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Portuguese Pages 121 [126] Year 2002
A SAIDA DO TEATRO DEPOIS DA APRESENTAÇÃO DE UMA NOVA COMÉDIA A AVENIDA NIÉVSKI Nikolai V. Gógol
PAZ E TERRA
À saída do teatro depois da apresentação de uma nova comédia e A Avenida Niévski
À saída do teatro depois da apresentação de uma nova comédia Traduzido por Aríete Cavaliere e Mário Francisco
A Avenida Niévski Traduzido por Aríete Cavaliere
Títulos originais — Teatrálnii raziezd posle predstavlênia nóvoi comédii — Niévski Prospect
Nikolai V. Gógol Seleção de textos Aríete Cavaliere
À saída do teatro depois da apresentação de uma nova comédia e A Avenida Niévski
PAZ E TERRA Coleção Leitura
© Paz e Terra Editores responsáveis: Maria Elisa Cevasco e Katia Buffolo Produção grdfica: Katia Halbe Capa: Isabel Carballo
CIP-Brasil. Catalogação na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Gogol, Nikolai Vassilievitch, 1809-1852 À saída do teatro : depois da apresentação de uma nova comédia / Nicolai V. Gógol ; tradução de Aríete Cavalieri, Mário Francisco. —São Paulo : Paz e Terra, 2002. (Coleção Leitura) Tradução do original russo ISBN 85-219-0436-3 1. Teatro russo (Literatura). I. Cavalieri, Aríete. II. Francisco, Mário. III. Título. IV. Título: A Avenida Niévski. V. Série. 01-1861.
CDD 891.72 CDU 882
EDITORA PAZ E TERRA S/A Rua do Triunfo, 177 Santa Efigênia, São Paulo, SP — CEP: 01212-010 TeL: (011) 3337-8399 E-maii: [email protected] Home Page: www.pazeterra.com.br 2002
Impresso no Brasil
SUMÁRIO
Apresentação....................................................................
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À saída do teatro depois da apresentação de uma nova com édia..................................................................
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A Avenida Niévski.........................................................
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APRESENTAÇÃO Nikolai Vassílievitch Gógol viveu entre 1809 e 1852, portanto toda a sua criação literária se desenvolve na primei ra metade do século XIX, período de grandes inquiétudes no contexto russo. A época de Gógol corresponde assim a um dos períodos mais repressivos e sombrios da história da Rússia, sob as or dens do tsar Nicolau I que reinou de 1825-1855O nome de Gógol está ligado ao surgimento da “Escola Natural” russa. Bielínski e outros críticos da época conside raram Gógol como o representante de uma escola cuja ca racterística principal seria a descrição realista da vida da po pulação das cidades. O gênero predominante dessa tendên cia foi denominado “ensaio fisiológico”, com o qual o prosa dor russo guardaria estreita relação, principalmente pelo ca ráter de protesto do gênero, aliado à documentação “objeti va” de uma realidade social e humana. Embora este gênero russo tivesse provavelmente muito em comum com a tendência então em curso na literatura 7
francesa, não se identificava com o que se costumou chamar em literatura de Naturalismo, corrente bem posterior à “Es cola N atural”. Caracterizou-se mais por uma descrição “daguerreotípica”, como se dizia na época, da vida da popu lação pobre das cidades e tinha evidente carater de protesto. Mas Gógol, embora apresentasse uma simbiose com todo o contexto histórico-cultural que lhe serviu de pano de fun do ( e daí sua ligação com a “Escola Natural que tão clara mente refletia o pensamento russo da época), ao mesmo tem po transcendeu com sua obra todas as tendências que estavam então em curso e, sem deixar jamais de evidenciá-las, construiu através de sua arte uma obra solidamente plantada em sua época, mas que ao mesmo tempo escapa dos seus limites, apontando, ainda hoje, para a sua modernidade. Neste sentido, se a obra de Gógol como um todo é considerada pela crítica em geral (basta pensar em O Capote, Almas Mortas e O Inspetor Geral) como expressão satírica da realidade russa de sua época, é necessário detectar, para uma abordagem mais acurada de seus textos, sua maneira peculiar de “ver” o mundo e as coisas, sua “ótica desautomatizante”. O mundo que o cerca se apresenta não raramente trans formado como se a realidade, filtrada pela imaginação cria dora do autor, resultassse em quadros do mundo exterior simultaneamente realistas e fantasticamente transformados.
A sua visão molda a realidade através da desproporção no proporcional. Dessa forma, ela se apresenta muitas vezes atra vés de transformações romanticamente fantásticas, como em algumas de suas obras da fase inicial, chamada ucraniana, alusão à sua terra natal, em que se observam fortes elementos românticos, ou através da acumulação absurda de detalhes que fazem da realidade um aglomerado de elementos con traditórios, mas que a revelam na sua mais profunda essên cia, tornando esse caos fantástico e desconexo a sua mais fiel expressão. Tal procedimento está largamente empregado nas suas “histórias petersburguesas”, onde o fantástico, anterior mente buscado nas lendas e no folclore ucranianos, brota agora da própria realidade cotidiana e urbana de São Petersburgo. Gógol foi um dos intérpretes mais agudos do período petersburguês da história russa sob as ordens de Nicolau I. Seus contos, novelas e peças de teatro metaforizam, por as sim dizer, o caráter sinistro, estranho, absurdo e espectral que adquirira o império russo e a sua capital-símbolo, São Petersburgo, durante o regime de um dos mais autocratas dos governantes da Rússia tsarista. Assim, especialmente a fase petersburguesa da obra gogoliana nos apresenta histórias ambientadas no espaço urbano da capital, onde personagens um tanto estranhas rondam pela “capital do nosso vasto império”, como Gógol 9
se referia à cidade, e vagam em busca de um sentido jamais encontrado e que parece esvair-se a todo o momento em meio à névoa sinistra que encobre a cidade. Os dois textos que integram a presente edição, tradu zidos diretamente do russo, são expressão significativa da modernidade, tanto da prosa, quanto do teatro de Gógol. Observa-se em ambos os textos a mesma percepção “estranhante” com que Gógol apreende o mundo, as pes soas e as coisas em toda a sua obra. Trata-se daquilo que os formalistas russos chamaram de “ostraniênie” (estra nhamento) e que impregna o estilo, os diálogos, o trata mento inovador da linguagem, a expressividade verbal e que lhe serviu, afinal, para representar o real mesclado ao fantástico. Em A Avenida Niévski, conto de 1835 que faz parte dos Contos Petersburgueses, escritos entre 1832 e 1842, o insólito surge do real e o absurdo se destaca do cotidiano mais banal, através de um prosa matizada de elementos da língua falada, de jogos de palavras, de trocadilhos populares. A peça de teatro À saída do teatro depois da apresentação de uma nova comédia, inédita em português, foi escrita por volta de 1839-1840 como resposta às violentas críticas que Gógol recebera depois da estréia de “O Inspetor Geral”, em 1836. Trata-se de um texto dramático extremamente origi nal, onde toda ação se desenvolve como uma espécie de ré 10
plica intertextual, a partir da qual depreendem-se os princí pios do autor com relação ao riso e à comédia, projetando o texto para o plano da metalinguagem. Muito se tem discutido sobre o enquadramento de Gógol em determinados grupos literários unificados por estilos e tendências ideológicas. Mas, com efeito, Gógol, diferente de outros grandes escritores do século XIX russo, não formou nenhuma escola ou pléiade de seguidores diretos. Conhece mos a famosa frase de Dostoiévski : “Todos nós saímos do Capote de Gógol”, mas a obra de Gógol parece transcender qualquer moldura e submetê-la às mais variadas classificações tem sido a tarefa da crítica ao longo dos séculos XIX e XX. Aríete Cavaliere
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À saída do teatro depois da apresentação de uma nova comédia Entrada do teatro. De um lado vêem-se as escadas principais, que levam aos camarotes e galerias; ao centro, o acesso às poltronas e ao anfiteatro. Do outro lado, a saída. Ouve-se ao longe o ruído de aplausos. O autor da peça (entrando) - Sinto-me como que livre de uma tempestade! Finalmente, os gritos e os aplausos! Todo o teatro ecoa... A glória! Deus, como palpitaria meu coração há sete ou oito anos, como tudo dentro de mim estaria em rebuliço! Mas isso foi há muito tempo. Na época eu era jovem e atrevido como um adolescente. Bendita a Providência, que não me deixou provar dos entusiasmos e elogios passageiros! Agora... Apesar de tudo, o tempo nos ensina a ser racionais e frios. Aprende-se que os aplausos pouco significam, e estão sempre prontos a servir a todos como recompensa: ao ator que compreende todo o mistério da alma e o coração do homem, ao bailarino que adquire a habilidade de dar 13
piruetas, ao ilusionista — os aplausos são para todos. Para a mente que raciocina, para o coração que sente, para o ressoar das profundezas da alma, para os pés que trabalham ou para as mãos que entornam copos — os aplausos são um prêmio para todos, como o marulho da correnteza. Não, não são aplausos que eu queria para este momento: eu queria, neste exato instante, transportar-me para o palco, para a galeria, para uma poltrona, para a arquibancada. Estar em todas as partes, ouvir todas as opiniões e impressões enquanto ainda são puras e frescas, enquanto ainda não foram submetidas ao bom senso e às apreciações dos críticos e dos jornalistas, enquanto cada pessoa está somente sob a influência de seus próprios critérios. Isto é importante para mim: eu sou um autor de comédias. Todas as outras obras e gêneros estão sujeitos ao julgamento de uns poucos. Um autor de comédias está sujeito aos julgamentos de todos; sobre ele qualquer espectador tem direitos, qualquer desclassificado põe-se logo a julgá-lo. Oh! Com o eu gostaria que me mostrassem todos os meus defeitos e vícios. Mesmo que seja preciso que a maldade guie suas línguas — através da paixão, da indignação, do ódio — como queiram, mas que se manifestem com justiça. Não se pode pronunciar uma palavra sem motivo, mas se pode espalhar por toda parte uma centelha de verdade. Aquele que se atreveu a apontar o lado risível dos outros, deve ter a sensatez de aceitar as considerações que podem vir a ser feitas sobre os pontos 14
fracos e o ridículo de si mesmo. Estando aqui à saída, vou experimentar ouvir alguma coisa enquanto as pessoas se retiram. É impossível que não haja comentários de bom senso sobre a nova peça. Uma pessoa sob a influência da primeira impressão costuma estar animada e se apressa em dividi-la com os outros. (Passa ao outro lado) Saem várias pessoas, muito bem vestidas; uma delas diz, dirigindo-se à outra: É melhor sairmos agora. Vão apresentar um vaudeville insignificante. Ambos saem. Dois robustos comme il faut1 descem as escadas. Primeiro comme il faut — É bom que a polícia não tenha espantado para muito longe a minha carruagem. Você sabe como se chama esta jovem atriz? Segundo comme il faut — Não, mas é bem inte ressante. Primeiro comme il faut — Sim, é interessante, mas falta-lhe algo. Olhe, recomendo-lhe o novo restaurante: ontem serviram-nos ervilhas frescas verdejantes (beija as pontas dos dedos) — uma maravilha! (Saem ambos) Passa correndo um oficial; outro o detém, segurandoo pelo braço. Primeiro oficial — Vamos ficar! O outro oficial — Não, irmão. Não se deixe enganar por um vaudeville. Já conhecemos essas peças que nos 15
servem de sobremesa: servos no lugar de atores, e as mulheres, um monstro atrás do outro. Saem. Um homem de sociedade, trajado com elegância (descendo as escadas) — Alfaiate incompetente. Fez-me as calças apertadas demais. O tempo todo em que estive sentado me senti incomodado. É por isso que agora tenho a intenção de enrolar uns bons dois aninhos para pagar a dívida. (Sai) O utro homem de sociedade, acercando-se mais (falan do com animação ao outro) — Creia em mim. Nunca, ele jamais vai se sentar para jogar cartas contigo. Com menos de cento e cinqüenta rublos intimida-se e não joga. Eu sei bem, porque meu cunhado Pafnutiev joga todos os dias com ele. O autor da peça (para si mesmo) — Todo esse tempo e nenhuma palavra sobre a comédia! Um funcionário de meia idade (entra com os braços abertos) — Só o diabo, só o diabo sabe lá o que é isto! Isto é... Isto é... Isto é o cúmulo! (Foi-se) Um senhor que fala de literatura com indiferença (dirigindo-se a outro) — Não parece ser uma tradução? O outro — Que tradução, que nada! Tudo se passa na Rússia, falando de nossos costumes e da nossa sociedade. O senhor que fala de literatura com indiferença — Pois eu me lembro que havia algo assim em francês, mas não exatamente deste gênero. Ambos saem. 16
Um espectador (também saindo) — Hoje ainda é um tanto difícil dizer qualquer coisa. Esperemos para saber o que dirão as revistas, aí então saberemos. Dois capotes (um deles) — Vamos, diga lá! Gostaria de saber sua opinião sobre a comédia. O outro capote (apertando os lábios de maneira significativa) — Sim, naturalmente, é impossível dizer algo que não seja injusto... No seu gênero... Certamente há quem seja contra isso. Não há como dizer algo dessa maneira... Mas, pensando bem... (aperta os lábios afirma tivamente) Sim, sim. Saem. O autor (para si mesmo) — Bem, por enquanto ainda não disseram muita coisa. Entretanto, é certo que as opiniões virão: já posso ver, ali adiante, mãos se agitando freneticamente. Dois oficiais. O primeiro oficial — Eu nunca ri tanto. O segundo oficial — Tenho certeza: é uma comédia diferente. O primeiro oficial — Se bem que nada do que vimos foi comentado nas revistas. É preciso submetê-la às críticas... Olhe, olhe! (Empurra-o pelos braços) O segundo oficial — O quê? O primeiro oficial (apontando o dedo para um dos que descem as escadas) — É um literato! O segundo oficial (agitado) — Qual? 17
O primeiro oficial — Este aí! Pss... Vamos ouvir o que ele diz. O segundo oficial — Quem é o outro com ele? O primeiro oficial — Não sei, não faço idéia de quem seja este homem. Os dois oficiais afastam-se, dando passagem, e cedem o lugar aos outros dois. O homem desconhecido — Não posso julgar quanto à qualidade literária, mas me parece ser algo original. Espirituoso, espirituoso. O literato — Perdão, mas espirituoso em quê? E quanto ao rebanho de tipos vulgares, e quanto ao tom usado? Gracejos bem inconvenientes, isto sim. E até mesmo uma indecência. O homem desconhecido — Ah, aí é outra coisa. Eu já disse que quanto ao mérito literário não posso julgar; observo apenas que é uma peça engraçada, e que foi um prazer assisti-la. O literato — Mas ela não é nada engraçada! Seria engraçada em quê? Que tipo de prazer ela proporciona? O argumento é inverossímil. São absurdos atrás de absurdos. Não há trama, nem ação, nem sequer qualquer reflexão. O homem desconhecido — Vá lá, quanto a isso eu não digo nada. No sentido literário, no sentido literário ela não é engraçada; mas no aspecto, digamos, externo, ela tem... O literato — Ela tem o quê? Ora, nem mesmo isso ela tem! E quanto à linguagem usada nos diálogos? Quem 18
falaria desse jeito em alta sociedade? Diga-me, falamos entre nós desse jeito? O homem desconhecido — E verdade, isto você observou bem. Eu mesmo pensei assim: não há grandeza nos diálogos. Todas as personagens parecem não poder dissimular sua má índole. Isto é verdade. O literato — Veja só, e você ainda elogia! O homem desconhecido — Quem está elogiando? Eu não estou elogiando. Agora também vejo o quanto a peça é uma estupidez. O problema é que assim, de repente, é impossível saber; eu não posso julgar do ponto de vista literário. Ambos saem. Mais um literato (entra acompanhado de vários ouvin tes, aos quais fala gesticulando) — Creiam em mim, disso eu entendo: a peça é abominável! E uma obra suja, imunda! Nenhuma personagem é verdadeira, são todas caricaturas! Na vida real não é assim. Não, acreditem, eu sou o melhor para falar sobre o assunto: sou um literato. Falam de observação, de animação... Pois sim, é tudo uma estupidez. São palavras de amigos do autor; amigos elogiando, todos amigos! Eu ouvi dizer até que ele está sendo comparado a Fonvízin,2 quando a peça, sinceramente, não é digna sequer de ser chamada de comédia. Uma farsa, uma farsa! E além de tudo, uma farsa destinada ao fracasso. A última comediazinha de Kotziébue,3 que por sinal é bem reles, comparada a esta, é como o M ont Blanc frente às colinas 19
de Púlkov. E isto eu posso provar a todos matematicamente, como dois e dois são quatro. Os amigos e comparsas elogiaram-no tão desmesuradamente, que agora ele acredita que por muito pouco não é um Shakespeare. Sempre temos amigos dispostos a nos colocar nas nuvens. Vejam, por exemplo, Púchkin... Por que toda a Rússia fala dele, hoje em dia? Os amigos elogiaram-no, elogiaram-no, até que por causa deles toda a Rússia pôs-se a elogiar também. (Sai, acompanhado por seus ouvintes). Os dois oficiais avançam e ocupam seus lugares. O primeiro oficial — Tem razão, tem toda razão: é mesmo uma farsa; e isto eu já disse antes. E uma farsa tola, amparada pelos amigos. Confesso que muitas vezes foi até mesmo asqueroso de se ver. O segundo oficial — Pois se você disse que nunca riu tanto assim? O primeiro oficial — Mas este é outro caso. Você não compreende. Vou explicar muito bem explicado. O que há nesta peça? Em primeiro lugar, não há nenhum enredo, nem tampouco ação, e decididamente nenhuma reflexão. Tudo é inverossímil e, além disso, todos são caricaturas. Atrás desses oficiais aparecem outros dois. Um (falando ao outro) — Quem é aquele que está opinando? Parece ser um dos nossos? O outro, olhando de lado, com certo desprezo, para o rosto daquele que está dando opiniões. 20
O primeiro — O quê, é um imbecil? O segundo oficial — Não, até que não. Assim que sai a revista, inteligência não lhe falta. Mas basta o número atrasar... Aí não tem nada na cabeça. Bem, vamos. Saem. Dois amantes da arte. O primeiro — Eu não estou, de maneira alguma, entre aqueles que só usam palavras como “indecente”, “repugnan te”, “de mau gosto” ou “isto parece com algo que já li”. Está provado que estas palavras saem, quase sempre, da boca de pessoas que são, elas próprias, muito suspeitas. Divagam sobre castelos de areia, e acham que estão sempre à frente de tudo. Mas não é sobre elas que quero falar agora, e sim sobre a falta de enredo na peça. O segundo — Ora, se considerarmos o enredo em seu sentido literário, como geralmente se considera, aí sim. No sentido de ser uma intriga amorosa, isto não é mesmo. Mas me parece que já é tempo de se deixar de apoiar este eterno argumento, como tem sido até agora. Vale a pena olhar ao redor, com atenção. H á tempos o mundo está muito muda do. Hoje em dia, o que há de mais forte num drama é a vontade de conquistar uma posição de destaque, de brilhar e ofuscar. E se isto não acontece, então o objetivo passa a ser a vingança com algum desprezo ou alguma zombaria. Não é melhor, hoje em dia, ter uma posição social, grande capital, um casamento lucrativo, em vez de amor? O primeiro — Neste aspecto, isto tudo é verdade. Mas, ainda assim, eu não vejo enredo na peça. 21
O segundo — Não sou eu quem vai afirmar, agora, se na peça há enredo ou não. Eu só digo que, geralmente, busca-se um enredo mais pessoal, e ninguém quer ver a trama geral. As pessoas simples já se habituaram a estes relacionamentos amorosos e casamentos, sem os quais uma peça não pode terminar, de jeito nenhum. Claro que isto é o enredo; mas que enredo? O mesmo que um nó no canto de um lenço. Não, a comédia tem de enfeixar-se por si mesma, com todo o seu conteúdo formando um grande e único nó. O enredo deve abranger todas as personagens, e não uma ou duas. Deve tocar naquilo que emociona, mais ou menos, a todos os atuantes. E assim, todos são prota gonistas; o curso e o andamento da peça derivam do funcionamento de toda a máquina: nenhuma roldana deve ficar enferrujada e fora de funcionamento. O primeiro — Mas nem todos podem ser protagonis tas; um ou dois devem conduzir os demais. O segundo — Conduzir, não. Mas é possível predo minar. Numa máquina há sempre uma roldana mais forte e poderosa a impulsionar. Podem chamar simplesmente de “principal”. Mas o que conduz a peça é a idéia e o pensamento. Sem eles não há unidade na peça. Qualquer coisa pode servir para dar unidade: o próprio terror, o medo, a expectativa, um crime que acontece distante dos olhos da lei... O primeiro — Mas isso resulta em dar à comédia um certo valor mais universal. 22
o
segundo — Claro, e não será isto o seu valor verdadeiro e atual? No princípio, a comédia acontecia em público, e era uma criação popular. Exibiam-na tal qual seu pai, Aristófanes, a concebera. Depois, entrou pelo estreito desfiladeiro do enredo particular, com características ro mânticas. E como este enredo era fraco, mesmo quando trabalhado pelos melhores autor de comédias! Como eram futeis estes galãs de teatro, com seu amor de papelão! Um terceiro (aproximando-se e batendo levemente em seu ombro) — Você não tem razão. O amor, como os demais sentimentos, também pode entrar na comédia. O segundo — Eu não digo que não possa entrar. Mas o amor e os outros sentimentos, também elevados, só causam boa impressão quando estão desenvolvidos em toda a sua profundidade. Ocupando-se deles, deve-se inelutavelmente sacrificar tudo o mais. Tudo o que constituía justa mente a comédia empalidece, e o seu significado universal necessariamente desaparece. O terceiro — Pois então, o tema da comédia deve, necessariamente, descer à vulgaridade? O segundo — Isso para quem olhar para as palavras e não lhes penetrar o sentido. Mas será que o positivo e o negativo não podem servir ao mesmo fim? Será que a comédia e a tragédia não podem expressar o mesmo pensamento elevado? Será que tudo, desde o mais recôndito canto da alma de um homem vil e desonesto, não pode desenhar a imagem de um homem honesto? Será que todo 23
o acúmulo de baixezas, a transgressão das leis e da justiça, não nos dão a entender que é isto mesmo que exigem de nós a lei, o dever e a justiça? Nas mãos de um médico habilidoso, a água quente e a fria curam com o mesmo sucesso, tanto uma doença quanto a outra. Em mãos talentosas tudo pode servir como instrumento para o belo, se é usado um pensamento elevado para isso. Um quarto (aproximando-se) — O que é que pode servir ao belo? E sobre o que vocês conversam? O primeiro — A nossa discussão é sobre a comédia. Falamos o tempo todo sobre a comédia em geral, mas ninguém falou nada ainda sobre a nova comédia. O que você diz? O quarto — O que digo é o seguinte: há talento e observação da vida. É engraçada e fiel ao real; mas, no geral, falta-lhe algo. Não se vê enredo, nem desfecho. E estranho que nossos autor de comédiass não consigam nunca se virar, sem que tenham que falar do governo. Sem ele, nenhuma comédia é feita. O terceiro — Isto é verdade. Aliás, isso é muito natural. Todos nós pertencemos e quase todos servimos ao governo; todos os nossos interesses, maiores ou menores, estão ligados ao governo. Portanto, é natural que isso seja refletido nas obras dos nossos escritores. O quarto — Pois bem, o que me importa é que esta ligação continue sendo evidente. É justamente por ser cômica que a peça não pode terminar, de maneira alguma, 24
sem a presença do governo. É preciso que ele apareça; é como a fatalidade inevitável nas tragédias dos antigos. O segundo — Vejam só, isso já é algo involuntário em nossos autor de comédiass. É um certo caráter distintivo das nossas comédias. Em nosso peito trazemos guardada uma misteriosa crença no governo. Como assim? Cá entre nós, não é nada mau: queira Deus que o governo, sempre e em toda parte, siga sua vocação de ser o representante da Provi dência na terra, e que nós acreditemos nele, como os nossos antepassados acreditavam no destino, que punia os delitos. Um quinto — Salve, senhores! Ouço somente a palavra “governo”. Essa comédia andou suscitando rumores e co mentários... O segundo — E melhor que conversemos sobre estes rumores e comentários em minha casa do que aqui, no saguão do teatro. Saem. Várias pessoas respeitáveis e decentemente vestidas vão surgindo, uma atrás da outra. N° 1 - Eu sei, eu sei: com certeza isso que nós temos aqui acontece em outros lugares, de maneira ainda pior, mas para que mostrar? A que leva isto? Eis a questão: para que estes espetáculos? Qual a utilidade deles? Eis o que me intriga! Que necessidade tenho eu de saber que em tal ou qual lugar há farsantes? Eu, sinceramente... Não entendo a necessidade de semelhantes espetáculos. (Sai) N ° 2 — Não, isto não é rir dos defeitos; isto é uma abominável zombaria com a Rússia, eis o que é. Isto é 25
representar pessimamente até mesmo o governo, porque exibir maus funcionários e os desmandos que acontecem em diversas classes sociais, é como exibir o próprio governo. Simplesmente não deveriam autorizar tais exi bições. (Sai) Entram o Sr. A e o Sr. B, homens de m uita classe. Senhor A — Eu não falo disso; pelo contrário, é preciso que os abusos apareçam; é preciso que vejamos nossos atos; eu não concordo nem um pouco com muitas opiniões de patriotas demasiadamente exaltados. Apenas me parece que há algo muito triste nisso... Senhor B — Eu queria muito que você tivesse ouvido uma observação de um homem muito modestamente vestido, que estava sentado perto de mim, na poltrona... Ah! É o próprio! Senhor A — Quem? Senhor B — Exatamente este homem, em trajes muito modestos. (Dirigindo-se a ele) Não terminamos nossa conversa, que começava a ser bem interessante. O homem -trajado muito modestamente — Confesso que fico muito satisfeito em continuá-la. Até agora ouvi apenas comentários, do tipo: que isto tudo não é verdade, que é uma troça com o governo, com nossos costumes, e que isto não se pode exibir de maneira nenhuma. Isto me obrigou a lembrar de toda a peça e, para ser franco, a representação da comédia, mesmo agora, me parece ainda mais significativa. Nela, parece que há uma forte 26
e profunda exposição da hipocrisia através do riso, sob a máscara da decência está a baixeza e a infâmia, o homem de bem é um farsante fazendo caretas. Para ser bem sincero, eu senti um certo contentamento em ver como são engraçadas as palavras honestas na boca de um farsante. E como o bom humor da peça colocou todos, das poltronas às arquibancadas, vestidos em suas próprias máscaras. E depois disso ficam as pessoas a dizer que não é preciso representar essas coisas no palco! Eu ouvi uma observação que me pareceu dita, aliás, com satisfação, por homens honestíssimos: “o que diz o povo, quando vê que estamos envolvidos em tais abusos?”. Senhor A — Sinceramente, o Sr. me perdoe, mas a mim também surgiu a mesma questão: o que o povo diz, vendo tudo isso? O homem trajado muito modestamente — O que o povo diz? (dá passagem a dois homens vestidos com samarras).4 Samarra azul (à samarra cinza) — Os governantes eram espertos, mas como empalideceram, quando veio a repressão czarista! O homem trajado m uito modestamente — Vocês ouviram o que diz o povo? Senhor A — O quê? O homem trajado muito modestamente — Diz: “os governantes eram espertos, mas como empalideceram, quando veio a repressão czarista”. Ouviram, como o 27
homem é fiel ao sentimento e ao instinto natural? Como é natural o instinto de olhar os mais simplórios, se ele não está turvado com teorias e idéias arrancadas de livros, mas extraídas da própria índole do homem! Será que não é evidente que depois de tal espetáculo o povo adquira mais confiança no governo? Sim, o povo precisa de tais espetáculos. Que ele separe o governo dos maus governantes. Que veja que os abusos não provêm do governo, nem das reclamações dos que conhecem o governo, e nem dos desejosos em responsabilizar o governo. Que ele veja o quão nobremente o governo vela por todos da mesma maneira, com olhos vigilantes; que cedo ou tarde o governo apanhará os transgressores da lei, da honra e da honestidade do homem; que empalidecerão diante dele os que têm a consciência suja. Sim, é preciso que o povo assista a estas representações; creiam, que se acontecer ao povo de experimentar a opressão e a injustiça, ele sairá reconfortado depois de tal exibição, confiante na existência de uma lei suprema. É ainda mais divertida a observação: “o povo terá uma péssima imagem de seus superiores”. Pois então eles imaginam que somente aqui, no teatro, pela primeira vez, o povo vê seus superiores; que em suas casas, onde qualquer administrador de bairro os agarra pelo colarinho, não vêem. Só mesmo quando vão ao teatro é que vêem. Eles, é claro, consideram o nosso povo como um bando de imbecis, imbecis a tal ponto, que é como se não tivessem a capacidade de distinguir a diferença entre 28
uma torta de carne e um pastel de queijo. Não, agora me parece mesmo certo que é impossível trazer ao palco um homem honesto. O homem tem amor próprio: mostra-se a ele uma coisa boa em meio a muitas ruins, e ele já sai do teatro orgulhoso. Não, é claro que, hoje em dia, a apresentação de uma virtude apenas compensa todos os vícios que lhes ferem os olhos. Não querem que sejam vícios de seus compatriotas, e se envergonham até mesmo por perceber que eles possam existir. Senhor A — Mas será que é possível que existam entre nós pessoas como estas? O homem trajado muito modestamente — Permitame dizer: eu não sei por quê, mas sempre me entristeço ao ouvir tal pergunta. Vou falar a você com sinceridade. O ho mem, antes de tudo, faz a si próprio a seguinte pergunta: “será possível que existam tais pessoas?” Mas, quando se dá conta, na verdade havia feito esta pergunta: “será possível que eu mesmo esteja limpo de tais vícios?” Nunca, jamais. Digo isto com toda a franqueza. Tenho um coração bondo so, trago muito amor em meu peito... Mas se soubessem quantos esforços me foram necessários para não sucumbir a muitos dos vícios, em que caem involuntariamente as vidas das pessoas! E como posso dizer então, que não tenho as mesmas inclinações de que todos riam há dez minutos atrás, aliás, das quais eu mesmo ri-me a valer. Senhor A (depois de algum silêncio) — Confesso que, depois de ouvir suas palavras, fico eu a refletir. Lembro29
me, então, de como temos orgulho de nossa formação européia; de como, geralmente, nos escondemos de nós mesmos; de como tratamos com tamanha arrogância e desprezo aqueles que não se parecem conosco; de como cada um de nós se coloca quase como um santo, falando somente do que há de ruim nos outros. Então a minha alma se entristece... Mas, perdoe a minha indiscrição, ainda que você mesmo seja culpado disto; permita-me saber: com quem eu tenho o prazer de conversar? O homem trajado muito modestamente — Eu não sou nem mais nem menos do que um desses burocratas, num desses cargos que foi retratado na comédia, e que chegou há apenas três dias da sua cidadezinha. Senhor B — Jamais poderia pensar isso. E não lhe parece uma ofensa, depois de assistir a isso tudo, viver e trabalhar com tais pessoas? O homem trajado muito modestamente — Ofensa? Vou lhe dizer: confesso que muitas vezes estive a ponto de perder a paciência. Em nossa cidadezinha nem todos os funcionários são honrados; muitas vezes, fazer uma boa ação é tão difícil quanto subir num muro alto. Já, por vezes, quis abandonar a função; mas agora, mais preci samente depois dessa apresentação, eu sinto ao mesmo tempo como que um frescor e uma nova força para prosseguir em minhas atividades. Já fico consolado com a idéia de que a vilania que sofremos não ficará oculta nem será tolerada. Sinto que aqui, ante os olhos dos 30
homens nobres, essa vilania é rebaixada ao ridículo; sinto que há uma pena que se destina a revelar nossas mais baixas inclinações, ainda que não bajule nosso orgulho nacional; e sinto que existe um governo digno, que permite que tudo isto seja mostrado, e que também observa tudo. Isto já me dá forças para continuar meu útil trabalho. Senhor A — Permita-me fazer uma proposta. Ofereço a você, com muito prazer, um cargo estatal de importância. Eu estou precisando, realmente, de auxiliares distintos e honestos. Nesta posição, você terá um vasto campo de ação, e terá vantagens incomparavelmente maiores do que as que têm hoje, além de ser muito mais considerado. O homem trajado muito modestamente — Permitame, do fundo da minha alma e de todo coração, agradecer esta oferta. E, ao mesmo tempo, permita-me recusá-la. Se eu já sinto ter conquistado meu lugar, seria digno comigo mesmo jogar tudo fora? E como posso deixá-lo, sem a certeza de que nenhum valentão irá ocupá-lo no futuro, para começar a fazer perseguições às pessoas? Se o senhor me faz esta proposta como uma espécie de prêmio, deixe então lhe dizer: eu aplaudi o autor da peça tanto quanto os outros, mas não precisei oferecer nada a ele. Por quê recompensá-lo? A peça agradou, elogiaram-na, mas ele apenas cumpriu sua obrigação. Somos tão espertos que, entre nós, basta que alguém não cometa nenhum erro e não faça mal a ninguém, tanto na vida pessoal quanto 31
no trabalho, para que seja considerado, sabe lá Deus por quê, um homem virtuoso, digno de recompensa. “Perdão”, diz, “eu vivi a vida inteira honestamente. Quase náo cometi vilania. Como podem negar-me uma promoção, uma condecoração?” Não. Em minha opinião, se numa pessoa não há nobreza sem incentivos, não posso acreditar nela; é uma nobreza que não vale um vintém. Senhor A — Pelo menos, você não vai me recusar sua amizade. Perdoe-me a inconveniência; você mesmo pode ver que ela é conseqüência da minha sincera estima. Dê-me seu endereço. O homem trajado muito modestamente — Aqui está meu endereço. Fique certo de que não deixarei que você o utilize, pois amanhã mesmo me apresentarei à sua porta. Desculpe-me, eu não tive lá uma grande educação, nem sei falar... Mas receber esta generosa atenção de um homem de Estado, tal inclinação para fazer o bem... Queira Deus que todo grande soberano esteja cercado de pessoas semelhantes! (Sai apressado) Senhor A (girando nas mãos o cartão) — Ao olhar para este cartão, para este nome desconhecido, isto basta para engrandecer-me a alma. A primeira triste impressão consumiu-se por si mesma. Que Deus a proteja, nossa Rússia desconhecida! No mais recôndito, numa de suas esquinas esquecidas, esconde-se uma pérola como essa, que provavelmente não é a única! São como chispas numa mina de ouro, espalhadas em meio ao granito maciço e 32
escuro. Consolou-me profundamente essa aparição, e minha alma se iluminou depois da conversa com este funcionário, como a dele se iluminou depois de assistir à comédia. Adeus! Agradeço pelo encontro que me proporcionaram. (Sai) Senhor C (Acercando-se do Senhor B) — Quem era aquele com vocês? Parece ser um ministro, não? Senhor P (Acercando-se pelo outro lado) — Perdão, meus amigos, mas... O que é isso! Como pode ser uma coisa dessas?... Senhor B — O quê? Senhor P — Ora, trazer à cena somente este assunto? Senhor B — E por que não? Senhor P — Ora, você mesmo pode julgar! Como pode ser isto? Representar só vícios e mais vícios! Que exemplo é este que se dá aos espectadores? Senhor B — Mas, é possível alguém se gabar desses vícios? São trazidos à cena para que caiam em ridículo. Senhor P — É como se diz, irmão: o respeito... A consideração... Pois é por isso que se perde o respeito pelos funcionários e pelos que ocupam cargos. Senhor B — Não se perde o respeito por funcionários, nem pelos que ocupam certos cargos, mas por aqueles que não desempenham dignamente suas funções. Senhor C — Permita-me observar que tudo isto se constitui num ultraje, que acaba recaindo, de um modo ou de outro, sobre todos. 33
Senhor P — Justamente. Pois é isso que eu queria fazê-lo entender. É, certamente, um ultraje que recai sobre todos. Agora, por exemplo, expõem em cena um titular qualquer, e depois... Quem sabe... Acabam fazendo isso com um verdadeiro conselheiro de Estado. Senhor B — E por que não? Somente o indivíduo deve ser imune; mas se eu criei uma personagem, e dei a ela alguns vícios, que por sinal acontecem entre nós... Conferi a ela uma patente superior que me veio à mente, até mesmo a de um verdadeiro conselheiro de Estado... O que há de mal nisso? Não será possível haver dentre os verdadeiros conselheiros de Estado um vadio qualquer? Senhor P — Ora, amigo, assim já é demais. Como pode haver um verdadeiro conselheiro de Estado vadio? Ainda que fosse um titular... Não, você está indo longe demais. Senhor C — Por que trazer à cena o que é mau? Por que não apresentar o que há de melhor... O que é digno de imitação? Senhor B — Por quê? Estranha pergunta: “por quê?” Pode-se dizer que há muitos “por quês”. Por que um pai que quer tirar seu filho de uma vida desregrada não gasta palavras, nem dá sermão, mas leva-o ao hospital, onde desfilam diante de seus olhos desesperados os horrores e as terríveis marcas da vida desregrada? Por que faz isso? Senhor C — Permita-me tentar fazê-lo observar que estas são certas feridas sociais, que é mais necessário ocultar do que mostrar. 34
Senhor P — É verdade. Estou completamente de acordo. O que nós temos de ruim é preciso esconder, e não mostrar. Senhor B — Se estas palavras fossem ditas por qualquer outra pessoa, que não você, eu diria que eram palavras de pura hipocrisia, e não de verdadeiro amor à pátria. Na sua opinião, é preciso curar apenas superficial mente estas feridas sociais, para que não sejam vistas. Mas por dentro, que a doença permaneça, pouco importa. Pouco importa que ela possa explodir e revelar estes sintomas, quando já será tarde demais para qualquer tratamento. Pouco importa. Você não quer saber que sem uma confissão sincera, feita de coração, sem o reconhe cimento cristão de seus próprios pecados, sem exagerar estas coisas aos nossos próprios olhos, não teremos forças para elevar nossas almas acima das vilanias da vida. Você não quer compreender isto! Que permaneça o homem na sua surdez, que passe a vida nessa sonolência, de maneira que não estremeça, que não clame por nada, que já nada possa abalar sua alma! Não, desculpe-me! Um frio egoísmo é o que sai das vossas bocas, sem o menor amor à humanidade. (Sai) Senhor P (depois de algum silêncio) — Por que está calado? Viu alguém? Por que você não diz nada? Senhor C (permanece calado) Senhor P (prosseguindo) — Ele pode dizer o que quiser. De qualquer modo, são as nossas feridas. 35
Senhor C (à parte) — Ora, se leva essas feridas na língua, pode falar sobre elas com qualquer um. Senhor P — Assim, também eu posso falar mal de tudo o que quiser, mas o que se consegue com isto?... Olha o príncipe N. Ouça, príncipe, não vá! Príncipe N — O quê? Senhor P — Espere, vamos conversar. E que tal a peça? Príncipe N — Fez-me rir bastante. Senhor P — Ainda assim, diga-me: acha que é possível representar essas coisas? Existe algo parecido com isto? Príncipe N — E por que não representar essas coisas? Senhor P — Imagine você, de repente, no palco, um farsante! Ora, afinal de contas, são as nossas feridas. Príncipe N — Que feridas? Senhor P — Sim, nossas feridas... Digamos, nossas feridas sociais. Príncipe N (contrariado) — Fale por si! Que sejam as suas feridas, mas não as minhas! Por que vem você me falar delas? Bem, já é hora de ir para casa. (Sai) Senhor P (prosseguindo) — E depois, tem mais... Que grande tolice ele disse aqui? Disse que um verdadeiro conselheiro de Estado pode ser um vadio. Ora, ainda se fosse um titular, vá lá... Senhor C — Veja só por onde nos enredamos. Chega de conversa. Acho que todos os que passam por aqui já perceberam que você é um verdadeiro conselheiro de 36
Estado (à parte). H á pessoas que possuem a arte de pôr defeito em tudo. Executam a sua própria idéia, tão vulgarmente e repetidas vezes, que você mesmo se enver gonha dela. Você diz uma bobagem, que poderia até passar despercebida, mas não. Aparece um admirador que, inevitavelmente, a colocará em prática e a fará mais estúpida do que ela é. Até aborrece... É como ser jogado num lodaçal. (Saem) Entram juntos um civil e um militar. O civil —Vejam só como vocês são, senhores militares! Vocês dizem que “é preciso mostrar isto no palco”. Vocês estão dispostos a rir à vontade de qualquer funcionário civil; mas, se tocam nos militares... Se falam que em qualquer re gimento há oficiais que, sem falar das inclinações viciosas, são oficiais de caráter duvidoso, com modos indecorosos... Então vocês se colocam logo do lado dos atingidos, levando a briga ao próprio Conselho de Estado. O militar — Ora, ouça, por quem você me toma? Sem dúvida que entre os nossos há os Dom Quixotes, mas também há pessoas realmente sensatas, que sempre estarão satisfeitas em ver eliminados de sua classe os depravados e imbecis em geral. E que ofensa há aqui? Que nos mostrem esses depravados! Cada um de nós está preparado para vê-los todos os dias. O civil (à parte) — É sempre assim que esbraveja o homem; “mostrem-nos! Mostrem-nos!” Mas, depois de ver o suficiente, cansa-se. (Saem) 37
Dois capotes. Primeiro capote — Os franceses também fazem isto, mas à maneira deles, tudo é muito mais engraçado. Lembre-se do que aconteceu no vaudeville de ontem: alguém tira a roupa, pega a saladeira da mesa e se mete debaixo da cama. A peça, sem dúvida, é indiscreta, mas é engraçada. Pode-se ver que em tudo isso não há ofensa... Eu tenho mulher e filhos que todos os dias vão ao teatro. Mas, desse jeito... O que é isso? Um canalha qualquer, um mujique que eu não permitiria nem passar por perto, esparrama-se com as botas para cima, boceja e palita os dentes. Ora, o que é isso? Onde é que já se viu uma coisa dessas? O outro capote — Com os franceses é outra coisa. Lá existe “société, mon cher”!5 Entre nós é impossível. Nossos “escrivinhadores” não possuem, absolutamente, qualquer formação. A maioria deles é educada em semi nários, e são inclinados ao vinho e à libertinagem. O meu criado também recebe visitas de um certo escritor... Como pode ter noção do que é uma boa sociedade? Saem. Uma dama da sociedade (em companhia de dois homens: um de fraque, o outro fardado) — Que gente! Que perso nagens! Não conseguem ter nenhum atrativo... Ora, por que não se escreve aqui como os franceses? Como Dumas e outros, por exemplo? Eu não exijo modelos de virtude. Mostrem-me uma mulher que cai em erro, que até engana 38
seu marido, entregando-se, suponhamos, a um amor depra vado e ilícito. Mas me mostrem isto de forma atraente. De forma que eu me sinta envolvida pelo destino dela. De forma que ela me pareça amável. Pois aqui as personagens são todas caricaturas, uma mais repugnante do que a outra. O homem fardado — Sim, trivial, trivial. A dama da sociedade — Diga-me por que tudo, na Rússia, continua sendo tão trivial? O homem de fraque — Minha querida... Depois poderá nos contar por que é tão trivial. Já chamaram nossa carruagem. Saem. Entram juntos três senhores. O primeiro — Por que não rir? Pode-se rir, mas com este tema? Abusos e vícios! Que graça se pode tirar disso? O segundo — Então, pode-se rir de quê? Das virtudes e qualidades do homem? O primeiro — Não, isto é que não é argumento para comédias, meu caro! De certo modo, isto já é afetar o governo. Será que não há outros temas para se escrever? O segundo — Q ue outros temas? O primeiro — Ora, então não são suficientes todos os casos engraçados que acontecem em sociedade? Supo nhamos, por exemplo, que eu parta a passeio para a ilha de Aptekarski, e que o meu cocheiro, de repente, me leve para Viborskaia, ou ao Convento de Smolni. Não bastam, então, estes acontecimentos engraçados? 39
O segundo — Então você quer tirar da comédia todo o seu significado mais sério? Então para que dizer que a lei é iniludível? H á comédias aos montes, dessas que você deseja, mas por que não admitir a existência de mais dois ou três gêneros, como esta que foi representada agora? Se estas de que você fala o agradam tanto, é só ir ao teatro. Lá você pode assistir, todos os dias, a peças onde um se esconde sob a poltrona e outro o arranca de lá pelas pernas. O terceiro — Ah, não! Ouçam: não é bem assim. H á limites para tudo. Existem coisas que são sagradas, coisas das quais não se ri. i—' O segundo (à parte, com um sorriso amargo) — As / coisas nesse mundo são assim. Se alguém ri do que é realmente nobre, das coisas elevadas e sagradas, ninguém sai em defesa delas. Se, por outro lado, alguém ri do que é vil e infame, todos se põem a berrar: “ele está rindo do que é sagrado”. O primeiro — Vejo que você já está convencido. Não diga mais uma palavra. Acredite, esta é a verdade. É impossível que alguém não se convença disso. Eu sou um homem imparcial, e digo porque... Mas, sinceramente, não é assunto para o autor, nem tema para comédia. (Sai) O segundo (à parte) — Confesso que eu não queria estar no lugar do autor agora. Se ele escolhe um tema de pouca importância, todos vão dizer: “não busca nenhuma moral mais profunda”. Agora, se escolhe um 40
tema mais sério e com um fundo moral, dirão: “ele não deveria se meter nisso. Só escreve tolices!” (Sai). Uma jovem dama da alta sociedade, acompanhada pelo marido. O marido — Nossa carruagem não deve estar longe, poderemos partir logo. Senhor N (aproximando-se da dama) — Olha só quem vejo! Você veio assistir à peça russa! A jovem dama — Que mal há nisso? Será que eu já não sou mais patriota? Senhor N — Ora, se não. É que vocês não são lá muito impregnados desse patriotismo. Com certeza você vai censurar a obra? A jovem dama — É claro que não. Na verdade eu ri até o fundo da alma. Senhor N — De que você riu? Será que você gosta de rir de tudo o que é russo? A jovem dama — Só ri porque foi engraçado. Ri porque a infâmia e a baixeza foram trazidas à luz, e não foram vestidas em trajes que as pudessem esconder. A infâmia e a baixeza seriam as mesmas numa cidadezinha de província ou aqui entre nós. É disso que eu ri. Senhor N — Acabei de falar com uma senhora muito inteligente. Ela me disse que riu, mas que junto ao riso, o tom da peça provocou uma impressão triste. A jovem dama — Pouco me importa o que achou a sua senhora inteligente. Eu não tenho os nervos tão 41
sensíveis e sempre tenho prazer em rir-me daquilo que, no fundo, é engraçado. Sei que há quem seja diferente de nós, que estamos prontas a rir até o fundo da alma de um homem com o nariz defeituoso, mas não temos espírito para rir de um homem de alma defeituosa. Surgem ao longe outra dama com seu marido. Senhor N - Olha lá nossa amiga. Queria saber a opinião dela sobre a comédia, (as damas dão-se as mãos) A primeira dama — Vi de longe o quanto você riu. A segunda dama — Claro, e quem não riu? Todos se divertiram. Senhor N — Mas você não teve uma certa sensação de tristeza? A segunda dama — Confesso que foi um tanto triste. Senti, sim, uma certa tristeza. Sei que tudo isso é assim mesmo, eu mesma já vi muita coisa parecida, mas, apesar disso, o tom foi um pouco pesado. Senhor N — Pois então, a comédia não a agradou? A segunda dama — Ora, quem disse isso? Estou dizen do que ri até o fundo da minha alma, e até mais do que todos os outros. Acho até que fui tomada por louca... Por isso mes mo foi triste para mim. Eu queria ter visto pelo menos uma personagem bondosa. Esse excesso de baixeza... Senhor N — Fale, fale! A segunda dama — Ouça, aconselhe o autor para que descubra ao menos um homem honesto. Diga a ele que estão lhe pedindo. Que seria bom se ele pudesse fazer isto. 42
O marido da primeira dama — É exatamente desse conselho que ele está precisando. Para as damas é preciso que haja sempre um fidalgo na estória, e que fale de coisas nobres, ainda que da maneira mais vulgar. A segunda dama — De jeito nenhum. Vocês nos conhecem tão pouco! Isto de gostar que só se fale de coisas nobres é inerente a vocês, homens! Eu andei ouvindo opiniões de um de vocês: um gorducho que falava tão alto que todos se voltaram para ele. Dizia que isto era uma calúnia, que tais infâmias e baixezas nunca ocorrem entre nós. E quem íàlava? Pois era um homem vil e baixo, capaz de vender a própria alma, a consciência, e tudo mais que se queira comprar. Eu só não quero dizer seu nome. Senhor N — Vamos, diga quem é. A segunda dama — Para que você quer saber? Além do mais, ele não era o único. Eu ouvi várias vezes vocife rarem ao nosso lado: “isso é uma gozação abominável sobre a Rússia. Uma brincadeira de mau gosto com o governo. Como permitem isso? Que dirá o povo?” E por que eles esbravejavam? Por que pensavam e sentiam dessa maneira? Perdoe... Fizeram esse falatório para que proibissem a peça justamente porque encontraram nela certas coisas seme lhantes ao que vêem em si mesmos. Assim são os nossos cavalheiros de verdade, não os do teatro! O marido da primeira dama — Oh! Começa a nascer em você uma centelha de raiva? A segunda dama — Raiva, o nome exato é raiva. Eu estou com raiva, sim, muita raiva. Não posso deixar 43
de estar com raiva, vendo como a infâmia existe sob todo o tipo de disfarces. O marido da primeira dama — Pois sim, você gostaria que surgisse um cavaleiro andante, pulasse sobre um precipício e quebrasse o próprio pescoço... A segunda dama — Perdoe-me. O marido da primeira dama — Naturalmente, uma mulher precisa do quê? Precisa, necessariamente, de que a vida seja um romance. A segunda dama — Não, não e não! Duzentas vezes estou disposta a dizer que não! Esta é uma idéia antiquada e estúpida que vocês sempre tiveram de nós. As mulheres têm uma generosidade mais autêntica do que a dos homens. A mulher não pode, ela não tem a capacidade de cometer as baixezas e patifarias que vocês fazem. A mulher não consegue ser hipócrita naquilo em que vocês são. Ela não pode fazer de conta que não percebe as vilanias que vocês fingem que não vêem. Na mulher há dignidade o suficiente para dizer tudo sem ficar olhando ao redor, preocupada em agradar a um ou a outro. Porque é preciso que alguém diga essas coisas. Aquilo que é vil, é vil e pronto. Ainda que vocês queiram esconder ou dar outro aspecto, continua sendo vil. Vil, vil! O marido da primeira dama — Vejo que a sua atitude é a de quem está zangada de verdade. A segunda dama — É porque eu, sinceramente, não posso agüentar quando dizem uma mentira. 44
O marido da primeira dama — Ora, não fique tão brava. Dê-me sua mãozinha. Eu estava brincando. A segunda dama — Aqui está a minha mão, e não estou brava, (dirigindo-se ao Senhor N ). Ouça, aconselhe o autor a colocar na comédia alguma personagem digna e honesta. Senhor N — Mas como fazer isso? Se ele consegue trazer ao palco um homem honesto, este tal homem será o quê, um cavaleiro errante? A segunda dama — Não. Se ele sentir profundamente a intensidade de seu herói, então ele não será um cavaleiro errante. Senhor N — Não acho que isso seja assim tão fácil de se fazer. A segunda dama — É melhor que diga simplesmente que o autor não tem sentimentos fortes e profundos no coração. Senhor N — Como assim? A segunda dama — Ora, quem está sempre rindo é justamente aquele que não pode ter muitos sentimentos elevados: ele não pode conhecer o que sente um coração cheio de ternura. Senhor N - Essa é a verdade! Provavelmente, para você, o autor não é um homem digno. A segunda dama — Veja só, você agora está inter pretando de maneira equivocada. Eu não disse nenhuma palavra no sentido de que o autor de comédias não tenha 45
dignidade, de que não tenha nenhuma noção do que significa a honra. Digo somente que ele não seria capaz... De deixar cair uma lágrima do fundo do coração, de amar intensamente, do mais profundo de sua alma. O marido da segunda dama — Como você pode dizer isso com tanta certeza? A segunda dama — Posso porque sei. Todas as pessoas que vivem rindo ou são maliciosas... Todas são cheias de amor próprio. Quase todas são egoístas. É verdade que podem ser nobres egoístas, mas ainda assim, são todas egoístas. Senhor N — Então, decididamente, você prefere aquele tipo de obra onde estão presentes apenas os impulsos sublimes do homem! A segunda dama — Oh, certamente! Eu sempre os coloco acima de tudo, e confesso que esse tipo de autor inspira-me a mais sincera confiança. O marido da primeira dama (dirigindo-se ao Senhor N ) — Mas você não está vendo? É sempre a mesma coisa. Esse é o gosto feminino. Para elas a tragédia mais vulgar está acima da melhor comédia, só porque é comédia... A segunda dama — Calem-se! Eu vou ser má novamen te (dirigindo-se ao Senhor N ). Diga-me, será que é mesmo errado o que eu disse? Não é verdade que a alma do autor de comédias tem que ser necessariamente fria? O marido da segunda dama — O u ardente, porque a irritabilidade de caráter também estimula a brincadeira e a sátira. 46
A segunda dama — Claro que sim. Mas o que isso quer dizer? Isso quer dizer que o motivo dessas obras é a bílis, a obstinação, a indignação, ainda que esta possa ser justa. Mas essas criações não deveriam vir à luz através do sublime amor... D a palavra “amor”? Não é verdade? Senhor N — É verdade. A segunda dama — Então me diga: o autor da comédia se parece com isso? Senhor N — Como dizer? Não o conheço com intimidade o suficiente para julgar a sua alma. Mas refletindo sobre tudo o que ouvi a respeito dele, pareceme que é um homem egoísta, ou um pouco irritável. A segunda dama — Está vendo? Eu bem sabia. A primeira dama — Não sei porque, mas ele não me pareceu ser uma pessoa egoísta. O marido da primeira dama — Aí vem o nosso lacaio. A nossa carruagem já deve estar pronta. Adeus (tomando a mão da segunda dama) Você virá visitar-nos, não é? Diga que virá. A primeira dama (saindo) — Venham, por favor! A segunda dama — E claro. O marido da segunda dama — Parece que a nossa carruagem também está pronta, (saem os dois) Entram dois espectadores. O primeiro - Então, quero que você me explique direitinho: por que será que ao observarmos cada ato e personagem separadamente, tudo parece real, vivo e 47
natural; mas o conjunto fica exagerado, disforme, caricaturesco? E isso a tal ponto que, saindo do teatro, involuntariamente pergunto-me: será possível que existam pessoas assim? E ainda que existam, é possível que não haja ao menos uma que não seja canalha? O segundo — De jeito nenhum, elas não têm nada de canalhas. Essas pessoas são, mais precisamente, o que diz o provérbio: “é um pulha de alma pura”. O primeiro — E depois, tem mais: este acúmulo de exageros, esses excessos, será que isso não representa uma falha na comédia? Diga-me onde se encontra essa socieda de, composta por todas aquelas pessoas, onde não haja nem a metade, sequer uma parcela, de pessoas dignas? Se a comédia deve ser um quadro e um espelho da nossa vida social, então ela deve reproduzi-la com toda fidelidade. O segundo — Em primeiro lugar, na minha opinião, essa comédia não é absolutamente um quadro, mas sim uma fachada. Veja você: o palco, o lugar onde se desenrola a ação, é perfeito. Se fosse de outro jeito o autor não daria evidência aos defeitos e anacronismos. Ele conseguiu isso porque não deu àquelas personagens discursos e características que não fossem inerentes a elas. A irritabilidade do autor não se voltou, aqui, contra um indivíduo, mas contra a personificação de um caráter coletivo. De diferentes lugares, de cada canto da Rússia, ele reuniu representações de um aspecto da verdade. E esse aspecto, que são os abusos e os desmandos, serve a 48
uma só idéia: promover no espectador uma forte repug nância em relação a tudo o que não tem valor. E a impressão é ainda mais forte porque nenhuma das personagens apresentadas perdeu seu aspecto humano. A humanidade está em toda parte. Por isso os corações estremecem mais profundamente. E, rindo, o espectador involuntariamente olha para trás, como se sentisse que bem próximo a ele está aquilo do que ri. E sente que a cada instante deve estar alerta, para que aquilo não brote em sua própria alma. Acho que deve ser engraçado para o autor ouvir reclamações como: “por que suas persona gens e seu herói não são encantadores?” Ora, se ao contrário, fez de tudo para que parecessem o mais repulsivos possível. Se colocasse uma personagem respei tável na comédia, e o fizesse com arrebatamento, então tudo teria que ser reformulado em função dessa perso nagem, e tudo o que causara espanto até então deveria ser imediatamente esquecido. E possível que essas perso nagens também não se parecessem sempre com a vida real, mas ao fim do espetáculo o espectador não sairia com um sentimento de tristeza dizendo: “será que existem pessoas assim?”. O primeiro — Mas... Veja bem... Isso não é coisa que se perceba de imediato. O segundo — É muito natural. O sentido mais oculto sempre se alcança depois. Essas personagens merecem atenção pelo que têm de mais vivo, de mais brilhante, 49
por não se deixarem vencer pelos obstáculos. Nelas o sentido da obra fragmenta-se e ganha forma. Para con seguirmos um resultado geral, basta juntarmos essas personagens. Mas escolher e ordenar essas letras, e ao mesmo tempo 1er nas entrelinhas, não é qualquer um que pode. Veja só, e digo mais: cada cidadezinha provinciana na Rússia vai se zangar e afirmar que isto é uma sátira desprezível, indecente, uma reles mentira, dirigida justa mente a ela. Saem. Um funcionário — Isto é uma sátira indecente, uma reles mentira, uma pasquinada! O utro funcionário — Segundo o que vimos, hoje em dia, tudo já está meio que acabado. As leis não são mais necessárias, nem é preciso servir. Quer dizer que o uniforme que visto já não passa de um trapo, é preciso jogá-lo fora. Passam correndo dois jovens. Um deles — Valha-me Deus, todos ficaram zangados. Eu ouvi tantos boatos que, levando-os em consideração, posso adivinhar o que cada pessoa pensa sobre a peça. O outro jovem — Então o que pensa aquele ali? O primeiro — Qual, aquele que está colocando o braço na manga do capote? O outro — É aquele. O primeiro — Vou dizer o que ele pensa: “por uma comédia dessas podem até mandar para Nertchínski”. 50
Parece que o pessoal de cima está começando a sair. Vêse que o vaudeville terminou. Vêm chegando os raznotchínets.6 Vamos. Saem. O barulho aumenta. Tem início uma correria por todas as escadarias. Correm os soldados, as peliças, as toucas, os sobretudos alemães de abas longas dos comerciantes, os chapéus triangulares e os penachos, os capotes de todos os tipos: frisados, militares, usados, e os elegantes forrados com pele de castor. A multidão empurra o senhor que veste as mangas do capote; ele dá passagem e continua se vestindo. Surgem na multidão senhores e funcionários de todos os tipos e categorias. Lacaios em librés abrem o caminho para seus patrões. Ouve-se um grito fem inino: “ p aizinho, estão vindo de todos os lados!”. Um funcionário muito jovem, de caráter indefinido (aproxima-se correndo do senhor vestido de capote) — Vossa excelência, permita que o ajude! O senhor de capote — Ah, olá! Você aqui? Veio assistir à peça? O jovem íuncionário — Claro, vossa excelência. É muito engraçada. O senhor de capote — Besteira! Não tem nada de engraçado! O jovem funcionário — Isso é verdade, vossa exce lência. Não tem absolutamente nada de engraçado. 51
O senhor de capote — Deveriam açoitar quem faz essas coisas, e não aplaudir. O jovem funcionário — É a mais pura verdade, vossa excelência. O senhor de capote — E ainda permitem que os jovens vão ao teatro. É muito mais útil tirá-los de lá! Você mesmo é um que, a partir de agora, só vai dizer grosserias no escritório. O jovem funcionário — Como eu faria isso, vossa excelência!... Permita que eu vá à sua frente abrindo caminho (Vai empurrando as pessoas). Ei, você, saia do caminho. O general vai passar! (Aproxima-se com extraordi nária cortesia de dois homens vestidos com elegância). Senho res, tenham a bondade, permitam que o general passe! Os homens bem vestidos afastam-se e abrem caminho. O primeiro — Sabe que general é esse? Provavelmente é algum general renomado. O segundo — Não sei. Eu nunca vi. Um funcionário do tipo falador (chegando por trás) — O ra se não é um Conselheiro de Estado de quarto grau! Que sorte, não? Em quinze anos de trabalho Vladimir, Ana e Stanisláv conseguiram três mil rublos de ordenado, mais dois mil suplementares, além do pagamento pela Comissão e pelo Departamento. O senhor bem vestido (para o outro) — Vamos! (Saem) 52
O funcionário do tipo falador — Devem ser filhos de boa família. Ao que parece, estudaram no estrangeiro. Eu não gostei da comédia. Na minha opinião, parece mais uma tragédia. (Sai) Uma voz na multidão — Arre! Tem muita gente aqui! Um oficial (abrindo caminho, de braços dados com uma dama) — Ei, você aí, barbudo! Como é que empurra desse jeito? Não vê que aqui está uma dama? Um comerciante (de braços dados com outra dama) — Também tenho aqui comigo uma dama, paizinho. A voz na multidão — Olha lá, olha! Aquela que olhou para trás, está vendo? Agora ela está bem feia, mas há três anos atrás... Vozes diferentes — Você pegou o troco com ele? São trinta copeques. — Mas que peça indecente! — É uma pecinha ridícula! — Desceu pela sua garganta? Uma voz de um dos lados da multidão — Isto tudo é um absurdo! Onde poderia acontecer algo assim? Coisa semelhante só poderia ocorrer na ilha Chukotsky. Uma voz do outro lado — Aconteceu uma história exatamente igual a essa em nosso vilarejo. Desconfio que o autor, se não estava pessoalmente lá, provavelmente ouviu falar. A voz de um comerciante — A peça quer dar a en tender... Assim... Como se diz... Que é uma história com 53
fundo moral. É claro que acontecem casos de todo tipo... Com qualquer um. É assim que ele julga um homem honrado quando encontra algum... Além do mais, quanto à questão moral, isso acontece assim até mesmo com nobres. A voz de um senhor do tipo exaltado — Deve ser uma besta. Um mentiroso. Conhece tudo, sabe de tudo! A voz de um funcionário irado, mas como se pode notar, experiente — O que ele conhece? Não sabe nada de nada! E mente, como mente! Tudo o que ele escreveu são mentiras. Isso para não falar dos subornos, que não acontecem desse jeito. A voz de outro funcionário na multidão — Então você diz que é engraçado? Ora... Engraçado! Sabe por que é engraçado? Porque essas personagens foram tiradas das suas tias e avós. Por isso é engraçado. Uma voz desconhecida — Socorro, roubaram um xale! Dois oficiais encontram-se e trocam palavras através da multidão. O primeiro — Mikhail, você vai para lá? O segundo — Vou sim. O primeiro — Então vou também. Um funcionário de aspecto importante — Eu proi biria tudo isso. Não há porque publicar isso. Sirva-se do que a civilização já deu: leia, mas não escreva. Já estamos satisfeitos com o que está escrito. Não é preciso mais. 54
Uma voz no meio do povo — Quem é canalha, é canalha e pronto. Não é com um canalha que vamos rir. Um senhor bonito e robusto (falando com entusiasmo a outro feio e sem graça) — A moral, a moral sofre, isso é o principal. O senhor feio e sem graça, mas do tipo virulento — Pois sim, a moral na peça é relativa. O senhor bonito e robusto — O que você quer dizer precisamente com “relativa”? O senhor sem graça, mas do tipo virulento — O que cada um entende por moral é o que é relativo a si mesmo. Um chama de moral tirar o chapéu na rua; outro, não olhar para as próprias mãos quando está roubando. Um terceiro chama de moral os favores prestados à sua amante. Como falamos geralmente aos nossos subordinados? Falamos de cima para baixo: “meu senhor, cumpra seu dever para com Deus, com o soberano e com a pátria”. Quanto ao resto, faça o que quiser. Aliás, isso não acontece nas capitais, mas só nas províncias, não é verdade? Aqui, se aparece alguém que em três anos já possua duas casas, que tem isso de mais? O que importa é que é tudo por honestidade. O senhor bonito e robusto (à parte) — É mau como o diabo, e tem a língua de uma serpente. O senhor sem graça, mas do tipo virulento (chamando a atenção para um homem desconhecido, cutucando o senhor bonito com o cotovelo) — Tem quatro casas numa mesma rua, uma ao lado da outra. Conquistou-as em seis anos! 55
Quem é que consegue com a honestidade fazer casas se reproduzirem na mesma velocidade em que se reproduzem as plantas, hein? O desconhecido (saindo precipitadamente) — Perdoe, eu não ouvi toda a conversa. O senhor sem graça, mas do tipo virulento (cutu cando o braço de outro vizinho desconhecido) — Então a surdez agora se espalhou pela cidade, é? Veja só no que dá um clima úmido e carregado. O vizinho desconhecido — E a gripe também. Eu estou com todos os meus filhos adoentados. O senhor sem graça, mas do tipo virulento — Claro, claro. A gripe... A surdez... E caxumba no pescoço também, (desaparece entre a multidão) Uma conversa no grupo ao lado. O primeiro — E dizem que uma história parecida aconteceu com o próprio autor. Dizem que ele esteve na prisão, numa certa cidadezinha, por causa de dívidas. U m senhor do outro lado do grupo (prolongando a discussão) — Não, não foi na prisão. Foi numa torre. Pessoas que viajaram para lá viram. Dizem que era uma coisa extraordinária. Imaginem um poeta no alto de uma torre elevadíssima, tendo à sua volta as montanhas, numa paisagem maravilhosa, e de lá escrevendo seus versos. Cá entre nós, parece ser uma figura bastante singular esse escritor, não é? 56
Um senhor do tipo positivo — O autor deve ser um homem erudito. Um senhor do tipo negativo — Que erudito, que nada! Eu sei que ele trabalhava e que por pouco não o expulsaram do serviço: não sabia nem escrever solicitações. Um que é realmente mentiroso — Ele é bem espertinho! Você acha que ele ficou muito tempo sem o seu emprego? Escreveu uma carta diretamente ao ministro. Pois sim, e como escreveu! De maneira primorosa. Já começou assim: “Prezado Ministro...”. E depois enrolou, enrolou, enrolou... Por oito páginas inteiras. E o ministro, assim que leu: “agradeço, agradeço! Vejo que você tem muitos inimigos. Será, pois, chefe de departamento!” E pulou direto de escrivão para chefe de departamento. Um senhor do tipo bonachão (dirigindo-se a outro homem, do tipo tranqüilo) — O diabo é que ele sabe em quem buscar confiança! Esteve na cadeia, e também na torre. E foi expulso do emprego. E deram-lhe uma boa colocação! O senhor do tipo tranqüilo — Isso tudo são afirmações gratuitas. O senhor do tipo bonachão — Como gratuitas? O senhor tranqüilo — Isso mesmo. Ainda há dois minutos atrás eles mesmos não sabiam o que iam ouvir dos próprios lábios. As suas línguas criam novidades sem que eles percebam, depois voltam para casa como se 57
estivessem de estômago cheio. No dia seguinte ouvem a novidade que eles mesmos inventaram. Têm a impressão, então, de que a ouviram de outrem, e se apressam a espalhá-la por toda a cidade. O senhor bonachão — Vejam só, isso é uma vergonha. Mentem sem perceber que estão mentindo. O senhor tranqüilo — H á os que sabem que estão mentindo, mas acham que a mentira é indispensável numa conversa. “A terra é boa pelo trigo que sai dela, e a conversa por sua balela”. Uma dama de classe média — Como deve ser perverso e malicioso esse autor! Confesso que eu não gostaria que ele sequer pusesse os olhos em mim. De repente ele pode notar em mim algum motivo para piada. Um senhor influente — Eu não sei como qualificar esse homem. Esse... Esse... Esse... Para esse homem não há nada sagrado. Hoje ele diz que um tal conselheiro não presta; amanhã dirá que Deus não existe. Já está a um passo disso. Um segundo senhor — Ridicularizar! Ora, não se deve fazer chacota por meio do riso. Isso significa destruir todo o respeito. E isso que significa. Depois, qualquer um pode bater em mim na rua e dizer: “Vocês riem, mas é para os da sua laia que vai esse bofetão!” Isso é que é. Um terceiro senhor — E tem mais! Essa peça é uma coisa muito séria! Dizem por aí: “essa representação teatral 58
é uma besteira, uma futilidade”. Não, não é uma simples besteira. É preciso chamar a atenção para isso com seriedade. Por coisas como essa nos podem até mandar para a Sibéria. Se eu tivesse poder esse autor não daria nem mais um pio. Eu o trancafiaria num lugar onde ele não enxergaria nem a luz do dia. Surge um grupo de pessoas sabe-se lã de que tipo. Mas, pensando bem, de aspecto distinto e muito bem vestidas. O primeiro — É melhor que fiquemos aqui até que saia a multidão. Mas, na verdade, o que é isto? Fazer barulho, aplaudir, como se fosse algo que merecesse... Por qualquer besteira, por uma peça de teatro insignificante levantar esse alarido, gritar, aclamar o autor! Ora, o que é isto! O segundo — No entanto a peça divertiu... Entreteve. O primeiro — Mas é claro, divertiu como qualquer besteira diverte. Mas qual o motivo para tantos clamores e comentários como os que se faz? Falam como se fosse uma peça importante, aplaudem... Ora, mas o que é isso! Eu compreenderia caso se tratasse de alguma cantora ou bailarina. Aí eu entenderia. Nesse caso pode-se admirar a arte, a flexibilidade, a agilidade, o talento natural. Mas o que há aqui? Exclamam: “Literato! Literato! Escritor!” Então o que é um escritor? Que apareça aqui ou ali uma palavrinha espirituosa, é coisa que qualquer um faz baseando-se em modelos... Onde está o trabalho? O que existe aqui? Pois é só um a historieta e nada mais. 59
O segundo — É claro. É uma peça insignificante. O primeiro — Julgue você mesmo. Um bailarino, por exemplo. Ali tudo é arte, e não é qualquer um que pode fazer o que ele faz. Eu, por exemplo, ainda que quisesse, minhas pernas não se ergueriam. Ora, e se eu tentasse fazer um entrechat... Não faço de jeito nenhum. Agora, escrever... Pode-se escrever até sem ter estudado. Não sei quem é esse autor, mas me disseram que é um perfeito ignorante. Não sabe coisa alguma, e parece que o expulsaram não se sabe de onde. O segundo — Mas alguma coisa ele deve saber. Não fosse assim, seria impossível escrever. O primeiro — Você há de me perdoar, mas o que ele pode saber? Você mesmo sabe o que é um literato: uma pes soa superficial! Esse é um fato conhecido por todos: não há literato que preste. Já está provado que eles são assim. Pense só... O que é que eles escrevem? Só escrevem futilidades! Basta querer, e dentro de uma hora eu poderia escrever algo assim. Você também poderia... Qualquer um pode. O segundo — Claro, está certo, por que não escrever? Basta ter uma gota de inteligência para se fazer isso. O primeiro — Nem é preciso ter inteligência se são só futilidades. Admitamos: se fosse para escrever uma obra científica, sobre um tema desconhecido... Mas isso? Isso qualquer mujique sabe. Isso se vê pela rua todo dia. E só se postar na janela e registrar tudo que as pessoas fazem e o que não fazem. Eis o truque! 60
O terceiro — É verdade. Como se perde tempo com bobagens! O primeiro — É isso mesmo. É uma perda de tempo e mais nada. Uma historieta, uma bobagem. Sinceramente, deveriam proibi-los de ter a pena nas mãos, já que só fazem por denegri-la. E, no entanto o povo vem dar-lhe sustento! Vem para fazer alarido, gritar, incentivar! E a obra é simplesmente uma tolice! Uma historieta! Um monte de futilidades! Uma historieta! Saem. A multidão dispersa-se. Correm alguns retarda tários. O funcionário bonachão — Ora, em toda a obra não se apresenta sequer um homem de respeito! São todos farsantes e velhacos. Um homem do povo — Ouça, espere-me no cru zamento! Vou correndo buscar as luvas. Um dos senhores (consultando seu relógio) — Mas como o tempo voa. Eu nunca saí tão tarde assim do teatro. (Sai) Um funcionário retardatário — Só tempo perdido à toa! Não, nunca mais voltarei ao teatro. (Sai. O cenário fica vazio). O autor da peça (entrando) — Eu ouvi bem mais do que podia suportar. Que grande amontoado de asneiras! Feliz o autor de comédias que nasceu numa nação onde a sociedade não se fundiu ainda, de modo a formar uma massa imóvel. Onde a sociedade não se vestiu de 61
antigos preconceitos, nivelando os pensamentos de todos na mesma forma e na mesma medida. Onde cada um possa ter sua própria opinião e ser o criador de seu próprio caráter. Que variedade de opiniões, e como resplandeceria por toda parte a firme e radiante inteligência russa! Nas nobres aspirações do homem de Estado! No sublime sacrifício de um funcionário do lugar mais distante! Na delicada beleza da generosa alma feminina! No conheci mento estético dos críticos e na justiça e simplicidade do saber do povo! Como é importante que o autor de comédias conheça até mesmo as reprovações mal inten cionadas! Que lição vivaz! Sim, eu estou satisfeito. Mas por que começa a surgir esta tristeza em meu coração? É estranho... É lastimável que ninguém tenha reparado na personagem respeitável que está em minha peça. Sim, havia uma personagem nobre e honrada que esteve presente em todo o decorrer da apresentação. Essa per sonagem nobre e honrada era... Era o riso. Ele é nobre porque se atreve a se mostrar, ainda que a função que lhe atribuem pelo mundo não seja lá muito nobre. É nobre porque se atreve a se mostrar, apesar de trazer consigo um ofensivo epíteto ao autor de comédias: o epíteto de “frio egoísta”, que até mesmo obscureceu a presença dos ternos impulsos de sua alma. Ninguém tomou a defesa desse riso. Eu, o autor de comédias, servi a ele com honestidade, e por isso devo colocar-me como seu protetor. 62
O riso é muito mais profundo e significativo do que eles pensam. Não aquele riso que nasce da irritabilidade passageira ou de um caráter colérico e doentio. Nem o riso leve, que serve para a vã distração e para o divertimento das pessoas. O riso de que falo é o que nasce da profunda natureza humana. Nasce dela, porque é no fundo da na tureza humana que está a fonte que faz fluir eternamente os temas mais profundos. Os temas jorram dessa fonte com ímpeto ao invés de deslizarem sem forças. Sem a intensidade de penetração dessa fonte, a mesquinharia e as futilidades do mundo não chegariam a assustar o homem; as coisas miseráveis e insignificantes, perante as quais ele passa com indiferença todos os dias, não surgiriam com uma força tão medonha, quase caricatural, provocando o estremecimento e a exclamação: “será que existem pessoas assim?”. Isso porque sua própria consciência sabe que existem pessoas ainda piores. Não, é injusto dizer que o riso cause indig nação. O riso causa indignação somente porque ele ilumina o que estava na escuridão. Muitas coisas deixariam o homem indignado se fossem retratadas sem disfarces. Mas o poder iluminado do riso torna a alma mais serena. E assim, aqueles que desejariam vingar-se de um homem mau acabariam por querer fazer as pazes com ele, ao ver ridicularizados os seus torpes pensamentos. E injusto que digam que o riso não age contra aqueles aos quais se lança, e que o canalha será o primeiro a rir dos canalhas iguais a ele, representados no palco. Aquele que já foi um trapaceiro no passado poderá 63
rir, mas aquele que o é hoje não terá forças para isso! Ele saberá que essa personagem que o representa ficará gravada na memória de todos, e que bastará ele cometer uma ação vil para que o apelidem com o nome dela. Pois a zombaria causa temor até mesmo naquele que não teme nada nesse mundo. Não, rir com o riso bondoso e radiante só é possível para uma alma de profunda bondade. Mas não se ouve a poderosa força de tal riso no mundo. “Q ue há de engraçado em tal baixeza?”, dizem. Só ao que se pronuncia com voz forte e severa chamam de “elevado”. Mas por Deus! Quantas pessoas passam por nós diariamente, para quem não há nada de elevado nesse mundo! Tudo o que vem da inspi ração, para eles, são historietas e futilidades. As obras de Shakespeare para eles são historietas. Os impulsos sagrados da alma são futilidades. Não, não é o amor-próprio ferido do escritor que me obriga a dizer isso. Não é porque minha obra imatura e medíocre foi chamada de historieta. Não, eu vejo meus próprios defeitos e sei que são dignos de reprovações. Mas a minha alma não pode suportar com indiferença quando uma obra sublime é censurada e chamada de historieta e futilidade, quando se considera que as estrelas mais brilhantes do mundo são criadores de historietas e futi lidades! A minha alma sofre quando vê que muitos aqui estão mortos em vida, submissos, terrivelmente imóveis, com suas almas frias e o coração estéril como um deserto. A minha alma sofre quando vê que seus rostos insensíveis 64
não se sobressaltavam, mesmo diante daquilo que fazia as almas sensíveis verterem lágrimas celestiais do fundo de seus corações. Só não imobilizaram suas línguas ao pronunciarem a eterna palavra: “Historieta! Historieta!”. Passaram-se séculos; cidades e povos desapareceram da face da terra como fumaça, mas isto a que chamam “histo rietas” vive até hoje e tem a atenção dos grandes tzares, dos governantes de valor, do sábio ancião e do jovem cheio de nobres ambições. Historieta! Mas como trepidou o teatro inteiro, das frisas aos balcões! Todos se emocionaram no fundo de suas almas. Todas as pessoas se uniram num só sentimento, irmanadas num mesmo impulso interior, enquanto ressoavam os aplausos e ecoava o hino de ação de graças para aquele que já não está no mundo há quinhentos anos. Será que seus ossos apodrecidos ouvem isso de dentro da sepultura? Será que sua alma, que sofreu severamente a dor da vida é capaz de responder? Historieta! Alguém que no meio da multidão entristeceu-se com a dor e o peso insuportável da vida, e esteve prestes a atentar contra ela; mas de repente brotaram novas lágrimas de seus olhos e ele se conformou, pedindo aos céus para que pudesse viver e se inundar de lágrimas novamente ao ouvir essas histo rietas. Historietas!... Pois o mundo ficaria em estado de sonolência sem essas historietas, a vida escoaria e as almas ficariam emporcalhadas com o mofo e a lama. Historie tas!... Oh, que continuem sendo sagrados para seus 65
descendentes os nomes dos que com benevolência ouviram tais historietas. O dedo milagroso da Providência esteve sempre sobre as cabeças de seus criadores. Até mesmo nas horas de maiores dificuldades, nas perseguições, tudo o que havia de nobre no Estado ergueu-se em sua proteção. Lá de seus tronos inacessíveis os monarcas coroados os bendiziam com seus escudos. Ânimo e coragem! Que a alma não se dobre ante as censuras, mas que receba nobremente as indicações das falhas. Que não se entristeça nem mesmo quando recu sarem a ela o direito às ações sublimes a ao amor à humanidade! O mundo é como um redemoinho: giram nele as opiniões e os comentários, mas tudo será triturado pelo tempo. Como as cascas, os falsos se vão; as verdades permanecem como grãos duros. O que se considera vazio pode surgir depois repleto de importante significação. No fundo do riso frio pode ser encontrada a ardente centelha do eterno e poderoso amor. Quem sabe... Pode ser que algum dia admitam que as mesmas leis pelas quais uma pessoa altiva e poderosa chega a parecer medíocre e insignificante na desgraça... As mesmas leis que fazem o fraco crescer como um gigante em meio a dificuldades, façam com que aquele que parece rir mais do que ninguém nesse mundo verta eternas e profundas lágrimas do espírito!... FIM 66
Notas 1. Pessoa decente (o modo como comporta-se) 2. Denis Ivanovitch Fonvízin (1715-1772) foi considerado o primeiro comediante de real mérito artístico no teatro russo moderno. 3. August von Kotziébue (1716-1819). Alemão, viveu em S. Petersburgo, na Rússia, onde foi diretor do teatro alemão. Escreveu comédias, farsas e tragédias de cunho popularesco, quase sempre consideradas obras superficiais e de escasso valor artístico. 4. Casaco de feltro grosso, usado por camponeses na antigüidade. 5. Sociedade, meu caro. 6. Intelectual que não pertencia à nobreza na Rússia dos séculos X V III e XIX.
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A Avenida Niévski Não há nada melhor do que a Avenida Niévski, pelo menos em Petersburgo, onde ela representa tudo. Mas o que não brilha nesta rua-beleza de nossa capital? Eu sei que os seus pálidos e burocráticos habitantes não trocariam nada deste mundo pela Avenida Niévski. Não apenas quem tem vinte e cinco anos, majestosos bigodes e uma sobre-casaca admiravelmente confeccionada, mas também aquele, em cuja barba despontam cabelos brancos e cuja cabeça é lisa como uma baixela de prata, sente-se extasiado com a Avenida Niévski. E as damas! — Oh!, para as damas a Avenida Niévski é ainda mais agradável. E para quem ela não é agradável? Basta entrar na Avenida Niévski para sentir um cheiro de passeio. Mesmo que alguém tenha algum assunto importante e indispensável, é só aparecer por lá que todos os assuntos são realmente esquecidos. É o único lugar onde as pessoas não aparecem por necessidade, e nem por causa do afã dos interesses comer ciais que toma conta de toda Petersburgo. Parece que o homem que se encontra na Avenida Niévski é menos egoísta do que na Morskaia, Gorókhovaia, Litéinaia, Mechchâns68
kaia e em outras ruas, onde a voracidade, a mesquinhez e a necessidade estão manifestas nos transeuntes e em todos aqueles que vão ou que voam em suas berlindas e carrua gens. A Avenida Niévski é a comunicação obrigatória de todos, em Petersburgo. O habitante do distrito de Petersburgo ou de Víborg que durante alguns anos não encontrou seu amigo em Peski, ou na saída para Moscou, pode estar certo de que ali o encontrará infalivelmente. Nenhum guia de cidade e nenhuma agência de informação poderiam ofere cer notícias tão precisas quanto a Avenida Niévski. Oh! Avenida Niévski onipotente! Unica alegria do pobre no passeio em Petersburgo! Como as calçadas são varridas com asseio! E, meu Deus, quantos pés não deixaram aí seus traços impressos! A bota pesada e suja do reservista, cujo peso parece abalar o próprio granito, e o sapatinho minús culo e leve como fumaça da jovem senhora, que vira sua cabecinha para as vitrines reluzentes das lojas como o girassol ao sol; e o sabre barulhento do alferes esperançoso, que o carrega arranhando rudemente o chão; todos descar regam ali o poder da força ou o poder da fraqueza. Com que rapidez nela se realiza tanta fantasmagoria ao longo de um único dia! Como pode suportar tantas transformações em apenas 24 horas! Comecemos pelas primeiras horas da manhã, quando toda Petersburgo cheira a pães quentes e frescos e está cheia de velhos com seus trajes e pelerines rasgados, que se acercam da igreja vazia: os encorpados proprietários das lojas e seus caixeiros ainda dormem em 69
seus camisolões holandeses, ou ensaboam suas generosas bochechas, ou tomam café; os mendigos se reúnem nas portas das confeitarias onde um sonolento Ganímedes, que ontem voava como uma mosca com o chocolate, arrastase com a vassoura na mão, sem gravata, atirando-lhes pasteizinhos secos e sobras de comida. Pela rua cruzam-se as pessoas necessitadas, às vezes atravessam-na mujiques apressados para o trabalho, com as botas tão sujas de cal que nem o canal Ekaterinski, conhecido por sua limpeza, seria capaz de limpá-las. Nesta hora, como de costume, não é conveniente que as damas saiam, porque o povo russo costuma utilizar expressões tão ásperas que elas, com certeza, não as ouviriam nem mesmo no teatro. Às vezes um funcionário sonolento cambaleia com sua pasta debaixo do braço, se por acaso no seu caminho para o departamento se inclui a Avenida Niévski. Pode-se dizer, decididamente, que nesta hora, isto é, até o meio-dia, a Avenida Niévski não constitui objetivo para ninguém, e serve somente como meio. Pouco a pouco ela vai se enchendo de rostos que têm suas ocupações, seus cuidados, seus aborrecimentos, mas que não pensam absolutamente nisto. O mujique fala do dinheiro miúdo; os velhos e as velhas agitam as mãos ou falam consigo mesmo, às vezes com gestos surpreendentes, mas ninguém os escuta ou zomba deles, com exceção apenas dos garotos de aventais coloridos que correm como raios com frascos vazios ou sapatos nas mãos. Nesta hora, até mesmo se você, em vez de chapéu, pusesse um gorro na 70
cabeça, ou mesmo se a gola estivesse demasiado longe de sua gravata, ninguém iria reparar. Às 12 horas na Avenida Niévski irrompem preceptores de todas as nacionalidades, com seus pupilos de golas de cambraia. Os Johnsons ingleses e os Kocks franceses vão de mãos dadas com os pupilos que foram confiados à sua tutela paternal e com decente seriedade lhes explicam que os letreiros das lojas são feitos para que se possa através deles saber o que encontrar nessas mesmas lojas. As governantas, pálidas misses e eslavas rosadas, caminham majestosas atrás de suas meninas irrequietas e travessas ordenando que levantem um pouco mais o ombro e que se mantenham eretas; em uma palavra, a esta hora a Avenida Niévski é uma Avenida Niévski pedagógica. Mas, quanto mais se aproxi mam as duas horas, menor é o número de preceptores, pedagogos e crianças, pois eles vão ser substituídos por seus queridos pais, que levam de braço dado suas companheiras coloridas, variegadas e de nervos fracos. Pouco a pouco juntam-se a eles os que terminaram suas importantes ocupações domésticas como os que conversaram com seu médico sobre o tempo e sobre uma pequena espinha que brotou no nariz, os que quiseram saber da saúde dos seus cavalos e de suas crianças que, por sinal, demonstram grandes dotes: lêem manchetes e artigos importantes nos jornais sobre aqueles que vão e os que vem; finalmente, há aqueles que acabaram de tomar uma xícara de chá ou café; a estes também se juntam aqueles cuja sorte invejável os 71
dotou com o abençoado título de funcionário para assuntos especiais. Seguem-se os que trabalham no Ministério das Relações Exteriores e se caracterizam pela nobreza de suas ocupações e hábitos. Meu Deus, quantos cargos e serviços! Como eles elevam e regozijam a alma! Mas ai! eu não tenho um emprego público e estou privado do prazer de apreciar o delicado tratamento dos superiores. Tudo o que você encontra na Avenida Niévski está repleto de decência: os homens de capas compridas com as mãos enfiadas nos bolsos, as damas de casacos acetinados cor-de-rosa, branco e azul pálido, e de chapéu. Ali você encontra costeletas singulares que passam com arte extraordinária e assombro sa por baixo da gravata. Costeletas aveludadas, acetinadas, negras como a zibelina ou o carvão, mas, ai! que pena!, pertencem apenas a um departamento do Ministério das Relações Exteriores. Aos funcionários de outros departa mentos o destino negou costeletas negras, e eles com grande desgosto são obrigados a usá-las ruivas. Ali você encontra maravilhosos bigodes: nenhuma pena, nenhum pincel pode expressar os bigodes aos quais é dedicada a melhor metade da vida e que são objeto de longos cuidados dia e noite, bigodes sobre os quais se derramaram perfumes e aromas excitantes e que são untados com as mais preciosas e mais raras espécies de creme, bigodes que se envolvem à noite com um fino papel, bigodes que expri mem o carinho mais tocante de seus possuidores e que fazem inveja aos transeuntes. 72
Mil qualidades de chapéus, vestidos, lenços coloridos e vaporosos que exigem até dois dias inteiros a afeição de suas proprietárias, sempre ofuscam alguém na Avenida Niévski. Como se fosse todo um mar de borboletas que se elevassem de repente dos caules e se agitassem como uma nuvem brilhante em cima dos negros besouros do sexo masculino. Ali você encontra umas cinturas com que nem chegou a sonhar: fininhas, estreitinhas, cinturas não mais grossas que o gargalo de uma garrafa; e ao se encontrar com elas você se afasta respeituoso para não as acotovelar e se apoderam do seu coração a timidez e o medo de que, por descuido, sua respiração não vá destruir a mais encantadora obra da natureza e da arte. E que mangas de vestido você encontra na Avenida Niévski! Ai, que encanto! Elas se parecem um pouco com dois balões de ar, como se uma dama de repente pudesse flutuar, caso não estivesse amparada pelo cavalheiro; pois suspender uma dama no ar é tão fácil e agradável quanto levar à boca uma taça repleta de champanha. Em nenhum lugar as pessoas, ao se encontrarem, cumprimentam-se com tanta nobreza e desembaraço como na Avenida Niévski. Lá você encontra um sorriso especial, o sorriso da per feição artística, às vezes é um sorriso tal que você pode até se desvanecer de prazer, às vezes é tal que você se sente de súbito mais insignificante do que uma erva e abaixa a cabeça, e às vezes é tal que você vai se sentir mais alto do que a agulha do 73
Almirantado e então levanta a cabeça para o alto. É ali que você encontra aqueles que conversam sobre um concerto ou sobre o tempo com extraordinária nobreza e com um senti mento de dignidade. Você achará ainda milhares de caracteres e fenômenos incompreensíveis. Oh! Criador! que tipos es tranhos se encontram na Avenida Niévski! Existem tantas pessoas que, ao se encontrarem com você, seguramente vão olhar para os seus sapatos e, se você apenas passar, vão se virar para olhar as abas de sua casaca. Até agora não posso compreender por que isto ocorre. De início pensei que eles fossem sapateiros, mas logo vi que não, absolutamente: a maioria deles trabalha em departamentos diversos, muitos deles poderiam escrever de um modo magnífico uma comu nicação de um departamento oficial para outro, ou até mes mo são pessoas que passeiam, que lêem o jornal nas confeita rias, numa palavra, a maioria dessas pessoas é gente distinta. Nesta abençoada hora das 2 às 3 da tarde, que pode ser qua lificada de “a mais movimentada hora da Avenida Niévski”, surge a principal exposição das melhores criações do homem. Um exibe elegante sobrecasaca do melhor castor, outro, um maravilhoso nariz grego, o terceiro usa magníficas costeletas; uma quarta, um par de olhinhos lindos e um chapéu incrí vel; o quinto, um anel com um talismã no elegante mindinho; uma sexta, o pezinho numa botinha encantadora; o sétimo, uma gravata surpreendentemente excitante, e o oitavo, uns bigodes arrebatadores. Mas batem as três e a exposição termina, a multidão se dispersa... às três horas há uma nova transformação. E 74
na Avenida Niévski de repente surge a primavera: ela se cobre toda de funcionários de uniformes verdes. Conselheiros titulares, conselheiros da corte e demais conselheiros,1 fa mintos, concentram todas as suas forças para acelerar o passo. Os jovens registradores de colegiatura, os secretários de colegiados de província, apressam-se para aproveitar ainda mais o tempo e dar uma volta pela Avenida Niévski com uma aparência que não revela em absoluto que estiveram sentados durante seis horas numa repartição pública. Mas os velhos secretários de colegiatura, os conselheiros titulares e os da corte andam depressa e de cabeça baixa: não se preocupam em olhar para os transeuntes; eles ainda não estão completamente desligados de suas preocupações; sua cabeça está um caos e há todo um arquivo de coisas começadas e não acabadas; para eles, por muito tempo ainda, em vez dos letreiros das lojas surgirá ante os olhos uma caixa com papéis ou o rosto gordo do chefe da repartição. Depois das quatro a Avenida Niévski está vazia, e é pouco provável que você encontre um único funcionário. Alguma costureira sai correndo de uma loja, atravessando a Avenida Niévski com uma caixa nas mãos; alguma vítima miserável da humanidade, com um capote de lã grosseira; alguma figura estranha que passa e para quem todas as horas são iguais; alguma inglesa alta e enorme com uma bolsinha e um livrinho nas mãos; algum membro de artel2 russo, de sobrecasaca de mescla de algodão acinturado nas costas, com barbicha estreita e que vive toda a sua vida 75
como que alinhavado: as costas, os braços, os pés, a cabeça, tudo se move quando ele passa respeitoso pela calçada; às vezes algum modesto artesão — e ninguém mais você encontrará na Avenida Niévski. Mas, nem bem o crepúsculo cai sobre as casas e as ruas, o guarda-noturno, coberto por uma lona, sobe a escada para acender o lampião e surgem das vitrines baixinhas das lojas aquelas estampas que não se atrevem a aparecer durante o dia; eis que a Avenida Niévski renasce de novo e começa a se agitar. Chega então aquela hora misteriosa em que os lampiões dão a tudo certa luz sedutora e cativante. Você encontra então gente jovem, na maior parte solteiros, de sobrecasaca ou capote quente. Nessa hora percebe-se um objetivo, ou melhor, algo parecido com um objetivo. Algo extraordinariamente inconsciente, e os passos de todos se apressam e se tornam quase sempre m uito irregulares. Sombras longas bailam pelas paredes e pela calçada e por pouco não alcançam com suas cabeças a ponte Politzéiski. Os jovens registradores de colegiatura ou os secretários de colegiadores de província vagueiam por muito tempo, mas a maioria dos velhos funcionários ficam em casa: ou porque sáo casados, ou porque as cozinheiras alemãs que moram com eles preparam muito bem a comida. Ali você encontra velhos respeitáveis — os mesmos que passeavam às 2 horas pela Avenida Niévski com aquela seriedade e com aquela nobreza surpreendente — você os verá agora correndo como os jovens registradores de colegiatura para espiar de longe, 76
por baixo do chapéu de uma dama admirável, cujos grossos lábios e faces rebocadas de vermelho agradam a muitos dos transeuntes e mais ainda aos balconistas, aos membros de artel e aos comerciantes que passeiam, geralmente de braços dados, sempre com suas sobrecasacas alemãs, numa verda deira balbúrdia. — Pare! gritou nesse momento o tenente Pirogóv puxando o jovem de fraque e capa que ia a seu lado. — Você viu? — Eu vi, é maravilhosa, exatamente como a Bianca de Perugini. — Mas de quem está falando? — Falo dela, daquela de cabelos escuros, e que olhos, meu Deus, que olhos! Tudo! O seu contorno e o rosto oval. Que maravilha! — Eu estou falando da loura que passou atrás dela naquela direção. Por que não vai atrás da morena se ela te agrada tanto? — Oh! Como poderia! — exclamou corando o jovem de fraque. — Como se fosse uma daquelas que andam à tardinha pela Avenida Niévski! Mas esta deve ser uma dama muito importante — continuou ele, suspirando: Só a sua capa deve custar uns 80 rublos! — Bobão! — exclamou Pirogóv vivamente, empurran do-o para o lado onde flutuava a capa deslumbrante. — Ande, palerma, vai deixar escapar! E eu vou atrás da loura. — E os amigos se separaram. 77
— Nós conhecemos todas elas — pensou consigo mesmo Pirogóv com um sorriso confiante e presunçoso, seguro de que beldade alguma poderia resistir-lhe. O jovem de fraque e capa dirigiu-se com um passo tímido e vacilante para o lado onde, ao longe, flutuava a capa multicolorida, ora iluminada por um brilho vivo, à medida que se aproximava da luz do lampião, ora de re pente coberta de sombra, à medida que dele se distanciava. O seu coração palpitava e ele, sem querer, acelerava o passo. Não se atrevia sequer a pensar que teria algum direito à atenção daquela beleza que voava para longe, e muito menos poderia admitir aquele negro pensamento que o tenente Pirogóv tinha-lhe insinuado; mas o que desejava era apenas ver a casa dela, saber onde morava aquela criatura encantadora que parecia ter caído do céu diretamente para a Avenida Niévski e que provavelmente voaria não se sabe para onde. Ele corria tão depressa que empurrava continuamente para fora da calçada os respei táveis senhores de costeletas grisalhas. Este jovem pertencia àquela classe que constitui entre nós um fenômeno bastante estranho, pois pertencia à cidade de Petersburgo, tanto quanto a pessoa que nos aparece em sonhos pertence ao mundo real. Esta categoria excepcional era muito singular naquela cidade onde todos eram funcio nários, comerciantes ou artesãos alemães. Ele era um pintor. Não é verdade que é um fenômeno estranho? Um pintor petersburguês! Um pintor na terra das neves, um pintor no 78
país dos finlandeses, onde tudo é úmido, liso, plano, pálido, cinza, nebuloso. Estes pintores não se parecem em nada com os pintores italianos, orgulhosos e ardentes como a Itália e o céu italiano; ao contrário, a maior parte deles é gente bondosa, doce, tímida, despreocupada, amante serena de sua arte, que toma chá com seus dois amigos no pequeno quarto, que discute modestamente um tema preferido e não se preocupa com nada supérfluo. Ele sempre convida para ir à sua casa alguma mendiga velha e a obriga a ficar sentada seis horas seguidas, a fim de passar para a tela sua expressão dolorosa e sem sentimento. Ele pinta a perspectiva de seu quarto, no qual existem todas as futilidades artísticas: braços e pés de gesso, que por causa do tempo e do pó se tornaram cor de café, cavaletes quebrados, a paleta derrubada, o amigo tocando guitarra, as paredes manchadas de tinta, e a janela aberta, através da qual aparecem o pálido Nevá e os pobres pescadores com suas camisas vermelhas. Aparece quase sempre nessas obras um colorido nebu loso e acinzentado — marca típica do norte. Além de tudo, eles se dedicam ao seu trabalho com verdadeiro prazer. Freqüentemente, alimentam em si um talento autêntico e, se soprasse sobre eles o vento fresco da Itália, esse talento se desenvolveria, é provável, tão livre, ampla e vivamente como a planta que é retirada de um quarto para o ar livre. Eles em geral são m uito tímidos: um a estrela e grossas dragonas levam-nos a tal confusão que eles, sem querer, diminuem o preço de suas obras. Às vezes gostam de ser 79
elegantes, mas essa elegância parece neles sempre demasiado ostensiva e surge quase como um remendo. Você os verá com um magnífico fraque e com uma capa manchada, com um colete curo de veludo e uma sobrecasaca toda cheia de tinta. D a mesma forma, você verá, às vezes, em uma paisagem inacabada, o desenho de uma ninfa de cabeça para baixo que ele, não encontrando outro lugar, esboçou no fundo manchado de sua obra anterior, pintada então com prazer. Ele nunca olhará você diretamente nos olhos, e, se o fizer, será de maneira vaga e confusa; não lhe cravará um olhar de gavião observador ou o olhar de falcão de um oficial de cavalaria. Isto acontece porque ao mesmo tempo ele verá em seus traços os do Hércules de gesso que se encontra em seu quarto, ou estará imaginando aquele mesmo quadro que pensa ainda criar. Por isso responde freqüentemente com incoerência, às vezes até sem lógica, e as idéias se misturam tanto em sua cabeça que aumenta ainda mais a sua timidez. É a esta categoria que pertencia o nosso jovem pintor Piskarióv, tímido, vacilante, mas cuja alma estava cheia de faíscas de sentimento, sempre prontas a transformaremse em chama. Com um temor secreto ele se apressava em direção ao objeto que tão fortemente o surpreendera, e até ele parecia estar admirado de seu atrevimento. A criatura desconhecida em que havia fixado seus olhos, seus pensamentos e sentimentos, de repente virou a cabeça e olhou. Meu Deus, que traços divinos! A fronte sedutora, de uma brancura deslumbrante, estava coberta por cabelos 80
maravilhosos como ágata. Aquelas madeixas encantadoras ondulavam, e uma parte delas, escapulindo por baixo do chapéu, tocava as faces pinceladas com um rubor fino e fresco, provocado pelo frio noturno. A boca estava fechada por um verdadeiro enxame de sonhos lindíssimos. Tudo aquilo que retemos como lembrança da infância, aquilo que nos remete ao sonho e à suave inspiração diante de uma lamparina acesa, tudo parecia reunido, difuso e refletido nos seus lábios harmoniosos. Ela olhou para Piskarióv, cujo coração palpitou com aquele olhar; ela olhou severamente e um sentimento de indignação transpareceu em seu rosto diante de tão insolente perse guição; mas neste rosto lindo até mesmo a cólera era fascinante. Cheio de vergonha e timidez, ele parou e baixou os olhos; mas como perder essa divindade sem saber pelo menos o seu santuário, de onde descera e onde ia se hospedar? Estes pensamentos vinham à cabeça do jovem sonhador e decidiu segui-la. N o entanto, para não dar na vista, aumentou a distância que os separava, olhou despreocupadamente para os lados e ficou observando os letreiros, mas sem perder de vista um passo sequer da desconhecida. Os transeuntes se tornavam mais raros, a rua se tornou mais silenciosa; a bela mulher virou a cabeça e ele teve a impressão de que um sorriso suave brilhava em seus lábios. Começou a tremer inteiro e não pôde crer em seus próprios olhos. Não era o lampião com sua luz falsa que fazia surgir no rosto dela um simulacro de sorriso. 81
não, seus próprios sonhos zombavam dele. Mas a respi ração se deteve em seu peito, tudo nele se transformou num temor confuso, todos os seus sentidos arderam e tudo se envolveu por uma névoa. A calçada corria embaixo dele, as carruagens com os cavalos que antes galopavam pareciam imóveis; a ponte se estendia e se rompia no seu arco, uma casa ficou de cabeça para baixo, uma guarita desmoronou e a alabarda da sentinela, juntamente com as palavras douradas do letreiro, com tesouras desenhadas, brilharam como que em seus próprios cílios. E tudo isso foi produzido por um único olhar, um único virar da linda cabecinha. Sem ouvir, sem ver, sem prestar atenção a nada, voando atrás dos leves vestígios daqueles pezinhos encan tadores, esforçava-se para moderar a rapidez de seu passo, que corria conforme o ritmo do coração: às vezes se apoderava dele uma dúvida: teria sido benevolente a expressão do seu rosto? E então ele parava por um minuto, mas a pulsação de seu coração, a força insuperável e a inquietude de todos os seus sentimentos impeliam-no para frente. Nem se deu conta de que subitamente, diante dele, surgiu um prédio de quatro andares; as quatro fileiras de janelas, brilhantes como fogo, olharam para ele todas de uma só vez, e o corrimão de ferro junto da entrada lhe deu um choque. Ele viu a desconhecida voar pela escada, olhar ao redor, pôr um dedo nos lábios e lhe fazer um sinal para que a seguisse. Tremeram-lhe os joelhos; os seus sentimen82
tos e pensamentos arderam; um relâmpago de alegria penetrou com intensidade insuportável o seu coração. Não, isto já não é um sonho! Meu Deus! Quanta felicidade em um abrir e fechar de olhos! Que vida milagrosa em dois minutos! Mas não seria tudo isto um sonho? Seria possível que aquela, por cujo olhar celestial ele estava disposto a dar toda a sua vida, e de cuja casa já considerava uma felicidade inalcançável o simples aproximar-se, seria possível que ela fosse agora tão benevolente e atenciosa para com ele? Subiu a escada correndo. Não tinha nenhum pensamento terrestre, não estava inflamado pela chama de nenhuma paixão terrena; não, naquele minuto ele era puro e inocente como um adolescente virgem que acalenta uma necessidade espiritual indefinida de amor. E aquilo que despertaria em qualquer homem libertino pensamentos atrevidos, ao contrário, tor nava os seus ainda mais santificados. A confiança que lhe transmitia aquela meiga e maravilhosa criatura impunha-lhe o voto de ser austero como um cavaleiro, o voto de cumprir como um escravo todas as suas ordens. Ele desejava tão somente que aquelas ordens fossem as mais difíceis e inexeqüíveis, para que com grande esforço pudesse superálas. Não tinha dúvidas de que algum acontecimento mis terioso e ao mesmo tempo importante obrigaria aquela desconhecida a confiar nele; que dele, provavelmente, se riam exigidos grandes serviços, e já sentia dentro de si a força e a decisão para tudo. 83
A escada se retorcia e com ela se retorciam também os seus rápidos sonhos. “Vá com mais cuidado!” ressoou uma voz como harpa e todas as suas veias se encheram de um novo frêmito. Na escuridão do quarto andar a desconhecida bateu na porta — esta se abriu e eles entraram juntos. Uma mulher de aspecto bastante agradável foi ao encontro deles com uma vela na mão; mas olhou para Piskarióv tão estra nha e descarada que ele sem querer baixou os olhos. En traram no aposento. Três figuras femininas em cantos di ferentes surgiram diante dos seus olhos. Uma delas punha as cartas, outra estava sentada ao piano e tocava com dois dedos algo choroso, parecido com uma antiga polonesa,' a terceira, sentada diante de um espelho, penteava as longas madeixas e absolutamente não pensava em interromper a sua toalete por causa da entrada de um desconhecido. Reinava ali certa desordem desagradável, que só pode ser encontrada no quarto descuidado de um solteirão. Os móveis razoavel mente bons estavam cobertos de pó; uma aranha esticava sua teia sobre a cornija; através da porta entreaberta de um outro quarto brilhavam uma bota com espora e a borda vermelha de um uniforme; uma forte voz masculina e uma risada feminina ressoavam sem qualquer constrangimento. Meu Deus, onde ele fora se meter! De início não queria acreditar e começou a examinar com mais atenção os objetos que preenchiam o quarto; mas as paredes nuas e as janelas sem cortinas não revelavam a mínima presença de uma dona de casa cuidadosa, os rostos gastos dessas míseras criaturas, 84
uma das quais estava sentada quase diante do seu nariz e se pôs a olhá-lo tranqüilamente, como se ele fosse mancha em vestido alheio — tudo isso o convenceu de que tinha caído em um abominável abrigo, morada da lamentável depravação, produto da falsa educação e do terrível excesso de gente da capital. Este abrigo onde o homem em sacrilégio espezinha e ri de tudo que é puro e sagrado e que enaltece a vida, onde a mulher, esta beleza do mundo, auréola da criação, se transforma em uma criatura estranha e ambígua, onde junto com a pureza da alma se perde também toda feminilidade e se adquirem uns modos e um descaramento masculino detestáveis, e ela deixa de ser aquela frágil, aquela maravilhosa criatura tão diferente de nós. Piskarióv olhava para ela dos pés à cabeça com uns olhos espantados, como que para se convencer de que era aquela mesma que o tinha enfeitiçado, arrastando-o pela Avenida Niévski. Mas ela ali estava diante dele, bonita, do mesmo modo; seus cabelos eram maravilhosos do mesmo jeito; seus olhos pareciam ainda celestiais. Ela era viçosa e tinha apenas dezessete anos; era evidente que fazia pouco tempo que fora atingida por aquela terrível libertinagem, que ainda não ousara tocá-la em suas faces frescas e suavemente realçadas por um fino rubor: ela era linda. Permanecia imóvel diante dela, pronto a perder a cabeça como já havia acontecido antes. Mas a beldade se aborreceu com aquele longo silêncio e sorriu expressiva mente olhando-o direto nos olhos. Mas este sorriso estava 85
cheio de um certo descaro doloroso: era tão estranho para seu rosto como a expressão da devoção na cara de um usurário ou um livro de contabilidade para o poeta. Ele estremeceu. Ela abriu sua linda boquinha e começou a falar alguma coisa tão boba e tão trivial... Como se fosse possível junto com a pureza perder também a inteligência humana. Ele já não queria escutar mais nada. Sentia-se excessivamente ridículo e ingênuo como uma criança. Ao invés de se aproveitar daquela benevolência, ao invés de se regozijar com aquele incidente, o que sem dúvida faria qualquer outro em seu lugar, pôs-se a correr com todas as suas forças como uma cabra selvagem pela rua. De cabeça baixa e os braços caídos ficou sentado em seu quarto como um pobre que encontra uma pérola inestimável e deixa-a imediatamente cair no mar. — Tão bela, uns traços tão divinos, e onde? em que lugar? — era tudo o que podia pronunciar. Com efeito, nunca a piedade se apodera tão intensa mente de nós, como diante da beleza tocada pelo sopro podre do vício. Ainda se fosse a feiúra que tivesse se unido a ele, mas a beleza, a beleza delicada... Pois em nossos pensamentos ela apenas pode se misturar à pureza e à castidade. Aquela maravilha que tinha enfeitiçado o pobre Piskarióv era certamente um fenômeno prodigioso e extraordinário. Sua presença naquele ambiente deplorável parecia-lhe ainda mais extraordinária. Todos os seus traços eram marcados de 86
tanta pureza, toda a expressão de seu maravilhoso rosto refletia tanta nobreza, que jamais se poderia pensar que o vício tivesse estendido sobre ela as suas terríveis garras. Ela seria uma pérola inestimável, o universo inteiro, o paraíso todo, toda a riqueza de um esposo apaixonado; ela poderia ser uma estrela linda e suave em um modesto círculo familiar e, com um só movimento de seus lábios maravi lhosos, daria as ordens mais doces. Ela poderia ser uma deusa venerada numa sala por uma multidão silenciosa de adoradores, caídos a seus pés sobre o assoalho iluminado pela luz brilhante das velas; mas ai! Ela fora, por uma vontade terrível do espírito do mal, ansioso por destruir a harmonia da vida, atirada com uma gargalhada no abismo. Ele estava sentado diante da vela acesa, penetrado por uma piedade dilacerante. Já havia passado da meia-noite, o sino da torre havia batido meia-noite e meia, mas ele continuava sentado, imóvel, sem sono, sem força para agir. A sonolência, aproveitando-se de sua imobilidade, já começa va vagarosamente a tomar conta dele, o quarto já começava a desaparecer, apenas uma chama de vela iluminava e se apoderava de seus sonhos, quando de repente um golpe na porta o fez estremecer e voltar a si. A porta se abriu e entrou um lacaio com uma rica libré. Em seu quarto solitário nunca tinha entrado uma libré rica, ademais naquela hora tão extraordinária... Ficou perplexo e olhou com uma curiosidade impa ciente para o lacaio recém-chegado. 87
— Aquela senhora — disse o lacaio com uma respeitosa reverência — em cujos aposentos o senhor teve o prazer de estar há algumas horas, ordenou-me que o convidasse à sua casa e enviou sua carruagem. Piskarióv ficou imóvel de surpresa: “carruagem, um lacaio de libré!... Não, aqui há algum erro, com certeza...” — Escute, meu caro, falou ele com timidez, o senhor com certeza não entrou onde devia. A sua senhora, sem dúvida, mandou buscar alguém mais e não eu. — Não, senhor, eu não estou enganado. Não foi o senhor que teve a fineza de acompanhar a senhora a pé até a casa da rua Litéinaia, nos aposentos do quarto andar? — Sim. Fui eu. — Então, depressa, por favor, a senhora deseja vê-lo sem falta e pede para que o senhor vá direto à sua casa. Piskarióv desceu correndo a escada. De fato, na rua estava a carruagem. Ele se sentou, as portinholas bateram, as pedras da calçada ressoaram sob as rodas e sob os cascos — e a perspectiva das casas iluminada com letreiros brilhantes passava voando ao lado das janelas da carrua gem. Piskarióv pensava durante todo o caminho, sem saber como explicar esta aventura. A casa própria, a carruagem, o lacaio com a rica libré... ele não conseguia, de forma alguma, conciliar tudo isto com o aposento no quarto andar, com as janelas empoeiradas e o piano desafinado. A carruagem parou diante de uma entrada brilhantemente iluminada e de súbito o assombraram a fila de carruagens, 88
a fala dos cocheiros, as janelas resplandecentes e os sons da música. O lacaio com a rica libré o fez descer da carruagem e respeitoso o conduziu ao vestibulo com colunas de mármore, um porteiro banhado em ouro, capas e casacos de peles espalhados e um lampião brilhante. Uma escada de corrimãos adornados e brilhantes, perfumada de aromas, levava para cima. Ele já estava lá, já havia entrado na primeira sala, assustado e recuando a cada passo, diante de uma multidão espantosa. A extraordinária mistura de rostos deixou-o numa confusão completa, parecia-lhe que algum demônio tivesse quebrado o mundo todo em uma infinidade de diferentes pedaços, e todos esses pedaços sem sentido, sem significado, se confundis sem juntos. Os ombros brilhantes das senhoras e os fraques negros, os lustres, lampiões, tecidos vaporosos e esvoaçantes, as fitas etéreas e o grosso contrabaixo que transparecia pelo balaústre do magnífico coro — tudo era deslumbrante. Ele viu de repente reunidos tantos senhores respeitáveis e homens de meia-idade com estrelas nos fraques; senhoras que com tanta ligeireza, orgulho e graça, desfilavam pela sala ou ficavam sentadas enfileiradas; ouviu tantas palavras em francês e inglês... Também os jovens de fraques pretos estavam repletos de tanta nobreza, falavam e calavam com tanta dignidade, sabiam tão bem não dizer nada de supérfluo, gracejavam tão magnificamente, sorriam com tanto respeito, levavam umas coste letas tão perfeitas, sabiam mostrar suas mãos impecáveis 89
com tanta arte ao arrumar a gravata, e as senhoras eram tão vaporosas, tão envoltas numa absoluta satisfação e embriaguez, baixavam os olhos de uma maneira tão encantadora que... Entretanto, o aspecto humilde de Piskarióv, que se apoiava, apreensivo, na coluna, revelava que ele estava completamente desconcertado. Neste momento a multidão rodeou o grupo dos que estavam dançando. Eles deslizavam entre transparentes criações de Paris, entre vestidos feitos de ar; elas tocavam descuida damente o chão com seus pezinhos brilhantes e seriam ainda mais etéreas se não o houvessem sequer tocado. Mas uma delas estava melhor vestida, com mais luxo e exuberância do que todas as outras. A combinação delicada de gosto indescritível espalhava-se em todos os adornos e parecia que ela não estava preocupada com nada daquilo e isto se manifestava nela sem querer. Ora ela olhava, ora não olhava para a multidão de espectadores ao redor, os cílios maravilhosos e compridos baixavam com indiferença e a resplandescente brancura de seu rosto saltava aos olhos, ainda mais deslumbrante quando uma sombra leve cobria sua testa ao inclinar a cabeça. Piskarióv fez todos os esforços para abrir caminho entre a multidão e poder examiná-la melhor mas, para grande desgosto seu, uma enorme cabeça de cabelos escuros e cres pos a escondia incessantemente; a multidão ainda o prensa va de tal maneira que não se atrevia nem a avançar e nem a 90
recuar, temendo esbarrar em algum conselheiro secreto. Mas eis que encontrou um jeito de ir para frente e deu uma olha da em sua própria roupa, desejando que ela estivesse arru mada decentemente: Santo Deus, mas o que era aquilo! Ele tinha toda a sobrecasaca manchada de tinta: na pressa ele se esquecera até mesmo de se trocar e de vestir uma roupa me lhor. Ficou vermelho até a alma e, baixando a cabeça, quis se enterrar; mas decididamente não havia como: os cadetes com trajes luxuosos estavam colocados atrás dele como uma per feita parede. Ele desejava agora estar o mais longe possível daquela beldade de testa e cílios fascinantes. Angustiado le vantou os olhos para se certificar de que ela não estava olhando para ele: Meu Deus! ela estava lá, diante dele... Mas o que é isto? O que é isto? “É ela!” exclamou ele quase em voz alta. Com efeito, era ela, a mesma que ele tinha visto na Niévski e que tinha acompanhado até sua casa. No entanto, ela levantou os cílios e olhou para todos com seu olhar brilhante. “Ai, meu Deus, como é bela!...” pôde apenas articular com a respiração entrecortada. Ela passou os olhos sobre aquele grupo de pessoas sedentas por atrair sua atenção, uma mais do que a outra, mas com certo cansaço e indiferença, desviou o olhar rapidamente e encon trou os olhos de Piskarióv. O h, que céu! que paraíso! Dai-me forças, criador, para suportar isso! a vida não tem lugar para tanto, isso vai me destruir e sufocar minha alma! Ela fez um sinal, mas não com a mão e nem com uma inclinação de cabeça, não, os seus olhos contundentes fize 91
ram esse sinal com uma expressão tão sutil e imperceptível que ninguém poderia percebê-lo e compreendê-lo a não ser ele. A dança se prolongou por muito tempo; a música cansa da parecia se apagar e se extinguir, e de novo crescia, esganiçava, retumbava; enfim — o fim! — Ela sentou, seu peito ergueu-se sob a fina fumaça de gaze; sua mão (Deus, que mão encantadora) caiu sobre os joelhos e comprimiu o vestido esvoaçante, e o vestido parecia respirar a música e a cor de suave lilás evidenciava ainda mais a brancura viva des ta mão maravilhosa. Apenas tocar nela — e nada mais! ne nhum outro desejo — todos eles pareceriam insolentes... Ele estava atrás de sua cadeira, não ousava falar, nem mesmo respirar. “Você está se aborrecendo?” perguntou ela. “Eu também. Estou notando que você me odeia...” acrescentou ela, baixando os longos cílios. “Odiar você? eu? eu...” quis articular Piskarióv se confundindo completamente e teria dito provavelmente um amontoado de palavras incoerentes. Mas nesse mo mento se aproximou um oficial superior fazendo obser vações graciosas e simpáticas com um bonito topete crespo na cabeça. Ele punha agradavelmente à mostra uma fileira de dentes bastante bons e cada gracejo era uma pontada aguda em seu coração. Finalmente alguém dos presentes, por sorte, dirigiu-se ao oficial com uma pergunta. — Como isto é insuportável! — ela disse, levantando os olhos celestiais para ele. — Vou sentar no outro lado do salão; vá para lá! — Deslizou entre todos e desapareceu. Como um louco ele cindiu a multidão e foi para lá. 92
Então era ela! ela estava sentada, como uma rainha, linda, de todas a mais bonita, de todas a melhor, e procurava seus olhos. — Você está aqui? — ela falou em voz baixa. — Vou ser sincera com você; provavelmente lhe pareceram estra nhas as circunstâncias de nosso encontro. Será possível que você tenha chegado a pensar que eu poderia pertencer àquela classe desprezível de criaturas, na qual você me encontrou? Parecerão estranhas minhas atitudes, mas vou revelar um segredo: você seria capaz — acrescentou ela, fixando os olhos atentamente nos olhos dele — de não traí-lo nunca? — O h, serei! serei! serei!... Mas nesse momento se aproximou um homem de meia-idade e começou a falar com ela em alguma língua incompreensível para Piskarióv e lhe ofereceu o braço. Ela olhou para Piskarióv com um olhar suplicante e fez um sinal para ele permanecer no lugar onde estava e esperar sua volta, mas, num arrebatamento de impaciência, ele que não tinha mais forças para suportar nenhuma ordem, até mesmo vindo daquela boca, atirou-se atrás dela. A multidão os separou e ele perdeu de vista o vestido lilás; passou agitado de uma sala para outra, empurrando todos os que encontrava sem caridade, mas nas salas só estavam sentados figurões, jogando whist, submersos num silêncio mortal. Num canto de uma sala alguns homens mais velhos discutiam sobre as vantagens do serviço militar 93
sobre o civil; em outra alguns, em magníficos fraques, lançavam rápidas observações sobre as obras em vários volumes, de um laborioso poeta. Piskarióv sentiu que um senhor de idade, de aspecto respeitável, o agarrava pelo botão de seu fraque e lhe expunha o motivo bastante justo de sua observação, mas ele grosseiramente o empurrou, sem mesmo notar que no peito dele havia uma condeco ração bastante expressiva. Correu para outro aposento — lá ela também não estava. No terceiro também não. “Onde está ela! Eu a quero! Oh, não posso viver sem vê-la! Preciso saber o que queria me dizer.” — Mas toda sua busca resultou em nada. Inquieto, extenuado, ele se apoiou em um canto e olhou para a multidão; mas seus olhos tensos começaram a mostrar tudo sob um aspecto nebuloso. Finalmente, as paredes de seu quarto voltaram a aparecer. Levantou os olhos; diante dele estava o candelabro com a vela quase extinta: a vela inteira tinha se derretido, e o sebo estava derramado em sua mesa. Então ele adormecera! Meu Deus, que sonho! e por que despertara? Por que não esperar um minuto mais! Ela, prova velmente, iria aparecer de novo! Uma luz enfadonha com um brilho desagradável e opaco espiava por sua janela. O quarto estava numa confusão cinza e nebulosa... O h, como é repugnante a realidade! O que é ela, comparada com o so nho! Despiu-se rapidamente e se deitou na cama, envolvendose na manta e desejando evocar, por um momento, aquele 94
sonho fugidio. O sonho, com efeito, não tardou a chegar, mas não se apresentou, em absoluto, como ele desejaria: ora era o tenente Pirogóv que aparecia com um cachimbo, ora era um guarda da academia, ora um conselheiro público, ora a cabeça de uma finlandesa velha, da qual certa ocasião pin tou um retrato, ou qualquer outro absurdo. Até o meio-dia permaneceu na cama, tentando dormir, mas ela não apareceu. Oxalá por um minuto voltasse a mostrar seus traços maravilhosos, por um minuto apenas pudesse ouvir o ruído de seus passos ligeiros, e passar diante dele o braço desnudo e brilhante como a neve mais nova! Deixando tudo de lado, esquecendo-se de tudo, ele permanecia sentado com um aspecto de desconsolo e desespero, absorvido somente por uma visão. Não pensava em coisa alguma, os seus olhos sem qualquer destino, sem qualquer vida, olhavam pela janela que dava para um pátio onde um aguadeiro sujo vertia água que se congelava no ar, e a voz trêmula de um vendedor ecoava: “roupa velha vender...” Todo o cotidiano e o real afetavam de modo estranho seu ouvido. Assim, ele ficou sentado até a noite e com ansiedade jogou-se novamente na cama. Por muito tempo lutou com a insônia, mas finalmente a venceu. De novo um sonho, um sonho trivial e vil. “Meu Deus, tenha pena de mim: ao menos por um minuto, por um só minuto faça-a aparecer!” E de novo esperou a noite, de novo dormiu e de novo sonhou com algum funcionário que era ao mesmo tempo funcionário e fagote. 95
“Oh! Isto é insuportável!” Mas enfim ela surge! Sua cabecinha e cachos... ela olha... Oh! mas que breve! novamente uma névoa, novamente alguma visão estúpida. Por fim, os sonhos se tornaram sua própria vida, e daí em diante ela tomou um rumo estranho: pode-se dizer que ele dormia de olhos abertos e sonhava acordado. Se alguém o visse sentado em silêncio diante de uma mesa vazia ou andando pela rua, certamente o tomaria por um lunático ou um arruinado pelas bebidas alcóolicas; seu olhar não tinha absolutamente qualquer sentido, sua distração habitual, finalmente, se desenvolvia e expulsava de seu rosto todos os sentimentos, todos os movimentos. Ele revivia somente quando chegava a noite. Tal estado esgotou suas forças e a mais terrível tortura foi para ele a perda total do sono. Desejando salvar esta sua única riqueza empregou todos os recursos para recuperá-la. Tinha ouvido dizer que havia um meio para recobrar o sono e que bastava para tanto tomar ópio. Mas onde conseguir este ópio? Ele se lembrou de um persa que tinha uma loja de xales e que quase sempre, quando o encontrava, pedia que lhe desenhasse alguma beldade. Decidiu ir à casa dele, supondo que, sem dúvida, encontraria lá o ópio. O persa recebeu-o sentado no divã sobre as pernas: “Para que quer o ópio?” perguntou-lhe. Piskarióv contou-lhe sobre sua insônia. — Está bem, eu lhe darei o ópio, mas desenhe para mim alguma beldade. Q ue seja bonita! Q ue as sombrancelhas 96
sejam negras e os olhos grandes, como azeitonas; e que eu mesmo esteja deitado ao lado dela, fumando cachimbo! Está escutando? Que seja bonita, que seja uma beldade! Piskarióv prometeu tudo. O persa saiu por um minuto e voltou com um recipiente cheio de um liqüido escuro, do qual verteu cuidadosamente uma parte para outro recipiente e deu a Piskarióv, instruindo-o para que não pusesse mais de sete gotas na água. Com ansiedade ele agarrou aquele pre cioso pote que não teria trocado nem por um amontoado de ouro e correu para casa. Ao chegar em casa, colocou algumas gotas em um copo com água, engoliu e pegou no sono. Meu Deus! Que alegria! Ela! Outra vez ela! Mas agora com um aspecto completa mente diferente. Oh! Como está bonita sentada junto à ja nela de uma alegre casinha de campo! Sua roupa respira com aquela candura com a qual se reveste somente o pensamento do poeta. E o seu penteado... Deus, como é simples este pen teado e como lhe cai bem! Uma pequena trança cai de leve sobre seu pescoço esbelto; tudo nela é sóbrio, tudo nela é mistério e tem uma inexplicável sensação de bom gosto. Como é delicado e gracioso seu modo de andar! Quanta musicalidade no ruído de seus passos e na simplicidade de seu vestido! Que lindo braço comprimido por um bracelete! Ela lhe fala com lágrimas nos olhos “Não me despreze: não sou absolu tamente quem você pensa. Olhe para mim, olhe fixamente e me diga: por acaso eu seria capaz daquilo que você está pen sando? Oh! não, não! Que alguém se atreva a pensar, que se 97
atreva...” Mas ele despertou! Emocionado, confuso, com os olhos cheios de lágrimas. “Seria melhor que você não existis se! Que não pertencesse a este mundo e que fosse somente fruto da imaginação de um pintor! Eu então me afastaria da tela, ficaria olhando e beijando você eternamente. Eu viveria e respiraria através de você, como num sonho maravilhoso, e então seria feliz. E não teria mais nenhum desejo. Eu a invo caria como anjo da guarda antes do sono e da vigília, e a esperaria até que surgisse o momento de expressar o divino e o sagrado. Mas agora... que vida horrível! Para que viver? Por acaso a vida de um louco é agradável para seus parentes e amigos, que um dia o amaram? Meu Deus, que vida a nossa! um eterno conflito entre o sonho e a realidade!” Tais pensamentos o ocupavam sem cessar. Ele não pensava em nada e quase não comia; impaciente, esperava a noite e a desejada visão como um amante apaixonado. A incessante orientação de seus pensamentos para uma única direção adquiriu, por fim, tal poder sobre seu ser e sua imaginação que a imagem desejada lhe aparecia quase todos os dias e sempre numa situação oposta à realidade, pois seus pensamentos eram puros como os de uma criança. Através destes sonhos o mesmo objeto se tornava de certo modo mais puro e se transformava por completo. As doses de ópio acendiam ainda mais seus pensa mentos e se existisse algum ser enamorado até o último grau de loucura, impetuoso, terrível, destruidor e rebelde, então este pobre infeliz seria ele. 98
Entre os sonhos havia um mais alegre do que todos: aparecia-lhe o seu atelier. Ele estava tão feliz, com tanto pra zer sentava com a paleta nas mãos. E ela também estava ali. Era sua mulher. Sentada ao seu lado, apoiava o cotovelo en cantador no encosto da cadeira e observava o seu trabalho. Os olhos lânguidos e cansados refletiam um tempo de felici dade; em todo o aposento respirava o paraíso; era tão claro e tão arrumado... Oh! Deus! Ela reclinava em seu peito a en cantadora cabecinha. Ele nunca tivera um sonho melhor. Depois dele levantava um pouco mais aliviado e menos dis perso do que antes. Em sua cabeça nasciam estranhos pensa mentos: “Quem sabe, pensava, ela tenha sido arrastada para a depravação por algum acontecimento terrível e involuntá rio; pode ser que os movimentos de sua alma estejam incli nados ao arrependimento; quem sabe ela mesma deseja esca par daquela terrível condição. E será possível admitir impas sível a sua perdição quando bastaria lhe estender a mão para salvá-la deste abismo?” Seus pensamentos iam cada vez mais longe. “Ninguém me conhece”, dizia para si próprio: “e não é da conta de ninguém e ninguém tem nada com isso.” “Se ela manifestar um verdadeiro arrependimento e mudar de vida, eu me caso com ela. Devo me casar com ela e com certeza eu farei muito melhor do que muitos que se casam com suas governantas e até mesmo com as mais depreciáveis criaturas. Mas o meu feito será desin teressado e, quem sabe, até grande. Devolverei ao mundo o melhor de seus ornamentos.” 99
Tendo elaborado este plano imprudente sentiu o rubor acender seu rosto; aproximou-se do espelho e se espantou com as faces cavadas e a palidez de seu rosto. Começou a se arrumar cuidadosamente; lavou-se, penteou os cabelos, vestiu um fraque novo e um colete elegante, pôs uma capa e saiu para a rua. Respirou o ar fresco e sentiu um frescor no coração, como um convalescente que decide sair pela primeira vez depois de uma profunda doença. O coração palpitou ao se aproximar daquela rua na qual não tinha posto os pés desde o fatídico encontro. Ficou procurando a casa por muito tempo; parecia que a memória lhe falhava. Passou pela rua duas vezes sem saber diante de qual parar. Finalmente uma lhe pareceu semelhan te. Subiu rapidamente a escada, bateu na porta: a porta se abriu e quem saiu a seu encontro? Seu ideal! A imagem mis teriosa dos quadros sonhados, aquele com o qual ele vivia tão terrivelmente, com tanto sofrimento e com tanta doçura. Ela mesma estava ali diante dele: ele começou a tremer, mal po dia se manter em pé de tanta fraqueza, envolvido por um arrebatamento de felicidade. Ela estava diante dele tão mara vilhosa e, apesar dos olhos sonolentos e a palidez estampada no rosto, o qual já não tinha a mesma frescura, ela era ainda muito bonita. — Ah! — exclamou ao ver Piskarióv e esfregou os olhos. Já eram duas horas. — Por que fugiu de nós aquele dia? Extenuado ele sentou num a cadeira e olhou para ela. 100
— E eu acabo de despertar; trouxeram-me de volta às sete da manhã. Eu estava completamente bêbada — acrescentou ela com um sorriso. Oh, seria melhor se fosse muda e tivesse perdido a língua do que pronunciar aquelas palavras! De repente lhe mostrara, como num panorama, toda a sua vida. No entanto, sem ligar para isso, com dor no coração, resolveu provar se suas advertências exerceriam nela algum efeito. Recobrando o ânimo, com a voz trêmula e ao mesmo tempo ardente, ele começou a lhe mostrar todo o horrível de sua condição. Ela o escutava com atenção e com aquele senti mento de assombro que se manifesta em nós diante de algo inesperado e estranho. Deu uma olhada, com um leve sorriso, para sua amiga sentada em um canto e que, parando de limpar um pentinho, se pôs também a ouvir com atenção o novo pregador. — É verdade, sou pobre — disse Piskarióv depois de um longo e instrutivo sermão: — mas nós começaremos a trabalhar, nos esforçaremos um mais do que o outro para tornar nossa vida melhor. Nada é mais gratificante do que dever tudo a si mesmo. Eu vou ficar sentado, ocupado com os meus quadros, você sentará ao meu lado, inspirará minhas obras, ficará bordando ou fazendo qualquer outro trabalho manual — e não sentiremos falta de nada. — Como é possível! — interrompeu ela o discurso, manifestando certo desprezo. — Eu não sou nenhuma lavadeira ou costureira para me pôr a trabalhar. 101
Meu Deus! Com estas palavras revelou-se toda aquela vida baixa, desprezível, uma vida repleta de vazio e futilidade, verdadeiros companheiros do vício. — Case-se comigo! — intercedeu com ar insolente a amiga que até então estivera calada em um canto. — Se eu for sua mulher, ficarei sentada desse jeito mesmo! — E com isso ela deu uma expressão tão estúpida a seu esquálido rosto que fez a beldade rir desmedidamente. Oh! Isto já era demais! Não havia mais forças para su portar. Privado de sentimentos e pensamentos, pôs-se a cor rer dali. Sua mente estava turvada. Vagou durante todo o dia completamente tonto, sem objetivo, sem ver, ouvir e sem sentir coisa alguma. Ninguém poderia saber onde tinha passado a noite e somente no outro dia algum instinto o co n d u z iu p ara casa, p álid o , com h o rrív el aspecto, despenteado e com traços de loucura no rosto. Ele se fechou no quarto, não pediu nada e não deixou ninguém entrar. Transcorreram quatro dias e o quarto fechado nem uma só vez se abriu; passou uma semana e o quarto continuava da mesma forma, fechado. Bateram à porta, começaram a cha mar por ele, mas não houve resposta; então forçaram a por ta e seu cadáver foi encontrado com a garganta cortada. Uma navalha ensangüentada estava jogada no chão. Pelos seus braços convulsivamente estendidos e pelo seu aspecto terri velmente desfigurado, podia-se concluir que sua mão errara e que ele sofrerá por longo tempo antes que sua alma pecadora deixasse o corpo. 102
Assim morreu, vítima de uma louca paixão o pobre Piskarióv, quieto, tímido, modesto, infantilmente ingênuo, levando consigo uma faísca de talento, que talvez pudesse ter se incendiado, ampla e brilhante. Ninguém chorou por ele, ninguém esteve junto de seu cadáver, a não ser, é claro, as habituais figuras do inspetor municipal e do rosto indiferen te do médico municipal. Seu caixão foi lacrado para Okhta, discretamente, sem cerimônias religiosas; atrás dele chorava somente um guarda e isto porque havia bebido mais do que um litro de vodka. Nem mesmo o tenente Pirogóv, que em vida lhe demonstrara a mais alta proteção, apareceu para ver o cadáver do pobre infeliz. Além do mais, ele não estava em absoluto preocupado com isto: ele estava ocupado com um acontecimento excepcional. Vamos então voltar para ele. Eu não gosto de cadáveres e defuntos e me é sempre desagradável quando atravessam em meu caminho um longo cortejo fúnebre e um soldado inválido, vestido como um capuchinho, que cheira o rapé com a mão esquerda, porque a direita está ocupada com a tocha. Sempre me sinto mal diante de um carro fúnebre com um caixão recoberto de veludo; mas o meu mal-estar se mes cla de compaixão quando vejo um cocheiro conduzindo o caixão de um pobre-diabo, sem forro vermelho algum, e com apenas uma mendiga qualquer encontrada na encruzilhada, que se arrasta atrás dele, por não ter outra coisa para fazer. Parece-me que abandonamos o tenente Pirogóv no mo mento em que ele se separava do pobre Piskarióv para se 103
lançar atrás da loura. Esta loura era uma criaturinha leve e até que bastante interessante. Ela parava diante de todas as lojas e passava os olhos pelas vitrines, olhava os cintos, len ços, brincos, luvas e outras futilidades, movendo-se sem ces sar e, olhando para todos os lados, se virava às vezes para trás. “Minha pombinha!” disse presunçoso Pirogóv, continuando sua perseguição e escondendo o rosto na gola de seu capote para não encontrar conhecidos. Com certeza, não incomodará os leitores informar quem era o tenente Pirogóv. Mas antes de dizer quem era o tenente Pirogóv, não será demais contar alguma coisa sobre a sociedade a que pertencia. Existem oficiais que constituem em Petersburgo uma certa classe média da sociedade. Num sarau, num almoço na casa de um conselheiro civil ou de um civil efetivo que teve direito a esse grau após 40 anos de serviço, você sempre en contrará um deles. Entre as diferentes filhas, pálidas e descoloridas como Petersburgo, dentre as quais algumas ficaram amadurecidas demais, junto à mesinha de chá, ao piano, e aos bailes familiares, estarão inseparáveis as dragonas relu zentes, que brilham sob o candeeiro entre uma lourinha de boa conduta e o fraque negro de algum irmãozinho ou de um amigo íntimo. É extremamente difícil divertir e fazer rir essas moças; para isso é preciso muita arte, ou melhor, ne nhuma arte. É preciso falar de uma forma que não seja nem demasiado inteligente e nem demasiado cômica, para que em tudo haja aquela futilidade de que tanto gostam as mu 104
lheres. E nisso temos que fazer justiça aos ditos senhores. Eles possuem o dom especial de fazer rir e saber escutar essas beldades descoloridas. As exclamações sufocadas pelo riso: “Ah! Chega! Você não se envergonha de fazer-me rir desta maneira?” são sempre para eles a melhor recompensa. Na alta sociedade são encontrados muito raramente, ou melhor, nunca. Ali eles são totalmente substituídos pelo que, nesta sociedade, chamam de aristocratas; contudo, são consi derados gente culta e bem educada. Gostam de conversar sobre literatura, elogiam Bulgarim, Puchkin e Grech e falam com desprezo e com mordacidade atroz dé A.A. Orlóv. Não perdem nenhum a conferência, seja ela sobre contabilidade ou mesmo sobre silvicultura. N o teatro, seja qual for a peça, você encontrará sempre algum deles, a não ser que a peça levada seja “Filatki” ou qualquer outra do gênero, que tanto ofende o seu gosto exigente. Eles estão constantemente no teatro. É este o público vantajoso para o empresário teatral. Eles gostam especialmente dos versos boni tos, também gostam muito de chamar os artistas em voz alta; muitos deles, por ensinar em instituições oficiais ou por pre parar alunos para estes estabelecimentos, conseguem adqui rir facilmente uma carruagem com uma parelha de cavalos. Então, o seu círculo se torna mais amplo; eles chegam, por fim, até a casar-se com a filha de um comerciante que sabe tocar piano, que tem por aí cem mil rublos e um montão de parentes barbudos. No entanto eles não podem alcançar esta honra até atingir, pelo menos, o grau de coronel. Porque os 105
barbichas russos, apesar de ainda cheirarem um pouco a re polho, não querem de nenhuma forma ver as filhas casadas com ninguém que não seja general, ou pelo menos coronel. Estas são as principais características deste tipo de jovens. Mas o tenente Pirogóv possuía uma quantidade de talentos que eram prerrogativa dele. Ele declamava perfeitamente os versos de Dimitri Donskoi e de “A desgraça de ser inteligente”, possuía uma arte especial para soltar do cachimbo argolinhas de fumaça com tanto êxito que podia encaixar por volta de dez, umas nas outras. Sabia contar com muita graça uma anedota sobre um canhão só ou o rinoceronte sozinho. Além do mais, é muito difícil enumerar todos os talentos com que o destino dotou Pirogóv. Ele gostava de tecer comentários sobre uma atriz ou bailarina, mas não com tanta aspereza como o faria normalmente um jovem alferes. Estava muito satisfeito com o seu grau, para o qual há pouco tempo tinha sido promovido, embora às vezes, deitado ao divã, dissesse: “Oh! Oh! Vaidade, tudo é vaidade! Que importa que eu seja um tenente?” Mas no íntimo ele se sentia lisonjeado com esta nova distinção; em suas conversas procurava freqüentemente fazer alusão a isto com rodeios, e uma vez, tendo encontrado na rua um certo escrivão, que se mostrara descortês, ele mais do que depressa o interrompera e, com poucas, mas ásperas palavras, dera a entender que diante dele estava um tenente e não um oficial qualquer. Além do mais, se 106
esforçara por fazer uma exposição eloqüente, pois naquele momento estavam passando duas damas não de todo desprezíveis. Pirogóv aparentava geralmente sentir paixão por tudo que fosse fino e encorajava o pintor Piskarióv; isto talvez acontecesse, por ele desejar muito ver a sua fisionomia viril em um retrato. Mas já é o bastante sobre as qualidades de Pirogóv. O homem é uma criatura tão maravilhosa que nunca se pode enumerar de uma só vez todas as suas qualidades, pois, quanto mais o observamos, outras novas particulari dades encontramos e descrevê-las seria interminável. E assim Pirogóv não tinha desistido de perseguir a desconhecida, de quando em quando entretendo-a com perguntas, às quais ela respondia asperamente, de maneira entrecortada e com alguns sons confusos. Eles entraram pelos portões escuros de Kazan na rua Mechtchânskaia; rua das lojas de tabaco e de miudezas, de artesãos alemães e de ninfas finlandesas. A loura corria cada vez mais depressa até voar pela por ta de uma casa bastante suja. Pirogóv foi atrás. Ela subiu correndo por uma escada estreita e escura e entrou por uma porta pela qual Pirogóv também penetrou valente. Viu-se em um grande aposento de paredes negras e o teto coberto de fuligem. Um montão de parafusos de ferro, ferramentas de serralheiro, cafeteiras e candelabros reluzentes estavam sobre a mesa; o chão estava coberto por limalha de cobre e de ferro. Pirogóv compreendeu imediatamente que se trata107
va da casa de um artesão. A desconhecida borboleteou por uma porta lateral. Ele vacilou por um minuto, mas, de acor do com a norma russa, decidiu seguir em frente. Entrou num aposento que não se parecia em nada com o primeiro, estava arrumado com asseio, o que denotava que o dono era alemão. E ficou abismado à vista de algo extraordinário e estranho: Diante dele estava sentado Schiller, não aquele Schiller que escreveu “Guilherme Tell” e a “História da guerra dos trinta anos”, mas sim o famoso Schiller, mestre dos funileiros da rua Mechtchânskaia. Junto de Schiller, em pé, estava Hoffman. Não o escritor Hoffman, mas o notável sapateiro da rua dos Oficiais, grande amigo de Schiller. Schiller, bêba do, estava sentado numa cadeira, batendo os pés e dizendo algo de modo apaixonado. Como se isso não bastasse, Pirogóv surpreendeu-se ainda mais sobejamente com a estranha posi ção das duas pessoas. Schiller estava sentado, expondo seu nariz bastante grosso com a cabeça levantada para cima; e Hoffman o segurava pelo nariz com dois dedos e dava voltas com a lâmina de sua faca de sapateiro sobre sua superfície. Ambos falavam em alemão e por isso o tenente Pirogóv, que só sabia em alemão “G ut Morgen”, não podia entender nada daquela história. Por outro lado, as palavras de Schiller consistiam no seguinte: — Eu não quero, eu não preciso do nariz! — dizia ele agitando as mãos: — Tenho por causa do nariz um gasto de três libras de tabaco por mês. E compro numa horrível venda 108
russa, porque na alemã não tem tabaco russo, e pago nessa horrível venda russa para cada libra 40 copeques; isto signi fica 1 rublo e 20 copeques; isto significa 14 rublos e 40 copeques. Está escutando, meu amigo Hoffman? Por causa do nariz, 14 rublos e 40 copeques!! A propósito, nas festas eu cheiro rapé, porque não quero cheirar tabaco russo ruim. Eu cheiro por ano duas libras de rapé, por 2 rublos a libra, 6 mais 14 são 20 rublos e 40 copeques, apenas para o tabaco! É ou não é um roubo, eu pergunto a você, meu amigo Hoffman? Não é? H offm an que tam bém estava bêbado respondia afirmativametne: “20 rublos e 40 copeques! Sou um alemão de nobre estirpe; tenho um rei na Alemanha. Eu não quero nariz! Cortem meu nariz! Peguem meu nariz!” E, se não fosse a súbita aparição do tenente Pirogóv, sem dúvida alguma Hoffman teria cortado sem mais nem menos o nariz de Schiller, pois ele já tinha levado a faca àquela po sição como se quisesse cortar uma sola. Schiller ficou bastante irritado pelo fato de um rosto desconhecido e não convidado o ter incomodado de repen te, de maneira tão inoportuna. Apesar de estar sob o efeito embriagador da cerveja e do vinho, ele sentiu o quanto era incoveniente estar naquele estado e prestes àquela ação dian te de uma testemunha desconhecida. Enquanto isso, Pirogóv inclinando-se ligeiramente, como lhe era peculiar, dizia: — Me desculpe... 109
— Fora! — respondeu Schiller, prolongando as sílabas. O tenente Pirogóv ficou desconcertado. Tal tratamento era completamente novo para ele. O sorriso suave em seu rosto desapareceu de repente. Com um sentimento de digni dade ferida disse: — Isso me parece estranho, meu excelentíssimo senhor... o senhor certamente não reparou... eu sou um oficial... — E o que é um oficial! Eu sou um alemão de nobre estirpe. Eu mesmo — e com isso Schiller bateu com o punho na mesa — serei um oficial: em um ano e meio cadete, em dois anos tenente e amanhã mesmo serei um oficial. Mas eu não quero servir. Faço assim com oficiais: “Pfui...’. E Schiller aproximou a palma da mão e soprou nela com nojo. O tenente Pirogóv percebeu que não lhe restava mais nada a não ser se retirar; no entanto, tal procedimento não era digno em absoluto do seu grau e lhe soou desagradável. Parou algumas vezes na escada como se desejasse recobrar o ânimo e pensar a maneira de fazer Schiller entender seu atre vimento. Finalmente, julgou que se poderia desculpar Schiller pois sua cabeça estava cheia de cerveja; ao mesmo tempo pensou na bonita lourinha e decidiu dar o caso por esqueci do. No dia seguinte, bem cedo, Pirogóv apareceu na funilaria do mestre. No primeiro aposento foi ao seu encontro a bela loira e, com voz bastante severa, que combinava muito com seu rostinho, perguntou: — O que o senhor deseja? 110
— Oh! Como vai, minha querida! Você não está me reconhecendo, danadinha? que olhos lindos! — E, dizendo isto, o tenente Pirogóv tentou muito gentilmente levantar o seu queixo. Mas a loirinha com uma exclamação de espanto e com aquela mesma severidade perguntou: — O que o senhor deseja? — Eu não desejo mais nada a não ser ver você — argu mentou o tenente Pirogóv, sorrindo agradavelmente e se apro ximando ainda mais, mas, ao perceber que a loirinha assus tada queria deslizar pela porta, acrescentou: — Eu preciso, minha querida, encomendar umas espo ras. Você poderia me fazer umas esporas? Embora para amar você não são necessárias esporas, mas antes rédeas. Que mão zinhas encantadoras! — O tenente Pirogóv era sempre mui to amável em explicações dessa espécie. — Vou chamar meu marido, já! exclamou a alemã e saiu; e em poucos minutos Pirogóv viu Schiller que aparecia com olhos sonolentos e mal restabelecido da bebedeira da véspera. Olhando para o oficial, lembrou-se como num so nho confuso dos incidentes do dia anterior. Não lembrava exatamente como tudo acontecera, mas sentiu que tinha fei to alguma bobagem e por isso recebeu o oficial com um ar bastante severo. — Pelas esporas eu não posso pedir menos do que 15 rublos, disse ele, com o intuito de se livrar de Pirogóv, pois, como um alemão honrado, sentiu vergonha de olhar para 111
alguém que o tinha visto em situação tão incoveniente. Schiller gostava de beber sem testemunhas, com dois ou três amigos apenas, e se escondia naqueles momentos até mesmo de seus empregados. — E por que tão caro? — disse Pirogóv amável. — É um trabalho alemão — acrescentou Schiller com serenidade, acariciando a barba — um russo aceitará fazê-las por 2 rublos. — Está bem, para provar que eu gosto do senhor e que desejo conhecê-lo, pagarei 15 rublos! Schiller ficou parado por um minuto, refletindo: na qualidade de alemão honesto sentiu um pouco de vergonha. Desejando se esquivar do encargo, declarou que antes de duas semanas não poderia fazê-las. Mas Pirogóv sem objeção al guma manifestou absoluta aprovação. O alemão, pensativo, começou a meditar sobre como fazer o trabalho da melhor forma para que valesse, com efei to, os 15 rublos. Nesse momento a loura entrou na oficina e começou a revolver a mesa cheia de cafeteiras. O tenente se aproveitou da meditação de Schiller para se aproximar dela e lhe apertar o braço desnudo até o ombro. Isto decididamen te não agradou a Schiller. — Meine Frau! gritou. — Was wollen Sie doch? — contestou a loura. — Gehen sie para a cozinha! — a loura se retirou. — Então, daqui a duas semanas? — disse Pirogóv. 112
— Sim, daqui a duas semanas — respondeu Schiller pensativo: — agora tenho muito trabalho. — Até logo, passarei por aqui! — Até logo — respondeu Schiller e fechou a porta atrás dele. O tenente Pirogóv decidiu não abandonar sua busca, apesar de a alemã ter manifestado uma resistência evidente. Não podia compreender como era possível desprezá-lo; ain da mais que sua amabilidade e sua brilhante posição lhe da vam pleno direito à atenção. E necessário dizer também que a mulher de Schiller, apesar de toda sua graça, era muito boba. A estupidez, por outro lado, constitui o atrativo particular de uma esposa bonita. Pelo menos, eu sei que muitos maridos, extasiados com a estupidez de suas esposas, vêem nela todos os sinais de uma virgindade juvenil. A beleza realiza verdadeiros mila gres. Todos os defeitos morais em uma beldade, em lugar de produzirem repugnância, tornam-se, de certo modo, extra ordinariamente atraentes; até mesmo o vício respira nela com suavidade, m as, desaparecendo a beleza, a mulher precisa ser pelo menos vinte vezes mais inteligente que o homem para inspirar, se não amor, pelo menos respeito. Assim, a mulher de Schiller, apesar de toda ã estupidez, fora sempre fiel à sua obrigação, e por isso seria muito difícil para Pirogóv obter êxito em sua audaciosa empresa; mas à vitória sobre um difí cil obstáculo junta-se sempre o prazer, e a loura se tornava 113
para ele cada dia mais interessante. Começou a ir, com fre qüência, se informar sobre as esporas, o que acabou por abor recer Schiller. Ele empregou todas as suas forças para terminálas o mais rápido possível; e finalmente ficaram prontas. — Ah! que trabalho excelente! — exclamou o tenente Pirogóv, ao ver as esporas. — Senhor, como estão bem feitas! Nem o nosso general tem esporas assim. Um sentimento de satisfação brotou na alma de Schil ler. Os seus olhos expressaram muita alegria e ele, se recon ciliou completamente com Pirogóv. — O oficial russo é um homem inteligente — pensou consigo mesmo. — E então, quer dizer, o senhor poderia fazer também um engaste, por exemplo, para um punhal ou para outros objetos? — Oh! claro que posso! — respondeu Schiller com um sorriso. — Pois então me faça um engaste para um punhal. Eu vou trazê-lo. Tenho um punhal turco muito bom, mas gosta ria de fazer outro engaste para ele. Isto atingiu Schiller como uma bomba. Sua testa franziu de repente. — Pronto... — pensou consigo mesmo, censu rando-se interiormente por ele ter se encarregado do traba lho. Recusar parecia desonesto, e além do mais o oficial russo tinha elogiado seu trabalho. Balançando a cabeça algumas vezes, ele expressou o seu consentimento; mas o beijo que Pirogóv deu descaradamente nos lábios da bela loura quan do saia, deixou-o completamente perplexo. 114
Não considero supérfluo apresentar Schiller mais de talhadamente ao leitor. Schiller era um alemão perfeito, no sentido completo da palavra. Já aos vinte anos de idade, naquela época feliz em que um russo vive ao bel-prazer, Schiller tinha já planejado toda sua vida e em nenhum momento abrira exceções. Ele se levantava às 7 horas, almoçava às 2, era sempre exato em tudo e sempre bêbado aos domingos. Em apenas 10 anos decidira fazer um capital de 50 mil rublos, e isto já era tão certo e tão seguro como o destino, pois é mais prová vel que um funcionário se esqueça de dar uma passadinha pela portaria de seu superior do que um alemão resolver mudar de opinião. De nenhum modo ele aumentava seus gastos e, se o pre ço da batata estava subindo em demasia, ele não acrescentava nem um copeque a mais, e reduzia somente a quantidade, e, mesmo que às vezes sentisse um pouco de fome, logo se acos tumava com isso. Sua exatidão chegara a tal ponto que ele resolveu beijar a sua mulher não mais que duas vezes em 24 horas, e, para não fazê-lo nem uma vez a mais, nunca coloca va mais do que uma colherinha de pimenta na sua sopa, no entanto, no domingo esta regra não era cumprida tão rigoro samente, pois Schiller tomava então duas garrafas de cerveja e uma de vodka de cominho, o que aliás costumava ser obje to de censura. Ele bebia não como o inglês que logo depois do almoço fecha a porta com o gancho e enche a cara sozinho. Ao con 115
trário, como um bom alemão, bebia sempre com inspiração, ou com o sapateiro Hoffman, ou mesmo com o carpinteiro Kuntz, também alemão e grande bebedor. Tal era o caráter do nobre Schiller que finalmente se via em uma situação bem embaraçosa. Apesar de ser fleugmático e alemão, o procedimento de Pirogóv suscitava nele algo parecido com o ciúme. Ele quebrava a cabeça, mas não con seguia encontrar a maneira de se safar daquele oficial russo. Enquanto isso, Pirogóv fumando cachimbo com um grupo de amigos, pois, como fora determinado pela Providência, onde há oficiais lá estarão os cachimbos, dava a entender muito significativamente, e com um sorriso agradável, sua aventura com a linda alemã, com a qual, segundo suas pala vras, já tinha muita intimidade e, com efeito, era pouco pro vável que perdesse a esperança de atraí-la para seu lado. Um dia, passeando pela rua Mechtchânskaia, olhou pa ra a casa na qual brilhava o letreiro de Schiller com cafeteiras e samovares e, para sua maior alegria, viu a cabecinha da loura que se inclinava pela janelinha para olhar os transeuntes. Ele parou, fez um cumprimento com a mão e disse: — G ut Morgen. A loura cumprimentou-o como a um conhecido. — Então? seu marido está em casa? — Está, sim — respondeu a loura. — E quando ele não está em casa? — Aos domingos ele não está em casa, disse a bobinha. 116
— Isto é muito bom, pensou consigo mesmo Pirogóv. É preciso aproveitar isso aí. E no domingo seguinte, como uma chuva inesperada, apareceu diante da lourinha. Schiller realmente não estava em casa. A linda anfitriã se assustou, mas Pirogóv procedeu desta vez com muita cautela, tratou-a com muito respeito e, ao cumprimentá-la, exibiu toda a beleza de seu ágil e atra ente talhe. Ele gracejou agradável e com muita cortesia, mas a alemã bobinha respondia a tudo com monossílabos. Fi nalmente, procurando uma saída por todos os lados e vendo que nada a interessava, convidou-a para dançar. A alemã aceitou num minuto, pois as alemãs estão sempre prontas para dançar. Pirogóv baseava nisso todas as suas esperanças: primeiro porque isso lhe causaria prazer, segundo porque poderia exi bir sua silhueta e sua habilidade e, terceiro, porque, dan çando, poderia estar mais perto, abraçar a linda alemã e co meçar tudo, enfim, a partir disso chegar ao sucesso total. Ele começou por uma gavota, pois sabia que com as ale mãs é preciso ser gradativo. A linda alemã se colocou no cen tro do aposento e levantou o maravilhoso pezinho. Esta po sição deixou Pirogóv tão encantado que se atirou a beijá-la. A alemã se pôs a gritar e isso a tornava ainda mais encanta dora aos olhos de Pirogóv, e ele a cobriu de beijos. Mas, de repente, a porta se abre e entra Schiller com Hoffman e com o carpinteiro Kuntz. Todos estes dignos artesãos estavam bêbados como sapateiros. 117
Deixo, no entanto, os próprios leitores avaliarem a cóle ra e a indignação de Schiller. — Ordinário! — gritava ele com a maior fória — como se atreve a beijar minha mulher? É um canalha e não um oficial russo. Com os diabos, meu amigo Hoffinan, sou um alemão e não um porco russo. Hoffman respondia afirmativamente. — Oh! eu não quero ter chifres! Pegue-o, meu amigo Hoffman, pela gola, não quero, continuava ele, agitando as mãos, enquanto seu rosto ficava parecido com o tecido vermelho do colete. — Eu moro em Petersburgo há 8 anos; tenho minha mãe na Suábia e meu tio em Nüremberg; sou alemão e não uma vaca cornuda! Tire tudo dele, meu amigo Hoffman! Segure-o pela mão e pelo pé, camarada Kuntz! — E os alemães agarra ram Pirogóv pelas mãos e pelos pés. Ele se esforçava em vão para se defender; aqueles três artesãos eram os mais robustos de todos os alemães de Petersburgo e o trataram de maneira tão grosseira e com tan ta brutalidade que, confesso, de nenhuma forma encontraria palavras para expressar esse triste acontecimento. Estou certo de que no dia seguinte Schiller estava com uma forte febre, que tremia como uma folha esperando mi nuto por minuto a chegada da polícia e que, só Deus sabe, o quanto ele daria para que todo o ocorrido na véspera ti vesse sido um sonho. No entanto, o que tinha sido não po dia ser mudado. Nada podia ser comparado com a cólera e a indignação de Pirogóv. A própria idéia de tal terrível ofensa o enfurecia. 118
Ele considerou a Sibéria e os chicotes como o mais insig nificante castigo para Schiller. Voou para casa para se vestir e ir ao general descrever, com as cores mais chocantes, a vio lência dos artesãos alemães. Também pretendia apresentar por escrito uma petição ao Estado Maior para, caso a desig nação do castigo fosse insuficiente, aumentá-la ainda mais. No entanto, tudo terminou de um modo estranho: du rante o caminho entrou numa confeitaria, comeu dois pas téis de massa folhada, leu algo no “Abelha do Norte” e saiu de lá já bem mais aliviado. Além do mais, a tarde bastante fresca e agradável o impeliu a dar uma volta pela Avenida Niévski. Por volta das 9 horas ele já estava mais calmo e chegara à conclusão de que seria inconveniente incomodar o general num domingo, além do que, com certeza, ele teria sido cha mado a qualquer parte. E então dirigiu-se à casa do chefe do Departamento de Inspetores, onde havia uma reunião muito agradável de fun cionários e oficiais. Passou a noite ali com prazer, e se sobres saiu tanto na mazurca a ponto de extasiar não somente as damas, mas também os cavalheiros. Que mundo maravilhoso o nosso! pensava eu ao passar pelo terceiro dia na Avenida Niévski, lembrando-me destes dois acontecimentos. De que modo tão estranho e tão in compreensível o destino brinca conosco! Conseguimos algu ma vez aquilo que desejamos? Alcançamos aquilo para que parecem estar intencionalmente preparadas nossas forças? 119
Tudo acontece ao contrário. Para um o destino oferece cava los maravilhosos sobre os quais cavalga com indiferença, sem reparar em sua beleza, enquanto um outro, cujo coração arde de paixão por cavalos, anda a pé e se contenta tão somente em estalar a língua, quando diante dele passa um bom trotador. Aquele possui um excelente cozinheiro, mas, por desgraça, tem uma boca tão pequena que não pode enfiar nela, de nenhuma forma, mais do que dois bocadinhos de comida, o outro tem uma boca do tamanho do arco do edi fício do Estado Maior, mas ai! Tem que se contentar com qualquer comida alemã, à base de batatas. De que modo estranho o destino brinca conosco! Mas o mais estranho de tudo é o que acontece na Aveni da Niévski. Oh! Não acredite na Avenida Niévski. Eu, toda vez que passo por ela, me envolvo ainda mais em minha capa e me esforço para não olhar para nada que me apareça pela frente. Tudo é engano, tudo é sonho, nada é aquilo que pare ce. Pensa você que aquele senhor que passeia de sobrecasaca confeccionada com tanta perfeição é uma pessoa muito rica... De maneira nenhuma: ele todo consiste apenas em sua sobrecasaca. Você imagina que aqueles dois gordões, parados diante de uma igreja em construção, estão apreciando sua arquitetura — nada disso, eles estão falando sobre a maneira estranha com que duas gralhas estão sentadas uma de frente para outra. Você pensa que aquele entusiasta que agita os braços está contando como sua mulher jogou da janela uma bolinha num oficial desconhecido — nada disso, ele fala de 120
Lafayette. Pensa você que aquelas damas... bem, nelas então você deve acreditar menos ainda. Para as vitrines das lojas olhe o mínimo possível: as bagatelas expostas são maravilho sas, mas cheiram a uma espantosa quantidade de dinheiro. E Deus o livre de espiar por sob os chapéus das damas! Mesmo de longe, quando a capa de uma beldade esvoaça, por nada desse mundo iria atrás dela para bisbilhotar. E longe, pelo amor de Deus, longe do lampião! Passe por ele o mais rápido que puder! E você ainda terá sorte se ele se limitar apenas a derramar em sua vistosa sobrecasaca óleo mal cheiroso. Além do lampião, tudo o mais respira engano. A todo momento mente a Avenida Niévski, mas mente mais do que nunca quando a noite a envolve com sua massa espessa e realça as paredes brancas e pálidas das casas, quan do então toda a cidade se transforma em trovão e resplendor e miríades de carruagens despencam pelas pontes, gritam os postilhões saltando sobre os cavalos e quando o próprio demô nio acende os lampiões para mostrar tudo sob um aspecto falso. Notas 1. Os diferentes cargos do funcionalismo russo eram designados por momes bastante pomposos. 2. Grupo de operários ou artesãos contratado por determinado periodo.
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COLEÇÃO LEITURA Teresina e seus amigos —Antonio Cândido, 76 págs. Sobre a modernidade - Charles Baudelaire, 70 págs. Os primeiros contos de três mestres da narrativa latino-ameri cana - O besouro e a rosa - Mário de Andrade; São Marcos —Guimarães Rosa; A mulher que chegava às seis —Gabriel Garcia Márquez, 80 págs. O príncipe - N. Maquiavel, 156 págs. Senhorita Else - Arthur Schnitzler, 110 págs. Os dentes da galinha —Stephen Jay Gould, 83 págs. Os assassinatos na rua Morgue / A carta roubada — Edgard Allan Poe, 91 págs. O fantasma de Canterville / O príncipe feliz - Oscar Wilde, 69 págs. Crônicas de Antônio M aria —Antônio Maria, 77 págs. Um coração simples - Gustave Flaubert, 55 págs. A filh a do negociante de cavalos / A meia branca / S o l- D. H. Lawrence, 108 págs. O Beagle na América do Sul - Charles Darwin, 72 págs. Escola de Mulheres - Molière, 92 págs. Camões: verso eprosa —Luís Vaz de Camões, 127 págs.
O m ito do desenvolvimento econômico — Celso Furtado, 88 págs. Cinema: Trajetória no subdesenvolviento —Paulo Emílio Salles Gomes, 12 págs. A Santa Joana dos Matadouros - Bertolt Brecht, tradução e ensaio: Roberto Schwarz, 189 págs. A Revolução Francesa —Eric J. Hobsbawm, 57 págs. Contos —Machado de Assis, 136 págs. Na colônia penal —Kafka, 51 págs. O mandarim —Eça de Queiroz, 100 págs. Macbeth - Shakespeare, 109 págs. Uma história lamentável —Dostoievski, 101 págs. O manifesto comunista—Karl Marx e Friedrich Engels, 67 págs. A lição do mestre —Henry James, 120 págs. Antigona —Sófocles, tradução: Millôr Fernandes, 56 págs. Iracema —José de Alencar, 130 págs. Pedro Páramo - Juan Rulfo, 162 págs. O conde de Gobineau no Brasil —Georges Raeders, 88 págs. A arte da guerra —Sun Tzu, 144 págs. Cinco contos - A Fuga; Je ne parle pas français; Senhorita Brill; A vida de mãe Parker; Tomada de hábito - Katherine Mansfield, 96 págs. A dama dos camélias —Alexandre Dumas, 132 págs. Pedagogia da autonomia —Paulo Freire, 166 págs. Profissão para mulheres; O status intelectual da mulher; Um toque feminino na ficção; Kew Gardens - Virginia Woolf, 52 págs.
Canas a Che Guevara - O mundo trinta anos depois - Emir Sader, 85 págs. Contos de Andersen - Hans Christian Andersen, 136 págs. Na terra dasfadas - Bruno Bettelheim, 102 págs. O romance está morrendo? —Ferenc Fehér, 103 págs. Enéias —Gustav Schwab, 115 págs. Do pudor à aridez - Anne Vicent-Buffalt, 130 págs. A mulher/ Os rapazes —Michel Foucault, 131 págs. Cinco Mulheres - Lima Barreto (org. Daniel Piza), 76 págs. Peixinhos Dourados —Raymond Chandler, 74 págs. Cultura e Política - Roberto Schwarz, 187 págs. Cultura e Psicanálise - Herbert Marcuse (org. Isabel Lourei ro), 122 págs. O cinema brasileiro moderno —Ismail Xavier, 159 págs. Poemas —Augusto dos Anjos, seleção de Zenir Campos Reis, 115 págs.
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A
obra de Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) foi um marco no desenvolvimento da literatura russa do sécu lo XIX. Dostoiévski chegou a declarar que "Todos nós saímos do Capote de Gógol", referindo-se ao conto O Capote, uma das obras-primas da literatura mundial, para aludir, certamente, aos desdobramentos da obra gogoliana nos rumos da prosa e do teatro russo. O aspecto inovador no plano da linguagem, estilo e gêneros dramáticos e narrativos, a construção de enre dos e de personagens inusitados, o trágico e o cômico que se mesclam a elementos de terror e humor, a análise satíri ca da sociedade de seu tempo, conferem aos textos gogolianos uma vibração particular, rica de nuances, uma multiplici dade de planos que continuam a desafiar o leitor contem porâneo. ■ Prova disso são os dois textos aqui apresentados, em tradução direta do russo: tanto a peça À saída do teatro depois da apresentação de uma nova comédia, inédita em português, quanto o conto A Avenida Niévski podem se inte grar perfeitamente dentro do panorama da arte moderna e contemporânea. Aríete Cavaliere Colagem d e pinturas: Konstantin Yuon, Burgo Serguiev, 1910 e Alexander Golovin, Boris Godunov da ópera de Músorgsky, 1912. 5—c
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PAZ E TERRA