169 2 8MB
Portuguese Pages 194 Year 2004
Bioética: princípios morais e aplicações Darlei Dall’Agnol
Revisão de provas
Paulo Telles Ferreira Projeto gráfico, diagramação e capa
Carolina Falcão
Gerência de produção Maria Gabriela Delgado
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Bioética: princípios morais e aplicações / Darlei DallAgnol Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
200p.; 14 x 21cm Inclui bibliografia ISBN 85-7490-321-3 1. Bioética.
2. Filosofia moral.
I. Título.
Darlei Dall’Agnol
Bioética: princípios morais e aplicações
DP&A editora
© DP&A editora Ltda.
Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer
meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se
também às características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos autorais é punível como crime
(Código Penal art. 184 e §§; Lei 6.895/80),
com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais -
arts. 122,123,124 e 126).
DP&A editora Rua Joaquim Silva, 98 - 7° andar - Lapa CEP 20.241-110 - RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL Tel./Fax: (21) 2232-1768 E-mail: [email protected] Home page: www.dpa.com.br
Impresso no Brasil 2004
Para Mauro,
pelos serviços prestados à saúde e pelo apoio aos meus primeiros estudos.
E a vida? E a vida o que é, diga lá, meu irmão?
Ela é a batida de um coração? Ela é uma doce ilusão? Mas e a vida? Ela é maravida ou é sofrimento?
Ela é alegria ou lamento?
O que é? O que é, meu irmão? Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo. É uma gota, é um tempo que nem dá um segundo.
Há quem fale que é um divino mistério profundo. É o sopro do criador, numa atitude repleta de amor. Você diz que é luta e prazer. Ele diz que a vida é viver.
Ela diz que melhor é morrer. Pois amada não é, e o verbo é sofrer. Eu só sei que confio na moça.
E na moça eu ponho a força da fé. Somos nós que fazemos a vida.
Como der, ou puder, ou quiser. Sempre desejada, por mais que esteja errada.
Ninguém quer a morte, só saúde e sorte. E a pergunta roda, e a cabeça agita. Eu fico com a pureza das respostas das crianças.
É a vida! E bonita e é bonita! (Gonzaguinha, O que é O que é)
Sumário
Apresentação
11
Introdução
13
capítulo 1
O principialismo na bioética
27
capítulo 2
Princípios éticos teleológicos
61
capítulo 3
Princípios éticos deontológicos
89
capítulo 4
A procura pela “Teoria X”
131
capítulo 5
O princípio da reverência à vida
157
Reflexões finais
185
Referências bibliográficas
193
Apresentação
Esse livro apresenta os resultados das pesquisas realizadas entre
agosto de 2000 e dezembro de 2002, com uma revisão no início de
2004. A partir de um projeto desenvolvido na UFSC, procurou-se analisar criticamente o “utilitarismo kantiano” de Hare aplicandoo a problemas de bioética. O projeto foi, quanto ao mérito, aprovado
pelo CNPq, embora não tenha recibo inicialmente apoio financeiro.
O presente projeto “Seguir uma regra: as contribuições de Wittgens tein ao debate metaético entre cognitivistas e nâo-cognitivistas” também foi aprovado e conta com apoio do CNPq, ao qual sou grato
no processo de revisão. A proposta inicial logo foi ampliada em duas direções básicas: (i) no sentido de analisar o “principialismo” enquanto teoria ainda
predominante acerca dos fundamentos da bioética; (ii) no sentido
de comparar a principal teoria aqui estudada com outras posições na bioética como, por exemplo, daqueles de argumentam a partir do valor intrínseco da vida. Tanto num caso quanto noutro, sentiu-se
a necessidade de rever filósofos clássicos da moral tais como Kant e Mill e seus desdobramentos atuais. O resultado dessas pesquisas é
a proposta defendida nesse livro.
O trabalho beneficiou-se dos cursos oferecidos no curso de PósGraduação em Filosofia da UFSC, na medida em que houve uma apresentação geral dos argumentos aqui defendidos, seguidos de
discussão. Por esse motivo, gostaria de agradecer a todos os alunos
das turmas de 2001, 2002 e 2004 que contribuíram para a sua realização, especialmente Sandra Campi e Franciele Bete Petry. Além disso, diferentes seções desse livro foram apresentadas em congres sos em MG, RJ, RS, SC e SP e foram melhoradas a partir das con tribuições de diferentes audiências. Algumas partes foram também
discutidas no Mestrado em Biotecnologia e no Curso de Especia DP&A editora
12
Bioética
lização em Biossegurança da UFSC, apoiado pelo CNPq. Finalmente, o trabalho beneficiou-se dos debates nas aulas da disciplina “Ética,”
do Curso de Medicina da UFSC. Gostaria de agradecer, de modo especial, a Milene Consenso
Tonetto por ter lido todo o trabalho e por ter discutido comigo as mais
diferentes questões bioéticas.
Introdução
O que é bioética? O termo “bioética” foi, primeiramente, utilizado pelo médico norte-americano V. R. Potter no início da década de 1970. Em seu
livro Bioethics: a bridge to the future, Potter defendeu uma nova abor dagem, menos científico-tecnicista e mais humanista, de alguns problemas vitais para o ser humano incluindo uma visão global de temas relacionados com a vida, por exemplo, o meio-ambiente. Es ses problemas eram tão sérios que estariam colocando em risco a
própria sobrevivência da vida humana e requeriam uma nova ética. Procurou, então, superar a dicotomia entre, de um lado, fatos ex
plicáveis pela ciência, e, de outro lado, valores estudáveis pela ética. Essa dicotomia (is-ought gap) tinha predominado na reflexão filosófico-científica moderna e seria a principal causa dos perigos atuais
pelos quais estaria passando a existência humana e a vida em geral. Por isso, a bioética, como é evidente no uso do prefixo “bio”, nasceu
como uma preocupação ética pela vida em seus aspectos mais gerais. Nos últimos trinta anos, a bioética cresceu rapidamente como
área de conhecimento e tornou-se particularmente importante nas ciências relacionadas com a vida humana, tais como a medicina, a enfermagem, a biologia, o direito etc. apesar de ser um objeto de es tudo interdisciplinar e ter ocupado também lugar central na filosofia
moral. E comum falar-se, hoje, em biomedicina, biodireito, biotec-
nologica... A abordagem predominante acerca dos fundamentos da bioética
é, atualmente, conhecida como “principialismo” e foi elaborada a partir do Relatório Belmont sendo melhor sistematizada pelos eti-
cistas Beauchamp e Childress. No livro Principles ofBiomedical Ethics,
primeiramente publicado em 1979, eles sustentaram que a bioética deveria ser pautada por quatro princípios básicos: respeito à auto DP&A editora
Bioética
14
nomia ..não-maleficência,-beneficência ejustiça. Apesar de existirem
diferentes enfoques teóricos (mais adiante será apresentada uma visão mais ampla da história da bioética e das suas perspectivas atu
ais), o principialismo ainda é a principal fonte de discussão e reso lução de temas que dizem respeito aos fundamentos dabioétiçg,. No Brasil, a Resolução/Í9€jáio Conselho Nacional de Saúde, de outubro de
1996, adotou o principialismo como base ética das pesquisas envol vendo seres humanos. No seu preâmbulo lê-se: “Esta Resolução
incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro re
ferenciais básicos da bioética: autonomia, não-maleficência, benefi cência e justiça, entre outros, e visa assegurar os direitos e deveres
que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado.” Também a CTNbio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), na sua Instrução Normativa 9, de 10/10/97, adota o
principialismo como base ética para regular certas questões de bios-
segurança, em especial, aquelas envolvendo a intervenção genética em seres humanos. Citando o preâmbulo: “todo experimento de in tervenção ou manipulação genética em humanos deve ser conside
rado como Pesquisa em Seres Humanos, enquadrando-se assim na Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, e obedecendo
aos princípios de autonomia, não-maleficência, beneficência ejus tiça.” Como podemos constatar, o principialismo fornece a base ética
para a legislação brasileira que normatiza questões bioéticas e de biossegurança.
Apesar do sucesso do/principialismo) uma série de problemas
levou muitos bioeticistas a procurarem enfoques éticos diferentes. .Por exemplo, a chamadajética de virtudesf, baseada na insistência aristotélica do valor do caráter do agente e das suas qualidades mo
rais, vem sendo uma alternativa para alguns bioeticistas que pensam
que\princípio$desempenham um papel secundário na vida moral. Além disso, uma série de críticas ao principialismo fez com que seus
autores repensassem, nas edições subsequentes do livro acima ci
tado, especialmente na quinta edição, as pressuposições mais gerais
Introdução
15
dessa teoria bioética. Uma razão elementar para fazer isto nova
mente é que o principialismo foi formulado como base da ética bio-
médica e não da. bioética em geral. Ainda hoje, no Brasil, alguns confundem a bioética com a ética médica. A referência ao livro de
Beauchamp e Childress feita por Costa, Garrafa e Oselka (1998) na
apresentação do livro Iniciação à Bioética como “The Principles of Bio
ethics” parece ser mais do que um simples erro. O objetivo geral do presente trabalho é repensar os funda mentos da bioética tal como eles são formulados no principialismo.
A partir de uma reconstituição detalhada das duas principais teorias
éticas que forneceram a base conceituai para a formulação dos prin
cípios acima citados, a saber, o utilitarismo e a ética kantiana e das principais tentativas de síntese destes modelos, será argumentado
que uma reflexão mais aprofundada sobre o valor da vida é neces sária para compreender adequadamente o alcance e os limites do
principialismo. Em outros termos, será sustentado que somente uma reflexão filosófiç&sobre o valor intrínseco da vida fornece razões sólidas parâ uma compreensão adequada da base teórica da bioética e para uma tomada de decisões políticas e pessoais dos problemas relacionados com a existência humana. Por conseguinte, além da vi
discussão de outros princípios éticos no principialismo a partir do utilitarismo e do kantismo, será argumentado que o princípio da reve- ,/
rência à vida é fundamental para a reflexão bioética. Finalmente, o livro discute a necessidade de pensarmos em um critério objetivo,
talvez um metaprincípio, capaz de regular a aplicação das quatro nor
mas básicas da bioética. Antes de apresentarmos as razões para pensarmos assim, con
vém explicar melhor o que é a própria bioética. Como veremos, a bioética é a parte da ética prática que estuda os problemas morais rela-*
cionados com o início, o meio e o fim da vida. Para que possamos ter uma compreensão mais precisa dessa parte da ética, é necessário enten
dermos de forma mais ampla a própria ética, ou seja, a filosofia da moral. Assim, faremos agora uma breve apresentação da ética sa
Bioética
16
lientando o lugar que nela ocupa a bioética e, posteriormente, fare mos uma discussão mais detalhada das principais visões sobre os
fundamentos da bioética.
Apesar do fato de que as pessoas normalmente usam a palavra “ética” e seus cognatos (ético, antiético etc.) como sinônimo de “mo ral”, é preciso estabelecer um sentido mais específico para esta pala
vra num contexto de discussão racional sobre os problemas bioéticos. Por isso, vamos definir aqui a “ética” como uma reflexão filosófica sobre a moralidade. Isto é pertinente porque a preocupação central
desse livro está relacionada com os fundamentos da bioética, isto é, com um problema filosófico. A reflexão é filosófica porque usa o
método especulativo (e não o experimental) que é essencialmente
interrogativo, além de argumentative e crítico, e procura compreen
der os fenômenos bioéticos a partir de uma visão do mundo como um todo. Nesse sentido, distingue-se de uma investigação científica,
por exemplo, sociológica sobre os problemas bioéticos que usaria a observação, a análise de dados, que construiría hipóteses que deveríam ser testadas para serem leis e constituírem teorias. Por
isso, não se pode esperar encontrar aqui, por exemplo, uma inves
tigação sociologia sobre o aborto ou sobre qualquer outro problema
específico da bioética nem uma antropologia dos costumes ou uma etologia. Tampouco a perspectiva é simplesmente interdisciplinar:
a filosofia já é, enquanto tentativa de compreensão da realidade
como um todo, por si só, intra- e transdisciplinar. A4noral7por sua vez, pode ser definida como o conjunto de cos tumes, modos de ser, regras etc. que efetivamente guiam o compor tamento humano na busca do bem. Como pode ser visto, estamos
preocupados, aqui, com um problema herética* a saber, com os fun damentos, da bioética. A ética trata da justificação das nossas crenças morais. Exemplo de um problema de fundamentos da bioética pode
ser o seguinte: podemos justificar (e de que modo) a interrupção de uma gestação de uma vida humana?
Introdução
17
A ética pode ser apresentada de dois modos distintos. Um deles, que poderiamos chamar de “corte horizontal”, distingue três dimen sões básicas da reflexão filosófica sobre a moralidade: a metaética,
a ética normativa e a ética prática (ou aplicada). Essas três dimensões possuem problemas bastante distintos apesar do fato de eles não poderem ser separados. Outra divisão fundamental na ética diz res
peito às teorias normativas que podem ser elaboradas. E comum
encontrar aqui um “corte vertical,” quer dizer, uma tentativa de apli
car princípios a situações concretas. A divisão mais comum neste sentido é entre teorias éticas teleológicas (do grego, telos = fim) e deontológicas (do grego, deon = dever) que usaremos para fins de maior compreensão do principialismo. A seguir, vamos analisar mais
detalhadamente cada uma dessas distinções. A metaética é uma reflexão filosófica sobre a forma e a natureza
da própria ética. Por exemplo, é uma questão metaética saber se a
ética deve procurar constituir-se como uma ciência, se ela deve ten tar elaborar teorias, constituídas de princípios e regras etc., ou se ela
não pode ser vista como uma atividade científica como outra qualquer. Essa é uma questão metaética importante para a bioética,
pois atualmente há várias tentativas de explicar o comportamento moral a partir da constituição genética das pessoas e da teoria evolucionista. Convém também lembrar que a bioética surgiu como uma tentativa de superar a dicotomia entre fatos e valores (is-oughtgap)
e, por conseguinte, a partir de uma perspectiva metaética determi nada. Outra questão metaética importante para a bioética é saber
se são os princípios ou as virtudes que devem ser tomados como cate gorias morais fundamentais. Por isso, na medida em que estamos
refletindo sobre a natureza das questões éticas, estamos fazendo algo que é distinto das questões normativas e práticas.
Os principais problemas metaéticos podem ser assim enuncia dos: como podemos definir termos morais básicos tais como “bom”,
“mau”, “correto”, “dever” etc?; qual é a natureza dos julgamentos
Bioética
18
morais?; será que eles expressam fatos ou será que eles expressam as emoções, os sentimentos, as atitudes de quem julga moralmente?; é possível derivar dever-ser de ser?; os juízos morais são objetivos ou
não?; há fatos morais independentes do sujeito que julga moral mente? Como podemos perceber, a metaética busca a clarificação conceituai antes da orientação prática para os problemas morais con
cretos do cotidiano. Ela é uma reflexão sobre a linguagem moral e está preocupada com problemas metodológicos, lógicos, epistêmicos e ontológicos que surgem a partir de uma reflexão filosófica sobre a
moralidade. Assim, os problemas metaéticos possuem prioridade para o filósofo apesar do fato de que os problemas morais práticos possuam maior importância sob o ponto de vista cotidiano, pessoal e social. O quadro abaixo nos dá uma idéia aproximada das principais
questões e teorias metaéticas: Objetivismo
Antiobjetivismo
1) Semântica moral: ocupa-se com o significado da linguagem moral
Cognitivismo: a linguagem moral é preposicional (possui valor-de-verdade)
Não-cognitivismo: a lingua gem moral é emotiva
2) Ontologia moral: preocupa-se em saber se há fatos morais
Realismo: há fatos morais que são independentes de nossas crenças
Anti-realismo: não há fatos morais
3) Epistemologia moral: quer saber Não-ceticismo: o conheci se temos conhecimento moral mento moral é possível
Ceticismo: não há conheci mento moral
Durante muito tempo, alguns eticistas pensavam que os pro blemas metaéticos eram os únicos genuinamente filosóficos. To
davia, essa posição tem perdido adeptos recentemente. Assim, pa
rece ser mais razoável acreditar que os problemas metaéticos devem ser analisados pelos filósofos com vistas à elaboração de uma teoria
normativa mais adequada. Portanto, as questões metaéticas não são fins em si mesmas. O esclarecimento conceituai produzido pelas análises metaéticas auxilia o bioeticista a ver mais claramente os problemas morais que possuem grande relevância na vida cotidiana
das pessoas.
Introdução
19
Como dissemos acima, um problema metabioético importante,
que vem desde Potter, e a relação entre fatos e valores, entre ser e
dever-ser. A própria bioética nasceu de uma tentativa de re-unir es tes dois âmbitos que teriam sido separados por algumas teorias
éticas modernas como, por exemplo, pela filosofia kantiana. Assim, a questão de saber se é possível inferir um dever-ser do modo como
as coisas são é central para a bioética, principalmente hoje quando muitos bioeticistas procuram as bases de suas reflexões éticas na
biologia e, mais especificamente, na genética. Se a nossa constituição bioquímica fosse um fundamento seguro para a metabioética, então teríamos assegurado uma forte tendência cognitivista e realista de
resolução de problemas bioéticos. Tendo apresentado uma visão geral da metaética, podemos discutir a ética normativa. Em primeiro lugar, cabe observar que a
expressão “ética normativa” pode ser contraposta à “ética descritiva”. Mas a metaética ocupa-se de problemas que são claramente des
critivos e, assim, nossa classificação tríplice é mais adequada para salientar a parte prática da ética. Agora, a preocupação básica da ética
normativa é estabelecer um critério (princípios, virtudes, valores
etc.) para distinguir entre o bom e o mau, o correto e o incorreto. Isto pode ser feito de diferentes maneiras. Alguns filósofos, como Kant
e Mill, tentam estabelecer um princípio único para julgar a legiti midade de certas regras. Outros filósofos, como o intuicionista Ross,
acreditam que há uma. pluralidade de princípios e que não é possível
subsumi-los num único. Nesse sentido, o principialismo foi formu lado a partir de uma base filosófica intuicionista e não kantiana ou utilitarista e este é outro tema que o presente trabalho pretende
rediscutir. Outros eticistas, seguindo uma orientação aristotélica,
sustentam que a pessoa virtuosa é a medida daquilo que é correto.
Há também filósofos da moral, por exemplo Rawls e Habermas, que elaboram um procedimento de decisão das obrigações básicas. Outro
modo de fazer a diferenciação entre correto e incorreto consiste em
estabelecer certos valores que, então, seriam vistos como fins para
Bioética
20
o agir humano e, posteriormente, sustentar que as ações são boas
ou más na medida em que são meios adequados ou não para atingir estes valores vistos como ideais. Assim, as teorias da ética normativa
podem ser classificadas dependendo do modo como elas fazem a distinção entre aquilo que é considerado moralmente recomendado
ou não.
As principais teorias éticas normativas costumam ser classifi cadas da seguinte maneira: Éticas Teleológicas
Egoísmo ético, hedonismo, epicurismo, estoicismo, utilitarismo, perfeicionismo etc.
Éticas Deontológicas
Éticas kantianas, contratualismo, intuicionismo, ética dos direitos humanos etc.
As teorias teleológicas sustentam que o bem é aquilo para o qual
todas as nossas ações, escolhas etc. tendem. Assim, uma teoria teleológica postula um fim e as ações são ditas boas ou más na medida em que promovem ou não essa finalidade. Todavia, há diversas for
mas de identificar o bem último a ser alcançado. Há teorias que sus
tentam que este fim é o próprio bem do agente (egoísmo ético),
outras que dizem que é a felicidade do maior número de pessoas (utilitarismo) e assim por diante. Além disso, no interior de cada uma dessas teorias outras distinções são importantes. Por exemplo,
podemos ter um utilitarismo-de-ato e um utilitarismo-de-regra. O primeiro sustenta que as ações são corretas ou não na medida em que
maximizam a felicidade. Já o utilitarismo-de-regra sustenta que são as normas que devem ser testadas segundo o fim que elas promovem. O utilitarismo fornece um dos principais quadros conceituais para
discutir os problemas bioéticos. Por exemplo, recentes bioeticistas tais como Peter Singer e Richard Hare usam o utilitarismo para
analisar problemas como o aborto, a eutanásia etc. Dada a impor
tância atual desse enfoque, o utilitarismo será examinado no se
gundo capítulo deste trabalho. Nele, procuraremos rever seus princí pios fundamentais centrados na beneficência.
Introdução
21
Também nas teorias deontológicas encontramos distinções si milares. Os deontologistas mantêm que o “correto” ou o “obrigató rio” são as categorias mais importantes da ética. Por exemplo, Kant
sustenta que devemos testar máximas de ação a partir de um prin cípio fundamental - o Imperativo Categórico - que pressupõe a
universalização das regras do agir, a autonomia do agente, o respeito
pela pessoa etc. Este modelo de reflexão ética fornece uma forma peculiar de abordar os problemas bioéticos. Ele tem encontrado
diversos desdobramentos na filosofia da moral contemporânea tais
como: a ética discursiva de Habermas; a moral do respeito universal de Tugendhat e a teoria contratualista da justiça enquanto equidade de Rawls. Esses enfoques serão analisados no terceiro capítulo juntamente com suas abordagens de problemas bioéticos. Há, todavia, na ética, atualmente, uma tentativa salutar de su
perar a dicotomia entre modelos teleológicos e deontológicos. Existe,
claramente, a necessidade de buscar-se uma nova base para a reflexão bioética. O principialismo não deixa de representar um esforço nesse sentido. Nele assume-se que os problemas específicos
da bioética devem ser discutidos a partir tanto de princípios teleo
lógicos (beneficência) quanto de princípios deontológicos (justiça).
Certos eticistas contemporâneos, por exemplo Hare, claramente tentaram compatibilizar os dois modelos formando teorias norma
tivas peculiares. A sua teoria normativa é conhecida como “utilita rismo kantiano” e representa uma tentativa de síntese entre as duas principais teorias éticas modernas. O próprio Hare aplicou esta teo
ria a inúmeros problemas de bioética (Essays on Bioethics). Por isso,
no capítulo 4, esta teoria será analisada detalhadamente. Esta tentativa de síntese parece promissora, mas precisa ser
complementada com outros princípios. Como será visto no capítulo 5, o principialismo depende da discussão de uma questão filosófica
mais fundamental, a saber, sobre o valor (ou não) da vida. Por isso, o problema de saber se a vida tem sentido é vital para a bioética. Os
seus problemas práticos devem ser discutidos a partir de pressu
Bioética
22
postos claros. Assim, é fundamental ter uma perspectiva teórica bem
definida quando se discute se o aborto é ou não permissível, se a eutanásia é aceitável ou não etc. Isto pode e deve ser feito a partir de uma teoria normativa bem estruturada e justificada. Falta ao
principialismo uma norma básica que prescreva o respeito ao valor intrínseco da vida. E isto que se tentará mostrar no último capítulo deste livro.
Na ética prática tenta-se usar os resultados da ética normativa para resolver os problemas morais cotidianos. Por isso, ela também
é chamada de “ética aplicada” apesar do fato de que essa expressão
contrapõe-se melhor à ética pura. A ética prática está preocupada,
fundamentalmente, com a conduta humana e as suas consequên cias. Por exemplo, podemos discutir questões bioéticas (aborto, eutanásia, suicídio etc.), questões de meio-ambiente (o uso de re
cursos naturais, a biodiversidade etc.) a partir de um princípio utili-
tarista ou kantiano ou de uma perspectiva “utilitarista kantiana”.
Desse modo, os problemas da ética prática servem de possíveis testes para as teorias normativas revelando a sua plausibilidade e
razoabilidade na orientação para atingirmos uma boa vida.
As principais partes da ética prática podem ser apresentadas da seguinte maneira: Ética Prática Ecoética | Bioética | Ética Econômica | Éticas Profissionais (ética médica etc.)
É óbvio que esse quadro é provisório e pode ser complementado
com novas ramificações da ética prática. Não podemos, entretanto, esquecer da íntima relação entre as três dimensões da ética. Os problemas metaéticos são investigados
para melhor elaborarmos uma teoria normativa. Esta, por sua vez,
é construída para resolver os problemas morais cotidianos. Por isso,
como vimos acima, as três dimensões da ética precisam ser distinguidas, mas não podem ser separadas. Por exemplo, alguém pode sustentar que a eutanásia é moralmente permitida usando uma
Introdução
23
teoria normativa utilitarista, que por sua vez está fundamentada em
pressupostos metaéticos (cognitivismo e realismo). Isto revela a ín tima interconexão entre as três dimensões da ética. Também é im portante salientar novamente que os problemas metaéticos possu em prioridade filosófica, enquanto que os problemas de ética prática
possuem maior importância na vida cotidiana.
Como pode ser visto, a bioética é a parte da ética prática junta mente com a ecoética, as éticas profissionais etc. E nessa perspectiva
que seus principais problemas devem ser discutidos. Trata-se de apli
car a reflexão filosófica aos problemas éticos suscitados a partir dos
fenômenos biológicos básicos da vida (nascimento, qualidade de vida, morte) e dos seus diferentes aspectos socioculturais.
Tendo feito essas considerações sobre a estrutura da ética e o lugar que nela ocupa a bioética, podemos agora complementar nos sa apresentação da bioética desde o ponto de vista de seus desdobra
mentos históricos e caracterizar melhor seu estado atual. Como foi visto acima, o termo “bioética” foi criado por Potter com um signi
ficado um pouco mais amplo daquele que é utilizado hoje. Ele pensa va na bioética como uma “ciência da sobrevivência”. Estava preocu pado com a crescente degradação do meio-ambiente e com o perigo
que isto representava para a existência da vida em geral. Num certo sentido, culpava a separação entre ciência e humanismo como a ori gem de todo o problema relacionado com as condições de vida na
terra. Essa separação entre ciência e humanismo foi expressa filo
soficamente no problema da dicotomia entre fatos e valores. Além disso, Potter critica a tentativa de redução dos fenômenos biológicos a uma explicação mecanicista ou físico-química tal como ela é feita
pela biologia molecular. Esse tópico será discutido no segundo capí tulo de forma mais detalhada.
A bioética, nesses seus trinta anos de história, passou por di versas transformações. Alguns autores seguiram a orientação inicial dando um tratamento teórico mais aprofundado do projeto inicial de Potter. Por exemplo, Hans Jonas elaborou o famoso princípio da
Bioética
24
responsabilidade cuja idéia básica é exatamente a de que devemos
sobreviver e, para isso, devemos considerar as consequências para as futuras gerações dos nossos atos. Todavia, os problemas bioéticos têm sido enfocados por pensadores de diferentes orientações filosó
ficas. No Brasil, temos até agora uma certa predominância de pensa dores católicos estudando os problemas bioéticos, principalmente
a partir dos trabalhos dos padres Pessini e Barchifontaine. Esse tipo
de abordagem encontrou uma sofisticada elaboração nos trabalhos de Sgreccia e em outros tantos que seguem a orientação da Igreja Católica. Por outro lado, há também enfoques que são marcadamente biologistas e evolucionistas que procuram discutir os proble
mas bioéticos a partir de uma visão secularizada do mundo, senão
de uma concepção materialista da vida. Entre essas outras perspec
tivas, encontramos autores contratualistas (Engelhardt), militaris tas (Singer) etc. ou que procuram dar um enfoque a partir de uma
visão histórica (Gracia). Poucos bioeticistas brasileiros trabalham a
partir de uma perspectiva genuinamente ético-filosófica. Por isto, esse livro procurará preencher uma lacuna no pensamento bioético brasileiro refletindo sobre o principialismo desde um ponto de vista filosófico.
Diante desse quadro, é bastante difícil propor uma definição de
bioética que possa ser aceita por todos. Todavia, a Enciclopédia de Bio ética tem fornecido o significado mais utilizado desse termo e ele será
usado aqui. De acordo com sua primeira edição, a bioética seria um: estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde analisadas à luz dos valores e princípios morais (grifo acrescentado).
Podemos, provisoriamente, empregar essa forma de definir a
bioética. Como pode ser visto, ela é compatível com a visão de ética apresentada acima.
Para finalizar essa introdução, é necessário salientar novamente que o objetivo central deste livro é repensar filosoficamente o
Introdução
25
principialismo enquanto teoria predominante acerca dos funda mentos da bioética. Acreditamos que para fazer isto é necessário
revisitar os filósofos clássicos que embasaram tal concepção bus
cando rediscutir os seus princípios éticos básicos. Além disso, defendemos que é necessário introduzir novos princípios para re
fletirmos sobre os problemas bioéticos que nos preocupam, basica mente, o princípio da reverência à vida. Como foi dito acima, uma razão simples para pensarmos assim é que há, na bioética, mais questões do que aquelas que interessam à ética biomédica. As quatro normas
básicas do principialismo clássico são fundamentais para regulamen
tar as relações entre profissionais da saúde, pacientes, familiares,
instituições sociais etc. Todavia, deixam de ser suficientes quando pensamos em problemas de bioética num sentido mais amplo, por
exemplo, no aborto, na qualidade de vida (incluindo nossas relações com outros animais e o meio-ambiente), na eutanásia etc. Uma nova
versão do principialismo deverá ser capaz de dar conta dessas ques tões de modo mais satisfatório.
CAPÍTULO 1
O principialismo na bioética
mente observados para verificar como afeífilisje desenvolvia natu Congresso Norte-Americano instituiu umanos comis ralmente) e, especialmente, pelos abusos dos experimentos cam pos de concentração durante a^ íl Guernp Mundial. Quatro anos depois, são com a finalidade de identificar os princípios básicos que deveriam nortear a experimentação com seres nas ciências do com foi publicado o Belmont Report e trêshumanos princípios foram apresentados
na biomedicina (The as National for the \portamento como sendoe capazes de justificar normasCommission necessárias para tais Protection of Human of Biomedical and Behaviroal Resé, procedimentos. EssesSubjects princípios são: o respeito pelas pessoas (isto
earch). A preocupação parece ter a partir escândalos como as preferências valorativas dasnascido pessoas e suasde escolhas devem ser
5*»^ •%.
^beneficência (o bem-estar pessoas deve serproo\consideradas); caso Tuskegeejjpaciente^hegrosjnão eramdas tratados, mas simples7 ' ------- -'X /movido e o dano prevenido) e ajustiça (as pessoas devem ser tratadas I eqüitativamente).
Sob o ponto de vista teórico-conceitual, alguns pontos chamam a atenção. Em primeiro lugar, o Relatório Belmont explicitamente
afirma que outros princípios podem ser relevantes. Quer dizer, re
conhece-se que tais normas são inadequadas para cobrir situações
complexas. Em segundo lugar, afirma-se que esses princípios não podem sempre ser aplicados para resolver todas as disputas de pro
blemas morais particulares. Finalmente, o relatório normatiza so mente experimentos com seres humanos e não com outros animais,
nem faz referências ao meio-ambiente. Por isso, o relatório pareceu, para alguns, natimorto (Emanuel, 1995).
AfcOü
coKk rjp hx
litora
I
U ^2á
‘’'U.ss,
c 'e c-'í v
G I \/c—
Bioética
Os bioeticistas Beauchamp, seguindo tendências éticas (ítilitaHstas)e Childress,.um defensor dqfáéoi^logism