nossa realidade, relacionando-a às fontes clássicas do marxismo. Há três “teses” centrais no ensaio de Coutinho; duas de natureza teórico-conceitual e uma de natureza teórico-histórica. Elas são expostas nas “premissas” que abrem o texto e desenvolvidas em duas partes, intituladas “Algumas questões de princípio sobre o vínculo entre socialismo e democracia política”, “O caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à ‘via prussiana’”. A primeira se refere ao vínculo entre socialismo e democracia na evolução do pensamento marxista. A segunda “tese” sustenta o caráter universal da democracia que a concebe como um valor para o gênero humano, tornando necessário dissociá-la da ordem burguesa e do liberalismo. A terceira, teórico-histórica, se refere à falência do modelo soviético e ao esgotamento da estratégia do PCB, que impunham, num só tempo, a urgência de se encontrar outras vias para o socialismo. Esta última “tese”, de natureza teórico-histórica, foi, certamente, aquela que determinou a estruturação de suas posições teó­ rico-conceituais. CNC parte de um pressuposto de que há uma dupla falência – do “modelo soviético” e da estratégia do PCB – que, historicamente condicionada, exigia uma mudança de rumo. Quando as experiências socialistas, após inúmeras tentativas de superação da crise que se abriu em 1956, ingressaram num estágio terminal que se concluiria entre 1989-1991, e quando a estratégia política do PCB, também após inúmeras tentativas de superar a crise político-ideológica, se encontrava, outrossim, conhecendo uma agonia que se aprofundaria nos anos 1980 (e que se findaria em 1992), o ensaio de 1979 foi, para aquele momento, uma alternativa teórica consistente que logrou enorme influência.

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Não me parece necessário retomar os termos dessa crise cujos determinantes (históricos, políticos e ideológicos) já foram expostos de modo sumário. Cabe agora examinar as razões que fizeram de “A democracia...” um divisor de águas na esquerda brasileira. Para tanto, o desenvolvimento que seguirei aqui se apoiará na argumentação central que sustenta as duas “teses” teórico-conceituais presentes no ensaio, elas mesmas imbricadas na formulação que preconiza a indissociável relação entre socialismo e democracia – que formariam uma unidade contraditória não identitária – e, a partir dela, a defesa do caráter universal da democracia. A primeira “tese” se refere ao vínculo entre socialismo e democracia na evolução do pensamento marxista. O texto de “A democracia...” parte de uma premissa segundo a qual a associação entre socialismo e democracia não é nova no marxismo. Ao contrário, ela está na raiz da evolução da tradição marxista, desde o jovem Marx (na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, n’A questão judaica) até o último Engels (o da difundida “Introdução” de 1895, feita para a reedição do texto marxiano As lutas de classes na França). Reaparece na polêmica contra o revisionismo bernsteiniano, que tentara “substituir o suposto blanquismo de Marx por uma versão aguada do liberalismo”, contra o qual os “ortodoxos”, com Kautsky à frente, “limitaram-se a repetir dogmaticamente uma versão empobrecida do marxismo” (1980, p. 19). A “questão democrática” é retomada logo após a Revolução Russa, opondo Lenin a Rosa, num momento, e a Trotsky em seguida, exprimindo posições divergentes acerca da funcionalidade dos institutos democráticos para o governo proletário. Paralelamente à polêmica entre eles, em 1919, o austro-marxista Max Adler, cujas ideias só mais tarde seriam difundidas, apontava a necessidade de articular as formas direta e representativa da democracia. A questão reaparece nos anos 1930, quando Dimitrov formularia as propostas que sustentariam a política das frentes po-

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pulares. Ou, no mesmo momento histórico, quando, no cárcere fascista, Gramsci acentua a importância da questão democrática para a transição socialista, introduzindo novas ideias acerca das diferenças estratégicas determinadas pelas particularidades “orientais” ou “ocidentais” das sociedades. Mais tarde, o dirigente do PCI, Palmiro Togliatti, continua­ ria a pensar as especificidades da transição socialista em países de capitalismo desenvolvido; tais propostas seriam redirecionadas ainda por Pietro Ingrao e pelo último Poulantzas, e adensadas com os encaminhamentos programáticos de Enrico Berlinguer. Nesta primeira “tese” de 1979, CNC incorpora aquilo que Georges Marchais, secretário-geral do PCF, designou, em 1974, como “o desafio democrático”21, que consistia na necessidade de rever as estratégias de lutas pelo socialismo ante os enormes avanços dos combates travados nas sociedades desenvolvidas pelos trabalhadores. Tais avanços exprimiam uma ampliação das esferas de atuação dos diversificados movimentos sociais que, ainda que não deslocassem a centralidade da classe operária, apresentavam novos sujeitos próprios das contradições do capitalismo monopolista maduro. Os partidos vinculados ao proletariado estariam, assim, diante de um tecido social diversificado que exigia da luta socialista “uma expansão da democracia representativa, a sua articulação com múltiplos organismos de democracia de base, a defesa de uma vida política e cultural aberta e pluralista”. Tais questões, e “também a crise terminal do modelo vigente nos países do chamado ‘socialismo real’, tornaram esse desafio um problema de vida e morte. A questão democrática sugeria ao marxismo o célebre enigma: ‘decifra-me ou te devoro’” (Coutinho, 1994, p. 72-73). 21

Antes de Marchais, Roger Garaudy (1913-2012) havia publicado Pour un modèle français du socialisme (Paris: Gallimard, 1968), texto que seguramente influenciou as posições do PCF, do qual foi expulso logo depois.

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As novas determinações do mundo capitalista desenvolvido e a crise das experiências socialistas colocavam aos marxistas ocidentais [a necessidade de] uma nova concepção do vínculo entre socialismo e democracia (...) sintetizada por Enrico Berlinguer no discurso que pronunciou em Moscou em 1977, por ocasião do 60º aniversário da Revolução de Outubro: ‘A democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é obrigado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual fundar uma original sociedade socialista’ (Coutinho, 1980, p. 20).

Através de uma atualização do pensamento de Gramsci, os eurocomunistas sugeriam a ocidentalização da via para o socialismo22. Os problemas centrais que norteiam a elaboração da estratégia revolucionária, derivados da tradição marxista e também do leninismo – a questão da transição socialista, o processo organizacional, a própria “questão democrática” – receberam um tratamento que procurava articulá-los às particularidades econômicas, políticas, sociais e culturais do capitalismo ocidental desenvolvido. O que estava subjacente nesta articulação era a noção de que o quadro societário sob o qual atuavam os partidos comunistas se distinguia muito daqueles a partir dos quais Marx, Engels e Lenin pensaram. O modo de produção capitalista, em seu estágio monopolista avançado dos anos 1960/1970, requereria estratégias compatíveis com as necessidades históricas postas pelas lutas de 22

Para Gramsci (7, §16; 3, p. 261-262) o processo revolucionário adquire formas específicas, próprias das sociedades do tipo “oriental” ou “ocidental”, que determinam o predomínio de uma outra forma de luta – guerra de movimento ou guerra de posição, respectivamente. CNC, num difundido ensaio, problematiza as noções de Estado, revolução e o problema do duplo poder na tradição marxista, desde Marx, Engels, Lenin, Trosky, até Gramsci, Togliatti e seus discípulos mais importantes, como Poulantzas e Vacca (ver A dualidade de poderes – introdução à teoria marxista de Estado e revolução. São Paulo: Brasiliense, 1985).

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classes que destoavam muito da realidade de Marx e de Engels no século XIX ou da Rússia de Lenin. Os comunistas italianos23 retomaram as ideias de Gramsci e de Togliatti e formularam as bases das estratégias que ganhariam forma definitiva em 1973. A perspectiva teórica que influencia o documento “Compromisso histórico”24, lançado naquele ano, parte da “ampliação do conceito de Estado” como forma de apreen­der as particularidades das formações nacionais cujos traços Dentre eles, destaque-se Vacca e Ingrao e, ainda, fora da Itália, o último Poulantzas, que se diferenciavam por nuances relacionadas aos tipos de democracia e às formas de transição. CNC mostra, no livro citado na nota anterior, as diferenças entre Vacca e Poulantzas no que se refere à dualidade de poderes, discutindo a influência de Gramsci e de Togliatti nas ideias dos autores. (op. cit., p. 72-79). 24 O documento foi elaborado com vistas à atuação dos comunistas italianos, mas sua influência foi muito além da Itália, como atesta a própria presença de algumas de suas estratégias no texto de CNC que examino aqui. O trágico desenlace no Chile de Allende deixou marcas indeléveis na proposta italiana que levou o PCI a readequar suas ações políticas com os olhos nos acontecimentos chilenos. Em diversas passagens, Berlinguer citava a experiência chilena como uma referência histórica recente para o movimento socialista-democrático italiano, como se pode ver nas citações a seguir: “(...) nós pensamos sempre – e hoje a experiência chilena mais nos reforça nesta convicção – que a unidade dos partidos dos trabalhadores e das forças de esquerda não é uma condição suficiente para garantir a defesa e o progresso da democracia, sempre que a uma tal unidade se contraponha um bloco de partidos que se situem do centro até a extrema-direita (...). Eis porque nós falamos não de uma ‘alternativa de esquerda’, mas de uma ‘alternativa democrática’, ou seja, da perspectiva política de uma colaboração e um entendimento das forças populares de inspiração comunista e socialista com as forças populares de inspiração católica, e ainda com formações de outra orientação democrática”. Ou noutro momento: “A trágica experiência chilena levou-nos a sublinhar uma profunda convicção, que sempre guiou a nossa conduta política: é necessário fazer todo o possível (...) para evitar a rotura vertical do povo e do país em duas frentes nitidamente contrapostas e inimigas. Até nos momentos em que a luta política se torna mais dura e acesa devemos sempre, sem nunca abandonar o combate, desenvolver uma política de unidade e procurar as mais amplas convergências e alianças” (Berlinguer, 1976, p. 76-87). Ou ainda: “Na base da estratégia do ‘compromisso histórico’, exposta não por acaso certamente de forma mais orgânica depois dos trágicos acontecimentos do Chile (...)” (Berlinguer, 1977, p. 78). 23

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denotavam um maior desenvolvimento dos aparelhos consensuais que funcionariam como meios através dos quais o Estado busca se legitimar socialmente. Tal complexidade dos Estados burgueses desenvolvidos demandaria “modelos” de revolução diferentes daqueles em que há um predomínio de meios insurrecionais (Coutinho, 1985). Para CNC, a noção “explosiva” da revolução, presente tanto em Marx e em Engels (especialmente no Manifesto do Partido Comunista) quanto em Lenin (em O Estado e a Revolução), parte de uma noção “restrita” de Estado. Esta, por conseguinte, refletia o momento histórico específico do desenvolvimento do capitalismo25. Para ele, a “essência da concepção ‘restrita’ do Estado [seria] expressão direta e imediata do domínio de classe (‘comitê da burguesia’) exercido através da coerção (‘poder de opressão’)” (Coutinho, 1985, p. 19). Nas sociedades capitalistas desenvolvidas – especialmente naquelas em que há diversos mecanismos coesivos que participam da legitimação da ordem por meio de variados e complexos aparelhos institucionais voltados para a busca de consentimentos na sociedade –, em tais quadros societários a acepção “restrita” do Estado deve dar lugar a uma perspectiva “ampliada” que o apanhe em suas múltiplas determinações e contradições, de modo que se supere a visão “explosiva” da revolução na direção da formulação de estratégias adequadas à realidade dos Estados burgueses desenvolvidos. A centralidade da “questão democrática” para a via socialista supõe que o processo revolucionário avançaria tanto mais avançasse o processo democrático, na direção que Togliatti designou por “de25

Segundo CNC, o último Engels, no famoso e polêmico texto de 1895, “(...) foi o primeiro marxista a empreender o processo de ‘ampliação’ da teoria do Estado; e é importante registrar que essa ‘ampliação’ conceitual se deu como resposta à ‘ampliação’ efetiva que se processou na esfera política no último terço do século XIX” (Coutinho, 1985, p. 29).

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mocracia progressiva”, como instrumento estratégico para a transição socialista ao criar as condições objetivas e subjetivas para que o proletariado se afirmasse como “classe dirigente”. A luta pela democracia aparece aqui como pressuposto tanto da estratégia revolucionária para o socialismo quanto como condição para a própria consolidação da nova sociedade. Os termos usados pelo Partido Comunista Italiano – numa resolução bem posterior (de 1989), quando o eurocomunismo já não oferecia qualquer alternativa verdadeiramente socialista – sustentavam a noção de que “a democracia não é um caminho para o socialismo, mas sim o caminho para o socialismo”26. A luta pela democracia, sempre segundo a proposição eurocomunista, adquiriria caráter revolucionário porque sua afirmação negaria a ordem dominante, e seu desenvolvimento – o avanço do processo de democratização – explicitaria o antagonismo de classes, fazendo-a colidir com a ordem burguesa e estimulando sua superação. Parece inconteste que em “A democracia...” ocorre um esforço semelhante ao dos eurocomunistas italianos. O processo de modernização conservadora do capitalismo no Brasil, imposto pelo ciclo ditatorial iniciado em 1964, reforçara nossas características antidemocráticas, reiterando a “via prussiana” entre nós, que, ao afastar historicamente a participação popular, nos legou um Estado cujos institutos democráticos pouco haviam se desenvolvido, o que exigia um urgente processo de renovação democrática. Para CNC, o nosso “desafio democrático” consistiria na consecução de tarefas concernentes à adoção de “dois planos principais”: Em primeiro lugar, trata-se de conquistar e depois consolidar um regime de liberdades fundamentais, para o que se torna necessária uma unidade com todas as forças interessadas nessa conquista e na permanência das ‘regras do jogo’ (...) E, segundo, trata-se de construir as alianças necessá-

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Resolução política do XVIII Congresso do PCI (1989).

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rias para aprofundar a democracia no sentido de uma democracia organizada de massas27, com crescente participação popular; e, nesse nível, a busca da unidade terá como meta a conquista do consenso necessário28 para empreender medidas de caráter antilatifundiário e antimonopolista e, numa etapa posterior, para a construção em nosso país de uma sociedade socialista fundada na democracia política 29 (1980, p. 40-41).

As “regras do jogo” não sugerem nenhuma ilusão liberal em CNC. Elas se relacionam ao processo da luta política, que, ao promover permanentes conquistas que aprofundam a socialização da política – que “coloca a questão da socialização do poder [político]”30 –, agrega a elas potencialidades que superam A expressão é de Pietro Ingrao, para quem a materialização da democracia progressiva togliattiana depende de uma articulação entre formas de democracia representativa e formas de democracia de base como forma de ampliar a participação popular no Estado para transformá-lo. A “democracia de massas (...) que deve servir de superestrutura à transição para – e à construção de – uma sociedade socialista, tem de surgir dessa articulação entre as formas de representação tradicionais e os organismos de democracia direta.” (Coutinho, 1980, p. 29). 28 Carlos Nelson pensa a unidade “como valor estratégico” e o consenso – longe da acepção formal-abstrata que lhe atribuía Fernando Henrique Cardoso, identificado por CNC com o “pensamento liberal (assimilado pela social-democracia contemporânea)” – como base para a conquista da hegemonia através do “consenso majoritário das correntes políticas e das classes e camadas sociais” (Ibid., p. 40). 29 Para ele, a “democracia não é um simples princípio tático: é um valor estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista quanto para a consolidação e aprofundamento dessa nova sociedade” (Ibid., 1980, p. 24-25). E sua relação com o legado do liberalismo não é de complementaridade, mas de superação. Nas palavras do nosso ensaísta: “a relação da democracia socialista com a democracia liberal é uma relação de superação (Aufhebung): a primeira elimina, conserva e eleva a nível superior as conquistas da segunda” (Ibid., p. 31). 30 “Assim como a socialização das forças produtivas impõe a socialização dos meios de produção, do mesmo modo a socialização da política coloca a questão socialização do poder. (...) O socialismo não elimina apenas a apropriação privada dos frutos do trabalho coletivo; elimina também – ou deve eliminar – a apropriação privada dos mecanismos de dominação e de direção da sociedade em seu conjunto” (Ibid., 1980, p. 27-28). 27

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seus aspectos meramente formais num patamar superior das lutas de classes. Como afirma CNC, a “democracia socialista pressupõe, por um lado, a criação de novos institutos políticos que não existem, ou existem apenas embrionariamente, na democracia liberal clássica; e, por outro, a mudança de função de alguns velhos institutos liberais” (1980, p. 25). O objetivo final não deve prescindir dos elementos que já se desenvolvem na luta política pelo socialismo ainda na ordem burguesa, construção que, ao conjugar “democracia progressiva” com “democracia de massas”, é saturada de processos democráticos potencialmente socialistas. Por isso, afirma ele (o que me parece ser um ponto central de desenvolvimento de sua argumentação teórica), que a grande novidade contida na formulação de ‘democracia progressiva de Togliatti e Ingrao é a ideia de que aquela hegemonia [dos trabalhadores] e esse ‘autogoverno’ [dos produtores associados] podem e devem construir seus pressupostos já antes da plena conquista do poder estatal pelas massas trabalhadoras (1980, p. 29).

Tal como propõe o PCI a partir de 1973, Coutinho sugere que a “guerra de posição” em nosso país deve envolver o conjunto da sua vida política, o que implica ainda conceber a unidade como valor estratégico [estabelecida] através da mediação dos organismos representativos de âmbito nacional. (...) Mas essa afirmação do valor estratégico da unidade ganha um traço concreto específico quando referida ao Brasil: a tarefa da renovação democrática, implicando a crescente socialização da política, a incorporação permanente de novos sujeitos individuais e coletivos ao processo de transformação social, não poderá ser obra de um único partido, de uma única corrente ideológica e nem mesmo de uma só classe social.

Para ele, a

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democracia socialista é, assim, uma democracia pluralista de massas; mas uma democracia organizada, na qual a hegemonia deve caber ao conjunto dos trabalhadores, representados através da pluralidade de seus organismos de massa (sindicatos, comitês de empresa, comunidades de base etc.) e sob a direção política do(s) partido(s) de vanguarda da classe operária (1980, p. 31).

Para tanto, torna-se imprescindível a expansão das alianças para além dos setores socialistas mais avançados, o que incluía também uma necessária revalorização da questão eleitoral e parlamentar como momentos privilegiados para tal expansão. Ela se daria por um salto quantitativo da luta socialista junto às massas e aos setores mais organizados da sociedade civil, agregando à estratégia revolucionária elementos políticos democratizantes e reformadores da própria sociedade capitalista. Tais elementos, fundamentalmente as reformas ainda operadas no âmbito da ordem burguesa, compreenderiam momentos políticos propiciadores de graduais avanços indispensáveis ao acúmulo de forças sociais que, por já conterem elementos socialistas, colidiriam progressivamente com a institucionalidade capitalista. O processo revolucionário atenderia a uma dinâmica processual composta pela conquista de vitórias parciais – no parlamento, no governo, na institucionalidade burguesa – necessárias à ultrapassagem da ordem dominante, desenrolando-se por meios não insurrecionais. A derrubada do poder de classe burguês não se efetivaria por meio de uma ruptura radical ou por qualquer forma de assalto ao Estado burguês, precisamente porque a processualidade revolucionária – ou a revolução processual – permitiria, em si, a conquista da hegemonia por parte das forças sociais revolucionárias atuantes na sociedade, obtida por meio da direção social exercida tanto nas organizações políticas da sociedade civil como nos órgãos e instituições estatais.

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Ao traduzir essas ideias para o Brasil, CNC enxergava nelas, desde que articuladas às nossas particularidades históricas, o potencial de fazer avançar a luta em direção ao socialismo: Ampliar a organização desses vários sujeitos coletivos de base e, ao mesmo tempo, respeitadas sua autonomia e diversidade, lutar pela unificação dos mesmos num poderoso bloco democrático e nacional-popular não é apenas condição para extirpar definitivamente os elementos ditatoriais que ainda deverão permanecer ao longo do período de transição em que estamos envolvidos; é também um passo decisivo no sentido de criar os pressupostos para o aprofundamento e generalização do processo de renovação democrática e, consequentemente, para o êxito do programa antilatifundiário e antimonopolista de democratização da economia, abrindo assim caminho para a transição ao socialismo (1980, p. 36).

Para além de “A democracia como valor universal”

O pensamento que CNC nos oferece é profundamente marcado pela renovação e pela inovação. Seu marxismo, fiel à ortodoxia do método, é mesmo um marxismo renovador que esteve permanentemente em busca de revisões e autocríticas, muitas certamente problemáticas, em face dos desafios de uma realidade sempre mutante. Certa vez, numa conhecida entrevista que ele intitulou Conversa com um ‘marxista convicto e confesso’, fez uma provocativa afirmação: Afinal, o que é o método de Marx? É a fidelidade ao movimento do real. E o que é o real? É uma permanente dialética de conservação e renovação; usando uma bela expressão do jovem Lukács, o real é o jorrar incessante do novo. Portanto, se não renovo minhas categorias, se não as reviso para poder conceituar o real em seu incessante devir, sou infiel ao método histórico-dialético de Marx (2006, p. 191).

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A postura metodológica que CNC assumiu o levou a formulações que, se nem sempre acertaram, revelaram traços verdadeiramente renovadores e inovadores de seu marxismo. Dentre eles, destacaria o caráter extremamente original com o qual CNC traduz para o Brasil as teses eurocomunistas31. De modo criativo, nosso autor articula nossa realidade às estratégias que foram concebidas noutras formações sociais que, ainda que guardassem alguns aspectos semelhantes, exigiram enorme capacidade analítica, possível a quem, além de controlar as categorias analíticas marxistas, dispunha de profundo conhecimento das particularidades brasileiras. Para além de “A democracia...”, mas incluindo-a, não há dúvidas de que, em 1979, CNC já se notabilizava pelo emprego sistemático e pela difusão de categorias dos léxicos gramsciano e leniniano que foram “abrasileiradas”, tais como “revolução passiva” e “via prussiana”32. O trecho do ensaio de 1979 reproduzido abaixo é ilustrativo: (...) as transformações políticas e a modernização econômico-social no Brasil foram sempre efetuadas no quadro de uma ‘via prussiana’, ou seja, através da conciliação entre frações das classes dominantes, de medidas aplicadas de cima para baixo, com a conservação de traços essenciais das relações de produção atrasadas (o latifúndio) e com a reprodução (ampliada) da dependência ao capitalismo internacional.

E trata-se mesmo de uma tradução que redireciona aquelas teses, e não de uma transplantação mecanicista. Aliás, temos aí um traço marcante na trajetória intelectual de Carlos Nelson. Tanto em suas incursões lukacsianas – relembre-se que sua incorporação da crítica literária a Kafka se fez divergindo de seu mestre Lukács em aspectos substanciais, ou, ainda, que suas conviccções o levaram a enxergar limites na “teoria política” do marxista húngaro – como em seus estudos sistemáticos de Gramsci, o que sempre prevaleceu em CNC foi a autonomia e a criatividade de suas filiações teóricas. 32 Pioneirismo não exclusivo de Carlos Nelson Coutinho. Recorde-se dos exemplos de José Chasin, Ivan de Otero Ribeiro e Luis Werneck Viana. 31

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(...) Os exemplos são inúmeros [mas] essa modalidade de ‘via prussiana’ (Lenin, Lukács) ou de revolução-restauração (Gramsci) encontrou seu ponto mais alto no atual regime militar (...) (1980, p. 32-33).

E, noutro ensaio reunido no mesmo livro, bastante complementar ao de 1979, diz: Estou convencido de que – com as necessárias mediações – [as] indicações de Gramsci podem ser de grande valor para um reexame de nossa história passada e presente (...) Uma das consequências da modernização conservadora no Brasil foi, como não poderia deixar de ser, o excessivo peso assumido pelo Estado, em particular pelas burocracias ligadas ao poder executivo, que iam ‘engrossando’ à medida que as sucessivas ‘revoluções passivas’ punham em prática os mecanismos ‘transformistas’ de cooptação (...) Mas o que se pode observar é que a sociedade civil brasileira, apesar de reprimida, cresceu e se diversificou a partir dos últimos anos. Modernizando a sociedade, ainda que essencialmente a serviço dos monopólios e das multinacionais, a nossa última ‘revolução passiva’ criou os pressupostos para a sua própria superação (...) (1980, p. 58).

Outro traço que me parece inovador de sua exegese encontra-se no apuro teórico que cauciona sua tese da universalidade da democracia. Não há nenhum caráter abstrato em sua defesa do valor universal da democracia, que, aliás, suplanta o (problemático) slogan que, numa infeliz escolha, tomou emprestado de Berlinguer para intitular seu ensaio. Mais tarde, como se sabe, CNC preferiria a expressão “democratização como valor universal” ([1999] 2000, p. 129 e 131), que, indubitavelmente, melhor exprime sua tese, como ele mesmo reconhece33. Ele a sustenta tanto na objetividade social – a centralidade da “questão democrática” estava “Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título A democratização com valor universal. O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se

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posta pelos condicionantes históricos34 – quanto no campo teórico-filosófico que aparece balizado por ideias que, a meu ver, vão além da acepção eurocomunista. Ao buscar a associação entre socialismo e democracia, CNC se apoia nos debates que constituíram a evolução da tradição marxista. Tal menção ao processo evolutivo do marxismo não é uma mera referência formal, pois que se alia a uma arguta compreensão do fenômeno humano-social como produto das respostas possíveis às necessidades sociais articuladas pelos homens em cada época histórica. Seu entendimento vai além das formas e fórmulas liberais da democracia conhecidas nas sociedades capitalistas. Estas são tratadas como expressões das conquistas do ser social possíveis na ordem societária burguesa, que, ainda que possam ser incorporadas e dotadas de sentido verdadeiramente humanizador, só se desenvolveriam plenamente noutra sociedade. Para ele, no (...) materialismo histórico, não existe identidade entre gênese e validade. Lenin certamente conhecia a observação de Marx segundo a qual a arte de Homero não perde sua validade universal – e inclusive sua função de modelo – com o desaparecimento da sociedade grega primitiva que constitui o pressuposto necessário de sua gênese histórica. Se, como acresocializa e, progressivamente, propõe novas formas de socialização do poder” (Coutinho, [2002] (2006), p. 133). 34 Centralidade que, mais tarde (1987), outro analista, próximo a Carlos Nelson, afirmaria: “a questão democrática é o ponto arquimédico para fazer avançar o processo revolucionário” (Netto, 1990, p. 113). Atente-se que essa afirmação se revela no quadro de uma conjuntura pós-ditatorial, portanto relativamente distinta daquela de 1979. Formalmente concluída a transição à democracia, estávamos diante de uma sociedade revigorada por uma densa e organizada “sociedade civil” e por um Estado que carregava um pesado entulho autoritário, ademais das brutais desigualdades sociais legadas pelo autocracia burguesa. Bem claro está na afirmação de Netto que a “questão democrática” tem valor estratégico cuja funcionalidade ao avanço do processo revolucionário dependerá, sempre, das condições históricas em que se opera a luta política.

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ditamos, a observação de Marx tem alcance metodológico geral (independente das concretizações a serem feitas em cada esfera específica do ser social35), podemos extrair dela uma conclusão acerca da questão da democracia: nem objetivamente, com o desaparecimento da sociedade burguesa que lhes serviu de gênese, nem subjetivamente, para as forças empenhadas nesse desaparecimento, perdem seu valor universal36 muitas das objetivações ou formas de relacionamento social que compõem o arcabouço institucional da democracia política (1980, p. 22-23).

Tal valorização da democracia consiste no “reconhecimento, nem sempre claramente explicitado, mas real, de que a democracia política moderna constitui uma conquista social que transcende os horizontes de classe para inscrever-se como um dado no processo global de criação do mundo social pelo homem tomado genericamente (como gênero)” (Netto, [1979]1990, p. 81). Seguramente, o autor se refere, por outro caminho, à desidentidade entre gênese e validade, sugerida por CNC, e prossegue:

Ainda que se saiba que, como formas distintas de práxis, a práxis artística e a práxis política (na qual os homens podem construir algumas formas de socialização da política) comportam processos de objetivação do homem que atendem a necessidades diversas que não podem ser equiparadas nem em suas finalidades nem em suas mediações exigidas para que sejam atendidas. Para uma diferenciação das formas de práxis, ver o conhecido estudo de Adolfo Sánchez Vázques (Filosofia da práxis, São Paulo: Expressão Popular/Clacso, 2011). Para a consideração da particularidade do estético, ver a coletânea de textos de G. Lukács (Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967; organização, tradução e apresentação de C. N. Coutinho e J. P. Netto, Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2009). Para pensar a política a partir dos apontamentos lukacsianos, veja-se o excelente ensaio de Netto preparado para a “Apresentação” do livro de Lukács intitulado Socialismo e democratização: escritos políticos 1956-1971, organizado e traduzido por JPN e CNC (Rio de Janeiro: EdUFRJ, 2008). E, do próprio CNC, o artigo “Lukács, a ontologia e a política” in: Lukács: um galileu no século XX (São Paulo: Boitempo, 1996). 36 Como valor ontológico-social (no sentido atribuído por Agnes Heller), como ele indicaria logo após o trecho citado. 35

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No entanto, é de fundamental importância esclarecer que esta valorização não consiste na instauração abstrata de um novo valor (ou na valorização abstrata de um valor tradicional) e nem se apresenta como uma consideração de cunho ético (o que não equivale à minimização das suas implicações éticas): as exigências democráticas inerentes ao pensamento socialista revolucionário assentam, concretamente, na sua funcionalidade no interior do processo revolucionário (Netto, [1979] 1990, p. 81).

Aqui, entende-se que uma eventual centralidade e funcionalidade dos processos democráticos dependerá, em qualquer hipótese, das condições históricas em que se dão as lutas de classes37. Mas, também em qualquer hipótese, o desenvolvimento histórico do processo de democratização – no sentido da progressiva e efetiva socialização do poder político (um pressuposto da emancipação humana) – é meio e fim para/do socialismo38. “A democracia como valor universal”: polêmicas contemporâneas

Por fim, last but not least, não deixaria de concluir sem levantar algumas (e somente algumas) polêmicas que o texto de CNC sugere aos nossos tempos. “Hoje, dado o tipo de combate ideológico que estamos travando, é necessário sublinhar que sem socialismo não há plena democracia. É preciso combater não só aqueles que negam a democracia no socialismo, mas também aqueles que, em nome da democracia, abandonam o socialismo – infelizmente uma tendência hoje muito presente no interior do PT” (Coutinho, [2002] 2006, p. 136). 38 Mas a ultrapassagem do capitalismo “(...) está sempre indissoluvelmente ligada à possibilidade de consolidar a universalização do ordenamento democrático, para transformá-lo qualitativamente através de rupturas ao longo de um processo onde ele será, rigorosamente, superado”. Destarte, as exigências democráticas só têm sentido se, inseridas na dinâmica histórica do processo revolucionário e do pensamento socialista, “(...) valoriza-as exatamente quando rompe com a hipostasia da democracia”. (Netto, [1979]1990, p. 80 e 83; negrito meu). 37

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A primeira delas: o mundo capitalista atual, com a restauração do capital promovida pelo projeto neoliberal, adotou formas tão regressivas de dominação que, além de incrementar suas formas puramente repressivas (bem mais sofisticadas do que aquelas que o último Engels pôde conhecer), fez retroceder em larga escala os mecanismos institucionais de democracia política que se desenvolveram no século XX. A cruzada antidemocrática do neoliberalismo lançou as forças de esquerda num impasse (além daqueles que ainda estão por ser superados com a falência do “socialismo real”) que vemos em nossos dias. Nessa conjuntura, que nos põe diante de uma época verdadeiramente contrarrevolucionária, três fenômenos simultâneos entrecruzam-se para obstar (nunca definitivamente) as possibilidades de superação: a) os processos produtivos contemporâneos alargam as fronteiras daquilo que Marx designou por “trabalhador coletivo”, potenciando formas fragmentadas do ser concreto do trabalho, dificultando imensamente a busca da unidade político-ideológica e, com isso, tornando o processo de universalização um horizonte distante; b) a financeirização do capital, além de promover o avultamento dos meios cada vez mais ofensivos do imperialismo, tende a desdobrar formas de consciência profundamente alienadas que, pela mediação do dinheiro, parecem, mais do que em qualquer outra época, tornar a relação entre os homens uma relação entre coisas, numa brutal reificação contemporânea 39; c) Uma brilhante crônica acerca de um filme (Cosmópolis, de D. Cronenberg) é uma síntese de nossos tempos: “A narrativa acabou, a riqueza se acumula entre poucos e beneficia ainda menos, e o dinheiro, desobrigado de fazer sentido e de seguir qualquer espécie de roteiro, só produz monstros como o jovem financista do filme. (...) A grande narrativa do capitalismo foi excitante enquanto durou. Revolucionou a vida humana e junto, com suas barbaridades, fez coisas admiráveis. Tudo que era sólido se desmanchava no ar, para ser recriado no ciclo seguinte. Mas nem Marx previu que seu fim seria este: no meio de um mundo em decomposição, o dinheiro falando sozinho” (Luís Fernando Veríssimo, O Globo, 23/8/2012, p. 23).

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toda essa dinâmica contemporânea do mundo capitalista de nosso século fez recuar espantosamente os condutos humanizantes que, contraditoriamente, eram gestados em seu interior. As formas de barbárie potenciais e reais promovem regressões do ser social dos homens, que têm secundarizado os elementos civilizatórios do modo de produção capitalista. Dentre as atuais formas de regressão se encontram, sem dúvidas, aquelas que envolvem a política e, por sua vez, as conquistas democráticas, fazendo recuar os processos de socialização da política no capitalismo contemporâneo. No Brasil, vê-se uma tendência que reduz a “grande política” à “hegemonia da pequena política” – que, em lugar da disputa ideológica entre projetos societários mais amplos, introduz um particularismo pobre de conteúdos entre grupos sociais corporativistas –, fenômeno que o próprio CNC analisou em texto mais recente (2006). Mas esta não parece ser uma tendência restrita ao nosso país. Está consolidada há muito nos Estados Unidos e vem se fortalecendo justamente na outrora politizada Europa Ocidental. Estamos em um momento histórico que certamente não é inultrapassável, mas que projeta pesados óbices para que se viabilize uma alternativa estratégica revolucionária centrada nos mecanismos democráticos que restam instituídos no capitalismo contemporâneo, cujos traços atuais parecem impor, em termos históricos, limites à “democracia de massas”. O quadro atual, muito sumariamente apontado acima, exige-nos lembrar de uma preciosa consideração de Lenin40 que parece gozar de alguma atualidade: Na sociedade capitalista, nas condições do seu desenvolvimento mais favorável, temos um democratismo mais ou menos completo na república democrática. Mas este democratismo está sempre comprimido nos limi40

Extraída de sua obra clássica O Estado e a Revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado.

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tes estreitos da exploração capitalista e, por isso, permanece sempre, em essência, um democratismo para a minoria, apenas para as classes possuidoras, apenas para os ricos. A liberdade da sociedade capitalista permanece sempre aproximadamente como era a liberdade nas repúblicas gregas: liberdade para os escravistas. Os escravos assalariados atuais, devido às condições da exploração capitalista, permanecem tão esmagados pela necessidade e pela miséria que ‘não estão para democracias’, ‘não estão para políticas’, que, no curso habitual, pacífico, dos acontecimentos, a maioria da população está afastada da participação na vida político-social (Lenin, [1917]1980, p. 281; grifo meu).

A segunda polêmica: um dos objetivos centrais do ensaio de 1979 – que refletia a conjuntura particular da luta interna no PCB – era o de enfrentar a dogmática marxista-leninista (que não resume aquela luta interna e nem o PCB) que, dentre outros limites, tendia a tratar a democracia adjetivando-a como democracia burguesa. Coutinho pretendia com seu texto libertar o debate da “questão democrática” do que ele considerava ser um grilhão doutrinário, sustentando, engelsianamente, que o processo revolucionário das sociedades avançadas do capitalismo não teria futuro se repetisse os modelos oitocentistas – especificamente os blanquistas, projetados nos meios insurrecionais operados a golpes de mão e guiados por uns poucos e iluminados dirigentes revolucionários. A conjuntura brasileira de 1979, para além daquela em que vivia o PCB, era de renovação das esquerdas revigoradas pelo novo movimento operário-sindical e por diversos outros segmentos que a engrossavam (da esquerda católica, da intelectualidade acadêmica, dos movimentos populares urbanos e de “minorias” e até de parte daqueles que integraram a luta armada) e que acabaram afluindo em um novo partido. Esses segmentos, bases que sustentaram a criação do PT, em tudo divergiam, menos em um aspecto: o de se caminhar na direção de uma (difusa) refundação do so-

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cialismo que deveria ser diferente daquele que se conheceu no século XX e que agonizava no Leste Europeu e na URSS. A partir da crítica radical e do consequente abandono das experiências do chamado “socialismo real” apontavam para um, igualmente difuso, “socialismo democrático”41. Numa conjuntura como esta, em que se aprofundava a crise do “socialismo real” e, junto a ela, a hegemonia daqueles segmentos acima mencionados, os usos e abusos feitos do ensaio de 1979 acabaram contribuindo para que se estruturasse ao longo dos anos 1980 e 1990 uma espécie de “pensamento único de esquerda” (que nada tem a ver com CNC) que, ao se apropriar, doutrinariamente, da famosa insígnia “a democracia não é um caminho para o socialismo, mas o caminho do socialismo”42, acabou por criar, por que não dizer, um verdadeiro dogma às avessas43. Os abusos cometidos em nome da “democracia como valor universal” alimentaram a autointitulada esquerda democrática44, Esse socialismo adjetivado – que não esgota e nem resume a problemática associação socialismo/democracia, tão cara à tradição marxista, desde Marx – não conheceu nenhuma formulação programática que o caracterizasse com alguma consistência. Se houver dúvidas acerca dessa afirmação, basta uma leitura das resoluções partidárias petistas compiladas em Partido dos Trabalhadores. Resoluções e Congressos. 1979-1998 (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999). Isto não quer dizer que não tenham surgido inúmeras e boas tentativas teóricas que buscaram explicar a expressão. 42 Formulação do PCI no documento político de seu 18º Congresso de 1989. 43 A expressão é uma livre adaptação (que atende a outros fins) daquela criada recentemente por Francisco de Oliveira, que, ao analisar a era dos governos petistas, identificou nela uma “hegemonia às avessas” (in Oliveira, F. de, Rizek, C. [orgs.]. Hegemonia às avessas. Economia, política e cultura na era da servidão. São Paulo: Boitempo, 2010). 44 A própria degeneração eurocomunista (a começar pela posição de Santiago Carrillo no PCE) é exemplar. Por outro lado, as posteriores experiências dos partidos socialistas europeus ibéricos (francês, português e espanhol) nos anos 1980, que eclipsaram o socialismo na luta parlamentar e, quando chegaram o poder, tornaramse parceiros do capital, também servem de exemplo. No Brasil, o PT que se degenerou gradualmente a partir dos anos 1990 converteu, já na entrada do século XXI, seu 41

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que, em boa parte, passou a sustentar a universalidade da democracia como um valor em si, concebendo-o, abstratamente, à moda de um autêntico idealismo liberalizante. O “pensamento único” dessa esquerda democrática é justamente aquele que, ao adjetivar o socialismo como socialismo democrático45, intentou torná-lo, de modo a-histórico, não uma via ou um modelo para a transição socialista, mas a via ou o modelo para a revolução socialista. De algum modo, nessa inversão doutrinária, a revolução (ou o processo revolucionário) se afastaria das projeções clássicas, associadas não apenas àquelas advindas do velho blanquismo, mas também, e especialmente, àquela originária das formulações de Lenin46. difuso programa socialista herdado dos anos 1980 num progressivo projeto de administração “humanista” do capitalismo. Não posso aprofundar aqui as eventuais relações das estratégias do partido com a valorização da universalidade, abstrata e em si, da democracia, mas não tenho dúvidas de que o descortinamento dessas relações ajudará a compreender os rumos petistas assumidos desde 2003. 45 No Brasil, foi no PT que a designação se difundiu. No famoso documento O socialismo petista, de 1990, a expressão é o aspecto central de uma estratégia de um partido que via em si a encarnação de uma “vocação democrática” e que apostava que tal identidade o diferenciava de toda a tradição socialista e comunista que a história conheceu. Um extrato do documento foi publicado por Löwy em sua antologia O marxismo na América Latina (São Paulo: Cortez/Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 526-533; 2ª edição ampliada). 46 É importante dizer que CNC procurou pontuar em sua obra as diferenças entre o legado lenineano e as diversas proposições que, em nome de Lenin, originaram o leninismo e até mesmo o marxismo-leninismo de Stalin. O que CNC sempre condenou, não apenas no texto de 1979, foi tomar o bolchevismo como um modelo aplicável a qualquer processo revolucionário. No prefácio de seu livro Contra a corrente (2000) diz, em um texto redigido em 1989 e ali coligido, que buscava “superar algumas limitações do velho ensaio de 1979 em sua parte teórica, encaminhando o que me parece ser agora um acerto de contas com a tradição bolchevique, em face da qual A democracia como valor universal manifestava uma atitude ainda ambígua”. A ambiguidade provinha de um contexto no qual, declara o autor, “ainda era militante do PCB e acreditava em sua renovação” (p. 11). Para uma apreensão do bolchevismo, é de consulta obrigatória o livro de A. Rosenberg História do Bolchevismo (Belo

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É evidente que, como procurei mostrar, tal fetichização da demo­cracia não tem lugar nas ideias de Coutinho, mas, se olharmos para uma parte considerável da esquerda que se desenvolveu e governou parte da Europa ocidental no curso das décadas de 1980 e 1990 e a que chegou ao poder nos anos 2000 no Brasil, veremos que minha hipótese não é infundada47. Um ponto final para uma história que não se acaba

Pensar as condições para o socialismo atual não depende apenas de voltar aos clássicos do marxismo. Mas, se o retorno a eles não é garantia de acerto na prática política, tampouco a revolução terá futuro se não soubermos atualizá-los, uma vez que muitas de suas ideias – que serviram para descortinar conjunturas as mais diversas e formações sociais as mais distintas – podem também ser úteis, desde que feitas as mediações necessárias aos nossos dias. Isto vale para retomarmos CNC bem como seus mestres (Marx, Engels, Lenin, Lukács e Gramsci), com os quais construiu seu itinerário. Para além dos modismos que adjetivam o socialismo de tempos em tempos, devemos procurar dar respostas mais adequadas à nossa época e livres de doutrinarismos. Lenin, um marxista que é pouco ou mal lido, entendia o marxismo como a análise conHorizonte: Oficina de Livros, 1989). Pode-se buscar também o debate em torno dele na coleção dirigida por Hobsbawm (História do marxismo, v. 6. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, 2ª edição), especificamente no texto de M. Hájek “A bolchevização dos partidos comunistas”; (p. 197-218). E, para uma caracterização e crítica do stalinismo – onde se encontram elementos para pensar as diferenças entre o pensamento lenineano e o que, para além dele, se derivou em leninismo e bolchevismo –, consulte-se, no volume 7 da mesma coleção, o artigo de M. Salvadori “A crítica marxista ao stalinismo” (p. 285-334); e, também, o didático texto de Netto O que é stalinismo (Brasiliense: São Paulo, 1981). 47 Mas, ainda assim, é certo que tal hipótese carece de estudos que busquem elucidá-la melhor. Como disse na abertura deste texto, apresento aqui ideias que fazem parte de um ensaio de maior alcance que pretendo publicizar numa ocasião oportuna.

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creta de situações concretas. O fato de ter, quase sempre, pensado o processo revolucionário a quente, no calor dos acontecimentos de uma história em processo (para lembrar Florestan) não o impediu de formular diversas ideias cuja fecundidade suplanta a conjuntura em que escreveu. Este pode ser o caso daquilo que designou de revolução em sentido amplo, que, diferente do modo puramente insurreto48 da via blanquista, só poderá criar as condições para a ultrapassagem da ordem burguesa se for capaz de, historicamente, organizar as massas trabalhadoras na direção das transformações sociais profundas e estruturais. Para além da tara democrática ou da mística insurrecional que ainda povoam as fantasias de numerosos segmentos da 48

O significado da revolução em sentido amplo não exclui os momentos insurrecionais que podem ocorrer quando se torna urgente o desenlace revolucionário e que podem resultar num equívoco se a conjuntura não for favorável. Veja-se o que diz Lenin, em setembro de 1917, portanto, às vésperas da revolução, ao analisar a experiência da insurreição de 3-4 de julho: “1) não estava ainda conosco a classe que é a vanguarda da revolução. Não tínhamos ainda a maioria entre os operários e soldados das capitais. Agora ela existe entre ambos os Sovietes (...). 2) Não havia então o ascenso revolucionário de todo o povo. Agora, depois da kornilovada, existe. Demonstraram-no a província e a tomada do poder pelos Sovietes de muitos lugares. 3) Não havia então vacilações, em proporções políticas gerais mais sérias, entre os nossos inimigos e entre a pequena burguesia hesitante. Agora as vacilações são gigantescas: o nosso inimigo principal, o imperialismo aliado e mundial, pois os ‘aliados’ estão à cabeça do imperialismo mundial, começa a vacilar entre a guerra até a vitoria e uma paz separada contra a Rússia. (...) 4) Por isso a insurreição em 3-4 de julho teria sido um erro: nós não conservaríamos o poder, nem física nem politicamente. (...) Agora o quadro é completamente diferente. Temos por nós a maioria da classe que é a vanguarda da revolução, a vanguarda do povo, capaz de arrastar as massas (...)” (Lenin, 1980, p. 309-310. “O marxismo e a insurreição”). E, apontando os caminhos que os bolcheviques deveriam levar aos trabalhadores e à Conferência democrática, assevera: “Temos diante de nós todas as premissas objetivas de uma insurreição com êxito. (...) Devemos explicar [aos operários e soldados] em discursos ardentes e apaixonados o nosso programa e colocar a questão assim: ou a aceitação completa dele pela Conferência, ou a insurreição. Não há meio-termo. É impossível esperar. A revolução perece”. (Ibid., p. 311).

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esquerda em todo o mundo, para esta concepção lenineana o processo revolucionário dependerá, sempre, da criação das condições (objetivas e subjetivas) que promovam a ruptura com a legalidade social instituída, a fim de conquistar o poder político condensado nos órgãos de classe da sociedade. A conquista do poder político, que pressupõe irremediavelmente a ruptura, é um processo que se vale dos meios políticos existentes, mas que os supera ao produzir mecanismos que aprofundem formas de socialização da economia e da política. Tal aprofundamento, ao ser dotado de elementos progressivamente socialistas, provoca a necessidade de uma ruptura mais profunda com a legalidade social posta. Para tanto, além de contar com as forças sociais e com os institutos políticos já existentes, o processo revolucionário pode ou não se valer de um ato de força, mas dependerá, em qualquer situação, de alguma força coatora. Ela cria as condições objetivas para o desenlace do processo revolucionário numa etapa superior, na qual se dá o salto qualitativo que altera estruturalmente as relações sociais, eliminando o “fundamento (econômico, político e jurídico, mas também cultural e psicossocial) de classe”. Nesse sentido, o “processo de tomada do poder político, sem o qual é impensável o socialismo revolucionário, poderia ser um ato de força revestido ou não de violência – o que se decidiria pela correlação das forças sociais em presença numa dada particularidade histórica” (Netto, [1979]1990, p. 94). A viabilidade ou a funcionalidade dos processos democráticos teriam, assim, alguma razão de ser se os seus fundamentos constituírem forças sociais que se inclinem a romper com a legalidade social instituída. De uma forma ou de outra, serão sempre as condições históricas aquelas que definem o conteúdo estratégico da luta socialista. Somente uma cuidadosa análise da realidade histórico-social em questão pode evitar uma ou outra forma de fetichização da via revolucionária.

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“A democracia como valor universal”: um clássico da esquerda no Brasil

As questões levantadas acima revelam alguns dos problemas que CNC enfrentou e outros (desta segunda década do século XXI) que nosso mestre não se pôs a pensar quando escrevia (em 1979!) “A democracia como valor universal”. Com ele (e com Gramsci), terminaria dizendo que prosseguiremos na tarefa incansável de encontrar os meios de emancipar a humanidade, valendo-se de suas belas lições que sempre nos lembram do “pessimismo da inteligência e do otimismo da vontade” e que nunca nos deixarão esquecer de que “vale a pena viver quando se é comunista”. Referências BLACKBURN, R. (1992) “O socialismo após o colapso”. In: BOBBIO, Norberto et al. Depois da Queda. O fracasso do comunismo e o futuro do socialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. BRAZ, M. (2011) Partido e revolução – 1848-1989. São Paulo: Expressão Popular. COUTINHO, C. N. (2011) Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular (nova edição ampliada). _______. (2006) Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo: Cortez. _______. (2005) “Prefácio”. In: Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP & A; 3ª edição revista e ampliada. _______. (2000) Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez. _______. (1998) “O socialismo hoje: entre crise e reconstrução”. In: Vários autores. O significado da Revolução Socialista de 1917. São Paulo: CES. _______. (1994) Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez. _______. (1992) Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 2ª edição. Rio de Janeiro: Campus. _______. (1992) Democracia e socialismo: questões de princípio e contexto brasileiro. São Paulo: Cortez: Autores Associados. _______. (1991) “Marxismo, democracia e revolução”. In: Vários autores, O PT e o Marxismo. São Paulo, Caderno Especial de Teoria e Debate.

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Introdução

Decifra-me ou te devoro! Com estas palavras, a Esfinge grega, demônio em forma híbrida de mulher e leão alado, ameaçava seus interlocutores a desvendar o segredo do seu enigma. Em caso de erro na resposta, o demônio não hesitava em estrangular a sua vítima. Somente Édipo escapou da sua fúria. Algo semelhante acontece com a esquerda no final do século XX e início do XXI. Ainda hoje, mais de 30 anos após a sua consolidação como projeto de supremacia das classes dominantes, o neoliberalismo é um mistério para intelectuais e ativistas dos movimentos populares. O enigma criado pela burguesia permanece parcialmente não decifrado pelos subalternos. O presente artigo busca trazer uma contribuição para o debate sobre o neoliberalismo e suas múltiplas interpretações dentro do campo do marxismo e da teoria social crítica, com destaque para a produção intelectual de Carlos Nelson Coutinho. Para este objetivo, apresenta, em primeiro plano, a matriz teórico-metodológica que Carlos Nelson construiu na sua interpretação sobre o Brasil da Era Vargas ao neoliberalismo, para depois ingressar na

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controvérsia das definições sobre o neoliberalismo, que giram em torno de conceitos como contrarreforma e revolução passiva, dentre outros. Por fim, apresenta-se a hipótese do social-liberalismo, variante ideológica do neoliberalismo que surgiu na década de 1990, como uma tentativa, típica de uma revolução passiva, de renovar a supremacia burguesa em tempos de crises. Carlos Nelson e a imagem do Brasil: via prussiana, revolução passiva e contrarreforma (da Era Vargas ao neoliberalismo)

Carlos Nelson notabilizou-se no início de sua carreira como crítico literário e historiador das ideias, utilizando as obras de Marx e Lukács como seus referenciais teóricos e metodológicos. De acordo com as proposições mais gerais do materialismo histórico, a obra de um autor deve ser contextualizada de acordo com a conjuntura do seu tempo e espaço, isto é, das lutas de classes e do desenvolvimento material das forças produtivas e das relações sociais de produção em uma determinada formação econômico-social. Por isto, o estudo de uma obra literária ou teórica é precedida por uma análise do contexto histórico no qual foi produzida. Este método foi fielmente seguido desde os seus primeiros escritos, tornando-o um marxista ortodoxo no sentido emprestado por Lukács ao termo. Em 1974, no artigo “O significado de Lima Barreto na literatura brasileira”, Carlos Nelson fez uso do método marxiano/ luckasia­no de escrutinar uma obra literária a partir do seu contexto histórico, sem abrir mão do estudo das especificidades dos fenômenos estéticos. Para realizar esta tarefa, utilizou-se do conceito de Lenin de via prussiana na análise da formação econômico-social brasileira, marcada por processos de transformação social de largo alcance – Independência, abolição da escravatura, procla-

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mação da República, Revolução de 1930, golpe militar de 1964, abertura democrática dos anos 1980 – conduzidos pelo alto por acordos entre as classes dominantes (latifundiários e burgueses) que excluem as classes subalternas de um protagonismo efetivo nestes momentos históricos. Conforme explica o nosso autor, Em vez de velhas forças e relações sociais serem extirpadas através de amplos movimentos populares de massa, como é característico da ‘via francesa’ ou da ‘via russa’, a alteração social se faz mediante conciliações entre o novo e o velho, ou seja, tendo-se em conta o plano imediatamente político, mediante um reformismo ‘pelo alto’ que exclui inteiramente a participação popular (Coutinho, 1974, p. 3).

Um pouco depois, em 1979, Carlos Nelson serviu-se novamente do conceito de via prussiana1 no famoso texto “A democracia como valor universal”. Nesta ocasião, o uso do conceito ia além de uma análise da formação econômico-social brasileira, pois se tratava de uma controvérsia teórica que embalava os rumos da luta política dos socialistas pela democratização do país no período de abertura do regime ditatorial civil-militar. Em termos teóricos, Carlos Nelson realça, em relação ao texto de 1974, que a “via prussiana” brasileira conserva o latifúndio e amplia a dependência ao imperialismo, bem como menciona outros intérpretes (Luiz Werneck Vianna, José Chasin, Ivan de Otero Ribeiro) que empregam o conceito de Lenin. Uma outra novidade é que Carlos Nelson (1980, p. 33) relaciona de forma muito tênue, e pela primeira vez na sua obra, o conceito de via prussiana com o de “revolução passiva” de Gramsci. O conceito de Lenin também aparece – enriquecido com as determinações que Lukács agrega a ele – na obra de Carlos Nelson nos textos “Cultura e sociedade no Brasil” (1979) e “Os intelectuais e a organização da cultura” (1980). Ambos os artigos figuram no livro da sua lavra Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas, 4ª edição, São Paulo: Expressão Popular, 2011.

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Na década de 1980, o conceito gramsciano ganhará cada vez mais espaço na sua obra. Em 1985, a aplicação do conceito de revolução passiva fica explícita no texto “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira”, no qual se discute a universalidade da produção teórica de Gramsci no estudo das particularidades da nossa formação econômico-social (Coutinho, [1985] 1999). A partir de então, os conceitos de Lenin e Gramsci serão usados conjuntamente, de forma complementar2, no estudo das transformações históricas por que o Brasil passou no século XX: da Era Vargas à abertura democrática dos anos 1980, passando pelo populismo e a ditadura militar inaugurada com o golpe de 1964. Com o tempo, em especial nos anos 1990, o conceito gramsciano ganha corpo e maior volume nos seus escritos, eclipsando largamente a luz do conceito de Lenin. Da Era Vargas à transição “fraca” na década de 19803

Nos Cadernos do cárcere, o conceito de revolução passiva ou de “revolução-restauração” é tido como um acordo firmado pelo alto entre antigas e novas classes dominantes visando transformações na base econômica e na superestrutura político-ideológica “De qualquer modo, na medida em que se concentra prioritariamente nos aspectos infraestruturais do processo, o conceito de Lenin não é suficiente para compreender plenamente as características superestruturais que acompanham – e, em muitos casos, determinam – essa modalidade [não clássica] de transição. Portanto, não é por acaso que essas tentativas recentes de aplicar ao Brasil o conceito de ‘via prussiana’ são quase sempre complementadas pela noção gramsciana de ‘revolução passiva’” (Coutinho, [1985] 1999, p. 197). 3 A caracterização dos conceitos de via prussiana e revolução passiva, bem como da narrativa histórica da modernização capitalista no Brasil podem ser consultadas em outros artigos deste livro. Faço aqui somente um resgate histórico-conceitual dos anos 1930 aos 1980 para retratar os antecedentes do neoliberalismo, que conserva e nega simultaneamente elementos do passado, superando muitos deles em uma nova fase do desenvolvimento capitalista no Brasil (e no mundo, em geral). 2

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que excluam as classes subalternas da participação ativa na vida política. Ao mesmo tempo em que opera este estilo de transformação conservadora, que atua sob os desígnios de um Estado forte em detrimento de uma sociedade civil débil, os processos de revolução passiva fazem concessões – parciais e focalizadas – por conta da pressão espontânea e limitada dos dominados, naquilo que Gramsci intitulou de subversivismo esporádico e elementar. Em síntese, nas revoluções passivas se constata um misto de elementos renovadores e restauradores, fazendo emergir o novo enquanto perduram aspectos dos antigos regimes sociais. Na Revolução de 1930, ocorreu a consolidação do modo de produção capitalista no Brasil a partir de uma forte intervenção estatal com o estímulo à aceleração da industrialização e a subsunção real do trabalho ao capital, beneficiando amplamente os interesses privados. O processo de modernização foi conduzido pelo Estado, que soldou uma aliança entre setores da oligarquia fundiária e uma nascente burguesia industrial, quebrando com a antiga hegemonia das oligarquias exportadoras, que mesmo assim se mantiveram no bloco de poder, embora de forma secundária. O país aprofundava-se na direção do capitalismo mantendo, todavia, estruturas agrárias pré-capitalistas com a presença das velhas elites no poder. Aos setores sociais resistentes, como a ala esquerda do tenentismo e o movimento operário autônomo, o Estado valeu-se da sua máquina coercitiva. A reação estatal à resistência dos trabalhadores, entretanto, não se limitou à repressão, intensificada com o golpe do Estado Novo. O Estado varguista editou medidas de atendimento de demandas pontuais do movimento operário com a promulgação de leis trabalhistas voltadas aos empregados urbanos, deixando de lado, no entanto, os trabalhadores rurais. Além disso, a legislação sindical atrelou os sindicatos dos trabalhadores à burocracia estatal, a partir de uma legislação influenciada pelo fascismo.

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O golpe militar de 1964, realizado com apoio da burguesia e dos latifundiários, foi mais um capítulo da revolução passiva brasileira. Naquela ocasião, o bloco de poder dominante efetivou a mudança de patamar do capitalismo da sua fase concorrencial para a monopolista, consolidando o capital monopolista de Estado4 e a hegemonia das multinacionais no país – processo este que já ocorria desde o governo JK. A estrutura fundiária continuou extremamente concentrada, mas as relações sociais de produção e as forças produtivas capitalistas entraram no setor rural, trazendo alterações substantivas no campo brasileiro, que ainda combinava elementos arcaicos e modernos. Mais uma vez, o Estado assumiu aquilo que Gramsci chamou de função Piemonte na revolução passiva, isto é, um papel protagonista nas transformações da sociedade, substituindo classes e grupos sociais na direção da modernização. O Estado autocrático burguês liderou todo o processo de transição capitalista monopolista com o uso intensivo da coerção aos grupos que resistiram ao golpe, dos trabalhistas aos comunistas. Em paralelo, o governo ditatorial ensaiou medidas de construção do consenso junto às camadas médias (Coutinho, [1985] 1999, p. 202) não somente com o crescimento econômico (que mais tarde se revelaria um modelo de desenvolvimento que aprofundava as desigualdades socioeconômicas), mas também com concessões pontuais nas áreas dos direitos sociais (previdência, habitação), enquanto suprimia diretamente direitos civis e políticos. O terceiro e último capítulo da revolução passiva brasileira, pelo menos no entendimento de Carlos Nelson, foi a transição da ditadura militar para a Nova República nos anos 1970-1980. A abertura política do país iniciou-se como um projeto formu Sobre o conceito de capitalismo monopolista de Estado e a política brasileira, ver o quarto capítulo do livro A democracia como valor universal (Coutinho, 1980, p. 93-118).

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lado nos gabinetes do alto escalão da ditadura, particularmente pelo estrategista do regime, o general Golbery do Couto e Silva, em parceria com Ernesto Geisel. Segundo as suas formulações, o projeto de abertura deveria ser uma “transição segura, lenta e gradual”, numa operação de ação repressiva aos setores mais radicalizados da oposição e de cooptação dos moderados. A este projeto, contrapôs-se um processo de abertura construído pelas bases e direções oposicionistas, que lutavam pela anistia ampla, geral e irrestrita, pelo pluralismo partidário com agremiações dos trabalhadores e por eleições livres e diretas. Neste embate entre a ditadura e a oposição, venceu a primeira, que foi obrigada, todavia, por conta das forças de centro-esquerda, a fazer determinadas concessões5. A resultante final foi, assim, uma transição “fraca”, na qual prevaleceram os aspectos autoritários na cultura política brasileira e as desigualdades socioeconômicas. Nas suas palavras, Uma transição desse tipo – que poderíamos chamar de ‘fraca’ – implicava certamente uma ruptura com a ditadura implantada em 1964, mas não com os traços autoritários e excludentes que caracterizam aquele modo tradicional de se fazer política no Brasil. Disso resultou a permanência, na nova situação política criada pela transição ‘fraca’, pomposamente autobatizada de ‘Nova República’, de claros elementos de ‘prussianismo’ (Coutinho, [1991] 2000, p. 93).

A transição histórica ocorreu mais uma vez sob a máxima lampedusiana de mudar para conservar. Esta etapa da via não “Na prática, contudo, a sociedade civil emergente terminou por promover um processo de abertura ‘a partir de baixo’, que certamente buscou se valer das novas condições geradas pela implementação do projeto ‘pelo alto’, mas que o transcendeu, indo bastante além dele, e que terminou assim por dar lugar a uma abertura bem mais radical do que a prevista no projeto originário do governo Geisel-Golbery” (Coutinho, 2006a, p. 187, grifos originais).

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clássica do capitalismo brasileiro comportava, porém, um aspecto relevante que não poderia escapar aos mais atentos analistas e militantes interessados na luta pela democratização do país rumo ao socialismo. Segundo Carlos Nelson Coutinho (2006a, p. 187), desde meados dos anos 1970, o Brasil viveu uma contradição fundamental na sua superestrutura, a saber, o florescimento de uma sociedade civil em face do gigantismo do Estado, em meio à repressão brutal aos aparelhos privados de hegemonia ligados à classe trabalhadora e setores médios mais progressistas. A partir dos primeiros germes da decadência da ditadura tecnocrático-militar, intensificou-se a ocidentalização da formação econômico-social brasileira, isto é, uma relação mais equilibrada dentro do Estado ampliado a partir da diversificação e complexificação da sociedade civil, ilustrada no fortalecimento do MDB, no aparecimento do novo sindicalismo e dos novos movimentos sociais, na fundação do PT e do MST etc. Este processo sui generis de ocidentalização do Brasil tornou-se definitivamente consolidado na década de 1980, que viu, na arena político-ideológica, a formulação de dois grandes modelos de estruturação do poder e de representação dos interesses: o liberal-corporativo e o democrático de massas (Coutinho, 2006a, p. 189-190). O primeiro modelo, típico da sociedade estadunidense, é formado por sindicatos corporativistas de resultados imediatos aos seus filiados e partidos políticos sem uma definição ideológica muito clara, funcionando como federações de lobistas de causas específicas, que tendem a gerenciar a ordem existente a partir da pequena política. O segundo modelo, originado na Europa ocidental, tem sindicatos classistas de maior combatitividade e partidos políticos com programas, ideologias e bases sociais distintos e, muitas vezes, antagônicos, o que gerou uma intensa disputa pela direção intelectual-moral das sociedades nacionais a partir da grande política. No Brasil, o modelo norte-americano adqui-

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riu a forma e o conteúdo do neoliberalismo; já o modelo europeu tornou-se o projeto democrático-popular capitaneado pelo PT e seus aliados. A disputa político-ideológica no Brasil se deu, a partir dos anos 1980, entre os modelos neoliberal e o democrático-popular. A novidade desta disputa era que as classes dominantes reconheceram, diante do avanço das forças populares, a necessidade histórica de se tornarem classes dirigentes, isto é, que precisavam construir consenso junto às classes subalternas. Contra o projeto de democratização das esferas econômica, política e cultural proposto pelos trabalhadores, a burguesia brasileira encampou o projeto neoliberal na sua versão básica do Consenso de Washington – de política econômica de juros altos, superávit primário, liberalização financeira, comercial e produtiva e privatização dos bens públicos, bem como de despolitização da sociedade civil via “terceiro setor”, enfraquecimento dos partidos políticos e promoção do sindicalismo de resultado. Conforme declara Carlos Nelson Coutinho (2006a, p. 191-192), (...) na medida em que a burguesia tem hoje consciência de que essas soluções são inviáveis [ditadura militar], ela tem se esforçado por combinar sua dominação com formas de direção hegemônica, ou seja, por obter um razoável grau de consenso por parte dos governados. O grande objetivo atual das forças do capital, no Brasil e no mundo, é consagrar a pequena política e a pseudoética do privatismo desenfreado como elementos fundamentais de um senso comum que sirva de base à sua hegemonia. É essa, precisamente, a face ideológica do neoliberalismo.

É importante ressaltar que o processo de ocidentalização da sociedade brasileira não eliminou traços prussianos da nossa formação histórica; antes conservou-os, sob novas formas. Daí a caracterização do nosso país como um Ocidente periférico e

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tardio (Coutinho, [1985] 1999, p. 211-212, nota 21). Carlos Nelson destaca que, após a transição “fraca”, o regime presidencialista nos governos Collor e Cardoso manteve traços autoritários, como a edição sem critérios das medidas provisórias, o uso da máquina estatal para cooptar lideranças de outros partidos via clientelismo e negociatas no balcão do Congresso Nacional e uma relativa tutela militar (Coutinho, [1991] 2000, p. 99). A hegemonia, portanto, tornou-se, na época neoliberal, a principal arma da supremacia burguesa no Brasil, que continuou a empregar subsidiariamente os aparelhos de dominação de acordo com seus desígnios de classe. Já nos anos 1990, com a hegemonia neoliberal que inaugura uma nova fase do desenvolvimento capitalista no Brasil, Carlos Nelson abandona o conceito de revolução passiva em favor do conceito de contrarreforma. Fiel ao seu método de investigação, que tem o concreto como ponto de partida e a objetividade da análise processual do real como um dos seus pressupostos, o filósofo baiano rascunha uma nova imagem do Brasil de acordo com as transformações operadas na nossa formação econômico-social, ainda com os instrumentais fornecidos por Gramsci. Uma nova imagem do Brasil? Contrarreforma, “americanalhamento” e hegemonia da pequena política na época neoliberal

Desde o último decênio do século XX, Carlos Nelson caracteriza o neoliberalismo como uma contrarreforma. Nas suas primeiras formulações, o termo não é definido conceitualmente e não há nenhuma referência a Gramsci ou qualquer outro autor. Em linhas gerais, a contrarreforma neoliberal dos governos FHC é tida como uma ofensiva burguesa de retirada de direitos sociais consagrados na Constituição de 1988 e uma defesa das bases da acumulação capitalista sob o comando do Estado (Coutinho,

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[1991] 2000, p. 95; [1998] 2000, p. 121-122). O Estado brasileiro conserva, desta maneira, alguns dos seus traços mais típicos, como o seu caráter privatista e antidemocrático, para não dizer autoritário. Nas palavras de Carlos Nelson, (...) o sentido último da ‘reforma’ proposta pelo atual governo [FHC] não aponta para a transformação do Estado num espaço público democraticamente controlado, na instância decisiva da universalização dos direitos de cidadania, mas visa submetê-lo ainda mais profundamente à lógica do mercado. Trata-se, na verdade, de uma ‘contrarreforma’, que tem dois objetivos prioritários: por um lado, em nome da ‘modernização’, anular as poucas conquistas do povo brasileiro no terreno dos direitos sociais; e, por outro, em nome da ‘privatização’, desmontar os instrumentos de que ainda dispúnhamos para poder nos afirmar como nação soberana em face da nova fase do imperialismo, a da “mundialização do capital” (Coutinho, [1998] 2000, p. 123).

Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, até então defensor do modelo democrático-popular e crítico do neoliberalismo, acreditou-se numa reviravolta na política nacional. A reviravolta, contudo, não veio, e o PT rapidamente aderiu ao projeto neoliberal (Machado, 2005), em particular pela manutenção da política econômica herdada dos governos FHC6, blindando a acumulação rentista das ingerências da democracia. Os resultados “Todo o esforço teórico e prático do neoliberalismo tem se voltado no sentido de desqualificar a ‘grande política’ (que seria ‘ideológica’, ‘utópica’, ‘universalista’ etc.) e reduzir a atividade política ao que Gramsci chamava de ‘pequena política’. Faz parte desta redução o esforço para subtrair do debate político as opções de política econômica, aquelas que envolvem um questionamento dos próprios lineamentos da ordem social. Ora, tanto a atual crise como as soluções apontadas para ela fazem parte do universo da ‘pequena política’. Não me parece casual que a grande preocupação, tanto da oposição tucano-pefelista quanto do governo, seja ‘blindar’ a economia, ou seja, impedir que questões de ‘grande política’ voltem a ocupar a agenda” (Coutinho, 2006b, p. 156-157).

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foram o aprofundamento e a consolidação da inserção nacional na mundialização do capital, que agora não encontrava maiores resistências no campo da esquerda e das forças populares. Assim, o Brasil caminhou para o seu “americanalhamento” (Coutinho, 2006a, p. 193), isto é, a incapacidade real de grupos políticos discutirem (e implementarem) alternativas de ruptura com os nossos passado e presente de desigualdades socioeconômicas aliada a uma política autoritária e antidemocrática. Vive-se, assim, a hegemonia da pequena política, definida por Carlos Nelson da seguinte maneira: “existe hegemonia da pequena política quando a política deixa de ser pensada como arena de luta por diferentes propostas de sociedade e passa, portanto, a ser vista como um terreno alheio à vida cotidiana dos indivíduos, como simples administração do existente” (Coutinho, 2010, p. 32). De acordo com o nosso autor, a adesão do PT ao projeto neoliberal pode ser lida a partir do transformismo, processo típico das revoluções passivas de cooptação de lideranças das classes subalternas ao bloco de poder dominante. Isto significa, então, que o neoliberalismo seria o quarto capítulo da revolução passiva brasileira? Carlos Nelson expressa uma descrença quanto a esta hipótese: Tenho dúvidas sobre a possibilidade de aplicar à atual conjuntura brasileira, iniciada com o governo Collor, a categoria gramsciana de ‘revolução passiva’. Uma ‘revolução passiva’ implica algumas concessões às classes subalternas, como foi precisamente o caso do governo Vargas, do populismo em geral e até mesmo da ditadura militar (a qual, por exemplo, estendeu direitos previdenciários aos trabalhadores rurais e aos autônomos urbanos). Ao contrário, os últimos governos têm tido como meta apenas desconstruir direitos sociais já conquistados, o que talvez permita dizer que estamos numa época de ‘contrarreforma’ (...). Mas, ainda que se trate de contrarreforma e não de revolução passiva, a justeza da aplicação da noção de ‘transformismo’ ao período que se inicia com o governo

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Cardoso e prossegue no governo Lula me parece inegável (Coutinho, 2006a, p. 198, nota 30).

No tocante à categorização do neoliberalismo, a sua argumentação é cuidadosa, pois a hipótese de contrarreforma seria uma conclusão provisória. Além disso, pontua que o conceito de contrarreforma tem uma presença marginal nos Cadernos do cárcere; quando usado por Gramsci, referiria-se majoritariamente ao campo cultural. Por tudo isso, merece cautela no seu uso, que só se manifesta na obra de Carlos Nelson no segundo mandato do governo Lula, mais precisamente em 2008, no artigo “A época neoliberal: revolução passiva ou contrarreforma?”. De todo modo, a atual fase do capitalismo pode ser caracterizada como uma contrarreforma porque o neoliberalismo notabiliza-se como um projeto de restauração da classe capitalista, no qual o restabelecimento de antigos elementos é preponderante em relação aos novos, enquanto, nas revoluções passivas, haveria um reconhecimento limitado e seletivo das demandas das classes subalternas (Coutinho, 2008, p. 98, 102 e 104). Em curta passagem, Carlos Nelson também descarta o uso do conceito de contrarrevolução, pois, nos países centrais, “o alvo da ofensiva neoliberal não são os resultados de uma revolução propriamente dita, mas o reformismo que caracterizou o Welfare State” (Coutinho, 2008, p. 103). Apesar de tudo, o filósofo político marxista admite que o uso do conceito de revolução passiva não seria totalmente descabido para caracterizar o neoliberalismo. A principal razão que justificaria tal uso é o fenômeno massivo do transformismo de intelectuais outrora de esquerda e hoje integrados ao sistema capitalista em funções de comando tanto do capital quanto do Estado ampliado burguês.

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Inventário de uma controvérsia: o neoliberalismo em debate

O termo “neoliberalismo” demonstrou vitalidade na década de 1990 a partir da luta ideológica travada pela esquerda contra a mundialização do capital. Com ele, os críticos das mutações gestadas nos últimos 30-40 anos conseguiram demonstrar, com alguma dose de eficácia, os efeitos econômicos, políticos e sociais mais danosos do projeto burguês. Por isso, muitos dos intelectuais neoliberais renegam a pecha, taxando seus críticos de antiquados e anacrônicos, que não teriam percebido os ventos inevitáveis da mudança no mundo. De acordo com Carlos Nelson, nem mesmo os seus primeiros defensores – doutrinários duros e puros, mas que tinham pelo menos o mérito da sinceridade – diziam-se ‘conservadores’. Hoje, os ideólogos do neoliberalismo gostam de se apresentar como defensores de uma suposta ‘terceira via’ entre o liberalismo puro e a social-democracia ‘estatista’, apresentando-se assim como representantes de uma posição essencialmente ligada às exigências da modernidade (ou, mais, precisamente, da chamada pós-modernidade) e, portanto, ao progresso. A versão atual da ideologia neoliberal faz assim da reforma (ou mesmo da revolução, já que alguns gostam de falar de uma ‘revolução liberal’) a sua principal bandeira (Coutinho, 2008, p. 99).

Apesar dessa vitória em denotar o termo ‘neoliberalismo’ como algo socialmente destrutivo, muitos desses críticos tiveram dificuldades em criar um conceito rigoroso. Difícil defender a tese de que o termo ganhou status de uma categoria conceitual precisa, embora ainda seja de grande valia para os críticos da nova fase do capitalismo nos confrontos ideológicos com os defensores da ordem burguesa. A verdade é que se criou uma confusão em volta do termo. Pierre Salama (2000, p. 142) é categórico ao afirmar a sua inexatidão: “creio que não sabemos ainda precisar com exati-

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dão o que é o neoliberalismo, que acabou se tornando uma categoria muito difusa. Se, por um lado, é claro que conhecemos os seus efeitos, em termos analíticos ele se transformou num conceito muito escorregadio”. Alguns críticos da nova fase imperialista chegam mesmo a duvidar do seu poder heurístico. Francisco de Oliveira (2006, p. 247) afirma que o termo estaria aquém da tragédia, isto é, que não seria capaz de explicar teoricamente os múltiplos movimentos e dimensões do real diante das transformações das últimas décadas. Virgínia Fontes (2010, p. 154) taxa-o de descritivo, com viés para a denúncia das iniquidades do capitalismo, sem atentar para as continuidades do imperialismo no pós-guerra; daí a autora propor o conceito de capital-imperialismo para o entendimento das novas determinações do modo de produção capitalista. Diante da confusão teórica, o termo ganhou muitas facetas dentro do pensamento social crítico. Na sua maioria, os intelec­ tuais progressistas privilegiam dimensões particulares do real, com ênfase nas esferas ideológicas e políticas. A definição do neoliberalismo enquanto uma força ideológica é uma das mais difundidas. Um dos textos sobre o neoliberalismo mais influentes no Brasil foi “Balanço do neoliberalismo”, de Perry Anderson. Neste artigo, o intelectual britânico faz um histórico do neoliberalismo e, ao final, propõe um balanço do mesmo, definido como um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional (Anderson, 2000, p. 22).

Em várias passagens, Anderson sobressalta a dimensão ideo­ lógica do termo, mas sempre relacionando-a com as dimensões econômicas, políticas e sociais. Na mesma linha, encontra-se a

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definição de Göran Therborn7. Entre os autores nacionais, João Leonardo Medeiros usa a categoria “visão de mundo” para defini-lo. De acordo com os seus apontamentos, essa categoria também pode ser entendida como um sinônimo de “sistema de crenças, paradigma, ontologia ou outra denominação semelhante” (Medeiros, 2007, p. 8). A sua linha de pesquisa sinaliza questões ideo­lógicas que envolvem o neoliberalismo, sem perder de vista os impactos sociais das políticas neoliberais operadas por Estados, mercados e por organismos multilaterais de desenvolvimento e governança. O autor denuncia os efeitos devastadores do neoliberalismo e explicita a ineficácia das políticas sociais propostas pelo Banco Mundial e pelo Pnud/ONU. Por fim, também denuncia a falsificação e a manipulação de dados e a inconsistência metodológica dos estudos dos organismos multilaterais na mensuração da pobreza. Emir Sader (2000) também enfatiza a dimensão ideológica do termo, afirmando-o como uma hegemonia das classes dominantes8. Por fim, Lucia Neves (2005) taxa o neoliberalismo, em especial sua vertente da Terceira Via, de uma nova pedagogia da hegemonia para consolidar o consenso burguês. Um segundo conjunto de definições sobre o neoliberalismo pode ser circunscrito em torno dos seus aspectos políticos. Em linhas gerais, define-se o termo como uma ofensiva da classe burguesa e seus aliados contra os trabalhadores diante da crise capitalista no final dos anos 1970 e início dos 1980. Neste grupo, en “O neoliberalismo é um projeto sério e racional, uma doutrina coerente e uma teoria vinculada e reforçada por certos processos históricos de transformação do capitalismo. É uma doutrina, pelo menos de fato, conectada com uma nova dinâmica tanto tecnológica e gerencial quanto financeira dos mercados e da competição” (Therborn, 2000, p. 182). 8 “Me parece que o essencial é caracterizar o neoliberalismo como um modelo hegemônico. Isto é, uma forma de dominação de classe adequada às relações econômicas, sociais e ideológicas contemporâneas” (Sader, 2000, p. 146). 7

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contram-se autores como Atilio Boron9, Immanuel Wallerstein10, Luciano Vasapollo11 e Pablo González Casanova12. Com destaque, têm-se os textos de David Harvey (2008) e François Chesnais (2002), que utilizam o termo como sendo uma tentativa da burguesia rentista em reverter a tendência à queda da taxa de lucro, além de combater outras causas das crises capitalistas atacando as organizações da classe trabalhadora, tidas como politicamente responsáveis pela corrosão das bases da acumulação (os conflitos distributivos entre rendas e riquezas do capital e do trabalho). Este conjunto de intelectuais assume a hipótese de a ofensiva neoliberal ser uma estratégia política que a classe burguesa – hegemonizada por sua fração rentista –, projetou e colocou em ação para estancar o processo de democratização política e social dos anos 1960 “O neoliberalismo nos é apresentado como saída única, como a ‘solução técnica’, quando não se trata de nada mais do que a expressão de uma coalizão de interesses das classes dominantes” (Boron, 2000, p. 174). 10 “O raciocínio é, portanto, o seguinte: o triplo processo [de tendência secular] de desruralização/esgotamento ecológico/democratização produziu uma poderosa pressão sobre os níveis de lucro, levando-os a um ponto crítico. Evidentemente, os capitalistas contra-atacam. O conjunto da ofensiva neoliberal nos últimos 20 anos corresponde exatamente a uma tentativa de inverter o sentido da corrente. Os capitalistas tentaram, deste modo, reduzir os salários dos trabalhadores [deslocalização/relocalização das empresas na periferia], as exigências referentes à internalização de custos [agressão ambiental] e os gastos do Estado providência [democratização]” (Wallerstein, 2003, p. 90). 11 “(...) A dominação mundial neoliberal é uma tentativa do capital de solucionar a crise de acumulação que está presente com força desde os anos 1970 e determina a estrutura e a dinâmica do presente modo com que o imperialismo se apresenta. Os países imperialistas devem responder cada vez mais aos processos do capital financeiro internacional, que mais do que nunca é a forma de mostrar as características mundiais do capitalismo com sua busca por superlucro” (Vasapollo, 2007, p. 67). 12 “A chamada ‘economia [neo]liberal’ é a nova forma da sociedade civil e da política social no que se refere aos marginalizados e superexplorados, que de outro modo tenderiam a formar frentes coletivas. É uma política de desestruturação da classe trabalhadora” (Casanova, 1995, p. 110; grifos originais). 9

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e 1970, cristalizado tanto no Welfare State quanto no socialismo real. Para lograr êxito na reafirmação da sua supremacia, as classes dominantes lançaram mão prioritariamente de recursos hegemônicos e consensuais e, nos casos mais extremos (mas não tão raros), da dominação-coerção, como repressão policial brutal, criminalização da pobreza e invasões militares na periferia mundial. Vale ressaltar que tais autores, ao enfatizarem os aspectos políticos deste assalto do capital financeirizado, não obliteram os aspectos econômicos e ideológicos do neoliberalismo. No Brasil, o termo foi relacionado a conceitos da filosofia política que versam sobre períodos históricos anteriores ao bloco histórico fordista-keynesiano. Francisco de Oliveira (1999, p. 80), antes de sugerir o abandono do vocábulo, tratou-o como uma ideologia totalitária que anula a política e a fala dos subalternos, incutindo o consenso neoliberal à força, como se houvesse uma (nova) “ditadura” no país. No dossiê Neoliberalismo e neofascismo do n. 7 da revista Crítica Marxista, Octavio Ianni (1998, p. 118) traça um paralelo entre o neoliberalismo e o nazifascismo, apontando similitudes entre as suas políticas de terrorismo de Estado, criminalização dos movimentos sociais, xenofobia, racismo etc. Reginaldo Moraes (1998, p. 125), por sua vez, indica que a falência da contrarrevolução neoliberal poderia pavimentar o caminho para saídas fascistas. Os conceitos de totalitarismo e fascismo usados por Chico de Oliveira, Octavio Ianni e Reginaldo Moraes são mais relacionados ao uso da coerção do que ao consenso ideológico dentro do mix de recursos utilizados pelas classes proprietárias nos seus padrões de supremacia. É importante destacar a existência de elementos ditatoriais na ofensiva neoliberal, mas não se deve perder de vista que tal ofensiva se baseou fundamentalmente em táticas hegemônicas. No prólogo do livro Poder & dinheiro, João Manuel Cardoso de Mello (1997) narra a globalização capitalista como uma “con-

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trarrevolução liberal-conservadora”, com a qual as elites dominantes tentam controlar os setores tecnológicos, o sistema internacional de moedas e finanças e o poder político-militar. Os resultados do controle destas dimensões por parte dos governos centrais e suas elites são, para a periferia, o aumento da heterogeneidade estrutural, da exclusão social e da dependência externa. Kátia Lima (2008, p. 2), a partir de um resgate dos textos de Florestan Fernandes, define o neoliberalismo como uma contrarrevolução preventiva e prolongada, indicando como esse conjunto de ações da burguesia para enfrentamento de suas crises, reconstituição de suas margens de lucro e reprodução do seu projeto de sociabilidade ganha novos contornos e nova racionalidade nos anos de neoliberalismo, seja por meio do ‘neoliberalismo clássico’ ou do neoliberalismo de ‘terceira via’.

Como se percebe, a controvérsia sobre o neoliberalismo vai muito além de um maniqueísmo conceitual entre contrarreforma e revolução passiva. Daí a importância desta cartografia ideológica sobre o atual projeto de supremacia burguesa, que permite múltiplas leituras dentro do campo da teoria social crítica e, portanto, múltiplas ações de transformação social, que ainda não colocaram em xeque a ordem burguesa em tempos de crise. Social-liberalismo: a renovação na revolução passiva neoliberal (à guisa de conclusão)

No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels ([1848] 1998, p. 17) anunciaram que o rompimento de intelectuais burgueses com a concepção de mundo própria da sua classe de origem é sinal de uma época de crise revolucionária, “(...) períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva”. E o contrário, isto é, a passagem de intelectuais socialistas para as fileiras da concepção

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de mundo burguesa, o que significa? Como caracterizar, então, o neoliberalismo, época histórica de cooptação massiva e molecular de influentes quadros do movimento operário, que aderem ao bloco social hegemonizado e dominado pela burguesia rentista? Neste sentido, Guido Liguori (2008, p. 66, grifo original) contribui para o debate dizendo que (...) as categorias interpretativas do pensamento socialista depois de 1989 se tornaram cada vez mais contíguas às categorias centrais do pensamento liberal, submetendo-se à sua hegemonia, a partir de uma forte subestimação do papel da política em favor da sociedade civil, no âmbito de um renovado processo, obviamente inconsciente, de ‘revolução passiva’.

A interrogação que Liguori suscita é se o processo de passivização das lutas das classes subalternas à ordem burguesa – via o transformismo dos seus partidos políticos e sindicatos, que se engajaram resolutamente no projeto neoliberal – teria sido “obviamente inconsciente”. Há indícios de que, em alguns casos moleculares, o apassivamento pode ter sido inconsciente, com as mudanças do programa intelectual do neoliberalismo tendo sido incorporadas como algo “natural” diante das transformações do capitalismo e da suposta falta de alternativas políticas à avalanche da ofensiva burguesa. Entretanto, não parece verossímil que um processo tão massivo de apassivamento de lideranças históricas do movimento operário internacional, que arrastou os maiores partidos socialistas da Europa e da América Latina, não tenha sido um movimento consciente. Tanto é assim que intelectuais coletivos e avulsos fizeram questão de passar a limpo esta história e escrever documentos explicando seus processos de conversão, mascarados como um rito de passagem necessário a integração à nova ordem. No nosso país, autores como Luiz Werneck Vianna (2011) e Ruy Braga (2010) defendem a tese de que o neoliberalismo pode ser caracterizado, de acordo com as necessárias mediações históricas,

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como mais uma etapa da revolução passiva brasileira. Na minha tese de doutorado, intitulada O social-liberalismo (Castelo, 2011), defendida na Escola de Serviço Social sob orientação do mestre Carlos Nelson13, também procuro edificar a mesma hipótese. Ora, como o prof. Carlos Nelson admite, o neoliberalismo tem o transformismo como uma das suas marcas. O que cabe perguntar é: diante do subversivismo esporádico e elementar das classes subalternas surgido em meados dos anos 1990, a ofensiva neoliberal não teria sido obrigada a adotar mecanismos de reformas passivas para além da restauração do poder da classe burguesa e seus apoiadores? O que se argumentará logo a seguir é que tais reformas não se configuram como conquistas da classe trabalhadora como as ocorridas nos trinta anos gloriosos, mas como concessões que as classes dominantes fazem sob um invólucro de medidas assistencialistas, totalmente desvinculadas da noção de direito, de organização de classe e de luta político-cultural. Assim, defende-se que a ofensiva rentista ajustou sua estratégia inicial de restauração para uma reforma-restauradora a partir da última década do século passado, com o objetivo de manter o bloco histórico neoliberal. Apesar da sua força, o neoliberalismo encontrou resistências na sua aplicação “pura” e, por isso, não tomou exatamente o rumo idealizado pelos ideólogos de Mont Pèlerin. Tais resistências – vindas aos subalternos e até mesmo a frações das classes dominantes – ocorreram desde os primórdios da consolidação do neoliberalis Peço licença aos leitores para uma nota de cunho estritamente pessoal: apesar das divergências no campo interpretativo sobre o neoliberalismo, Carlos Nelson, em momento algum, quis imputar qualquer tipo de direção à minha tese. Ao contrário, estimulou – de todas as formas possíveis – o debate franco e aberto, defendendo a minha autonomia enquanto pesquisador. Creio que esta marca de generosidade o distingue de muitos intelectuais da academia e o torna um grande mestre.

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mo nos governos Pinochet, Reagan e Thatcher. Na primeira variante ideológica do neoliberalismo, intitulada de receituário-ideal, defendia-se uma intolerante doutrina do controle dos gastos públicos, do arrocho salarial, das aberturas comercial e financeira, do desmonte do Welfare State e de um amplo processo de privatização, dentro daquilo que ficou consagrado nos anos 1990 como o Consenso de Washington. Os planos de ajuste estrutural foram implementados de acordo com a correlação de forças de cada um dos países. Na América Latina, por exemplo, a agenda neoliberal foi aplicada com maior ênfase em países como Argentina, Bolívia, México e Venezuela. No Brasil, diante de um complexo quadro nacional das lutas de classes, no qual a esquerda – liderada pelo PT nos anos 1980 – formou um bloco de resistência relativamente eficiente, o neoliberalismo só conseguiu se estabelecer tardiamente nos anos 1990 com a cooptação de setores da social-democracia (PSDB), auxiliados por conservadores (o então PFL, hoje DEM) e até mesmo ex-comunistas (PPS). Operado por uma composição heterogênea de social-democratas, intelectuais e executivos ligados ao setor rentista e oligarcas do agronegócio, o bloco de poder PSDB-PFL, após a vitória presidencial de 1994, promoveu a inserção do Brasil na nova divisão internacional do trabalho, adequando o país aos padrões globais da acumulação capitalista, além de combater as organizações políticas e sociais dos trabalhadores com repressão e cooptação das suas principais lideranças. A ofensiva neoliberal fundou um novo bloco histórico capitalista no Brasil, com alterações tanto na base econômica quanto nas superestruturas político-ideológicas. Do ponto de vista político, soldou-se um bloco social com participações de distintas frações da burguesia – com hegemonia do grande capital financeirizado nacional e internacional (Filgueiras, 2006, p. 183-184) –, dos latifundiários, das classes médias e, a depender

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do período, do lumpenproletariado e da aristocracia operária (Boito Jr., 2003). O projeto neoliberal representou a derrota do movimento operário reconstruído na década de 1980, o aborto de um Estado de bem-estar social nacional e, acima de tudo, a vitória da burguesia liderada por sua fração rentista internacionalizada. A esta vitória, seguiu-se uma ofensiva ideológica neoconservadora. Em uma estratégia formulada e conduzida por universidades (na sua maior parte, privadas e de cariz eclesiástico), institutos de pesquisa, ONGs e pela mídia, o social-liberalismo chegou aqui para reafirmar e reatualizar a direção intelectual-moral das classes proprietárias. Não há um consenso entre os especialistas acerca da data de desembarque do social-liberalismo no Brasil. Flávio Bezerra de Farias (2003) e Ruy Braga & Álvaro Bianchi (2003) afirmam que tal ideologia chegou aos trópicos com a eleição de Lula em 2002. José Luis Fiori (1995), em contraposição, observa que a social-democracia de Felipe Gonzalez, que se autointitulava um social-liberal, funcionou como um modelo de atuação prática para os tucanos. Segundo esta linha de raciocínio, o social-liberalismo teria chegado ao Brasil durante o governo FHC: esta tese, todavia, não deve desconsiderar a força legitimadora que o PT e seus aliados da antiga esquerda nacional injetaram no neoliberalismo ao abraçarem a ideologia social-liberal. No meu entender, este debate precisa ser encaminhado sob uma análise mais dinâmica. Nos primeiros passos do neoliberalismo brasileiro, os elementos de restauração prevalecem em larga medida nos governos FHC, mas já existiam, neste momento, alguns embriões de projetos renovadores típicos do social-liberalismo que seriam aprofundados nos governos Lula, como os programas experimentais de transferência de renda, a universalização da educação básica (com péssima qualidade, diga-se a verdade) e os aumentos reais do salário mínimo; já nos mandatos do PT, alguns

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elementos de renovação são aprofundados e outros são inaugurados – não nos moldes de reformas sociais, mas sim de atendimentos pontuais de algumas demandas dos subalternos, como programas massivos de transferência de renda, aumento do crédito para consumo de massa, sistema de cotas raciais e sociais para ingresso no ensino superior, geração de empregos formais etc. (Braga, 2010, p. 12). Ou seja, o social-liberalismo consolida-se nos governos Lula e Dilma, mas seus germes estavam sendo cultivados já na gestão tucana. Os resultados prometidos às populações pelos programas de ajuste do Consenso de Washington não foram alcançados: as taxas de crescimento econômico continuaram estagnadas, o desemprego cresceu, os empregos gerados foram de baixa qualificação e, principalmente, os índices de pobreza e desigualdade aumentaram. Gradativamente, tomou-se consciência de que o receituário-ideal do neoliberalismo não reunia condições políticas e ideológicas para cumprir suas (falsas) promessas. Um mal-estar generalizado começou a ser sentido pelas classes subalternas diante dessa situação de deterioração social. Era hora, portanto, de o neoliberalismo sofrer um suave ajuste na sua estratégia. Apresento uma hipótese de trabalho que busca explicar os múltiplos nexos estruturais do social-liberalismo: a deterioração do mundo do trabalho no centro e na periferia do mercado mundial, as crises financeiras globais e as lutas e resistências contra-hegemônicas da década de 1990 (zapatismo, Seattle, Fóruns Sociais etc.) geraram um período de crises conjunturais. Estas crises, caracterizadas de acordo com a teoria gramsciana14, exigem soluções renovadas de disciplina da classe trabalhadora – subsunção formal 14

Sobre os conceitos de crise orgânica e conjuntural nos apontamentos carcerários de Antonio Gramsci, sugiro a consulta das notas 216 do caderno 8 (volume 1 da edição brasileira); 61 do caderno 9 (volume 4); 17, 23 e 24 do caderno 13 (volume 3); 5 do caderno 15 (volume 4); e 1 e 15 do caderno 22 (volume 4).

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e real do trabalho à lógica do capital, coerção direta promovida pelo Estado e o poder da ideologia –, apagando as tentativas de rebelião dos subalternos. Por meio da rearticulação entre sociedade política e sociedade civil, as classes dominantes pretenderam retomar a direção intelectual e moral do processo de expansão imperialista na medida em que a supremacia burguesa foi, gradativamente, perdendo credibilidade e legitimidade a partir da degradação do mundo do trabalho, das crises financeiras e econômicas e das lutas antissistêmicas na metade dos anos 1990. A politização da “questão social” forçou as classes dominantes a se articularem em torno de uma nova tática de sua estratégia de supremacia para garantir o consenso e a legitimidade do neoliberalismo, privilegiando os mecanismos de hegemonia sem, contudo, abrir mão dos aparelhos coercitivos de dominação. O diagnóstico apresentado pelas classes dominantes e seus representantes ideológicos não foi o erro na prescrição do remédio, mas a sua baixa dosagem. Em essência, o Consenso de Washington­ estaria correto: o problema residiria na aplicação parcial do receituário, derivada das resistências que impediam o correto manejo das suas políticas. Seria preciso remover tais barreiras e promover um aprofundamento das medidas liberalizantes, dando ênfase aos mecanismos de mercado na produção da riqueza ao mesmo tempo em que se passaria a reconhecer as suas falhas no tocante à distribuição de renda, além dos problemas ambientais. A partir da correção de rumo dos programas de ajuste propugnados pelas agências multilaterais de desenvolvimento, os projetos de refuncionalização do Estado ganharam uma nova configuração: se antes das medidas corretivas defendia-se – pelo menos no plano da retórica – um aparato estatal mínimo, o Estado, agora, teria uma função reguladora das atividades econômicas e operacionalizaria, em parceria com o setor privado, políticas sociais

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emergenciais, focalizadas e assistencialistas. De acordo com esta reconfiguração, o Estado continuaria seguindo a lógica da retomada do crescimento das taxas de lucro, da estabilidade monetária, do equilíbrio fiscal, da desoneração dos impostos das classes dominantes, da desestabilização do poder dos sindicatos e do controle social sobre a força de trabalho, tal qual vinha sendo feito de acordo com o receituário-ideal. As políticas econômicas, que ocupavam um papel central no projeto de retomada da supremacia burguesia, preservariam o seu rumo original e seriam mantidas longe de qualquer ingerência popular. Reconhece-se, em um primeiro momento, as falhas do mercado, em especial no tocante ao pauperismo e à destruição ambiental, e promove-se, consequentemente, um sincretismo entre o mercado e o Estado, imaginariamente capaz de instaurar a justiça social. Ou seja, as desigualdades socioeconômicas passaram a ser um dilema a ser tratado pela burguesia e seus intelectuais. Assim, as classes dominantes promoveram uma ofensiva na direção das bandeiras ideo­ lógicas da esquerda, tradicionalmente vinculadas ao igualitarismo. O que antes era um ideal progressista passou a ter novos significados culturais após a ofensiva conservadora. O objetivo burguês em retomar o debate sobre a “questão social” consiste na reconstrução do nível de consenso usufruído pelo neoliberalismo nos anos 1980, quando este se tornou mundialmente hegemônico. As teorias da terceira via (Anthony Giddens), da via 2 ½ (Alan Touraine), do pós-Consenso de Washington (John Williamson­), da “nova questão social” (Pierre Rosanvallon), do desenvolvimento humano com liberdade (Amartya Sen) e das informações assimétricas e falhas de mercado (Joseph Stiglitz) – que na sua totalidade conformam aquilo que intitulo de social-liberalismo – são uma variante ideológica do neoliberalismo, na qual as antigas teses do novo consenso burguês são conservadas e ganham um verniz (pós)moderno e “progressista” com a adesão da social-democracia, que já se nega a

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fazer uma crítica radical dos elementos primários do (neo)liberalismo, aceitando-os quase integralmente. A ideologia social-liberal é produzida e difundida por uma ampla rede de aparelhos privados de hegemonia: agências multilaterais de desenvolvimento, organizações não governamentais, fundações filantrópicas laicas e religiosas, mídias impressas e televisivas, intelectuais tradicionais e orgânicos da direita e business men. São inúmeros agentes do social-liberalismo, desde os ideólogos ativos – os formuladores das propostas neoliberais – até os passivos, que propagam esta ideologia às vezes sem muita clareza do que realmente está em jogo, reproduzindo no nível do senso comum (e próximo a ele) as teses formuladas no plano da filosofia. Somem-se aos ideólogos tradicionais e orgânicos da direita os intelectuais egressos da social-democracia, do socialismo e do comunismo, integrados à supremacia neoliberal por meio do transformismo. Os prêmios, honrarias, bolsas de pesquisa e espaços midiáticos são fartos e amplamente oferecidos para os intelectuais que aderem ao projeto neoliberal, especialmente as antigas lideranças dos movimentos populares. Nesses casos, a cumplicidade nada tem de passiva: é ativa e consciente, com ganhos a ambos os lados, cooptados e cooptadores. As perdas ficam para as classes subalternas, que veem a decapitação das direções das suas principais organizações. Desarmados da sua vocação utópica de uma práxis voltada para a transformação social, os intelectuais progressistas vêm gradativamente perdendo sua identidade própria e cada vez mais são cooptados, objetiva e subjetivamente, pelas classes proprietárias. Parte dos ideólogos e lideranças políticas mais representativa do social-liberalismo é composta por ex-membros da esquerda. Alguns têm, inclusive, sua formação marcada por influxos da tradição marxista e foram, em determinado momento da sua trajetória, intelectuais orgânicos de organizações políticas da classe trabalhadora. Conferem, desta maneira, uma legitimidade

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que, de outra forma, a supremacia neoliberal não gozaria (Bourdieu, 1998, p. 111). Em suma, os intelectuais do social-liberalismo tentam se diferenciar da vertente do neoliberalismo chamada de receituário-ideal a partir de três eixos. Primeiro, tecem críticas contra o liberalismo extremado da globalização, que, sem maiores critérios, teria desregulamentado mercados de países frágeis do ponto de vista econômico e institucional, o que aumentou drasticamente as taxas de desem­prego e, consequentemente, a tensão social. Em segundo lugar, discordam da tese do Estado mínimo, afirmando que a nova configuração global do capitalismo exigiria um Estado ágil e eficiente, capaz de fazer intervenções pontuais nas falhas de mercado e nas expressões mais agudas da “questão social”. Por último, dão destaque à participação dos aparelhos privados da sociedade civil, em comunhão estreita com o Estado, na formulação e implementação de políticas públicas, em especial as políticas sociais de alívio à pobreza via transferência de renda e empoderamento dos indivíduos. O propósito é motivar uma inflexão no pensamento hegemônico em relação ao debate sobre mercado e bem-estar social, na qual uma epistemologia de direita – maximização e otimização dos recursos, escassez relativa, capital humano – é envernizada por uma ética de “esquerda”, com palavras de ordem como equidade, justiça social, economia verde, solidariedade e voluntariado. O núcleo central das políticas neoliberais – que consiste em políticas econômicas para a retomada das taxas de lucro com ênfase na financeirização da riqueza – permanece como um dogma inquestionável, não passível de alteração. Restaria, como alternativa “realista”, a promoção de ações sociais nas fissuras provocadas pelas falhas de mercado, uma espécie de operação microscópica sobre os mecanismos macroestruturais de produção das desigualdades socioeconômicas. O bloco histórico neoliberal sofreu abalos nos anos 1990, mas foi remodelado sobre velhas bases e uma nova roupagem: o

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que se vislumbra com as teorias do social-liberalismo é um projeto ideológico classista de retomada da supremacia neoliberal que ganhou impulso com o acoplamento de amplos setores da social-democracia e mesmo dos comunistas cooptados ao reformismo-restaurador contemporâneo. O transformismo social-democrata na supremacia neoliberal resultou no aprofundamento de pontos da agenda neoliberal, e não na sua amenização. O receituário-ideal neoliberal e o social-liberalismo, vale ressaltar, não são dois projetos distintos, um conservador e o outro reformista, que busca superar o primeiro; trata-se, acima de tudo, do mesmo programa reformista-restaurador operado por forças políticas diferentes do ponto de vista da sua história e das suas bases sociais, mas que, por meio da emergência da supremacia neoliberal, articulou um bloco social capaz de aglutinar grupos até então adversários. O caso brasileiro do social-liberalismo liderado pelo PT é, justamente, um dos mais paradigmáticos do mundo. Diante do transformismo das forças progressistas, o neoliberalismo passou a atuar como um centrismo conservador, ditando os mesmos objetivos às suas alas da esquerda e da direita, embora cada uma delas tenha métodos ligeiramente diferenciados de dirigir o projeto burguês. O social-liberalismo comporta, portanto, um duplo movimento: a decadência política e ideológica da social-democracia, esvaziada das suas lutas reformistas na construção de uma via democrático-institucional para o socialismo, e a incorporação de uma agenda social ao neoliberalismo. A resultante destes dois movimentos, aparentemente paradoxais entre si, converge em um sentido único: a formação de um novo senso comum, um consenso que ocupa o centro da política mundial e neutraliza as lutas mais radicais de combate às expressões da “questão social”. Em termos da dialética hegeliana, no bloco histórico neoliberal, grande parte das forças da antítese abdicou do seu papel de negação radical da tese, conformando-se em um papel secun-

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dário de consciência crítica acrítica da tese, sem negar seus pressupostos básicos, apontando apenas seus defeitos, imprecisões e falhas. Com o enfraquecimento da antítese, a tese não pode ser superada, e os choques entre os contrários – transmutados no presente tão somente em diferenças – não são fortes o suficiente para gestar uma nova síntese, daí a aparente incapacidade de mudanças estruturais. Do acordo entre as diferenças (sem mais o choque dos contrários), surge a reafirmação da antiga tese, repaginada sob uma nova aparência na qual os seus elementos essenciais são reafirmados. “Na verdade, da oposição dialética entre tese e antítese, só a tese desenvolve suas possibilidades de luta, até o ponto de atrair para si os chamados representantes da antítese” (Braga, 1995, p. 63). Em termos mais concretos, o que houve foi uma incorporação de antigos setores socialistas e comunistas ao projeto burguês contemporâneo. O mais surpreendente nesta incorporação foi que os social-democratas não se limitaram a ser uma linha de força auxiliar no bloco social neoliberal: em algumas experiências nacionais, eles assumiram o papel de condutores primários da supremacia burguesa. Os casos mais emblemáticos são o inglês (Novo Trabalhismo), o brasileiro (PT) e o sul-africano (CNA). No caso do transformismo, os grupos cooptados tornam-se aliados de segunda mão do bloco social-ideológico dominante e não assumem o controle da direção política. O que ocorreu no neo­liberalismo em algumas formações econômico-sociais é um pouco diferente. Francisco de Oliveira (2010), na tentativa de teorizar sobre o ocorrido, chamou o processo de conversão de setores de esquerda em dirigentes do bloco histórico neoliberal de “hegemonia às avessas”. Ele vai além, afirmando que a força teria desaparecido da hegemonia burguesa, e as classes dominantes teriam consentido em ser dirigidas pelos setores cooptados dos subalternos (Oliveira, 2010, p. 27).

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O social-liberalismo é, em resumo, uma unidade eclética do receituário-ideal do neoliberalismo com a consciência crítica acrítica da social-democracia contemporânea, que entrou irremediavelmente em mais uma etapa do seu antigo processo de decadência ideológica. A resultante é a gestação de um novo “conservadorismo reformista temperado”15. O social-liberalismo é avaliado não como uma conscientização humanista da burguesia, mas uma ideologia de manutenção da ordem capitalista que embasa uma série de intervenções políticas na “questão social”, como ações do voluntariado, da filantropia empresarial, da responsabilidade social, do terceiro setor, de desenvolvimento local e sustentável e de políticas sociais assistencialistas e fragmentadas, que não questionam as bases da acumulação capitalista, produtora de riqueza no topo e de miséria na base da hierarquia social. Vivemos, desta forma, uma nova etapa da revolução passiva no Brasil (e no mundo), com determinações inéditas e mediações históricas que ainda carecem de estudos mais aprofundados, tarefa indispensável caso queiramos colocar um freio à barbárie capitalista. Referências ANDERSON, Perry (2000). “Balanço do neoliberalismo”. In: Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. SADER, Emir; e GENTILI, Pablo (orgs.). 5ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 9-23. BOITO JR., Armando (2003). “A hegemonia neoliberal no governo Lula”. In: Crítica Marxista, Rio de Janeiro/Campinas, v. 17, p. 9-35. BORON, Atilio (2000). “O pós-neoliberalismo é uma etapa em construção”. In: SADER, Emir; e GENTILI, Pablo (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 5ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra. BRAGA, Ruy (1995). “Luta de classes, reestruturação produtiva e hegemonia”. In: KATZ, Claudio et al. Novas tecnologias: crítica da atual reestruturação produtiva. São Paulo: Xamã, p. 45-136. A expressão é usada por Gramsci para definir a revolução passiva (Gramsci, 1999, p. 293 – C10 [1932-1935], §6).

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Carlos Nelson Coutinho e a “questão cultural” no Brasil Eduardo Granja Coutinho É evidente que Lima se propõe a criação de uma literatura (...) que conjugue indissoluvelmente a grandeza estética com um profundo espírito popular e democrático, com uma aberta tomada de posição em favor dos humilhados e ofendidos. (Carlos Nelson Coutinho)

Carlos Nelson Coutinho, como se sabe, é diretamente responsável pela chegada ao Brasil, nos anos 1960, das ideias dos dois principais representantes do chamado marxismo ocidental: o húngaro György Lukács e o italiano Antonio Gramsci. Já em 1963, com apenas 20 anos, Carlos Nelson escrevia ao primeiro: “é no sentido do seu pensamento e daquele de Gramsci que a investigação marxista caminha hoje” (2005, p. 201). Desde então, essas duas matrizes teóricas foram as que mais profundamente marcaram a sua produção intelectual e, particularmente, sua reflexão sobre a cultura. Se, em um primeiro momento de sua trajetória, o jovem pensador baiano funda sua crítica da cultura burguesa em uma ontologia marxista de inspiração lukacsiana – crítica que, segundo ele, “atinge um nível de generalização histórico-universal na notável e sempre atual A destruição da razão” (2010, p. 19) –, com o passar do tempo, esse ponto de vista será matizado pelo pensamento político-cultural de Antonio Gramsci. Podemos dizer que a articulação crítica e criadora desses dois pensadores constitui, em que pesem outras influências, a especificidade das análises marxistas da cultura empreendidas por Carlos Nelson.

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Nessa perspectiva, como observa José Paulo Netto, a unidade do pensamento de Carlos Nelson se alimenta de “uma diferenciada remissão marxista: aos fundamentos estético-filosóficos e à alta cultura, caberia a matriz lukacsiana; à cultura em sentido largo e à esfera estritamente política, caberia a referência gramsciana” (in: Coutinho, 2010, p. 238). Assim, se é certo que a crítica literária realizada em seus primeiros trabalhos possui uma nítida inspiração em Lukács (mas não sem referências à teo­ria política de Gramsci), suas análises posteriores sobre cultura e sociedade no Brasil, sem abandonar o método proposto pelo pensador húngaro, incorporam decisivamente a problemática gramsciana­da hegemonia, isto é, da luta pela cultura. Essa unidade de pensamento é, segundo o próprio Carlos Nelson, referindo-se a seus ensaios sobre cultura no Brasil, uma unidade de método e de conteúdo. A unidade de método parece residir no seguinte pressuposto: “só é possível entender plenamente os fenômenos artísticos e ideológicos quando eles aparecem relacionados dialeticamente com a totalidade social da qual são, simultaneamente, expressão e momentos constitutivos” (1990, p. 9). No plano do conteúdo, a unidade diz respeito ao que, segundo ele, constitui o problema central da cultura brasileira: “a escassa densidade nacional-popular de seus produtos” (1990, p. 9), isto é, a carência de uma produção intelectual, literária e artística identificada ao universo popular e a preponderância de uma cultura “ornamental”, elitista, que se revelou, sobretudo nas primeiras décadas da República, incapaz de construir uma efetiva consciência crítica entre nós. Problema que, como veremos, resulta dos processos de transformação pelo alto – “via prussiana” – que marcaram a história brasileira, dificultando a participação popular criadora nas várias esferas do nosso ser social.

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“Via prussiana” e “revolução passiva”: categorias centrais da análise da cultura no Brasil

Em Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas (1990), Carlos Nelson Coutinho reúne, como ele mesmo diz, os principais artigos que escreveu entre 1965 e 1989 sobre a “questão cultural” entre nós. Em todos eles, comparece a noção de transformação social “pelo alto”, sem participação popular, como uma determinação histórico-genética – um condicionamento objetivo essencial – da cultura brasileira. Tanto nos artigos mais antigos, escritos sob o estímulo de Lukács até meados dos anos 1970, quanto nos mais recentes, em que a influência de Gramsci é mais nítida, Carlos Nelson parte do reconhecimento de que, no Brasil, os processos de transformação social (Independência, abolição da escravatura, República, modificação do bloco de poder em 1930 e 1937 etc.) ocorreram sempre no quadro de conciliação com o atraso, seguindo aquilo que Lenin (e posteriormente Lukács) chamou de “via prussiana” e Gramsci, analisando o processo de unificação italiano (Risorgimento), designou “revolução passiva”. No Brasil, como na Itália e na Prússia (daí a expressão “via prussiana”), em vez das velhas forças sociais serem extirpadas através de amplos movimentos populares de massa, como é característico da “via francesa”, a alteração social se fez (e se faz) mediante um reformismo “pelo alto”, mantendo-se marginalizadas ou reprimidas as classes e camadas sociais de baixo (1990, p. 71). Carlos Nelson observa que, enquanto a categoria criada por Lenin se concentra prioritariamente nos aspectos infraestruturais do processo de transição para o capitalismo, a outra, gramsciana, enfoca, especificamente, as características superestruturais deste processo, em particular o momento político, revelando-se de inestimável utilidade para a compreensão do desenvolvimento da história brasileira, no qual o Estado desempenhou frequentemente o papel de principal personagem.

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Lembremos que Lenin cria os conceitos de “via francesa” (ou “via clássica”) e “via prussiana” tendo em vista o modo pelo qual o capitalismo resolve a questão agrária. Na forma clássica de transição para o capitalismo, a burguesia industrial se torna classe dominante a partir da sociedade civil, apropriando-se do Estado por meio de uma revolução de baixo para cima. A “via prussiana”, ao contrário, via capitalista reacionária, tem origem numa situação em que “a grande propriedade senhorial, transformando-se em capitalista, se apossa do Estado, dirigindo desse aparato o trânsito para a modernização da sociedade” (Viana, 1978, p. 139). A via clássica, diz Carlos Nelson, implica uma radical transformação da estrutura. Neste caso, não só desaparecem as relações de trabalho de tipo pré-capitalista – fundadas na coerção extraeconômica – como também deixa de existir a velha classe rural pré-capitalista, na exata medida em que desaparecem as formas econômicas em que ela se apoiava, e de cuja reprodução dependia sua própria reprodução como classe (Coutinho, 1987, p. 8). Inversamente, pela “via prussiana”, a velha propriedade agrária pré-capitalista vai se modernizando tecnologicamente, transformando-se, assim, em empresa capitalista, sem, no entanto, modificar substancialmente as relações de trabalho fundadas na coerção extraeconômica. Como ocorreu na Alemanha prussiana, a antiga classe de proprietários rurais conservou o poder de Estado e introduziu, “pelo alto”, através de um Estado forte e autoritário, as reformas necessárias a que o processo capitalista pudesse se expandir e consolidar. É como se estabelecesse uma ‘divisão de poderes’: a burguesia detém o poder econômico (inclusive o velho latifúndio vai progressivamente se capitalizando e se integrando aos mecanismos de reprodução do capital global), ao passo que o poder político continua em mãos, parcial ou totalmente, da velha classe economicamente dominante. Isso leva, de

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imediato, a um grande fortalecimento do poder de Estado (Coutinho, 1987, p. 8).

A teoria da “revolução passiva” como “critério de interpretação” da “Era do Risorgimento e de qualquer época complexa de transformações históricas” (Gramsci, 2002, v. 5, p. 331) não desconsidera, por certo, a questão econômica (veja-se Gramsci, 2001, v. 1, p. 298-300), mas exprime fundamentalmente o fato político da ausência de uma iniciativa popular unitária no desenvolvimento da história italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares, através de ‘restaurações’ que acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo (Gramsci, 2001, v. 1, p. 393).

Gramsci toma o conceito emprestado de Vicenzo Cuoco e o reelabora no sentido de designar o processo de modernização do Estado sem uma revolução política de tipo radical-jacobino (v. 5, p. 210). Nesse processo, o Estado substitui as classes virtualmente revolucionárias, ao dirigir a luta por renovação, mantendo o sistema hegemônico e as forças de coerção militar e civil à disposição das classes dirigentes tradicionais (v. 1, p. 298-300). É essa a estratégia retratada por Lampedusa em O Gattopardo e expressa emblematicamente na célebre passagem em que o jovem Tancredi diz a seu tio, o príncipe Don Fabrizio: “Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?” (2007, p. 69). Carlos Nelson, um dos primeiros pensadores brasileiros a refletir, de forma sistemática, sobre o processo de “revolução passiva”/“via prussiana” como um determinante da particularidade histórica da formação social brasileira, foi, provavelmente, o primeiro a analisar as repercussões culturais desse processo. Talvez

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possamos dizer – e essa é nossa hipótese – que a categoria de “via prussiana” possui determinações diferenciadas nos distintos momentos de sua análise cultural. E quando me refiro a “momentos” de sua análise não estou necessariamente utilizando o termo no sentido cronológico, mas no sentido de dimensões, níveis, aspectos da totalidade do real por ele analisados. No sistema categorial de Lukács, assim como nos ensaios estético-filosóficos de Carlos Nelson, a noção de “via prussiana” está associada ao caráter “intimista” da intelectualidade e à carência de uma literatura realista; no pensamento de Gramsci, como naquelas reflexões de Carlos Nelson sobre “cultura em sentido largo”, o conceito de “via prussiana” – ou, no caso, “revolução passiva” – está relacionado à inexistência de uma articulação orgânica entre os intelectuais e o povo e ao caráter não “nacional-popular” da cultura. O mestre de várias gerações de marxistas articula essas noções com grande êxito, enriquecendo as categorias de seus próprios mestres e com elas capturando traços constitutivos fundamentais da cultura brasileira. Nas análises culturais de Carlos Nelson, além da analogia assinalada entre os conceitos de “via prussiana” e “revolução passiva”, observa-se uma complementaridade entre as noções de realismo e nacional-popular. Noções que se referem a diferentes aspectos de um mesmo tipo de produção ideológica. Ambas designam formas de consciência críticas, historicistas, humanistas, sendo que o realismo, enquanto método artístico, diz respeito à questão da verdade, da arte como forma de conhecimento, de superação da alienação humana; enquanto que o nacional-popular designa, antes, uma visão de mundo, uma vontade coletiva, uma estratégia cultural contra-hegemônica, enfim, um modo de articulação entre os intelectuais e as massas. Talvez possamos afirmar que o que uma categoria diz sobre o conhecimento artístico (verdade estética), a outra diz sobre a vontade ético-política (verdade prática).

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De todo modo, ambas aparecem, em sua reflexão, estreitamente relacionadas à noção de “via prussiana”. “Via prussiana”, um condicionamento objetivo do antirrealismo na literatura brasileira

Em seus primeiros escritos sobre literatura, vincados pela filosofia da arte e pela estética de Lukács, Carlos Nelson assume o realismo como categoria central da crítica marxista, isto é, como critério fundamental para aferir até que ponto uma obra “respeitou ou não as leis objetivas que determinam o conhecimento artístico do mundo” (1967, p. 106). Nesse momento, o jovem pensador analisa expressões da “grande arte”, da obra de arte realista, aquela que “manifesta em sua conformação singular a totalidade das determinações do reflexo estético da realidade objetiva” (1967, p. 107). O realismo é aqui entendido, evidentemente, não como uma escola literária, mas como a própria natureza da mímese artística e, portanto, como um critério de valor na análise filosófico-estética da literatura. Sendo a arte um modo entre outros de manifestação do reflexo da realidade, a arte realista é aquela que expressa um conhecimento verdadeiro das relações humanas essenciais e significativas. Na expressão de Lukács, a arte é a “autoconsciência do desenvolvimento da humanidade” (1970). Nessa perspectiva, Carlos Nelson inaugura no Brasil “um novo método filosófico empregado no esforço de compreensão da produção ideológica em geral e particularmente da criação literária” (Konder in Coutinho, 1967), dedicando-se ao exame da obra de importantes autores da literatura nacional e universal. O ensaio que publica em 1965 sobre a obra romanesca de Graciliano Ramos é considerado um marco da crítica literária em nosso país. Sobre este trabalho, observou Leandro Konder:

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A análise estrutural dos romances de Graciliano Ramos (...) representa a primeira aplicação integralmente consequente dos princípios do grande pensador húngaro ao exame da ficção de um autor brasileiro de primeira grandeza. (...) [Este estudo] ao assumir uma dimensão criadora, não podia deixar de acarretar um autêntico enriquecimento da própria teoria lukacsiana (in: Coutinho, 1967).

A exemplo de Lukács, que buscou compreender as objetivações estéticas húngaras e alemãs a partir do contexto histórico-social engendrado pelo caminho prussiano, Carlos Nelson sustenta que o processo de “modernização conservadora” em nosso país teve repercussões sobre a própria estrutura interna das obras literárias (personagens e situações representadas). Segundo ele, esse traço fundamental da formação histórica do Brasil é algo que “torna extremamente problemática, entre nós, a criação de autênticas obras épicas e realistas” (1990, p. 120), na medida em que afeta a representação da realidade pelos artistas, limitando a sua percepção das contradições sociais e das vias de fuga a um mundo que lhes aparece como algo dado, imutável. Nas condições de um país semicolonial, a quase completa estagnação social gera uma dificuldade de se representar, no plano artístico, aquilo que o jovem Lukács, em A teoria do romance, definiu como o conteúdo essencial do gênero romanesco, isto é, a contradição entre um mundo alienado e os indivíduos inconformados que lutam contra a alienação (os chamados “heróis problemáticos”). “Só uma literatura que represente esses dois momentos (...) está capacitada a reproduzir a dialética essencial da contraditória realidade moderna” (1990, p. 124). Nossa literatura, limitada pelos processos sociais que acentuaram o isolamento e a restrição dos homens ao “pequeno mundo de uma mesquinha vida privada” (1990, p. 120), não tem, com raras exceções, condições de expressar essa relação de inconformidade entre o homem e seu mundo reificado.

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Na grande arte narrativa de Graciliano Ramos, contudo, essa dialética está presente. Como assinala Carlos Nelson, é precisamente esta a forma estrutural dos seus romances. Representando uma realidade fragmentada (a nossa sociedade periférica, oligárquica, com características pré-capitalistas), que desconhece um “grande mundo” comunitário, Graciliano representa também as lutas individuais por descobrir, no interior desse mundo alienado ou em oposição a ele, um sentido para a vida. Através da estrutura romanesca clássica, ele representa a realidade profunda – e não apenas as aparências empíricas – da sociedade brasileira (1990, p. 122).

Segundo Carlos Nelson, a capacidade de exprimir o “destino de homens concretos, socialmente determinados, vivendo em uma realidade concreta”, isto é, de criar verdadeiros tipos humanos, faz de Graciliano a figura mais alta e representativa do movimento literário mais profundamente realista da história de nossa literatura – o romance nordestino da década de 1930 (1990, p. 118). Alcançando alto nível de universalidade estética, sua obra abarca o inteiro processo de formação da sociedade brasileira contemporânea, em suas íntimas e essenciais determinações. O processo de transformação “pelo alto” em nossa sociedade, apreendido por Graciliano em seus romances, tem, decerto, profundas repercussões negativas na formação e no caráter da intelectualidade brasileira. Desenvolveu-se entre os nossos literatos, praticamente desde os inícios do Brasil independente, “uma forte tendência a situar-se naquilo que Thomas Mann chamou de ‘intimismo à sombra do poder’” (Coutinho, 1990, p. 71). Esse conceito, amplamente utilizado por Lukács em suas análises da literatura alemã (sempre em relação com a questão da “via prussiana”), serve a Carlos Nelson como fio condutor na compreen-

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são de muitos problemas da história literária brasileira, especialmente o da ornamentalidade de nossa cultura. O intelectual intimista, explica Carlos Nelson, é aquele que foi, de alguma forma, cooptado e já não é mais capaz de pôr em discussão “os fundamentos do poder à cuja sombra ele é livre para cultivar a própria intimidade” (1990, p. 46). Essa cooptação não o obriga necessariamente a se colocar diretamente a serviço das classes dominantes enquanto ideólogo, mas o induz a optar por formulações culturais anódinas, ‘neutras’, socialmente assépticas (...). Se a maior parte das ideologias ou obras de arte criadas no terreno do intimismo são apologéticas, elas o são naquele sentido mediatizado que Lukács – partindo da ideia de que não existe ideologia socialmente ‘inocente’ – resumiu na expressão ‘apologia indireta do existente’. (...) Apologia do existente apenas na medida em que afastam da ótica da arte ou da ciência social as contradições concretas da realidade, em que transformam o inessencial em essencial ou vice-versa, obscurecendo ou impedindo uma justa consciência dos problemas efetivos do povo-nação (1990, p. 46-47)1.

Como uma das expressões da ideologia do prussianismo, essa tendência intimista cumpre, na verdade, a função de toda ideologia: a de naturalizar e legitimar os antagonismos sociais, desconsiderando a relação dialética entre o homem e seu mundo no processo da história. Atualizando aquela dupla crítica feita por Marx às unilateralidades subjetivistas e objetivistas da filosofia alemã, Carlos Nelson observa que É possível estender a noção de “intimismo à sombra do poder” ao campo da cultura popular. Pense-se, por exemplo, nas canções sentimentais de Custódio Mesquita nos anos 1930/1940 ou nas de Roberto Carlos durante a ditadura civil-militar, que, sem defender abertamente o regime, compunham a trilha sonora desses períodos autoritários, realizando isso que Lukács chamou de “apologia indireta do existente”. Cf. Eduardo G. Coutinho, 2011.

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O que determina os limites do ‘intimismo’, em última instância, é o fato de que ele capitula diante dos preconceitos ideológicos gerados espontaneamente pela ‘via prussiana’, ou seja, por um lado, ao subjetivismo extremado que vê nos indivíduos excepcionais as únicas forças da história e, por outro, ao fatalismo pseudo-objetivo que amesquinha ou dissolve o papel da ação humana na criação histórica (1990, p. 72). Essa tendência intimista se manifesta, sob formas variadas, ao longo de nossa vida cultural. Na literatura brasileira do século XIX e início do século XX, por exemplo, aqueles dois preconceitos – o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato – dão origem respectivamente ao romantismo e ao naturalismo. O romantismo, como expressão de problemas privados e superficiais de uma subjetividade isolada, cumpre a “função social basicamente escapista de deixar na sombra as contradições sociais concretas do Brasil de então” (1990, p. 73).

O naturalismo, por sua vez, “capitula diante do aspecto imediato desta estagnação [social], ao considerar a realidade que descrevia – a repressão, a alienação das mais íntimas potencialidades humanas – como algo eterno e imutável” 1990, p.73. Compreendendo que a ideologia prussiana em suas diferentes vertentes é hegemônica em nossa literatura, o jovem crítico não deixa de apontar contratendências a esse fenômeno. Segundo ele, há em nossa cultura exemplos daquilo que Engels e posteriormente Lukács chamaram de “vitórias do realismo”. Além de Graciliano Ramos, Carlos Nelson identifica autores de uma tradição realista brasileira, marcada por rupturas e descontinuidades. Autores, como Manuel Antônio de Almeida e Lima Barreto, que romperam com o “intimismo à sombra do poder”, vinculando-se à realidade do povo-nação e contribuindo para a criação e expressão daquilo que Gramsci chamou de visão de mundo nacional-popular.

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A “revolução passiva” e o caráter não nacional-popular da cultura brasileira

Vimos que, no conjunto de seus ensaios sobre arte, cultura e sociedade no Brasil, Carlos Nelson não perde de vista as relações entre as formas de consciência e os seus condicionamentos histórico-objetivos. Desde os primeiros ensaios, o jovem filósofo aponta, pioneiramente, a partir de categorias lukacsianas, as repercussões da “via prussiana” sobre a produção intelectual brasileira. Porém, quando as formulações de Gramsci adquirem um peso maior em seu pensamento, Carlos Nelson encontra novos ângulos de abordagem da relação entre a cultura brasileira e suas determinações estruturais. Em seu artigo “Cultura e sociedade no Brasil” (1977-1979), escrito no momento em que começa a se dedicar quase que exclusivamente a temas de filosofia política e a análises do Brasil contemporâneo, Carlos Nelson analisa concretamente, a partir da teoria gramsciana do Estado ampliado, certas objetivações culturais de nossa formação histórica, notadamente a ornamentalidade da cultura brasileira e aquele fenômeno que Lukács, a partir da expressão de Mann, chamou de “intimismo à sombra do poder”. Nesse momento, sua análise envolve a consideração de que entre a estrutura econômica e as objetivações político-culturais existe uma esfera de mediações, a “sociedade civil”, em que se dá a luta pela cultura. É na sociedade civil, compreendida como o conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias – mídia, escola, Igreja, partidos, sindicatos, instituições culturais etc. –, que se legitima (ou se contesta) a dominação. É lá que as classes dominantes criam, junto à massa da população, o nível cultural e moral que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas. E é lá também que as camadas subalternas elaboram “o seu modo de conceber o

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mundo e a vida em contraste com a sociedade oficial” (Gramsci, 2002, v. 6, p. 181). No Brasil, observa Carlos Nelson, o processo de “revolução passiva” teve como consequência, justamente, o fortalecimento do Estado em sentido estrito e o enfraquecimento do “medium próprio da cultura” – a sociedade civil. Dado que o instrumento e o local da conciliação de classes sempre foi o Estado, verificou-se um fortalecimento do que Gramsci chamou de ‘sociedade política’ (os aparelhos burocráticos e militares que exercem a dominação através do executivo) em detrimento da ‘sociedade civil’ (do conjunto dos aparelhos ideológicos através dos quais uma classe, ou bloco de classes, luta pela hegemonia ou pela capacidade de dirigir o conjunto da sociedade) (1990, p. 44).

É com o conceito de sociedade civil, portanto, que Carlos Nelson enriquece sua reflexão sobre a cultura no Brasil, indicando mediações político-culturais entre o fato econômico (transição para o capitalismo “pelo alto”) e o fato estritamente cultural (ornamentalidade da cultura). Sua análise ganha novas determinações – e se torna mais concreta – quando ele considera que a maneira como a “revolução passiva” condiciona uma intelectualidade apartada do povo-nação é limitando seus horizontes de possibilidades, isto é, fragilizando a sociedade civil, essa esfera cultural do Estado em que atuam os intelectuais na construção e difusão da visão de mundo dos grupos que representam. O intimismo de nossa intelectualidade não seria, nesse sentido, uma decorrência imediata da “via prussiana”, mas uma consequência da hipertrofia do Estado-coerção, que restringe o âmbito das alternativas que se colocam à ação do intelectual. Impedindo o fortalecimento da sociedade civil (esfera material da cultura), esse modelo de evolução política afasta o intelectual da vida cultural do país, integrando-o, em muitos casos, ao aparelho burocrático do Estado.

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Temos assim um “desequilíbrio” na luta cultural: enquanto as classes dominantes encontram com relativa facilidade os seus representantes ideológicos, as camadas populares têm suas virtuais­ lideranças cooptadas pelos blocos de poder. Daí a dificuldade histórica desses grupos em desenvolver sua autoconsciência ideológica (Coutinho, 1990, p. 45-46). Referindo-se ao caso da Itália, onde a transição para o capitalismo também seguiu a forma conciliadora, conjugando o velho com o novo, Gramsci chama atenção para o fato de que, nesse país, os intelectuais não se sentem ligados ao povo (deixando de lado a retórica), não o conhecem e não percebem suas necessidades, aspirações e seus sentimentos difusos; justamente pela fragilidade da esfera material da cultura, os intelectuais são em relação ao povo algo destacado, solto no ar, ou seja, uma casta, não uma articulação – com funções orgânicas – do próprio povo (1986, p. 106). Falta uma identidade de concepção do mundo entre escritores e povo; ou seja, os sentimentos populares não são vividos como próprios pelos escritores, nem os escritores desempenham uma função educadora nacional, isto é, não se colocaram e não se colocam o problema de elaborar os sentimentos populares após tê-los revivido e deles se apropriado (Gramsci, 1986, p. 104).

No Brasil, como na Itália, os intelectuais não contribuíram para a criação de uma cultura vinculada à realidade do povo-nação. Não produziram uma literatura aderente às necessidades mais profundas de sua época, uma literatura que refletisse o drama da história. Raros são os escritores em cuja obra o povo é representado numa perspectiva que não seja a das elites, e raros também são os artistas que propuseram uma imagem alternativa de Brasil. Como consequência da via prussiana – e da debilidade da esfera das mediações culturais –, o povo permanece ausente não apenas

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do processo político, como também afastado da produção literária, artística e intelectual do país. Como observam Leandro Konder (1975) e Carlos Nelson (1976), essa separação entre os intelectuais e as camadas baixas da população gerou uma carência na vida cultural do povo brasileiro. Se este pudesse ter condições de tomar consciência de si mesmo através de uma literatura rica em verdade artística, a compreensão que ele teria de seus problemas, de sua exata situação e de suas possibilidades concretas seria bem mais profunda e bem melhor articulada. Contudo, dizem eles, a cultura brasileira apresenta esforços para superar essa carência. Carlos Nelson valorizou em sua ensaística escritores que contribuíram para a formação de uma autoconsciência estética brasileira. Enquanto crítico literário, refletiu sobre manifestações de nossa alta cultura que expressam uma visão de mundo alternativa à ideologia do “prussianismo”. Mas, no momento em que o foco de seus interesses se desloca da estética para a “cultura em sentido largo”, outros fenômenos político-ideológicos tornam-se objeto de sua análise. É ilustrativo dessa mudança de foco um pequeno e pouco conhecido artigo, “Nel samba il veleno popolare contro il regime”, em que, a exemplo de Gramsci, o marxista brasileiro se acerca da cultura das camadas baixas, tematizando a música do povo como forma de organização da cultura nacional-popular. Por sua força e vigor extraordinários, a música popular assumiu essa função de criação e expressão de uma consciência nacional-popular, aparecendo, objetivamente, como oposição democrática, no plano da cultura, às várias configurações concretas assumidas pela cultura oficial ao longo da história brasileira (1976)2. Nessa perspectiva, como sustentei em dissertação co-orientada por Carlos Nelson, o samba popular e comunitário aparece como uma fala histórica que constrói uma visão de mundo articulada aos interesses de grupos sociais marginalizados da socie-

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Nesse momento, evidentemente, suas preocupações são menos estéticas do que político-ideológicas. O entendimento da cultura como um campo de luta social – presente na noção marxiana, retomada por Gramsci, de que “as ideologias formam o terreno no qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam” (2001, v. 1, p. 237) – está na base de sua reflexão. Partindo do reconhecimento de que a tarefa política dos trabalhadores envolve a organização de uma nova visão de mundo – a reelaboração da memória nacional como patrimônio das camadas populares –, o comunista brasileiro dedica boa parte de seus estudos não mais à arte (em sentido estrito), mas a temas relativos à vida intelectual e moral de nossa sociedade. Certamente ele está de acordo com Gramsci quando este, discutindo o caráter não nacional-popular do povo italiano, defende a tese da necessidade do reencontro da cultura e das artes com os problemas da vida social e nacional: Parece evidente que devemos falar de luta por uma ‘nova cultura’ e não por uma ‘nova arte’ (em sentido imediato). (...) A arte é sempre ligada a determinada cultura; e é lutando para reformar a cultura que se chega a modificar o ‘conteúdo’ da arte, não de fora (pretendendo uma arte didática, de tese, moralista), mas sim de dentro, porque assim se modifica o homem inteiro, na medida em que se modificam seus sentimentos, suas

dade. O pensador brasileiro – profundo conhecedor da música popular, diga-se de passagem – ofereceu-me o instrumental teórico para refletir sobre o samba como uma alternativa nacional-popular ao intimismo e ao “nacionalismo cultural”, hegemônicos na cultura brasileira. Em encontros memoráveis, cantando sambas de Noel Rosa, Carlos Nelson fez-me ver que as canções do Poeta da Vila continham uma imagem alternativa de Brasil, uma representação da nação a partir de uma perspectiva popular. Essa dissertação, Música popular e vida nacional: a imagem do povo na obra de Noel Rosa (1994), foi defendida na Escola de Comunicação da UFRJ, sob a orientação de Muniz Sodré e Carlos Nelson Coutinho.

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concepções, bem como as relações das quais o homem é expressão necessária (Gramsci, 1986, p. 64).

Esse comentário crítico de Gramsci à estética idealista de Croce não se aplica, evidentemente, à crítica literária de Carlos Nelson. Em seus ensaios sobre literatura, o jovem lukacsiano não reivindicava apenas uma nova arte, mas uma cultura progressista, racionalista e humanista que fosse condição de uma transformação revolucionária de nossa sociedade (1967). Ele próprio faz a crítica da “arte pela arte” quando afirma que os problemas ideológicos e morais vividos pelos artistas contemporâneos – o da escolha entre obscurantismo e humanismo, entre ditadura e democracia – são também problemas artísticos e estéticos (1967, p. 94). É claro, portanto, que ao lutar por uma nova arte estava lutando por uma nova cultura. Ocorre que, em seus ensaios de juventude, a luta pela cultura – a luta concreta e efetiva contra a desumanidade e a alienação capitalista – encontra no campo estético-filosófico uma arena ideológica privilegiada. Nesse campo trava-se a batalha entre humanismo e irracionalismo, que, segundo ele, “determina a totalidade dos problemas culturais de nosso tempo” (1966, p. 37). No entanto, seu pensamento ganha uma nova dimensão – e nessa afirmação não está implícito nenhum juízo de valor – ao tematizar a cultura “em sentido largo”. Já não se trata de buscar uma nova arte (ainda que essa seja uma arte revolucionária), mas de se construir uma nova hegemonia. O pensador político está preocupado com a criação e difusão junto às massas humanas de novas formas de consciência historicamente necessárias ao desenvolvimento de um novo modo de produção. É de um nova cultura, entendida aqui como totalidade da vida social, que surgirão novas concepções, valores, ideias e, enfim, um novo homem e uma nova arte. Dentro de uma perspectiva essencialmente dialética, na tradição metodológica marxiana renovada por Lukács e Gramsci,

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Carlos Nelson ressalta em suas análises da cultura no Brasil os condicionamentos objetivos de nossa vida cultural, sem desconsiderar, no entanto, a importância do sujeito na organização da cultura e na transformação das circunstâncias históricas objetivas com as quais ele se defronta. O pensador comunista compreende que o florescimento de uma cultura nacional-popular e de uma arte realista no Brasil dependem, objetivamente, da superação daquele padrão de mudança social que Gramsci chamou de “revolução passiva”. A transformação radical de antigas estruturas em que se apoia um Estado historicamente forte e autoritário é a condição para o fortalecimento da esfera da cultura e, consequentemente, para o reencontro da intelectualidade com os problemas concretos da vida nacional. Ao mesmo tempo, o gramsciano valoriza o momento subjetivo da totalidade social quando considera que, precisamente na sociedade civil, os homens desenvolvem as formas de consciência que orientam sua práxis na transformação das estruturas sociais. É nessa esfera de mediação cultural que os grupos populares tornam orgânicas as ideias que atuam praticamente na transformação democrática da sociedade, rompendo assim com o modelo prussiano persistente em nossa formação social. Essa percepção das mediações dialéticas entre estrutura e superestrutura faz de Carlos Nelson Coutinho – autor de análises políticas e históricas concretas – um dos mais relevantes pensadores da cultura no Brasil. Referências CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. São Paulo: Cortez, 1990. COUTINHO, Carlos Nelson. Literatura e humanismo: ensaios de crítica marxista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. _______. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª Edição. (Posfácio de José Paulo Netto). São Paulo: Expressão Popular, 2010.

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_______. [sob o pseudônimo de Jorge Gonçalves]. “Nel samba il veleno popolare contro il regime”. Realidade brasileira. Milão, n. 4, 06.1976. _______. Notas sobre o conceito de “via prussiana” em Lenin. Anpocs. Rio de Janeiro, 1987. _______. “Os intelectuais e a organização da cultura”, “Cultura e sociedade no Brasil”, “O significado de Lima Barreto e nossa literatura”, “Graciliano Ramos”. In: Cultura e sociedade no Brasil: ensaio sobre ideias e formas. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990. _______. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1992. _______. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição em Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011. _______. Música popular e vida nacional: a imagem do povo na obra de Noel Rosa. Tese de mestrado (Orientação de Muniz Sodré e Carlos Nelson Coutinho). Rio de Janeiro: Escola de Comunicação da UFRJ, 1994. GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. _______. Cadernos do cárcere (v. 1, 5 e 6). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001-2002. KONDER, Leandro. [sob o pseudônimo de Lair Cordeiro]. “L’importance politique et culturelle de la musique populaire brésilienne”. In: Études brésiliennes. Versailles, n. 2, 6/1975. LAMPEDUSA, Tomasi di. O Gattopardo. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2007. LUKÁCS, György. “A arte como autoconsciência do desenvolvimento da humanidade”. In: Introdução a uma estética marxista: sobre a particularidade como uma categoria estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. VIANA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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Carlos Nelson Coutinho e a educação como espaço de luta contra-hegemônica Gaudêncio Frigotto O intelectual não cria o mundo no qual vive. Ele já faz muito quando consegue ajudar a compreendê-lo e explicá-lo, como ponto de partida para sua alteração real. (Fernandes, 1980, p. 231)

A educação, tanto em sua forma escolar institucionalizada quanto a que se efetiva nas relações e práticas sociais, é constituída e constituinte da sociedade, razão pela qual é um dos aspectos centrais da luta hegemônica e contra-hegemônica nas sociedades de classes. A estratégia de conceber o processo educativo isolado das relações de classes, reduzindo-o aos seus aspectos técnicos, didáticos ou tecnicistas, entendidos como “científicos” e neutros, tem sido a forma dominante do uso da educação formal na reprodução das relações sociais de classe – vale dizer, de exploração e alienação sob o capitalismo. É fundamentalmente do legado de Marx e Engels e de seus continuadores que aprendemos que pensar os processos educativos contra-hegemônicos implica situá-los no centro dos conflitos e luta de classes e, portanto, na perspectiva da superação das relações sociais capitalistas. Muito embora Carlos Nelson Coutinho não seja um profissional da área da educação, entendida esta como assinalamos acima, de imediato nos indica que a sua contribuição na educação formal e na formação política de diferentes gerações é aguda no conteúdo, no método e na forma. Como poucos intelectuais de sua geração – dos quais mencionaria dois de seus amigos e per-

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manentes interlocutores, Leandro Konder e José Paulo Netto, e de outros da geração que os precederam, como Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Francisco de Oliveira –, Coutinho tem sido e continua sendo fundamental para jovens educadores que se apropriaram, em sua formação, especialmente do legado das obras de Marx e Engels, Gramsci, Lenin e Lukács. A composição desta obra demarca a amplitude, o alcance e o significado da contribuição de Carlos Nelson Coutinho para o pensamento universal construído desde a particularidade da realidade brasileira: as ideias marxistas, a análise do Brasil e a influência no Serviço Social e na Educação. Na brevidade deste texto, em parte com caráter de depoimento por ter em minha formação de educador e no meu trabalho profissional uma dívida intelectual com Coutinho, buscarei destacar duas formas básicas que vislumbro de sua profícua, aguda e duradoura contribuição para a educação. Um primeiro aspecto de contribuição para a formação no campo da educação é sua concepção de realidade social e do método materialista histórico de analisá-la. Aqui, situa-se sua contribuição vincada no legado de Marx, Gramsci e Lukács. De Gramsci­ foi tradutor, organizador, intérprete e grande divulgador em língua portuguesa do conjunto de sua obra. Um segundo legado são as obras mais utilizadas em educação, especialmente nos cursos de pós-graduação, bem como sua participação em coletâneas organizadas por educadores. A concepção e o método na compreensão da educação na totalidade social

Num texto de debate sobre a polissemia da categoria trabalho (Frigotto, 2009), menciono Carlos Nelson Coutinho junto aos que me referi acima como intelectuais que pensam com Marx

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para além de Marx. Tomei esta formulação de Wolfgang Leo Maar (2006), em um texto no qual aborda a Teoria crítica da sociedade brasileira de Francisco de Oliveira. Trata-se de uma expressão precisa que sintetiza a forma mais radical de ser fiel ao pensamento de Marx: trabalhar o presente na relação entre o estrutural e o conjuntural dentro de sua concepção materialista da realidade e do método dialético histórico de compreendê-la, que implica, em cada formação histórica, identificar e analisar as mediações e contradições que produzem a realidade humano-social em sua particularidade, singularidade e universalidade. Os leitores das obras de Coutinho e de sua prática política como intelectual militante podem apreender duas de suas lições mais significativas: a radicalidade (ir à raiz) na compreensão dos fenômenos sociais, econômicos, políticos e culturais e a aversão ao dogmatismo e ao oportunismo. Da primeira lição, é fundamental, para os educadores que atuam desde a escola básica até a pós-graduação, entender no trabalho intelectual de Coutinho o que foi uma obsessão para Marx: a cientificidade do saber1. O desafio de apreender a dialética do real, suas contradições e mediações – um real sempre em movimento. Uma lição fundamental para não repetir o erro, sublinhado por Engels, de jovens escritores, para quem bastava a palavra “materialista” para chegar a conclusões apressadas. Sobretudo a palavra ‘materialista’ serve, na Alemanha, a muitos escritores jovens como uma simples frase com que se rotula todo e qualquer estudo, ou seja, coloca-se o rótulo e crê-se ter encerrado então o assunto (...). Toda a história precisa ser reestudada, as condições de existência das diversas formações sociais precisam ser examinadas em detalhe, antes de

O leitor que queira aprofundar este aspecto, cf. José Barata-Moura (1997), p. 69-149.

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induzir delas as correspondentes concepções políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas etc. (Engels, 1983, p. 456).

Mas, se é verdade que a realidade está sempre em movimento, dois aspectos são fundamentais a serem levados em conta nas sociedades de classe. O primeiro refere-se ao que Engels destacou, ao despedir-se em breve discurso diante do túmulo de Marx em 17 de março de 1883, como o legado fundamental deixado por ele: O que o proletariado combativo europeu e americano, o que a ciência histórica perderam com [a morte de] este homem não se pode de modo nenhum medir. Muito em breve se fará sentir a lacuna que a morte deste [homem] prodigioso deixou. Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana: o simples fato, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião etc.; de que, portanto, a produção dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estádio de desenvolvimento econômico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão se desenvolveram e a partir da qual, portanto, elas têm também que ser explicadas – e não, como até agora tem acontecido, inversamente. Mas isto não chega. Marx descobriu também a lei específica do movimento do modo de produção capitalista hodierno e da sociedade burguesa por ele criada. Com a descoberta da mais-valia fez-se aqui de repente luz, enquanto todas as investigações anteriores, tanto de economistas burgueses como de críticos socialistas, se tinham perdido na treva (in Barata-Moura et al. 1982, p. 179).

A lei primeira a que se refere Engels, presente nas análises de Coutinho, ao mesmo tempo permite entender que os processos

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educativos não se efetivam nas nuvens e nem se enquadram no que o economicismo produziu com a ideologia do capital humano dentro do ideário positivista e funcionalista que concebe a realidade histórica como soma de fatores intercambiáveis. A economia, em Marx e Engels, ao contrário, se define pelo conjunto de relações sociais que condiciona como os seres humanos se relacionam com os meios e instrumentos de produção na produção, primeiro, das necessidades de comer, vestir, ter um teto etc. Isto explicita a concepção materialista da história, que nos permite entender que a política, o direito, a educação, a religião etc. têm que ser entendidos no interior das relações sociais que definem esta lei simples. E disto decorre o segundo aspecto: o da necessidade de distinguir as mudanças que ocorrem, mas para conservar as relações de poder de classe no processo de exploração (“lei” segunda, a da mais-valia), das que alteram estas relações na perspectiva de sua superação. Karel Kosik definiu esta forma de entender a realidade social como monismo materialista, em contraposição às visões de que ora a economia, ora a religião, ora a política são a base para entender como funcionam os diferentes modos de produção. O monismo materialista que concebe a realidade como um complexo constituído e formado pela estrutura econômica e, portanto, por um conjunto de relações sociais que os homens estabelecem na produção e no relacionamento com os meios de produção pode constituir a base de uma coerente teoria das classes e ser o critério para a distinção entre mutações estruturais – que mudam o caráter da ordem social – e mudanças derivadas, secundárias, que modificam a ordem social, sem, porém, mudar essencialmente seu caráter (Kosik, 1986, p. 105).

A apropriação da concepção materialista da realidade social em diferentes pensadores, que buscam no legado de Marx e Engels os fundamentos para suas análises e ação política, nem sempre

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foi fiel a tal concepção. Dois dos principais vieses que anulam a dialética materialista histórica têm sido: as análises economicistas ou deterministas que reduzem o econômico à visão funcionalista de fatores, e não como conjunto de relações sociais que os homens estabelecem na produção e no relacionamento com os meios de produção, no processo produtivo de sua vida material e social; e o dogmatismo, tanto no plano teórico quanto no plano político. A obra de Coutinho, no seu conjunto, é um exemplo para as diferentes gerações, que tiveram e estão tendo acesso a ela, não só para evitar estes vieses, mas para combatê-los sistematicamente. Uma dimensão educativa fundamental num período histórico em que, como nunca, o materialismo histórico é imprescindível. Não é, pois, por acaso, que Gramsci tem sido o intelectual e o político de referência fundamental na obra e ação política de Coutinho. No campo de sua concepção e ação política, aqueles que o acompanham podem testemunhar, por um lado, a defesa incondicional do socialismo e, por outro, sua capacidade de autocrítica e de tomada de posição frente às opções desviantes deste caminho em partidos políticos a que pertenceu. Menciono aqui o Partido Comunista Brasileiro e o Partido dos Trabalhadores, este que ajudou organizar. Combater o dogmatismo e o oportunismo e não transigir em princípios e em valores traduz, então, a segunda grande lição educativa do seu modo de ser como intelectual que entende que o capitalismo não é reformável e que, por isso, a luta permanente é por sua superação. A influência direta da obra e do pensamento de Coutinho na Educação

No item anterior, ressaltamos as dimensões educativas e ético-políticas da obra de Coutinho, centradas na sua concepção

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materialista histórica da realidade humana e no método dialético histórico de compreendê-la numa perspectiva de superação das relações sociais dominantes sob o modo de produção capitalista. Neste tópico buscamos ressaltar as principais contribuições diretas de Coutinho na educação formal, mormente na pós-graduação e graduação, por quatro formas: a tradução e veiculação da obra, especialmente, de Antônio Gramsci e de György Lukács a partir da década de 1980; a densa produção como intérprete do Brasil contemporâneo; suas contribuições em coletâneas de educadores com enfoque de aprofundamento teórico e de análise das políticas; e sua intensa e permanente participação em debates, congressos, mesas redondas e conferências, imediata ou diretamente ligadas à problemática educativa. Um balanço das concepções que historicamente balizaram a formação dos educadores evidencia, de imediato, que foi tardia a entrada do legado de Marx e Engels, Gramsci e Lukács. Com efeito, numa síntese das diferentes correntes de pensamento que orientaram a educação escolar e das perspectivas da formação dos educadores na sua relação com os diferentes aspectos da sociedade, da história e das tendências políticas, Dermeval Saviani (2010) efetiva a seguinte categorização: teorias não críticas e teorias­ críticas. A denominação de teorias não críticas se justifica, na análise de Saviani, pelo fato de a educação ser concebida nela mesma e, portanto, supostamente desvinculada da estrutura social. Aqui se insere tanto a pedagogia tradicional quanto o ideário da escola nova de cunho liberal e iluminista e o tecnicismo com influência predominante do economicismo. Este último tem se constituído na referência das reformas educacionais desde as duas décadas de ditadura civil-militar. No âmbito das teorias críticas, Saviani as subdivide em crítico-reprodutivistas e crítico-críticas. No primeiro caso, trata-se de

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análises que se desenvolvem em fins da década de 1970 e início da década de 1980, com base na difusão de uma obra de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1975), na qual tratam do sistema de dominação e de reprodução social no sistema de ensino2. Incluem-se, também, alguns textos de Althusser (1970) sobre os aparelhos ideológicos do Estado (AIE) e de outros autores marxistas, como Bowles e Gintis. Trata-se de análises que enfatizam o caráter reprodutor da escola e dos processos educativos escolares, fato que é real, mas que não atentam para a dimensão contraditória da própria escola e da importância, portanto, da luta contra-hegemônica no seu interior. Por fim, Saviani caracteriza a teoria crítico-crítica da educação como aquela que incorpora a concepção materialista histórica da sociedade e que, portanto, apreende a escola no bojo da luta de classes. É a partir desta compreensão que este pensador, no final de década de 1970, organizou o Programa de Pós-Graduação em Educação na PUC/São Paulo introduzindo como referências teó­ ricas básicas e sistemáticas as obras de Marx, Gramsci, Lenin e Lukács. Trata-se de um programa que formou várias turmas de educadores com esta base, e que, em seguida, vários deles tiveram influência como professores de programas de pós-graduação em educação em diferentes espaços do Brasil. Foi justamente a década de 1980 que marcou o fim da ditadura civil-militar e a criação de mais de uma dezena de programas de pós-graduação em educação. Apenas para mencionar alguns deles onde vários educadores que tiveram esta base atuaram a partir da década de 1980, lembrem-se os da Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Fede Trata-se de uma das primeiras obras traduzidas em português da qual participou Bourdieu. A obra deste importante sociólogo é ampla e, ao longo de sua trajetória intelectual, foi se tornando cada vez mais próxima da abordagem marxiana.

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ral de São Carlos, Universidade de São Paulo, Universidade Federal Fluminense, Universidade Católica de São Paulo, Universidade Federal do Paraná, Universidade Federal de Santa Catarina e Instituto de Estudos Avançados em Educação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Esta localização do leitor sobre as concepções em disputa no campo da educação permite sublinhar a contribuição singular e decisiva de Coutinho neste particular, mediante a tradução e difusão da obra de Antônio Gramsci; tarefa esta colimada recentemente com a tradução, organização e publicação, em português, do conjunto dos Cadernos do cárcere. Do mesmo modo, pela introdução e divulgação de obras de Lukács e de sua produção teórica na análise da realidade brasileira. A introdução deste legado marxista nos programas de pós-graduação da área, pelo menos em boa parte deles, ainda que não de forma majoritária, teve reflexo direto nos debates e disputas das concepções e da política educacional especialmente na década de 1980, mas que continuam até o presente. A apropriação e aprofundamento das teses da escola unitária, da educação omnilateral e politécnica e do princípio educativo do trabalho se efetivam neste contexto e se contrapõem à escola dual, à educação concebida na visão unidimensional do mercado e ao trabalho sob sua forma alienadora, trabalho abstrato sob as relações capitalistas. O segundo aspecto da influência direta da obra de Coutinho na educação efetiva-se como decorrência deste primeiro. Trata-se de suas obras mediante as quais busca desvelar dimensões centrais das particularidades de nossa sociedade de capitalismo dependente. Nesta sua interpretação do Brasil, duas dimensões aparecem centrais em seu caráter formativo. Primariamente, a forma como se apropria do legado marxista no exercício de saturar suas categorias e seus conceitos, relacionando-os à materialidade específica de nossa sociedade marcada por um

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longo processo de colonização e de quase quatro séculos de escravidão. Traços que marcam até o presente a conformação de uma classe dominante despótica e que sequer completou, em termos clássicos, a revolução burguesa. O conceito de capitalismo dependente, que combina elevada concentração de riqueza/capital e desigualdade, desenvolvido especialmente por Florestan Fernandes (1973), define o caráter de nossa especificidade histórica na sua raiz mais profunda. Trata-se de uma categoria (ou um conceito) que nos permite explicitar o caráter ideológico da “teoria” da modernização e os limites da teoria da dependência – com as abordagens sobre as relações centro-periferia e o confronto entre nações – ao situar o núcleo explicativo nas relações e nos conflitos de classes no sistema capitalista. O conceito de capitalismo dependente não trata daquela dualidade e, também, não expressa um confronto entre nações, mas a aliança e a associação subordinadas da fração brasileira da burguesia com as burguesias dos centros hegemônicos do sistema capital na consecução de seus interesses. Esta mesma categoria permite compreender, de forma mais precisa, um processo histórico de desenvolvimento desigual e combinado. A aliança dependente e subordinada da burguesia brasileira com os centros hegemônicos do capital tem como resultado a combinação de nichos de alta tecnologia, elevadíssimos ganhos do capital, concentração abismal de capital e de renda, superexploração do trabalhador, concentração de miséria e mutilação dos direitos elementares à grande maioria. Na mesma perspectiva, Francisco de Oliveira (2003) nos mostra que é a imbricação do atraso, do tradicional e do arcaico com o moderno e desenvolvido que potencializa a nossa forma específica de sociedade capitalista dependente e nossa inserção subalterna na divisão internacional do trabalho. Mais incisivamente, os setores denominados atrasados, improdutivos e informais

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constituem-se como condição essencial do núcleo integrado ao capitalismo orgânico mundial. Assim, a persistência da economia de sobrevivência nas cidades, a ampliação ou o inchaço do setor terciário ou a “altíssima informalidade” com alta exploração de mão de obra de baixo custo são funcionais à elevada acumulação capitalista, ao patrimonialismo e à concentração de propriedade e de renda. Oliveira vale-se da metáfora do ornitorrinco para expressar a particularidade estrutural de nossa formação econômica, social, política e cultural, que nos transforma num monstrengo social. É neste processo de leitura de nossa formação histórica que se inserem as principais obras de Coutinho, que aprofundam seus aspectos centrais e nos permitem entender por que o direito social e subjetivo à educação básica para todas as crianças e jovens não se concretizou até o presente. O Brasil convive, em pleno século XXI, com mais de 13 milhões de brasileiros analfabetos, o que equivale a 10,5% da população maior de 15 anos, com um ensino fundamental frágil e um ensino médio de extrema precariedade e que atinge pouco mais da metade da população de jovens, que, constitucionalmente, o têm por direito. Quatro eixos ou temas articulados aparecem em suas obras, com particular importância para a compreensão dos impasses, do passado e do presente, e dos desafios no campo educacional. Primeiro, sua compreensão da relação histórica entre a sociedade civil e o Estado e seus processos de dominação e de hegemonia. A explicitação de que, nas últimas décadas do século XX, o Brasil foi transitando de uma sociedade de tipo oriental para uma sociedade ocidental, ainda que de tipo americano e não europeu, com um relativo equilíbrio entre a sociedade civil e o Estado3, permite-nos Não cabe aqui aprofundar os conceitos e categorias que irei destacar da obra de Coutinho pelo simples fato de que o leitor tem isto em suas obras (1984; 1992; 1996; 2004), em inúmeros artigos e em capítulos de livro, alguns aos quais darei destaque

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entender o protagonismo dos aparelhos privados de hegemonia4 da burguesia brasileira na disputa pela educação que lhes convém. Se, da década de 1940 até o final da década de 1970, a disputa se dava principalmente na educação profissional, tendo como veículo básico o sistema “S” e, como slogan, ensinar o que serve à indústria, ao comércio e à agricultura, hoje a disputa se dá desde a pré-escola até a pós-graduação. No plano especificamente político, um segundo eixo de análise de Coutinho que permite entender a reiterada não prioridade da universalização da educação pública, universal, gratuita e laica no Brasil liga-se à forma específica da classe dominante brasileira de abortar as mudanças estruturais mediante os mecanismos de revolução passiva, transformismo e cooptação. Uma classe dominante que, de tempos em tempos, levanta um vozerio reclamando do apagão educacional, expressão esta que qualifica bem a visão míope que seus intelectuais têm da educação. Estes reclamos ocorrem toda a vez que há um ciclo mais forte de crescimento ou modernização capitalista. Isso ocorreu na chamada era Vargas, nos anos do governo Juscelino Kubitschek de Oliveira, na ditadura durante o denominado “milagre brasileiro” e, agora, nos governos Luiz Ignácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, com as teses do neodesenvolvimentismo. Não percebem que quem produz o denominado apagão são eles mesmos enquanto classe dominante e os seus representantes no parlamento, judiciário e poder executivo. a seguir por terem sido escritos por encomenda de educadores na organização de diversas coletâneas. 4 Destacam-se nesta disputa as Confederações Nacionais da Indústria, Agricultura e Comércio, o Sistema “S” a elas vinculado e institutos específicos que cuidam desta disputa, tais como: Instituto Herbert Ley (IHL), Instituto Euvaldo Lodi (IEL). Há também um avanço de fundações privadas ligadas a bancos, como a Fundação Bradesco, ou à mídia, como a Fundação Roberto Marinho, bem como a enorme multiplicação de Organizações não Governamentais (ONGs) ou, as mais atuais, Organizações Sociais (OS), como o Instituto Ayrton Senna, Instituto Qualidade no Ensino (IQE) etc.

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Em todos estes momentos apoiam medidas paliativas de programas emergenciais negando sempre as condições para a universalização da educação básica. Nos últimos 80 anos, três balanços sobre a educação no Brasil evidenciam que, com medidas “pelo alto”, com as estratégias de “revolução passiva”, de “transformismo” e de cooptação, mantém-se a educação pública como matéria secundária. Antonio Candido, avaliando a cultura e a educação na década­de 1930, sublinha que não houve mudança substantiva: Tratava-se de ampliar e ‘melhorar’ o recrutamento da massa votante e de enriquecer a composição da elite votada. Portanto, não era uma revolução educacional, mas uma reforma ampla, pois, no que concerne ao grosso da população, a situação pouco se alterou. Nós sabemos que (ao contrário do que pensavam aqueles liberais) as reformas na educação não geram mudanças essenciais na sociedade, porque não modificam a sua estrutura e o saber continua mais ou menos como privilégio. São as revoluções verdadeiras que possibilitam as reformas de ensino em profundidade, de maneira a torná-lo acessível a todos, promovendo a igualitarização das oportunidades. Na América Latina, até hoje isso só ocorreu em Cuba a partir de 1959 (Candido, 1984, p. 28).

Florestan Fernandes, batalhador, desde a década de 1950, das teses dos movimentos sociais e organizações científicas defensoras de um projeto educacional que fornecesse bases para as mudanças estruturais, chega à conclusão similar a de Antonio Candido, quatro décadas depois, referindo-se à Constituição de 1988: “A educação nunca foi algo de fundamental no Brasil, e muitos esperavam que isso mudasse com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte. Mas a Constituição promulgada em 1988, confirmando que a educação é tida como assunto menor, não alterou a situação” (Fernandes, 1992, p. 34). Duas décadas depois do balanço feito por Florestan, Dermeval Saviani, referindo-se ao Plano de Desenvolvimento da Educa-

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ção (PDE), que secundariza e se superpõe ao Plano Nacional de Educação (PND) com uma visão mercantil de educação, sustenta: Fica-se com a impressão de que estamos diante, mais uma vez, dos famosos mecanismos protelatórios. Nós chegamos ao final do século XX sem resolver um problema que os principais países, inclusive nossos vizinhos Argentina e Uruguai, resolveram na virada do século XIX para o XX: a universalização do ensino fundamental, com a consequente erradicação do analfabetismo (Saviani, 2007, p. 3).

Não é difícil, seguindo as análises de Coutinho, compreender que se alternam as ênfases dos mecanismos políticos utilizados pela classe dominante para protelar o direito à educação, especialmente a básica, e seu caráter público. No período Vargas evidencia-se claramente a estratégia da “revolução passiva”, e os governos Lula e Dilma, como o próprio Coutinho salienta, caracterizam-se mais por um processo de cooptação e de transformismo. O efeito deste processo de transformismo e cooptação nesses governos geraram a desmobilização e anulação de forças no campo da esquerda e permitiram que o ideário privatista da década de 1980 se alastrasse em todos os níveis de ensino. Ou seja, a direção das concepções e das políticas educativas estão atualmente, de forma dominante, nas mãos do empresariado e de seus representantes, cujo lema cínico que propagam, no Plano de Desenvolvimento da Educação, é: todos pela educação. Falta acrescentar – todos pela educação unidimensional que convém e que se ajuste ao mercado. Estas análises, presentes em boa parte da obra de Coutinho, não conduzem a uma visão fatalista da realidade. Sua visão dialética da realidade histórica lhe dá base para trazer dois outros eixos ou temas centrados na luta contra-hegemônica – a democracia na perspectiva do socialismo e a cultura. Seu ensaio “A democracia como valor universal” e seus desdobramentos em diferentes debates e publicações a aduz como sendo o cerne do socialismo. Na

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mesma linha do debate de Elen M. Wood, reconhece a possibilidade da luta democrática, mas entende que a efetiva democracia é impossível sob o capitalismo. A luta democrática se impõe como travessia para o socialismo. Esta travessia não se faz sem uma mudança cultural das massas, na qual a educação é uma mediação fundamental. O trabalho militante de Coutinho – junto aos movimentos sociais de massa, sindicatos e partidos que confrontam o capital, nos permanentes debates e como professor formador de quadros – tem levado à risca duas grandes diretrizes de Gramsci na luta contra-hegemônica para derrotar o modo de produção capitalista: Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente grande descobertas ‘originais’; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, ‘socializá-las’ por assim dizer; transformá-las, portanto, em bases vitais, em elemento e coordenação de ordem moral e intelectual (Gramsci, 1978, p. 13).

Todavia, para que haja a possibilidade efetiva de rupturas revolucionárias, o desafio é o de qualificar, intelectual e politicamente, a quantidade. Isto é, desenvolver processos formativos e pedagógicos que transformem cada trabalhador do campo e da cidade em sujeito não somente pertencente à classe, mas com a consciência de classe que lhe indique a tarefa necessária de superação da sociedade classista: Trabalhar incessantemente para elevar intelectualmente as camadas populares cada vez mais vastas, isto é, para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na criação de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para tornarem-se os seus sustentáculos. Esta segunda necessidade, quando satisfeita, é o que realmente modifica o panorama ideológico de uma época (Gramsci, 1978, p. 27).

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Para explicitar como Coutinho dá uma grande contribuição para se pensar a educação na leitura que faz do Brasil, particularmente nos quatro eixos ou temas destacados e no método dialético de abordá-los, vou apenas mencionar algumas coletâneas organizadas por educadores em que ele comparece com sínteses de suas obras. Trata-se de coletâneas que buscam sempre situar a educação no âmbito das relações e lutas de classes e, portanto, no embate contra-hegemônico. Em Democracia e construção do público no pensamento educacional brasileiro (Fávero e Semeraro [orgs.], 2002), o capítulo de Coutinho, numa perspectiva histórica, versa sobre a democracia na batalha das ideias e nas lutas políticas do Brasil de hoje. Trata-se de um texto-chave que nos permite entender que, apesar dos avanços, continuamos convivendo no Brasil, com uma democracia restrita tanto na sociedade, quanto na educação. Ao mesmo tempo, o texto sinaliza a necessidade da batalha para não reduzir a democracia à sua marca burguesa, bem como a perspectiva de que a luta se dá efetivamente no plano político. Em Fundamentos da educação escolar no Brasil contemporâneo (França e Neves [orgs.], 2006), Coutinho elabora um capítulo com uma densa síntese da gênese, crise e alternativas do Estado brasileiro tendo como suporte, sobretudo, a visão gramsciana de “Estado ampliado”. O texto acentua a gênese de um Estado autoritário e centralizador, mas analisa que, ao longo das últimas décadas do século XX, com uma sociedade civil mais robusta, efetivou-se uma relação mais equilibrada entre o Estado em sentido estrito e os aparelhos privados de hegemonia. Coutinho vislumbra, no início do século XXI, a disputa entre uma proposta de um Estado liberal-corporativo centrado nos interesses da burguesia brasileira e na esfera de defesa do setor privado e uma proposta democrática de Estado que, mesmo nos limites de uma sociedade capitalista, represente os interesses

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das classes subalternas mediante a ampliação da esfera pública. A análise desse autor sobre a disputa da natureza do Estado ao longo de nossa história permite entender as disputas, os impasses, as derrotas e os pequenos avanços no campo das políticas educacionais. Finalmente, numa coletânea publicada num conjunto de DVDs, organizada por Frigotto e Motta (2009) no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/Uerj), na qual se busca discutir o que somos e para onde vamos como sociedade à luz dos clássicos e contemporâneos do pensamento crítico social brasileiro, não por acaso, Coutinho foi convidado a desenvolver uma síntese e balanço analisando o tema “Pensamento social contemporâneo: Brasil na crise atual do capitalismo”. Nesta sua análise, ele expõe, com sólidos argumentos, que os governos Lula e Dilma tipificam governos que se enquadram no que Gramsci denominou de “transformismo”. Da possibilidade de ampliar a base social da qual se originaram, socializando a política e enfrentando aquilo que Florestan Fernandes denominou de minoria prepotente ao se referir à classe dominante brasileira, deu-se o inverso: atrofiou-se a participação política das classes subalternas e estabeleceram-se alianças cada vez mais amplas com o conservadorismo. Em vez de reformas estruturais que alterassem profundamente nossa ordem social injusta, o que predomina é a “pequena política”, com programas tópicos que aliviam a pobreza e a miséria, mas não atacam as forças sociais e as estruturas que as produzem. Como intelectual militante, todavia, Coutinho acaba sua análise na exposição desta última coletânea reiterando o que, à luz de Gramsci, apreendeu na teoria e na prática: a relação dialética entre o pessimismo da razão (a rebeldia revelada pela análise) e o otimismo da vontade (que a leitura da história exige que se mantenha para que não se esmoreça na luta política contra-hegemônica).

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A título de consideração final

Ao escrever este breve texto sobre a contribuição das análises de Carlos Nelson Coutinho para a perspectiva contra-hegemônica da educação brasileira e seu sentido mediador na luta pela superação das relações sociais profundamente desiguais e pelo socialismo, veio-me à mente a imagem que o escritor chinês Lu Sun explicitou de seu país na pré-revolução de 1949. Imagem que, na minha compreensão, caracteriza muito bem o sentido que a obra e a pessoa de Coutinho têm para os educadores que atuam na escola e para aqueles que se colocam como intelectuais orgânicos nos movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos que, diante de tarefas pequenas e de grandes lutas teóricas e políticas, tecem, aqui e agora, bases para a construção do socialismo. Ao indagar-se sobre a situação e destino da China, Lu Sun a comparava a uma casa de ferro sem janelas e praticamente indestrutível, cheia de homens adormecidos e que morriam asfixiados sem sentir dor. Mas alguns que permaneciam acordados despertavam os de sono mais leve que iriam sofrer as angústias nas lutas que os esperava. Estes perguntam se, ao acordá-los, prestavam-lhes um serviço, concluindo em seguida: “Desde que haja homens despertos, não podes garantir que não exista esperança de destruir a casa de ferro” (Lun Su, apud Schilling, 1984, p. 10) As análises da vasta obra de Coutinho, seu trabalho de pesquisador e professor e sua incansável militância junto aos movimentos sociais, sindicatos e partidos que buscam construir o socialismo tipificam a atitude de quem está desperto e contaminam os de sono mais leve, tarefa pedagógica e educativa imprescindível para que se mantenha a convicção de que será possível destruir uma das casas de ferro mais perversas do mundo: a estrutura de classes da sociedade brasileira.

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A contribuição de Coutinho para a educação, na sua forma escolarizada e nos processos educativos que se forjam nas relações e práticas socais, é ampla e densa, e vem marcando gerações sucessivas. Como leitor e intérprete mais qualificado no Brasil da obra de Antônio Gramsci, Coutinho, como poucos intelectuais, vem contribuindo para que se concretize aquilo que Florestan Fernandes sublinha como tarefa do intelectual militante: A causa principal consiste em ficar rente à maioria e às suas necessidades econômicas, culturais e políticas: pôr o povo no centro da história, como mola mestra da Nação. O que devemos fazer não é lutar pelo Povo. As nossas tarefas são de outro calibre: devemos colocar-nos a serviço do Povo brasileiro para que ele adquira, com maior rapidez e profundidade possíveis, a consciência de si próprio e possa desencadear, por sua conta, a revolução nacional que instaure no Brasil uma nova ordem social democrática e um Estado fundado na dominação efetiva da maioria (Fernandes, 1980, p. 245-246).

Finalizando, sem dúvida, a obra e ação política de Coutinho cumprem, também, o que nos interpela Raymond Williams sobre a tarefa da crítica militante na luta pela hegemonia cultural: Sei que há um trabalho fundamental a ser feito em relação à hegemonia cultural. Acredito que o sistema de significados e valores que a sociedade capitalista gera tem de ser derrotado no geral e no detalhe por meio de um trabalho intelectual e educacional contínuo. (...) temos de aprender e ensinar uns aos outros as conexões que existem entre formação política e econômica e, talvez, mais difícil, formação educacional e formação de sentimentos e de relações, que são os nossos recursos em qualquer forma de luta (Cevasco apud Williams, 2007, p. 15).

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Carlos Nelson Coutinho e a incidência de Gramsci no Serviço Social Ivete Simionatto Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas ‘originais’; significa também, e sobretudo, difundir verdades já descobertas, ‘socializá-las’ por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral (Antonio Gramsci) Só uma sociedade sem classes – uma sociedade socialista ou comunista – pode realizar o ideal da plena cidadania, ou, o que é o mesmo, o ideal da soberania popular e, como tal, da democracia (Carlos Nelson Coutinho)

Dois pensadores, um só pensamento

O presente texto propõe-se a abordar um dos momentos mais significativos da renovação crítica do Serviço Social brasileiro nas três últimas décadas: sua aproximação ao pensamento de Antonio Gramsci­ pela incorporação das decisivas contribuições de Carlos Nelson Coutinho, incomparável e eminente intelectual, produtor de cultura, sobre o pensador italiano. Nosso intuito é o de resgatar, ainda que de forma breve, dada a magnitude de que se reveste a tarefa, os principais temas presentes nas reflexões de Coutinho à luz do legado gramsciano, sua incidência na realidade brasileira e no Serviço Social, profissão com a qual Coutinho tem estabelecido profícua e contínua interlocução ao longo de sua trajetória intelectual­e política, que merece ser destacada por trazer em sua bagagem o perene compromisso com a verdade e a produção da ciência voltada à transformação do mundo.

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“Marxista convicto e confesso”, como se autodefine, organicamente vinculado às causas, aos valores e ideais do socialismo, engajado na luta pela construção de uma sociedade radicalmente democrática e emancipada, Coutinho apresenta uma vasta produção em livros e artigos que difundem ideias substanciais à compreensão da história e da sociedade brasileiras, extrapolando as fronteiras dos campi universitários, abrindo-se ao intercâmbio internacional. Sua maestria desvela-se nas salas de aula, em palestras e conferências, atuando na Universidade no mais claro sentido gramsciano – como aparelho de hegemonia –, repassando a perspectiva revolucionária e contribuindo na formação de várias gerações em diversas áreas no campo das ciências humanas e sociais. Intelectual simultaneamente tradicional e orgânico – professor e militante nos partidos políticos –, nunca foi neutro em relação à luta de classes nem se deixou seduzir por modismos acadêmicos tão em voga nestes tempos de “complacência pós-moderna”. Uma das particularidades notórias de Carlos Nelson é de sempre respeitar seus interlocutores, reconhecendo, mesmo em manifestos adversários, sua capacidade argumentativa – jamais fugindo, no entanto, da batalha das ideias, da defesa racional e apaixonada de suas crenças e teses, porque sempre “liberto da prisão das ideologias”. Baiano de Itabuna, adotou o Rio de Janeiro como território de seu ofício, que exercita como “um persuasor permanente” na defesa radical de uma universidade de formação humanista, pautada na “liberdade e na livre iniciativa”, e não na “escravidão e mecanicidade” (Gramsci, 2004). Dotado de abrangente domínio teórico e cultural – transita com desenvoltura dos clássicos aos contemporâneos, da literatura à filosofia e à política –, o estilo e a prosa de Coutinho revelam a elegante simplicidade de um intelectual que, alicerçado em sua vasta erudição, não abre mão do texto límpido e claro, conquistando o leitor com cumplicidade e encantamento. Suas obras não

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são permeadas por fórmulas ou conceitos estanques, mas resultado­ do trabalho de um pesquisador que, mesmo permanentemente investido do rigor acadêmico, jamais se desvinculou da prática e da intervenção políticas. Imbuídos de razão crítica e criativa, seus textos são marcados por categorias que descortinam o real, fazendo-o “jorrar incessantemente do novo”, e suas ideias recusam-se a permanecer como patrimônio individual, mas, permanentemente socializadas, tornam-se “base de ações vitais”. Em seu conjunto, a obra de Coutinho, construção ininterrupta, persegue e mantém a unidade de método e pensamento na contínua dialética entre conservação e renovação. Em sua abrangente produção, podemos incursionar tanto por textos de crítica literária, como as análises das obras de Graciliano Ramos e Lima Barreto; ou por grandes pensadores clássicos da filosofia política, como Rousseau, Hegel e Lukács; e da economia política, como Marx e Engels. Sua produção teórica pode ser vislumbrada por vários prismas: história, literatura, política, militância, que se complementam e se entrecruzam a muitos outros. É inegável, contudo, que, no panorama de sua relevante obra, a contribuição mais expressiva remete ao pensamento de Antonio Gramsci, gigante do marxismo no século XX. Nas palavras de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira (1999), “um pensador da envergadura de Gramsci requer grandes intérpretes”, e Carlos Nelson cumpre com protagonismo o papel de grande intelectual comunista introdutor do pensador italiano na realidade brasileira, projetando suas particularidades para além das vicissitudes do “comunismo histórico”. Além da tradução do conjunto da obra de Gramsci no Brasil e de muitos de seus intérpretes, Coutinho busca no pensamento gramsciano o eixo fundamentador de sua própria e profícua produção, publicada também na América Latina e na Europa, num esforço ininterrupto, por mais de quatro décadas, na difusão do pensamento gramsciano e na interpretação de nossa realidade.

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Uma breve incursão histórica

Desde o final dos anos 1940, com a publicação da primeira edição dos Cadernos do cárcere em território italiano, cresceram intensamente os estudos sobre o pensamento de Antonio Gramsci. Seus escritos extrapolaram a história e a cultura italianas, e seu legado difundiu-se em “tempos e lugares profundamente diversos”, tornando-se, no mundo todo, um dos autores mais citados e debatidos tanto no campo das ideias quanto no âmbito das diferentes práticas sociais. As interpretações e polêmicas que marcaram essa longa trajetória, permeada por “reviravoltas culturais e políticas”, reafirmaram, no entanto, a originalidade do pensador italiano, especialmente no terreno da teoria política marxista. Definido por Eric Hobsbawm (1987, p. 183) como uma das maiores expressões do movimento comunista, “um pensador marxista de extraordinária originalidade e riqueza de ideias”, Gramsci construiu uma obra obrigatória à compreensão da história do movimento operário internacional, à renovação e à defesa do socialismo e ao debate sobre os rumos da política e da esquerda nos conturbados dias atuais. Graças a suas inovadoras reflexões marxistas, o pensamento gramsciano vem se constituindo, há mais de meio século e em diferentes continentes, como fonte de interlocução privilegiada no debate da política, do socialismo e da democracia. Se devemos ao peruano José Carlos Mariátegui a introdução de Gramsci na América Latina, ainda nos idos de 1920, tal protagonismo, no Brasil, coube a Carlos Nelson Coutinho, juntamente com Leandro Konder e Luiz Mário Gazzaneo, em pleno regime militar. Permeando o debate acadêmico e os partidos de esquerda, ainda que de forma bastante tímida, a edição temática togliatiana dos Cadernos do cárcere, então recém-publicada pela Editora Civilização Brasileira, sofre o duro revés da censura da ditadura militar, interrompendo-se precocemente, a partir de 1968, a fortuna de Gramsci em nosso país.

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Somente na passagem da década de 1970 para os anos 1980, quando a crise do regime autoritário e do modelo econômico-social por ele imposto começa a explicitar-se abertamente, o pensamento gramsciano receberá um tratamento mais coerente e sistemático. A revogação do AI-5, em 1979, permitiu, com o chamado processo de “abertura” política, recolocarem-se em pauta os sujeitos políticos banidos pelo regime ditatorial, ampliando as possibilidades de participação da sociedade civil e de retorno ao Estado­de direito. As dificuldades de disseminação do pensamento de Gramsci verificadas na década anterior cedem lugar então a uma ampla aceitação de suas categorias na reflexão da política, no debate das ideias e na análise da realidade social. Autores de diversos campos do conhecimento elegeram Gramsci como o pensador privilegiado na revisão de seus aportes teóricos e no rompimento com as matrizes conservadoras reinantes nos tempos ditatoriais. O autor tornou-se referencial singular e fonte inspiradora de trabalhos nas áreas de Educação, Sociologia, Ciência Política, Antropologia, Serviço Social, Direito, entre outras, que buscaram, em seus contextos específicos, articular a fecundidade e a universalidade do arco categorial gramsciano. Essa expressiva produção à luz da obra do pensador italiano concebeu diferentes interpretações das realidades brasileira e latino-americana, especialmente as relativas ao contexto nacional, ao papel do Estado e da sociedade civil nos processos políticos em curso nos diferentes países. Num momento em que as instâncias ideológicas ganhavam relativa autonomia em relação ao Estado mediante o fortalecimento da sociedade civil, a contribuição de Gramsci foi decisiva para a renovação do marxismo, da esquerda e das ciências sociais. No âmbito da política, uma das repercussões mais importantes decorrentes da introdução do pensamento gramsciano junto à esquerda latino-americana refere-se ao conceito de revolução e, portanto, de transformação social, aqui entendida não mais

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como ato insurrecional, mas como um processo construído pela sociedade civil, permeado por relações objetivas e subjetivas, em que o papel das ideias e da cultura é parte intrínseca do mesmo, fundamental para a construção de uma nova hegemonia, ou, no dizer de Gramsci, para a realização da necessária “reforma intelectual e moral”. A sociedade civil aparece, então, como o terreno da luta política, espaço onde se constrói a “guerra de posições”, fator decisivo para a compreensão das novas possibilidades abertas com a superação dos regimes ditatoriais e a reinserção dos movimentos sociais na arena política. A síntese dialética entre cultura e política, hegemonia e pluralismo, hegemonia e democracia, fortaleceu, através da obra de Gramsci, novas perspectivas de luta dos sujeitos políticos na construção da vontade coletiva e no encaminhamento de estratégias e alternativas ao processo de transformação da sociedade. Essa percepção da realidade brasileira por parte da intelectualidade e, particularmente, pelos partidos de esquerda pode ser tributada, consideravelmente, à produção de Carlos Nelson Coutinho na difusão do pensamento gramsciano, em reflexões isentas de dogmatismo, que promoveram um amplo processo de renovação teórica de revisões e posições políticas derivadas do “marxismo vulgar” e da linearidade do determinismo econômico, ainda entranhadas no modo de se pensar a vida nacional. Sob as lentes de Gramsci, a obra de Coutinho (2006, p. 11) neste percurso histórico é referência inconteste na reflexão dos “problemas teóricos, políticos e culturais” e contribuição ímpar na “batalha das ideias que se trava hoje no Brasil”. A tradução das obras de Gramsci, iniciada nos anos 1960, prosseguiu nos anos 1990 com a edição crítica dos Cadernos do cárcere, trabalho que preencheu e iluminou uma das lacunas no estudo do marxismo no Brasil, constituindo-se em referência obrigatória especialmente àqueles que se debruçam sobre a obra do

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pensador italiano. O projeto editorial dessa edição, resultado de rigoroso e ingente trabalho de pesquisa, representa um novo marco no pensamento social brasileiro e na divulgação do pensamento gramsciano em nosso país1. Coutinho e o Serviço Social: um diálogo für ewig

No momento em que Carlos Nelson Coutinho iniciava a tradução das obras de Gramsci no Brasil, no contexto da ditadura militar, o Serviço Social brasileiro vivia seu processo de modernização conservadora, perspectiva efetivamente assumida no sentido de adequar a profissão à ordem sociopolítica instaurada pelo regime vigente. A preocupação com o aperfeiçoamento do instrumental operativo, com os procedimentos metodológicos e técnicos, seus padrões de eficiência e eficácia, coadunaram-se facilmente à racionalidade burocrática que atingia todo o aparelho estatal. As produções do Serviço Social nesse período não ultrapassaram os traços conservadores que marcaram historicamente a profissão; e, mesmo revestidas de modernidade, permaneceram intocadas suas implicações sociais e políticas e seus valores teóricos e ideológicos, reforçando um projeto profissional comprometido com a política de dominação e controle das classes subalternas. Nesse cenário, as obras de Gramsci, já difundidas nos espaços acadêmicos e políticos, passaram ao largo dos debates da profissão, ganhando destaque os fundamentos teóricos derivados do estrutural-funcionalismo norte-americano. No final dos anos 1970, se o pêndulo ainda se inclinava fortemente às posturas reatualizadoras do conservadorismo, estendeu-se, A edição completa dos Cadernos do cárcere foi organizada por Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Em seu conjunto, o projeto brasileiro, já concluído, apresenta a obra de Gramsci em dez volumes, sendo seis com os Cadernos do cárcere, dois sobre os Escritos políticos, de 1910 a 1920 e de 1921 a 1926, e dois volumes com as Cartas do cárcere.

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ainda que de forma periférica, um debate no interior da profissão à luz de Marx e Gramsci, com temas relativos ao processo de exploração capitalista; a partir de então, categorias como “Estado ampliado”, hegemonia, intelectual orgânico e bloco histórico deixaram de ser alheias ao universo do Serviço Social. A difusão de novos conteúdos e a expansão da literatura profissional, aliadas às novas situações históricas, foram decisivas para o progressivo desligamento da perspectiva modernizadora presente nas décadas anteriores, delineando-se, em consequência, possibilidades concretas de ruptura do compromisso profissional com a ordem sociopolítica e cultural da autocracia burguesa. Além disso, a maior aproximação com o movimento organizativo das classes subalternas e o distanciamento do pensamento althusseriano permitiram rediscutir o significado do projeto profissional e a necessidade de legitimá-lo mediante sua vinculação às demandas da classe trabalhadora. As reflexões surgidas nesse período evidenciam a emergência de uma “produção intelectual que enfrenta a realidade em que se movem as classes e camadas sociais” (Netto, 1991, p. 258), predominantemente pautadas no pensamento de Marx e Gramsci. O referencial gramsciano é buscado, inicialmente, por seu marxismo aberto, pela relação dialética que estabelece entre as esferas econômica e político-ideológica, permitindo pensar-se nas possibilidades de contribuição da profissão na tarefa de transformação revolucionária da sociedade. Esta aproximação do Serviço Social com a obra de Gramsci ofereceu suportes à superação das posições reducionistas, tanto do economicismo quanto das linhas voluntaristas, as quais, caindo no extremo oposto, superestimavam a instância da superestrutura e a ação da consciência, independentemente da esfera econômica. No âmbito do marxismo, Gramsci apresentou-se, nesse período, como um dos referenciais que permitiram ao Serviço Social interrogar-se sobre questões relativas às instâncias estrutural

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e superestrutural, com problematizações não somente a respeito da esfera econômica, mas também da política, da ideológica e da cultural. Considerações relativas às classes sociais, ao Estado, à sociedade civil, ao papel das ideologias e dos intelectuais na análise e compreensão da realidade social possibilitaram, a partir de então, o desenvolvimento de uma atitude mais crítica e investigativa (Simionatto, 1995). Esse processo de renovação do Serviço Social, contudo, não ocorre de forma endógena ao campo da teoria, mas como resposta à dinâmica da realidade brasileira, aos desafios e impasses colocados tanto à profissão quanto aos movimentos sociais e sua prática política nos anos subsequentes à crise da ditadura militar. A mudança de direção que caracterizou este processo relaciona-se, igualmente, às políticas cultural e educacional vigentes no período, especialmente no tocante ao revigoramento da universidade e ao início da implantação dos cursos de pós-graduação. E Gramsci passa a ser, desde o início do declínio do regime ditatorial, um marco teórico significativo nas reflexões do Serviço Social brasileiro, abrindo novas possibilidades para repensar os aportes teóricos e qualificar as ações interventivas da profissão. O debate sobre o pensamento gramsciano já anteriormente iniciado na academia, especialmente no programa de Pós-Gradua­ ção da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pela professora Miriam Limoeiro Cardoso, adensa-se em 1986, quando Carlos Nelson Coutinho ingressa como professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A partir desse período, as disciplinas por ele ministradas tanto no curso de Serviço Social como em outras áreas terão Gramsci como eixo central, abrindo-se, desde então, um diálogo “sobre Gramsci e com Gramsci”, expresso de forma menos circunstancial e mais duradoura – für ewig –, para sempre. Suas obras, aulas, conferências e debates foram fundamentais à reela-

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boração teórica da profissão, ainda eivada de conservadorismo, revitalizando seu pensamento crítico. O referencial gramsciano passou a ser tomado pelo Serviço Social não somente no intuito de analisar a profissão e situá-la na dinâmica capitalista, mas, sobretudo, no de pensar o processo de reorganização do Estado e da sociedade civil desencadeado no pós-ditadura militar, bem como as práticas profissionais, seja no âmbito das instituições ou nos inúmeros espaços da sociedade civil, suas formas de organização e de luta. A visão mecanicista e dicotômica das relações entre estrutura e superestrutura, Estado e sociedade, que havia impulsionado o Serviço Social a rejeitar as práticas institucionais, direcionando a profissão à militância política em nome dos interesses das classes subalternas, é igualmente questionada. O redirecionamento dessa concepção e o entendimento das instituições como expressão conflitante de interesses de classes se apoiaram nas noções gramscianas­de aparelhos privados de hegemonia, de alargamento do Estado e, também, do papel dos intelectuais. Pressupondo-se que as relações entre prática profissional e espaço institucional não podem ser entendidas mecanicamente, mas a partir de seu movimento contraditório, tornou-se possível a apreensão de novas mediações na apreensão do papel do assistente social enquanto intelectual orgânico, vinculado aos interesses de uma das classes fundamentais, o que remete, necessariamente, à dimensão política da prática profissional. Tais reflexões são aprofundadas com a teoria ampliada do Estado, ou do “Estado integral”, analisado a partir de seus “dois ‘planos’ superestruturais” – a sociedade política e a sociedade civil. A partir da inovadora contribuição gramsciana, o Estado passa a ser entendido não só como instrumento garantidor das relações capitalistas, mas também como espaço contraditório, atravessado pelas lutas das classes sociais na batalha pela hegemonia. Esta

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compreensão da esfera estatal enquanto terreno de disputa possibilitou aos assistentes sociais fortalecer os enfrentamentos na afirmação e no reconhecimento de direitos consubstanciados em “políticas e serviços sociais”. Para além destas reflexões, é indubitável que a ampliação da leitura de Gramsci pelo Serviço Social ancora-se na original recuperação de Carlos Nelson Coutinho da teoria política gramsciana. Afirma Coutinho (1999, p. 2) que “a política é o ponto focal de onde Gramsci analisa a totalidade da vida social, os problemas da arte e da cultura, da filosofia, da pedagogia etc.” E prossegue indicando que “é na esfera da teoria política – ou, de modo mais amplo, na elaboração de uma ontologia materialista da práxis política” – que reside “a contribuição essencial de Gramsci ao marxismo”. Ao expor a trajetória intelectual do pensador italiano, Coutinho evidencia a articulação categorial presente em sua obra, interpretando-a de forma crítica e criativa. Resgata não só a multiplicidade de conceitos, mas, acima de tudo, as particularidades do marxismo gramsciano expresso na filosofia da práxis, demonstrando, num meticuloso rastreamento das fontes originais, a intimidade com sua obra. Partindo sempre do entendimento de que a política é o ponto fulcral do pensamento de Gramsci, Coutinho empenha-se em destacar o lugar por ele conferido ao “papel criador da práxis humana na história, sua percepção ‘das relações de força’ como momento constitutivo do ser social, o que o levou a privilegiar o estudo do fenômeno político em suas várias determinações” (Coutinho, 2003), sem jamais afastar-se da perspectiva da totalidade como princípio teórico-metodológico central. Essa preocupação com a recuperação de uma visão totalizante da realidade social, aliás, manifesta-se continuamente no conjunto da obra gramsciana, especialmente na centralidade da relação dialética entre economia e política, ou entre estrutura e superestrutura, objetividade

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e subjetividade. Para Coutinho (1994, p. 92), a elaboração teórica de Gramsci remete à necessidade de “conceber a vida e as estruturas sociais” tanto no plano “objetivo” quanto no “subjetivo”, ou seja, a “adoção consciente” do que Lukács denomina de “ponto de vista da totalidade”, ou a articulação entre “causalidade e teleologia”, entre “determinismo e liberdade”, entre “momentos de estrutura e momentos de ação”. Tal nexo orgânico entre economia e política, entre filosofia e cultura, que confere unidade à obra gramsciana, constitui-se num dos elementos centrais da interpretação de Coutinho, contribuindo para superar as perspectivas idealistas e economicistas na análise da realidade social, arduamente combatidas por Antonio Gramsci­. A partir das várias determinações do “fenômeno político” que envolve a ação dos sujeitos e as instituições, Coutinho constrói sua reflexão sobre categorias gramscianas, como a ampliação da teoria do Estado, sociedade civil, sociedade política, sociedade regulada, hegemonia, intelectuais, revolução passiva, guerra de movimento e guerra de posição, dentre outras, evidenciando-as como contribuições decisivas na elaboração de uma “ontologia marxista da práxis política”. Observa-se, assim, que o pensamento de Gramsci, na obra de Coutinho, foi apreendido e incorporado na perspectiva de articular a fecundidade e a universalidade de suas categorias e seus desdobramentos não somente para compreender e analisar a realidade social, mas também para construir alternativas de ação a partir da prática concreta dos homens. A noção de “revolução passiva”, elaborada por Gramsci nos Cadernos do cárcere, ao desvendar a formação do Estado italiano­ no século XIX, é utilizada na interpretação dos processos de transição do Estado brasileiro, caracterizado pela denominada “revolução pelo alto”, ou “modernização conservadora”, já desde a Independência, passando pela Primeira República, a Revolução de 1930, o golpe de 1964 e a Nova República (Coutinho, 1989).

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As reflexões sobre as relações entre Estado e sociedade, especificamente nestes períodos, expõem as condições de formação do capitalismo monopolista e as particularidades do modelo de Estado brasileiro atrelado aos interesses da classe dominante, evidenciando as contradições sociais que permearam nossa história, permitindo-nos, nesse percurso, identificar as marcas conservadoras da emergência do Serviço Social e de seu caminhar vis à vis às requisições do Estado burguês. Revestidas de originalidade são as reflexões de Coutinho (2008) na interpretação da realidade brasileira no período da transição democrática, demarcando o significado de nossa ocidentalidade, com o amplo processo de socialização da participação política, mediante a emergência de novos sujeitos políticos coletivos empenhados na tarefa de transformação social. A análise da articulação desses organismos de democracia de base – espaços onde também se inscreve o exercício profissional dos assistentes sociais, protagonizados pelos segmentos populares, em torno dos canais tradicionais de representação indireta (como os parlamentos) – nos possibilitou a assimilação da “justa relação” entre Estado e sociedade civil, ou seja, o modo como “a esfera política ‘restrita’(...) cede progressivamente lugar a uma nova esfera pública ‘ampliada’, caracterizada pelo protagonismo político de amplas e crescentes organizações de massa” (Coutinho, 1994, p. 53). O tema da sociedade civil percorre reiteradamente os textos de Coutinho, que desvenda com agudeza a intersecção entre as reflexões de Gramsci e de Hegel, bem como a diferenciação em relação à elaboração marxiana sobre o tema. Contestando as interpretações de Norberto Bobbio, Coutinho (1989, p. 74) assinala a clara relação entre estrutura e superestrutura, evidenciando como Gramsci, ao privilegiar o momento superestrutural na definição de “sociedade civil”, em caminho diverso ao de Marx, não deixa de reconhecer que a “base econômica determina as suas superes-

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truturas” e que a produção e a reprodução da vida material constituem-se nos fatores ontologicamente primários na explicação do processo histórico. Para Coutinho (2006, p. 54), a noção de sociedade civil é retomada em Gramsci como “eixo articulador de uma nova teoria marxista do Estado”, representando a forma original com que buscou elaborar a estratégia socialista para o “Ocidente”. Nesse contexto, a “guerra de posição”, e não mais a “guerra de movimento”, apresenta-se como a forma mais adequada na luta pela conquista da hegemonia, da direção política ou do consenso (Coutinho, 1989, p. 91). A discussão de Coutinho acerca da sociedade civil e suas trincheiras tem nos possibilitado, além de compreender como as classes exercem a hegemonia, buscando aliados para suas posições, discernir teórica e politicamente as várias concepções de sociedade civil em voga nestes tempos neoliberais de esvaziamento e despolitização do conceito, especialmente a partir da década de 1990. Ante a concepção de sociedade civil entendida como “terceiro setor”, situada para além do Estado e do mercado e regida por uma ótica “solidarista” e “filantrópica”, afiançada pelo neoliberalismo, Coutinho propõe a afirmação de um projeto de sociedade calcado na “democracia de massas”, que pressupõe “a proliferação dos movimentos sociais de base, a presença de um sindicalismo combativo e politizado (...) e a mediação política de partidos” no combate à apatia e à baixa participação política características do modelo societário contemporâneo, abordando o conceito gramsciano de sociedade civil não como “questão puramente acadêmica”, mas como “arena privilegiada­de luta de classe, uma esfera do ser social onde se dá uma intensa luta pela hegemonia” (Coutinho, 2006, p. 54). A atualidade do marxismo e do pensamento de Gramsci percorre a ampla produção de Coutinho, que, mesmo contestado em várias de suas argumentações, afirma, contra a corrente, que “sem democracia não há socialismo”. Suas reflexões nesse campo

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são revestidas de uma perspectiva revolucionária e anticapitalista, evidenciando a carência urgente de uma nova prática política, na qual democracia e transição socialista sejam radicalmente indissociáveis. Uma democracia que aprofunde os elementos democráticos já conquistados no contexto das estruturas capitalistas, nas quais também atuam os assistentes sociais, criando condições para a emergência da “sociedade regulada” projetada por Gramsci. É preciso, segundo Coutinho, pensar uma democracia “de baixo para cima”, uma democracia econômica, política e social “que vai se construindo a partir das lutas populares”, tornando-se, “a longo prazo, incompatível com o capitalismo” (Coutinho, 1994, p. 78). No transcurso dos anos 1990 e na transposição aos anos 2000, a divulgação do pensamento gramsciano e a referência de suas categorias na análise da realidade brasileira ocupam lugar de destaque nas intervenções de Coutinho, que retoma questões anteriormente discutidas acrescentando novos eixos analíticos, abordando o problema da imaginação crítica e o esforço de síntese histórica no sentido de resgatar e recriar a problemática teórica de Gramsci frente às intrincadas questões da sociedade presente e as possibilidades para transformá-la. Fecundas e instigantes são as análises sobre as relações entre Estado e sociedade, as respostas advindas da esfera estatal às expressões da questão social, tanto em períodos de “revolução passiva” quanto de contrarreformas, como vivemos na atualidade. Se a chave gramsciana de “revolução passiva” ou “revolução-restauração” é utilizada por Coutinho de modo a evidenciar o processo de modernização capitalista experimentado pelo Brasil – que ocorreu sem necessariamente realizar uma “revolução democrático-burguesa” – em períodos históricos diversos, como nos governos de Cardoso e de Lula da Silva, ele não deixa de analisar, também, as soluções da burguesia na combinação de dominação e direção hegemônica para a obtenção do consenso dos governados

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(Coutinho, 2008). Buscando “decifrar os enigmas do nosso tempo”, observa que as “revoluções passivas”, levadas a efeito em nossa realidade mediante o atendimento de parte das demandas da classe trabalhadora, são substituídas por processos de contrarreforma, de regressão de direitos sociais e do “aberto predomínio do privado sobre o público”. Para Coutinho (2010), estes são tempos em que impera a hegemonia da “pequena política”, pautada em “questões parciais e cotidianas” e construída através do “consenso passivo”. A ausência de participação das massas, que se resignam ante o existente como uma ordem natural, é fortalecida pelo transformismo aderente à realidade brasileira, seja pela via “molecular”, seja “pela assimilação de grupos ou classes sociais de oposição”. A prática do transformismo entranhou-se em nossa história e, no tempo presente, consolida-se, definitivamente com o predomínio da hegemonia da “pequena política” (Coutinho, 2010). Nesse contexto, revolução passiva e contrarreforma representam processos fundamentalmente antidemocráticos, que deslegitimam a “grande política” e as possibilidades de construção de um projeto contra-hegemônico pelas classes subalternas. A partir da obra de Coutinho, novos eixos analíticos trazidos do pensamento de Gramsci passaram, progressivamente, a ser incorporados pelo Serviço Social, abrindo possibilidades inovadoras para a reformulação de seus referenciais e suas ações interventivas, ou seja, motivando alterações significativas em seu estatuto teórico-político e prático-operativo. De uma forma ou de outra, as elaborações de Gramsci repercutiram fortemente na produção do Serviço Social em toda a década de 1980, resultando, nos anos 1990 e, especialmente, nos 2000, em livros, dissertações e teses acadêmicas ou ensaios publicados em revistas específicas da profissão e de outras áreas. Além de referenciadas nas produções intelectuais, as obras de Coutinho integram os currículos dos cursos de graduação e pós-graduação em várias disciplinas no campo dos

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Fundamentos do Serviço Social, promovendo discussões do Estado, da sociedade civil, das políticas e dos movimentos sociais. Defensor do pluralismo, avesso ao dogmatismo e ao sectarismo, Coutinho mantém com o Serviço Social uma interlocução renovadora, apontando a riqueza da profissão, suas possibilidades e limites, sua contribuição no processo de transformação da sociedade. Sua obra é fonte e desafio para o Serviço Social retornar a Gramsci com estudos mais aprofundados e maduros, o que tem contribuído efetivamente na renovação e no fortalecimento prático e teórico da profissão, fornecendo instigantes indicações nos campos político e ideológico, na formação de novas subjetividades e na aglutinação das forças das classes subalternas na luta por uma nova hegemonia. Carlos Nelson Coutinho (1989, p. 114) nos ensina que “reconhecer a universalidade de Gramsci não significa de nenhum modo (...) a suposição de que estejam contidas em sua obra respostas prontas e acabadas para todos os desafios teóricos e práticos que a realidade de hoje coloca aos marxistas”. Nessa direção, reafirma que o pensamento gramsciano apresenta-se como mais um caminho, e não o único, a possibilitar repensar as contradições e os desafios de uma “época complexa de transformações históricas” (Gramsci, 2002, p. 33), num movimento de conservação-superação. Assim, é na universalidade da obra de Gramsci, “no plano do método e dos conceitos básicos”, e não em afirmações literais colhidas arbitrariamente, que Coutinho indica sua fecunda contribuição para enfrentarmos os intrincados dilemas nestes “tempos difíceis”. O conjunto da obra de Coutinho nos possibilita, dessa forma, compreender com maior clareza os meandros da realidade brasileira de épocas pretéritas e presentes, com relevantes reflexões sobre as questões do Estado e suas instâncias jurídico-políticas e econômicas, bem como as formas de organização da sociedade

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civil, a questão cultural, a formação da identidade social, o senso comum, a função das ideologias e dos mitos – o que Gramsci, enfim, denomina conformismo. O domínio dessa esfera da cultura é fundamental aos assistentes sociais na medida em que suas ações profissionais são travadas em relação direta com as formas de vivência cotidiana dos sujeitos sociais. Além disso, a compreensão do processo de universalização da democracia, não restrita e limitada ao acesso aos direitos de cidadania, mas entendida como mediação à emancipação humana e à superação da lógica do capital, constitui-se em paradigma renovador do marxismo e da prática política dos diferentes sujeitos sociais. Se as ações profissionais do Serviço Social situam-se “predominantemente no terreno político e ideológico, com refrações nas condições materiais de existência dos sujeitos” (Iamamoto, 2007, p. 418), é também nesta esfera que as classes subalternas têm a possibilidade de construir novas subjetividades e estratégias políticas, voltadas tanto à transformação da esfera material como, também, à construção de uma hegemonia cultural e política, dada a emergência de um novo projeto societário. Enquanto prática profissional permeada pela segmentação da divisão social do trabalho própria da sociedade capitalista, o Serviço Social, no diálogo com o rico universo categorial presente na obra de Gramsci, encontra suportes teórico-metodológicos essenciais e imprescindíveis à apreensão das particularidades das ações profissionais. Contribui, desse modo, para o conhecimento e a desfetichização dos objetos ou das realidades particulares nas quais atua, superando sua aparente neutralidade e as (re)construindo através de sua vinculação com a totalidade da vida social (Coutinho, 1994). Inúmeras produções do Serviço Social revelam inegavelmente a riqueza de sugestões colhidas da obra de Coutinho, absorvidas no debate da profissão e na compreensão do papel de seus agentes em relação às situações desafiadoras deste século XXI. O legado

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gramsciano, aderente à realidade de sua época, aprendemos com Coutinho, é pleno de universalidade, capaz de estimular interrogações do passado que refletem sobre o presente, e prossegue suscitando “curiosidade e interesse” a todos aqueles abertos ao novo que ciclicamente irrompe na história e na política. As reflexões sobre o projeto socialista sonhado por Gramsci são resgatadas por Coutinho à luz da dimensão histórica radicalmente nova em que nos encontramos, num movimento de continuidade/ruptura, convocando-nos, como tão bem assinalou Ruy Braga (2011), “para uma tarefa a um só tempo teórica e política”, iluminando, com o “pessimismo da inteligência”, mas também com o “otimismo da vontade”, a urgente e inadiável tarefa da revolução. Referências BRAGA, R. Contracapa. COUTINHO, C. N. De Rosseau a Gramsci. São Paulo: Boitempo, 2011. COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Porto Alegre: Editora Campus, 1989. _______. Marxismo e política. São Paulo: Cortez, 1994. _______. Intervenções. São Paulo: Cortez, 2006. _______. Contra a corrente. São Paulo: Cortez, 2008. _______. A hegemonia da pequena política. In: OLIVEIRA, F. de; BRAGA, R.; e RIZEK, C. Hegemonia às avessas. São Paulo: Boitempo, 2010. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Sergio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, v. 5, 2002. _______. Homens ou máquinas. Escritos políticos. (Organização de Carlos Nelson Coutinho). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, v. 1, 2004. HENRIQUES, L. S.; NOGUEIRA, M. A. O Gramsci de Carlos Nelson Coutinho. In: Gramsci e o Brasil, 1999. Disponível em http://www. artnet.com.br/gramsci/arquiv96.htm. Acesso em 20/8/2012. HOBSBAWM, E. Gramsci e la teoria politica marxista. In: SANTUCCI, A. A. (org.). Letture di Gramsci. Roma: Riuniti, 1987.

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IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche. São Paulo: Cortez, 2007. NETTO, J. P. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 1991. SIMIONATTO, I. Gramsci: influência no Brasil, incidência no Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1995.

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Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No primeiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual? Não me recordo bem se Goethe distinguiu assim tão claramente um período de formação individual e outro das relações do indivíduo com a sociedade. Acho que, já na formação do indivíduo, a sociedade está presente: os indivíduos são produto da sociedade, e não o contrário. Feita essa observação, digamos metodológica, devo dizer que minha formação intelectual foi meio bizarra. A primeira coisa fundamental para tal formação, da qual me lembro bem, foi ter descoberto aos 14 anos, na biblioteca do meu pai, O manifesto comunista e Do socialismo utópico ao socia

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Entrevista a Marcos Nobre e José Márcio Rego publicada originalmente em Id. (orgs.), Conversas com filósofos brasileiros, São Paulo: Editora 34, 2000, pp. 373-399. Foi republicada pela Editora Cortez (Coutinho, C.N. Intervenções: o marxismo na batalha das ideias, São Paulo: Cortez, 2006, pp. 165-191) que gentilmente nos cedeu o texto para que fosse reproduzido aqui integralmente. (N. do O.)..

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lismo científico. Meu pai era poeta, com alguns livros publicados. Não era um grande poeta, mas tinha algum talento. Era deputado udenista, embora não fosse um conservador; era uma pessoa progressista, mas que, por injunções da política baiana, era ligado à UDN. E tinha na sua estante O manifesto comunista e Do socialismo utópico ao socialismo científico. A leitura desses textos foi um deslumbramento para mim. Acho que quem lê o Manifesto aos 14 anos e não tem a sensação de descobrir o mundo não vai muito longe na vida... É realmente um texto fantástico. Foi um marco no que eu chamaria, pomposamente, de “minha formação intelectual”. Li o Manifesto de um só fôlego, é um livro pequeno; e, tão logo terminei a leitura, já era comunista. Consolidei esse comunismo lendo Do socialismo utópico ao socialismo científico, também uma brochura muito interessante, uma parte do Anti-Dühring de Engels. E tomei algumas decisões. Uma delas foi a de fazer política, um pouco porque meu pai fazia e um pouco pelo avesso dele, já que eu ia fazer política pela esquerda e ele fazia pela UDN. Embora ainda não soubesse muito bem como ia fazer política, o fato é que a decisão estava tomada. Então, um aspecto interessante da minha formação intelectual, da minha opção por ser intelectual, ou seja, uma pessoa que trabalha com ideias, é o fato de que esta opção sempre esteve estreitamente articulada à minha decisão de fazer política. Nunca consegui distinguir entre ser comunista e ser intelectual. Não entrei no Partido Comunista imediatamente, até porque eu estava ainda no ginásio, entre o ginásio e o colegial, mas já me considerava comunista, já via o mundo deste ponto de vista. Li muito, minha formação intelectual foi essencialmente a de um autodidata; não tive nenhum mestre, ou seja, nenhuma pessoa mais velha que tenha me orientado nas minhas leituras. Lia o que me caía nas mãos, meio caoticamente. É verdade que tive um professor no terceiro ano do colegial, Paulo Farias; Paulo foi obrigado a se exilar

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em 1964 e nunca mais voltou definitivamente ao Brasil; é até hoje professor na Inglaterra, um dos maiores especialistas mundiais em muçulmanos negros. Paulo Farias era professor de História, marxista, filiado ao Partido, e me deu algumas boas indicações, entre elas uma pela qual lhe sou e lhe serei eternamente grato: foi o Paulo a primeira pessoa que me falou de Gramsci. Numa de minhas vindas ao Rio – eu devia ter uns 18 anos, na época –, comprei na Livraria Leonardo da Vinci uma edição argentina de Gramsci, El materialismo histórico y la filosofía de Benedetto Croce. Você vinha muito ao Rio de Janeiro nessa época? CNC: A partir dos 17 anos, vinha uma ou duas vezes por ano. Com cerca de 18 anos, fiquei amigo de Leandro Konder. Eu havia publicado em Ângulos, uma revista dos alunos da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, onde eu então estudava, um artigo chamado “Problemática atual da dialética”, que é indiscutivelmente um besteirol, mas um besteirol engraçado, porque eu citava Gramsci, citava Lukács. Um amigo comum, a meu pedido, deu essa revista a Leandro, que eu já conhecia por artigos publicados em Estudos Sociais, a revista teórica do PCB. Leandro me escreveu uma gentil carta, mas – e ele lembra sempre disso – uma carta muito ortodoxa, que dizia mais ou menos o seguinte: “Você está lendo autores meio heterodoxos; cuidado, você está com desvios um pouco idealistas”. Mas a partir daí nós ficamos muito amigos e esta amizade foi seguramente outra coisa muito importante em minha formação intelectual. O Lukács chegou como para você? Eu descobri Lukács quando ainda estava na Faculdade de Direito da Bahia. Na biblioteca da Faculdade, havia uma revista francesa com uma resenha sobre o recente lançamento na França de Histoire et conscience de classe. Aí anotei na minha listinha, vim

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ao Rio – em 1961, se não me engano – e, junto com o Gramsci, comprei também Histoire et conscience de classe, que foi um livro que também fez minha cabeça, embora eu hoje ache que não é o melhor texto de Lukács: é um texto problemático, mas certamente foi um livro muito marcante em minha formação. Foram essas opções intelectuais e políticas que me levaram a ingressar na Faculdade de Direito. Não que eu me interessasse especificamente por direito, mas porque a Faculdade de Direito era, na Bahia do início dos anos 1960 (mas já bem antes), a faculdade onde realmente se fazia política. Basta dizer, por exemplo, que, dos 450 alunos que a Faculdade tinha então, a base do PCB tinha cerca de 50 pessoas, ou seja, mais de 10%. Isso para não falar na JUC (Juventude Universitária Católica), que devia ter os seus outros 50, e nos grupos de direita, que também estavam mais ou menos organizados. Eu entrei na base do Partido tão logo entrei na Faculdade. Ou seja: entrei no curso de direito para fazer política, mas meu interesse teórico central, já nesse momento, era certamente a filosofia. Por isso, não terminei o curso de direito: no segundo ano, quando as disciplinas se concentraram em coisas insípidas como Direito Civil, Processual, Penal etc., eu desisti. Já estava fazendo a Faculdade de Filosofia em regime de disciplinas isoladas, acho que se chamava assim; graduei-me em filosofia, tornei-me bacharel em filosofia. Mas não aprendi nada, ou aprendi muito pouco, na Faculdade de Filosofia da UFBA. Aprendi talvez um pouquinho com o professor de História da Filosofia, Auto de Castro, que era um marxista kantiano – na época, não entendia bem como isso era possível, mas depois li Karl Vorländer, Max Adler etc., e soube que era possível, ou pelo menos que fora tentada a síntese. Auto era kelseniano e, ao mesmo tempo, marxista. Ele tinha uma certa informação em história da filosofia, a disciplina da qual era catedrático; Auto começava com os gregos e chegava até Kant, mas, de-

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pois de Kant, não dava quase nada. Até chegar a Kant, porém, ele tinha uma boa informação. Fui aluno também do Padre Francisco Pinheiro, que hoje não é mais padre, mas era na época; dava aula de batina e era tomista radical. Lembro-me de que um dia – eu era garoto, estava entrando na faculdade, devia ter uns 18, 19 anos – ele disse a seguinte barbaridade, com grande ênfase: “Nenhum pensador disse que a contradição é um fato objetivo. A contradição é sempre um erro lógico etc.”. Eu retruquei: “Mas, professor, o Hegel disse isso”. “Não, não disse”. No dia seguinte, levei o livro de Hegel e mostrei uma frase onde ele dizia isso explicitamente. Então, não aprendi nada na faculdade. Diria até que, ao contrário, se tivesse aprendido, teria sido desinformado. Na verdade, tinha pouquíssimos professores. O Padre Pinheiro era professor praticamente de todas as disciplinas: de Introdução à Filosofia, de Lógica, de Teoria do Conhecimento e de Metafísica. Tinha um outro professor, de Ética e Estética, que jamais deu uma aula. Passou 30 anos na universidade e, como me confirmou minha sobrinha, que foi aluna dele décadas depois, nunca deu uma aula com princípio, meio e fim. Morreu há alguns anos. Era uma pessoa muito simpática. Então, minha formação, como disse antes, é uma formação extremamente pessoal. Sou plenamente consciente de que todo autodidata tem limites. É claro que o treinamento sistemático que a universidade dá – uma boa universidade! – ajuda bastante. Li muito por minha conta, descobrindo meio casualmente os autores. Retomando o que disse antes: entrei na Faculdade de Direito e no Partido Comunista no início de 1961. No Partido, sei quando entrei, mas não sei exatamente quando saí; foi em torno de 1981, 1982. Formei-me em filosofia, mas não me licenciei, sou apenas bacharel, porque no último ano vim para o Rio de Janeiro. Vim para o Rio muito em função do golpe de 1964. Auto de Castro tinha me chamado para ser seu assistente. Ele era catedrático, e o

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catedrático na época convidava alguém para ser assistente. Essa possibilidade me agradou, mas o golpe foi uma coisa muito complicada para mim: respondi a um inquérito policial-militar e passei praticamente todo o ano de 1964 no Rio, evitando a prisão. Isso consolidou muito minha amizade com Leandro e, também, com outros intelectuais cariocas. Mas é engraçado lembrar que, ao fim deste inquérito, o coronel que o presidia acusou-me de ser um “marxista convicto e confesso”. Ele estava certo; e continuaria certo se me definisse deste modo ainda hoje. Foi assim que decidi vir definitivamente para o Rio. Fiz isso em 1965. Comecei então a trabalhar em tradução. Ainda quando morava na Bahia, traduzi, aos 22 anos, um livro de Gramsci, que ganhou no Brasil o título de Concepção dialética da história. Traduzi muito, mais de setenta livros. E demorei muito para reconhecer que era tradutor, porque sempre achava que estava fazendo um bico. Em dado momento, percebi que o volume de minhas traduções era uma coisa certamente significativa. E diria que essas traduções nem sempre foram traduções puramente profissionais. Há muitas que seguramente são. Mandavam-me o livro, e eu traduzia. Mas há um bom número delas que são também um trabalho de edição: sugestão minha ao editor, textos prefaciados, apresentados. Outro elemento importante a registrar, nesse período, é o fato de eu não ter feito pós-graduação. Não fiz pós-graduação durante muito tempo e não só porque pós-graduação praticamente não existia na época. O fato é que não tinha como meta entrar na Universidade, até porque era o período da ditadura, eu era (e sou) marxista “convicto e confesso”, e de modo explícito até, já que meus livros indicavam claramente essa condição: meu primeiro livro, Literatura e humanismo, de 1967, tem como subtítulo “Ensaios de crítica marxista”. Por isso, não me interessei muito em entrar na Universidade e nem sei se teria conseguido caso tivesse tentado.

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Já no início dos anos 1980, resolvi fazer um doutorado no IUPERJ, em Teoria Política. Mas não defendi tese porque, no final do doutorado – eu estava preparando uma tese sobre Gramsci –, abriu um concurso para professor titular na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual consegui me inscrever graças à atribuição de “notório saber”. Usei então a tese para fazer o concurso e, com isso, ganhei também o título de livre-docente, porque o concurso para titular era equivalente ao de livre-docente. Portanto, além de ganhar um emprego, ganhei um título. Minha carreira acadêmica é, digamos assim, meio torta, já que entrei por cima, graças a este notório saber. Depois de quatro anos dando aulas numa universidade privada, no Bennett, entrei na UFRJ em 1986, na Escola de Serviço Social. Estou, portanto, há mais de 20 anos na Universidade. E acho que só me aposentarei na compulsória. Voltando para a década de 1960. Parece que o ambiente intelectual paulista era muito diferente do ambiente intelectual carioca. A impressão que se tem, pensando em casos como o da editora e da revista Civilização Brasileira, é a de que, ao contrário do que ocorria em São Paulo, o debate intelectual no Rio de Janeiro era de um modo geral menos restrito, menos universitário, menos homogêneo do ponto de vista dos seus participantes. Sem dúvida. Em que medida isso foi importante para que você não tenha se decidido a seguir uma carreira acadêmica no sentido clássico da palavra? Em que medida isso poderia explicar, por exemplo, as diferentes interpretações, os diferentes usos de Lukács, o que você fez e o que foi feito em São Paulo? É uma observação extremamente pertinente. Acho que o pensamento social e a cultura estética do Rio eram na época completamente diferentes dos de São Paulo. Não tínhamos uma inser-

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ção acadêmica nessa época: Leandro Konder, Ferreira Gullar, José Guilherme Merquior, eu e muitos outros não éramos da universidade. É possível que isso tenha provocado diferentes modos de entender Lukács. O nosso modo era mais voltado para a ação política. Nós três, Gullar, Leandro e eu, éramos claramente intelectuais políticos. Tentávamos evidentemente não reduzir o trabalho intelectual apenas ao uso político imediato, mas havia uma clara intenção de influenciar, de marcar posição, de abrir debates. O marxismo paulista é bem diferente: tem um viés acadêmico muito forte, no bom e no mau sentido. Acho, por exemplo, que não é casual que o marxismo paulista tenha dado uma figura como Fernando Henrique Cardoso. Marx é usado academicamente, mas quando se tomam decisões políticas, essas nada têm a ver com o marxismo. Não digo isso, evidentemente, de todos os marxistas paulistas. Considero Roberto Schwarz certamente o mais lúcido crítico literário brasileiro. Gosto muito do trabalho filosófico do Paulo Arantes. Acho que a fase marxista do Giannotti é extremamente rica. Mas diria que há diferenças, você observou bem, muito interessantes entre Rio e São Paulo. Não me parece casual, por exemplo, o fato de Gramsci ter um peso bem menor em São Paulo do que teve e tem no Rio. Um dos poucos marxistas paulistas que se interessou por Gramsci foi Paulo Arantes, que escreveu um belo ensaio sobre ele, que está no seu livro Ressentimento da dialética; mas certamente, mesmo em Paulo, Gramsci não é um autor determinante. Octavio Ianni também falou de Gramsci. Nos demais marxistas uspianos (e não considero o nordestino Chico de Oliveira um uspiano!), Gramsci não despertou interesse. Essa inserção “acadêmica”, digamos assim, tem um aspecto positivo, possibilita uma formação mais sistemática; mas ser autodidata tem também suas vantagens. Gramsci, por exemplo, não tinha curso superior; entrou na Universidade para fazer linguística, mas desistiu no meio do caminho porque envolveu-se full time na po-

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lítica. E é Gramsci. Mas acho que um certo treinamento sistemático, evidentemente, ajuda o desenvolvimento intelectual. Uma boa universidade, como é o caso da USP, ajuda seguramente nesse sentido. Na Bahia, em fins dos anos 1950 e começo dos 1960, havia um clima de grande efervescência cultural. Como foi essa experiência para você? Na virada dos anos 1950 para os anos 1960, houve de fato na Bahia uma floração cultural extremamente significativa. É neste período que surgem figuras como Glauber Rocha, João Ubaldo, Caetano, Gil e muitos outros. A Universidade Federal da Bahia, paradoxalmente, teve um importante papel nisso. Digo “paradoxalmente” porque o reitor da UFBA na época era Edgar Santos, uma figura conservadora, que passou décadas como reitor. Fizemos uma longa greve contra ele, achávamos que ele era reacionário. Talvez até o fosse no plano político, mas foi um reitor que deu muita importância às escolas de arte: abriu uma escola de teatro, uma escola de música, uma escola de dança, levou pessoas de fora para lá, o Luiz Carlos Maciel, o Koellreuter. Isso criou um ambiente propício a uma importante floração cultural. Outra figura muito marcante nessa época, lá na Bahia, foi Lina Bo Bardi. Dona Lina foi para a Bahia, vinda de São Paulo, para organizar o Museu de Arte Moderna e o Museu de Arte Popular da Bahia, e agitou muito o meio cultural baiano. Ela foi a segunda pessoa que me falou de Gramsci­, depois do Paulo Farias. Para Dona Lina, como a chamávamos carinhosamente, a Bahia era uma real expressão do que Gramsci chamava de “nacional-popular”. Talvez não seja bem assim, mas a presença dela foi uma coisa muito importante para minha geração. Contudo, o fato é que muitos de minha geração viemos para o Rio depois do golpe. E não fomos poucos – Noênio Spínola, minha irmã Sonia Coutinho, José Carlos Capinam, Geraldo Sar-

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no, Glauber Rocha e muitos outros. Encontramos aqui um clima cultural muito parecido com o clima cultural da Bahia. E, se me lembro bem, nenhum de nós veio para o Rio e entrou na universidade. Também veio Caetano, acompanhando Betânia, mas ele ficou na época entre o Rio e São Paulo. Caetano foi meu colega na Faculdade de Filosofia, mas não terminou o curso, coisa da qual se arrepende até hoje. Fomos colegas, ele era um ano mais atrasado que eu, embora seja um ano mais velho. Foi quando fiquei amigo dele. Caetano era crítico de cinema nessa época e fazia crítica para um revista chamada Afirmação, onde eu também escrevia. Aliás, lá escrevi um artigo grotesco, chamado “Irracionalismo: metafísica em pânico”. O título é engraçado, mas o artigo era muito ruim. Caetano, dizia eu, escrevia crítica de cinema e, de vez em quando, dizia assim: “Gente, eu fiz uma música”. Dessa primeira fase, lembro um samba que, muito no clima do CPC, afirmava: “O samba vai crescer/ quando o povo compreender/ que é o dono da jogada...”. Então, sempre digo: convivi com um gênio e não me dei conta. Consola-me pensar que, na época, Caetano talvez ainda não fosse um gênio... Quando você vai para a Itália na década de 1970, essa sua experiência italiana não foi de certo modo um “elevar a conceito” esse tipo de vínculo orgânico entre cultura e política que você estava perseguindo? Em dado momento, ficou impossível minha situação no Brasil. Mudei de casa, o Exército me procurou na velha casa, procurava minha mulher no trabalho, e eu tomei a decisão de sair do Brasil. Isso foi logo depois do assassinato de Vladimir Herzog, o Vlado. Escolhi ir para a Itália exatamente porque meu grande modelo era o Partido Comunista Italiano. Para muitos comunistas, o grande modelo era o PCUS, o Partido Comunista da União Soviética, e a própria União Soviética. Para mim, era o Partido

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Comunista Italiano. Minha grande dor não foi a queda do muro de Berlim ou o fim da URSS, mas o fim do Partido Comunista Italiano. Quando exatamente você foi para a Itália? No início de 1976. Minha decisão, como disse, tem muito a ver com minha admiração pelo PCI, mas também com os fatos, correlatos, de que o italiano é seguramente a língua estrangeira que domino melhor e de que Gramsci é um autor que sempre me fascinou. Modestamente, fui um dos primeiros a citar Gramsci no Brasil, já em meus artigos infanto-juvenis ainda publicados na Bahia. Mas, durante alguns anos, Gramsci ficou meio recessivo em minha produção intelectual, talvez porque tenha me dedicado nesta época a fazer crítica literária. Durante estes anos, Lukács assumiu para mim um lugar mais destacado que o de Gramsci, embora o revolucionário italiano estivesse sempre presente em minha atividade intelectual. Quando voltei a me dedicar prioritariamente à filosofia política, em meados dos anos 1970, Gramsci reapareceu com força em minhas preocupações intelectuais. Hoje em dia mais ainda, já que minha principal ocupação agora é preparar uma edição crítica dos Cadernos do cárcere, que deve estar começando a ser publicada em novembro deste ano [1999]. Fui para a Itália sem emprego. Depois trabalhei muito, até profissionalmente durante algum tempo, no PCB no exílio; mas, no início, não tinha emprego, meu pai me mandava dinheiro. Pensei em aproveitar o tempo na Itália para fazer uma pós-graduação. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, na Itália da época, não existia pós-graduação! Agora existe, o chamado “dottorato di ricerca”. Assisti a algumas aulas na Universidade de Bolonha, onde me estabeleci, mas não fiz nenhum curso formal. Depois, em Paris, já no último ano que passei na Europa, também pensei em fazer um doutorado, mas aí as condições no Brasil permitiram a

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minha volta e eu terminei não fazendo o doutorado sobre Lukács, em que seria orientado pelo meu amigo Michael Löwy. Você voltou em 1980? Voltei no final de 1978, já que, em 1º de janeiro de 1979, acabava a vigência do AI-5. Cheguei à Bahia, me lembro bem, em 23 de dezembro de 1978. Fiquei então um ano e meio na Itália, uns três meses em Portugal, e um ano em Paris. Fiz muita política no exterior. Lá, além de redator da Voz Operária, o jornal clandestino do Partido, tornei-me assessor da Comissão Executiva do PCB. Minha ida para a Itália foi certamente um dos momentos mais importantes na minha formação política e intelectual. Lembro-me de que cheguei na Itália, liguei a televisão e vi Enrico Berlinguer, então secretário do PCI, dando uma entrevista na qual dizia mais ou menos o seguinte: “Sinto-me mais protegido, para fazer o socialismo que eu quero, sob o guarda-chuva da OTAN do que no Pacto de Varsóvia”. Eu, que ainda pensava com a cabeça de Palmiro Togliatti e, portanto, era bem menos crítico em face da URSS, pensei: “Mas esse cara é um traidor, isso é um absurdo completo”. Terminei, porém, a partir de minha experiência com o PCI, tornando-me “eurocomunista”. Tinha ainda alguns preconceitos “marxistas-leninistas” quando fui para a Itália. Nunca fui stalinista, até mesmo porque tive a sorte de ter entrado no PC quatro anos depois da denúncia dos crimes de Stalin. Nunca fui pró-União Soviética, sempre tive uma forte dúvida em relação ao socialismo que lá era construído, mas ainda tinha meus preconceitos. Dizer que a OTAN era melhor do que o Pacto de Varsóvia foi algo que me chocou profundamente. Mas, ainda que até hoje tenha dúvidas se essa era a real alternativa, aprendi muito nessa minha estada na Itália. Meu ensaio “A democracia como valor universal” não teria sido escrito se não fosse esse meu período italiano.

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A própria expressão “ democracia como valor universal” é de Berlinguer, como você mesmo escreve... Sim. No sexagésimo aniversário da revolução bolchevique, Berlinguer foi a Moscou e fez um discurso duro, em que dizia que a democracia é um valor histórico-universal irrenunciável. Gostei da expressão e a usei um pouco como slogan. Eu diria que o período que passei na Itália foi meu doutorado. Aprendi muito, foi muito importante para minha formação política e intelectual. Voltando ainda uma vez para a década de 1960. Três paradigmas teóricos marcaram o ambiente intelectual do período, a saber o estruturalismo, o existencialismo e o marxismo. Como você avalia esses paradigmas hoje, como é que você se relacionou com eles? No fim dos anos 1950 e início dos anos 1960, certamente dois paradigmas fortes eram o existencialismo e o marxismo. Eu me considerava marxista, mas um autor que me influenciou muito nesse período foi Sartre, provavelmente porque se aproximou do marxismo. Eu li, ainda em 1961, a Crítica da razão dialética, que achei – como ainda acho hoje – um livro genial. Foi sobre Sartre meu primeiro artigo “sério” – ainda infanto-juvenil, decerto, mas sério no sentido de que era mais trabalhado, menos irresponsável. O título original é “A trajetória de Sartre: do existencialismo à dialética”. É um ensaio muito simpático a Sartre, que aliás reproduzi em meu primeiro livro, Literatura e humanismo, embora numa versão modificada, mais “ortodoxa” e menos simpática a Sartre. Sobre este artigo, vivi uma experiência interessante. Eu queria publicá-lo na revista do PCB, Estudos Sociais. Mandei o artigo para a revista, ele passou um ano em discussão. Terminaram publicando, mas sob a rubrica inventada ad hoc de “Problemas em debate”. De qualquer maneira, publicaram; e eu diria que é um artigo bastante heterodoxo em relação ao “marxismo-leninismo” dominante na época. É uma defesa de Sartre. Lá digo claramente, por exemplo,

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que não existe dialética da natureza, que Sartre estava certo ao dizer que não existia dialética na natureza. O artigo usa Gramsci e Lukács, colocados como parceiros de Sartre numa comum batalha por um marxismo renovado ou “criador”, como dizíamos na época. Então, minha relação com o existencialismo, com Sartre em especial, foi boa. Nunca vi no existencialismo francês um inimigo a combater, ainda que tivesse divergências com ele. Com o estruturalismo, cuja onda foi posterior (e oposta) à do existencialismo, minha atitude, ao contrário, foi francamente negativa. A influência do estruturalismo se deu entre meados dos anos 1960 e início dos anos 1970. No Brasil, teve uma enorme influência. Em meu velho livro O estruturalismo e a miséria da razão, escrito em 1970 e publicado em 1972, fui em alguns casos muito duro na crítica do estruturalismo, particularmente de alguns autores, mas acho que foi justa minha ideia de que era preciso combater o estruturalismo. Em dado momento, com o esvaziamento cultural provocado pelo AI-5, com efeitos sobretudo na Universidade, o estruturalismo ocupou um lugar hegemônico em nossa cultura, sobretudo acadêmica, um lugar que antes não era só do marxismo, mas era também do marxismo. Ocupou de que maneira? Com toda aquela retórica de anti-ideologia, anti-humanismo, anti-historicismo etc. Então, na verdade, o estruturalismo serviu para desviar pessoas de uma análise crítica, dialética e racionalista do real. Acho assim que meu livro sobre o estruturalismo tinha sentido e foi útil. É muito curioso lembrar, por exemplo, que, antes deste meu livro, havia sido publicado um artigo de Otto Maria Carpeaux, chamado “O estruturalismo é o ópio dos intelectuais”. É um artigo panfletário, como o é toda a produção final do Carpeaux, brilhantemente panfletária. O sumo do artigo de Carpeaux­é: “Olha, os caras estão virando estruturalistas para poder sair da luta política”. Carpeaux tinha muita sensibilidade para detectar esse tipo de coisa. Aliás, é também curioso que o primei-

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ro longo artigo publicado no Brasil sobre Gramsci seja dele, um artigo que saiu em 1966 na Revista Civilização Brasileira. Então, o estruturalismo é bem diferente do existencialismo. Não aprendi nada com o estruturalismo. Aprendi com Sartre e, de certo modo, também com os outros existencialistas franceses. Sartre continua a ser um modelo para todos os intelectuais que entendem ser a política parte integrante de sua atividade especificamente teórica. Seria possível falar de uma “ filosofia brasileira”? Como você vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira? Quanto à primeira pergunta, acho que não. E isto em, pelo menos, dois sentidos. Em primeiro lugar, falando de modo geral, acho que não existe nenhuma “filosofia nacional”, muito menos uma “filosofia brasileira”. Álvaro Vieira Pinto tentou defender e praticar isso na época do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), escrevendo um grosso livro em dois volumes, chamado Consciência e realidade nacional. O Padre Vaz, quando ainda era de esquerda, escreveu uma bela resenha deste livro de Vieira Pinto para dizer examente isso: que não existe uma “filosofia nacional”. Aristóteles nasceu na Grécia, mas dificilmente você pode dizer, simplesmente, que Aristóteles era um “filósofo nacional grego”. A filosofia ou é universal ou não é. Claro que há um condicionamento histórico nacional da filosofia: Descartes não poderia ser alemão, é francês, mas é Descartes precisamente porque transcendeu o “francesismo” e se tornou uma referência universal. Em segundo lugar, penso que não houve ainda no Brasil – não sei se vai haver um dia – a criação de uma filosofia realmente original, quer dizer, uma corrente de pensamento ou um filósofo que possa ser comparado, por exemplo, ainda que cum grano salis, com um Kant, um Hegel, um Marx. A maioria dos filósofos brasileiros tem o seu autor estrangeiro, que é trazido para o Brasil, diria até abrasileirado, colocado dentro das condições do Brasil. Paulo

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Arantes tem o “seu” Hegel, Giannotti teve o Marx, hoje tem o Wittgenstein, Marilena Chauí tem o Spinosa, Marcos Nobre tem o Adorno, e, vamos lá, Carlos Nelson Coutinho tem o Gramsci. Parece-me, porém, que não existe ainda no Brasil uma filosofia própria, que nos permita dizer: “Aquele cara tem um pensamento próprio, estabeleceu uma corrente nova”. Talvez isso exista na Lógica, com o Newton da Costa. Mas Lógica, para mim, é um grande mistério. Mas é possível pensar em temas filosóficos pelo menos, como o tema da dialética, por exemplo. Pode-se dizer que há trabalho nesse campo. Sim, há trabalho nesse campo. Em todos os terrenos do pensamento filosófico e sobre um grande número de autores da história da filosofia, há importantes contribuições brasileiras ao desenvolvimento de conceitos universais e à reflexão sobre tais autores. Seguramente, por exemplo, os dois livros de Giannotti sobre o marxismo, Origens da dialética do trabalho e Trabalho e reflexão, são livros importantes, de nível internacional. O que eu estou dizendo é que não há, digamos, uma maturação que permita o surgimento de um filósofo que tenha um pensamento, um sistema próprio. Por quê? É uma boa pergunta. Por várias razões. Primeiro, porque a tradição filosófica no Brasil é débil. A filosofia se tornou uma coisa séria no Brasil quando se criou o “departamento francês de ultramar”, como diria meu amigo Paulo Arantes. Até então, reinava o dilentantismo. Eu disse a vocês que tive um professor que afirmou enfaticamente que nenhum pensador tinha dito que a contradição era objetiva e que ela não passava de um erro lógico. Então, acho que faltava realmente o caldo de cultura necessário.

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Este, aliás, é um problema geral da cultura brasileira, não se refere só à filosofia. Mas diria que, no caso da literatura, por exemplo, ocorreu a construção de uma literatura brasileira – Antonio Candido, aliás, mostrou isso muito bem –, que é muito mais sólida e está consolidada há mais tempo que a filosofia. Talvez agora se esteja criando realmente uma organização da cultura – para usar um termo gramsciano – que vai permitir, espero eu, que a filosofia tenha um desenvolvimento maior. Mas, de qualquer modo, já temos hoje uma produção filosófica extremamente importante. E diria que se trata, sem dúvida, de uma produção de nível internacional. Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o (s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje. Eu seria um pouco simplista e diria o seguinte: acho que o conceito que mais me marcou, que mais marcou minha produção teórica, foi o conceito de totalidade. Lembro-me de que, quando li (já lá se vão 40 anos) aquela célebre frase de Lukács – ou seja, “o marxismo se distingue da ciência burguesa não pela afirmação da predominância dos fatos econômicos, mas pelo princípio da totalidade” –, isso foi para mim uma iluminação. E, nesse sentido, valeria a pena pôr aqui um problema que deveria ter sido posto desde o início: embora eu esteja dando aqui uma entrevista para um livro de “conversas com filósofos”, nunca me considerei um “filósofo”. Nunca o fiz até porque nunca me preocupei muito com essa divisão departamental do saber. Nunca me preocupei em definir se estava escrevendo sobre literatura, sobre teoria política, sobre história do Brasil ou sobre filosofia. Quando o CNPq me pede para dizer qual é minha área do trabalho, sempre vacilo. Isso me parece estar ligado à minha condição de marxista. O que Marx era? O que Gramsci era? Gramsci era

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um filósofo, um teórico da política ou um folclorista (já que escreveu também sobre folclore)? Sinto-me sempre desconfortável quando escrevem “Carlos Nelson Coutinho, cientista político”. Isso realmente eu não sou. Adoro política, faço política, penso sobre política, mas “ciência política” para mim é uma coisa meio americana, esse negócio de fazer survey sobre voto, sobre eleição, sistema partidário – e não é isso que eu faço. Talvez eu pudesse me identificar como uma pessoa que faz filosofia política. Mas, como disse a vocês, sou absolutamente ignorante em Lógica, que é um terreno fundamental da filosofia. Fechado o parênteses, diria então que o conceito de totalidade foi um conceito que não desenvolvi teoricamente, mas que foi, digamos, meu norte metodológico. Outros dois conceitos, em duas fases diferentes da minha produção intelectual, marcaram-me certamente muito. O primeiro foi o conceito de razão, que recolhi em Lukács, e que corresponde ao meu período lukccsiano, ou seja, quando eu era fanaticamente lukacsiano. Qual é esse seu período fanaticamente lukacsiano? É o período que marca meus dois primeiros livros, Literatura e humanismo e O estruturalismo e a miséria da razão. Diria que, sobretudo nesse período, a categoria da razão foi muito importante para mim. Há uma coisa inteligente no livro sobre o estruturalismo – permitam-me o autoelogio –, que é a sugestão de que existe não só uma “destruição da razão”, o irracionalismo aberto, que Lukács havia exposto e criticado no seu injustamente desqualificado livro (um livro que tem muita coisa boa, ainda que haja momentos insuportáveis, como o epílogo escrito num clima de guerra fria), mas também uma “miséria da razão”, o empobrecimento da razão sob a égide do racionalismo formal. Embora na época eu não reconhecesse isso, este é um momento frankfurtiano da minha produção. Li muito os frankfurtianos, eles sempre me

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fascinaram (Dialética do esclarecimento foi um livro que também me marcou), mas – sob a influência de Lukács – sempre tomei minhas distâncias em face deles. Para os frankfurtianos, o inimigo fundamental não era o irracionalismo, diante do qual eles eram até condescendentes, mas essa razão empobrecida, essa razão eclipsada; a propósito, lembro de que um livro de que gostei muito foi o Eclipse da razão, de Horkheimer, que é uma crítica exatamente a essa razão que perde sua dimensão objetiva e se torna meramente instrumental. Na época, eu não reconhecia essa influência frankfurtiana. Para mim, era puro Lukács. Mas, certamente, a leitura dos frankfurtianos me ajudou a pensar essa questão dos dois modos de combater a razão dialética, isto é, ou abandonando-a ou miserabilizando-a. Houve depois um segundo período, o do meu reencontro com Gramsci, em meados dos anos 1970. Trata-se do momento em que minha preocupação teórica maior passou a ser a política, a reflexão sobre o estatuto ontológico da política, para usar uma expressão meio pedante. Isso está muito presente no meu livro sobre Gramsci, cuja primeira edição é de 1981 – acabou de sair há pouco uma nova edição, pela Civilização Brasileira, com várias alterações e acréscimos com relação à primeira. Já na primeira edição, minha proposta era a de entender a teoria política de Gramsci à luz das categorias ontológicas do último Lukács. Neste novo período, o tema talvez mais importante da minha produção foi a questão da democracia. Lembro aqui meu ensaio sobre “A democracia como valor universal”, que foi publicado em 1979 e que, sem falsa modéstia, teve uma importância muito grande no debate cultural e político daquele momento. Não tanto pelas suas qualidades intrínsecas – acho que é um ensaio que desenvolve pouco alguns conceitos, é sobretudo um texto de combate, simultaneamente contra a ditadura e contra o chamado “marxismo-leninismo” –, mas penso que, com ele, pus o dedo num tema que realmente

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era um tema “quente”, a exigir uma discussão. Tive a sorte, talvez mais do que o mérito, de ser a pessoa que desencadeou este processo de discussão. Mas, sinceramente, não acho que tenha criado nenhum conceito importante, nem mesmo tratado em profundidade os conceitos que nortearam minha produção intelectual. Mas penso que chamei a atenção para alguns conceitos, para alguns temas importantes. Nos velhos PCs, havia sempre uma seção chamada de “agitação e propaganda”. Acho que sempre fiz parte dela. Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciências e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade? Eu me pergunto: será que a filosofia estabeleceu sempre em sua história essa relação com o saber científico? Creio que, em dado momento, não havia uma distinção entre ciência e filosofia. Um pensador como Aristóteles, que é indiscutivelmente um filósofo, escrevia também sobre as partes dos animais, sobre física, sobre os meteoros, sobre a alma humana, sobre política, sobre ética; portanto, você pode dizer que Aristóteles era ao mesmo tempo um físico, um biólogo, um sociólogo, um politólogo etc. No caso das ciências naturais, a autonomia da ciência em relação à filosofia me parece uma coisa que não só ocorreu, mas que foi muito positiva. Certamente, o movimento que leva a esta autonomia é também um movimento filosófico; basta pensar em Descartes, Bacon, Galileu etc. Isso significa que a filosofia, em suas expressões mais avançadas, acompanhou e ajudou esse processo pelo qual a ciência natural se tornou autônoma. No caso das ciências sociais, o discurso é outro. O nascimento das chamadas “ciências sociais particulares” está muito ligado ao colapso do princípio da totalidade na reflexão filosófica. Lukács sempre insistiu nisso. Ninguém pergunta em que área do CNPq

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se situam pensadores como Rousseau, Montesquieu, Hegel. São filósofos, cientistas políticos, antropólogos, linguistas? Enquanto a burguesia foi uma classe progressista, o pensamento social – que tinha o princípio da totalidade como paradigma – ignorava solenemente a atual divisão universitária do saber. A partir do eclipse do princípio da totalidade – a partir, para falar mais concretamente, da dissolução da filosofia hegeliana –, surgem as tais ciências sociais particulares, que tentam dividir o social, fatiá-lo, e, como diz muito bem Lukács, desistoricizá-lo. O que falta às ciências sociais particulares, assim, não é apenas o princípio da totalidade, mas também a ideia da historicidade ontológica dos fatos sociais. Então, penso que a relação da filosofia com as ciências sociais particulares – e entendo aqui filosofia como teoria social global, como ontologia do ser social, como diria Lukács – é uma relação problemática. Não partilho do negativismo completo de Lukács, quando afirma que as ciências sociais particulares são simplesmente “ideologia burguesa”. Acho que não são só isso, mas creio que elas nos fornecem uma reflexão insuficiente sobre o social. Em consequência, a filosofia – como disse Lukács – tem o direito de exercer uma crítica ontológica das ciências, muito em particular das ciências sociais. Penso que é correto, por exemplo, mostrar que uma descoberta de Weber, para ter valor heurístico, para servir efetivamente à compreensão do real, tem de ser submetida a um tratamento ontológico, ou seja, tem de ser relacionada com a totalidade, tem de ser historicizada. As três formas de dominação legítima apontadas por Weber – legal-formal, tradicional e carismática – são certamente importantes para entendermos o problema da legitimidade, embora o próprio Weber saiba que elas são “tipos ideais”, que não existem como tais na realidade empírica. Mas Weber lhes dá um tratamento puramente formalista. Para nós, marxistas, seria um erro negar essas três formas; o que temos de fazer é dar-lhes conteúdo, ou

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seja, ligá-las à totalidade social e à história, ou seja, à formação econômico-social, à luta de classes etc. Mas essa posição parece se aproximar muito do programa de “Teoria tradicional e teoria crítica”, de Horkheimer... Sem dúvida. Talvez não seja o mais brilhante, mas é certamente o texto frankfurtiano com o qual mais me identifico. Para mim, o grande limite da Escola de Frankfurt não se refere tanto ao método que seus integrantes utilizam, mas à suposição de que o marxismo e suas promessas emancipatórias podem se sustentar sem a classe operária, sem o mundo do trabalho; é uma posição que aparece ainda hoje em autores como Claus Offe e Robert Kurz. Disso resulta o profundo pessimismo que marca os membros da Escola. Na verdade, parecia haver uma única e dura opção: ou aderir à União Soviética ou ficar com um marxismo meio etéreo, academicista, que não vai além da Kulturkritik. Não era, porém, uma opção inescapável. Cabe lembrar que, na mesma época, nos anos 1930, Gramsci redigia os Cadernos, nos quais, ao lado de uma proposta estratégica de revolução no “Ocidente”, podemos ler subsídios para uma crítica ao “estatolatrismo” stalinista. Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa sociedade. Como você se posiciona em relação a esse debate? A teoria hegeliana do fim da arte é uma teoria problemática e, certamente, em última instância, equivocada. Mas, ao mesmo tempo, resulta de uma das mais brilhantes realizações metodológicas de Hegel, ou seja, a tentativa de juntar sistema e história, de pensar as categorias teóricas à luz da sua historicidade. Lukács tem uma bela observação, no capítulo da sua Ontologia sobre Hegel, quando diz que o filósofo alemão tem uma ontologia verdadeira,

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que é uma ontologia baseada no ser, no movimento do ser, e tem uma ontologia falsa, logicista, uma tentativa de encadear os fenômenos a partir de uma lógica que não diz respeito à lógica do real, mas a uma lógica do pensamento. No caso da teoria do fim da arte, isso é muito claro. A lógica do sistema exigia que Hegel dissesse que o nosso tempo é o tempo da filosofia, do conceito, não mais da representação ou da intuição. Para ele, portanto, a arte romântica, aquela que lhe era contemporânea, já era uma arte em processo de dissolução; mas isso não o impediu, por exemplo, de ver que surgia então um gênero novo, o romance, que ele chamou de “epopeia burguesa”. Independentemente assim desse logicismo presente na teoria do fim da arte, Hegel colocou um problema importante: nem todas as épocas históricas são favoráveis ao desenvolvimento da arte. Recordemos a brilhante ideia de Marx, formulada na “Introdução de 1859”, de que a Ilíada e a Odisseia só podiam surgir na Grécia clássica, que nem Camões nem Voltaire escreveram ou podiam escrever uma verdadeira epopeia. Por quê? Porque cada época histórica tem uma expressão artística. E há épocas históricas desfavoráveis, pelo grau de alienação e de desintegração social, ao desenvolvimento da arte em geral ou de certos gêneros artísticos. Não sei se foi bem isso o que Hegel quis dizer, mas é possível ler assim a sua teoria. Imagine uma pessoa do século XXV, olhando para o século XX. (Para o século XIX, isso não vale. O próprio Hegel já era morto quando houve uma maravilhosa floração do romance, tanto francês quanto russo, cujas potencialidades ele já entrevira; mas houve também uma maravilhosa floração da pintura, com o impressionismo.) Será que uma pessoa do século XXV, refletindo sobre o século XX, achará que foi um período de grande floração artística, malgrado Thomas Mann, malgrado Kafka? Na pintura, algum pintor do século XX ficará? Na música

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erudita, algum grande compositor ficará? São perguntas que vale a pena fazer. Nesse sentido, acho que Hegel sugeriu uma questão sobre a qual devemos pensar. Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé? A religiosidade em minha família era bastante frouxa. Meu pai era ateu. Dizia ser agnóstico, mas era ateu. E minha mãe era uma kardecista muito pouco ortodoxa. Quando eu tinha 12 ou 13 anos, estudava, contra o parecer do meu pai, num colégio de irmãos maristas. Na época, tornei-me católico praticante (comungava, confessava), mas hoje vejo claramente que fazia isso para contrariar meu pai. Isso coincidiu, porém, com o momento em que li o Manifesto, quando percebi que era mais adequado me afirmar contra meu pai como comunista do que como católico. Então, com 14 ou 15 anos, abandonei o catolicismo e a religião em geral. Tornei-me ateu. Lukács tem um conceito muito significativo. Ele fala em “carecimento religioso”, algo que expressa uma necessidade de transcendência diante do fato de não se encontrar sentido real na vida efetiva, na vida entendida de modo imanente. Eu, feliz ou infelizmente, sou destituído de carecimento religioso. Mas entendo que haja pessoas que o experimentam. Marx dá à religião um tratamento que é esencialmente correto; como se sabe, ele considera a religião uma forma de alienação. Mas o fato é que, através dessa forma de alienação, manifestam-se com frequência exigências de justiça, sentimentos de solidariedade etc. Lembra-se sempre que Marx disse ser a religião o “ópio do povo”; mas, na mesma frase, antes de afirmar isso, ele diz também que a religião é “o grito da criatura oprimida”. Penso que se manifesta na religião uma demanda de justiça muito forte, algo que devemos, nós marxistas, não religiosos, levar em conta, já que se trata de um impulso frequentemente muito positivo para a transformação do mundo.

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Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem? Como marxista, evidentemente acho que a filosofia, em princípio, não pode ser calcada na linguagem, não pode partir da linguagem, tem que partir do trabalho, das interações que o trabalho cria e das formas superiores de atividade humana, que é aquilo que definimos como práxis. Habermas chamou a atenção para a distinção entre agir instrumental e agir comunicativo, entre trabalho e interação, mas acho que isso já está em Marx e no marxismo: e, neste caso, com a vantagem de evitar o dualismo problemático de Habermas. Certamente, quando Marx fala em forças produtivas, está falando em agir instrumental; quando fala em relações de produção, que é o modo pelo qual os homens se articulam entre si para desenvolver as forças produtivas e dominar a natureza, está falando em interação. Mas a ideia de que é preciso substituir o paradigma do trabalho ou da produção pelo paradigma da linguagem ou da comunicação me parece uma ideia equivocada. Diria o seguinte: os homens falam porque trabalham, porque precisaram colaborar entre si no processo de trabalho. Então, não me parece que, ontologicamente, a linguagem deva ser colocada antes do trabalho. A forma básica de ser do homem, a forma pela qual o homem se faz homem, está no processo de trabalho, no metabolismo entre o homem e a natureza, quando surge o agir teleológico, que só existe no ser social. Lukács tem uma categoria muito interessante, a categoria da “prioridade ontológica”. Ele diz mais ou menos o seguinte: o ser pode existir sem a cons­ciência, mas a consciência não pode existir sem o ser. Dizer que o ser tem prioridade ontológica sobre a consciência não significa dizer que há prioridade lógica ou axiológica, não quer dizer que o ser é melhor do que a consciência, não quer dizer que o trabalho é melhor do que a linguagem. Quer dizer apenas que, entre trabalho e linguagem, a

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prioridade ontológica é do trabalho. Nesse sentido, não partilho dessa inversão de paradigmas, embora reconheça a importância de estudar melhor a linguagem. Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia? Como disse antes a vocês, o segundo livro “sério” que li na minha vida foi Do socialismo utópico ao socialismo científico. Então, nós, marxistas, não damos à palavra utopia um sentido positivo. Damos a ela o sentido de uma coisa generosa, mas inexequível, irrealizável. Nesse sentido, não me identifico com a palavra “utopia”, não sou blochiano. Em vez de “utopia”, prefiro dizer que tenho um projeto de sociedade futura. Que projeto é este? Acho que algumas respostas a isso já ficaram mais ou menos claras no que disse antes. Continuo me considerando comunista, fazendo evidentemente uma distinção entre o comunismo como projeto de uma sociedade sem classes e o chamado “comunismo histórico”, ou seja, aquilo que se inicia com a revolução bolchevique de 1917, universaliza-se com a criação em cada país de uma seção (brasileira, italiana, japonesa) da Terceira Internacional, e leva finalmente à consolidação do despotismo stalinista. Há coisas certamente positivas nesta tradição – tenho uma identificação muito forte com a revolução bolchevique de 1917 –, mas são poucos os que ainda hoje se identificam com este tipo de comunismo. Ou seja: uma coisa é o projeto transformador que aquela revolução desencadeou, outra coisa são as formas concretas que o Estado soviético assumiu, sobretudo a partir do final dos anos 1920, quando Stalin rompeu com Bukharin e com a NEP (Nova Política Econômica) e estabeleceu uma política de industrialização acelerada e de coletivização forçada. A partir daí, instaura-se realmente um despotismo. Não hesitaria em utilizar para caracterizar este despotismo o termo “totalitário” – embora ele tenha origens não muito “pu-

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ras”, já que provém da politologia norte-americana –, no sentido de que na ex-URSS o Estado absorveu a sociedade civil, utilizou os organismos da sociedade civil como correias de transmissão do Estado-partido. Diria então que esse “comunismo histórico”, felizmente para nós, comunistas, foi condenado à lata de lixo da história. Mas permanece vivo o projeto comunista. Em que consiste? Trata-se do projeto de uma nova sociedade, de uma sociedade igualitária, sem classes, participativa e profundamente democrática. Entre outras, há uma afirmação que devemos rever no marxismo “clássico”: trata-se da teoria do fim do Estado, se por isso se entender o fim do governo, o desaparecimento de qualquer tipo de governo. Esta teo­ria está presente em Marx e Engels, mas sobretudo em Lenin: todos eles dizem que o Estado vai progressivamente se extinguindo ao longo da fase transitória entre o capitalismo e o socialismo, que eles chamaram – com um termo certamente infeliz – de ditadura do proletariado. Essa ideia de que o Estado vai se extinguir levou a que se deixasse de lado a discussão sobre a forma que o Estado deveria assumir no socialismo. Para que discutir as formas do Estado se ele vai desaparecer? Então, acho que a ideia do desaparecimento do Estado deve ser entendida apenas como uma ideia reguladora, no sentido kantiano, ou seja, como o empenho para que haja cada vez menos Estado, mas sem se supor que ele irá desaparecer completamente, pelo menos no horizonte temporal que podemos imaginar. Hoje, quando dizemos que somos comunistas, que lutamos pelo comunismo, devemos assim definir claramente o seguinte: qual vai ser a forma política do comunismo? Para mim, a forma política é um Estado de direito, com alta participação popular, com institutos de democracia de base corrigindo as deformações da representação. Deverá ser um Estado de Direito que tem instituições garantidas por uma Constituição, naturalmente refor-

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mável. Vocês poderiam me perguntar: mas o comunismo será o fim do mercado, a estatização de todos os meios de produção? Diria que não necessariamente. Estou convencido hoje de que elementos de mercado poderão persistir depois do desaparecimento do capitalismo – afinal, o mercado é uma forma de interação social que antecedeu o capitalismo, que existiu no escravismo, que existiu no feudalismo. Uma coisa é a generalização das relações mercantis, outra coisa é a existência de elementos de mercado subordinados a um controle social, ou, mais precisamente, ao planejamento. Atenção: não estou propondo uma “economia social de mercado”, uma forma mais “branda” de capitalismo; não sou social-democrata alemão. Penso, ao contrário, numa ordem social pós-capitalista, socialista, mas onde persistam algumas relações mercantis. E onde também possa haver um pluralismo de formas de propriedade. Podem coexistir a propriedade estatal – em vários casos, ela é absolutamente necessária – com formas de propriedade cooperativa, autogeridas, e até mesmo com formas de propriedade privada, em alguns setores. O boteco da esquina não deve ser estatizado; até mesmo uma pequena empresa pode continuar sendo propriedade privada. O que você acha da teoria da derivação do Estado? Do derivacionismo? Não é uma teoria que tenha me atraído muito. Acho que o Estado tem uma autonomia relativa muito grande; é muito difícil derivar todos os movimentos do Estado a partir da lógica do capital. Diria até mesmo que, frequentemente, há movimentos do Estado que são contrários à lógica do capital. Por quê? Porque o Estado não é simplesmente um instrumento na mão da classe dominante. O Estado capitalista não é mais – se é que alguma vez o foi, como o supuseram Marx e Engels na época do Manifesto – o comitê executivo da burguesia. Há uma definição de Poulantzas que me parece muito boa:

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o Estado é a condensação material de uma correlação de forças entre classes e frações de classes, com hegemonia de uma delas. É uma bela definição, que me parece valer também para o Estado socialista tal como eu o imagino. Enquanto no Estado capitalista há correlação de forças com hegemonia seja do capital financeiro, como agora, seja do capital industrial, como há algum tempo atrás, o Estado socialista é uma correlação de forças em que há hegemonia das classes trabalhadoras. Claro que há vários movimentos do Estado que são estruturalmente dedutíveis da lógica do capital. O Estado passou a intervir na economia em grande parte porque a lógica da acumulação o exigiu. Os marxistas franceses até criaram – os soviéticos também, mas os franceses com bem mais sofisticação – a teoria do chamado capitalismo monopolista de Estado: o Estado intervém porque está caindo a taxa de lucro, intervém em atividades não lucrativas para assim repassar mais-valia para o capital etc. Creio que o derivacionismo explica muitas coisas, mas não acho que explique o funcionamento global do Estado. O Estado tem sua lógica própria e essa lógica não está ligada apenas à lógica do capital, mas também e talvez sobretudo à lógica da luta de classes. Se se quiser deduzir de algum lugar a ação do Estado, esse lugar é a luta de classes, que é um fenômeno fundamental na explicação do social. Sou inteiramente contrário à ideia de que a luta de classes desapareceu, de que o conflito entre capital e trabalho se tornou apenas um conflito entre outros. Ao contrário, penso que continua a ser o conflito central. Não é o único conflito, evidentemente. Por isso, não posso explicar tudo a partir dele. Claro que não posso explicar a Nona de Beethoven­só a partir do conflito de classe. Mas vou ter que usar este conflito para avaliar profundamente o significado da Nona, ou seja, o contexto histórico concreto em que ela foi criada, isto é, o que a visão do mundo da burguesia revolucionária represen-

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tava naquela época, de que modo essa visão do mundo pôde se expressar materialmente nos maravilhosos sons daquela sinfonia. Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas? Como velho marxista que sou, vejo-os como resultados do capitalismo. Agora, Marx não viu uma coisa – entre as muitas que ele não viu –, que é a possibilidade real e concreta de que as forças produtivas se tornem forças destrutivas, que é a grande questão que os ecologistas colocaram. Há em Marx, e sobretudo nos bolcheviques, em Lenin, Trotski e até em Gramsci, uma concepção produtivista, que vê o socialismo como o permanente desenvolvimento das forças produtivas, como se a natureza fosse inesgotável. Hoje sabemos que não é. Então, esse é outro ponto em que temos de repensar o comunismo. Por que não pensar um comunismo com crescimento zero? Acho que isso é uma possibilidade real. Se a humanidade hoje distribuir bem o que produz, vai haver o suficiente para todos. Será que é preciso que todo mundo tenha três carros, quatro geladeiras, cinco televisões? Pode-se pensar em crescimento zero inclusive populacional. Marx acreditava que o comunismo seria o desenvolvimento radical das forças produtivas; com o fim do capitalismo, não haveria mais nenhuma barreira a esse desenvolvimento. Mas o fato é que há uma barreira, precisamente aquela colocada pelo limite ecológico. Você diria que a alternativa “socialismo ou barbárie” se coloca hoje ainda? Nós já estamos na barbárie. A barbárie deve ser entendida como um processo permanente de desagregação social, de decadência, de degenerescência, de anomia, que é o que estamos vendo

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e experimentando. Pensemos no caso da África. Lá, cerca de 30% das crianças nascem com Aids, há guerras civis permanentes, desagregação dos Estados e das sociedades, formação de cleptocracias, de poderes absolutamente corruptos. Por que isso aconteceu? A África se organizava tribalmente, com formas evidentemente pré-capitalistas, até pré-feudais. Chegou lá o colonialismo, num momento em que matéria-prima barata interessava ao capitalismo, desarrumou aquilo tudo, criou aqueles países que não existiam, cujas fronteiras até hoje nada têm a ver com a história das etnias; e, de repente, a África não interessa mais, não tem condições de participar da ciranda financeira, e largaram para lá. Acho que isso é barbárie. Como são barbárie, no mundo desenvolvido, as formas de violência crescente nas grandes cidades, a intensificação da alienação, a pasteurização, o embrutecimento cultural etc. Estamos diante de uma “banalização do mal”, que dissimula a barbárie. No que você mudou? De algumas coisas você já falou, de algumas mudanças nas suas concepções, e você destacou a importância do método de Marx como um revisionismo. No que você mudou realmente? É difícil para nós mesmos avaliar exatamente aquilo em que mudamos. Seguramente, mudei minha concepção de política cultural. Fui muito influenciado por um texto de Lukács que se chamava assim: “Franz Kafka ou Thomas Mann?”. Então, eu tinha sempre uma preocupação: “Fulano ou Beltrano?”, “Visconti ou Fellini?”, “Graciliano Ramos ou Clarice Lispector?”. Mudei quanto a isso: hoje, penso que devemos estar abertos, no terreno da cultura, para a pluralidade de todas as manifestações. Isso não significa, evidentemente, que devamos abandonar a capacidade de exercer uma crítica ideológica ou estética daquilo que nos parece equivocado. Isso vale também, portanto, para a arte; há manifestações artísticas que expressam visões do mundo equivocadas.

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Mas por que, em vez do ou/ou, não dizermos Kafka e Thomas Mann? Mudei também minha avaliação de Lenin. Eu o considerava o terceiro clássico do marxismo. Até um certo momento, o que Lenim dizia valia tanto para mim quanto o que diziam Marx e Engels. Não é essa minha posição hoje. Lenin é indiscutivelmente um grande revolucionário, mas também, além disso, um pensador brilhante. É responsável por reflexões importantes sobre vários temas. O conceito de “via prussiana”, por exemplo, que ele criou para conceituar a modernização capitalista da Rússia, é um conceito que me parece extremamente operatório para pensar, entre outros, o caso brasileiro. Também acho que a teoria leniniana do imperialismo, embora tenha sido formulada de uma maneira que não correspondia inteiramente à realidade – o imperialismo foi apresentado como “capitalismo em putrefação” etc. –, teve o mérito de chamar a atenção para fenômenos de acumulação internacional do capital, para uma nova etapa do capitalismo, na qual, de resto, estamos imersos ainda hoje. Mas, ao contrário, acho que Lenin está superado no que se refere à teoria do Estado e da revolução, na medida em que ele generalizou, transformando-as em categorias marxistas válidas em todas as condições históricas concretas do capitalismo, algumas determinações que só tinham vigência na realidade russa de seu tempo. Algo que Rosa Luxemburgo, na época, já tinha visto e criticado. Hoje, não me considero mais um “leninista”. Tenho grande apreço pela obra e pela ação de Lenin, continuo a aprender com elas, mas agora percebo não só o que nelas se tornou anacrônico, mas também o que já era equivocado no momento em que escrevia ou atuava. Em consequência, mudei também minha avaliação de vários outros autores marxistas, que durante muito tempo, sem maior reflexão, considerava “renegados”, como Kautsky, ou simplesmente equivocados, como Rosa Luxemburgo. Ou seja: passei a aceitar

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e a valorizar positivamente o pluralismo no interior do marxismo. Nesse sentido, não acho, por exemplo, que exista um “gramscismo”, embora a reflexão do pensador italiano seja aquela com a qual mais me identifico. Gramsci também diz coisas com as quais não concordo. No texto sobre “americanismo e fordismo”, por exemplo, Gramsci fez uma avaliação justíssima, ao apontar o “americanismo” como uma nova etapa do capitalismo, destinada a se expandir; mas, ao mesmo tempo, formula uma avaliação altamente positiva dos processos tayloristas de racionalização do trabalho, avaliação que me parece, no mínimo, problemática. Não é casual que não haja em Gramsci o conceito de trabalho alienado. Gramsci, como Lenin, achava que o taylorismo poderia e deveria ser utilizado também pelo socialismo. Temos aqui a expressão de um comunismo produtivista, de um comunismo próprio de países que ainda tinham ou têm de percorrer um longo caminho de desenvolvimento material para poder efetivamente implantar ou desenvolver o comunismo. Em suma, passei a considerar que a essência do método de Marx é o revisionismo. Afinal, o que é o método de Marx? É a fidelidade ao movimento do real. E o que é o real? É uma permanente dialética de conservação e renovação; usando uma bela expressão do jovem Lukács, o real é o jorrar incessante do novo. Portanto, se não renovo minhas categorias, se não as reviso para poder conceituar o real em seu incessante devir, sou infiel ao marxismo, ao método histórico-dialético de Marx. Seria absurdo imaginar que o mundo de hoje é igual àquele em que Marx viveu, há bem mais de um século atrás. Há outra boa afirmação de Lukács: podemos abandonar afirmações concretas de Marx, mas seremos ortodoxamente marxistas se formos fiéis ao seu método. E, sem dúvida, há várias afirmações de Marx que não mais correspondem ao real. Decerto, para entender o capitalismo de hoje, é preciso passar necessariamente por O capital de Marx; mas o que se lê nes-

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te livro magistral não é suficiente para entender plenamente nossa época. Disse em outro lugar e repito agora: para não sermos animais em extinção, os marxistas temos de ser animais em mutação.

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Sobre os autores

Aloísio Teixeira

O economista Aloísio Teixeira foi reitor da UFRJ por dois mandatos entre 2003 e 2011. Ocupou diversos cargos na administração pública entre o final dos anos 1980 e a década de 1990, como o de Superintendente Nacional de Abastecimento (SUNAB) e o de Diretor de Planejamento da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), dentre outros. Publicou dezenas de artigos científicos, é autor do livro O Ajuste Impossível: um estudo sobre a desestruturação da ordem econômica mundial e seu impacto no Brasil (Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994) e organizador de Utópicos, heréticos e malditos (Rio de Janeiro: Record, 2002). Celso Frederico

Professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e bolsista do CNPq. Dentre os seus vários livros, cite-se: Marx, Lukács: a arte na perspectiva ontológica. Natal: UFRN, 2005; Sociologia da cultura. L. Goldmann e os debates do século XX. São Paulo: Cortez, 2006; O jovem Marx:1843-1844.

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As origens da ontologia do ser social. São Paulo: Expressão Popular, 2009. Eduardo Granja Coutinho

Professor do Departamento de Fundamentos da Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autor de Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Rio de Janeiro: Ed Uerj, 2002. Organizou o volume Comunicação e contra-hegemonia. Rio de Janeiro: Ed UFRJ, 2008. Gaudêncio Frigotto

Professor do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor titular de Economia Política da Educação, aposentado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Dentre seus muitos livros, citamos: A produtividade da escola improdutiva. São Paulo: Cortez, 1984 (atualmente na 9ª edição); e Educação e crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1994 (atualmente na 6ª edição). Giovanni Semeraro

Professor associado da Universidade Federal Fluminense (UFF), atua na Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Educação. É coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Política e Educação (Nufipe). É pesquisador do CNPq e autor de Gramsci e a sociedade civil: cultura e educação para a democracia. Vozes: Petrópolis, 1999; e Gramsci e os novos embates na filosofia da práxis. Aparecida (SP): Ideias e Letras, 2009.

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Henrique Wellen

Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, é coautor (com Héricka Wellen) de Gestão organizacional e escolar: uma análise crítica. Curitiba: IBPEX, 2010, e autor de Para a crítica da Economia Solidária. São Paulo: Outras Expressões, 2012. Ivete Simionatto

Professora titular da Escola de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, autora de vários artigos em revistas profissionais e de Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social. São Paulo/Florianópolis: Cortez/UFSC, 1995. José Paulo Netto

Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor da Escola Nacional Florestan Fernandes. Da sua bibliografia, o título mais recente é a antologia O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. Leandro Konder

Professor universitário e conhecido filósofo marxista, é autor de larga bibliografia, na qual se destacam: Marxismo e alienação, O marxismo na batalha das ideias e A derrota da dialética (publicados pela Expressão Popular). Marcelo Braz

Professor adjunto e vice-diretor da Escola de Serviço Social da UFRJ e professor da Escola Nacional Florestan Fernandes. É autor de Partido e Revolução: 1848-1989. São Paulo: Expressão Popular, 2011; e de (com J. P. Netto) Economia Política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2011, 7ª edição.

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Marildo Menegat

Professor adjunto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Escola Nacional Florestan Fernandes. Autor de Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Faperj, 2003. Seu mais recente livro é Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan/ Instituto Carioca de Criminologia, 2012. Mavi Rodrigues

Professora adjunta III e diretora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010-2014). Pesquisadora do Nepem (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas). Tem vários ensaios publicados em revistas profissionais de Serviço Social. Michael Löwy

Pensador brasileiro que lecionou em universidades europeias, é um conhecido marxista da vertente trotskista, divulgado em praticamente todo o mundo. Sua longa bibliografia inclui títulos como Redenção e utopia. O judaísmo libertário na Europa Central. São Paulo: Cia. das Letras, 1989; A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998; A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis: Vozes, 2002. Organizou ainda O marxismo na América Latina. Uma antologia de 1909 aos dias atuais. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999. Milton Temer

Jornalista, oficial da Marinha expurgado em 1964, teve destacada intervenção na luta interna do PCB no exílio, vinculado à “corrente renovadora” de que fez parte Carlos Nelson Coutinho. De volta ao país após a anistia, participou ativamente das lutas da

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esquerda, foi duas vezes eleito deputado federal pelo PT e é hoje uma das lideranças nacionais do Psol. Ranieri Carli

Professor adjunto do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense/UFF, é autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2012. Publicou também Educação e cultura na história do Brasil. Curitiba: IBPEX, 2010. Rodrigo Castelo

Economista, doutor em Serviço Social, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNI-RIO. Organizou o volume coletivo Encruzilhadas da América Latina no século XXI. Pão e Rosas: Rio de Janeiro, 2010. Virgínia Fontes

Professora da pós-graduação da EPSJV/Fiocruz e da Área de História da UFF. Docente da Escola Nacional Florestan Fernandes e pesquisadora do CNPq. É autora de Reflexões im-pertinentes. História e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005; O Brasil e o capital-imperialismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2010.

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CNC e a filha Natália (Veneza, finais de 1976)

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CNC junto à unidade acadêmica onde lecionou por 25 anos (Praia Vermelha/RJ, 1989)

“Os 3 mosqueteiros da esquerda”: Milton Temer, CNC e Leandro Konder (Rio de Janeiro, 2000)

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CNC no túmulo de Antonio Gramsci (Roma, 2007)

CNC junto à Casa Museu de Antonio Gramsci (Alez, Sardenha, 2007)

CNC e José Paulo Netto (Lisboa, foz do Tejo, 2010)

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CNC em Lisboa (2010)

CNC (ao lado de Cristina Bezera) é homenageado na ENFF (Guararema-SP, 2011)

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CNC em foto de 2008

CNC com Andrea (sua companheira), José Paulo Netto, Leila Netto e Carlos Montaño (Coimbra, 2010)

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CNC recebe o título de Professor Emérito da UFRJ (2012)

Última foto de CNC com a filha Natália (2012)

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