As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski 8524911794

"O livro constitui um esforço reflexivo - com a ajuda das idéias de grandes mestres como Marx, Hegel e Vigotski - p

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Portuguese Pages 303 [284] Year 2005

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As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski
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ANGEL PINO

AS MARCAS DO HUMANO ÀS ORIGENS DA CONSTITUIÇÃO CULTURAL DA CRIANÇA NA PERSPECTIVA DE LEV S. VIGOTSKI

Coordenador Editorial de Educação Valdemar Sguissardi Conselho Editorial de Educação José Cerchi Fusari Marcos Antonio Lorieri Marcos Cezar de Freitas Marli André Pedro Goergen Terezinha Azerêdo Rios Vitor H enrique Paro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pino, Angel As marcas do hum ano : às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski / Angel Pino. - São Paulo : Cortez, 2005. Bibliografia. ISBN 85-249-1179-4 1, Crianças - Desenvolvimento 2. Cultura 3. N atureza 4. Seres hum anos 5. Vigotski, Lev Semenovich, 1894-1934 I. Título.

05-7694 _____________________________________________ CDD-155.413 índices para catálogo sistemático:

1. Crianças : Constituição cultural : Natureza hum ana : Psicologia 155.413 2. Constituição cultural : Crianças : Natureza hum ana : Psicologia 155.413

AS MARCAS DO HUMANO: Às origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski Angel Pino Capa: Estúdio Graal Preparação de originais: Jaci Dantas Revisão: Maria de Lourdes de Almeida Composição: Dany Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autor e do editor. © 2005 by Autora Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 — Perdizes 05009-000 — São Paulo-SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 E-mail: [email protected] www.cortezeditora.com.br Impresso no Brasil — outubro de 2005

Dedico este trabalho a: Lucas, cujo nascimento o inspirou Ivany, Esposa amada e companheira de todas as viagens Richard v Carolina Monique com todo o meu carinho

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Sumário índice de figuras

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Prefácio.............

13

Introdução........

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PRIMEIRA PARTE: NATUREZA CULTURAL DO PSIQUISMO HUMANO. ASPECTOS TEÓRICOS

Capítulo I — A criança, um ser cultural ou da passagem do biológico ao simbólico ...............................................................

A insuficiência do nascer humano........................................... O biológico e o cultural: uma relação complexa..................... O duplo nascimento da criança............................................... Mediação social e semiótica no acesso da criança à cultura....

43 43 47 55 59

Capítulo II — Natureza e Cultura..................................................

69

Raízes etimológicas do termo "cultura".................................

69

O conceito de cultura na literatura especializada...................

71

Teoria do "Contrato Social"............................................ A cultura no pensamento sociológico............................. O conceito de cultura no pensamento antropológico..... A cultura em Vigotski.............................................................

71 77 78 87

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Capítulo III — Revendo conceitos. Problemas conceituais na obra de Vigotski.......................................................................... 95 Introdução............................................................................... 95 Sentido do termo "função"..................................................... 96 Sentido da expressão "relações sociais"................................... 102 O sentido do termo "conversão"............................................ 110 Capítulo IV — Questão semiótica e desenvolvimento cultural em Vigotski................................................................................. Semiótica: aspectos históricos e conceituais........................... Período clássico............................................................... Período m oderno.............................................................. O signo em F. de Saussure........................................ O signo em Charles S. Peirce.................................... Lógica e semiótica............................................. Semiose.............................................................. Vigotski e a questão semiótica.................................................. Elaboração do conceito de signo....................................... Atividade prática e signo.................................................. O signo e o modelo E — R .............................................. Pensamento e fala........................................................... Significação e desenvolvimento cultural..........................

113 113 114 120 121 124 124 130 133 135 136 137 139 144

Capítulo V — O nascimento cultural da criança.......................... 151 Significado cultural do nascimento biológico.......................... 151 Acesso da criança ao mundo cultural....................................... 156 Mediação semiótica................................................................... 159 O papel do Outro...................................................................... 167 Conversão das funções sociais em funções pessoais............... 168 SEGUNDA PARTE: À PROCURA DE INDÍCIOS DA PRESENÇA DO HUMANO NA CRIANÇA Capítulo VI — A análise semiótica................................................. 175 Premissas do trabalho............................................................... 175

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A questão dos indícios............................................................. A questão do método.............................................................. O método em Vigotski.................................................... O paradigma indiciai....................................................... Especificando o design da pesquisa......................................... Procedimentos de investigação............................................... Quadro de análise....................................................................

177 178 179 181 185 189 191

Capítulo VII — Indicadores das funções biológicas e gradientes de evolução............................................................... Introduzindo o tem a............................................................... Questões preliminares............................................................. Os "indicadores" de desenvolvimento................................... O choro............................................................................. O movimento................................................................... O olhar.............................................................................. O sorriso........................................................................... Reações combinadas ("brilho" e "exaltação")................ Gradientes de evolução das funções.......................................

195 195 196 202 204 205 210 212 215 215

Capítulo VIII — Auscultando a linguagem dos indícios............. Introdução....... ........................................................................ Identificação e análise dos níveis ou gradientes de evolução... Os indícios e sua interpretação.................................................

220 220 221 243

Conclusões gerais............................................................................ 263 Referências bibliográficas................................................................

269

Apêndice: registro dos dados.......................................................... 275

© да

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índice de figuras Figura 1 — Relação dos dois planos do desenvolvimento humano....

60

Figura 2 — Diagrama da dupla via de comunicação criança-adulto....

65

Figura 3 — Mediação do Outro na interação criança-cultura............

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Figura 4 — Representação gráfica dos diferentes tipos de produção cultural..............................................................................

94

Figura 5 — Diagramas das estruturas do "signo" e da "relação"em geral...................................................................................

108

Figura 6 — Diagrama da estrutura da "relação social"....................

108

Figura 7 — Diagrama do signo em Platão...........................................

115

Figura 8 — Diagrama do signo em Aristóteles....................................

116

Figura 9 — Diagrama do signo lingüístico nos estoicos......................

117

Figura 10 — Unidade do signo lingüístico em F. de Saussure............

123

Figura 11 — Estrutura triádica do signo em Peirce.............................

128

Figura 12 — Os dois modelos de ação: o determinista (1) e o voluntário (2).....................................................................

138

Figura 13 — Modelo do signo lingüístico em Vigotski.......................

141

Figura 14 — Estrutura do signo lingüístico em Vigotski.....................

142

Figura 15 — Estrutura "trifásica" do desenvolvimento culturalda criança...............................................................................

161

Figura 16 — Escala seqüencial dos diferentes níveis ou gradientes de evolução das funções biológicas em Lucas......................

218

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Figura 17 — Esquema da articulação de diferentes funções do Outro que desencadeiam a reação das funções da Criança.......

231

Figura 18 — Esquema da interação CRIANÇA MEIO.....................

245

Figura 19 — Correspondência entre as duas funções orgânicas básicas: excitabilidade e reatividade................................

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içesus

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Prefácio Concluída a elaboração deste trabalho, pareceu-me que seria opor­ tuno tecer alguns comentários, em forma de prefácio, a respeito do seu título "As marcas do humano". A razão disso é simples: o termo "hu­ mano", espécie de leitmotiv deste trabalho, tomado particularmente na forma substantiva, evoca diferentes pautas possíveis de reflexão de um tema que desde a Renascença reaparece com freqiiência no pensamento ocidental. Na época contemporânea, o tema retorna com força total, poderíamos dizer, na forma de alertas lançados por diversos cientistas1 sobre o perigo de "explosão do humano" caso escape ao controle o avanço das novas biotecnologias, antevendo-se a possibilidade objetiva de uma nova "era evolutiva pós-humana", não necessariamente pela extinção da espécie humana em razão de acidentes nucleares ou de catástrofes 1. A expressão mais radical desses alertas talvez seja a recente obra do astrónomo britâ­ nico Martin Rees, Our Final Hour, New York: Basic Books, 2003, que em pouco mais de duzen­ tas páginas mostra não só a persistência da ameaça nuclear e do recurso às armas químicas, mas, sobretudo, as conseqüéncias dos avanços inevitáveis no campo da biotecnologia e da nanotecnologia tornando realidade o que ainda há algumas décadas parecia pura ficção, a criação e implante de autómatos microscópicos no organismo humano assumindo o controle das funções específicas do homem. O resultado previsível disso é a possibilidade de trans­ mutação da espécie", inaugurando o que está se convencionando chamar de nova era evo­ lutiva pós-humana". Nesta mesma linha de raciocínio, situa-se o artigo de Ray Kurzweil, "Ser Humano: Versão 2.0", Folha de S. Paulo, Mais!, de 23/03/2003, onde o autor nos apresen­ ta o que poderá ser essa nova versão do "ser humano", em que os componentes biónicos microscópicos substituiriam grande parte das estruturas biológicas.

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naturais em grande escala — o que não está totalmente excluído — mas pela possibilidade real de ocorrerem nela profundas transmutações biogenéticas. Estas seriam conseqiiência de manipulações genéticas e de implantes biónicos microscópicos capazes de substituir órgãos vitais e de assumir de forma autónoma funções fisiológicas e neurológicas, colocando em questão nossos conceitos de liberdade e de dignidade humanas. A metáfora do gênio escapando da lâmpada do mago parece adquirir hoje um sentido de realidade inimaginável outrora. A questão de fundo que tanto esses alertas quanto numerosos ou­ tros escritos de cientistas e de pensadores contemporâneos levantam é a questão da natureza humana que sintetiza as diversas concepções a res­ peito da relação "homem natureza"2 que atravessam a história da filosofia e que adquirem hoje uma nova dimensão a partir das descober­ tas científicas impulsionadas pelos rápidos avanços das novas tecnolo­ gias. Em última análise, o que está em jogo é a própria concepção do que é o "humano". Ao propor como título deste trabalho "As marcas do humano", meu propósito foi fazer desse "humano" o objeto de uma investigação sugerida pelas indagações suscitadas pelo estudo que venho fazendo dos trabalhos de Lev S. Vigotski.3 Trabalhos que, apesar de terem sido escritos nas décadas de 1920 e 1930 do século passado, apresentam-se hoje com um surpreendente ar de contemporaneidade, fornecendo im­ portantes elementos para entender as questões relativas à natureza hu­ mana, objeto em foco no debate contemporâneo. Mais especificamente, o principal ponto que motivou este trabalho foi uma tese de Vigotski que eu considero central no debate do tema que me propus como obje2. Assunto de duas versões diferentes desta temática: a do biogeneticista Francis Fukuyama, no seu livro Our Post-Human Future, 2003 (O futuro da natureza humana, Ed. Rocco) e a do filósofo Jürgen Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur, 2003, cuja crítica é feita por Slavoj Zizek no artigo "A Falha da Bio-Ética", publicado na Folha de S. Paulo, Mais! de 22/06/2003. 3. Lev S. Vigotski é o grande líder do grupo de autores que formam a nova corrente de psicologia surgida na Rússia na época da Revolução de 1917 e que ficou conhecida como "escola soviética" de psicologia, nome que remete não só ao seu lugar de origem, mas, sobre­ tudo, à perspectiva marxista que ela representa.

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tivo Trata-se da tese na qual Vigotski4 identifica as funções mentais super¡ores_aquelas que constituem as características específicas do Ho­ mem e que são as demarcadoras do espaço do "humano" — com a Cul­ tura a qual é obra do próprio Homem. Traduzida em outros termos, essa tese faz do Homem o criador daquilo que o constitui e que o define como um ser humano. Dessa forma, ela aponta um caminho fecundo para participar do debate da questão da "natureza humana": o homem como criador da condição humana da sua natureza. O sentido em que é entendido aqui o termo "humano" afasta-se, deliberadamente, tanto daquele que adquire em discursos caracteriza­ dos por posturas de exaltação do homem — da sua grandeza, do seu poder ou da sua superioridade em relação às outras criaturas —, discur­ sos que, de uma forma geral, concebem o "humano" como expressão da dimensão transcendental do homem, qualquer que seja a razão invoca­ da (religiosa, metafísica ou simplesmente romântica), quanto do senti­ do que adquire em discursos caracterizados pela negação niilista ou cé­ tica do significado de "humano" como atributo do homem, em razão, particularmente, dos inúmeros aspectos sombrios de sua história e das múltiplas formas destrutivas e predatórias que marcam muitas das suas relações com seus semelhantes e com a natureza. Como o leitor poderá comprovar por si mesmo, as questões envol­ vidas na discussão do "humano" neste trabalho — no sentido em que esse termo é entendido nele — têm muito a ver com as interrogações levantadas no debate contemporâneo, pois elas nos permitem entender o lugar concreto que o homem ocupa na natureza e no processo evolutivo e os riscos que corre enquanto espécie caso resolva dar asas (a menos que seja vítima das próprias ações irresponsáveis) ao seu poder de agente de transformação da natureza e pelo mesmo ato de si mesmo: a nature­ za sobreviverá, mas ele não. Apesar dos ares filosóficos que por vezes despontam no trabalho ~ ° Tue pode dar a falsa im pressão de estarm os invocando velhos 4. Tese desenvolvida, sobretudo, no seu livro "The History of the Development of Higher Y e? ta' Functions", The Collected Workrs of L. S. Vygotski, Edited by Robert W. Rieber, New ОГ London: Plenum Press, v. 4,1997.

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humanismos — o termo "humano" tem nele contornos semânticos bem precisos. Em síntese, designa esse ponto indescritível na relação ho­ mem natureza em que ocorre a emergência da consciência. Para com­ preender de que estou falando, lembro ao leitor de que a tese de Vigotski que orienta minhas reflexões situa-se no contexto do materialismo his­ tórico e dialético, na linha de Marx e Engels, como ele mesmo afirma em vários dos seus trabalhos. Nesse contexto, a emergência da consciência é um fenômeno historicamente situado e ligado à atividade produtora do homem. Sua emergência é contemporânea à descoberta do homem de que fazendo parte da natureza ele pode agir sobre ela e transformá-la com os meios de que ele é capaz de inventar para isso. A consciência surge, portanto, no distanciamento do homem da natureza que lhe per­ mite fazer dela o objeto da sua ação. Isso quer dizer que a consciência é algo que acontece no próprio agir humano, sendo ao mesmo tempo causa e efeito dele. Ora, o próprio da atividade humana é que, por ser simbó­ lica além de técnica, é de natureza reversível, ou seja, afeta tanto o objeto sobre o qual se exerce quanto o sujeito que a realiza. O resultado é que ambos — natureza e homem — adquirem uma forma nova de existên­ cia: a existência simbólica. Por outra parte, é próprio do simbólico transformar as coisas sem subtrair-lhes sua natureza própria. Isso permite tirar algumas conseqiiências lógicas. A primeira é que a natureza não perde sua condição de natureza, apenas adquire formas novas que o homem lhe confere; da mesma maneira que o homem não perde a sua condição de ser da natureza ao adquirir as formas (qualidades, aptidões, habilidades etc.) que definem sua condição humana. A segunda é que tanto as novas formas da natureza quanto as novas formas do homem têm significa­ ção para este, não para aquela. A terceira é que se o homem é no plano natural obra da natureza, no plano simbólico é a natureza que é obra do homem. Ora, na medida em que o homem continua natureza, é possível pensar que nele a natureza se transforma a si mesma. Em outras pala­ vras — palavras capazes de provocar profundas comoções na nossa maneira habitual de pensar — isso quer dizer que no homem, essa infi-

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nitamente pequena partícula da matéria viva que compõe a infinitamente pequena parte da matéria inorgânica que constitui a imensidão do uni­ verso, a natureza adquire consciência dela mesma, atingindo o patamar de evolução mais alto que se conhece até agora. Pensando em termos de uma possível "era evolutiva pós-humana", como anunciam as profecias científicas contemporâneas, poder-se-ia pensar que essa nova era tanto poderia ver extinguir-se na natureza a "luz da consciência" — no caso de uma extinção catastrófica da espécie humana — quanto poderia ver evoluir essa consciência em formas novas — no caso de transmutações biogenéticas da espécie humana. É na relação dialética homem natureza, na qual se inscreve a relação recíproca natureza cultura, que se situa o lugar do debate que o termo "humano" levanta neste trabalho. A esfera do "humano" é essa minúscula porção da natureza em evolução onde ocorre a emergência da consciência quando indivíduos desgarrados do tronco dos primatas descobrem que existe a natureza, que eles fazem parte dela, mas tam­ bém que eles podem transformá-la, autodenominando-se homens. De outra epopéia similar não temos notícia ainda na história do universo. O termo "humano" traduz então essa dimensão do homem que ao mesmo tempo em que o remete às suas raízes na natureza, remete-о também a uma história que começa com ele e da qual ele é autor e protagonista. O "humano" não é, portanto, a esfera da negação da natureza, fa­ zendo do homem um ser à parte no mundo dos seres naturais, mas a esfera da revelação nele dessa natureza, de cuja fecundidade ele é as primícias. Se, por um lado, o homem desponta como um ser que se destaca dos outros seres, distanciando-se da natureza, por outro lado, ele permanece radicalmente ligado a ela pelo cordão umbilical que ali­ menta sua realidade biológica. Realidade estranha essa — pode perguntarse, com toda razão, o leitor — que ao distanciar-se da natureza, para tor­ nar-se consciência dela, aproxima-se mais dela ao descobrir-se natureza. Não é difícil perceber que numa perspectiva como esta não há lu­ gar nem para exaltações românticas do "humano" nem para niilismos e ceticismos negadores do lugar do homem na natureza como consciência dela.

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Uma das novidades da tese de Vigotski é que ela opera urna desconstrução de um discurso psicológico, outrora filosófico, feito de ambigüidades e impasses sobre a natureza humana, resultado da cisão que a psicologia tradicional introduzira na unidade do ser do homem ao não ser capaz de conciliar a ordem da natureza — da qual o homem é obra — e a ordem da cultura — pela qual a natureza torna-se obra do homem. Ao sustentar o caráter cultural do psiquismo e, em conseqiiência, sua ori­ gem social, a tese de Vigotski constitui uma espécie de sutura na cisão da unidade do homem juntando nele a natureza e a cultura, a ordem do biológico e a ordem do simbólico. Convencido da importância e da atualidade da temática presente na tese de Vigotski, eu pensei que seria extremamente oportuno tentar desvelar na realidade empírica da evolução da criança logo após o nas­ cimento a maneira concreta como a natureza, constitutiva da sua condi­ ção biológica, transforma-se sob a ação da cultura, fazendo da criança um ser humano. Embora este trabalho não trate diretamente das ques­ tões levantadas pelos dentistas a que me referi anteriormente, penso que acompanhar sob um outro olhar a evolução da criança nos primei­ ros meses de vida deverá trazer alguma luz a esse debate.

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(g7€DITORO

Introdução Q uando a história natu ral se torna biologia, quando a análise das riquezas se torna economia, quando sobretudo a reflexão sobre a linguagem se faz filologia e se desvanece nesse discurso clássico em que o ser e a representação encontravam seu lugar comum, então, no movimento profundo de um a mutação arqueológica, o homem aparece com sua posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece. Michel Foucault

Desvendar os mistérios da origem das coisas, procurando a razão da sua existência, parece ter sido urna das inquietações dos homens em todos os tempos, desde as épocas mais remotas até as mais recentes, como o atestam, de um lado, as tradições mitológicas dos povos antigos — em particular, os mitos das origens1— e, do outro, a historia da cién-

1. Os mitos das origens são formas de recitados simbólicos, criados para justificar ou explicar a origem do mundo (animado e inanimado) e do homem, tendo, em geral, como protagonistas, particularmente nos mitos religiosos, seres sobrenaturais. A explicação das origens constitui o cerne das cosmogonias antigas e das várias formas do mito da criação. As cosmogonias e os mitos da criação, embora tenham a ver com o mesmo problema das ori­ gens, traduzem aspectos diferentes desse problema: as primeiras tratam da origem do mun­ do em geral, entendido o termo "origem" no sentido de fundamento do que existe; os segun­ dos pressupõem um ato de criação, implicando um criador, qualquer que seja a sua natureza.

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cia moderna, especialmente dos últimos séculos. Mito e ciência são ex­ pressões diferentes de uma mesma vontade humana de perscrutar os mistérios da natureza e das suas origens. A palavra "mito" é a transposição para o português do termo gre­ go mythos, que significa palavra final ou decisiva, em contraposição a logos, que significa palavra cuja veracidade pode ser argüida e compro­ vada.2Por isso, ao passo que logos representa um apelo à racionalidade, mythos apenas exige acolhimento e aceitação. Aquele se inscreve no re­ gistro da lógica, este no da crença e da confiabilidade. O fato de que os mitos tratam de eventos extraordinários que não têm que ser compro­ vados nem justificados explicaria que sejam vistos, nos tempos moder­ nos, como histórias fabulosas pouco ou nada prováveis ou mesmo total­ mente fantasiosas, identificadas, impropriamente, com os sonhos e as fábulas. Em termos gerais, os mitos fazem parte da história de todos os povos, constituindo um dos pilares da sua cultura. Junto com outras formas literárias antigas, como as lendas e as fábulas, eles constituem parte do repertório das formas simbólicas de cada povo, em especial da simbologia religiosa. No seu livro Aspectos do mito, Mircea Elíade (1963) lembra a distin­ ção que povos indígenas fazem entre "histórias verdadeiras" e "histó­ rias falsas",3 correspondendo, respectivamente, aos mitos e aos contos ou lendas. Em ambos os casos são narrações que falam de eventos que tiveram lugar num passado longínquo e fabuloso. O curioso é que, mese algo que é criado. A criação, a partir do nada, é um tema mais raro na mitologia criacionista, aparecendo apenas em algumas tradições filosóficas. Nas histórias da criação, tanto de cultu­ ras mais antigas quanto de culturas mais recentes, a terra é concebida, freqüentemente, como preexistindo à criação dos diferentes seres, servindo de material para a sua criação, como no caso do homem na tradição bíblica e na mitologia babilónica. Nada mais natural do que a origem do homem ser conectada com a cosmogonia, dado que o cosmos é o mundo onde ele habita. Entretanto, colocar o homem no centro da cosmogonia revela já a influência das filo­ sofias sobre certas mitologias. 2. Cf. os verbetes " Myhte" e " Mythology", Encyclopaedia Britannica, 1978, v. 12, pp. 793 e ss. 3. Isso não quer dizer que os critérios para considerar as histórias "verdadeiras" ou "falsas" sejam os mesmos em todas as sociedades tribais. O importante é que todas elas distinguem entre mitos e contos ou lendas.

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mo se os personagens são diferentes, deuses e seres sobrenaturais no primeiro caso e heróis e animais fabulosos no segundo, eles têm em c o m u m o fato de não pertencerem ao m undo cotidiano. Não obstante, diz Elíade, os indígenas sentiram que se tratava de "histórias" radical­ mente diferentes, pois tudo que é relatado pelos mitos diz-lhes respeito diretamente, enquanto que o que os contos e as fábulas narram não, pois embora sejam eventos que transformaram o m undo, não m udaram a condição hum ana como tal.

Os mitos relatam as origens do mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também todos os eventos primordiais a partir dos quais o homem tornou-se o que ele é hoje: um ser mortal, sexuado, organiza­ do em sociedade e tendo que trabalhar segundo determinadas regras. O mundo e o homem existem porque nas origens de tudo seres sobrenatu­ rais realizaram uma ação criadora (cosmogonia e antropogonia), à qual seguiram-se outros eventos míticos dos quais o homem é o resultado. Na origem de tudo o que é hoje o homem, o pensamento primitivo colo­ ca um evento mítico que o tornou possível. Os mitos revelam como os povos antigos tentam explicar, cada um à sua maneira, as origens do mundo, dos seres animados e inanimados, da sua história e, particularmente, do homem. Eles são, portanto, sistemas simbólicos de complexidade variável, criados para explicar tudo aquilo cujo conhecimento está além da experiência imediata. Neste sentido, po­ der-se-ia dizer que os sistemas mitológicos se assemelham aos sistemas científicos, com a diferença de que nestes a razão explicativa é procurada na realidade interna das coisas, ao passo que naqueles a razão explicativa e procurada fora delas, como nos deuses, nos heróis, nos ancestrais ou em outros seres sobrenaturais. Por isso, à diferença dos sistemas científicos, °s sistemas mitológicos se sustentam por si mesmos, como constitutivos das tradições culturais e das práticas sociais dos povos. Durante longos milénios, os sistemas mitológicos criados pelos homens foram suficientes para acalmar sua necessidade de encontrar Um fundamento à existência do mundo e de si mesmos, assim como às suas tradições e práticas sociais, políticas e religiosas. Parece razoável Pensar que os sistemas mitológicos permitiam às comunidades huma-

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nas viverem em harmonia com a natureza, fato fundamental para os povos primitivos, constituindo uma espécie de "seguro social" contra os fatores desagregadores de origem externa e interna a elas mesmas. Nos últimos séculos, porém, o acelerado desenvolvimento da ciên­ cia e da tecnologia e as transformações sociais e políticas a elas associa­ das ou delas decorrentes, em particular a secularização da vida e a pri­ mazia da racionalidade sobre outras formas de compreensão do real, fizeram com que as antigas mitologias fossem cedendo terreno às novas teorias científicas e os mitos das origens às novas teorias cosmológicas e etnológicas, as quais iam adquirindo, cada vez mais, ares de objetivida­ de e de certeza. Entretanto, caberia perguntar-se: os fantásticos avanços tecnológi­ cos que marcam a época contemporânea, ao possibilitarem vencer as barreiras das distâncias estelares e a resistência da matéria — permitin­ do ao homem aproximar-se dos confins do universo físico e desvendar cada vez mais os segredos do que se suspeita ser a matéria original do cosmos — e ao deslocarem os mitos para as áreas escuras da racionali­ dade, não estariam sedimentando as condições favoráveis à emergência de novas mitologias que se apresentariam com o ar de teorias científi­ cas? A distância que separa a mitologia e a ciência, ou seja, a crença e a razão, talvez não seja tão grande como se pensa, dado que ambas são obras da mesma mente humana. O drama do homem contemporâneo é descobrir que quanto mais se aproxima das coisas, rasgando o véu do seu mistério, mais elas pare­ cem se distanciar dele na medida em que, ao tentar investigá-las, des­ monta-as reduzindo-as aos seus componentes mais elementares. Ao encanto das formas sensíveis da matéria sucede um certo desencanto das formas racionais abstratas a que elas são reduzidas pela ciência, es­ quecendo que a sensibilidade e a razão são partes integrantes da reali­ dade humana e que silenciar qualquer uma delas em benefício da outra não é ganho, mas perda. O drama do homem contemporâneo é também descobrir atónito quanto já sabe a respeito do universo e quão pouco sabe ainda a respeito de si mesmo. Se, de um lado, consolida-se a consciência de que nada

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mais parece poder resistir à vontade humana de saber e de penetrar ñas entranhas da materia, tornando-se o homem cada vez mais capaz de manipular as forças ocultas nela, do outro, aumenta também a cons­ ciência do abismo que se abre entre o desejo de saber e o mistério que encobre sua própria natureza. Afinal, quem é ele? De onde vem? Como é feito? Na ausência de respostas mais consistentes e seguras a estas interrogações, o campo fica aberto para toda sorte de especulações e para a manutenção de velhos mitos e a emergência de novos, mostran­ do que o orgulho científico ainda não conseguiu desalojar totalmente os fantasmas que povoam o imaginário mítico. Mas o drama do homem contemporâneo é também descobrir que, ao procurar nas coisas respostas às interrogações a respeito dele mesmo e das suas origens, elas não podem responder-lhe nada, pois, mesmo sendo mais antigas que ele, elas são meras testemunhas silenciosas de um passado que ignoram. Tal parece ser o sentido das palavras de Foucault quando diz que o originário do homem não anuncia o tempo de seu nascimento, nem o núcleo mais antigo da sua experiência: liga-о ao que não tem o mesmo tempo que ele; e libera nele tudo o que não lhe é contemporâneo. (1992: 347) Consolida-se assim na consciência do homem contemporâneo a idéia de que só o homem pode dizer ao homem quem é ele e como apareceu no movimento evolutivo da matéria. Para tanto tem que conseguir fazer falar a matéria muda, emprestando-lhe sua palavra, mas observando atentamente seus movimentos para ver se consegue penetrar nos segre­ dos que ela oculta. Se o avanço espetacular do pensamento científico e das inova­ ções tecnológicas que ocorreram nos últimos séculos, em particular no século XX, retirou aos mitos das origens seu encanto literário e sua con­ dição de mistério e de certeza, não conseguiu, entretanto, eludir as pro­ fundas interrogações que eles encerram. Ao contrário, a curiosidade e o interesse pelos mistérios das origens do mundo e do homem cresceram na razão direta da vontade de substituir os antigos mitos pelas novas teorias científicas e do aumento da crença de que com a ajuda da técnica sera possível concretizar os sonhos milenares de saber tudo a respeito do mundo e da existência.

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O século XIX constitui para autores como Foucault4 um marco im­ portante no caminho da reflexão do homem sobre si mesmo, ao operar­ se no discurso clássico o desdobramento do ser na sua representação, duas características que ocupavam um mesmo lugar nesse discurso. Tal des­ dobramento permitiu que o homem se descobrisse sendo, ao mesmo tempo, espectador e espetáculo, observador e observado, pensador e objeto pensado, sujeito do saber e objeto de ciência. A consciência de ser um objeto no meio de outros objetos constituiu, sem dúvida, uma pro­ funda ferida aberta no seu narcisismo de sujeito transcendental, obra do pensamento moderno. Todavia, essa descoberta, longe de constituir uma catástrofe, mostrou-se com o tempo extremamente benéfica para o ho­ mem pois, se saber-se objeto abalou as estruturas do seu "eu", abriulhe, em compensação, a porta da verdade de si mesmo, liberando-o da aderência ao real imediato e permitindo-lhe descobrir-se como um ser simbólico, objeto de representação. É nesse corpo de saberes inaugurado pelo novo regime da represen­ tação que, no crepúsculo do século XIX, a psicologia reivindicou um lu­ gar ao sol no mundo da ciência, tentando afastar-se da especulação filo­ sófica — o que nunca conseguiu completamente, é bom dizer — e apro­ ximar-se das ciências da natureza cujo objeto de conhecimento não é o homem. Pode-se dizer então que a ciência psicológica nasce sob o signo da ambigúidade herdada da tradição filosófica, uma vez que nasceu di­ vidida entre aquilo do homem que se inscreve no campo da filosofia da alma e de seus alibi (sujeito, consciência, mente etc.) e aquilo dele que se inscreve no campo dos objetos empíricos. Essa cisão explicaria por si só a escassa contribuição que a psicologia tem dado ao longo do século à elucidação das zonas escuras do campo do conhecimento da verdadeira

4. As palavras e as coisas (1992). Nesta obra, M. Foucault analisa a questão das vicissitu­ des da "representação", desde o pensamento clássico até o pensamento moderno, reconsti­ tuindo a história desse conceito na perspectiva arqueológica que caracteriza seu método de análise. Nessa história, ele aponta o momento em que o homem chega à consciência do "du­ plo", ou seja, do desdobramento da coisa na sua representação e, simultaneamente, do ho­ mem em "sujeito" e "objeto" de ciência. Momento que ele identifica com o início das ciências humanas que têm o homem como seu objeto empírico.

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natureza do homem ou, em outras palavras, daquilo que constitui a es­ pecificidade humana dessa natureza. Se o que caracteriza o novo episteme é a cisão que se abre entre o sere a representação, produzida pelo fato de o homem se distanciar das coisas introduzindo entre ele e elas a representação que ele faz delas, então não é de se estranhar que o homem projete algo de si mesmo nessa represen­ tação, como aparece, por exemplo, nos efeitos de linguagem que marcam o discurso científico. Caberia perguntar-se: é uma questão de mero antropocentrismo ou é algo inerente à natureza da representação? Dizer que as coisas são nossa representação não significa que elas sejam simples quimeras, ilusões ou meros efeitos de linguagem, o que negaria o valor real e objetivo do conhecimento (o comum e o científico). Significa, isso sim, que, ao olhar as coisas, o olhar confere-lhes um outro modo de existência, o simbólico, diferente do que lhes é dado pela natu­ reza. Isso se aplica ao conhecimento comum, em geral, e ao conheci­ mento científico, em particular. Se o objetivo do olhar do cientista é expli­ car as coisas que fazem parte da natureza, o objeto desse olhar é a repre­ sentação que ele faz delas, o que explica o caráter conjectural do saber científico e a necessidade da sua homologação pela comunidade cientí­ fica, como já disse Thomas Kuhn. (1972) A ciência é nossa convenção. Se o homem, ao procurar conhecer as coisas que não são ele nem vêm dele, projeta-se na representação que se faz delas, colocando nelas algo dele, como estranhar que ao procurar conhecer a criança — um ser que vem dele e, que se não é ele, nele identifica suas próprias origens — projete-se nela ciente de que a existência da criança está irremediavel­ mente presa à ação dele? A representação da criança por parte do ho­ mem é muito mais do que um mero ato cognitivo; ela envolve muitos outros elementos da subjetividade humana. Isso explicaria que, ao pro­ jetar na criança a representação de si mesmo, o homem tenha dificulda­ de de descobrir que entre ambos não existem apenas semelhanças, mas também diferenças, e que essas diferenças traduzem a peculiaridade da condição de ser criança" e não algo negativo próprio dessa mesma con­ dição, como se "ser criança" representasse um "ser menos" seja porque ainda não é um ser adulto" seja por considerá-la "um adulto que ainda

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é criança". Ao fazer do adulto o padrão de medida do "ser criança" não se estaria negando a ela a própria condição de criança? Numa das suas obras, Wallon (1968) chama a atenção sobre este ponto, mostrando o preconceito que se esconde por trás dessa visão de criança, núcleo de uma certa concepção do desenvolvimento infantil e, em conseqúência, da educação da criança confiada ao adulto. O preconceito reside na idéia de que a criança deve seguir um percurso que a leve, inelutavelmente, à reprodução de um certo modelo de adulto constituído em pa­ drão do seu meio e da sua época, considerando ser uma aberração qual­ quer desvio ou diferença em relação a esse padrão. Pergunta-se Wallon: É verdade que a mentalidade da criança e a do adulto são heterônomas? que a passagem de uma à outra supõe uma conversão total? que os prin­ cípios aos quais o adulto julga estar ligado seu modo de pensar sejam uma norma imutável e inflexível que permita excluir fora da razão o modo de pensar da criança? que as conclusões intelectuais da criança não tenham nenhuma relação com as do adulto? E a inteligência do adul­ to, teria podido permanecer fecunda se realmente houvesse sido obriga­ da a afastar-se das fontes de onde brota aquela da criança? (1967: 13, tradução minha).

Tais interrogações mostram, até um certo ponto, qual era a idéia que se tinha da criança ainda na primeira metade do século XX. Na opinião autorizada de Philippe Ariès (1973), a descoberta da infância não teria ocorrido antes do século XIII. A evolução da idéia de infância pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia religiosa e profana ao longo dos séculos XV e XVI; mas é só a partir do século XVII que os sinais confiáveis do seu descobrimento se teriam tornado parti­ cularmente numerosos e significativos, quando a família e a escola, por vias diferentes, assumem a responsabilidade da sua educação. Entre­ tanto, é no fim do século XIX e durante o século XX, que alguém já chamou de "século da criança",5 período em que o mundo passou por

5. Refiro-me a Ellen Kelly, escritora sueca conhecida no seu país como apostola da ed cação popular, que escreveu em 1900 um livro intitulado O século da criança, referindo-se ao novo século que estava começando.

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grandes transformações sociais e industriais, que a criança acabou ocupando um lugar de destaque na nova sensibilidade que toma conta das sociedades modernas. Deve-se reconhecer que desde o início do século XX, a psicologia manifestou um interesse crescente pelo estudo da criança, embora os primeiros trabalhos, de natureza biográfica, veiculassem idéias ainda vagas e portadoras de preconceitos a respeito dela. A partir da segunda década do século XX, a criança veio ocupando um espaço cada vez maior na pesquisa psicológica, como o mostra o considerável aumento do nú­ mero de publicações a respeito dela. Entretanto, o aumento da produ­ ção científica e do conhecimento que ela nos transmite é até hoje bastan­ te desigual, tanto no que diz respeito às diferentes fases ou momentos estudados do desenvolvimento infantil quanto no que se refere ao es­ pectro dos aspectos investigados. Com efeito, não só existe uma grande concentração dos estudos nos primeiros anos de vida da criança como os temas investigados concentram-se, principalmente, nos aspectos físi­ cos, orgânicos e ambientais do seu desenvolvimento. Mesmo um estu­ do tão importante como o de Piaget, além de limitar-se ao período da infância/adolescência e concentrar-se no desenvolvimento das estrutu­ ras mentais, concede aos fatores orgânicos um papel central na génese dessas estruturas, o que acaba passando meio desapercebido sob o vago conceito de interacionismo. O conhecimento acumulado sobre a infância é, ainda hoje, bastan­ te limitado e pouco sistemático, não fornecendo uma visão global e ar­ ticulada dela, mas apenas visões parciais em razão da prioridade dada pelas pesquisas e as teorias a alguns dos seus aspectos desvinculados de outros ou até em detrimento deles. Isso ocorre, em geral, com as grandes correntes do pensamento psicológico, algumas das quais, como ° construtivismo e a psicanálise, fornecem modelos complexos de al­ guns aspectos do desenvolvimento infantil e contribuições pouco ex­ pressivas a respeito de outros. Torna-se difícil, portanto, falar de uma psicologia da infância quando o que temos, na realidade, é um mosaico de teorias parciais da infância refletindo as diferentes concepções de ruundo de cada escola. O resultado é um quadro teórico da infância Uecessariamente heterogéneo. Com efeito, é fácil identificar nos traba-

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lhos sobre a criança de Sigmund Freud e sua escola6, as marcas de uma visão psicanalítica do mundo e do homem; como é fácil identificar nos trabalhos de A. Gesell,7J. Piaget8 e H. Wallon9 as respectivas marcas da visão de mundo e de homem desses autores e suas escolas; da mesma maneira que é fácil identificar nos trabalhos de J. Bowlby10as marcas da sua visão etológica e nos de J. B. Watson, H. W. Stevenson, S. W. Bijou e D. M. Baer11 as marcas de sua concepção positivista e funcionalista do homem. O que tem isso de errado? — poderia perguntar o leitor. Em princí­ pio não há nada de errado nisso, pois a diversidade de visões do mundo faz parte da própria natureza da investigação científica. O erro é atribuir a uma teoria parcial da infância um caráter de verdade universal, crian­ do uma representação da infância que, no lugar de fundar-se em dados fornecidos pela realidade histórica, funda-se, essencialmente, na visão de mundo, específica de cada escola, que contamina esses dados. O que vale para as correntes psicológicas de forma geral vale também para a corrente que tem em Vigotski12 sua principal expressão. Em trabalho 6. Sigmund Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, 1905; D. Rapaport, Organization and pathology ofthougth, 1951; R. Spitz, The first year of life: study of normal and deviant development of object relations, 1965; M. S. Mahler, F. Pine e A. Bergman, The psychological birth of the human infant: symbiosis and individualization, 1975. 7. A. Gessell, The psychology of early growth, including norms of infant behavior and a method of genetic analysis, 1938; The first five years of life: a guide to the study of the preschool child, 1940. 8. J. Piaget, La naissance de Tintelligence chez Tenfant, Neuchatel: Délachaux et Niestlé, 1936, La formation du symbole chez Tenfant, Neuchatel: Délachaux et Niestlé, 1945 e La construction du réel chez Tenfant, Neuchatel: Délachaux et Niestlé, 1937. 9. H. Wallon, Les origines du caractère chez Tenfant, 1934; "La vie mentale de l'enfance à la veillesse", Encyclopedic. Française, t. VIII, 1938; La psychologie de Tenfant de la naissance à sept ans, 1939; Vevolution psychologique de Tenfant, 1941; De Tacte à la pensée, 1942. 10. J. Bowlby, Maternal care and mental health, 1966; Attachment and Loss, 2 vol., 1969. 11. J. B. Watson, Psychological care of infant and child, 1928; H. W. Stevenson, Thougth in the young child, 1962; S. W. Bijou e D. M. Baer, Child development, 1961. 12. Refiro-me a essa corrente de pensamento psicológico surgida na ex-União Soviética nos anos 20 do século passado e que tem como matriz o materialismo histórico e dialético, sem por isso confundir-se com uma pretensa "psicologia marxista", como o enfatizou o pró­ prio Vigotski. (1996)

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dedicado à análise da história da crise da psicologia, em 1927, este autor ilertava seus contemporâneos marxistas acerca do erro que seria pensar em fazer uma "psicologia marxista" em vez de pensar em construir uma ciência verdadeira. Na opinião de Vigotski, a razão principal da crise da psicologia estava em constituir um retábulo de teorias particulares e parciais, re­ sultado da falta de uma metodologia que tornasse possível construir uma ciência geral. Servindo-se do exemplo do que fez Marx em O Capi­ tal, cujo valor, segundo ele, reside muito mais na metodologia que lhe permite estabelecer as leis históricas que determinam os fatos económi­ cos do que propriamente na crítica do sistema capitalista, Vigotski pro­ punha que, mais do que tentar explicar os fatos psicológicos, o impor­ tante é criar uma metodologia que seja capaz de permitir estabelecer as "leis históricas" que os determinam. Sem estabelecer essas leis, muito pouco ou nada será possível conhecer a respeito da natureza desses fa­ tos. Foi essa a grande razão que levou Vigotski a estabelecer como obje­ tivo das suas investigações a ingente tarefa de construir uma psicologia que revele as leis dos processos psicológicos. Visando a esse objetivo, ele procura articular a história da espécie humana com a "história" na­ tural13 da qual é um caso particular. Isso explica a grande importância que a teoria evolutiva de Darwin adquire no seu trabalho de elaboração teórica. É nesta perspectiva que a espécie homo é vista como uma espécie que, à semelhança do que ocorre com as outras espécies biológicas, emer­ ge como uma especialização que tem lugar na corrente evolutiva. Toda­ via, à diferença das outras espécies, o percurso evolutivo que ela segue e diferente, pois não é ditado unicamente pelas leis da natureza, mas, cada vez mais, pelas leis da história humana; história constituída das transformações que o homem opera na natureza visando a fazer dela o seu novo meio "natural". O homem é a única espécie de que se tem notícia que consegue transformar a natureza para criar seu próprio meio 13. Na expressão história natural, o termo "história" está entre aspas porque é usado de forma genérica, uma vez que ele só pode ser usado, com propriedade, quando aplicado ao homem, em cuja história se insere e adquire significação a história da evolução da natureza.

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em função de objetivos previamente definidos por ele e que, ao fazê-lo, transforma-se ele mesmo, assumindo assim o controle da própria evo­ lução. É a essa dupla transformação, da natureza e dele mesmo, que j chamamos de história propriamente dita, da qual passa a fazer parte a história da natureza. Essa é, em poucas palavras, a visão do mundo e do homem que Vigotski nos apresenta nos seus trabalhos e que explica por que o eixo das suas análises tem como coordenadas a natureza e a cultura, eixo definidor do fundamento da história propriamente dita. Isso explica tam­ bém a constante insistência dele em afirmar a existência de dois tipos de I funções psicológicas interdependentes: as elementares e as superiores;14 aquelas são de natureza biológica, estas de natureza cultural, integrándo­ se ambas no fluxo evolutivo. Com isso Vigotski está afirmando que a história do homem começa na "história" natural, mas não é simples pro­ duto dela. Não é o momento de adentrar-me no estudo desta questão que deverá ser tratada mais adiante. Por ora basta dizer que a evolução cultu­ ral do homem se explica em razão da relação dialética que ele mantém com j a natureza. É nessa relação que a natureza adquire sua dimensão históri­ ca, ao passar a fazer parte da história humana. (Pino, 2000b) Esse contexto teórico e a visão de homem que ele implica levam Vigotski a ver o desenvolvimento psíquico como desenvolvimento cultu­ ral. Talvez seja importante lembrar ao leitor que não se trata de uma mera questão terminológica, mas epistemológica, a qual, em relação à tradição psicológica, representa certamente um novo paradigma. O ponto de partida da investigação que deu origem a este trabalho é um conjunto de idéias sustentadas por Vigotski, em particular duas delas decorrentes, segundo ele, do estudo da história do desenvolvi­ mento cultural da criança. A primeira é que o ser humano é constituído por uma dupla série de funções, as naturais, regidas por mecanismos biológicos, e as cultu-

14. Ao longo deste trabalho, substituir-se-á, com freqúência, a terminologia "funções elementares" e "funções superiores" pela equivalente "funções naturais" ou biológicas e "fun­ ções culturais", ou simbólicas, usada outras vezes por Vigotski.

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raiS regidas por leis históricas. A originalidade do desenvolvimento da criança (ontogênese ou história pessoal) reside, segundo Vigotski (1997: 15-20), no fato de que essas duas séries de funções se fundem entre si a ponto de constituírem um sistema mais complexo, o que explica a difi­ culdade que temos para compreender seu funcionamento. Elas se inter­ penetram de tal maneira que só por abstração é possível separá-las. De um lado, as funções biológicas transformam-se sob a ação das culturais e de outro, estas têm naquelas o suporte de que precisam para consti­ tuir-se, o que as torna, em parte, condicionadas pelo amadurecimento biológico daquelas. Em condições normais de desenvolvimento biológi­ co, as funções culturais vão se constituindo seguindo um ritmo facil­ mente previsível, em razão do ritmo do amadurecimento biológico. A tese da articulação de funções de natureza tão diferente numa unidade única coloca o problema teórico, bastante complexo, da explicação do mecanismo que permite sua integração. A segunda é que a emergência em cada ser humano das funções culturais segue uma lei geral, denominada por Vigotski de "lei genéti­ ca geral do desenvolvimento cultural" que ele formula nos seguintes termos: No desenvolvimento cultural da criança cada função aparece em cena duas vezes, em dois planos, primeiro o social, depois o psicológico, pri­ meiro entre pessoas como uma categoria interpsicológica, depois no inte­ rior da criança como uma categoria intrapsicológica. (1997: 106)15

O enunciado desta lei nos permite dizer que estamos diante de um processo que se dá em dois tempos — um antes e um depois — e em dois planos diferentes — um social e outro pessoal. Isso quer dizer que as funções culturais, que definem a especificidade humana de homo, não emergem diretamente da natureza por força das "leis"16 naturais que 15. "Every function in the cultural development of the child appears on the stage twice, In lwo planes, first the social, then the psychological, first between people as an intermental categorie, then within the child as a intramental categorie". 16. Na expressão leis naturais, o termo "leis" vai entre aspas por entender que — contraria mente a uma tradição que remonta ao Ihiminismo, doutrina que transfere à natureza a

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regem o desenvolvimento orgânico, como se fossem um mero desdo­ bramento dele ou o simples produto da sua maturação. Elas surger como resultado da progressiva inserção da criança nas práticas socia do seu meio cultural onde, graças à mediação do Outro, vai adquirindo I sua forma humana, à semelhança dos outros homens. Portanto, diferen-j temente do que ocorre com as funções biológicas, que se inscrevem nas estruturas genéticas da espécie, as culturais inscrevem-se na história social dos homens. Sua constituição em cada indivíduo resulta de uma espécie de "transposição" de planos (o autor fala em internalização ou conversão): do plano social, onde constituem o suporte das relações hu­ manas, para o plano pessoal. Em outros termos, elas são o resultado de uma conversão das funções das relações sociais que operam na esfera pública em funções dessas mesmas relações operando agora na esfera privada, razão pela qual Vigotski as chama de "quase sociais". A idéia da existência de dois planos pode dar a impressão de que se está falando de dois espaços físicos diferentes, um externo e o outro j interno ao indivíduo, como se se tratasse de uma concepção dualista do desenvolvimento que, apesar de apresentar-se sob outra formulação, seria uma re-edição do dualismo que marca a tradição psicológica, fonte permanente de dificuldades teóricas. Não se exclui a possibilidade de que tal formulação dê origem a possíveis interpretações equivocadas do pensamento de Vigotski; entretanto, esse risco é mais aparente que real, pois embora a operação de "transposição" de um plano para o outro esteja sujeita às leis físicas do tempo — o que permite falar de "um antes" e "um depois" — o objeto dessa operação escapa às leis físicas do espaço. Com efeito, se cada um desses planos recorta, efetivamente, espaços reais de uma geografia física — o espaço concreto da atividade pública e o espaço também concreto da atividade privada — contudo, o que é objeto da operação de "transposição" de um plano para o outro, a signifonte do próprio ordenamento que a tradição religiosa coloca fora dela, num ser transcenden­ te — a natureza não tem propriamente leis, devendo reservar-se este termo para designar os modelos que a ciência cria para explicar as regularidades que observa nos fenômenos natu­ rais. De forma mais específica, chamam-se leis os limites que a sociedade impõe à ação dos indivíduos numa dada coletividade.

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acação, não é de natureza física, mas semiótica, a qual não está sujeita às leis físicas do espaço. Isso nos permite pensar numa espécie de "geogra­ fia semiótica", contraposta à geografia física, onde os espaços podem sobrepor-se sem se confundirem, de maneira que o que é privado possa ser público e o que é público possa ser privado. (Pino, 1992) A idéia da transposição de planos no desenvolvimento cultural, ao implicar um antes e um depois, permite também pensar na existência de um momento zero cultural que se situaria no interstício desses dois tem­ pos. Trata-se, sem dúvida, de um momento mais lógico que físico, em razão da dificuldade de detectá-lo empiricamente. Essa dificuldade, porém, não toma a hipótese menos necessária para justificar a origem social das funções superiores. Ela traduz o momento que precede ime­ diatamente o início da organização da "geografia semiótica" a que me referi acima. Devo reconhecer que tal hipótese não é completamente nova nem totalmente original, pois R. Zazzo (1960) já falara de algo pa­ recido ao referir-se ao estado de "não ser psicológico" que precede o co­ meço do desenvolvimento da criança. A hipótese do momento zero cultural conduz, por sua vez, à ques­ tão das origens de que falei anteriormente: origens da constituição cul­ tural da criança, não mais mitológicas, mas históricas. Trata-se de ori­ gens quase impossíveis de serem detectadas de forma direta no início da vida da criança em razão, de um lado, das condições mesmas do ser criança — um ser biológico cujas marcas culturais se perdem nas bru­ mas da história genética da espécie que precede sua própria história e, de outro, da ação do meio cultural sobre a criança desde os primei­ ros instantes de sua existência. Daí a necessidade de procurar indícios que sejam a prova empírica dessas origens. A razão de procurar as origens do processo de constituição cultural da criança funda-se no se­ guinte raciocínio: a) se o desenvolvimento humano é de natureza cultural17 17. "Psychology has not yet explained adequately the differences between organic and cultural processes of development and maturation, between two genetic orders different in essence and nature and, consequentely, between two basically different orders of laws to which the two lines in the development of the child's behavior are subject". (Vigotski, 1997:3)

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e b) se a cultura18 não é obra da natureza mas do próprio homem, о qual é, ao mesmo tempo, produtor e produto dela; c) então o desen­ volvimento cultural deve ter um começo que não pode ser confundido com o nascimento biológico, pois este é condição da concretização da­ quele, mas não razão suficiente da sua existência. Os itens a e b são premissas que fazem parte do repertório de ideias que constitui o pen­ samento de Vigotski a respeito do desenvolvimento psicológico. O item c é apenas a conclusão lógica de tais premissas. Isso nos coloca diante da idéia da existência de um duplo nasci­ mento, o biológico e o cultural, que traduza as duas linhas de desenvolvi­ mento de que fala Vigotski. Trata-se de uma idéia extremamente sedu­ tora, à condição de não fazer desse duplo nascimento uma re-edição do velho "paralelismo psicofísico" de que fala Leibniz1819ou de qualquer outra forma de paralelismo. Subjacente à idéia de um nascimento cultural após o nascimento biológico existe uma questão de fundo que, sob diversas formulações, atravessa a história do pensamento ocidental, desde a Grécia antiga (Platão, Aristóteles, Sofistas) até os tempos modernos (Grotius, Locke, Hobbes, Rousseau, entre outros). É a questão da passagem, na historia da evolução da espécie humana, do estado de natureza ao estado de socieda"In the development of the child, two types of mental development are represented (not repeated) which we find in an isolated form in phylogenesis: biological and historical, or natural and cultural development of behavior. In: Ontogenesis both processes have their analogs (not parallels), (ibid, p.19). 18. Este assunto será tratado mais adiante neste trabalho. 19. Gottfried W. Leibniz (1646-1716), grande filósofo e matemático alemão, autor do cálculo diferencial, independentemente de Newton, é um crítico do "cogito" cartesiano, sus­ tentando que a verdade resulta do rigor lógico que caracteriza as proposições da razão e de Deus que, como ser infinito que é, pode conceber todas as essências possíveis e todas as combinações que podem ser pensadas com elas. Leibniz chama de mónadas as substâncias simples, sem partes, que Deus cria em número infinito e que contêm todas as suas determina­ ções e que, agregadas a outras, formam as coisas que constituem o mundo. Para explicar a relação das mónadas entre si, Leibniz criou a teoria da "harmonia preestabelecida" por Deus e, para explicar a articulação do conjunto das mónadas que constituem a alma com o conjun­ to das respectivas mónadas que constituem o corpo, criou a teoria do "paralelismo psicofísico", obra também de Deus.

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de passagem considerada necessária para encontrar uma fundamenta­ ção racional à origem da sociedade, do Estado e do direito. Embora esta questão extrapole os limites da análise psicológica, tem desdobramen­ tos que afetam a maneira de conceber a especificidade do ser humano, objeto central da psicologia. Que essa passagem possa ter sido um even­ to histórico ou que se trate unicamente de uma mera exigência lógica tem menos importância do que a afirmação da existência de dois estados ou modos de ser do homem: o natural — o homem como obra da natureza _e o simbólico — o homem como transformador dessa mesma natureza. Pode parecer estranho ao leitor que na discussão do desenvolvi­ mento psicológico seja trazida à tona a questão da cultura, visto que esta questão não tem feito parte, propriamente, das categorias fundamentais das teorias psicológicas do desenvolvimento, qualquer que seja a razão real disso. Não se trata de que a psicologia tenha ignorado a existência da cultura, mas apenas de que ela nunca a considerou uma categoria constitutiva do desenvolvimento. As referências à cultura existem, em graus e formas variáveis. Mas, de uma maneira geral, esta é concebida como um componente do "meio" social, realidade externa ao indivíduo, e não como constitutiva do psiquismo humano. Isso explica que a ques­ tão da cultura não tenha feito parte dos modelos explicativos do de­ senvolvimento humano, fato observado por Vigotski (1997). Foi nesse vácuo teórico do pensamento psicológico que ele introduziu na psicolo­ gia a antiga questão da relação entre "estado de natureza" e "estado de sociedade" sob a nova forma da relação entre "funções biológicas" e "funções culturais", fazendo da cultura a categoria central de uma nova concepção do desenvolvimento psicológico do homem. Com isso, abrese no pensamento psicológico tradicional um novo caminho capaz de trazer novas luzes à compreensão da natureza humana, na qual a pala­ vra "humana" traduz a síntese da relação natureza e cultura. Essa con­ cepção da natureza humana permite resolver muitos dilemas colocados ao pensamento psicológico pelo velho dualismo; dilemas que se tradu­ zem na aparente incapacidade de articular dimensões diferentes de uma mesma realidade, como "corpo e mente", "organismo e meio", "indiví­ duo e sociedade" etc. A introdução na psicologia da questão da nature-

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za cultural do desenvolvimento humano muda qualitativamente o de­ bate psicológico, deslocando-o do campo da biologia geral para o cam­ po da biologia humana, fato que tem ou poderá ter importantes reflexos em vários outros campos do saber. Nas teorias tradicionais do desenvolvimento psicológico, o eixo das análises passa, de forma geral, pela duplicidade de fatores responsáveis por ele: fatores orgânicos, de um lado, fatores ambientais, de outro, enfa­ tizando ora uns, ora outros, ora ambos. O modelo-protótipo que consti­ tui o eixo dessas análises, apesar das suas diferenças, é o de que existe uma relação natural entre o organismo humano e o seu meio, relação en­ tendida como a de dois sistemas distintos e autónomos que interagem entre si. Essa interação varia de acordo com cada uma das vertentes teóricas. Estes sistemas e sua relação têm sido tratados quase sempre de maneira abstrata e genérica, mesmo em teorias que sustentam a objeti­ vidade como princípio de ciência. De forma geral, o organismo humano é visto como uma organização natural cujas estruturas e funções funda­ mentais são compartilhadas por indivíduos humanos e não humanos. Por sua vez, o meio, mesmo quando se reconhece sua especificidade de acordo com cada tipo de organismo, é entendido como o entorno natural em que esses organismos vivem e cuja condição de existência e desen­ volvimento é a adaptação a ele. Pode-se dizer então, como o enfatiza Vigotski (1994a), que, apesar das suas diferenças, as teorias psicológicas compartilham uma mesma visão naturalista do homem e do seu desen­ volvimento. É justamente em contraposição a essa visão naturalista que ele e os seus colaboradores e seguidores sustentam, desde a segunda década do século XX, a natureza histórico-cultural do homem e do seu desenvolvimento. Nesta nova perspectiva, a cultura passa a ser a definidora da natureza humana, uma das inúmeras formas que a nature­ za adquire ao longo da sua evolução. Nesse sentido, o homem represen­ ta a emergência da consciência na natureza. Como isso é possível? Eis uma questão complexa cuja explicação passa, necessariamente, pela discussão daquilo que constitui a característica da espécie humana: a capacidade de inventar meios técnicos e simbólicos para agir sobre a natureza e criar suas próprias condições de existência. Isso coloca duas

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outras questões que serão objeto de discussão neste trabalho: 1) explicar a relação entre a natureza, ordem da qual o homem faz parte, e a cultura, ordem criada por ele e que lhe confere a especificidade humana; 2) ex­ plicar o processo de articulação em cada indivíduo das funções naturais ou biológicas com as funções culturais, características da espécie huma­ na para constituir um ser humano concreto e unitário. Isso supõe que ocorre uma transposição do plano social para o plano pessoal que só é explicável pela mediação semiótica. Embora essas questões não façam parte, diretamente, do objeto desta investigação, sua abordagem é importante, pois permite compreender melhor esse objeto e a démarche que será seguida na sua investigação. Partindo da "lei genética geral do desenvolvimento cultural" enun­ ciada por Vigotski, à qual já fiz referência acima, o que se procura neste trabalho é detectar, nos primeiros meses de vida da criança, indícios da existência de um processo de transformação das funções naturais ou bio­ lógicas em funções culturais sob a ação do meio social da criança. Trata­ se, portanto, de procurar indícios do que podem muito bem constituir os primórdios do nascimento cultural do homem. A função dos indícios, di­ ferente da simples comprobação científica, é dar visibilidade aos efeitos reais e concretos da ação da cultura, através da mediação social do Ou­ tro, sobre a natureza biológica da criança. Em termos mais específicos, procuram-se esses indícios nas formas de comunicação do Outro com o bebê humano, entendendo por "Ou­ tro" um lugar simbólico ocupado pelos inúmeros parceiros das relações sociais da criança ao longo da sua história social e pessoal. De maneira particular, o Outro é constituído nos primeiros momentos de vida do bebê humano pelo seu entorno familiar, em especial pelos pais e paren­ tes próximos, uma vez que é por seu intermédio que o bebê irá estabele­ cendo seus primeiros contatos com o mundo cultural, conforme o prinС1рю da mediação social sustentado por Vigotski em inúmeras passagens das suas obras, em especial duas, a de 1929 e a de 1931 (Vigotski, 1997 e 2000, respectivamente). A razão de escolher os primeiros meses de vida da criança, período pre-verbal, é perfeitamente compreensível, uma vez que é uma investi-

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gação das origens. Todavia, alguém poderia perguntar: como procurar essas origens no período pré-verbal se o mediador do processo de cons­ tituição cultural, a linguagem, está ausente? A resposta não é simples, mas parece perfeitamente razoável pensar que se a fala é a mais proemi­ nente das formas de comunicação humana, ela não é a única daquelas que constituem o universo semiótico em que todas as coisas adquirem significação, constitutivo essencial de qualquer forma de comunicação humana. Estas e outras possíveis indagações nos levam à conclusão de que os indícios das origens da constituição cultural da criança devem ser procurados naquele ponto "x" onde ocorre o encontro das formas simbó­ licas de comunicação adulta, com as quais o Outro pode significar as coisas à criança, com as formas biológicas de comunicação da criança, as únicas de que ela dispõe. Esse encontro constituiria, portanto, o fator desencadeador do processo de constituição cultural da criança. Neste sentido, o que se procura no bebê humano são "indícios não-verbais" que atestem a existência em marcha de um processo de transformação da natureza sob a ação da cultura, processo responsável pela sua consti­ tuição cultural. Eis por que me parece importante investigar as primei­ ras formas de comunicação do bebê com o mundo adulto. Penso que estamos diante de um problema teórico e metodológico extremamente interessante e que, pelo que me consta, não foi ainda suficientemente investigado. O trabalho foi pensado para ser composto de duas partes. A primeira é destinada a montar o que metaforicamente poderia ser denominado de "cenário do humano", ou seja, o ambiente teórico no qual o leitor possa identificar aquilo que, na perspectiva em que se situa este trabalho, constitui o próprio dessa espécie denominada homo sapiens e que, como tentarei mostrar, é da ordem da cultura, no sentido em que este termo é usado no trabalho, o qual supõe que ele esteja relacionado com o de natureza. Isso leva a pensar o humano como uma modalidade nova dessa natureza, tentando escapar dessa forma a qualquer espécie de dualismo. A montagem de tal cenário envolve a discussão, numa certa seqúência lógica, de algumas questões teóricas que fundamentam o que me parece ser a tese principal de Vigotski: "a natureza cultural do desenvolvimento humano", a qual orienta a presente investigação.

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A primeira questão a ser tratada concerne ao princípio que decorre ¿e maneira lógica daquela tese: "o ser humano é um ser cultural". Sen­ do assim, propor-se como objeto de investigação, o estudo do início do desenvolvimento cultural da criança é reconhecer que ela tem que se transformar num ser cultural (capítulo 1), o que equivale a dizer que ela não o é no momento de nascer. As questões a seguir são decorrência lógica desta. O passo seguinte é discutir o conceito de cultura (capítulo 2), uma vez que esta constitui a categoria central da tese do desenvolvimento cultural. Sua discussão é necessária pois não só é termo extremamente polissêmico na literatura especializada e no uso comum, como não foi suficientemente explicitado por Vigotski, apesar da importância que ele tem na sua obra. A discussão do conceito de cultura é contraposta ao conceito de natureza, pois, na perspectiva histórico-cultural que é a des­ te trabalho, sua relação é dialética,20 o que ajuda a entender por que existe, ao mesmo tempo, continuidade e descontinuidade entre a histó­ ria natural do homem e a sua história cultural. Analisado o conceito de cultura e delineados os contornos dentro dos quais ele é usado neste trabalho, considero necessário submeter a uma análise conceituai outros três termos usados continuamente por Vigotski e que, no meu entender, são essenciais para compreender o seu pensamento. Refiro-me aos conceitos de "função", de "relações sociais" e de "conversão" (capítulo 3) que o autor não discutiu suficientemente, o que impede ter uma ideia clara do sentido exato em que ele os utiliza na sua obra. A discussão da questão da cultura e da sua relação com a de natu­ reza leva à análise de outra questão fundamental, a questão semiótica (capítulo 4), sem a qual é muito difícil, senão impossível, compreender a natureza da cultura e, como conseqiiência, a natureza humana. Como ficará evidenciado no conjunto do trabalho, a significação é a chave expli­ cativa do conceito de cultura e da relação desta com a natureza. 20. Por relação dialética entende-se aqui uma relaçao onde os dois termos que a comPoem, embora negando-se mutuamente, são mutuamente constitutivos.

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Dado que a questão do desenvolvimento cultural é colocada por ¡ Vigotski em termos da existência de um tipo específico de relação entre funções biológicas e funções culturais, torna-se necessário discutir essa i questão (capítulo 5) para poder compreender a dimensão real do coiicei-1 to de desenvolvimento de que ele está falando e o que o diferencia de outras concepções existentes em psicologia. A segunda parte é consagrada a procurar os indícios da ação da cultura sobre as funções biológicas da criança desde os primeiros mo­ mentos do seu nascimento, os quais, segundo a hipótese que norteia este trabalho, devem testemunhar do início do processo de "constituição cul­ tural" da criança. Falar em indícios de uma presença equivale a falar da "presença da ausência",21 ou seja, a presença de algo que, embora esteja | lá, não está de forma diretamente perceptível para o observador. Investigar algo ausente pelos indícios da sua presença requer certos j procedimentos metodológicos próprios para tal finalidade, à semelhan­ ça dos utilizados em outros campos de investigação nos quais o objetivo é descobrir o objeto ausente nas pistas e marcas que denunciam a sua presença. Uma metodologia apropriada para este tipo de investigação tem muito a ver com o que se convencionou chamar de "paradigma indiciai" (C. Ginzburg, 1980; Ecco e Sebeok, 1991), primeiro assunto desta segunda parte (capítulo 6). O capítulo seguinte (capítulo 7) é dedicado à identificação e justifi­ cação dos parâmetros que são utilizados para a procura e análise dos indícios. Trata-se, de um lado, dos "indicadores" de funções biológicas e, de outro, dos "gradientes" de evolução dessas funções. É neles que será procurada a existência dos indícios que, uma vez identificados, serão o objeto de uma análise detalhada (capítulo 8).

21. Lembrando o título da obra de Henri Lefebvre, La présence et Гabsence, Paris: Casterman, 1980, onde o autor discute a questão da representação.

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PRIMEIRA PARTE

Natureza cultural do psiquismo humano ASPECTOS TEÓRICOS

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A criança, um ser cultural ou da passagem do biológico ao simbólico A INSUFICIENCIA DO NASCER HUMANO Tornou-se já um lugar-comum afirmar que, ao nascer, o homem é um animal incompleto, frase atribuida a F. Nietzsche, ou que ao nasci­ mento a criança parece um ser prematuro, como teria afirmado o antro­ pólogo L. Bolk. A fragilidade do bebé humano no momento de nascer e a sua insuficiência para sobreviver por conta própria fazem dele, efeti­ vamente, o mais indefeso dos mamíferos. Durante muito tempo bem mais de aquele que as crias de animais mais próximos do ser humano precisam para adquirir sua autonomia —, a sobrevivência do bebé hu­ mano depende totalmente da solidariedade dos seus semelhantes, em particular dos pais. Muitas semanas deverão transcorrer antes de ele ser capaz de articular movimentos com os braços para atingir os objetos Próximos. Longos meses serão necessários para que atinja uma relativa autonomia de movimento para cortar o espaço e aproximar-se com as próprias pernas dos objetos que o circundam. Enfim, vários anos deve­ rão passar antes que ele consiga realizar com um mínimo de destreza as Principais funções motoras (correr, saltar, subir e descer escadas, mani­ pular objetos etc.). Sendo isso devido a um ritmo de maturação próprio

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do homo sapiens\ parece difícil explicar biologicamente esse aparente atra­ so maturacional e a decalagem temporal que separa a maturação dos bebés humanos da maturação dos bebés de grande parte das espéci que o precederam. Pela lógica da evolução biológica, segundo a qual o processo evolutivo se apresenta em termos de ganhos cumulativos das espécie* mais recentes em relação às mais antigas, o bebé humano deveria ser mais "esperto" que as crias das espécies precedentes, não ao contrário. A explicação desse aparente paradoxo parece residir, justamente, na­ quilo que constitui a vantagem evolutiva de homo sapiens: suas "fun­ ções superiores", de natureza cultural, particularmente a fala. Vale a pena lembrar aqui a observação que faz Wallon (1942: 78-88) quando discute os trabalhos, típicos dos anos 20 do século passado, comparan­ do comportamentos de crianças e macacos da mesma idade, submeti­ dos ao mesmo tipo de provas cuja solução prática exige o uso de ins­ trumentos. De forma geral, esses trabalhos salientavam a desvanta­ gem da criança em relação ao simio até o momento de constituição da fala. Segundo Wallon, tais comparações não podem ser exatas, pois na "inteligência prática" (aquela que usa instrumentos) do macaco entra demasiada habilidade motora para que a criança de um ano de idade possa competir com ele. Não é aí, alerta o autor, que deve ser procurada a diferença entre eles, mas na maneira como se configura o campo espa­ cial de cada um: A distinção essencial entre eles é que, antes de tudo, o espaço do macaco nada mais é do que o dos seus gestos e objetivos. O espaço da criança não é ainda o meio neutro e abstrato, onde as mudanças de posição entre objetos podem ser livremente imaginadas, mas ele já está amalgamado 1. Segundo a paleantropologia contemporânea, o homem atual, denominado homo sapiens sapiens, é a mais recente subespécie da espécie homo sapiens (a outra sendo o homem do Neandertal) aparecida uns 400.000 anos atrás e que, junto com as espécies homo erectus e homo habilis, esta aparecida uns 2 milhões de anos atrás, constituem a espqpe humana. Quan­ do neste trabalho falo de "espécie humana" estarei referindo-me, em particular, à espécie homo sapiens, sem ignorar que muitas das suas características são conquistas das espécies de Homo que a precederam (como a posição ereta, a marcha, a criação de ferramentas etc.).

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com os próprios objetos, como uma das suas qualidades fundida nas outras. (Wallon, 1942: 88)2

Ou seja, mesmo sem possuir ainda a liberdade que lhe outorgará a fala — a qual fará toda a diferença entre a criança e o primata da mesma •jaj e _aquela, contrariamente ao que ocorre com este, percebe já os objetos com suas formas e qualidades próprias e suas posições no espa­ ço, o que lhe permite estabelecer relações entre eles com liberdade sufi­ ciente para não ser condicionada a agir pela gestalt da situação objetiva, como ocorre com o macaco. A possibilidade de comparar os objetos e suas distâncias e de escolher entre os diferentes meios à sua disposição para atingir seus objetivos torna a ação da criança mais lenta que a do simio da sua idade, mas, em compensação, toma-a subjetiva e delibera­ da (liberada do condicionamento da situação). Os mecanismos genéticos ditos "instintivos" que, ao que parece, regulam as funções responsáveis da precoce autonomia do bebê no mundo animal, não operam no caso do bebê humano ou, pelo menos, não da mesma maneira. Com efeito, desde os primeiros instantes da sua existência, diferentes mecanismos culturais entram em ação que confe­ rem às ações do bebê humano um caráter cada vez menos automático ou instintivo e cada vez mais imitativo e deliberativo. É assim, por exem­ plo, que no mundo dos mamíferos a natureza parece ter provido as fê­ meas genitoras de necessidades cuja satisfação possibilita a satisfação das necessidades vitais das crias (como comer a placenta e o cordão umbilical, de alto valor nutritivo, protegendo a cria das nefastas conseqiiências de ficar ligada ao corpo da progenitora; ou a atração por certos cheiros e contatos que possibilitam a estimulação por parte desta de funções fisiológicas importantes para o desenvolvimento do seu bebê ou ainda a manutenção deste perto dela de forma a prover sua nutrição e Proteção), ao passo que no mundo humano, o conjunto de ações des­ tinadas a garantir o atendimento das necessidades vitais do bebê fica na 2- As citações em português de textos em outras línguas que figuram na bibliografia ste Uabalho são traduções minhas; evito assim ter que repetir essa advertência em cada Un>a das citações.

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dependência da livre e voluntária iniciativa da mãe e/ou do grupo so­ cial, o que explica a ocorrência de atos que, direta ou indiretamente, atentam contra a sobrevivência do bebê (abandonos, agressões físicas, infanticídios etc.), atos impensáveis em qualquer outra espécie. Enquanto no mundo animal a sobrevivência do bebê é garantida pelas tendências instintivas da fêmea progenitora e/ou de indivíduos específicos do gru­ po, no mundo humano é confiada à decisão dos pais monitorada pelas normas sociais. A razão e o afeto, qualidades tipicamente humanas, são, sem sombra de dúvida, forças poderosas para garantir aos frágeis bebés humanos a sua sobrevivência na sociedade adulta; a história mostra, porém, que, muito mais freqüentemente que o que seria desejável, elas podem não funcionar. Todavia, por paradoxal que possa parecer, é nes­ sa possibilidade indesejável que reside a superioridade da cultura sobre os instintos. Pode-se afirmar, então, que a aparente condição de inferioridade e de prematuridade do bebê humano, em vez de constituir uma perda e um obstáculo ao seu desenvolvimento, representa, pelo contrário, um enorme ganho e um grande meio de desenvolvimento, uma vez que possibilita que possa ser educado, ou seja, que possa beneficiar-se da ex­ periência cultural da espécie humana para devir um ser humano. Nesse caso, a aparente desvantagem em termos biológicos constitui uma van­ tagem em termos culturais. Isso se pode dizer de quase todas as funções biológicas: o fato de não estarem totalmente prontas no momento do nascimento possibilita que elas sofram profundas transformações sob a ação da cultura do próprio meio. É verdade que também as crias de grande número de espécies animais passam, nos primeiros dias ou semanas de vida, por mudan­ ças resultantes da aprendizagem social. Mas existe uma grande dife­ rença entre tais espécies e o homem, pois ao passo que no caso dos animais essas mudanças ocorrem nos limites do plano biológico, no qual a evolução permanece relativamente estacionária, no caso dos seres humanos, extrapolam o plano biológico e ocorrem no plano cultural, onde a evolução parece não ter limites. Pela sua natureza cultural, o desenvolvimento humano envolve processos que a simples aprendi-

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não consegue explicar, como ficará evidenciado ao longo deste trabalho.

o BIOLÓGICO E 0 CULTURAL: UMA RELAÇÃO COMPLEXA Uma conseqiiência lógica do princípio geral enunciado por Vigotski (1997: 106), o da origem social das funções mentais superiores ou cultu­ rais, é que a história do ser humano implica um novo nascimento, o cultural, uma vez que só o nascimento biológico não dá conta da emer­ gência dessas funções definidoras do humano. Mas se existe um nasci­ mento cultural deve existir também, como já foi dito anteriormente, um hipotético momento zero cultural. A razão é simples: se as funções cultu­ rais têm que se "instalar" no indivíduo é porque elas ainda não estão lá, ao contrário do que ocorre com as funções biológicas que estão lá desde o início da existência, nem que seja de forma embrionária. O momento a que estou me referindo é um momento em que as funções biológicas ainda estariam sob o comando único das "leis" da natureza e poderia corresponder, no plano ontogenético, ao que teria sido, no plano filogenético, aquilo que os especialistas chamam de "elo perdido" da corrente evolutiva, o qual conduziu os ancestrais de homo sapiens do estado de natureza ao estado de cultura. Todavia, a questão não é tão simples como parece à primeira vista, pois, embora não haja ainda evidências a respeito da maneira como a experiência cultural da humanidade afeta sua evolução genética e neurológica, a idéia de que o curso que segue essa evolução tem muito a ver com a experiência cultural dos povos parece ser uma hipótese científica cada vez mais plausível. Aplicando isso a cada ser humano singular e concreto, poder-se-ia dizer que o património genético herdado por ele dos seus antepassados já vem marcado com as marcas da cultura. Isso significa que ele carrega um valor cultural agregado que faz dele um ser humano em potencial, ou seja, alguém capaz de tomar-se tal desde que esteja inserido num meio human°, com tudo o que este termo implica. Em outras palavras, é o que, no dizer de Dobzhansky (1972), confere ao recém-nascido a aptidão para a cultura, sem a qual nunca poderia adquirir a condição humana.

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Entretanto, mesmo revelando-se verdadeira a hipótese da maro cultural na biogenética humana, ainda assim é possível falar de um mo­ mento zero cultural como o momento inaugural da concretização dessa aptidão para a cultura, concretização que constitui o que denominamos de história da constituição cultural da criança. Isso mostra que, na simplicidade do seu enunciado, "o princípio geral da origem social das funções superiores" encerra uma grande com­ plexidade teórica e metodológica, colocando à ciência desafios que ex­ trapolam as condições de análise de um único campo do conhecimento como a psicologia. ■ Um primeiro desafio é explicar os fatores que intervieram para dar origem a cada uma das espécies de Homo. Dentre as várias surpresas que o anúncio oficial do seqüenciamento do genoma humano3 trouxe aos cientistas e ao público em geral foi verificar que o número de genes encontrados nele era muito inferior ao esperado — variando, conforme os cálculos de cada um dos grupos de pesquisa, entre uns 31.000 e 40.000 respectivamente (igual ao do milho e pouco maior do que o do camun­ dongo) — e que o genoma não explica, por si só, a grande distância que separa o homem das plantas e dos animais mais próximos dele. Craig Venter teria afirmado, ao anunciar o fim do seqüenciamento do seu gru­ po de pesquisa, o Celera Corporation: "O tamanho do genoma, o núme­ ro de pares de bases, é irrelevante para a biologia"4. Trata-se do reconhe­ cimento de que só os genes, apesar de serem responsáveis da produção da matéria-prima dos seres vivos, as proteínas, não dão conta da diver­ sidade específica das formas de vida, levando os cientistas a repensar! certos conceitos tradicionais em biologia, em particular o de "gene" como unidade da genética, e a reorientar suas futuras pesquisas em direção dos complexos protéicos, proteínas e enzimas, e dos SNPs (pequenas 1 trocas de alguma das quatro bases numa seqúência gênica, responsá3. A publicação simultânea dos resultados do seqüenciamento do genoma humano pelos dois grupos internacionais de pesquisa, chefiados respectivamente por Craig Venter e Francis Collins, foram publicados, simultaneamente, nas revistas Science e Nature de 12 de fevereiro de 2001. 4. Folha de S. Paulo, 12/2/2001, p. A 12.

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Has funções genômicas. Um caso concreto das surpresas que as investi"estampagem genômica"5, que o autor define como "uma situação na qual a seqüéncia de DNA pode apresentar comportamentos condicio­ nais dependendo de ser herança materna — ou seja, do óvulo — ou paterna — do espermatozóide". Se cada vez mais é reconhecido que o meio ambiente, em geral, exerce um importante papel sobre o funciona­ mento do genoma de seres vivos delimitados pelas condições naturais de existência, com maior razão pode se esperar que o meio humano, criado pelo homem para produzir suas próprias condições de existên­ cia, exerça uma influência importante na sua estrutura genética ao lon­ go do tempo. Apesar das numerosas vozes em contrário existentes ainda no meio científico, uma coisa parece ficar cada vez mais clara para os biólogos: em biologia não há mais lugar para reducionismos e determinismos genéticos. Ao mesmo tempo, parece estar se criando nos círculos cientí­ ficos uma espécie de consenso a respeito do papel fundamental que o ecossistema desempenha na montagem das estruturas genéticas das vá­ rias espécies. Em outros termos, isso poderia significar que as caracte­ rísticas de cada espécie teriam a ver com sua "história" ecológica e ten­ deriam a conservar essa "história" na forma de memória genética. Também parece razoável pensar que os ganhos que essa memória genética proporciona a cada espécie sejam repassados às espécies poste­ nores, o que equivale a dizer que as espécies mais recentes e mais com­ plexas se beneficiariam mais e melhor da experiência evolutiva das mais antigas. Isso explicaria, por exemplo, por que a espécie humana não só desenvolveu sistemas de comunicação oral mais complexos que os das esPecies que a precederam, por mais surpreendentes que sejam os sistemas de comunicação de algumas delas, mas que tenha sido também 5. David Haig, Genomic Imprinting and Kinship, 2003, no site www.edge.org.

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capaz de maximizar as possibilidades comunicativas orais existentes! nessas espécies e inventar a fala. Um segundo desafio é explicar como ocorre a passagem da espécie humana do plano biológico para o plano cultural. Se já é um grande desafio explicar a maneira como mudanças ecológicas produzem nasj espécies mudanças genéticas capazes de dar origem a outras espécies,! um desafio ainda maior é explicar a emergência de uma espécie que é capaz de alterar as próprias condições ecológicas e criar outras que lhe ¡ permitem transpor os limites da natureza — e os seus próprios como integrantes dessa mesma natureza — conferindo-lhe uma nova formal de existência: uma existência cultural. Um terceiro desafio é explicar a origem e constituição da cultura e a maneira como ela se relaciona com a natureza e confere a esta umaj nova forma de existência. Isso envolve dois planos de explicação: o da história da espécie e o da história do indivíduo. Em ambos os planos, as duas questões que surgem são equivalentes, não idênticas: de um lado, explicar a passagem da espécie — a qual inclui todos os indivíduos que a constituem — do plano da natureza ao plano da cultura; de outro lado, explicar a passagem de cada indivíduo da condição de um ser biológico à de um ser cultural, sendo que o biológico e o cultural, nesse caso, fundem-se sem perderem sua própria especificidade. Um último desafio é explicar como os ganhos culturais da espécie humana se concretizam em cada um dos indivíduos dessa espécie, como é enunciado na "lei genética geral do desenvolvimento cultural" a que Vigotski se refere. Nesse caso, acontece uma espécie de transposição da experiência coletiva para o indivíduo, transposição que tem lugar ao longo da existência do indivíduo pela conversão das funções sociais em funções pessoais (1997:106; 2000: 27). Mas, se existe conversão daquelas j nestas, deve existir um mediador ou "conversor" que, como já foi mos­ trado (Pino, 1992) e ainda será visto mais adiante neste trabalho, é da ordem da significação. Não faz parte dos objetivos deste trabalho discutir as várias e com­ plexas questões levantadas por esses desafios. Na realidade, a única questão que interessa diretamente ao assunto aqui tratado diz respeito

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último deles: explicar como os ganhos culturais da espécie humana se ncretizam em cada indivíduo ou, em outros termos, como de simples ser biológico a criança se torna um ser cultural semelhante aos outros homens. Mas esta questão subentende alguns problemas teóricos iden­ tificados no terceiro desafio, os quais, embora não fazendo parte diretamente dos objetivos deste trabalho, serão abordados aqui, mesmo de forma sucinta, para dar ao trabalho consistência teórica. O primeiro problema tem a ver com a emergência da espécie hu­ mana, a qual coloca a questão da existência de duas ordens diferentes de realidade: a ordem da natureza — aquela na qual está inserida a pró­ pria existência do homem enquanto espécie —, e a ordem da cultura — aquela cuja existência é obra do homem, o qual por sua vez é obra dela. O segundo problema tem a ver, mais especificamente, com a constitui­ ção humana de cada indivíduo dessa espécie. O primeiro remete ao pla­ no filogenético — ou da humanização da espécie homo sapiens — e, como tal, extrapola a área da psicologia, abrangendo outras áreas, como a pa­ leontologia, a etnologia e a antropologia. O segundo remete ao plano ontogenético — ou da humanização de cada membro dessa espécie — e, como tal, corresponde propriamente à área da psicologia, na medida em que recobre o desenvolvimento psicológico do indivíduo. Ambos os problemas, porém, remetem a uma mesma questão: como realidades naturais ou biológicas podem adquirir forma cultural e como realidades culturais podem se concretizar, ou objetivar, em realidades naturais ou biológicas; em suma, como duas ordens diferentes de reali­ dade podem concorrer para a constituição unitária do ser humano. Esta questão, como os problemas que ela envolve, apela a um mesmo princí­ pio explicativo que remete, inexoravelmente, à questão semiótica, como Untarei mostrar mais adiante. Embora a psicologia esteja voltada para o estudo do desenvolvi­ mento psicológico do ser humano, a questão da relação entre natureza e Cultura nunca fez parte da sua agenda de pesquisa, talvez por considera'la alheia ao seu campo próprio de conhecimento. Entretanto, ela tem Se envolvido em problemáticas que, na realidade, outra coisa não é sea° versões diferentes da mesma questão — tais como a da relação or-

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ganismo x meio, a da relação corpo x alma (ou mente) e a da relação indivíduo x sociedade. Problemáticas que, a bem dizer, são insolúveis nos termos em que a psicologia vem colocando-as, não conseguindo superar as contradições que elas implicam nem escapar da armadilha do dualismo. Na análise dessas problemáticas, duas concepções principais têm) prevalecido na psicologia: aquela que, na linha de uma tradição filosóftl ca milenar (com forte influência religiosa), faz da psique (alma, mente ou qualquer outra denominação utilizada) a sede das faculdades ou fun-l ções nobres do homem (racionalidade, vontade, consciência etc.), em oposição ao soma (corpo, organismo etc.), sede das funções orgânicas consideradas menos nobres pela sua condição animal, e aquela que, na linha de diferentes versões de um materialismo mecanicista, desconsi-J dera no homem tudo o que extrapola a materialidade e a objetividade das funções orgânicas. Uma análise atenta das dificuldades da psicologia em lidar com essas problemáticas revela as conseqiiências que tem para a análise psi-| cológica o fato de não levar em conta a cultura como definidora da con­ dição humana. A corrente histórico-cultural de psicologia, cuja figura de proa é Lev S. Vigotski, constitui uma exceção na história do pensamento psicológico, não só porque introduz a cultura no coração da análise, mas I sobretudo porque faz dela a "matéria-prima" do desenvolvimento hu­ mano que, em razão disso, é denominado "desenvolvimento cultural", o qual é concebido como um processo de transformação de um ser bioló­ gico num ser cultural. Dessa forma, introduz-se no plano do desenvol­ vimento do indivíduo a problemática do desenvolvimento da espécie homo sapiens. Se o desenvolvimento daquele não é uma simples repeti­ ção do desenvolvimento desta, todavia, na medida em que o desenvol­ vimento da espécie é a história da sua humanização e o do indivíduo é a história da humanização de cada membro dessa espécie, conclui-se que este é um caso particular daquele ou, em outros termos, que a história pessoal de cada indivíduo é um caso particular da história geral da es­ pécie. Não é fácil precisar as diferenças e as semelhanças que existem entre essas duas histórias, em particular porque a história da espécie

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ressupõe a dos individuos que a compõem e a destes só pode aconte” dentr0 daquela. Mas algo que dá a exata dimensão de escala entre as duas histórias é que, de um lado, a humanização da espécie é uma "ta­ refa coletiva", enquanto a humanização de cada indivíduo é "tarefa do coletivo"; e, de outro lado, que a humanização da espécie confunde-se com o processo de produção da cultura, enquanto que a humanização do indivíduo confunde-se com o processo de apropriação dessa cultura. Ao discutir a questão das funções psicológicas, Vigotski utiliza uma nomenclatura que parece reproduzir o velho "mind body problem" da tradição psicológica: "funções orgânicas", de um lado, e "funções men­ tais", de outro. Entretanto, as semelhanças param por aí, pois não só as funções superiores (pensar, falar, rememorar, ter consciência etc.) não são obra da natureza mas dos homens, como, apesar de serem de natu­ reza diferente das funções elementares, são inseparáveis delas. Exatamente o contrário do que professa a maioria das teorias psicológicas, para as quais tais funções ou são meras entidades metafísicas ou são fruto da maturação orgânica. Para Vigotski e a vertente histórico-cultural, nem as funções ele­ mentares podem, por si mesmas, dar origem ou acesso às funções supe­ riores, nem estas são simples manifestação daquelas. As funções ele­ mentares se propagam por meio da herança genética; já as superiores propagam-se por meio das práticas sociais. O que, em razão da sua na­ tureza simbólica, permite dizer que elas se propagam por si mesmas. E o que ocorre, por exemplo, com a palavra (função do falar) e com a idéia (função do pensar) que, à maneira do fogo que consome tudo o que está em sua volta, elas transformam tudo em palavra e em idéia. As palavras dão origem a outras palavras; as idéias, a outras idéias. A natureza transformar-se em cultura, sem perder suas caracteríscas>e a cultura materializar-se em natureza constitui um paradoxo que So 0 caráter simbólico da cultura pode desvendar. Se é próprio de seres biológicos semelhantes ao homem, providos Um sistema nervoso suficientemente desenvolvido, perceber e difereuciar as coisas, associar umas às outras, emitir e captar sinais que

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lhes permitam orientar suas ações, realizar escolhas de parceiros e сощ-j partilhar emoções (expressão de uma atividade cognitiva e social que lhes permite interagir com o seu meio e com os seus congéneres), 0 próprio do homem é conferir a todas essas funções uma significação, 0 que dá às atividades biológicas uma dimensão simbólica. Atribuir sigJ nificação a essas funções não é destituí-las da sua condição natural, como atribuir significação às coisas não é destituí-las da sua condição material, mas torná-las funções e coisas humanas. Atribuir significação às coisas — as que o homem encontra já prontas na natureza e as que ele produz agindo sobre ela — constitui o que entendemos por produ-J zir cultura. Dessa forma, falar da relação entre funções biológicas e funções culturais significa falar de uma relação pela qual aquelas, sob a ação destas, adquirem uma dimensão simbólica, ou seja, uma nova forma de existência. A passagem do homem do estado de natureza ao estado de cultura é um processo cujos detalhes mal podemos imaginar e do qual pouca coisa podemos afirmar além de que se trata de algo paradoxal, uma vez que a cultura é, ao mesmo tempo, a condição e o resultado da emergên­ cia do homem como ser humano. Isso quer dizer que a história da trans­ formação da natureza (história cultural) é a história da humanização de Homo; portanto, trata-se de uma mesma e única história. Se ainda sabe-j mos pouco a respeito dessa passagem, muito nos resta ainda por saber! a respeito da maneira como ocorre a passagem da criança da condição de um ser biológico para a de um ser cultural. Mas essa passagem tem que existir sob pena de não poder falar em humanização do homem. I A hipótese do momento zero cultural, ideia lógica inerente a essa passagem, confere a este trabalho uma importância particular, pois ela pode muito bem constituir a chave de explicação da natureza humana do homem. Se, ao nascer, o bebê humano é um ser totalmente desprovido dos meios simbólicos necessários para ingressar no mundo da cultura construído pelos homens e assim ter acesso à condição humana, parece razoável imaginar que ele só possa ingressar no mundo da cultura por intermédio da mediação do Outro (o que implica, necessariamente, a sua progressiva inserção nas relações humanas e nas práticas sociais)!

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então as seguintes interrogações: 1) Quando e como ocorre o Surged cultural da criança? 2) Como opera a mediação do Outro (em ticular, os pais) nesse nascimento? 3) Como se dão, na ausência da fala os primeiros contatos do bebê com a cultura? 4) Como ocorre a conversão da cultura em "material" constitutivo do ser cultural da crian­ ça? 5) O que ocorre com as funções naturais ou biológicas sob o impacto da cultura? Pelo que me consta, estas perguntas ou não foram assim colocadas ou não tiveram ainda uma resposta satisfatória, mesmo por parte de autores que fazem da matriz histórico-cultural seu referencial teórico. O próprio Vigotski (1987, 1996), fazendo-se eco das idéias da época, mos­ trou-se bastante ambíguo ao tratar da questão da diferença que existe, antes do aparecimento da fala, entre o comportamento do bebê humano e o das crias dos primatas mais próximos do homem, por causa prova­ velmente da contigüidade biológica que existe entre ambos. Tentar responder a estas perguntas constitui o objetivo principal deste trabalho, mas só no fim dele poderemos saber se há ou não res­ postas a essas perguntas e quais são elas. Espera-se que com essas res­ postas não só se possa decifrar o enigma das origens da constituição cul­ tural do ser humano, como também compreender, indiretamente, algo sobre a maneira como esta ocorre na história pessoal.

o DUPLO NASCIMENTO DA CRIANÇA Parece razoável admitir — embora nos falte o testemunho da figu­ ra principal que é o bebê humano — que o nascimento biológico constii para este o ingresso num mundo totalmente estranho. Estranho não So Porque o mundo é sempre estranho para quem acaba de entrar nele, SeJa arúmal ou humano, mas também porque a sensibilidade e a percepÇao biológicas, suficientes para a rápida adaptação das crias de animais Próximos do homem ao seu meio, são por si só insuficientes para a Captação do bebê humano ao meio cultural, seu novo meio. Isso nos Permite falar em termos de dois nascimentos: um natural, outro cultural.

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É específicamente deste que estarei tratando neste trabalho, mas sen perder de vista aquele. Vem ao caso lembrar aqui o que H. Maturana conta ao comentar, num dos seus escritos (1984), o caso de duas meninas bengalis, uma de 5 e outra de 8 anos, encontradas em 1922 no meio de uma "família" de lobos, da qual foram retiradas pelo missionário da localidade que as teria encontrado, sendo depois submetidas à readaptação no meio hu­ mano. A menor sobreviveu pouco tempo; a maior não mais de 10 anos. Segundo as informações fornecidas por esse autor, obtidas de fontes que ele não revela, a que sobreviveu mais tempo conseguiu fazer pro­ gressos no campo da marcha bípede, da fala e de outras funções huma­ nas, tendo porém muita dificuldade para superar hábitos adquiridos na convivência com os animais e que para ela tinham se tomado hábitos naturais (por exemplo, quando colocada em situações de deslocamento que exigiam maior rapidez, ela usava a maneira de correr dos lobos, o que a tornava mais eficiente). Eis o que nos diz o autor: Este caso — e não é o único — mostra-nos que embora na sua constitui­ ção genética e na sua anatomia e fisiologia fossem humanas, estas duas meninas nunca chegaram a integrar-se ao contexto humano. As condutas que o missionário e sua família queriam mudar nelas, porque eram aberrantes num contexto humano, eram inteiramente naturais à sua cria­ ção como lobos. (1984: 87) Se a sobrevivência dos organismos depende da sua capacidade de adaptação às condições do meio, como afirma a teoria da evolução, a aquisição dos modos de viver e de funcionar dos lobos constituiu para essas crianças a forma natural de adaptação às condições desse meio, no qual a fatalidade — pois ignoramos como foram parar lá — colocara-as desde tenra idade. Esse caso (o mais recente dos vários de que se tem notícia) confirmaria algo que, cada vez mais, está se impondo ao meio científico: que a genética da espécie homo é ligeiramente diferente da genética das outras espécies, em particular as mais próximas dela, o que explicaria a capacidade inata de adaptação dessas crianças ao modo de vida dos lobos. Sua penosa e difícil readaptação posterior ao meio hU'

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assim como o breve tempo de sobrevivência nele, segundo as formações disponíveis, revelaria também outras duas características juimanas: de um lado, a importância da primeira infância na consolida- do modo de operar das funções biológicas; de outro, que a aquisição das funções culturais, próprias do modo de operar humano, é tarefa difícil e complexa que não decorre da mera constituição biológica, mas das condições específicas do meio em que se está inserido. Não obstante a importância fundamental das funções biológicas para adquirir o modo de ser humano, no mundo dos homens o ato de nascer tem muito mais o caráter de um evento cultural do que de um acontecimento biológico, embora não deixe de ser uma celebração da vida. A produção da vida, mesmo quando ela não é desejada, é um fato cultural de conseqiiências sérias. Antes mesmo que ela ocorra, o possí­ vel candidato à humanidade já faz parte do universo cultural dos ho­ mens como "objeto do desejo do Outro"6, qualquer que seja a forma que possa tomar este desejo. Com efeito, a produção da vida, em quaisquer condições que ela ocorra, é um acontecimento cujas repercussões sociais não deixam seus autores indiferentes. O futuro de quem nem mesmo 6. A questão do "Outro" é uma questão complexa em razão dos diferentes tratamentos que ela recebeu, particularmente por dois autores que mais nos interessam: Hegel, na Feno­ menología do Espírito (1941, v. 1: 145-166) e Lacan, no texto "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano" (1966: 793-827). Segundo Hegel, o desejo do homem constitui-se por meio da mediação do desejo do outro, ou seja, seu objeto é o desejo do outro, pois o que o homem deseja é ver reconhecido o seu desejo, o que implica em ser desejado pelo outro. Na perspectiva hegeliana, como nos diz A. Kojève (1947), é o desejo consciente que constitui um ser em objeto (moi) da consciência de si e o revela como tal levando-o a dizer EU . Temos aí um desdobramento da própria consciência de si em objeto e sujeito do desejo. a lc*óia de Hegel, esse eu-objeto do desejo é uma realidade natural que tem que ser negada P6 a ° nome Cours de lenguistique genérale, por seus alemos C. Bally, A. Sechehaye bras ^ 'eC^ n®er' com anotaÇões de sala de aula revistas pelo próprio Saussure. A tradução ‘leira foi feita pela Cultrix em 1969. Segundo W. Noth (1996: 16-17), existem outras verfeda 6SSa Рг™ е^га edição: a de Mario de Tullio, 1972, que completa aquela; a edição comene Rudolf Engler, de 1968, em dois volumes, e uma nova edição publicada em Tóquio, 0lltr ' c°m o título Trosième corns de linguistic¡ue générale, acrescentando as anotações de 0 aluno descobertas mais tarde.

Quanto ao primeiro, os escritos de Saussure permitem conchy, que ele considerava que a semiologia, diferente da semântica ou estudo do significado na língua, seria no futuro a nova ciência dos siste­ mas sígnicos (parecendo ignorar o que já fora escrito a respeito desde a época grega). Segundo ele (1969: 24), essa ciência, a chamar-se semiologia (do grego sêmeion, signo), ocupar-se-ia da "vida dos signos no seio da vida social" e constituiria uma "parte da psicologia social" e, por conseguin­ te, da psicologia geral. Essa ciência ensinaria "em que consistem os sig­ nos, que leis os regem". A lingüística seria então "uma parte dessa ciên­ cia geral", de forma que "as leis que a semiologia descobrir serão aplicá­ veis à lingüística", a qual estará vinculada a um domínio específico dos fatos humanos. Fica claro então que Saussure reconhece a existência de muitos ou­ tros sistemas sígnicos além da lingüística. O que não fica tão claro é o pensamento do autor a respeito dos vínculos da semiologia nem com a psicologia social, como afirma nesta parte das conferências, nem com "a ciência das instituições sociais" (sociologia), como diz em outros luga­ res, pois sustenta também que "a lingüística pode erigir-se em padrão de toda a semiologia", uma vez que a língua é "o mais completo e mais difundido sistema de expressão e também o mais característico de to­ dos", embora continue dizendo que a língua nada mais é que um siste­ ma particular (1969: 82). Entretanto, quando ele analisa a natureza do signo, se refere, unicamente, ao signo lingüístico, ao qual atribui carac­ terísticas que o excluem como unidade semiótica mais ampla. Ao falar da natureza do signo, Saussure refere-se a ele em termos de "unidade lingüística" constituída da união de dois termos, ambos psíquicos, unidos no cérebro por um vínculo de associação: uma imagM acústica e um conceito. "O signo lingüístico" — diz ele — "une, não uma coisa a uma p^3' vra, mas um conceito a uma imagem acústica", a qual não é o som físic°' "mas a impressão (empreinte) psíquica desse som" ou, em outros teíj mos, é a representação que nossos sentidos nos dão dele.

Figura 10 — Unidade do signo lingüístico de Ferdinand de Saussure

Da breve exposição feita, pode-se tirar algumas conclusões. Pri­ meiro, quando fala de "unidade lingüística" o autor está se referindo ao "signo lingüístico" unicamente, não a outros signos, embora na tradição saussuriana esse modelo tenha sido transferido a outros signos, como no caso de Roland Barthes.5 Segundo, quando fala de signo no lugar de "conceito" ou de "significante", como fazem outros autores, continua falando de uma estrutura de dois termos, não de três, o que faz do signo lingüístico uma estrutura diádica, diferente do conceito de outros auto­ res como Peirce e Vigotski. Terceiro, o "signo lingüístico" de que ele fala é uma categoria mental, pois envolve duas funções psíquicas. Isso deixa dúvidas sobre a real função do "som", condição tanto da comunicação oral (sinal) quanto da formação da "imagem acústica", sobretudo por­ que pouco depois vai chamar o som de "significante". Quarto, a realida­ de "em si" está excluída nesse modelo, o que torna a língua um código, visão que pouco antes ele mesmo chama de "simplista", referindo-se à idéia que as pessoas em geral têm do signo. (1969: 79) Tudo indica que o interesse maior de Saussure, pelo menos nos últimos anos, era tentar estabelecer as características da língua em rela?a° a outros sistemas sígnicos, o que o levou a definir seus "princípios Serais" (ibid.: 79 e ss.): * o signo lingüístico é arbitrário, já que arbitrário é o laço que une o significante ao significado, o qual poderia ser outro. Arbitrário não quer dizer que o significado depende da livre escolha de S- Cf. Roland Barthes (1982, 1985).

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quern fala, pois ele está socialmente definido, mas apenas qUg não há motivo para que um dado significante seja associado a um dado significado; • dado o caráter sonoro dos significantes, estes se desenvolve^ no tempo e tomam características do tempo: a extensão e a mensurabilidade numa única direção, ou seja, os significantes formam "cadeias lineares", idéia que permitirá a J. Lacan6construir sua interpretação do "inconsciente". 0 signo em Charles Peirce Intelectual erudito, versado em diferentes disciplinas (filosofia, matemática, lógica). Charles S. Peirce é um dos principais fundadores da moderna semiótica geral. Sua concepção da semiótica e da natureza do signo é de grande utilidade para o estudo das questões tratadas neste trabalho, no qual a semiótica constitui a chave explicativa das grandes questões levantadas. Da semiótica de Peirce três tópicos reterão minha atenção, os quais serão tratados de forma sucinta em razão das exigên­ cias deste trabalho: a relação entre lógica e semiótica; a concepção que o autor tem da natureza e divisão dos signos; e problemas gerais de semiose.

a) Lógica e semiótica Para poder compreender a concepção que Peirce tem da semioW* deve-se lembrar que, para ele, semiótica e lógica são dois nomes de ufl» mesma coisa, como ele mesmo afirma: "Em seu sentido geral, a lógica e' como acredito ter mostrado, apenas um outro nome para semióW r (smeiôtiké), a quase-necessária, ou formal, doutrina dos signos". (1^И 45) Portanto, Peirce situa-se na perspectiva de Aristóteles e dos estóic apontando para uma concepção cognitiva do signo. 6. J. Lacan, Écrits, Paris: Éd. du Seuil, 1966.

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д semiótica em Peirce tem como ponto de partida a procura de ategorias que lhe permitam fazer uma classificação das idéias, entenjendo o termo idéia num sentido amplo, como é usado na vida ordiná­ ria (ex.: "é uma boa idéia", "não faço a menor idéia", "que idéia que você teve!"). Não é difícil perceber que, mesmo num sentido amplo, a idéia é da ordem da significação. "Não ter idéia" de alguma coisa é admitir que não se sabe o que a coisa é, ou seja, não se sabe o que o signo que a representa significa. Parece que o conceito de fenomenologia não aten­ dia aos objetivos de Peirce para denominar a análise das idéias, o que o teria levado a cunhar o termo de ideoscopia, palavra grega composta do termo eidos (idéia) e do verbo skopein (ver). A ideoscopia consiste em descrever e classificar as idéias que estão na experiência ordinária, ou que naturalmente brotam em conexão com a vida comum, independentemente de serem válidas ou não-válidas e in­ dependentemente de sua feição psicológica. (1975: 135) Segundo o autor, todas as idéias podem ser classificadas dentro de uma das seguintes categorias: — a primariedade: "modo de ser daquilo que é tal como é, positiva­ mente e sem referência a qualquer outra coisa" — as qualidades em si mesmas, independentemente de sua concretização em realidades con­ cretas, constituem idéias típicas de primariedade; — a secundidade: "modo de ser daquilo que é tal como é, com res­ peito a um segundo, mas independentemente de qualquer terceiro" — a secundidade genuína corresponde à simples ação de uma coisa sobre °uha, sem referência a nenhuma lei que explique essa ação; uma idéia ^Pica de secundidade é a experiência de esforço que supõe a de resistênla' Sem referência a um terceiro elemento; a terciedade: "modo de ser daquilo que é tal como é, colocando ação recíproca um segundo e um terceiro" — em todo sistema de ^Çoes triádicas existe um componente mental (lei) que estabelece a °u princípio dessas relações. e*ist

Para Peirce, a forma genuína de terciedade é a relação triádica que entre um signo, seu objeto e o interpretante (ibid.: 142). A análise

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das idéias de terciedade leva Peirce a classificar as relações triádicas ещ três categorias: • de c o m p a ra ç ã o , as quais participam da natureza das possibilida­ des lógicas; • de d e s e m p e n h o , as quais participam da natureza dos fatos concretos; • de p e n s a m e n to , as quais participam da natureza das leis. Essa análise conduz a três "modos gerais de ser" das idéias e/ou coisas, que constituem o eixo de todas as suas análises sobre os signos e suas combinações; como simples p o s s i b ilid a d e , como f a to concreto e como lei. Dentro de uma tríade, cada elemento da relação — ou correlato, segundo Peirce — pode participar de qualquer um desses modos de ser e as relações entre os três elementos obedecem a uma hierarquia em função do modo de ser de cada um deles. Assim, temos: • o Primeiro,7 o de natureza mais simples — pura possibilidade; • o Segundo, de complexidade intermediária — fato concreto; • o Terceiro, de natureza mais complexa — lei. A natureza de cada um deles na tríade depende da natureza dos outros, constituindo uma espécie de combinação algébrica (por exem­ plo: o Primeiro Correlato é possibilidade, só podendo ser lei se os outros dois forem lei). Isso leva a um quadro de dez combinações das tríades, 0 mesmo acontecendo com a tríade genuína que é o Signo. Os três c o r r e la to s numa tríade-signo são relacionados com as res pectivas funções deles na tríade: o Primeiro é o R e p r e s e n ta m e n ; o Segufl do é seu O b je to , e o Terceiro é o I n te r p r e ta n te . Esses três correlatos apai^ cem nas definições que o autor dá do Signo. Uma dessas definiçõ®9' peirc