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Portuguese Pages 390 Year 2023
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Ficha Técnica Título: As Causas do Atraso Português Autor: Nuno Pedro Gonçalves Palma Edição: Duarte Bárbara Revisão: Susana Ladeiro Índice remissivo: Gabriella Russano Design de capa: Maria Manuel Lacerda Imagem de capa: José de Almada Negreiros, Lá Vem a Nau Catrineta Que Traz Muito Que Contar (pormenor). Gare Marítima da Rocha de Conde de Óbidos ISBN: 9789722079358 Publicações Dom Quixote Uma editora do grupo Leya Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 © 2023, Nuno Pedro Gonçalves Palma e Publicações Dom Quixote Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.leya.com Este livro segue a grafia do Acordo Ortográfico de 1990.
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Índice Ficha Técnica Preâmbulo Introdução PARTE I PORTUGAL DESDE FINAIS DA IDADE MÉDIA
1. População 2. Instituições políticas 3. Economia e desenvolvimento PARTE II PORTUGAL: UMA INTERPRETAÇÃO
4. Expansão e império 5. Cultura e religião 6. A maldição dourada 7. Um país novo, liberal? 8. A Primeira República 9. O Estado Novo 10. A época contemporânea Epílogo Para saber mais Bibliografia Créditos das imagens 3
Comentários a As Causas do Atraso Português, de Nuno Palma
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Todos os que nas matérias de Portugal se governaram pelo discurso, erraram e se perderam; e por aqui se perderam (ainda entre nós) os que na opinião dos homens eram de maior juízo. Padre António Vieira, História do Futuro
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Preâmbulo Porque é Portugal hoje um país rico a nível mundial, mas pobre no contexto europeu? Quais são as causas e o contexto histórico do nosso atraso? Como chegámos aqui, e o que pode ser feito para melhorarmos a nossa situação? São estas as perguntas a que procuro responder neste livro. Quase todas as análises ao estado do país feitas na praça pública pecam por miopia: como desconhecem a profundidade histórica do atraso, cometem erros sistemáticos e anunciam diagnósticos inúteis, quando não prejudiciais. Quem discursa tem também frequentemente um marcado enviesamento político e não declara os seus conflitos de interesses. No entanto, é bom não esquecer que a falta de consciência crítica de grande parte da audiência é também uma consequência do nosso atraso. Na verdade, para refletirmos bem sobre o presente e os futuros possíveis, temos de começar por compreender o nosso passado. Para que um futuro melhor seja possível, temos de considerar de forma ponderada os fatores que explicam – e os que não explicam – o atraso do país. Este livro tem esse objetivo. Pressuponho de quem lê algum conhecimento prévio sobre as linhas gerais da História de Portugal, mas tentei que esta reflexão fosse acessível à generalidade das pessoas. Até porque o futuro a todas pertence. Tanto quanto sei, não existe um livro que estruture de forma abrangente uma visão sobre as origens históricas do atraso do país, como tento aqui fazer. Talvez isso não seja surpreendente, já que aqueles de quem devemos esperar uma análise crítica, incluindo os políticos, tendem a arranjar desculpas para o comportamento medíocre da economia do país, merecendo-lhes especial apreço as explicações que os ilibem de quaisquer responsabilidades. Mas as razões que costumam dar sobre o atraso não são críveis. Alguns insistem em causas centradas apenas no presente ou passado recente. Outros dizem que a posição periférica de Portugal na Europa torna o atraso inevitável, ignorando que a geografia não foi um fator impeditivo do desenvolvimento do país em vários momentos do passado, nem ao de outros países e regiões 6
periféricas como foram noutras épocas o Reino Unido, o Japão, ou a Califórnia. Muitos reconhecem que existe um atraso no que concerne à educação, mas tomam isso simultaneamente como um ponto de partida e de chegada. Na verdade, o atraso educativo tem de ser compreendido e explicado. A sua permanência não é inevitável: depende das escolhas que forem feitas, devendo ser evidente que não é apenas o número de anos de escolaridade que importa, mas também a qualidade do ensino. Existe muita desinformação sobre estas matérias no país, e precisamos de um debate mais informado e fundamentado. Este não é um livro tradicional sobre a História de Portugal.[1] A bibliografia que cito é seletiva, até porque não pretendo fazer aqui uma descrição pormenorizada dos acontecimentos, nem isso seria possível num trabalho desta natureza e envergadura. Já existem vários livros desses no mercado, alguns de boa qualidade. Não pretendo ser exaustivo, mas antes centrar-me nos aspetos que têm sido analisados pela literatura académica e que considero que devem ser repensados para compreendermos as causas do atraso de Portugal. Esta revisão é necessária em grande parte porque muitas das narrativas históricas que chegaram aos nossos dias promoveram mitos sobre o passado do país. Esses mitos têm normalmente velhas raízes políticas, mas, apesar dessa origem nada inocente, chegaram aos dias de hoje e ao público em geral como uma espécie de conhecimento adquirido, sendo até ensinados nas escolas e universidades. Ao longo dos últimos anos tenho explicado algumas vertentes da minha visão sobre o país e a sua História em entrevistas a vários meios de comunicação social, em artigos de divulgação no meu blogue Portugal no Longo Prazo, e em textos publicados no jornal digital ECO.pt, entre outros. A minha participação ocasional em alguns podcasts, como o 45 Graus, de José Maria Pimentel, ou o programa O Resto é História, de João Miguel Tavares e Rui Ramos, na Rádio Observador, revelou que havia interesse sobre o meu trabalho por parte do público informado. Mas não existia um livro que juntasse todas as peças do puzzle de forma coerente e sistematicamente documentada, sem ser excessivamente longa. Este livro representa esse esforço. Tenho muito a agradecer aos meus coautores, colegas, e outros companheiros de viagens intelectuais, com os quais aprendi muito ao longo dos anos sobre as matérias de alguma forma relacionadas com o conteúdo deste livro. Agradeço em particular a Fernando Alexandre,
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Luciano Amaral, Adam Brzezinski, Luís F. Costa, Pedro Carneiro, Hélder Carvalhal, Sandra Cermeño, Deirdre McCloskey, Dina Martins, João C. Duarte, Rui Pedro Esteves, Carlos Faísca, Jorge Fernandes, José Eduardo Franco, Nuno Garoupa, Richard von Glahn, Pedro Maia Gomes, Davis Kedrosky, Kivanç Karaman, Guilherme Lambais, Henrique Leitão, Matilde Pinto Machado, Carlos Madeira, João Madeira, Pedro Magalhães, Pedro S. Martins, Pedro Boucherie Mendes, Susana Münch Miranda, Amílcar Moreira, Carlos Moura, Zélia Pinheiro, Renato Pistola, Nuno Gonçalo Poças, Philipp Roessner, Mauro Rota, Hugo Reis, Ricardo Reis, James A. Robinson, Lisbeth Rodrigues, Francisco Malta Romeiras, Carlos Santiago-Caballero, Henrique Pereira dos Santos, João Pereira dos Santos, Ricardo Santos, André Castro Silva, João Santos Silva, Duncan Simpson, e Rebecca Simson. Todas as pessoas que mencionei influenciaram o conteúdo deste livro de alguma forma, mais ou menos direta, através de conversas ou, nalguns casos, trabalho conjunto. Algumas também leram generosamente versões preliminares de certos capítulos. Obviamente, a responsabilidade do conteúdo, e em particular de quaisquer imprecisões que possam verificar-se, é apenas imputável a mim próprio. Merece uma menção especial António Castro Henriques, sem o qual eu não teria sido capaz de fazer muita da investigação que serve de base a esta obra e que leu em detalhe uma versão preliminar da mesma. Também aprendi bastante com o já falecido Pedro Lains, de quem fui amigo. Tenho ainda de agradecer a Steve Broadberry e Tim Besley, pilares fundamentais da minha carreira, bem como ao Patrick O’Brien que, com mais de 90 anos, permanece um jovem no pensamento e nas ações. As nossas conversas telefónicas semanais e os múltiplos encontros em Manchester e Oxford deixam saudades. E não posso deixar de mencionar Jaime Reis. O nosso relacionamento foi próximo durante muito tempo, ainda que crescentemente penoso à medida que o tempo passava, por razões de ordem tanto interna como externa ao nosso trabalho. No entanto, tudo isso é espuma. E se há uma mensagem que tento passar neste livro é que a espuma não importa. No decurso da década em que trabalhámos juntos – entre 2012 e 2022 – Jaime Reis e eu publicámos cinco artigos científicos nas melhores revistas académicas internacionais da especialidade, artigos cuja influência está ainda numa trajetória ascendente. Sem o nosso trabalho conjunto – em três dos casos também em coautoria com outras pessoas – e sem tudo o mais que aprendi com o
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Jaime no decurso desse trabalho, este livro não poderia existir. Aprendi também muito com os meus alunos e com os postdocs que acompanho, mesmo sendo só alguns os que trabalharam em assuntos diretamente relacionados com os que esta obra trata. Já as Universidades de Groningen e Manchester, em particular esta última, deram-me a estabilidade intelectual e financeira que permitiu realizar muito do trabalho em que se baseia este livro. Apesar do rio Mersey não ter o charme do Tejo ou do Douro, a verdade é que, vendo Portugal de fora, se ganha outra perspetiva – e outras condições de trabalho. No entanto, é inegável que no Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa, também aprendi bastante sobre Portugal, ao relacionar-me com investigadores de várias gerações e com perspetivas muito diferentes sobre as ciências sociais. E não posso deixar de agradecer aos funcionários e diretores de vários arquivos em Portugal, como o Arquivo Geral do Exército e a Torre do Tombo, entre muitos outros, que me ajudaram, e aos meus colaboradores, a termos acesso a fontes primárias fundamentais para que muita da investigação em que este livro se baseia se possa ter realizado. Finalmente, o meu pai, José Borges Palma, e o jornalista João Miguel Tavares, foram decisivos para a existência deste livro, por terem travado um combate em que saiu derrotada a minha relutância inicial em investir tempo na redação de uma obra de divulgação, destinada a um público limitado pela complexidade do tema e pela expressão em língua portuguesa. Para que este projeto publicado pela LeYa / D. Quixote chegasse a bom porto, o Duarte Bárbara aconselhou-me de forma exemplar. Dedico este livro à minha família e amigos, que tanto me apoiaram. [1] Duas breves notas sobre a linguagem que utilizo. Primeiro, para que o livro seja o mais acessível possível, modernizei a ortografia das citações que transcrevo para a atual. Segundo, trabalho em língua inglesa há muitos anos, e emprego elementos dela neste ensaio a bem da legibilidade do texto e do rigor das ideias. Noto em particular que utilizo a vírgula de série (Oxford comma), apesar de esta não ser prática corrente na escrita em língua portuguesa. Tomemos como exemplo a frase «Fui ao teatro com os meus pais, a Maria, e o Joaquim». Sem a última vírgula, não é claro se fomos cinco pessoas ao teatro, sendo duas delas os meus pais, ou se fomos apenas três, sendo que os meus pais são a Maria e o Joaquim. A vírgula de série resolve essa ambiguidade.
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Introdução A profundidade histórica do atraso português É preciso recuar séculos para compreender Portugal. O atraso do país, num contexto europeu, não é recente: tem uma enorme profundidade histórica. Nem é sequer uma preocupação recente. Em meados do século xix já éramos um dos países mais pobres da Europa, ao contrário do que tinha acontecido em séculos anteriores. Pelo menos desde essa altura que existem debates sobre as causas do nosso atraso. Esses debates abrandaram a partir da década de 90 do século xx, talvez por parecer que o atraso iria desaparecer. Mas isso nunca chegou a acontecer e, pelo contrário, o atraso tem-se agravado. Agora que Portugal está estagnado e a divergir da Europa há mais de duas décadas, comecemos por olhar para outro momento da nossa História em que as coisas não estavam a correr bem: as décadas finais do século xix. Há mais de século e meio (27 de maio de 1871), Antero de Quental apresentou na Sala do Casino Lisbonense, localizada no centro da capital, um discurso notável intitulado Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos. Ao texto que daí resultou chamaria Eduardo Lourenço uma «referência mítica da cultura portuguesa moderna. Ou com mais precisão, o seu próprio ato fundador».[1] Quental manifestava uma clara consciência do atraso do país e apresentava uma ambiciosa tentativa de diagnóstico. Um argumento central – também defendido por Alexandre Herculano – foi o de que o declínio de Portugal tinha começado no século xvi, e se devia ao facto de o país ter permanecido católico, e desse modo sujeito à Contrarreforma. Isso também teria tido reflexos na qualidade das instituições, levando ao desaparecimento das Cortes e ao Absolutismo. Se a intervenção de Quental, feita quando tinha 29 anos, estava em certo sentido à frente do seu tempo, era na verdade também um resultado da época em que viveu. Não isento de conteúdo político, o texto faz, ainda assim, um esforço de análise histórica. Porém, o que sabemos hoje não
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confirma as teses centrais que Quental tinha avançado: nem relativamente ao momento do declínio político e económico de Portugal no longo prazo, nem às suas causas. Explicarei porquê neste livro. As reflexões de Quental sobre o malfadado destino do país no longo prazo inserem-se num tema recorrente para a Geração de 70, a que pertenceu, juntamente com um grupo de intelectuais frustrados com a sua impotência perante o que sabiam ser o declínio em que Portugal se encontrava face a outros países europeus. Desse grupo faziam também parte Eça de Queirós e Oliveira Martins, entre outros (Figura 1). Como é evidente, nada mudou por causa das Conferências do Casino. Não é de admirar que cerca de duas décadas mais tarde muitos dos membros da Geração de 70 tenham ficado conhecidos como «Os Vencidos da Vida», quando já se encontravam ligados à Corte, ou seja, ao poder, sem as ilusões juvenis de reformar a sociedade portuguesa. O país era irreformável. Não havia esperança. E, talvez também por isso, 20 anos depois das Conferências do Casino, Antero de Quental pôs termo à vida com dois tiros, aos 49 anos, num banco de jardim em Ponta Delgada. Figura 1. Os Vencidos da Vida. Além de Antero de Quental o grupo incluía individualidades como Eça de Queirós e Oliveira Martins.
No seu discurso sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, Quental tinha anunciado: «não pretendemos impor as nossas opiniões, mas simplesmente expô-las: não pedimos a adesão das pessoas que nos escutam; pedimos só a discussão». Foi um aviso premonitório, porque a iniciativa em que esta intervenção se enquadrava – as Conferências do Casino, promovidas pela chamada Geração de 70, como referido – acabou mesmo por ser proibida pelas autoridades, sob o seguinte argumento: «expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições do Estado».
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Esperemos que nos nossos dias, apesar da divergência do país com a Europa que também hoje é manifesta, seja possível um debate mais sereno, livre e informado. Uma tese deste livro é a de que o atraso não era inevitável. Portugal estava numa trajetória histórica favorável na segunda metade do século xvii, na sequência da Restauração e da paz alcançada com o Tratado de Lisboa (1668). Ou seja, por volta dos reinados de D. Afonso VI e D. Pedro II, o atraso relativo do país não era ainda previsível. Tudo viria a mudar com a descoberta das minas de ouro no Brasil. As consequências foram profundas, tanto para a economia como para o sistema político do país, tendo tido enormes implicações a prazo – por exemplo, para o processo educativo – que continuaram a assombrar o país nos séculos seguintes, chegando de forma indireta aos nossos dias. Mas a lição não foi aprendida, e os fundos europeus que nos são hoje transferidos configuram um novo caso de recursos chegados do exterior que, a prazo, atrasam o nosso desenvolvimento. É quase consensual em Portugal que estes fundos comunitários são uma benesse para o país, mas argumento neste livro que essa ideia não podia estar mais errada. A origem do dinheiro e os mecanismos através dos quais o dinheiro afeta o nosso processo de divergência são diferentes do que aconteceu no século xviii, mas também existem paralelos impressionantes que – com a contextualização adequada – não devem ser ignorados. A nossa História não pode ser esquecida, até porque precisamos de aprender com os nossos erros. Reconheço que a visão sobre a História de Portugal que apresento neste volume é mais pessoal do que aquela que aparece em muitos livros de História. Apenas o tempo – medido pelo menos em algumas décadas – dirá em que aspetos poderei ter razão, e que outros merecerão ser revistos. A minha proposta, relativamente à História, é que vale a pena fazer-lhe alguma violência, para a simplificar e melhor compreender nos seus aspetos fundamentais. É preciso sempre contextualizar, mas também não podemos perder tempo a estudar «árvores» individuais ignorando completamente a «floresta»: algo que acontece frequentemente com os historiadores académicos convencionais. Temos de focar-nos no que é mais importante, distinguindo o essencial do acessório, e quantificar o mais possível – até porque as quantificações permitem mais facilmente as comparações internacionais, as quais são críticas para termos a perspetiva necessária para compreendermos
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melhor o passado e o presente. Há um equilíbrio fundamental entre a contextualização detalhada que o rigor exige, e a concisão que é determinante para atingir alguma conclusão útil. Fiz o possível para, neste livro, manter esse equilíbrio. Qualquer pessoa que tenha viajado fora de Portugal – e em particular, fora da Europa –, sabe que, quando regressa, olha para o país de outra maneira. Para aqueles que apenas tenham saído uns dias em turismo este efeito é apenas ligeiro, talvez até passageiro, mas quem tenha vivido fora alguns anos sabe bem a que me refiro. De forma análoga, não podemos compreender a nossa História sem conhecer pelo menos as linhas gerais da dos outros países – dentro e fora da Europa. Viajando, ganhamos uma visão mais nítida do que está lá dentro. E também há grandes benefícios em analisar períodos diferentes da nossa História e compará-los. Sei que tudo isto é anátema para muitos historiadores tradicionais: presos às suas regiões e épocas de especialidade, não arriscam pensar sobre outros países ou épocas. Com as devidas exceções, não se arriscam também a aprender métodos quantitativos, para os quais em geral não têm inclinação, e que consideram distrações dos seus temas e períodos de eleição. Perdem por isso. Eu não sou um historiador convencional – e não peço desculpa por isso a ninguém, e muito menos aos historiadores tradicionais, tantas vezes entrincheirados em épocas e assuntos que consideram a sua coutada. É verdade que existem muitas obras de má qualidade sobre questões históricas, escritas por não especialistas, que transmitem ideias simplistas, enganadoras, ou mesmo erradas sobre a História. Mas o mau trabalho histórico não é exclusividade dos nãoespecialistas. Existem também muitas obras de duvidosa qualidade, escritas por historiadores profissionais. No nosso país há mesmo demasiados casos que se confundem com ações políticas disfarçadas, protagonizadas por pessoas que se revelam incapazes de se libertar dos estereótipos ideológicos que comprometem irremediavelmente a sua obra. Não faz sentido sermos territoriais em matéria de épocas, temas ou ideologias. Como é evidente, a História Económica não se pode separar da História Política, e até da História Social e Cultural. O conteúdo deste livro mostra isso mesmo. Mas o inverso também é verdade. E sobre essa matéria não deixa de ser lamentável ver como muitos colegas das faculdades de letras insistem em fugir como o diabo da cruz aos números, às comparações internacionais, e a uma perspetiva económica
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de longo prazo. As sociedades existem no seu todo, e como tal, também temos de as estudar em todas as dimensões, considerando as interdependências sociais que estabelecem. No trabalho académico que serve de pilar a este livro, tive a preocupação permanente de fazer comparações internacionais e quantificadas. Convém manter sempre presente que esta é uma obra de divulgação baseada em trabalho científico. Tentei ser o mais claro e transparente possível sobre a minha visão, até porque me desagradam textos em que subjaz um qualquer contexto partidário, embora quase sempre não declarado. Fiz um esforço para me manter distante da ideologia, aqui entendida simplesmente como uma interpretação seletiva da História para apoiar qualquer narrativa de natureza partidária. Dirão os cínicos que isso não é possível quando se trata de uma obra de Ciências Sociais. Talvez. Mas não saberão esses cínicos que a visão que tenho da realidade – que não é uma ideologia que se enquadre facilmente no habitual binário ideológico esquerda-direita – é, na verdade, essencialmente definida pela compreensão que possuo relativamente às causas do desenvolvimento económico e social, e, em particular, pelo suporte empírico que existe sobre estas. Na verdade, não existe neste livro qualquer agenda ou objetivos políticos. Sei que isso é incomum em Portugal, e para alguns será até difícil de entender ou de acreditar. O julgamento final sobre a natureza e imparcialidade do meu trabalho fica a cargo de cada leitor. Tenho a convicção de que existem em Portugal pessoas suficientes com interesse numa análise o mais isento possível sobre o passado e futuro do país. A História de Portugal, como geralmente é contada, contém uma sequência de equívocos. Um tema central, que se repete inúmeras vezes, e em particular nos últimos dois séculos, é a confusão entre o que está escrito e a realidade. A realidade é o que acontece ou aconteceu de facto. Já o que é dito em belos discursos ou escrito em livros, leis, ou artigos de jornal é apenas de jure: poderá corresponder a intenções normativas, referentes ao modo como a realidade deveria ser, sem que se verifique uma correspondência com a realidade efetiva. As intenções podem conviver em conflito com a realidade durante muito tempo. Mas mais cedo ou mais tarde a contradição torna-se visível – e irreconciliável. Outra confusão recorrente e relacionada com a anterior é a que se consubstancia entre os julgamentos de valor e a análise objetiva da realidade.
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Certas narrativas da História de Portugal repetem-se ao longo dos séculos, como um disco riscado. São séculos de mitos sobre diferentes épocas, distorções que têm mais em comum do que se possa pensar. A Monarquia Liberal do século xix criou mitos sobre o Antigo Regime que chegaram em força aos dias de hoje. O mesmo aconteceu com a Primeira República. E o mesmo com o Estado Novo. Já o regime em que vivemos atualmente não é diferente. Cada um destes períodos teve um discurso «de regime» que nem sempre correspondeu às suas ações. Aliás, por regra, não lhes correspondeu. E cada regime esforçou-se para criar mitos que tiveram o propósito de tornar o regime anterior o culpado pelo atraso. Muitas das ideias que ainda hoje se encontram enraizadas relativamente à história do desenvolvimento de Portugal são herdeiras de partes dessas várias grandes narrativas construídas por diferentes regimes. O próprio atraso secular da academia portuguesa (com as devidas exceções) torna difícil repensar o passado e proceder a uma análise fria do presente. Nesta obra resumo a minha interpretação sobre a história do desenvolvimento de Portugal numa perspetiva de longo prazo, tendo por base a literatura científica recente. Esta literatura nem sempre é de compreensão fácil para os não especialistas, e procuro aqui sumarizar as ideias-chave destinadas a um público interessado. Nalguns casos, descrevo factos que, pela sua natureza objetiva, são pouco suscetíveis de discussão – embora, ainda assim, existam inevitavelmente «terraplanistas» que os tentem negar. Noutros, apresento a minha interpretação, necessariamente mais subjetiva. Procurei tornar explícitos os momentos em que discuto dados ou eventos que se enquadram no primeiro ou no segundo casos. O livro está estruturado em duas partes que genericamente se enquadram numa descrição dos factos históricos sobre a evolução da sociedade e da economia (Parte I), seguida de uma interpretação (Parte II). Como é evidente, nem sempre existem linhas claras de separação entre o que é descrição e o que é explicação. Na prática, na Parte I, mais breve que a seguinte, concentro-me principalmente no período entre finais da Idade Média e inícios do século xix, uma vez que faz sentido tratar os períodos mais contemporâneos – sobre os quais ofereço uma interpretação mais subjetiva – na Parte II. Fazer isto evita alguma repetição desnecessária, e também se enquadra numa tese central deste
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livro, segundo a qual o que tem acontecido ao país nos últimos dois séculos tem sido fortemente condicionado pelo caminho percorrido nos períodos anteriores. Na primeira parte do livro, descrevo a evolução da população e território ao longo do tempo, seguida de uma discussão da evolução do desenvolvimento das instituições políticas e da economia. Em cada capítulo desta primeira parte, discuto a situação do país até inícios do século xix com algum detalhe, seguida da evolução registada entre essa altura e o presente, contado de forma mais breve. No Capítulo 1, descrevo a evolução da população portuguesa, dando atenção particular às questões da fertilidade, mortalidade e famílias: em particular, como se organizavam e até que ponto eram diferentes do que acontecia noutras partes da Europa e do Mundo. No Capítulo 2, detalho a natureza das instituições políticas portuguesas ao longo dos séculos, comparadas a nível europeu. Mostro que, até ao final do século xvii, Portugal não estava ainda claramente atrasado a nível político ou institucional, mas que tudo viria a mudar no século xviii. No Capítulo 3, o último da primeira parte, mostro que a economia portuguesa teve um comportamento bastante variado ao longo dos séculos, especialmente em comparação com os outros países da Europa. Em meados do século xviii, o rendimento médio por pessoa no país era bastante elevado a nível europeu, mas nas décadas seguintes a economia portuguesa conheceu um acentuado declínio, tanto em termos absolutos como comparados com outros países da Europa. Em resultado disso, o país chegaria a meados do século xix como o mais pobre da Europa Ocidental – situação em que se manteve até aos dias de hoje, apesar de com distâncias que variaram no tempo em relação à fronteira dos países mais ricos. As estatísticas mostram, por exemplo, que nem o Terramoto de 1755, nem as Invasões Francesas, cerca de 60 anos mais tarde, explicam o atraso do país: o primeiro desses eventos sucedeu cedo demais relativamente ao declínio, enquanto o segundo veio décadas depois desse declínio estar já a acontecer. Em suma, na Parte I estabeleço factos que contextualizam o resto do livro. Os factos históricos têm hipóteses subjacentes, mas são por natureza objetivos. Na segunda parte do livro, mais interpretativa, desmonto alguns dos mitos que existem sobre o nosso passado, e apresento explicações alternativas. No Capítulo 4, descrevo o papel da expansão e do império para o desenvolvimento do país, mostrando que nunca enriqueceram
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Portugal de forma significativa. No Capítulo 5, mostro que a cultura e a religião portuguesas também não podem explicar o atraso histórico – ao contrário do que, por exemplo, Antero de Quental e outros republicanos pensavam. No Capítulo 6, apresento a minha interpretação relativa ao que designo por «Maldição dos Recursos», associada ao ouro do Brasil durante o século xviii. Neste capítulo, explico os motivos pelos quais as decisões políticas do Marquês de Pombal foram as mais desastrosas que algumas vez foram tomadas no país, importando compreender qual o contexto histórico em que isso sucedeu. A partir daí, no Capítulo 7, cubro o período da chamada Monarquia Liberal do século xix, que mostro ter sido um período de fraco desenvolvimento. Depois, no Capítulo 8, descrevo os motivos pelos quais a Primeira República também falhou em desenvolver o país. Já no Capítulo 9, mostro quais foram os fatores que levaram ao forte desenvolvimento e convergência do país durante as décadas finais do Estado Novo. Termino o livro com o Capítulo 10, onde avalio a situação atual do país e os impedimentos à convergência que existem nos dias de hoje. Seria possível escrever um volume inteiro sobre o tema de cada um dos capítulos deste livro. Não tive aqui essa ambição, até porque pretendo que esta obra seja concisa, focando-se no essencial. Faço notar que trato o período desde o século xix em mais detalhe na Parte II. Esta divisão temporal reflete o que foi convencionado por muita da historiografia tradicional que considera que – pelo menos no que toca ao desenvolvimento económico e político – foram as mudanças constitucionais da primeira metade do século xix que criaram um país novo, tanto a nível institucional como económico, radicalmente diferente do anterior.[2] Como ficará claro, discordo desta cronologia. A existir uma demarcação, deve ser colocada cerca de um século mais tarde do que é convencional, já em pleno século xx. Qualquer divisão temporal desta natureza é evidentemente artificial, mas não deixa por isso de ser útil para organizar ideias e enfatizar a importância de certas mudanças. Seja como for, para melhor explicar quando é que de facto surgiu um «Portugal moderno», optei por adotar a divisão imposta pela historiografia tradicional que aponta no sentido de a descontinuidade ter acontecido a partir da derrota do miguelismo na primeira metade do século xix. Noto, por fim, que também existem os que consideram que esse «país novo», mais desenvolvido, apenas apareceu a partir do 25 de Abril. Essa tese tem ainda menos sustentação do que a anterior
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(respeitante às Monarquias Constitucionais do século xix), como procurarei demonstrar. Como escrevi, a segunda parte deste livro é mais interpretativa do que a primeira e reflete o meu pensamento sobre estas matérias, tendo necessariamente uma componente subjetiva, ainda que alicerçada nos factos e nas metodologias rigorosas dos artigos de investigação aqui citados e que lhe servem de pilar. Esta segunda parte tem um objetivo declarado – questionar mitos. Os mitos que existem sobre a História de Portugal, alguns dos quais perdurando há séculos, e quase todos com a sua origem em motivações políticas, passadas e presentes, estão enraizados na mentalidade dominante. Só desmontando esses mitos e substituindo-os por uma análise mais factual dos acontecimentos é possível chegar a uma compreensão mais objetiva da realidade histórica, e até mesmo da realidade contemporânea. Sem analisarmos a profundidade histórica dos problemas, não podemos compreender as suas causas. Por exemplo, relativamente ao presente, não é suficiente dizer que o problema do país são «os maus políticos», «as más instituições políticas», «as práticas de gestão desatualizadas», «o baixo capital humano», «os impostos altos», «a justiça lenta», «o excesso de burocracia», «os custos de contexto», ou mesmo «a falta de reformas». Estas afirmações podem ser todas consideradas verdadeiras, mas são também todas superficiais. A questão fundamental é a de entender porque é que se verificam tais fenómenos. A evolução institucional tem de ser explicada, e não apenas aceite como um dado adquirido. De outra maneira desaparece a esperança de projetar formas de melhorar o país. Outro exemplo: é verdade que Portugal tem elites políticas e empresariais fechadas e carece de reformas, mas temos de analisar porque é que as coisas são assim, e fazê-lo em comparação com outros países. Algum fator ou fenómeno explica a situação a que chegámos. Os problemas que referi, e outros relacionados, são mecanismos que ajudam a esclarecer a influência perniciosa das causas profundas do nosso atraso, mas não são, em si, a verdadeira fonte desse atraso. Logo, não são um ponto de partida satisfatório. Apenas compreendendo as causas profundas do atraso poderemos ter uma discussão séria sobre quais as reformas possíveis. Neste livro, argumento que os problemas e a falta de reformas resultam dessas causas mais profundas. Algumas têm origem histórica, como o atraso educativo, enquanto outras são de origem mais contemporânea, como os fundos
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europeus. Argumento em detalhe no capítulo final, contra o aparente consenso político nacional a esse respeito, que Portugal não devia receber nem mais um euro de fundos europeus. George Orwell escreveu que quem controlasse o passado controlaria o futuro, e quem controlasse o presente controlava o passado – e, por essa via, também o futuro. Um facto fundamental e indesmentível sobre o atraso português – relativamente à Europa Ocidental – é que esse atraso já é secular. O atraso tem, e sempre teve, uma dimensão económica, mas também uma dimensão política. As elites intelectuais estão desde há muito conscientes deste atraso comparado, como ilustra a trágica história de Antero de Quental e dos seus contemporâneos. Mas o que distingue as diferentes épocas históricas é a identificação dos responsáveis a quem as culpas desse atraso são imputadas pelos regimes de cada época. Como referi, há mais de dois séculos que os sucessivos regimes alijam as suas responsabilidades, atirando-as sobre qualquer bode expiatório – normalmente o regime anterior. O Estado Novo apoiava-se na narrativa de que a culpa do atraso era da Primeira República, justificando o 28 de Maio com o caos e o despesismo. Antes disso, os republicanos tinham culpado a Monarquia e o Clero, tal como anteriormente os monárquicos constitucionais fizeram, acusando a Monarquia Absoluta (e também o Clero). E ainda antes, o Marquês de Pombal culpou os jesuítas. Cada regime culpa sempre alguém, ou alguma coisa fora do seu controle. Esta sempre foi uma estratégia para os políticos se legitimarem com o objetivo de consolidarem e conservarem o poder, não hesitando, quando viam benefício nisso, em espalhar mentiras e construir mitos históricos. Infelizmente, muitas destas mentiras e mitos chegaram aos dias de hoje. Se nos detivermos no momento presente, a mentira mais comum do regime atual é a de que a culpa do atraso deve ser impugnada ao Estado Novo. Ora, isto é falso: na verdade, durante esse regime verificou-se uma rápida convergência económica com os países mais ricos da Europa. É irrelevante que esta realidade histórica não encaixe nos preconceitos ideológicos de muita gente, que por isso não a quer aceitar, mas isso não a torna menos verdadeira. Sempre existiram «terra-planistas», mas o passado foi o que foi, e nada mais. Quando os políticos falham, sentem necessidade de criar cortinas de fumo para desviar a atenção da discussão sobre os problemas económicos do seu tempo, mantendo vivos os mitos que facilitam o seu objetivo de levar as pessoas a acreditar na superioridade moral de quem está no poder, e em particular da esquerda
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– tirando assim benefícios. Logo, quem defender hoje a verdade histórica no que toca ao Estado Novo é frequentemente alvo de lamentáveis insinuações e julgamentos de intenção, mesmo quando completamente falsos. Os políticos (alguns assumidos, outros disfarçados) seguem esse caminho para tirar dividendos, ou por estarem limitados pela sua falta de cultura e condicionados pelos seus próprios estereótipos ideológicos. O erro fundamental dos que tentam atribuir ao Estado Novo as culpas do atraso português é desconhecerem a profundidade histórica desse atraso. O essencial pode ser repetido: as raízes do atraso de Portugal são muito anteriores ao Estado Novo, tanto a nível económico como a nível político ou institucional. Como veremos, em termos económicos, o declínio de Portugal começa décadas antes das Guerras Napoleónicas. Em meados do século xix, Portugal já era o país mais pobre da Europa Ocidental. Em 1900, era o que tinha a maior percentagem de analfabetos (75%). Em termos institucionais, as Cortes deixaram de se reunir em Portugal a partir de finais do século xvii. Só voltaram a reunir-se no século xix, em moldes diferentes, mas o sistema político manteve-se disfuncional, como explico em detalhe mais à frente. Durante a Monarquia Liberal do século xix, o atraso do país agravou-se, e a Primeira República não foi capaz de inverter essa tendência. Por tudo isto, o Estado Novo herdou um país profundamente atrasado, não apenas em termos económicos, mas também políticos ou institucionais. Não é, portanto, surpreendente que em meados do século xx – ou mesmo em 1974 – vários indicadores de bem-estar, como a mortalidade infantil ou os níveis de educação, estivessem piores do que os de outros países da Europa Ocidental. Quando se quer analisar as políticas do Estado Novo é necessário entender este contexto histórico: é preciso olhar para o ponto de partida, e não apenas para o de chegada. E é por isso que não faz sentido centrar o debate das causas do atraso nesse regime. Nem sequer apenas no século xx. Como já expliquei, assistimos hoje simplesmente à mesma lógica política que funcionou durante séculos: as atuais forças políticas sentem a necessidade de culpar o regime anterior para se legitimarem. É por isso que essas forças políticas estão tão interessadas em instrumentalizar e demonizar o Estado Novo (regime pelo qual, sublinho, não tenho qualquer simpatia política). Mas a democracia não tem de ser isto. A democracia pode e deve ser melhor, defendendo a verdade histórica. Até porque a liberdade e a democracia são fins em si mesmos. Assim, nenhum verdadeiro
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democrata precisa de inventar mentiras sobre o passado para se legitimar. Pelo contrário, só encarando a verdade histórica encontrará as soluções adequadas para os problemas – reais e não ilusórios – do país. Antero de Quental avisava defensivamente, no início da sua intervenção nas Conferências do Casino, que: [a] discussão, longe de nos assustar, é o que mais desejamos; porque, ainda que dela resultasse a condenação das nossas ideias, contanto que essa condenação fosse justa e inteligente, ficaríamos contentes, tendo contribuído, posto que indiretamente, para a publicação de algumas verdades.
Como referi, estas Conferências foram sujeitas à censura da época, e acabaram mesmo por ser proibidas pelas autoridades, alegando que atacavam «as instituições do Estado». Esperemos que a democracia, que já ultrapassou em duração o tempo do Estado Novo, mas que continua com dores de crescimento, seja capaz de um debate mais informado e mais livre sobre o nosso passado. Até porque, insisto: só assim é possível pensar de forma mais clara o nosso presente – e o nosso futuro. [1] QUENTAL (2008), p. 11. [2] HESPANHA (1994); CARDIM (1998a); TORGAL (2021).
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PARTE I PORTUGAL DESDE FINAIS DA IDADE MÉDIA
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1. População Portugal existe numa continuidade linguística e geográfica coerente desde o século xii.[1] Esta é uma situação, de resto, notável a nível europeu e até mesmo mundial. Podemos ter muitos problemas em Portugal e os portugueses podem continuar a discordar, e sempre discordaram uns dos outros em muitas coisas, mas um problema que nunca tivemos é o da identidade. Onde começa e acaba Portugal é tão evidente que nem pensamos nisso. E esta convicção ainda é mais notável por Portugal não ter uma unidade geográfica natural, como mostrou Orlando Ribeiro: o sul do país é marcadamente diferente do norte e o litoral do interior, não existindo nenhuma inevitabilidade geográfica natural nas fronteiras.[2] Na realidade, o país é uma construção política medieval.[3] E, no entanto, existimos assim há quase um milénio. Precisamente por pensarmos pouco nesta realidade, perdemos a noção do quão invulgar é. Há poucos países no mundo com estas características. O destino de outros estados pequenos da Europa, afinal, foi o desaparecimento.[4] Deste ponto de vista, é quase espantoso que Portugal ainda hoje exista. Neste livro, quando falo de Portugal tout court, refiro-me às fronteiras modernas. Incluo, assim, os arquipélagos da Madeira e Açores, que, como é sabido, apenas fizeram parte do país desde finais da Idade Média, mas excluo territórios que tenham pertencido ao império português em diferentes momentos. Com a assinalável exceção de Olivença – perdida para Espanha na sequência da Guerra das Laranjas em 1801, no contexto das Guerras Napoleónicas – as fronteiras de Portugal continental são as mesmas desde o Tratado de Alcanizes nos finais do século xiii. Nos séculos seguintes, o título era Reino de Portugal e dos Algarves, mas na realidade o Algarve foi apenas um reino nominal, sem autonomia nem instituições relevantes próprias. A este Portugal continental, com a mesma configuração desde meados do século xiii, foram apenas 23
acrescentados no século xv os, então desertos, arquipélagos dos Açores e da Madeira. A identidade portuguesa nunca esteve em causa ou em sério risco de desaparecer. Mesmo nos períodos mais invulgares da nossa História, como a União Dinástica de 1580-1640, poucos estiveram confusos sobre ser ou não ser português. Se a União tivesse durado mais tempo, é possível que uma fusão de identidades chegasse a ocorrer, como a que veio de facto a acontecer, ainda que de forma apenas parcial, na Galiza, no País Basco, e mesmo na Catalunha. Nestas regiões, a identificação com Espanha, para não dizer Castela, nunca chegou a ser total, mas aconteceu em grande medida. Em Portugal nem chegou de todo a acontecer. Portugal tem hoje uma das menores taxas de fecundidade do mundo – menos de uma criança e meia por mulher – estando por isso a sua população em declínio natural. Até meados do século xx, a situação não podia ser mais diferente: cada mulher tinha em média quatro ou mais filhos no decurso da sua vida fértil, sendo que vários morriam ainda bebés ou crianças. Mesmo entre os nados-vivos, mais de 15% morriam no primeiro ano de vida e cerca de um terço faleciam antes de chegar aos 7 anos de idade.[5] Naturalmente, estes são números médios e aproximados, mas nada sugere que os comportamentos demográficos dos portugueses diferiam muito dos das outras sociedades pré-industriais, com taxas de mortalidade infantil e juvenil chocantes para as nossas sensibilidades presentes: historicamente, cerca de 25% dos bebés morriam antes de completarem um ano e pouco mais de metade das crianças chegava viva aos 15 anos.[6] Aliás, na ausência de sistemas de segurança social, os pais desejavam ter muitos filhos para os ajudarem a trabalhar nos campos e também para garantirem que teriam apoio na sua velhice. Note-se, no entanto, que, apesar das sociedades pré-modernas serem jovens e pobres, é falsa a ideia que por vezes existe de que não havia idosos. As sociedades tinham idades médias bem mais jovens do que hoje, mas existiram também septuagenários e até octogenários. O matemático Pedro Nunes, por exemplo, morreu aos 76 anos. A esperança média de vida aos 20 anos de idade não era muito diferente da que temos hoje, não obstante a menor qualidade de vida em idade avançada. O que assegura a maior longevidade média atual é principalmente a baixa taxa de mortalidade infantil. Por volta de meados do século xx, tudo iria mudar: deu-se uma transição demográfica.[7] O número médio de crianças nascidas vivas por mulher desceu para apenas três em 1960, um
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número historicamente baixo. A taxa de fecundidade continuou depois a descer, para 2,7 em 1974, 1,7 em 1985, e apenas 1,4 em 1994, valor no qual estabilizou até aos dias de hoje.[8] Também ao longo do século xx, deu-se uma brutal descida da taxa de mortalidade infantil, como veremos adiante. A população portuguesa até finais do século xix No início, éramos poucos. Por volta de 1500, a população de Portugal ultrapassava ligeiramente o milhão de habitantes – cerca de um décimo da atual. Em investigação conjunta com Jaime Reis e Mengtian Zhang, publicada na Historical Methods em 2020, estudei com precisão como evoluiu esta população a nível regional e anual ao longo dos séculos, a partir de 1527-1532.[9] Nesses anos, foi conduzido um «numeramento», uma contagem à escala nacional da população de cada uma das localidades. Os funcionários reais que conduziram esse numeramento contaram o número de fogos ou famílias que se juntavam à mesma lareira (por isso, cada casa habitada, em economia comum, constituía um fogo). Uma família podia ser apenas formada por uma ou duas pessoas, nos casos de viúvas, celibatários, ou jovens casais. Mas o mais típico eram as famílias compostas por pais e filhos, além de outros familiares e, se os houvesse, criados. A partir desta contagem, podemos chegar a um valor aproximado para a população – assumindo, a partir de outras fontes, que em cada fogo viviam em média entre quatro a cinco pessoas. A esta «fotografia» da população portuguesa, num dado momento, juntam-se outras mais tardias, partindo de uma lógica similar. Quando chegamos a 1706-1712, uma nova contagem de fogos apurava que a população portuguesa andaria por volta dos 2,35 milhões. Algumas décadas mais tarde, já três anos depois do Terramoto, em 1758, um inquérito a todas as paróquias do continente permite concluir que a população já se aproximava de 2,5 milhões, o que mostra um crescimento relativamente ao início do século. Na segunda metade do século xviii, o crescimento acelerou, chegando a população portuguesa a quase 3 milhões de habitantes por volta de 1800, de acordo com dois censos rudimentares realizados nessa altura. Posteriormente, a população aumentou para 3,41 milhões em meados do século xix, enquanto na altura do primeiro censo moderno, em 1864, era de 3,83 milhões.[10]
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Nos intervalos entre estas contagens, é possível calcular os nascimentos e mortes em diversas áreas do país, graças aos registos paroquiais, que assinalavam todos os batismos e óbitos ocorridos em cada freguesia. Cruzando ambas as informações, e com algumas hipóteses estatísticas adicionais, chega-se a uma estimativa da população do país, desde 1527 até 1864, data a partir da qual começaram a ocorrer censos com mais regularidade e fiabilidade. A população do país registou uma tendência de crescimento contínuo ao longo dos séculos, com uma certa aceleração no xvi e a partir da segunda metade do xviii (Figura 2). [11] Antero de Quental portanto errava ao afirmar em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares que a população portuguesa no tempo de D. João II seria de 3 milhões de habitantes, que teriam descido para apenas um milhão em 1640.[12] Essa evolução da população era certamente vista como mais coerente com a sua tese sobre as causas do atraso, mas não é a que se verifica. A evolução da população ao longo dos séculos ocorreu num quadro de valores e estruturas familiares estáveis e bem definidos. Além de monogâmicos, em Portugal, os casamentos eram exogâmicos: não aconteciam, por norma, entre parentes próximos.[13] Também eram geralmente neolocais: os recém-casados iam viver para uma casa separada da paterna, dentro de alguma diversidade regional.[14] O matrimónio era consensual e as mulheres podiam ter propriedades e partilhar as heranças dos pais com os irmãos, tal como acontecia no resto da Europa Ocidental. Os portugueses transportavam estas práticas muito arraigadas para os locais para onde iam: na Índia portuguesa, por exemplo, as mulheres convertidas ao cristianismo podiam herdar em paridade com os homens, ao contrário do que ditavam as tradições locais.[15] Nestes aspetos culturais, relativos a normas sociais a nível das famílias, Portugal era um país profundamente europeu.[16] Mas existiam diferenças relevantes e inegáveis, entre a Europa Ocidental e o resto do Mundo. Irei em seguida desenvolver este tema, até porque ajuda a compreender melhor quais as verdadeiras descontinuidades, tanto quantitativas como qualitativas, que ocorrerão em Portugal no século xx. Figura 2. A população de Portugal entre 1530 e o primeiro censo moderno (1864).
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Todas as sociedades desenvolveram meios de controlar a sobrepopulação. Na Europa, estes meios consistiam principalmente nos limites inferiores à idade do primeiro casamento das mulheres e no celibato de uma parte da população, a que se juntavam outras estratégias de contenção sexual, para além das guerras, epidemias e fomes que aconteciam com infeliz frequência e intensidade.[17] Em vários contextos não-europeus, possivelmente mais próximos das sociedades de caçadores-recoletores que caracterizaram os primeiros milénios da História da humanidade, o controle da população efetuava-se de formas diferentes. No Brasil, os primeiros cronistas portugueses notaram com horror as guerras frequentes entre tribos rivais, com canibalismo associado.[18] Em 1965, John Hajnal, um académico de origens húngaras radicado em Inglaterra, propôs a existência de uma linha divisória da Europa entre São Petersburgo e Trieste. A ocidente desta divisória, afirmava Hajnal, vigorava historicamente o chamado «Padrão Matrimonial Europeu» – ao contrário do que acontecia no resto do mundo. A «Linha de Hajnal», como viria a ser conhecida esta divisão, demarcava não apenas a Europa Ocidental da do Leste, mas também, e sobretudo, das civilizações mais a oriente.[19] Hajnal documentou que a ocidente desta linha, a organização das famílias diferia da oriental em dois aspetos: a idade de casamento mais tardio das mulheres e a taxa de celibato que era comparativamente alta. Investigações subsequentes vieram a acrescentar outras características a este padrão, nomeadamente, o facto de, na Europa Ocidental, os casamentos serem consensuais (exceto, evidentemente, no que tocava à Nobreza), e o facto de as mulheres terem tido mais direitos e uma maior taxa de participação no mercado laboral.[20] As conclusões das últimas décadas têm confirmado que o Padrão Matrimonial Europeu
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e a Linha de Hajnal constituem representações aproximadamente corretas da realidade histórica desde os finais da Idade Média até ao século xx. E essas normas culturais e sociais a nível familiar estiveram certamente relacionadas com o padrão de desenvolvimento que se veio a verificar na Europa Ocidental. Portugal fica, evidentemente, a ocidente da Linha de Hajnal.[21] A idade média do primeiro casamento das mulheres era de facto alta, sendo em geral superior aos 25 anos em todo o país, ainda que com algumas variações regionais: a sul de Lisboa, era tendencialmente inferior.[22] Mesmo aí, no entanto, esta idade era superior à que se praticava noutras zonas do Mundo, por exemplo, na China ou Índia. Aí, sem prejuízo das variações regionais inevitáveis, as mulheres tendiam a casar-se muito mais cedo (antes dos 20 anos). A idade média do primeiro casamento era também uma aproximação à idade média da mãe na altura do nascimento do primeiro filho, o que portanto em Portugal acontecia por volta dos 25 anos ou mais – uma situação que no nosso país se manteve até 1985.[23] Deste então, essa idade média tem subido, rondando nos dias de hoje os 30 anos.[24] Para ocidente da Linha Hajnal, não existiam historicamente diferenças entre países católicos e protestantes, desde o século xvi, ou entre o norte e o sul da Europa, ao contrário do que por vezes é afirmado. Existe, de facto, uma literatura académica influente de origem neerlandesa que tem argumentado que as mulheres eram historicamente menos discriminadas nos países do norte da Europa, e em particular nos Países Baixos e na Inglaterra, do que acontecia nas regiões do sul da Europa Ocidental, como em Itália, Espanha e Portugal.[25] Essa literatura reconhece que as mulheres também trabalhavam fora de casa no Sul, mas insiste que isso acontecia com menos frequência do que no norte da Europa. Também afirma a mesma literatura que as diferenças salariais no Norte seriam menores, para além de reagirem às forças de mercado, o que não aconteceria no sul, onde as normas sociais determinariam que as mulheres ganhavam metade dos homens. Especula-se, com base em tudo isto, que são essas diferenças que explicam o maior investimento das mães na educação dos filhos no norte da Europa. Na verdade, nada disso é correto. Em trabalho conjunto com Jaime Reis e Lisbeth Rodrigues, mostrei que Portugal era historicamente – pelo menos até finais do século xix – um país como os outros da Europa Ocidental no que toca às normas sociais e familiares.[26] A situação das
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mulheres, fossem solteiras, casadas, ou viúvas, era parecida com a das do norte da Europa. Não se casavam cedo (como já vimos), nem com maiores intervalos de idade relativamente aos seus noivos. Os regimes relativos às heranças eram também semelhantes.[27] Em Portugal as mulheres participavam no mercado laboral tal como também acontecia a norte, pois o casamento não as impedia de o continuar a fazer, e podiam até trabalhar por conta própria, o que acontecia na mesma proporção que nos Países Baixos.[28] Tinham um salário que variava em função das circunstâncias, mas era em geral cerca de dois terços do dos homens – a mesma proporção média que no norte da Europa. Em Portugal, havia também uma taxa alta de celibato feminino: acima de 10%. Finalmente, convém notar que os níveis de literacia e numeracia do sul da Europa em geral, e de Portugal em particular, não eram claramente inferiores aos de outras partes da Europa até ao século xviii, como veremos mais à frente neste livro. Isto sugere que, até essa altura, não existiam grandes diferenças ao nível dos investimentos familiares na educação dos filhos. Em suma, não é possível que sejam normas sociais ao nível das famílias o que explica porque é que Portugal – ou o sul da Europa em geral – se irão tornar em regiões mais pobres do que o norte da Europa. Temos portanto de considerar outras explicações para as origens do atraso, já que as mulheres portuguesas podiam ser cabeças de casal e conheciam taxas de participação laboral e diferenças salariais relativas às dos homens em linha com o resto da Europa Ocidental.[29] Que não restem dúvidas de que existiam discriminações históricas – não tanto relativamente aos salários das profissões que as mulheres podiam exercer, que tinham uma relação próxima com a sua produtividade, mas principalmente pelo facto de lhes ser negado o exercício de certas profissões. Até ao século xx, não podiam ser médicas nem advogadas, por exemplo. Mas isso era assim em todos os países, logo não pode explicar o atraso de uns em relação a outros. Dito isto, existiu efetivamente um período, já no século xx, em que as mulheres eram mais discriminadas no sul da Europa do que no norte. Mas isso viria depois da divergência já ter acontecido, sendo essa mesma divergência certamente uma das suas causas, mais do que o contrário. E note-se que em Portugal, em particular, mesmo antes do 25 de Abril, a participação das mulheres no mercado de trabalho era alta, sendo comparável aos níveis médios europeus.[30]
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A literatura demográfica inspirada por Hajnal observou ainda que nas populosas sociedades que habitavam a China, a Índia, ou o Médio Oriente, o número de rapazes a chegar à idade adulta era maior do que no caso das meninas, devido a negligência ou a infanticídio seletivo.[31] Também nesta matéria, Portugal fazia claramente parte da Europa Ocidental. Em certos casos, observa-se, aliás, o contrário: o rácio rapazes sobre raparigas a sobreviver era inferior a 1. Apesar de não existir informação histórica sistemática sobre esta matéria, sabemos que no Porto, entre 1680 e 1780, a maior parte dos expostos (crianças abandonadas pelas mães) eram meninos, e que ainda em meados do século xix, a mortalidade infantil era genericamente superior entre os meninos.[32] Ou seja, como nas outras matérias relativas à fecundidade comparada e normas sociais a nível familiar, Portugal seguia o padrão europeu sendo, por isso, excecional à escala do globo. A população portuguesa desde finais do século xix A evolução da população portuguesa no último século e meio é conhecida com grande rigor. Os aumentos populacionais verificados no último terço do século xix garantiram que a população ultrapassasse os 5 milhões de pessoas em 1890, enquanto em 1910 já tinha ganhado praticamente mais um milhão. A vaga de emigração para o Brasil e outras partes do continente americano, vinda do século xix, parou com a Primeira Guerra Mundial, e em 1930 residiam em Portugal 6,8 milhões, que passaram a ser 7,7 milhões em 1940, e 8,4 milhões em 1950. Por volta dessa década, começou a transição demográfica, com uma gradual queda do número médio de filhos por mulher e, consequentemente, um abrandamento do nível de crescimento populacional. Como noutros países, a transição demográfica manifestou-se numa maior taxa de sobrevivência infantil e em maior investimento na educação por parte dos pais.[33] As crianças deixaram progressivamente de ser um par de braços para ajudar nos campos ou nas tarefas domésticas e passaram a ser vistas como um ativo em que os pais investiam ao longo de um largo período. Por esta razão, a que se juntou o aumento da emigração, em particular para França nos anos 1960, a população em 1970 ainda era apenas 8,6 milhões. Mais de meio milhão de «retornados» entrou no país em meados da década de 1970, e o salto para os 10 milhões era registado pouco depois, no censo de 1981.[34] A partir daí, o crescimento 30
populacional travou. Em 1991, a população portuguesa continuava a ter este número aproximado, que praticamente se mantém na atualidade.[35] A Figura 3 mostra a evolução ao longo do tempo.[36] Apesar de ser um tópico que se coloca além do foco imediato deste livro, aproveito para notar o facto evidente de a população – e a atividade económica – do país estar hoje muito mais concentrada no litoral, e nas cidades, do que sucedia até meados do século xx.[37] Talvez o mais surpreendente sobre o país nos dias de hoje, no que toca à população, seja o facto de Portugal receber muitos imigrantes mas, ao mesmo tempo, ser um país de onde também emigram muitas pessoas (e não só as qualificadas). Isto é o resultado de Portugal ser rico a nível mundial, mas pobre a nível europeu – e sem grandes perspetivas de melhorar. Não sendo possível reformar o país, onde não têm voz, e não podendo ou querendo entrar nas disputas partidárias que poderiam dar acesso a rendas, muitos portugueses estão a votar com os pés – abandonando o país. Não deixa de ser notável que cerca de um quinto dos portugueses viva hoje fora de Portugal, sendo o nosso país aquele que, na Europa Ocidental, mais cidadãos vê partir.[38] As saídas têm estado mesmo a aumentar, e o Reino Unido continua a ser o principal destino.[39] A queda verificável da população corresponde a dois terços da dos anos 60 do século xx, mas num contexto em que a fertilidade dos que ficam é muito inferior.[40] Figura 3. A população de Portugal entre 1870 e 2018.
[1] MATTOSO (1986). [2] RIBEIRO (1986). [3] MATTOSO (2015). Originalmente publicado em 1985.
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[4] DAVIES (2012). [5] Estes números foram os utilizados por PALMA et al. (2020). [6] ROSER et al. (2013). [7] A génese da transição demográfica teve a sua origem ainda em finais dos anos 20 do século xx. Veja-se CERMEÑO et al. (2023), p. 7. [8] Instituto Nacional de Estatística (2013), p. 41; CERMEÑO et al. (2023). [9] PALMA et al. (2020). [10] Fonte: até 1864, várias fontes citadas em PALMA et al. (2020). [11] PALMA et al. (2020). [12] QUENTAL (2008), p. 83. [13] Como é evidente, os casamentos entre a Nobreza, que eram combinados, representavam uma exceção a esta regra. [14] Por exemplo, no Minho havia mais tendência para a endogamia nos casamentos. [15] THOMAZ (2022), p. 147. [16] Os primeiros indícios sobre a excecionalidade europeia datam da altura da Peste Negra, ou um pouco antes. Veja-se VAN ZANDEN et al. (2019). [17] Para uma revisão moderna das ideias relacionadas com a obra de Thomas Malthus e da sua diferente aplicabilidade ao longo do tempo, veja-se GALOR (2022). [18] Se os cronistas não tinham a informação de que dispomos hoje, e não teriam certamente a capacidade de compreender as sociedades nativas em toda a sua complexidade, continua a valer a pena ler a sua irrepetível experiência em primeira mão. Veja-se GÂNDAVO (2004), publicado originalmente em 1574. [19] HAJNAL (1965). A este artigo seguiu-se HAJNAL (1982). [20] VAN ZANDEN et al. (2019). No que toca à situação do sul da Europa Ocidental, e em particular de Portugal, há afirmações feitas neste livro que não correspondem de todo à realidade histórica. Explicarei isso mais à frente. [21] O próprio John Hajnal reconheceu isto logo no início do artigo de 1965, onde afirmava que apenas a Europa de Leste estava fora deste padrão. [22] PALMA et al. (2023), p. 12, e também Apêndice G, pp. 34-42. [23] Ainda que o número médio de filhos por mulher estivesse a cair desde há décadas, como referido anteriormente.
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[24] Esta é uma idade que anda próxima da dos outros países europeus. Fonte: EUROSTAT (2023a). [25] ZANDEN et al. (2019); PLEIJT e ZANDEN (2021); HENRICH (2021). [26] PALMA et al. (2023), pp. 11-13. [27] Existiam variações regionais em todos os países. Mas essas variações não estiveram sistematicamente associadas a uma maior discriminação contra as mulheres no sul da Europa Ocidental. [28] Existe suporte empírico detalhado relativo a esta matéria, dizendo respeito a meados do século xviii. Veja-se SILVA e CARVALHAL (2020). [29] Logo, menores do que as que eram praticadas genericamente noutras partes do mundo. [30] Em 1974, cerca de 43% das mulheres portuguesas em idade ativa trabalhavam fora de casa, sendo esta percentagem parecida com a média europeia, e muito superior à de países do sul europeu, como a Espanha, Itália, ou Grécia. Veja-se OUR WORLD IN DATA (2017). [31] Tendo em conta que o rácio de rapazes sobre raparigas à nascença é sempre próximo de 1. [32] PALMA et al. (2023). [33] Sobre estas questões, num contexto global, veja-se GALOR (2022). [34] A rápida reintegração dos retornados na sociedade portuguesa foi notável, ainda que tenha tido consequências não despiciendas nos mercados laborais. Veja-se BOHNET et al. (2022). [35] A partir de 1890, a fonte destes números é a informação dada em VALÉRIO (2001). Fontes mais atualizadas dão números parecidos. Veja-se AMARAL (2009), e também HENRIQUES e RODRIGUES (2009). [36] MADDISON PROJECT DATABASE (2020), que se baseia em MADDISON (2006), Apêndice B, 230-231; que por sua vez se baseia em MCEVEDY e JONES (1978). [37] Sobre esta matéria, ver BADÍA-MIRÓ et al. (2012). [38] HIRSCHMAN (1970). Segundo o WORLD ECONOMIC FORUM (2016), uma em cada cinco pessoas nascidas em Portugal vive fora do país. Outros países em que isso se passa são o Cazaquistão, Macedónia do Norte, Síria, e Trinidad e Tobago. [39] OBSERVADOR (2023a). [40] Entre 2011 e 2021 a população diminuiu em cerca de 200 mil pessoas. Veja-se INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (2021), e EXPRESSO (2022).
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2. Instituições políticas Nenhuma sociedade consegue prosperar sem a existência de um Estado que consiga impor justiça e ordem por meio da oferta de bens públicos, como tribunais e forças armadas.[41] No entanto, qualquer governo suficientemente forte para manter a ordem também é capaz, ipso facto, de utilizar a sua força para expropriar os cidadãos em benefício da pequena elite politicamente dominante. Este é um dilema fundamental de todas as sociedades humanas: como construir um Estado simultaneamente poderoso, mas também justo e contido?[42] Era um problema que Platão já referia e continuou a preocupar todos os pensadores destas matérias ao longo dos séculos, como John Locke e Montesquieu. Foram as sociedades que melhor conseguiram obter esse difícil equilíbrio que mais se desenvolveram, com destaque para a Inglaterra a partir da segunda metade do século xvii. Neste capítulo, explico como Portugal se afastou deste caminho no século xviii. Ainda hoje estamos a pagar as consequências deste desvio, como mostrarei. Nos reinos europeus dos séculos xv a xviii, os parlamentos eram a principal forma pela qual o interesse público confrontava o poder executivo e os interesses instalados, incluindo por vezes o próprio monarca.[43] Os parlamentos – que em Portugal e Espanha se chamavam Cortes – eram instituições em que os membros representavam o interesse geral público perante o poder executivo.[44] A ideia que normalmente existe de que Portugal era, nos séculos xvi ou xvii, uma Monarquia Absoluta, em que o rei tinha poder sem limites e tudo decidia, não é apenas simplista: é falsa. Os autointitulados «liberais» do século xix, como Alexandre Herculano, criaram uma narrativa segundo a qual a História de Portugal nos séculos anteriores se caracterizava pelo Absolutismo que triunfara no século xvi sobre as tradições municipais da Idade Média. Esta narrativa não corresponde, contudo, à verdade histórica – é uma estória escrita para defender causa própria. Ao 34
contrário do que esses mesmos «liberais» acreditavam, e que muitas pessoas ainda hoje repetem, o triunfo final do Liberalismo em 1834 também não marcou uma quebra sistemática e decisiva com os problemas institucionais que vinham de trás. Não apareceu um Portugal novo. Por exemplo, um dos problemas apontados às velhas instituições era a existência de propriedade vinculada (como o morgadio) que não podia ser transacionada – ou seja, comprada ou vendida –, limitando assim os direitos individuais de propriedade e impedindo o desenvolvimento de um verdadeiro mercado de terras. Ora, apesar de toda a sua retórica, o Regime Constitucional, pretensamente «liberal», foi incapaz de resolver esta situação ineficiente, deixando-se envolver em imbróglios jurídicos intermináveis associados à tentativa de extinguir a impossibilidade de vender, ou dividir em parcelas, os morgadios ou outras instituições relacionadas.[45] Na verdade, não é abusivo ver o triunfo do Regime Liberal, na primeira metade do século xix, como uma imposição de potências estrangeiras preocupadas em garantir que os credores da sua nacionalidade recebessem a devolução dos empréstimos concedidos.[46] A ideia de que a lei deveria ser igual para todos tem mérito, sem dúvida, mas a sua aplicação efetiva neste período não terá tido mais força do que tem hoje: tal como nos nossos dias, o dinheiro, as relações pessoais, e o nível de conhecimentos continuaram a determinar que, na prática, a aplicação da legislação variasse em função da classe social. E como veremos neste livro, a Monarquia Liberal coincidiu, na realidade, com um comportamento medíocre da economia nacional, particularmente por comparação a outros países da Europa Ocidental. Neste capítulo, mostro que o atraso institucional português, em termos comparados, apenas se iniciou no século xviii.[47] Baseio-me aqui em grande parte na investigação que fiz juntamente com António Castro Henriques, apresentada num artigo publicado no Journal of Economic Growth em 2023.[48] Uma perspetiva comparada indica que o atraso político de Castela era anterior ao português, tendo as instituições portuguesas sofrido de contágio político no período da União Dinástica, quando os reis de Espanha também foram soberanos de Portugal (15801640).[49] No entanto, na sequência da Restauração, as Cortes portuguesas ressurgiram e reafirmaram as suas antigas prerrogativas. O renascimento das Cortes, na segunda metade do século xvii, veio a ter consequências notáveis no que toca à capacidade fiscal, legal, e administrativa do Estado português. Mas, infelizmente, no século xviii
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tudo iria mudar, e as Cortes não se reuniriam uma única vez. Gradualmente, verificou-se que o rei já não precisava de negociar com elas para cobrar novos impostos ou tomar outras decisões políticas relevantes. Logo, se há período da História de Portugal que podemos caracterizar como sendo absolutista, é precisamente esse.[50] Neste livro, explicarei quais os motivos pelos quais isto aconteceu e as consequências que esse atraso político teve, até mesmo aos dias de hoje. O século xix, à primeira vista, surge como uma época de profunda rutura institucional. Depois da vitória definitiva dos ditos «liberais» em 1834, tudo aparenta ter mudado: a nível legal, administrativo, e fiscal era um país novo e radicalmente diferente do anterior que aparentava ter surgido. Ou, pelo menos, assim o afirmaram gerações de historiadores, influenciados por grandes figuras do Liberalismo como Alexandre Herculano.[51] No entanto, demonstrarei que as amplas mudanças institucionais e legais do século xix e início do seguinte não tiveram efeitos significativos na sociedade portuguesa. Pelo menos, as suas consequências apenas aconteceram a prazo e de forma indireta. Estou consciente de que, ao defender esta ideia, entro em contradição com as convicções de grande parte da historiografia existente sobre esse período. Mas a verdade é que uma sociedade que chegou ao século xix decadente, em termos tanto políticos como económicos, nunca poderia ter sido fácil de reformar. Devido a este peso do passado, o século xix acabou por ser muito mais traumatizante do que tinha de ser. E o radicalismo político que se instalou em certas épocas, que disso foi consequência, não resolveu os bloqueios fundamentais do país. O fracasso não decorreu apenas da má conceção das leis e instituições, mas do facto de muitas das reformas se terem feito apenas por decreto – ou seja, de jure. Faltou a sua implementação de facto, como aliás já tinha acontecido com algumas «reformas» do século anterior.[52] E o mesmo voltaria a acontecer um século depois, com a Primeira República, tanto no que toca à difícil relação com o Clero, como à questão da alfabetização, num país que era pobre e profundamente religioso. Acabou por ser a ditadura socialmente conservadora que governou o país a partir de 1926, sem cortar com muitas das alterações institucionais anteriores – como a secularização do Estado ou a natureza republicana do regime – que foi capaz de modernizar o aparelho estatal, alfabetizar as novas gerações, e implementar reformas fundamentais que, a seu tempo, dariam frutos. Beneficiando também, sem dúvida, da conjuntura externa favorável do
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pós-guerra, o país finalmente convergiu, num processo que depois continuou durante a democracia, ainda que de forma variável no tempo e com resultados medíocres nas últimas décadas. A situação política comparada nos finais da Idade Média É necessário recuar no tempo e alargar o espaço de análise para estudar e compreender as instituições políticas, assim como a sua mudança no tempo. Este recuo é crucial, já que a evolução política do país, desde o século xv, irá ter implicações fundamentais para se entender o atraso político e económico a prazo. Como já referi, em Portugal, em finais da Idade Média, existiam parlamentos (Cortes). Nestas assembleias, reuniam-se os «três estados» – Povos, Nobreza e Clero –, e existia um sentimento de pertença ao «reino». Falava-se no «bem comum do reino» e em direitos, assim como obrigações, inerentes. [53] Estas assembleias representativas exerciam limites (restrições) importantes ao poder executivo, tendo competências para aprovar, por exemplo, novos impostos solicitados pelo rei (ou alterações aos impostos existentes).[54] Tendo as Cortes responsabilidades e poderes efetivos, não faz sentido falarmos de Absolutismo. O papel decisivo nas Cortes não estava no Clero e na Nobreza mas cabia antes aos «Povos» que reuniam os representantes dos principais concelhos.[55] Estes, decidindo em nome das comunidades que os elegiam, eram conhecidos como procuradores – de uma forma aproximada, e sem grande salto de imaginação nem de violência à História, podemos comparar estes procuradores com os deputados dos atuais parlamentos. Mais, na sua forma de funcionamento, as Cortes seguiam normas, algumas escritas, outras não. Ou seja, as Cortes cumpriam, e faziam cumprir, o que na prática era uma Constituição, ainda que esta não estivesse codificada.[56] O exemplo contemporâneo do Reino Unido – que não tem uma Constituição escrita, embora tenha regras constitucionais que deverão ser cumpridas – ajuda a compreender o Portugal dos séculos xiv a xvii. Em suma, ao contrário do que aprendemos na escola e até nas universidades – tanto mais que gerações de historiadores e juristas o têm repetido desde o século xix – não é verdade que, antes de 1820, nunca tivessem existido em Portugal
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instituições parlamentares ou um Estado Constitucional.[57] Tudo isto tinha existido, de facto, ainda que tivesse desaparecido no século xviii, por razões que discutirei. Na verdade, os parlamentos – na lógica de funcionamento a que me refiro aqui – foram uma invenção e especificidade europeia, com origens medievais.[58] Até ao século xx tais assembleias não são observáveis noutras partes do mundo.[59] Mas nunca foram iguais em toda a Europa. Na Polónia, por exemplo, tiveram demasiado poder. Elegiam o rei, e o poder de veto detido por cada um dos procuradores individuais criava constantes bloqueios que enfraqueciam o Estado, tendo no limite levado ao desaparecimento do próprio país em finais do século xviii.[60] Em França, os Estados Gerais pararam de funcionar em inícios do século xvii, ficando algumas das suas funções fiscais e judiciais entregues a comissões permanentes regionais, chamadas parlements. Por sua vez, os parlamenti, do Reino de Nápoles, também perderam poder ao longo do tempo, acabando por deixar de funcionar.[61] Já nos Países Baixos, impulsionados pela necessidade de organizar o país, devido à guerra de independência contra os reis de Espanha, estas assembleias tiveram um papel fundamental. Para fixar ideias e ser possível uma comparação detalhada, vale a pena concentrarmo-nos na comparação da evolução institucional portuguesa com a de outras duas unidades políticas: Castela e Inglaterra. No caso de Castela (cujo território e população correspondiam a mais de três quartos da Espanha) a escolha é evidente, já que, segundo Antero de Quental, era um dos «povos peninsulares» que partilhava com Portugal o fardo da decadência.[62] A escolha de Inglaterra justifica-se por ter sido um caso de sucesso, à escala mundial, a partir da segunda metade do século xvii. Não podemos compreender bem o que falhou em Castela ou em Portugal sem também estudar o caso de inegável sucesso económico e político que foi a Inglaterra. A partir da segunda metade do século xvii, a Inglaterra tornou-se na economia mais dinâmica da Europa. Além disso, o aparecimento da Revolução Industrial, durante o século xviii, viria depois a ter implicações fundamentais para todo o mundo. Sabemos hoje que a Revolução Industrial teve origens políticas, ainda que continue o debate sobre o papel do Estado e sobre a importância relativa de diferentes momentos e regimes políticos.[63] Vale por isso a pena
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conhecer a evolução política inglesa no caminho que percorreu até ao século xviii. Porém, essa evolução também não pode ser compreendida plenamente se a isolarmos do que se passava na Europa continental. Apesar da aparente diversidade entre os vários parlamentos, na Europa Ocidental existiam também semelhanças fundamentais entre eles. Estas semelhanças, de resto, justificam referirmo-nos às Cortes de Castela e Portugal como parlamentos, já que estas assembleias tinham papéis equivalentes às do parlamento inglês. O papel mais importante era o poder de consentir, ou não, pedidos de impostos feitos pelo rei. Os representantes tinham também de aprovar subsídios que o monarca desejasse dar a alguém, e tinham poder decisório em matérias complexas e importantes relacionadas com questões de sucessão e outras disputas dinásticas de importância fundamental para o funcionamento do Estado. Finalmente, estas assembleias eram, por vezes, convocadas para participarem em grandes reformas e na produção de legislação. Aliás, foi este último motivo que justificou a sua convocação em meados do século xiii, tanto em Castela como em Inglaterra e em Portugal, num processo que, a partir daí, passou a ser frequente. Enquanto operaram, os parlamentos de Castela e Portugal não defenderam pior o interesse público, em geral, do que o que aconteceu em Inglaterra. Esta situação viria sem dúvida a mudar radicalmente a partir de meados do século xvii – um pouco antes em Castela, mais tarde em Portugal –, mas não tinha sido sempre assim. Na verdade, num período anterior, nomeadamente, durante grande parte do século xvi, os interesses dos representantes do parlamento inglês parecem ter estado mais desalinhados com os do público na Câmara dos Comuns inglesa do que acontecia nas Cortes de Castela ou de Portugal.[64] Em Portugal, o monarca convocava concelhos destinados a enviarem os seus representantes para as Cortes, sendo que a vereação municipal proclamava publicamente o conteúdo da convocatória do rei. Por exemplo, no concelho de Loulé, em 1385, a vereação reuniu e decidiu chamar «os homens bons da dita vila e a maior parte do povo», incluindo até os pobres, para elegerem os procuradores das Cortes de Coimbra, que iriam, por sua vez, eleger D. João I.[65] Desse modo, foram estes procuradores eleitos que, por sua vez, fizeram do Mestre de Avis um rei de Portugal «eleito».[66] Ou seja, nos séculos xiv e xv, o direito a participar nestas eleições era alargado, não restrito apenas à oligarquia local ou às camadas superiores da sociedade.[67] O monarca consultava
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um grupo alargado de pessoas para que, depois, os municípios não pudessem afirmar que os procuradores tinham sido eleitos por uma pequena elite.[68] A lista eleitoral mais antiga que sobrevive, datada de 1497, para o Porto, regista o nome de 34 eleitores, mas o escrivão nota também que votaram «outros muitos do povo» que não registou porque desconhecia os seus nomes.[69] Os votantes nestas eleições tinham profissões variadas, incluindo por exemplo três sapateiros, um tabelião, e um cavaleiro. A Monarquia portuguesa tentava tornar as eleições o mais participadas possível, por forma a que a legitimidade dos procuradores não fosse posta em causa.[70] As convocatórias afirmavam que todo o município, incluindo agricultores e artesãos, deviam participar na eleição. Mesmo que os mais céticos possam desconfiar da interferência da vereação em algumas eleições, os procuradores escolhidos não seriam considerados legítimos sem aclamação popular. Este procedimento não era apenas uma formalidade: os membros da vereação em funções não podiam ser indiferentes ao sentimento geral. O funcionamento do sistema está bem documentado para Lisboa no século xvi, e para o Porto no século xvii. Em 1580 existia em Lisboa um eleitorado de cerca de 100 pessoas, com 48 representantes das variadas casas de mesteres – que representavam as principais profissões – além de cerca de dez vereadores e alguns juízes e oficiais municipais. Os resultados eleitorais eram frequentemente disputados, com alguns vencedores a ganharem por poucos votos. Será que a origem do inegável sucesso político e económico da Inglaterra, notório a partir da segunda metade do século xvii, tem raízes medievais?[71] Uma análise detalhada dos factos sugere que não. No século xv, em Inglaterra, o parlamento reunia representantes eleitos pelas comunidades. Na prática, as elites governativas dos condados e das cidades mais importantes, que pagavam os salários dos representantes, escolhiam quem queriam: os vereadores (aldermen), apoiados pelas guildas, votavam internamente nos representantes.[72] Estes eram depois aclamados ou confirmados pela população – ou, no caso de Londres, pelos representantes de cada bairro administrativo (ward).[73] A partir do século xiv, à medida que as instituições municipais se tornaram mais oligárquicas, o direito a votar foi sendo cada vez mais restrito, reduzindo-se a algumas dezenas de pessoas. Como tal, no período Tudor (essencialmente o século xvi), as eleições para os membros do parlamento eram pouco mais do que oportunidades para a Coroa escolher
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quem queria.[74] Não é por isso surpreendente que, neste período, o parlamento inglês raramente tenha contrariado a vontade do monarca. Ou seja, em vez de servir como uma fonte de limites ao poder executivo – os conhecidos freios e contrapesos (checks and balances) –, o parlamento inglês pouco mais fazia que concordar com a vontade da Coroa, por exemplo, aprovando mecanicamente os fundos por ela exigidos. A passividade do parlamento inglês nesse período implicava que essa assembleia, na prática, não servia de limitação ao poder executivo, aprovando de forma subserviente os impostos que a Coroa de Inglaterra exigia.[75] Mas tudo isso viria a mudar, com consequências tremendas para o desenvolvimento inglês a prazo. As instituições da Península Ibérica são, na sua origem, distintas das inglesas. A tradição das assembleias, enquanto entidades que representavam o povo no seu conjunto, surgiu na sequência da queda do Império Romano em vários reinos «bárbaros» (na verdade, altamente romanizados) da Europa Ocidental, como no Reino dos Francos. No entanto, a Espanha Visigótica foi uma exceção onde tal não aconteceu da mesma forma.[76] De qualquer modo, foi no Reino de Leão que surgiram os primeiros representantes dos estratos populares. Por outro lado, sobretudo por causa da Reconquista, os municípios peninsulares tinham milícias próprias, compostas por cavaleiros e besteiros que constituíram o principal contingente da hoste real até ao século xiv.[77] Estes municípios, cuja organização foi formalizada no século xi, podem ser descritos como «sociedades organizadas para a guerra».[78] Na Península Ibérica, o papel militar dos municípios fortaleceu a sua posição negocial relativamente ao poder executivo (a Coroa). A força e peso militar das cidades e as preocupações estratégicas dos reis tiveram um papel central na formação dos grandes municípios. Estes desempenharam uma função militar, que se manteve até bastante mais tarde e estava muitas vezes associada à provisão de bens públicos (Figura 4). Este fator terá sido importante na sua convocatória para as Cortes, que ocorreram em Leão em 1188, em Castela em 1250, e em Portugal em 1254 – as famosas Cortes de Leiria. Apesar dessa origem, os assuntos centrais aí discutidos não foram fundamentalmente de natureza militar. Nos três casos, a origem da participação municipal nas Cortes esteve ligada à estabilidade da moeda a ser cunhada: um assunto relevante para todos os concelhos, mercantis ou agrícolas. Quando chegamos ao século xvi, o papel militar dos municípios em Portugal e
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Espanha viria a desaparecer, à medida que os esforços militares de ambos se encontravam em regiões mais distantes, não adjacentes, longe do alcance das milícias. As «sociedades organizadas para a guerra» incorporaram com sucesso os interesses comerciais e adquiriram um aparelho administrativo próprio que, ao contrário dos shires ingleses, lhes reforçava a capacidade negocial perante o rei. À medida que os mouros iam recuando, as famílias mercantis tornaram-se parte das elites a nível municipal. A primeira Carta de Foral da recém-conquistada cidade de Sevilha, datada de 1251, por exemplo, foi dirigida à oligarquia governante, descrita como «cavaleiros, assim como mercadores e homens do mar».[79] Em Portugal, a conversão dos cavaleiros em mercadores urbanos, e a reutilização dos cavalos de guerra para fins agrícolas e comerciais, estão bem documentadas nas Cartas de Foral que fundaram os municípios no sul do país.[80] Figura 4. Casa da vereação de Sesimbra, séculos xiv ou xv. É possível ver um bem público, um poço, que servia de cisterna para a população em caso de cerco.
A este respeito, a cidade de Lisboa, que tinha desempenhado um papel importante durante a Reconquista, é um exemplo significativo. Durante o século xiv, foi governada por um grupo de grandes mercadores e juristas. [81] A seu tempo, as corporações de ofícios de Lisboa, Porto e Évora também ganharam poder nos processos de tomada de decisão a nível municipal. Foi o que aconteceu com a fundação da Casa dos Vinte e Quatro, na qual se sentavam dois representantes de cada uma das 12 maiores corporações (alfaiates, pedreiros, sapateiros, entre outros). Logo, nos maiores municípios de Portugal, os artesãos tinham uma palavra a
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dizer nas decisões que os afetavam, ainda que o seu papel fosse subsidiário relativamente ao das elites mercantis e jurídicas. Os povos não perderam um papel fiscalizador, decorrente da sua condição de contribuintes. Em 1459, por exemplo, os povos de Coimbra afirmaram, numa petição, que participar nas reuniões municipais era importante porque assim «sentiam o peso do que pagam e queriam saber as coisas como andam e os dinheiros do concelho como se despendem».[82] Da discussão anterior, fica claro que as instituições concelhias não perderam a sua força inicial. Ao invés, desenvolveram um aparelho administrativo e um considerável capital político. Ou seja, tudo mudou ao longo do tempo, ao contrário do que afirmam historiadores influenciados pela tradição francesa da histoire immobile, associada a Emmanuel Le Roy Ladurie do Collège de France e da escola dos Annales.[83] Mas para compreendermos porquê, e em que momento, a natureza das instituições mudou, comecemos por fixar ideias e selecionar, como ponto de partida, um momento preciso que possa ser estudado em detalhe. Vou, por isso, centrar-me com mais pormenor no período à volta de 1500, por motivos que se tornarão evidentes. A força das instituições municipais granjeava-lhes um capital político no parlamento de que as suas congéneres inglesas careciam. Por volta de 1500, cidades como Bristol ou Porto defendiam largamente o mesmo tipo de interesses nos respetivos parlamentos. Com mais ou menos influências externas, os seus eleitores escolhiam representantes identificados com a oligarquia dominante ou com a própria comunidade. A diferença, a existir, talvez fosse no sentido de que os burgueses de Bristol tinham menor capacidade negocial do que acontecia no Porto (ou em Sevilha, se falássemos de Castela). Enquanto as Cortes ibéricas evoluíram para servir os interesses dos municípios, que se governavam a si mesmos e que tinham uma certa densidade institucional, na Câmara dos Comuns inglesa a força dominante era a Aristocracia rural dos shires que não tinha um aparelho administrativo. Era claro o contraste com a força negocial de uma elite não nobiliárquica como era o caso dos vereadores municipais. A natureza oligárquica das instituições municipais inglesas mantevese, pelo menos, até meados do século xvii. Por exemplo, até 1628, todas as eleições para membros do parlamento em cidades importantes como Newcastle, Bristol, ou Gloucester, foram controladas pelas oligarquias locais, oriundas das elites urbanas, fortemente endogâmicas, que
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dominavam a vida económica e política local.[84] Durante o reinado de Isabel I (1558-1603), a pequena nobreza e as elites locais, frequentemente ao serviço da Coroa, continuaram a dominar a escolha dos assentos parlamentares. E com os primeiros dois monarcas da dinastia Stuart (a partir de 1603), a história eleitoral não terá sido diferente.[85] Durante este período, municípios como York, Bristol, ou Salisbury conseguiram não ser completamente dependentes do favoritismo régio ou do patrocínio de membros da Corte. Um cortesão influente junto de Carlos I, como era o Conde de Pembroke, por exemplo, interveio de forma decisiva em quase 90 eleições para os parlamentos de 1614 e 1628, tendo sido responsável pela escolha de 98 membros do parlamento.[86] De facto, só a partir da segunda metade do século xvii – depois de uma Guerra Civil, da execução do rei Carlos I, e da Restauração da Monarquia em 1660 – é que a maior parte das eleições começaram a ser verdadeiramente disputadas e quase todos os burgos ingleses passaram a escolher gente da terra para os representar em Westminster, resistindo à opção fácil de aceitarem as «sugestões» dos grandes cortesãos e magnates.[87] Na Câmara dos Comuns, as mudanças a que me referi começaram a acontecer ainda na década de 40 do século xvii, antecipando as grandes mudanças constitucionais que viriam a darse no contexto e na sequência da Guerra Civil. À medida que os burgos (boroughs) foram introduzindo homens locais, o rei foi enfrentando um parlamento mais independente do que tinha acontecido com os seus antecessores, o que, de resto, devido a uma sequência imprevisível de acontecimentos, o levou a perder o trono e (literalmente) a cabeça.[88] Esta sucessão de eventos, designada por alguns autores como Revolução Inglesa, seria crucial para criar as condições que explicariam a evolução política futura desse país, e o seu sucesso económico a prazo.[89] Quando a Inglaterra melhorou o seu nível de representatividade, através da escolha de genuínos representantes locais alinhados com o interesse das comunidades, essa era uma realidade que já existia desde há muito nas Cortes ibéricas. Em Castela, cada município desenvolveu métodos próprios para escolher os procuradores, combinando eleição e sorteio. Numa primeira fase, a Monarquia não tentava impor qualquer uniformidade, nem intervinha nas eleições.[90] Os procuradores começaram a ser pagos pela Coroa em 1435, o que não espanta, quando se pensa que os deputados ainda hoje são pagos pelo Estado – sendo esta,
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aliás, segundo Péricles, uma das características essenciais da democracia. Isto não era, portanto, necessariamente algo negativo para os interesses dos contribuintes.[91] Por exemplo, ser pago pela Coroa não impediu o procurador Jeronimo de Salamanca, um mercador de Burgos, de liderar com sucesso a resistência contra certas exigências fiscais do Rei Filipe II (Filipe I de Portugal) que desejava financiar uma política externa ambiciosa em defesa do que considerava seus territórios, principalmente nos Países Baixos, mas também em partes da Itália. O sucesso de Jeronimo de Salamanca mostra que a oposição, nessa fase, ainda não era punida pelo Estado com confisco, e que até por isso os procuradores mantinham uma independência significativa.[92] Apesar das instituições políticas castelhanas já estarem num certo declínio nessa época, as Cortes de 1601 foram ainda importantes e representaram um sucesso relativo para o interesse público, ao terem acabado com os arbitrios, ou seja, os expedientes arbitrários que tinham sido usados por Filipe II.[93] O argumento para acabar com eles foi de natureza equitativa, tendo tido um papel fundamental a intensa pressão dos vereadores municipais. Note-se, de resto, que os salários dos procuradores eram pagos pelos impostos que eles próprios aprovavam.[94] Isto criava um incentivo para os procuradores aprovarem exigências fiscais junto do poder executivo. Logo, a opinião pública era uma variável fundamental que os procuradores precisavam de ter em conta. Nem sempre a reação das populações locais ao regresso dos procuradores era pacífica. Por vezes, eram recebidos com zombarias, desdém e mesmo violência.[95] Em 1520, um procurador de Burgos foi linchado pelos locais que não queriam pagar os impostos acordados nas Cortes, tendo eles também queimado as convocações e a carta de nomeação do procurador. Esta pressão das populações locais acabou por levar à prática – em vigor entre as décadas de 1590 e 1630 – segundo a qual as decisões fiscais dos procuradores de Castela tinham de ser depois confirmadas pelos municípios.[96] O facto de os salários dos procuradores serem pagos pelo monarca de Castela constituía um incentivo para prolongar as Cortes que, por vezes, demoravam anos. Se em Inglaterra e em Portugal as assembleias demoravam poucos meses ou semanas, em Castela existiram períodos durante os quais as Cortes eram praticamente permanentes. Para o poder executivo, isto constituía um problema, na medida em que os pedidos demoravam muito a serem atendidos. Mas a longa duração das Cortes também pode ser vista como consequência da força das mesmas e da sua
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capacidade de resistirem à vontade do rei. Deste modo, o pagamento dos procuradores pela Coroa, garantindo uma duração mais longa de funcionamento das Cortes, até favorecia a posição negocial daqueles. E também permitia que apenas uma pequena minoria de procuradores fosse nobre, por comparação com a situação em Inglaterra.[97] A este respeito, por volta de 1500, o estatuto socioprofissional dos representantes nos três parlamentos acima referidos era diferente, mas tinha parecenças. Vejamos primeiro as diferenças. Em Portugal, os procuradores às Cortes eram proprietários, comerciantes ou funcionários, e só muito raramente nobres.[98] Nas Cortes castelhanas, 96% dos representantes eram vereadores municipais (regidores), e apenas 3% eram nobres. Já em Inglaterra, a Câmara dos Comuns (House of Commons, ou seja, a câmara baixa) era composta principalmente pela pequena nobreza (cavaleiros) e juristas. Uma diferença importante é que a escolha direta de representantes pela Coroa (ou por figuras da Corte) não era praticada em Portugal, e era rara em Castela, mas era frequente em Inglaterra. Em Portugal e Castela, os proprietários tinham um papel menos importante na escolha dos representantes e no pagamento dos seus salários do que em Inglaterra, o que pode ser visto como uma forma de funcionamento mais moderna, ou pelo menos mais representativa da população. A representatividade, medida pela população média por representante, era em Portugal muito superior ao que sucedia em Castela e ligeiramente superior a Inglaterra (Tabela 1).[99] Há ainda outros elementos que sugerem que a representação política em Castela e Portugal era mais abrangente do que acontecia em Inglaterra. Por exemplo, os representantes «paraquedistas» – ou seja, não residentes e sem grande ligação prévia aos locais que representavam – eram frequentes em Inglaterra, mas proibidos em Castela (até ao século xvii) e, tanto quanto se sabe, muito raros em Portugal. Tomando todos estes elementos em consideração, não é possível confirmar a superioridade funcional ou maior representatividade do parlamento inglês relativamente às Cortes ibéricas (tendo aqui sido consideradas em detalhe as castelhanas e portuguesa) em finais da Idade Média.[100] Tabela 1. Representatividade nos parlamentos, por volta de 1500.
Representação
Número total
População
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Método de escolha
Salários dos
Cortes de Portugal
Cortes de Castela
127 municípios
19 grandes municípios
Condados (37); Parlamento cidades com de Inglaterra estatuto de condado (12); burgos (98)
de representantes
média por representante (em milhares)
254
36
296
dos representantes
representantes
4
Eleição a nível municipal pelos vereadores e povo
Pagos pelos municípios
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Eleição; sorteio; consenso; rotação entre famílias (dependendo do município em causa)
Pagos pelos impostos aprovados (cerca de 75%) e pelos municípios (25%)
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Eleição pelos Pagos pelos senhores latifundiários (com locais, e pelos círculos rendimentos acima de ou circunscrições dos 40 xelins); escolhidos burgos e cidades pelo monarca
Existe também outro pormenor que mostra como – enquanto funcionaram – as Cortes de Portugal apresentavam um grau de representatividade superior ao que existia no parlamento inglês. Trata-se do direito que concelhos da Índia e do Brasil tinham de nelas participar. Essa prática também existia no país nosso vizinho relativamente à América espanhola. Já a sua ausência em Inglaterra, como é conhecido, foi um dos fatores que esteve na base da independência dos Estados Unidos da América em 1776. Em Portugal, pelo contrário, Goa (1645), Salvador da Bahia (1653), e São Luís do Maranhão (1676) ganharam o direito a participar nas Cortes onde discutiam questões fiscais que também lhes diziam respeito.[101] Resistir à narrativa escrita pelos vencedores A historiografia anglo-saxónica considera genericamente que a Inglaterra era, desde há muito, «excecional» no que toca à qualidade das suas instituições políticas e tendência integradora, ou mesmo à sua natureza pró-democrática. Essa é a «História escrita pelos vencedores»: países como a Inglaterra ou os Países Baixos que, em simbiose com o seu desenvolvimento económico, criaram narrativas propagandísticas em benefício próprio. O isolamento e o atraso académico ibéricos nos últimos séculos têm sido também responsáveis pela dificuldade em restabelecer a verdade.[102] Como tal, até aos dias de hoje, a literatura em língua inglesa continua normalmente a afirmar a excecionalidade – e superioridade – das instituições políticas inglesas para períodos anteriores ao século xvii, senão mesmo desde a Magna Carta de 1215.[103] Assim o fizeram, nessa tradição, por exemplo, Daron Acemoglu e James
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A. Robinson na conhecida obra Porque Falham as Nações, onde consideram existir um maior despotismo das Coroas ibéricas relativamente à inglesa desde, pelo menos, finais da Idade Média.[104] Esta teoria não é recente. Surge já na obra de John Fortescue em 1470 – o que é irónico, uma vez que, na qualidade de juiz de um dos principais tribunais ingleses (chief justice of King’s Bench), vendeu os seus serviços, como membro do parlamento, a vários burgos (boroughs).[105] E a literatura de autores neerlandeses tende a não ser muito diferente, mostrando frequentemente desconhecer ou distorcer os detalhes da história política ibérica.[106] Mas vou aqui continuar a concentrar-me nas comparações com o caso inglês. A suposta superioridade política das instituições inglesas consolidouse nos séculos seguintes, quando a singularidade do triunfo parlamentar inglês, a partir de finais do século xvii, a tornou mais plausível. Esta perspetiva desvalorizou brutalmente as instituições continentais, especialmente as peninsulares, distorcendo de forma grave a imagem que se apresenta do século xvi (e parte do xvii) em Portugal. Por exemplo, a historiografia anglo-saxónica considera muitas vezes que a existência de eleições competitivas em Inglaterra era uma marca da independência dos seus burgos relativamente a influências externas.[107] Mas ignora que também existiam estas eleições em Portugal, como já referi. Os registos de atos eleitorais que sobrevivem, relativos a Lisboa, de 1579-1619, contêm centenas de votos expressos e mostram que as eleições dos procuradores para as Cortes eram disputadas, o que não aconteceria se a influência de alguns magnates fosse esmagadora. A Figura 5 mostra um exemplo de uma votação que foi decidida por apenas um voto de diferença.[108] Também sobrevivem fontes detalhadas, relativas a votações secretas no Porto, que revelam eleições muito disputadas: o número médio de eleitores para as Cortes do século xvii, no Porto, foi de cerca de 128, e quase todas as vitórias aconteceram com margens pequenas, com os vencedores a receber cerca de um terço dos votos. Em Portugal, os procuradores não eram pagos pela Coroa, mas antes pelos municípios que serviam. Em cada conselho, os procuradores eram eleitos pelos seus pares e esperava-se que apresentassem os seus agravos e posições. Não se conhecem interferências ou pressões da Coroa nestas eleições. Logo, o que funcionava era a pressão dos pares. Os procuradores portugueses estavam alinhados com o povo, cujos interesses tinham a obrigação de defender. E muitas das cidades e vilas
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representadas nas Cortes dependiam da prosperidade do comércio, nomeadamente as mais influentes que se sentavam no primeiro banco. [109] Aliás, em Portugal os artesãos podiam escolher procuradores que os representassem nas Cortes, o que de resto não acontecia nem em Castela nem em Inglaterra.[110] Assim, o rei de Portugal via-se obrigado a receber nas Cortes delegações espontâneas do chamado «povo-miúdo» de algumas vilas, o que aconteceu dezenas de vezes, do século xv ao xvii. Figura 5. Votação de Lisboa para os procuradores das Cortes de Almeirim de 1579.
As Cortes portuguesas foram frequentemente mais duras nas negociações com a Coroa do que as suas congéneres europeias. Em Castela, cerca de 20 municípios estavam presentes nas Cortes, representando vastas regiões com as quais nem sempre a afinidade era grande (por exemplo, a Galiza era representada pela cidade leonesa de Zamora). Já em Portugal, pequenas vilas com algumas centenas de habitantes estavam presentes. Frequentemente, as Cortes recusaram-se a fazer a vontade da Coroa. Foi o que aconteceu nas Cortes de Lisboa em 1459, e de Santarém em 1477. As Cortes portuguesas consideravam que, na sua qualidade de instâncias representativas do Reino, a fidelidade ao rei não implicava que tivessem de se vergar perante todo e qualquer desejo da Monarquia. Nesse sentido, os procuradores resistiram aos desejos de D. João II de reformar as Cortes, quando este tentou criar, em vez delas, uma comissão permanente unida com o Clero e Nobreza. Esta
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tentativa de «unir para reinar», numa expressão de António Castro Henriques, falhou devido à resistência dos procuradores nas Cortes de 1477.[111] Por serem de negociação mais difícil, as Cortes portuguesas foram convocadas menos vezes no século xvi do que acontecia em Castela. No entanto, mantiveram-se sempre relevantes durante esse século, ao contrário do que viria a acontecer em Setecentos. Durante o período da União Dinástica (1580-1640), as Cortes portuguesas tiveram um certo apagamento, mas voltaram a ser muito relevantes depois de 1640.[112] Os dados disponíveis indicam que, para o período que se seguiu à Restauração da Independência, as eleições para procurador às Cortes passaram a ser mais ativas e disputadas, com uma tendência para alargamento da base eleitoral.[113] Em 1614, os Habsburgos tinham proibido juros acima de 5%, uma forma de repressão financeira que os favorecia. Em 1643, o desembargo do paço declarou essa lei como «nula e sub-reptícia» e anulou as restrições legais ao juros.[114] Já depois do afastamento do Conde de Castelo Melhor, que tinha sido o governante efetivo durante o reinado do filho primogénito de D. João IV – D. Afonso VI, que tinha problemas de saúde, tanto físicos como mentais – as Cortes de 1667-1668 viraram-se contra o rei, afastando-o e abrindo caminho à tomada efetiva do poder pelo seu irmão, o futuro D. Pedro II, inicialmente como regente.[115] Mas note-se que Luís de Vasconcelos e Sousa, Conde de Castelo Melhor, quando foi o «valido» do rei entre 1662 e 1667, nunca teve tanto poder como o que o Marquês de Pombal viria a ter um século depois, no período em que também foi quem efetivamente governou (neste caso, durante o reinado de D. José).[116] Ou seja, ao contrário do que acontecia na mesma altura em Espanha, na segunda metade do século xvii ainda existiam freios e contrapesos (checks and balances) em Portugal.[117] Apenas desapareceriam no século seguinte. Outro exemplo é o facto de, nas Cortes de 1668, o Príncipe regente ter mostrado descontentamento com o facto do Terceiro Estado prolongar demasiado a reunião.[118] Os Povos discordavam abertamente das deliberações do Clero e Nobreza, considerando-se mais competentes do que os outros Estados nas matérias em discussão.[119] Uma Monarquia com estas características não pode ser considerada absoluta. A evolução política a partir da segunda metade do século xvii
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Enquanto operaram, não há dúvida de que as Cortes castelhanas ou portuguesas serviram de contrapeso ao poder do rei que, por isso, não pode ser descrito como absoluto. O rei precisava de pedir autorização a estas assembleias para introduzir novos impostos, entre outras matérias, e nem sempre o conseguiu. Em Portugal, durante o período 1385-1600, as recusas de impostos foram as mais acentuadas: 7,3% dos pedidos reais foram recusados. Em Castela, 2,3% foram recusados. Já em Inglaterra, durante o mesmo período, todos os impostos pedidos pelo rei foram concedidos pelo parlamento. Tudo isto viria a mudar de forma drástica nos séculos seguintes. Vejamos como as coisas se passaram a partir do século xvii. Durante 1601-1800, a percentagem recusada pela Câmara dos Comuns subiu para 7,7%, enquanto em Castela e Portugal desceu para 0% (em grande medida, porque as Cortes deixaram mesmo de se reunir a partir de 1664 em Castela, e 1698 em Portugal).[120] Já as reduções estabelecidas pelas Cortes aos montantes de impostos propostos pelo poder executivo também não foram muito diferentes até aos finais do século xvii, correspondendo a mediana destes cortes a 25% em Castela, 50% em Portugal e 55% em Inglaterra.[121] Apesar de Castela ter prescrito cortes com uma percentagem menor, conseguiu fazê-lo mais vezes. Os casos observados de reduções castelhanas são 13, contra cinco em Portugal e apenas quatro em Inglaterra. Mas é relevante saber que a última redução em Castela aconteceu em 1625, enquanto a última redução em Portugal aconteceu em 1674. Estas datas não surgem por acaso: com efeito, a partir de finais do século xvi as Cortes castelhanas perderam poder, e o mesmo viria a acontecer às Cortes de Portugal a partir de finais do século seguinte. Irei apresentar na Parte II deste livro os motivos que explicam estas diferenças temporais, e não só entre estes dois países mas também a sua divergência em relação à Inglaterra. Em suma, entre finais do século xiv e inícios do xvii, as Cortes portuguesas e, em menor medida, as castelhanas, rejeitaram liminarmente alguns pedidos de contribuições por parte das suas respetivas Coroas – o que nunca aconteceu em Inglaterra durante a mesma época. No entanto, a situação mais comum não era tanto uma completa rejeição, mas antes a autorização de um montante inferior ao que tinha sido pedido pelo monarca. E nesta matéria também os limites efetivos ao poder executivo foram mais frequentes, numa primeira fase, em Portugal e Castela do que em Inglaterra. Os parlamentos ibéricos
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viriam a perder esta capacidade no século xviii (no caso de Castela, ainda no xvii), interrompendo séculos de negociações tensas, mas politicamente saudáveis, entre o poder executivo e as Cortes. Este contraste na evolução registada – uma perda gradual do poder das Cortes de Castela e Portugal, à medida que o parlamento inglês fazia o caminho inverso, ganhando poder e esvaziando o da Coroa – pode também ser verificado noutras matérias. Um caso relevante, estudado por António Castro Henriques e por mim, e apresentado no mesmo artigo que serve de base a este capítulo, prende-se com a análise e comparação internacional do número de empréstimos forçados ou semiforçados.[122] Como pudemos revelar, até finais do século xvi, estas práticas foram mais frequentes em Inglaterra do que em Castela ou Portugal (Figura 6). Mas tudo mudaria a partir daí. E a mesma inversão se verificou com os pedidos de dinheiro ad hoc da Coroa a privados (que teriam certamente um elemento de coerção associado, pelo menos de forma implícita), e assim também com os impostos levantados sem o consentimento dos parlamentos, como pode igualmente ser visto na Figura 6.[123] Figura 6. Empréstimos forçados ou semi-forçados; contribuições cobradas sem consentimento parlamentar.
De facto, as Cortes de Castela estavam já esvaziadas de poder em meados do século xvii, tendo deixado de se reunir depois de 1664 a não ser raramente e apenas por motivos cerimoniais.[124] Em Portugal, durante o século xvii as Cortes não se reuniram uma única vez, ao contrário do que tinha acontecido com alguma regularidade na segunda 52
metade da centúria anterior. Por contraste, em Inglaterra, com a Guerra Civil de meados do século xvii, o parlamento ganhou bastante poder, que manteve com a Restauração da Monarquia em 1660, e expandiu na sequência da Revolução Gloriosa de 1688-1689.[125] O parlamento inglês passou a funcionar de forma permanente no início do século xviii, por altura do Ato de União com a Escócia em 1707. A partir desse momento, viriam a ser tomadas em Westminster as decisões mais importantes do Reino, como por exemplo as relativas não apenas às receitas, mas também à despesa pública.[126] Em termos políticos, foi este o pilar fundamental que sustentou a força económica (e até por via fiscal, a força militar) do Reino Unido, apoiando o processo que veio a ser conhecido como a Revolução Industrial, e abrindo as portas de grande parte do mundo ao seu domínio no século seguinte.[127] Existem outros indícios que sugerem um progressivo aumento dos poderes executivos régios na Península Ibérica durante a Idade Moderna (c. 1500-1800), precisamente quando a Inglaterra caminhava no sentido contrário, especialmente a partir de meados do xvii. No início do século xvi, as Coroas de Castela e Portugal podiam facilmente obter empréstimos de maturidades elevadas – até infinitas, utilizando perpetuidades, que em Espanha e Portugal se chamavam juros.[128] Estes instrumentos financeiros pagavam taxas de juro baixas para a época, mesmo nos mercados internacionais, onde a capacidade coerciva das Coroas respetivas não era relevante. Estas características sugerem que os investidores consideravam que o seu investimento iria ser pago ou, pelo menos, que era mais provável isso acontecer do que em investimentos alternativos. Em contraste com os casos peninsulares, pelo menos no que toca ao século xvi, a Inglaterra não tinha sido capaz de obter empréstimos deste tipo, nem sequer com taxas de juro mais altas. Em Inglaterra isso só iria ser possível, gradualmente, a partir da segunda metade do século xvii. No entanto, no século seguinte este estado de coisas iria inverter-se, vindo a tornar-se a situação inglesa muito mais favorável que a de Castela ou de Portugal. A mesma inversão aconteceu com as diferenças de juros pagos a empréstimos privados (chamados censos em Portugal) por comparação com os que eram pagos em públicos, os juros. Enquanto, no século xvi, as Coroas de Portugal e Espanha pagavam taxas de juro mais baixas que os privados, nos séculos seguintes, essa situação inverteu-se: tornou-se mais arriscado emprestar ao rei, pois não era possível levar o rei a tribunal caso não pagasse ou se
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atrasasse no pagamento.[129] A Inglaterra fez o caminho contrário: a partir de meados do século xvii, o juro pago para empréstimos à Coroa passou a ser mais baixo do que o pago a privados.[130] Um último exemplo que pode ser dado prende-se com o comportamento da instituição estatal inglesa Court of Wards, abolida em 1641.[131] Este tribunal tinha a nobre função de proteger os bens e as pessoas herdeiras menores de idade. Na realidade, os seus juízes faziam o contrário, sancionando o confisco desses bens num processo descrito como «feudalismo fiscal».[132] Por contraste, o equivalente português, o Juízo dos Órfãos, seguia práticas que se podem considerar mais imparciais e equilibradas.[133] Esse padrão comparado existia a vários níveis. Durante a dinastia Tudor (1485-1603), e ainda nos dois reinados da dinastia Stuart, que se seguiu, o direito à propriedade não esteve protegido do confisco por parte da Coroa, podendo apontar-se numerosos exemplos de suas violações, como é o caso da expropriação e extinção das ordens religiosas por Henrique VIII, das fortes quebras da moeda, ou ainda da existência do Star Chamber, um tribunal de natureza política que lidava com casos de calúnias e traição. Depois de vários abusos deste tribunal por parte de Carlos I (1600-1649), apenas seria abolido pelo Parlamento em 1641. Em suma, a grande mudança institucional em Inglaterra ocorreu a partir de meados do século xvii, o século das grandes reformas constitucionais desse país. Na Península Ibérica, não só esta transformação não aconteceu, como as instituições políticas fizeram o caminho inverso. Essa evolução aconteceu em Espanha ainda durante o século xvi, agravando-se durante o xvii, enquanto em Portugal surgiu de forma mais tardia no século xviii, depois de ter até havido uma recuperação institucional com a Restauração de uma dinastia nacional em 1640. Ou seja, em Portugal, foi apenas no século xviii que surgiu um regime político a que podemos chamar Absolutismo.[134] A situação anterior era diferente, ainda que a «História escrita pelos vencedores» – tanto a historiografia anglo-saxónica como a historiografia «liberal» portuguesa que surgiu no século xix – assim o ignore, extrapolando para trás no tempo a situação setecentista. Também nesta matéria, Antero de Quental estava equivocado: o Absolutismo não tinha aparecido na mesma altura em Espanha e Portugal, pois não resultava da Contrarreforma do século xvi, como ele afirmava nas Causas da Decadência.[135]
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A retirada estratégica da família real e da Corte, acossadas pelos exércitos napoleónicos, em 1807, deu início a mudanças políticas que levaram por fim à independência do Brasil.[136] Durante o século xix, intelectuais como Alexandre Herculano e Antero de Quental iriam criar o mito de que o «Antigo Regime» em Portugal tinha sido despótico e absolutista pelo menos desde o século xvi. Já fora das nossas fronteiras, a literatura internacional também viu as instituições ibéricas nesta perspetiva.[137] A falta de conhecimento concreto das fontes levou ao estabelecimento de paralelismos entre as instituições ibéricas e o Absolutismo da Monarquia francesa, e ao imaginar de um poder absoluto que, na verdade, não tinha sempre existido.[138] Como procurei mostrar neste capítulo, a realidade foi mais complexa. Na Parte II deste livro irei considerar em maior detalhe a evolução política e institucional do país entre finais do século xvii e a atualidade, focando-me nas suas causas. [41] Neste livro, emprego frequentemente os termos «Estado» e «Coroa» como equivalentes, o que poderá parecer pouco rigoroso. No entanto, esta simplificação faz sentido: mesmo no presente, não existem garantias de que o Estado defenda o interesse público. Pelo contrário, sabemos que muitas vezes os políticos agem em função dos seus interesses privados, mesmo com grandes custos para a maior parte da população. A minha simplificação não é original: o historiador Chris Wickham, por exemplo, argumenta que faz sentido pensar na ação das monarquias, pelo menos desde o século xiii, como ações estatais. Veja-se WICKHAM (2016). Relativamente ao contexto português, veja-se MATTOSO (2001). Direi mais sobre esta matéria no Capítulo 7. [42] Existem muitos livros dedicados a esta matéria, como por exemplo NORTH et al. (2009); ou ACEMOGLU e ROBINSON (2019). [43] Parece-me válida a expressão «interesse público», apesar de nos parlamentos também se confrontarem, como é evidente, diferentes fações de variados interesses privados. Por «poder executivo» refiro-me apenas à Coroa, e não a outras partes do Estado (nomeadamente os municípios). [44] MARONGIU (1968). Sobre o facto de as Cortes de Castela e de Portugal terem papéis parecidos com o parlamento inglês, sendo por isso comparáveis, ver HENRIQUES e PALMA (2023a), pp. 266-268. [45] AMARAL (2012). [46] FLANDREAU (2022). [47] Neste capítulo, no âmbito das instituições políticas comparadas, refiro-me em geral aos parlamentos como fonte de limitação do poder executivo. Na verdade, existiu sempre outra fonte potencialmente importante de restrições ao executivo – os tribunais. Mas não existem estudos
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comparados e quantitativos sobre os tribunais e o seu papel na separação de poderes em Portugal, nomeadamente a sua evolução ao longo dos séculos. As minhas observações sobre este assunto apenas podem ser, pois, pontuais. [48] Muita informação deste capítulo é, portanto, baseada no seguinte artigo e respetivo apêndice: HENRIQUES e PALMA (2023a). [49] Já no caso de Inglaterra, o país melhorou a qualidade das suas instituições políticas de forma sistemática apenas a partir da sua Guerra Civil, em meados do século xvii. [50] Pelo menos desde finais da Idade Média. Deixo de fora os reinados de Afonso I e Sancho I. [51] Por motivos que explicarei adiante, nenhum dos termos «Monarquia Liberal» e «Monarquia Constitucional» me parecem adequados, mas por enquanto sigo a convenção utilizando o primeiro termo, por ser mais conhecido. [52] É absolutamente fundamental avaliar a execução ou implementação efetiva da lei (enforcement) pelos diversos regimes políticos. Não podemos confiar apenas no que foi dito e escrito, temos sempre de atender ao que foi feito. [53] Que assim era é reconhecido por CARDIM (2005), pp. 171, 207-208. [54] Eram apresentados «capítulos particulares», relativos aos problemas de cada comunidade local, e «capítulos gerais», relativos a questões de alcance mais geral. Veja-se CARDIM (2005), p. 173. [55] Os nobres e o clero falavam dos assuntos do seu interesse. Não se pronunciavam sobre os impostos, que incidiam sobre os povos, e também por isso, participavam nas Cortes de forma menos sistemática. Não havia votações propriamente ditas: as decisões eram tomadas por unanimidade. Os procuradores dos povos discutiam entre si até chegarem a acordo e aceitarem (ou não) a proposta do rei. Quando a questão tocava a todos, sendo por exemplo dinástica e não fiscal, a decisão era tomada após confrontados os diferentes argumentos. [56] Existia alguma ambiguidade constitucional relativamente ao funcionamento das Cortes, já que nem sempre era claro quais as decisões governativas relativamente às quais o rei tinha a obrigação de consultar a assembleia representativa, existindo interpretações diversas relativamente a esta matéria. Na prática, no entanto, as Cortes portuguesas decidiam sistematicamente sobre áreas fulcrais do governo do reino como o juramento do rei ou a fiscalidade, tanto régia como local. Veja-se CARDIM (2005), pp. 174-175, 209. [57] HENRIQUES e PALMA (2023a); MOREIRA e DOMINGUES (2023). [58] WICKHAM (2016). [59] Exceto, como é evidente, nas «novas Europas», como os Estados Unidos da América ou vários estados da América Latina. Vale a pena ainda referir que em fases preliminares do desenvolvimento de certas sociedades, geralmente de pequena escala, os governantes ouviam as populações reunidas em pequenas assembleias, que foram desaparecendo à medida que a burocracia estatal se impunha. Ou seja, existiram sociedades não europeias de dimensão reduzida
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com tradições de assembleias e até alguma proto-democracia em várias épocas, mas sempre com uma lógica e escala muito mais limitada do que a que viria a ser observada na Europa. Veja-se STASAVAGE (2020). [60] MALINOWSKI (2019). [61] Para uma comparação da evolução institucional, nomeadamente no que toca ao funcionamento dos parlamentos da Polónia, Espanha, Portugal, Nápoles, e Inglaterra no período anterior a 1800, ver HENRIQUES e PALMA (2023b). [62] De fora ficam o parlamento de Navarra, o da Coroa de Aragão e, sobretudo, os dos diferentes reinos constituintes de Aragão (Valência, Maiorca e Aragão e o principado da Catalunha). No entanto, vale a pena notar que Aragão sofreu com o contágio institucional de Castela, e as suas instituições distintivas foram abolidas entre 1707 e 1716, em resultado de terem alinhado no lado perdedor da Guerra da Sucessão de Espanha, ganha pelos Bourbon. Neste livro, refiro-me por vezes a Espanha num sentido que é geográfico, mas também político e dinástico, o que é uma simplificação, mas sem grandes consequências para os argumentos que aqui defendo. [63] A literatura sobre a relação entre as instituições políticas inglesas e a Revolução Industrial é extensa, mas está sumarizada em BESLEY et al. (2023). [64] Para manter a comparabilidade, António Castro Henriques e eu centrámo-nos na comparação entre a Câmara dos Comuns inglesa (Commons) e as Cortes de Castela e de Portugal, deixando de lado a House of Lords. [65] Podem encontrar-se exemplos relativos ao período de 1389-1580 em DOMINGUES e MONTEIRO (2018). Consultar pp. 603-605. Ver também SERRA (1999). [66] HENRIQUES (2019). [67] SOUSA (1990), pp. 120-121. [68] CARDIM (1993), p. 64. [69] DIAS (2002), pp. 25-27. [70] SOUSA (1990), p. 121. [71] Que tem sido argumentado por vários autores. Por exemplo, ACEMOGLU et al. (2005), pp. 546-579. [72] Um Alderman inglês era um membro da assembleia municipal que estaria em segundo lugar em termos de estatuto relativamente ao Mayor, e corresponde de forma aproximada a um vereador em Portugal, notando que não existia historicamente nos municípios portugueses um presidente (Mayor). [73] MCKISACK (2019), pp. 11-12. [74] THE HISTORY OF PARLIAMENT (2015). [75] HENRIQUES e PALMA (2023a).
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[76] WICKHAM (2016), p. 42. [77] Por «cavaleiros» entenda-se aqui não o estatuto social, mas sim combatentes a cavalo. Os municípios eram chamados pelo rei a organizar exércitos desta natureza que iriam servir durante algumas semanas. [78] POWERS (1998). Também aqui há um contraste com Inglaterra, cujos mais importantes burgos eram dominados por oligarquias mercantis (ainda que não todos), enquanto a maior parte dos shires era dominada pelos grandes latifundiários e pela pequena aristocracia. [79] RUCQUOI (1995). Consultar p. 361. [80] CUNHA (1998). [81] FARELO (2009). Consultar p. 306. [82] OLIVEIRA (2010), p. 77. [83] Sem dúvida, Le Roy Ladurie referia-se principalmente à sociedade rural da França profunda, onde afirmava que pouco ou nada se tinha alterado durante os séculos. Apesar disso, este conceito tem sido por vezes aproveitado para dar a ideia de que o «Antigo Regime» era mais estático, tanto em termos económicos como políticos, do que era na verdade o caso. [84] GRUENFELDER (1981), p. 7. [85] GRUENFELDER (1981), p. xiv; RUSSELL (1990). [86] GRUENFELDER (1981), p. 124. [87] GRUENFELDER (1981), p. 8. [88] Para uma boa história recente da Guerra Civil Inglesa, recomendo BRADDICK (2008). [89] Note-se a precocidade destes eventos tanto em relação à chamada Revolução Gloriosa de 1688-1689 no mesmo país, como à Revolução Francesa dos finais do século seguinte. A Revolução Francesa aparentemente influencia mais a cultura do nosso país, até por ser ensinada com maior detalhe nas nossas escolas e universidades, o que por sua vez é certamente um resultado da influência direta que teve em Portugal no século xix, pois através das Invasões Francesas veio «bater-nos à porta». No entanto, há muito a aprender com a Revolução Inglesa do século xvii e as suas consequências, que a prazo não foram menos profundas. [90] ZAMORA (1988), p. 338. [91] ZAMORA (1988), pp. 4, 342. [92] THOMPSON (1997). Apesar de a Coroa não ter ficado satisfeita com as ações de Jeronimo de Salamanca, isso não o impediu de ter sido pago, de voltar a ser eleito por Burgos como procurador para as Cortes de 1601, e até de ter conseguido que um dos seus filhos viesse a servir como capitão da infantaria na Flandres. Veja-se DE ARCE (2008); DANVILA Y COLLADO (1885), vol. V, p. 625.
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[93] GELABERT GONZÁLEZ (2003). [94] ZAMORA (1988), p. 37. [95] THOMPSON (1984), p. 131; THOMPSON (1997), p. 58. [96] FORTEA PÉREZ (2008). [97] Para o caso de Castela, ver ZAMORA (1988). Para o caso de Inglaterra, veja-se MCKISACK (2019). [98] Note-se que os concelhos portugueses correspondiam em Inglaterra aos burgos (boroughs) e a cidades, como Londres, Bristol ou York. Mas a maior parte do território não estava sob a alçada destes, mas de condados (shires), cujo sistema judicial e administrativo concentravase nos xerifes. [99] Em Inglaterra, o correspondente aos municípios são os burgos e não os condados, já que estes últimos correspondiam a fronteiras administrativas, sem autogoverno. [100] É inegável que existiam algumas diferenças. Em Inglaterra e Portugal estavam representados os «três estados» segundo uma lógica que Castela abandonou em 1538. Uma diferença que aparenta favorecer as instituições políticas inglesas é que, no período que estamos a discutir, não existia em Inglaterra lei emanada diretamente do Rei; veja-se HUDSON (2003). Note-se que no parlamento inglês as disposições promulgadas pelo mesmo tinham força de lei, enquanto em Portugal e Castela os reis podiam legislar sem o consentimento das Cortes. No entanto, o monarca inglês podia impedir com um veto o parlamento de aprovar leis. Logo, as diferenças relativamente a Castela e Portugal não eram significativas nesta matéria. [101] CARDIM (2016), pp. 109-110. [102] O que foi escrito em Portugal sobre esta matéria e outras relativas não apenas ao século xix e seguintes, mas também ao século xviii, era frequentemente enganador. Veja-se RAMOS (1990). [103] Ver, por exemplo, NORTH e THOMAS (1973), pp. 120, 127-128; TILLY (1994); ERTMAN (1997); MADDICOTT (2010); ACEMOGLU et al. (2005); HOUGH e GRIER (2015). [104] ACEMOGLU e ROBINSON (2012), p. 220. Os mesmos autores têm continuado a defender a mesma tese em obras mais recentes; veja-se ACEMOGLU e ROBINSON (2019), p. 281. [105] Sir John Fortescue, jurista, deputado do parlamento inglês e pensador de teoria política, considerava que as instituições inglesas eram superiores às continentais. Influenciou bastante a análise institucional comparada subsequente na literatura anglo-saxónica. Ver FORTESCUE (1775). [106] VAN ZANDEN et al. (2012). [107] HIRST (2005), pp. 1-2. [108] Arquivo Municipal de Lisboa, Livro Dois de Cortes, fol. 14.
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[109] CARDIM (1993), pp. 67-68. [110] DOMINGUES e MONTEIRO (2018). Consultar pp. 605-606. [111] HENRIQUES (2008). [112] A própria Restauração tinha sido feita também em nome do regresso a um modelo político menos centralizado no poder de uma pessoa do que o que vigorava em Espanha. Veja-se MONTEIRO (2021), p. 154. No entanto, a questão mais relevante ao longo do tempo não me parece ser, apesar de tudo, relativa ao rei recorrer principalmente a apenas um ou mais conselheiros, mas sim até que ponto existiam limites mais gerais ao poder executivo, como os das Cortes e tribunais. [113] SILVA (1993), p. 21. [114] SILVA (1856), p. 410. Em 1698, já depois da descoberta do ouro do Brasil, um máximo legal de 5% voltou a ser imposto a todas as perpetuidades privadas. Aplicava-se a todos os censos (empréstimos perpétuos), porque a motivação era escoar a dívida pública (i.e. da Coroa) a juros baixos. Veja-se HENRIQUES e PALMA (2023a), p. 283. [115] BOXER (1952), p. 177, CARDIM (2005), p. 211. [116] Regressado do exílio, Castelo Melhor viria também a ser conselheiro de Estado entre 1708-1719, já durante o reinado de D. João V. Veja-se MONTEIRO (2021), p. 151. [117] HENRIQUES e PALMA (2023a). [118] D. Pedro II só viria a ser aclamado rei depois da morte do seu irmão mais velho, em 1683. Logo, em 1668 o futuro D. Pedro II era apenas regente, mas quem já governava. [119] SILVA (1993), p. 15. [120] Ou, para ser mais preciso: as Cortes não reuniram mais em Castela após 1664 no século xvii, mas com a mudança para a dinastia Bourbon, as Cortes reuniram seis vezes em Madrid, apenas por motivos cerimoniais, já que não tinham poder. [121] A informação que dou neste parágrafo e no anterior é baseada nas Tabelas 6 e 7 do artigo: HENRIQUES e PALMA (2023a). [122] Estes últimos, ao contrário dos primeiros, não eram obrigatórios, nem se baseavam na avaliação fiscal, mas apenas afetavam alguns grupos. [123] HENRIQUES e PALMA (2023a), p. 282. [124] As Cortes castelhanas estavam a aprovar cada vez menos leis e a ter cada vez menos sucesso na aprovação das suas iniciativas legislativas; em Inglaterra, por contraste, passava-se o contrário. Veja-se HENRIQUES e PALMA (2023a), pp. 273-274. [125] As alterações políticas que resultaram da chamada Glorious Revolution implicaram que, na realidade, o executivo (que era agora o Parlamento, não a Coroa) passasse até a ser bastante poderoso, tendo certamente mais poder do que tinha tido antes o rei. No entanto, isso foi
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até positivo; o que importa é que era um poder limitado do ponto de vista constitucional. [126] COX (2016). [127] Ver, por exemplo, BOGART e RICHARDSON (2009, 2011). [128] Não confundir com a taxa de juro. [129] Como reconhecia em 1541 o Conde da Castanheira, «se os mercadores não vivem senão de olhar pelo modo da vida das pessoas com que contratam, e que podem fazer meter na cadeia, aos reis (…) se lhes não podem pagar, não podem eles mais fazer isso». Castanheira era o Vedor da Fazenda português, posição com competências nesta altura aproximadamente equivalentes às das Secretarias de Estado do Orçamento e do Tesouro, servindo também como juiz em certas matérias ou litígios relacionados com assuntos da Fazenda real. Veja-se CRUZ (2001) e HENRIQUES e PALMA (2023), p. 280. [130] Como também acontece com outras matérias que trato neste livro, este resumo é um sumário sintético de questões financeiras e históricas complexas. Para detalhes, veja-se HENRIQUES e PALMA (2023a), pp. 280-286. [131] Sobre esta instituição extrativa, ver BOTTOMLEY (2023). [132] Sobre a expressão «feudalismo fiscal» aplicada ao Court of Wards, veja-se HEALY (2015). [133] Para a comparação do Court of Wards com o Juízo dos Órfãos em Portugal, veja-se o Apêndice online de HENRIQUES e PALMA (2023a), e as referências aí citadas. [134] Como deveria ser evidente, o absolutismo também não implica poder sem quaisquer limites, mas ultrapassa o âmbito deste livro estar a considerar esta matéria em detalhe, ou ainda as diferentes variedades, como o chamado «despotismo esclarecido». [135] QUENTAL (2008), pp. 55, 90. Esta obra é a baseada no discurso de Quental proferido numa sala do Casino Lisbonense em Lisboa no dia 27 de maio de 1871, a que me referi no início do livro. [136] Tendo esse país na prática deixado de ser uma colónia logo em 1808, e a separação política efetiva ocorrido em 1822, como é sabido. [137] Ver a literatura antes citada, ou ainda ACEMOGLU e ROBINSON (2012). [138] Aliás, nem em França, nos termos em que geralmente o absolutismo é referido. Veja-se ROSENTHAL (1990).
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3. Economia e desenvolvimento Até meados do século xx, Portugal era uma economia agrícola, sendo esse o setor em que mais de metade da população trabalhava. No entanto, este dado não implica uma sociedade estática em que nada tenha mudado ao longo dos séculos. Como já mencionei, a ideia da história imóvel (histoire immobile), associada à escola dos Annales, que influenciou muitos académicos em Portugal, entre os quais Vitorino Magalhães Godinho, não fornece um bom modelo para compreender a História de Portugal. Nem a história institucional e política, como expliquei no capítulo anterior, nem a económica, como explicarei de seguida.[139] Por exemplo, sabemos hoje que, em meados do século xviii, quase metade da população do país trabalhava fora do setor agrícola. Porém, um século depois, a indústria e os serviços ocupavam apenas um terço da força de trabalho.[140] A História de Portugal tem várias surpresas destas – nunca foi um caminho linear. E certamente nunca foi imóvel. A história quantitativa tem tido grandes avanços nas últimas duas décadas. Hoje sabemos bastante sobre a evolução da economia portuguesa ao longo dos tempos. O trabalho pioneiro de António Castro Henriques tem mostrado que Portugal era dos países mais prósperos da Europa em finais da Idade Média, contrariando muitas narrativas anteriores. Por volta de 1300, o produto agrário português per capita era superior ao inglês, sendo a população de Portugal de cerca de um milhão de pessoas, o que correspondia a menos de um quarto da população inglesa na mesma época. Portugal e Espanha eram, nessa altura, economias de fronteira – um pouco como o oeste americano no século xix. Ou seja, à medida que a Reconquista avançava, não havia falta de terras. Isto implicava que, para um dado nível tecnológico, cada pessoa do lado cristão tinha, em média, bastantes terras e alimentos disponíveis. No caso português, a conquista do Algarve tinha terminado em meados do século xiii (1249) e, por isso, por volta de 1300 não haveria falta de 62
terras.[141] Portugal beneficiou de um contexto agrário, monetário e institucional favorável que levou a níveis de taxas de juro comparativamente baixas desde o século xiii, antes da queda que mais tarde viria a acontecer noutras partes da Europa.[142] Com a consolidação política e o aumento demográfico, a situação de abundância de terras foi-se atenuando. Porém, logo depois, em meados do século xiv, a pandemia conhecida como Peste Negra matou cerca de um terço, ou mais, da população. Isso implicou uma maior disponibilidade de terras para os sobreviventes. De facto, a peste matava pessoas, mas não as terras (nem o capital). Como tal, os níveis de vida subiram para quem sobreviveu. É neste contexto que podemos entender a Lei das Sesmarias de D. Fernando (1375), que tinha como objetivo diminuir o despovoamento rural e estimular a produção agrícola, tendo a Coroa o direito a expropriar e doar terras a outros que se comprometessem a cultivá-la em tempo útil. Esta ameaça do confisco de terra que estivesse por cultivar sugere que na altura a terra era, de facto, barata. Dado o contexto político e militar, a lei poderia também refletir uma preocupação estratégica com a segurança alimentar em caso de confronto com Castela e, porventura, com a saída de moeda para o estrangeiro. A Peste Negra continuaria a ter surtos até décadas depois, mas a população acabou por recuperar. Perante a lenta melhoria tecnológica, isso acarretou uma descida dos rendimentos disponíveis para níveis próximos dos anteriores. Em finais da Idade Média, portanto, o contexto económico português era favorável por comparação com outras partes da Europa ou até do mundo, apesar de existirem sinais relativos a um certo declínio ou pelo menos estagnação da economia. A partir do início do século xvi, existem dados anuais seguros, baseados na investigação que fiz em coautoria com Jaime Reis.[143] Foinos possível reconstruir o rendimento real por pessoa – isto é, o Produto Interno Bruto (PIB), em paridades de poder de compra, portanto, corrigido da inflação – entre os inícios do século xvi e meados do século xviii. Juntando outras séries, é possível ter uma série contínua até à atualidade. É o que mostro na Figura 7.[144] Uma informação notável a reter deste gráfico é o brutal crescimento da economia no século xx. Outra é o facto do PIB per capita de Portugal só ter voltado ao nível em que já tinha estado em meados do século xviii já em pleno século xx.
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Sobre a unidade dos «dólares internacionais de 1990» mais direi à frente; por enquanto basta manter presente que uma sociedade com 400 destes dólares encontra-se próxima do nível de subsistência. Figura 7. PIB per capita português em preços constantes, 1527-2021. Nota: a escala vertical é logarítmica de base 2.
Neste gráfico, a escala no eixo vertical não é linear, mas sim logarítmica: se assim não fosse, a magnitude do crescimento do século xx iria ofuscar as flutuações anteriores, que seriam difíceis de ver. A escala implica que, entre cada linha horizontal e a seguinte, o nível de rendimento duplique. Um aspeto importante a ter em conta é o de que, apesar do crescimento explosivo aparecer apenas no século xx, tinha também existido um período anterior de crescimento que não é possível desprezar: o rendimento médio por pessoa duplicou entre o início da série, em 1527, e meados do xviii. Isto mostra desde logo que é errada a ideia segundo a qual Portugal terá estado sempre em decadência desde os Descobrimentos, apesar de amplamente difundida por muitos, como por exemplo Lúcio de Azevedo e Antero de Quental.[145] No entanto, existiu sem dúvida um período de notável catástrofe económica, mas isso aconteceu mais tarde: entre a década de 70 do século xviii e meados do xix. Nessa altura, o rendimento por pessoa caiu a pique, eliminando todos os ganhos dos três séculos anteriores. Uma análise fina da evolução desta série mostra que algumas das supostas causas do declínio ou decadência da economia portuguesa que frequentemente ouvimos não podem estar corretas. Um exemplo é o Terramoto de 1755 que, como se vê, não esteve associado a qualquer queda significativa do rendimento por pessoa. Outros dois casos são as Invasões Francesas, ou ainda a perda do Brasil – estes dois últimos eventos aconteceram tarde demais, quando o declínio acentuado da economia já estava a verificar-se. Sobre as causas do atraso – as 64
verdadeiras e as míticas – mais direi nos capítulos seguintes. Para já, importa reter que o século xix foi, em termos económicos, um século completamente perdido para Portugal, já que mesmo os períodos de tímidos avanços verificados nas décadas finais desse século corresponderam a um período de divergência, pois o resto da Europa crescia muito mais, como veremos. Mas na realidade, as raízes do atraso vinham do século anterior. Como já referi, Portugal só voltaria a ter um rendimento médio por pessoa parecido com o que já tinha tido em meados do século xviii em pleno século xx. A História de Portugal é um drama na tela grande. Medir a evolução da economia portuguesa ao longo do tempo Como podemos saber a evolução da economia ao longo do tempo? Existem metodologias desenvolvidas a nível internacional sobre a forma de medir a atividade económica que resumo aqui, para que as origens dos factos que acabei de descrever possam ser mais bem compreendidas. Jaime Reis, que nos anos 1980 e 1990 já tinha trabalhado na reconstrução da atividade económica de Portugal durante os séculos xix e início do xx, deu depois um enorme passo em frente nesta matéria ao liderar o projeto «Preços, Salários e Rendas em Portugal, 1300-1910», financiado no início do século xxi pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.[146] Este projeto, como o nome indica, recolheu, entre outras informações, os preços de um grande número de bens, assim como de salários e rendas, ao longo de vários séculos. Os salários referem-se a pagamentos a seco, ou seja, em que o salário monetário correspondia ao total da remuneração do trabalhador.[147] Os salários recolhidos incluem os que eram pagos tanto a trabalhadores não qualificados como aos qualificados. São exemplos dos não qualificados os servidores, serventes, serviçais, entre outros, assim como muitos trabalhadores agrícolas contratados à jorna (ou seja, ao dia).[148] Segundo Vitorino Magalhães Godinho, no «Antigo Regime» mais de metade da população agrícola era composta por «jornaleiros». [149] Existiam também trabalhadores qualificados, como os carpinteiros e pedreiros, também geralmente pagos ao dia, ou médicos e advogados, normalmente pagos através de outro tipo de contratos. Para os estudos quantitativos, são particularmente informativos os carpinteiros e pedreiros que eram cruciais no setor da construção. João Brandão, autor 65
do século xvi que nos deixou a notável obra Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, escrevia que «nesta cidade há aí trezentos carpinteiros, com criados, porque muitos deles têm dois ou três criados», e ainda que também existiam «outros trezentos pedreiros, com seus criados».[150] Apesar de não sabermos os salários de todas as profissões, o facto de o mesmo tipo de trabalhadores terem salários parecidos para cada uma das diferentes partes do país (mas não necessariamente entre estas) mostra que a informação de que dispomos pode frequentemente servir como aproximação para extrapolar valores não observados. Para além disso, dado não existir servidão na Europa Ocidental – sendo, portanto, o trabalho livre – o salário dos trabalhadores que observamos é informativo sobre o valor do trabalho de outros que não observamos.[151] Foram também consideradas outras fontes de rendimento, nomeadamente o valor das rendas da terra. Desta forma, conseguimos uma aproximação ao valor total dos rendimentos.[152] Figura 8. Fólio de um livro de receita e despesa de 1650, que lista preços e salários em Évora.
As fontes utilizadas foram livros de receitas e despesas de várias instituições, por exemplo conventos, mosteiros, hospitais, misericórdias, palácios, quintas e herdades, bibliotecas, a Universidade de Coimbra, a Sé de Lisboa, a Sé do Porto, assim como Câmaras Municipais.[153] A
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Figura 8 mostra um exemplo de 1650, reproduzindo um fólio dos registos do livro de receitas e despesas do Convento da Graça de Évora. [154] Estas são fontes muito úteis para a história quantitativa do país, mas utilizá-las nem sempre é fácil. Por um lado, apesar de já estarem escritas em vernáculo, ou seja, em português, a grafia não é a mesma de hoje. A frequente utilização de abreviaturas implica também que apenas quem tenha formação própria (Paleografia) consiga ler e transcrever estes documentos. E, tal como acontecia no resto da Europa até ao século xix, o sistema de pesos e medidas era muito variado em Portugal. Para convertê-los numa unidade comum comparável foi necessário utilizarmos um referencial comum: o moderno sistema métrico. Este processo exigiu muita cautela. Por vezes, uma medida com o mesmo nome, na realidade, correspondia a quantidades diferentes em diferentes partes do país. Por exemplo o almude (uma medida de líquidos) correspondia em Lisboa a 16,8 litros, no Porto a 25,4 litros, em Coimbra a 16,7 litros e em Évora a 17,4 litros. Também existiam, por vezes, várias medidas para o mesmo bem na mesma localidade: em Lisboa, o carvão era vendido em cinco unidades diferentes – e a medida «saco» era diferente da medida «saca».[155] Por outro lado, ao contrário do que acontecia noutras partes da Europa, a precoce unidade política do país implicava que a unidade monetária era igual em todo o país: réis (ou reais). No entanto, valores em reais – sejam de salários, ou de rendas da terra, ou de rendas de casas em cidades – só por si dizem-nos pouco: é fundamental ter em conta a inflação. Por exemplo, um trabalhador não qualificado em Lisboa ganhava 30 réis por dia em 1524, enquanto um pedreiro ganhava 50 réis. Cerca de um século depois, em 1625, os valores eram de cerca de 87 réis para o primeiro e 161 para o segundo.[156] Como é evidente, isto não implica, só por si, que o nível de vida era melhor em 1625 do que em 1524, porque há que ter também em conta o aumento dos preços dos bens. O preço de uma galinha em Lisboa, por exemplo, era de cerca de 51 réis em 1524, mas tinha subido para 130 réis um século depois. Logo, um pedreiro em 1524 conseguia comprar uma galinha por dia, enquanto o seu congénere, um século depois, já conseguia comprar mais do que uma galinha por dia, com os frutos do seu salário. Evidentemente, na vida humana precisamos e desejamos ter mais bens do que apenas galinhas, e os nossos antepassados – ainda que tivessem acesso a muito menor diversidade de bens e serviços do que
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hoje – não eram diferentes. Logo, para percebermos como evoluiu o nível de preços ao longo do tempo, precisamos de construir um cabaz de consumíveis que permita saber o valor dos salários e outras fontes de rendimento ao longo do tempo. Em trabalho coautorado com Jaime Reis, fizemos isto com um cabaz anual com a seguinte composição: 182 quilos de pão, 26 quilos de carne, 5,2 litros de azeite, 5 galinhas, 52 ovos, 28 litros de vinho, 2,6 quilos de sabão, 5 metros de pano de linho, e 2,6 quilos de velas, bem como lenha para aquecimento.[157] Este cabaz serve para comparações internacionais e, como é lógico, não pode ser exatamente igual ao de outros países. Relativamente ao cabaz de Estrasburgo, muito utilizado para comparações internacionais, substituímos, por exemplo, a cerveja por vinho, e a manteiga por azeite, de forma a corresponder aos padrões de consumo de Portugal. Ao longo do tempo, o cabaz também mudou ligeiramente: em particular, o milho americano ganhou gradualmente peso a partir do século xvii, tornando-se muito importante, sobretudo na parte norte e centro do país, no século [158] xviii. Como é evidente, estas metodologias têm limites e produzem resultados apenas aproximados; mas note-se que o mesmo é verdade para a construção de um PIB nos dias de hoje. Aliás, nos nossos dias, o maior peso do Estado, sem preços de mercado associados, assim como a enorme diversidade de produtos disponíveis, alguns dos quais intangíveis, e com qualidade difícil de medir de forma comparável ao longo do tempo, também cria grandes desafios à construção do PIB. E, no entanto, sabemos que o PIB está fortemente correlacionado com outros indicadores que medem o bem-estar das populações, sendo também por isso uma medida indispensável, ainda que sem ser necessariamente a única em que nos devemos concentrar sempre que existirem alternativas que façam sentido. Mas nem sempre isso acontece: note-se, por exemplo, que o conhecido Índice de Desenvolvimento Humano apresenta fortes limitações conceptuais e metodológicas.[159] Comparações internacionais Uma grande vantagem em seguir as metodologias internacionais utilizadas para reconstituir o rendimento por pessoa em Portugal ao longo dos séculos é a possibilidade de posteriormente se fazerem comparações, como pode ser visto na Tabela 2.[160]
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Como é evidente, estas estimativas são apenas aproximadas: não faria, portanto, sentido mostrar aqui casas decimais. Mas não deixam de ser úteis, pois estão certamente corretas em termos de grandes ordens de magnitude e, principalmente, da sua dinâmica comparada ao longo do tempo. Os resultados são, assim, informativos – e talvez surpreendentes. Como podemos ver, Portugal teve, por exemplo, um período de enorme estagnação, e mesmo declínio, a partir da segunda metade do século xviii, situação que, especialmente em termos relativos, se acentuou no século xix. O país só voltaria a ter um PIB por pessoa, em paridades de poder de compra, igual ao de meados do século xviii, já no século xx. Tabela 2. PIB per capita de alguns países da Europa Ocidental em preços constantes (dólares «internacionais» de 1990).
Inglaterra Holanda França Alemanha Suécia Itália Espanha Portugal 1500
1041
1454
1048
1102
1195
1367
701
-
1550
1014
1798
898
941
1125
1278
1018
836
1600
1037
2662
989
936
853
1216
812
790
1650
887
2691
978
961
941
1247
632
830
1700
1513
2105
1103
948
1357
1317
802
987
1750
1694
2355
1094
1105
1061
1367
812
1372
1800
2097
2609
1041
1121
930
1216
826
916
1850
2718
2355
1597
1428
1171
1321
1067
923
1900
4492
3329
2876
2985
2083
1855
1786
1302
1950
6939
5996
5186
3881
9739
3172
2189
2086
2000
21.046
22.148
20.392
18.761
20.871 18.761 15.724
13.992
De que forma podemos interpretar estes números e porque é que são comparáveis no tempo e no espaço? Serão eles válidos para períodos em que algumas destas regiões ainda não eram entidades políticas num sentido moderno, como é o caso da Itália, da Alemanha, ou até da Espanha? Relativamente a esta última questão, é simples: os números referem-se às fronteiras modernas destes países.[161] Já sobre a magnitude dos números em si, também é simples compreender que informações nos dão. Em 1990, o Banco Mundial definiu que era pobre quem ganhava até uma média de um dólar por dia, ou seja, 365 dólares por pessoa e por ano.[162] No entanto, em todas as sociedades, mesmo nas mais pobres, existem desigualdades, com elites acima da linha da pobreza. Por isso, considera-se que um país vive próximo da subsistência quando tem um 69
PIB por pessoa de 400 dólares por ano, em dólares «internacionais» de 1990.[163] Alguns dos países mais pobres do mundo, em várias épocas históricas, não estiveram longe desse nível de desenvolvimento económico, e alguns desses países estão num nível próximo desse ainda nos nossos dias. Como é possível ver na Tabela 2, ao longo do período em causa Portugal teve sempre, pelo menos, cerca do dobro do nível de subsistência, e em vários momentos comparava bem com países que hoje achamos natural serem mais ricos, como é o caso da Suécia, da Alemanha, da França, ou mesmo da Espanha. É ainda notório que, nos cálculos que são subjacentes a esta Tabela, existe bastante mais incerteza sobre os níveis precisos de rendimento, especialmente para os períodos anteriores ao século xix, do que sobre a sua variação no tempo.[164] Logo, dada a margem de erro existente relativamente aos níveis (pelo menos uns 10%) é aconselhável não retirar interpretações apressadas sobre quem era mais rico com base em pequenas diferenças. É muito mais seguro inferir quais são os momentos em que existe dinamismo ou crescimento nestas economias. A isto acresce o facto de, no caso da Holanda, os dados apenas dizerem respeito a essa província dos Países Baixos, enquanto em Portugal representam a totalidade do país.[165] Como a Holanda era, com toda a certeza, a parte mais rica dos Países Baixos, os números desta Tabela relativos àquela região até exageram a sua diferença de desenvolvimento em comparação com Portugal. Seria possível discutir em detalhe os números que mostro nesta Tabela, e as implicações que têm, mas não o vou fazer aqui. Limito-me a fazer duas notas. Primeiro, note-se a evolução do PIB por pessoa inglês, que esteve estagnado até meados do século xvii mas mostrou um crescimento impressionante a partir daí – estando isso certamente relacionado com os acontecimentos políticos que referi no capítulo anterior. Outro aspeto a salientar é o crescimento fulgurante da Alemanha e França durante o século xix, ao contrário do que tinha acontecido nessas regiões em séculos anteriores, e em contraste com Portugal e a Espanha.[166] Em resumo, não é possível concluir que Portugal fosse sistematicamente mais pobre do que outras partes da Europa no período anterior ao século xix. Em meados do século xviii até seria das regiões mais ricas. No entanto, nos 200 anos seguintes a economia nunca mostrou capacidade de crescimento rápido e sustentado, ao contrário do que aconteceu com quase todos os outros países da Europa Ocidental. Além disso, em certos
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momentos, a economia portuguesa passou por profundas crises seculares: de forma notável e segura, foi o que aconteceu entre o terceiro quartel do século xviii e finais do xix. Houve depois uma recuperação acentuada no século xx, mas não logo no início. Mesmo em 1950, os portugueses tinham um rendimento por pessoa quase tão baixo como o de alguns dos países mais pobres do mundo de hoje. E o português «médio» tinha menor rendimento que tem hoje o cabo-verdiano ou mesmo moçambicano «médio».[167] Devido ao foco mediático à volta de assuntos de curto prazo, e à discussão em torno dos problemas que a economia portuguesa tem enfrentado nas últimas décadas, é fácil esquecer os enormes progressos que Portugal fez na segunda metade do século xx. Há que ser claro e enfrentar a realidade: foi entre 1950 e 2000 que Portugal assistiu ao que se pode chamar um milagre económico, sem qualquer exagero. O crescimento então atingido foi, sem dúvida, o acontecimento mais importante da História de Portugal – ou, pelo menos, o que maior impacto teve no bem-estar dos portugueses. Durante esse período o rendimento por pessoa multiplicou-se por sete. Quem ouça este facto pela primeira vez, se não ficar espantado, é porque ainda não compreendeu ou interiorizou as implicações. Foi a maior e mais importante revolução da nossa História. Aliás, ao contrário do que aconteceu na maioria dos outros países da Europa Ocidental, a emergência do crescimento económico moderno está suficientemente próxima de nós no tempo para que muitos de nós saibamos o que foi viver num Portugal verdadeiramente pobre – ou por experiência própria, ou por ouvirmos familiares falarem dessa experiência. Nem sempre é fácil comparar bens e serviços de diferente qualidade e natureza através do tempo (por exemplo, não existiam telemóveis em 1950). Mas como a qualidade e variedade dos bens disponíveis aumentou, estas considerações são secundárias, e até dão mais peso à ideia, transmitida pelos dados, de que os padrões de vida melhoraram imenso, já que hoje temos acesso a uma maior variedade de bens com uma qualidade cada vez melhor. Por isso, um facto fundamental a reter é que, na segunda metade do século xx, Portugal conseguiu os maiores progressos de sempre da sua História. Já no século xxi, por contraste, a economia portuguesa tem tido um comportamento medíocre. Na Parte II deste livro irei apresentar detalhes sobre esta evolução e explicar porquê.
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[139] No entanto, aproveito para notar, a bem da verdade, que também considero que houve aspetos positivos associados às metodologias de investigação histórica desenvolvidas por alguns investigadores associados aos Annales, incluindo o próprio Vitorino Magalhães Godinho no caso da História Económica de Portugal. [140] PALMA e REIS (2019). [141] HENRIQUES (2015). [142] HENRIQUES (2020). [143] PALMA e REIS (2019). [144] Fonte: Trabalho em curso, co-autorado com António Castro Henriques. Neste momento, o António Castro Henriques e eu estamos a trabalhar na reconstrução do PIB para o século xv, e na melhoria dos dados existentes para a segunda metade do século xix. Os resultados ainda são demasiado preliminares para eu os discutir aqui. Este gráfico, ainda preliminar, baseiase nos dados de PALMA e REIS (2019), relativo a 1527-1850, e em séries preliminares com dados para o século xix e inícios do xx. Para a segunda metade do século xix e início do xx, as estimativas publicadas que existem para a atividade económica do país não são de boa qualidade. No entanto, para o período a partir da segunda década do século xx voltam a existir dados publicados que são sólidos. [145] AZEVEDO (1929); e QUENTAL (2008), p. 85. [146] PWR-PORTUGAL (s.d.). Nem todos os preços, salários, e rendas que Jaime Reis e eu utilizámos para reconstruir o PIB português para 1527-1850 foram recolhidos no contexto dos dois projetos financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, já que alguns foram recolhidos mais tarde com financiamento das Universidades de Groningen e Manchester. [147] Como é evidente, nem sempre existia um contrato formal. Noto também que nalguns casos em que existia um complemento não monetário ao salário, por exemplo quando eram dadas dormida, roupa, ou comida a certos trabalhadores, é por vezes possível calcular o valor destes e acrescentá-los ao valor do salário. Ver, por exemplo, como isto é feito em PALMA et al. (2023). [148] Estes podem aparecer nas fontes como «jornaleiros», ou simplesmente «trabalhadores». Ainda no início do século xx, os homens a dias, contratados para trabalhos agrícolas, eram referidos desta forma. Assim acontecia, por exemplo, na obra notável Através dos Campos, originalmente publicada em 1903 pelo etnógrafo e lavrador José da Silva Picão. [149] GODINHO (2019), p. 99. Como era seu hábito, Godinho não dá uma fonte concreta relativa a este número. [150] BRANDÃO (1990). [151] Não confundir a servidão, que acabou gradualmente ao longo da Idade Média, com a escravatura, que dizia respeito a populações trazidas de outras regiões, não sendo consideradas portugueses. [152] Apesar de faltarem os retornos sobre o capital.
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[153] A maior parte dos dados foi recolhida de arquivos, mas em alguns casos também foram utilizados dados pertencentes a fontes já publicadas. Para saber mais sobre este tipo de fontes, veja-se PALMA (2020b). [154] Livro de receita e despesa do Convento da Graça de Évora (Códice CLXVII/1-6), depositado na Biblioteca Pública de Évora. [155] O projeto PWR-PORTUGAL (s.d.) disponibiliza conversões monetárias e métricas: http://pwr-portugal.ics.ul.pt/?page_id=48. [156] Nem sempre observamos o salário para todos os anos, tendo por vezes de recorrer a interpolações ou a extrapolações baseadas em aproximações; neste último exemplo, o salário do pedreiro aqui dado é de 1626. Mas para ser consistente, o preço das galinhas em Lisboa que lhe serve de deflator também corresponde a 1626. [157] Para além dos bens que menciono, também se incluíram outros. A lenha para aquecimento é a necessária para produzir 2.0 milhões de BTUs. Ver detalhes em PALMA e REIS (2019). [158] A expansão desta cultura poderá até estar relacionada com a descida de certas medidas de desigualdade que é observável entre meados do século xvi e meados do XVIII. Veja-se REIS (2017a). [159] Por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (HDI, em inglês) é calculado como uma média geométrica de três indicadores: o próprio PIB, a esperança média de vida, e o nível de educação da população medido através do número de anos de escolaridade da população. Pensemos nesta última medida. Porque é um fim em si? Imagine-se uma população em que todas as pessoas vão muitos anos para a escola, mas aprendem apenas matéria inútil (por exemplo, matéria elogiosa sobre o ditador do seu país), que não os ajuda a melhorar o seu nível de vida. Será isto um fim em si, se não aumenta o seu bem-estar? Na medida em que a resposta é não, como é minha convicção, compreendemos uma importante limitação deste indicador. Este indicador conta apenas o número de anos de escolaridade, sem considerações sobre a qualidade da oferta educativa. No que toca ao bem-estar da população, escolaridade, especialmente quando obrigatória, deve ser vista como um meio para um fim, não como um fim em si. Tudo isto para notar que o PIB por pessoa (que também é pouco informativo sobre questões de desigualdade) não é um indicador perfeito se utilizado como aproximação para o nível de desenvolvimento das sociedades, mas as alternativas existentes não são necessariamente melhores. [160] A fonte desta tabela é o artigo: PALMA e SANTIAGO-CABALLERO (2023). Para chegarmos a esta tabela comparada, usámos informação dos seguintes artigos: BROADBERRY et al. (2015); VAN ZANDEN e VAN LEEUWEN (2012); RIDOLFI e NUVOLARI (2021); SCHÖN e KRANTZ (2012); KRANTZ (2017); PFISTER (2022); MALANIMA (2011); PRADOS DE LA ESCOSURA et al. (2022); PALMA e REIS (2019); e no caso dos três benchmarks mais recentes, MADDISON (2006), como reunidos e atualizados por BOLT e VAN ZANDEN (2014). [161] Ou pelo menos, referem-se a fronteiras fixas no tempo, tanto quanto possível. Por exemplo, no caso da Itália, os dados até 1861 excluem o sul da Itália. Nalguns casos, devido à natureza dos dados subjacentes, existem mudanças de fronteira a meio da série. Isto acontece com Inglaterra, que nestes números corresponde a Inglaterra (mais País de Gales) até 1700, e
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Grã-Bretanha depois disso (ou seja, também incluindo a Escócia). E também acontece com a Holanda, que corresponde à Holanda propriamente dita até 1807, e aos Países Baixos depois disso. No caso da Alemanha, as fronteiras são as de 1871. [162] Esta linha tem evoluído ao longo do tempo, como é evidente, devido à inflação. Falar em preços de 1990 corresponde simplesmente a uma normalização para efeitos comparativos. Ver, por exemplo, RAVALLION et al. (2009). [163] Também conhecidos como dólares de Geary-Khamis, correspondem a uma unidade monetária hipotética em paridade de poder de compra com o dólar dos EUA num dado ano – neste caso, 1990. Sobre a desigualdade em sociedades pré-modernas, ver, por exemplo, MILANOVIC et al. (2011), ou ALFANI e DI TULLIO (2019); sobre o caso português, veja-se REIS (2017a). [164] A Tabela é mais segura sobre a identificação e a cronologia dos países que estavam com uma trajetória dinâmica. Sobre as questões metodológicas relacionadas com a contabilidade nacional histórica, veja-se JONG e PALMA (2018); PALMA (2020b); PALMA e SANTIAGOCABALLERO (2023). [165] Na realidade, os dados de Portugal não incluem o Algarve e as ilhas, mas cobrem ainda assim quase todo o país, ao contrário do que acontece com a Holanda relativamente aos Países Baixos. [166] Ainda que em partes de Espanha, nomeadamente na Catalunha, tenha existido industrialização e crescimento notáveis no século xix. É notório que a parte de Espanha que se industrializou não foi a mesma onde tinha existido uma indústria exportadora apreciável no século xvi (como Burgos). Veja-se CHAROTTI et al. (2022). [167] Portugal em 1950 ($2086 por pessoa) era mais pobre que Moçambique em 2010 ($2613) e apenas marginalmente mais rico que a Nigéria também em 2010 ($1876). Portugal era, em 1950, claramente mais pobre que Cabo Verde em 2008 ($2735, dados de 2008). Estes números estão expressos em termos reais (dólares PPP de 1990), ou seja, já corrigem o efeito da inflação e de diferentes custos de vida em diferentes sítios. Na medida em que os três países que dou como comparação subiram de rendimento desde então, a conclusão mantém-se e até sai fortalecida. Estas comparações não são isentas de problemas, até por não terem em consideração questões de distribuição. Angola tinha apenas $1600 por pessoa em 2010, o que contrasta com a impressão (errada) que muita gente tem em Portugal de Angola ser um país com muitos ricos. Mas também é possível que o «bem-estar mediano» em Portugal em 1950 fosse superior ao de Cabo Verde na atualidade. Seja como for, Portugal era bastante desigual em 1950, mas também o são quase todos os países pobres no presente. E estou aqui a identificar riqueza (um stock) como rendimento por pessoa (um fluxo), mas na prática isso não faz diferença neste contexto. É possível consultar estes e muitos outros exemplos na MADDISON PROJECT DATABASE (2020).
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PARTE II PORTUGAL: UMA INTERPRETAÇÃO
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4. Expansão e império Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C’uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas!
Dura inquietação d’alma e da vida, Fonte de desamparos e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios: Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Sendo digna de infames vitupérios; Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana!
A que novos desastres determinas De levar estes reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhe destinas Debaixo dalgum nome preminente? Que promessas de reinos e de minas D’ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? que histórias? Que triunfos, que palmas, que vitórias? Luís de Camões, Os Lusíadas
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Assim falava o Velho do Restelo, personagem que Camões imortalizou n’Os Lusíadas, que representava os pessimistas, ou pelo menos os céticos, relativamente ao sucesso da expansão marítima.[168] Cerca de cinco séculos mais tarde, será possível avaliar se o Velho do Restelo tinha razão? Não há dúvida de que a expansão marítima e o estabelecimento de um império foi, num certo sentido, um tremendo sucesso para a cultura portuguesa.[169] Isto pode ser medido, por exemplo, através do impacto cultural que esse processo de expansão teve em Portugal e noutras partes do mundo, como é o caso do Brasil, Angola, e demais países de língua portuguesa, assim como ainda em várias regiões da Ásia, onde a influência foi mais indireta, já que a língua não permaneceu.[170] Também não há qualquer dúvida de que o império teve sempre associado a si muita violência: guerras, destruição, matanças e escravatura.[171] Mas terá Portugal beneficiado ou ficou a perder em termos líquidos? E qual terá sido o efeito provocado nas diferentes partes do mundo em que a presença portuguesa se efetivou? Seria possível escrever um livro inteiro ou mesmo vários volumes dedicados a estas matérias, mas vou aqui centrar-me apenas nas dimensões mais relevantes para a questão central deste livro. Talvez não seja de estranhar que tantas pessoas, incluindo muitos historiadores profissionais, considerem a expansão marítima e o império como elementos centrais para o desenvolvimento de Portugal. Ainda hoje ouvimos ecos destas nebulosas ideias quando se refere uma «vocação» de Portugal como um país intimamente ligado ao mar. As vozes contrárias parecem ter sido sempre minoritárias. Quando encontro compatriotas por esse mundo fora, caso mencione a minha profissão, rapidamente a conversa é levada para as imensas terras que supostamente conquistámos. O mundo era nosso, descobrimos tudo e mais alguma coisa, tínhamos um império enorme com o qual Portugal prosperou! Só há um problema: nada disso aconteceu. Na realidade, os impérios europeus devem ser vistos principalmente como consequência desses países já serem mais ricos ou avançados à partida, em dimensões institucionais e cientifico-tecnológicas, não o contrário. No caso português, o impacto do império para a economia do país foi relativamente pequeno nos séculos xvi e xvii. E, apesar de ter sido mais relevante no século seguinte, acabou por ser pernicioso. Neste capítulo, e nos seguintes, vou explicar porquê.
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Um grande e rico império? A primeira coisa a destacar é que Portugal não teve um grande império terrestre. Nem podia ter tido. As exceções, parciais, foram o Brasil no século xviii, e África já no século xx. Em todos os outros casos, a presença dos portugueses concentrou-se nas costas, frequentemente em fortalezas isoladas, com uma limitada penetração no interior. No caso do Brasil, apesar da economia açucareira do século xvii, a população de brancos só atingiu um número bastante significativo com a corrida ao ouro, que se localizava no interior, já no século seguinte. Em todos os outros locais, o número de portugueses foi sempre muito limitado. Mas então, o que era de facto o «império português», e que efeitos teve para Portugal e para as ex-colónias? Comecemos pelo período entre o século xv e os inícios do xix, até à independência do Brasil. É sobre esta época que incidem alguns dos maiores mitos.[172] Nesse momento, a Europa não estava muito à frente da Ásia em termos de riqueza por pessoa, ou pelo menos de rendimento médio por pessoa.[173] Aliás, de acordo com uma tese muito famosa de Kenneth Pomeranz, ainda em 1800 as regiões mais ricas da China apresentavam um nível de prosperidade semelhante ao das partes mais ricas da Europa.[174] Se, relativamente a 1800, sabemos hoje que esta tese é exagerada, no que toca ao período 1500-1700, ela é plausível, como o trabalho de Stephen Broadberry e outros têm vindo a demonstrar.[175] Aliás, os primeiros viajantes portugueses a chegar à China, como, por exemplo, o frade dominicano Gaspar da Cruz, elogiavam o nível de vida dos chineses, em comparação com aquilo que conheciam de Portugal.[176] De qualquer modo, não restam dúvidas de que já no século xvi a Europa Ocidental estava à frente das outras partes do mundo em termos científicos e tecnológicos, ao contrário do que tinha acontecido alguns séculos antes. Mas a Ásia tinha uma população muito maior: mais de 350 milhões, por comparação com os 75 milhões que existiam na Europa por volta de 1600.[177] A desproporção de rácios populacionais não é de hoje, e a maior população e densidade populacional da Ásia – e em particular da China – também podia dar aos contemporâneos uma ilusão sobre as diferenças de rendimento ou riqueza que poderiam não ser reais. A desproporção do tamanho das populações é importante para percebermos porque é que Portugal não poderia ter tido um império terrestre na Ásia: nunca teria havido condições para uma conquista
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terrestre. O que Portugal teve, isso sim, foi um império marítimo – uma espécie de Talassocracia – apoiado pelas duas tecnologias militares nas quais a Europa tinha, de facto, superioridade clara sobre outras civilizações: por um lado, navios de guerra com uma artilharia eficaz prontos a afundar os inimigos; e por outro, fortalezas construídas segundo técnicas militares europeias.[178] Neste contexto as feitorias não passavam de entrepostos comerciais que, para além da sua defesa, eram constituídos por armazéns, estruturas de apoio aos navios, capelas, e edifícios administrativos. Na maior parte dos casos a sua construção foi negociada com potentados locais. A artilharia naval e as fortalezas eram duas tecnologias que se apoiavam mutuamente e permitiam uma superioridade militar marítima. Só muito dificilmente uma expansão terrestre portuguesa podia ter sucesso. No Japão, onde os «barcos negros» portugueses – a «nau do trato» – chegavam de Goa, a continuação do seu comércio estava dependente dos equilíbrios políticos locais, e os portugueses foram expulsos quando o imperador tomou essa decisão, sendo os cristãos perseguidos e mortos.[179] Os salários não eram suficientemente altos para existir emigração de trabalhadores não qualificados para a Ásia, ao contrário do que viria a acontecer para o Brasil, principalmente no século xix. Na Ásia, a presença portuguesa limitava-se, por isso, a exíguos territórios costeiros dominados por uma ou outra fortaleza local e pouco mais. Mesmo a existência dessa presença estava dependente do equilíbrio de poderes locais (como na Índia) ou da tolerância e boas relações (na China e, enquanto durou, no Japão). Quem já esteve em Macau terá visto a Porta do Cerco, que, sendo já do século xix, marca uma fronteira muito anterior que os locais podiam ameaçar cercar, suspendendo o abastecimento da cidade, se assim desejassem, como chegou a acontecer em mais do que uma ocasião.[180] A China dos séculos xvi a xviii ainda não era bem a potência decadente do século xix. Pode-se dizer que os portugueses em Macau estavam à sua mercê: a sua presença era tolerada porque o comércio associado também era útil aos chineses.[181] Já no século xx, Goa, Damão, e Diu foram facilmente anexadas pela União Indiana em 1961 com vitórias decisivas, como é conhecido. O motor do comércio entre a Europa e a Ásia, a partir do século xvi, não foi a violência, mas antes as trocas comerciais, potenciadas em particular pela ação combinada entre as novas rotas marítimas e a injeção monetária decorrente dos metais precisos provenientes das Américas.[182]
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Para a Ásia era levada prata, principalmente, assim como algumas armas e objetos mecânicos. No regresso, traziam-se especiarias, sedas, chás, e porcelana, com proporções relativas que variaram no tempo, entre outros produtos que eram considerados luxos na Europa. Ainda assim, não há dúvidas de que, no século xvi, o comércio faziase frequentemente com violência associada. No Índico, os portugueses atacavam quem não pagasse o «cartaz», ou seja, a licença para comerciar determinados produtos por mar.[183] Na prática, o cartaz não era mais que extorsão sobre as trocas comerciais, obrigando as embarcações locais a pararem em localidades estratégicas que o Estado da Índia pretendia controlar de forma a dominar o comércio entre Malaca, no Oriente, o Índico até Ormuz (atualmente no Irão), e Adem (atualmente no Iémen) a Ocidente.[184] Afonso de Albuquerque conquistou Goa, Malaca e Ormuz em inícios do século xvi, controlando a partir desta última cidade a entrada no Golfo Pérsico. Mas para ter o monopólio do transporte de especiarias para a Europa – ou seja, de forma a aumentar tremendamente o custo do transporte terrestre –, o Estado da Índia precisava também de tomar Adem, outra localidade estratégica, que permitia controlar a entrada para o Mar Vermelho. Sempre em guerra com os Otomanos (por vezes apoiados por Veneza), os portugueses não conseguiram o controlo dessa região estratégica.[185] Falharam. E a seu tempo, os otomanos reavivaram as rotas comerciais do Mar Vermelho e do Golfo Pérsico, fazendo concorrência à rota do Cabo, controlada exclusivamente por Portugal até aos finais do século xvi, mas que dessa forma se tornou menos lucrativa.[186] Na realidade, para cada batalha vencida – sendo célebre, por exemplo, a Batalha de Diu de 1509 – tantas outras existiram em que os portugueses foram derrotados. Estes dependeram sempre de alianças com poderes locais, e não passavam muitas vezes de peões no vasto tabuleiro político que existia na Ásia. Como tal, muitas das derrotas militares portuguesas e perdas de território ou influência política e comercial a oriente, no século xvii, não se deveram a ataques de holandeses, mas antes, simplesmente, a alterações geopolíticas a acontecer nessa região do globo. Assim aconteceu com as perdas de Sirião (na atual Birmânia) em 1612, Ormuz em 1622, Ugulim (no nordeste da Índia) em 1632, com a expulsão do Japão em 1638, e finalmente com a perda dos portos de Canara (na Índia oriental) em 1654.[187]
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Apesar disso, foi também importante, a partir da última década do século xvi, a concorrência cada vez mais apertada no comércio oriental por parte de outros países europeus, nomeadamente os Países Baixos e a Inglaterra.[188] Algumas décadas antes, a dificuldade de medir a longitude com um mínimo de rigor implicava que o Tratado de Tordesilhas não deixava claro se as ilhas Molucas (atualmente na Indonésia) ficavam do lado espanhol ou português. Estas ilhas eram importantes como fonte de noz-moscada e cravinho (cravo-da-índia), sendo conhecidas dos portugueses desde a conquista de Malaca. Isto acabou por ficar resolvido com o Tratado de Saragoça, em 1529, a favor de Portugal (em troca de um pagamento), mas foi sol de pouca dura: logo a partir de finais do século xvi apareceram os ingleses e holandeses.[189] Estes últimos, em particular, fizeram forte concorrência aos portugueses, e logo nas primeiras décadas do século xvii conquistaram, através da violência militar, territórios portugueses na Ásia. Em disputa pelo comércio da pimenta, canela, e noz-moscada, além das especiarias já mencionadas, desalojaram os portugueses de localidades estratégicas como as ilhas Molucas. Também a fortaleza de São Jorge da Mina – na atual cidade de Emira no Gana, no litoral da África Ocidental – foi tomada pelos holandeses em 1637, que passaram a utilizá-la para o comércio de escravos. A partir da década de 30 da mesma centúria enviaram frotas regulares até Goa, bloqueando o porto que dessa forma não conseguia prosseguir com as suas atividades comerciais, ou sequer entrar em contacto com Lisboa.[190] Os ataques holandeses faziam com que se perdesse um terço dos navios e respetiva mercadoria da Carreira da Índia.[191] Os holandeses venciam, mas nem sempre. Apesar das derrotas, os portugueses mantiveram posições em diversos pontos da Ásia, sendo os mais importantes Goa – a capital do Estado da Índia – e Macau. Em 1622, os holandeses atacaram Macau com forças muito superiores, mas essa localidade manteve-se em mãos portuguesas, ainda que devido à sorte de ter sido atingido um veículo holandês cheio de pólvora. Isso levou a uma enorme explosão que causou muitas baixas, incluindo 18 oficiais holandeses. O reduzido número de mortos do lado português levou-os a concluir que «era muito pouco o número a despeito de durar a briga mais de duas horas».[192]
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Em suma, o comércio a oriente podia parecer muito lucrativo, mas isso era em grande parte uma miragem, pois também existiam altíssimos custos e riscos associados. A ocidente, no Brasil, Portugal teve mais sucesso como potência colonial do que a oriente. Como já mencionei, os colonos portugueses só progrediram para o interior do Brasil no século xviii, e ainda assim ocupando apenas zonas específicas relacionadas com a extração e transporte do ouro. Até lá, só uma estreita faixa da costa estava colonizada: localidades como a cidade de Olinda, fundada em 1535 (atualmente no Pernambuco, mas próxima do Recife), e Salvador da Bahia, fundada em 1549. A produção do açúcar era a sua mais importante atividade económica, ultrapassando largamente o papel que a ilha da Madeira tinha tido nessa produção. Foi também por pouco que os holandeses não desalojaram os lusos do Nordeste, e mesmo da Bahia, de forma permanente. África, por outro lado, era vista como fonte de escravos e pouco mais. [193] No Reino do Congo, a partir de finais do século xv, vários monarcas adotaram nomes portugueses, mas ficou a seu tempo claro que nos territórios a sul, a que hoje chamamos Angola, existia mais oferta de escravos e menos instabilidade política. Aí, os portugueses instalaram-se praticamente apenas em Luanda e Benguela, dependendo dos chefes de pequenas comunidades (os sobas) para esse comércio. Os europeus morriam facilmente em África devido a doenças, nomeadamente a malária. Angola, assim como Moçambique na costa oriental, só seriam verdadeiramente colonizadas já no século xx, depois da exploração e presença europeia aumentarem ainda nos finais do século anterior graças ao quinino, um medicamento descoberto nesse século com capacidade de curar ou prevenir a malária. Não haveria mais de uns 20 mil europeus em todo o império no início do século xx, metade dos quais em Angola, e todos concentrados nas cidades principais – Luanda, Lourenço Marques, Goa, e Macau.[194] Um político republicano chegou a afirmar em 1926 que as colónias estavam quase por colonizar.[195] Não estava errado. Os impérios europeus devem ser vistos principalmente como uma consequência das instituições, inclusivamente fiscais, e das condições científicas e tecnológicas de partida serem mais avançadas do que as que existiam noutras partes do mundo. Os europeus beneficiaram por vezes dos seus impérios (ainda que nem sempre), mas os benefícios, mesmo quando existiram, raramente foram grandes. No que toca ao nosso país, o
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mais importante é compreender que Portugal nunca ficou rico devido a quaisquer impérios.[196] Nas secções seguintes deste capítulo irei argumentar que, sem o império, o rendimento per capita do país teria sido, nos séculos xvi e xvii, quase o mesmo que se registou efetivamente. Já no século xviii, o impacto direto foi maior, embora o impacto económico líquido seja complexo de quantificar, tudo indicando que, se foi temporariamente positivo, acabou na verdade negativo a prazo. Compreender o que se passou nesse século em detalhe é realmente complexo, e por isso, dedico-lhe um capítulo inteiro adiante. Certo é que o império nunca teve um peso suficiente para constituir a prazo um motor de crescimento sustentado da economia. E mais, com a inevitável perda do Brasil, o comércio imperial seria sempre um motor com os dias contados. Mais tarde, a aposta em África também se revelou uma desilusão, como veremos nos capítulos seguintes. O peso do império na economia portuguesa Uma consequência da expansão foi, como é evidente, a construção do império. Deve ser dado a Vitorino Magalhães Godinho o mérito de ter descredibilizado algumas das explicações sobre as causas da expansão que eram dominantes em meados do século xx. Nessa altura, dava-se excessivo peso a individualidades, como o Infante D. Henrique, que eram vistas como heróis motivados pela fé, o que evidentemente tinha escassa viabilidade explicativa. Aliás, também por isto, Godinho nunca foi apreciado pelo Estado Novo, tendo até sido por duas vezes vergonhosamente demitido por não se conformar com o regime.[197] No entanto, sendo complexa a História económica e social da expansão, Godinho não acertou em tudo. Por exemplo, considerava que o império manteve o país pobre e agrícola. Mas não foi bem assim; pelo menos, os mecanismos foram menos lineares e mais indiretos do que ele pensava. O primeiro passo para compreendermos qual o efeito do império é medir o valor do comércio que gerou. A forma correta de o fazer é por pessoa, e em preços constantes – ou seja, corrigindo esse valor tendo em conta a inflação ao longo do tempo.[198] Como mostra a Figura 9, baseada em trabalho que fiz com Leonor Freire Costa e Jaime Reis, o valor do comércio intercontinental era, por volta de 1500 ou mesmo 1600, muito pequeno para Portugal, não havendo também qualquer manifestação de que existissem para o país, visto no seu todo, lucros particularmente 83
grandes ou extraordinários associados a este comércio. Até porque é preciso não confundir receitas com lucros: a expansão implicava volumosos investimentos e outros custos associados. Era preciso construir e armar navios (usando materiais que tinham em parte de ser importados), e assegurar mantimentos e tripulações. Também era preciso construir fortalezas defensivas. Os custos sentiram-se logo desde o primeiro momento: uma década depois da tomada de Ceuta em 1415, o infante D. Pedro reconhecia, numa carta ao seu irmão D. Duarte, que essa praça era um sumidouro de gente, armas, e dinheiro.[199] E assim continuou a ser nos anos e décadas seguintes. Já no século seguinte o desastre militar de Alcácer-Quibir, onde pereceu o Rei D. Sebastião, viria a ter as consequências políticas para o reino que não precisam de ser aqui recordadas. Figura 9. Comércio intercontinental por pessoa.
Uma implicação que pode ser retirada do valor do comércio associado ao império ter sido pequeno é que dificilmente podia este ter tido uma grande importância direta para a economia do país.[200] Nos séculos xvi e xvii Portugal era, antes de mais, um país agrícola, como de resto eram ainda todos os países da Europa e do mundo nessa época. Nesse contexto, a manifestação económica do império pode ser descrita, sem grande exagero, como a chegada de alguns barcos por ano ao Terreiro do Paço.[201] Na Figura 10 pode ver-se o Paço da Ribeira, mandado construir por D. Manuel I, e onde a Casa da Índia também estava localizada.[202] À esquerda vê-se a Ribeira das Naus, um estaleiro para a construção de navios. A área à direita é o Terreiro do Paço, vendo-se o porto e um pelourinho.[203] Tudo isto era uma operação relativamente pequena, e bem localizada. Na Ásia a compra a crédito não era possível, e era,
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portanto, preciso carregar os navios com metais precisos.[204] Este comércio não foi, nem podia ter sido, um grande motor de crescimento para a economia nos séculos xvi e xvii.[205] No século seguinte, no entanto, o Brasil foi adquirindo um peso grande na economia portuguesa, como nunca tinha acontecido com o império a oriente. Um espião francês às ordens de Luís XV de França escreveria em 1765 que «A cidade de Lisboa é uma das maiores e mais ricas capitais da Europa».[206] Em finais desse século, Lisboa era mesmo uma das quatro maiores cidades da Europa, juntamente com Nápoles, Paris e Londres.[207] Mas isso não iria durar, como veremos. Figura 10. Vista de Lisboa, centrada no Paço da Ribeira, onde a Casa da Índia estava localizada.
O facto de o império não ter provocado um grande efeito direto na economia, pelo menos até ao século xviii, não significa que não tenha tido efeitos relevantes para a capacidade fiscal do Estado, pelo menos em certas épocas. A documentação existente nos arquivos sugere que, efetivamente, assim foi. Aliás, até terá sido isso que levou gerações de historiadores à conclusão errada de que o império teria tido uma grande importância para a economia portuguesa no século xvi (por contraste com o seu contributo apenas para as finanças públicas). Mas uma coisa não implica a outra. Para compreendermos esta aparente contradição e a necessidade de separar os efeitos sobre a economia do país dos efeitos sobre o plano restrito das finanças públicas, temos de entender que, nessa época, o peso do Estado na economia – mesmo somando as receitas ou despesas da Coroa com as do poder local, a nível municipal, que tinham orçamentos separados – era muito menor do que é hoje. Ou seja, não há qualquer contradição em compreender que as receitas do império podem ter tido bastante importância para as receitas públicas em certos momentos, e, ao mesmo tempo, aceitar que o peso do comércio associado ao império para a economia era meramente marginal.
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Em suma, não há dúvida de que as receitas relativas ao império foram por vezes importantes em algumas décadas do século xvi, e mais tarde durante parte do século xviii, ainda que mais para a Coroa do que para o país propriamente dito. Para este, a sua importância foi apenas indireta, e raramente provocou um impacto económico imediato. As receitas vindas de fora, no entanto, podem ter sido até importantes para a própria independência nacional. Foi o que aconteceu em meados do século xvii: nessa altura, as receitas coloniais representavam apenas uma pequena parte dos proveitos da Coroa, mas D. João IV considerou ainda assim que o Brasil era a sua «vaca de leite» e, como tal, importante para assegurar a vitória da dinastia dos Bragança contra os Habsburgos.[208] No entanto, não devemos exagerar a importância das receitas imperiais ao longo do tempo, como irei agora mostrar. Para avaliarmos a importância destas receitas imperiais, e quando foram importantes, é preciso quantificá-las ao longo do tempo. Existem fontes nos arquivos que permitem estudar as finanças do Estado português com bastante detalhe, tanto a nível central – confundindo-se estas com as finanças da Coroa – como a nível do poder local. Fontes como o «estado da fazenda» mostram as despesas e receitas para um dado ano fiscal. A Figura 11 mostra o original mais antigo que sobrevive, relativo ao ano de 1526.[209] É, portanto, uma espécie de «Orçamento do Estado». Num trabalho recente feito em conjunto com Leonor Freire Costa e António Castro Henriques, analisei as fontes desta natureza que chegaram até nós, tanto a nível central como local.[210] Concluímos assim que, pelo menos até à primeira metade do século xix, Portugal era um Estado bastante centralizado, e forte no plano fiscal, relativamente ao tamanho da sua população, mesmo em comparação com outras potências da Europa Ocidental. Esta conclusão contradiz o que até agora tinha sido sugerido por autores como António Manuel Hespanha.[211] A Tabela 3 mostra isso mesmo: até ao século xix Portugal não estava claramente atrás dos outros países da Europa Ocidental.[212] Outras regiões do mundo, como a China, teriam à época uma capacidade fiscal muito mais baixa.[213] Apesar da debilidade fiscal portuguesa não ser anterior às primeiras décadas do século xix, é verdade que nesse século Portugal tornou-se de facto um Estado fiscalmente fraco. As receitas fiscais correspondiam apenas a 3,5% do PIB em 1851-1859, e a 5% em 18901899 – níveis muito inferiores aos que se aplicavam à generalidade dos restantes países da Europa Ocidental nessas épocas.[214] Em suma, a
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perspetiva histórica comparada mostra que a eficiência do sistema fiscal português não se deveu apenas, nem sequer principalmente, ao império. Mas é inegável que o império teve, em determinados períodos, bastante importância para as receitas fiscais do poder central. Isto tem algumas implicações para compreendermos o país em certas épocas, e em particular no século xviii, como irei explicar no Capítulo 6. Figura 11. O estado da fazenda, para 1526.
Na Tabela 3 as receitas apresentadas para Inglaterra, França, e Espanha incluem as suas receitas imperiais. Por isso, a comparação deve ser feita com a coluna que mostra Portugal também com as suas receitas imperiais contabilizadas. Como podemos verificar, estas receitas imperiais em Portugal tiveram importância em épocas pontuais – como na primeira metade do século xvi, perdendo importância no xvii e voltando a ganhar um peso relevante outra vez no século xviii –, mas nunca foram esmagadoras para o orçamento central. No entanto, convém notar que as receitas fiscais provenientes do império correspondem a transferências já líquidas (portanto, descontando os custos nesses territórios) para os cofres portugueses. Ou seja, estas receitas – que foram relevantes apenas, como escrevi, num período de algumas décadas em inícios do século xvi, e depois durante grande parte do século xviii – tinham menos contrapartidas para Portugal do que acontecia com as receitas regulares. A literatura internacional tem feito sobre estas matérias muitas afirmações que, embora frequentemente repetidas, não correspondem à realidade. São mais um exemplo do que se pode chamar «História escrita
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pelos vencedores». De acordo com Charles Tilly, a dependência fiscal da Coroa portuguesa relativamente às receitas imperiais implicou que nunca se tenham desenvolvido instituições representativas – o que não corresponde à verdade, como vimos no Capítulo 2.[215] Como expliquei nesse capítulo, sabemos hoje que até meados do século xvii a qualidade das instituições políticas portuguesas não era inferior às inglesas. As instituições políticas portuguesas melhoraram mesmo um pouco na segunda metade desse século, quando as Cortes se reuniam com frequência, especialmente após a Restauração, em 1640.[216] Tabela 3. Receitas fiscais em percentagem do PIB.
Portugal
Inglaterra
França
Espanha
Receitas centrais, incluindo império / PIB nominal
Receitas centrais excluindo império / PIB nominal
Receitas centrais / PIB nominal
Receitas centrais / PIB nominal
Receitas centrais / PIB nominal
1500– 49
2,0%
0,8%
2,6%
0,8%
0,9%
1550– 99
1,3%
0,8%
1,7%
2,4%
2,4%
1600– 49
1,7%
1,3%
1,5%
1,3%
5,1%
1650– 99
2,2%
2,0%
2,8%
3,7%
4,9%
1700– 49
5,2%
4,1%
5,7%
5,4%
4,7%
1750– 99
4,7%
3,6%
6,6%
7,0%
5,7%
1800– 49
5,1%
4,5%
11,1%
-
4,8%
Dito tudo isto, não deixa de ser verdade que foi no século xviii que o império teve um peso maior para Portugal: não apenas para a Coroa, mas para a economia.[217] E, no entanto, também seria no século xviii que Portugal iria começar a ficar para trás, estando esse declínio precisamente associado ao império, e em particular às chegadas de ouro do Brasil, como veremos no Capítulo 6. Temos de aguardar pela segunda metade do século xx para observarmos uma convergência sustentada de Portugal para os níveis de rendimento da Europa Ocidental, e nessa altura isso não se deveu ao império (como mostro no Capítulo 9). Em
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suma: o império nunca serviu para transformar Portugal num país rico, ao contrário do que é tantas vezes repetido. Esse é apenas mais um mito da nossa História.[218] A organização comercial comparada dos impérios europeus Vale a pena também rebater aqui outro mito. A organização do comércio colonial em Espanha e em Portugal é muitas vezes vista como extrativa e demasiado próxima dos interesses da Coroa. É muitas vezes feita a comparação com a Inglaterra ou os Países Baixos (nessa época Províncias Unidas, sendo a Holanda propriamente dita apenas uma delas), onde os mercadores teriam a liberdade de enriquecer.[219] No entanto, esta ideia não é completamente correta e precisa de ser matizada. Em Espanha, o comércio com o império desenvolveu-se através de mercadores privados que pagavam impostos à Coroa. E em Portugal, até meados do século xvii não existiram monopólios no comércio Atlântico, enquanto a situação, no que toca ao comércio com a Ásia, era complexa. Tanto para Espanha – onde, numa primeira fase, o império americano pertencia, estritamente falando, apenas a Castela – como para Portugal, a navegação e o comércio eram regulados, mas a situação não era fundamentalmente muito diferente da que acontecia em Inglaterra e nas Províncias Unidas, pelo menos até à segunda metade do século xvii. Ainda durante o período da União Dinástica, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (a WIC, West-Indische Compagnie), aproveitando o contexto político da Guerra dos Oitenta Anos entre as Províncias Unidas e a Espanha, tomou a Bahia em 1624. Uma enorme armada lusoespanhola conhecida como a «Jornada dos Vassalos» recuperou-a no ano seguinte, mas os holandeses ficaram no Recife, em Pernambuco, entre o final da década de 1620 e meados da década de 1650, com o objetivo de explorar a produção e o comércio do açúcar. Depois da Restauração (1640), Portugal recuperou o Recife, desalojando os holandeses do Brasil por completo. A WIC não teve grande sucesso, mas tinha sido fundada com um capital ainda maior que o seu equivalente para as Índias Orientais, a mais famosa VOC (Vereenigde Oostindische Compagnie). [220] Desde o início do século xvii, estas duas companhias foram o principal instrumento utilizado pelos neerlandeses para imporem o seu processo de colonização. A VOC quebrou o domínio dos portugueses na 89
Ásia a partir do início do século xvii, vencendo na maior parte dos casos, devido a uma melhor utilização de força e diplomacia – e não por ter uma organização comercial mais eficiente.[221] Mas o mesmo não aconteceu com a WIC nas Américas. No Brasil, os holandeses foram decisivamente derrotados após a Restauração. O facto de terem perdido no Brasil sugere que a ideia, por vezes repetida, de que os holandeses tinham uma forma de organização comercial e militar intrinsecamente superior, deve ser moderada. Consequências para as regiões colonizadas Até agora, tenho vindo a tratar dos efeitos que o império teve para Portugal. Vimos que, mesmo quando o império apresentou maior importância para a economia portuguesa, o seu impacto direto foi apenas moderado. E a prazo até foi negativo, devido a um conjunto de efeitos indiretos que irei explicar em mais detalhe no Capítulo 6. Uma implicação da baixa (ou negativa) importância do império para a economia portuguesa é que também é necessariamente falso dizer que a riqueza de Portugal se tenha produzido graças à escravatura ou à violência associadas à construção do império, ou às trocas comerciais relacionadas com o mesmo. Nem para os portugueses a viver em Portugal, de resto, nem para os que viviam noutras regiões. Vale também a pena ter em conta o efeito, a prazo, que a expansão portuguesa teve para as regiões que foram colonizadas. Na Bahia, como mostro em trabalho coautorado com Guilherme Lambais, o nível de vida dos trabalhadores não qualificados era comparável ao da Europa em finais do século xvi, mas declina ao longo do tempo com o aumento brutal da entrada de escravos nos séculos xvii e xviii, vindo a recuperar um pouco somente com o fim do tráfico de escravos e da escravatura, mas sem voltar ao nível inicial, até ao século [222] xx. Por outro lado, como mostro em trabalho coautorado com Hélder Carvalhal, os trabalhadores não qualificados em Luanda e Benguela viram o seu nível de vida piorar entre o século xix e grande parte do xx. O nível de vida piorava porque existia uma grande quantidade de trabalhadores sob regime coercivo que distorciam o mercado laboral, fossem escravos ou, a partir de 1875-1880, serviçais.[223] Durante séculos, foi considerado que a escravatura era essencial para o desenvolvimento do Brasil e, por implicação, também para os negócios 90
em Angola. Mas não era bem assim. Sendo inegável que a instituição da escravatura e do comércio de escravos enriqueceu os bolsos de algumas elites coloniais, nunca foi uma estratégia eficaz de desenvolvimento para Portugal no seu conjunto. Aliás, pelo menos entre meados do século xix e meados da centúria seguinte, os rendimentos médios por pessoa não eram muito superiores em Portugal do que no Brasil ou nas suas colónias.[224] Como referi, a escravatura de negros vindos de África, e em particular de Angola, não só era aceite, como era, à época, vista como fundamental para o desenvolvimento do Brasil.[225] Por contraste, no Brasil, a Coroa e a os jesuítas tentaram frequentemente proteger as populações nativas para que não fossem massacradas ou escravizadas, tendo-se tornado, por isso mesmo, alvo de frequentes protestos das elites locais.[226] E os esforços de conversão dos missionários Cristãos fora da Europa, aliás, variaram muito em função das características de cada região.[227] Em 1826, o Brasil, já independente, assinou um Tratado com o Reino Unido em que prometia suprimir completamente o tráfico de escravos. Esse Tratado foi, na verdade, letra morta, dando origem à expressão «para inglês ver». As próprias autoridades brasileiras não aplicaram a legislação e mais de um milhão de escravos africanos entraram no Brasil já depois da independência, em condições que não teriam sido melhores que as do século anterior.[228] Mas caso a escravatura fosse fonte de riqueza para países, então Portugal e o Brasil seriam os países mais ricos do mundo em épocas presentes e passadas, já que foram dos países que mais estiveram envolvidos nesse tráfico. Além disso, o que sabemos é que o tráfico de escravos, e de forma mais genérica a dependência do Brasil face à escravatura, acabaram por ser um entrave ao seu desenvolvimento global a prazo, sem prejuízo de ter enriquecido algumas elites mercantis que não eram representativas do país.[229] Frequentemente ouvimos declarações segundo as quais, por exemplo, o Brasil tem «vergonha das suas origens portuguesas».[230] Para além de várias acusações, nomeadamente sobre o comércio de escravos e o suposto «roubo» do ouro trazido para Portugal, um dos pontos de vista amplamente difundidos é o de que, se o Brasil tivesse sido colonizado pelos holandeses, a situação seria hoje muito melhor. No entanto, basta olhar para o atual nível de desenvolvimento do Suriname, um país que faz fronteira com o norte do Brasil e onde o domínio colonial neerlandês se exerceu durante séculos, para nos apercebermos de que essa ideia está
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longe de fazer sentido. Na verdade, o Suriname até é hoje um país menos desenvolvido que o Brasil. Poder-se-á argumentar que não foi tão importante para os holandeses como o Brasil terá sido para Portugal, tendo em conta, entre outros fatores, a dimensão muito diferente dos territórios. Mas veja-se também o que se passou noutras regiões do mundo, como a Indonésia, onde a colonização neerlandesa foi bastante extrativa, mesmo durante o século xix. Um estudo recente de História económica sobre a ilha de Java mostra que, na década de 1850, quando as transferências líquidas das chamadas «Índias Orientais» para os Países Baixos – conhecidas como batig slot – atingiram o seu auge, elas representaram quase 4% do Produto Interno Bruto neerlandês e mais de 50% da receita total do governo.[231] Apesar disso, e mesmo considerando que nas discussões sobre estas questões é fundamental ter em mente factos básicos como os que acabei de mencionar, há que reconhecer também que Portugal transmitiu ao Brasil um projeto institucional de qualidade inferior àquele que a Inglaterra, por exemplo, deixou nos Estados Unidos. É crucial desenvolver um pouco este tópico porque encontram-se aqui algumas das principais razões que explicam as diferenças de evolução e de crescimento observadas, não só no interior do continente americano, mas mesmo a nível mundial. Aliás, tal como a origem de vários dos mal-entendidos que se encontram espalhados a este respeito. A decadência das instituições políticas em Portugal acentuou-se a partir do final do século xvii. Esta decadência foi o resultado das enormes remessas de ouro que, entretanto, a partir da década de 1690, começaram a chegar do Brasil, e que, em Portugal, tiveram profundos efeitos negativos, não só para as instituições políticas, como também, de forma mais direta, para a economia. Esta ligação pode parecer, à primeira vista, paradoxal, mas explica-se porque as enormes quantidades de ouro recebidas distorceram, por um lado, a economia – favorecendo as importações e prejudicando, externamente, o setor industrial transacionável –, e, por outro lado, contribuíram para que a Coroa considerasse que teria receitas suficientes para não precisar de convocar as Cortes. Uma das consequências foi o facto de as Cortes terem deixado de se reunir ao longo de todo o século xviii, ao contrário do que tinha acontecido nos séculos anteriores. Isso levou a que a economia e as instituições políticas portuguesas tivessem sofrido, durante esse século, um processo de degradação semelhante ao que havia acontecido em
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Espanha mais de 100 anos antes.[232] Mais direi sobre estas matérias no Capítulo 6, mas para a discussão presente o que importa compreender é que este processo de degradação económica e política influenciou o tipo de instituições que surgiram em toda a América Latina e portanto, obviamente, também no Brasil. Foram essas instituições – cujas características básicas persistiram ao longo do século xix, apesar das mudanças políticas que vieram a existir – que condicionaram, assim, o sistema institucional que aí foi implantado. No fundo, o que está em causa é um problema de Maldição dos Recursos, com consequências profundas no destino da própria América Latina. Em contrapartida, na América do Norte o processo foi completamente diferente, até por não existirem minas de ouro e prata, e, como tal, foi necessário desde o primeiro momento que os governos locais fossem financiados pelos próprios colonos. Isto obrigou os governadores coloniais a recorrem desde cedo a assembleias locais.[233] A Inglaterra e as suas colónias na América do Norte não tinham sofrido de uma Maldição dos Recursos, e quando foi descoberto ouro na Califórnia, em meados do século xix, este nunca se tornou central para os Estados Unidos da América, tendo então já as suas instituições também uma grande robustez política.[234] Em conclusão, pode dizer-se que, contrariamente a uma ideia bastante difundida, a descoberta do ouro no Brasil e o seu envio para Portugal não conduziram, a prazo, a um «enriquecimento» do país. Pelo contrário, conduziram antes ao início de um caminho progressivo de real empobrecimento que se acentuou no século xix e que acabou até por ter implicações na qualidade das instituições criadas, não só em Portugal como no próprio Brasil, com consequências que duram até aos dias de hoje. Da Expansão Ibérica à Revolução Científica Nada do que até agora escrevi implica que as expansões ibéricas – apesar da violência que lhes esteve associada – não tenham tido, a prazo, consequências profundas e positivas a nível mundial. Na realidade, acabaram por beneficiar todos os países do mundo e portanto, indiretamente, também Portugal. Isso aconteceu devido à ligação entre esses eventos e a Revolução Científica do século xvii. Mas este canal de influência não é propriamente de natureza imperial e o mecanismo é
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muito indireto. Passo a explicar, ainda que com alguma brevidade, por não ser esse o tema central deste livro, embora não possa ser ignorado devido à sua grande relevância a prazo. «A experiência é a madre de todas as cousas, per ela soubemos radicalmente a verdade» – assim escreveu em 1506 o cosmógrafo português Duarte Pacheco Pereira em De esmeraldo situ orbis, uma obra notável que continha as coordenadas geográficas de latitude e longitude de todos os portos conhecidos no seu tempo. Com a expansão marítima, de facto, surgiu nessa época uma nova mentalidade – primeiro em Portugal, depois em Castela, e finalmente em toda a Europa Ocidental. Esta nova forma de ver o mundo rejeitava elementos-chave de obras clássicas, como os escritos de Aristóteles e a própria Bíblia, pelo simples facto de que, por exemplo, era possível atravessar o equador sem os exploradores ficarem queimados ou de pernas para o ar.[235] Ao longo do tempo, o contacto direto por via marítima com outras partes do mundo – a África subsariana, a Ásia, e a América – confrontou a sociedade europeia com uma miríade de animais, plantas, e populações que não tinham sido antecipadas e muito menos descritas em nenhuma das fontes clássicas ou medievais. Desta forma, esses repositórios livrescos onde se guardava o conhecimento deixaram de ser a fonte última da verdade, ficando assim aberta a porta a um novo mundo baseado na ciência e com uma base empírica e experimental.[236] Olhar para outras sociedades ajuda a compreender quão extraordinário foi este processo que teve lugar na Europa. Consideremos o caso da frota do almirante Zheng He, explorador e diplomata ao serviço da dinastia chinesa Ming, que atingiu as costas do Quénia ou mesmo Moçambique no início do século xv – de onde, aliás, trouxe uma girafa para a China por volta de 1415. O principal navio desta frota era muito maior que a nau São Gabriel, que fazia parte da expedição de quatro navios de Vasco da Gama (sendo que a caravela da armada portuguesa, a Bérrio, ainda era mais pequena). Atentemos às diferenças de tamanho. A São Gabriel teria um casco com cerca de 20 metros, uma boca com sete metros, e um pontal de uns quatro metros, da quilha ao convés.[237] Por contraste, os maiores navios da frota de Zheng He teriam até 75 metros, com postes do leme de mais de dez metros.[238] A Figura 12 ilustra as magnitudes comparadas.[239] As suas frotas teriam sido compostas por centenas de navios e muitos milhares de homens. No entanto, quando os portugueses chegaram à China, em inícios do século
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xvi,
os chineses já não sabiam construir estes navios, devido a mudanças políticas internas. As sete expedições de Zheng He, que ocorreram entre 1405 e 1433, resultaram de ambições imperiais e diplomáticas desprovidas de propósitos comerciais. Como tal acabaram por ser consideradas excessivamente caras e, por isso, foram canceladas.[240] Ou seja, deu-se na China um importante retrocesso tecnológico, o que só foi possível por se tratar de um Estado unificado. Foi o contrário do que viria a acontecer na Europa Ocidental, onde a competição entre estados garantiu um processo de evolução política, fiscal e tecnológica continuado que, a prazo, viria a beneficiar toda a região.[241] Note-se de resto, que foram os jesuítas europeus a introduzir na China as novidades astronómicas de Galileu Galilei. As descobertas que Galileu fez com o telescópio em 1609-1611 tornaram-se pouco depois conhecidas em Portugal, por via da Aula da Esfera do Colégio jesuíta de Santo Antão em Lisboa, sendo depois, a partir daí divulgadas para vários pontos do globo, incluindo a China.[242] Os jesuítas foram também os reformadores do calendário chinês e fizeram a cartografia desse império. Tornando-se nos «cientistas do imperador», fizeram observações astronómicas precisas, com o jesuíta flamengo Ferdinand Verbiest (1623-1688) a construir um observatório astronómico em Pequim. Os jesuítas europeus faziam furor na Corte chinesa, onde tiveram um enorme impacto devido aos seus avançados conhecimentos de cosmografia e outras ciências matemáticas e naturais.[243] Tudo isto mostra como a ciência europeia era sem dúvida a mais avançada dessa época. Figura 12. Comparação entre o navio de Zheng He e a nau São Gabriel, da armada de Vasco da Gama durante a primeira viagem do caminho marítimo para a Índia (1497-1499).
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A expansão marítima insere-se num contexto de competição política entre estados europeus, e iria inaugurar uma nova era na História da Europa e do mundo. De Portugal resultaram contribuições importantes para os desenvolvimentos da cartografia e da História natural, bem como a emergência de cientistas de primeira linha, como foi o caso de Pedro Nunes, cosmógrafo-mor do Reino, que beneficiou do suporte de D. João III. Hoje sabemos que a expansão marítima tinha uma base científica sem a qual não pode ser compreendida. Mas também dependeu da colaboração entre cientistas e marinheiros, ou seja, pessoas das lides práticas, como Henrique Leitão e coautores têm mostrado nas últimas décadas.[244] Dessa interação nasceu uma nova mentalidade empírica que conduziria ao aparecimento da ciência moderna, baseada no método científico. Isto viria a ser crucial para o mundo em que vivemos hoje, na medida em que o crescimento económico moderno é apoiado no crescimento da produtividade, por sua vez causado pela mudança tecnológica. E esta é, em última análise, um produto dos avanços da ciência. Apesar disso, na literatura internacional em língua inglesa, as contribuições portuguesas, ou mais genericamente ibéricas, nem sempre são reconhecidas. O historiador económico Joel Mokyr, na sua obra sobre as origens da Revolução Científica e do Iluminismo, não só ignora por completo as contribuições portuguesas e espanholas, como afirma que os jesuítas eram uma força conservadora e contrária ao progresso científico, mostrando desconhecimento sobre a realidade concreta das instituições ibéricas, assim como das nossas contribuições imateriais para o desenvolvimento científico e tecnológico da Europa Ocidental.[245] A expansão foi, portanto, um fenómeno extraordinário, tendo levado a uma influência desproporcional de uns poucos milhões de pessoas que viveram há centenas de anos no mundo em que agora vivemos. Portugal é hoje um país irrelevante a nível mundial. Basta pensar que toda a nossa economia e população são mais pequenas do que muitas cidades chinesas de média dimensão, entre as centenas que existem nesse país. No tempo em que vivemos, que também se caracteriza pelo enorme crescimento demográfico em África, por exemplo, não é de espantar que, a nível internacional, Portugal pareça uma parte irrelevante do mundo. E, na verdade, é. Mas a sombra da nossa história tem um peso gigantesco, e fascinante, devido aos efeitos que teve, quer nas regiões que influenciou diretamente, quer em toda a Europa Ocidental – e, a prazo, no mundo.
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De qualquer modo, o que é mais central para o tema deste livro é o facto de a expansão marítima ter tido um peso determinante no imaginário futuro do país. Para resumir, não podemos dizer que o império tenha tido, alguma vez, um efeito positivo claro e acentuado para o desenvolvimento do país, apesar de ser inegável que teve importância fiscal em certas épocas históricas. Pelo contrário, como irei explicar num dos capítulos seguintes, até teve, em certo momento, um efeito negativo, com implicações que foram muito relevantes a prazo. Porém, ao mesmo tempo, não deixa de ser verdade que a expansão marítima teve uma influência importante no aparecimento da Revolução Científica e do Iluminismo na Europa, tendo tido também um efeito positivo para o desenvolvimento económico de outros países da Europa Ocidental. A longo prazo – ainda que com um intervalo considerável e, plenamente, apenas no século xx – Portugal acabaria por beneficiar também desses desenvolvimentos para os quais tinha contribuído em séculos anteriores. [168] Note-se, no entanto, que a personagem do Velho do Restelo era defensora da corrente que advogava um investimento na guerra em Marrocos. Logo, a sua crítica à expansão e ao império em zonas mais longínquas está inserida nesse contexto. [169] Não tenho inclinação para participar nos debates sobre se o termo «Descobrimentos» deve ou não ser usado. É evidente que o termo é eurocêntrico; mas foram os europeus, de facto, a fazer as descobertas a que o termo se refere. E os próprios contemporâneos usavam variações desta expressão, em geral sem grande conteúdo normativo. Logo, o termo não me incomoda, mas ainda assim parece ser redutor, até por apenas fazer sentido para os séculos xv e xvi. As expressões «expansão» e «império» englobam melhor o fenómeno em questão nas suas várias dimensões. [170] Ainda que existam zonas da Ásia onde se falam dialetos com base na língua portuguesa, mas sem grande expressão numérica. Também existem palavras de origem portuguesa em línguas como o japonês. [171] De resto, convém lembrar que a escravatura era genericamente considerada uma instituição natural nesta época, sendo praticada por várias sociedades que não a europeia – tendo sido, é preciso não esquecer, os europeus a aboli-la no século xix. Aliás, até esse século, era frequente cativos serem levados à força para o Norte de África através de ataques à costa da Península Ibérica, dando origem à expressão «anda mouro na costa». Cabia depois à Ordem dos Trinitários o pagamento de resgates. Sobre estas e outras matérias relacionadas, veja-se, por exemplo, MARQUES (2020). [172] Relativamente ao império em África entre finais do século mais direi nos caps. 7, 8, e 9.
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xix
e durante o século
xx,
[173] A diferença prende-se com o facto do primeiro conceito ser um stock, enquanto o segundo é um fluxo anual. No entanto, é habitual estarem fortemente correlacionados, sendo em geral as sociedades com maiores rendimentos anuais também as mais ricas (como também acontece com as famílias). [174] POMERANZ (2009). [175] BROADBERRY (2021). [176] Como é evidente, nem sempre é claro se os cronistas tinham motivações políticas para o fazer. Veja-se BOXER (2004). [177] Sobre o tamanho comparado das economias e população destas regiões, veja-se PALMA e SILVA (2023). [178] PARKER (1996). [179] FRIEDRICH (2022), p. 440. [180] BRAGA (2014b); GUIMARÃES (2014), pp. 55, 76. [181] Algo parecido passava-se, por exemplo, com os espanhóis em Manila, nas Filipinas. Aliás, os espanhóis, em êxtase depois da sua «conquista» da América Central e do Sul, ao início até pensaram em conquistar a China, um plano que abandonaram rapidamente quando perceberam a escala do que estava em causa em termos militares – também lhes faltando a ajuda dos germes que tinham sido essenciais para dizimar as populações nativas no caso americano. Veja-se DIAMOND (1998). [182] PALMA e SILVA (2023). [183] Existiam algumas exceções, e a minha discussão aqui é algo simplificada. Para os detalhes, veja-se THOMAZ (2022), p. 143. [184] FINDLAY e O’ROURKE (2009), p. 151. [185] FINDLAY e O’ROURKE (2009), p. 151. [186] Alguns comerciantes privados portugueses começaram mesmo a participar clandestinamente no comércio do Mar Vermelho. THOMAZ (2022), p. 142. [187] SUBRAHMANYAM (2012), p. 154. [188] FINDLAY e O’ROURKE (2009), pp. 185-186. [189] Nas fontes dessa época, estes últimos aparecem frequentemente descritos como Olandeses, ainda que isso seja pouco rigoroso, pois a Holanda é apenas uma das várias províncias dos Países Baixos. Seria por isso mais correto denominá-los «neerlandeses». No entanto, os próprios habitantes dos Países Baixos nos nossos dias referem-se a si próprios por «holandeses», apesar de estarem bem conscientes da falta de rigor. Logo, neste livro, eu também faço por vezes essa identificação, por ser mais natural na língua portuguesa.
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[190] SUBRAHMANYAM (2012), p. 178. [191] SUBRAHMANYAM (2012), p. 172. [192] BOXER (1991), pp. 33-35. [193] As ilhas tinham papéis diferentes. Apesar deles terem variado no tempo, podemos simplificar (bastante) dizendo que São Tomé e Príncipe era um centro de produção açucareira (e, mais tarde, a partir de finais do século xviii, de café e cacau), ao passo que Cabo Verde especializava-se na manutenção e abastecimento das armadas a caminho da Índia (na medida em que a viagem demorava vários meses), para além do tráfico de escravos. [194] RAMOS et al. (2009), p. 564. [195] COIMBRA (1926), p. 38. [196] Que assim foi também pensava um observador estrangeiro que visitou o país na década de 70 do século xviii, tendo escrito que «Os proveitos do comércio estrangeiro e das vastas regiões [do império](…) nunca chegaram até ao camponês português, a não ser para dar aos habitantes das duas principais cidades os meios de lhes pagar um pouco melhor as provisões que levam ao mercado; o esplendor das conquistas ultramarinas nunca melhorou a sua situação»; MÓNICA (2020), p. 56. [197] GODINHO (2018). [198] Uma alternativa que também faria sentido seria relativamente ao tamanho da economia, medida nomeadamente pelo PIB nominal, quando disponível. [199] THOMAZ (2022), p. 58. Já no caso do comércio intercontinental tanto a oriente como a ocidente, existiam perdas ocasionais de navios, devido a naufrágios por causas naturais, como tempestades e monções, e a ataques de piratas. Estas perdas causavam certamente danos à economia. Não existe um estudo sistemático sobre o caso português, mas sobre o caso de Espanha, que está estudado quantitativamente, cf. BRZEZINSKI et al. (2024). [200] COSTA et al. (2015); PALMA (2016b). [201] Por volta da primeira metade do século xvi, por exemplo, apenas alguns barcos iriam para a Índia, por comparação com bastantes mais – largas dezenas – com destino à Flandres, vindo muitos outros de outros destinos europeus para vender produtos. [202] FRANÇA (2009), p. 138. [203] BRAUN e HOGENBERG (1572). [204] PALMA e SILVA (2023). Os portugueses também estiveram envolvidos no comércio intra-asiático, em certas épocas transportando, por exemplo, prata do Japão para a China. Mas também este comércio nunca teve um peso muito grande em termos agregados. [205] A feitoria de Antuérpia (também conhecida como Feitoria da Flandres, tendo-se seguido a uma anterior existente em Bruges até 1499), que administrava a comercialização e distribuição na Europa dos produtos que os portugueses traziam da Ásia, enfrentou forte
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concorrência, teve grandes riscos associados à sua atividade, e acumulou dívidas. Começou a ter dificuldades claras desde 1526, e foi fechada por D. João III em 1549. Nos anos anteriores, o número de navios que anualmente ligavam Lisboa a Antuérpia não ultrapassou, a não ser em anos excecionais, as duas dúzias. Veja-se ALMEIDA (1993), pp. 29, 33-36, 39. [206] MÓNICA (2020), p. 41. [207] Sendo esta uma situação que se alteraria no século xix, quando a população de Lisboa caiu relativamente a outras cidades europeias, como a outras do país, nomeadamente ao Porto. Veja-se BAIROCH et al. (1988). [208] Uso aqui o termo «independência nacional» de uma forma aproximada, mas que me parece válida. Durante a União Dinástica (1580-1640), Portugal tinha os mesmos reis da Espanha, mas manteve-se como um reino à parte, com uma administração e império que em princípio se mantiveram como entidades separadas. No entanto, durante esta época o país não teve política externa própria, por exemplo, e esteve sujeito a múltiplas decisões políticas, por exemplo de natureza fiscal, que eram tomadas pelos Habsburgos em Madrid. E como explico noutra parte deste livro, existiram durante esta época consequências institucionais negativas da união, enquanto durou. Sobre a expressão «vaca de leite» utilizada por D. João IV relativamente ao Brasil, ver BOXER (1952), p. 177. [209] Trata-se de uma estimativa, feita em 1525, para o ano seguinte. Os dados são estimativas da receita, mas apresentam um bom indicador da capacidade fiscal, já que o estado da fazenda não indica os números arbitrariamente, mas antes se baseia nos anos anteriores e nos contratos de arrendamento já estabelecidos. Este documento faz parte do «Núcleo Antigo» do ANTT, que contém documentos que escaparam ao Terramoto de 1755 por se encontrarem no Castelo de São Jorge, no chamado Armário da Casa do Coroa. Documentos equivalentes perderam-se no incêndio que destruiu a Casa dos Contos em 1755. [210] COSTA et al. (2022). [211] HESPANHA (1994). [212] Esta Tabela é baseada nos cálculos e fontes apresentados em COSTA et al. (2022). [213] BRANDT et al. (2014); KARAMAN e PAMUK (2013); KARAMAN e PAMUK (2010). [214] ESTEVES (2004). [215] TILLY (1992), p 62. [216] Voltarei a abordar esta matéria no cap. 6. [217] O império tinha tido peso relevante para a Coroa nalgumas décadas do século COSTA et al. (2022).
xvi;
[218] E voltaria a ser assim nos séculos seguintes, como mostrarei nos capítulos seguintes. [219] ACEMOGLU et al. (2005); CAMERON e NEAL (2016).
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[220] FINDLAY e O’ROURKE (2009), p. 184. [221] Os próprios holandeses seriam depois largamente vencidos pelos ingleses na Ásia no século seguinte. SUBRAHMANYAM (2012), pp. 223-225. [222] Estas conclusões apoiam-se numa metodologia semelhante à que descrevi no capítulo anterior para Portugal. LAMBAIS e PALMA (2023). [223] CARVALHAL e PALMA (2023). Trabalho em curso com Hélder Carvalhal, no contexto do meu projeto da ESRC, «Measuring the Great Divergence: a study of global standards of living, 1500-1950». [224] Dei alguns detalhes e números sobre esta matéria em PALMA (2016a). [225] A atitude dos jesuítas não era a mesma em relação à escravatura negra e aos nativos do continente americano. Em Angola, por exemplo, os jesuítas tinham em certas épocas quase exclusivamente mão-de-obra escrava a trabalhar nas suas propriedades fundiárias à volta de Luanda. [226] A hostilidade das elites locais à Companhia de Jesus tinha a ver com a oposição desta ao interesse dos colonos em escravizar os nativos, e, mais tarde, com questões relativas às fronteiras no contexto do Tratado de Madrid de 1750 (também conhecido com Tratado dos Limites), e com a Companhia do Grão-Pará e Maranhão. Para além disso existia a preocupação dos nativos formarem um exército. Veja-se ROMEIRAS (2019b), cap. 2; FRANCO (2006). [227] BOXER (1978). Também vale a pena consultar THORNTON (2020). [228] MILLER (1997). [229] PALMA et al. (2021). [230] No início de 2022, tornou-se viral nas redes sociais uma entrevista de Carlos Fino à Folha de São Paulo, na qual o antigo jornalista sublinhava que «o Brasil tem vergonha das suas origens portuguesas». Veja-se FINO (2021). [231] DE ZWART et al. (2022). [232] Para um sumário da literatura sobre o caso Espanhol, veja-se CHAROTTI et al. (2022). [233] ELLIOTT (2006), p. 139. [234] Sobre estas matérias, veja-se ABAD e PALMA (2021). [235] Era sabido que a terra era redonda, mas o conceito de gravidade era desconhecido. [236] ALMEIDA (2018); LEITÃO e SÁNCHEZ (2017b); LEITÃO e SÁNCHEZ (2017a). Também reconheci este canal de influência, ainda que de passagem, em PALMA (2016b), p. 145. [237] BARATA (1968). [238] CHURCH (2010), pp. 38, 40.
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[239] Nesta imagem as embarcações estão desenhadas de forma proporcional, ignorando a perspectiva. Isto é, as embarcações estão aparentemente a níveis diferentes, para uma leitura independente da estrutura das mesmas e respetivas proporções, sendo esta uma representação pictográfica e não figurativa. Na imagem, assumiu-se 70 metros de comprimento para o navio da frota de Zheng He, consistente com a informação disponível em CHURCH (2010), pp. 38, 40. Sobre a frota de Zheng He, consultar ainda DREYER (2006). [240] VON GLAHN (2016), p. 288. [241] SCHEIDEL (2019). [242] LEITÃO (2010). [243] HSIA (2009). [244] Ver, por exemplo, LEITÃO e SÁNCHEZ (2017b); LEITÃO e SÁNCHEZ (2017a). Também vale a pena consultar ALMEIDA (2018). [245] MOKYR (2016), pp. 169, 220-221.
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5. Cultura e religião Os políticos têm todos a mesma política. Eça de Queirós, As Farpas Terá sido a cultura portuguesa um impedimento ao desenvolvimento do país? Este argumento é apresentado com muita frequência. Tanto dentro como fora do país, é comum ouvirmos dizer que a nossa cultura, ou religião, foram fontes do atraso. Assim pensava por exemplo Antero de Quental no seu discurso sobre as Causas da Decadência, como vimos na introdução. Neste capítulo vou argumentar que esta tese não é verdadeira ou que, pelo menos, apenas poderá ser considerada superficialmente verdadeira – mais aparência do que realidade.[246] Como é evidente, compreender e explicar a cultura portuguesa é um tema muito complexo e não tenho essa ambição aqui. Restrinjo-me, por isso, às dimensões da cultura mais diretamente relevantes para o tema deste livro: as causas do atraso. Comecemos com o elefante na sala: a religião católica. Na verdade, não existem dados credíveis que permitam apoiar a tese de Max Weber e de muitos dos seus discípulos, segundo a qual a Reforma protestante teria gerado uma cultura particularmente propícia ao crescimento económico.[247] Esta tese tem variantes e muitos aderentes na academia moderna, especialmente no mundo anglo-saxónico.[248] Mas é sempre aquilo a que se pode chamar «História escrita pelos vencedores».[249] Como expliquei no Capítulo 1, ao contrário do que é afirmado por vezes na literatura internacional, na realidade não existiam grandes diferenças culturais ao nível da organização familiar entre, por um lado, Portugal ou Espanha, e por outro, os demais países da Europa Ocidental, incluindo os que se tornaram protestantes.[250] Não apareceram mudanças a nível familiar, no comportamento destes últimos, na sequência das Reformas
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protestantes. E, como expliquei no Capítulo 2, também não existiram diferenças assinaláveis a nível da qualidade das instituições políticas, pelo menos nas dimensões relevantes para o crescimento económico, como é o caso da proteção da propriedade privada e da criação de capacidade fiscal, que pudessem levar ao investimento em bens públicos. Logo, não é de espantar que, até ao século xviii, também não existissem diferenças notórias de crescimento económico, ou de níveis de literacia e numeracia, entre Portugal e os países protestantes.[251] A própria Inglaterra não iniciou um processo de crescimento sustentado até à segunda metade do século xvii.[252] No entanto, muita da investigação quantitativa e bases de dados internacionais sobre estas matérias ignoram ou distorcem a realidade portuguesa, afirmando ou dando a entender que não existiam livros impressos em Portugal antes do século xx – o que apenas pode ser descrito como um enorme disparate.[253] Na realidade, houve livros impressos em Portugal continuamente ao longo dos séculos desde o final do xv. Sobre a suposta superioridade cultural protestante, o caso da Alemanha é ilustrativo. O sacro-império romano-germânico tinha sido composto historicamente por dezenas de estados, incluindo alguns que misturavam populações protestantes com católicas. O que a investigação recente mostra – baseada numa análise detalhada de dados a nível local para a região da Prússia, em finais do século xix (que incluía mistura de populações), é que, excluindo a minoria polaca, não havia diferenças entre católicos e protestantes nas dimensões que importam para o crescimento económico, como poupanças ou acumulação de capital humano. Não são verdadeiras as teses muitas vezes repetidas de que os protestantes tinham mais propensão para poupar, que obtinham rendimentos mais elevados, ou que apresentavam taxas de alfabetização mais altas por serem estimulados a lerem a Bíblia, com consequências positivas para a sua atividade comercial e para os mercados.[254] Também é notório que alguns dos países protestantes, embora não todos, apenas começaram a crescer de forma sistemática, pelo menos um século depois da Reforma. O primeiro país do mundo a ter uma Revolução Industrial e a entrar num processo de crescimento moderno foi a Inglaterra, mas este processo só começou mais de um século depois da morte de Henrique VIII.[255] E não deixa de ser relevante que, depois da Inglaterra, o país seguinte a ter uma Revolução Industrial tenha sido a Bélgica – um país católico e que, aliás, tinha estado sob o domínio dos
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Habsburgos espanhóis durante muito tempo. Outros países católicos se seguiram rapidamente, como foi o caso da França, aliás o primeiro país do mundo a apresentar uma transição demográfica, com o número de filhos por mulher a diminuir, em relação ao que acontecia historicamente e noutros locais, ainda em pleno século xviii, mas décadas antes de 1789. Deste modo, a França subiu os rendimentos médios por pessoa por uma via diferente da seguida pela industrialização inglesa, também durante o século xviii.[256] Agora que conhecemos a evolução do mundo nos séculos seguintes, também podemos afirmar que a enorme variedade de religiões não protestantes, nem sequer cristãs, presentes em vários países, não tem sido impedimento ao seu desenvolvimento. O que não falta são exemplos históricos, mesmo em regiões para além da Europa, como é o caso da Índia ou da China. E até, no caso da Europa, convém notar que a Irlanda, católica, é hoje um dos países mais ricos. Max Weber não conhecia o futuro, mas tendo em conta o que sabemos hoje não há desculpas para insistir na tese da superioridade do protestantismo como fonte de desenvolvimento económico.[257] Não há dúvida de que, pelo menos a partir de meados do século xix, Portugal era mais pobre e tinha níveis de analfabetismo superiores aos de outros países da Europa Ocidental. Mas isso não resultava, num sentido profundo, da cultura e religião do país. O nível de educação das populações resulta de investimentos familiares e de escolhas políticas. E tudo isto é condicional – ou seja, é afetado por outros fatores, nomeadamente os económicos, políticos e institucionais.[258] Vale a pena, por isso, refletir com algum detalhe, em particular, sobre o contexto político da cultura portuguesa. A cultura e religião não explicam o atraso português O essencial para desmontar a ideia segundo a qual a cultura ou a religião constituem entraves fundamentais ao desenvolvimento é compreender que esses fatores não são imutáveis. Na verdade, dependem de interpretações que mudam ao longo do tempo e que, frequentemente, dependem também do contexto político. Ou seja, na maior parte dos casos são apenas mecanismos ou manifestações de um problema mais fundamental e não as verdadeiras causas profundas. Aliás, já tem acontecido que a «mesma» religião tenha diferentes interpretações em diferentes sociedades ou períodos temporais, com importantes 105
consequências distintas ao longo do tempo. É conhecido que o mundo islâmico teve um florescimento importante durante boa parte da «Idade Média» – um conceito temporal eurocêntrico –, mas que entrou depois num processo de declínio científico e económico. E esse declínio do mundo islâmico aconteceu por motivos que, embora fossem superficialmente religiosos, na verdade tiveram causas de natureza política.[259] A importância do desenvolvimento científico atingido por estes povos para o progresso mundial encontra-se bem exemplificada na forma como importantes noções matemáticas como a álgebra (palavra de origem árabe na nossa língua, como tantas outras) chegaram ao Ocidente por essa via.[260] A herança islâmica beneficiou particularmente a Espanha e Portugal durante o período da expansão marítima. Partindo deste prisma, podemos compreender a Inquisição de um novo ponto de vista. Já é conhecido há muito tempo que muitos dos processos da Inquisição tinham motivações mais profundas de natureza política ou comercial, e não tanto verdadeiramente religiosa – ainda que superficialmente, as acusações a serem feitas fossem de natureza religiosa.[261] Além disso, uma análise detalhada da documentação mostra que a Inquisição estava principalmente preocupada em reprimir questões relativas a costumes – incluindo práticas sexuais como sodomia e bigamia –, crenças e credos, e não tanto com a censura de questões de natureza científica, educativa, ou tecnológica. Dificilmente pode, por isto, o atraso científico do país dever-se principalmente à presença da Inquisição.[262] A ênfase excessiva no seu papel – como foi destacado por Alexandre Herculano, Antero de Quental, Oliveira Martins, entre outros intelectuais dos séculos xix e xx – ignora vários aspetos importantes. Primeiro, o facto de, mesmo dentro dos países católicos, terem sempre existido várias correntes religiosas, muitas vezes em conflito umas com as outras. Entre a Companhia de Jesus e a Ordem dos Dominicanos havia todo um mundo de diferenças, incluindo no que toca a atitudes distintas relativamente a questões científicas. Segundo, de um ponto de vista comparado, é errado pensar que não existiam «Inquisições» – ou seja, perseguições religiosas, sistemáticas e organizadas, independentemente da sua motivação – em toda a Europa protestante. Existiam, como é evidente, mas eram simplesmente dirigidas contra alvos diferentes. E se, no mundo católico, as obras proibidas eram censuradas, no mundo protestante eram destruídas.[263]
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Um mito muito difundido é o de que Portugal seria um país particularmente fanático ou intolerante. É referida, entre outros exemplos, a expulsão dos judeus em finais do século xv. É verdade que, nessa altura, os judeus foram convertidos à força, ou convidados a sair do país. Isso aconteceu na sequência de um processo semelhante que tinha tido lugar em 1492 em Espanha, promovido pelos Reis Católicos, Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão. Portugal acabou, alguns anos depois, por ceder à pressão do país vizinho para fazer o mesmo. Muitos judeus permaneceram em Portugal, contudo, ficando conhecidos como cristãos-novos. Além disso, a sua discriminação já era anterior. No Auto da Barca do Inferno, o dramaturgo Gil Vicente condenou ao Inferno quase todas as personagens representativas da sua época, duas décadas antes da chegada da Inquisição. Um dos condenados foi o judeu, acompanhado do seu bode, condenado por não seguir os preceitos religiosos da fé cristã, e detestado por todos, incluindo o próprio Diabo. Poder-se-ia, pois, dizer que existia um particular racismo ou fervor religioso em Portugal? Talvez não. Convém manter presente que a expulsão dos judeus já tinha acontecido noutras partes da Europa Ocidental em séculos anteriores. Em Inglaterra os judeus tinham sido expulsos em 1290, na sequência de inúmeras perseguições anteriores. Apenas foram aceites de volta ao país por Oliver Cromwell, em meados do século xvii, na sequência da Guerra Civil, em troca de um generoso pagamento monetário. Ficaram sujeitos a forte discriminação que persistiu de forma claramente visível até pelo menos finais do século xix. Já em França, Filipe IV expulsou os judeus em 1306, de resto na sequência de anteriores tentativas desde 1182. Ao contrário do que veio a acontecer em Portugal, quase dois séculos depois, o anúncio da expulsão foi mantido secreto e a propriedade privada dos judeus foi confiscada pelo monarca francês. Nessa ocasião, foi-lhes apenas permitido deixarem a França com as roupas que tinham no corpo e com pequenas somas monetárias. Depois da morte do rei, o seu filho fez uma tentativa de reversão desta política em 1315, mas isso não durou muito, já que em 1322 os judeus foram mais uma vez expulsos. Este padrão de expulsão e retorno continuou durante o século xiv até à sua expulsão definitiva em 1394. Em resumo, em inícios do século xv, Portugal e Espanha eram, em termos comparados, os países mais tolerantes da Europa Ocidental, e a maior diversidade nestas duas sociedades acontecia não apenas devido à
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presença dos judeus, mas também dos mouriscos, os descendentes dos muçulmanos que ficaram depois da Reconquista.[264] Como é evidente, a perseguição aos cristãos-novos (e antes aos judeus propriamente ditos), prejudicou Portugal. Basta pensar que muitos eram cientistas e empresários, com conhecimentos relevantes para o bom funcionamento da economia. Mas o facto de estas perseguições também terem existido noutras partes da Europa, incluindo na própria Inglaterra, até terem sido travadas por forças de natureza política, implica que não pode ter sido este o fator fundamental que justifica o nosso atraso. Por contraste com o caso inglês, não deixa de ser relevante que a Inquisição portuguesa fosse um tribunal – necessitando, por isso, de provas para determinar as condenações, enquanto muitas pessoas eram ilibadas. O facto de as Inquisições portuguesa e espanhola serem tribunais implica que seguiam um princípio de justiça ou equidade processual – ainda que conforme aos princípios e costumes desse período, obviamente. Apenas uma percentagem pequena dos acusados era condenada à pena capital. Por contraste, a maior parte das perseguições e execuções em Inglaterra foram ordenadas diretamente pela Coroa – quando não resultavam de fúria popular descontrolada. Ou seja, a divisão de poderes entre o mundo secular e o religioso, que tinha tido um papel tão único, e certamente importante para a evolução institucional da Europa Ocidental, deixou de estar presente em Inglaterra a partir do momento em que o papel do Papa foi substituído pelo poder religioso dado à Coroa inglesa, que passou a controlar diretamente a Igreja anglicana a partir do século xvi. Olhando para trás com os olhos do presente – algo que em geral deve ser evitado – todas as sociedades desta época eram intolerantes. Mas não deixa de ser significativo que a perseguição aos judeus tenha aumentado nas zonas da Alemanha que se tornaram protestantes.[265] E tal como na Inglaterra, onde os católicos (e os judeus) foram perseguidos sistematicamente até a tolerância começar a aumentar, principalmente a partir da segunda metade do século xvii. A este propósito, refira-se que apenas durante o reinado da rainha Isabel I, foram condenados à morte mais de 600 católicos – um número maior do que o de mortos pela Inquisição portuguesa entre 1536 e 1605.[266] No total, em Portugal foram mortas menos de 2000 pessoas devido às ações da Inquisição entre o século xvi e o fim efetivo dessa instituição na segunda metade século [267] xviii, quando aconteceu o último auto de fé. Esse número de
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assassinados pela Inquisição portuguesa tem portanto uma magnitude bastante inferior às execuções sumárias ordenadas pelo Tribunal Revolucionário de Paris de 1793-1794, relativamente ao qual uma lista reuniu 2793 certidões de óbito.[268] Só no período de Robespierre (cerca de um ano) foram mortas 2663 pessoas – em nome da liberdade, igualdade, e fraternidade.[269] Entre 27 Maio e 27 Julho de 1794 – dois meses de Tribunal Revolucionário – foram executadas 1582 pessoas, ou seja, mais do que a Inquisição portuguesa matou ao longo de cerca de três séculos de existência.[270] Estas comparações, por serem em números absolutos, não per capita, até «favorecem» a França, já que Paris tinha uma população bastante inferior a Portugal.[271] Resumindo, é errada a ideia de que os países católicos ou ibéricos seriam especialmente intolerantes, apesar de ser verdade que os Países Baixos eram genericamente mais tolerantes em termos religiosos que outras regiões da Europa (menos por escolha do que por necessidade). Embora também discriminassem, pelo menos mantinham uma coexistência em geral mais pacífica do que noutras regiões. Mas isto também era verdade relativamente a áreas do mundo islâmico. Aliás, muitos judeus portugueses preferiram não ir para os Países Baixos, mas sim para o Levante (que nem por isso se tornou uma economia dinâmica). A República das Províncias Unidas era, de resto, das regiões da Europa que mais perseguia e punia a homossexualidade. Depois de perseguições esporádicas que já vinham do século anterior, no início da década de 30 do século xviii foi decidido pelos tribunais que «esse vício tinha de ser exterminado» (sic). Seguiram-se dezenas de execuções, que incluíam rapazes jovens, tendo também fugido do país centenas de pessoas para não serem garrotadas. As perseguições aos acusados de sodomia continuaram até 1810, tendo sido cerca de duas centenas de homens mortos e outros tantos castigados com longos períodos na cela solitária. Foi apenas com a introdução do Código Napoleónico em 1811 que as relações entre pessoas do mesmo sexo foram descriminalizadas, terminando assim as perseguições e execuções.[272] Em Inglaterra é amplamente conhecido o caso de Alan Turing, condenado à castração química (como alternativa à prisão), pelo crime de ser homossexual em pleno século xx (1952), mas foi apenas um entre tantos outros.[273] Como vimos no Capítulo 2, a Lenda Negra segundo a qual as instituições da Península Ibérica tinham sido sempre particularmente despóticas e intolerantes, especialmente por comparação com as do norte
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da Europa, não passa de propaganda: «História escrita pelos vencedores». Terá um fundo de verdade apenas para o século xviii.[274] Mesmo nesse século, a ideia de que o povo português fosse intrinsecamente fanático em termos religiosos não tem cabimento. Como notou um alemão que visitou o país em finais de Setecentos «As cerimónias religiosas constituem o único divertimento dos portugueses; anda-se atrás das procissões com o mesmo prazer com que se iria à Ópera», notando também que as igrejas eram o centro da vida social, onde se namorava.[275] Dito isto, a Inquisição teve certamente efeitos negativos para Espanha e Portugal, mas, em termos comparados, só podem ter sido particularmente perniciosos num período relativamente tardio. É de resto claro que, com a exceção do caso de Galileu Galilei, onde o que estava em causa era o modelo heliocêntrico de Copérnico em detrimento do modelo geo-heliocêntrico de Tycho Brahe, não existem muitos casos de censura de questões científicas, por parte da Inquisição, em todo o mundo católico. A Inquisição estava normalmente mais preocupada com questões de defesa da fé, pureza de sangue, e ofensas à moral, do que com censurar questões científicas.[276] A Inquisição regulava, mais do que censurava, disciplinas hoje abandonadas, como a astrologia, a alquimia, e a magia natural. Mas tudo é mais complexo do que parece, e é por isso necessário fazemos um esforço para contextualizarmos o passado. Relativamente à astrologia, por exemplo, havia uma parte que era permitida: a astrologia natural. Outra era proibida: a astrologia judiciária. Era permitido fazer previsões sobre navegação, medicina e agricultura. Mas não era permitido prever a morte de reis, papas, ou bispos, assim como prever se um casamento ia ou não correr bem. Existe até quem sustente que todas essas regulações ajudaram ao processo gradual de separação entre as ciências e as pseudociências.[277] E, como já mencionei, a Inquisição nos países católicos regulava e censurava as obras que lhe desagradavam, enquanto entre os protestantes, elas eram tradicionalmente queimadas.[278] Os principais pontos de preocupação da Inquisição, especialmente numa primeira fase, residiam na difusão das novas heresias protestantes, e na ameaça do judaísmo e do islamismo. No caso ibérico, a questão da pureza de sangue existia porque considerava-se que os cristãos-novos podiam judaizar, e como tal, influenciar outros. Não era uma questão de preconceito racial, como no eugenismo ou no nacional-socialismo.
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Já nos impérios, não há suporte empírico a favor da ideia de terem sido os ibéricos particularmente violentos em termos comparados. É verdade que a população nativa nos territórios do império espanhol sofreu uma enorme queda depois de 1492. Contudo, isso foi largamente involuntário, uma vez que resultou em grande medida da sua falta de resistência às doenças europeias.[279] Apesar disso, gerações de intelectuais, não só no estrangeiro mas também em Portugal, como Antero de Quental, insistiram na suposta excecional violência dos ibéricos, motivada por motivos religiosos.[280] Na realidade, essa tese não tem cabimento: o que caracteriza as atrocidades perpetuadas por ingleses ou holandeses nas populações nativas dos territórios que ocuparam é até a falta de um debate intelectual ou autocrítica associada à violência, ao contrário do que aconteceu no caso espanhol com figuras como Bartolomeu de las Casas – e, podemos acrescentar, no caso português, com António Vieira. Mas logo desde o século xvi, as potências protestantes não deixaram por isso de utilizar esses escritos como propaganda.[281] A conjuntura internacional de séculos de conflito contra a Espanha implicou que a grande narrativa da Lenda Negra iria ter a sua apoteose durante o Iluminismo, no século xviii, quando a cultura hispânica adquiriu a reputação de ser naturalmente atrasada, supersticiosa e preguiçosa.[282] A Lenda Negra iria depois sobreviver na era pós-colonial. Na realidade, os efeitos negativos associados à religião católica não ocorreram por questões culturais. Ou seja, não tiveram uma raiz verdadeiramente religiosa. Pelo contrário, a natureza dos regimes políticos é que importou.[283] Um exemplo simples, que irei desenvolver em maior detalhe no próximo capítulo, ilustra isto. Na segunda metade do século xviii, o Marquês de Pombal expulsou a Companhia de Jesus de Portugal – um evento que teria consequências fundamentais para o futuro do país. Pombal tinha motivações de ordem política para o fazer. E quem mandava na Inquisição à época? Era um dos seus irmãos, que o próprio Pombal tinha colocado nesse lugar depois de ter mandado prender o seu antecessor na sequência de desavenças políticas (Figura 13). Foi sob a jurisdição do irmão de Pombal que o padre jesuíta Gabriel Malagrida, que tinha criticado o governo e a Corte, foi condenado à morte por heresia, e que foi feita a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal – entre outras ações que beneficiavam os interesses do ministro de D. José.
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Ou seja, o que superficialmente pode parecer perseguição religiosa era, na verdade, uma instrumentalização dos recursos e prerrogativas da Inquisição pelo poder político. Figura 13. Paulo António de Carvalho e Mendonça (1702-1770), inquisidor-geral e irmão do Marquês de Pombal.
As origens políticas do atraso científico e educativo português Voltemos à questão do atraso científico. Aqui tomemos como exemplo o que aconteceu à Universidade de Évora: fechada devido à expulsão dos jesuítas, só voltaria a abrir em finais do século xx, mais de 200 anos depois. Enquanto funcionou, sob a tutela dos jesuítas, não ensinou apenas teologia. Desde o século xvii dedicava-se também à divulgação de noções científicas potencialmente úteis para o desenvolvimento do país. Por exemplo, a Figura 14 mostra um painel de azulejos utilizado para o ensino e construído na década de 40 do século [285] xviii. A figura ilustra o vácuo, fazendo parte de uma coleção mais vasta, que ainda hoje pode ser visitada, e que inclui o magnetismo e outras noções de Física. Com a expulsão da Companhia de Jesus, estas salas foram transformadas em estábulos. No capítulo seguinte também irei tratar da destruição da rede escolar dos jesuítas (a única relevante que existia) por Pombal, sem ter sido substituída por qualquer alternativa comparável em escala. Como deveria ser evidente para qualquer pessoa, estas tragédias não tiveram uma origem cultural ou religiosa. Tiveram uma causa política. 112
Figura 14. Exemplo de azulejos da Universidade de Évora, construídos na primeira metade do século xviii e utilizados para o ensino de disciplinas científicas. Esta sala pode ainda hoje ser visitada.
Outro exemplo que pode ser dado é o caso, trágico, de Bento de Moura Portugal (1702-66). Cientista português, apoiante precoce da ciência newtoniana em Portugal, e membro da Royal Society of London, Bento de Moura Portugal inventou uma máquina a vapor. Mas foi perseguido e preso por Pombal por motivos estritamente políticos.[286] Foi acusado de fazer críticas aos governantes, sendo contrário às políticas de Pombal e do rei D. José, bem como de ter conversas com o Padre Malagrida, manifestando simpatia por ele; e também de apoiar os Távora. O atentado ao rei, atribuído a estes últimos, ocorreu em 3 de setembro de 1758, e a 13 janeiro de 1759 chegou a Pombal uma denúncia anónima contra Bento de Moura Portugal, de que resultou a sua prisão no forte da Junqueira a 9 de julho de 1760, de onde não sairia com vida. Encerrado em condições terríveis, morreria a 27 de janeiro 1766. Rómulo de Carvalho chamou-lhe «uma das vítimas de Pombal».[287] Em resumo, pelo menos no século xviii, é evidente que os entraves ao desenvolvimento e à liberdade em Portugal eram principalmente de natureza política, e não tanto cultural ou religiosa.[288] As perseguições religiosas e a própria Inquisição, de resto já bastante diminuída nesse século, devem ser vistas em primeiro lugar como um instrumento do poder político. Como tal, o problema profundo do país não era – e nunca tinha sido em termos comparados – cultural ou religioso. Era, isso sim, um problema de natureza institucional.[289] Ou seja, as instituições políticas – sejam elas boas ou más (neste caso, más) – não resultam apenas do ambiente cultural e social, uma vez que também acabam, elas próprias, por condicionar o contexto aparentemente «cultural», e também por essa via os resultados económicos das sociedades.[290] Voltarei a este tema no próximo capítulo. Para compreendermos o atraso precisamos de olhar para além das explicações culturais
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Portugal pode aparentar ter problemas culturais que são um entrave ao seu desenvolvimento. É um país corporativista e com uma cultura não particularmente amiga do mérito, da iniciativa individual, ou dos mercados. Isto é verdade para o presente e poderá ter sido verdade para épocas do passado. Mas a cultura não é imutável, já que reage ao contexto, inclusivamente político, de cada era. Não existem provas que determinem que tenha sido apenas o ambiente político a reagir à cultura: a influência inversa também está presente, sendo, na minha ótica, até mais importante, pelo menos a longo prazo. Vejamos um exemplo relativo às últimas décadas. O escritor J. Rentes de Carvalho, autor do livro Com os Holandeses, atribui aos portugueses características culturais imutáveis que contrasta com a cultura holandesa. [291] O livro foi escrito nos anos 1970, com uma segunda edição em 1981, e o autor partia do princípio que, até devido a essas variações culturais supostamente fixas, a diferença entre os países ricos e pobres iria aumentando ao longo do tempo. Ora, se isso já era falso à época, mais assim se tornou desde então, não só relativamente ao nosso país, mas também numa perspetiva mundial. Basta ter em conta que o período decorrido desde essa segunda edição incluiu o processo de maior e mais rápida saída de pessoas do estado de pobreza em toda a História, nomeadamente com o arranque de desenvolvimento da China, a partir de final dos anos 1970, e da Índia, a partir dos anos 1990. O mesmo autor declarou numa entrevista que «somos um país de medricas, de gente subserviente», e que as portuguesas têm «condição de fêmea», sendo «inseguras, fracas, submissas e obedientes».[292] Talvez fosse assim quando o autor saiu do país há quase sete décadas. Talvez. Mas hoje certamente não é, o que mostra que a cultura não é imutável.[293] No que toca ao nosso presente, mais direi no Capítulo 10. Mas, tal como para o passado, irei argumentar que o aparente problema cultural é apenas um sintoma de problemas mais profundos. Neste capítulo, fui breve na minha abordagem a questões que são, sem dúvida, complexas e multicausais. Seria possível escrever muito mais sobre esta matéria, mas isso desviaria a atenção do essencial que aqui pretendo abordar. Por isso, tal como no resto do livro, procurei ser sucinto ao apresentar a minha tese: não foi a cultura portuguesa um impedimento fundamental ao desenvolvimento de Portugal, que, de resto, se viria a desenvolver com toda a pujança durante o século xx quando ainda era um país profundamente católico. Como tal, temos de olhar para outras causas,
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nomeadamente as políticas e institucionais. Tal como aconteceu com a cultura portuguesa, as instituições políticas também não foram estáticas. Pelo contrário, mudaram ao longo do tempo, como vimos no Capítulo 2. Logo, a sua evolução tem de ter uma explicação – e em particular, é importante compreendermos em detalhe as causas dos momentos em que existiu um retrocesso institucional. É isso que farei no capítulo seguinte. [246] Aproveito para notar que Causas da Decadência dos Povos Peninsulares inclui várias outras afirmações que se sabe hoje serem erros históricos, incluindo uma referência à suposta Escola de Sagres do Infante D. Henrique, de onde teria saído Bartolomeu Dias (p. 43); números completamente errados sobre a evolução da população portuguesa ao longo dos séculos, por forma a encaixarem na narrativa a ser apresentada, como vimos no Capítulo 1 (p. 83); e informações erradas sobre a balança de pagamentos (p. 84). Veja-se QUENTAL (2008). [247] WEBER (2002). A edição original é de 1905. Noto que não tenho qualquer declaração de interesses a fazer: dificilmente os meus argumentos neste capítulo podem ser vistos como uma defesa ideológica da religião católica, pois sou ateu. [248] Por exemplo, BECKER et al. (2016). [249] Variações dos meus argumentos aparecem em CHAROTTI et al. (2022); e também KEDROSKY e PALMA (2024). [250] PALMA e RODRIGUES (2023). [251] PALMA e REIS (2019); e, sobre a acumulação de capital humano (literacia e numeracia), ver STOLZ et al. (2013), pp. 562-564; e, ainda, LISBOA (2011), pp. 341-342. [252] BROADBERRY et al. (2015). Note-se ainda que a natureza de muitas das alterações constitucionais ocorridas no século xvii em Inglaterra não se relacionaram com a religião protestante, mas antes com outras questões de natureza política. Veja-se PINCUS (2009). [253] Deve ser reconhecido que as bases de dados a que me refiro são por vezes ambíguas relativamente à diferença entre, por um lado, não existirem dados disponíveis (porque o trabalho sobre Portugal não foi feito, logo não existem «observações») e, por outro lado, o número de livros ser efetivamente assumido como zero – mas o resultado prático para a investigação que resulta dessas bases de dados acaba por ser parecido. Outra fonte de ambiguidade é a diferença entre produção e consumo de livros, já que, por exemplo, os Países Baixos produziam muitos livros que depois eram exportados, o que inflaciona o seu valor dessa medida em estudos em que é utilizada como aproximação para o seu nível de capital humano, como já tem sido feito em artigos que não vale a pena aqui referir. Sobre as bases de dados a que me refiro, veja-se CLIO INFRA (s.d.), «Book titles per capita», e também CENTER FOR GLOBAL ECONOMIC HISTORY (s.d.). [254] No caso da Prússia, que foi estudado em detalhe, as únicas diferenças visíveis em finais do século xix eram entre alemães e polacos, e não entre alemães protestantes e católicos. Os polacos eram efetivamente mais pobres, e poupavam menos, mas por sofrerem discriminações
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sociais e políticas, sendo de resto o próprio Max Weber um nacionalista alemão enviesado contra os interesses das populações polacas. Veja-se KERSTING et al. (2020). [255] BROADBERRY et al. (2015). [256] BLANC (2023). [257] O argumento que faço neste capítulo é simplesmente um argumento comparado. Não considero os efeitos que as religiões tiveram para o desenvolvimento económico das sociedades ao longo do tempo, uma questão que é muito complexa e que não pretendo abordar aqui. Insisto é que não há suporte empírico a favor da superioridade do protestantismo em si (isto é, separado do seu contexto político) para o desenvolvimento económico. [258] Para dar um exemplo mais contemporâneo, note-se que a Europa do Leste começou a convergir apenas quando mudou as instituições políticas no final da Guerra Fria, nos anos 1990: antes disso, os elevados níveis de escolaridade e de capital humano não ajudavam a Europa de Leste a convergir. [259] CHANEY (2016); CHANEY (2019); KURAN (2012); PAMUK (2004). [260] Ainda que nalguns casos tenham a sua origem na Índia ou na China. [261] SARAIVA (1985). Obra originalmente publicada em 1969. [262] ROMEIRAS (2020b); e, também, ROMEIRAS (2020a). [263] MARCUS (2020). [264] A Espanha viria a expulsar os mouriscos em inícios do século xvii. [265] BECKER e Pascali (2019). [266] NUTTALL (1971); BETHENCOURT (1996), p. 275. [267] A Inquisição seria abolida só em 1821, já esvaziada de poder efetivo. Estas mortes resultaram, portanto, de uma percentagem reduzida do universo de mais de 45 mil processos sentenciados pela Inquisição portuguesa ao longo de cerca de três séculos. Veja-se BETHENCOURT (1996), p. 275; MARCOCCI e PAIVA (2016), p. 12. Note-se de passagem que as execuções em si não eram feitas pela Inquisição, mas sim pelas autoridades civis. [268] Esta foi elaborada pouco depois do Terror, e viria a ser publicada em 1911. PICARD (1911). [269] Até 27 de Julho. A morte de Robespierre, guilhotinado a 28 de julho, seria a n.º 2680. [270] Segundo outra fonte, os números são parecidos: nos 49 dias anteriores à queda de Robespierre, em finais de julho de 1794, foram mortas por motivações políticas 1376 pessoas (uma média de 28 por dia apenas em Paris). RÉVILLE (1911), p. 224. [271] Estes números de assassinados dizem respeito apenas a Paris, e existiam mais tribunais deste género noutras partes de França.
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[272] BLANNING, T. (2007), p. 81. [273] Turing suicidou-se dois anos depois, e apenas seria perdoado pelo seu «crime» a título póstumo em 2013. A decisão de perdoar formalmente todos os que tinham sido condenados por «gross indecency» apenas aconteceu ainda mais recentemente; veja-se SKY NEWS (2016). [274] ROMEIRAS (2020a, 2020b); MARCOCCI e PAIVA (2016). [275] MÓNICA (2020), p. 94. [276] Sobre o caso de Galileu Galilei, veja-se FINOCCHIARO (2019). Para uma visão mais geral da Inquisição, ainda que com um foco em Itália, ver MARCUS, H. (2020). [277] BALDINI (2001); BALDINI e LEEN (2009). [278] MARCUS (2020). [279] CROSBY (2003); DIAMOND (1998). [280] QUENTAL (2008), pp. 89-90. [281] ELLIOTT (2009), pp. 27-28, 167-168. [282] ELLIOTT (2006), p. 404. [283] Que assim era foi apontado várias vezes por visitantes estrangeiros. Veja-se MÓNICA (2020), p. 41. [284] Sobre este irmão de Sebastião Carvalho e Melo, ver ROMEIRAS (2019a), pp. 172-190. [285] VAZ (2000). [286] Bento de Moura Portugal já tinha tido um episódio com o Santo Ofício na década de 1740, estava Carvalho e Melo na Áustria, mas isto não esteve relacionado com a sua perseguição, condenação, prisão (e morte no calabouço) ordenadas a partir de 1759 por Pombal. Sobre a situação difícil dos estrangeirados em Portugal no século xviii, veja-se CARNEIRO et al. (2000). [287] CARVALHO (1993/94). [288] Outros exemplos sobre esta matéria encontram-se em FRANCO (2006), nomeadamente a partir da p. 573. [289] Sobre a direção de influência que corre das instituições políticas para a cultura, veja-se ACEMOGLU e ROBINSON (2021); e ACEMOGLU e ROBINSON (2022). [290] ACEMOGLU e ROBINSON (2021); ACEMOGLU e ROBINSON (2022). [291] CARVALHO (2011a). [292] CARVALHO (2016).
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[293] Portugal é na atualidade até um país em que há muita gente com opinião sobre quase tudo, mesmo estando mal informada, e absolutamente convencida de que tem razão. É evidente que este problema não é exclusivo de Portugal, sendo, pelo menos em parte, uma consequência da interação da democracia com a sociedade da informação e das redes sociais. Assim sendo, corrobora o meu ponto: a «cultura» portuguesa alterou-se, revelando não ser igual ao longo do tempo (o mesmo aconteceu com a muito menor religiosidade do país em relação ao que era há algumas décadas). Em suma, dificilmente Portugal pode ser considerado um país de medricas e subservientes na atualidade, como afirma Rentes de Carvalho.
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6. A maldição dourada [Em Inglaterra] como as fraudes são feitas por homens parlamentares (…) não pode o governo impedir facilmente tão estranhas desordens. Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal).[294] Há muito que alguns historiadores, outros estudiosos, e até políticos, tentam explicar as causas do atraso português. «País periférico, com demasiada gente no campo, e governado por uma elite tacanha» é uma possível paráfrase da tese desta geração de intelectuais sobre as causas do atraso. Um deles foi Vitorino Magalhães Godinho no livro Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa.[295] Um momento de reflexão é o suficiente para compreendermos que estas não podem ser as explicações profundas das causas do atraso. A qualidade das instituições políticas e as elites de diferentes regiões e épocas históricas influenciam o atraso, mas também são algo que tem de ser explicado em si: não é satisfatório tomarmos a qualidade das instituições como um dado adquirido. E o mesmo é verdade relativamente à estrutura organizacional da economia. Todos os países foram sociedades agrárias, ou seja, baseadas na produção e manutenção de culturas e terras de cultivo, antes de se desenvolverem. A Inglaterra também o era até à Revolução Industrial. Portugal também, até tudo mudar no século xx. Com o tempo tudo pode mudar, e a mudança estrutural, ou seja, a passagem das populações da agricultura e pescas para outros setores que historicamente tinham mais valor acrescentado (a indústria e os serviços) tem de ser explicada. Como tal, a estrutura organizacional da economia – «demasiada gente no campo» – que levaria à baixa produtividade do país não pode ser por si
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uma explicação. É antes e apenas um mecanismo através do qual causas mais profundas operam. Na linguagem dos economistas, é um fator endógeno. Finalmente, consideremos a localização geográfica do país: Portugal é periférico. Parece ser verdade, mas relativamente a quê? Na verdade, toda a Europa Ocidental foi periférica relativamente aos grandes centros culturais e económicos do mundo, pelo menos até finais da Idade Média. Esses correspondiam a regiões como o Império Bizantino na Antiguidade Tardia, o mundo islâmico na sua época de ouro entre os séculos viii e xiii, bem como a China por volta da mesma altura. Ou seja, toda a Europa Ocidental foi, até finais da Idade Média, uma parte marginal do mundo, de importância relativamente secundária. Mas essa condição «periférica» não foi destino: tudo viria a mudar, através de um processo radical no qual Portugal até teve um papel importante, como expliquei no Capítulo 4. Do mesmo modo, a periferia geográfica de Portugal não foi, em certas épocas históricas, impedimento ao desenvolvimento do país. Temos, portanto, de encontrar melhores explicações para o atraso histórico português. Nos capítulos anteriores, mostrei que, pelo menos até ao século xviii, o império não foi nem um motor nem um impedimento ao crescimento do país. Também argumentei que a cultura e religião portuguesas não foram as culpadas deste atraso – ou, pelo menos, não foram a sua causa profunda. Como apresentei na primeira parte do livro (capítulos 2 e 3), o atraso apareceu durante o século xviii, tento tido manifestações simultaneamente económicas e políticas, e aprofundou-se depois no xix. Neste capítulo, explico uma causa fundamental do atraso. Começo por aprofundar a discussão sobre a transformação do sistema político português entre a segunda metade do século xvii e o início do seguinte. Mostro que, a partir da Restauração de 1640, Portugal entrou num encorajador processo de melhorias políticas e institucionais que poderia ter tido melhor continuação. Depois irei argumentar que, durante a segunda metade do século xvii, se assistiu a mudanças económicas positivas e promissoras. Em finais desse século, existiam em Portugal várias regiões rurais industrializadas, com redes bem integradas de produção e distribuição, e Lisboa era uma capital mercantil, que estimulava a procura de bens e onde era feito o retalho. Além disso, existia o Brasil, que era uma fonte adicional de procura, assim como de oferta de matérias-primas. Por volta de 1680, Portugal até exportava têxteis para Castela. Caso a dinâmica dos finais do século xvii
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tivesse continuado, o país poderia ter-se tornado, no século seguinte, numa importante potência mercantil e exportadora. Além disso, as melhorias institucionais poder-se-iam ter também consolidado. Mas o que veio a acontecer não podia ter sido mais diferente. Tanto a nível político como mais diretamente económico, as dinâmicas auspiciosas dos finais do século xvii foram interrompidas pelo processo que designo de Maldição dos Recursos: a descoberta de enormes quantidades de ouro (e, com menos importância, de diamantes) no Brasil. Este acontecimento viria a ter implicações profundas para o país. Não há dúvida de que a entrada de ouro aumentava os rendimentos das pessoas, em particular no curto prazo. O ouro do Brasil enriqueceu, em primeiro lugar, os portugueses que o obtinham e que remetiam os fundos para Portugal, ou que, estando no Brasil, os usavam localmente, em particular comprando os bens que chegavam nas três frotas anuais vindas da metrópole. A maior parte do ouro já chegava a Portugal cunhado e as moedas eram entregues a mais de duas mil pessoas a quem pertenciam, além do rei.[296] Os rendimentos pessoais, agora aumentados, eram depois gastos tanto em bens domésticos, não transacionáveis, como em bens importados. O aumento da procura dos bens importados não tinha um efeito notório no seu preço, dado o tamanho pequeno do nosso país já à época, enquanto a procura adicional dos bens domésticos teve, de facto, um efeito significativo no aumento do preço dos mesmos. Por sua vez, esta mudança de preços relativos levou a uma retirada de recursos do setor transacionável da economia portuguesa. Foi o que aconteceu com a produção industrial, que retraiu. Isto foi uma resposta natural da economia às chegadas do ouro, agravada pelo aumento do poder de compra das pessoas. Tornou-se mais barato importar, e mais caro exportar, mas a diferença entre o valor das exportações e o das importações era paga em ouro. Como tal, a indústria portuguesa entrou em declínio. Além disso, o ouro teve um efeito político desastroso: os recursos adicionais disponíveis para a Coroa implicaram o desaparecimento de uma limitação importante ao poder executivo que até aí existia. Nomeadamente, como deixou de ser necessário ao rei negociar para obter recursos, as Cortes não foram convocadas durante todo o século xviii. Nas primeiras décadas do século ainda se falou dessa assembleia a propósito de matérias como os novos impostos que a Coroa ia impondo, pois existia a memória de que eram um órgão que controlava a ação do monarca. À medida que o século avançou, no
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entanto, o ambiente político que se instalou começou a encarar a reunião das Cortes como uma cedência por parte dos monarcas que não era aceitável, recusando a esse órgão qualquer papel de controle constitucional ou de limitação da vontade da Coroa.[297] Seria neste contexto que, na sequência do Terramoto de 1755, Pombal se iria tornar no político mais importante do país, com graves consequências a prazo. Portugal seguiu o caminho da Espanha, afastando-se de uma trajetória de desenvolvimento A História económica e política de Portugal, no século xviii, tem paralelos interessantes com a de Espanha nos séculos anteriores. Esta comparação é pertinente porque ajuda a compreender melhor o que se passou em ambos os países – e também nas partes da Europa que tiveram mais sucesso, como a Inglaterra e os Países Baixos.[298] Para Espanha e Portugal, a descoberta de enormes quantidades de metais preciosos, nos seus respetivos impérios no continente americano, teve profundas implicações negativas a prazo, tanto económicas como políticas. E as políticas, por sua vez, afetaram negativamente a economia. Como mostrei no Capítulo 2, por volta de 1500 a qualidade das instituições políticas portuguesas ou espanholas não era inferior às de Inglaterra. Pelo contrário, as Cortes de Castela e Portugal respondiam a interesses de municípios autónomos, em contraste com a Câmara dos Comuns inglesa, dominada pela Aristocracia rural dos condados. As consequências desta e de outras características podem observar-se nos resultados: em inícios do século xvi as Coroas ibéricas tinham de partilhar o seu poder com as Cortes, que exerciam limites ao poder executivo daquelas e respeitavam mais sistematicamente os direitos de propriedade do que acontecia em Inglaterra. Eram, até por isso, capazes de obter empréstimos em maturidades longas, pagas a taxas de juro mais baixas do que acontecia em Inglaterra. Tudo viria a mudar com a chegada de grandes quantidades de prata para a Espanha, a partir das primeiras décadas do século xvi e, mais tarde, de ouro do Brasil para Portugal, a partir de finais do século xvii. Estas chegadas de prata e ouro à Europa esmagaram as quantidades que aí haviam existido em 1500.[299] Em Espanha, a chegada de grandes quantidades de metais preciosos (prata, em especial), a partir das primeiras décadas do século xvi, sem que as instituições políticas estivessem preparadas para tal, havia 122
provocado a destruição de uma pujante indústria têxtil que existia em finais da Idade Média, nomeadamente na região de Burgos, mas já quase desaparecida um século depois. A súbita «riqueza» conduziu paradoxalmente à ruína do país. Existiu um aumento explosivo do consumo, tornando muito mais fácil importar produtos do estrangeiro e muito mais difícil exportar, o que contribuiu para o desaparecimento de importantes setores nacionais transacionáveis, tradicionalmente exportadores. Ao mesmo tempo, foi o setor rentista que se expandiu, associado a pessoas ligadas à Coroa e ao Clero que procuravam frequentemente obter títulos, prebendas, e privilégios, criando uma poderosa teia de interesses que perdurou durante séculos, mesmo depois de a prata acabar.[300] E, tal como iria acontecer mais tarde em Portugal, as Cortes deixaram de se reunir, permitindo que alastrasse a corrupção e a captura do Estado por interesses particulares, dada a ausência de instâncias de controlo e escrutínio. O momento em que ocorreram as chegadas de grandes quantidades de metais preciosos a Espanha, diferente relativamente a Portugal, levou a resultados que se tornaram visíveis anteriormente, tanto a nível económico como político. A Figura 15 mostra o PIB por pessoa, já corrigido dos diferentes preços ao longo do tempo e entre países, para Inglaterra, Espanha, e Portugal, entre 1500 e 1850.[301] Deve avisar-se o leitor de que existe alguma incerteza sobre os níveis exatos dos PIB em cada ano, mas não tanta sobre o mais importante neste gráfico: as tendências ao longo do tempo. Como podemos ver na figura, a Espanha teve uma dinâmica de declínio que se iniciou ainda no século xvi. Por contraste, a divergência definitiva de Portugal, relativamente a Inglaterra, só aconteceu mais tarde, já no século xviii, agravando-se em termos relativos no século seguinte. A economia portuguesa estagnou na segunda metade de Setecentos. Entrou em declínio acelerado nas últimas décadas desse século, revertendo ao nível próximo do que existia no início do século xvi e convergindo com o nível da Espanha, que, entretanto, tinha tido um crescimento negativo ou medíocre desde finais desse século. Figura 15. Rendimento por pessoa em Inglaterra, Espanha e Portugal, 1500-1850.
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É notável que o momento da decadência da economia portuguesa não se coaduna com muitas das supostas explicações que é tão frequente ouvirmos: de facto, revela-se como tendo surgido tarde demais relativamente ao Terramoto de 1755, enquanto é anterior, em décadas, às Invasões Francesas, que chegaram numa altura em que a economia já estava em claro declínio. A descida acentuada da economia é também anterior à abertura dos portos no Brasil ao comércio com potências estrangeiras (nomeadamente a Inglaterra) em 1808-1810, à perda do Brasil em 1822, bem como às revoluções e guerras civis da primeira metade do século xix.[302] Para compreendermos melhor o que se passou em Espanha nos séculos xvi e xvii, e em Portugal a seguir, realizemos um exercício contrafactual e imaginemos uma Venezuela sem petróleo.[303] Sem o ouro negro, é difícil conceber que o país tivesse hoje uma economia mais estagnada ou piores instituições políticas. É tentador atribuir o mau estado da Venezuela ao seu socialismo radical. As políticas económicas aí aplicadas são destruidoras de crescimento e estão associadas a uma ditadura que não larga o poder em benefício próprio. Mas as instituições e políticas não são explicações satisfatórias, já que se pode sempre perguntar porque seguiu a Venezuela esse caminho. Pode-se afirmar que, no cenário contrafactual, sem jazidas de petróleo, não o faria. Existe muito suporte empírico a favor do facto de os países ricos em recursos naturais – especialmente quando concentrados e de alto valor, relativamente ao seu peso físico, como é o caso dos depósitos do petróleo – atravessarem uma primeira fase de algumas décadas de prosperidade associada à abundância de meios de pagamento, para mais tarde, no longo prazo, acabarem por enfrentar problemas económicos e políticos.[304] A estes mecanismos chama-se a Maldição dos Recursos.[305]
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A dimensão económica da Maldição dos Recursos implica a apreciação dos preços dos bens não transacionáveis em relação aos transacionáveis, o que leva a um processo de desindustrialização e ao aparecimento de cidades consumidoras, ou seja, a uma economia orientada para o consumo e não para a produção.[306] À medida que os meios de pagamento entram na economia, gera-se inflação, nomeadamente dos preços dos produtos nacionais ou dos serviços, cujos preços não são definidos a nível internacional. A inflação leva a uma apreciação da taxa de câmbio e a uma perda de competitividade da indústria nacional, juntamente com uma reorientação dos recursos produtivos para os setores não transacionáveis. Em Espanha, a partir do século xvi, isto manifestou-se através do crescimento de uma elite rentista, ligada à terra, e por vezes de natureza religiosa, e o mesmo veio a acontecer em Portugal no século xviii – havendo por isso, também aqui, um canal político devido ao aparecimento de grupos de pressão (lóbis), associados a este fenómeno, que, por esta via, teve também implicações políticas.[307] O outro mecanismo da Maldição dos Recursos é mais diretamente político. Apesar da maior parte da prata espanhola – e, no século xviii, do ouro português vindo de Minas Gerais e de outras regiões do Brasil – pertencerem a privados, cerca de um quinto era pago à Coroa. Outra parcela importante também acabava por entrar nos cofres do Tesouro por via do crescimento da base fiscal.[308] Por esta razão, as Coroas ibéricas não precisavam de negociar com as Cortes novos impostos ou novas tarifas, entre outras matérias. A entrada no país de recursos adicionais em abundância, sem grandes contrapartidas, contribuiu para remover uma importante restrição ou constrangimento à ação do executivo e atrasou o desenvolvimento da capacidade tributária do Estado, nos moldes em que ocorreu por esta altura noutros países da Europa.[309] Logo, diminuíram os freios e contrapesos (checks and balances) institucionais, incentivando uma má tomada de decisões políticas.[310] Os problemas económicos e políticos que a Maldição dos Recursos, lançada pela prata americana, infligiu em Espanha tiveram consequências para Portugal. Com efeito, desde logo, a Espanha tornouse uma potência mais poderosa do que teria sido de outra forma durante o século xvi.[311] A sua influência política sobre Portugal aumentou e até acabou por o invadir com sucesso (ao contrário do que tinha acontecido em 1385), levando à união das Coroas em 1580. Duas décadas antes, o
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governo de D. Catarina de Áustria, regente desde a morte do seu marido (D. João III), invocou que o juro de 10% contratado num empréstimo concedido pelos banqueiros genoveses era imoral, ordenando através de um alvará régio que o juro fosse incorporado no principal que seria pago em prestações de 5% nas duas décadas seguintes.[312] Tratava-se, portanto, de uma conversão unilateral (forçada) do empréstimo. Não temos certezas sobre a motivação desta bancarrota – um incumprimento (default) parcial – mas é razoável apontar que tenha sido animada pela constatação de que a bancarrota de Filipe II em 1557, na Espanha, não tinha tido aí grande efeito, pelo menos imediato, tendo-se saldado por uma amena renegociação com os credores.[313] Em 1562, apenas dois anos depois da bancarrota, as Cortes aconselharam o governo do rei – agora já D. Sebastião – a reduzir as taxas de juro pagas pelo Estado, levando à conversão dos títulos de 8% para 6,5% no ano seguinte.[314] As Cortes desse ano produziram recomendações sobre reformas da administração central, da casa real, e dos principais tribunais, e os procuradores declararam que só concederiam novos impostos depois do rei ter respondido às suas petições.[315] Ou seja, nessa altura as Cortes ainda tinham bastante força em Portugal.[316] Durante a União Dinástica (1580-1640), Portugal sofreu um processo de decadência política e económica. As Cortes foram perdendo gradualmente poder e a união transformava o país num instrumento dos interesses e prioridades da Espanha, em particular de Castela. Mas o golpe de Estado de 1 de Dezembro de 1640 – conhecido como a Restauração da Independência –, que colocou D. João IV no trono e deu início à dinastia de Bragança, acabou por levar a reformas profundas. Como é evidente, do ponto de vista dos Habsburgos em Espanha, a revolta era ilegítima. Eles eram reis de Castela, Aragão, Navarra, e de Portugal, entre outras unidades políticas, que incluíam partes da atual Itália, Bélgica e Países Baixos – e, como é óbvio, também tinham um império na América. Portugal era apenas mais um território sob o seu domínio que, como os outros, mantinha a sua «independência», na medida em que conservava instituições próprias. A estrutura administrativa do país e do império manteve-se sempre separada. Porém, não havia independência de política externa, e, ao longo dos 60 anos que durou a União Dinástica, surgiu uma crescente insatisfação em Portugal com o aumento da carga fiscal e com a paulatina infiltração de espanhóis
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no aparelho administrativo português, entre outros fatores. A qualidade das instituições políticas deteriorou-se durante a União.[317] Além disso, Portugal foi arrastado para as prioridades geoestratégicas dos Habsburgos, levando a desastres como a tentativa falhada de invasão da Inglaterra em 1588: a «Armada Invencível» partiu de Lisboa e parte dos navios eram portugueses. Francis Drake atacou Lisboa no ano seguinte (já tinha atacado Sagres em 1587). Portugal continuou a sofrer ataques ocasionais de piratas ou corsários ingleses: o conde de Essex atacou Faro em 1596, ficando destruída boa parte da cidade e sendo roubada, entre outras coisas, a biblioteca do Bispo, que iria acabar onde ainda hoje se encontra – na Biblioteca Bodleian da Universidade de Oxford.[318] O Forte de São Lourenço do Bugio a meio das águas da foz do rio Tejo foi construído por volta dessa época para melhorar o sistema defensivo da barra de Lisboa. A obra Corte na Aldeia e Noites de Inverno, de Francisco Rodrigues Lobo, publicada em 1619, refletia já um descontentamento crescente com o desaparecimento da Corte nacional, e encorajava a mais importante casa nobiliárquica nacional, a Casa de Bragança (na altura liderada por um tio do futuro D. João IV), a restaurar a independência nacional.[319] Quando o golpe de Estado de 1640 finalmente aconteceu, teve relevantes implicações futuras. Ainda que a União Dinástica em 1580 tivesse sido legítima, e a Corte de Lamego não passasse de uma invenção, parece-me correto chamar Restauração da Independência ao que sucedeu. Com efeito, as promessas dos Habsburgos relativamente às instituições portuguesas foram sendo cada vez mais desrespeitadas. Se o império se mantinha administrativamente separado, nada garantia que assim continuasse e tudo indicava que, a prazo, o país poderia desaparecer como entidade, como de resto acabou por acontecer com um reino outrora poderoso, o de Aragão. Além do crescente descontentamento com questões fiscais e com o declínio económico e militar de Espanha, aproveitou-se então em Portugal a distração dos Habsburgos, na altura atentos a uma revolta de teor similar à portuguesa na Catalunha, que tinha eclodido no ano anterior com apoio francês.[320] Foi este o contexto imediato do 1.º de Dezembro, mas as implicações para o nosso país, e para o império português, foram profundas. Primeiro, havia uma guerra a ganhar, e a cabeça de D. João IV a proteger, já que era visto como traidor pelos Habsburgos. Uma das consequências desta conjuntura foi o surgimento de várias inovações ao
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nível dos impostos, que eram necessários para pagar aos exércitos. Isto aconteceu sobretudo com a introdução da décima: uma contribuição geral sobre a propriedade e outras fontes de rendimento, que se manteve, com modificações ao longo do tempo, até meados do século xix.[321] D. João IV ficou numa posição muito delicada. Tinha de continuar a pagar aos credores das dívidas contraídas pelos Habsburgos, de modo a garantir o seu apoio político. Conseguiu tornar-se um aliado das Províncias Unidas na Europa, mas continuou a lutar com os holandeses na América, onde ocupavam o Pernambuco e ameaçavam expandir-se. Foram grandes desafios. Mas, como tantas vezes acontece, com desafios aparecem oportunidades para reformas. Para sobreviver, Portugal tinha de mudar. E mudou. As Cortes tinham-se reunido apenas três vezes depois da morte do Cardeal D. Henrique, morte que ocorreu durante as Cortes de Almeirim em 1580. Até 1640, existiram apenas assembleias em Tomar em 1581, Lisboa em 1583, e outra vez Lisboa, em 1619. Os motivos que justificaram estas reuniões de Cortes foram apenas cerimoniais (jurar o rei ou os herdeiros), sem decisões relevantes ou relacionadas com limites ao poder a serem tomadas.[322] Nos anos anteriores à Restauração, circularam no país rumores de que as Cortes iriam ser suprimidas, acabando o estatuto de reino de Portugal.[323] Em meados de 1638, o Conde-duque de Olivares, o «valido» do rei, decidiu mesmo dissolver o Conselho de Portugal, que se tinha oposto à sua política fiscal para Portugal, pretendendo substitui-lo por um organismo luso-castelhano controlado pela Coroa.[324] Quando na sequência destes acontecimentos a Restauração aconteceu, em 1640, a última assembleia tinha sido há mais de 20 anos, e apenas para jurar o herdeiro ao trono, o futuro Filipe IV de Espanha (III de Portugal). A reunião anterior a essa tinha acontecido 36 anos antes, em 1583, e também pelo mesmo motivo. Com a Restauração, no entanto, as Cortes voltaram a reunir frequentemente (Figura 16).[325] Este acontecimento teria pouca importância se só reunissem para revolver a questão dinástica e aclamar a nova dinastia portuguesa. Mas não foi assim. As Cortes foram convocadas poucos dias depois do 1.º de Dezembro, e a partir dessa data voltaram a ganhar poder e relevância, mantendo-se como fonte de limites ao poder executivo até finais do século, ou seja, mesmo décadas depois do fim do conflito com a dinastia dos Habsburgos.[326] Houve 14 anos com Cortes reunidas entre 1641 e 1698.[327]
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Figura 16. Disposição das Cortes portuguesas de Lisboa em 1641.
A Espanha haveria de reconhecer os Bragança em 1668, altura em que as fronteiras de Portugal voltaram a ser as que tinham sido, com exceção de Ceuta, em Marrocos, assim como Ermesende e outras aldeias hoje galegas, enquanto Olivença, no Alentejo, foi nesta altura devolvida. Mesmo depois disto, ou seja, quando já não existia uma emergência ou perigo imediato para a sobrevivência de Portugal como país independente, governado por uma dinastia nacional, as Cortes portuguesas continuaram a reunir, e a exercer limites ao poder executivo, como aconteceu através da imposição de uma redução da décima, em 1674.[328] As assembleias chegaram nesta época a ter a ambição de auditar, ainda que não de controlar diretamente, a despesa feita pelo Estado com os montantes cobrados a título de décima.[329] A Figura 17 mostra que, com a Restauração, as eleições voltaram a ser disputadas: um dos procuradores de Beja para as Cortes de Lisboa de 1645 foi eleito por apenas uma diferença pequena de votos, como pode ser verificado na contagem visível na imagem.[330] Este é apenas um exemplo a ilustrar a reversão da decadência política e institucional de Portugal durante o domínio da dinastia dos Habsburgos. Constitui um contrafactual plausível afirmar que, na ausência da Restauração, a união das Coroas teria levado ao declínio da economia e degradação continuada das instituições políticas portuguesas com um timing próximo do de
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Espanha: gradualmente, a partir de meados do século xvi e, de forma definitiva, por volta de 1630.[331] Esta trajetória foi interrompida com o 1.º de Dezembro de 1640, que permitiu ao país melhorar as suas instituições. Importa sublinhar a melhoria verificada na segunda metade do século xvii porque ilumina o que viria depois a acontecer no século seguinte. Ainda em 1697-1698 as Cortes discutiam matérias fiscais, como tinham feito várias vezes nas décadas anteriores.[332] Mas no século xvii nunca reuniram. Nas próximas secções deste capítulo descrevo a descoberta e chegada do ouro do Brasil, focando-me depois nas suas consequências económicas e políticas. Estas últimas, em particular, viriam a ter implicações decisivas para o país. Figura 17. Eleição dos procuradores de Beja para as Cortes de 1645.
A descoberta do ouro do Brasil Desde os primórdios da ocupação do Brasil que os europeus procuraram ouro no Sertão. Logo em 1531, partiu de São Vicente uma ambiciosa expedição com este objetivo, mas nunca mais voltou, tendo provavelmente sido massacrada pelos nativos.[333] O século e meio que se seguiu assistiu a mais tentativas infrutíferas. O rei Filipe III de Espanha (Filipe II de Portugal), em 1608, encorajado por rumores sobre a existência de valiosas minas, tomou um conjunto de medidas para que a busca e exploração das mesmas se efetivasse. Preocupado com a quebra
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da produtividade das minas de prata do império espanhol em Potosí (então no Vice-Reinado do Peru, agora na Bolívia), o rei retirou as três capitanias de São Vicente, Rio de Janeiro, e Espírito Santo do governo geral da Bahia, e colocou-as sob a autoridade de um único capitão-geral e Governador, Francisco de Sousa. Inicialmente nomeado por um período de cinco anos, em março de 1608, Francisco de Sousa viu os seus privilégios de mineração estendidos a todo o Brasil.[334] Durante o século xvii, tinham estado bandeirantes em regiões próximas daquela onde o ouro viria a ser descoberto, mas até à última década desse século a busca do ouro revelou-se dececionante, sendo encontradas apenas pequenas quantidades que foram, contudo, suficientes para manter ativo o interesse de alguns pesquisadores e aventureiros.[335] Tudo mudaria em 1694, quando grandes quantidades de ouro foram descobertas na região a que hoje chamamos Minas Gerais.[336] Os exploradores originais eram aventureiros em busca de escravos e prata, e, durante algum tempo, procuraram manter segredo sobre a sua descoberta. Mas as notícias começaram a chegar à costa do Brasil no ano seguinte e, logo em 1697, a existência dos generosos depósitos de ouro era já do conhecimento público, iniciando-se então um enorme movimento migratório, proveniente tanto de outras partes do Brasil como de Portugal, que invadiu a região.[337] O jesuíta italiano Giovanni Andreoni, conhecido em português como André João Antonil, descreveu na sua obra Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, publicada em 1711, como homens e mulheres de várias idades e classes sociais viviam na região de Minas Gerais em condições de grande conflitualidade relacionada com o acesso ao ouro.[338] Mais depósitos de ouro acabaram por ser descobertos em várias outras partes do Brasil e, em 1705, cerca de 50.000 garimpeiros e os seus escravos já habitavam as vilas do ouro.[339] A corrida estava a acontecer a uma velocidade e dimensão estonteantes, sendo as estimativas de emigração média de Portugal entre 3000 e 10.000 por ano, travando o crescimento populacional em Portugal durante a primeira metade do século xviii, como pode ser revisto na Figura 2 do Capítulo 1.[340] Logo em 1701, o administrador colonial, D. João de Lencastre, manifestou preocupação relativamente ao risco de o ouro brasileiro não ir, a prazo, beneficiar Portugal, tal como a prata americana não tinha beneficiado a Espanha,
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mas antes países como a Inglaterra e a Holanda. Antonil e o Conselho Ultramarino viriam a revelar semelhantes preocupações uma década depois.[341] Mas as cartas estavam lançadas. As consequências económicas para Portugal das chegadas do ouro O ouro era remetido para Portugal em grandes quantidades, vindo a maior parte em moedas, ou seja, já cunhado em casas da moeda no Brasil. A maior parte do que chegava pertencia a privados mas não escapava a diversas cargas tributárias, sendo a mais conhecida o «quinto», cobrado sobre a produção. A quantidade de ouro extraída foi extraordinária, atingindo as 14 toneladas por ano em meados do século. [342] Ainda que os governadores locais procurassem regular as exportações, foi inevitável que o contrabando estivesse presente, especialmente antes de 1720. Mercadores poderosos escondiam tesouros em numerosos barris, baús, e sacos de açúcar da frota anual dirigida a Lisboa, corrompendo os potenciais informadores.[343] As melhores estimativas sugerem que a produção agregada de ouro no Brasil terá atingido uma média de quatro toneladas por ano durante as duas primeiras décadas do século xviii, antes de explodir para montantes alucinantes: dez toneladas por ano na década de 1720, e 14 por ano durante mais duas ou três décadas.[344] Mais de 80% deste total foi enviado para Portugal.[345] Cada uma das três frotas anuais transportava, em média, três biliões de reais, a maior parte dos quais já chegava amoedado a mais de 2300 privados.[346] Ao longo do tempo, grande parte destas moedas saíram do país para financiar importações. As chegadas de ouro subiam os rendimentos das pessoas que tinham a ele acesso, e, no curto prazo, terão certamente contribuído para uma expansão económica do país, como pode ser visto na série do PIB por pessoa, que sobe até meados de Setecentos, atingindo aí o seu pico, só superado no século xx (Figura 7 do Capítulo 3). Mais uma vez, tal como tinha acontecido na Espanha em Quinhentos, e tal como aconteceu na Venezuela no século passado, os novos recursos levaram a um efeito líquido positivo nas primeiras décadas, enquanto lançavam as sementes dos problemas futuros. O ouro do Brasil chegou a Portugal ao longo do século xviii, tendo começado a tornar-se evidente logo na segunda metade do século os problemas para as instituições políticas e para a industrialização do país. 132
Depois de duas décadas de estímulo económico, devido às receitas do ouro, pelo menos em parte, a economia portuguesa começou por estagnar em meados do século, para depois iniciar um declínio que foi tanto em termos absolutos – ou seja, com os rendimentos por pessoa a cair – como em termos relativos, ou seja, por comparação com o que estava a acontecer noutros países. Note-se que, quando este declínio se verificou, o ouro ainda era expedido do Brasil em quantidades muito significativas. O ouro do Brasil teve efeitos negativos tanto para a economia como para o sistema político do país. A deterioração institucional decorrente do fluxo de ouro reforçou os efeitos negativos para a economia, especialmente a prazo. Apesar de a divisão dos canais político e económico ser em parte artificial, é útil considerá-los separadamente. Nos parágrafos seguintes, vou concentrar-me primeiro no efeito que o ouro importado teve para a economia propriamente dita, através de um canal de influência conhecido na literatura científica como a «Doença Holandesa» (Dutch Disease).[347] Este mecanismo ocorre quando a importação de recursos para um país causa a subida dos preços dos bens não transacionáveis – aqueles que não são trocados internacionalmente, como a terra, os serviços e outros bens que não atravessam fronteiras – relativamente ao preço dos transacionáveis, que sofrem de concorrência internacional. O preço destes últimos é determinado internacionalmente para um país pequeno como Portugal. Assim, a variação do preço relativo dos produtos transacionáveis leva a uma apreciação da taxa de câmbio. Como a apreciação desta taxa conduz a tornar as importações mais baratas, e as exportações mais caras, a indústria nacional sofre com a perda de competitividade. A avaliação desta teoria como explicação para a evolução da indústria em Portugal requer vários passos. Em primeiro lugar, temos de partir do conhecimento preciso sobre qual era o estado da economia, e em particular da indústria, em finais do século xvii. Isso é relevante para depois avaliarmos a sua evolução contrafactual – ou seja, se era plausível que a indústria tivesse evoluído de uma forma diferente da observada, na ausência das gigantescas remessas de ouro durante o século xviii. O ponto de partida para esse cenário é a expansão da economia portuguesa na sequência do fim das hostilidades, em 1668, com o país nosso vizinho. A economia assistiu a um crescimento sustentado do rendimento por pessoa, apesar da população também estar a aumentar: o PIB per capita aumentou de cerca de 900 dólares por pessoa, por volta de 1640-
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1660, para mais de 1200 dólares por pessoa, no início da década de 1690 (medidos a preços constantes de 1990, ou seja, já corrigindo para o efeito da inflação).[348] Este crescimento foi acompanhado de uma transferência de mão de obra do setor agrícola para outros de maior valor acrescentado. Entre 1650 e 1700, a percentagem de pessoas a trabalhar no setor agrícola diminuiu de 64 para 59%, enquanto a percentagem de pessoas a viver em zonas rurais, mas a trabalhar em setores não agrícolas, aumentou de 24 para 29%.[349] Como acontecia em toda a Europa, Portugal tinha uma indústria rural tradicional que fiava e tecia o linho para ser transformado em vestuário. A fiação e tecelagem do linho ocorria em praticamente todo o país, nomeadamente no norte litoral, em Trás-os-Montes, na Beira, na Estremadura, e no Alentejo.[350] Em Santarém, Coimbra, Moncorvo, e em várias zonas do Entre-Douro-e-Minho, a transformação do linho prosperava, com numerosas trabalhadoras do sexo feminino, em particular, a contribuírem para o crescimento de Braga e Guimarães, como centros de produção de linho desde o século xvi. No Minho, a alta densidade populacional garantia uma oferta de trabalho elástica, a que se juntava a tradição de tecelagem e fiação no contexto familiar. A procura era ainda estimulada pelos estaleiros e fábricas de cordas, havendo também exportação pelo porto de Vila do Conde. O cânhamo, procurado pela indústria naval para a construção de redes e cabos, levou à criação de «fábricas reais» em Santarém, Coimbra e Torre de Moncorvo. Já a seda tinha sido produzida em Bragança desde o século xv por cristãosnovos, descendentes de judeus exilados de Castela, e estabeleceu-se um pólo em Lisboa em 1677 que tinha 50 teares em 1679.[351] Dois pequenos centros de produção de têxteis de lã também existiam desde o século xv na Beira e no Alentejo. Na Beira, a fiação e tecelagem tomavam lugar no campo, com a Covilhã a servir de centro para a recolha, tingimento e acabamento do produto. No Alentejo, existiam fábricas em Portalegre e no Redondo, que organizavam redes de produção doméstica empregando cerca de um terço da população rural. A agricultura pastoral e o trabalhointensivo das duas regiões dava oportunidades de rendimento adicional aos trabalhadores, enquanto a produção local de lã e de azeite era combinada com custos laborais baixos, resultando numa indústria com algum sucesso. A procura – por parte da cidade de Lisboa, entre outras – de têxteis de linho, seda, e lã, estimulava a produção local desde o século xvi. O deficiente sistema de transportes não era uma barreira
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intransponível à ligação entre os mercados urbanos e os centros de produção das manufaturas, principalmente localizados em zonas rurais (ao contrário do que aconteceria em séculos posteriores). O vinho era exportado e era competitivo internacionalmente.[352] O desenvolvimento industrial português das três últimas décadas do século xvii não aconteceu por acaso, mas antes esteve relacionado com uma política industrial baseada na substituição das importações e na maior integração da economia de Portugal com as suas colónias.[353] Enquanto na segunda metade dos séculos xix e xx o contexto internacional livre-cambista combinado com o reduzido tamanho da economia nacional implicavam que uma política protecionista dificilmente poderia ter sucesso, o mesmo não é verdade para os séculos xvii ou xviii, até devido ao Brasil. Não existem dúvidas de que a industrialização do país foi real, tendo tido algum sucesso, ainda que numa escala incomparável à da segunda metade do século xx. Por volta de 1680, a indústria portuguesa era capaz de produzir o suficiente para cobrir as necessidades de procura do país e das suas colónias, chegando mesmo a exportar têxteis para Castela.[354] Durante os anos seguintes, o progresso da indústria continuou a avançar.[355] Esta política tinha sido implementada através de uma sequência de leis promulgadas entre 1672 e 1698, conhecidas como Leis Pragmáticas. Estas eram baseadas nos escritos de indivíduos como Duarte Ribeiro de Macedo que, influenciado pelo Colbertismo francês e por escritos de mercantilistas ingleses, advogava a industrialização do país. O programa de industrialização foi promovido em particular por D. Luís de Meneses, o 3.º Conde da Ericeira (1632-1690), que foi Vedor da Fazenda – o equivalente ao que poderíamos chamar, nos nossos dias, ministro da Economia e Finanças – e que pode ser visto na Figura 18.[356] Figura 18. Luís de Meneses, 3.º Conde da Ericeira.
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Ericeira apoiou o golpe de 1667 que tinha retirado o poder a Afonso VI para o dar a seu irmão, D. Pedro II, inicialmente como regente.[357] Por volta de 1670, tornou-se num político central no país, promovendo o investimento nas indústrias de lã, vidro, ferro, e gerando grandes unidades produtivas, as «fábricas reais», para beneficiar de efeitos de escala que aumentavam a produtividade laboral e diminuíam os custos produtivos. O programa de Ericeira tinha-se iniciado pouco depois do fim das hostilidades com a Espanha, em finais da década de 1660, e seria apenas abandonado pouco depois de 1700.[358] No contexto de uma Europa mercantilista, em que o comércio livre ainda não era possível, até por motivos geopolíticos, o favorecimento político das indústrias, a partir da substituição das importações e mesmo da transformação de bens exportáveis, nomeadamente para o Brasil, fazia todo o sentido.[359] A industrialização poderia, de resto, levar a efeitos indiretos relevantes para aumentar a remuneração da acumulação de capital humano a prazo.[360] A industrialização associada a Ericeira incluía um esforço de integração vertical ao nível do retalho e estava localizada em muitas das regiões onde a industrialização do país se efetivou de forma mais definitiva mais de dois séculos depois.[361] Em 1677, iniciou-se na Covilhã uma nova parceria público-privada para produção de têxteis. Uma fábrica foi construída na margem de um riacho, tecelões foram contratados, e vários técnicos estrangeiros foram trazidos para partilharem o conhecimento específico que tinham sobre o processo produtivo – o que de resto também aconteceu para a indústria de vidro e cristais que estava igualmente a emergir desde finais da década de 1670.[362] A fiação era feita em casa das famílias nas áreas
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rurais, enquanto as fábricas se encarregavam da cardagem. Apenas três anos depois do início da produção, existiam já 17 teares a serem operados por 23 tecelões cada, empregando a fábrica 415 pessoas no total. O sucesso desta iniciativa levou à sua expansão para uma vila próxima de Manteigas e a planos para nova replicação em Estremoz.[363] Em 1680, os 17 teares já produziam uma quantidade prodigiosa de tecido, equivalente a metade do consumo total do país, enquanto a produtividade era de 5,7 metros por semana, superior à do setor do linho (4,2 metros). As margens relativas ao preço de venda eram altas: uma quantidade que podia ser vendida em Lisboa por 21 ou 22 mil réis custava 15 mil a produzir nesta altura. E esse preço de venda em Lisboa era competitivo em relação aos panos ingleses importados, que custavam 27 mil réis pela mesma quantidade, depois de pagos os custos de transporte e os impostos.[364] Finalmente, lembremos que ainda na mesma década, se encorajou politicamente o desenvolvimento da indústria da seda em Portugal. Milhares de amoreiras foram plantadas em diferentes partes do país, e fábricas de seda abriram em Lisboa e noutras regiões. [365] Também aconteceram importantes avanços na indústria metalúrgica, em particular no que toca à produção de pregos, indispensáveis para a construção. E a integração vertical dessa indústria com a produção de ferro, a montante, continuou a ser estimulada, mesmo depois da morte do Conde da Ericeira.[366] Além de uma política de substituição das importações, as décadas finais do século xvii viram um grande investimento na melhoria da eficiência dos processos produtivos, nomeadamente a nível industrial, com a construção de novas fábricas em Covilhã, Manteigas, Estremoz, Vila Melo, Fundão, e Lisboa – e com mais fábricas a serem planeadas, mas que não se chegaram a construir, no Porto e em Portalegre.[367] Parece razoável sugerir que, sem a Maldição dos Recursos causada pelo ouro brasileiro que se seguiu, estas fábricas, e possivelmente várias outras mais, teriam sido construídas. Portugal tinha a vantagem de ter acesso ao mercado do Brasil, que servia tanto como mercado de procura para artigos manufaturados que para lá eram exportados, como de fonte de matérias primas e produtos agrícolas, importados em condições favoráveis para Portugal. Do Brasil também vinham produtos tropicais que Portugal depois re-exportava, sendo o mais importante nesta época o açúcar, que era produzido através de trabalho escravo: quase 300.000 pessoas foram desembarcadas, vindas de África (principalmente, mas
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não só, de Angola) entre 1676 e 1700.[368] O açúcar perdeu importância relativa no Brasil durante o século xviii devido ao ouro ter-se tornado a grande prioridade. Em suma, nas décadas finais do século xvii existia em Portugal um setor industrial que incluía importantes aglomerados de produção de têxteis, sabão, ferro, vidro, e seda, entre outros.[369] O comércio português com a sua colónia americana e com outros países, em parte graças ao Brasil, estava em franco crescimento nessas décadas, ainda que, quando se considera o século xvii como um todo, o comércio intercontinental não fosse particularmente grande relativamente ao tamanho da economia, como vimos no Capítulo 4. Mas a dependência do país face ao ouro, durante o século seguinte, não lhe traria um bom destino. Como a discussão anterior mostrou, até finais do século xvii existiu vontade política em tornar Portugal uma potência mercantilista exportadora – como viria a acontecer em Inglaterra, antes desse país se tornar livre cambista, quando as condições militares e geoestratégicas já o permitiam e quando já estava num processo acelerado de industrialização.[370] Deste modo, em finais do século xvii, Portugal parecia ter já este processo muito avançado, como notaram vários observadores internacionais, entre eles o Embaixador da França.[371] Mas a industrialização do país iria ser interrompida. Durante a primeira metade do século xviii, a indústria portuguesa perdeu a sua competitividade e entrou em dificuldades sérias.[372] A fonte destas dificuldades tem sido debatida, com alguns a considerar que era relacionada com a indisciplina dos trabalhadores, ou com as ações da Inquisição, e ainda outros a afirmar que poderia ter estado de alguma forma relacionada com a importação do ouro do Brasil.[373] Num trabalho em co-autoria com Davis Kedrosky, mostro que o ouro do Brasil causou a desindustrialização do país.[374] O nosso trabalho indica que, na ausência das chegadas a Portugal desse ouro, o processo de industrialização teria continuado e o país teria beneficiado da sua ligação privilegiada ao Brasil.[375] Infelizmente, não foi isso que aconteceu. Com as chegadas continuadas e maciças do ouro, o preço dos bens não transacionáveis, como a carne e os ovos, subiu relativamente ao preço dos transacionáveis, como o trigo, o azeite e os têxteis, de forma significativa, acompanhando o ciclo do ouro (Figura 19).[376] O esforço de fomento dos finais de Seiscentos foi abandonado e Portugal
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desindustrializou-se. A estrutura produtiva atrasada do país persistiu depois, durante todo o século xix e primeiras décadas do xx.[377] Além disso, a partir do início de Setecentos também piorou a qualidade das instituições políticas, com consequências muito negativas para a acumulação de capital humano no país, inclusivamente a prazo, como irei explicar nas secções seguintes deste capítulo. Foi por tudo isto que Portugal apenas iria ser capaz de se industrializar a partir de meados do século xx, numa época extraordinariamente tardia para padrões europeus. Figura 19. Rácio do preço dos bens não transacionáveis relativamente aos transacionáveis, e produção de ouro.
Durante o século xviii, Portugal importava sistematicamente bens de valor superior aos que exportava, em particular de Inglaterra, pagando a diferença em ouro.[378] Em troca do ouro português, a Inglaterra chegou a enviar 18% das suas exportações manufaturadas para Portugal durante o período 1741-1745, e mais de metade de certos produtos, nomeadamente têxteis, durante grande parte de Setecentos.[379] O défice externo de Portugal aumentou decisivamente na primeira metade do século, estabilizando por volta dos 4 mil milhões de réis por ano, num período de inflação baixa, em meados do século. À medida que as importações vindas de Inglaterra subiam vertiginosamente entre inícios e meados do século xviii, as exportações portuguesas caíam. A redução destas últimas é particularmente significativa, já que a produção de vinho até aumentou em resultado do Tratado de Methuen, de dezembro de 1703, que permitia acesso facilitado ao mercado inglês. Mas os termos em que o Tratado foi negociado, na sequência de pressão inglesa, foram eles próprios certamente consequência das chegadas do ouro. D. Luís da Cunha, o
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embaixador de Portugal em Londres, conhecido à época em Portugal como o «oráculo da política» por ter pensamento a médio e longo prazo, foi afastado das negociações pela Corte de Lisboa, dado ser partidário da política manufatureira do Conde de Ericeira e contrário ao levantamento da Pragmática. D. Luís da Cunha manteve-se nas décadas seguintes como opositor convicto ao Tratado de Methuen, que considerava que estava a levar à falência numerosas fábricas em Portugal que eram, nas suas palavras, «o remédio de inumeráveis povos».[380] Grande parte das enormes quantidades de têxteis que eram importadas para Portugal de Inglaterra eram depois re-exportadas para o Brasil. Até inícios do século xviii, todo o comércio com o Brasil tinha de acontecer através de Portugal. O ouro vindo do Brasil, portanto, financiava o défice, partindo regularmente em paquetes de Lisboa para Plymouth.[381] Durante décadas, as exportações de ouro corresponderam a 70% do valor das exportações portuguesas, distorcendo assim a balança de pagamentos. As importações de ouro chegaram a valer cerca de 7% do PIB português – de Portugal continental – em finais dos anos 1720 e meados dos anos 1740, sendo que geralmente andaram por volta dos 5% até 1770.[382] Estas percentagens correspondem, de resto, a ordens de magnitude, em média, parecidas com as que se aplicaram em Espanha durante a Idade Moderna. Os crescentes défices comerciais de Portugal com a Inglaterra podem ser interpretados à luz do Tratado de Methuen de 1703, que estabelecia taxas preferenciais (23%) para a importação de têxteis ingleses, em troca de uma redução das tarifas alfandegárias que se aplicavam ao vinho português ficarem um terço abaixo das que se aplicavam aos vinhos franceses.[383] O Tratado encontrava correspondência com outro, de caráter secreto, que já tinha existido em 1654 (embora não tivesse sido aplicado de forma efetiva), também tendo um aspeto geopolítico e militar, relacionado com a participação de Portugal na Guerra da Sucessão Espanhola e com a defesa do império, nomeadamente o Brasil. [384] A assinatura do Tratado, em finais de 1703, teria inegáveis implicações para Portugal. Dois terços das exportações de vinho iam para o Reino Unido logo em inícios do século xviii.[385] Mas o que deve ser enfatizado é que a sua assinatura foi ela própria um resultado das chegadas de ouro que já estavam a acontecer e que, era certo à época, iriam continuar durante muito tempo.[386] Décadas depois, quando as remessas de ouro do Brasil começaram a abrandar, a partir da década de
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1770, o Tratado de Methuen ainda estava em vigor.[387] Em conclusão, embora o Tratado de Methuen tenha contribuído para a desindustrialização do país, foi apenas um mecanismo e não a sua causa última.[388] Figura 20. Percentagem da população a trabalhar fora da agricultura.
A desindustrialização e o processo de ruralização do país podem ser vistas através da distribuição ocupacional da população portuguesa, que nos dá a percentagem da população a trabalhar fora da agricultura, ou seja, nos setores de maior valor acrescentado, como eram, na época, a indústria e os serviços. As chegadas de ouro do Brasil implicaram que, ainda na primeira metade do século xix, a percentagem de pessoas a trabalhar no setor agrícola inicialmente caísse, sendo isso devido não ao crescimento da indústria, mas à urbanização e crescimento dos serviços associados. Ou seja, Portugal tornou-se um país de consumo (concentrado nos centros urbanos, com destaque para a cidade de Lisboa).[389] A Figura 20 mostra a evolução ao longo do tempo da percentagem de pessoas a trabalhar fora da agricultura em Portugal, entre o século xv e inícios do século xx.[390] A evolução que a figura mostra é dramática. Durante a segunda metade do século xvii deu-se um aumento gradual da percentagem de pessoas a trabalhar fora do setor agrícola, pelo menos em parte devido ao processo de industrialização do país e planos de fomento. A tendência continuou durante a primeira metade do século seguinte, ainda que já por motivos diferentes, agora relacionados com a economia de consumo que mencionei. Também outros fatores, como a emigração para o Brasil e a expansão do cultivo do milho americano em certas partes do país, foram benéficos para uma melhor produtividade agrícola.[391] Nessa altura, a percentagem de pessoas a trabalhar fora da agricultura chegou a um máximo histórico para o
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período anterior ao século xx: quase metade estavam nesta categoria. Mas já na segunda metade do século xviii é possível notar uma queda dessa percentagem, queda essa que se tornou acentuada durante a primeira metade do século xix. Ou seja, a prazo o país desindustrializouse e ruralizou-se relativamente ao que tinha sido anteriormente. Era a economia portuguesa a fazer o caminho inverso ao que outras economias europeias então faziam, com a Inglaterra à frente. Em Portugal, por volta de 1850, apenas um terço das pessoas trabalhavam fora da agricultura, um valor parecido com o de inícios do século xvi, como também é possível verificar na Figura 20. Portugal perdeu o comboio da Revolução Industrial. Não é de admirar, pois, que o PIB per capita também tenha desenhado um caminho descendente, como já vimos anteriormente na Figura 7 do Capítulo 3 e na Figura 15 do presente capítulo. O facto de o ouro brasileiro ter tido, numa primeira fase, um efeito aparentemente positivo em termos líquidos, antes de chegarem os efeitos negativos em força, não é surpreendente. Voltemos ao exemplo contemporâneo da Venezuela: durante algum tempo, recursos vindos de fora significam mais dinheiro para gastar, levando a um aparente sentimento de mais riqueza. Em Portugal aconteceu algo de semelhante. De início, o ouro passou até das elites mercantis (que eram donas do ouro que chegava) para partes da sociedade que agora encontravam mais procura para os seus bens e serviços e, portanto, também melhores salários, especialmente nas cidades. A taxa de urbanização do país, que era de 12% em 1650, manteve-se constante até 1700, depois aumentando para 17,3% em 1750, à medida que Lisboa e outros centros urbanos se tornavam em cidades de consumo graças ao ouro que chegava.[392] No entanto, a urbanização do país iria cair na segunda metade do século xviii, e ainda mais na primeira metade do xix, em consequência dos efeitos a prazo da desindustrialização e das más decisões políticas, as quais permaneceram mesmo depois das remessas de ouro do Brasil terem primeiramente diminuído e, a seguir, terminado. O PIB por pessoa aproximou-se dos 1400 dólares internacionais por volta de 1750, valor que era extraordinário para a época. Isso representava uma subida de mais de 70% relativamente ao nível de um século antes. Este valor estagnou durante cerca de duas décadas (mesmo depois do Terramoto de 1755). A partir de finais da década de 1770, o rendimento por pessoa iniciou uma queda dramática que continuaria ainda durante a primeira
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metade do século xix, chegando a um nível parecido em 1850 com o que tinha existido em inícios do século xvi (como é visível nas Figuras 7, 15, e ainda 20). Uma parte grande do tesouro ficou em Portugal: o stock de ouro doméstico subiu de cerca de 2,4% do PIB, em 1720, para um valor próximo do próprio PIB nominal, ou seja 100%, em meados do século. [393] A taxa anual de crescimento da oferta monetária ao longo do século xviii foi de cerca de 2,5%, excedendo claramente a taxa de crescimento da economia. Uma proporção de 80% deste crescimento deveu-se a moedas de ouro, a maior parte das quais, como mencionei antes, eram privadas. Muito deste dinheiro foi investido na terra – um fator produtivo do setor não transacionável.[394] Apesar dos aparentes entraves existentes, como as enfiteuses (arrendamento, por prazo longo ou perpétuo, de terras a particulares) e outros direitos consuetudinários, havia um mercado da terra.[395] Quando as receitas do ouro já começavam a diminuir, no período pombalino, a continuada procura de terras para comprar levou o governo a tentar restringir as transferências de propriedade para a Igreja. Ainda que sem grande sucesso prático, esta medida refletia a subida de valor desse recurso estático. No sul do Alentejo, a subida dos preços da carne, um bem não transacionável, levou à conversão em grande escala de terras cerealíferas (que eram de baixa produtividade, com um rácio de sementes para produção na ordem de um para quatro, nomeadamente no que toca ao trigo e centeio) para serem destinadas à pecuária, especialmente a partir de 1710. Um processo parecido de conversão para pecuária teve lugar no Algarve.[396] A produção agrícola global, que tinha aumentado consideravelmente entre meados do século xvii e meados do xviii, a uma taxa de cerca de 0,7% por ano, desceu depois entre essa altura e o período das invasões napoleónicas no início de Oitocentos. As exportações de azeite e vinho aumentaram, mas estes eram produtos sem substitutos que pudessem ser facilmente importados, e cujos produtores tinham ganhado acesso a mercados estrangeiros através de meios diplomáticos, incluindo o Tratado de Methuen.[397] Estes setores não foram, claramente, o suficiente para travar o avanço do défice comercial durante o século xviii, em particular durante a primeira metade desse século. Como seria de esperar, os salários melhoraram durante as primeiras décadas do ouro brasileiro.[398] Mas, pelo contrário, as manufaturas entraram em declínio, mesmo depois da tentativa de relançar uma
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política industrial ativa na segunda metade do século xviii. A realidade é que a afluência de ouro induziu um grande aumento do preço relativo dos bens não transacionáveis em relação aos transacionáveis. Ao invés da tendência para ganhar competitividade internacional, que se tinha verificado em finais do século xvii, o rácio dos preços dos bens não transacionáveis sobre os transacionáveis aumentou cerca de 30% durante o século xviii, com consequências graves para a indústria nacional.[399] É notório que a afluência de ouro coincidiu com o agravamento do défice comercial, chegando ambos a valores máximos no início da década de 1750. Nessa altura, já quase todas as fábricas portuguesas tinham falido, sobrevivendo apenas algumas fortemente subsidiadas.[400] Em 1769, existiam apenas quatro fábricas têxteis em todo o país, e apesar de terem sido a partir daí criadas mais algumas, com a exceção das «reais fábricas», a escala de produção manteve-se reduzida. Mesmo as maiores fábricas que eram geridas pelo Estado dependiam, em grande medida, de sistemas de organização e de redes de locais de recolha da produção doméstica e de distribuição. Enfrentando enormes custos de investimento e falta de capital, as únicas iniciativas com alguma escala a serem estabelecidas nesta época eram erguidas sobre pesadas tarifas alfandegárias e proibições de importações. Também por isso, as tentativas de Pombal para iniciar um plano de fomento não tiveram grandes efeitos: quase todas as 200 unidades de produção (não apenas fábricas) que existiriam em 1777 eram de pequena escala. Nos anos seguintes, com a liberalização do sistema de licenciamento de importações que permitiu a participação de um maior número de firmas, existiu um aumento de fábricas (de 55 para 235); mas das 180 candidaturas para licenças entre 1757 e 1832, 114 (63%) foram feitas por estrangeiros, demonstrando a ausência de um corpo de empreendedores e capitais nacionais.[401] A pequena escala destas empreitadas, a maior parte das quais voltadas para o mercado interno, localizadas em regiões do interior do país que os custos de transporte protegiam da concorrência internacional, atrasou a adoção de tecnologias mecânicas, contribuindo assim para o adiamento de uma revolução industrial. A região do Porto iria tornar-se um importante centro de manufaturas a partir dos finais do século xix, e ainda mais no século seguinte. No entanto, em 1820, essa região era ainda incapaz de competir, em preço ou qualidade, com os produtos importados. O nível de desenvolvimento que a região do Porto exibia então não progredira relativamente a 1780, quando já nessa altura
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estava bastante atrasado face a outros setores têxteis da Europa.[402] Mesmo a supressão do desenvolvimento industrial na colónia do Brasil, em janeiro de 1785, e a tentativa pombalina de diminuir as importações de Inglaterra não tinham alcançado o objetivo desejado: Portugal não se industrializara. Enquanto continuasse a chegar o ouro a Lisboa, Portugal estava condenado. Vale a pena voltar a sublinhar que não restam dúvidas de que o declínio da economia só se acentuou duas décadas depois do Terramoto de 1755 e, por outro lado, mais de duas décadas e meia antes das Invasões Francesas que se iniciaram em 1807.[403] O declínio industrial, esse, já se sentia desde início do século. A ideia de que o conflito napoleónico teria levado à destruição do desenvolvimento industrial português encontra-se amplamente difundida, inclusivamente nos meios académicos.[404] Mas esta tese não pode explicar os problemas aqui apresentados que, como vimos, são bastante anteriores. Como foi gasto o ouro vindo do Brasil Importa vermos, com algum detalhe, como foi gasto o dinheiro que chegou, principalmente na forma de moedas de ouro. Antes de mais, como já referi, o dinheiro foi aplicado em importações de bens de consumo. Entre 1720 e 1750, o défice comercial aumentou de dois biliões de réis (2,4% do PIB nominal) para mais de quatro biliões de réis (3,9% do PIB), chegando a seis biliões em 1756 (6,1% do PIB), o ano seguinte ao Terramoto. Ao longo do século, o défice comercial teve uma relação sempre próxima com o valor das chegadas do ouro.[405] Em 1760, um visitante italiano escreveria que os portugueses: são muito ricos no que a oiro e jóias diz respeito. Contudo, a sua riqueza não deriva do que se produz em Portugal (…) poucos são os produtos que [Portugal] lança no mercado, uma vez que as suas manufaturas são de pouca relevância (…) os portugueses desejam os produtos que a indústria inglesa é capaz de produzir e os ingleses querem o oiro que os portugueses retiram do Brasil e é assim que, desta forma, estas duas nações conduzem os seus negócios.
O mesmo visitante mostrou-se espantado por grande parte dos objetos que existiam nas casas lisboetas serem importados, afirmando que «até os sapatos que usam vêm de Inglaterra ou de França», enquanto os alfaiates eram estrangeiros.[406] 145
Efetivamente, com a falência e fecho das fábricas do fomento industrial, a partir de finais do século anterior, foi apenas criado um pequeno número de novas fábricas em todo o país depois de 1769. Setores como a metalurgia foram negligenciados por completo, enquanto o algodão, a lã, e o linho apenas tiveram direito a uma fábrica cada um. Como nas décadas anteriores, a procura nacional de bens manufaturados era claramente superior à oferta da indústria doméstica, mas esta escassez não estimulou a criação de novas manufaturas; pelo contrário, Portugal comprava grande parte das exportações inglesas de têxteis.[407] A ausência de vontade política ou empresarial para as abrir ou para modernizar e mecanizar os processos produtivos das fábricas já existentes é notória. Ao contrário da Inglaterra, que fazia nesta época um caminho no sentido de uma forte industrialização, em Portugal os sistemas de produção tradicionais persistiram praticamente sem mudanças desde o século xvi. Apenas no final do século, com a gradual e cada vez mais dramática redução dos carregamentos de ouro, começou alguma coisa a mudar. Mas o cenário não era favorável. Em primeiro lugar, devido ao nível baixo do qual a indústria partia, e porque a principal procura das manufaturas portuguesas vinha de um mercado protegido: o Brasil, que estava sujeito a um exclusivo de comércio direto com Portugal até à abertura dos seus portos, em 1808. A balança comercial manteve-se por isso deficitária até ao final do século xviii, apesar das tentativas de Pombal e dos seus sucessores, depois de 1777, de fomentar a indústria nacional e proibir importações. A balança comercial acabou por reequilibrar-se por volta dessa época, mas devido à queda do consumo interno e não por causa do aumento das exportações, que praticamente ficaram na mesma.[408] Isto não é surpreendente, já que o país estava nessa altura a empobrecer, como vimos anteriormente. Se por um lado os privados gastavam o ouro em artigos de consumo, muitos dos quais importados, e investiam em igrejas e conventos, por outro a Coroa também se revelou pródiga.[409] Durante a primeira metade do século xviii, o rei D. João V (r. 1706-1750) gastou muito dinheiro em despesas frívolas, sem qualquer consequência para o desenvolvimento do país. Estas incluíram a construção do gigantesco palácio-convento de Mafra, várias outras despesas com o Clero (que era numeroso), bem como o envio de uma embaixada luxuosa ao Papa Clemente XI.[410] Podem ver-se ainda hoje, no Museu dos Coches, em Belém, os três pomposos carros triunfais, dourados, que foram enviados: o do
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Embaixador, o dos Oceanos, e o da Coroação de Lisboa (Figura 21). Aliás, foram mandados construir muitos mais coches e berlindas luxosas durante os reinados de D. João V e do seu filho, D. José.[411] Figura 21. Os coches da embaixada de D. João V ao Papa Clemente XI.
Por outro lado, como referi, nesta época houve pouco interesse político no fomento das manufaturas nacionais, estando as prioridades políticas focadas na maximização da extração de ouro do Brasil.[412] Ou seja, a estagnação técnica e empresarial foi uma consequência, também de natureza política, dos carregamentos de ouro. A própria expansão urbana de zonas do país durante o século xviii não representou mais do que a sua transformação em cidades de consumo, dependentes da oferta de bens não transacionáveis, nomeadamente serviços, e da importação de bens.[413] Lisboa, a cidade onde estava a Coroa e a Corte, tornou-se particularmente dependente de importações financiadas pelo ouro do Brasil.[414] Também a produção de cereais (um bem que podia ser importado) sofreu uma queda, ao mesmo tempo que a sua produtividade se mantinha baixa para os padrões europeus.[415] Ainda que a introdução do milho americano tenha tido sucesso, especialmente no norte do país, Portugal continuou a importar grandes quantidades de cereais, chegando a atingir 151,6 toneladas em 1800. Os cereais importados, que já chegavam a 55% do total do consumo de Lisboa em 1729, atingiram os 72% em 1778, apesar dos elevados custos de transporte.[416] Para o país como um todo, a importação representava 5,5% a 7% do consumo, enquanto em Inglaterra correspondiam apenas a 3%. Aliás, o trigo representava entre 5% e 12% do valor das exportações inglesas para Portugal.[417] Como consequência destas importações, bem como da baixa produtividade da produção nacional, muitas terras deixaram de ser cultivadas, passando a ser
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utilizadas para a pecuária, como referi anteriormente.[418] Isto correspondeu a uma adaptação racional dos agricultores ao contexto económico português: a criação de gado e de ovelhas tinha um caráter mais capital-intensivo e, ao contrário do que acontecia com os cereais, a carne não estava afetada pela concorrência estrangeira.[419] Os mercados de crédito também tiveram um desenvolvimento medíocre em Portugal durante o século xviii. Em 1698 já tinha sido criado um limite máximo de 5% de juro para certos contratos de crédito. Em 1757, na sequência do Terramoto, que tinha acontecido dois anos antes, Pombal interferiu com o mercado de juros, distorcendo-o ainda mais.[420] O mercado de crédito funcionava com grandes ineficiências, até devido ao facto de a ausência de um cadastro implicar que um colateral, dado como garantia, pudesse ser hipotecado até à exaustão e portanto estar de tal forma onerado com hipotecas que se tornava inútil.[421] Na década de 1770, a Coroa proibiu mesmo a Misericórdia de Lisboa – que, na prática, também era um banco – de emprestar a privados, com o objetivo de canalizar o dinheiro disponível para o Estado.[422] Isto não só impedia o setor privado de ter acesso a crédito, como era um mau negócio para a própria Misericórdia de Lisboa. Depois desta proibição, a Misericórdia do Porto e outras entidades continuaram a emprestar apenas ao setor privado, o que sugere que emprestar à Coroa não era um bom investimento. No entanto, essas entidades eram muito menores em dimensão do que a Misericórdia de Lisboa: em 1797, as receitas da Misericórdia de Lisboa eram 6,5 vezes as do Porto.[423] As políticas estatais, em benefício da Coroa, aconteciam em detrimento do setor privado da economia. Consequências políticas do ouro do Brasil Como vimos, as décadas de descarga de ouro conduziram à desindustrialização do país. O sucesso dos têxteis ingleses, tanto em Portugal como no Brasil, revelava a falta de competividade da produção doméstica. Numa primeira fase do século xviii, a Coroa, tirando partido da folga orçamental devida aos impostos cobrados sobre o ouro, encorajou a concorrência entre os grupos mercantis, o que trouxe dificuldades financeiras aos investidores privados.[424] Por outro lado, o domínio inglês, ainda que indireto, proveniente do comércio com o Brasil, era cada vez mais claro. Sebastião Carvalho e Melo – o futuro 148
Marquês de Pombal – tinha notado que isto era um problema quando foi diplomata em Londres, e mais tarde, já no poder em Portugal, tentou reverter a situação. As tarifas altas, proibições de importações, e o empreendedorismo estatal da era pombalina podem ser compreendidos neste contexto, apesar de terem existido também outras motivações, como veremos. Foi proibida a produção industrial no Brasil e foram feitos esforços para diminuir a influência dos capitalistas e mercadores ingleses nas companhias monopolistas relacionadas com o comércio brasileiro. Por exemplo, a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, fiel ao mercantilismo da época, utilizava crédito público para estabelecer plantações de cacau, arroz, café e algodão nessas regiões. A partir destas eram enviados couros, peles, tabaco, açúcar, e – especialmente nos finais do século – algodão em grandes quantidades para a metrópole.[425] Em troca, as companhias tinham o monopólio da venda no Brasil de produtos manufaturados, que chegaram a ser 43% dos bens enviados para a colónia em 1800.[426] Porém, a debilidade industrial portuguesa desvirtuava os efeitos deste comércio já que as exportações de Portugal para o Brasil correspondiam, em grande parte, à reexportação de têxteis ingleses. As duas companhias comerciais que Pombal estabeleceu na segunda metade do século xviii – as do Pernambuco e Paraíba – tinham a intenção de diminuir a dependência do país das importações inglesas. Focavam-se no cacau, arroz e café, que poderiam ser re-exportados para a Europa, e ainda conseguiam exportar algum algodão para o Reino Unido.[427] Mas na realidade, como mostrou Nuno Luís Madureira, as políticas mercantilistas de Pombal e dos seus sucessores estiveram fortemente associadas ao capitalismo de compadrio e à captura do Estado por interesses privados. A estabilidade política da segunda metade do século xviii não foi benéfica para o desenvolvimento do país, tendo permitido o enquistamento de um grupo restrito de negociantes em mercados protegidos, graças à sua proximidade ao Estado.[428] Os produtores que não pretencessem à estrutura corporativa eram criminalizados. E todos os que não estivessem de alguma forma ligados à elite dirigente ou aos organismos de representação institucional pagavam custos altos por isso.[429] Como tal, os esforços comerciais pombalinos e os planos de fomento industriais que a eles estavam associados enriqueceram um número de pessoas específicas, mas falharam por completo em desenvolver o país no seu todo.
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Como vimos no Capítulo 2, não há qualquer fundamento para a ideia de que as instituições políticas portuguesas fossem particularmente absolutistas ou despóticas nos períodos anteriores ao século xviii. Por volta de finais de Seiscentos, como vimos, as instituições políticas portuguesas exerciam limites efetivos ao poder político. No entanto, como também vimos no mesmo capítulo, isso viria a mudar nesse século. Tal como a desindustrialização do país, também isto foi uma consequência do ouro do Brasil: ou seja, a Maldição dos Recursos teve uma manifestação política, além da manifestação mais diretamente económica de que já tratámos – ainda que as duas estivessem relacionadas, como iremos ver. As receitas extraordinárias que a Coroa recebeu, graças ao ouro do Brasil, assim como a proteção militar que o Tratado de Methuen garantia, implicavam que, a partir de D. João V, o poder executivo em Portugal já não precisava de negociar com as Cortes – e, como tal, elas deixaram simplesmente de se reunir.[430] Portanto, ao contrário do que tinha acontecido até finais do século xvii, as Cortes nunca se reuniram no século seguinte – nem uma única vez. Como é evidente, isto levou a uma maior discricionariedade, devido à ausência de limites ao poder do executivo. Foi então que o poder real se tornou mais aproximado ao adjetivo «absoluto», com consequências graves a prazo para o país.[431] Vale a pena destacar o facto de o poder já ser absoluto em Portugal mais de meio século antes da subida ao trono do rei D. José. Esse reinado ficaria marcado pela subida ao poder do seu secretário de Estado (equivalente ao que hoje poderíamos designar, com tolerável anacronismo, de Primeiro-Ministro), Sebastião José de Carvalho e Melo (1699–1782). Este homem, nascido na baixa Nobreza, ainda que com um tio bem-posicionado que o ajudou a lançar a sua carreira, chegaria, a seu tempo, a ser Conde de Oeiras (1759) e Marquês de Pombal (1770).[432] Mas convém lembrar que Carvalho e Melo, depois de uma carreira diplomática em Londres e Viena, apenas se tornou na figura central do Estado na sequência do Terramoto (1755), e que o seu poder sempre dependeu da vontade do rei. Assim, quando o rei morreu, em 1777, Pombal foi de imediato afastado. Ou seja, ainda que se possa ser crítico relativamente a Pombal, convém insistir que ele apareceu numa altura em que, dado o contexto político da sua época, havia condições para aparecer alguém como ele, e exercer o poder da forma como o exerceu. Nesse sentido, tal como este
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livro não tem heróis, também não tem vilões, pelo menos de forma descontextualizada. O que Carvalho e Melo fez, simplesmente graças à confiança do rei na sua pessoa, não poderia ter acontecido no sistema parlamentar inglês da mesma época – sendo esse, de resto, um sistema político relativamente ao qual ele era crítico, como a epígrafe deste capítulo sugere. Dito isto, vale a pena compreendermos as ações que Pombal tomou e as consequências que tiveram. Existe uma vasta literatura que insiste no sentido de que Pombal transformou Portugal num país mais moderno, por ter re-organizado as leis e a economia.[433] Vou agora argumentar o contrário: que Pombal tomou algumas das piores decisões políticas que alguma vez foram tomadas na História do país. Antes de as considerar de forma detalhada, vou elencar algumas das mais consequentes. A decisão mais desastrosa de todas foi a expulsão da Companhia de Jesus, a qual interferia com os planos de Pombal tanto a nível nacional como no Brasil. A presença dos jesuítas no Brasil havia já encontrado, nos séculos anteriores, oposição por parte dos colonos portugueses, devido ao desejo dos jesuítas de proteger os nativos da escravização.[434] Até aqui a Coroa tinha normalmente apoiado a Companhia de Jesus. No entanto, os jesuítas opunham-se, por uma questão de princípio, ao exercício despótico do poder, também tendo por isso entrado em confronto com Pombal.[435] Ora, os jesuítas tinham a mais ampla rede escolar do país (e em todo o império), rede que era, de resto, gratuita para os alunos.[436] Por esse motivo, a sua expulsão por Pombal acarretou uma redução catastrófica do número de estudantes e até a degradação das matérias ensinadas, cujo teor científico diminuiu. Como Pombal não substituiu a rede dos jesuítas no terreno por nada comparável, a sua política também afastou muitos alunos dos estudos – especialmente os que não fossem nobres, o que não acontecia antes.[437] Embora outros países europeus também tivessem, mais tarde, expulsado a Companhia de Jesus, em Portugal o papel que eles tinham no ensino era muito mais central do que noutros países e, em resultado disso, essa expulsão, nos termos em que foi feita, foi particularmente desastrosa. A informação relativa aos níveis de analfabetismo, baseada na percentagem de pessoas que assinavam de cruz, disponível para o século xvii, sugere que não existiam diferenças relativamente à Europa do Norte. [438] No Porto, em meados desse século, dois terços dos comerciantes e artesãos sabiam ler e escrever. Essa percentagem era
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ainda maior entre os alfaitates, seleiros, e cordoeiros, entre outros; até mesmo alguns caixeiros, tecelões, douradores, e ferreiros não eram analfabetos.[439] A estimativa mais rigorosa que temos relativamente à literacia (e numeracia) comparada do país face aos outros países da Europa mostra que, em meados do século xviii, Portugal não estava ainda particularmente atrasado. Contudo, isso viria depois a mudar radicalmente, iniciando um processo de brutal atraso educativo do país que continuou até aos dias de hoje.[440] Pombal causou assim uma das maiores regressões sociais da nossa História ao ter destruído a base a partir da qual uma expansão educativa poderia ter acontecido. Carvalho e Melo foi também responsável por perseguições políticas, incluindo a condenação à morte do Conde de Atouguia, dos Marqueses de Távora, e do Duque de Aveiro (Figura 22).[441] Foram todos mortos de forma violenta e os seus bens confiscados. O palácio que pertencia ao Duque de Aveiro foi arrasado, e o chão salgado para nada mais ali crescer, dando origem ao Beco do Chão Salgado que ainda hoje pode ser visitado em Belém. Para além disto, Pombal instrumentalizou politicamente a Inquisição, para cuja direção nomeou um irmão seu e que usaria para fins políticos, como vimos no Capítulo 5.[442] Pombal centralizou ainda a censura nas suas mãos, criando a Real Mesa Censória – seria a primeira vez que apareceriam em Portugal funcionários régios pagos pelo Estado e dedicados exclusivamente à censura, ficando todas as pessoas obrigadas a entregar-lhes a lista dos livros que tinham em casa. As obras de autores como Hobbes, Diderot, Rousseau, Voltaire, La Fontaine, ou Espinoza estavam proibidas e os volumes recolhidos foram queimados. A Gazeta de Lisboa – a única imprensa periódica focada em relatos sobre eventos no estrangeiro que existia no país – foi proibida em 1762.[443] Existia uma atmosfera de censura e silêncio, os correios abriam toda a correspondência, comunicando o seu conteúdo quando relevante ao governo, e mesmo pessoas próximas de Pombal viviam com medo dele.[444] Como «o segredo é a alma do negócio», os comerciantes adotavam subterfúgios como a escrita com vinagre e sumo de limão.[445] De qualquer modo, importa notar que a forma de governar de Pombal, de natureza opressiva e extrativa, apesar de se ter agravado nesta altura, nem apareceu com ele, nem desapareceu com a sua queda do poder em 1777.[446] Ainda que a Gazeta de Lisboa viesse então a regressar, na realidade, muitas das elites rentistas que emergiram na época pombalina continuaram à tona nas décadas seguintes.[447] Algum tempo depois da
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queda do Marquês de Pombal, uma das suas filhas recomendava à mãe «V. Ex.ª se lembre de queimar todas as minhas cartas e o que escrevo a meu pai».[448] Nada tinha mudado. Os abusos da autoridade continuariam, agora protagonizados por figuras como Pina Manique.[449] Figura 22. A tortura e execução dos Távora.
O Terramoto de 1755 Façamos agora uma breve pausa para discutir as consequências económicas e políticas do Terramoto, sobre o qual incidem alguns mitos da História de Portugal. As suas consequências têm sido muito exageradas.[450] É inegável que, apesar do seu epicentro se ter localizado no mar, cerca de 300 quilómetros a sudoeste de Lisboa, a magnitude, entre 8,4 e 8,7 na escala de Ritcher, foi uma das maiores até hoje observadas.[451] Foi sem dúvida um acontecimento muito destrutivo, e que por isso impressionou a Europa da época, aparecendo na obra Candide ou l’Optimisme de Voltaire. Se Lisboa já tinha tido outros abalos grandes no passado, sobre os quais sabemos menos, não restam dúvidas de que o Terramoto foi devastador, em parte também por ter acontecido a 1 de novembro, o Dia de Todos os Santos, quando as igrejas estavam cheias, e por ter sido seguido de incêndios e de um maremoto (tsunami). O Paço da Ribeira foi praticamente destruído, levando a Corte a estabelecer-se depois, durante três décadas, na zona da Ajuda, num palácio construído em madeira conhecido à época como a Real Barraca.
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Cerca de 9000 barracas foram levantadas na cidade, com frontarias de imitação arquitetural e alguma pedra.[452] Por ter sido atingida a capital, perderam-se muitas obras de arte, arquivos, e material administrativo, para grande tristeza dos historiadores do futuro. Mas vejamos mais números. Mesmo depois do Terramoto, a cidade de Lisboa continuou a ter quase quatro vezes a população da segunda cidade do país, o Porto. Apenas parte de Lisboa foi afetada – como atesta a sobrevivência dos bairros de Lisboa que se encontram à volta do Castelo de São Jorge, e que ainda hoje mantêm uma traça medieval. O número de habitantes de Lisboa que morreram ou deixaram a cidade correspondeu a 12% do total e apenas um quarto de século depois Lisboa recuperaria a população préterramoto.[453] Por comparação, a população de Londres só voltou a ter uma dimensão igual à que tinha antes do Blitz quase um século depois, na segunda década do século xxi.[454] Um observador estrangeiro notou em 1796 que Lisboa estava quase totalmente reconstruída, sendo outro o problema: «as ruas estão sujas; pagam-se impostos elevados para a sua limpeza, mas a administração é má e o dinheiro é empregado em outras coisas e não àquilo a que se destinava originalmente».[455] O Terramoto de 1755 não afetou apenas Lisboa, mas também o sul do país. No entanto, era no centro e norte do país, os quais foram pouco afetados, que viviam dois terços da população.[456] A série do PIB de que agora dispomos, que já vimos no Capítulo 3 e também na Figura 15 do presente capítulo, mostra que o impacto imediato do Terramoto na economia, nos anos de 1755 ou 1756, foi limitado. Este desastre natural teria, no entanto, uma consequência política importante: permitiu a Carvalho e Melo tornar-se a figura central do Estado. Pombal iria aproveitar as circunstâncias para declarar uma espécie de estado de emergência no país, permitindo-lhe governar de forma cada vez mais ditatorial, afirmando-se como o defensor do país contra os jesuítas e outros bodes expiatórios.[457] Diogo de Mendonça Corte-Real, um dos secretários de Estado que tinham partilhado o poder com Pombal até ao Terramoto, foi destituído logo em 1756, acabando desterrado em Mazagão e mais tarde preso no Forte de Peniche, onde viria a morrer. Já depois da expulsão dos jesuítas, Carvalho e Melo continuou a perseguir todos os que estorvassem a sua vontade, acusando-os de serem seguidores dos ideiais jesuíticos, e classificado-os como fanáticos e
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obscurantistas.[458] A política pombalina chegaria a um cúmulo com a Lei da Boa Razão, de 1769, que na prática submetia quase tudo e todos à vontade do rei. O legado político e económico de Pombal para o atraso do país O governo do país por parte de Pombal foi desastroso. Mas também é preciso compreender o contexto que o tornou possível: uma Monarquia Absoluta, como não tinha existido nos séculos anteriores. Consideremos a seguinte analogia: se um condutor embriagado atropelar um peão, ninguém vai dizer que o problema é o condutor não ter travado. A causa mais profunda foi outra. Voltando ao século xviii, o problema foi terem faltado limites ao poder executivo. E isso foi, por sua vez, um resultado das chegadas do ouro brasileiro, que, como expliquei, levaram a essa alteração na natureza das instituições políticas portuguesas. Pombal desprezava o parlamento inglês, que considerava um mero instrumento dos grandes interesses comerciais da Inglaterra.[459] No entanto, sabemos hoje que esse sistema parlamentar é precisamente uma das chaves para compreendermos porque foi aí possível a Revolução Industrial.[460] No que toca às relações comerciais de Inglaterra com Portugal, Carvalho e Melo culpava os Tratados comerciais por só serem vantajosos para a Inglaterra. Nas suas palavras: Examinando o presente estado do comércio entre as duas nações [Portugal e Inglaterra] por uma rigorosa análise dos tratados recíprocos e da observância com que eles hoje se praticam em ambos os domínios, achei que Portugal sustenta todo o peso das convenções enquanto estas são onerosas e que a Inglaterra, com pouco ou nenhum encargo, recolhe delas todo o proveito, praticando-as somente na parte em que lhe são úteis.[461]
Na realidade, como veremos, a política alternativa que Pombal promoveu não beneficiou o país. Uma dessas políticas, a nível económico, foi a criação de várias companhias comerciais. A sua fundação ajuda a compreender as motivações de Carvalho e Melo para expulsar a Companhia de Jesus. Em Portugal, os jesuítas opunham-se ao seu despotismo e ao Absolutismo régio em geral, e no Brasil resistiam ao monopólio do comércio externo imposto pela Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, uma companhia criada por Pombal que operava numa região do Brasil onde o Governador era o seu irmão 155
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (Figura 23).[462] Este último, Governador Geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão de 1751 a 1759 e secretário de Estado da Marinha e do Ultramar entre 1760 e 1769, também esteve envolvido na conspiração que levou ao assassínio dos Távora e do jesuíta Gabriel Malagrida, que foi queimado na fogueira num auto de fé no Rossio em setembro de 1761.[463] Como tantas vezes tem sucedido na nossa História, existia aqui um conflito de interesses: Pombal não só nomeava os irmãos e outros familiares para altos cargos, como depois ainda beneficiava financeiramente das suas ações políticas. No caso da Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, beneficiava dos lucros da companhia através de ações que estavam em nome da sua segunda mulher.[464] Através do seu irmão, Carvalho e Melo ordenou que as leis régias fossem executadas rigorosamente, sendo que a sua violação devia ser considerada crime de lesa-majestade. Ordenou mesmo que qualquer missionário jesuíta que no púlpito insinuasse qualquer crítica à política real fosse imediatamente destituído das suas funções e expulso.[465] Figura 23. Sebastião José Carvalho e Melo e os seus irmãos, o Cardeal Inquisidor e o Governador do Grão-Pará e Maranhão.
Pombal promoveu uma vasta campanha propagandística, acusando os jesuítas de quererem criar um «império secreto» no Brasil, na obra conhecida como Relação Abreviada em 1757.[466] Publicada inicialmente de forma anónima – o spin não é uma invenção dos dias de hoje –, este opúsculo foi promovido por Pombal. Na sequência do Tratado de Madrid 156
(1750), que definia as fronteiras entre o Brasil e o Império Espanhol (substituindo o Tratado de Tordesilhas, que não era respeitado), a Companhia de Jesus, por ordem do seu Geral e Provincial, obedeceu às ordens do rei de Portugal e mandou sair os seus missionários dos Aldeamentos ou Reduções. A maioria, de facto, obedeceu e saiu. Houve, no entanto, um pequeno grupo de jesuítas, muito minoritário, que ficaram ao lado dos ameríndios e resistiram. É essa colaboração de alguns jesuítas na resistência indígena, e em particular nas Guerra Guaranítica (1753-1756), que será usada como pretexto e mitificada pela documentação pombalina para incriminar toda a Companhia de Jesus, atribuindo-lhe um plano secreto mirabolante segundo o qual estaria a construir um Estado autónomo, como princípio de um projeto maior de dominação universal.[467] Carvalho e Melo enviou também queixas à Santa Sé, acusando os jesuítas de serem rebeldes contra a autoridade real e papal.[468] O esforço de propaganda contra os jesuítas continuou com outras obras, como a Dedução Cronológica e Analítica, de 1761, também encomendada por Pombal. Carvalho e Melo era um político que não olhava a meios para atingir os seus fins. A Mesa do Bem Comum dos Homens de Negócio foi extinta em resposta a uma representação que apresentou à Coroa contra a instituição do monopólio dessa companhia de que Pombal beneficiava. [469] Para isso foram utilizadas cartas apreendidas aos acusados, apesar de existir à época uma grande auto-censura relativamente ao que era deixado por escrito.[470] Depois de exilar os líderes da Mesa do Bem Comum, Pombal criou uma nova agência, a Junta do Comércio, que não era mais do que um braço político do governo, existente para defender os seus interesses, ao contrário do que tinha acontecido com a Mesa do Bem Comum.[471] Existem hoje vários casos bem documentados referentes ao enriquecimento dos irmãos Carvalho e Melo graças ao seu controle do aparelho do Estado.[472] Mesmo um autor estrangeiro, que até mostrava alguma admiração por Pombal, o descrevia como: «Altivo, vingativo, cruel, ávido de honras e de dinheiro».[473] Neste contexto, não será talvez surpreendente que os supostos esforços de fomento industrial promovidos por Pombal tenham, na realidade, falhado.[474] Pombal, de resto – nesta fase ainda apenas como Conde de Oeiras – mandou construir um magnífico palácio com um luxuoso jardim nessa região próxima de Lisboa, que ainda hoje pode ser visitado. Era um homem que não hesitava em subornar aqueles de quem precisava. Por exemplo,
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enviou uma embaixada ao Papa, em setembro de 1757, chefiada pelo seu primo direito Francisco de Almada Mendonça, que pagou a cardeais com anéis de diamantes, o seu apoio nas políticas preparatórias para a expulsão da Companhia de Jesus.[475] As prisões continham milhares de presos políticos, sendo alvo de críticas ferozes por parte de visitantes estrangeiros, a forma de funcionamento do sistema de justiça, assim como os conflitos de interesse relacionados com a proximidade das autoridades policiais a Pombal.[476] A Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Douro, criada por Pombal em 1756, supostamente com o objetivo de melhorar a qualidade do vinho exportado para Inglaterra, fornece um outro exemplo de compadrio e de defesa do interesse próprio promovidos por Pombal. Em fevereiro de 1757, os taberneiros do Porto revoltaram-se contra a Companhia que, ao criar um monopólio, tanto os prejudicava. A revolta foi violentamente suprimida por Pombal, com a execução de 26 pessoas e com mais de 300 condenados a confisco, deportação, ou chicotadas. Foram dadas ordens aos habitantes da cidade do Porto para alimentarem as tropas enviadas para acabar com a revolta, e para pagarem um imposto que iria cobrir os salários e munições dos soldados. Pombal ainda aproveitou este contexto para acusar os jesuítas de serem responsáveis por instigar esta revolta (o que era falso), expulsando-os de imediato da Corte de D. José, onde eram até então confessores.[477] Este episódio, assim como a Relação Abreviada, mostra que a aversão de Pombal aos jesuítas, que se opunham a ele, era anterior à tentativa de assassinato do rei D. José que ocorreu no ano seguinte, em 1758.[478] Na sequência desse atentado, os jesuítas foram incriminados com base em confissões conseguidas sob tortura, tendo Pombal encabeçado um enorme esforço de propaganda – que viria a ter reflexos noutras partes da Europa – em que a Companhia de Jesus era apresentada como o maior obstáculo ao progresso do país.[479] Pombal fez mesmo a acusação, absurda, de que eram os jesuítas os responsáveis pela forma de funcionamento da Inquisição, bem como pelo bloqueio cultural e intelectual do país.[480] Acabou assim por expulsá-los, um ano depois do atentado (Figura 24).[481] Entre os cerca de 1500 jesuítas que existiam em Portugal à época, mais de 1100 foram exilados para o Vaticano, 222 foram presos, acabando 80 por morrer no cárcere, e tendo alguns sendo ainda deportados para África.[482]
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Figura 24. Sebastião José de Carvalho e Melo a expulsar os jesuítas, por Louis-Michel van Loo e Claude Joseph Vernet (1766).
A destruição do ensino A mais desastrosa política de Pombal, no longo prazo, foi a destruição do sistema educativo do país. Ainda na primeira metade do século xviii, o nível de capital humano em Portugal apenas estava atrás do das partes mais avançadas da Europa, sendo até pequena a diferença.[483] Nesta altura, Portugal tinha duas universidades, assim como uma rede de escolas de ensino pré-universitário em todo o país. Nas décadas seguintes, essa situação viria a mudar radicalmente. Tudo indica que, ainda hoje, pagamos o preço da decisão de Pombal de expulsar os jesuítas do país, sem que tivesse sido implementada qualquer alternativa viável para a educação da população. Foi declarado pela Junta da Inconfidência que os bens confiscados aos jesuítas deveriam financiar a substituição da sua atividade de ensino. Os bens dos jesuítas foram efetivamente confiscados, mas essa substituição não chegou a acontecer, sendo na realidade a intenção do governo o encaixe, no erário régio, de capital para equilibrar as contas do Estado.[484] No alvará mandado publicar por Pombal, em 28 de junho de 1759, afirmava-se mesmo, em nome do rei, que devia ser abolida a memória das escolas jesuítas, «como se nunca houvessem existido nos meus Reinos, e Domínios, onde têm causado tão graves lesões e tão graves escândalos», mas os planos para o que deveria substituir essas escolas eram vagos e nunca foram implementados.[485] Só por esta razão não parece descabido escrever que Pombal foi o pior político de sempre a governar Portugal.[486] Carvalho e Melo deixou-nos o legado mais desastroso de qualquer político que 159
alguma vez governou o país. Em meados do século xviii, antes da sua expulsão, a Companhia de Jesus contava, em Portugal, mais de 1000 membros, a maior parte dos quais estavam envolvidos no ensino, que era gratuito. Os jesuítas geriam 20 colégios à data da sua expulsão, assim como a Universidade em Évora, que também seria fechada com a sua expulsão, como já vimos – e que só viria a reabrir mais de dois séculos depois. No total (incluindo Brasil, Angola, Índia e Macau), a Companhia de Jesus tinha 37 colégios, além de um grande número de residências.[487] Tudo viria a ser substituído por quase nada. A situação do ensino, no período anterior à expulsão da Companhia de Jesus por Pombal, foi estudada por Francisco Malta Romeiras e Henrique Leitão, em cujas estimativas e trabalho me apoio aqui.[488] Em 1759, quando Pombal expulsou do país os jesuítas – sendo o primeiro país da Europa a fazê-lo – eles eram responsáveis pela formação de capital humano de cerca de 20.000 estudantes.[489] No total, existiriam em Portugal, em meados do século xviii, cerca de 20.000 alunos naquilo que poderíamos considerar o ensino pré-universitário, distribuídos por todo o país (Tabela 4). Muitas destas escolas tinham mais de 1000 alunos, tendo tido o Colégio de Santo Antão em Lisboa entre 2500 e 3000.[490] Mesmo as mais pequenas teriam algumas centenas. O ensino jesuítico não seria perfeito, mas existia no terreno – e podia ter servido de base para uma expansão educativa a acontecer mais tarde. [491] Pouco importa que o número de jesuítas não fosse o suficiente, só por si, para a massificação do ensino. O que importa é que a sua presença teria criado condições para que a massificação viesse a ocorrer – mesmo que pelas mãos do Estado. É preciso capital humano para formar mais capital humano. Num país de analfabetos faltavam os professores. Pombal declarou que estava a reformar o sistema educativo, que prometia substituir por um mais moderno. Mas – como tantas vezes aconteceu na História – tudo não passou de retórica vazia, de belas palavras de um político, sem qualquer efeito prático. Pombal evitou utilizar a infraestrutura existente, mas, na maior parte dos casos, as escolas dos jesuítas foram substituídas por pouco ou nada, levando à quase total destruição do sistema educativo pré-universitário do país. Portugal tornou-se um país sem escolas. Tabela 4. Escolas da Companhia de Jesus em Portugal.
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Escola
Ano de fundação
Escola
Ano de fundação
Colégio de Jesus de Coimbra
1542
Colégio de Todos os Santos de Ponta Delgada
1591
Colégio do Espírito Santo de Évora
1551
Colégio de Santiago de Faro
1599
Colégio de Santo Antão de Lisboa
1553
Colégio de São Sebastião de Portalegre
1605
Colégio das Artes de Coimbra
1555
Colégio de Nossa Senhora da Conceição de Santarém
1621
Colégio de São Paulo de Braga
1560
Colégio de Santiago de Elvas
1644
Colégio de São Lourenço do Porto
1560
Colégio de São Francisco de Xavier do Faial
1652
Colégio do Jesus de Bragança
1561
Colégio de São Francisco de Xavier de Setúbal
1655
Colégio de São Manços de Évora
1563
Colégio de São Francisco de Xavier de Portimão
1660
Colégio de São João Evangelista da Madeira
1570
Colégio de São Francisco de Xavier de Beja
1670
Colégio de Ascensão de Angra
1570
Colégio de São Francisco de Xavier de Beja
1677
Colégio da Purificação de Évora
1577
Seminário dos Santos Reis de Vila Viçosa
1735
Colégio da Madre de Deus de Évora
1583
Colégio da Santíssima Trindade de Gouveia
1739
Seminário de São Patrício de Lisboa
1590
O Colégio de Santo Antão, em Lisboa, que tinha tido mais de 2500 alunos em meados do século xviii, foi substituído apenas pelo Colégio dos Nobres, com menos de 100 – e concentrando-se no estudo de matérias de natureza não científica.[492] Ou seja, o número de alunos caiu para cerca de 4% ou menos.[493] Como se deduz do nome, o acesso a este último Colégio era exclusivo às classes sociais mais elevadas e houve dificuldade em interessar os alunos nas disciplinas científicas aí ministradas. Fundado em 1761 – no papel –, o Colégio dos Nobres começaria a funcionar vários anos depois, inicialmente com 24 alunos, e sem professores de várias disciplinas. Foi aliás difícil recrutar professores e alguns pararam mesmo de lecionar, voltando aos seus países de origem devido à falta de preparação matemática dos alunos. Em 1772, acabou mesmo por ser abolido de vez o ensino das disciplinas científicas, já que não se praticavam. Até ser mandado encerrar, em 1837, o Colégio dos Nobres não voltaria a ter ensino científico, limitando-se ao ensino literário.[494]
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Vale a pena contrastarmos esta situação desastrosa com a da Aula da Esfera que funcionou ininterruptamente entre 1590 e 1759 no Colégio de Santo Antão – num espaço que atualmente faz parte do Hospital de São José. Ainda hoje podem ser vistos painéis de azulejos representativos dos assuntos lecionados, à semelhança do que acontece no Colégio do Espírito Santo, da Universidade de Évora. Aí se ensinaram matérias científicas e matemáticas, com particular ênfase dada às questões relacionadas com a náutica e a cosmografia. A Aula da Esfera era gratuita e estava aberta a leigos, sendo ensinada em português. Os alunos aprendiam noções tão avançadas como os logaritmos, o telescópio ou a projeção de Mercator, sendo a escolha dos professores muito cuidada, recorrendo-se várias vezes a professores estrangeiros de grande renome. [495] Tudo isso acabara. Para além de Lisboa, deram-se em todo o país quebras muito significativas do número de alunos, havendo relatos sobre a falta de professores e a fraca qualidade do ensino.[496] D. Tomás de Almeida, o Diretor-Geral dos Estudos, responsável por substituir o ensino dos jesuítas, teve desde logo enormes dificuldades em recrutar pessoal docente, e avisaria mesmo num relatório de 1763 que «os habitantes não têm como pagar os salários aos Mestres e não mandam os filhos aos Estudos pelo que se perdem muitos talentos que seriam úteis à Pátria se tivessem aplicação».[497] Dois anos depois, descobriu que em várias das poucas escolas que restavam no país, os professores continuavam a usar gramáticas jesuíticas, tendo sido esses professores suspensos e os exemplares queimados em público.[498] Nos anos seguintes, a situação do ensino pré-universitário manteve-se deplorável. [499] Uma lei de 1772, que lançava os fundamentos do que deveria ser o sistema escolar futuro do Reino, dizia mesmo, no seu preâmbulo, que não era necessário alfabetizar grande parte da população, pois deveriam ser reservados «ao serviço rústico, e humilde do Estado», espelhando o que era argumentado por vários homens dessa época que defendiam que os filhos dos pastores e dos criados deviam simplesmente seguir a profissão dos seus pais.[500] Os oratorianos também foram perseguidos por Pombal, mesmo os que tinham gabinetes de Física experimental mais modernos.[501] Nas universidades, as consequências da política pombalina também foram desastrosas. Até então existiam apenas duas universidades em Portugal e em todo o império. Uma delas, a Universidade de Évora, foi pura e simplesmente fechada, como vimos no capítulo anterior. Restou a
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Universidade de Coimbra. A reforma desta, promovida por Pombal (1772), tem aspetos interessantes – deu-se uma modernização dos programas, a criação da Faculdade de Matemática, a criação do Jardim Botânico, e do Observatório Astronómico, entre outros aspetos.[502] A estrutura da universidade foi completamente reformada. Mas, como outras coisas com Pombal, foi tudo irrealista: muito mais de jure do que de facto. Não é possível elogiar em abstrato os planos da reforma sem falar da realidade dessa reforma. Grande parte das coisas previstas não se implantaram. O ensino chegou a parar por completo e a universidade passou a ter muito menos alunos, tornando-se mais elitista já que sofreu diretamente as consequências do colapso do ensino pré-universitário.[503] Entre 1724 e 1771 (47 anos) passaram pela Universidade de Coimbra 132.869 alunos, o que corresponde a uma média anual de 2827 matrículas, enquanto no período imediatamente posterior à reforma pombalina, entre 1772 e 1820 (48 anos), apenas 21.675 alunos se matricularam na universidade, correspondendo a uma média anual de 452 alunos – cerca de 16% das inscrições anuais anteriores, sem que isto tivesse correspondido a uma melhoria do conteúdo programático.[504] Deste modo, a mais importante e mais dramática herança de todas as políticas pombalinas foi Portugal tornar-se no país com a maior percentagem de analfabetos da Europa: durante todo o século xix, as taxas de literacia não chegavam a 20%. Portugal apenas voltaria a ter 20.000 estudantes no ensino pré-universitário nos anos 30 do século xx, e isto com uma população do país quase três vezes maior (quase 7 milhões, em vez dos cerca de 2,5 milhões, como vimos no Capítulo 1). [505] De modo a estabelecer um corte radical com o passado, Pombal evitou utilizar esta infraestrutura, convencido de que, dessa forma, o corte seria total, mas não foi capaz de propor uma alternativa eficaz.[506] O ensino dos jesuítas, ao contrário de outros sistemas, era central para Portugal, e a realidade é que foi destruído sem ter sido substituído por uma alternativa funcional. Foi uma catástrofe. Portugal regrediu de forma muito clara, precisamente quando outros países da Europa Ocidental estavam a investir na escolarização das suas populações e a assistir à industrialização das suas economias. Logo em 1800, a percentagem de adultos que em Portugal sabiam assinar o seu nome estava consideravelmente atrás da de outras partes da Europa Ocidental. [507] Portugal estava já então claramente atrasado, em contraste com o que
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tinha acontecido apenas meio século antes, como vimos anteriormente. Foi nisto, na prática, que resultou o despotismo – dito «esclarecido», aparentemente sem ironia – de Pombal. As origens setecentistas do atraso português Como expliquei neste capítulo, o notável progresso da economia e do sistema político em finais do século xvii foi interrompido em inícios do século seguinte. Para Portugal, tudo viria a mudar com a descoberta de grandes quantidades de ouro no Brasil. O século do ouro foi o século de uma maldição que condenou Portugal a um processo de decadência económica e política, da qual só viria a sair muito mais tarde, já no século xx. Com a base industrial destruída, um sistema político arcaico, e sem escolas que permitissem sequer educar uma elite mínima que pudesse servir de base a uma expansão futura da escolaridade, o país entrou no século xix condenado, precisamente quando a maior parte dos países da Europa Ocidental estava a preparar-se para ter revoluções industriais. Nem todas as decisões feitas nos séculos seguintes foram boas, como veremos. Mas o contexto foi muito dificultado pela pesada herança com que o país saiu do século xviii. Pombal foi, sem dúvida, um agente do seu tempo. Importa reconhecer, contudo, que as decisões que tomou foram desastrosas para o país. O Terramoto de 1755 ajudou-o a centralizar o poder, tendo de resto a sua sobrevivência política sempre dependido da vontade do rei D. José, como a morte deste último veio a demonstrar. Com o capitalismo de compadrio que Pombal promoveu para benefício próprio, quem enriqueceu foi ele, assim como os seus familiares e aliados políticos – enquanto a população portuguesa no seu todo saía prejudicada. Seria isto «nepotismo esclarecido»? Já a acusação de que expulsar os jesuítas iria permitir o avanço científico do país – amplamente difundida às ordens de Pombal – é uma das maiores mentiras da nossa História. Ainda hoje estamos a pagar as consequências. Mas não deixa de ser importante compreender que Pombal não foi um tirano que apareceu do nada. Quando subiu ao poder, o ouro do Brasil já estava a causar problemas económicos e políticos ao país desde há várias décadas: a indústria estava em decadência acentuada e as Cortes já não se reuniam
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há meio século. Como tal, a concentração de tanto poder num só homem, e num homem como Pombal, é em si um sintoma da profunda doença do país, e não a sua causa. Não deixa, no entanto, de ser verdade que Pombal foi a pessoa mais diretamente responsável por condenar Portugal a séculos de atraso educativo. Vale a pena, por isso, fazer a seguinte pergunta: porque será que Pombal é tantas vezes encarado como um reformista de vistas largas? Em parte, porque ainda governou durante um período de relativa prosperidade e porque os regimes que o sucederam não foram melhores. Não é por acaso que, durante a Viradeira – o regime associado a D. Maria I, que lhe sucedeu –, cunhou-se a expressão «mal por mal que venha o Pombal». A pouco e pouco, Pombal veio a surgir como uma figura musculada que fez algo pelo país. Hoje sabemos que a economia colapsou, de forma espetacular, nas décadas finais do século xviii, e que o atraso se acentuou na primeira metade de Oitocentos.[508] Ainda que isso tivesse acontecido em parte devido às ações de Pombal – e, num sentido mais profundo, devido à Maldição Dourada –, o declínio fez-se sentir principalmente a partir do reinado de D. Maria I. Um observador francês notou, em finais do século, a pobreza da população de Lisboa, troçando da convicção de muitos portugueses de que viviam no melhor país do mundo. Escrevia ele que, pelo contrário, o país era «o mais atrasado, o mais ignorante, o menos civilizado, o mais selvagem e bárbaro de todos os países da Europa».[509] A qualidade das instituições não melhorou depois da queda de Pombal, tendo outro observador estrangeiro considerado que o governo de D. Maria I: pode ser considerado como o mais despótico de todos os que dirigem os Reinos da Europa (…) a lei aqui estabelecida é geralmente uma palavra vazia de sentido, a não ser quando as suas cláusulas são postas em execução por ordens especiais do soberano.[510]
Essa era a forma de governar de Pombal, mas assim continuou depois da sua queda.[511] Não sou, em geral, a favor do derrube de estátuas, mas não deixa de ser curioso que Pombal tenha a proeminência que tem na mais conhecida rotunda do nosso país.[512] Essa estátua representa hoje o triunfo da propaganda sobre a verdade, mais de dois séculos depois. Não há dúvida de que as mentiras promovidas por Pombal foram eficazes, também por terem sido evidentemente úteis a regimes e narrativas que surgiram mais 165
tarde. Assim, não surpreende a subsequente reabilitação e veneração da sua figura, não deixando de ser irónico que ainda hoje seja frequentemente visto como um grande reformador, até entre muitos historiadores incautos. Tudo culminou no mandar erguer da sua estátua, cerca de um século e meio depois da sua morte, por um regime que também se caracterizaria por uma grande divergência entre as belas intenções declaradas e a realidade conseguida a nível educativo: a Primeira República. Mas, antes de aí chegarmos, temos de atravessar o século xix: um período deprimente da História de Portugal. Ainda que a maldição do ouro já estivesse a afundar a economia setecentista portuguesa, e o atraso tenha aí as suas raízes, foi no século xix que Portugal bateu no fundo. [294] Carta de Ofício a Marco António de Azevedo Coutinho em 2 de janeiro de 1741. Em: MELO (1986), p. 11. Como noutras citações mais antigas mencionadas neste livro, modernizei o vernáculo da citação. [295] GODINHO (2019). Originalmente publicado em 1971. Godinho, que poderia ser descrito como um Oliveira Martins estruturalista, foi um sábio, mas como tantos outros deixou-se trair muitas vezes pela sua ideologia. [296] COSTA et al. (2018), p. 1148; COSTA et al. (2013). [297] CARDIM (2005), p. 223. [298] Sobre o efeito dos metais preciosos americanos nestes outros países, veja-se PALMA (2018a); e CHEN et al. (2022). [299] Uma discussão das quantidades produzidas e importadas para a Europa está disponível em Palma (2020a); e também PALMA (2022a). [300] DRELICHMAN (2007). [301] No caso de Inglaterra os dados correspondem a Inglaterra e País de Gales até 1700, e à Grã-Bretanha a partir daí. As fontes são: BROADBERRY et al. (2015); PRADOS DE LA ESCOSURA et al. (2022); PALMA e REIS (2019). [302] A abertura dos portos deu-se com uma carta régia de janeiro de 1808 («Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas»), promulgada pelo Príncipe-regente pouco depois da chegada da corte ao Brasil. Terminou assim o sistema de comércio mercantil que obrigava os produtos brasileiros a passarem pelas alfândegas da metrópole. Dois anos depois seria assinado o «Tratado de Comércio e Navegação», um acordo internacional assinado entre Portugal e a Grã Bretanha a 19 de fevereiro de 1810, que estabelecia uma taxa alfandegária preferencial para os comerciantes ingleses.
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[303] Outros exemplos poderiam ser dados, como Angola ou a Nigéria (comparadas com o Quénia), ou ainda São Tomé e Príncipe (por contraste com Cabo Verde). Sobre esta última comparação, veja-se VICENTE (2010). [304] Isto acontece em particular aos países em que a natureza das instituições políticas não é muito robusta quando as receitas aparecem, o que era certamente o caso da Venezuela no século xx, e de Espanha e Portugal nos séculos xvi a xviii. Mas, o que é relevante notar é que o contrafactual não teria sido certamente diferente para Inglaterra caso grandes quantidades de prata tivessem sido encontradas em Massachusetts ou na Virginia em finais do século xvii, por exemplo. Sobre a condicionalidade da Maldição dos Recursos à situação política e de desenvolvimento institucional inicial, veja-se COLLIER (2011). [305] Ainda que a designação seja recente, este fenómeno é de alguma forma conhecido há muito. Por exemplo, tanto David Hume como Adam Smith notaram, no século xviii, que a prata e o ouro não tinham enriquecido a Espanha e Portugal, antes o contrário. Hume notou isso mesmo em 1742, e Adam Smith constatou-o em 1776. Veja-se HUME (1987), p. 33, e SMITH (2003), livro 4, capítulos 1 e 6. Logo no século xvi alguns intelectuais em Espanha também debateram estas questões, ainda que em termos bastante mais vagos do que é hoje possível fazermos. [306] GOLLIN et al. (2016). [307] Um sumário desta literatura está disponível em CHAROTTI et al. (2022). Relativamente às elites extrativas ligadas à terra, veja-se DRELICHMAN (2007). [308] No caso de Espanha, a prata era taxada a 1/5 ou 1/10, dependendo das regiões ou períodos temporais. No caso do Brasil no século xviii, o sistema fiscal mais conhecido é o do Quinto, mas na realidade existiram outros em certas épocas, como é o caso da Capitação (imposto pago em função do número de escravos a trabalhar na extração do ouro). Também podia existir contrabando, mas tudo indica que era relativamente reduzido, já que era uma prioridade absoluta da Coroa evitar a fraude. De forma aproximada podemos dizer que cerca de um quinto do produzido era entregue ao Estado. [309] Há um terceiro mecanismo que se relaciona com volatilidade dos recursos Veja-se CHEN et al. (2022). [310] Sobre as dimensões comparadas das maldições dos recursos ao longo da história, especialmente na sua componente fiscal, veja-se DRELICHMAN e VOTH (2008). [311] CHAROTTI et al. (2022). [312] COSTA (1883), pp. 303-305. [313] Também a França tinha tido uma bancarrota em 1558, possivelmente por ter imitado a Espanha. Veja-se REINHART e ROGOFF (2009), p. 87. [314] PERES (1957), PERES (1933), 2.ª parte, cap. III. Não se tratou de uma bancarrota pois os credores tiveram a possibilidade de recuperar o principal (o capital investido), caso não considerassem as novas condições satisfatórias. [315] CARDIM (2005), p. 186.
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[316] As Cortes de Castela com Filipe II (I de Portugal) também ainda tinham, apesar de tudo, alguma força nesta época, embora em decrescendo. A viragem definitiva deu-se com o novo imposto de 1599, já durante o reinado de Filipe III (II de Portugal). Veja-se HENRIQUES e PALMA (2023a). [317] HENRIQUES e PALMA (2023a). [318] MAGALHÃES (2012), pp. 93-94, 110. [319] Apesar disto, não há suporte empírico até 1640 que justifique a ideia, lançada pela historiografia antifilipina antes e depois da Restauração, de que os duques de Bragança estariam em retiro em Vila Viçosa como forma de resistência passiva. CUNHA (2000), pp. 281-294. [320] A principal invasão espanhola acabaria por ser adiada quase duas décadas (1659), coincidindo com o fim da Guerra Franco-Espanhola (1635-1659), tendo Portugal e a nova dinastia dos Bragança tido tempo para organizarem o país e a sua defesa. [321] A décima foi nessa altura substituída pela contribuição predial. Sobre as implicações fiscais da décima, veja-se COSTA e MIRANDA (2023); COSTA et al. (2022). [322] Entretanto, os impostos não aprovados pelas Cortes aumentaram. Depois de 1640, apenas voltariam a ser frequentes a partir de meados do século seguinte, com Pombal. [323] Tendo também na década de 30 desse século sido forjadas as atas das Cortes de Lamego. Veja-se CARDIM (2005), p. 198. [324] CARDIM (2005), pp. 199-200. [325] LUCENA (1641), p. 26. Ver ainda CARDIM (1998b). [326] Na assembleia de 1641, reconheceu-se às Cortes a capacidade para avaliar a governação do rei, de terminar com a obediência do reino ao mesmo, e de escolher um novo soberano. Veja-se CARDIM (2005), p. 202. [327] Estes corresponderam a 1641, 1642, 1645-1646, 1653-1654, 1668, 1673-1674, 16791680, e 1697-1698. [328] HENRIQUES e PALMA (2023a), nomeadamente a Tabela 7, p. 277. Esta situação das Cortes portuguesas na segunda metade do século xvii contrastava com o caso de Espanha, onde a última assembleia tomou lugar em 1664. [329] ROCHA (1896), p. 169. Sobre a relevância destas matérias a explicar o sucesso económico de Inglaterra, veja-se COX (2016). [330] Atas de Vereações, Livro 48, Arquivo Distrital de Beja. [331] CHAROTTI et al. (2022), e a literatura aí citada. [332] CARDIM (2005), pp. 206, 222.
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[333] Esta expedição está descrita, por exemplo, em AZEVEDO (1929), e em PERES (1932), p. 156 e seguintes. [334] MAURO (1997), pp. 147-152. [335] BOXER (1952), pp. 35-36. [336] Muita da discussão que se segue é baseada nestes acontecimentos descritos em KEDROSKY e PALMA (2024). Sobre a descoberta do ouro por volta de 1693-1695, veja-se BOXER (1962), p. 36. [337] MAGALHÃES (2005). Sobre a chegada das notícias do ouro à costa do Brasil logo em 1695-1697, veja-se BOXER (1962), p. 39. [338] BOXER (1962), p. 41. [339] BOXER (1969), pp. 455-457. [340] Sobre os números da população e emigração, veja-se PALMA et al. (2020); e COSTA et al. (2016), p. 166. [341] BOXER (1962), p. 42. [342] Ver detalhes no apêndice a KEDROSKY e PALMA (2024). [343] BOXER (1969), pp. 459-461. Consulte-se também BOXER (1962). [344] TEPASKE (2010). [345] COSTA et al. (2016), p. 204. [346] COSTA et al. (2018); COSTA et al. (2013), p. 1148. [347] Esta é uma terminologia que se prende com um fenómeno do século xx, e é, a meu ver, infeliz, mas está bem estabelecida na literatura e por isso a menciono. [348] PALMA e REIS (2019), pp. 485, 497. [349] PALMA e REIS (2019). [350] COSTA et al. (2016), especialmente a p. 188. [351] NETO (2017), p. 118; SOUSA (2006), p. 28; SEQUEIRA (2018). [352] COSTA et al. (2016), p. 195. [353] Tem existido em anos recentes uma reavaliação do valor da política industrial na ciência económica. Reconhece-se agora que existem vários contextos, tanto históricos como nos países em vias de desenvolvimento na atualidade, em que uma política de substituição de importações, ou mais genericamente uma política industrial, tiveram sucesso (ainda que não aconteça sempre). Veja-se JUHÁSZ (2018); LANE (2021); JUHÁSZ et al. (2023).
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[354] PEDREIRA (1994), p. 26; PEDREIRA (2005). [355] DIAS (1954). [356] Sobre a posição de Vedor da Fazenda, cujas competências variaram no tempo, veja-se ANTT, Conselho da Fazenda. [357] LOURENÇO (2007), p. 124. [358] MACEDO (1982), pp. 25, 29. [359] Sobre o contexto mercantilista da época, FINDLAY e O’ROURKE (2009). [360] Relativamente a este tipo de efeitos, veja-se GALOR (2011). [361] MACEDO (1982), p. 32. [362] HANSON (1981). [363] Em 1671, artesãos especializados em têxteis foram contratados em Rouen, França, para trabalhar em Estremoz. HANSON (1981). [364] Este programa de industrialização acabou por ser abandonado devido à pressão política de quem era afetado negativamente pelo monopólio, mas demonstrou a viabilidade da produção em escala em Portugal. COSTA et al. (2016), p. 141. [365] LOURENÇO (2007), p. 308. [366] HANSON (1981). [367] MENESES (2001); MACEDO (1982), p. 36. [368] COSTA et al. (2016), p. 203. [369] MACEDO (1982), pp. 25, 28. [370] FINDLAY e O’ROURKE (2009). [371] LOURENÇO (2007), p. 306. [372] PEDREIRA (2005), p. 194. [373] PEDREIRA (2005). [374] KEDROSKY e PALMA (2024). [375] O desenvolvimento industrial teria certamente levado ao aparecimento de externalidades (na linguagem dos economistas), através de economias de aglomeração sobreviventes à independência do Brasil e do seu mercado privilegiado, fenómenos que seriam inevitáveis a prazo. Sobre um tratamento geral destas questões, veja-se KRUGMAN (1987); e MELITZ (2005).
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[376] Note-se que no período anterior à refrigeração, a carne era efetivamente um bem não transacionável (ainda que fosse possível ser trocada a nível internacional se salgada). A fonte da figura é KEDROSKY e PALMA (2024). [377] PEDREIRA (2005), p. 205-206. [378] COSTA et al. (2016); FISHER (1971), p. 197. Noto de passagem que o ouro português ganhou importância na economia inglesa. PALMA (2018a); e PALMA (2020a). [379] FISHER (1971), p. 144-145. [380] SILVA (2018), pp. 59-60, 79-80. [381] FRANCIS (1966), pp. 216-217. [382] Para detalhes sobre estes cálculos, veja-se KEDROSKY e PALMA (2024). [383] Condições parecidas foram oferecidas mais tarde pela Inglaterra aos Países Baixos. Veja-se PEDREIRA (2005). [384] COSTA et al. (2016), p. 140. [385] COSTA et al. (2016), p. 195. [386] MACEDO (1982), p. 45. [387] COSTA et al. (2016), p. 200. [388] A minha interpretação é, portanto, diferente da longa tradição que existe que culpa diretamente o Tratado de Methuen. Por exemplo, em parte numa resposta à teoria das vantagens comparativas de David Ricardo, o economista alemão Friedrich List notou já no século xix que Portugal teve um surto industrial em finais do século xvii, interrompido devido à destruição da indústria nacional promovida pelo Tratado de Methuen. Veja-se LIST (1841). [389] GOLLIN et al. (2016). [390] Fontes: PALMA e REIS (2019); e REIS (2005b) para os períodos posteriores a 1850. Note-se que o trabalho em curso de Hélder Carvalhal e Filipa Ribeiro da Silva, utilizando outro tipo de dados para o século xviii, sugere um padrão semelhante: por volta da década de 60 do século xviii, cerca de metade da população portuguesa trabalhava em setores fora da agricultura. Este trabalho ainda não está disponível, mas consulte-se o trabalho relacionado que os mesmos autores fizeram anteriormente, CARVALHAL e SILVA (2019). [391] Não confundir o milho americano (Zea mays), que teve uma grande expansão em Portugal no século xviii, especialmente no norte do país; com o milho europeu, chamado de milhete, milho-miúdo ou painço. Sobre a questão agrícola, veja-se PALMA e REIS (2019) e a literatura aí citada; sobre a emigração para o Brasil, veja-se PALMA et al. (2020). [392] Sobre este conceito, veja-se GOLLIN et al. (2016). [393] Para detalhes sobre o cálculo destes valores, veja-se KEDROSKY e PALMA (2024).
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[394] COSTA et al. (2018), p. 1153. [395] Existe muita informação disponível sobre a venda de terras e o comportamento de mercado nas terras existentes. Aplicavam-se incentivos económicos mesmo nas terras sujeitas a contratos enfitêuticos, onde na prática as pessoas simplesmente pagavam uma renda (geralmente uma proporção do produto) ao proprietário. Por isso havia ampla margem de manobra para decisões individuais e incentivos. Veja-se FREIRE e LAINS (2016), nomeadamente os caps. 3, 4, e 6. Consulte-se ainda COSTA et al. (2016), pp. 180-182. [396] As regiões litorais complementavam as montanhosas a nível agrícola, inclusivamente através da especialização produtiva que levava a uma relação simbiótica entre a pecuária e o cultivo de cereais, assim como pomares. Por volta de 1722, a pecuária no Algarve era suficientemente produtiva para responder à procura não só dessa região, como também de outras do país. Nessa província, grandes percentagens dos bois (93%) e das ovelhas (72%) estavam disponíveis para venda. Veja-se COSTA et al. (2016), pp. 180-182. [397] COSTA et al. (2016), pp. 172-173. [398] KEDROSKY e PALMA (2024); PALMA e REIS (2019). [399] KEDROSKY e PALMA (2024). [400] PEDREIRA (2005), p. 196; KEDROSKY e PALMA (2024). [401] PEDREIRA (1994), p. 59. [402] CORDEIRO, pp. 12, 56-57. [403] Para além do PIB per capita propriamente dito, os salários reais (ou seja, já corrigidos da inflação) dos trabalhadores, tanto os qualificados como os não qualificados, caíram nas décadas finais do século xviii. Para além disso, também a quantidade relativa de trabalhadores não qualificados aumentou relativamente aos qualificados, como também sugere a informação respeitante à mudança estrutural negativa observada na segunda metade do século xviii (e que se agravaria na primeira metade do século xix), antes discutida no contexto da Figura 19. Veja-se PALMA e REIS (2019). [404] Esta ideia é defendida, por exemplo, por PEDREIRA (1994), p. 298. No entanto, este autor compara os números de exportação nominais ao longo do tempo sem ter em conta a inflação. Entre 1790 e 1805 os preços aumentaram cerca de 50%, estabilizando (ou até descendo ligeiramente) durante algum tempo, para aumentarem novamente a partir de 1809. Alguns anos depois, existiu até um período deflacionário, ou seja, de descida de preços. Tal volatilidade nominal impede que se infiram valores ou quantidades sem ter em conta a evolução do nível de preços. Para o nível de preços, veja-se PALMA e REIS (2019). Outro autor que defende a importância das Invasões na destruição da indústria, focando-se no caso de Trás-os-Montes, é SOUSA (2006). [405] FISHER (1971). [406] Ainda em finais da década seguinte, outro estrangeiro faria observações de teor semelhante: «O ouro que lhes vem da América meridional só lhes passa pelas mãos para ir encher as das nações mais industriosas, em paga de coisas indispensáveis de alimento e vestuário que
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elas lhes fornecem». Veja-se MÓNICA (2020), pp. 22-23, 27, 59. [407] FISHER (1971), p. 144. [408] COSTA et al. (2016), p. 197. [409] O «excesso de monges, padres e freiras», assim como o dinheiro gasto em missas «para livrar as almas do Purgatório», por vezes notada por observadores estrangeiros, deve ser visto não tanto como fruto da mentalidade da época – que era parecida em toda a Europa, e dentro desta ainda mais na Europa católica, como vimos no Capítulo 5 –, mas como resultante da disponibilidade de ouro do Brasil e das suas consequências. Em relação aos comentários de observadores estrangeiros sobre o excesso comparado de gastos nestas matérias, veja-se MÓNICA (2020), pp. 43, 58, 96. [410] O conde de Povolide deixou um testemunho relativo ao «aumento do culto divino da Igreja com grandes despesas da sua Real Fazenda», despesas que podiam ser feitas graças à «grande abundância de oiro que trazem as frotas do Brasil das minas deste Estado, e vemos já erguida em Sé Patriarcal a Capela Real com Patriarca e cónegos com traje e honras de bispos»; citado em RAMOS et al. (2009), p. 348. [411] Na traseira do coche pessoal deste último destaca-se uma águia imperial que representa o Poder Absoluto. [412] PEDREIRA (1994), pp. 41-42 e PEDREIRA (2005). [413] As cidades de consumo, por contraste com as cidades produtivas, tendem a proliferar em países com níveis elevados de exportações de recursos naturais (como o ouro). GOLLIN et al. (2016). [414] FISHER (1971). [415] REIS (2017b). [416] COSTA et al. (2016), p. 183. [417] FISHER (1971), p. 222. [418] COSTA et al. (2016), p. 180. [419] Só a invenção da refrigeração no século seguinte permitiu o comércio internacional deste produto, já a salga não era uma solução técnica adequada a grande escala. [420] HENRIQUES e PALMA (2023a); COSTA et al. (2018). [421] RODRIGUES (2019a). [422] RODRIGUES (2019b). [423] RODRIGUES (2023). [424] SALVADO (2019a); SALVADO (2019b).
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[425] COSTA et al. (2016), p. 207. [426] COSTA et al. (2016), p. 206-208. [427] As medidas protecionistas de Pombal levantadas a partir de 1770 mantinham a proibição de atividades industriais no Brasil. Manter-se-iam em vigor até 1785. [428] MADUREIRA (1997), pp. 439-440. [429] MADUREIRA (1997), pp. 439-440; COSTA et al. (2016), pp. 215-216. [430] Já que era responsabilidade do rei convocar as Cortes. Sobre a relação entre a necessidade de assinar um Tratado de comércio e a defesa do Tratado ultramarino, veja-se, por exemplo, SILVA (2018). Note-se que, no século anterior, D. João IV e os seus sucessores tinham negociado com as Cortes não de bom grado, mas antes por necessidade fiscal. Veja-se CARDIM (2005), pp. 206-207. [431] Sobre o «poder absoluto», veja-se MACEDO (1963). [432] Apesar do título ter sido atribuído apenas sete anos antes de perder o poder, refiro-me várias vezes no livro a Sebastião José Carvalho e Melo como «Marquês de Pombal», ou «Pombal», mesmo para períodos anteriores ao título nobiliárquico, por ser assim conhecido, sendo esta simplificação comum mesmo na literatura histórica especializada. [433] Por exemplo, veja-se PEREIRA (2009). Para uma visão mais matizada, mas ainda assim largamente positiva em relação aos supostos esforços de centralização e racionalização de Pombal, veja-se MAXWELL (1995); MONTEIRO (2008); e RAMOS et al. (2009), pp. 366-371. [434] FRIEDRICH (2022), pp. 445-447. [435] Os jesuítas defendiam genericamente que os governantes deviam ter o poder limitado pelas leis, assembleias representativas, normas éticas, e conceitos abstratos como o «bem comum». FRIEDRICH (2022), p. 299. [436] O ensino gratuito era prática corrente nos colégios jesuítas. FRIEDRICH (2022), pp. 103, 272; O’MALLEY (1993); e GRENDLER (2018). [437] ROMEIRAS (2014), pp. 17-21. [438] LISBOA e MIRANDA (2011), pp. 341-342. [439] SILVA (1986). [440] STOLZ et al. (2013), pp. 562-564. [441] Fonte: gravura de autor desconhecido, de 1759 ou 1760. Imagem disponível em BIBLIOTECA NACIONAL. [442] Seria, aliás, possível reforçar algumas das ideias que referi nesse capítulo. No presente contexto, importa notar que nomear grupos de uma forma genérica como «o Clero» – mesmo distinguindo o Clero secular do regular – esconde diferenças importantes. Os jesuítas eram muito
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diferentes, e opunham-se, aos dominicanos, associados à Inquisição e apoiantes do poder absoluto. [443] SEABRA (2021); FRANCO (2006), p. 576; CARVALHO (2011b), p. 467. [444] MÓNICA (2020), pp. 35, 48. [445] LISBOA e MIRANDA (2011), p. 286. [446] Já no reinado de D. João V era habitual as autoridades abrirem a correspondência privada, «para garantir a segurança do trono» e «precaver os mais remotos inconvenientes». LISBOA e MIRANDA (2011), p. 384. [447] COSTA et al. (2016), p. 216. [448] LISBOA e MIRANDA (2011), p. 386. [449] MÓNICA (2020), p. 49. [450] Um exemplo de um autor que exagera muito o impacto do Terramoto é PEREIRA (2009). [451] Em rigor, estas unidades correspondem à escala de magnitude do momento, que sendo calculada de forma diferente (mais precisa), está normalizada para ser equivalente à Escala de Richter. JOHNSTON (1996). [452] FRANÇA (2009), pp. 350-351. Tal como França refere, foi moda entre os lisboetas de posses construírem barracas mesmo nos casos em que as suas casas não tinham sido afetadas. [453] SERRÃO (2007). [454] OFFICE FOR NATIONAL STATISTICS (2019). [455] MÓNICA (2020), p. 43. [456] A população de Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Montes, e Beira correspondia a cerca de dois terços do total em meados do século xviii. Note-se que para além do Algarve e do Alentejo, incluo a Estremadura nas regiões afetadas. PALMA et al. (2020). [457] FRANCO (2006), pp. 415, 422. [458] FRANCO (2006), p. 471. [459] MELO (1986), p. 11. [460] BESLEY et al. (2023); O’BRIEN e PALMA (2023); O’BRIEN (1988); BOGART e RICHARDSON (2011); e BOGART e RICHARDSON (2009). [461] MELO (1986), p. 34.
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[462] No que diz respeito a Pombal expulsar os jesuítas motivado pela vontade de aumentar o poder real, à semelhança do que aconteceu pouco tempo depois em Espanha, veja-se FRIEDRICH (2022), p. 599. [463] Malagrida tinha passado muitos anos no Brasil e enfrentado o irmão de Pombal, que era aí Governador. Para além disso, no ano seguinte ao Terramoto, este jesuíta publicou um opúsculo no qual afirmava que a catástrofe era um castigo de Deus pelo despotismo e a ruína moral do governo português. Veja-se FRIEDRICH (2022), p. 591; e FRANCO (2006), pp. 417419. [464] ROMEIRAS (2014), p. 14, e as referências aí citadas. [465] FRANCO (2006), p. 413. [466] Elaborado sob supervisão e inspiração de Pombal, a obra que ficou conhecida como Relação Abreviada fazia acusações medonhas contra os jesuítas. Veja-se FRANCO (2006), p. 422. [467] Esta temática encontra-se bem explicada em FRANCO (2006), pp. 400-411. Agradeço a José Eduardo Franco as várias conversas que tivemos sobre estes assuntos. [468] FRANCO (2006), pp. 428-429. [469] PEDREIRA (1992), p. 413. [470] LISBOA e MIRANDA (2011), p. 385. [471] COSTA et al. (2016), pp. 215-216. [472] ROMEIRAS (2019a), p. 172. [473] MÓNICA, p. 45. [474] Sobre o fracasso dos planos pombalinos de fomento industrial, veja-se MADUREIRA (1997); MACEDO (1982); e PEDREIRA (2005), pp. 205-206. [475] ROMEIRAS (2019a), pp. 175-177. [476] Outros observadores estrangeiros observaram nas décadas seguintes a corrupção do sistema judicial. Consideraram que, por vezes, ela resultava da pobreza dos agentes do Estado, como por exemplo os escrivães e os juízes. Veja-se MÓNICA (2020), pp. 43, 97, 129, 136. [477] RAMOS et al. (2009), pp. 366-368; FRANCO (2006), pp. 424-427. [478] As circunstâncias desta eventual tentativa de assassinato não são de todo claras, não sendo de excluir que se tenha tratado de uma encenação encomendada pelo próprio Carvalho e Melo. [479] ROMEIRAS (2014), p. 15; ROMEIRAS (2019b); FRIEDRICH (2022), pp. 585-586, 590-592. Sobre a incriminação dos jesuítas, acusados de tentativa de regicídio para vingarem o afastamento da corte e o desfavor real, Veja-se FRANCO (2006), pp. 343-344. Um visitante
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italiano em 1760, que por duvidar do que se passara tentou recolher testemunhos, notou que ninguém queria dar-lhe informações, «sendo visível o medo que tinham de abordar o sucedido»; Veja-se MÓNICA (2020), p. 27. [480] FRANCO (2006), p. 574. Na realidade, em Portugal, os jesuítas eram inimigos declarados da Inquisição, controlada pelos dominicanos. THOMAZ (2022), pp. 162-163. [481] O quadro na sua iconografia também mostra outros aspetos da obra de Pombal, nomeadamente a reconstrução da cidade depois do Terramoto. [482] ROMEIRAS (2019a), p. 186; FRIEDRICH (2022), pp. 602-603. [483] STOLZ e REIS (2013), pp. 562-564. [484] FRANCO (2006), pp. 436-438. O Tribunal da Junta da Inconfidência tinha sido criado por Pombal para julgar os acusados pelo atentado contra o rei D. José dos crimes de lesamajestade, traição e rebelião. Viria a ser também usado para envolver os jesuítas na tentativa de regicídio. [485] CARVALHO (2011b), pp. 429-436. [486] Sobre a catástrofe pombalina para a educação nacional, vale a pena também consultar BUESCU (2012), pp. 56-68. [487] ROMEIRAS (2014), p. 17 e as referências aí citadas; ROMEIRAS (2019b). [488] ROMEIRAS e LEITÃO (2022). [489] LEITÃO (2007), p. 88. [490] Sobre este colégio, consultar LEITÃO (2007). [491] Na viragem para o século xviii, a Companhia de Jesus acompanhava apenas com algum atraso e hesitação as novidades científicas da época; FRIEDRICH (2022), pp. 380-382. [492] CARVALHO (1959); LEITÃO (2007); e ROMEIRAS (2014), p. 18. [493] Isto porque o Colégio dos Nobres nunca chegou a acolher 100 alunos. [494] CARVALHO (2011b), pp. 446-451. Não considero aqui a fundação da Aula do Comércio, por Pombal, pois também era uma instituição elitista, sem capacidade de alavancar o desenvolvimento, num país de analfabetos. [495] LEITÃO (2007). [496] ANDRADE (1981). [497] CARVALHO (2011b), pp. 434-436. [498] CARVALHO (2011b), pp. 436-437.
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[499] CARVALHO (2011b), pp. 453-457. [500] LISBOA e MIRANDA (2011), pp. 352-353. [501] FRANCO (2006), pp. 463-465. [502] CARVALHO (2011b), pp. 466, 469. [503] CARVALHO (2011b), pp. 436, 482. [504] ROMEIRAS (2019b), cap. 2. [505] RAMOS (2009), pp. 40, 45; LEITÃO e ROMEIRAS (2015). [506] ROMEIRAS (2019b), cap. 2. [507] REIS (2005a), p. 202. [508] PALMA e REIS (2019). [509] MÓNICA (2020), pp. 50-51. [510] MÓNICA (2020), pp. 58-59. [511] MADUREIRA (1997), p. 439. [512] Não nego a legitimidade do derrube espontâneo de algumas estátuas, como aconteceu por exemplo em Portugal logo a seguir ao 25 de Abril, e em países ex-comunistas da Europa Central e do Leste no início dos anos 1990. São situações diferentes de outras mais recentes em que isso é feito por certas minorias políticas num contexto político estável e na ausência de um debate histórico sério.
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7. Um país novo, liberal? Heróis do mar, nobre povo, Nação valente, imortal, Levantai hoje de novo O esplendor de Portugal! Henrique Lopes de Mendonça, A Portuguesa No século xix Portugal bateu no fundo. Durante décadas, o país foi pouco mais do que uma quintarola de Inglaterra. A transformação de Portugal num protetorado sob dependência inglesa resultou em parte das Guerras Napoleónicas, e depois das Civis, mas também foi um resultado do declínio económico do país que vinha de trás.[513] Ainda assim, durante essa centúria, a situação comparada agravou-se. O atraso institucional e educativo – e, em consequência, também económico – do país tornou-se manifesto. Em meados do século, Portugal já era o país mais atrasado da Europa Ocidental: uma situação relativa que se manteve até aos nossos dias.[514] Por outro lado, como notei no capítulo anterior, as raízes desse atraso eram anteriores. Apesar de ter sido no século xix que Portugal bateu no fundo, também foi nessa altura que alguns dos pilares do desenvolvimento futuro do país começaram a ser estabelecidos, ainda que de uma forma muito insatisfatória. Existe uma abundante literatura escrita em português, alguma da qual com qualidade, dedicada a este período. Mas, do meu ponto de vista, falta a esta literatura uma visão comparada e quantitativa, de longo prazo. Esta carência tem contribuído para que muitas vezes se confunda a convergência política – que aconteceu, pelo menos parcialmente, nesta época – com a económica, que não aconteceu.
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O período entre a Revolução do Porto de 1820 e a Regeneração de 1851 foi muito instável politicamente, e pode ser descrito de forma simplificada e sumária como uma sucessão de violentas lutas pelo poder entre absolutistas e liberais e, depois, entre diferentes fações dos vencedores liberais. Dentro deste último grupo, figuras como Passos Manuel, «à esquerda», e Costa Cabral, «à direita», estavam separadas por um mundo de diferenças, tendo também existido «centristas» como Rodrigo da Fonseca Magalhães.[515] Numa perspetiva política, este período conturbado é um legado da forma como decorreram as lutas napoleónicas em Portugal, juntamente com a situação anterior de grave atraso do país. Mesmo depois do Congresso de Viena (1815), que marcou a derrota final de Napoleão em toda a Europa, o rei não regressava do Brasil, deixando o país ocupado por tropas inglesas, comandadas por Beresford. Em reação a esta situação deu-se o pronunciamento militar no Porto em 1820, que acabou por levar à convocação de Cortes, que já não se reuniam desde 1698. As Cortes aprovaram a Constituição de 1822, inspirada pela Constituição de Cádis, homologada em Espanha uma década antes. Essa Constituição propunha mudanças radicais à sociedade, que dificilmente poderiam ficar sem resposta. O infante D. Miguel foi exilado na sequência das movimentações de teor absolutista conhecidas por Vilafrancada, em 1823, e Abrilada, em 1824, esta última contrariada por uma intervenção militar estrangeira, ainda em vida de D. João VI. A morte do rei, dois anos depois, seria seguida ainda nesse ano de 1826 pela Carta Constitucional outorgada por D. Pedro IV.[516] Este abdicou então a favor da filha, D. Maria II, à época com apenas sete anos de idade. As forças da Regência (ou seja, os «liberais» cartistas), comandadas pelo futuro Duque de Saldanha, derrotaram tentativas de invasão do país por exércitos miguelistas vindos de Espanha, entre novembro de 1826 e março de 1827, graças a apoio militar e financeiro britânico.[517] Mas os empréstimos contraídos teriam de ser pagos. No verão de 1827, D. Pedro enviou a filha para Portugal e nomeou o irmão mais novo, D. Miguel, como sendo o regente e futuro genro. No ano seguinte, este último regressou do exílio, dissolvendo pouco depois a Câmara dos deputados, cartista, e afirmando-se como monarca «absoluto».[518] Milhares de liberais foram presos, mortos, ou tiveram de se exilar em Inglaterra e noutros países. Muitos viriam a fazer parte do exército liberal que se iria formar nos anos seguintes.
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Mas no Brasil as coisas não corriam bem a D. Pedro, que, por vicissitudes várias, se viu forçado em 1831 a abdicar a favor do filho, na altura com cinco anos de idade. Foi assim que, voltando para a Europa, e viajando entre Paris e Londres, apesar de não ter conseguido apoio oficial nem francês nem britânico, acabou por conseguir um empréstimo privado avolumado em nome da sua filha D. Maria II, para financiar uma tentativa de reconquista de Portugal.[519] Desembarcaria em fevereiro do ano seguinte na única região de Portugal que não era dominada pelos miguelistas: os Açores. Juntou-se aí a força de invasão liberal, que incluía de resto muitas centenas de mercenários e voluntários britânicos e franceses. O desembarque das forças liberais no norte do país em 1832, ainda que, numa primeira fase, tenham ficado cercadas na cidade do Porto, levaria a seu tempo à vitória liberal – mas apenas graças a mais uma intervenção militar estrangeira. Nos campos, fora da cidade, poucos tinham aderido ao lado liberal, e não existiram as deserções do exército miguelista com que D. Pedro estava a contar. A Guerra Civil seria vencida pelos liberais graças à ajuda de navios a vapor britânicos, pois havia interesse em recuperar os empréstimos concedidos a D. Pedro e aos liberais.[520] Na sequência de uma Guerra Civil violenta, triunfava assim o Cartismo em 1834, ainda que a Revolução de Setembro, dois anos depois, seguida da Constituição de 1838, tenha tentado um regresso, pelo menos parcial, ao radicalismo da Constituição de 1822. Passos Manuel gabou-se mesmo de que tinha «cercado o trono de instituições republicanas».[521] Mas seria sol de pouca dura, já que em finais do ano seguinte se daria logo uma contrarrevolução.[522] Haveria depois uma reversão ao Cartismo, mais moderado, em 1842, seguida de um compromisso a partir de 1851. Até então, imperava o «exclusivismo»: quando uns ganhavam, saneavam da administração pública os anteriores. Um dos aspetos mais relevantes desta época foram as questões de natureza religiosa, centrais para um país com as características de Portugal, onde numerosas instituições eclesiásticas tinham acumulado uma grande riqueza e tinham um papel central na vida das populações. Logo em 1822, as Cortes Constituintes, conscientes de que o Clero era genericamente favorável ao que se passou a chamar «Absolutismo», proibiram a admissão de noviços e reduziram as casas conventuais por decreto. Esta decisão foi revertida com a contrarrevolução de 1823. D. Miguel, em 1829, chegou a autorizar o regresso da Companhia de Jesus.
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Mas poucos anos depois, na Convenção de Évora Monte, que confirmou a vitória do lado liberal da Guerra Civil (1828-1834), foram novamente expulsos os jesuítas e extintas as ordens religiosas masculinas, sendo as femininas proibidas de admitir noviças, ficando, portanto, condenadas a prazo. Logo em 1832, ainda antes da vitória liberal, Mouzinho da Silveira aboliu os dízimos eclesiásticos que se destinavam à sustentação do Clero e da Igreja.[524] Mas essa seria apenas uma primeira ação. Joaquim António de Aguiar, o maçon que foi líder dos cartistas, ficaria conhecido como o «Mata Frades».[525] Isto aconteceu por ter promulgado a lei de 30 de maio de 1834, que declarava extintos «todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares», sendo os seus bens nacionalizados e destinados à venda em hasta pública. Terão sido cerca de 450.[526] Ainda hoje, aliás, muitos hospitais e outros imóveis do Estado por todo o país resultam desta expropriação.[527] Mais do que um ataque ao poder eclesiástico em geral, estas reformas visavam o Clero regular em particular, que tinha uma parte importante da riqueza, bem como uma forte influência, em Portugal. Nesta medida, estavam a dar sequência a um ideal pombalino.[528] No entanto, ao contrário do que viria a acontecer na Primeira República, não existiu uma vontade de erradicar da população o sentimento religioso; a motivação do anticlericalismo «liberal» foi portanto de natureza mais política e económica do que propriamente ideológica.[529] Ficou, de resto, conhecido este período como «devorismo», por existirem suspeitas de que a venda dos bens da Igreja foi feita de forma a facilitar o acesso a esses bens aos líderes liberais, o que seria, pelo menos em parte, verdade. [530] Aceitavam-se títulos do Tesouro pelo valor facial, por mais desvalorizados (ou seja, sujeitos a um desconto) que estivessem no mercado, para a compra dos bens em hasta pública, tendo os bens mais valiosos sido leiloados apenas em Lisboa e não nas sedes de comarca.[531] Estas e outras trafulhices não beneficiavam o país no seu todo, mas antes quem tinha à partida informação e recursos (e, logo, a capacidade) de aproveitar estas oportunidades para acumular mais riqueza. É difícil saber se teria sido ou não possível uma transição mais pacífica, mas a extinção das ordens religiosas masculinas em 1834 privou o país da única potencial fonte de elites alfabetizadas que ainda restava e que estava presente em todo o território.[532] Não é evidente que a rede monástica e conventual pudesse ter servido de base para uma efetiva
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alfabetização do país, mas o certo é que a alternativa não funcionou: a escola primária tornou-se obrigatória logo em 1835 – e assim continuou nas décadas seguintes, mas esta decisão nunca passou do papel. O país continuou rural e profundamente analfabeto. Não se tinha aprendido nada com o fracasso das reformas idealizadas, mas apenas no papel, por Pombal. Foi, de novo, o de jure a ser incapaz de encarnar no de facto. A instabilidade política e o aprofundamento da divergência A instabilidade política não terminou com a Convenção de Évora Monte de 1834. Até 1851, haveria cinco golpes de Estado com sucesso, e duas Guerras Civis (em 1836 e 1846-1847).[533] Nesse período, as fraudes eleitorais foram constantes, com diferentes forças políticas a acusarem-se umas às outras de ilegitimidade, listas carimbadas, urnas roubadas, e falsificação de atas.[534] Logo em setembro de 1836, a fação liberal que advogava o regresso à Constituição de 1822 tomou o poder. Durante mais dois anos, os chamados Setembristas discutiram uma nova Constituição e um novo ciclo de reformas, ambos desafiados por uma viva oposição interna, incluindo uma sublevação militar fracassada conduzida por um neto do Marquês de Pombal, o Marechal Saldanha (futuro Duque de Saldanha), em 1837. Os Setembristas mantinham-se no poder, mas a ambiguidade de tudo isto pode ser exemplificada pelo facto de, embora se considerassem a ala esquerda do liberalismo, se terem recusado a acabar com o tráfico de escravos, resistindo à crescente pressão britânica.[535] Os motivos eram evidentes: não parecia haver outro modelo de negócio para o comércio africano e, de facto, uma vez abolido o tráfico de escravos alguns anos depois, esse comércio estagnou.[536] Estava também em vigor o sufrágio censitário, podendo apenas votar quem tivesse pelo menos uma «renda líquida anual de 80$00 réis provenientes de bens de raiz, comércio, capitais, indústria ou emprego». Mesmo nos meios moderados considerava-se que este limite inferior era necessário para os proletários não abaterem «a força dos homens esclarecidos».[537] Mas na prática, na ausência de golpes, o resultado das eleições era decidido por quem as organizava, ou seja, pelo governo em funções, através do controlo da máquina eleitoral. Em 1842, com um novo pronunciamento militar no Porto, iniciou-se o Cabralismo, uma fase marcada pela tentativa de compromisso entre os liberais sob a liderança de Costa Cabral, uma das figuras de proa do 183
movimento Setembrista, que preferiu um regresso aos princípios da Carta de 1826 e viria a ser visto como um conservador. No entanto, o compromisso foi precário e a paz social frágil. Esta foi uma época marcada por constantes acusações de nepotismo, já que Cabral, inicialmente um modesto advogado beirão, viria a adquirir uma fortuna e a preencher os cargos públicos com os seus familiares, chegando mesmo a adquirir o Convento de Cristo em Tomar em 1843.[538] Apesar de Cabral ter o apoio da Rainha, o regime sofreu uma violenta contestação interna, incluindo uma grave revolta militar Setembrista em fevereiro de 1844, derrotada de forma violenta, através de uma ditadura, e apenas com a ajuda de Espanha.[539] No ano seguinte, juízes, administradores de concelho, e governadores civis recorreram à fraude eleitoral para dar a vitória aos cabralistas.[540] Em 1846 eclodiu a Guerra da Patuleia, designação que resulta da expressão «pata-ao-léu» devido ao caráter popular da revolta.[541] Esta foi uma guerra civil que aconteceu na sequência de uma revolta popular conhecida como «Revolução da Maria da Fonte», que se deu contra reformas fiscais e a proibição de realizar enterros dentro de igrejas, gerando muita oposição, especialmente por parte de mulheres no norte do país.[542] O povo, armado com paus, foices, e machados, atacava quartéis, cartórios, e repartições públicas; gritando «vivas» a D. Miguel, queimava-se a «papelada» que simbolizava a odiada cobrança de impostos.[543] Costa Cabral reagiu com mais leis draconianas e, tal como tinha acontecido dois anos antes, deu-se uma ditadura do executivo acompanhada pela suspensão de liberdades e garantias.[544] O resultado acabou por ser mais uma guerra civil de vários meses entre as duas fações de liberais, aproveitada ainda por alguns movimentos miguelistas. Este conflito viria a terminar apenas com outra intervenção militar estrangeira.[545] Na sequência de tudo isto, os recenseamentos fabricados para as eleições de 1845 foram utilizados em finais de 1847 para «eleger», de forma fraudulenta, um parlamento composto exclusivamente por cabralistas.[546] Continuariam as acusações persistentes de nepotismo e «roubalheira» contra Costa Cabral, de regresso à Presidência do Conselho de Ministros a partir de 1849, levando-o a aprovar leis impopulares contra a imprensa e, a seu tempo, a perder o apoio do exército e mesmo do seu partido.[547] Em 1851, um novo pronunciamento militar por parte de Saldanha (agora Duque) iniciou um ciclo político mais estável e pacífico: a Regeneração. O meio século anterior tinha sido não apenas conflituoso,
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como também desastroso do ponto de vista económico e financeiro: houve até quatro bancarrotas, em 1828, 1837, 1841, e 1845.[548] A vida política era largamente determinada pela «caça ao emprego», com as clientelas a exigirem recompensas pela sua fidelidade durante as fases de ostracismo. Com a Regeneração passou a ser, no entanto, mais moderada a utilização do «cutelo demissório» – o saneamento da administração pública dos «antigos tiranetes» associados aos anteriores governos, dando-se a sua substituição pelos apoiantes da presente situação.[549] Esta política iniciou uma era mais estável e moderada, por oposição ao «exclusivismo» das décadas anteriores que tinha estado associado a um círculo vicioso de ódios e vinganças. Afastou-se também a extremaesquerda, conhecida à época como «os irracionais» ou ainda «os exaltados». As eleições de dezembro de 1852 foram relativamente livres e justas, dentro das regras eleitorais da época.[550] A Regeneração ficaria marcada pela figura de Fontes Pereira de Melo, que acumularia nos anos seguintes as pastas da Fazenda (Finanças) e das Obras Públicas, focandose em arranjar recursos para construir estradas e caminhos-de-ferro.[551] Nesse duplo papel, começou por reduzir unilateralmente os juros da dívida pública – o que correspondeu a uma bancarrota parcial –, mas conseguiu ainda assim que o país entrasse no padrão-ouro em 1854, o que deu confiança aos investidores externos para continuarem a emprestar dinheiro a Portugal. Saiu do governo com a subida ao trono do rei D. Pedro V, em 1855, mas os Setembristas a quem confiou o poder continuaram a sua obra.[552] Entre 1853 e 1856, foi quase completada uma legislatura inteira – situação praticamente inédita na monarquia constitucional portuguesa.[553] A estabilização política foi conseguida por meio do rotativismo, cujos principais protagonistas foram, além do Partido Regenerador, o Partido Histórico, e o Partido Progressista.[554] Mas estes não foram os únicos partidos que existiram, tendo também aparecido nesta época, além de outros mais efémeros, o Partido Republicano Português (PRP, sobre o qual me pronunciarei mais adiante), e o Partido Socialista Português, ao qual Antero de Quental pertenceu.[555] Alexandre Herculano, que inicialmente apoiou Saldanha mas depois se incompatibilizou com ele, argumentou que a causa de todos os conflitos era o próprio facto de o país ser pobre, o que levava muitos políticos sem fortuna pessoal a uma luta desesperada pelos cargos públicos: «não há país na Europa em que o problema político seja mais simples».[556] Mas não era simples: quem
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estava no poder continuava a utilizá-lo para benefício próprio, existindo assim, na melhor das hipóteses, um círculo vicioso. Assim continuou a acontecer depois da Regeneração. O Duque de Loulé, líder do Partido Histórico que foi várias vezes ministro e chefe de governos, foi criticado por usar o dinheiro e autoridade do Estado em benefício próprio, tal como tinha sido Costa Cabral.[557] E se, a partir de meados do século, o exército deixou de fazer cair governos – com uma breve exceção em 1870 – isso tinha de ser pago, levando o Estado a gastar mais com um exército (em que abundavam oficiais, relativamente aos soldados), do que nas obras públicas.[558] Ou, como veremos, na escolarização. Liberais, mas pouco A expressão «Monarquia Constitucional» não é uma designação ideal porque transmite a ideia de que, anteriormente, não tinham funcionado mecanismos constitucionais em Portugal e que a existência de uma Constituição escrita garante a sua observância de facto. Como vimos no Capítulo 2, a realidade é mais complexa e a sua ausência coincidiu, a espaços, com a operação de princípios constitucionais. Por outro lado, a expressão «Monarquia Absoluta» também não nos serve, porque sugere um poder totalitário, sem limites, o que também não correspondia, de todo, à interpretação dos miguelistas que, aliás, se chamavam a si mesmos «realistas» e não se reviam nesta terminologia imposta pelos seus inimigos. Já a expressão «Monarquia Liberal» não é mesmo apropriada, de todo, porque na verdade esse regime, ao longo de todo o século xix e primeira década do xx, nunca foi liberal do ponto de vista da política económica. Portugal esteve longe de ser um país livre-cambista, ao contrário do que a literatura académica afirmou durante décadas – e nalguns casos ainda afirma. Este foi um mito que Jaime Reis demoliu numa série de artigos inovadores publicados na década de 1980, em que provou que o dito «Liberalismo» não esteve na realidade comprometido com o comércio livre. Na realidade, foi um regime altamente protecionista, no que toca à política comercial e alfandegária, apesar do contexto internacional favorável da primeira era da globalização, em particular a partir de 1870.[559] Isso terá sido, pelo menos em parte, o resultado das condicionantes fiscais: o Estado estava altamente dependente das receitas alfandegárias e, como tal, era muito difícil aos agentes políticos mexer na pauta aduaneira. Essa dependência fiscal 186
também convergia com os interesses de grupos a quem interessava manter o statu quo. Mas, para além disso, considerava-se que o que explicava o atraso do país eram as relações comerciais luso-britânicas, e nomeadamente a desvantagem para Portugal dos sucessivos tratados comerciais. Como tal, não existia no discurso público do liberalismo a defesa do livre-câmbio – ou seja, das trocas comerciais com direitos alfandegários baixos ou inexistentes. A partir da pauta de 1837, Portugal manteve-se com taxas alfandegárias que eram das mais altas da Europa. [560]
Em suma, a expressão «Monarquia Liberal» tem apenas uma dimensão legal: a (suposta) igualdade de todos perante a lei, e o (suposto) fim dos privilégios associados a certas classes sociais, mas não corresponde a uma política económica liberal. Para além disso, interponho o termo «suposto» a estes princípios porque, na prática, tal como acontece nos dias de hoje, o acesso à justiça não era igual para todas as classes sociais, sendo a cultura de compadrio com motivações políticas já também à época algo de relevante. Como acontece também nos nossos dias, os conflitos de interesse, o nepotismo, e os chamados tachos e cunhas não estariam ausentes. Um observador inglês que visitou o país escreveu que «o opressor rico exulta na certeza de obter apoio legal, enquanto a pobre vítima da sua tirania acaba a sorver um cálice amargo após o que se remete ao silêncio».[561] Por tudo isto, a expressão «Monarquia Constitucional», embora não seja perfeita, é apesar de tudo mais operacional do que «Monarquia Liberal», ainda que seja necessário mantermos em mente que não foi apenas o aparecimento de uma Constituição escrita no século xix que introduziu, pela primeira vez, regras constitucionais em Portugal. Um país novo? Outro mito relativo a este período é a ideia de que só nesta época é que verdadeiramente surgiu em Portugal um Estado propriamente dito. Algumas correntes historiográficas defendem que, antes do Estado Constitucional, tinha existido meramente uma Coroa, uma coligação precária de territórios com larga autonomia, dos quais uma parcela importante pertencia a casas nobiliárquicas e instituições religiosas.[562] Nesta perspetiva, a Coroa estaria apenas empenhada na defesa dos seus interesses dinásticos e, como tal, não podia ser confundida com um 187
verdadeiro Estado. Mas essa visão corresponde a um equívoco. Em toda a Europa Ocidental, as Monarquias agiam de uma forma que pode ser identificada como as ações de um Estado pelo menos desde o século xiii: recolhendo impostos em troca de bens públicos, como por exemplo a justiça e a defesa nacional.[563] O nosso país não era diferente.[564] Aliás, na realidade, todos os estados estão vulneráveis à captura: não há nada de mágico no liberalismo político, na Constituição escrita, ou no Estado moderno, que garanta a proteção de direitos e a transparência.[565] A Monarquia Constitucional do século xix levou a grandes mudanças nos direitos de propriedade e na natureza e funcionamento das instituições políticas e administrativas, ainda que tenham sido precisos muitos anos para algumas dessas reformas se terem efetivado.[566] No entanto, não é possível afirmar que o regime inventou um país novo, como é por vezes afirmado. A continuidade que existiu deve ser reconhecida. Longe de um recomeço marcado por princípios liberais e novas políticas bem orientadas para o desenvolvimento, o novo regime manteve muito do péssimo legado institucional e educativo que vinha de trás. Numa perspetiva comparada, pode dizer-se mesmo que até o agravou. Que assim foi é sugerido pelo facto das reformas económicas e constitucionais do século xix não terem tido quaisquer efeitos positivos visíveis para a economia nacional. A situação de partida no início desse século, como é evidente, já não seria brilhante. Lord Byron, que visitou a capital do país em 1809 – alguns meses depois de Sir Arthur Wellesley, o futuro Duque de Wellington, ter expulsado os franceses –, afirmou mesmo numa carta à mãe que «Lisboa contém pouco mais que ruas sujas e habitantes ainda mais sujos».[567] Mas vejamos alguns indicadores estatísticos. No início do século xix, a estatura média dos portugueses (indicador do padrão de vida) ainda não era genericamente diferente da que se observava em outros países europeus. Contudo, a partir de meados desse século, as estaturas médias começaram a aumentar em todos os países, mas não em Portugal. Como resultado disso, por volta de 1890, as pessoas portuguesas eram as mais baixas da Europa. Foi, portanto, apenas ao longo do século xix que Portugal se tornou num país de pessoas com estaturas físicas comparativamente baixas – um processo que só começaria a ser revertido em pleno século xx, como veremos no Capítulo 9.[568] A nível macroeconómico, também não existem dúvidas de que o crescimento económico português durante o século xix foi medíocre, circunstância
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agravada pelo facto de várias outras economias europeias atravessarem então o processo conhecido como Revolução Industrial e estarem assim a crescer rapidamente, tendo esta sido uma evolução que Portugal não acompanhou. Para o povo português do século xix, os debates políticos queriam dizer pouco, e a sua vida continuou largamente como tinha sido: rural, pobre, e analfabeta. Como tal, as décadas que vão de 1820 a 1930 foram caracterizadas por uma divergência relativamente aos outros países da Europa Ocidental, muitos dos quais se industrializaram e cresceram rapidamente durante esta época (ver Figura 25).[569] Como é possível verificar nesta figura, a divergência abrandou durante as décadas de 1860 a 1890, mas sem que, nessas décadas, tenha havido uma recuperação sustentada.[570] A Figura 25 também lembra algo que convém ter em mente quando estudarmos os períodos históricos seguintes nos próximos capítulos: o facto de os outros países da Europa crescerem não implica que Portugal tenha de acompanhar esse processo. É por isso sempre necessário analisarmos o que está a acontecer internamente, de modo a melhor compreendermos o comportamento macroeconómico do país. Figura 25. PIB per capita português relativamente à média da Europa Ocidental.
A falta de reformas eficazes A decadência do país não se manifestou apenas na economia, mas também a nível educativo – o que, aliás, ajuda a explicar o mau comportamento da economia. Durante o século xix, o atraso educativo de Portugal, face a outros países da Europa Ocidental, agravou-se consideravelmente. A política desastrosa de Pombal não foi revertida pelos governos seguintes e a retirada estratégica da Corte para o Brasil 189
deixou o Reino sem qualquer estratégia de desenvolvimento durante alguns anos. Esta indefinição, relativamente à política educativa, não mudou depois de 1820, dadas as prioridades políticas e militares relacionadas com as guerras civis da época. Nas décadas de 20 e 30, a Universidade de Coimbra – ainda a única que existia em todo o país – funcionou com grande irregularidade, com largos períodos (incluindo anos inteiros) em que esteve encerrada.[571] Em 1829, as poucas escolas primárias do país foram reduzidas a cerca de metade para poupar dinheiro.[572] A vitória final dos liberais em 1834 aconteceu graças à intervenção militar inglesa no conflito, devido a preocupações de natureza financeira: os ingleses queriam garantir que a dívida soberana portuguesa fosse paga, já que, caso o lado miguelista ganhasse, os empréstimos que os ingleses haviam feito aos liberais seriam certamente repudiados.[573] Depois, na sequência da vitória liberal, as terras comunais foram privatizadas – pelo menos em teoria – e a Coroa, a Aristocracia e a Igreja acabariam por ser expropriadas da maior parte dos seus patrimónios. Poderíamos pensar que esse teria sido um momento de ouro para investir na escolarização do país. Mas não foi isso que aconteceu, como veremos. Entretanto, o país continuava cronicamente atrasado e não dava sinais de melhorar: veja-se, por exemplo, o aumento de 52% para 68% das pessoas a trabalhar no setor agrícola entre 1806 e 1841.[574] Além disso, Portugal estava muito dependente de Inglaterra: mais de metade do comércio externo português, em meados do século xix, era com esse país. À Inglaterra, Portugal comprava grandes quantidades de produtos manufaturados, mas vendia, quase exclusivamente, vinho do Porto.[575] Em meados do século, as «fábricas» portuguesas valiam menos, todas juntas, do que dois barcos carregados de vinho do Porto.[576] Já a nível político, nas décadas de 1830 e 1840, as eleições eram fraudulentas e com baixa participação eleitoral, existindo uma grande (e frequentemente contraditória) atividade legislativa, muita da qual feita «em ditadura», ou seja, sem debate e votação parlamentar.[577] A Regeneração de 1851 conferiu, finalmente, alguma estabilidade ao país, apenas interrompida mais de uma década depois pelo movimento contestatário da Janeirinha de 1868.[578] Contudo, a estabilidade não trouxe grande desenvolvimento industrial. Rodrigo da Fonseca Magalhães, um dos principais defensores intelectuais do consenso político que a Regeneração representava, admitia que «Empregos são
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tudo neste país: não há reforma, não há alteração política, não há nada senão para empregos. Nos empregos consiste toda a política».[579] Com a moderação do uso do «cutelo demissório» apareceu a estabilidade política, mas a utilização dos parcos rendimentos públicos em salários dificilmente iria, só por si, resolver o atraso do país. Na segunda metade do século xix, um programa ambicioso de construção de infraestruturas, conhecido como Fontismo, tomou lugar. [580] Logo na década de 1850, mas depois com mais vigor a partir de 1871, Fontes Pereira de Melo liderou dois governos que iriam investir num ambicioso programa de obras públicas que incluíram a construção de milhares de quilómetros de caminhos-de-ferro e estradas macadamizadas, assim como pontes e linhas de telégrafo, muitas vezes através de défices orçamentais e com recurso ao crédito, principalmente britânico.[581] Na prática, no entanto, os retornos deste investimento em capital físico para o crescimento da economia ficaram aquém do esperado, até por não ter existido um comensurável investimento em capital humano – a educação. Como tal, o resultado prático do Fontismo foi a acumulação de dívida pública, ainda que os seus efeitos perniciosos para os investimentos privados tenham sido menores do que se poderia esperar, devido ao reduzido tamanho do Estado na época e a um padrão demográfico favorável.[582] Os mercados internacionais manifestavam dúvidas sobre a estabilidade financeira do país, levando à necessidade de custosas intervenções sistemáticas por parte das autoridades.[583] As remessas dos emigrantes, que chegaram a ter um peso não despiciendo para o rendimento nacional, também terão contribuído para a industrialização e para a estabilidade financeira do país, embora seja possível argumentar que, tal como aconteceu com o ouro do século anterior, isso possa ter contribuído para atrasar as reformas necessárias. [584] A revolução republicana no Brasil, em novembro de 1889, levou a uma queda da taxa de câmbio desse país que fez cair em mais de 80% o valor das remessas dos emigrantes chegadas a Portugal.[585] Foi a gota de água que fez transbordar o copo: a frágil economia portuguesa não resistiu. O endividamento português tornou-se insustentável, levando à saída do padrão-ouro e ao incumprimento (default) em 1891. A bancarrota, à qual estaria associada uma grave crise económica e financeira, culminou o falhanço da política de desenvolvimento do regime.[586] Eça de Queirós desabafou então com um amigo: «Portugal
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acabou».[587] Em 1898, a Grã-Bretanha e a Alemanha chegaram mesmo a decidir dividir as colónias portuguesas, caso o país não pagasse as suas dívidas.[588] O câmbio brasileiro continuaria fraco nos anos seguintes e seguiu-se uma política de forte austeridade governamental.[589] Sem os recursos habituais para «alimentar clientelas e suscitar boas vontades», em 1895 entrou-se em ditadura, fechando o parlamento e reformando a lei eleitoral, restringindo-a, para além de se desenharem novos círculos eleitorais.[590] A partir de 1900, os dois principais partidos entenderam-se, trocando votos e combinando quais os deputados que seriam eleitos, tendo no ano seguinte o rei D. Carlos deixado que fossem desenhados círculos eleitorais de forma a serem manipulados os resultados para desfavorecer os republicanos.[591] É notável como o desenvolvimento financeiro do país, após 1834, se revelou tão insuficiente. O Banco de Lisboa, que foi o primeiro banco moderno a aparecer no país (em períodos anteriores, as misericórdias faziam o papel dos bancos em muitos aspetos), foi fundado em 1821, vindo a tornar-se no Banco de Portugal em 1846 e a transformar-se gradualmente num banco central, como de resto aconteceu noutros países.[592] No entanto, a expansão dos depósitos e o crescimento do crédito para a atividade económica foram inferiores em Portugal do que nos outros países europeus.[593] É possível, de resto, avaliar a eficiência do mercado de capitais rural na segunda metade do século xix através da comparação entre as taxas de juro de hipotecas rurais e as de créditos de baixo risco (nomeadamente, os empréstimos ao Estado). Como Jaime Reis mostrou, a diferença entre ambas as taxas de juro, para as mesmas maturidades, é uma medida do prémio de risco de emprestar a agricultores ou outros habitantes rurais, sendo por isso indicativo de até que ponto os mercados de capitais dos campos funcionavam bem, no sentido de serem capazes de proteger os direitos dos credores.[594] A diferença era grande: existiam três a quatro pontos percentuais de diferença entre o juro cobrado por emprestar ao Estado (4% a 6%) e os 7% a 10% que os agricultores tinham de pagar para obter empréstimos. [595] Tudo isto era sem dúvida um impedimento ao desenvolvimento do país, mas o sistema legal e os tribunais eram ineficientes e assim se mantiveram. Um país de analfabetos 192
Durante o século xix, três quartos ou mais da população portuguesa era analfabeta, tendo existido muito pouco progresso nesta matéria ao longo do século.[596] Pombal tinha destruído o sistema educativo nacional sem ter implementado qualquer alternativa funcional, e os «liberais», depois da sua vitória final em 1834, não só não conseguiram resolver o problema como até acabaram com a única possibilidade que à época ainda restava para uma possível expansão escolar a baixo custo: os mosteiros.[597] Não é por isso surpreendente que a legislação, emitida logo um ano depois, no sentido de tornar a escola obrigatória não tivesse passado de letra morta. Se na primeira metade do século a instabilidade política é uma desculpa aceitável para não se fazer mais pela educação do país, durante a segunda metade do século observa-se que o progresso foi muito reduzido. Os fortes investimentos em capital físico, como notei no caso da construção de infraestruturas associadas ao Fontismo, não encontraram equivalente no plano escolar. A falta de investimento em escolas durante muito tempo não preocupou as elites intelectuais e políticas do país. Como já mencionei, pelo menos até meados do século, considerou-se que o atraso resultava da dependência das trocas externas do país relativamente ao mercado inglês, mantendo-se o país também por isso altamente protecionista. Os debates legislativos refletiam a ausência de visão estratégica por parte das elites. Em 1822, das poucas vezes que se discutia a instrução pública, falava-se mais da Universidade de Coimbra do que do ensino primário. Em 1835, foi criado em Lisboa o Conselho Superior de Instrução Pública retirando a Coimbra competências nesta matéria, o que logo gerou uma forte reação de natureza corporativa por parte daquela Universidade, causando disputas que se arrastariam por mais de uma década.[598] No mesmo ano, o governo delegava nas comunidades locais a responsabilidade de assegurar e universalizar o ensino primário – sem isto ter quaisquer resultados concretos, como seria de esperar. Nada saía do papel. A partir de 1844, começou-se a dar mais atenção a esta questão, insistindo que a frequência da instrução primária era obrigatória para todas as crianças entre os sete e os 15 anos, residentes a um quarto de légua de distância de uma escola. Previam-se penas para os pais que não cumprissem, mas admitiam-se exceções várias, incluindo àqueles a quem seria «penosa a falta de trabalho dos meninos». Seria tudo letra morta. O voluntarismo legislativo não encontrava correspondência em ações concretas no terreno. A reforma da instrução pública voltou a ter debates
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na Câmara dos Deputados em 1851 e 1854, mais uma vez sem resultados visíveis nas décadas seguintes. Não havia dinheiro público investido, o número de escolas era baixo, os professores eram poucos e com qualificações baixas, chegando-se a defender que fossem usados os párocos como solução expedita para alargar a rede de escolas. No entanto, esta ideia não chegou a ser concretizada por não estar em linha com o caráter laico que se pretendia que a instrução pública tivesse. O Estado falhava, e continuaria a falhar, na sua capacidade de implementar os planos ambiciosos do legislador relativamente a estas políticas públicas, já que estas não se traduziam, em termos financeiros, nas decisões de investimento dos governos.[599] Era, mais uma vez na nossa História, o plano de facto a divergir do de jure. Porque é que a Monarquia não investiu, de facto, na escolarização? Em termos comparados, um elemento foi certamente fundamental: no século xix, Portugal já era um Estado-Nação, com uma língua única e uma identidade própria, estabelecida há séculos. Isto era invulgar a nível europeu, não sendo assim noutras partes da Europa continental – sendo os exemplos óbvios os da Itália e da Alemanha, mas também era largamente verdadeiro para a Espanha e a França.[600] Num artigo altamente inovador para a época, publicado em 1984, Jaime Reis mostrou que Portugal pagou um custo político por isso mesmo, já que alfabetizar as populações não foi em Portugal uma prioridade, como aconteceu noutros países, nos quais foi um processo fundamental para criar uma identidade nacional a partir da escola. Como Jaime Reis também argumentou, teria sido possível dar habilitação a um número grande de professores através da rede de Escolas Normais, distritais, a relativamente baixo custo, e dessa forma alfabetizar mais rapidamente a população. Isso não aconteceu, mas teria muito provavelmente acontecido num quadro de maiores tensões – identitárias, históricas, ou linguísticas –, ausentes em terras lusas devido à «tranquilidade que caracterizou as cinco ou seis décadas subsequentes ao estabelecimento da Regeneração».[601] Não deixa de ser significativo que, durante a Monarquia Liberal, a educação fosse suportada pelos orçamentos municipais.[602] Essa orientação mostra a incapacidade ou falta de vontade política dos governos da época darem atenção às políticas públicas prioritárias: um claro erro estratégico no que toca ao desenvolvimento do país a prazo. Em 1870, por exemplo, Portugal tinha apenas 2300 escolas oficiais, das quais apenas 350 se destinavam ao sexo
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feminino. Relativamente ao tamanho da sua população, Portugal devia ter tido 7000 para equivaler ao número relativo em Espanha, 8000 para atingir os números da França, Bélgica e Baviera, 10.000 a 12.000 para equivaler à Inglaterra, Holanda, Suécia e Prússia. E ainda um número superior a nove vezes mais – 21.000 – para atingir os números relativos dos Estados Unidos da América.[603] Na viragem para o século xx, a taxa de analfabetismo em Portugal mantinha-se ainda nos cerca de 75% da população, o que comparava bastante mal com outros países do sul da Europa como a Espanha (53%) ou a Itália (46%), já para não falar dos países do norte e centro da Europa Ocidental.[604] Um país de analfabetos não está pronto para se industrializar. O país estava parado nesta matéria e havia pouco interesse em investir em atividades industriais relativamente à agricultura. O motivo não era cultural nem de ordem social, mas apenas relacionado com o retorno económico: não existiam as condições necessárias para investimentos que levassem à industrialização.[605] Não tem cabimento o mito de que a propriedade territorialmente extensa e organizada em grande lavoura – o latifúndio, nomeadamente no Alentejo e em parte do Ribatejo – fosse economicamente ineficiente. Foi isso que mostrou Jaime Reis num artigo publicado em 1982 e reimpresso, uma década depois, na obra que é hoje um clássico moderno da História económica portuguesa, O atraso económico português em perspectiva histórica. Antes de 1900, a implantação da debulha a vapor no Alentejo tinha sido apenas marginal, mas foi-se tornando dominante nas décadas seguintes, tendo-se completado a sua adoção por volta do início dos anos 1930.[606] O momento desta adoção teve simplesmente a ver com a maximização dos lucros: o empresariado latifundiário alentejano adotou a debulha mecânica quando era racional fazê-lo, tendo em conta os custos e o contexto do protecionismo cerealífero – uma decisão política. Logo, não é necessário recorrer a explicações assentes em supostas características sociais ou mentalidades adversas ao progresso. O problema era de natureza diferente. A falta de qualificações da mão de obra era um bloqueio fundamental à industrialização. No setor têxtil, a taxa de instrução dos trabalhadores era quase sempre inferior a 20%, e em muitos casos era de apenas 10%. Por isso mesmo, o Inquérito Industrial de 1881 mostrava que os próprios diretores de fábrica se queixavam e afirmavam a gravidade do problema. Nas palavras dos diretores da Fábrica de Algodão de Tomar:
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Uma das maiores dificuldades com que lutamos provém da falta de habilitação do pessoal. A falta de instrução geral e a carência quase absoluta de instrução técnica faz com que tenhamos muitas dificuldades, não só para adquirir bons operários mas também para alcançar mestres competentes.[607]
Apesar de tudo, talvez não seja surpreendente que as elites intelectuais e políticas portuguesas tivessem estado, durante muito tempo, alheias ao problema que o analfabetismo representava para o desenvolvimento a prazo de Portugal – e em resultado disso, para a própria estabilidade financeira e política do país. Mesmo nas décadas finais do século xx, o historiador económico Vitorino Magalhães Godinho seria incapaz de referir este fator como sendo um dos travões fundamentais para o desenvolvimento industrial, preferindo em vez disso insistir na suposta dependência da economia portuguesa em relação à britânica.[608] Muitos «liberais» do século xix aprovariam. Liberalismo por decreto O atraso educativo do país era um problema, mas não era certamente o único. Como argumentou Luciano Amaral, as alterações institucionais que apareceram depois de 1820, ou mesmo depois de 1834, foram na verdade muito menos drásticas do que se pensava.[609] Um exemplo disso foram as terras que, na linguagem da época, eram amortizadas: morgadios, capelas, e terras doadas pela Coroa a casas nobiliárquicas. Os seus rendimentos, por serem inalienáveis e indivisíveis, estariam a retirar parte da capacidade produtiva para fora dos efeitos de mercado e, por isso, gerariam fortes ineficiências.[610] As tentativas de acabar com estas instituições, que os governos liberais consideravam inaceitáveis, esbarraram, na prática, com múltiplas dificuldades legais. Logo durante a primeira revolução «liberal», entre 1820 e 1823, decidiu-se nacionalizar as terras da Coroa. Mas esta medida implicava não apenas as terras que pertenciam diretamente à Coroa, mas também as que tinham sido doadas. No entanto, muitas das doações tinham acontecido há longos séculos, levando a uma série de disputas relativamente à data a partir da qual deviam ser consideradas irreversíveis. Também se abriram intermináveis disputas relativamente às comendas que, além da renda das terras, incluíam transferências de impostos estatais (de alfândegas, por exemplo) e taxas arcaicas (os direitos relativos ao serviço de alcaidaria,
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por exemplo), assim como rendimentos de títulos de dívida pública, e por isso não era claro se deveriam ser nacionalizadas.[611] Era reconhecido pelos «liberais» que, em alguns casos, as terras e os direitos tinham sido dados em troca de serviços, o que tornaria injusta a expropriação nessas situações. Em 1832, foram abolidos os dízimos (tributos pagos à igreja), as comendas, os forais, a enfiteuse em terras da Coroa, e mais uma vez expropriadas as terras da Coroa. Isto criou um imbróglio legal interminável. Não era claro a quem deviam ser dadas as terras, entre outras questões legais complexas que se levantaram e levaram a muita indecisão política. Além disso, tinha sido dada a possibilidade aos anteriores donos de recorrerem da decisão, tendo a maior parte feito o recurso através de um processo judicial que na prática revertia a expropriação enquanto não fosse tomada uma decisão que podia demorar anos a chegar.[612] Tudo isto levou a alterações da lei com vista a clarificar estas matérias em 1835 e 1846. No entanto, como esta legislação mais tardia acabou por reconhecer, mantinham-se múltiplas ambiguidades que as casas nobiliárquicas continuaram a explorar nos anos seguintes para, por exemplo, continuarem a receber foros, apesar destes terem sido, em teoria, abolidos. As terras expropriadas, incluindo as que tinham pertencido à Coroa, conhecidas à época como «bens nacionais», demoraram muitas décadas a serem vendidas, estando mais de metade ainda por vender em 1843, e tendo muitas ficado nas mãos do Estado.[613] O fim dos morgadios e das capelas viria a revelar-se um processo ainda mais complexo e demorado, e apenas na década de 60 do século xix seriam finalmente extintos, tendo a sua venda continuado durante todo o resto do século xix e até inícios do xx. A nível fiscal, o «Antigo Regime» também insistia em não desaparecer, mantendo-se a importância de tributos vindos do passado e das receitas alfandegárias, embora seja inegável que também foi nesta altura que apareceram os primeiros orçamentos modernos, sujeitos a aprovação parlamentar, assim como a fiscalização do Tribunal de Contas. Rui Pedro Esteves mostrou mesmo que o Regime Liberal até se tornou fiscalmente mais regressivo do que o anterior, porque se apoiou mais em impostos indiretos do que acontecia antes da Revolução de 1820.[614] As grandes alterações institucionais do século xix têm fascinado gerações de intelectuais, admiradores de figuras como, por exemplo, Mouzinho da Silveira. Em geral são consideradas figuras responsáveis
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por profundas modificações institucionais em áreas como a fiscalidade e a justiça. Mas a realidade é que o Constitucionalismo e o Liberalismo (apenas político) do século xix foram fenómenos urbanos que envolveram de forma direta um número bastante reduzido de pessoas.[615] Ainda que algumas consequências das alterações institucionais chegassem ao campo, Portugal continuaria mais ou menos na mesma: um país profundamente rural e conservador, parado no tempo, ao contrário do que acontecia em quase todo o resto da Europa Ocidental, incluindo regiões de Espanha (nomeadamente a Catalunha). Na primeira metade do século xix, o país regrediu, tanto no PIB per capita como na percentagem de pessoas a trabalhar fora da agricultura, como vimos nas figuras 15 e 20 do capítulo anterior. Já na segunda metade do século, existiu em Portugal algum progresso e mudança tecnológica, sem dúvida: os caminhos de ferro apareceram e a indústria cresceu mais do que a agricultura.[616] Mas não foi o suficiente, porque nos outros países da Europa o progresso foi bastante maior. A Monarquia e os seus críticos A intelectualidade da época, que ainda hoje influencia o que se diz e escreve sobre estes temas, insistia – muitas vezes em causa própria – que a Monarquia Liberal, especialmente a partir de 1834, teria sido um momento fundacional para Portugal. Assim o fez, por exemplo, Alexandre Herculano, logo em meados do século, entre muitos outros. A sua sombra chega aos nossos dias. Mas é inegável que também existiram vozes críticas, até por ser grande parte do século xix um período da História de Portugal com um nível comparativamente baixo de censura. O inglês Lord Carnavron, que chegou a Portugal em 1827, escreveria que a constituição portuguesa de 1822 «era completamente contrária ao espírito do país e só poderia ser mantida através de uma revolução, não apenas no que diz respeito à propriedade mas aos hábitos e às opiniões de todas as classes da sociedade».[617] Também existiram críticos portugueses. Em 1822-1823, José Acúrsio das Neves – miguelista admirador de Pombal – fez uma crítica intelectual ao Liberalismo, tomando por inspiração a obra Reflections on the Revolution in France, onde Edmund Burke tinha criticado a Revolução Francesa em 1790.[618] No mesmo ano, Almeida Garrett – um 198
liberal, ao contrário do anterior – criticou fortemente a falta de atenção dada à escolarização: «As Cortes Portuguesas legislando no século xix, sem darem uma só hora das suas tarefas à pública instrução, é um fenómeno em política que a posteridade não saberá explicar».[619] Doze anos depois, Garrett também iria criticar os excessos da Revolução Liberal no folhetim Viagens na Minha Terra. Mais tarde, em As Farpas, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós caricaturavam a sociedade da época, enfatizando o clientelismo e uma certa desilusão com o caminho do país. No romance satírico de Camilo Castelo Branco, A Queda de um Anjo, escrito em 1866, o autor descreve a corrupção de um fidalgo transmontano, conservador, e defensor da moral e dos bons costumes, que, ao ser eleito deputado e tendo ido para Lisboa, se deixa rapidamente corromper pelo luxo da capital. Em obras como Portugal Contemporâneo, de 1881, Oliveira Martins criticou fortemente Fontes Pereira de Melo, que acusava de ter deixado o país dependente do exterior devido ao livre-câmbio, o que já vimos ser falso. Nos últimos anos da Monarquia, o artista Rafael Bordalo Pinheiro criticava também mordazmente os políticos que agiam em benefício próprio, para sofrimento do contribuinte, o Zé Povinho (Figura 26). Este era um tempo em que a opinião pública importava cada vez mais, até devido às características parcialmente democráticas do regime, no contexto do rotativismo. Também se deu uma tendência acentuada do movimento grevista em Portugal a partir de 1871.[620] Figura 26. O Zé Povinho: «Depois das eleições.»
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A bancarrota de 1891 tinha sido precedida, no início do ano anterior, por um evento talvez ainda mais humilhante para o regime. Em 1890, já na sequência de graves tensões anteriores, o Reino Unido lançou a Portugal o Ultimato: retirem-se dos territórios entre Angola e Moçambique – or else.[621] Para os britânicos, o espaço territorial entre Angola e Moçambique tinha de pertencer ao seu império já que lhes permitiria ligar por caminho de ferro, num eixo aproximadamente nortesul, o Cairo, no Egito, à Cidade do Cabo, na África do Sul. Portugal acabou mesmo por abandonar o seu chamado «Mapa Cor-de-Rosa» sob coação, ficando as fronteiras delimitadas de acordo com a vontade britânica, registadas no Tratado Anglo-Português de 1891. Este seria um evento traumático para o país. O hino que a República viria a adotar – parte do qual citei em epígrafe – foi escrito em 1890. «A Portuguesa» começou simplesmente por ser um entre outros hinos patrióticos compostos nessa época com a finalidade de fomentar a exaltação cívica, mas os republicanos dele se apropriaram como uma música patriótica contra o Ultimato, tendo sido inclusivamente cantada pelos que tentaram um golpe de Estado no Porto em 31 de Janeiro de 1891.[622] Não parece haver dúvidas de que não teria sido de todo realista enfrentar militarmente o Reino Unido – a superpotência da época. O único desfecho possível de um confronto militar teria conduzido a concessões ainda maiores em África relativamente aos interesses ingleses.[623] Mas isso não travou a frustração de panfletários como Guerra Junqueiro, que escreveria na obra Finis Patriae, publicada em 1891: «Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente / (…) Hão de dilacerar-te o corpo com furor / (…) Hão-de os lords rolar em postas no Tamisa!» O Ultimato seria um enorme trunfo de propaganda republicana contra a Monarquia, ainda que esta, claramente, nada pudesse ter feito de forma diferente naquele momento. Nos anos seguintes, a contestação sobre esta e outras matérias continuaram a subir de tom. Criticando a falta de explicações sobre o adiantamento de verbas feito à Coroa pelo governo, que ultrapassavam o que estava estipulado na lei, e, portanto, constituíam desvios fraudulentos dos cofres do Estado, o deputado republicano Afonso Costa ameaçava no parlamento em 1906, «por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos I, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís xvi!» Estas palavras levaram-no a ser expulso.[624] Na sequência de uma crescente agitação social, incluindo uma importante greve
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académica na Universidade de Coimbra em 1907, o rei dissolveu as Cortes e o chefe do governo, João Franco, passou a governar em ditadura.[625] Foi neste contexto que, no ano seguinte, o rei D. Carlos e o herdeiro, o Príncipe Real Luís Filipe, seriam assassinados na Praça do Comércio em Lisboa. A própria Monarquia iria cair dois anos e meio depois. Com frieza, como podemos avaliar a Monarquia Constitucional do século xix? De um ponto de vista estritamente político, a avaliação pode ser considerada moderadamente positiva. Houve alguma convergência com práticas políticas europeias, ainda que insuficiente. Os parlamentos passaram a reunir-se continuamente (salvo em períodos excecionais), instalando-se no Palácio das Cortes – antigo Mosteiro de São Bento, que tinha resistido ao Terramoto de 1755 – a partir de 1833.[626] Apesar de alguns excessos, em especial até à Regeneração de 1851, existiram depois, durante a segunda metade do século, largas décadas de democracia. Esta democracia era diferente e mais limitada do que a dos nossos dias – por exemplo, nem os pobres nem as mulheres podiam votar –, e funcionava em termos particulares à época, com o rei a ter um papel central na alternância governativa.[627] Mas apesar disso, com o alargamento do direito de sufrágio em 1878, este atingiu 72% dos homens maiores de 21 anos: uma das maiores proporções da Europa. Ao contrário do que viria a acontecer durante a Primeira República, podiam votar os analfabetos. No entanto, os influentes da província – como os padres e proprietários abastados –, bem como o próprio Governo, tinham formas de exercer pressões sobre o sentido de voto dos eleitores.[628] Isso levava a que o rei pudesse retirar a confiança política a um governo, dando posse e meios a outro, para dessa forma, na prática, substituir uma maioria parlamentar por outra mais do seu agrado. As eleições eram, portanto, uma espécie de referendos aos novos governos, mas representavam um fait accompli. Dadas as vantagens eleitorais do governo em funções, a arbitragem por parte do rei acabava por ser uma garantia de rotativismo. Por isso, eram necessárias manifestações públicas para chamar a atenção do monarca, o que foi alimentando o republicanismo, mesmo ainda antes de 1890.[629] Combinado com o atraso do país, cada vez mais óbvio, o sistema político vigente encorajou o desenvolvimento de uma cultura intelectual dentro do PRP cada vez mais radical, transformando-o pouco a pouco no que Rui Ramos chamou uma «espécie de seita religiosa, intolerante e fanática».[630]
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A nível do desenvolvimento económico, é difícil caracterizar o século xix de outra forma que não seja como um século perdido para Portugal. Era um país rural, analfabeto e miserável. Quando as colheitas falhavam aumentava o desemprego e o povo passava fome, fazendo crescer o número de mendigos e o banditismo. Por outro lado, a frágil situação financeira dos governos frequentemente não permitia sequer que o investimento em obras públicas atenuasse a situação.[631] Apesar de se ter verificado algum crescimento em certos períodos, o país divergiu fortemente da Europa Ocidental, pois os outros países cresceram muito mais.[632] E, como vimos, na viragem para o século xx, Portugal era o país com a maior percentagem de analfabetos de toda a Europa Ocidental, muito atrás de países também atrasados num contexto europeu, como a Espanha ou a Itália. Apesar deste falhanço ao nível do desenvolvimento económico do país – sobretudo quando confrontado com a retórica do regime – será possível, ainda assim, falar-se numa avaliação política positiva? Do meu ponto de vista, em parte sim, porque o desenvolvimento económico é apenas um fim, entre vários que são relevantes. Apesar de alguns períodos mais autoritários, e apesar das batotices eleitorais, o século xix foi uma era de relativa liberdade e de baixa censura, em termos comparados, como não voltaria a existir em Portugal até às décadas finais do século xx.[633] A Monarquia cairia em 1910, derrubada por um golpe de Estado que não foi protagonizado nem pelo «povo» nem propriamente pelo exército, mas mais precisamente por um partido com assento parlamentar: o PRP. [634] Nessa altura, depois de mais de um século de declínio económico e social, em particular, quando comparado com outros países, Portugal era um país em franca e inegável decadência: tornara-se o país mais pobre da Europa Ocidental, e mesmo de quase toda a Europa, encontrando-se apenas à frente da Albânia.[635] A Monarquia – ou mais concretamente, o Regime Constitucional vigente – não tinha sido capaz de desenvolver o país. Mas o tempo também não daria razão aos que a ela se opunham. Ao contrário do que pensava Antero de Quental e outros republicanos, não seria uma República com um programa anticlerical e radical que iria ser capaz de desenvolver Portugal. [513] Sobre o bloqueio continental ter reforçado a influência inglesa, consultar MACEDO (1990), p. 102.
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[514] Não considero aqui a Grécia parte integrante da Europa Ocidental. Não só não lhe pertence do ponto de vista geográfico, como também não estava integrada na história política dela no início do século xix. Em todo o caso, incluir a Grécia na Europa Ocidental não mudaria muito a conclusão, apenas daria um consolo enganador e serviria como uma «parra de Adão» para camuflar o fracasso económico português. Noto, no entanto, que continuando Portugal a ser na atualidade o país mais atrasado da Europa Ocidental, isso não quer dizer que a distância do atraso em relação à média da Europa ou aos países mais ricos fosse constante ao longo do tempo. Irei explicar isto neste capítulo e nos seguintes. [515] BONIFÁCIO (2013). [516] Em vez de redigida e votada pelas Cortes Constituintes, como tinha acontecido com a Constituição de 1822. [517] THOMSON (2014), p. 76. [518] D. Miguel anunciou que convocaria as antigas Cortes nos moldes semelhantes aos anteriores ao século xviii, o que de facto chegou a acontecer. Naturalmente, é difícil saber como teria evoluído a situação institucional caso o miguelismo tivesse triunfado, mas parece improvável que não tivesse evoluído de forma a acompanhar, pelo menos em parte, o que aconteceu noutros países da Europa. [519] THOMSON (2014), p. 83. [520] FLANDREAU (2022). Sem me alongar muito, considero um mito a ideia de que existe uma «aliança» entre Portugal e Inglaterra em vigor desde o Tratado de Windsor (1386). Na realidade, por vezes foi do interesse britânico o alinhamento com Portugal, e nada mais. Não acabam os exemplos (uns mais discutíveis que outros, certamente) em que a suposta aliança foi irrelevante – 1580, 1588, 1659, 1890, ou 1939, entre outros –, mas limito-me a mencionar dois em detalhe. Em finais do século xix, a Inglaterra dececionou o governo português ao não garantir o domínio português da foz do Zaire (1884) perante a pressão da Alemanha e da França. E, em 1961, Portugal invocou a suposta «aliança» (em defesa de Goa) e foi ignorado. Veja-se RAMOS et al. (2009), p. 551. [521] BONIFÁCIO (2013), p. 28. [522] BONIFÁCIO (2013), p. 108. [523] VEIGA (2019). [524] CRUZ (2013), p. 88. [525] O cartismo era a corrente mais conservadora do liberalismo. Defendia a Carta Constitucional de 1826. Joaquim António de Aguiar integrou esta corrente, e mais tarde o Partido Regenerador, tendo sido várias vezes presidente do Conselho de Ministros. [526] Várias estimativas são discutidas por Manuel Braga da Cruz, que considera ser 450 o número mais credível. CRUZ (2013), pp. 89, 312-313.
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[527] Anos antes houve um processo semelhante em França, e outro equivalente em Espanha, que, ainda que gradual e com antecedentes desde o final do século anterior, atingiu o seu cúmulo com la Desamortización de 1835-1837. [528] Ainda que Pombal não tivesse perseguido todas as ordens religiosas, mas principalmente os jesuítas e as entidades que considerou terem simpatia por eles. [529] CRUZ (2013), pp. 92, 102. [530] VALENTE (2007). [531] BONIFÁCIO (2013), pp. 54, 57. [532] No caso das ordens religiosas femininas, não poderiam aceitar noviças – estando, portanto, condenadas a prazo. Seriam extintas à medida que morressem as últimas freiras, sendo nessa altura os bens incorporados na Fazenda Nacional. [533] RAMOS et al. (2009), p. 491. [534] BONIFÁCIO (2013), p. 40. [535] Isso acabaria por levar ao fim do governo setembrista, e à assinatura de tratados com a Inglaterra, em 1842. BONIFÁCIO (2013), pp. 97-99, 141. [536] LAINS (2003c), p. 216. [537] BONIFÁCIO (2013), pp. 109-110. [538] RAMOS et al. (2009), p. 515. [539] RAMOS et al. (2009), p. 506; BONIFÁCIO (2013), pp. 154, 157-159. [540] JUSTINO (2022), p. 403; BONIFÁCIO (2013), p. 166. [541] BONIFÁCIO (2013), p. 199. [542] A «Revolução da Maria da Fonte» iniciou-se na Póvoa de Lanhoso, no Minho, e estendeu-se gradualmente a todo o Norte de Portugal. O seu desfecho deveu-se ao facto de o Exército se escusar a reprimi-la. RAMOS et al. (2009), p. 515. [543] BONIFÁCIO (2013), p. 172. [544] BONIFÁCIO (2013), pp. 154, 157-159, 173. [545] Anos antes tinha sido assinado um tratado em Londres – a Quádrupla Aliança, da qual fizeram parte a Inglaterra e a França – com o objetivo de expulsar D. Miguel de Bragança de Portugal e D. Carlos de Borbón de Espanha, mesmo que tal obrigasse à entrada de tropas estrangeiras nos dois países. [546] BONIFÁCIO (2013), p. 207.
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[547] BONIFÁCIO (2013), pp. 233-239. [548] REINHART e ROGOFF (2009), p. 91. [549] BONIFÁCIO (2013), pp. 43, 283, 303, 342. [550] BONIFÁCIO (2013), pp. 375, 377. [551] O início de alguns destes investimentos datava ainda dos governos de Costa Cabral, sem prejuízo de só ter sido inaugurado em 1856 o primeiro troço de caminho-de-ferro, entre Lisboa e o Carregado. RAMOS et al. (2009), pp. 506, 524. [552] RAMOS et al. (2009), pp. 522-523. [553] BONIFÁCIO (2013), pp. 448-449. [554] Este último resultou, na década de 1870, da fusão do anterior com outro, o Partido Reformista, que por sua vez tinha resultado de uma cisão do Partido Histórico. Como tal, o Partido Progressista, inicialmente liderado por Anselmo Braamcamp, pode ser considerado um continuador do Partido Histórico. [555] Não confundir com o atual Partido Socialista, fundado em 1973. [556] RAMOS et al. (2009), p. 519. Esta tese de Herculano pode estar parcialmente correta, mas tem de ser relativizada. Vivemos, na atualidade, numa sociedade inimaginavelmente mais próspera do que a de meados do século xix. Mesmo os políticos atuais de origens mais modestas tiveram, em termos absolutos, uma infância privilegiada quando comparada com os seus homólogos da centúria de Oitocentos. E, no entanto, as lutas políticas continuam, ainda que menos violentas. Possivelmente, o que os políticos de todas as épocas procuram é também estatuto social, que é sempre relativo. [557] VALENTE (2018), p. 93. [558] RAMOS et al. (2009), p. 531. [559] REIS (1979); REIS (1984) e REIS (1986). Vale ainda a pena consultar LAINS (1986) e LAINS (1987). [560] JUSTINO (2022), pp. 91-93, 118-120, 138. [561] MÓNICA, p. 136. [562] HESPANHA (1994); CARDIM (1998a); TORGAL (2021). [563] WICKHAM (2016). Portugal é um caso precoce de introdução de mecanismos constitucionais no século xiii. Veja-se HENRIQUES (2009). [564] MATTOSO (2001). [565] BUCHANAN et al. (1999).
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[566] AMARAL (2012). [567] MÓNICA (2020), p. 118. [568] STOLZ et al. (2013). [569] O denominador da série corresponde a uma média móvel não ponderada de três anos, dos sete países da Europa Ocidental para os quais existem dados para este período: Reino Unido, França, Itália, Países Baixos, Dinamarca, Noruega e Suécia. Veja-se BOLT e VAN ZANDEN (2020). [570] Que assim foi já tinha sido enfatizado, por exemplo, por Álvaro Ferreira da Silva e Luciano Amaral. Ambos mencionam uma «suspensão da divergência» nas décadas de 70 e 80 do século xix. Veja-se SILVA e AMARAL (2011). [571] CARVALHO (2011b), pp. 542-543. [572] CARVALHO (2011b), p. 543. [573] FLANDREAU (2022). [574] REIS (2005b). [575] LAINS (1995). [576] RAMOS et al. (2009), p. 501. [577] RAMOS et al. (2009), p. 508. [578] A Janeirinha foi um movimento de protesto contra o imposto de consumo e a reforma administrativa do território. Eclodiu a 1 de janeiro de 1868 e levou à formação de um novo governo liderado por António José de Ávila. Terminou com o período de estabilidade pós Regeneração. Suceder-lhe-ia a «Saldanhada» em 1870, um pronunciamento liderado pelo Duque de Saldanha, já em idade avançada, que imporia ao rei pela força das armas um executivo liderado por si, executivo esse que duraria apenas alguns meses. [579] BONIFÁCIO (2013), p. 449. [580] Há quem sustente que o fontismo representou mais do que isso, mas ainda assim reconhecendo que as políticas educativas desse período não tiveram grande sucesso. Veja-se JUSTINO (2022). [581] No entanto, deve ser reconhecido que muitos dos empréstimos fontistas foram para pagar dívidas anteriores. Veja-se MATA (1987). [582] ESTEVES (1998) e ESTEVES (2003). [583] ESTEVES et al. (2009).
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[584] Como é evidente, esta matéria tem paralelismos com os argumentos que apresento nos caps. 6 e 10, mas sobre a qual não conheço nenhum estudo aprofundado. Sobre a contribuição mais genérica das remessas para a industrialização e a estabilidade financeira dos países durante o padrão-ouro, veja-se, respetivamente, REIS (1993a); e ESTEVES e KHOUDOUR-CASTÉRAS (2009). [585] Esta percentagem é baseada numa estimativa que utiliza informação das entradas através do Banco de Portugal entre 1888 e 1891. Veja-se LAINS (1995), pp. 127-128. [586] ESTEVES (2005). [587] RAMOS et al. (2009), p. 549. [588] Ainda que a Grã-Bretenha tivesse mudado mais tarde de política. MENESES (2010a), p. 21. [589] RAMOS et al. (2009), pp. 554-555. [590] RAMOS et al. (2009), p. 556. [591] RAMOS et al. (2009), p. 565. [592] REIS (1996). A transformação foi gradual mas lenta, tendo dado um salto em frente durante a Segunda Guerra Mundial; veja-se AMARAL (2018). Sobre a evolução gradual, para efeitos comparativos, do caso de Inglaterra, veja-se O’BRIEN e PALMA (2023). A nacionalização do Banco de Inglaterra deu-se em 1946; a do Banco de Portugal deu-se apenas em 1974. [593] REIS (1994). [594] REIS (2010) e REIS (2011). [595] De resto, o crédito hipotecário só se desenvolveria no último quartel do século xix. Até aí, a questão prendia-se largamente com o colateral que podia ser usado. As quintas (ou as colheitas) não eram aceites facilmente como colateral no novo sistema bancário. [596] Os números são pouco seguros, mas Portugal teria em 1850 uma taxa de analfabetismo que rondaria os 85%, chegando a 75% por volta de 1900. Portanto, ao longo do século xix os progressos foram pouco impressionantes, especialmente quando comparados com os registados nos outros países da Europa Ocidental, que partindo de uma situação não muito diferente da portuguesa em meados do século xviii, atingiram 100 anos depois níveis incomparáveis. Os analfabetos eram, em 1850, 45% em França, Bélgica, e Itália, 30% em Inglaterra e País de Gales, e apenas cerca de 5% nos países nórdicos. Mesmo em Espanha, Itália e Polónia correspondiam a menos dez pontos percentuais do que em Portugal. Em 1900 já correspondiam a 20% ou menos em todos estes países, exceto no último grupo, sendo menos de 2% nos países nórdicos. Em Espanha, Itália, e Polónia eram 60%, ou seja, a diferença entre estes países e Portugal agravou-se durante 1850-1900, correspondendo a 15 pontos percentuais na viragem para o século xx. Em 1900, apenas a Rússia e os países dos Balcãs tinham na Europa uma percentagem de analfabetos semelhante à registada em Portugal, na ordem dos 75%. CANDEIAS (2004), p. 34.
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[597] A criação de escolas nos quartéis (outra alternativa) foi tentada a partir de 1815, usando o chamado «método de ensino mútuo» (inventado por ingleses na Índia), mas os resultados haviam sido, e continuariam a ser, muito pontuais e reduzidos, ainda que a escolarização nos quartéis tenha continuado. [598] BONIFÁCIO (2013), p. 82. [599] A informação deste parágrafo é em parte baseada em JUSTINO (2022), pp. 305, 307, 309, 311, 354, 357, 377. [600] WEBER (1976); BLANC e KUBO (2023). [601] REIS (1993b), pp. 19-35. [602] MAGALHÃES (2010). [603] ALVES (2001), p. 62. [604] PALMA e REIS (2021), p. 414. [605] Para o caso, bem estudado, do Alentejo, veja-se FONSECA (1996); FONSECA e REIS (1987); FONSECA (2003), sobretudo as pp. 225-226; e REIS (1982). [606] REIS (1982), p. 431. [607] REIS (1993a). [608] GODINHO (2019), pp. 132-134. [609] AMARAL (2012). Baseio-me neste artigo para muitos dos elementos que apresento nas linhas seguintes. Sobre as grandes dificuldades, ou mesmo a impossibilidade, de mudar a sociedade de uma vez de forma radical, consultar também VALENTE (2007). [610] Como vimos no Capítulo 6, muitas das terras que supostamente estavam protegidas das forças de mercado, na realidade estavam sujeitas a forças de mercado, o que sugere que este tipo de propriedade talvez não fosse na prática tão ineficiente como possa parecer à primeira vista. [611] MONTEIRO (2003). [612] AMARAL (2012), p. 44; RAMOS (2009), pp. 510-511. [613] SILVA (1997). [614] ESTEVES (2005). [615] THOMSON (2014), pp. 143-144. [616] REIS (1986), p. 94; LAINS (2007), p. 24.
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[617] Defendia antes a Carta Constitucional de 1826, recentemente abolida por D. Miguel, que considerava ser «racional nos seus preceitos, justa na distribuição de poderes e compatível com as instituições existentes, que pretendia reformar, mas não subverter». Fazendo um contraste com o que acontecia em Inglaterra, notou também que em Portugal «todos os projetos que venham da iniciativa individual ou de associações locais são vistos com suspeita, se realizados sem a intervenção do governo central»; MÓNICA, pp. 134-135. [618] Edmund Burke era do partido Whig, e não dos Tories (conservadores). Sendo inegáveis na sua obra alguns elementos de conservadorismo, Burke foi toda a vida um defensor da tolerância religiosa, e os seus comentários aos excessos da Revolução Francesa podem ser vistos como uma crítica liberal. Nas Reflections on the Revolution in France, Burke critica a tentativa de reduzir os direitos e as responsabilidades dos cidadãos, insistindo em que a igualdade não pode servir para justificar a destruição da equidade numa sociedade civil, enfatizando a diferença entre um governo legítimo e responsável e uma tirania popular. Veja-se BOURKE (2015). [619] Citado em TORGAL (2021), p. 59. [620] TENGARRINHA (1981), p. 593. [621] Este projeto surgiu na sequência da Conferência de Berlim (1884-1885), na qual as potências europeias chegaram a acordo sobre a divisão territorial de África. Portugal, que ocupava reduzidas áreas costeiras daquele continente, saiu derrotado da conferência, já que a sua reivindicação de vastas áreas no interior, baseada num suposto direito histórico, foi ignorada pelas restantes potências. [622] RAMOS (2010); MENESES (2010a), pp. 22-23; BASTOS (2010). [623] Note-se que à época era consensual na Europa colonizar África, sendo por isso a posição de Portugal nesta matéria idêntica à dos outros países europeus. [624] ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA (s.d.); MENESES (2010a), p. 29. [625] Sendo essa situação, de resto, frequente nas décadas finais da monarquia. Veja-se RAMOS et al. (2009), pp. 570-571. [626] Esse edifício sofreria alterações ao longo do século xix, mas é onde ainda hoje funciona a Assembleia da República. Até finais dos anos 1980 albergou o Arquivo Nacional da Torre do Tombo. [627] Sobre a variação do sufrágio ao longo do século xix, consultar HESPANHA (2004), pp. 259-269. [628] Para além disso, as eleições também podiam ser aldrabadas através da manipulação dos círculos eleitorais. Ver VALENTE (2018), p. 203. [629] RAMOS et al. (2009), pp. 533-534, 538, 541. [630] RAMOS (2001), p. 350. [631] VALENTE (2018), p. 183.
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[632] Que assim foi já tinha sido notado, por exemplo, por LAINS (2003c). [633] Ainda que existisse censura em certos contextos, como é visível por exemplo pela reação das autoridades às Conferências do Casino a que me referi na Introdução, ou na condenação dos republicanos à luz da Lei da Imprensa em vigor, sendo estes acusados de crimes de lesa-majestade. MENESES (2010a), pp. 25, 30-31. [634] Muitos líderes republicanos estavam, aliás, a soldo do Estado, como oficiais e funcionários públicos. Veja-se MENESES (2010a), p. 24. [635] SILVA e AMARAL (2011).
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8. A Primeira República Indivíduos que não sabem os confins da sua paróquia, que não têm ideias nítidas e exatas de coisa nenhuma, nem de nenhuma pessoa, não devem ir à urna, para não se dizer que foi com carneiros que confirmámos a República. Afonso Costa, discurso no Parlamento a 12 de junho de 1913.[636] A Primeira República foi um regime sectário e radical.[637] O golpe de Estado que acabou com a Monarquia, protagonizado pelo Partido Republicano Português (PRP) em outubro de 1910, levou a uma situação política dominada por esse partido, caracterizado ideologicamente como ferozmente anticlerical e jacobino.[638] Segundo a Constituição de 1911 o Presidente da República era uma mera figura cerimonial, não sendo diretamente eleito, mas antes escolhido pelo Congresso – constituído pela Câmara dos Deputados e pelo Senado –, um órgão que o Presidente não podia dissolver, ao contrário do que acontece nos nossos dias. O regime esteve fortemente influenciado por ideias maçónicas e foram maçons cerca de metade dos ministros e membros do parlamento.[639] Afonso Costa declarou, desde o primeiro momento, que os objetivos principais da República incluíam desenvolver a educação nacional, assim como as colónias, e secularizar o Estado, banindo «todos os monges e freiras».[640] A Primeira República foi um regime breve: durou apenas 16 anos – um piscar de olhos na História de Portugal. Mas representou aquilo a que poderíamos chamar o triunfo das correntes mais radicais do século xix: o cúmulo e a manifestação final do Vintismo e do Setembrismo. Não será excessivo dizer, para efeitos de simplificação, que a Primeira República
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foi um regime de esquerda radical, intolerante e envolvido em constantes guerras culturais em que os partidários do PRP, em particular, se consideravam donos da verdade, mas pouco mais faziam do que agir em benefício próprio.[641] Foi um regime elitista e anticlerical, mas que também perseguiu os sindicalistas e o operariado, inclusivamente através do recurso à Guarda Nacional Republicana.[642] Progressivamente o regime foi desiludindo muitos republicanos.[643] Ainda que tenha sido breve, e não tenha conseguido desenvolver o país, foi um regime que marcou muito a nossa História. Vale a pena compreendê-lo com algum detalhe. A Primeira República era um regime democrático, mas pouco. Neste aspeto compara-se mal não apenas com a democracia que surgiu na década de 1970, mas também com a que existia durante grande parte da Monarquia Constitucional que a antecedeu. Durante a Primeira República, as eleições não eram livres nem justas, mas existiam vários partidos e houve alguma alternância política, embora um partido, o PRP – também conhecido como Partido Democrático, depois de algumas cisões logo desde 1912 –, tivesse sido largamente dominante e, muitas vezes, fosse apenas possível tirá-lo do poder na rua, pela utilização da força. Os resultados eleitorais eram distorcidos e influenciados pela máquina partidária do PRP, que tinha sido o fundador do regime. A imprensa republicana considerava todos os críticos do governo como traidores à pátria.[644] A contestação política, sindical e popular à oligarquia levou a um clima de tensão social e também a cisões frequentes entre os republicanos, com bastante violência associada. Uma espécie de polícia política irregular, a «Formiga Branca», foi criada em 1913 e respondia aos líderes do PRP. Muitos dos membros desta organização estavam ligados à Carbonária e beneficiavam de uma rede de denunciantes e informadores, realizando inúmeras ações violentas e de intimidação contra os inimigos do PRP, incluindo, por exemplo, assalto a jornais.[645] Foi devido às ações da «Formiga Branca» que um dos governos desta época ficou conhecido como o «Governo dos Cinco Minutos», por ter sido exonerado no mesmo dia em que foi nomeado pelo presidente António José de Almeida. A Guarda Nacional Republicana (GNR), fortemente armada, também funcionava como a guarda pretoriana do regime e do PRP, tendo sido, de resto, criada com esse propósito. Desde o início a fação de Afonso Costa, em particular, manipulava as eleições ou impunha-se através de golpes.[646]
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Em 1921, uma viatura conhecida à época como a camionetafantasma, conduzida por militares da GNR e da marinha e liderada por Abel Olímpio, «o dente de ouro», prendeu e executou vários políticos e figuras da oposição: republicanos que se opunham à corrente radical que dominou a Primeira República. O Primeiro-Ministro António Granjo, à época, demissionário, e dois dos protagonistas da Revolução de 5 de Outubro, Machado Santos e José Carlos da Maia, foram nessa altura assassinados. Alfredo da Silva, o industrial fundador da CUF na década de 1870, que já tinha sido em anos anteriores vítima de ameaças e atentados, foi informado que personagens da indústria e das finanças também eram procuradas, sendo o seu nome um alvo a abater. Tentou, por isso, fugir do país, mas foi espancado e atingido a tiro, acabando por conseguir ir para o estrangeiro.[647] Em 1925, declarou que Portugal era «um grande manicómio», e no ano seguinte seria o próprio António Maria da Silva que o aconselharia a manter-se em Espanha.[648] Como é evidente, nestas condições, não existia um ambiente propício para o desenvolvimento industrial e económico. Alfredo da Silva só regressaria ao país em 1927.[649] A Primeira República pode ser classificada como uma democracia eleitoral limitada, não sendo uma verdadeira democracia no sentido corrente e atual do termo.[650] Apesar do domínio e intolerância do PRP, foi um regime que, até pela desorganização que lhe era inerente, foi mais democrático e pluralista, tendo tido uma censura menos sistemática e organizada do que a imposta pela Ditadura Militar (1926-1932) e a do Estado Novo (1933-1974) que lhe sucederam.[651] Existiram, por exemplo, 2046 greves de trabalhadores entre 1910 e 1917. Embora reprimidas pelos governos, nalguns casos com violência, muitas acabaram vitoriosas.[652] Durante a oposição à Monarquia, entre 1891 e 1910, o PRP tinha prometido o sufrágio universal masculino, promessa que nunca foi cumprida. Depois da implantação da República, em 1910, as restrições eleitorais foram, pelo contrário, cada vez maiores. Em 1913 apenas podiam votar os homens que soubessem ler e escrever. Por esse motivo, o número de pessoas recenseadas para votar correspondia apenas a cerca de um quarto dos homens adultos, sendo que apenas cerca de 10% efetivamente votavam – uma proporção menor do que a das décadas finais da Monarquia.[653] A grande preocupação dos republicanos era afastar do voto as massas rurais que constituíam o grosso do país e que
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se opunham às políticas das elites urbanas.[654] Em particular, sendo a maior parte do povo conservador e católico, opunha-se de forma vigorosa ao programa de secularização dos republicanos. A República também recusou o sufrágio às mulheres pelas mesmas razões, como ficou claro nos debates parlamentares sobre a lei eleitoral de 1913.[655] As mulheres eram excluídas por serem consideradas pelos republicanos «almas simples» de «crendice fácil», logo reacionárias – religiosas, conservadoras, e sujeitas à lavagem cerebral do Clero.[656] Carolina Beatriz Ângelo votou por ocasião das eleições para a Assembleia Constituinte em 1911, aproveitando-se da ambiguidade na lei, que logo no ano seguinte foi por isso alterada para excluir explicitamente as mulheres do direito de votar. O «Liberalismo» do século xix não só tinha também negado o voto às mulheres, como tinha reforçado a sua subordinação no campo do direito. O Código Civil de 1867 dizia mesmo ser dever das mulheres «prestar obediência ao marido», enquanto este tinha por sua vez a incumbência de «proteger e defender a pessoa e os bens da mulher». Ora, a lei republicana continuou nessa tónica, impondo à mulher «o governo doméstico».[657] É, portanto, um mito a ideia de que teria sido o Estado Novo a inventar, ou a reforçar, o «patriarcado». Na realidade, até seria a Ditadura Nacional a dar pela primeira vez o voto às mulheres, a partir de 1930.[658] Por contraste, em França as mulheres só tiveram acesso ao sufrágio em 1944, com o primeiro ato eleitoral a acontecer no ano seguinte. Seria também com o Estado Novo que, pela primeira vez, iriam existir deputadas na Assembleia Nacional, a partir de 1935.[659] Um mergulho nos detalhes do funcionamento da Primeira República permite compreender o motivo da sua hesitação em alargar o sufrágio, ao contrário do que haviam prometido antes os republicanos. Durante a Monarquia Constitucional, em particular durante a sua última década até 1910, apenas podiam votar homens com mais de 21 anos de idade e que soubessem ler e escrever, ou que pagassem impostos acima de um certo montante.[660] O seu total andaria por volta dos 630 mil, mas na verdade apenas 150 mil estavam recenseados. Estes números dizem respeito a uma população total de 5,5 milhões de pessoas. Por comparação, em 1911, logo a seguir ao triunfo da República, o sufrágio foi dado a todos os homens portugueses com mais de 21 anos que soubessem ler e escrever, ou que tivessem sido cabeças de casal há mais de um ano.[661] O seu total andaria então por volta dos 840 mil indivíduos. Caso o sufrágio
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universal – masculino – tivesse sido implementado, esse número seria o dobro. Mas, decorridos apenas dois anos, a República alterou a lei eleitoral. As novas regras restringiam o direito de voto: apenas poderia votar quem tivesse mais de 21 anos, soubesse ler e escrever, acrescentando-se algumas regras de exclusão adicionais.[662] A nova regra retirou, portanto, o voto aos analfabetos que fossem cabeças de casal, reduzindo assim o número de eleitores potenciais para apenas 617 mil, sendo que na verdade apenas 370 mil destes estavam recenseados para poder votar. Esta mudança foi imposta pelos três principais partidos e justificada pelo facto de haver muito apoio monárquico no Portugal rural. Afonso Costa afirmou mesmo, num discurso parlamentar de 1913, que os indivíduos que nunca tivessem saído da sua paróquia e não tivessem ideias claras sobre nada nem ninguém não deveriam votar, como citei em epígrafe.[663] A experiência eleitoral de 1911 tinha mostrado que o povo analfabeto que vivia fora das cidades continuava sob a influência da Igreja, apoiando a Monarquia, e como tal, opondo-se fortemente à República, e em particular ao seu programa de secularização. Uma nova lei eleitoral de 1915 não mudou nada de substantivo a não ser o facto de os militares agora poderem votar e os votantes recenseados subirem para 472 mil indivíduos. A lei continuou a proibir expressamente que os analfabetos votassem. Em 1918, a República presenciou a ditadura de Sidónio Pais – a quem Fernando Pessoa chamaria Presidente-Rei –, que em dezembro do ano anterior tinha liderado um golpe e mandado prender Afonso Costa, a mais importante figura política da República.[664] A questão religiosa estava no centro das polémicas políticas desde a fundação da República, mas foi apenas com Sidónio Pais que a Lei de Separação do Estado das Igrejas seria finalmente alterada – numa altura em que o parlamento estava dissolvido. Também foram restabelecidas relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé. Propunha-se restaurar o espírito original da República, que segundo Sidónio Pais tinha sido «miseravelmente atraiçoada por uma casta política».[665] Foi anunciada uma extensão de direito de voto, mas apenas 514 mil homens se recensearam. Sidónio Pais seria eleito a 28 de abril de 1918, resistindo a tentativas de vários golpes por parte do PRP. Depois do seu assassinato, a tiro, na estação do Rossio por um militante do PRP, a 14 de dezembro, a lei eleitoral voltou a ser parecida com a que tinha existido em 1915. E assim continuou até ao final da Primeira República.
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O falhanço da estratégia educativa republicana Os republicanos afirmavam que a educação era uma das suas principais prioridades. A vergonhosa taxa de analfabetismo do país assim o exigia. O seu objetivo era criar um homem novo, republicano e nacionalista.[666] O ensino primário era obrigatório desde 1835, segundo a lei, mas isso não tinha qualquer adesão à realidade, como ficaria patente pelo facto de, ainda no início do século xx, os analfabetos corresponderem a 75% da população com mais de dez anos.[667] Os republicanos atribuíam este atraso à influência cultural da Igreja e à Monarquia, a qual acusavam de não ter construído escolas públicas nem pagado ou formado professores suficientes, por se encontrar sob a influência obscurantista da Igreja Católica. Como tal, o objetivo declarado dos republicanos era reformar a mentalidade dos portugueses através de uma escola secular. Desta escola deveria emergir uma população nova, republicana, nacionalista, física e psicologicamente vigorosa, e pronta para defender o regime contra quaisquer inimigos ou opositores. Esse era o plano. Na prática, as coisas foram diferentes e as reformas educativas da Primeira República foram pouco impressionantes. Foi criado um ministério, o da Instrução (a que hoje chamaríamos da Educação) e desenhou-se uma profunda e ambiciosa transformação do sistema de educação primária, mas muito do que estava planeado nunca chegou a sair do papel, como aliás é frequente em Portugal. Foi decidido que a escolaridade obrigatória seria de três anos – estendidos para cinco em 1919, decisões que nunca passaram da letra da lei. Decidiu-se também investir na formação dos professores e em melhores salários para os mesmos. E, finalmente, deu-se uma expansão da infraestrutura educativa disponível, sobretudo através da construção de novas escolas, ainda que o impulso inicial tenha desaparecido com a passagem do tempo. Foram também criadas universidades no Porto e em Lisboa, assim como escolas técnicas e secundárias – mas, como é evidente, estas eram apenas dirigidas a uma pequena franja num país em que o analfabetismo era ainda esmagador.[668] Na realidade, as elites políticas da Primeira República receavam o povo, pois sabiam que as suas decisões não tinham apoio junto da maioria da população. Na ótica de Afonso Costa e de outros republicanos, isto acontecia devido à influência cultural da Igreja. Os
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políticos dos principais partidos da Primeira República – e em particular do PRP, que era bastante radical nestas matérias – sentiam-se, portanto, cultural e politicamente condicionados pelo país rural e atrasado que queriam mudar, também pela via cultural. Compreender isto é fundamental para podermos entender porque é que a Primeira República falhou em toda a linha na sua tentativa de alfabetizar a população, ainda que, retoricamente, desse enorme importância a esse objetivo. É importante sublinhar que o condicionamento não era apenas nem principalmente político, mas sim cultural, estando, no entanto, ambos os aspetos fortemente ligados, como é evidente. João de Barros, o principal ideólogo da prática educacional da Primeira República, escreveu que «a República libertou a criança portuguesa, subtraindo-a à influência jesuítica, mas precisa agora de a emancipar definitivamente de todos os falsos dogmas, sejam os de moral ou os de ciência».[669] Para as elites republicanas, a secularização não significou apenas a separação do Estado e da Igreja, mas também a tomada de controlo, ou mesmo o domínio total, da Igreja pelo próprio Estado. O objetivo último era o Estado administrar a Igreja, destruindo a sua hierarquia interna e privando-a de meios de subsistência.[670] Logo a seguir ao triunfo da República, o governo provisório de Teófilo Braga, que contava com Afonso Costa como ministro da Justiça e dos Cultos, procurou de imediato implementar um dos mais importantes princípios da ideologia republicana – a laicização do Estado, de molde a reduzir a influência da Igreja Católica na sociedade portuguesa. Costa não hesitou em instrumentalizar a justiça, que usou para perseguir os seus inimigos.[671] Para além da Lei do Divórcio, retomou numerosos decretos anticlericais relativos à eliminação do ensino da doutrina cristã nas escolas. Também retomou diplomas relativos à expulsão dos jesuítas e à extinção das ordens religiosas. Os jesuítas, que tinham sido autorizados a regressar em 1858, foram expulsos – pela terceira vez na nossa História – ainda em 1910.[672] Para acabar com uns e outros, o que aconteceu logo três dias depois da implantação da República, nem sequer foi preciso elaborar nova legislação, tendo sido suficiente declarar como válidos os decretos de 1759 e 1834. Logo no mês a seguir à revolução, Afonso Costa também propôs que os restos mortais de Pombal fossem transferidos para o Mosteiro dos Jerónimos, que funcionava à época como Panteão Nacional.[673]
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Afonso Costa apresentou em Lisboa a Lei da Separação do Estado das Igrejas, numa reunião no Palácio Maçónico, em março de 1911. Esta Lei era um elemento fundamental da política anticlerical republicana – inspirada por políticas de teor semelhante implementadas em França poucos anos antes – e viria a ser um pilar fundamental do regime, especialmente numa primeira fase. A Lei foi apresentada menos de um mês antes da sua publicação em Diário do Governo. Foi nesta reunião que Afonso Costa disse que iria destruir a religião católica em Portugal em três gerações.[674] A Lei da Separação foi aprovada e publicada como decreto em abril, passando assim a ter força de lei ainda durante o governo provisório, antes das primeiras eleições para a Assembleia Constituinte que apenas tomariam lugar no mês seguinte. As mudanças foram grandes. A religião católica apostólica romana deixou de ser a religião oficial do Estado, não reconhecendo a República culto algum e, portanto, recusando-se a subsidiar a Igreja Católica: «A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto; e por isso (…) serão suprimidas nos orçamentos do Estado, dos corpos administrativos locais e de quaisquer estabelecimentos públicos todas as despesas relativas ao exercício dos cultos.» Os bens da Igreja foram nacionalizados e o culto passou a ser fiscalizado pelo Estado, entre várias outras medidas polémicas e fortemente contestadas pela Igreja.[675] A vida paroquial passou a ser organizada em redor de comissões laicas que excluíam os padres, que recebiam uma pensão do Estado caso aceitassem as novas regras.[676] Sem surpresa, o Vaticano cortou mesmo relações diplomáticas com Portugal em 1913. Mas as intenções de jure estavam mais uma vez em confronto com a realidade de facto: dois anos depois da Lei da Separação, as comissões laicas tinham sido criadas em apenas 6% das paróquias, e apenas um quinto do Clero recebia uma pensão estatal.[677] O objetivo declarado dos líderes republicanos à volta de Afonso Costa era o de criar um país novo através da educação das massas, acabando com o seu atraso secular, concretamente no que tocava à questão do analfabetismo. Como já vimos em capítulos anteriores, a ideia de que a decadência de Portugal se devia aos jesuítas e ao Clero era bem anterior. Mas reemergiu neste período e, logo depois da implantação da República, a Companhia de Jesus voltou a ser expulsa de Portugal, como referi. A ironia é que muitos dos políticos republicanos, que perseguiam e voltaram a expulsar os jesuítas, não tinham na verdade os seus filhos a estudar na escola pública, mas sim nas escolas da
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Companhia de Jesus.[678] Assistia-se mais uma vez ao triunfo da retórica sobre a realidade. Era a História de Portugal a repetir-se, ou pelo menos a rimar, como se pode ver num bilhete postal com uma ilustração satírica alusiva às políticas anticlericais de Afonso Costa, sob o olhar, e certamente aprovação, de Pombal (Figura 27). Apesar de tudo isto, ele insistia (embora fiquem dúvidas se verdadeiramente acreditava) que a Lei da Separação não era intolerante. Em 1914 afirmava na Câmara dos Deputados que: «o povo tem sentimentos de patriotismo, de republicanismo e de liberalismo contra os clericais. (…) A reação religiosa está convencida de que tem a defendê-la muita gente que tem assento nos arraiais republicanos, mas engana-se.»[679] A vocação secular da Primeira República manifestou-se de várias formas. Uma delas foi na proibição da exibição de crucifixos nas salas de aulas – sendo que uma das muitas medidas polémicas da Lei da Separação tinha sido, precisamente, a proibição de símbolos religiosos em lugares públicos. A vocação secular do ensino republicano ficou logo expressa a 22 de outubro de 1910, quando foi extinto o ensino da doutrina cristã nas escolas primárias.[680] A República também insistiu em que as escolas fossem mistas – ou seja, com os rapazes e as raparigas a conviver nos recreios e nas salas de aula.[681] Isto aconteceu desde os primeiros anos da República e foi reafirmado, por exemplo, num discurso de 1923 de João Camoesas, membro da Maçonaria que foi ministro da Instrução Pública. Ora, esta vocação secular da Primeira República iria entrar em choque com a cultura dominante do país, sabotando assim os esforços de escolarização que ocorreram, e por isso explicando, em grande medida, o falhanço da estratégia educativa republicana. Figura 27. A expulsão dos jesuítas, outra vez.
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Quase 70% da população portuguesa com mais de dez anos, em 1911, era analfabeta. Se este número é espantoso para os nossos dias, também o era já na Europa Ocidental de então, mesmo em comparação com os países mais pobres do Sul, como vimos no capítulo anterior. Os cerca de 70% de analfabetos de 1911 – que apenas desceram alguns pontos percentuais, para 62% em 1926 – iriam depois cair rapidamente para 42% em 1950.[682] No entanto, estas percentagens até subestimam os avanços feitos nesta época, devido ao facto de misturarem gerações: grande parte do progresso ocorrido nas décadas de 1930 e 1940 incidiu na escolarização das crianças, resolvendo o problema a prazo e fazendo assim diminuir as percentagens que acabei de referir. Apesar da retórica sobre o investimento na educação, a percentagem média de despesa pública durante a Primeira República apenas andou pelos 7%. Esta não foi uma percentagem alta, sendo bastante inferior aos 12% que a Ditadura Militar e o Estado Novo viriam a despender nos anos seguintes. A Primeira República construiu algumas escolas, ainda que concentradas em centros urbanos, atingindo uma densidade média de cerca de 15 escolas por 100 quilómetros quadrados em todo o país. A este respeito, o número equivalente para a Ditadura Militar e Estado Novo foi de 27 escolas por 100 quilómetros quadrados (apenas até 1950).[683] A falta de investimento da Primeira República na construção de escolas esteve certamente associada não apenas às dificuldades financeiras e à instabilidade política do regime, mas também à falta de vontade política devido ao risco que a alfabetização das massas rurais representava para as elites republicanas, como já referi. No entanto, o principal motivo para o falhanço do programa educativo da Primeira República não se deveu principalmente à falta de investimento em infraestruturas, uma vez que muitas crianças nem sequer iam às escolas que existiam. O problema central, como fiz notar, foram as guerras culturais. Nas aldeias, o Clero encorajava as massas a resistir às ideias da República, enquanto os pais não queriam retirar os filhos do campo para os enviar para as escolas onde, segundo desconfiavam, seriam sujeitos a influências perniciosas. A velocidade projetada pela Primeira República para a mudança social não era possível num país profundamente rural e socialmente conservador. A Primeira República até podia construir escolas, mas a verdade é que o número de matrículas por escola descia: de 55 em 1911-1912, para 52 em 1916-1917, e apenas 48 em 1926-1927.
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À medida que o Estado criava escolas, ia tendo cada vez menos alunos por escola. Vários intelectuais republicanos desenvolveram uma visão pessimista sobre a instrução primária, concluindo que não valia a pena investir na construção de escolas, pois as crianças não as frequentavam. [684]
Mas essa falta de procura tinha um motivo: as famílias desconfiavam da escola republicana. Nos meios rurais e pobres, as crianças representavam uma mão de obra importante, apanhando pasto ou pinhas, arrecadando estrume, acartando água, guardando animais e cuidando dos irmãos mais novos; pelos 12 anos começavam a trabalhar a par dos adultos.[685] Neste contexto, as famílias não estavam dispostas a prescindir dessa mão de obra para que ela fosse doutrinada pelo ateísmo republicano. A partir de 1926, o caminho seguido foi o oposto: o ensino passou a ter um teor religioso e deixaram de existir escolas mistas, passando a estar os meninos e meninas separados, não apenas nas salas de aulas, mas também nos recreios.[686] Os crucifixos, que tinham sido proibidos pela Primeira República, voltaram também às salas de aulas da instrução primária, ao mesmo tempo que os livros utlizados dedicavam dezenas de páginas à religião católica.[687] Essa política educativa veio a ter um enorme sucesso, como explicarei no capítulo seguinte. A verdade é que as mudanças culturais desejadas pelos republicados eram demasiado radicais para o que a sociedade portuguesa da época estava preparada. Não é possível mudar de repente, de «cima para baixo», toda uma sociedade, por decreto. E é muito mais fácil mudar uma sociedade se essa mudança for feita em consonância com a cultura da maior parte da população do que contra ela. Existiam aliás vários indícios, à época, de que os pais das crianças não estavam confortáveis com o regime de educação secular e mista. As próprias elites republicanas, por vezes, reconheceram isto mesmo: num documento oficial escrito em 1921, escrevia-se que o número de crianças inscritas nas escolas estava a cair, sendo isto especialmente verdade para as raparigas. Os motivos sugeridos incluíam a aversão dos pais ao ensino misto – notando o relatório que tinha existido uma queda discreta das inscrições no ano em que essa política foi adotada de forma geral –, bem como a própria desorganização administrativa da República.[688] Leonardo Coimbra, professor que foi duas vezes ministro da Instrução durante a Primeira República, também acabou por pedir a demissão devido à intransigência dos republicanos que viam a religião católica
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como inimiga declarada da ciência e queriam, à força e de repente, que o ensino refletisse esses seus valores, não permitindo sequer a liberdade de ensino religioso nas escolas particulares. Foi por isso atacado pelos colegas do próprio partido, para quem o sentimento religioso era «uma enfermidade só existente nos velhos e nas crianças».[689] O Estatuto da Educação Nacional de 1923 – um conjunto de ambiciosas reformas de João Camoesas, a que Jaime Cortesão chamou «o mais sério documento político emanado de um governo» – nunca saiu do papel, pois o governo de que fazia parte caiu em novembro desse ano. O que, de resto, não surpreende: nos 13 anos entre a criação do Ministério da Instrução, em 1913, e o fim da Primeira República, houve 40 ministros da Instrução, sem contar com os que desempenharam o cargo interinamente – uma média de um ministro a cada quatro meses. Como é evidente, é impossível concretizar quaisquer planos a prazo nestas condições, por mais bem-intencionados que sejam, sucedendo-se, portanto, os ministros uns aos outros, enquanto ficava tudo na mesma. Muito menos os planos ambiciosos que muitos desses ministros se propunham implementar. Basílio Teles, um economista e combatente republicano, mostrou saber invulgarmente isolar o essencial do acessório nesta matéria, quando chegou a propor in extremis a solução drástica de se fecharem todas as escolas que não fossem primárias para, antes de mais, acabar com o analfabetismo, enquanto primeiro passo para outros voos em fases posteriores.[690] Mas nada disto aconteceria. O alheamento cultural das elites políticas e da escola republicana relativamente ao país largamente rural, conservador e analfabeto que existia, implicou que as cartas estavam lançadas para o programa educativo republicano ser um sonho impossível. Em matéria de política educativa, a Primeira República apenas pode ser avaliada de forma francamente negativa. O caminho para o fim do regime Não é possível fazer uma avaliação globalmente positiva da Primeira República nos domínios económico e financeiro. Isso é verificável em vários indicadores. O regime manteve, por exemplo, o tradicional protecionismo da política comercial portuguesa.[691] Isto teria sido inevitável a partir do início da Grande Guerra – como, na época, era conhecida a Primeira Guerra Mundial – em 1914, mas durante os primeiros anos do regime, a abertura da economia não foi tentada. Os 222
republicanos tinham tido o hábito de entrar em retóricas inflamadas contra o despesismo da Monarquia, mas a sua ação nesta matéria não foi brilhante. Depois de uma inversão do saldo orçamental negativo nas contas públicas, em 1912-1914, realizada por Afonso Costa e conseguida através da redução das despesas públicas, os enormes custos e dificuldades financeiras associadas à guerra pesaram gravemente sobre o regime após a entrada de Portugal nesse conflito em 1916.[692] A falta de pão em Lisboa levou os governos republicanos a ordenarem requisições na província – altamente impopulares, como seria de esperar –, provocando motins e a suspensão das garantias constitucionais.[693] O industrial Alfredo da Silva argumentou mesmo que o parlamento republicano propunha «pôr inteiramente à disposição do governo tudo o que em matérias primas ou géneros de primeira necessidade qualquer indivíduo ou entidade possa produzir».[694] Há que reconhecer, contudo, que alguns dos custos relacionados com a Grande Guerra se deveram a fatores externos à política nacional. Foi o caso da diminuição das remessas dos emigrantes, principalmente dos do Brasil, o que levou a balança de pagamentos a deteriorar-se gravemente. Mas é preciso não esquecer que a participação de Portugal na Grande Guerra, com os enormes custos financeiros e humanos que estiveram a ela associados, não foi imposta a Portugal.[695] Foi uma escolha política deliberada, para defender o império em África e como forma de validação internacional do regime republicano.[696] Essa escolha correspondeu a um invulgar consenso político, tendo o «Ministério da União Sagrada» sido um governo que, invulgarmente, esteve mais de um ano em funções. Isso aconteceu graças à coligação de dois partidos normalmente rivais: o PRP de Afonso Costa e o Partido Republicano Evolucionista de António José de Almeida. Portanto, o sacrifício do país em defesa do Ultramar não era uma ideia exclusiva do Estado Novo, mas correspondia a um consenso político anterior, mesmo quando isso implicava enormes gastos, até arriscando a sobrevivência do próprio regime.[697] Em desespero, durante a guerra, os governos experimentaram tabelamento de preços, racionamentos, e ainda requisições, que foram penalizadoras da atividade económica.[698] As tentativas de controlar os preços e os câmbios continuaram nos anos imediatamente a seguir ao fim da guerra, que se caracterizaram por uma grande instabilidade económica e financeira, associada à instabilidade social e política, com uma média de quatro chefes de governo por ano, entre 1919 e 1922.[699] Mas, apesar de tudo
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isto, na sequência de um período de inflação muito elevada no início dos anos 1920, com os défices a serem financiados pela emissão de moeda, a partir de 1923-1924, os governos finais da Primeira República já tinham estabilizado as finanças públicas.[700] Não é possível desse modo confirmar o mito segundo o qual foram a Ditadura Militar ou o Estado Novo que iriam impor ordem nas contas públicas.[701] Ainda assim, a desorganização do Estado e das suas instituições tinha ficado bem patente com o escândalo do Banco Angola e Metrópole protagonizado por Alves Reis e os seus cúmplices em 1925, que danificaram gravemente a credibilidade financeira e política da Primeira República e do Banco de Portugal. O pronunciamento de 1926 viria a representar uma importante rutura política devido à sua metamorfose – que foi gradual e não previsível – no Estado Novo, a partir de 1928, pela mão de António de Oliveira Salazar, um civil. De origens sociais modestas, este professor universitário iria ter um estilo de governar académico e tecnocrático. No entanto, apesar do seu novo regime ser socialmente conservador, estando por isso mais alinhado com o país que existia à época, e embora se definisse em oposição ao suposto parlamentarismo multipartidário da Primeira República, grande parte das reformas políticas do regime republicano foram na verdade mantidas. A Ditadura Militar e o Estado Novo nunca procuraram restaurar a Monarquia e não reverteram a secularização do Estado, que tanta crispação social tinham gerado durante a Primeira República.[702] Até a bandeira verde e vermelha do país, inspirada pela do Partido Republicano Português, continuou a existir como tal, o que, de resto, também continuou depois a acontecer com a Terceira República, a partir de 1974. Durante a Primeira República, o facciosismo das elites urbanas republicanas, especialmente no que tocava à questão religiosa, tinha-as posto em confronto não apenas com o Clero, mas com a esmagadora maioria da população: o país profundo das aldeias. Não se tinha aprendido nada com a intolerância sectária dos regimes anteriores. Os governos finais de António Maria da Silva foram mais moderados e conciliatórios do que o que tinha acontecido quando Afonso Costa esteve à frente do PRP, mas ainda assim, e na sequência de mais falcatruas eleitorais em 1925, o terreno era fértil para que aparecesse um regime diferente. Numa primeira fase, o pronunciamento de 1926 não teve qualquer coerência: era apenas uma coligação de partidos e interesses
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com pouca coisa em comum, além do desejo de afastar o PRP do poder. [703] O futuro poderia ter passado por, simplesmente, uma ditadura temporária, um interlúdio como tinha sido o de Sidónio Pais antes do regresso do PRP às rédeas do Estado. António Maria da Silva afirmou então que «dava oito dias» à ditadura.[704] Mas a realidade viria a ser diferente. [636] Comunicação feita em função do Código Penal de 1913. Citado em MARQUES (1991), pp. 417-418. [637] Tal como no Capítulo 5, noto aqui que não tenho qualquer declaração de interesses a fazer, pois sou republicano. [638] Este parágrafo e os seguintes baseiam-se nos argumentos e na informação sumarizada em PALMA e REIS (2021). [639] VENTURA (2011). [640] MENESES (2010a), p. 36. [641] Note-se que emprego a palavra «esquerda» à luz dos padrões da época, não aos de hoje. Convém ter presente que a Primeira República tinha um sufrágio restrito, proibindo o voto às mulheres e aos analfabetos, por exemplo. Direi mais sobre esta matérias nos parágrafos seguintes. [642] MENESES (2010a), pp. 39, 45. [643] BRANDÃO (2018). Publicado originalmente em 1918; MENESES (2010a), p. 38. [644] RAMOS (2001), p. 364. [645] MENESES (2010a), p. 39. [646] MENESES (2010a), p. 53; RAMOS et al. (2009), pp. 594-595. [647] FARIA (2022), pp. 165-166. [648] SARDICA (2020), p. 96. [649] Fez, no entanto, algumas visitas pontuais ao país nos anos anteriores, ainda que receando pela sua segurança. [650] RAMOS (2001). Sobre a noção de democracia limitada, veja-se LINDERT (2003); e LINDERT (2004). [651] Ainda assim, existiu, sem qualquer dúvida, censura governamental durante a Primeira República. A partir de 1912 o governo passou a poder apreender jornais «que atentem contra a ordem, contra os bons costumes e contra a república». RAMOS et al. (2009), p. 595.
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[652] TENGARRINHA (1981), pp. 585 e 589. Para exemplos de repressões violentas por parte das forças de segurança, Veja-se MENESES (2010a), p. 64; e RAMOS et al. (2009), p. 584. [653] MARQUES (1991). [654] MENESES (2010a), p. 45. [655] PALMA e REIS (2021), p. 431. [656] RAMOS (2001), p. 358. [657] De resto, foi já com o «liberalismo» do século xix que se acentuou a construção de muitos «papéis de género». Veja-se VAQUINAS (2011), pp. 125-127. [658] Ainda que, na prática, este gesto fosse meramente simbólico, já que, como é evidente, durante a ditadura salazarista o voto tivesse pouco significado e consequências políticas. [659] BRAGA (2014a). Aproveito para notar que uma mulher ocupou um cargo executivo (uma subsecretaria de Estado) durante esse regime, ainda que apenas em 1970. Veja-se ALMEIDA (2018). Atente-se no facto de que essa situação não era muito diferente da que existia noutros países europeus católicos conservadores à época, mesmo em democracias, como durante o gaullismo em França, ou o domínio da Democracia Cristã em Itália. [660] Este era, portanto, um sufrágio censitário, ou seja, a concessão do direito do voto era dada apenas aos cidadãos que cumprissem certos critérios económicos. [661] Com exceções, como era o caso de criminosos. [662] Para além dos criminosos, também os militares não podiam votar. [663] MARQUES (1991). O discurso de Afonso Costa e informação complementar, também relacionada com o que vou discutir a seguir, podem ser consultados nas pp. 413-417. [664] MENESES (2010a), p. 73. [665] RAMOS et al. (2009), p. 610-611. [666] CARVALHO (2011b), pp. 651-652, 663-664. [667] Formalmente, o ensino passou a ser obrigatório em 1835. Uma data alternativa é 1844, como expliquei no capítulo anterior. [668] CARVALHO (2011b), pp. 688-692. [669] Preâmbulo ao Decreto de 29 de março de 1911. Citado em MARQUES (1991), p. 527. Não confundir este João de Barros com o historiador do século xvi. [670] RAMOS (2001), pp. 356-357; RAMOS et al. (2009), pp. 586-587. [671] MENESES (2010a), p. 38.
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[672] Regressariam discretamente durante a década de 1920, e a partir de 1932 em definitivo. ROMEIRAS (2019), cap. 3. [673] MENESES (2010a), p. 167; CARVALHO, pp. 659-660. [674] MENESES (2010a), pp. 39, 168. [675] SEABRA (2009). [676] MENESES (2010a), p. 40. [677] MENESES (2010a), p. 40. [678] ROMEIRAS (2019b), cap. 5. [679] DEBATES PARLAMENTARES (1914). [680] CARVALHO (2011b), p. 660. [681] Os argumentos dos parágrafos seguintes são baseados em PALMA e REIS (2021). [682] CANDEIAS (2004). [683] PALMA e REIS (2021), p. 420. [684] RAMOS (2001), p. 541. [685] VAQUINAS (2011), p. 145. [686] A proibição da coeducação no ensino primário deu-se 11 dias depois do 28 de Maio, ainda que inicialmente com algumas condicionantes. A exigência estendeu-se também ao ensino secundário. Quando não era possível utilizar edifícios separados, dividia-se o ensino em dois turnos, com horários distintos, um para os rapazes e outro para as raparigas. No caso do ensino particular, quando não era possível proceder ao desdobramento, as escolas tiveram de optar pelo ensino de um dos sexos. Veja-se CARVALHO (2011b), pp. 728-729, 781. [687] CARVALHO (2011b), p. 768. [688] MINISTÉRIO DAS FINANÇAS (1923). [689] CARVALHO (2011b), p. 706. Leonardo Coimbra expôs as suas ideias sobre estas matérias em COIMBRA (1926). [690] CARVALHO (2011b) pp. 702-708. [691] A informação deste parágrafo é em grande parte baseada em SILVA e AMARAL (2011). [692] SILVA e AMARAL (2011); AMARAL (2019), p. 70. [693] MENESES (2010a), p. 63.
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[694] FARIA (2022), p. 118. [695] Foram mobilizados cerca de 100 mil homens (correspondentes a cerca de 2% da população), tendo o número de vítimas – incluindo mortos, feridos e incapacitados – chegado a cerca de 25 mil homens, para os quais (ou para as suas famílias) foi necessário encontrar compensações financeiras. SILVA e AMARAL (2011). [696] Sobre estas matérias, consultar, por exemplo, MENESES (2015). [697] Como é sobejamente sabido, a participação na Grande Guerra foi o fator mais diretamente responsável pela eliminação de vários regimes, e até de dinastias, em várias partes da Europa. [698] Isto também foi um resultado da dependência do país de certos produtos importados. Com dificuldades nos mercados internacionais, não havia comida a entrar nos portos. [699] SILVA e AMARAL (2011). [700] SILVA e AMARAL (2011). [701] RAMOS (2001), p. 554. Na realidade, Salazar veio impor ordem nas contas da ditadura. Era o seu regresso definitivo à política, dois anos após a sua efémera participação política no início do regime, em 1926. [702] Nunca mais tinha existido uma tentativa séria de restaurar a monarquia depois da queda da Monarquia do Norte, que durou menos de um mês no início de 1919. Esse golpe, liderado por Henrique de Paiva Couceiro (próximo do Integralismo Lusitano), tentado na sequência do assassinato de Sidónio Pais, nem sequer conseguiu o apoio do rei deposto, D. Manuel II. Esse assunto aparentava estar, portanto, fechado, sem haver utilidade ou vantagem para o regime em ser reaberto. Relativamente à relação de Salazar com os monárquicos, veja-se MENESES (2010b), p. 101. [703] RAMOS (2001), p. 560. [704] RAMOS et al. (2009), p. 623.
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9. O Estado Novo O mito é o nada que é tudo. Fernando Pessoa, Mensagem A Primeira República caiu com o pronunciamento de 28 de Maio de 1926. Tal como tinha havido pouca gente disposta a defender a Monarquia em 1910, havia agora pouca gente disposta a defender o regime dominado pelos caciques do Partido Republicano Português (PRP) em 1926. O golpe de Estado deu origem a uma Ditadura Militar – conhecida como Ditadura Nacional a partir de 1928 – e, finalmente, a partir da Constituição que entrou em vigor em abril de 1933, deu origem ao Estado Novo propriamente dito. Os apoiantes da ditadura começaram por ser um grupo diverso que incluía republicanos, católicos, sidonistas, e integralistas.[705] Pouco os unia além do desejo de manter o PRP afastado do poder.[706] Enquanto se consolidava, a ditadura sobreviveu a várias tentativas de golpes de Estado, incluindo uma importante em fevereiro de 1927.[707] Sobre o Estado Novo e as consequências que teve para Portugal, existe uma literatura abundante que se divide de forma genérica em dois grupos: o que foi escrito durante o regime, principalmente pelos seus apoiantes, e o que foi escrito depois do 25 de Abril, quase sempre pelos opositores. Praticamente toda esta literatura, tanto a dos apoiantes como a dos opositores, é de qualidade duvidosa. Não pretendo aqui nem revêla, nem rebatê-la. O que foi escrito na época já está esquecido, enquanto quase tudo o que tem sido escrito nas últimas décadas esquecido será. Limito-me a descrever o meu ponto de vista sobre o período, apoiandome nas raras obras de valor que, felizmente, também existem. Como em tudo o resto neste livro, apenas o teste do tempo dirá se tenho razão ou não na perspetiva que aqui apresento, pelo menos nas suas linhas gerais.
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Um aspeto relevante para compreender o Estado Novo é a diferença entre declarações de intenção (de jure) e políticas efetivas (de facto). Como tenho enfatizado neste livro, vários regimes e líderes políticos portugueses caracterizaram-se por legislarem uma coisa e fazerem, na prática, outra. Assim foi com o Marquês de Pombal e com Afonso Costa que, no que toca à educação da população, construíram planos aparentemente impecáveis e irrepreensíveis, mas que nunca saíram do papel. E, entretanto, também por isso, alienaram o país que existia e que podia ter sido reformado de maneira gradual. Já no caso de Salazar, também não nos podemos enganar com as diferenças entre o de jure e o de facto – mas pelo motivo contrário. O que ele dizia nos discursos e comunicações oficiais, enfatizando por vezes as virtudes da pobreza, do país rural, e da austeridade, pode parecer indiferente ao desenvolvimento do país. Salazar manifestou mesmo publicamente, em 1935, ceticismo sobre os benefícios de ensinar o povo a ler, levantando a dúvida «Para ler o quê?».[708] Mas este tipo de declarações têm enganado gerações de intelectuais e historiadores, pois essa visão do mundo que ele por vezes transmitia não deve ser interpretada literalmente já que esteve, na verdade, bastante longe de caracterizar a ação política efetiva do Estado Novo.[709] Aliás, o próprio regime usava cartazes de propaganda em que sublinhava as suas vitórias no combate ao analfabetismo assim como, por exemplo, os grandes aumentos das frequências nas escolas de ensino técnico e profissional.[710] A repressão ditatorial comparada Vale a pena começar por enfatizar que o Estado Novo era uma ditadura, em que os níveis de repressão e censura aumentaram relativamente aos regimes anteriores, até por ser um regime mais estável e organizado. Apesar de, como expliquei no capítulo anterior, a Primeira República ter ficado muito longe de ser uma democracia num sentido moderno, existiu ainda assim alguma alternância partidária, alguma liberdade de expressão, e até, em certos momentos, alguma legitimidade democrática. O regime era, apesar da centralidade do PRP, mais democrático do que a Ditadura Militar e o Estado Novo viriam a ser. Na Primeira República existiam pressões sobre a imprensa e, por vezes, até
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destruição dos seus equipamentos, em particular pelos apoiantes do PRP, mas a censura não foi exercida, apesar de tudo, de forma tão sistemática como viria a ser no regime seguinte. É importante esclarecer que o simples facto de o Estado Novo ter sido uma ditadura significa, pelo menos para mim, que qualquer sucesso a nível do desenvolvimento económico e dos efeitos favoráveis para o bem-estar das populações não justifica o amordaçar da liberdade. Destacam-se negativamente as prisões políticas, a censura e delito de opinião, e as eleições-fantoche – traços característicos dos sistemas ditatoriais, que não são apenas condenáveis, mas mesmo inaceitáveis. Ainda assim, importa compreender que, no contexto do seu tempo, a repressão foi muito ligeira, em comparação com os Estados totalitários da Alemanha Nazi, da União Soviética, da Itália Fascista, ou mesmo da Argentina de Videla, já nos anos 1970 e inícios dos 1980. Basta notar, por exemplo, que o Estado Novo não restaurou a pena de morte, que em Portugal tinha sido abolida para crimes políticos em 1852, para crimes civis em 1867, e para crimes militares em 1911. Apesar disso, durante o regime existiram algumas execuções extrajudiciais, sendo amplamente conhecido o caso de Humberto Delgado e da sua parceira e secretária Arajaryr Campos, assassinados pela PIDE perto de Badajoz em 1965. Além disso, as condições sanitárias na prisão do Tarrafal, em Cabo Verde, corresponderam à pena de morte para alguns dos que tiveram a infelicidade de para lá serem enviados, ainda que tenham sido relativamente poucos.[711] Convém lembrar, no entanto, que o envio de presos políticos para o degredo nas colónias era anterior ao Estado Novo, uma vez que já tinha sido praticado pela Monarquia e pela Primeira República.[712] A Primeira República também tinha sido responsável por sacrificar na Primeira Guerra Mundial milhares de portugueses em nome da defesa das colónias em África.[713] É uma afirmação normativa, ou seja, um juízo de valor, e que eu subscrevo, afirmar que, independentemente das comparações e do contexto da época, a polícia política, os tribunais plenários e a censura não são aceitáveis. O facto de a repressão ter sido exercida em grande parte (ainda que não exclusivamente) contra forças políticas que não eram mais democráticas também é uma explicação largamente insatisfatória, ainda que não possa ser escamoteada.[714] Dizer que estas ações devem ser entendidas no contexto do seu tempo não é o mesmo que dizer que devem ser
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legitimadas. Mas devem ser analisadas e compreendidas, até porque não é de excluir que em certas épocas e contextos tivessem sido inevitáveis relativamente a alternativas que teriam sido piores.[715] Em suma, o Estado Novo, quando comparado com outros regimes ditatoriais, não foi uma ditadura particularmente repressiva.[716] Mas, para compreendermos por que assim foi, é importante refletirmos sobre os fatores que explicam a sobrevivência de um regime que durou quase meio século e sobre a forma como estes estiveram certamente relacionados com os motivos que explicam esse baixo nível de repressão. Parece improvável que a explicação esteja nos brandos costumes dos seus líderes. Em vez disso, é mais credível considerarmos a falta de necessidade que a ditadura teve de exercer mais violência para sobreviver. Um exemplo disto é o facto de o Estado Novo variar os níveis de repressão ao longo do tempo em função de quando é que a repressão era mais necessária para assegurar a sobrevivência do regime. Veja-se o aumento das detenções entre 1943 e 1949, tendo voltado a diminuir a partir daí, à medida que o regime entrou num período de maior calma.[717] Outro exemplo é o facto de a censura ter sido menos apertada no Ultramar, durante a Guerra Colonial, do que era na Metrópole.[718] Tudo isto sugere que o regime em geral não foi mais repressivo porque não precisou; quando precisava, tornava-se mais repressivo.[719] Mas frequentemente não precisava. Vejamos porquê. Grande parte da população – conservadora, rural, e analfabeta – não esperava grande coisa dos governantes em Lisboa. A política, portanto, passava-lhes largamente ao lado, a não ser em questões fraturantes. Salazar podia assim ser seletivo ao exercer a repressão, preservando a paz – e, claro, o seu regime – sem causar grandes escândalos.[720] É possível argumentar que a Lei da Separação, de Afonso Costa, acabou por ser uma bênção para a Igreja. Ajudou a criar um inimigo comum, levando a que o movimento católico emergisse da Primeira República mais coeso do que tinha sido no período final da Monarquia Constitucional. Desta forma, Salazar – que nestas questões era um político pragmático – conseguiu brandir a reabertura da questão religiosa como uma arma para manter a Igreja sob controlo.[721] Numa perspetiva comparada, a ideologia do Estado Novo permaneceu branda, em comparação com o «nacional catolicismo» imposto por Franco em Espanha. Isto está certamente relacionado com o modo como o poder foi obtido e consolidado nestes dois países, com diferentes relações de força
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a caracterizarem cada um desses processos: em Portugal, as forças anticlericais não foram fisicamente eliminadas, ao contrário do que aconteceu em Espanha devido à sua Guerra Civil (1936-39).[722] Os níveis de intervenção estatal O Estado Novo não era estranho à intervenção estatal, mas o corporativismo lançado nos anos 1930, apenas a partir de uma Subsecretaria de Estado (não de um Ministério), foi sempre relativo.[723] A sua implementação enfrentou desde o primeiro momento resistências, ficando desde o início claro que estas existiam dentro do regime. Alguns dirigentes, como o ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco, não se reviam no corporativismo.[724] Salazar representava o «centro» do regime, e a insatisfação com a implementação lenta e muito parcial do corporativismo levou os seus defensores, à direita de Salazar, a mostrarem forte descontentamento. O subsecretário de Estado responsável, Pedro Theotónio Pereira, queixava-se mesmo ao Presidente do Conselho de Ministros em 1934: «Não tenho forma de agir nem de fazer cumprir as novas leis», afirmando que tinham razão os nacionaissindicalistas (ou seja, a extrema-direita) que afirmavam que tudo não passava de uma encenação, mera «poesia».[725] Existe, de facto, quem sustente que o corporativismo nunca foi, na prática, concretizado.[726] A Câmara Corporativa tinha funções meramente consultivas, e nada de concreto era efetivado sem a intervenção pessoal de Salazar que, em última análise, decidia tudo o que fosse importante.[727] Mas a desconfiança do regime relativamente à concorrência manifestava-se no regime de condicionamento industrial. Era necessário um processo burocrático, e em larga medida arbitrário, para abrir ou restruturar fábricas; só as empresas pequenas estavam isentas.[728] Era, na prática, uma forma de também limitar o investimento estrangeiro no país. Além disso, existiam outras formas de intervenção estatal, como o tabelamento de preços para alguns setores, como o trigo e a indústria da cortiça – algo que, em parte, já vinha de trás.[729] Era através dos grémios – quase 500 em 1945 – obrigatórios e que associavam os patrões, que a produção e distribuição seriam regulamentadas, sendo estabelecidos os preços, quotas de produção, crédito, assim como os subsídios. Os grémios e as casas do povo eram vistos como os mecanismos através dos quais as pessoas podiam 233
defender os seus interesses e, como tal, os lock-outs e as greves eram proibidos.[730] Existia portanto uma forte intervenção estatal no «mercado».[731] Durante as primeiras décadas de Salazar no poder, existiu a preocupação de garantir preços para produtos que o governo considerava essenciais: o trigo, o azeite, o leite, a carne, e o vinho.[732] Já os frutos e vegetais não beneficiavam de garantias estatais, sendo comprados e vendidos a preços de mercado.[733] A intervenção estatal só viria a atenuar-se com a abertura da economia ao exterior que se deu com a entrada na EFTA (European Free Trade Association) em 1960, e no GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) em 1962.[734] Esta decisão de internacionalizar a economia foi uma decisão política resultante, em parte, da experiência vivida com a execução do Plano Marshall, como viria a enfatizar décadas mais tarde António Manuel Pinto Barbosa (subsecretário de Estado do Tesouro em 1950-1955, e ministro das Finanças em 1955-1965).[735] Nas décadas anteriores à abertura, manteve-se a existência de preços mínimos de natureza protecionista que já existiam desde o século xix, mesmo ainda antes da «Lei da Fome».[736] Esta forte natureza protecionista da agricultura portuguesa continuou até aos anos 60 do século xx.[737] Uma vez instalada, a ditadura estava para durar. O regime não se via como um expediente para resolver alguns problemas e depois restaurar a democracia. Como dizia Salazar na sessão inaugural do primeiro congresso da União Nacional, em 1934: «As ditaduras não me parecem ser hoje parêntesis de um regime, mas elas próprias um regime, senão perfeitamente constituído, um regime em formação».[738] A Constituição de 1933 era ambígua a vários níveis, mantendo eleições e uma Assembleia Nacional, ainda que na prática não passassem de uma fantochada.[739] Representava um conjunto de equilíbrios entre republicanos, monárquicos, integralistas, católicos, funcionários públicos, e militares.[740] Mas se o regime resultava de um conjunto de compromissos, na prática, a autonomia do executivo era quase total.[741] O regime – ou «a situação», como era conhecido à época – nunca fomentou movimentos de massa em seu apoio, que poderiam levar à sua radicalização. Pelo contrário, manteve a sua base de apoio que era tradicional e conservadora. Foram vários os decretos-lei emitidos a partir de 1936-1937 que permitiram uma discriminação contra os inimigos do regime através das contratações públicas e do aparelho repressivo.[742]
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Salazar era um conservador social e o regime que construiu e dirigiu era uma ditadura nacionalista e conservadora. Mas o ditador, apesar de ter a sua origem em meios políticos católicos, resistiu a todas as tentativas de tornar a religião Católica uma religião de Estado, como aconteceu em Espanha. Nunca quis estabelecer um partido focado em mobilizar a população, como aconteceu nos regimes totalitários. Pelo contrário, o objetivo de Salazar era despolitizar a sociedade.[743] Em 1938, o escritor francês Henri Massis visitou o ditador em São Bento, depois de outras visitas, a Mussolini em Itália e a Franco em Espanha. O contraste, segundo ele, era óbvio: em Portugal existia uma «ditadura da inteligência», sendo a preocupação de Salazar «fazer baixar a febre política» no país, sem se acreditar na ideia do «Estado omnipotente».[744] Salazar seria mesmo decisivo para bloquear o acesso da direita radical ao poder.[745] A União Nacional era essencialmente um «antipartido», destinado a agregar as forças civis que apoiavam o regime, e que nunca procurou uma clientela popular.[746] Num discurso público, Salazar referiu-se mesmo à classe operária nos seguintes termos: «Não precisamos de a incensar, para que nos sirva de apoio, nem de lhe incendiar as iras para depois a mandarmos fuzilar pelos seus excessos».[747] Independentemente de alguma estética comum com o fascismo adotada nos anos 1930, o regime nunca teve as características essenciais dessa ideologia – tendo sido suprimidos, ao invés, movimentos políticos como o Integralismo Lusitano e o Nacional-Sindicalismo de Rolão Preto.[748] Já o corporativismo acabou por ser, na prática, como referi, pouco mais do que um tigre de papel.[749] Com o Estado Novo, apareceu em Portugal uma paz social à qual o país já não estava habituado depois do período agitado da Primeira República e das décadas finais da Monarquia. Também por isso existiu, portanto, pouca oposição organizada ao regime até aos anos 1940, e depois às eleições presidenciais de 1958, às quais concorreu Humberto Delgado, que, de resto, vinha de dentro do regime.[750] O progressivo esquecimento de novas gerações relativamente à natureza da Primeira República levou ao gradual emergir de uma oposição cada vez mais generalizada.[751] A oposição intensificou-se a partir do início da Guerra Colonial, que em 1961 começou primeiro em Angola e depois se estendeu a outros palcos em África. Até aí, a oposição republicana, antes conhecida como o «reviralho», tinha sido marginal, pelo menos entre a
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população em geral, enquanto o Partido Comunista Português, financiado pela União Soviética, também não conseguia encontrar sólido apoio entre a população.[752] Mesmo depois do início da Guerra Colonial, o regime beneficiou frequentemente de apoios e denúncias espontâneas por parte da população, fosse por motivos ideológicos fosse porque esperava retirar delas alguma vantagem material.[753] A maior descontinuidade da História de Portugal A partir de 1950, iniciou-se em Portugal a maior descontinuidade da nossa História. O país entrou, nessa altura, num processo de crescimento acelerado que iria aproximar o país da Europa Ocidental, primeiro no que toca ao desenvolvimento económico e, mais tarde a nível político, embora essa aproximação não tenha sido completa em nenhuma dessas dimensões. Um pilar importante dessa mudança foi a transição demográfica, expressa por uma queda marcada da fecundidade, de que já falei no Capítulo 1. Estas foram mudanças radicais que tiveram causas internas, que irei a seguir enfatizar. Convém destacar, no entanto, que também existiu um contexto externo favorável. A segunda metade do século xx foi um período de convergência de várias regiões do mundo relativamente aos países mais ricos.[754] A Europa Ocidental também teve a sua era dourada de crescimento, entre a segunda metade dos anos 1940 e inícios dos anos 1970. Deste modo é claro que, independentemente das causas internas que aqui aponto, no período pós-1945, Portugal beneficiou igualmente de um contexto externo favorável. Mas é preciso notar que já tinham existido períodos anteriores de crescimento na Europa Ocidental, como a industrialização do século xix, que Portugal não tinha acompanhado. Desta vez, tudo seria diferente. Comecemos pelos factos elementares.[755] A nível macroeconómico, a escala da mudança verificada foi tão rápida que é quase difícil de imaginar. Tomando o ano de 1926 como o de início do regime, o rendimento médio por pessoa subiu de forma vertiginosa, multiplicandose por cinco até 1974. A subida exponencial do rendimento pode ser visualizada voltando a inspecionar a Figura 7 do Capítulo 3. É preciso pararmos um momento para compreendermos o que isso quer dizer: a multiplicação por cinco do rendimento médio real – ou seja, já descontando a inflação –, por pessoa. Implica isto que cada pessoa, em média, podia comprar cinco vezes mais bens e serviços por ano em 1974 236
do que acontecia 48 anos antes. É uma subida extraordinária, ainda que não tenha em conta a desigualdade, sobre a qual mais à frente falarei.[756] Como é possível ver, o crescimento arrancou em força ainda durante a década de 1950.[757] Mas o pós-guerra foi um período em que várias partes da Europa Ocidental também cresceram enormemente. Por isso, importa saber como foi o comportamento económico do país em termos comparados com o de outros países europeus da época. Isto pode ser visto na Figura 28, onde repito um exercício semelhante ao realizado no Capítulo 7.[758] Como a figura mostra, tinham existido picos temporários durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial – eventos relativamente aos quais a economia nacional esteve largamente protegida. Isto aconteceu, no primeiro caso, pela sua pouca integração com a economia mundial, e no segundo, por não ter participado no conflito.[759] A economia portuguesa tinha voltado depois, em finais dos anos 1940, ao nível baixo em que havia estabilizado por volta da primeira década do século xx. Ou seja, nessa altura, o PIB per capita português era de apenas 37% do nível médio da Europa Ocidental.[760] Mas a convergência sustentada com os outros países europeus iria aparecer a partir da década de 1950, primeiro timidamente, e depois com uma aceleração clara na década seguinte. Em 1973, o PIB per capita do país já tinha atingido mais de 55% do nível da Europa Ocidental. Esse seria um valor, de resto, próximo do qual o país ainda estaria uma década depois, como também é possível ver na mesma figura.[761] Toda a Europa estava, aliás, muito mais rica em meados dos anos 1970 do que tinha sido em 1950. Portugal, em termos relativos, ainda mais. Figura 28. PIB per capita português relativamente à média da Europa Ocidental.
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O atraso educativo do país também foi, em grande parte, recuperado com o Estado Novo. Enquanto no início do século xx, três quartos da população era analfabeta, assistiu-se durante este regime a um período de alfabetização acelerada das camadas infantis, como aliás é há muito conhecido nos meios académicos sérios, sendo dito e repetido por figuras insuspeitas de qualquer simpatia pelo regime, como António Candeias ou Rómulo de Carvalho.[762] Existem também hoje estudos que mostram que isso não aconteceu por mero acaso, ou seja, o progresso que se concretizou teve a ver com algumas das características do regime, como irei explicar mais adiante. Apesar de também terem acontecido esforços de alfabetização dos adultos, é natural que seja muito mais fácil alfabetizar as crianças, e fizesse portanto sentido começar por aí (resolvendo assim o problema do analfabetismo a prazo, ainda que não no imediato).[763] Já no ensino secundário, e até universitário, a expansão foi mais tardia, como seria de esperar, mas também começou em força ainda durante o regime.[764] Que assim tenha sido faz sentido: sem haver aceleração prévia no ensino primário, dificilmente poderia ocorrer uma aceleração sustentada no ensino secundário. O contrário seria meter a carroça à frente dos bois, como tinham tentado fazer alguns regimes anteriores sem qualquer sucesso. Estas melhorias do capital humano da população foram um dos fatores que levaram à modernização do país. Esta deveu-se às subidas de produtividade que se refletiram numa grande melhoria dos padrões de vida das populações. Como é evidente, as rápidas melhorias de produtividade e mudanças setoriais associadas não constituem em si mesmas uma explicação para a convergência do país. Se o setor industrial tinha maior produtividade do que o agrícola, porque é que estas mudanças tão vantajosas só começaram em 1950? Alguma coisa tinha mudado. E não foi coisa pouca, como iremos ver. Portugal beneficiou do contexto externo favorável do pós-guerra, mas é preciso também reconhecer que o país o soube aproveitar.[765] Um exemplo são as decisões em matéria alfandegária, com a adesão à EFTA em 1960 e a abertura da economia ao exterior, tendo existido, em inícios dos anos 1970, um acordo com a Comunidade Económica Europeia. A abertura ajuda a explicar, no sentido contabilístico, o crescimento – mas não restam dúvidas de que este resultou de uma decisão política interna. [766] A composição das exportações portuguesas modificou-se em resposta à abertura comercial. Desde o século xix que Portugal se tinha
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especializado em exportar produtos alimentares de consumo com um nível baixo de transformação industrial, como o vinho, uma tradicional exportação portuguesa. Durante a primeira metade do século xx, estes produtos representavam ainda cerca de dois terços das exportações de mercadorias nacionais.[767] A situação viria a mudar drasticamente com a possibilidade de exportar bens de maior valor acrescentado para os mercados da EFTA. Foi assim que o país se começou a especializar na produção de bens de consumo para efeitos de exportação, como vestuário e calçado, relativamente aos quais a mão de obra barata dava ao país uma vantagem comparada. Estes dois setores iriam atingir, no último quartel do século xx, uma dimensão semelhante à que o vinho do Porto tinha tido em finais do século anterior: um quarto do total das exportações.[768] A economia portuguesa continuaria, mesmo depois de 1974, a ficar cada vez mais dependente desses setores, que atingiram o seu pico apenas nos anos 1990. Aliás, ainda nos dias de hoje têm um peso relevante. Por outro lado, as importações de bens alimentares, que em finais do século xix representavam um terço do valor das mercadorias importadas, perderam peso.[769] Esta redução foi o resultado dos aumentos de rendimento desta época e não da substituição da alimentação por produção interna.[770] Deve notar-se que a industrialização do país se acelerou nos anos 1950, cerca de uma década antes da entrada na EFTA, quando cerca de metade da população portuguesa ainda trabalhava na agricultura. A percentagem da população ativa a trabalhar no setor primário já tinha conhecido uma ligeira queda desde o início do século, mas o peso da agricultura no PIB apenas começou a cair a partir dos anos 50.[771] Ainda que já tivesse havido alguma industrialização nas décadas de 1930 e 1940, o país só começou a industrializar-se de forma rápida e sustentada nos anos 1950, como pode ser visto na Figura 29.[772] No entanto, ao contrário do que tinha acontecido em finais do século xvii (mas em linha com o que tinha já tinha acontecido, de forma muito incipiente, desde finais do século xix), a industrialização deu-se principalmente nas regiões à volta de Lisboa e do Porto.[773] No seguimento da Lei da Eletrificação Nacional, de 1944, e da Lei de Fomento e Reorganização Industrial, de 1945, os Planos de Fomento dos anos 1950 (com um terceiro, a partir dos anos 1960) mostravam como o condicionamento industrial era já considerado desadequado à nova realidade do pósguerra. Ao declarar que o objetivo primário das barragens a serem 239
construídas deveria ser o fornecimento de eletricidade para desenvolvimento industrial, a irrigação e o setor agrícola eram secundarizados.[774] Apesar disso, as mudanças observadas não resultaram apenas de uma dinâmica própria do setor industrial, mas também do que se passava nos campos, uma vez que a adoção de adubos e da mecanização libertou milhares de braços todos os anos.[775] De resto, as melhorias de produtividade no setor agrícola já vinham dos anos 1930, tendo levado a uma queda do peso da agricultura no PIB, que não ultrapassaria um terço nas décadas de 1930 e 1940, embora mais de metade da população ativa trabalhasse nesse setor.[776] Em finais dos anos 1930, a agricultura portuguesa ainda utilizava, em média, apenas dez quilos de fertilizantes químicos por hectare, que viriam a triplicar para 30 quilos por hectare duas décadas depois.[777] Como é possível ver na Figura 29, a aceleração da indústria estendeu-se depois aos serviços a partir dos anos 1960. Pela primeira vez na sua História, Portugal deixou assim de ser um país maioritariamente agrícola e rural. Foi, portanto, nesta época que começou a desenhar-se o país concentrado nas cidades e no litoral que hoje existe, um fenómeno sem qualquer dúvida positivo, que permitiu a milhões de famílias fugir da pobreza.[778] Começava a recuperar-se de forma acelerada o grande atraso em relação à Europa Ocidental. Figura 29. Distribuição setorial da população ativa.
A ideia bastante difundida de que o Estado Novo reprimia os trabalhadores para gerar salários baixos e de que os salários se mantiveram sempre estagnados não tem cabimento. Um estudo detalhado sobre a mão de obra de uma grande empresa oligopolista, a 240
CUF do Barreiro, por exemplo, mostrou que os salários médios reais (ou seja, corrigidos da inflação) cresceram 250% entre 1925 e 1974.[779] Note-se, ainda assim, que não deixa de ser verdade que esta subida salarial foi inferior à subida do PIB per capita durante essa mesma época, o que sugere um aumento da desigualdade relativamente ao capital. Talvez isso não seja surpreendente, pois a desigualdade é tipicamente reduzida nas sociedades muito pobres, sendo por isso expectável que cresça com o processo de desenvolvimento.[780] Por outro lado, a desigualdade relativamente às pessoas mais ricas da sociedade, tanto para rendimentos como para riqueza, diminuiu acentuadamente entre meados dos anos 1950 e meados dos 1980.[781] E, a partir dos anos 1960, existiu uma diminuição da desigualdade salarial entre os trabalhadores qualificados e a mão de obra não qualificada, em praticamente todos os setores.[782] A modernização do país conduziu a uma melhoria colossal dos padrões de vida das populações. Simultaneamente, em particular a partir dos anos 1960, deu-se uma vaga de emigração, com números totais que terão atingido dois milhões de pessoas que partiram para França e outros destinos, embora com impactos líquidos reduzidos na população do país, que caiu apenas algumas centenas de milhares de pessoas, como é visível na Figura 2 do Capítulo 1. Os níveis de emigração anuais, incluindo a clandestina, andavam em níveis geralmente inferiores a 40 mil pessoas na década de 1950, mas explodiram nos anos seguintes, chegando a um pico de mais de 180 mil em 1970. Depois desceu rapidamente, e, nas vésperas do 25 de Abril, já se encontrava em valores próximos dos anos 50.[783] Ou seja, foi na década em que o país mais cresceu que os números da emigração também mais aumentaram. É assim notável o dinamismo económico interno, capaz de absorver uma parte importante da mão de obra que a transformação dos campos estava a libertar.[784] A este propósito, vale a pena aqui questionar mais um mito: a ideia de que teria sido a emigração nos anos 1960-1970 que explicava o crescimento. Os números negam essa teoria, porque os efeitos positivos gerados pela maior escassez do trabalho e pelas remessas enviadas pelos emigrantes não poderiam ter sido suficientes, por si só, para gerar o crescimento observado, nem para o sustentar no tempo. Basta pensar que houve outros períodos da nossa História com forte movimento
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migratório, sem que tivesse havido convergência, como o da emigração oitocentista para o Brasil ou como acontece agora com o fluxo atual para os países mais ricos da Europa. Aos avultados aumentos dos rendimentos médios por pessoa que se registaram no país, durante a segunda metade do século xx, correspondeu um rápido desenvolvimento de medidas de bem-estar, incluindo nos planos da educação e da saúde. Estas foram principalmente um efeito da modernização do país e do crescimento daí resultante.[785] Já todos ouvimos várias histórias de como o povo passava fome durante o Estado Novo, havendo só uma sardinha para três pessoas em certas épocas, por exemplo. Não há dúvida de que fome terá havido, em certas famílias e contextos, como ainda hoje há, em muitas famílias e contextos. O que é relevante, contudo, é questionar se era ou não frequente e como é que essa situação variou ao longo do tempo. Para aferir o bem-estar da população, são necessárias estatísticas e não opiniões. Atribuir a culpa da fome (ou da falta de acesso a serviços de saúde) ao Estado Novo, como muitas vezes é feito, em comparação com o presente e não com o regime anterior, nem sempre é uma atitude inocente. No mínimo, deturpa a análise do passado e escamoteia a importância de uma visão objetiva e comparada de longo prazo. A fome e as doenças nem apareceram com o Estado Novo, nem acabaram com o seu fim. O que é um facto indesmentível é que ambas diminuíram drasticamente durante o período histórico que corresponde a esse regime. [786] Tentemos então compreender quando e como isso aconteceu. Uma sardinha para três? Como referi, existe uma ideia bastante difundida de que durante o Estado Novo o povo passava fome e não tinha acesso a cuidados de saúde. Isto é normalmente afirmado sem serem feitas comparações com regimes e épocas históricas anteriores. Em trabalho conjunto com Alexandra Cermeño e Renato Pistola, estudei em detalhe a forma como o bem-estar das crianças e jovens adultos evoluiu durante o século xx.[787] Utilizámos três arquivos: o do Hospital de São Roque da Misericórdia de Lisboa, o da Casa Pia de Lisboa e o do Exército (Livros de Recenseamento Militar). Esta última fonte cobre todo o país, ainda que apenas os indivíduos de sexo masculino, observados aos 20 anos de idade e até 1968. De resto, é uma amostra representativa, pois a inspeção 242
militar era obrigatória.[788] As fontes recolhidas nos dois primeiros arquivos, por outro lado, cobrem ambos os sexos e crianças de várias idades, mas apenas para a cidade de Lisboa.[789] Através do tratamento estatístico de milhares de observações individuais recolhidas destas fontes, concluímos que as melhorias de alimentação e saúde ao longo do tempo foram drásticas, tendo começado muito antes da instauração da democracia ou do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Vejamos, por exemplo, a evolução da percentagem de pessoas que sofriam de problemas no crescimento, originando uma estatura baixa. Como vimos no Capítulo 7, a estatura dos portugueses já era a mais baixa da Europa em finais do século xix. A reduzida altura era geralmente provocada por deficiências alimentares e más condições sociais, nomeadamente sanitárias. Os dados que recolhemos dos Livros de Recenseamento Militar sugerem que, em meados dos anos 1920, cerca de 40% dos mancebos do país sofriam de problemas desta natureza. O número equivalente para Lisboa era quase dez pontos percentuais mais baixo (Figura 30).[790] Estas percentagens iriam cair rapidamente nas décadas seguintes, chegando, em finais da década de 1960, a cerca de metade do que tinham sido em 1924. Todos sabemos, por observação própria, que as gerações mais jovens em Portugal são tendencialmente mais altas do que as anteriores, embora não seja tão evidente que isso decorre de um processo de melhorias económicas e sociais que entrou em rápido andamento logo em meados do século xx. Historicamente, a altura média em Portugal andava pelos 1,65m para os homens, tendo este número estagnado, ou até descido, na segunda metade do século xix, como vimos no Capítulo 7. Estas alturas começaram depois a crescer uma média de cerca de um centímetro por década, a partir dos anos 20 do século xx, com uma forte aceleração nos anos 1960.[791] Figura 30. Percentagem de indivíduos do sexo masculino que sofriam de deficiências de crescimento, medidos aos 20 anos de idade.
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No nosso artigo de investigação, também documentámos melhorias paralelas para as crianças, que se verificaram claramente em ambos os sexos.[792] Estes avanços foram uma consequência do progresso das condições sanitárias e, simplesmente, de uma melhor alimentação. A infraestrutura melhorou de forma significativa, nomeadamente o acesso a água canalizada e a esgotos, bem como a qualidade das habitações.[793] Estes progressos levaram a uma melhoria drástica da incidência de doenças, em particular das gastrointestinais, que historicamente matavam muitas crianças em Portugal. Como vimos antes, até ao século xx, as taxas de mortalidade infantil em Portugal eram muito altas, mesmo chocantes, para as nossas sensibilidades modernas: mais de 15% das pessoas morriam logo no primeiro ano de vida. Como mostra a Figura 31, esta realidade permanecia ainda no início do século xx, até começar a descer de forma drástica a partir dos anos 1930.[794] Ou seja, a taxa de mortalidade infantil, que era de quase 4% em meados da década de 1970, tinha um valor alto a nível europeu, mas refletia já enormes melhorias face aos períodos anteriores.[795] A Figura 31 confirma, portanto, o que já tínhamos observado relativamente à economia: o país conheceu um enorme salto em frente nesta época. Detenhamo-nos agora na questão da alimentação. Na Tabela 5, mostro a evolução do consumo de bens alimentares por pessoa na segunda metade do século xx.[796] Certos produtos, particularmente os que têm um alto teor proteico – como é o caso do leite, dos ovos e das carnes –, registaram aumentos de consumo médio espetaculares entre finais dos anos 1940 e meados dos anos 1970. O novo padrão de consumo tinha sido, em parte, resultado de um notável aumento da produtividade agrícola a montante. Pedro Lains documentou as alterações da produção, ocorridas entre os anos 1930 e finais dos 1950, nomeadamente o
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crescimento do peso da pecuária. Em 1954-58, a pecuária tinha um peso que já era mais de um terço do PIB agrícola, ultrapassando em mais de 15 pontos percentuais o valor da produção de cereais e batatas, ao contrário do que até aí sempre acontecera. Aquele investigador notou que o período a partir de 1927 se distinguiu dos anteriores por corresponder a um rápido crescimento dos rendimentos agrícolas por pessoa.[797] A ideia muito difundida de que no Alentejo existiam, mesmo nas décadas finais do regime, milhares de hectares não cultivados nunca passou de um mito.[798] Figura 31. Mortalidade infantil (por 1000 crianças com menos de 1 ano de idade).
Como notei no Capítulo 1, a taxa de fecundidade – ou seja, o número médio de crianças nascidas vivas por mulher – tinha já descido para apenas três em 1960, um número historicamente baixo. Esta transição demográfica esteve certamente relacionada com as subidas de rendimento desta época, principalmente a partir de 1950. Mas a própria descida da fecundidade também implicava que era agora possível alimentar melhor cada criança que sobrevivia. A taxa de fecundidade continuou depois a descer – para 2,7 em 1974, apenas 1,7 em 1985, e estabilizando depois, a partir de meados dos anos 1990, para os cerca de 1,4 nos dias de hoje.[799] Tabela 5. Consumo alimentar médio por pessoa para uma seleção de bens, em kg ou litros.
1948/9 1963 Trigo
55,0
67,9
1970
1974 1977 1980
1990
75,2
75,2
76,7
245
72,0
75,0
Arroz
8,6
14,5
14,8
17,8
16,1
Batatas
80,6
102,3 121,7 110,9 91,9 130,1 128,3
Açúcar
12,0
19,1
25,6
30,0
27,9
31,3
29,3
Carne de Porco
3,8
6,0
7,5
9,4
9,4
9,5
15,6
Carne de Galinha
1,3
1,4
7,1
11,9
15,0
11,6
13,0
Carne de vaca
3,8
6,8
11,2
14,3
13,4
10,3
13,0
Bacalhau
6,1
6,8
10,1
6,8
5,2
3,0
5,0
Ovos
1,6
3,7
4,4
4,5
4,4
5,1
6,6
Leite
11,9
30,8
51,8
57,3
59,6
60,6
83,5
Azeite
7,5
6,7
6,9
5,3
4,2
4,2
3,3
Vinho
90,6
91,3
79,4
131,0 85,9
95,0
63,3
Cerveja
2,0
4,4
14,8
32,6
40,1
67,8
29,5
13,9
17,4
Em suma, o crescimento e a convergência com os outros países europeus arrancaram em força em Portugal nesta época, em particular a partir dos anos 1950. Mas este facto deixa uma pergunta óbvia por responder. O regime já existia desde 1926, ainda que os seus primeiros anos não tivessem a coerência política adquirida com a chegada definitiva de Salazar ao poder em 1928 e, sobretudo, com a Constituição de 1933.[800] Qual é então a explicação para o sucesso económico comparado no pós-guerra? Na secção seguinte, vou mostrar que, se é verdade que a aceleração do crescimento e a convergência só se efetuaram em meados do século xx, algumas das sementes já tinham sido lançadas nas décadas anteriores. A recuperação do atraso educativo do país Como mostrei nos capítulos anteriores, os níveis insuficientes de educação eram um imenso entrave ao desenvolvimento do país. No Capítulo 7 vimos que na segunda metade do século xix existiam diretores de fábricas de algodão, por exemplo, que consideravam a falta de habilitações da população portuguesa um entrave fundamental para o seu desenvolvimento industrial – e, podemos inferir, para a industrialização do país como um todo. Tudo isto viria a mudar com o Estado Novo. Mas não podemos compreender o processo de industrialização – que começou de forma tímida, na década de 1930, e entrou em aceleração a partir dos anos 1950 – sem compreender a eficácia deste regime em acabar com o analfabetismo infantil. Para além do impacto imediato na expansão 246
industrial, o seu sucesso também teve, como é evidente, grandes implicações para a transformação de toda a estrutura produtiva da economia a prazo. Portugal é ainda hoje um dos países com maior atraso educativo da Europa. Para muita gente, existe a ideia, errada, de que o regime do Estado Novo é o único ou principal culpado por este atraso. É uma ideia amplamente difundida pelos políticos, em particular pelos que fingem ser historiadores. No entanto, os verdadeiros especialistas sabem que o atraso educativo do país é muito anterior ao Estado Novo. Como vimos, no início do século xx, cerca de três quartos da população era analfabeta. E o analfabetismo era uma enorme barreira ao desenvolvimento económico de Portugal. Como expliquei nos capítulos anteriores, a escolarização não tinha sido um objetivo político para a Monarquia. Já para a Primeira República, escolarizar tinha sido anunciado, em discursos e declarações de princípio, como uma prioridade, mas na prática foi visto como um perigo para a própria estabilidade do regime, o que, entre outras causas, contribuiu para os resultados medíocres desse regime neste campo, como anteriormente descrevi. A política educativa posterior a 1926 não podia ter sido mais diferente da anterior, como Jaime Reis e eu enfatizámos num artigo publicado em 2021.[801] Nesse trabalho, utilizámos mais de 9000 observações individuais de mancebos com 20 anos, de todo o país, para inspeção militar para o período 1924-1950, a partir dos fundos depositados no Arquivo Geral do Exército, em Lisboa. Por cobrirem todo o país e as inspeções militares serem obrigatórias, esta amostra é representativa, ainda que apenas para os homens.[802] Na Tabela 6, mostro os resultados obtidos para mais de 9000 observações de mancebos de 20 anos de idade, ordenados por estatura dos mancebos e divididos em dois períodos, consoante tenham estado em idade escolar durante a Primeira República ou durante o Estado Novo. O período relativo ao Estado Novo é apenas o que se situa até 1950, ou seja, na época imediatamente a seguir à Primeira República, para que a comparação faça mais sentido, percecionando-se melhor a descontinuidade que tomou lugar. A relevância desta Tabela deve-se à correlação, forte e amplamente documentada, que existe em sociedades pobres entre a altura dos indivíduos e o seu contexto socioeconómico.[803] Esta associação estatística pode ser, de resto, facilmente verificada na Tabela 6: em ambos os regimes, os indivíduos mais baixos tendiam a ter níveis de
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educação inferiores, certamente por virem de contextos mais desfavorecidos. Mas a comparação dos dois regimes sugere que todos os grupos sociais beneficiaram da nova política de escolarização promovida pelo Estado Novo, mesmo os mais pobres.[804] É portanto falsa a ideia, frequentemente repetida, de que a ditadura nunca criou as condições para a educação dos mais pobres.[805] Na verdade, o progresso conseguido foi de tal forma espantoso que o grupo de indivíduos mais baixos durante este regime (pessoas que tinham 1,59cm ou menos) apresentavam uma probabilidade de serem analfabetos inferior à do grupo dos socialmente mais favorecidos durante o regime anterior, com alturas de 1,69cm ou mais.[806] Tabela 6. Probabilidade de ser analfabeto aos 20 anos de idade.
Altura do mancebo Estado Novo Primeira República (em metros) (apenas até 1950) 1,160-1,590
67,4%
48,3%
1,591-1,622
61,0%
39,9%
1,623-1,655
59,8%
39,4%
1,656-1,690
55,6%
27,6%
1,691-1,880
49,1%
23,2%
O que explica então o sucesso do Estado Novo no campo do analfabetismo infantil? Em contraste com as guerras culturais da Primeira República, o novo regime não tentou mudar de repente a cultura do país. Como mencionei no capítulo anterior, logo em 1926 foi ordenada a separação dos sexos nos edifícios e recreios escolares. Esta medida foi um sucesso porque levou os pais – que na sua esmagadora maioria eram eles próprios analfabetos, viviam nos campos, e eram socialmente conservadores – a não terem receio de enviar os filhos à escola.[807] Os dados relativos à Tabela 6 dizem apenas respeito a homens, como expliquei, mas nos anos seguintes a 1926 também se deu um aumento notório da frequência feminina de escolas, e do número de professoras. Deu-se uma tendência no mesmo sentido nos liceus. Enquanto em 1926 todos os professores eram do sexo masculino, em 1940 o número de professoras já era um terço do total.[808] O regime também decretou que a escola seria gratuita, mas o investimento voluntário em capital humano por parte das famílias não foi uma resposta a um aumento do prémio salarial ou a uma diminuição do 248
salário pago aos trabalhadores não qualificados. Pelo contrário, o salário real dos trabalhadores agrícolas até estava a subir, logo, estava a existir uma maior perda de rendimentos (custo de oportunidade) relativo ao envio das crianças para a escola.[809] Numa primeira fase, foram diminuídos os anos de escolaridade obrigatória, de cinco para quatro, e depois para três, anos de escolaridade.[810] Isto baralhou, e ainda hoje baralha, algumas análises, para as quais esta diminuição é a prova de um retrocesso flagrante em relação às políticas defendidas durante a Primeira República, e assim a demonstração da falta de vontade política do Estado Novo para promover a escolarização e combater o analfabetismo. Mas isso resulta, na melhor e mais benevolente das hipóteses, na confusão entre de jure e de facto: os quatro anos de escolaridade eram efetivamente letra morta, pois nunca tinha existido uma real aplicação da lei.[811] Daí resultava o facto de mais de metade das crianças de dez anos de idade serem analfabetas ainda em meados dos anos 1920, e especialmente as oriundas de famílias de contextos socioeconómicos mais desfavorecidos. A realidade é que a Primeira República não havia conseguido obter progressos na luta contra o analfabetismo, especialmente entre as classes sociais mais desfavorecidas dos meios rurais – que é o mesmo que dizer quase todo o país.[812] Decretar quatro ou cinco anos de escolaridade, mas imaginários, sem aplicação efetiva, nunca educou ninguém. Os principais objetivos da educação primária do Estado Novo, embora inseridos num desígnio de controlo social e ideológico, como de resto tinha acontecido no regime anterior, eram simples: ensinar a ler, escrever e contar.[813] O ensino passou a seguir um programa e um manual nacional único, caracterizado por uma inegável ênfase em «virtudes morais e cívicas», socialmente conservadoras e pró-católicas. [814] Isso correspondia a um alinhamento cultural com o país que largamente existia e, também por isso, foi um tremendo sucesso: muitos pais, que antes receavam tirar os filhos do campo para os colocar nas escolas dos republicanos, considerando que os iriam doutrinar, deixavam agora de ter receio de os enviar. Como mostrei no trabalho conjunto com Jaime Reis, grande parte do sucesso da política educativa do regime resultou do facto de não ter tentado mudar o país em confronto com a cultura dominante que existia à época, como tinha acontecido com a Primeira República, mas sim em alinhamento com o país, essencialmente rural e conservador, que de
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facto existia. No artigo, mostrámos que 70% da queda do analfabetismo se deveu a este fator, que gerou mais procura de escolas por parte das famílias, enquanto apenas 10% se deveu à construção propriamente dita de escolas. Os restantes 20% deveram-se à melhoria das condições materiais, já referidas atrás, a que as ações do regime não teriam sido alheias. Ou seja, mais do que a construção das escolas, importou o efeito resultante do alinhamento cultural. Que assim foi vê-se pelo facto das maiores e mais rápidas diminuições do analfabetismo, relativamente ao período anterior a 1926, se terem tendencialmente dado nas regiões mais católicas do país.[815] O progresso contra o analfabetismo infantil, que aconteceu de forma rápida desde finais dos anos 1920, viria a dar frutos claros mais tarde, quando essas crianças se tornaram adultas no pósguerra. Tenha sido o alinhamento cultural uma estratégia delineada desde o início para acabar com o analfabetismo, ou um resultado não intencional de uma tentativa de controlo social, é uma questão que me parece estar, pelo menos em parte, em aberto, mas que é irrelevante para o resultado observado. A verdade é que o regime acabou com o analfabetismo infantil, e dessa forma, também acabou de vez com o analfabetismo – a prazo –, algo que nenhum outro regime que governou o país tinha sido capaz de fazer. A pobreza e o analfabetismo não permitem o desenvolvimento humano pleno, ainda que exista quem os tente romantizar, como fez José Saramago ao afirmar que «O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever».[816] Logo, resolver estes problemas de forma efetiva tem de ser uma prioridade para as autoridades, no contexto de uma economia pobre. Apesar de rejeitarmos quantitativamente a ideia de que a expansão da rede escolar ou as melhorias das condições materiais em si tenham sido os principais motores do progresso no combate ao analfabetismo, não há dúvida de que o regime também fez esforços de investimento na construção de escolas. O Estado Novo foi pragmático na utilização de postos escolares e regentes escolares que neles ensinavam, apesar de não terem diploma. Ou seja, a rede escolar aumentou não só porque o regime mandou construir mais escolas propriamente ditas, mas também porque mandou instalar postos escolares rudimentares onde os regentes escolares não tinham, eles próprios, muitas vezes mais do que apenas a instrução primária. Eram também geralmente «pessoas de confiança» do regime. Mas permitiram uma expansão rápida: as crianças portuguesas estavam finalmente quase todas a aprender a ler, escrever, e contar. Esta
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solução fazia todo o sentido, dados os recursos limitados do país. Para evitar abusos, a partir de 1935, foi exigido um exame de aptidão aos candidatos, e o governo resistiu aos protestos dos professores primários, que se consideravam feridos na dignidade da sua profissão.[817] Mas era um país em que simplesmente não existiam quadros suficientes para uma expansão rápida poder ter acontecido de outra forma. Essa política ilustra um pragmatismo e compreensão do país que esteve ausente no tempo de Pombal ou de Afonso Costa. Como tal, o ponto enfatizado no trabalho publicado pelo Jaime Reis e por mim não é o de que a construção de escolas não tinha importância, mas apenas de que foi o contexto cultural e político existente que permitiu que a expansão escolar tenha sido eficaz. Escolas vazias – mesmo quando os alunos estão matriculados, mas não aparecem – não são úteis. Portanto, como mencionado e explicado em detalhe no nosso artigo, os aspetos mais importantes foram as decisões das famílias, que interagiram a nível cultural com a natureza política do regime. Como também argumentámos no mesmo artigo, houve um motivo relacionado com o anterior que ajuda a compreender o sucesso do Estado Novo nesta matéria. Esse motivo foi político. Como vimos no capítulo anterior – inclusivamente pela citação de Afonso Costa que abriu esse capítulo – as elites republicanas tinham receado o povo. Como o direito de voto estava vedado aos analfabetos, uma escolarização demasiado rápida, especialmente nas zonas rurais mais socialmente conservadoras e sujeitas à influência do Clero, representava um perigo político para as elites da Primeira República. Pelo contrário, o Estado Novo, por ser uma ditadura, e pela identificação cultural com a maior parte do país, não temia uma reação contra a secularização. Pelo contrário, era um regime visto por muita gente como o responsável pela paz social ausente nos anos anteriores. O investimento que então existiu na construção de escolas, assim como a resposta positiva das famílias à existências das mesmas, devem ser considerados neste contexto.[818] O investimento na construção de escolas existiu desde o início do regime, mas importa referir a ambição do que se passou em 1940, quando o governo aprovou um plano nacional de construção de escolas primárias denominado Plano dos Centenários. Este documento projetava um aumento de 60% do número de estabelecimentos de ensino primário.
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Como Pedro Maia Gomes e Matilde Pinto Machado mostraram, o Plano dos Centenários levou a uma expansão da rede escolar particularmente significativa nas áreas mais desfavorecidas do sul e interior do país.[819] Quanto à questão da incidência social do combate ao analfabetismo infantil, como já referi, deu-se em todas as classes sociais: tanto os pobres como os ricos beneficiaram. No entanto, até à década de 1950, os esforços foram concentrados no ensino primário. Notaram-se grandes quedas do analfabetismo e subidas na percentagem de pessoas aprovadas no exame do 1.º grau ou classe.[820] Fazia sentido começar por aí. Já no ensino técnico e secundário, e ainda mais no caso do universitário, a expansão foi mais tardia, embora tenha também começado com o Estado Novo. Inocêncio Galvão Teles, ministro da Educação Nacional entre 1962 e 1968, viria a enfatizar a expansão de quatro para seis anos de escolaridade obrigatória, que aconteceu durante a sua tutela, «para que a reforma não ficasse no papel e se tornasse efetiva, como efetivamente se tornou».[821] A aplicação foi, de facto, sempre uma preocupação do regime. Décadas antes, numa polémica escrita com Afonso Costa em 1934, Salazar contrastou mesmo o seu espírito positivista, centrado na observação nas matérias de educação, com o mundo da teoria sem ligação à realidade concreta no terreno do seu rival republicano, nessa altura exilado em Paris.[822] O Estado Novo conseguiu mudar o país por ser um regime largamente alinhado com as normas sociais que existiam – o que é mais viável do que tentar mudar um país «à bruta», contra a vontade dos povos.[823] Chegando à década de 1950, o analfabetismo entre as crianças já se tinha tornado residual. É esta, de resto, a distinção estatística fundamental que é essencial ter em mente: a diferença entre o momento do fim do analfabetismo infantil, em contraste com o da população portuguesa. Em 1930, a taxa de analfabetismo no grupo etário dos 10-14 anos era de 58%, enquanto em 1960 era de apenas 3%, e em 1970 era só de 1%.[824] Como é evidente, o analfabetismo entre os adultos era muito superior, refletindo o atraso anterior. Sem prejuízo dos factos que acabei de descrever, não tenho dúvidas de que o dinheiro que foi empregue na Guerra Colonial, a partir de 1961, teria sido mais bem gasto em investimento escolar. O peso da defesa nas despesas públicas subiu de 35% em 1961 para 46% em 1969, tendo depois descido para 29% em 1973.[825] Esta despesa poderia ter sido
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melhor empregada na educação, ainda que seja verdade que algumas democracias, como aconteceu em França, tinham também, por volta da mesma época, escolhido manter uma política colonial até tarde, não sendo por isso claro que um regime democrático tivesse, pelo menos inicialmente, tomado uma opção diferente. Não obstante, se Portugal fosse já uma democracia, teria havido certamente mais pressão da opinião pública – e em resultado disso, incentivos políticos – para acabar com a guerra e investir mais cedo na educação. Apesar disso, a ideia central a reter é a de que o Estado Novo não mostrou ser avesso ao avanço da educação e da ciência. Foi antes um regime que investiu gradualmente nestas matérias, de resto, com bastante sucesso, ainda que o inverso seja frequentemente repetido.[826] Outro exemplo é a criação da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), pela Presidência do Conselho em 1967.[827] Foi esta entidade que viria a dar origem à atual Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) em 1996. [828]
Orgulhosamente sós? A natureza reformista do Estado Novo Tendo descrito as rápidas melhorias de vida que ocorreram em Portugal a partir do pós-guerra, e uma das suas principais causas – o combate ao analfabetismo – passo a mencionar seguidamente outras reformas importantes que existiram durante esta época. Estas foram também causas do crescimento que ocorreu, sendo exemplos as reformas judiciais e o funcionamento eficiente do sistema bancário, assim como a abertura da economia ao exterior.[829] Durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal manteve-se neutro, embora mais próximo dos países Aliados, nomeadamente do Reino Unido, do que das potências do Eixo.[830] No pós-guerra, Portugal foi um dos países fundadores da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), instituição intergovernamental criada em 16 de abril de 1948 tendo em vista a cooperação económica entre os países europeus, na sequência do Plano Marshall, ao qual Portugal aderiu.[831] Como os decisores políticos nacionais sabiam, a OECE iria impor que Portugal descesse as pautas aduaneiras, abrindo a economia, o que veio a acontecer. Aquela organização viria, em finais de 1960, a dar origem à atual Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).[832] Portugal entrou então também na NATO em 1949, e na 253
EFTA logo na sua fundação em 1960, como já mencionado anteriormente, abrindo assim consideravelmente a sua economia ao exterior. Nos anos finais da Primeira República as contas públicas já estavam equilibradas, como vimos anteriormente. Um dos motivos, no entanto, era a percentagem baixíssima de transferências sociais, uma situação que, em termos comparados com outros países europeus, já vinha do século xix, mas se acentuou fortemente nas primeiras décadas do século [833] xx. As contas públicas viriam a piorar nos primeiros dois anos da Ditadura Militar, mas tudo mudaria com a chegada definitiva de Salazar ao Ministério das Finanças em 1928.[834] Salazar conseguiu um equilíbrio do orçamento graças a um grande aumento das receitas, que rondou os 40%. Portanto, o equilíbrio não foi alcançado maioritariamente através de cortes na despesa, embora a ditadura financeira que impôs implicasse que, a partir daí, o ministro das Finanças passasse a ter direito de veto sobre as decisões dos outros ministérios que conduzissem a aumentos das despesas ou reduções de receitas.[835] Salazar agravou ainda a pauta aduaneira em 1929. Esta política de equilíbrio orçamental, assim como de endividamento e inflação baixos, tinha sido conseguida e desse modo continuaria a caracterizar o regime nas décadas seguintes, tornando-se possível num contexto ditatorial em que o próprio líder dava o exemplo com a sua vida pessoal.[836] Salazar, que tinha sido professor de Economia Política e Finanças em Coimbra e membro do Conselho Superior de Estatística durante a Primeira República, investiu na criação de entidades que produzissem a recolha de informação estatística segundo critérios técnicos, culminando na criação do Instituto Nacional de Estatística em 1935.[837] Estabilizadas as finanças públicas, passou a existir um notável investimento em infraestruturas públicas, como por exemplo a modernização da rede viária nos anos 1930 e 1940, e a construção da primeira ponte sobre o Tejo, em Lisboa, entre 1962 e 1966. Além disso, o Estado Social não é uma invenção da democracia, como tantas vezes é repetido. A oferta de serviços de saúde públicos aumentou substancialmente, tanto em quantidade como em qualidade, durante o Estado Novo. Desde os anos 1930 que existiam sistemas de proteção para certas profissões, como as casas do povo, casas dos pescadores, e os seguros obrigatórios, oferecendo uma incipiente rede de socorro e previdência social para os residentes na sua área de atuação.
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Em 1945, existiam 506 casas do povo que mantinham 400 postos clínicos com cerca de 500 médicos.[838] Uma reforma da Segurança Social, em 1945, levou a uma maior intervenção do Estado nestas matérias, permitindo que mais pessoas estivessem cobertas por sistemas de saúde públicos, as chamadas «caixas de providência», até 1971.[839] Foram também construídos dois grandes hospitais públicos, ainda hoje em funcionamento, nas duas principais cidades do país: o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e o Hospital de São João, no Porto. As fundações de um SNS já existiam em 1971, apesar deste apenas ter chegado a todo o país a partir de 1979, já depois do fim do regime.[840] O Programa Nacional de Vacinação, iniciado em 1965, conduziu, no espaço de uma década, a uma redução da mortalidade por doenças transmissíveis que foi a maior de sempre na História do país, sendo reduzida para menos de metade, entre os um e os quatro anos de idade. [841] Existiu portanto, em suma, um acesso cada vez mais amplo aos serviços de saúde públicos ao longo do tempo. A percentagem da população com acesso a serviços desta natureza aumentou de menos de 10% em 1954, para 16% em 1960, 30% em 1965, 60% em 1970 e finalmente 78% em 1975.[842] Estes serviços eram muitas vezes oferecidos através de gestão privada, mas eram financiados pelo Estado, ou seja, pagos através dos impostos, portanto, de utilização gratuita para cada utilizador individual. Além destes, em 1963, a Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado (ADSE) ficou disponível para os trabalhadores da função pública, cobrindo cerca de 8% da população em 1975.[843] Finalmente, os militares e as suas famílias também beneficiavam de um sistema de saúde próprio. Ainda assim, é inegável que o tamanho do Estado-providência aumentou muito depois de 1974, certamente devido ao fim da guerra e à pressão democrática. O peso da despesa pública no PIB era apenas 20% no início dos anos 1970, numa altura em que ultrapassava os 35% na média dos outros países europeus. [844] Esta foi, sem dúvida, uma vitória importante da democracia, ainda que tenha sido conseguida à custa de défices orçamentais constantes e, portanto, acompanhados de grandes aumentos da dívida pública ao longo do tempo. Em resumo, durante o Estado Novo produziram-se melhorias institucionais e investimentos públicos significativos. Pode parecer paradoxal o meu argumento de que a ditadura foi reformista, num livro em que enfatizo a importância das boas instituições. Mas isso é um
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equívoco: a democracia, sem com isto negar a sua importância fundamental, é apenas uma das dimensões institucionais que podem ser apontadas. Embora seja uma dimensão importante, e um fim em si mesma, nada impede que se possa assinalar o caráter reformista de um regime não-democrático, nomeadamente nas suas dimensões sociais ou económicas, sem que isso implique qualquer tentativa de «branqueamento» ou admiração política pelo mesmo.[845] De qualquer modo, há certamente um limite a partir do qual se torna difícil um país desenvolver-se em termos económicos sem democratização. Como tal, dificilmente o Estado Novo poderia continuar a ter durante muito mais tempo o sucesso económico que se verificava. [846] Era um regime profundamente anacrónico quando terminou. Caso se tivesse conseguido reformar politicamente, a partir de 1945 ou de 1968, datas em que tal evolução poderia ter plausivelmente acontecido, isso teria sido melhor para o país. Uma transição pacífica para a democracia, ainda que conseguida através de protestos – como aconteceu na Coreia do Sul a partir de 1987 –, teria levado certamente a um país que hoje seria diferente e melhor, pelos motivos que irei desenvolver no próximo capítulo. Mas por vários motivos isso não aconteceu, nem podia ter acontecido. Um motivo central foi a importância da própria História do nosso país, como intrepretada pelos líderes políticos da época. O Estado Novo não queria, e considerava que não podia, abrir mão do império. Este tinha marcado muito a identidade do país no passado, e tanto prometia para o futuro. Estavam, no entanto, equivocados. O império não explica o sucesso económico do regime Tendo explicado algumas das causas da convergência que ocorreu com os outros países europeus, mostrarei de seguida que a exploração das colónias durante o Estado Novo não pode explicar esse crescimento do país ou a aproximação à Europa, verificada durante essa época. Como mostrei no Capítulo 5, a economia portuguesa nunca dependeu muito do império, com a importante exceção do século xviii.[847] O império viria depois a tornar-se residual (irrelevante, mesmo) para a economia nacional no século xix, na sequência da separação política do Brasil em 1822. Só a partir de finais desse século é que o império, agora centrado em África, voltou a ganhar alguma relevância – especialmente política. Isso terá levado algumas pessoas a especular que a exploração 256
das colónias foi o que justificou o bom comportamento da economia portuguesa durante o Estado Novo, em particular nos anos 1960 – a década em que, de resto, começou a Guerra Colonial.[848] Mas a ideia, de inspiração marxista-leninista, segundo a qual foi graças à exploração de África que Portugal convergiu nesta época não sobrevive ao confronto com os números. É evidente que havia comércio colonial, mas isso não implica que a sua importância fosse grande ou que trouxesse muitos lucros à metrópole. Não podemos esquecer que o império também tinha custos associados e que qualquer investimento implica não colocar recursos, incluindo pessoas e capital, em opções alternativas. As colónias não representavam apenas receitas, mas também custavam dinheiro (gasto em custos de administração, investimentos em infraestrutura, e outros). O orçamento colonial de Angola entre 1819 e 1914, por exemplo, teve um saldo quase sempre bastante negativo.[849] Especialmente a partir do início da Guerra do Ultramar, a partir dos anos 1960, África teve um peso crescente (e em certos momentos muito grande) no Orçamento do Estado. Só pode estar errada a ideia de que foi à custa de explorar as colónias nesse continente que Portugal se desenvolveu. Algumas elites do Estado Novo poderiam pensar que esse dia poderia vir a chegar – e talvez também daí considerarem que manter o império era uma parte integrante da ideologia do regime –, mas isso nunca chegou na realidade a acontecer. Na verdade, os fatores fundamentais de crescimento da economia, desde os anos 1950, não estiveram relacionados com as colónias, que tinham um peso relativamente pequeno na economia nacional – em particular, dados os enormes custos que lhes estavam associados. Os colonos eram apenas os futuros «retornados» (600-700 mil) e mais alguns que lá ficaram ou que foram para a África do Sul em 1975. E estes são os números dos anos finais, quando estavam em máximos históricos. Só pode ser falsa, portanto, a ideia de ter havido, em termos agregados, receitas líquidas – ou seja, lucros – suficientes para fazer crescer a economia ao ritmo observado. As exportações para as colónias valiam cerca de 3% do PIB em 1950 ou 1973.[850] Não é um peso despiciendo, mas também não tem a magnitude necessária para explicar o processo de crescimento que estava a acontecer em Portugal.[851] Não sendo os valores totais desprezáveis, não podem também ser o principal motivo do crescimento, até por causa dos custos que lhes estavam
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associados – que a partir dos anos 1960 incluíram os custos da guerra. Se os investimentos necessários para gerar este comércio imperial não tivessem sido feitos nas colónias, teriam acontecido noutras aplicações alternativas que também teriam gerado atividade económica, possivelmente até mais.[852] Uma análise comparada com outras épocas históricas do nosso país, e com outros países, também mostra que é impossível terem sido as exportações para África que explicam o crescimento português de meados do século xx. O período áureo em termos relativos das exportações para as colónias foi o dos anos 1950, quando estas andariam pelos 20-25%, ou seja, pouco mais do que tinham sido no início do século.[853] Por comparação, na primeira década desse século, e até 1914, mais de 15% do valor das exportações portuguesas iam para as colónias africanas, correspondendo então as reexportações de produtos africanos como a borracha, o cacau, e o café, a mais de 21% do comércio externo português.[854] E nessa altura Portugal não crescia nem se desenvolvia. Mais: esse era um peso maior do que o equivalente noutras potências coloniais europeias como a França e a Inglaterra, que, no entanto, cresciam mais do que Portugal. Em suma, como mostrei neste capítulo, as fontes do crescimento da economia portuguesa depois de meados do século xx foram a industrialização, tornada possível pela alfabetização das camadas jovens da população, bem como a integração económica com a Europa (através da EFTA). O setor externo cresceu graças à integração com a Europa, não com a África.[855] O Estado Novo considerava que era essencial manter o império, mas isso não implica que esse império fosse a causa da convergência. A falsidade histórica de argumentar que Portugal cresceu e convergiu com a Europa graças à exploração de África só contribui para atrasar a nossa compreensão e a difusão dos dados corretos sobre quais foram as verdadeiras causas da convergência com os países mais ricos da Europa. Fernando Pessoa escreveu na Mensagem, livro de poesia de 1934, publicado um ano antes da sua morte, que Portugal deveria regenerar-se. Mas a obra não deixava de estar cheia de alusões ao messianismo – ou sebastianismo, na versão portuguesa – e ao Quinto Império do Padre António Vieira. A complexa relação entre o país e o Ultramar continuava, portanto, presente em pleno século xx: «Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu.» Porém, neste século,
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como nos anteriores, o Ultramar não viria a ser uma estratégia de desenvolvimento sustentável para o país. Ao contrário do que muitos pensavam, o destino do país estaria no lugar do mundo do qual Portugal sempre fez parte: a Europa.[856] Sobre a necessidade de olhar para o Estado Novo com objetividade Não podem existir dúvidas de que o país se desenvolveu de forma acelerada durante o Estado Novo. Sendo assim, o que é que explica tanto ódio, nos dias de hoje, contra o regime por parte de enormes segmentos da população, políticos e jornalistas? Da minha parte, acompanho muitas das críticas que são feitas. Não obstante tudo dever ser entendido no contexto do seu tempo, o Estado Novo é criticável por ter sido uma ditadura, e, em particular, um regime antiliberal e antiparlamentar que censurava e oprimia.[857] Praticamente todo o país está hoje de acordo quanto à condenação do Estado Novo a nível político e, nesta matéria, não sou diferente. Como a liberdade é um fim em si, esta posição é independente de quaisquer resultados económicos. Mas é evidente que o ódio que hoje existe relativamente ao Estado Novo vai além disto, por motivos que, na verdade, não se prendem com o passado, mas com o presente. Muitos políticos e os seus aliados servem-se do Estado Novo como bode expiatório para justificar o atraso do país nos nossos dias.[858] O Estado Novo, de resto, fazia o mesmo: tinha uma narrativa para justificar o 28 de Maio.[859] A este respeito é instrutivo vermos como, por exemplo, um manual utilizado nos liceus durante o Estado Novo descrevia o regime parlamentar da Primeira República: uma «permanente agitação política que não lhes dá tempo nem possibilidade de resolver os grandes problemas da administração pública».[860] O direito à greve era considerado facilitador da desordem e balbúrdia. E «as efémeras gerências dos sucessivos governos parlamentares não conseguiram realizar a obra de valorização económica e de pacificação social de que Portugal carecia». Tudo isto tinha um fundo de verdade, mas não deixava também de ser propaganda em causa própria: «Em vez da prometida “paz laboriosa”, o país via-se, ao fim de poucos anos, a braços com uma grande pressão económica e uma permanente agitação política e social». Escreve também o autor do mesmo manual que a Ditadura Nacional teria, depois, aberto o caminho ao que é descrito como uma epopeia nacional, pacífica e gloriosa. Sem 259
surpresa, os próprios republicanos tinham, até 1926, e mesmo antes de 1910, como vimos anteriormente, feito o mesmo: culparam a Monarquia pelo nosso atraso. Tal como os monárquicos liberais haviam culpado os miguelistas. Por sua vez, Pombal tinha culpado os jesuítas. É sempre a mesma estratégia de fugir às responsabilidades que existe já há séculos em Portugal: o país é pobre, as coisas não correm bem, e por isso cada regime procura encontrar bodes expiatórios. Caso isso apenas ficasse no campo das ideias, o dano seria limitado. Mas, na realidade, todos os regimes que mencionei também se radicalizaram precisamente por se quererem definir em oposição ao anterior. Pombal não foi capaz de ver que não tinha capacidade para substituir os jesuítas no terreno ao nível do ensino. Os chamados liberais do século xix, por sua vez, não foram capazes de compreender que a sua cruzada anticlerical os estava a distrair das causas fundamentais que estavam a aprofundar o atraso e a divergência do país, que era profundamente católico e conservador. Os republicanos ignoraram essa mesma lição, insistindo na mesma fórmula, renascida de maneira ainda mais radical. Sem surpresas, os resultados não foram melhores. Salazar e as elites do Estado Novo concluíram, erradamente, pela perceção que tinham do caos e egoísmo em causa própria dos políticos da Primeira República, que o país não teria capacidade de ser uma democracia. O regime atual, por sua vez, tira partido da mitificação de um suposto «fascismo de mercado livre» que substituiu. Usa, portanto, as suas credenciais antifascistas para sinalizar a sua virtude e direito a governar – ainda que já nenhuns políticos atualmente em funções tenham tido, na realidade, qualquer papel de resistência política relevante anterior a 1974. Servem-se antes do passado para hipnotizar a memória coletiva com a deturpação de um passado que nunca existiu. Como mostrei neste capítulo, é errada a ideia de que o Estado Novo fosse um regime que procurava manter o país pobre e rural. No que toca à educação, Portugal era em 1974 o país mais atrasado da Europa – e ainda hoje isso é verdade. Não faz sentido culpar um regime que acabou há meio século e durante o qual até houve um rápido progresso e convergência nesta matéria. Assinalá-lo apenas serve para desresponsabilizar o que tem sido feito nas últimas décadas. Mas os programas escolares continuam a identificar o Estado Novo como sendo um regime diretamente responsável pelo atraso do país. No programa relativo à disciplina de História pode ler-se que o Estado Novo «impediu
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a modernização económica e social do país».[861] Nas salas de aula ensina-se também que «sem dúvida alguma que o passo fundamental para que a nossa economia começasse num rumo que levasse a níveis muito semelhantes ao de outros países europeus foi a adesão à CEE, que foi formalizada em 1986».[862] Não me parece razoável, nem aceitável, que a democracia insista neste logro. Os verdadeiros democratas têm a razão do seu lado. Não precisam de falsificar o passado. Basta compreender que a nossa obrigação é descrever a História como ela foi, resistindo sempre ao aproveitamento político dos que a pretendem manipular para benefício próprio. Neste contexto torna-se relevante explicar que é falsa – mas não inocente, como veremos no capítulo seguinte – a ideia de que o Estado Novo era um regime fascista. Os verdadeiros regimes fascistas tinham orgulho nisso, mas o Estado Novo nunca se definiu nem se comportou como tal, sendo muita dessa ideologia contrária a Salazar.[863] Era um regime antidemocrático, antiparlamentar, nacionalista e antiliberal. Nunca escondeu nada disso. No fundo, era um regime autoritário e conservador, alinhado com grande parte da Europa dos anos 1930, que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial por vicissitudes várias.[864] É verdade que o regime, a partir de 1936, no contexto da Guerra Civil espanhola, promoveu o lançamento de algumas organizações associadas à ideologia e estética fascistas, como por exemplo a Legião e a Mocidade portuguesas. Mas estas não tinham peso político e a estética nunca correspondeu à substância. Como é evidente, o Estado Novo não foi sempre a mesma coisa: foi um regime político que mudou ao longo do tempo, nem poderia ter sido de outra forma dada a sua longevidade. Mas a realidade é que nunca existiu um Estado e partido totalitários, ou um movimento de massas em Portugal.[865] Logo em 1934, Salazar afirmou que o Estado Novo estaria tão afastado do liberalismo e do comumismo como do fascismo, e que não poderia ser totalitário.[866] Isso correspondeu à verdade. É importante sermos rigorosos sobre esta matéria, não para «branquear» seja o que for, mas por uma questão de rigor histórico, até para não permitirmos uma apropriação política da nossa História. O Nacional-Sindicalismo – o movimento que mais se aproximou da versão portuguesa do fascismo – foi fortemente reprimido por Salazar a partir de 1933, sendo mesmo ilegalizado no ano seguinte, e a Legião Portuguesa respondia ao Exército, e não a um partido.[867] Em contraste
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com a Espanha, onde o partido único do franquismo, pelo menos numa primeira fase, se aproximou das características do fascismo italiano, em Portugal, isso nunca se passou: a União Nacional confundia-se simplesmente com o aparelho de Estado.[868] Mais do que uma ditadura de um partido, o salazarismo foi uma ditadura pessoal e de teor administrativo e legalista.[869] O estilo académico de governação de Salazar, e dos seus discursos, além da ausência de uniformes militares, não podiam ser mais diferentes do que era seguido pelos líderes fascistas. [870] Até o comunista inglês Ralf Fox, que visitou o país em 1936 antes de partir para lutar na Guerra Civil Espanhola, onde viria a morrer, escreveria: Na vertente do espetáculo, Salazar não reúne as qualificações mínimas para ingressar no sindicato dos ditadores. Nunca aparece em público nem fala na rádio, não faz revista às tropas nem usa farda, não assassina os seus inimigos com as próprias mãos, nem tem a sua fotografia pendurada em todas as montras de lojas.[871]
Já a ideia segundo a qual Salazar ou o Estado Novo teriam de alguma forma colaborado com o Holocausto – uma história frequentemente contada que descontextualiza os eventos relativos ao caso de Aristides de Sousa Mendes – não passa de um mito.[872] Ao contrário do que aconteceu com Espanha, Portugal esteve sempre próximo dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, tal como foi reconhecido desde cedo por Churchill.[873] A principal preocupação da ditadura era a defesa de Portugal e das suas colónias, e isso implicava um alinhamento mais próximo com o Reino Unido. Cauteloso e consciente do efeito desastroso que a Primeira Guerra Mundial tinha tido para Portugal – em termos humanos, financeiros e políticos –, Salazar fez o possível para manter o país neutral, embora tenha permanecido mais próximo dos Aliados, dos quais também se foi aproximando ainda mais à medida que o conflito evoluía. Viria a tirar daí dividendos políticos, tanto interna como externamente. Muitos políticos do presente, no fundo, conscientes de que o país está a falhar, tentam defletir a sua responsabilidade, conjurando para isso fantasmas do passado, sendo os favoritos Salazar e o Estado Novo. Isso é-lhes útil: adoram esses fantasmas, porque eles lhes permitem fugir à discussão sobre a sua responsabilidade presente. Mas não podemos deixar o controlo da memória coletiva do país nas mãos dos que nos têm falhado e, por isso mesmo, querem falsificar e manipular a nossa História. Ter sido uma ditadura, e tudo o que isso implicou em termos de direitos humanos e privação da liberdade, é suficiente para condenarmos
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o Estado Novo sem reservas. Não são necessárias invenções para denegrir ainda mais o regime. Até porque esses mitos têm consequências, como veremos no capítulo seguinte. Existe ainda outra razão pela qual o Estado Novo é um assunto tão polémico, causando tanta celeuma mesmo meio século depois do seu fim: o regime corresponde a uma era ainda próxima de nós.[874] Cerca de metade da população portuguesa já era nascida em 1974, outros ouviram histórias de pobreza aos pais e aos avós (ignorando que, antes disso, o país ainda era mais pobre). Quem quer saber hoje dos crimes da Monarquia Absoluta no século xviii? Pouco importa à maior parte das pessoas se Pombal matou e perseguiu os seus inimigos políticos ou se Fontes Pereira de Melo levou o país à bancarrota, tendo ambos, aliás, lugar de destaque numa rotunda e avenida no centro da capital.[875] O Estado Novo, porém, ainda está historicamente «quente». Quem o viveu sente-se no direito de definir esse regime melhor do que os outros.[876] Existe mesmo uma ligação estreita entre o sentimento de ódio ao Estado Novo e a idealização da Primeira República, ou mesmo até das políticas do Marquês de Pombal. Antes do 25 de Abril, várias pessoas ligadas aos meios da então chamada Oposição Democrática consideravam ter sido a Primeira República uma experiência democrática que o Estado Novo havia destruído.[877] O combate ao regime ditatorial do Estado Novo era desenvolvido tomando por contraste a «situação democrática» que teria existido durante a Primeira República. Essa mentalidade continuou em vigor depois de 1974 e ainda hoje está presente em muitos dos que se consideram herdeiros do «espírito republicano». Mas, ao apoiar-se nas políticas da Primeira República, a oposição democrática ao Estado Novo tinha de estar ao lado das políticas anticlericais republicanas, ou, pelo menos, ser altamente condescendente relativamente a elas. Muitos antigos republicanos tinham uma forte desconfiança ou mesmo aversão à Igreja e à religião e, em particular, aos jesuítas.[878] É neste contexto que deve ser entendido o «endeusamento» do Marquês de Pombal que já havia sido promovido pelos políticos da Primeira República. A narrativa foi transmitida junto dos meios de Oposição Democrática ao Estado Novo, até porque o Estado Novo era visto como sendo próximo da Igreja. Mas a verdade emerge do estudo objetivo das fontes históricas, devidamente contextualizadas.
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Como vimos no Capítulo 6, o atraso educativo do país não é anterior ao início do século xviii e agravou-se, em particular, a partir de finais do século xviii, com a decisão de Pombal de expulsar os jesuítas em 1759. Desde esse momento, o país sofreu de um brutal atraso nesta matéria, que ainda hoje está por recuperar totalmente. É verdade que, em 1974, os níveis educativos em Portugal eram os mais baixos da Europa Ocidental, mas não é legítimo inferir desse facto que o atraso educativo foi uma pesada herança da ditadura. Como já referi, o Estado Novo correspondeu, pelo contrário, ao início de um período de recuperação do atraso, especialmente ao nível do combate ao analfabetismo entre as crianças, criando assim condições para acabar com o analfabetismo a prazo. Por volta de 1900, três quartos dos portugueses eram analfabetos, estando a maioria dos que sabiam ler concentrados em Lisboa e no Porto. Chegando a 1974, ainda mais de 20% da população era analfabeta. Isto correspondia, contudo, a uma herança anterior, de que poucos falam sem refletir sobre o progresso que tinha existido. É crucial não confundir níveis com tendências, e não esquecer a profundidade histórica do atraso – algo evidente para quem tenha lido este livro até aqui. O atraso português não foi apenas económico, mas também político e institucional, estando estas dimensões relacionadas. Desde o século xviii que já é assim. Logo, não faz sentido colocar simplesmente o ónus do atraso num regime do século xx. Como não me canso de explicar, o regime do Estado Novo pode e deve ser criticado por ter sido uma ditadura. Não pode é ser criticado por ter sido a principal causa do atraso do país. Como mostrei neste capítulo, o arranque para o crescimento económico moderno em Portugal deu-se durante a época em que vigorou um regime que adotou um nome revelador: Estado Novo. Foi um regime que aparentava mais coerência do que a que tinha, pois dependeu sempre muito da sua figura central, Salazar.[879] Durante esta era, aconteceram em Portugal taxas de crescimento impressionantes, associadas a uma política de escolarização que teve sucesso e à abertura gradual da economia ao exterior. Isto são factos estabelecidos há décadas e reconhecidos por inúmeros académicos conotados com a esquerda, como António Candeias, Pedro Lains, ou José Silva Lopes. Não faz sentido dizer que o Estado Novo simplesmente beneficiou de uma conjuntura externa favorável, até porque houve vários períodos da nossa História em que a conjuntura externa era favorável e o país esteve em contraciclo.
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Tudo isto são factos. Devem ser interpretados. Mas negá-los é o equivalente, em Ciências Sociais, a insistir que a Terra é plana. É preciso insistir na diferença entre taxas de crescimento e níveis de rendimento: é inútil olharmos para um ponto fixo da História de Portugal – por exemplo, 1974 – e compararmos o atraso económico ou educativo do país sem ter em conta a forma como essas dimensões do atraso tinham variado no tempo. Uma verdadeira democracia não deve, até porque não precisa, alicerçar-se numa mentira histórica para se legitimar, atribuindose crédito indevido por um processo de convergência europeia que tinha sido iniciado décadas antes. [705] PINTO (2018), p. 100; PINTO (2008), pp. 25-26. [706] MENESES (2010a), p. 153. [707] PINTO (2008), p. 27; RAMOS et al. (2009), p. 624. [708] Citado em MÓNICA (1978), p. 116. Para a contextualização do que Salazar pretendia dizer com isto, veja-se CARVALHO (2011b), p. 728. [709] Uma análise cuidadosa dos discursos e das declarações de Salazar revela a sua preocupação com o nível de educação do povo e até com um Estado cuja ação contribuísse para melhorar as condições de vida das pessoas. No entanto, na sua visão, isso não podia colidir com a gestão prudente dos fundos públicos que devia acompanhar os investimentos necessários aos objetivos traçados. O recurso a postos escolares e a regentes escolares sem diploma, em vez de professores, por exemplo, deve também ser entendido nesta ótica. Veja-se MENESES (2010b), pp. 27-29, 34, 40, 95, 461. Mas para além disso, é inegável que havia a preocupação de enquadrar e de controlar a instrução, sendo essa considerada útil se direcionada num certo sentido. No entanto, em matéria da doutrinação, este regime não era diferente dos anteriores e, até, da democracia atual, ainda que de forma eventualmente mais mitigada. Sobre a doutrina do ensino do Estado Novo e os seus objetivos, veja-se CARVALHO (2011b), pp. 724-725, 738-739, 744, 767. [710] Para alguns exemplos, veja-se ARQUIVO DISTRITAL DE CASTELO BRANCO. [711] As estimativas variam, mas tudo indica que menos de 40 pessoas morreram no Tarrafal. Veja-se MENESES (2010b), pp. 181, 679; GALLAGHER (2020), p. 71. [712] Apesar de a construção da prisão do Tarrafal ter sido feita pelo Estado Novo, o envio de prisioneiros políticos para o degredo em África a mando dos regimes anteriores é reconhecido até pelos sobreviventes da prisão do Tarrafal. Veja-se PEDRO (2007). [713] As estimativas variam, mas é seguro dizer que o Corpo Expedicionário Português (CEP) sofreu cerca de 8 mil mortos e 40 mil baixas nos dois anos em que Portugal participou no conflito. Como tal, foi certamente mais mortífero, por ano, do que a Guerra Colonial viria a ser nos 14 anos de conflito (1961-1975), em que, segundo as estimativas mais altas, morreram cerca de 10 mil combatentes portugueses nas três frentes. Nessa altura a população do país era também
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muito superior, como vimos no Capítulo 1. Portanto, não restam dúvidas de que a Grande Guerra foi, por ano e per capita, muito mais mortífera (para os militares portugueses, como é evidente, já que também houve muitos mortos e feridos entre a população civil e os movimentos independentistas na Guerra Colonial). Sobre estes números, ver AFONSO e GOMES (2013); e SOUSA (2021). [714] Isto aconteceu tanto à direita do regime, com a ilegalização e prisão de NacionalSindicalistas a partir de 1934, como à esquerda, sendo conhecido o caso do PCP. Um regime imposto por qualquer uma destas duas forças políticas dificilmente teria sido menos repressivo do que o Estado Novo. [715] No período entre as guerras, não existiam praticamente democracias na Europa, sendo o Reino Unido, e com dificuldade a França, as exceções. Já no pós-guerra teria sido mais provável haver eleições livres em Portugal, ato eleitoral esse que até poderia ser ganho por Salazar, que tinha livrado Portugal do conflito mundial. Infelizmente, não foi isso que aconteceu. Mas também não é claro que, caso as eleições tivessem tomado lugar, a situação subsequente fosse muito diferente. A velha oposição a Salazar tinha as mesmas ideias sobre o império, e não é evidente que um governo diferente com a presidência de Norton de Matos, ou de Humberto Delgado, tivesse procedido à descolonização imediata em 1961; uma guerra colonial, se longa, implicaria sempre repressão e censura. Também não é claro que uma democracia iniciada em 1945 evitasse muitas das dinâmicas sociais e partidárias da Primeira República. É incerto que o país tivesse crescido o mesmo, ou ainda mais, do que as altas taxas de crescimento que se verificaram na realidade. No entanto, uma democracia poderia ter feito investimentos de natureza diferente (por exemplo, mais na educação e menos na guerra, pelo menos a prazo), e teria certamente levado a uma evolução política e cultural de longo prazo bastante diferente para país. Este é um contrafactual difícil de avaliar, sendo por isso qualquer hipótese sobre esta matéria altamente especulativa. [716] Sobre esta questão, ver também RAMOS et al. (2009); e ainda MENESES (2010b). [717] GALLAGHER (2020), p. 144. [718] Acresce que a partir de 1961, com o início da guerra em Angola, terminaram as culturas obrigatórias e o estatuto do indigenato. Veja-se RAMOS et al. (2009), p. 506. [719] Existem outros exemplos; veja-se MENESES (2010b), p. 679. [720] MENESES (2010b), p. 170. [721] Sobre o facto de Salazar não ter sido um idealista católico, consultar SIMPSON (2014), pp. 48 e 241. Note-se que não se pode descrever o Estado Novo como um regime sujeito à vontade da Igreja. Um exemplo disso é a insatisfação do Vaticano com os termos da Concordata de 1940, na sequência da melhoria negocial significativa conseguida por Salazar para o Estado português em comparação com alguns anos antes. Ver ainda GALLAGHER (2020), pp. 61-66. [722] PALMA (2018b); SIMPSON (2014), p. 41. [723] Não tendo sido muito diferente das intervenções estatais verificadas à época noutros países europeus. Veja-se AMARAL (2019), pp. 119-120. [724] MARTINS (2020), pp. 311-312.
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[725] MARTINS (2020), p. 314. De forma mais abrangente, sobre a passagem de Pedro Theotónio Pereira pela Subsecretaria de Estado das Corporações, e suas circunstâncias, veja-se MARTINS (2020), pp. 243-349. [726] LUCENA (1976); RAMOS et al. (2009), p. 645. [727] PINTO (2008), p. 32. Como escreveu Rui Ramos, «O Estado Novo, enquanto regime, nunca perdeu o ar de algo inacabado e impreciso, próximo do “começo” – e, portanto, também de um possível fim. Ao longo de décadas, foi mais uma “situação” (como aliás se dizia), um governo, do que propriamente um regime.». RAMOS (2023). [728] AMARAL (2019), p. 126. [729] BRANCO e MORUNO (2011); FAÍSCA e MORUNO (2023). [730] RAMOS et al. (2009), p. 644. [731] De facto, os patrões criticavam o subsecretário de Estado das Corporações pelas suas tentativas de condicionar os salários e os horários de trabalho, entre outros aspetos. Veja-se MARTINS (2020), p. 313. [732] Muitas das greves e dos distúrbios verificados durante a Primeira República relacionaram-se com o aumento dos preços dos bens alimentares básicos. [733] AMARAL e FREIRE (2017), p. 258. [734] A EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre) era uma união alfandegária europeia constituída desde a sua fundação pelo Reino Unido, Dinamarca e Suécia, entre outros países. Ainda hoje existe, mas com apenas quatro Estados-Membros, sendo dois deles a Noruega e a Suíça. Portugal saiu da EFTA ao entrar para a CEE, em 1986. [735] PINTO (2016), pp. 113-114. [736] REIS (1979). [737] O protecionismo agrícola continuou depois, ainda que com menor intensidade, até aos anos 1980 – e mesmo até ao presente, ainda que com alterações importantes, no contexto da Política Agrícola Comum da União Europeia. AMARAL e FREIRE (2017), pp. 254, 259. [738] SALAZAR (1935), p. 346. [739] Que assim era seria mais tarde negado pelo regime, mas foi admitido ao início, até com um certo orgulho: «mesmo com a Câmara eletiva não haverá já para nós parlamentarismo, isto é, discussões estéreis, grupos, partidos, lutas pela posse de poder na Assembleia Nacional». Veja-se SALAZAR (1935), pp. 333-334, 336, 344. [740] RAMOS et al. (2009), p. 634. [741] PINTO (2008), pp. 31-32. [742] RAMOS (1986), p. 135.
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[743] CRUZ (2013), p. 226; GALLAGHER (2020), p. 2; PINTO (2018), pp. 228, 237. [744] RAMOS et al. (2009), p. 639. [745] PINTO (2008). [746] PINTO, p. 30. [747] Citado em PINTO (2018), p. 228. [748] PINTO (2018); MARTINS (2022). [749] RAMOS (1986), p. 135; LUCENA (1976); GALLAGHER (2020), pp. 53-58. [750] Houve várias greves durante a Segunda Guerra Mundial, em particular a partir de 1942. Também se verificaram tentativas de golpes militares entre 1945 e 1947. Depois da oposição do Movimento de Unidade Democrática (MUD), existiria a campanha de Norton de Matos às eleições presidenciais de 1949. Na década seguinte, Craveiro Lopes, presidente da República, também entraria em conflito com Salazar. [751] MENESES (2010a), p. 162. [752] Como é evidente, o PCP era perseguido nessa altura, o que não explica a baixa adesão da população às suas ideias. [753] SIMPSON (2022). [754] DELONG (2022). [755] Dado o enfoque quantitativo deste capítulo (à semelhança do livro em geral), vale a pena responder à pergunta se os números que uso são verdadeiros ou apenas uma invenção da ditadura. Não pertence a uma obra divulgativa como esta alongar-se na crítica detalhada das fontes. No entanto, todos os números que apresento neste capítulo foram validados em estudos científicos, de resto publicados após 1974, muitos deles da autoria de pessoas que são, ou eram, de esquerda. [756] Quer tomemos 1926, 1928, ou 1933 como ponto de partida do regime, o resultado geral não é diferente, já que o crescimento exponencial se deu principalmente no pós-guerra. [757] O arranque da industrialização teve lugar ainda nos anos 1930, tendo também ocorrido mudanças importantes na agricultura entre 1930 e 1950. LAINS (2003b), p. 45. [758] Para o período deste gráfico, já existem dados para mais países relativamente ao gráfico análogo que mostrei no Capítulo 7. Logo, a Europa Ocidental está aqui definida pelos seis países fundadores da CEE, com a exceção do Luxemburgo (para o qual não existem dados antes de 1950), mais o Reino Unido, Dinamarca, Noruega e Suécia, dentro da lógica de verificar a convergência relativamente às partes mais ricas da Europa; veja-se LAINS (2003a). A ligeira discrepância de percentagens nos anos comuns entre este gráfico e o seu análogo do Capítulo 7 deve-se à diferença da amostra utilizada, pela razão que indiquei. Fonte para os dados: BOLT e VAN ZANDEN (2020). Tal como no gráfico análogo do Capítulo 7, utilizo médias móveis de três anos.
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[759] Ainda assim, deve ser reconhecido que, quando a Casa Bancária Totta sentiu graves dificuldades financeiras em 1929, em resultado do crash da bolsa de Nova Iorque, Salazar demoveu Alfredo da Silva de liquidá-la de imediato, receando o contágio financeiro do resto do sistema bancário português. Salazar, à época ministro das Finanças, também providenciou uma injeção de capital do Banco de Portugal no Totta, mediante garantias do grupo CUF, entre outras medidas que visavam evitar os possíveis custos sociais e políticos do desemprego devidos à crise financeira. Veja-se SARDICA (2020), pp. 112-116. [760] Convém insistir que Portugal não convergiu com os outros países europeus durante a Segunda Guerra Mundial. Essa aparente aproximação deveu-se simplesmente aos efeitos negativos e temporários do conflito nas outras economias europeias. Uma vez terminada a guerra, os outros países recuperaram e Portugal voltou a descer em termos relativos. [761] Para ser mais preciso, o valor exato de 1973 foi 57%. Isto não claramente visível neste gráfico já que o mesmo mostra médias móveis de três anos. [762] CANDEIAS (2005); CARVALHO (2011b). [763] Sobre a «Campanha Nacional de Educação de Adultos», veja-se CARVALHO (2011b), pp. 786-787. [764] CARVALHO (2011b), pp. 802, 808-812; PALMA (2008). [765] Sobre o contexto do pós-guerra europeu, veja-se EICHENGREEN (2008). [766] MENESES (2010b), p. 375. [767] LAINS (1995), p. 92. [768] AFONSO e AGUIAR (2005). [769] LAINS (1995), p. 136. [770] LOPES (1996), p. 158. [771] AMARAL e FREIRE (2017), p. 248. [772] Na realidade, já tinha existido alguma industrialização não despicienda nas décadas anteriores, mas o processo acelerou na década de 1950. LAINS (2003b), p. 45. Fonte para os dados da figura 29: cálculos de AMARAL e FREIRE (2017), que para o período mais relevante na análise deste capítulo são baseados em PINHEIRO (1997). O gráfico mostra a distribuição setorial da população ativa, e não do emprego; mas a diferença é mínima por causa dos baixos níveis de desemprego. Agradeço a Luciano Amaral a partilha destes dados. [773] DIRECÇÃO GERAL DE ESTATÍSTICA (1965). [774] MENESES (2010b), p. 362. [775] AMARAL e FREIRE (2017), p. 257. A vaga de mecanização nos anos 1940 e 1950 caracterizou-se pela generalização das ceifeiras mecânicas e levou milhares de homens de toda a Beira (de maneira geral coincidindo com as zonas de xisto e quase até ao Porto) a ficarem sem o
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trabalho sazonal das ceifas do Ribatejo e do Alentejo. Conhecidos à época por «ratinhos», esta mudança tecnológica desequilibrou o seu difícil equilíbrio económico familiar e lançou-os para a indústria, construção civil e serviços urbanos (sapateiros, barbeiros e todo esse pequeno empresariado nascente). Veja-se SANTOS (2015); e PICÃO (1983). Obra publicada originalmente em 1903. [776] A diferença das percentagens devia-se à menor produtividade do emprego no setor agrícola. Para o peso da agricultura no PIB, veja-se LAINS (2003b), p. 63. [777] Por comparação, Espanha já usava 18 quilos por hectare em 1930-1935. O nível que Portugal atingiu nos anos 1950 foi atingido na Alemanha, Bélgica ou Países Baixos 40 anos antes, por volta de 1910. Veja-se LAINS (2003b), p. 58. [778] Sobre os padrões de desenvolvimento regional na Europa ao longo do século xx, vejase ROSÉS e WOLF (2018). [779] LIMA et al. (2010). [780] Sobre o conceito de «fronteira de possibilidades de desigualdade», veja-se MILANOVIC et al. (2011). [781] A desigualdade de rendimentos começou a aumentar significativamente nos anos 1990. GUILERA (2010). [782] LAINS et al. (2013). [783] LAINS et al. (2013), p. 300. [784] Aliás, a própria vaga de emigração para França nos anos 1960 foi possível por causa das transformações sociais e económicas da época. [785] Em boa verdade, uma população bem alimentada é certamente mais produtiva, por isso existe nesta questão alguma endogeneidade ou causalidade inversa. Mas faz sentido numa primeira análise ver as melhorias de alimentação como consequência do crescimento, ou pelo menos como uma variável altamente correlacionada com o nível de vida. [786] Isto não prova que tal tenha acontecido apenas por causa das ações do regime, mas há informação histórica que mostra que foi assim pelo menos em parte. PALMA e REIS (2021); e CERMEÑO et al. (2023). [787] CERMEÑO et al. (2023). [788] Depois de 1968, a idade em que os mancebos eram observados mudou para os 18 anos, pelo que os dados desta fonte deixam de ser imediatamente comparáveis. [789] Como nós explicamos no artigo, estas fontes são representativas dos habitantes de Lisboa, e, portanto, não das outras partes do país. Veja-se CERMEÑO et al. (2023). [790] Em rigor, o que medimos estatisticamente foi a percentagem de pessoas que sofriam de nanismo (stunting), de acordo com critérios internacionais. Veja-se CERMEÑO et al. (2023).
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[791] STOLZ et al. (2013). [792] Ainda que, como já referido, tenhamos recolhido dados apenas das crianças de Lisboa. [793] Consultar PATO (2011), entre outras referências bibliográficas mencionadas em CERMEÑO et al. (2023). [794] RODRIGUES (2008), p. 426. Alternativamente, BAGANHA e MARQUES (2001) calculam a mortalidade infantil como tendo sido 131/1000 em 1950, e 94/1000 em 1960, enquanto o INE dá 58/1000 em 1970 e 34,4/1000 em 1980. Veja-se INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (2001). [795] A taxa de mortalidade infantil era de 38,9 por 1000 em 1975. [796] Fonte: agregação e tratamento de várias fontes feita por CERMEÑO et al. (2023). Os números referem-se a Portugal continental até 1980 e ao país inteiro a partir dessa data. Na Tabela apenas se contabilizam as partes comestíveis dos alimentos, por exemplo arroz sem casca. No caso de 1977, no entanto, a fonte original é pouco clara em relação ao que se está a contabilizar, se os totais ou apenas as partes comestíveis. [797] LAINS (2003b), p. 61. [798] Na década anterior a 1974, os assalariados do Alentejo tinham vivido o seu período de maior bem-estar. Veja-se BARRETO (2017), pp. 88, 100. Já nos anos 1930, um inquérito relativo aos solos do país concluíra que era um mito a existência de grandes quantidades de terras férteis não cultivadas. Veja-se AMARAL e FREIRE (2017), p. 254. [799] INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (2013), p. 41; CERMEÑO et al. (2023). [800] Salazar tornou-se presidente do Conselho de Ministros – equivalente ao que hoje chamaríamos primeiro-ministro – em 1933, o ano da Constituição. Tendo o hábito de acumular pastas, manter-se-ia no cargo até ser afastado por motivos de saúde, em 1968. É um mito a ideia de que o seu poder nunca esteve em risco. Veja-se MENESES (2010b); e GALLAGHER (2020). [801] PALMA e REIS (2021). [802] Ainda assim, por ser uma amostra limitada, é natural que certas percentagens possam não coincidir exatamente com as nacionais, mesmo apenas para as referentes à população de sexo masculino. [803] PALMA e REIS (2021), p. 425. Aí mostramos percentagens relativas aos alfabetizados, enquanto aqui mostro, inversamente, percentagens relativas aos analfabetos. [804] A diferença entre a altura máxima e a altura mínima em cada intervalo não é a mesma em todos os intervalos porque a tabela está organizada de forma a cada intervalo corresponder a um quintil que contém 20% da amostra. [805] Ver, por exemplo, GRILO (2023).
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[806] Não há qualquer contradição entre a informação desta tabela, relativamente à qual as observações para o período do Estado Novo correspondem aos anos de 1940 e 1950, para indivíduos observados aos 20 anos de idade, e o facto de a taxa de analfabetismo infantil ser já residual na década de 1950. Veja-se PALMA e REIS (2021). [807] PALMA e REIS (2021). Por contraste, há quem insista que a separação entre sexos era «uma aberração», talvez por não compreender o contexto da época. Veja-se GRILO (2023); ou PIMENTEL (2022), que afirma «O fim das escolas mistas também tem esse propósito, cada um no seu lugar (…) cada um com a sua função, as mulheres no lar a educar, esposas dos seus maridos, eles, teoricamente, a ganharem o salário.» [808] CARVALHO (2011b), p. 771-772. [809] O prémio salarial caiu, e o salário dos trabalhadores não qualificados subiu, durante esta época. Desta forma, não existiram, portanto, nem um maior incentivo financeiro à escolarização, nem menores perdas de rendimentos (custos de oportunidade) associados à presença das crianças na escola, pelo contrário. Veja-se PALMA e REIS (2021), p. 424. [810] Mais tarde, a partir dos anos 1950, o Estado Novo voltaria a aumentar o número de anos obrigatórios. CARVALHO (2011b), pp. 729, 733, 796. [811] O decreto do Estado Novo que reduziu a exigência da 5.ª ou 4.ª classes para a 3.ª classe visava reconhecer e lidar com a realidade do país, para depois evoluir a partir daí. Veja-se SEQUEIRA (1978). [812] PALMA e REIS (2021), pp. 413, 425. [813] Este aparente simplismo era na realidade uma abordagem pragmática que tinha o objetivo de tornar o ensino mais acessível a alunos e a professores. Era, portanto, uma política alinhada com as recomendações que os economistas de desenvolvimento consideram mais acertadas para os países pobres. GLEWWE et al. (2009). [814] NÓVOA (1996); CARVALHO (2011). [815] PALMA e REIS (2021), pp. 429-431. [816] SEN (1999); SARAMAGO (1998). [817] CARVALHO (2011b), pp. 736-737. [818] Estes argumentos encontram-se desenvolvidos em PALMA e REIS (2021), pp. 431432. [819] GOMES e MACHADO (2020); GOMES e MACHADO (2021). [820] PALMA e REIS (2021), pp. 425, 428. [821] PINTO (2016), p. 286. [822] MENESES (2010a), p. 161.
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[823] E a seu tempo, também em resultado disto, a cultura e normas sociais do país também mudaram. [824] CANDEIAS (2004). [825] Em França, o peso da Defesa nas despesas públicas era então de 29%. RAMOS et al. (2009), p. 684. [826] Para um exemplo recente de um autor que foi ministro da Educação, entre outros altos cargos, e que insiste na ideia de que os problemas atuais da educação têm raízes no Estado Novo, ver GRILO (2022). Marcelo Rebelo de Sousa escreve no prefácio deste livro que «O autor demonstra por que razão a educação foi um dos flagrantes fatores de retardamento nacional, entre os anos 30 e 60». Consultar ainda GRILO (2023). [827] Decreto-Lei n.º 47 791, de 11 de julho de 1967. Veja-se ARQUIVO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica. [828] Não deixa assim de ser curioso que a criação da FCT, e até da própria JNICT, seja frequentemente atribuída a Mariano Gago nos anos 1990, como é feito por LOBO (2023). [829] Sobre as reformas judiciais, veja-se ÁLVARES e GAROUPA (2020). Sobre o funcionamento do sistema bancário, veja-se AMARAL (2013), AMARAL (2015a), e AMARAL (2018). [830] GOLSON (2020); MENESES (2010b). [831] MENESES (2010b), p. 375. [832] ANTT, Arquivo Oliveira Salazar, 1908/1974. EC-16A, cx. 107. [833] AMARAL (2019), p. 108. [834] Salazar já tinha sido ministro das Finanças dois anos antes, na sequência do 28 de Maio, abandonando pouco tempo depois o cargo quando ficou claro que não tinha condições para implementar a sua política. Também tinha sido convidado para o mesmo cargo por Sidónio Pais em 1919, mas recusou. CARVALHO (2011b), pp. 721-723. [835] LOPES (2005); SILVA e AMARAL (2011); GALLAGHER (2020), p. 36. [836] GALLAGHER (2020). pp. 94, 100. [837] MADUREIRA (2006), pp. 110-112. [838] RAMOS et al. (2009), p. 644. [839] CAMPOS e SIMÕES (2012). [840] CAMPOS e SIMÕES (2002), pp. 111-159 [841] CAMPOS (2000), p. 406.
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[842] CARREIRA (1999), p. 412. [843] CARREIRA (1999), p. 412. [844] AMARAL (2019), p. 241. [845] Uma analogia mais contemporânea é a evolução económica da China protagonizada por Deng Xiaoping e alguns dos seus sucessores, que arrancou muitos milhões de pessoas da pobreza sem que se avançasse na democratização do país. [846] As reformas económicas, quando não acompanhadas de reformas políticas, por regra estagnam a partir de um certo grau de desenvolvimento. Por exemplo, tudo indica que é o que está a acontecer na China atualmente. [847] Como vimos no cap. 6, mesmo no que diz respeito ao século dependência parcial foi a prazo negativo.
xviii,
o efeito dessa
[848] Assim o fez, por exemplo, ROSAS (2021). O problema evidente e recorrente dos que fazem este tipo de afirmações é a incapacidade de quantificar seja o que for. Mas, sem números, tudo não passa de opiniões sem fundamento. [849] LAINS (2003c), p. 230. [850] Em 1950, o peso do comércio entre a metrópole e as províncias ultramarinas correspondia a 22% do total, descendo para apenas 14% em 1973. No entanto, o peso do comércio externo no PIB rondava os 15% do PIB em 1950, e valia cerca de 20% do PIB em 1973. Portanto, em ambos os momentos, o peso do comércio imperial valeria cerca de 3% do PIB da metrólope. Sobre os valores do peso do comércio entre a metrópole e as províncias ultramarinas, veja-se CLARENCE-SMITH (1985). Sobre o preso do comércio externo no PIB, veja-se AFONSO e AGUIAR (2005). [851] Poderiam existir outras transferências que aumentassem um pouco a contribuição imperial. Veja-se LAINS (1998). [852] Esta diferença é importante, por exemplo, em relação às ajudas europeias que Portugal recebe atualmente. Mais direi sobre este assunto no Capítulo 10. [853] Como fornecedores de importações de mercadorias, a sua importância era ainda menor. AFONSO e AGUIAR (2005). [854] LAINS (2003c), pp. 225-226. [855] De resto, a Espanha e a Grécia também convergiram nesta época, mas sem terem colónias relevantes. [856] Salazar era contrário à integração europeia na sua vertente política, considerando que a França estava a cometer um suicídio nacional. GALLAGHER (2020), p. 227. [857] O regime também promoveu o colonialismo «fora de tempo», ainda que não seja claro que uma democracia tivesse enveredado por um caminho diferente, pelo menos nos primeiros anos da guerra. Basta lembrar os casos dos ingleses no Quénia e dos franceses na Argélia poucos
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anos antes. [858] A esquerda, em particular, tenta com frequência colar a direita democrática ao regime, mesmo quando isso não faz qualquer sentido. Desenvolvo esta matéria com mais detalhe no capítulo seguinte. [859] A argumentação dos parágrafos seguintes baseia-se em PALMA (2021b) que escrevi para o jornal Público na sequência de uma polémica em que me encontrava envolvido depois da minha participação no congresso do Movimento Europa e Liberdade de 2021 (PALMA 2021a). [860] AFONSO (s.d.). [861] MENDES et al. (s.d.), p. 52. Este programa está ainda hoje parcialmente em vigor, e não menciona o 25 de Novembro. Eu analisei o enviesamento dos programas escolares em mais detalhe num post do blogue Portugal no Longo Prazo (PALMA 2021). [862] Acessível a partir do minuto 3.00 no vídeo relativo ao ensino de História do 9.º ano durante a epidemia COVID em 2020, por enquanto disponível online: RTP (2020a). Noto ainda que na aula anterior, sobre a democratização de Portugal, o 25 de Novembro não é mencionado, como pode ser verificado em RTP (2020b). Vídeos visualizados em julho de 2021 e 2023. [863] GALLAGHER (2020), pp. 2, 68-69, 82; MENESES (2010b), pp. 85, 90, 101, 151, 162-163, 169, 179, 187-189, 249, 266-268, 707; CRUZ (2013), p. 228. Parece-me credível explicar a célebre fotografia de Mussolini colocada a certa altura na secretária de Salazar como parte da sua estratégia de moderar e integrar no regime segmentos políticos à sua direita. [864] Alguns dos motivos que explicam a sobrevivência do regime foram de natureza interna, como o alinhamento cultural com grande parte da população, e outras de ordem externa, como a Guerra Fria e a posição periférica do país. [865] PINTO (2008), pp. 46-47. [866] «O nacionalismo do Estado Novo não é e não poderá ser nunca uma doutrina de isolamento agressivo – ideológico ou político (…) tão afastado do liberalismo individualista, nascido no estrangeiro, e do internacionalismo da esquerda como de outros sistemas teóricos e práticos aparecidos lá fora como reação contra eles (…) Sem dúvida se encontram, por esse mundo, sistemas políticos com os quais tem semelhanças, pontos de contacto, o nacionalismo português – aliás quase só restritos à ideia corporativa. Mas no processo de realização e sobretudo na conceção do Estado e na organização do apoio político e civil do governo são bem marcadas as diferenças (…) é preciso afastar de nós o impulso à formação do que poderia chamar-se o Estado totalitário»; SALAZAR (1935), pp. 333-334, 336, 344-346. [867] PINTO (2018); MARTINS (2022); GALLAGHER (2020), pp. 82-83; MENESES (2010b), pp. 168-169. As autoridades esforçaram-se por esvaziar o Nacional-Sindicalismo, aliciando alguns camisas azuis para dentro do regime. Veja-se MARTINS (2020), p. 311. O regime tinha uma atitude semelhante em relação às forças políticas «à sua esquerda», nomeadamente antigos republicanos. [868] PINTO (2018), pp. 205, 211, 216, 228. [869] CRUZ (2013), pp. 221-222, 225.
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[870] PINTO (2008), pp. 46-47. [871] Foi assim constatado por vários observadores estrangeiros que visitaram Portugal nos anos 1930. MÓNICA (2020), pp. 238, 247. [872] Sobre os eventos relativos a Aristides de Sousa Mendes, ver GALLAGHER (2020), pp. 120-126, 130. Gallagher insiste (p. 126) que é injusto ignorar o bem que o governo português, e Salazar em particular, fez pelos refugiados judeus, e que a atenção desproporcional dada a Sousa Mendes no contexto da época sugere que a história da Segunda Guerra Mundial está a ser utilizada como arma política no Portugal contemporâneo. Quando visitei o Museu Nacional Resistência e Liberdade na Fortaleza de Peniche em 2021, existia à entrada uma exposição sobre Aristides de Sousa Mendes. Este museu também se referia a «presos políticos que lutaram pela democracia», mesmo quando se tratava de membros do PCP. [873] GOLSON (2020); MENESES (2010b); e GALLAGHER (2020), pp. 105-116, 135. [874] Acresce que o regime está temporalmente próximo de nós. Dificilmente uma pessoa em Portugal será acusada de «branqueamento» por afirmar que a economia chinesa tem crescido de forma sustentada nas últimas décadas. [875] E estando a estátua de D. José (figura associada a Pombal como é evidente) no centro da que é certamente a praça mais importante do país (tanto em termos históricos como no presente). [876] Grande parte da oposição ao Estado Novo foi conduzida por pessoas de esquerda que, depois do 25 de Abril, se identificaram com o Partido Socialista e os partidos à sua esquerda. Por sua vez os que fundaram o PPD (mais tarde PSD), saíram, embora não totalmente, da chamada «Ala Liberal», constituída durante o período marcelista. Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e outros que estiveram na base do PPD foram deputados em eleições não democráticas. É aqui que, em grande medida, também reside a clivagem histórica (e até desconfiança ideológica) entre os blocos ditos de «esquerda» e de «direita» portugueses. Isto apesar de, em determinados momentos, ter havido alianças táticas entre o PS e as forças políticas à sua direita – quer por razões de regime (em 1975, com o famoso comício da Alameda e, a seguir, com o apoio ao 25 de Novembro), quer por razões conjunturais (em 1983, com a constituição de um governo de bloco central). A clivagem teve sempre como pano de fundo o legado moral da luta efetiva contra a ditadura do Estado Novo. Aqueles que se situam orgulhosamente no campo político da «única» e «legítima» esquerda são tipicamente quem mais reivindica a oposição ao Estado Novo (ou serem os herdeiros políticos dos que fizeram essa luta). Apesar de a repressão do regime do Estado Novo ter sido, em termos comparados, relativamente discreta e suave, como vimos, ainda assim houve muita gente perseguida, presa e torturada. Muitas delas passaram a ter como objetivo na vida dar a conhecer o inferno que viveram, e a desvalorizar tudo o que contrariasse a sua experiência de vida e opinião. Este fator, muito forte do ponto de vista emocional, condicionou a narrativa histórica do passado recente português. A falta de distanciamento histórico criou oportunidades políticas que continuam a ser aproveitadas. [877] Uma boa parte das elites comerciais e intelectuais assinava publicações como o jornal República e a revista Seara Nova. A existência de imprensa desalinhada com o regime, apesar de os cortes do «lápis azul» da censura, exemplifica a natureza relativamente tolerante e moderada do Estado Novo (poderia tê-la proibido, mas não só não o tentou fazer, como a reconheceu legalmente.) Como é evidente, outras publicações, como o Avante!, não se sujeitavam à censura prévia e optaram pela via clandestina.
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[878] Agradeço ao meu pai, que fez parte da oposição de esquerda ao Estado Novo e conheceu simpatizantes da Primeira República, várias conversas sobre estas matérias. Foi uma fonte de história oral que me ajudou, ao longo dos anos, a compreender este ponto de vista. [879] Como de resto ficou claro a partir de 1968 com as hesitações políticas de Marcello Caetano.
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10. A época contemporânea O pior cego é o que não quer ver. Expressão popular portuguesa A nossa viagem pela História de Portugal chegou ao tempo presente. Mas o passado não vai agora desaparecer da minha análise, até porque aprender com ele é crucial para compreendermos o presente e melhor planearmos o futuro, ainda que a História nunca se repita exatamente da mesma forma. Portugal é, de resto, um país onde o passado pesa muito. Não só as causas do nosso atraso derivam, em grande parte, da nossa História, mas também o modo, a meu ver errado, como muitos a interpretam tem uma forte influência no presente: a memória coletiva do país está presa aos seus mitos.[880] Este capítulo, como anunciei no início deste livro, será mais subjetivo do que os anteriores: é uma proposta de análise. Por tratar de uma matéria recente, também carece, em muitos aspetos, de estudos académicos aprofundados, que necessitam de algum distanciamento, e poderá desatualizar-se mais ao longo dos anos do que os capítulos anteriores. Explico aqui o meu ponto de vista sobre a maneira como a herança institucional e cultural do país se relaciona com um fator fundamental contemporâneo para compreendermos a persistência do atraso: as ajudas europeias. Argumento que esta interação tem um efeito pernicioso decisivo para o país e que, pelo contrário, muitos dos fatores que são apontados como as causas do atraso são irrelevantes ou decorrem dessas causas: ou seja, são apenas mecanismos ou sintomas e não a raiz fundamental dos problemas. Comecemos por relembrar os factos. Portugal está a divergir da Europa Ocidental há mais de 20 anos. Caso não mude de caminho (e nada indica que haja vontade de mudar), será um país envelhecido e sem
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futuro. Portugal entrou completamente impreparado no século xxi, realidade que, duas décadas depois, ainda se recusa a enfrentar. Todos os dias, os noticiários deveriam abrir com o mesmo alerta: Portugal está a divergir. O país está a ficar cada vez mais pobre em relação aos outros países da União Europeia e, ainda mais, em relação a outras partes do mundo. Esta divergência, as suas causas, e as suas soluções deveriam ser objeto de análise e debate permanentes. Mas, apesar de – ou talvez mesmo, por causa de – o país estar bloqueado, isso não acontece. Para muitos, é preferível continuar a viver num mundo ilusório.[881] O problema do país é profundo e real, ao contrário do que sugerem as declarações vazias feitas por políticos que gostam de afirmar que Portugal é «o melhor país do mundo», talvez para tapar o sol com a peneira.[882] Não deve, nem pode ser orgulho para ninguém o facto de um quinto dos portugueses viverem fora do país – sendo esta uma proporção que normalmente só é observada em caso de guerras ou outras calamidades. A emigração, com especial incidência, a dos jovens, não estanca e, ao mesmo tempo, acumula-se um enorme endividamento externo que compromete de forma grave as gerações futuras: Portugal é um dos países do mundo com maior dívida pública em percentagem do PIB (mais de 100%). Não há perspetiva de melhorias. Pelo contrário: a qualidade da justiça e das instituições políticas tem vindo a piorar, e Portugal não é uma «democracia plena», como a publicação de relatórios recentes mostra.[883] A situação tem algum paralelo com a dos finais do século xix e início do xx: existe crescimento sem convergência, enquanto se assiste, ao mesmo tempo, a uma polarização política, e à acumulação de desequilíbrios, internos e externos. Expor a decadência e o atraso português pode parecer contraintuitivo, porque todos sabemos que grande parte da população portuguesa vive melhor hoje do que há umas décadas.[884] Porém, é essencial não confundir níveis de vida com avanços relativos: temos avançado, mas menos do que os outros países, que também não ficaram parados. Pelo contrário, a maior parte dos outros países têm avançado mais rápido do que nós. Ou seja: não há dúvida de que se vive melhor atualmente do que nos anos 1970. Mas isso é verdade sobre qualquer país da Europa. O que conta é que Portugal está a ser ultrapassado até mesmo pelos países que começaram mais atrás, como aconteceu com os antigos Estados comunistas que se juntaram à UE depois da sua transição para economias mistas, durante a década de 1990. Para compreendermos isto, é útil
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imaginar uma corrida de automóveis, em que o carro que representa Portugal vai a apenas 80 quilómetros por hora, enquanto os outros vão a 120, ou mais. Apesar de avançar na pista, o nosso carro está a ficar para trás em termos relativos. O desenvolvimento que Portugal tem conseguido nas últimas décadas, mesmo em setores como a educação e a saúde, tem sido medíocre. O atraso não só não tem sido recuperado como se tem agravado. É esta a nossa realidade. Como mostrei no capítulo anterior, Portugal começou a aproximar-se do nível de vida dos países mais ricos da Europa a partir de meados do século passado. Essa convergência parou por volta do final dos anos 1990. Entre meados dos anos 1970 e meados dos anos 1980, também não houve convergência. Ou seja, a convergência com a Europa mais rica que vinha do início dos anos 1950 foi interrompida por uma década a partir do 25 de Abril. Isto não surpreende: as políticas socializantes do período revolucionário – como as nacionalizações de empresas e a reforma agrária, o despesismo e o descontrole das contas públicas – levaram à inflação e a crises graves. Estas tiveram efeitos muito negativos para a economia que, ao contrário do que tinha acontecido nas décadas anteriores, parou de convergir no período 1975-1985.[885] Voltouse mesmo ao protecionismo, que tinha estado a recuar desde os anos 40. [886] A balança de pagamentos tornou-se fortemente negativa, e foram necessárias intervenções de emergência do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 1977 e em 1983, quando foram emprestados a Portugal 750 milhões de dólares, e impostas reformas, como cortes nos salários da função pública, uma política orçamental mais responsável, e o aumento de preços.[887] Mas, na verdade, Portugal já beneficiava de alguma forma de ajudas do FMI logo desde meados de 1975.[888] Vale a pena repetir o mesmo exercício do capítulo anterior, mas agora para um leque mais alargado de países.[889] É possível calcular o PIB por pessoa em percentagem da média do PIB por pessoa dos países da atual UE (acrescidos do Reino Unido, Noruega e Suíça). É isso que mostro na Figura 32, utilizando dados já corrigidos para a paridade de poder de compra.[890] Como se vê na figura, Portugal está a ficar para trás, de forma sistemática, desde os finais dos anos 1990. Note-se que o pico no início dos anos 1990 deve-se, em grande parte, à queda temporária dos PIB de vários países da Europa Central e do Leste que tinham sido comunistas, no contexto da sua transição para economias mistas. Durante os anos 1990, Portugal continuou a convergir com os países mais ricos
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da Europa. Logo, é mais razoável considerar que a divergência portuguesa começou a acontecer a partir de finais dos anos 1990. É relevante notar que este comportamento medíocre da economia se dá, desde o início do século xxi, num contexto em que as taxas de poupança das famílias portuguesas são das mais baixas do mundo, enquanto, tanto o Estado como as empresas, se encontram altamente endividados.[891] Figura 32. PIB per capita português relativamente à média da Europa Ocidental.
É importante sublinhar que a divergência económica do país não tem como contraponto ou compensação uma maior justiça social ou maior igualdade do que as que existem nos países da Europa Central e do Leste que nos têm ultrapassado. Pelo contrário.[892] Essa retórica é comum em certos círculos e parece provável que continue a ser repetida.[893] Mas os números mostram que, na realidade, países como a República Checa, a Eslováquia, a Eslovénia, e a Letónia, não só crescem mais do que Portugal, como também se mantêm com níveis de desigualdade de rendimentos e de riqueza inferiores aos nossos.[894] A verdade é que Portugal é e mantém-se, desde há décadas, um país de baixíssima mobilidade social entre as gerações, com a escola pública a ser incapaz de eliminar as desigualdades socioeconómicas de partida, de origem familiar.[895] O país destaca-se negativamente, entre todos os países da OCDE, pela probabilidade muito baixa dos filhos dos mais pobres, que tendencialmente apresentam um nível de educação baixo, conseguirem sair dessa situação de armadilha de pobreza que já afetava os seus pais. [896] Existe portanto no nosso país um círculo vicioso de pobreza, e de níveis de educação baixos, que afeta geração após geração.
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Para compreendermos tudo isto, temos de saber separar as causas próximas (ou imediatas) do atraso, das causas fundamentais que as explicam. As causas próximas consistem em determinados mecanismos que, na linguagem dos economistas, são fatores endógenos – ou seja, são eles próprios explicados por outros. Os níveis baixos de capital humano e de produtividade do país são uma causa do atraso, mas são apenas uma causa mecânica, quase trivial: não são em si uma explicação do atraso. Precisamos de explicar porque é que são e se mantêm baixos. Compreendermos a distinção entre as causas próximas e as fundamentais é crucial para não fazermos diagnósticos errados. Por exemplo, é verdade que em Portugal os impostos são altos relativamente à qualidade da oferta dos bens públicos (como a saúde, a educação, ou a justiça), e por isso constituem um problema. Mas é evidente que os impostos não são a causa estrutural do atraso do país. O nível elevado de esforço fiscal é apenas um sintoma: é o necessário para pagar o Estado Social ambicioso que os eleitores consideram que lhes é devido, mas que é em muitos aspetos ineficaz no seu funcionamento. Instigado por promessas eleitoralistas dos políticos, o Estado Social não é reformado nas suas componentes ineficientes.[897] Mas a economia não está organizada de forma eficaz para ter capacidade de criar riqueza, ou mesmo apenas eficiência suficiente na oferta de bens públicos, de forma a ser capaz de suportar essas ambições. Por isso, descer os impostos, apesar de desejável, seria apenas um paliativo que não iria durar e também não iria resolver nada só por si: sem cortes de despesa ou ganhos de eficiência credíveis associados, levariam apenas a uma subida dos défices e da dívida. Os fundos europeus como uma das causas fundamentais do atraso Como já expliquei, é essencial distinguirmos as causas próximas (ou endógenas) do atraso, das fundamentais. Mesmo existindo heranças históricas, como vimos nos capítulos anteriores, são ainda assim exemplos das primeiras a baixa produtividade, a excessiva centralização do Estado, ou os impostos altos. Todas estas resultam, pelo menos em parte, de escolhas políticas do presente. Além destes exemplos, há muitas outras causas próximas: as elites extrativas, as instituições atrasadas, um sistema de justiça disfuncional – lento e ineficiente, particularmente no que toca à justiça administrativa e fiscal –, ou o inadequado nível de 282
escolaridade da população.[898] Temos também uma sociedade pouco integradora, em que os benefícios públicos são frequentemente apropriados para fins privados.[899] Todos estes fenómenos são sintomas do problema, mas não a sua causa profunda. Não obstante, vale a pena analisar alguns destes fatores pois são mecanismos através dos quais as causas profundas operam, empurrando a produtividade da economia para baixo, especialmente a prazo. Portugal não tem melhorado relativamente a outros países em nenhuma das dimensões que referi. Tomemos como exemplo a questão do capital humano, ou seja, os níveis de educação da população. Como vários estudos têm mostrado, Portugal é o país da Europa com a menor literacia económica e financeira.[900] Isto resulta de heranças históricas, mas também de escolhas políticas presentes. Em termos relativos, esta situação não melhorou na democracia, já que os países com que faz sentido comparar Portugal também não ficaram parados. As consequências são visíveis de muitas formas, como na natureza de muitos dos contratos de crédito, ou nas escolhas eleitorais de grande parte da população. Nenhuma destas graves carências constitui, porém, uma explicação fundamental. Há uma causa comum a todos estes fenómenos que afastam Portugal dos outros países europeus. Vejamos então qual é. Comecemos por rejeitar alguns mitos. O tamanho do país é pouco relevante, já que sabemos que muitas das nações mais ricas do mundo, e nomeadamente na Europa, correspondem a países de dimensão comparável a Portugal, como a Bélgica, ou ainda mais pequenos, como a Dinamarca. Outro mito comum é o da geografia: na verdade, a posição aparentemente periférica de Portugal não impediu a convergência económica do país noutras épocas, logo não é uma fatalidade. E também convém pensar bem sobre o que significa periferia: toda a Europa é periférica num certo sentido, e o primeiro país a industrializar-se – a Inglaterra – também o era naquela época, tendo, aliás, a Revolução Industrial surgido longe de Londres, numa zona periférica daquele país: o norte de Inglaterra. Além disso, nos dias de hoje, vemos países europeus que geograficamente também são periféricos, como a Irlanda ou os Estados Bálticos, e que apresentam um bom comportamento económico.[901] Tendo rejeitado estes mitos comuns, vou agora centrarme nos fatores que considero serem as verdadeiras causas do atraso.
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A divergência do país está a acontecer apesar de décadas de transferências de enormes quantidades de fundos europeus dados a Portugal, muitos dos quais a fundo perdido. «Apesar»? Como vou argumentar, não é essa a palavra certa. Desde o início dos anos 1980 que os fundos comunitários são vistos como uma solução fácil para Portugal se tornar uma das economias mais ricas da Europa. A canção do grupo de rock GNR, Portugal na CEE, de 1981, quatro anos antes da adesão, ilustra bem esse sentimento: Quero ver Portugal na CEE E agora, que já lá estamos Vamos ter tudo aquilo que desejamos. Vou mostrar que essa esperança não podia ter vindo a ser mais ilusória, ainda que não explique sozinha o atraso. Uma coisa é certa: os fundos europeus não estão a levar à convergência, apesar da sua magnitude quase inimaginável. Segundo dados do Banco de Portugal, o país já recebeu 133 mil milhões de euros desde a adesão à União Europeia até inícios de 2023, sendo que o contributo total português para o orçamento comunitário corresponde a um terço deste número. Estes valores excluem o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), com um período de execução até 2026, e que importará em mais de 22 mil milhões de euros entre subvenções e empréstimos. É significativo que os meios de comunicação social se refiram frequentemente a este tipo de valores como algo benéfico apenas por aparentemente representar um saldo positivo a favor de Portugal.[902] Os fundos europeus recebidos por Portugal têm correspondido a valores por volta dos 2% a 3% do PIB português por ano desde meados dos anos 1980.[903] Estes valores colossais têm tido, na prática, contrapartidas baixas, como referi, sendo por isso, na margem, valores muito significativos. O peso dos fundos é superior ao da Autoeuropa, que sendo tão central para a economia portuguesa, anda pelos 1,5% do PIB: um valor que corresponde aproximadamente a todas as remessas anuais dos emigrantes, e suficiente para construir cerca de 14 grandes hospitais.[904] Até ao alargamento da UE a Leste, Portugal foi o país da UE que mais sistematicamente «beneficiou» de financiamento estrutural, relativamente ao PIB. Foi inclusivamente dos países que mais receberam financiamento estrutural
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em termos absolutos.[905] Não restam dúvidas de que o nosso país foi na Europa o que mais e por mais tempo «beneficiou» destas ajudas.[906] E nos próximos anos, até 2030, vão chegar a Portugal mais de 57 mil milhões de euros em fundos europeus, manifestando a procuradora Ana Carla Almeida graves preocupações com a falta de recursos para combater as fraudes com esses fundos.[907] Em termos aproximados, estes valores atingem, em termos anuais, cerca de 3% do PIB.[908] Ou seja, a UE continua a dar-nos todos os anos dinheiro que equivale ao peso de duas «Autoeuropas» na economia, sem grandes contrapartidas práticas. [909]
Hoje, os fundos de coesão per capita recebidos por Portugal estão entre os mais altos de todos os Estados-Membros. Durante o período 2014-2020 atingiram cerca de 380 euros por pessoa e por ano, em preços correntes, para as zonas menos desenvolvidas do país, um valor apenas próximo do que receberam as zonas equivalentes de alguns países excomunistas. Este valor compara com uma média de menos de um terço – 112 euros por pessoa – entre todos os Estados-Membros para o mesmo período. Países como a Roménia ou a Bulgária apenas receberam 150 euros por pessoa.[910] Os fundos de coesão correspondem apenas a uma média de 0,3% do PIB da UE como um todo, uma proporção quase dez vezes inferior à portuguesa. Aliás, a própria Comissão Europeia reconhece que, para algumas das zonas mais pobres de Portugal, como é o caso dos Açores, o valor é quase 12 vezes maior – atingindo cerca de 3,5% do PIB por ano. Uma análise detalhada, e sub-regional, mostra que todas as regiões de Portugal (incluindo Lisboa e o Algarve, ainda que com um pouco de menor intensidade) recebem uma quantidade de fundos europeus apenas comparável aos recebidos por regiões da Europa do Leste.[911] A ideia de que é possível impor «a partir de cima» igualdade entre todos os países ou mesmo regiões da UE é uma visão utópica, e é bem possível que esta lógica que determina a distribuição dos fundos esteja a contribuir, pelo contrário, para aprofundar o atraso relativo de certas regiões e Estados-Membros mais pobres – e também, por essa via, da própria União Europeia no seu todo relativamente a outras partes do mundo.[912] Globalmente, e tomando todos os períodos desde meados dos anos 1980 em consideração, Portugal foi certamente um dos países da UE que mais receberam quantias provenientes destes fundos relativamente ao tamanho da sua economia. É também, juntamente com a Grécia, o país
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que há mais tempo deles depende.[913] Comparem-se os valores que mencionei com os das chegadas de ouro do Brasil no século xviii, que corresponderam a 4 a 6% do PIB nominal por ano, entre 1720 e a década de 1760, declinando a partir de então, até ficar por 1% em finais do século.[914] Nessa época, esses montantes foram o suficiente para condenar a economia e o sistema político a uma trajetória perniciosa com consequências para o atraso que ainda hoje sentimos. Tal como nessa época, as chegadas de fundos não representam hoje proporções anuais esmagadoras, mas vão tendo efeitos ao longo do tempo, até devido a não terem, na prática, grandes contrapartidas. Distorcem a economia e o sistema político, com graves consequências a prazo. São o novo ouro do Brasil. Os fundos europeus enviados para Portugal têm claramente falhado no seu objetivo primordial: a convergência com a Europa mais desenvolvida. À medida que vários países – ou, para ser mais rigoroso, regiões europeias – se aproximaram dos níveis médios de desenvolvimento da União Europeia, têm perdido o direito a receber estes fundos. Portugal é uma espécie de país pedinte, e viciado, que continua a receber esmola décadas depois, porque nunca deixou de ser pobre – tendo recebido mais e por mais tempo do que os outros. Perversamente, quase parece que este país dependente gosta de continuar a sê-lo, tal é o endeusamento a que o discurso público eleva os dinheiros europeus. Isto é verdade tanto relativamente aos fundos regulares – que têm, de resto, categorias variadas, incluindo fundos de desenvolvimento regional, o fundo social europeu, fundos de coesão, bem como fundos agrícolas e relacionados com as pescas – como aos de emergência, como é o caso do PRR, apelidado em Portugal de «bazuca»: a chuva de milhões que tantos disseram que nos iria salvar. Desde o princípio que me mostrei cético.[915] Até porque me recuso a esquecer a nossa História: os fundos europeus não passam do ouro do Brasil dos dias de hoje. É evidente que esta analogia não é uma comparação literal nem deve ser exagerada: Portugal tem hoje um contexto económico e social e um sistema político diferentes do que tinha no século xviii. Mas, tal como no antigo processo da Maldição dos Recursos que desenvolvi no Capítulo 6, os fundos distorcem hoje a economia do país através dos mesmos dois mecanismos fundamentais: a perda de competitividade do setor dos
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transacionáveis, por um lado, e os efeitos negativos relacionados com a falta de responsabilização política e prestação de contas (accountability) para as instituições políticas e as políticas públicas, por outro. Em suma, as transferências das instituições europeias são responsáveis por dois fenómenos. Em primeiro lugar, a entrada dos fundos distorce a economia, empurrando os fatores produtivos para setores não transacionáveis, como o imobiliário ou as obras públicas (muitas vezes desnecessárias), tendo efeitos negativos e custos indiretos para o setor exportador. Em segundo lugar, o dinheiro vindo de fora, frequentemente sem grandes contrapartidas, permite aos governos distribuir mais rendas. Este dinheiro não recompensa uma efetiva subida de produtividade da economia, mas, pelo contrário, é dinheiro «caído do céu». O único requisito é manter o país atrasado e é isso que os governos têm feito há décadas. Por isso mesmo, perversamente, a torneira dos dinheiros europeus não fecha. Na prática, a UE subsidia Portugal por ser mau aluno, dando dinheiro que anestesia a economia e distorce o processo político. A torneira aberta financia alguns investimentos e consumo, permitindo transmitir a ideia de que a situação do país não é tão grave como é, enquanto impede um debate sério sobre a verdadeira situação do país. O fim dos fundos iria implicar um confronto com a dura realidade existente, que teria implicações políticas sérias e disruptivas para a atmosfera cultural e intelectual do país. Sem os fundos, o edifício político e ideológico que nos rodeia cairia que nem um castelo de cartas, com implicações sérias para o regime e os partidos que têm governado o país. Se, no imediato, levaria certamente a uma crise, esse fim também seria o incentivo certo para abrir o caminho para serem feitas verdadeiras reformas. O dinheiro vindo da Europa ajuda o governo em Portugal a comprar apoio político interno, aumentando o valor da captura do Estado. Também quebra a ligação temporal entre a falta de eficácia das decisões políticas e as recessões económicas, escondendo do público a extensão dos problemas e protegendo, com uma cortina de fumo, a inércia e incompetência dos governantes. Como os fundos adiam os problemas, sem os resolver, criam um desfasamento temporal entre os momentos em que o povo sente a crise «na pele» e aquele em que os maiores erros de política económica foram feitos. O resultado tem um impacto decisivo nas escolhas dos eleitores, que tendem a recompensar os efeitos de curto prazo.[916] Os fundos também reduzem os limites ao poder executivo,
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levando ao baixo escrutínio do poder político e a violações do princípio da divisão dos poderes.[917] Tudo isto leva a inúmeros conflitos de interesse relacionados com o papel central do Estado, agravados por ser Portugal um país pequeno. Concentradas na «corte» em Lisboa, próximas do poder político, as elites conhecem-se pessoalmente e a sua permanente encenação esconde que, no fundo, estão preocupadas principalmente com os seus próprios interesses. Em Portugal existe um excesso de leis e de regulação que confunde objetivos com meios ou instrumentos, que são ineficientes, assim como uma excessiva legislação produzida «a quente» em reação a casos mediáticos, sem haver um pensamento estruturado e global subjacente. [918] Portugal é dos países do mundo com mais proteção laboral para quem tem contrato de trabalho permanente.[919] Esta situação explica a elevada percentagem de casos de contratos de trabalho a termo, criando um mercado de trabalho segmentado e com pouca justiça intergeracional, porque são os jovens que ocupam a esmagadora maioria destes contratos a termo. Os sindicatos estão hoje envelhecidos e são pouco representativos, estando muito ligados a interesses políticos, ao contrário do que estabelece a Constituição.[920]As medidas ativas de emprego, como os estágios e a formação profissional, são pouco diferenciadas, em grande medida desatualizadas, e com impactos que não são avaliados, tendo pouca capacidade de resposta às mudancas que se avizinham com o crescimento da inteligência artificial.[921] Em Portugal quase nada, de resto, é sujeito a uma avaliação de impacto ou a análises custo-benefício. Também somos um dos países do mundo que mais direitos promete na Constituição, o que não é positivo, como se verifica pelo facto de os outros países que prometem tanto ou mais serem Estados mais pobres, como Angola, Bolívia, Cabo Verde, Equador e Venezuela.[922] Ou seja, Portugal tem uma Constituição terceiro-mundista. Como demasiadas vezes acontece, estamos perante uma encenação, perante mais um triunfo do de jure sobre o de facto. Mas quem governa com demagogia falha.[923] Portugal é um país alérgico a reformas estruturais que permitiriam ajudar a economia, sendo essas reformas displicentemente catalogadas como «neoliberais», «capitalistas», «de direita» – ou mesmo, absurdamente, «fascistas».[924] Entre as elites intelectuais (até mais do que entre o povo) existe também muito preconceito contra a iniciativa privada, e muitas vezes, desconfiança em relação à prestação de contas e de fiscalização da ação governativa. O resultado acaba por ser uma intervenção estatal
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excessiva (frequentemente desnecessária e por vezes até malintencionada), as leis laborais rígidas e inadequadas ao mundo globalizado do presente, os impostos altos relativamente à qualidade dos bens públicos, um Estado Social incapaz de dar às pessoas o que necessitam, uma enorme injustiça intergeracional, a estagnação económica, e a continuação do processo de divergência.[925] Apesar da elevada carga fiscal, nem sequer os serviços de educação e saúde mais básicos consegue o Estado assegurar: faltam vagas no ensino pré-escolar, professores no ensino pré-universitário, a medicina dentária faz apenas recentemente e de forma muito parcial parte do SNS, e o número de utentes sem médico de família já é quase 1,7 milhões.[926] As listas de espera de anos para cirurgias, urgências encerradas, e filas nos Centros de Saúde são amplamente noticiadas, ano após ano. O Estado tudo promete: desde milhares de camas em residências universitárias, a habitação social abundante e a preços acessíveis. Mas pouco consegue, apesar dos fundos europeus e da elevada carga fiscal.[927] O baixo investimento público tem levado a uma forte erosão do capital público, com a depreciação a ter efeitos negativos para a produtividade que se vai sentir durante décadas.[928] Como tantas vezes na nossa História, o de facto diverge do de jure e da propaganda. A existência dos fundos ajuda a explicar a ausência de reformas no país. Não é suficiente dizer que reformas estruturais e políticas públicas de melhor qualidade fariam o país crescer. Isso é evidente. Aliás, é quase trivial. O que é preciso compreender é porque não são adotadas melhores políticas públicas em Portugal (nem alguma vez o foram nas últimas décadas, com graus de cinzento que variaram, mas pouco, ao longo do tempo). A ausência da procura de reformas, mesmo quando os problemas estão identificados, é que é o facto fundamental que tem de ser explicado. Portugal tem uma elite egoísta, em parte legitimada nas urnas, mas apenas preocupada em proteger os seus interesses. O facto de não existirem alternativas viáveis à vista é, em si, o facto mais relevante. O país está bloqueado, mas não quer mudar. O espírito corporativista impera, com um sem-fim de lóbis a pedir mais para si, e sendo sempre o contribuinte a pagar. A própria antecipação da chegada do PRR, por exemplo, foi antecedida por ações políticas inequívocas com potenciais efeitos a prazo, como aconteceu com o caso da procuradora que ficou em primeiro lugar no concurso para o Gabinete da Procuradoria Europeia – órgão que
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iria supervisionar a fraude nos fundos – e que foi preterida pelo governo. Ou então o facto de o governo não ter reconduzido o presidente do Tribunal de Contas que se tinha levantado contra a reforma das regras de contratação pública aplicáveis aos fundos europeus, o que, como é óbvio, abre a porta à má utilização dos mesmos.[929] E Portugal está há anos sem juiz no Tribunal de Contas Europeu, o tribunal que controla a cobrança e a utilização dos fundos da UE.[930] Até o inspetor-geral de Finanças admitiu modificar pareceres de forma (no mínimo) pouco ética para garantir o acesso continuado de Portugal aos fundos europeus. Vale a pena transcrever o motivo «patriótico» com que justificou a aldrabice: Se não dermos um parecer positivo, se classificarmos o sistema de controlo a um nível inferior, corre-se o risco de suspensão de pagamentos no momento seguinte (…) [é preciso fazer] o suficiente (…) para garantir que (…) os pareceres são sempre aprovados, isto é, a torneira dos dinheiros europeus não fecha.[931]
Além dos fundos europeus propriamente ditos, sejam estruturais ou de (suposta) emergência, como o PRR, também é incontestável que Portugal beneficia, desde há muito tempo, de uma política de juros baixos e compra direta de títulos do governo pelo Banco Central Europeu.[932] Estas operações foram anunciadas como medidas de emergência na sequência da crise das dívidas soberanas que teve início em 2009. Porém, como tantas vezes nestas ocasiões, o temporário rapidamente se tornou quase permanente, tendo o desmame tardado. E quando acabou por ir chegando, como tem acontecido recentemente com a subida das taxas de juro (também em resposta à inflação na Zona Euro), o Estado português queixou-se de não querer que isso aconteça. [933]
Quando o PRR foi anunciado, escrevi que os milhares de milhões de euros a fundo perdido que se perspetivavam no horizonte, com aplicação discricionária e concentrada no tempo, representavam um enorme risco, não sendo uma benesse, mas sim uma maldição para o país.[934] Pelo contrário, o dinheiro da UE, apelidado de «bazuca», continuou a ser visto como uma bóia de salvação, tendo até o Primeiro-Ministro gracejado – como foi amplamente divulgado –, ao dirigir-se à Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, questionando-a se já podia ir ao banco levantar o dinheiro. Mais tarde o Primeiro Ministro afirmou,
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sem apresentar qualquer estudo sério que apoiasse essa espantosa afirmação, que cada euro do PRR iria traduzir-se num crescimento de 5,3 euros do PIB português.[935] Como referi, mostrei-me cético desde o início. O tempo deu-me razão. E mais me dará no futuro. Poucos anos depois do anúncio do PRR, várias notícias deram conta de que o governo escondeu pareces críticos desse plano sem avaliação de conflitos de interesse, enquanto o inspetor-geral das Finanças, responsável pela auditoria dos fundos, justificava alterar um parecer em nome do suposto «interesse nacional» para que Portugal recebesse mais 1,8 mil milhões de euros da Europa, como referi anteriormente.[936] Quase todos os intervenientes que falam sobre os fundos europeus insistem que estes vão gerar muito crescimento no futuro, mostrando-se preocupados com o nível de execução, que não querem que seja baixo. É o caso do Presidente da República, do Primeiro-Ministro, e do Governador do Banco de Portugal.[937] O Primeiro-Ministro sente-se na obrigação de prestar contas sobre essa mesma execução.[938] Pelo contrário, eu afirmo que o nível ótimo de execução é zero: quanto menos for executado, melhor.[939] Estes fundos anestesiam o país e levam grande parte do povo a não exigir mais, porque não sente no bolso as consequências da má governação e falta de reformas. E o facto de a divergência não corresponder a um grande solavanco ou crise repentina, mas a um empobrecimento relativo e gradual do país, não leva à mesma urgência de uma situação de crise imediata. Noto, de passagem, que não me estou a referir à existência de fraudes. A fraude relacionada com os fundos, tendo sido alta no passado, poderá não ser hoje muito diferente da que se aplica em outras partes da UE que recebem fundos.[940] Também é evidente que a fraude nem sempre é fácil de detetar e a sua medição exige a cooperação das autoridades nacionais com os gabinetes europeus e, por isso, as estatísticas relacionadas com a mesma nem sempre são fiáveis.[941] Em todo o caso, não é certamente devido à fraude que os fundos têm os seus principais efeitos perniciosos para Portugal, mas antes através dos efeitos que esses fundos têm – tanto os diretos na economia como os indiretos no processo político. Parte deste último mecanismo está muitas vezes relacionado com contratos públicos dados a entidades próximas de políticos, nalguns casos até na presença de óbvios conflitos de interesse – mas sem isto, num sentido legal ou formal, constituir necessariamente fraude, como
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convencionalmente definida. Mas a fatia dos fundos europeus que vai para o setor privado também não parece ser utilizada da melhor forma. Muitas vezes o dinheiro é dado em apoio a empresas muito pequenas, que apesar de representarem metade do emprego total e 40% do valor acrescentado da estrutura empresarial portuguesa, não têm potencial transformador, fazendo antes do acesso a estes fundos simplesmente um modo de irem ganhando a vida.[942] As empresas que recebem fundos europeus conseguem mais vendas, mas a sua produtividade não é afetada. E mesmo o efeito nas vendas restringe-se aos setores não transacionáveis.[943] A comissária responsável pelos principais fundos comunitários – incluindo o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), o Fundo Social Europeu, e o Fundo de Coesão – tem mesmo levantado dúvidas sobre a eficácia da utilização destes fundos, por exemplo, no relatório Coesão na Europa para 2050.[944] E, no entanto, lembrando em 2022 que, nos anos seguintes, Portugal iria receber o maior volume de fundos comunitários de sempre, argumentou que Portugal tem de usá-los para se desenvolver, e como tal, para se libertar dos fundos europeus.[945] Em 2023 voltou a alertar para o risco dos fundos «passarem a ser uma espécie de habituação», elogiando ainda assim os altos níveis de execução.[946] Deixo à consideração do leitor se isto não é uma argumentação algo esquizofrénica – ou, no mínimo, circular. No dia em que a UE cortar os fundos, finalmente alguma coisa mudará em Portugal. As consequências desse corte serão dolorosas, não há dúvida, mas esse será o primeiro dia do nosso confronto e acerto de contas com a realidade. Apenas então poderá acontecer uma verdadeira autoavaliação das más escolhas que, coletivamente, temos feito. Será esse o momento em que também ficará claro que é perversa a ideia – implícita no mecanismo de atribuição de fundos a nível da UE – de que os mesmos serão cortados quando o país convergir. É como dizer que deixamos de dar drogas pesadas a um viciado quando ele tiver emprego. [947] No discurso efetuado na cerimónia de assinatura da adesão de Portugal como 11.º membro, a 12 de junho de 1985, no Mosteiro dos Jerónimos, Mário Soares disse: Para Portugal, a adesão à CEE representa uma opção fundamental para um futuro de progresso e modernidade. Mas não se pense que seja uma opção de facilidade. Exige muito dos portugueses, embora lhes abra simultaneamente largas perspetivas de desenvolvimento.[948]
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Cerca de quatro décadas depois, parece justo dizer que os fundos europeus nem abriram «largas perspetivas de desenvolvimento» ao país, nem levaram os portugueses a ganhar responsabilidade. Só quem não conheça a História da Europa pode opor-se à União Europeia como projeto político.[949] No entanto, a UE precisa de reformas, algumas delas urgentes. Uma é referente a esta questão dos fundos europeus, sejam estruturais ou de emergência (como é o caso do PRR). É revelador que o PRR seja conhecido, em Portugal, como a «bazuca» ou «chuva de milhões» – e que, como seria de prever, tenha chegado com grande euforia, mas já depois da sua motivação original (a pandemia) ter desaparecido. As remessas desse dinheiro vão ainda durar vários anos, e o Primeiro-Ministro António Costa defende mesmo que o PRR se torne «permanente».[950] Do que já foi implementado do PRR, muito foi gasto em áreas que nada contribuem para reformas estruturais, não ajudando ao desenvolvimento do país a prazo. Em vez disso, o dinheiro é gasto em despesas correntes que tinham a obrigação de sair do Orçamento do Estado, como é exemplo o dinheiro gasto na instalação de equipamentos de ar condicionado, no combate aos incêndios, ou ainda os quase 300 milhões de euros gastos em atividades culturais.[951] Noutros casos, fazem-se compromissos que vão ter de ser suportados, no futuro, sem qualquer planeamento prévio.[952] Neste contexto de dinheiro fácil, mas instituições políticas débeis, e com ainda apenas uma ou duas gerações de portugueses com níveis médios ou mais de educação, o país está a definhar e a produzir resultados económicos medíocres. Por um lado, não é possível acompanhar os desafios globais das últimas décadas sem uma economia mais aberta, com mais concorrência, e uma aposta no setor produtivo, não apenas na exploração de recursos e redistribuição. Mas fazer isso implicaria reformas de fundo, como desmantelar os protecionismos e corporativismos que se mantêm, por exemplo, nas ordens profissionais. No entanto, a competição partidária em ambiente de captura mediática recusa sequer considerar reformas, que grande parte da população não apoia ou entende, e que incomodam os poderes e grupos de pressão instalados. A competição política faz-se pelas promessas, como mais emprego público, mais dinheiro para os reformados, subidas do salário mínimo, e mais ofertas de bens do Estado Social «grátis» (mesmo quando são, na prática, ilusórias). Os partidos recompensam e alimentam as suas clientelas partidárias através da colonização da administração
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pública, fazendo nomeações em que critérios técnicos ou de mérito estão ausentes. Tudo isto se opera em detrimento da capacidade produtiva da economia, exige aumentos da carga fiscal, o que por sua vez agrava a dificuldade da economia funcionar de forma eficaz. É um ciclo vicioso. Os partidos do poder adotaram por facilitismo a crença no efeito mágico do Estado-providência, mesmo quando este não funciona. Os partidos e os políticos que os representam concorrem nas promessas, mas quase não concorrem nas políticas.[953] De resto, não há um debate sério sobre políticas públicas ou reformas estruturais em Portugal pelo menos desde a última intervenção externa em 2011 e nos anos seguintes. Neste contexto, o impasse apenas pode continuar. As reformas vão sendo adiadas até se tornarem outra vez inevitáveis. As dezenas de milhares de milhões de euros de fundos comunitários que Portugal recebeu desde a adesão em 1986 viciaram o país no dinheiro europeu. Como é evidente, o contexto de hoje é muito diferente do que existia há três séculos e os mecanismos precisos através dos quais, como argumentei, os fundos europeus prejudicam hoje a economia são diferentes daqueles através dos quais o ouro do Brasil operou no século xviii. Mas, genericamente, o fator fundamental é o mesmo: ou seja, dinheiro vindo de fora, com poucas ou nenhumas contrapartidas. Fluxos de dinheiro que entram no país desta forma não são saudáveis para a economia, como também não são para as instituições políticas. Há três séculos, o ouro do Brasil não desenvolveu o país – muito pelo contrário. Os fundos europeus não se têm revelado, hoje, diferentes. Os condicionamentos culturais de origem política, e as suas consequências Dito isto, convém sublinhar que os fundos europeus não são o único fator que explica o atraso atual do país – ou, para ser mais rigoroso, a divergência (já que, como é evidente para quem tenha lido este livro até aqui, o atraso em si era anterior). Os fundos europeus contribuem para a divergência, mas isto acontece porque se relacionam com outros fatores que interagem com a sua existência e também ajudam a explicar a falta de reformas políticas e mudanças culturais associadas. Aliás, vários países europeus têm vindo a receber fundos, mas ainda assim convergiram. Isto aconteceu com os países da Europa Central e do Leste que aderiram à União Europeia. Ainda que nenhuns tenham recebido 294
tantas verbas e por tanto tempo, relativamente ao tamanho das suas economias, como Portugal, a verdade é que têm convergido.[954] Irei agora argumentar que isto tem acontecido porque a Europa Central e do Leste – a parte que se juntou à UE – retirou conclusões da sua História, entre o pós-guerra e o final do século xx, muito diferentes das que foram tiradas em Portugal. Ou seja, a divergência foi também cultural, tendo implicações políticas. Em Portugal, a partir de 1974 imperou uma narrativa, que mostrei no capítulo anterior ser falsa, segundo a qual o atraso do país era exclusivo ou principalmente devido ao Estado Novo. Essa narrativa continua viva e de boa saúde nos nossos dias. Nos meios de comunicação social continua a dizer-se e a escrever-se com regularidade que «[o] maior responsável pelo atraso do país é, sem qualquer dúvida, o Salazar», considerado o culpado pelo baixo nível educativo do país, ao mesmo tempo que são desculpabilizadas as escolhas políticas feitas por duas gerações de políticos e eleitores.[955] Pessoas que se afirmam historiadoras profissionais fazem mesmo afirmações como: «Hoje ainda, defensores do Estado Novo, muitas vezes por ignorância, difundem a ideia de que Salazar diminuiu o analfabetismo».[956] Além de esta ser uma afirmação falsa, como já vimos, note-se também o julgamento de intenções: quem contrarie este preconceito é imediatamente catalogado como um «defensor» do Estado Novo. Tudo isto continua a ser hoje feito de forma contínua, mas tem uma origem histórica. A partir do período revolucionário de 1974-1976, as políticas dessa ditadura de direita foram entendidas como uma visão falhada de desenvolvimento, devido à percecionada baixa intervenção do Estado na economia.[957] Este erro na caracterização do regime penetrou de forma profunda na consciência coletiva do país – em parte, aliás, devido ao papel dos meios de comunicação social e ao ensino escolar nas décadas seguintes, todos influenciados por políticos disfarçados de historiadores e intelectuais. Já a nível político, o regime do Estado Novo foi identificado com o fascismo – o que não é factual – para o estigmatizar o mais possível, assim como o poder económico.[958] Isto tornou ainda mais poderoso o ataque à «direita» – mesmo a democrática, moderada e liberal – propositadamente atirada para o mesmo saco. O Estado Novo, visto como fascista, foi identificado com o capitalismo, enquanto o socialismo foi considerado o equivalente da democracia.[959] Como resultado, desenvolveu-se um condicionamento cultural e uma
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doutrina excessivamente otimista quanto à eficácia do Estado. Tudo isto se associou a um nível educativo baixo das populações, em particular às questões relativas à literacia financeira, e à qualidade globalmente reduzida da academia no que toca à seleção dos docentes e investigadores, entre outros aspetos.[960] O analfabetismo do país no passado encontra hoje um paralelo na baixa literacia financeira – uma espécie de analfabetismo económico, que enfrentamos no presente. O resultado é um país com expetativas irrealistas sobre o Estado Social e com uma ênfase política quase exclusiva nas questões da desigualdade, mesmo quando essa ênfase é feita à custa de um debate sério à volta da criação de riqueza.[961] Isto é irónico, porque apenas essa pode pagar o Estado Social de qualidade que as pessoas tanto desejam e merecem. Nivelar por baixo apenas pode levar a um país em que quase todos são pobres. Destes condicionamentos culturais emergiu um país estatista em que os políticos tudo prometem e pouco conseguem de facto.[962] Um país altamente capturado pelas elites, com políticas públicas que são, na prática, por vezes fiscalmente regressivas, como acontece com o facto de os alunos de licenciatura pagarem propinas baixas nas universidades públicas (incomparáveis com os custos), mesmo quando são provenientes de famílias de contextos socioeconómicos favoráveis.[963] O número de licenciados a abandonar o país corresponde a 40% dos novos licenciados todos os anos, segundo algumas estatísticas, não sendo claro se irão voltar ou se o dinheiro que neles foi gasto irá alguma vez beneficiar os contribuintes portugueses que neles investiram.[964] O corporativismo – entendido aqui como a defesa dos interesses privados de certos grupos, em detrimento do conjunto da população – sobreviveu ao fim do Estado Novo e, num certo sentido, está mais forte do que nunca. No que toca à política económica, existe, portanto, mais continuidade entre os regimes do que possa parecer. A Constituição de 1976, tal como a de 1933, opunha-se ao liberalismo económico e promovia um apertado controlo estatal sobre a economia.[965] Após a subida ao poder da Aliança Democrática em 1979, tornou-se notório que a «direita» portuguesa tinha fortes tendências jacobinas, que clamavam por um forte intervencionismo estatal.[966] Sá Carneiro, que se intitulava como sendo de centro-esquerda, dizia mesmo que a social-democracia era uma via para o socialismo, que o seu partido se inspirava no SPD alemão, e quis que o mesmo aderisse à Internacional Socialista, tendo
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nesse propósito sido bloqueado, pelo menos em parte, pelo PS.[967] Nada disso impedia Mário Soares e outros políticos de esquerda de alertarem para o regresso do fascismo.[968] Permaneceria até 1989 em Portugal a proibição constitucional de privatizar as empresas que tinham sido nacionalizadas e as unidades coletivas da reforma agrária (que até tinha sido inicialmente defendida pelo PPD/PSD, e que ainda existiam em grande número no Alentejo).[969] Por tudo isto, ainda no início da década de 1990, a revolução socialista portuguesa estava menos desmantelada do que poderia parecer em resultado da adesão do país à CEE.[970] A defesa dos interesses privados de natureza corporativista continuava. E continuou.[971] Na verdade, a distinção fundamental para compreender estas matérias não é entre políticas de «esquerda» ou «direita» – conceitos limitados –, mas sim entre políticas contrárias ou favoráveis à concorrência. Todos os regimes iliberais são contrários à concorrência e, neste aspeto, o país mudou pouco durante todo o século xx. É possível até argumentar que tem piorado nesta matéria durante a democracia, devido aos condicionamentos culturais de origem política. Os sucessivos governos, mesmo desde os anos 1990, lutaram frequentemente contra a liberalização da economia (muitas vezes confundindo, ou querendo confundir, privatizações com concorrência ou liberalização propriamente dita).[972] É fundamental percebermos que privatizar não implica liberalizar, de modo a compreendermos uma das fontes fundamentais do nosso atraso contemporâneo.[973] Mesmo a chamada «direita liberal» portuguesa mostra-se frequentemente equivocada nestas matérias, confundindo, ou querendo confundir, a defesa dos mercados com a defesa dos lucros de certas empresas ou grupos profissionais. Os condicionamentos culturais existentes implicam que os políticos que defendam um país diferente nestas matérias estão condenados a falhar. Um exemplo que pode ser dado é o de Francisco Lucas Pires: um político que se definia como sendo de direita num país em que isso era praticamente tabu e que defendia ideias que a população não estava pronta para compreender ou aceitar. Foi dos poucos que, em meio século de democracia, ambicionou um país liberal no plano da política económica, enfatizando que defendia a economia liberal «por causa dos trabalhadores».[974] Mas poucos acreditaram e teve pouco sucesso político. O chamado «Grupo de Ofir», liderado por Lucas Pires, era constituído por liberais e foi pro-concorrência. Mas o eleitorado dito «da
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direita» preferiu um caminho diferente em 1985, levando ao fim da existência dessas opções políticas que não eram viáveis para as carreiras dos políticos que as defendessem.[975] Não havia espaço para a direita liberal em Portugal. Os condicionamentos que levaram a esse estado das coisas foram culturais, mas tinham origem política. A natureza da transição para a democracia, nos moldes em que aconteceu e no contexto historicamente determinado de baixo capital humano do país, reforçou um quadro que acabou por impedir «a direita» de ser menos corporativa. Lucas Pires falhou porque tinha de falhar no contexto que existia, que é aproximadamente o mesmo que ainda hoje existe.[976] Por contraste, na Europa Central e de Leste a experiência em primeira mão das ditaduras comunistas matou qualquer romantismo associado à mão pesada do Estado. Isto é verdade não apenas para os países bálticos – onde o sucesso da transição para uma economia de mercado foi quase absoluto – mas também para os países com tendências infelizmente menos democráticas como a Hungria e a Polónia, e em menor grau a República Checa e até a Roménia.[977] Ainda que as revoluções que aí tenham existido também tivessem tido um pendor nacionalista que nem sempre é bem compreendido na Europa Ocidental, em nenhum destes países existem hoje ilusões sobre o valor do comunismo ou da extremaesquerda, cujos partidos são inexistentes ou muito minoritários. Ao mesmo tempo, os partidos do centro são, no que respeita ao papel a atribuir à intervenção do Estado e a favor de uma economia de mercado, muito mais moderados do que acontece em Portugal.[978] As reformas que os países de leste têm feito estão ainda por fazer, em grande medida, em Portugal. Não basta dizer, como já afirmei, que há reformas necessárias. É preciso também compreendermos os motivos da sua ausência. E é aqui que a designada «Maldição dos Recursos», devido aos fundos europeus, se relaciona de uma forma muito perniciosa com os condicionamentos culturais e políticos do Portugal contemporâneo. Os fundos permitem a ilusão de que o modelo de desenvolvimento do país é sustentável. No entanto, não é assim, já que o modelo é centrado em gastar, na proteção de interesses corporativos, e não em produzir. Mas não há corda ao pescoço para mudarmos de vida enquanto a torneira dos fundos europeus continuar a jorrar.[979] O resultado de tudo isto tem sido um retorno negativo destes fundos. Portugal tem-se estado a transformar numa economia envelhecida e pouco competitiva, bem como numa democracia apenas eleitoral, limitada, não liberal, com uma sociedade
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pouco dinâmica, fechada à concorrência, aos mercados, e às reformas que pudessem gerar crescimento económico.[980] Um país de onde muitos jovens saem, ou ficam com uma taxa de fecundidade baixa, agravando a prazo a sustentabilidade da Segurança Social (cada vez mais dependente de transferências diretas do Orçamento do Estado), e a desigualdade intergeracional, assim como as suas consequências políticas.[981] A natureza revolucionária da transição que se seguiu ao golpe de Estado de 1974 não ajudou. Esse golpe teve, pela mão dos seus protagonistas, uma motivação inicial de natureza corporativista, relacionada com a defesa dos seus interesses imediatos, relativos à sua progressão na carreira no contexto da Guerra Colonial, que queriam que terminasse.[982] Mas a verdade é que o golpe enfrentou pouca resistência e teve a adesão de altos quadros que tinham estado associados ao regime, como é o caso de António de Spínola, tendo também uma natural e saudável adesão do povo. O contraste com a Espanha ajuda a compreender que o facto de ter sido, em última análise, uma revolução que levou a um corte radical com o passado, em vez de uma transição negociada, não ajudou depois a economia durante o período democrático. No país vizinho, a transição democrática, a partir de 1975, foi negociada – possivelmente, até porque viram os problemas económicos e políticos que haviam surgido em resultado da revolução em Portugal. A transição negociada em Espanha implicou que a direita democrática não tivesse ficado manchada, pelo menos não com a intensidade e da mesma forma que aconteceu em Portugal. No país vizinho não existiram nem ocupações de terras, nem nacionalizações, nem fugas de capital – incluindo o capital humano relativo a conhecimentos de gestão empresarial – nem se gerou um ambiente hostil à iniciativa privada como aconteceu em Portugal. Os resultados diferenciais para a produtividade da economia são fáceis de observar na Figura 33.[983] Segundo estes dados, calculados por Luciano Amaral, até 1974 a produtividade crescia em paralelo nos dois países, mas a partir daí apareceu uma divergência que se manteve até ao presente.[984] Utilizando uma metodologia alternativa, menos conservadora, outros autores chegaram a conclusões parecidas relativamente à divergência desde o 25 de Abril em relação à Espanha, mas argumentam mesmo que as diferenças foram ainda maiores, e Portugal apenas terá regressado a uma produtividade do trabalho idêntica à de 1973, só em 1990.[985] O que é certo é que Portugal é hoje um dos países da Europa com a
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produtividade do trabalho mais baixa, apresentando até uma perda de competitividade que tem estado a acentuar-se.[986] Considerando a baixa produtividade do trabalho, não é surpreendente que os salários em Portugal sejam dos mais baixos da Europa. Figura 33. PIB por hora de trabalho (produtividade) em Espanha e Portugal.
Em Portugal, o facto de ter existido uma verdadeira revolução em 1974-1975, com um corte radical com o passado (ainda que com pouco sangue derramado), implicou uma transição mais violenta do que a que aconteceu em Espanha. A revolução conduziu Portugal a um processo político que empurrou o país para políticas irresponsáveis e estatistas, tendo o país acelerado e acentuado o seu processo de radicalização durante o chamado «verão quente» que se seguiu à intentona falhada em 11 de março de 1975. No fim desse verão, como escreveu António Barreto, para o Movimento das Forças Armadas «só o coletivismo era agora encarado como solução, enquanto os inimigos eram cada vez mais numerosos».[987] De todo este contexto resultou a aceleração da reforma agrária, que incidiu na zona do país mais direcionada para o mercado (grandes explorações do Alentejo e Ribatejo), as nacionalizações da banca e dos principais setores da economia (incluindo até fábricas de cerveja), bem como os discursos políticos inflamados e de teor socializante – adotados, de resto, pelo menos parcialmente, por todos os partidos principais. Se o espírito de 1974 tinha sido o de penalizar o subaproveitamento e o abandono, na realidade os ocupantes de 1975 preferiram as maiores herdades e as empresas mais modernas e produtivas. Quase todas as grandes empresas seriam ocupadas.[988]
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É significativa a maneira como em Portugal os partidos escolheram nomes que não correspondem, de forma natural, às famílias políticas dos seus congéneres europeus, sendo exemplos disso o PPD/PSD ou o CDS, com este último a assumir-se à época como «centrista», e com vários líderes e ex-líderes do primeiro a reafirmarem, desde então, não ser esse um partido de direita, uma situação sem par a nível europeu.[989] O preâmbulo da Constituição de 1976 – ainda supostamente em vigor – menciona explicitamente o derrube do regime anterior que é apelidado de fascista, e promete abrir o caminho para uma sociedade socialista. Representava o fim, ou mesmo a ilegalização da direita – até da democrática, inocente e crítica dos crimes do regime anterior. Mas muitos dos protagonistas do novo regime, mesmo depois das eleições de 25 de abril de 1975, que mostraram que o país não queria ser comunista, ou do contragolpe das forças moderadas (25 de Novembro), acharam por bem sujar a direita o mais possível.[990] Por isso, associaram-na à ditadura, inclusivamente quando se tratava da direita democrática que rejeitava o regime anterior. Não mais deixaram de o fazer desde então. A ditadura, diabolizada e descontextualizada, chamada de fascista e acusada de ter atrasado o país, tem sido recorrentemente colada à direita democrática, vista como indiferente ao sofrimento do povo e ao desenvolvimento do país. Nenhuma destas acusações, cujo grande sucesso retórico é fácil de reconhecer, é inocente, visando criar uma memória coletiva que, culpando o passado, desresponsabiliza os presentes e assim contribuiu para o atraso. O próprio facto das forças comunistas ou de extrema-esquerda nunca terem tomado o poder, apesar das nacionalizações e da reforma agrária, não demonstrou de forma cabal as suas verdadeiras intenções políticas. Se isso tivesse acontecido por algum tempo, ainda que à custa de muito mais sangue derramado, a cultura e memória política do país teria certamente evoluído de forma diferente.[991] O desprestígio do regime anterior é um grande triunfo para a sinalização de virtude da elite governativa atual que, apelando às emoções, adora assustar o povo com o fantasma de Salazar. O facto de este não ter tocado nas contas públicas, nem ter sido responsável por um número notável de assassinatos políticos, nem ter criado um forte culto de personalidade à sua volta – com um grande número de estátuas, a sua cara nas notas bancárias, e por aí em diante, como aconteceu com outros ditadores –, tornou ainda mais necessário o ênfase na sua suposta grande
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responsabilidade para o nosso atraso, assim como a insistência na ideia de que o regime era fascista. Isso era útil. Mário Soares dera o subtítulo Depoimento sobre os anos do fascismo ao seu livro Portugal Amordaçado, e, como já notei, quando a Aliança Democrática ganhou as eleições de 1979, Soares avisou sobre a ameaça ao regresso do fascismo. [992] Ainda hoje vários políticos continuam a fazer o mesmo.[993] Em 1976, os antigos membros e colaboradores da polícia política do Estado Novo começaram a ser julgados nos Tribunais Militares, tendo existido 2667 processos relativos a pessoal dirigente, técnico e a colaboradores. Cerca de 68% foram condenados a penas de prisão. Como escreve Filipa Raimundo: «A par com os processos de saneamento e a restrição de direitos políticos, estes julgamentos colocaram Portugal entre os países que mais ajustaram contas com o passado internamente». Apesar disto, 95% dos ex-membros da oposição e resistência ao Estado Novo continuam a insistir que «não foi feita justiça», descendo essa percentagem para 65% entre a população em geral.[994] O controlo da memória coletiva é uma estratégia de legitimação de várias forças políticas atuais, que se definem pela oposição ao regime anterior e sua rejeição – talvez até para ocultar a sua ausência de ideias concretas para o país. Essa estratégia não tem abrandado em décadas recentes, até tendo aumentado de intensidade no século xxi. As dificuldades económicas sentidas neste século podem não estar alheias a essa estratégia de mobilização, e mesmo manipulação, da opinião pública – se assim for, veremos então que essa estratégia irá continuar por bastante mais tempo. Vários partidos e movimentos políticos, principalmente à esquerda, utilizam o antifascismo militante como estratégia eleitoral, mostrando desagrado quando outras forças políticas também celebram o 25 de Abril, pois cultivam uma «imagem de marca» segundo a qual a vitória da democracia lhes pertence.[995] O desprestígio do regime anterior tem assim, como consequência, serem valorizadas todas as forças políticas que contra ele lutaram, mesmo aquelas que defenderam e defendem ideias e regimes políticos altamente repressivos. [996] O caso porventura mais notório é o do PCP, partido claramente antidemocrático e que nem sequer queria eleições depois do 25 de Abril. [997] Apesar de se manter ortodoxo (ou seja, fiel à União Soviética) ao contrário de outros partidos comunistas europeus, o PCP sobreviveu mais tempo com um eleitorado fiel, ainda que cada vez mais envelhecido, sempre mitificando o 25 de Abril – como, de resto, também
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fazem o resto da esquerda e da extrema-esquerda. Christopher Hitchens, que visitou Portugal em 1974, observou que por detrás da «festa dos oprimidos» existia uma máquina comunista.[998] E ainda hoje, em pleno século xxi, a diretora do Museu do Aljube é uma ex-deputada comunista sem qualquer formação na área, e que até já afirmou desconhecer os Gulags.[999] Uma cruel ironia num museu que tem o título de Resistência e Liberdade, e em clara contradição com a resolução de 2019 do Parlamento Europeu, que coloca em pé de igualdade os crimes do comunismo e os do nazismo.[1000] Nestas matérias, Portugal comporta-se como o terceiro mundo da Europa. Mas tudo isto resulta do complexo contexto da História política do país no século xx. Como já mencionei, o período da década imediatamente a seguir ao 25 de Abril correspondeu a uma divergência económica com a Europa Ocidental.[1001] Isto não é surpreendente. Como referi, a atmosfera revolucionária – marcada por ocupações de terras, nacionalizações, fugas de capital, e subidas de salários sem correspondentes subidas de produtividade –, não foi conducente ao crescimento económico. Uma das principais figuras do 25 de Abril e dos anos seguintes, Otelo Saraiva de Carvalho, continuou envolvido em atividades terroristas de extremaesquerda durante os anos 1980, pelas quais acabaria por ser preso, sendo finalmente amnistiado por motivos políticos.[1002] Mesmo em meados dos anos 1990, considerava-se que condenar um operacional tão importante para o 25 de Abril podia ser visto como uma condenação da Democracia. Como nota Nuno Gonçalo Poças, a sociedade fez por esquecer os sete anos de terrorismo violento das FP-25. Ao contrário do que aconteceu em Espanha com a ETA, nunca houve manifestações, a criação de associações de representação das vítimas e dos seus familiares, ou mesmo uma mobilização nacional de repúdio ao terrorismo.[1003] Pelo contrário, políticos como Maria de Lourdes Pintasilgo, que tinha sido Primeira-Ministra e era candidata às eleições presidenciais de 1986, repetiam a tese, absurda, dos acusados, de que eram presos políticos: «Portugal entrou no rol de países que violam os direitos humanos».[1004] Mais de uma década depois da Revolução, Portugal não tinha ainda perdido a comoção revolucionária. E num certo sentido, nunca a perdeu. Do ponto de vista económico, o 25 de Novembro apenas travou, largamente, um processo perigoso que estava em andamento. Travou, mas não o reverteu. Foi também por isso necessária a intervenção de emergência do FMI em 1977 e 1983, como já referi. A própria
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democracia demorou tempo a consolidar-se.[1005] Em finais dos anos 1970, António Barreto, ministro da Agricultura entre 76 e 78, já tinha acabado com a reforma agrária – as expropriações e ocupações de terras, especialmente no Alentejo, pelas chamadas Unidades Coletivas de Produção e pelo PCP. Mas muitas das políticas económicas do Processo Revolucionário em Curso (PREC), na verdade, ainda continuavam em vigor em meados dos anos 1980. Tudo viria a mudar gradualmente, em especial a partir da adesão, em 1986, de Portugal à CEE. As políticas seguidas por Luís Mira Amaral, ministro da Indústria e da Energia dos governos de Aníbal António Cavaco Silva, a partir de 1987, conduziram a uma certa normalização do país a nível económico, pelo menos temporariamente.[1006] Muitas empresas públicas (nacionalizadas nos anos anteriores) seriam outra vez privatizadas, e o Programa Específico de Desenvolvimento da Indústria Portuguesa (PEDIP), atribuído a Portugal no contexto da adesão à CEE, ajudou à modernização e aumento de competitividade da indústria portuguesa – tendo até mais tarde influenciado a UE quando se desenvolveu, a partir de 1991, o processo de transição nos países do Centro e Leste da Europa.[1007] Esse programa tinha uma componente relativa a infraestruturas desenhada por Bruxelas, mas também previa variadas ações no domínio da produtividade e qualidade industrial.[1008] Mais tarde, a Comissão Europeia acabou mesmo por reconhecer o PEDIP, e designadamente o Programa de Engenharia Financeira do PEDIP, como referências adequadas para o processo de transição dos países do Centro e Leste europeu para economias de mercado e para a integração na então CEE. Ou seja, Portugal mostrava o caminho, porque também tinha tido uma transição de regresso a uma economia de mercado, ainda que menos drástica do que o caminho que os países do outro lado da antiga Cortina de Ferro precisavam então de percorrer.[1009] Nessa época foram terminadas em Portugal algumas políticas económicas nocivas que ainda sobreviviam desde o Processo Revolucionário em Curso – como, aliás, é notório pela divergência da economia portuguesa, em relação à Europa, durante a década de 19751985. Foi então possível reverter alguns dos bloqueios da economia portuguesa. Um exemplo particularmente elucidativo é o que aconteceu num setor estratégico como a energia. Na segunda metade dos anos 1980, várias Câmaras Municipais do país recusavam-se a aplicar o tarifário nacional dos preços da eletricidade para os consumidores,
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praticando antes preços de eletricidade muito abaixo dos valores nacionais que eram aplicados, pelo menos, desde o PREC. Era preciso acabar com essa situação e a primeira câmara a ser dada como exemplo foi a Câmara Municipal do Porto, que era do partido do governo.[1010] Os Serviços Municipalizados de Gás e Eletricidade atualizaram o tarifário, passando a pagar os valores em vigor para o continente, tendo-se depois, mais tarde, regularizado a situação nesses serviços. Noutros casos, como a Câmara Municipal de Valongo, que era do PS, foi mesmo cortada a luz, obrigando a uma rápida resolução. Com tudo isto, o elevado passivo que a EDP tinha, por via de os consumidores não pagarem eletricidade – ou pagarem-na bem abaixo dos valores do tarifário praticado no continente –, começou a reduzir-se. Isto contribuiu para a recuperação económicofinanceira da EDP, o que permitiu depois significativas reduções dos preços da eletricidade para empresas e famílias. Sentindo a mudança dos tempos, os próprios hospitais e outros organismos públicos passaram a pagar os preços nacionais por sua iniciativa. Estas reformas ajudaram Portugal a regressar a uma economia de mercado, o que se refletiu no crescimento da economia entre meados dos anos 1980 e o final da década seguinte.[1011] Ou seja, a convergência da economia nessa época não foi apenas devida à maior integração com a Europa durante o período 1985-2000. Mas é também de notar que, relativamente às privatizações, muitas coisas não viriam a correr bem. Em muitos casos, substituíram-se, na prática, monopólios públicos por monopólios ou oligopólios privados, o que levou a preços altos em setores como a energia, as telecomunicações, e os serviços bancários.[1012] Deu-se a captura ou controlo político indireto das entidades regulatórias, mantendo-se assim a falta de concorrência.[1013] A Autoridade da Concorrência tem sido partidarizada, com a distribuição de quotas na administração por pessoas próximas dos partidos políticos, sendo que o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão não se tem mostrado eficiente.[1014] A justiça tem um problema tanto conjuntural – estando congestionada, com uma dilação processual excessiva, e sem a celeridade adequada às necessidades económicas e sociais – como estrutural, existindo uma cultura jurídica e judiciária afastada da realidade do século xxi.[1015] Num contexto em que as agências regulatórias são capturadas ou têm a sua independência comprometida, mais valia existir o modelo anterior das
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Direções Gerais. Esse não só ficava mais barato, como também era mais transparente, já que a responsabilidade política do que corresse mal ficaria mais clara; de outra forma os governos lavam as mãos facilmente. A insistência nos «centros de decisão nacional» – sujeitos a influência política – também nunca foi boa, sendo até possível argumentar que, na prática, tudo não passou de uma política moderna de condicionamento industrial.[1016] Como já referi atrás, Portugal nunca foi um país liberal, o deveria significar, em termos económicos, a defesa da livre concorrência que beneficia os consumidores – e não a proteção de lucros de monopólios ou de rendas de ordens profissionais. É portanto mais correto, na minha ótica, descrever o país que existe nas últimas décadas como tendo um ambiente contrário à livre concorrência do que como apenas um país com um viés ideológico ou mentalidade «de esquerda». [1017] Mas o essencial é entender que são baixos os níveis de concorrência nos mercados de bens e serviços, e mesmo «à direita», confunde-se frequentemente a defesa do mercado ou do «setor privado» com a defesa dos lucros, muitas vezes de natureza monopolista, conseguidos à conta da proximidade ao poder político, como referi.[1018] Existem estudos empíricos detalhados que mostram que a economia portuguesa tem um nível de competitividade baixa, das mais baixas da UE, sem que se note uma tendência de evolução nas últimas décadas.[1019] Nesta matéria, existe mais continuidade entre a democracia atual e os regimes anteriores do que possa parecer. Por contraste, devido à contingência histórica de terem vivido o comunismo, os países da Europa do Leste – pelo menos os que ficaram na órbita da UE – acabaram por apostar numa economia de mercado (embora mista) de uma forma mais completa e equilibrada que Portugal.[1020] E isso ajuda a explicar o facto de hoje nos estarem a ultrapassar. O partir do início do século xxi, Portugal estagnou. As ineficiências e desorganização da década seguinte ao 25 de Abril estavam resolvidas, mas o modelo de desenvolvimento industrial português esgotou-se, gerando grandes desequilíbrios externos, com a concorrência de economias em ascensão, como a Europa do Leste e a China (que entrou na Organização Mundial do Comércio em finais de 1999) a sentir-se cada vez mais. A Maldição dos Recursos apareceu, começando a ter os fundos europeus um efeito líquido negativo para o país, tanto em termos económicos como institucionais. Mais de duas décadas depois, nos
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nossos dias, Portugal já é dos países mais pobres da UE, tendo sido ultrapassado por quase todos os países da Europa do Leste que eram muito mais pobres nos anos 90 do século xx. Um país bloqueado, mas em negação Portugal é hoje um país bloqueado, mas em negação. Metade do eleitorado abstém-se, com a oposição ao partido político dominante do regime a não encontrar grande adesão popular, apesar dos graves problemas evidentes.[1021] Os dois principais partidos da democracia tornaram-se parecidos, estando ambos enredados em compromissos de caciques e clientelas, ainda que o partido dominante tenha mais para distribuir. Apostam no adiamento das consequências das más políticas públicas e na compra de votos com facilitismos. O método D’Hondt, utilizado para converter votos em mandatos, combinado com a não existência de um círculo de compensação, tende a favorecer os partidos maiores, e a adiar um debate sério sobre as reformas necessárias. Entretanto, os políticos com poder frequentemente dizem uma coisa a nível interno e outra nas instâncias europeias, o que sugere estarem mais conscientes dos problemas do que a sua ação política interna aparenta. [1022] Ao tentarem cumprir pelo menos parte das suas promessas demagógicas, sem fazerem reformas profundas, o resultado é o aumento dos impostos e a caça a mais fundos europeus, recomeçando um círculo vicioso. O que explica a ausência de políticas reformistas é a falta de procura do eleitorado por movimentos políticos que as defendam. Isto acontece porque o dinheiro que entra vai servindo como aspirina rápida em resposta à doença da economia, impedindo que as consequências das más decisões políticas sejam sentidas na sua plenitude. Ou seja, os fundos europeus que, em teoria, têm apenas um objetivo de natureza económica – nomeadamente a convergência entre as várias regiões do continente – na verdade, estão a ter efeitos políticos, colaterais e não necessariamente desejados. Estes efeitos não são reconhecidos a nível europeu, mas ainda assim são reais: ajudam quem está no poder a perpetuar-se, beneficiando o status quo. Os fundos não estão a desenvolver o país: estão a atrasá-lo. O seu fim levaria a uma crise e a uma reflexão profunda, que é necessária, mas que tem sido adiada. Portugal é um país anestesiado pelas ajudas europeias, vistas 307
repetidamente como a salvação do país, e relativamente às quais as queixas constantes que ouvimos se prendem meramente com a falta de execução. Numa democracia, é através das urnas que a população expurga os políticos incompetentes (ou mesmo, nalguns casos, corruptos). Mas para isto acontecer, é necessário que o povo sinta no bolso as consequências da má governação, para que queira mudar. As ajudas europeias são uma aspirina ou um penso rápido que esconde os sintomas e amortece esse mecanismo da democracia – e que, além deste canal político, também distorcem a economia de outras formas, como acontece, por exemplo, no que toca à subida dos preços do setor não transacionável da economia, relativamente aos bens potencialmente competitivos no mercado externo. Um país antiliberal sem recursos europeus (portanto, onde os eleitores pagariam os verdadeiros custos das más escolhas políticas), ou um país mais liberalizado com recursos europeus (ou seja, onde existiria mais pluralismo de pensamento político) produziriam uma dinâmica distinta. Mas um país profundamente antiliberal com recursos europeus, que é o que existe, perpetua as elites extrativas e continua a alimentar o Capitalismo de Estado que estagna Portugal.[1023] O atraso do país nos nossos dias tem, portanto, causas que são tanto internas como externas. Os políticos do presente gostam em particular de atribuir as causas do atraso a fatores de ordem imutável – como o tamanho ou a localização geográfica do país – ou então a fatores históricos que sejam da responsabilidade de governos ou regimes anteriores, como o Estado Novo.[1024] Isto é-lhes conveniente, pois dá um peso determinístico e inevitável ao atraso e, como tal, iliba-os de responsabilidades. Este livro mostra que há efetivamente razões de ordem histórica para o atraso. Mas não subscrevo a tese de que o atraso é hoje inevitável e sem responsabilidades dos políticos atuais. Pelo contrário: são as más instituições políticas do presente e a ausência de reformas das mesmas, ainda que em parte devido a condicionamentos históricos e culturais, o mecanismo que mantém o atraso como está (e vai continuar). A nossa História ajuda a compreender as escolhas do presente. Por exemplo, o muito baixo nível de literacia financeira da população – estamos no fim da lista a nível europeu – ajuda a explicar não só a baixa produtividade do trabalho, mas também a passividade do povo relativamente às péssimas escolhas de políticas públicas frequentemente feitas pelo Estado, ou antes, pelos políticos que agem em
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nome do Estado.[1025] Um exemplo – que a seu tempo pouco importará, mas que aqui dou, apenas a título ilustrativo – foi o «investimento» de mais de três mil milhões de euros na TAP durante os anos da pandemia COVID-19 e seguintes.[1026] As políticas públicas em Portugal são sistematicamente erradas e quase nunca se responsabiliza, ou sequer se avalia, o desempenho dos atores que nelas intervieram. Os exemplos dos maus investimentos públicos, sem grande retorno – a não ser para os administradores e os seus associados na forma de salários generosos – são inúmeros: basta pensar nos estádios de futebol quase abandonados ou no aeroporto de Beja. Mas os investimentos em capital físico continuam a dominar, ficando o capital humano para trás. Não se aprendeu nada com o «fontismo» do século xix. É de resto a própria União Europeia a admitir que a qualidade rodoviária em Portugal é hoje melhor que a média europeia, e comparável à da Alemanha ou França.[1027] Sendo, aliás, esse investimento também um exemplo de escolhas políticas fiscalmente regressivas, por contraste com o que aconteceria se o investimento tivesse sido na ferrovia, à qual falta qualidade.[1028] Como é evidente para quem tenha lido este livro, considero que a questão das infraestruturas é secundária. Mais relevante é a existência de um ambiente de concorrência justa e livre, a qualidade do sistema educativo, os incentivos à produção científica, e a avaliação das políticas públicas. Estas devem ter qualidade, mas na realidade não acompanham os níveis de investimento e qualidade da infraestrutura física em Portugal. A população, envelhecida, pobre, e com níveis baixos de educação, tem preferência pela despesa pública que a beneficie de imediato, considerando secundários os investimentos relativos à «economia do conhecimento», cujos retornos iriam ser principalmente usufruídos no futuro.[1029] Também por isto, não surpreende que os governos vivam apenas para a gestão de curto prazo. Nada disto tem de ser assim, mas também não é possível dizer que as responsabilidades do atraso do país são hoje apenas internas: perversamente, as políticas europeias, relativamente aos fundos comunitários, ainda que possam ser bem-intencionadas, têm tido o efeito contrário ao desejado: aprofundam o nosso atraso. Mas para a UE, o nosso país tem reduzida importância, e não existe uma noção clara do problema, que continua a ser adiado. Portugal está a falhar – como economia e como democracia. Sendo um historiador económico, estou mais habituado a analisar o passado do que a prever o futuro, atividade sempre arriscada. Qualquer previsão
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honesta tem de incluir probabilidades condicionais. Ou seja, a questão de saber qual dos muitos futuros possíveis se materializará depende de vários fatores, uns mais previsíveis do que outros, e grande parte deles exteriores à economia e sociedade portuguesas. O que posso dizer é que, se as atuais tendências continuarem – e tudo indica que assim será –, dentro uma década, Portugal poderá ser o país mais pobre da União Europeia. Será a cauda da Europa em todos os sentidos: um país envelhecido, com poucas oportunidades para os jovens e os pobres, mesmo os mais trabalhadores e talentosos. Será o país do compadrio, dos conflitos de interesses nas nomeações, das portas giratórias entre regulados e reguladores, dos impostos altos, mas com má oferta de serviços públicos, das péssimas políticas públicas sem avaliação de desempenho, mas com opiniões avulsas de comentadores que não têm visão nem independência. Portugal terá um Estado (ainda mais) capturado e será um país de baixa mobilidade social, sem qualquer justiça intergeracional. O Estado será financiado por uma minoria, com um setor privado da economia fraco, e onde as poucas empresas de dimensão média ou grande estarão altamente dependentes de negócios com o Estado e, como tal, da proximidade ao poder político. Um país desigual, sem quadros médios, e mal-adaptado à mudança tecnológica. Será talvez um país excessivamente dedicado ao turismo, uma atividade de baixo valor acrescentado e caracterizado por salários baixos, pouco diferenciados. Olhar para Portugal como um caso perdido não é uma visão distópica do futuro. Tudo indica que é este o destino que nos espera. Outro caminho parece improvável, mas o pior não é uma inevitabilidade. Convém não esquecer que nem sempre tudo correu mal na nossa História. Durante a segunda metade do século xx, como expliquei neste livro, o país teve duas fases de rápida convergência relativamente à Europa Ocidental, a segunda das quais já em democracia. Isso pode voltar a acontecer. Tudo depende das escolhas que fizermos e das que forem feitas por nós. Portugal tem de se tornar um país adulto e independente, porque viver à conta do exterior, como se faz há décadas, não é um modelo de desenvolvimento viável. Como é evidente, dificilmente os políticos vão reconhecer o problema, preferindo afirmar que os problemas são culpa «dos outros» – sejam esses os seus opositores políticos presentes, ou os regimes passados – e que, quando é (ou for) o lado «deles» a mandar, tudo é (ou
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será) diferente. Isto é, na melhor das hipóteses, um equívoco. Era inevitável que a chegada de fundos desta dimensão ao país criasse problemas da natureza que descrevi. As transferências de fundos também poderão prejudicar os países comunitários da Europa do Leste, mas, por enquanto, esses países receberam menos dinheiro – e valor total e por menos tempo – do que Portugal. Além disso, como já referi, a sua experiência histórica com o estatismo que dominava nesses países antes da sua transição nos anos 1990 também os tem ajudado a matar certas ilusões que persistem no nosso país. Portugal não tem capital humano, nem instituições suficientemente fortes, para que seja possível uma aplicação eficiente dos fundos europeus. Por isso mesmo, o melhor é terminarem.[1030] Não é surpreendente o que está a acontecer a Portugal. A falta de reformas estruturais leva à perpetuação de elites endogâmicas, não só políticas, mas também empresariais. As elites académicas e intelectuais, que teriam a obrigação de fazer um diagnóstico isento e lançar o alerta sobre o que está a acontecer ao país, confundem-se na prática com os anteriores grupos, num caldo de conflitos de interesse e de ideologia disfarçada de ciência. Não existe um debate intelectual sério sobre o atraso estrutural do país nem sobre a sua atual divergência. São já 4,4 milhões de portugueses – quase metade da população – que estão no limiar da pobreza (560€/mês), ou abaixo desse limiar.[1031] Até os jornais já falam disso abertamente, ainda que ignorem a verdadeira fonte dos problemas. É notório como Portugal tem caído bastante em vários indicadores internacionais comparados e relativos à qualidade das instituições políticas. No relatório World Governance Indicators, do Banco Mundial, na categoria «eficiência governativa», o país caiu sistematicamente entre 1996 e 2007, depois recuperou parcialmente, chegando a um máximo em 2017, mas, entretanto, tem voltado a cair. Já na «qualidade da regulação» e no «controlo da corrupção», o país tem vindo a cair continuamente deste 1996.[1032] Neste livro, expliquei que o baixo crescimento da produtividade da economia, assim como o consequente atraso português, se explicam por causas fundamentais, que por sua vez se dividem em causas históricas – logo, profundas, o que não implica serem imutáveis – e em causas contemporâneas, que se relacionam com as anteriores. Não é possível compreender a natureza extrativa e endogâmica da sociedade portuguesa contemporânea sem considerar a relação entre essas forças. As teses
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deste livro podem, portanto, ser sumarizadas – de forma algo simplista, como é evidente, mas ainda assim esquemática e, como tal, útil – na Figura 34. Figura 34. Resumo das causas fundamentais, intermédias, mecanismos, e consequências, que explicam o atraso do país.
[880] Estes mitos, apesar de serem tão falsos como outros veiculados desde épocas remotas, como é o caso das Cortes de Lamego, tendem a perpetuar-se e influenciam negativamente a ação dos povos, acabando por ser uma causa de atraso. [881] E, sem dúvida, alguns também beneficiam da situação atual, que não querem que mude, apesar de prejudicar a maioria, e em particular os mais pobres, os mais jovens, e as gerações futuras. [882] Assim o fez, por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa em junho de 2023. Veja-se JORNAL DE NOTÍCIAS (2023b). [883] Portugal é considerado uma democracia limitada e com falhas em relatórios e bases de dados internacionais. A revista The Economist considera que Portugal não é uma democracia plena, e a última versão da base de dados «Varieties of Democracy», da Universidade Gotemburgo, considera mesmo que Portugal é o único país da Europa Ocidental que não é uma democracia liberal, mas apenas uma democracia eleitoral. Veja-se ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT (2022), e V-DEM (v. 13). Por contraste, a União Europeia insiste numa visão demasiado otimista sobre os problemas da democracia e da justiça em Portugal, apontando problemas apenas em países com a Hungria ou a Polónia. Veja-se COMISSÃO EUROPEIA (2023). [884] Ainda que isto possa não ser verdade para toda a população, nomeadamente para os jovens. [885] Consultar a Figura 28 do capítulo anterior. Também é notória a queda do consumo de muitos alimentos pela Tabela 5 do capítulo anterior, comparando os números de 1977 com os de 1974. Essa queda poderá ter sido ainda maior do que a Tabela indica, pois, como notei anteriormente, para o ano de 1977 a fonte original não indica de forma clara se se está a
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contabilizar o peso da parte não comestível dos alimentos (por exemplo, a casca do arroz). Como tal, o consumo nesse ano, para os alimentos que têm osso ou casca, poderá ter sido até mais baixo. [886] AMARAL (2019). [887] Sobre este período e em particular a reforma agrária, o livro incontornável é BARRETO (2017). [888] AMARAL et al. (2020). [889] Isto que não era possível fazer para o período anterior a meados dos anos 1980, devido à falta de dados para países da Europa do Leste. [890] A fonte é a base de dados Maddison Project. Veja-se BOLT e VAN ZANDEN (2020). Agradeço a Jutta Bolt ter-me enviado uma versão mais atualizada que inclui os dados até 2021. Os resultados de 2022 ainda não estavam disponíveis no momento da escrita deste livro. [891] ALEXANDRE et al. (2017). [892] Agradeço a Pedro Magalhães, que leu uma versão preliminar deste capítulo, a sugestão de que este ponto merecia ser enfatizado. [893] Assim como a negação da utilidade de olhar para o comportamento do PIB ou mesmo dos números em geral, como se estes não fossem relevantes (quando contextualizados) para compreendermos que políticas públicas é que podem melhorar o bem-estar das pessoas. [894] WORLD INEQUALITY DATABASE (s.d.). Consultada em 17 de agosto de 2023. [895] CARNEIRO (2008). [896] CAUSA e JOHANSSON (2010), nomeadamente as pp. 10, 25. [897] Para além do Estado Social propriamente dito, pode ser dado também o exemplo da justiça administrativa e fiscal, que é incapaz de tomar decisões em tempo útil, nomeadamente nas questões da criminalidade económico-financeira, mas continua sem as reformas necessárias. [898] Estes dois fatores também se ligam porque os baixos níveis de capital humano da população contribuem para a sua aceitação, ou pelo menos para a indiferença, relativamente à expressão «à justiça o que é da justiça», frequentemente usada para proteger casos em que a lentidão e ineficiência dos tribunais facilita a corrupção, o tráfico de influências, e o branqueamento de capitais. Como deveria ser evidente, a separação dos poderes diz respeito a casos concretos, mas não à eficiência judicial no seu todo, que é, e apenas pode ser, uma responsabilidade política. Veja-se GAROUPA (2011). Sobre o facto da justiça portuguesa ser das mais lentas e ineficientes da Europa, veja-se EUROPEAN COMMISSION (2023), ficando a ressalva de em geral não existirem dados que comparam exatamente tribunais administrativos e fiscais porque muitos países não têm este tipo de tribunais. [899] Darei alguns exemplos neste capítulo. Sobre esta matéria vale também a pena consultar ALEXANDRE et al. (2016).
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[900] Para ser mais rigoroso, nem sempre todos os países da Europa aparecem nestes estudos, mas entre os países que aparecem Portugal fica colocado sistematicamente em último lugar. ECO (2022); OCDE (2023). [901] Ainda assim, não posso deixar de notar que no caso da Irlanda – e do Luxemburgo assim como dos Países Baixos, sendo estes países claramente não periféricos –, o bom comportamento da sua economia se deve, pelo menos em parte, a políticas fiscais a que a União Europeia deveria prestar mais atenção, porque se implementadas por todos os Estados-Membros levariam a resultados que seriam piores para todos. Também Portugal apostou, ainda que de forma diferente, numa política semelhante, mas com uma incidência diferente: os «vistos gold». Todas estas políticas são pouco sustentáveis para a UE considerada no seu todo, mas não me alargo aqui sobre esta matéria pois sai ligeiramente do âmbito do presente livro. [902] NOVO (2023). [903] MATEUS (2013), p. 512. As contas exatas são mais difíceis de fazer do que possa parecer, porque é preciso apurar os valores exatos das transferências anuais e dividir esses valores nominais de todos os anos pelo PIB nominal de cada ano. Este último, por exemplo, correspondeu a cerca de 240 mil milhões em 2022. Veja-se BANCO DE PORTUGAL (2023). Como é evidente, é algo arbitrário comparar valores relativos a um programa plurianual com o PIB de um ano, em média, mas esta é uma medida simples e convencional, embora uma interpretação mais rigorosa implique apresentar resultado em unidades de tempo (anos ou meses de PIB), e não em percentagens «médias» do PIB anual. [904] JORNAL DE NEGÓCIOS (2023b). [905] Ou seja em termos totais, em euros, sem ter em conta o tamanho da população do país. Portugal foi o terceiro país que mais recebeu financiamento estrutural da UE em termos absolutos (valores nominais, em euros) entre 1989 e 1999, e o quarto que mais recebeu entre 2000 e 2006. Para os valores comparados do financiamento estrutural médio em percentagem do PIB, e em milhões de euros, veja-se MATEUS (2013), p. 512. [906] LIARGOVAS et al. (2015), p. 10; MATEUS (2013), p. 512. [907] Ana Carla Almeida ficou conhecida pela interferência do Governo contra a sua nomeação para a Procuradoria Europeia quando já se sabia que viria o PRR. Inicialmente, foi anunciado que viriam 50 mil milhões, entre os quais cerca de 16,6 mil milhões correspondiam ao PRR. No entanto, o PRR já foi reprogramado para mais de 22,2 mil milhões, incluindo 5,9 mil milhões em empréstimos. Veja-se OBSERVADOR (2022b), ECO (2023a). [908] Para o cálculo dos 3% relativos ao PRR, usei o PIB nominal de 2022 como ano de base. A percentagem poderá ser superior se o PRR for outra vez reprogramado ou se a evolução do PIB for negativa, especialmente num contexto de inflação que poderá voltar a ser baixa. Se os atrasos implicarem que grande parte da execução fica concentrada nos anos finais do PRR, poderá haver anos com percentagens totais claramente superiores a 4%, ou mesmo 5%, do PIB. [909] Apesar da retórica vazia das reformas, em sentido contrário. [910] EUROPEAN COMMISSION (2021), pp. 270-271. [911] EUROPEAN COMMISSION (2021), pp. 294-295.
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[912] Noto que, segundo o Artigo 147.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, «A fim de promover um desenvolvimento harmonioso do conjunto da União, esta desenvolverá e prosseguirá a sua ação no sentido de reforçar a sua coesão económica, social e territorial (…) a União procurará reduzir a disparidade entre os níveis de desenvolvimento das diversas regiões e o atraso das regiões menos favorecidas (…) é consagrada especial atenção às zonas rurais, às zonas afetadas pela transição industrial e às regiões com limitações naturais ou demográficas graves e permanentes, tais como as regiões mais setentrionais com densidade populacional muito baixa e as regiões insulares, transfronteiriças e de montanha.». Veja-se UNIÃO EUROPEIA (2016). [913] Desde 1981 que a Grécia beneficia de ajudas da Europa, e há décadas que estas constituem 2,4 a 3,3% do PIB anual desse país. Os resultados, tal como no caso de Portugal, não têm sido positivos. Mas Portugal recebeu ainda mais dinheiro do que a Grécia. Veja-se LIARGOVAS et al. (2015), pp. 5-10. Sobre as consequências políticas negativas dos fundos para a Grécia, veja-se HILIARAS & PETROPOULOS (2016). [914] KEDROSKY e PALMA (2024). [915] Ver, por exemplo, PALMA (2020c), PALMA (2021a), ou ainda PALMA (2022b). [916] Tudo isto enquanto investimentos fundamentais que requerem planeamento de longo prazo são adiados, mesmo quando se trata de infraestruturas físicas, como por exemplo o novo aeroporto de Lisboa. [917] A UE tem tido efeitos positivos a outros níveis nas instituições. Exemplos: o fim do sigilo fiscal e bancário, que permite a investigação criminal e o combate ao branqueamento de capitais, como não havia nos anos 1990 (tornou possível a Operação Marquês); ou a supervisão dos grandes bancos pelo BCE (posterior ao BES). [918] Sobre estas matérias e outras relacionadas, veja-se GRATTON et al. (2021). [919] OCDE (s.d.). [920] Apesar de alguns movimentos novos que surgiram nos últimos anos, sobretudo na esfera do setor público. [921] Sobre estas matérias, e em particular sobre a perspetiva das reformas na legislação laboral portuguesa que poderiam ser benéficas para o emprego, veja-se HIJZEN e MARTINS (2020); MARTINS (2021b); MARTINS (2021a); e OCDE (2017). [922] COMPARATIVE CONSTITUTIONS PROJECT (2016). Ver em particular a última coluna, «number of rights». [923] Isso mesmo também sugere a citação em epígrafe de António Vieira com que abri este livro, apesar do seu contexto imediato estar relacionado com uma falsa esperança castelhana relativa a Portugal. [924] Esta utilização do termo «fascismo» é tão abrangente quanto vazia de conteúdo. A direita portuguesa, que apesar de tudo existe (mais nas bases do que nos líderes partidários), envergonhada pelo menos em parte com o sucesso dessa retórica que a associa ao «fascismo», cedeu ao longo do tempo a muitas das lógicas estatistas que são tradicionalmente de esquerda,
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pelo menos nas democracias – ainda que a dimensão mais relevante seja serem antiliberais, como explico mais à frente neste capítulo. Num país em que o peso do Estado na economia ronda os 50%, as acusações de «neoliberalismo» são também absurdas. [925] Aproveito para notar que, se por um lado os impostos altos são apenas um mecanismo e não o problema fundamental, por outro eles são de facto altos, especialmente tendo em conta que a má qualidade dos serviços públicos levam muitas pessoas a colocarem os filhos em escolas privadas, a ter um seguro de saúde privado, e um Plano Poupança Reforma, por exemplo. Ou seja, pagam a dobrar. [926] DIÁRIO DE NOTÍCIAS (2023c); DIÁRIO DE NOTÍCIAS (2023a), CRISTO (2023). Sobre a importância da educação pré-escolar, veja-se CARNEIRO e HECKMAN (2003). [927] Os investimentos públicos na saúde oral estão a ser feitos – sem surpresas – com recurso ao PRR. Veja-se GOVERNO DE PORTUGAL (2023a). Consultado em 10 de setembro de 2023. [928] FARIA-E-CASTRO (2021). Note-se também que apesar da aprovação do Orçamento do Estado ser da responsabilidade da Assembleia da República, na prática, as cativações feitas no Ministério das Finanças dão-lhe uma discricionariedade que, pelo menos, é pouco transparente, e até discutível se é constitucional. [929] JORNAL ECONÓMICO (2020). [930] RÁDIO RENASCENÇA (2023a). [931] COSTA (2023). [932] Apesar de desde há muitos anos o Eurosistema (BCE e bancos centrais nacionais dos Estados-Membros da UE que adotaram o euro) ter estado a comprar dívida pública, considerouse que isto não aconteceu em contravenção ao Artigo 21.º do estatuto do BCE, até por ter sido anunciado, e existir a expetativa, que os ativos viriam a ser vendidos. No entanto, apesar de ter sido considerado que isto não era um financiamento direto por ter sido anunciado que seria uma situação temporária, com o alargamento do tempo em que o balanço do BCE mantém tanta dívida pública é legítimo levantar dúvidas sobre isso. Veja-se BANCO CENTRAL EUROPEU (2002), e EUROPEAN CENTRAL BANK (2023). [933] DIÁRIO DE NOTÍCIAS (2023b). [934] PALMA (2020c). [935] DINHEIRO VIVO (2021); JORNAL DE NEGÓCIOS (2023a). [936] JORNAL DE NOTÍCIAS (2023a); EXPRESSO (2023). [937] O consenso sobre esta matéria é de tal forma generalizado que não faz sentido destacar exemplos para além das principais figuras com responsabilidades públicas; abro uma exceção com o objetivo de mostrar que esse consenso chega mesmo a pessoas próximas do partido com assento parlamentar que defende menos intervenção do Estado na economia. Veja-se ARROJA (2022).
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[938] Ver, por exemplo, SIC NOTÍCIAS (2023); e TSF (2022). [939] Em rigor, considero um erro o compromisso de enviar dinheiro. E que, havendo esse compromisso, quanto menos for executado, melhor para o país. Como é evidente, há que prestar contas pelo financiamento recebido. Logo, o problema não é tanto a execução em si, mas sim a própria existência destes fundos de volumes colossais. [940] As notícias sobre esta matéria são frequentemente contraditórias, mas não parece existir informação de que os níveis de fraude em Portugal com estes fundos sejam muito diferentes dos níveis médios dos outros países. OBSERVADOR (2020); e OBSERVADOR (2022a). No entanto, a falta de informação pode ser simplesmente devida a um sistema de deteção de fraude inadequado, ou seja, relacionado com a justiça lenta e disfuncional do país. OBSERVADOR (2023b). [941] EUROPEAN ANTI-FRAUD OFFICE (s.d.), onde ser lê: «Cooperation with national authorities and operational partners in international organisations is very important. They often have major control responsibilities in projects financed by the EU; OLAF may not have sufficiently effective investigative powers of its own.». Página visualizada em 27 de junho de 2023. Ver ainda OCDE (2019). [942] ALEXANDRE (2021); ALEXANDRE et al. (2022). [943] GABRIEL et al. (2022). [944] No oitavo relatório sobre a coesão económica, social, e territorial da União Europeia, de 2022 – com o título «Coesão na Europa para 2050» – a comissária para Política de Coesão e Reformas e o comissário do Emprego e Direitos Sociais questionam alguns aspetos de implementação, mas insistem que a política de coesão é um motor de convergência para a Europa. Consultar UNIÃO EUROPEIA (2022). [945] PÚBLICO (2023). [946] ECO (2023b). [947] Como é evidente, dou este exemplo a título ilustrativo. No que diz respeito às drogas, em certos casos o desmame gradual pode ser o mais recomendado pelos médicos. Já no que respeita ao país, não me parece que um desmame desta natureza fosse o ideal, ainda que as pessoas mais pobres tivessem de ser protegidas da crise imediata que resultaria. [948] EUROCID (s.d.) [949] A UE representa um conjunto de instituições e políticas, também relativas à política aduaneira dos Estados-Membros, e ao livre movimento de pessoas, por exemplo. A UE não se limita às ajudas, apesar do espaço mediático que lhes é dado em Portugal. Ou seja, seria perfeitamente possível acabar com as transferências dos fundos europeus, mas manter os aspetos positivos da UE. [950] JORNAL DE NEGÓCIOS (2023c).
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[951] São 150 milhões de euros para o património cultural, 93 milhões para redes culturais e transição digital, e 40 milhões para a reabilitação e conservação do património cultural nacional. GOVERNO DE PORTUGAL (2023b). Consultado em 7 de julho de 2023. [952] CNN PORTUGAL (2023). [953] As dinâmicas recíprocas entre a política e a economia implicam que as instituições políticas débeis e capturadas pelos interesses prejudiquem a prazo o desenvolvimento económico. É um ponto que merece reflexão em Portugal. O Marquês de Pombal foi exemplo disso: subiu ao poder num contexto problemático propício a lideranças fortes, mas depois ele próprio aprofundou os problemas. [954] Também não é evidente a avaliação do impacto dos fundos para os países excomunistas, pois nada impede que estejam ou venham a ter um impacto negativo mas por enquanto insuficiente, em termos líquidos, para travar a convergência. Para alguma informação relativa à Hungria, veja-se MURAKOZY e TELEGDY (2023). [955] PEREIRINHA (2023). Este é apenas mais um exemplo de um entre muitos artigos que analisam os números de 1973 sem considerar a sua evolução nas décadas (ou mesmo séculos) anteriores. [956] PIMENTEL (2022). Consultado em 30 de agosto de 2023. [957] Sendo esta mais mito que realidade: o número dos funcionários públicos aumentou muito durante o Estado Novo, e o Estado intervinha em força em certos setores da economia. Abordámos essa realidade no capítulo anterior. [958] BARRETO (2017), p. 114. [959] BARRETO (2017), pp. 108-109. [960] É notório que esta seleção é frequentemente feita com critérios alheios ao mérito académico. Ainda que existam concursos formais, na prática os fatores de lealdade pessoal e partidária são mais importantes. A academia portuguesa tem dos níveis de endogamia académica mais elevados da Europa (SOLER 2001), p. 132. [961] O Estado Social de qualidade é algo desejável. O que não faz sentido é exigir mais e melhor sem existir um plano de viabilização financeira, através da criação de riqueza. Nestas condições não é possível pagar um SNS de qualidade, por exemplo, especialmente no contexto de uma população residente cada vez mais envelhecida. [962] Quando escrevo estas linhas, em julho de 2023, entre os oitos partidos com assento na Assembleia da República apenas um assume-se de direita. Acresce ser um partido recente, criado há poucos anos, minoritário apesar da muita atenção mediática que lhe é dada e de estar em crescimento. Esta realidade é altamente invulgar a nível europeu e nas democracias das outras partes do mundo. Na Polónia e outros países ex-comunistas da UE, é frequente os dois partidos principais que disputam o poder serem ambos de direita, sendo o combate político entre a «direita liberal» e a direita nacionalista e eurocética, com tendências autoritárias, ou «iliberal». Veja-se APPLEBAUM (2021).
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[963] Sendo que grande parte deixa o país mal acaba o curso, na procura legítima de uma vida melhor. Assim fortalecem o capital humano de outros países pago à custa do contribuinte português. [964] RÁDIO RENASCENÇA (2023b). Neste sentido, não é motivo de orgulho que a percentagem de jovens licenciados nas gerações mais recentes em Portugal seja maior do que noutros países europeus. Independentemente da regressividade fiscal desta situação, se os jovens emigram é porque não encontraram no país as oportunidades que ambicionavam. Não podemos avaliar positivamente essa estatística sem avaliarmos a qualidade do ensino, por exemplo refletida num estudo sistemático relativo aos tipos de emprego e remunerações que os jovens licenciados emigrantes conseguem no estrangeiro, ou os motivos pelos quais há tanta procura comparada pelo ensino superior em Portugal. Não é de excluir que seja a falta de oportunidades profissionais que esteja a levar um número invulgar de jovens a fazer licenciaturas, muitas das quais tiradas em instituições de ensino superior com baixa qualidade. [965] LUCENA (2002), p. 16. [966] LUCENA (2002), nomeadamente a p. 26. [967] ILHARCO (2021); RTP (1998). É possível que Sá Carneiro não tivesse outra forma de sobreviver politicamente. Mas isso não importa para o meu argumento, que se mantém: os condicionamentos culturais do pós-25 de Abril atiraram o país para políticas económicas irresponsáveis. [968] POÇAS (2021), p. 30. [969] BARRETO (2017), p. 265. [970] LUCENA (2002), p. 19. [971] GAROUPA (2005); LUCENA (2002), p. 28. [972] GAROUPA (2004). [973] Refiro-me aos setores que devem ser deixados ao mercado, ainda que regulados. [974] RTP (2019). Visualizado a 17 de agosto de 2023. [975] Levando a que vários membros do «Grupo de Ofir» – incluindo os próprios Francisco Lucas Pires e António Borges – se adaptassem à realidade do país, acabando assim no PSD ou na sua órbitra. Por outro lado, o próprio CDS, a que muitos tinham estado associados, guinou numa direção conservadora, nacionalista e eurocética. [976] Nos nossos dias, mesmo as forças políticas (minoritárias) que ressurgiram em defesa de temas liberais, normalmente não tocam nos temas que beneficiam muitos dos seus membros: regulação da comunicação social, sociedades de advogados, mecanismos de privatização, as «portas giratórias». Isso acontece num contexto de manutenção de rendas e de interesses corporativos. [977] Estando num nível de PIB per capita muito inferior ao de Portugal nos anos 1990, todos estes países já nos ultrapassaram.
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[978] Seria mais rigoroso falar em economias mistas do que em economias de mercado ou capitalismo. Isto porque é evidente que o peso do Estado nas economias dos países europeus é enorme, sendo cerca de metade em França e Portugal (sendo um pouco menor na Europa Central e do Leste). As exceções a esta realidade são países como a Bielorrússia, que por motivos de ordem não económica são saudosistas. Veja-se ALEKSIÉVITCH (2016). [979] É sabido que a Maldição dos Recursos (tal como a ajuda externa dada aos países pobres) tem uma componente condicional: depende da situação inicial das instituições políticas. Ou seja, e para dar um exemplo, a Noruega tem beneficiado da riqueza gerada com os seus enormes recursos naturais, nomeadamente o petróleo. O fundo soberano norueguês, constituído para gerir os proventos daí obtidos, não tem intervindo negativamente no sistema político e na economia do país. Veja-se COLLIER (2011). [980] Como já notei anteriormente, Portugal é considerado uma democracia apenas eleitoral, limitada e com falhas, por relatórios internacionais; veja-se ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT (2022), e V-DEM (v. 13). Mas noto que Portugal, por enquanto, não aparece longe da fronteira dos critérios de democracia plena ou liberal destas bases de dados. Logo, é possível que volte a entrar nessas categorias no futuro próximo. Desta forma, o problema do país não é tanto não ser uma democracia plena, como o facto da natureza concreta da democracia que existe refletir a realidade social e cultural que caracteriza o eleitorado do país. Para além disso, há matérias relativas à falta de escrutínio do poder político e prestação de contas que estas bases de dados apenas capturam de forma bastante indireta e imperfeita. Para alguns exemplos, veja-se PÚBLICO (2022), ou ainda o facto de um relatório recente, supostamente independente, sobre a desinformação na UE ter sido revisto ou editado por uma assessora do Primeiro Ministro de Portugal, ao contrário do que aconteceu para outros países da Europa; EU DISINFO LAB (2023). Como seria de esperar, neste relatório «internacional», o governo ou membros do Partido Socialista não aparecem como uma fonte relevante de desinformação, apesar de inúmeras notícias mostrarem o contrário, inclusivamente muitas publicadas no Polígrafo (jornal de fact-checking cujo Diretor de Operações assina o relatório). [981] Já que os pensionistas e os fucionários públicos tendem a votar nos partidos menos reformistas. Os partidos e decisores políticos, por sua parte, dão sistematicamente prioridade aos interesses das gerações mais velhas, pois valem mais votos (por serem mais pessoas, e por terem menores taxas de abstenção). [982] BARRETO (2017), pp. 165, 444. [983] AMARAL (2009). Os cálculos deste estudo terminam em 2008, e foram atualizados neste livro até 2022 com a mesma metodologia pelo próprio autor, que generosamente partilhou comigo os resultados, apesar de ainda não os ter publicado. Para essa extensão, os dados de base utilizados para Portugal correspondem a Conference Board para 2007-2017 e OECD.stat para 2017-2021; e os dados de base utilizados para Espanha correspondem a PRADOS DE LA ESCOSURA (n.d.) até 2017 e OECD.stat para 2017-2021. Veja-se CONFERENCE BOARD (2023) e OECD.stat (2023). [984] Os dados das horas de trabalho correspondem ao número de empregados por ano vezes o número médio de horas de trabalho que cada empregado terá trabalhado nesse ano. Note-se que, para além dos motivos que apresentei para a divergência da produtividade laboral, também aconteceu outro fator relevante que foi a continuação da entrada das mulheres no mercado de trabalho em Portugal. Em 1974, 42,7% das mulheres trabalhavam fora de casa, mas essa percentagem era de apenas 28,5% em Espanha. Na década seguinte, até meados dos anos 1980,
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essa situação não mudou em Espanha, onde eram ainda apenas 28,7% em 1985. Por contraste, em Portugal, a percentagem já era de 45,7% no mesmo ano, depois de ter descido de um valor de mais de dois pontos percentuais dois anos antes, e voltando a subir nos anos seguintes. Ou seja, em Portugal as mulheres continuaram a trabalhar mais fora de casa, mas isso correspondeu à continuação de uma tendência vinda de trás. Mesmo que esta diferença de crescimento (não níveis) relativamente à Espanha possa ser vista como pelo menos em parte um fruto da natureza da transição política, também era certamente um resultado da maior pobreza relativa do país, que levava a decisões feitas por necessidade financeira. Logo, é um fator endógeno. A participação das mulheres no mercado de trabalho em Espanha começou depois a convergir com os valores portugueses (e da maior parte dos países da Europa Ocidental, com exceções como a Itália) a partir de finais dos anos 1980, tornando-se parecida apenas já no século xxi. Para a fonte dos dados citados, veja-se OUR WORLD IN DATA (2017). [985] BRITO et al. (2023). Segundo estes autores, a produtividade do trabalho em Portugal teria mesmo ultrapassado a da Espanha em inícios dos anos 1970, mas teve uma queda brutal a partir de 1974, acentuando-se em 1975, e depois de uma tímida recuperação, mas voltando a descer entre 1982 e 1984, e começando a recuperar mais uma vez a partir de 1985, quando a produtividade espanhola era quase o dobro da lusa. Segundo os dados destes autores, a divergência de produtividades a partir do 25 de Abril foi, e manteve-se, ainda maior do que no caso que mostro na Figura 33. Agradeço a Luís F. Costa a partilha destes dados alternativos. [986] EUROSTAT (2023b); LEITÃO (2023). [987] BARRETO (2017), p. 377. Vale também a pena ver o programa RTP (2015). [988] BARRETO (2017), p. 304. [989] Em 2021 o líder do partido, Rui Rio, afirmava que «O PSD não é um partido de direita» (DIÁRIO DE NOTÍCIAS 2021); em 2023, Francisco Pinto Balsemão afirmou que «vê o partido que fundou como parte do “centro-esquerda”», TSF (2023a). Ligações consultadas em 28 de julho de 2023. [990] No 25 de Novembro – ao contrário do que acontecera no 11 de Março – a questão colonial já estava resolvida e o poder nas ex-colónias entregue aos principais partidos independentistas. Para além disso, tinha havido a clarificação política feita pela população nas eleições de 25 de abril de 1975 (as mais participadas de sempre). Em 2023, o presidente da Assembleia da República e a comissão organizadora das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril consideraram que o 25 de Novembro não era uma data «consensual», e como tal não deveria entrar nas comemorações, apesar destas cobrirem o período histórico até 1976, quando se assinalam os 50 anos da Constituição. Veja-se TSF (2023b), consultado em 7 de outubro de 2023. [991] Apesar de as eleições do 25 de abril de 1975 terem mostrado de forma contundente que não era esse o desejo da maior parte do povo, elas podiam não se ter realizado, ou ter-se realizado sem que os resultados fossem respeitados. Tal cenário era plausível caso o PCP tivesse conseguido dominar as outras forças de extrema-esquerda, ou se se aliasse a Otelo Saraiva de Carvalho (caso este tivesse caído na sua órbitra). [992] SOARES (1974); POÇAS (2021), p. 30. [993] Pelo contrário, Portugal é um país que normaliza o comunismo e a extrema-esquerda, por mais obviamente antidemocráticas que sejam.
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[994] RAIMUNDO (2018), pp. 49-51. [995] RAIMUNDO (2018), pp. 55, 78. [996] Paradoxalmente ou não, isto aconteceu até com Francisco Rolão Preto, o líder do Movimento Nacional-Sindicalista – ou seja, o rosto do «fascismo português» nos anos 1930. Rolão Preto seria condecorado a título póstumo por Mário Soares em 1994 com a Ordem do Infante D. Henrique. Depois de 1945 Rolão Preto assumiu posições políticas diferentes das que defendera antes. Mas estes factos não deixam por isso de ser significativos: qualquer oposição ao Estado Novo veio a ganhar legitimidade depois do 25 de Abril (ainda que sem dúvida isso tenha acontecido mais com as oposições de esquerda). [997] Sobre a oposição do PCP às eleições de 25 abril de 1975 e em aceitar os seus resultados, veja-se BARRETO (2017), p. 238. [998] O que Hitchens observou no Portugal de 1974 afastou-o do esquerdismo revolucionário e transformou-o num liberal. Veja-se MÓNICA (2020), p. 319. [999] ALVES (2021). [1000] PARLAMENTO EUROPEU (2019). O PCP e o Bloco de Esquerda votaram contra esta resolução, tanto no Parlamento Europeu como na Assembleia da República. O PS aprovou esta resolução no Parlamento Europeu e votou contra na Assembleia da República. [1001] Já em meados dos anos 1990 se sabia que Portugal não convergiu com os países fundadores da União Europeia (Alemanha, França, Itália e Benelux) durante o período 19741985. Veja-se BARROS e GAROUPA (1996), p. 548. Para um estudo mais recente que avalia um contrafactual, separando o efeito do que se passou internamente da crise internacional relacionada com o choque petrolífero da mesma altura, veja-se AMARAL et al. (2022). [1002] Sobre o Caso FP-25 de Abril, referente ao grupo terrorista de extrema-esquerda responsável por várias mortes e assaltos, veja-se POÇAS (2021). [1003] POÇAS (2021), p. 265. No entanto, é possível argumentar que as ações das Brigadas Vermelhas em Itália nos anos 1970 e 1980 levaram a respostas políticas que ajudam a explicar a perda de competitividade da economia italiana. Não me alargo aqui nesta matéria. Deixo o meu agradecimento a Mauro Rota, da Universidade de Roma La Sapienza, pelas conversas sobre este tema. [1004] POÇAS (2021), p. 159. [1005] O Conselho da Revolução, instituído nos dias a seguir ao 11 de Março, era um órgão de tutela constitucional do poder político, exercendo poderes paralelos aos do parlamento, sendo apenas extinto na primeira revisão constitucional da Constituição de 1976, em 1982. Quer isto dizer que Portugal foi uma democracia tutelada, e como tal limitada, até 1982. [1006] Do meu ponto de vista, ainda não foi escrita uma obra que dê, de uma forma competente, a perspetiva geral da História de Portugal pós-25 de Abril. Talvez isso se explique por não haver o distanciamento histórico necessário, ainda que os constrangimentos da academia portuguesa também não ajudem. Para uma visão global das últimas décadas da história económica portuguesa, embora de forma muito sintética, recomendo AMARAL (2022).
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[1007] Foi apenas com a revisão constitucional de 1989 que caiu a proibição constitucional de reprivatizar as empresas que tinham sido nacionalizadas. Mas as privatizações já estavam a acontecer, mesmo que, até aí, só se pudesse privatizar até 49%, algo que tinha sido aceite pelo Tribunal Constitucional (que tinha sido criado com a Revisão Constitucional de 1982, na sequência da extinção do Conselho da Revolução). [1008] As infraestruturas foram divididas em infraestruturas físicas de apoio à atividade industrial – como ramais ferroviários para fábricas, e pipeline de transporte do porto de Aveiro para zonas industriais – e infraestruturas tecnológicas – como centros tecnológicos, institutos de novas tecnologias, institutos de transferência de tecnologia, e incubadoras. Conceberam-se ainda os sistemas de incentivos à atividade produtiva, à qualidade industrial, e relativos ao ambiente. [1009] Também data dessa época a entrada da Autoeuropa em Portugal, uma fábrica que viria a ter um peso grande na economia portuguesa, e que não foi financiada diretamente pelo PEDIP (que financiou grande parte dos investimentos nacionais e estrangeiros na indústria portuguesa) mas sim com outros fundos comunitários à disposição de Portugal, como o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional e o Fundo Social Europeu. Este investimento direto estrangeiro foi relevante também por ter levado ao grande aumento da produção de componentes automóveis em Portugal, atividade que tinha começado com o Grupo Renault. Até devido ao problema da Maldição dos Recursos, sou, no entanto, pessimista em relação à capacidade do país utilizar as suas grandes reservas de lítio para dinamizar uma cadeia de valor até às baterias, algo que deveria estar a ser preparado. Sobre esta matéria, veja-se AMARAL (2021). [1010] Alguns dos detalhes que aqui reproduzo foram-me contados por Luís Mira Amaral. Pelo menos no que diz respeito ao caso do Porto a situação não vinha apenas do PREC, mas também do processo de industrialização de finais dos anos 1940. Para promover a eletrificação no Porto, o ministro Eng. Ferreira Dias fixou tarifas degressivas para consumidores domésticos (quanto maior o consumo, menor o preço), que continuaram, pelo menos em parte, em vigor. Consultar SAMPAIO (2017). [1011] Assim como terá refletido um efeito (ainda que temporariamente positivo em termos líquidos) das chegadas dos fundos europeus. [1012] Ainda que no setor da energia tenha criada em 1995 a ERSE (Entidade Reguladora do Setor Elétrico) para regular os monopólios naturais das redes de transporte e distribuição de eletricidade, no contexto da privatização do sector elétrico. A ERSE foi o primeiro regulador independente do governo criado no âmbito da economia real. Mas este e outros mercados regulados evidenciavam ineficiências claras, sendo o Estado português alertado sucessivamente para este tema ao longo dos anos pelo FMI e pela OCDE. Sobre esta matéria, assim como estudos de caso não apenas da ERSE, mas também da ANACOM e do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, veja-se LOURENÇO (2022). [1013] Exemplo disso é a falta de contratação internacional de reguladores por concurso, a partir de critérios técnicos. A seleção é feita na prática por critérios políticos, sem os tribunais a desempenharem um papel de supervisão relevante. Devido a estes problemas não terem atualmente solução, seria preferível o modelo das direções-gerais, pois é mais transparente, democrático e barato. Veja-se GAROUPA (2016). [1014] Como tem mostrado Nuno Garoupa e coautores em múltiplos estudos, apesar dos custos administrativos e com os recursos humanos, os tribunais continuam congestionados e sem capacidade de resposta. Mas, para além destes custos, existem também custos indiretos,
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derivados do direito de recurso. Os aspetos processuais continuam a predominar sobre os aspetos substantivos e o sistema judicial vai ficando cada vez mais fragmentado. [1015] GAROUPA e PINHEIRO (2014). [1016] AMARAL (2015b); SANTOS e GAROUPA (2023); GAROUPA (2004). [1017] Ainda que esta designação não esteja errada, por simplificação e aproximação. [1018] GAROUPA (2005). [1019] Portugal tinha em 2020 um nível de competitividade semelhante ao observado em 1995, sendo dos mais baixos da UE. AMADOR e SOARES (2013); e AMADOR et al. (2022). [1020] Estes países tinham genericamente investido na educação das suas populações durante o período comunista, ainda que com qualidade variável. Esse capital humano não tinha, no entanto, levado à convergência, que só veio a acontecer com a adoção de uma economia de mercado (mantendo-se ainda assim também alguma intervenção estatal, como é evidente). [1021] Parece-me que o país caminha para um ambiente político fortemente polarizado, o que, de resto, acompanha a tendência europeia. No caso português, tudo indica que a História vai continuar a ser instrumentalizada. [1022] Internamente, alimentam também a ilusão de que têm uma influência internacional muito maior do que o que é o caso (a realidade é que é quase nula). Os meios de comunicação social nacionais fazem frequentemente eco desta ideia errada. [1023] O pensamento antiliberal em Portugal tem uma sustentação dupla: permite os monopólios e oligopólios extrativos na área económica e social; e fomenta os monopólios ideológicos. As duas minam a democracia pluralista. Agradeço a Nuno Garoupa as várias conversas que influenciaram o meu pensamento nestas matérias. [1024] Neste sentido, o Estado Novo – e a sua figura central, Salazar – influenciou profundamente o país não só enquanto durou, mas também através do regime que lhe sucedeu, que já dura há mais tempo do que o próprio Estado Novo durou. [1025] UNIÃO EUROPEIA (2023). Visualizado em 19 de julho de 2023. [1026] DINHEIRO VIVO (2022). Parece improvável que a TAP venha a ser vendida a um preço sequer próximo deste valor. [1027] EUROPEAN COMMISSION (2021), p. 115. [1028] Menciono a ferrovia para continuar com um exemplo ao nível do capital físico. Mas investimentos sérios em capital humano ou em reformas do funcionamento do Estado teriam certamente um retorno superior a prazo. [1029] MAGALHÃES (2023).
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[1030] Criar um fundo de investimento diversificado, como fazem alguns países em risco de sofrer da Maldição dos Recursos (casos do Botswana, Chile ou Noruega), não seria autorizado pela União Europeia. Nem, francamente, faria sentido aplicar ao caso português. No entanto, seria possível à UE impor ao Estado português, por exemplo, um teto de 10% no financiamento de projetos, sendo os restantes 90% financiados pelo setor privado, mas evitando-se empresas de tamanho pequeno sem clara capacidade transformadora para economia. Este tipo de políticas seria preferível à situação que se verifica, ainda que me pareça, dado o contexto histórico e institucional do país, que se devia acabar completamente com os fundos. Relativamente às estratégias internacionais para lidar com o problema da Maldição dos Recursos, veja-se, por exemplo, POUOKAM (2021). [1031] DIÁRIO DE NOTÍCIAS (2022). [1032] WORLD BANK (2023).
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Epílogo Crónica de uma letargia anunciada A maior parte dos historiadores económicos são pessoas otimistas. É difícil não ser quando se olha para trás. O que vemos à nossa volta, nos países ocidentais, é um maravilhoso mundo novo de liberdade, tecnologias, e padrões de vida inimagináveis para os nossos antepassados mais distantes. O século xx, apesar de uma primeira metade excecionalmente violenta, correspondeu na sua segunda metade a uma descontinuidade histórica. Isto aconteceu para várias áreas geográficas a nível global, mas também para algumas das partes mais pobres da Europa, incluindo um dos países mais pobres: Portugal. Mas, se o século xxi está a correr bem à Europa que pertencia ao outro lado da Cortina de Ferro e que entrou na esfera da UE, o nosso país não está a ter um terceiro milénio nada brilhante. Mesmo que, sem dúvida, Portugal tenha entrado melhor no século xxi do que tinha entrado no anterior. Apesar disso, termino este livro de forma pessimista. Não consigo terminar de outra forma. O século xxi marcou o regresso da divergência para Portugal. E não vejo qualquer saída para a encruzilhada em que o país se encontra. O problema não está em desconhecermos quais as políticas públicas que poderiam levar à convergência. As soluções são conhecidas. Mas o doente não quer o remédio e continua a votar nos mesmos partidos e receitas.[1] O país não vai querer mudar enquanto conseguir ir vivendo com tantas transferências de dinheiro dos países mais ricos da Europa. As falsas narrativas podem durar muito tempo até desaparecerem, como vimos neste livro. Décadas, e mesmo séculos. Tudo leva bastante tempo. E há sempre políticos e as suas cortes disponíveis para vender a banha da cobra. Não há uma saída simples para a situação grave em que Portugal se encontra. A História do país é um dado adquirido, ainda que seja saudável olharmos para trás com uma visão diferente e mais informada. Mas dificilmente algum partido político ou governo prometerá deixar de receber fundos, até porque, no curto prazo, sofreria as consequências 326
económicas e políticas que fechar a torneira implicaria. E mesmo que o fizesse, nada impediria o governo seguinte de continuar a pedir. Como tal, a mudança só pode vir de fora: da própria UE. Esperemos que uma mudança intelectual e política torne possível a nível europeu a compreensão de que o suposto medicamento está a fazer mal ao paciente. Talvez uma crise económica na Alemanha, por exemplo, venha a ser o suficiente para, pelo menos, abrir o debate de forma séria. Esperemos, no entanto, que essa mudança seja feita por uma UE moderada, sem extremismos, que sobreviva às ameaças que existem à sua coesão.[2] Regressemos às preocupações de Antero de Quental, e da geração a que pertenceu, a que aludi no início do livro. Ao refletirem sobre o malfadado destino do país, concluíram que apenas uma república poderia vir a resolver os problemas. Não podiam ter estado mais errados: a Primeira República iria ser um regime desastroso para a economia e sociedade portuguesas. Já o Estado Novo, marcado pela experiência da Primeira República, conseguiu melhores resultados para o desenvolvimento do país, ainda que à custa de um longo período de repressão política interna e externa – claramente anacrónica na fase final do regime. Como procurei mostrar neste livro, Portugal tem uma História fascinante, mas bastante atribulada, e até trágica. Hoje, Portugal é um país sem qualquer relevância internacional, tendo a população global um tamanho parecido com o de uma cidade de dimensão média na Ásia ou África. Mas a História de Portugal – também pela influência que teve noutras partes do mundo – não é despicienda, e faz muita sombra ao presente, pouco impressionante, do país. Neste livro, procurei questionar vários mitos que acossam a memória coletiva do nosso país, estando muitos deles enraizados na nossa cultura. Argumentei, por exemplo, que a religião católica não foi uma causa fundamental do atraso, que o Marquês de Pombal foi talvez o pior político de sempre a governar Portugal, e que o império nunca teve um efeito muito positivo para o desenvolvimento do país.[3] Mostrei ainda que vários regimes que, à época, insistiram na sua natureza reformista – como a Monarquia Liberal do século xix e a Primeira República – foram, na verdade, regimes que falharam completamente nos seus objetivos declarados de desenvolver o país. Argumentei ainda que o regime mais diretamente responsável por ter iniciado um processo de modernização económica sustentada do país foi o que hoje é mais odiado: o Estado Novo. Finalmente, expliquei que a economia está hoje em divergência
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com resto da Europa, e que os fundos europeus, tantas vezes aclamados como a salvação da economia, são na verdade um dos entraves ao seu desenvolvimento. Já outros motivos, tantas vezes dados como causas do atraso – como a baixa produtividade ou a excessiva carga fiscal, por exemplo –, são apenas uma manifestação do problema e não a fonte do mesmo. São também meros sintomas outras explicações, como o baixo capital humano, os efeitos negativos da geografia dita «periférica» do país, ou mesmo a adoção do euro.[4] Os mitos que procurei derrubar neste livro contribuem para impedir um pensamento e reflexão objetiva, sem preconceitos, sobre a realidade factual de cada momento da História de Portugal. Ou seja, os mitos bloqueiam a necessidade de repensarmos o passado, para reinventarmos o presente – e o futuro. É essencial aprendermos com o nosso passado. Não podemos confundir o voluntarismo e as «boas intenções» anunciadas pelos políticos com o que de facto é feito ou possível fazer. Temos de compreender que, dado os recursos serem limitados, é preciso fazer escolhas. Apostar em certos caminhos implica não ir por outros que poderiam ser melhores.[5] Tendo de escolher, não importa investir apenas em capital físico (por mais que esse dê uma aparência de «obra feita»), mas é mais importante investir no capital humano da população, pois uma população mais educada e melhor informada tomará melhores decisões e será mais produtiva. No entanto, não importam apenas as matrículas e anos de escolaridade, mas também a qualidade do sistema educativo. Finalmente, devemos refletir sobre como, tal como aconteceu no nosso passado, não vai ser dinheiro «caído do céu» que vai resolver os nossos problemas a prazo. Bem pelo contrário. Como procurei explicar neste livro, as verdadeiras causas do atraso são múltiplas, sendo algumas históricas e outras contemporâneas, relacionando-se umas com as outras. O que fazer então? Relativamente às históricas, não podemos mudar o passado, como é evidente, mas podemos e devemos compreendê-lo melhor. Esse é um primeiro passo fundamental para não continuarmos a fazer no presente mais escolhas, individuais e coletivas, mal informadas. Relativamente às causas contemporâneas, podemos fazer bastante mais – sem as ajudas europeias, Portugal seria certamente, a prazo, um país mais rico e mais democrático. Ora, é quase impossível, a qualquer partido político nacional, recusar as ajudas europeias de livre vontade. Por isso, depende da UE cortá-las por nós. No entanto, por enquanto, tudo indica que a UE
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não está consciente do mal que a esmola está a fazer ao país dependente e pedinte em que Portugal se transformou.[6] A política de fundos da UE, que também certamente afeta negativamente outros países e regiões europeias, é aliás, com toda a probabilidade, um dos elementos que estão a contribuir para a divergência da própria UE em relação aos Estados Unidos da América, um fenómeno que também está a acontecer. Portugal é, deste modo, um país em decadência no contexto de uma Europa Ocidental toda ela em decadência relativa. Mas isso seria tema para outro livro. Será notório que não culpei nenhum partido político atual como tendo a principal responsabilidade pelo atraso e a divergência. Isto deve-se à distinção que desenvolvi anteriormente entre causas profundas e mecanismos endógenos. Embora os partidos não tenham tido um papel positivo nas últimas décadas, o seu comportamento, genericamente medíocre, por exemplo no que toca às escolhas de representantes e de políticas públicas que têm efetuado, é apenas um fator endógeno. Não há razão para pensar que um cenário contrafactual (em que colocássemos líderes diferentes nos principais partidos ou eleições vencidas por outros partidos no contexto existente) conduziria a um presente muito diferente. Como as matérias que referi são endógenas, o problema fundamental não é a seleção negativa dos que optam por uma carreira política e das ideias que defendem, a corrupção, o nepotismo, o compadrio, o sistema de justiça disfuncional, as negociatas com demasiada proximidade ao poder político, ou mesmo a captura da regulação e do próprio Estado por interesses privados.[7] É nestas matérias que se focam os jornalistas e os meios de comunicação social, mesmo quando são capazes de, pontualmente, abordar temas para além do curto prazo. Mas isto não passa de espuma dos dias. Como é evidente, tudo isto é grave. Mas, como diz a canção de Amália Rodrigues, «tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado». Na verdade, as matérias que acabei de referir são apenas sintomas da doença e não a doença em si. E é essa que tem de ser curada. O remédio tarda e, quando chegar, será necessariamente doloroso. Termino este livro com o desejo de que, quem sobre ele se quiser pronunciar, primeiro o leia e tente compreender. Em 1915, José de Almada Negreiros publicou o Manifesto Anti-Dantas e por extenso, onde se insurgiu contra Júlio Dantas – um autor sem interesse, mas mediático à época, ativo na Academia das Ciências de Lisboa e então considerado 329
quase unanimemente de grande qualidade –, pedindo que Portugal abrisse os olhos à necessidade de ser um país mais decente e menos fechado a ideias novas. Tal como nesse tempo, é frequente nos nossos dias os meios de comunicação social destacarem nomes sem interesse, que serão esquecidos em breve – mas que, no curto prazo, projetam a sua insegurança e defendem as suas rendas. A vontade de censurar e criticar acefalamente, sem reflexão nem conhecimento, o que não se compreende ou não se quer compreender, não é uma novidade dos nossos dias, e nem sequer o era no século xx. Recordo também a este respeito um panfleto anónimo sobre uma «censura ridícula», que circulou em Portugal em 1716, no qual se afirmava que os mais ignorantes eram os que mais censuravam. E que o bom gosto era considerado mais importante que a crítica política, ou a ciência.[8] Estas coisas sempre existiram. Esperemos que os críticos do presente consigam ter mais sabedoria e maturidade. Agora que Portugal está estagnado e a divergir da Europa Ocidental há um quarto de século, haverá esperança? Para a convergência, julgo que não, a não ser depois de a União Europeia mudar a sua política de ajudas relativamente a Portugal. Quando isso um dia acontecer, a transição será difícil, pelo menos no curto e médio prazo. Mas, apesar disso, e de os responsáveis não merecerem ser perdoados, convém não esquecer que, coletivamente, vivemos muito melhor do que os nossos antepassados mais distantes. E isso é, apesar de tudo, algo que merece ser celebrado. Afinal de contas, ao longo da História, Portugal sempre teve desafios, alguns que pareciam intransponíveis. E ainda cá estamos. [1] Escrevo isto apesar de ser uma minoria de pessoas a votar em quem manda, devido ao voto na oposição, e principalmente à abstenção (que tem subido ao longo das décadas, andando agora nos 50% da população, mesmo nas eleições legislativas, por comparação com menos de 10% nas eleições de 25 de abril de 1975). [2] Infelizmente, há uma forte probabilidade da Frente Nacional (conhecida desde 2018 por Rassemblement National) vir a ganhar as eleições em França nos próximos anos. Considero isso indesejável, ainda que provavelmente inevitável. Quando tal acontecer, pode provocar um forte abalo de consequências imprevisíveis na UE. Aliás, tal ocorreria num contexto maior em que vários países da Europa vivem politicamente polarizados, com uma parte cada vez maior do eleitorado a votar em partidos radicais ou extremistas, com uma clara viragem à direita, que é provável tornar-se a prazo dominante. Se assim for, Portugal ficará isolado na cena europeia. [3] Os mitos estão de tal forma enraizados que até instituições internacionais fora dos meios académicos os repetem. Um exemplo é a CIA, que afirma que Portugal atingiu uma «idade de ouro» nos séculos xv e xvi, tendo perdido muita da sua riqueza e estatuto devido ao Terramoto de 1755, às invasões napoleónicas, e à independência do Brasil: «Following its heyday as a global
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maritime power during the 15th and 16th centuries, Portugal lost much of its wealth and status with the destruction of Lisbon in a 1755 earthquake, occupation during the Napoleonic Wars, and the independence of Brazil, its wealthiest colony, in 1822» (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY, 2023). [4] Tal como os fundos europeus, o Euro contribuiu para a contração do setor transacionável da economia portuguesa. Veja-se AMARAL (2022); e AMARAL (2019), p. 286. Convém ter em mente, no entanto, que a adoção do Euro, e os termos em que isso aconteceu, foram escolhas políticas. [5] Os economistas chamam a isto «custos de oportunidade». [6] Pelo contrário, a UE por enquanto insiste, a meu ver muito erradamente, que as reformas estão a ser implementadas, que já se notam melhorias institucionais, que as partes interessadas locais (stakeholders) elogiam as reformas modelares do governo, e que apenas há problemas devido a recursos limitados, mas que o PRR vai ajudar. Veja-se COMISSÃO EUROPEIA (2023). [7] Relativamente ao primeiro ponto, isto é, o da seleção negativa, a questão é simples: noutro contexto os protagonistas defenderiam políticas diferentes, fossem os mesmos ou outros. [8] Lendo-se aí que «os versos hoje são mais filhos da tradição, do que da natureza e da arte». Veja-se ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 1072 (23), fls. 291-295v.
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Para saber mais O conteúdo deste vo tra. Sendo um livro de divulgação, procurei deixar todos os esclarecimentos e questões de ordem mais técnica para as notas finais. Escrevi-o por sentir que é necessário. Penso que, em traços gerais, não terei cometido nenhum erro grave, mas por mais esforço que eu tenha feito para ser o mais rigoroso possível, com certeza existirão aspetos que podem não estar completamente claros ou corretos, ou que se vão desatualizar no futuro – ainda que, por não se tratar de um livro sobre a espuma dos dias, esta obra não se desatualize facilmente. De quem venha por bem, comentários sobre este livro são muito bem-vindos, por email, sendo o meu endereço [email protected]. Pode ser que este livro tenha versões futuras revistas e atualizadas. Entretanto, ou caso isso não venha a acontecer, para divulgação sobre o que vai saindo na literatura da especialidade (e, mais genericamente, para comentários sobre Portugal numa perspetiva comparada e de longo prazo), pode ser consultado o meu blogue de divulgação, Portugal no Longo Prazo: https://nunopgpalma.wordpress.com/. Quem tenha gostado do conteúdo que aqui apresentei perceberá que, para compreender Portugal, não basta ler jornais, que frequentemente se limitam à análise de casos e casinhos, numa miopia à volta de uma sequência de árvores em que se perde completamente de vista a floresta. É preciso uma perspetiva diferente que permita ir mais fundo. Temos de conhecer o nosso passado para poder melhor pensar o futuro. Por isso, muitas das referências que citei neste livro são também sugestões de leituras adicionais, destacando que é natural que muitas não sejam referências recentes. No entanto, como citei várias centenas de referências, e nem todas de forma elogiosa, também aqui destaco algumas sugestões de leituras para quem queira saber mais. As que apresento são um bom ponto de partida para compreender o nosso passado e presente. Centro-me em obras em português, e com uma especial ênfase nas que tocam na História mais recente de Portugal, por saber que esta é de acesso mais fácil à maior parte das pessoas a quem 332
um livro de divulgação como este se dirige; para os períodos anteriores e a respetiva literatura académica mais especializada, ficam as referências nas notas deste livro. Sugiro, então, dez livros que considero uma boa base ou ponto de partida para quem queira saber mais, de modo a pensar de forma informada e fundamentada o passado, presente e futuro de Portugal: AMARAL, Luciano (2022). Economia Portuguesa: as últimas décadas. Fundação Francisco Manuel dos Santos. BARRETO, António (2017). Anatomia de uma Revolução. Alfragide, D. Quixote. CARVALHO, Rómulo de (2011). História do Ensino em Portugal desde a Fundação da Nacionalidade até ao Fim do Regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 5.ª edição. FRANCO, José Eduardo (2006). O mito dos jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente (séculos xvi a xx). Lisboa: Gradiva. GAROUPA, Nuno (2011). O governo da justiça. Fundação Francisco Manuel dos Santos. LEITÃO, Henrique (2007). A ciência na «Aula da Esfera» no Colégio de Santo Antão, 1590-1759. Comissariado Geral das Comemorações do V Centenário do Nascimento de São Francisco Xavier. POÇAS, Nuno G. (2021). Presos Por Um Fio: Portugal e as FP-25 de Abril. Alfragide, D. Quixote. RAMOS, Rui (2001). A Segunda Fundação (1890-1926). Lisboa: Editorial Estampa. RIBEIRO, Orlando (1986). Portugal, O Mediterrâneo e o Atlântico. Edição Livraria Sá da Costa. REIS, Jaime (1993). O atraso económico português em perspectiva histórica: estudos sobre a economia portuguesa na segunda metade do século xix (1850–1930). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
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DATABASE
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(s.d).
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Créditos das imagens As Publicações Dom Quixote fizeram todos os esforços para encontrar os proprietários dos direitos de autor das imagens que integram esta obra e obter as respectivas permissões de reprodução. Lamenta eventuais erros ou omissões na lista abaixo e rectifica-a nas possíveis reedições e reimpressões. Figura 1: Os Vencidos da Vida. The History Collection/Alamy Stock Photo/Fotobanco.pt. Domínio público. Figura 4: © António Castro Henriques. Direitos reservados. Figura 5: Arquivo Municipal de Lisboa – Ref. PT-AMLSB-CMLSBAH-CHR-006-02 - Folha 20. Figura 8: Livro de receita e despesa do Convento da Graça de Évora (Códice CLXVII/16). Biblioteca Pública de Évora. Domínio público. Figura 10: Lisbona – bird’s-eye view of the city of Lisbon (Portugal) from Georg Braun and Frans Hogenberg’s atlas Civitates orbis terrarum, vol. I, 1572. Fine ARTS/Album/Fotobanco.pt. Domínio público. Figura 11: O Estado da Fazenda, de 1526. Documento que integra o «Núcleo Antigo» do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Domínio público. Figura 12: © Helena Nogueira. Direitos reservados. Figura 13: Paulo de Carvalho e Mendonça. The History Collection/Alamy Stock Photo/Fotobanco.pt. Domínio público. Figura 14: Azulejos tiles in the old University of Évora, Colégio do Espírito Santo, Évora, Portugal. Image Broker/Fotobanco.pt. Figura 16: Planta da Sala de Cortes. Balthezar dos Reys. Domínio público. Figura 17: Eleição de Francisco da Costa Alcoforado para Procurador das Cortes. Arquivo Digital de Beja. PTADBJA-AL-CMBJA-B-A-001-0048-fl.70v.a 72. Domínio público. Figura 21: Coche da embaixada ao Papa Clemente XI - dos Oceano. Alçado traseiro. © DGPC. Figura 22: Demonstração Do Teatro Em Q. Depois De Justiçados Os Reos ...Forão Queimados... Biblioteca Nacional de Portugal, cota E. 123 V. Domínio público. Figura 23: Marquês e Irmãos. The History Collection/Alamy Stock Photo/Fotobanco.pt. Domínio público. Figura 24: Portrait of Marquess of Pombal 1766 by
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Claude-Joseph Vernet. De Agostini Editore/AGE/Fotobanco.pt. Domínio público. Figura 26: O Zé Povinho – Depois das eleições, à vontade do seu dono, O António Maria, 1880. UtCon Collection/Alamy Stock Photo/Fotobanco.pt. Domínio público. Figura 27: Bilhete postal com o título «Expulsão dos Jesuítas em 10 de Outubro de 1910.» Domínio público.
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Comentários a As Causas do Atraso Português, de Nuno Palma «Este livro é uma máquina de triturar mitos sobre as causas do atraso português. Nuno Palma faz o fact-checking à História oficial de Portugal de que há muito precisávamos. Um livro de História que vai ficar para a História.» – João Miguel Tavares, jornalista «Este é um livro fascinante, corajoso, frontal, sem papas nas línguas, que se lê com muito proveito e nos estimula a reflexão crítica sobre Portugal, desconstruindo poderosos estereótipos do nosso passado. Podemos não concordar com tudo, nomeadamente com alguns juízos categóricos, mas a sua arguta perspetiva analítica, fundada em fontes primárias e estatística histórica, é uma pedrada no charco de algum unanimismo académico ou acriticismo cultural que tem secado o debate crítico sobre a história de Portugal e dos nossos mitos e juízos simplificados. Estamos diante de um livro importante de um historiador emergente que, estando fora a ensinar em Inglaterra, ensaia uma hermenêutica sem medo de retaliações académicas nem dos “clientelismos” de carreira. Saúdo vivamente a publicação deste livro e espero que contribua para “estalar o verniz” e inaugurar um debate, que nos falta, aberto, sério e reconfigurador das nossas visões cristalizadas sobre a história do nosso país.» – José Eduardo Franco, Professor Catedrático da Universidade Aberta e Coordenador do Programa Doutoral em Estudos Globais «Brilhante e incisivo, o livro de Nuno Palma obriga a olhar para a velha questão do “atraso português” com olhos novos. O que torna muitas das interpretações deste ensaio especialmente provocadoras e relevantes não é apenas o facto de contrariarem ideias feitas, mas sobretudo a circunstância de estarem apoiadas em evidência empírica
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muito sólida. O debate acerca das origens do nosso atraso não terminou, mas Nuno Palma elevou-o a um nível de rigor e exigência académica que nunca tinha tido antes.» – Henrique Leitão, Pró-Reitor da Universidade de Lisboa e Prémio Pessoa 2014 «A perspectiva que o livro apresenta sobre a evolução da economia portuguesa durante o período do Estado Novo, na transição para a democracia e nos 50 anos de democracia é extremamente inovadora e frutuosa para interpretarmos a nossa actual situação económica. Um livro fundamental para perceber o persistente atraso económico português.» – Luciano Amaral, Professor na Nova School of Business and Economics «A ideia do atraso em Portugal tem estado associada ao conceito de declínio. Para gerações de Portugueses que aprenderam na escola a admirar os feitos da “ínclita geração” esta associação é intuitiva, mas merece ser questionada. Já em 1776 Adam Smith escreveu n’A Riqueza das Nações que as políticas públicas em Portugal e Espanha eram por si só suficientes para perpetuar o seu presente estado de pobreza. Atraso e declínio são necessariamente conceitos relativos e carecem de um padrão de comparação: se hoje Portugal é um país “atrasado” importa saber desde quando e relativamente a que padrão de desenvolvimento. Ainda mais importante será perceber as razões desse atraso. Este livro é uma ambiciosa tentativa de responder a estas questões recentrando o debate cívico para além da tradicional narrativa de declínio histórico.» – Rui Esteves, Professor Catedrático do Graduate Institute of International & Development Studies, Genebra, Suíça «O panorama editorial sai enriquecido com este livro intelectualmente estimulante. Nele o autor analisa problemas há muito debatidos na comunidade científica, sustentado em investigações empíricas recentes e numa ampla literatura nacional e internacional, que lhe permitem ainda perspectivar a economia portuguesa em comparação com outros países europeus. Embora se possa discordar de certos juízos valorativos aqui
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apresentados, as interpretações do autor certamente gerarão debate e poderão trazer novos públicos à História de Portugal e à História Económica.» – Susana Münch Miranda, Professora no Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa
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Contents 1. Ficha Técnica 2. Preâmbulo 3. Introdução 4. PARTE I PORTUGAL DESDE FINAIS DA IDADE MÉDIA 1. 1. População 2. 2. Instituições políticas 3. 3. Economia e desenvolvimento 5. PARTE II PORTUGAL: UMA INTERPRETAÇÃO 1. 4. Expansão e império 2. 5. Cultura e religião 3. 6. A maldição dourada 4. 7. Um país novo, liberal? 5. 8. A Primeira República 6. 9. O Estado Novo 7. 10. A época contemporânea 6. Epílogo 7. Para saber mais 8. Bibliografia 9. Créditos das imagens 10. Comentários a As Causas do Atraso Português, de Nuno Palma
Landmarks 1. Cover 2. Title-Page 3. Table of Contents 4. Bibliography 5. Acknowledgments
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