Assembly - A organização multitudinária do comum 9788594444028


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Table of contents :
Sumário
Prefácio
Parte I - O problema da liderança
Capítulo 1 - Onde foram parar os líderes?
Capítulo 2 - Estratégia e tática do centauro
Capítulo 3 - Contra Rousseau ou Pour en finir avec la souveraineté
Capítulo 4 - O espelho sombrio dos movimentos de direita
Capítulo 5 - O verdadeiro problema está em outro lugar
Parte II - Produção social
Capítulo 6 - Como abrir a propriedade ao comum
Capítulo 7 - Nós, sujeitos maquínicos
Capítulo 8 - Weber às avessas
Capítulo 9 - O empreendedorismo da multidão
Parte III - Comando financeiro e governança neoliberal
Capítulo 10 - A finança captura o valor social
Capítulo 11 - O dinheiro institucionaliza uma relação social
Capítulo 12 - A administração neoliberal fora dos eixos
Parte IV - O novo príncipe
Capítulo 13 - Realismo político
Capítulo 14 - Reformismo impossível
Capítulo 15 - E agora?
Capítulo 16 - Portulano
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Assembly - A organização multitudinária do comum
 9788594444028

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Assembly: a organização multitudinária do comum

Copyright © 2018 Editora Filosófica Politeia para a edição brasileira Copyright © 2017 by Michael Hardt & Antonio Negri. Brazilian translation rights arranged with Melanie Jackson Agency, llc. Título original:

Assembly

Tradução: Lucas Carpinelli e Jefferson Viel Revisão técnica: Mario Antunes Marino Revisão: Sandra Pereira
 Capa, projeto gráfico e editoração:

Juliano Bonamigo Ferreira de Souza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

h266a Hardt, Michael Assembly: a organização multitudinária do comum / Michael Hardt, Antonio Negri ; traduzido por Lucas Carpinelli, Jefferson Viel. — São Paulo : Editora Filosófica Politeia, 2018. 464 p. ; 15,5cm x 22cm. Tradução de: Assembly Inclui índice e bibliografia. isbn: 978-85-94444-02-8 1. Filosofia. 2. Filosofia Política. i. Negri, Antonio. ii. Carpinelli, Lucas. iii. Viel, Jefferson. iv. Título. cdd 100 2018-1430 cdu 1 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva — crb-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Filosofia 100 2. Filosofia 1

A reprodução parcial sem fins lucrativos deste livro, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio, requer autorização prévia dos editores. As urls citadas na obra foram acessadas em setembro de 2018. isbn: 978-85-94444-02-8 1ª edição | 2018 Editora Filosófica Politeia São Paulo | novembro de 2018 www.editorapoliteia.com.br facebook.com/editorapoliteia

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Tradução Lucas Carpinelli e Jefferson Viel 1ª edição São Paulo, 2018

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Manifestar apoio àqueles que, em meio às presas da opressão implacável, resistem espontaneamente é algo bem tranquilo em plena madrugada. Porém, quando raia a manhã seguinte, isso não basta; afinal, significa apenas que, cedo ou tarde, as tropas avançadas, com sua superioridade bélica e suas reações sofisticadas, terminarão, em uma noite escura, por encurralar alguns de nossos jovens em uma passagem qualquer para cumprir sua vingança. Cold Comfort Farm, de Stuart Hall Conhecer o fascínio dos comuns é nos sabermos não meramente os iniciadores de algo, mas, em vez disso, afortunados a ponto de participarmos de algo mais amplo, algo parcial e incompleto, mas em contínua expansão. The Brown Commons, José Muñoz

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Sumário

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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PARTE I O PROBLEMA DA LIDERANÇA

. Onde foram parar os líderes? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os “erros” dos comunardos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Falso pressuposto: crítica da liderança = recusa de toda organização e instituição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Movimentos sem líderes como sintomas de uma mudança histórica . . Estratégia e tática do centauro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O museu das revoluções passadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Primeiro chamado: estratégia aos movimentos . . . . . . . . . . . . Liderança tática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Movimentos estratégicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um partido de movimentos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. Contra Rousseau ou Pour en finir avec la souveraineté . . . . . Crítica da representação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Crítica do poder constituinte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Segundo chamado: inventemos instituições não soberanas . . . Primeira resposta: fundamentemos nossos projetos na vida social

         

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     

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    

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 

. . . . . . . . O marxismo contra Das Kapital . . . . . . . . . . . . . . . . . .

  

. . . . . Contra a autonomia do político . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. O espelho sombrio dos movimentos de direita . Restaurar a unidade do povo . . . . . . . . . . Populismo e propriedade racializada . . . . . . A violência das identidades religiosas . . . . . .

. . . . Pobreza como riqueza . . . . . . . . . . . . .

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. O verdadeiro problema está em outro lugar . . . . . . . . . Estouremos a represa! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Segunda resposta: busquemos a ontologia plural de coalizões cooperativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Terceiro chamado: tomemos o poder, mas de outra forma . .

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P A R T E II PRODUÇÃO SOCIAL O que significa “desde baixo”?

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. Como abrir a propriedade ao comum . . . . Um feixe de direitos . . . . . . . . . . . . . . As propriedades sociais do trabalho . . . . . . Terceira resposta: o comum não é propriedade A fábula das abelhas ou as paixões do comum



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       

. Nós, sujeitos maquínicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A relação entre humanos e máquinas . . . . . . . . . . . . . . Transformações na composição do capital . . . . . . . . . . . Quarto chamado: tomemos de volta o capital fixo (“sendo esse capital fixo o próprio ser humano”) . . . . . . . . . . . . . Subjetividades maquínicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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  

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 

. Weber às avessas . . . . . . . . . . . . Sonho de Weber, pesadelo de Kafka . . Sine ira et studio . . . . . . . . . . . . Taylorismo digital . . . . . . . . . . . Quarta resposta: esmaguemos o Estado

. . . . . Segurança (contra o medo) . . . . . . . . . . Prosperidade (contra a miséria) . . . . . . . . Liberdade (contra a morte) . . . . . . . . . .

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     

. . . . Tomar a palavra enquanto tradução . . . . . . . . .

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    

. . . . . O fim da Mitteleuropa . . . . . . . .

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. O empreendedorismo da multidão . . . . . . . . . . Como se tornar um empreendedor . . . . . . . . . . Quinto chamado: o empreendedorismo da multidão Produção social ä sindicato social ä greve social . . .

P A R T E III COMANDO FINANCEIRO E GOVERNANÇA NEOLIBERAL . A finança captura o valor social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A finança desde cima e desde baixo . . . . . . . . . . . . . . . . . . Abstração/extração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As muitas faces da extração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Da produção social à finança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Logística e infraestrutura na fábrica social . . . . . . . . . . . . . . . Debate marxista 1: acumulação primitiva . . . . . . . . . . . . .

      

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. O dinheiro institucionaliza uma relação social . . . . . . . . . . . .  O que é o dinheiro e como ele governa? . . . . . . . . . . . . . . . .  Objektiver Geist . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  Da propriedade privada e sua desmaterialização . . . . . . . . . . .  As crises emergem desde baixo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  Debates marxistas 2: crise . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . A administração neoliberal fora dos eixos . . . . . . . Liberdade neoliberal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pontos de crise da administração neoliberal . . . . . . . Esvaziando os poderes públicos . . . . . . . . . . . . . Quinta resposta: produzamos subjetividades poderosas

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    

P A R T E IV O NOVO PRÍNCIPE

. Realismo político . . . . . . . . . O poder vem em segundo lugar . . O comum vem em primeiro lugar . Greve geral . . . . . . . . . . . . .

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    

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    

. E agora? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um Hefesto para armar a multidão . . . . . . . . Um Dioniso de três faces para governar o comum Um Hermes para cunhar a moeda do comum . .

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   

. Portulano . . Riqueza . . . Instituição . Organização Exortatio . .

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    

. . . . Extremismo centrista . . . . . . .

. Reformismo impossível . . . . Corrigindo o sistema . . . . . . Instituindo contrapoderes . . . Indignação na névoa da guerra

. . . . Império hoje . . . . . . . . .

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Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  Índice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

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À vossa excelentíssima Majestade

Em tempos idos, os autores orgulhavam-se do privilégio de dedicar seus trabalhos à Majestade — um nobre costume que faríamos bem em resgatar. Afinal, quer a reconheçamos ou não, a Magnificência cerca-nos por todos os lados. Não nos referimos às linhagens reais remanentes, mais ridículas a cada dia; e, decerto, tampouco nos referimos aos pomposos políticos e capitães da finança, que, em sua maioria, mereceriam ser criminalmente indiciados. Somos mais afeitos à tradição de Thoreau, Emerson e Whitman, que reverenciam a glória das montanhas e o mistério das florestas — mas ainda não é esse o sentido intencionado. Dedicamos este livro, então, àqueles que, contra todas as probabilidades, seguem lutando pela liberdade, àqueles que, tendo sofrido derrotas, se erguem uma vez mais, incansáveis, para combater as forças da dominação. É vossa a verdadeira Majestade.

à maneira de Melville, à maneira de Maquiavel

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Prefácio

Aqui, poesia é o mesmo que insurreição. Aimé Césaire

A esta altura, o roteiro é familiar: movimentos sociais inspiradores erguemse contra a injustiça e a dominação, tomam brevemente as manchetes ao redor do globo e, então, aos poucos, somem de vista. Mesmo quando conseguem derrubar algum líder autoritário, eles têm sido até agora incapazes de criar alternativas novas e duradouras. Salvo raras exceções, esses movimentos ou abandonaram suas aspirações radicais e se tornaram partícipes dos sistemas existentes ou foram derrotados pela repressão feroz. Por que os movimentos, que contemplam as necessidades e os desejos de tantos, não foram capazes de alcançar mudanças duradouras e de criar uma nova sociedade, mais democrática e mais justa? Essa questão cresce em urgência à medida que forças políticas de direita se erguem e tomam o poder em países de todo o mundo, e, então, suspendem procedimentos legais, a fim de atacarem adversários políticos, solapam a independência do judiciário e da imprensa, realizam operações extensivas de vigilância, criam uma atmosfera de medo entre as várias populações subordinadas, põem noções de pureza racial ou religiosa como condições de pertencimento social, ameaçam imigrantes de expulsão em massa e muito mais. As pessoas protestam contra as ações desses governos e estão certas em fazê-lo. Protestar, entretanto, não basta. Os movimentos sociais devem também operar uma transformação social duradoura. Hoje estamos vivendo uma fase de transição, que exige questionar algumas de nossas premissas políticas básicas. Em vez de meramente perguntar como tomar o poder, também devemos perguntar que tipo de poder queremos e, talvez mais importante, quem queremos nos tornar. “Tudo decorre”, como diz Hegel, “de entender e exprimir o verdadeiro

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não como substância, mas também, precisamente, como sujeito”. i Devemos treinar nossos olhos para reconhecer como os movimentos têm o potencial de redefinir as relações sociais fundamentais no esforço não de tomar o poder como ele é, mas tomá-lo de outra forma, para alcançar uma sociedade fundamentalmente nova e democrática e — eis o ponto crucial — para produzir novas subjetividades. Os movimentos sociais mais poderosos da atualidade tratam a palavra liderança como um palavrão — e por vários bons motivos. Há mais de meio século, ativistas têm criticado, com razão, a forma como modos de organização centralizados e verticais, que incluem figuras carismáticas, conselhos de liderança, estruturas partidárias e instituições burocráticas, tornaram-se grilhões para o desenvolvimento da democracia e para a participação plena de todos na vida política. Por um lado, foram-se os dias em que uma vanguarda política podia tomar o poder em nome das massas com sucesso. As alegações de realismo político e a suposta eficácia de uma liderança centralizada mostraram-se completamente ilusórias. Por outro lado, no entanto, é um erro terrível traduzir críticas válidas da liderança em uma recusa de organizações e instituições políticas de fôlego, banir a verticalidade apenas para fazer da horizontalidade um fetiche e ignorar a necessidade de estruturas sociais duráveis. Movimentos “sem liderança” devem organizar a produção de subjetividade necessária para criar relações sociais duradouras. Em vez de desconsiderarmos completamente a liderança, devemos começar por demarcar suas funções políticas centrais e, então, inventar novos mecanismos e práticas que nos permitam satisfazê-las. (Se isso ainda for chamado de “liderança”, pouco importa). As tomadas de decisão e a formação de assembleias são duas funções-chave da liderança. Para evitar a cacofonia das vozes individuais e a paralisia do processo político, sugere o consenso, líderes devem ser capazes de reunir as pessoas em um todo coerente e fazer aquelas escolhas difíceis que são necessárias para sustentar o movimento e, em última análise, para transformar a sociedade. O fato de a liderança ser definida pela capacidade de tomar decisões apresenta um paradoxo para as concepções modernas de democracia: líderes tomam decisões a distância e em relativa solidão, mas essas i

Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Fenomenologia do espírito. Parte i. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, , p. , grifos do autor.

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decisões devem, de alguma maneira, ser ligadas à multidão, representar sua vontade e seus desejos. Essa tensão ou contradição dá origem a uma série de anomalias no interior do pensamento democrático moderno. A capacidade dos líderes para reunir [assemble] a multidão demonstra essa mesma tensão. Eles devem ser empreendedores políticos que reúnem as pessoas, criam novas combinações sociais e as disciplinam para que cooperem umas com as outras. Aqueles que reúnem [assemble] as pessoas dessa forma, contudo, colocam-se à distância dessa assembleia [assembly], e isso, inevitavelmente, cria uma dinâmica entre líderes e seguidores, governantes e governados. Liderança democrática, em última análise, surge como um oximoro. Nossa hipótese é a de que as tomadas de decisão e a formação de assembleias não exigem um comando centralizado, mas podem ser realizadas em conjunto pela multidão, democraticamente. Decerto há e continuará a haver questões que, por causa de sua urgência ou natureza técnica, exigem tomadas de decisão centralizadas de vários tipos, mas tal “liderança” deve ser constantemente subordinada à multidão, deve ser implantada e descartada conforme a ocasião. Se líderes ainda forem necessários e possíveis nesse contexto, será apenas por servirem à multidão produtiva. Não se trata, portanto, de uma eliminação da liderança, mas de uma inversão da relação política que a constitui, uma reversão da polaridade que liga movimentos horizontais e liderança vertical. Então o que querem os movimentos atuais da multidão? Eles certamente exigem igualdade, liberdade e democracia, mas também querem bem-estar e riqueza — não a fim de possuir mais, mas de criar relações sustentáveis de acesso e de uso para todos. Há muito tempo, essas exigências foram compreendidas em termos de felicidade. Hoje a felicidade política e social não é um sonho inatingível, mas se encontra embutida na realidade da produção social, o resultado da sociedade de produção conjunta, a qual produz relações sociais em condições de liberdade e igualdade. Esse é o único caminho para uma sociedade realmente democrática. No entanto, se tratarmos a efetividade potencial da organização democrática para transformar o mundo apenas em termos políticos, isto é, se tratarmos o político como um campo autônomo, destacado das necessidades sociais e da produção social, encontrar-nos-emos, constante e inevitavelmente, andando em círculos ou em direção a becos sem saída.

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Com efeito, precisamos deixar a ruidosa esfera da política, em que tudo se dá na superfície, e descer ao terreno oculto da produção e reprodução sociais. Precisamos enraizar no terreno social as questões da organização e da efetividade, da formação de assembleias e das tomadas de decisão, porque apenas nele encontraremos soluções duradouras. Essa é a tarefa dos capítulos centrais de nosso livro. Só podemos verificar o potencial da multidão para organizar a si mesma, para estabelecer os termos de nossa cooperação e para tomar decisões conjuntas ao investigarmos o que as pessoas já estão fazendo, quais são seus talentos e capacidades no campo da produção social. Hoje a produção é cada vez mais social, em dois sentidos: de um lado, as pessoas produzem cada vez mais socialmente, em redes de cooperação e interação; de outro, o resultado da produção não é somente mercadorias, mas relações sociais e, em última análise, a própria sociedade. É nesse duplo terreno da produção social que os talentos e capacidades das pessoas para organizar e governar a si mesmas são nutridos e revelados. É também nele, entretanto, que estão em jogo os mais importantes desafios e as mais severas formas de dominação com que a multidão se depara, entre as quais os mecanismos dominantes da finança, do dinheiro e da administração neoliberal. Uma batalha-chave no terreno da produção social diz respeito aos usos, à gestão e à apropriação do comum, isto é, da riqueza da terra e da riqueza social que compartilhamos e cujo uso gerimos conjuntamente. Atualmente, o comum é cada vez mais o fundamento e o principal resultado da produção social. Em outras palavras, apoiamo-nos em saberes, linguagens, relações e circuitos de cooperação compartilhados, juntamente com o acesso compartilhado a recursos de produção. O que produzimos, então, tende (ao menos potencialmente) a ser comum, isto é, compartilhado e gerido socialmente. No momento, existem principalmente duas abordagens do comum, que apontam para direções divergentes. Uma afirma o direito de apropriar o comum como propriedade privada, o que tem sido um princípio da ideologia capitalista desde o começo. Hoje a acumulação capitalista funciona cada vez mais por meio da extração do comum, de enormes operações de petróleo e gás, de grandes empreendimentos de mineração e da monocultura. Funciona também pela extração do valor produzido

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em formas sociais do comum, tais como geração de saberes, cooperação social, produtos culturais e afins. A finança está à frente desses processos de extração, igualmente destrutivos para a terra e para os ecossistemas sociais que capturam. A outra abordagem busca manter o acesso ao comum aberto e gerir nossa riqueza democraticamente, demonstrando em que sentido a multidão já é relativamente autônoma e tem potencial para ser ainda mais. As pessoas, conjuntamente, são cada vez mais capazes de determinar o modo como irão cooperar socialmente, gerir suas relações interpessoais e com o seu mundo e gerar novas combinações de forças humanas e inumanas, máquinas sociais e digitais, elementos materiais e imateriais. Desse ponto de vista, podemos de fato ver que transformar o comum em propriedade privada, restringir o acesso a ele e monopolizar as tomadas de decisão quanto a seu uso e desenvolvimento são posturas que agrilhoam qualquer produtividade futura. Todos nós somos tanto mais produtivos quanto mais temos acesso a saberes, quanto mais somos capazes de cooperar e nos comunicarmos, quanto mais compartilhamos recursos e riqueza. Gerir e cuidar do comum é responsabilidade da multidão, e essa capacidade social tem implicações políticas imediatas para a autogovernança, a liberdade e a democracia. Ainda assim, em nossos ouvidos, algum gênio maligno sussurra que as condições do mundo atual não são propícias. O neoliberalismo parece ter absorvido o comum e a própria sociedade sob o seu domínio, pondo o dinheiro como a medida exclusiva não só do valor econômico como também das nossas relações uns com os outros e com o nosso mundo. A finança comanda quase todas as relações produtivas, que foram lançadas nas gélidas águas do mercado global. Sua inversão dos papéis políticos, continua o gênio maligno, talvez fizesse algum sentido se os empresários fossem como aqueles que os capitalistas exaltavam nos velhos tempos, isto é, figuras promotoras das virtudes da inovação. Empresários desse tipo, no entanto, são cada vez mais raros. Atualmente, o capitalista de risco, o financista e o gestor de fundos são os únicos que comandam — ou, mais precisamente, o dinheiro comanda, e eles são apenas os seus vassalos e administradores. Hoje o empresário capitalista não é nenhum Ahab, que conduz seu navio por mares desconhecidos, mas um padre sedentário que oficia uma orgia interminável de acumulação financeira.

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Além disso, o neoliberalismo não apenas impôs uma reorganização da produção em direção à acumulação de riqueza e à extração do comum visando fins privados, como também reorganizou os poderes políticos das classes dominantes. Uma violência extraordinária, que multiplica e agrava a pobreza, foi integrada ao exercício do poder. As forças policiais tornaramse milícias, por assim dizer, que caçam os pobres, não brancos, * miseráveis e explorados, e, na mesma medida, as guerras tornaram-se exercícios de policiamento global que evidenciam pouco zelo pela soberania nacional ou pelo direito internacional. Quaisquer vestígios de carisma, se é que de fato já existiu algum, foram arrancados da política de exceção, tendo o estado de exceção se convertido no estado normal do poder. “Pobrezinhos iludidos”, conclui o nosso gênio maligno, com toda a arrogância, condescendência e desdém dos poderosos pela ingenuidade dos rebeldes. Há muito mais em jogo ainda. Felizmente, há uma miríade de formas de resistência diária e a revolta episódica, mas incessante, de potentes movimentos sociais. É preciso perguntar se o desprezo que os poderosos cultivam pelas agruras de rebeldes e manifestantes (e a insinuação de que nunca se organizarão com sucesso a não ser que se submetam à liderança tradicional) não mascara o seu temor de que os movimentos avancem da resistência à insurreição — e, portanto, o seu medo de não mais possuírem o controle. Eles sabem (ou suspeitam) que o poder nunca é tão seguro e autossuficiente quanto finge ser. A imagem de um Leviatã onipotente não passa de uma fábula que serve para aterrorizar à submissão os pobres e os subordinados. O poder é sempre uma relação de força, ou melhor, de muitas forças: “a subordinação não pode ser compreendida”, explica Ranajit Guha, “senão como um dos termos constituintes de uma relação binária, da qual o outro termo é a dominância”. ii Manter a ordem social requer que negociemos e nos envolvamos com essa relação constantemente. Esse conflito é hoje parte do nosso ser social e, nesse sentido, é um fato ontológico. O mundo como ele é — assim é que entendemos a ontologia — caracteriza-se por lutas sociais, pelas resistências e revoltas dos *

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People of color, no original. A expressão, de origem estadunidense, é comumente empregada em língua inglesa para descrever não somente pessoas de ascendência africana, mas também latina, hispânica, asiática — em suma, todo e qualquer “não branco”. [n. t.] Ranajit Guha. “Prefácio”. In: Ranajit Guha e Gayatri Spivak (org.). Selected Subaltern Studies. New York: Oxford University Press, , p. .

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subordinados e pela busca por liberdade e igualdade. Porém, ele é dominado por uma minoria ínfima que comanda a vida de muitos e extorque o valor social criado por aqueles que produzem e reproduzem a sociedade. Em outras palavras, é um mundo construído pela cooperação social, mas dividido pela dominação das classes dirigentes, sua paixão cega pela apropriação e sua sede insaciável de acumulação de riqueza. O ser social, portanto, aparece ou como uma figura totalitária de comando ou como uma força de resistência e liberação. O Um do poder divide-se em Dois, e a ontologia é cindida em diferentes pontos de vista, cada um deles dinâmico e construtivo. Dessa separação também decorre uma divisão epistemológica: de um lado, há uma afirmação abstrata da verdade que, embora seja construída, tem de ser considerada uma ordem fixa, permanente e orgânica, ditada pela natureza; de outro, há, desde baixo, a busca por uma verdade construída na prática. Uma aparece como a capacidade de subjugação e a outra como subjetivação, isto é, a produção autônoma de subjetividade. Essa produção de subjetividade torna-se possível pelo fato de que a verdade não é dada, mas construída, não é substância, mas sujeito. O poder de fazer e de construir é, nesse caso, um índice de verdade. Nos processos de subjetivação que são desenvolvidos e postos em prática, portanto, uma verdade e uma ética surgem desde baixo. Se quisermos que desempenhe ainda algum papel, a liderança deve exercer uma função empresarial, sem comandar os demais, agir em seu nome ou alegar representá-los, mas atuando como um simples operador da assembleia dentro de uma multidão que é auto-organizada e que coopera em liberdade e igualdade para produzir riqueza. O empreendedorismo, nesse sentido, deve ser um agente de felicidade. Assim, ao longo deste livro, além de investigar e afirmar as resistências e revoltas da multidão nas últimas décadas, vamos também propor a hipótese de um empreendedorismo democrático da multidão. Somente ao assumirmos a sociedade como ela é e como está se tornando, isto é, como circuitos de cooperação entre subjetividades largamente heterogêneas que produzem e utilizam o comum em suas várias formas, poderemos estabelecer um projeto de liberação, construindo uma figura forte do empreendedorismo político consoante a produção do comum. Pode parecer incongruente celebrarmos o empreendedorismo quando os ideólogos neoliberais tagarelam incessantemente sobre suas virtudes,

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defendendo a criação de uma sociedade empresarial, curvando-se deslumbrados diante das empreitadas de alto risco dos bravos capitalistas e exortando-nos, do jardim de infância à aposentadoria, a nos tornarmos empreendedores de nossas próprias vidas. Sabemos que esses contos heroicos do empreendedorismo capitalista não passam de conversa fiada, mas, se olharmos alhures, veremos que atividades empresariais abundam em nossos dias — organizando novas combinações sociais, inventando novas formas de cooperação social e gerando mecanismos democráticos para nosso acesso, uso e participação em tomadas de decisão sobre o comum. É importante que reivindiquemos o conceito de empreendedorismo. De fato, uma das tarefas centrais do pensamento político é lutar pelos conceitos, esclarecer ou transformar o seu significado. O empreendedorismo serve como ponto de contato entre as formas da cooperação da multidão na produção social e a sua reunião [assembly] em termos políticos. Em outros trabalhos nossos, desenvolvemos algumas asserções econômicas necessárias para esse projeto e continuaremos a desenvolvê-las neste livro. Eis, esquematicamente, uma lista parcial. () O comum — isto é, as várias formas de riqueza social e natural que compartilhamos, acessamos e gerimos conjuntamente — é cada vez mais central para o modo de produção capitalista. () Paralelamente à crescente relevância econômica do comum, o trabalho está sendo transformado. A forma como as pessoas produzem valor, tanto no trabalho como na sociedade, é cada vez mais baseada na cooperação, no cuidar, em saberes sociais e científicos e na criação de relações sociais. Além disso, as subjetividades sociais que animam as relações cooperativas tendem a ser dotadas de certa autonomia em relação ao comando capitalista. () O trabalho está sendo alterado por novas relações intensivas e por vários tipos de máquinas materiais e imateriais essenciais à produção, tais como os algoritmos digitais e o general intellect, que incluem amplos bancos de saberes sociais e científicos. Uma tarefa que vamos propor é que a multidão reaproprie aquelas formas de capital fixo que forem meios essenciais de produção social, tornando-as suas. () O centro de gravidade da produção capitalista está se deslocando da exploração do trabalho na indústria de larga escala para a extração capitalista de valor (frequentemente por meio de instrumentos financeiros) do comum, isto é, da terra e do trabalho social cooperativo. Isso não é primariamente um salto quantitativo e, de fato, em termos globais, pode ser

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que não haja redução do número de trabalhadores nas fábricas. Mais relevante é a importância qualitativa das várias formas de extração do comum, da terra (tais como exploração de petróleo, mineração e monocultura) e da produção social (o que inclui educação, saúde, produção cultural, trabalho cognitivo rotineiro e criativo e o trabalho de cuidados * ), que tende a reorganizar e recompor a economia capitalista global como um todo. Uma nova fase do desenvolvimento capitalista está emergindo após a manufatura e a grande indústria, uma fase caracterizada pela produção social, que exige níveis elevados de autonomia, cooperação e “comunização” do trabalho vivo. () Essas transformações no âmago da produção capitalista e da força de trabalho mudam os termos de como a resistência pode ser organizada contra a exploração e a extração de valor. Elas possibilitam a inversão da situação de modo que a multidão reaproprie das mãos do capital o comum e construa uma democracia real. O problema da organização (e da verticalização dos movimentos horizontais) reside nisso, isto é, no problema da “constitucionalização” do comum — como objetivos das lutas sociais e operárias, certamente, mas também como a institucionalização de formas livres e democráticas de vida. Esses são alguns dos argumentos que nos levam a acreditar ser possível e desejável para a multidão dobrar as relações de poder a seu favor, e, em última análise, tomar o poder — mas, e é esse o ponto crucial, tomá-lo diversamente. Se os movimentos estão se tornando capazes de formular a estratégia necessária para transformar a sociedade, então serão também capazes de tomar posse do comum, e, assim, reconfigurar a liberdade, a igualdade, a democracia e a riqueza. Em outras palavras, tomar o poder “diversamente” significa não repetir as hipocrisias que põem a liberdade (sem igualdade) como um conceito da direita e a igualdade (sem liberdade) como uma proposta da esquerda, significa rejeitar qualquer separação entre o comum e a felicidade. Ao tomarem o poder, os movimentos precisam afirmar suas mais incisivas diferenças e mais extensas pluralidades, isto é, afirmar-se como multidão. Mas isso não basta. Esse “diversamente” também significa que, ao tomar o poder, a multidão deve *

Care work, no original. A expressão denota qualquer trabalho de motivação primariamente intrínseca que envolva cuidar do bem-estar de outrem, particularmente indivíduos em algum sentido carentes de autonomia plena: trabalhadores nas áreas da saúde e da educação, por exemplo, desenvolvem care work. [n. t.]

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produzir instituições independentes que desmistifiquem as identidades e a centralidade do poder — desmascarando o poder estatal e construindo instituições não soberanas. Produzir lutas subversivas contra o poder para derrotar a soberania: esse é um componente essencial do “diversamente”. Mas nem isso basta. Esse processo deve ser construído materialmente, o que abre um caminho a ser percorrido, um caminho que leva à reapropriação da riqueza pela multidão, à sua incorporação do capital fixo em seus modos de cooperação social produtiva, um caminho que enraíza o poder no comum. Um novo Príncipe está surgindo no horizonte, um Príncipe nascido das paixões da multidão. Indignação com as políticas corruptas que continuamente enchem os comedouros de banqueiros, financistas, burocratas e demais endinheirados; indignação com os níveis assustadores de desigualdade social e pobreza; raiva e medo da destruição da Terra e seus ecossistemas; e denúncia dos aparentemente irrefreáveis sistemas de violência e guerra — a maioria das pessoas percebe tudo isso, mas se sente impotente para promover qualquer mudança. A indignação e a raiva, se deixadas a fermentar por tempo demais sem alcançar resultado algum, correm o risco de desmoronar em desespero ou resignação. Nesse terreno, um novo Príncipe indica um caminho de liberdade e igualdade, um caminho que põe a tarefa de colocar o comum nas mãos de todos, gerido democraticamente por todos. Por Príncipe, é claro, não entendemos um indivíduo, ou mesmo um partido ou conselho de liderança, mas a articulação política que entretece as diferentes formas de resistência e lutas por liberação na sociedade atual. Esse Príncipe, então, aparece como um enxame, uma multidão que se move de forma coesa e, tacitamente, porta uma ameaça. O título deste livro, Assembly, visa apreender o poder de se reunir e de agir politicamente em conjunto. Mas, aqui, assembly não aparece de modo teoricamente exaustivo; tampouco buscamos analisar detalhadamente qualquer prática específica de assembleia ou reunião. Em vez disso, abordamos o conceito transversalmente e mostramos como ele reverbera com uma ampla rede de princípios e práticas políticas — das assembleias gerais, instituídas pelos movimentos sociais contemporâneos, às assembleias legislativas da política moderna; do direito de reunião [right to assemble] afirmado em tradições jurídicas à liberdade de associação, central para a organização do trabalho; das diversas formas de congregação em co-

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munidades religiosas à noção filosófica de agenciamento maquínico [machinic assemblage] que constitui novas subjetividades. Assembly é uma lente que nos permite reconhecer novas possibilidades políticas democráticas. iii Em vários momentos, pontuando o ritmo do livro, propomos chamados [calls] e respostas [responses]. Não se trata de perguntas [questions] e respostas [answers], como se as respostas [responses] pudessem silenciar os chamados. Chamados e respostas devem ressoar de um lado para o outro, em um diálogo aberto. Estilos afro-americanos clássicos de pregação assemelham-se ao que temos em mente, pois exigem a participação de toda a congregação. Todavia, essa referência não é realmente correta. Na pregação, as funções daqueles que chamam e daqueles que respondem são estritamente divididas: o pregador faz uma declaração, e a congregação a ratifica, “amém”, exortando o pregador a prosseguir. Estamos interessados em formas de participação mais significativas, em que os papéis sejam iguais e intercambiáveis. Uma comparação mais apta seria com os chamados e respostas dos cantos de trabalho, como nas canções de marinheiro comuns nos navios mercantes do século xix. As canções servem para passar o tempo e para sincronizar o trabalho. No entanto, tendo em vista tão diligente obediência, os cantos de trabalho não são ainda a referência ideal. Uma inspiração que nos é mais adequada, para nos valermos uma vez mais da história da cultura afro-americana, são os cantos de chamado e resposta dos escravos nos campos de plantação, com títulos como “Hoe, Emma, Hoe”. * Esses cantos de escravos, derivados das tradições musicais da África Ocidental, serviam para manter os ritmos da labuta tal qual outros cantos de trabalho. Ocasionalmente, entretanto, os escravos utilizavam-se de letras codificadas para transmitir mensagens uns aos outros, de modo que o senhor, ainda que estivesse bem próximo, não os pudesse compreender — mensagens que poderiam ajudá-los a evitar a chibata do senhor, a subverter o processo de trabalho ou até mesmo a planejar uma fuga. A hora de nos encontrarmos e de nos reunirmos [assemble] é agora. Como Maquiavel frequentemente diz, não deixemos a ocasião passar. iii

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Para um excelente estudo que confere amplitude semelhante ao conceito de assembly, ver Judith Butler. Notes Toward a Performative Theory of Assembly. Cambridge (ma); London: Harvard University Press, . “Dê com a enxada, Emma, dê com a enxada”, em tradução livre. [n. t.]

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PARTE I

O PROBLEMA DA LIDERANÇA

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De multicapitães não carecemos. Não é bom! Que um rei, um só, nos comande e encabece, a quem Zeus sinuoso outorgou cetro e lei. A Ilíada, de Homero Não temo em absoluto que o resultado de nosso experimento venha a ser podermos confiar nos homens para governarem a si próprios, sem mestre. De Thomas Jefferson a David Hartley, em 

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Capítulo 1 Onde foram parar os líderes?

A cada ano, continuamos a testemunhar a eclosão de movimentos sociais “sem líder”. Desde o norte da África e o Oriente Médio até a Europa, as Américas e o leste asiático, movimentos deixaram jornalistas, analistas políticos, forças policiais e governos desorientados e perplexos. Até mesmo ativistas tiveram dificuldade em compreender e avaliar o poder e a eficácia de movimentos horizontais. Esses movimentos provaram-se aptos a exortar ideais democráticos, a ocasionalmente forçar a implementação de reformas e a pressionar ou mesmo derrubar regimes — e, de fato, processos sociais amplamente disseminados foram mobilizados em coordenação ou em decorrência deles; porém, os movimentos em questão tendem a ter vida curta e parecem incapazes de ocasionar transformações sociais duradouras. Como diria Maquiavel, eles não desenvolvem a necessária robustez de raízes e galhos para sobreviver a adversidades climáticas.  Muitos creem que os movimentos sociais teriam restauradas a sua antiga glória e capacidade para sustentar e concretizar projetos de transformação e liberação sociais se conseguissem encontrar novos líderes. Onde, perguntam-se, estão os novos Martin Luther King Jr., Rudi Dutschke, Patrice Lumumba e Stephen Biko? Onde foram parar os líderes? A questão da liderança tornou-se um problema para o qual os movimentos atuais parecem não oferecer solução. O problema da liderança no interior de movimentos progressistas e revolucionários, entretanto, não é inteiramente novo. De modo a saltarmos esse impasse como se apresenta contemporaneamente, retrocedamos alguns passos para tomar impulso.



Nicolau Maquiavel. O Príncipe. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, , p. .

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Os “erros” dos comunardos Em março de , enquanto o governo burguês e seu exército batem em retirada para Versalhes, os comunardos tomam o controle de Paris e, rapidamente, põem-se a inventar estruturas institucionais para um tipo radicalmente novo de democracia, um governo do povo pelo povo: sufrágio universal e educação gratuita são estabelecidos; exércitos permanentes são abolidos; representantes passam a receber salários equivalentes aos dos operários; e — talvez o mais importante — os mandatos dos políticos tornam-se permanentemente revogáveis. Os comunardos buscam a criação de meios para que todos participem ativamente da totalidade das decisões políticas e representem a si próprios. Karl Marx, que escreve de Londres, admira a audácia dos comunardos e celebra sua potência de inovação institucional, sua capacidade de reinventar a democracia. No entanto, alega que, em decorrência de suas exageradas boas intenções, os comunardos cometem dois erros cruciais. Em primeiro lugar, ao dissolverem o comitê central da Comuna com rapidez excessiva e colocarem o poder de decisão imediatamente nas mãos da população, os comunardos mostram-se por demais dogmáticos em seu apego à democracia. Em segundo lugar, são prejudicados por sua devoção à não violência e à paz, abstendo-se de perseguir as tropas da Terceira República em sua retirada a Versalhes em março, quando ainda possuíam vantagem militar. Para Marx, os comunardos são angelicais em demasia e carecem de um líder, fatores que contribuem para sua derrota em maio, meros dois meses após sua vitória histórica. A Comuna é destruída, e os comunardos, aos milhares, são executados ou exilados por uma burguesia vitoriosa e desembaraçada de quaisquer inibições angelicais. Se não houvessem cometido tais “erros”, entretanto, não teriam os comunardos — ainda que sobrevivessem — negado o inspirador cerne democrático de seu projeto? Para muitos, é esse o nó górdio.  

Para o juízo de Marx acerca dos dois erros dos comunardos, cf. Karl Marx. A guerra civil na França. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, , pp. -, e “Marx a Ludwig Kugelmann ( de abril de )”, ibid., pp. -. Para a interpretação de Lênin acerca dos erros dos comunardos, cf. “Os ensinamentos da Comuna”. Trad. Pedro Castro. In: Osvaldo Coggiola (org.). A comuna de Paris. São Paulo: Xamã, , pp. -. Sobre as interpretações chinesas da Comuna de Paris e seu papel durante a Revolução Cultural como inspiração para a Comuna de Xangai de , cf. Hongsheng Jiang. La commune de Shanghai et la commune de Paris. Trad. Heric Hazan. Paris: La Fabrique, .

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Quase um século e meio passou-se desde a vitória e a derrocada da Comuna de Paris, e, em discussões acerca dos dilemas da organização política progressista e revolucionária, ainda ouvimos repetidas censuras tanto àqueles que ingenuamente recusam qualquer liderança quanto àqueles que, em contrapartida, recaem em estruturas hierárquicas e centralizadas. A ideia de que essas são as nossas duas únicas opções perdurou por tempo demais. Tentativas de ultrapassar esse impasse veem-se, em grande parte, bloqueadas pela ambiguidade estratégica — ou, melhor dizendo, pelo excesso de “realismo tático” — de nossos predecessores, isto é, daqueles que, política e teoricamente, guiaram revoluções mundo afora no período subsequente à Comuna — comunistas das Primeira, Segunda e Terceira Internacionais, líderes guerrilheiros nas montanhas da América Latina e do sudeste asiático, maoístas na China e Bengala ocidental, nacionalistas negros nos Estados Unidos e muitos outros. A tradição mantém, com muitas variantes, uma posição dupla: o objetivo estratégico da revolução é criar uma sociedade na qual, unidos, possamos governar a nós mesmos, sem mestres ou comitês centrais; entretanto, de um ponto de vista realista, devemos reconhecer que ainda não é o momento certo. Movimentos modernos de liberação têm devoção pela democracia enquanto objetivo futuro, mas não sob as condições atuais. Não existem ainda condições externas ou internas, sustenta-se, para uma democracia genuína. O poder persistente da burguesia e dos prussianos às portas de Paris (ou, mais tarde, dos Exércitos Brancos movimentando-se da Sibéria à Polônia ou, ainda mais tarde, das forças contrarrevolucionárias lideradas pela cia, pelo cointelpro, por esquadrões da morte e por inúmeros outros) terminará por destruir qualquer experimento democrático. Ademais, as pessoas ainda não estão prontas para governarem a si mesmas: eis o maior obstáculo. A revolução requer tempo. Essa posição dupla viria a caracterizar uma convicção amplamente compartilhada, mas, de todo modo, é interessante notar que, há  anos, ela tirava o sossego de muitos comunistas, que compartilhavam o desejo utópico por uma democracia genuína, mas temiam que a demora se estendesse indefinidamente, que esperar por um evento místico capaz de finalmente concretizar nossos sonhos fosse aguardar em vão. Não estamos particularmente interessados nas críticas ideológicas endereçadas por

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Pierre-Joseph Proudhon, Giuseppe Mazzini ou Mikhail Bakunin a Marx e aos líderes da Internacional, mas, sim, nas que foram mobilizadas pelos mutualistas e anarcocomunistas holandeses, suíços, espanhóis e italianos para contestar o centralismo e os métodos organizacionais da Internacional, considerados mera reiteração de concepções modernas a respeito de poder e política.  Esses revolucionários anteviram que um Thomas Hobbes se esgueira até mesmo em meio às suas próprias organizações revolucionárias, isto é, que as premissas subjacentes à noção de autoridade soberana infectam as imaginações políticas de tais organizações. A relação entre liderança e democracia, um dilema político que tem acossado tanto liberais quanto socialistas e revolucionários modernidade afora, vê-se claramente expressa na teoria e prática da representação, que pode servir como introdução à nossa problemática. Todo poder legítimo deve ser representativo, diz a teoria, e, assim, solidamente fundamentado na vontade popular. Entretanto, declarações ostensivamente virtuosas à parte, qual é a relação existente entre o agir dos representantes e a vontade dos representados? Em termos bem gerais, as duas principais respostas a essa questão apontam para direções opostas: uma resposta afirma que o poder pode e deve ser solidamente embasado em seus constituintes populares, ou seja, que é por meio da representação que a vontade popular se vê expressa no poder; a outra alega que a autoridade soberana, até mesmo a soberania popular, deve, por meio dos mecanismos de representação, ser apartada e protegida da vontade dos constituintes. O dilema é que todas as variantes modernas de representação combinam, em diferentes proporções, essas duas exigências aparentemente contraditórias. A representação conecta e separa. “Hoje, ‘democracia representativa’ pode parecer um pleonasmo”, escreve Jacques Rancière, “mas foi primeiro um oximoro”.  Na história moderna e na história das sociedades capitalistas, a possibilidade de unir poder e consentimento, centralidade e autonomia, revelou-se uma ilusão. Por meio tanto de suas figuras socialistas quanto de suas figuras liberais, 



Cf. Marcello Musto (org.). Trabalhadores, uni-vos!: antologia política da I Internacional. São Paulo: Boitempo,  e Kristin Ross. Communal Luxury: The Political Imaginary of the Paris Commune. London; New York: Verso, . Jacques Rancière. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, , p. .

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a modernidade legou-nos a um só tempo a necessidade de uma unidade soberana do poder e a ficção de que uma tal unidade consistiria na relação entre duas partes. Os comunardos reconheceram claramente — e não havia erro algum nisso — a falsidade das promessas da representatividade moderna. Eles não estavam satisfeitos em escolher, a cada quatro ou seis anos, algum membro da classe dominante que se comprometesse a representá-los e a agir em seus interesses. Levou muitos anos para que outros alcançassem os comunardos e enxergassem a representatividade moderna em toda a sua falsidade — e se lhes interessar um episódio particularmente trágico dessa história monstruosa, conversem com alguém que tenha vivenciado a passagem da “ditadura do proletariado” para o “Estado de todo o povo” na era de Khrushchev e Brejnev —, mas, hoje, essa percepção vem se tornando generalizada. Ainda assim, infelizmente, a constatação de que líderes não representam de fato os nossos desejos é comumente recebida com resignação: essa forma de representação, afinal, é melhor que o comando autoritário. Com efeito, o paradigma moderno da representatividade está em franca decadência, sem que até o presente momento se tenha insinuado qualquer espécie de alternativa democrática genuína. Falso pressuposto: crítica da liderança = recusa de toda organização e instituição Os movimentos sociais atuais reiterada e definitivamente rejeitam formas tradicionais, centralizadas de organização política. Líderes carismáticos ou burocráticos, estruturas partidárias hierárquicas, organizações de vanguarda e mesmo estruturas eleitorais e representativas veem-se constantemente criticados e solapados. Os sistemas imunológicos dos movimentos chegaram a um grau de desenvolvimento tal que cada emergência do vírus da liderança sofre ataque imediato por anticorpos. É crucial, entretanto, que a oposição à autoridade central não seja igualada à rejeição de toda e qualquer forma organizacional e institucional. Hoje a resposta imunológica saudável amiúde torna-se uma doença autoimune. De fato, a fim de evitar a liderança tradicional, os movimentos sociais devem dedicar mais — e não menos — atenção e energia à invenção e ao estabelecimento

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desse tipo de forma. Retornaremos, mais adiante, a uma investigação da natureza de algumas dessas novas formas e das forças sociais já existentes capazes de nutri-las. Entretanto, o caminho para a concretização de tais alternativas é por vezes tortuoso e repleto de imprevistos. Dentre os teóricos políticos hodiernos mais inteligentes, com frequência dotados de experiência significativa como ativistas, muitos veem a problemática da organização como uma ferida infecta que remanesce de derrotas passadas. Eles concordam, em termos gerais e em teoria, sobre a necessidade de organização, mas parecem ter reação visceral a qualquer organização política de fato. Podese, em seus escritos, detectar notas de amargura advinda de esperanças destroçadas — de movimentos inspiradores de liberação que se viram impedidos por forças superiores a projetos revolucionários que não deram em coisa nenhuma e organizações promissoras que malograram e fizeramse internamente aos pedaços. Compreendemos tal reação, até por termos vivido muitas dessas derrotas ao lado deles. Ainda assim, deve-se reconhecer a derrota sem ser derrotado, arrancar o espinho para que se cure a ferida. Como os “profetas desarmados” ridicularizados por Maquiavel, movimentos sociais que rejeitam qualquer organização não são apenas inúteis, mas também perigosos para si mesmos e para os demais. De fato, muitos desenvolvimentos teóricos importantes das últimas décadas, inclusive alguns promovidos por nós, foram citados em apoio à recusa generalizada da organização. Investigações teóricas sobre, por exemplo, as cada vez mais generalizadas capacidades intelectuais, afetivas e comunicativas da força de trabalho, ocasionalmente acopladas a argumentos referentes ao potencial de novas tecnologias midiáticas, foram utilizadas para fortalecer o pressuposto de que ativistas são capazes de se organizar espontaneamente, prescindindo de instituições de qualquer espécie. A afirmação filosófica e política de imanência, em tais casos, é equivocadamente vertida em uma recusa de todas as normas e estruturas organizacionais — frequentemente combinada com a adoção de um individualismo radical. Pelo contrário: a afirmação da imanência e o reconhecimento de novas capacidades sociais generalizadas requerem e são compatíveis com um novo tipo de organização e instituição, um tipo que mobilize estruturas de liderança, ainda que de uma nova forma.

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Em suma, endossamos, de modo geral, as críticas à autoridade e as demandas por democracia e igualdade nos movimentos sociais. No entanto, não estamos entre aqueles que alegam serem suficientes os movimentos horizontais da atualidade, que não há problema nenhum e que a questão da liderança foi superada. Frequentemente, oculta-se sob a crítica à liderança uma posição que não recebe o nosso endosso e que resiste a toda e qualquer tentativa de criação de formas organizacionais e institucionais nos movimentos que possam garantir sua continuidade e eficácia. Quando isso ocorre, as críticas à autoridade e à liderança tornam-se realmente prejudiciais aos movimentos. Também não apoiamos, no extremo oposto, a perspectiva de que os movimentos horizontais existentes precisem dedicar seus esforços a ressuscitar, por um lado, um partido eleitoral progressista ou, por outro, um partido revolucionário de vanguarda. Em primeiro lugar, o potencial de partidos eleitorais é altamente restrito, particularmente na medida em que o Estado se torna cada vez mais ocupado (ou, por vezes, colonizado, de fato) pelo poder capitalista e, assim, menos aberto à influência de partidos. Em segundo lugar, e talvez principalmente, o partido, em suas formas variadas, não é capaz de fazer valer suas alegações de que é representativo (e retornaremos, de modo mais detalhado, à questão da representação). Quer sejam da oposição, quer estejam no poder, partidos eleitorais progressistas podem taticamente produzir efeitos positivos, mas como complemento aos movimentos, não como algo que os possa substituir. Não nutrimos simpatia nenhuma por aqueles que promovem a ideia de que, dada a debilidade dos movimentos e o caráter ilusório de promessas de reforma por meio de processos eleitorais, temos de ressuscitar o cadáver do partido de vanguarda moderno, bem como as figuras carismáticas dos antigos movimentos de liberação, a fim de escorar suas estruturas de liderança decadentes. Também reconhecemo-nos como pertencentes àquelas tradições revolucionária e libertária modernas que deram origem a tantos partidos, mas, atualmente, não há ato de necromancia capaz de insuflar vida renovada à forma do partido de vanguarda — algo que não julgaríamos desejável ainda que fosse de fato possível. Deixemos que os mortos enterrem os mortos.

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Movimentos sem líderes como sintomas de uma mudança histórica Para enfrentar o problema da liderança, precisamos antes de mais nada reconhecer que a ausência de líderes nos movimentos atuais não é fato acidental ou isolado: estruturas hierárquicas foram derrubadas e desmontadas no interior dos movimentos, igualmente em função da crise da representação e de profunda aspiração à democracia. Hoje o problema da liderança é de fato sintoma de profunda transformação histórica ainda inacabada: formas organizacionais modernas foram destruídas, e substitutos adequados ainda não foram inventados. É necessário que levemos esse processo a cabo. Para fazê-lo, porém, teremos, a certa altura, de estender nossa análise bem para além do terreno da política, a fim de investigarmos as mudanças econômicas e sociais em jogo. Por ora, entretanto, permaneçamos focados no terreno político e nos desafios da organização política.  Uma resposta simples à questão em pauta — onde foram parar os líderes? — é a de que estão atrás das grades ou a sete palmos debaixo da terra. Os poderes dominantes e as forças reacionárias (muitas vezes em colaboração com os partidos institucionais da Esquerda) sistematicamente aprisionaram e assassinaram os líderes revolucionários. Cada país tem o seu próprio panteão de heróis caídos e mártires: Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, Che Guevara, Nelson Mandela, Fred Hampton, Ibrahim Kaypakkaya — sinta-se à vontade para compilar sua própria lista. Embora assassinatos seletivos e prisões politicamente motivadas sejam os mais espetaculares dentre os instrumentos de repressão, muitos outros — menos visíveis, mas com frequência mais eficazes — são empregados continuamente: perseguição legal especializada, desde medidas que visam criminalizar protestos até a rendição extraordinária e o encarceramento de indivíduos à maneira de Guantánamo; operações secretas, 

A recusa crescente à figura do líder no interior dos movimentos sociais nas últimas décadas é proporcional à cada vez mais obsessiva afirmação da liderança nas instituições convencionais: a cultura empresarial, as universidades, a cultura política dominante e assim por diante. Esse processo forma um quiasmo aparente: se, no começo do século xx, a tradição revolucionária tinha por foco a liderança e a ideologia burguesa desenvolvia formas institucionais burocráticas que deslocavam a liderança centralizada, hoje os polos reverteram. Entretanto, como veremos mais à frente, as formas adotadas pela liderança e sua recusa são, na verdade, inteiramente diferentes nesses tão diferentes contextos.

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que incluem programas de contrainformação, provocações deliberadas por agentes legais infiltrados e ciladas nas quais ativistas em potencial são instigados a realizar ações ilegais; censura, ou utilização dos principais meios de comunicação para disseminar informações falsas, criar confusão ideológica ou simplesmente distorcer eventos por meio da transliteração de questões sociais e políticas em questões relacionadas a estilo, moda ou costume; transformação de líderes em celebridades de modo a cooptá-los; e muitos, muitos outros.  Não nos esqueçamos, ademais, do dano colateral causado por cada um desses métodos de repressão: não apenas indivíduos bombardeados ou aprisionados “por engano”, mas também seus filhos, as comunidades dilaceradas e a atmosfera generalizada de medo. Os poderes dominantes consideram essa destruição um preço aceitável para alcançar seus objetivos. Qualquer manual de contrainsurgência apregoa o quão importante é privar, de um jeito ou de outro, uma revolução de seus líderes: corte a cabeça, e o corpo morrerá. Não se deve subestimar os efeitos de tais formas de repressão ou os danos que causam, mas, tomadas em si mesmas, elas revelam muito pouco acerca do declínio da liderança em movimentos sociais. Afinal, reprimir e acossar os líderes de movimentos revolucionários e de liberação não é uma estratégia inovadora e, de fato, concentrarmo-nos nesse tipo de causa externa nos traz um entendimento empobrecido da evolução desses movimentos, nos quais o verdadeiro motor de quaisquer mudanças é interno. A resposta mais substanciosa à esta pergunta — onde foram parar 

Os efeitos destrutivos da mídia hegemônica merecem atenção especial. Quando a mídia seleciona líderes e os transforma em celebridades, ativistas que tiveram um papel integral no movimento, como Daniel Cohn-Bendit e Joschka Fischer, são separados dele e integrados à estrutura de poder dominante. Se não há nenhum líder efetivo, até mesmo os mais bem-intencionados dentre os jornalistas se sentem forçados a criar um, de acordo com seus próprios critérios — geralmente, alguém que se assemelhe e soe como um líder. Os ativistas mais inteligentes recusam o manto de líder conferido pela mídia, mas aqueles que não o fazem se tornam irrelevantes rapidamente. Em anos recentes, o uso que ativistas têm feito da mídia independente, em primeiro lugar e, então, da mídia social, serviu como esforço (parcialmente bem-sucedido) para evitar ou controlar a máquina midiática destrutiva. Sobre os efeitos destrutivos da mídia e a transformação dos líderes em celebridades que ela opera, The Whole World Is Watching: Mass Media in the Making and Unmaking of the New Left (Berkeley; Los Angeles; London: University of California Press, ), de Todd Gitlin, continua sendo uma fonte essencial. Para a tentativa de criar uma mídia alternativa integrada aos movimentos, ver a análise de Todd Wolfson do desenvolvimento da Indymedia, especialmente quanto às experiências na Filadélfia: Digital Rebellion: The Birth of the Cyber Left. Urbana (il); Chicago; Springfield (il): University of Illinois Press, .

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os líderes? — é a de que os líderes foram constantemente criticados e destituídos desde o interior de movimentos que fizeram da democracia e do antiautoritarismo seus fundamentos centrais. O objetivo é elevar as consciências e a capacidade de todos para que possam se expressar em pé de igualdade e participar das decisões políticas. Tais esforços, ademais, são frequentemente acompanhados pelo solapamento sistemático de quaisquer pretensos líderes. Um momento poderoso nessa genealogia — um que ainda ecoa entre ativistas mundo afora — é o produto dos esforços de muitas organizações feministas do fim da década de  e princípio da década de  para desenvolver ferramentas que promovessem a democracia no interior do movimento. Praticar a elevação de consciência, por exemplo, bem como garantir que todas as participantes falem durante as reuniões, serve como forma de incentivar a participação geral no processo político e possibilitar o envolvimento de todas na tomada de decisões. Organizações feministas também desenvolveram regras para evitar que seus membros assumam a posição de representantes ou líderes, ao ditarem, por exemplo, que nenhum membro possa falar com a mídia sem a permissão do grupo. Conferir a um indivíduo o papel de líder ou representante do grupo solaparia as árduas conquistas relativas à democracia, à igualdade e ao empoderamento no interior da organização. Sempre que alguém se voluntariava ou aceitava sua nomeação para assumir a posição de líder ou porta-voz estava sujeita à “detonação”, um processo, por vezes brutal, de crítica e isolamento. Por trás de tais práticas, entretanto, havia um espírito antiautoritário e, ainda mais importante, um desejo por democracia. Os movimentos feministas das décadas de  e  foram uma incubadora extraordinária para a produção e o desenvolvimento de práticas democráticas que se tornaram generalizadas nos movimentos sociais contemporâneos.  

Para uma descrição exemplar da organização democrática em grupos feministas estadunidenses, ver gainesville women’s liberation. “What We Do at Meetings”. In: Rosalyn Baxandall e Linda Gordon (org.). Dear Sisters: Dispatches from the Women’s Liberation Movement. New York: Basic Books, , pp. -; e Carol Hanisch. “The Liberal Takeover of Women’s Liberation”. In: Redstockings. Feminist Revolution. New York: Random House, , pp. -. Jo Freeman relata como foi criticada e ostracizada por outras feministas após permitir que uma jornalista a retratasse como líder do movimento em “Trashing: The Dark Side of Sisterhood”. Ms. Magazine, abr , pp. , -. Para o exemplo de uma experiência italiana, cf. libreria delle donne di mi-

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Essas práticas democráticas e críticas da representação também proliferaram no interior de outros movimentos sociais das décadas de  e . Tais movimentos rejeitavam não só o modo como legisladores do sexo masculino alegavam representar os interesses das mulheres e o modo como a estrutura de poder branca alegava representar os negros, mas também a forma como os líderes do movimento diziam representar suas próprias organizações. Em diversos segmentos dos movimentos, a participação era fomentada como antídoto à representação, e a democracia participativa como alternativa à liderança centralizada.  Aqueles que lamentam o declínio atual das estruturas de liderança, especialmente no contexto estadunidense, amiúde indicam a história da política negra como um contraexemplo. As vitórias do movimento dos direitos civis nas décadas de  e  são atribuídas à sabedoria e à eficiência de seus líderes: no mais das vezes, um grupo de pregadores do sexo masculino, com a Conferência de Liderança Cristã do Sul (sclc) e Martin Luther King Jr. encabeçando a lista. O mesmo vale para o movimento dos Panteras Negras, com referências a Malcolm X, Huey Newton, Stokely Carmichael (Kwame Ture), entre outros. Porém, também existe uma linha menor na política afro-americana, desenvolvida mais fortemente no interior do discurso feminista negro, que contraria a tradicional glorificação dos líderes. O “apelo habitual à liderança carismática enquanto anseio político (isto é, o lamento: ‘não temos líderes’) e enquanto mecanismo narrativo-explanatório (isto é, a narrativa que afirma a história da política negra como uma história da liderança negra)”, es-



lano (org.). Non credere di avere dei diritti: La generazione della libertà femminile nell’idea e nelle vicende di un gruppo di donne. Torino: Rosenberg & Sellier, ; e a análise do coletivo de Milão feita por Linda Zerilli. Feminism and the Abyss of Freedom. Chicago; London: University of Chicago Press, , pp. -. Para um relato dos conflitos sobre reivindicação de liderança na França, cf. Christine Delphy. “Les origins du Mouvement de Libération des Femmes en France”. Nouvelles questions feministes, nº -, , pp. -. Experiências feministas como essas são uma referência-chave, talvez mais importante que as tradições anarquistas, para as práticas organizacionais e para a proibição de líderes nos movimentos Occupy e altermundialistas. Há vasta literatura sobre a crítica da representação e a promoção da participação nos movimentos estadunidenses dos anos  e . Para dois exemplos excelentes, cf. Francesca Polletta. Freedom Is an Endless Meeting: Democracy in American Social Movements. Chicago; London: University of Chicago Press, , esp. pp. -; e Tom Hayden (org.). Inspiring Participatory Democracy: Student Movements from Port Huron to Today. Boulder (co): Paradigm, .

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creve Erica Edwards, “é tão politicamente perigoso […] quanto historicamente impreciso”. Ela analisa três modos primários para a manifestação da “violência da liderança carismática”: sua deturpação do passado (que silencia ou eclipsa a eficácia de outros agentes históricos); sua distorção dos próprios movimentos (que cria estruturas de autoridade que tornam a democracia impossível); e sua masculinidade heteronormativa, isto é, o ideal regulatório de gênero e sexualidade implícito à liderança carismática.  “O impacto mais destrutivo da versão saneada e excessivamente simplificada da narrativa sobre os direitos civis”, argumenta Marcia Chatelain, “é ter persuadido muitas pessoas de que possuir um único líder carismático do sexo masculino é pré-requisito para os movimentos sociais. Isso é simplesmente falso”.  Ao contemplarmos o que está para além das narrativas dominantes, podemos ver que formas de participação democrática foram propostas e testadas ao longo dos movimentos modernos de liberação, inclusive na América negra, e são atualmente a norma. O Black Lives Matter (blm), a coalizão de poderosos movimentos de protesto que explodiu nos Estados Unidos a partir de , em resposta a instâncias repetidas de violência policial, é uma evidência clara do quão aguçados contra a liderança os sistemas imunológicos dos movimentos se tornaram. Com frequência, o blm é criticado por seu fracasso em reproduzir as estruturas de liderança e a disciplina das instituições políticas negras tradicionais, mas, como nos explica Frederick C. Harris, os ativistas tomaram uma decisão consciente e pertinente: “Eles rejeitam o modelo de liderança carismática que dominou a política negra através dos últimos cinquenta anos, e por boas razões”.  A liderança centralizada apregoada pelas gerações anteriores, creem eles, não é apenas antidemocrática, mas também ineficaz. Não encontramos líderes carismáticos nos protestos do blm e ninguém fala em nome do movimento. Em vez disso, ampla   

Erica Edwards. Charisma and the Fictions of Black Leadership. Minneapolis; London: University of Minnesota Press, , p. . Para os três modos de violência, cf. pp. -. Marcia Chatelain. “Women and Black Lives Matter: An Interview with Marcia Chatelain”. Dissent, verão de , p. . Frederick C. Harris. “The Next Civil Rights Movement?”. Dissent, verão de , p. . Igualmente, Gleen Ford. “This Ain’t Your Grandfather’s Civil Rights Movement”. Disponível em: . Para a relação entre o blm e a naacp, cf. Jamiles Lartey. “naacp Considers Role alongside Black Lives Matter at Annual Convention”. Guardian,  jun . Disponível em: .

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rede de facilitadores relativamente anônimos, como DeRay Mckesson e Patrisse Cullors, estabelecem contatos nas ruas e por meio das mídias sociais, ocasionalmente “coreografando” (para empregarmos o termo de Paolo Gerbaudo) a ação coletiva.  Evidentemente, há variações no interior da rede. Alguns ativistas rejeitam não apenas uma liderança central organizada, mas também objetivos políticos explícitos e práticas de “respeitabilidade negra”, nas palavras de Juliet Hooker, que substituem por expressões de rebeldia e indignação.  Outros visam combinar estruturas horizontais de organização com demandas por políticas públicas, como ilustra a plataforma de  do Movement for Black Lives (“Movimento pelas Vidas Negras”).  Em outras palavras, ativistas que operam no blm ou em sua esfera de influência estão testando novas formas de combinar organização democrática com eficácia política. A crítica a estruturas de liderança tradicionais entre ativistas do blm possui intersecção significativa, com sua rejeição de hierarquias de gênero e sexualidade. Os modelos organizacionais dominantes do passado, alega Alicia Garza, mantêm “negros heterossexuais (cisgêneros) à frente do movimento, enquanto nossas irmãs, pessoas queer, transgênero e pessoas com deficiência assumem papéis secundários, ou não assumem papel nenhum”.  No blm, em contrapartida, as mulheres são reconhecidas — por ativistas, especialmente — pelo papel organizacional central que desempenham (a criação da hashtag #BlackLivesMatter por três mulheres — Garza, Cullors e Opal Tometi — é frequentemente mencionada como evidência disso). As pressuposições tradicionais concernentes à qualificação para a liderança com base em gênero e sexualidade, então, tendem 

  

Para uma descrição do papel dos ativistas de mídias sociais no Black Lives Matter, cf. Jay Caspan Kang. “Our Demand Is Simple: Stop Killing Us”. New York Times Magazine,  mai . Disponível em: